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diff --git a/21290-h/21290-h.htm b/21290-h/21290-h.htm new file mode 100644 index 0000000..e64be65 --- /dev/null +++ b/21290-h/21290-h.htm @@ -0,0 +1,8028 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN"> +<html> + +<head> +<meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=iso-8859-1"> +<title>The Project Gutenberg eBook of Os Bravos Do Mindello. Author: Faustino Da Fonseca.</title> + + +<style type="text/css"> +<!-- + +body {font-size: 1em; text-align: justify; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} + +h1 {font-size: 140%; text-align: center; margin-top: 2em; margin-bottom: 2em;} +h2 {font-size: 130%; text-align: center; margin-top: 4em; margin-bottom: 2em;} +h4 {text-align: center; margin-top: 2em; margin-bottom: 1em;} +h5 {font-size: 120%; text-align: center; margin-top: 1em; margin-bottom: 2em;} + +table {border-collapse: collapse; table-layout: fixed; + width: 90%; margin-left: 5%; margin-top: 1em; margin-bottom: 1em;} + +hr.third {margin-left: 35%; width: 30%; margin-top: 2em;} + +ul {list-style-type: none; margin-left: 20%;} + +.pagenum {visibility: hidden; position: absolute; right:0; + font-size: 10px; text-align: right; + color: #C0C0C0; background-color: inherit;} + +.poem {margin-left: 15%;} + +.add2em {margin-left: 2em;} + +.td-right {text-align: right;} + +.ralign {position: absolute; right: 5%;} +.ralign60 {position: absolute; right: 40%;} + +--> +</style> + +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Os Bravos do Mindello, by Faustino da Fonseca + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Os Bravos do Mindello + Romance Histórico + +Author: Faustino da Fonseca + +Release Date: May 4, 2007 [EBook #21290] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS BRAVOS DO MINDELLO *** + + + + +Produced by Ricardo F. Diogo, Christine P. Travers and the +Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net + + + + + + +</pre> + + + +[Nota do transcritor: Esta obra apresenta algumas inconsistências +ortográficas.] + + +<h5>Obras de Faustino da Fonseca</h5> + + +<p><i>Lyra da Mocidade</i> (primeiros versos) 1892. Exgotado +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Tres mezes no Limoeiro</i>, 1896, 1.<sup>a</sup> edição com illustrações + de Leal da Camara. Exgotado +<span class="ralign">1 vol.</span> + +<p>Segunda edição (popular) +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>O descobrimento do caminho maritimo para a India</i> +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>A descoberta da India</i> (Drama historico em 5 actos) 1898 +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>O escandalo dos dramas do concurso do centenario + da India</i>, 1898 +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Regresso ao Lar</i>, romance, 1896, com illustrações + de Roque Gameiro (folhetim em <i>O Seculo</i>.) +</p> + +<p><i>A descoberta do Brasil</i>, 1900, com illustrações de + Roque Gameiro, cartas, mappas, fac-similes de + documentos. Exgotado +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Pedro Alvares Cabral</i>, 1900 +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Ignez de Castro</i> romance historico, 1900. 1.<sup>a</sup> edição + com illustrações de D. Virginia da Fonseca, + Augusto Pina, Bemvindo Ceia. Exgotado +<span class="ralign">4 vol.</span></p> + +<p>Segunda edição (popular) com illustrações de Alfredo + de Moraes +<span class="ralign">2 vol.</span></p> + +<p><i>Escravos</i>, romance, 1901 (folhetim em <i>A Folha do + Povo</i>.)</p> + +<p><i>Padeira de Aljubarrota</i>, romance historico, 1901, com + illustrações de Bemvindo Ceia +<span class="ralign">2 vol.</span></p> + +<p><i>As mulheres portuguêsas na Restauração de Portugal</i>, + romance historico, 1902, com illustrações + de Roque Gameiro +<span class="ralign">3 vol.</span></p> + +<p><i>El-rei D. Miguel</i> (chronica popular do absolutismo) + 1905. Illustrado com retratos e monumentos +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Os filhos de Ignez de Castro</i>, romance historico, em + collaboração com Joaquim Leitão, 1905 +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Anedoctas de reis, principes e outras personagens + portuguêsas e estrangeiras</i>, extrahidas, traduzidas, + compiladas e prefaciadas, 1905 +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Bons ditos de reis, principes e outras personagens + portuguêsas e estrangeiras</i>, extrahidas, traduzidas, + compiladas e prefaciadas, 1906 +<span class="ralign">1 vol.</span></p> + +<p><i>Beijos por lagrimas</i>, romance historico. 1906 (folhetim + em <i>A Lucta</i>).</p> + + + +<h5>FAUSTINO DA FONSECA</h5> + +<h1>OS BRAVOS<br>DO MINDELLO</h1> + +<h4>ROMANCE HISTORICO</h4> + + +<h4>LISBOA</h4> + +<h4>Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso<br> +<i>5—Largo de Camões—6</i><br> +1906</h4> + + + + +<h2>I <span class="pagenum"><a id="page005" name="page005"></a>(p. 005)</span></h2> + + +<p>Ao tiro de peça acordou João de um inquieto somno de namorado e, +apoiando o cotovelo no grande leito de alta cabeceira de tarja, +prestou attenção.</p> + +<p>Seria salva do castello, ou vinha navio de Lisboa confirmar as +aprehensões dos sonhos agitados em que Maria se esquivava sempre ao +caloroso enlace dos seus braços, e um subito quebranto o +impossibilitava de perseguil-a, e um sobresalto, como que a queda do +ideal, interrompia o laborioso despertar da sua estuante virilidade?</p> + +<p>Não se repetiram detonações que o tranquilisassem e, no brando rumor +cantante e alegre, reconheceu o <span class="pagenum"><a id="page006" name="page006"></a>(p. 006)</span> romper d'alva. Deitou pelos +hombros um capote azul de cabeção, e fechos de prata, apagou a candeia +de ferro cujo espelho areado reluzia e tirou a tranqueta que especava, +desde a cunha ao encaixe da parede, o postigo das pesadas portas de +cedro da janella de peitoril.</p> + +<p>Pelo pequeno caixilho de minguados vidros azulados percebeu a confusa +luz da manhan.</p> + +<p>Então destrancou vigorosamente as portadas, retirando o grosso +cilindro ao longo da cava da cantaria e, depondo-o contra o poial, +puchou para si os dois pesados batentes e debruçou-se com avidez.</p> + +<p>—Muito madrugaste hoje—disse-lhe debaixo a tia Pulcheria, ajoujada á +celha das lavagens, avental de barras amarellas, ainda com a rede de +dormir apanhando os cabellos brancos.</p> + +<p>Deu-lhe os bons dias e viu-a, por entre os claros da parreira de +Alicante, dirigir-se ao curral onde grunhia o porco alegremente, o +focinho bronco farejando por cima da cancella.</p> + +<p>—Não ouviu uma peça, tia?</p> + +<p>—Ha de ser navio de Lisboa.</p> + +<p>Em passo miudinho, muito activa, a arregaçada cheia de milho, acudia +ao tumulto da capoeira, onde o gallo repenicava, em desafio com os +visinhos, emquanto da <span class="pagenum"><a id="page007" name="page007"></a>(p. 007)</span> pocilga rompia um grunhido satisfeito, +misturado ao chapinhar na agua de semeas.</p> + +<p>Rompeu no castello o toque da alvorada, o echo vibrante do clarim +dando o signal do batalhão, e o terno de cornetas atacou as notas +baixas, até se casarem n'um hymno ao triumphal raiar da aurora.</p> + +<p>Passavam chocalhos de machos carregados de trigo para os moinhos do +Pisão.</p> + +<p>Apregoavam leite homens do monte, vindos da Ribeirinha, barba ruiva, +pé descalço, vestidos de linho branco alvo de neve, a camisola presa +no pescoço por botões de oiro, carapucinha preta com orelhas +vermelhas, pequena como a palma da mão, posta á banda n'um elegante +equilibrio, batendo o bordão com rendilhados na ponteira; rolhas de +pasto no bico negro das cabaças defumadas, com pontos a cordel em +fendas, por onde o leite gotejava, aos solavancos do pau posto ao +hombro esquerdo.</p> + +<p>Apregoavam rapa, vergando a grandes molhos, apressados pastores, +anciosos por se livrarem da carga, trazida desde noite do matto.</p> + +<p>Chiavam carros n'uma orgulhosa competencia, irritando em furiosos +latidos os cães das quintas.</p> + +<p>Soaram trindades em Santa Luzia, vibrou na alegria da madrugada esse +toque de sino, impregnado ao <span class="pagenum"><a id="page008" name="page008"></a>(p. 008)</span> pôr do sol pela melancholia da +tarde; seguiu-se-lhe o repique annunciando festa; tocaram na Sé á +missa das almas.</p> + +<p>Cessou o bater da roupa no lavadoiro da pia, persignaram-se +devotamente e benzeram-se de hombro a hombro a creada e a tia +Pulcheria.</p> + +<p>Veiu de dentro benzendo-se tambem a tia Dorotheia, mais pesada, mais +gorda, encher a talha no perenne jorro d'agua gorgolejando no tanque, +onde os peixes vermelhos mostravam o amplo e fundo d'essa abundancia +de agua, trasbordando para a grande pia de lavar, dando viço aos +cravos, rosas, secias e perpetuas dos canteiros, á madresilva da +janella, á abobora do telhado do forno, ao pé de vinha nascido de +encontro á pedra do fundo, desenvolvendo-se em ramadas junto da +arquinha onde se espetava a bica de ferro.</p> + +<p>Recolheu-se, para o não verem faltar á oração matinal e, assim de pé, +varejava-lhe o olhar o braço d'agua que dera o nome d'Angra á sua +cidade.</p> + +<p>Mas não avistava esse navio todos os dias receiado, cujo tiro +alarmante vinha findar-lhe os devaneios.</p> + +<p>Saíam á pesca barcos á vela, avivando o azul n'um recorte de garça; +vogavam outros em cadencia, como buzios <span class="pagenum"><a id="page009" name="page009"></a>(p. 009)</span> deitando por banda +as curvas pernas a fugirem no calhau.</p> + +<p>Latinos inclinados, bordejava um cahique por dobrar a ponta de Santo +Antonio e entrar no porto onde soprava o vento carpinteiro, lenhador +de navios, dos ilheus ao caes da Figueirinha.</p> + +<p>Illuminava o nascer do sol a humida neblina, desenrolando altas +montanhas, picos azulados, sinuosidades como largas muralhas +flanqueadas por torres, das que vira em registos dos logares santos, +cidades, extensas bahias, arvoredos polvilhados d'oiro, reflexos da +Antillia submergida, que havia de irromper das ondas quando voltasse +el-rei D. Sebastião no cavallo branco; miragem da propria ilha, como a +que arrastára os descobridores a aproarem ao mysterio dos horizontes +sem fim, até ao desengano do gelo do Labrador e da Terra Nova, á +inextricavel vegetação de sargaços d'esse mar de inferno.</p> + +<p>Tambem sentia a ancia do desconhecido, herdada dos primeiros +povoadores da ilha Terceira, base das arremettidas a esse mysterioso +oriente, que pretendiam tomar por occidente, dando por fim rumo a +Colombo; tambem queria saber o que haveria para álem da curva do mar +largo, essas terras onde tudo <span class="pagenum"><a id="page010" name="page010"></a>(p. 010)</span> se decidia: a França, mãe da +liberdade, regressada ao antigo regimen, invadindo a Hespanha +constitucional, o que animara D. Miguel a derrubar na Villafrancada as +instituições de Vinte; a Hespanha, de Cadiz, a cujo exemplo estalára a +revolução de 24 de agosto de 1820, tentando agora restabelecer a +inquisição; a Inglaterra, que apoiára a carta constitucional doada por +D. Pedro, e decerto auxiliaria a revolução de 18 de maio contra a +usurpação de D. Miguel, secundada na ilha em 22 de junho, ainda não +havia um mez; o Brasil de onde vinha dinheiro; Portugal para onde iam +tributos; Lisboa, de onde uma embarcação traria um primo para lhe +arrebatar a mulher amada, ou viria buscal-a e levar-lha.</p> + +<p>Annullado na absorpção do mar largo e das terras aonde conduzia, +surgiu-lhe de repente, a pannos largos, guinando n'uma bordada, saindo +detraz do Monte Brasil, a fragata <i>Princesa Real</i>, mostrando no +balanço a bateria rasa, cintada de peças negras em carretas vermelhas +abocadas ás portinholas.</p> + +<p>Colheu o velame dos tres mastros, soltou a ancora, e o golpe rapido da +antena, fazendo respingar a agua, foi o signal para o saltearem +lanchas e escaleres.</p> + +<p>Tudo <span class="pagenum"><a id="page011" name="page011"></a>(p. 011)</span> acabaria assim?</p> + +<p>Sentia-se ligado áquelle navio, dependente da sua rota, do porto de +onde vinha, do ancoradouro para onde havia de largar, das cartas que +trazia no forte bojo, e espicaçava-o o impeto de sair d'essa +dependencia, á mercê do que vinha de fóra, elle como a terra; de +reagir dentro do seu meio, do seu circulo, dos seus desejos, das suas +esperanças, por fórma a terem que contar com elle.</p> + +<p>Havia de ficar áquella mesma janella, vendo-o perder-se na bruma, +adivinhando, no palpitar de um lenço, a noiva perdida para sempre?</p> + +<p>Voltou-se e olhou ao longo da grande bahia do Fanal, a oeste do Monte +Brasil, desde a encosta da serra de Santa Barbara, até ás recortadas +negruras de S. Matheus da Calheta, aonde a espuma arrebentava.</p> + +<p>Sem uma incerteza, por entre a mancha escura dos pomares de S. Carlos +e do Pico da Urze; em meio do xadrez de cerrados amarellos de trigo, +verdes de milharaes, negros da ceifa; fitava o mirante da quinta onde +ella o vinha esperar, o caramanchel em que passavam tardes, o casarão +onde um pae lha defendia.</p> + +<p>Como que via já o pateo cheio, carros de bois carregando <span class="pagenum"><a id="page012" name="page012"></a>(p. 012)</span> os +grandes bahus, ha mezes atulhados de rouparia, empachando a casa de +entrada; e o carroção de coiro bolorento, baloiçando-se nas grossas +correias, de largas fivellas areiadas, arrastado á força da aguilhada +por duas juntas, de guiseiras, levando Maria ao embarque, chocalhando +ferrugentas ferragens.</p> + +<p>Ficou por muito tempo sentado no poial de pedra da janella, a fronte +apoiada na mão esquerda, os dedos entre o cabello castanho anelado, +anediando o ligeiro buço, os olhos pregados na quinta dos Folhadaes, +pensando no que devia fazer.</p> + +<p>Ao tocarem matinas na Sé, começou a preparar-se para saír.</p> + +<p>Do quintal bateu palmas a tia Dorotheia.</p> + +<p>Estava prompto o almoço, e elle decidido a seguir Maria, se a levassem +para Lisboa.</p> + +<p>Reconquistou-o ao descer da torre a sentimentalidade do lar, no cheiro +do comer, no arrastado dos chinelos das tias, no tinir da louça da +India, no tlintar dos talheres de prata, no ranger do trabalhado +armario de madeira do Brasil, com guarnições tremidas e remates +arrendados.</p> + +<p>Deu-lhes os bons dias, ellas beijaram-o e afagaram-o, e quando se +sentou na cadeira de espaldar, de <span class="pagenum"><a id="page013" name="page013"></a>(p. 013)</span> onde o pae e o avô +presidiam á grande meza oval, de pés torneados e parafusos de prata, +cujas abas se fechavam para sempre á medida que a familia se reduzia, +esmoreceram-lhe os impetos, esvaíu-se-lhe a energia.</p> + +<p>Amolentara-o a educação mulherenga, creado entre rabos de saias, +adormecido com pavorosos contos de lobishomens e almas do outro mundo.</p> + +<p>Pobres velhas! Morreriam de dôr se lhes faltasse.</p> + +<p>E as ambições de viajar, de seguir uma carreira, de ser alguem, iam-se +no resignado aniquilamento, na tendencia para a meditação, de que o +haviam adoecido os dias abafadiços e humidos.</p> + +<p>—Já saes?—perguntou Pulcheria, mirando-o atravez dos oculos de +tartaruga.</p> + +<p>Dorotheia accrescentou que não era dia de lição, e o dominio das +velhas impoz-se-lhe, como sempre, tomando-lhe conta de todos os +passos, vigiando-lhe as saídas e entradas, fazendo-lhe scenas de +lagrimas quando voltava tarde «do caminho da perdição!»</p> + +<p>Não resistia, não se insurgia, não protestava, mas nem por isso +deixava de sair e entrar quando lhe parecia, embriagando-se de +liberdade, sem pae que o <span class="pagenum"><a id="page014" name="page014"></a>(p. 014)</span> derrancasse nas sovas que +humilhavam outros da sua edade, ao recolherem fóra d'horas.</p> + +<p>—Nem que fosse dia de lição irias hoje ao padre Jeronymo.</p> + +<p>Pulcheria, magra e sêcca, nervosa, solteirona, alludia á chegada do +navio de Lisboa, sublinhando com intenção.</p> + +<p>E Dorotheia, viuva, mais prompta á lagrima, supplicou-lhe:</p> + +<p>—Não te vás meter em trabalhos.</p> + +<p>—Não se fala senão de vinganças, de prisões, credo!—apoiou +Pulcheria.</p> + +<p>Dorotheia, no instincto de dona de casa, abrangeu logo o lado +economico das perturbações:</p> + +<p>—Tudo mais caro. Os ovos já estão a quatro por um vintem, e querem +uma serrilha por uma gallinha. Os homens do monte fingem ter medo de +entrar na cidade, e não passam do Desterro onde açambarcam a manteiga, +os ovos e as gallinhas os revendilhões, que põem tudo pela hora da +morte, desculpando-se que lhes pediram um horror de dinheiro. A cada +má noticia que vem de Lisboa, os lojistas enchem-se augmentando os +preços. Assim tem hoje casas e quintas essa orgulhosa caixeirada que +veiu para ahi de tamancos! Já não se pagam fóros, <span class="pagenum"><a id="page015" name="page015"></a>(p. 015)</span> ha que +tempos não entram aqui os cestinhos de ovos que nos trazia o capitão +Toledo das Doze, nem os casaes de frangos da Fonte do Bastardo. Para +que não se acabe a capoeira, a mana tem deitado ovos em chôco, mas +logo na noite da revolta, com os tiros dos soldados do Lobão contra os +milicianos, foi-se uma ninhada inteira, dezasete ovos de gallinhas das +Flores que põem duas vezes por dia! É o que se ganha com essas +façanhas dos constitucionaes.</p> + +<p>—Ó tia!...—interveiu sorrindo.</p> + +<p>—Se não has-de defendel-os, não fosses todo do Juvencio!—commentou +Pulcheria, mais directamente ferida pelo gôro.</p> + +<p>Dorotheia censurou, muito sentida:</p> + +<p>—Estás sempre metido na botica a lêr as gazetas, e decerto lá vaes +encafuar-te a saber o que veiu de Lisboa, essa Babilonia, Sodoma e +Ghomorra, a corrupta e devassa Lisboa, como préga, acceso em santas +iras, fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria.</p> + +<p>—Quando o vinho do morgado lhe sobe á cabeça.</p> + +<p>Pulcheria reprimiu João n'um olhar.</p> + +<p>—Não te fica bem o que fazes, nem o que dizes. Fr. <span class="pagenum"><a id="page016" name="page016"></a>(p. 016)</span> Angelico +é muito de casa do senhor morgado dos Folhadaes, o nosso protector. +Elles são do senhor D. Miguel.</p> + +<p>—Estão no seu direito.</p> + +<p>Dorotheia acudiu com a questão do dinheiro:</p> + +<p>—Lembra-te que elle te dá quatro patacas por mez pela escripturação +dos rendeiros; e pelas festas, pelo Espirito Santo, e pelas matanças +manda sempre os seus presentes em salva de prata, com sua toalha de +damasco. Teu pae e teu avô foram muito d'aquella casa, e tu mesmo és +tratado como amigo.</p> + +<p>E reparando na distracção d'elle:</p> + +<p>—Não comes nada? Grande coisa tens hoje!</p> + +<p>Pulcheria observou-o tambem:</p> + +<p>—Naturalmente os pedreiros livres estão falados para a chegada do +navio de Lisboa.</p> + +<p>Retumbou na cosinha um penoso suspiro, como das almas penadas dos +contos, e João surprehendeu a creada, a velha Maria da Assumpção do +Corpo Santo, que lhos contava, movendo os seccos braços inchados de +veias, os dedos ossudos em esgares de esconjuro, depois ungindo a +testa encarquilhada, o nariz acavallado, os beiços pendentes, mascando +a sua maneira especial de se benzer:</p> + +<div class="poem"> +<p>Eu <span class="pagenum"><a id="page017" name="page017"></a>(p. 017)</span> me benzo c'os tres cravos<br> + Abraçados n'uma cruz<br> + Para que possa dizer<br> + Santo nome de Jesus:</p> + +<p>A cruz desça do ceu<br> + E se deite sobre mim<br> + O Deus que n'ella padeceu<br> + Elle responda por mim.</p> +</div> + +<p>Por fim o dedo pollegar da mão direita, tornado bento pela tarefa +redemptora, foi beijado devotamente, e só depois a serva se virou para +o lar.</p> + +<p>Dorotheia commentou, compadecida:</p> + +<p>—Dão com ella em doida as innovações dos constitucionaes. Demora-se +toda a manhan nas compras, porque vae para a Sé pôr-se de empada, a +rezar, a rezar, em desaggravo ás heresias, aos desacatos.</p> + +<p>Pulcheria insistiu teimosa, devorando o sobrinho com os olhos:</p> + +<p>—É para o que servem os pedreiros livres!</p> + +<p>Elle riu n'uma explosão juvenil.</p> + +<p>—Pedreiros livres? Julga-me talvez? Tem graça!</p> + +<p>A <span class="pagenum"><a id="page018" name="page018"></a>(p. 018)</span> tia confirmou:</p> + +<p>—A senhora Joaquinina do Ó vê-te sempre no falatorio da botica, e +toda a gente sabe que é ali o coio dos que beijam o diabo á meia +noite.</p> + +<p>—Admiro-me que uma mulher de tanta virtude, que anda sempre com o +cordão de São Francisco á cinta, não diga que tambem lá vê, a jogarem +o gamão, os meus mestres, o senhor conego Penedo, o senhor padre +Jeronymo Emiliano d'Andrade e o senhor conego Ferraz, governador do +bispado.</p> + +<p>—Esses são pedreirões dos grandes!</p> + +<p>—Pois tia, antes me quero com elles do que com fr. Angelico da +Immaculada e as suas confessadas, como a senhora Joaquinina do Ó.</p> + +<p>Comera os figos lampos do quintal, as postas de moreia frita a que +escolhia a pelle torriscada, o <i>affonso</i> de lapas em que o marisco +guisado e o longo musgo das conchas conservavam o acre sabôr do mar; e +tomára, já levantado, o café com leite, esse delicioso café vindo +directamente do Brasil, em paga das saias bordadas em que se +entretinham as tias.</p> + +<p>De olhos no tecto e mãos postas, repetiam tres vezes as velhas, junto +da meza «Bemdito seja Deus, que me deu de comer sem eu lh'o merecer», +notando desgostosas que João se esquivava ultimamente á <span class="pagenum"><a id="page019" name="page019"></a>(p. 019)</span> +acção de graças, o que para Pulcheria era um signal certo de pacto com +o Demonio.</p> + +<p>Despediu-se, saiu, passou ás Monicas lançando um olhar irritado ao +convento, cujas grades a liberdade havia de arrancar, desceu a ingreme +Myragaia, notou grande movimento no palacio do governo, mas, evitando +comprometter-se para com o morgado, não entrou a perguntar novidades +de Lisboa.</p> + +<p>Voltou á rua do Convento da Esperança, e passou por diante do collegio +dos jesuitas, tendo em frente a farta cerca dos franciscanos, a +frontaria do convento esburacada de janellinhas como um pombal, a +fachada com dois grandes braços cruzando-se de punhos fechados contra +a cidade—as armas de S. Francisco.</p> + +<p>Virando a esquina entrou na praça, e foi direito á botica, ao canto do +Passo onde parava a procissão e se cantavam motetes.</p> + +<p>Para ir ali tinha a justificação de falar ao mestre, e trazia-a +engatilhada para alguma pergunta do morgado.</p> + +<p>Esbravejava o boticario, tornando a loja em club:</p> + +<p>—Aqui não se recebem ordens do Miguel! Isto não é terra de burros nem +de corcundas. Bem se quer fazer fino, mettendo-nos á cara o decreto, +o <span class="pagenum"><a id="page020" name="page020"></a>(p. 020)</span> capitão general, mas para cá vem de carrinho! O presidente +da camara convocou uma reunião extraordinaria, a que concorreram as +principaes pessoas dos tres estados, clero, nobreza e povo, e +resolveram não cumprir as cartas regias por falta das formulas da +carta constitucional. E a fragata ha de sair immediatamente, ou não +sae mais, que se lhe ferram dois balasios, e era uma vez uma <i>Princesa +Real</i>!</p> + +<p>Não iria n'aquelle navio! E respirava desafogado. Agora nada mais lhe +importava.</p> + +<p>Dissipava-se-lhe o terror, mas aproveitaria a lição, e não ficaria +sujeito ao risco de a ver partir sem que nada tentasse para impedil-o. +Sentia-se bem, tinha vontade de correr, de saltar, como ao sair da +lição de latim do conego Penedo, um alto vermelhaço, de cabello branco +com laivos do passado loiro, olhos azues escarnecendo atravez dos +occulos de aros d'oiro, que tratava uns discipulos por Ciceros e +outros por bêstas, e na rua correspondia aos cumprimentos com a mão +fechada, murmurando uma grossa obscenidade dita por entre os dentes +brancos e largos, onde se arrastavam ruidosamente os érres.</p> + +<p>Como no momento de libertação em que a garrida chamava <span class="pagenum"><a id="page021" name="page021"></a>(p. 021)</span> os +conegos á Sé, e Penedo, bufando, contrariado, repoltreava-se na grande +cadeira do côro, cabeceando, a remoer o ripanço em voz roufenha, ia +João na doidice do mar que, antes de enamorado, era o seu encanto.</p> + +<p>Sentia-se tão livre de cuidados como se tornasse annos atraz, quando +corria pela praia, emquanto espaireciam os conegos, pausadamante, rua +da Sé acima, até ao Passeio do Alto das Covas, onde ficavam +cavaqueando, pitadeando-se, ou deitavam, a desenferrujar as pernas, +portões de S. Pedro em fóra, até ás quintas do Caminho do Meio, a +admirarem as vinhas, n'um culto pagão mais sincero do que aquelle em +que ganhavam a vida a dentro do grande templo frio e escuro.</p> + +<p>Tinha o desejo infantil de vêr, com os proprios olhos, sair o navio, +para ficar com a certeza de que podia dedicar-se a resolver a sua +situação para com Maria, antes que surgisse outra ameaça.</p> + +<p>Evitou o movimento do pateo da alfandega onde se accalorava a questão +politica, seguiu pelo areal da Prainha, junto a destroços de +naufragios, pranchões crivados pelo furo do gusano, chapas de cobre +onde cracas e lapas, toda a riqueza organica das aguas, punham +colonias de pequenos seres; depois abandonou <span class="pagenum"><a id="page022" name="page022"></a>(p. 022)</span> o carreiro do +areal batido pelo constante perpassar, onde já plantas desafiavam o +beijo da resaca, e aproveitava a descida da onda para saltar de pedra +em pedra.</p> + +<p>Passou o Portinho Novo e foi até aos penedos do caes da Figueirinha, +onde pescadores, perna pendente, pescavam á canna, aproveitando a +fundura da rocha viva.</p> + +<p>Via-se limpidamente a agua escurecida pelo monte, até aos pedregulhos +do fundo, onde a isca de trapo procurava o polvo. Passavam pequenas +sombras fugidias, sumia-se uma lagosta n'uma fenda, vibrava uma moreia +coleante, relampejavam cardumes de sardinha, corriam laivos azues e +vermelhos de peixes-reis e bodeões. Acudiam engodados, vinham em +cardume á çaga de um barco que recolhia, andavam á babugem dos navios +arrastada pelo mar para o recanto da angra.</p> + +<p>Á picada no anzol correspondia a saccada lesta do caniço; saltava um +peixe, debatendo-se, enrolando-se na linha; estrangulava-o o pescador +adentanhando a guelra; lançava-o ao cesto, onde a frescura dos mais +emprestava um resto de vida ao estrebuchar da sua agonia.</p> + +<p>Mas o cação voltava para o mar degolado, com um <span class="pagenum"><a id="page023" name="page023"></a>(p. 023)</span> escarro de +desprezo no bico; e seguia-o o sargo, repugnado por sugar os olhos +d'afogados.</p> + +<p>Subiu a Rocha até ao Relvão.</p> + +<p>Ouvia o batucar dos cutellos picando o engodo no castello de prôa dos +barcos de pesca apoitados ao longe; sentia guinchar o cabrestante a +bordo da fragata, alando os ferros.</p> + +<p>Abrigado do sol contra a muralha do castello de S. João Baptista, +encostado ao granito, as pernas estendidas na relva, viu-a largar os +pannos mal rizados, afastar-se em bordos, a montar os Ilheus, em rumo +da ilha de S. Miguel, e quando ella se sumiu de todo sentiu-se como +protegido pela poderosa fortaleza que a obrigára a retirar, por esse +castello que fôra o symbolo da oppressão hespanhola e se tornára a +unica esperança da liberdade portuguesa!</p> + + + + +<h2>II <span class="pagenum"><a id="page025" name="page025"></a>(p. 025)</span></h2> + + +<p>Com alegre surpreza das tias, João entrou á hora do jantar, ao meio +dia em ponto; mas em breve lhes tirou toda a illusão de que não o +interessassem os acontecimentos cujo echo já chegava á Pereira.</p> + +<p>Comeu á pressa, foi aperaltar-se para vêr Maria, e saiu logo, de +chapeo alto de aba direita, casaca de briche nacional côr de castanha +de quatro botões nas abas, collete de grande gola, alta gravata em +volta ao collarinho, calça branca e botas altas de canhão amarello.</p> + +<p>Merendaria na quinta, não contassem com elle.</p> + +<p>E d'ahi a pouco estava na botica, sabendo os ultimos boatos, +occultando-se da Joaquinina do Ó e <span class="pagenum"><a id="page026" name="page026"></a>(p. 026)</span> de outras beatas +bisbilhoteiras, que rondavam o Juvencio, embiocadas no manto negro dos +pés á cabeça, saia de merino preto, o capuz envolvendo-as do taboleiro +de cartão até á cintura, onde passava pregueando-se, estreitamente +cingido; os braços apanhando os extremos do involucro e rebuçando-o na +frente, por fórma a só ficar aberto um pequeno oculo, no extremo do +canudo de cartão, que se movia como um bico de passaro, apontando-se +sinistramente no faro da curiosidade, permittindo-lhes verem sem serem +vistas, para irem delatar no confessionario.</p> + +<p>D'ahi a pouco caminhava pelo campo, ao longo de muros de pedra solta, +evitando a poeirada, contrariando n'uma marcha de automato o seu +incorrigivel acanhamento.</p> + +<p>Lembrava saudoso a infancia em que, fugindo á escola de primeiras +lettras, saltava paredes á cata de ninhos, de gafanhotos, de cigarras; +revolvia os restolhos á procura de grillos, que levava no lenço para +casa, para os ter a cantar dentro de um copo.</p> + +<p>Puzera termo a essas esturdias a preoccupação absorvente de Maria.</p> + +<p>Ao principio, quando de tarde ia trabalhar na escripta, por ter presa +a manhan pelos estudos, lamentava essa <span class="pagenum"><a id="page027" name="page027"></a>(p. 027)</span> prisão, impedido de +retoiçar no areal, deitar-se á agua, nadar, apanhar conchas, +enxugar-se rebolando na areia quente, e ir depois, noite fechada, para +a praia das mulheres, no recanto do Castellinho, vel-as metterem-se na +agua aos gritinhos, compondo as saias enfunadas pelo mar.</p> + +<p>Despertára-lhe novas impressões a intimidade de Maria, e os passeios +com ella sob as arvores substituiram d'ahi em diante todos os +entretimentos de rapaz.</p> + +<p>Escutava-a encantado, admirava-lhe os movimentos, esquecia-se a +contemplal-a e, quando retirava ao pôr do sol, voltava-se para traz a +vêr se ainda a descobria.</p> + +<p>Ia já perto da quinta, mas sempre na mesma indecisão, ora desejando +não chegar nunca, ora querendo precipitar o termo da anciedade que o +torturava.</p> + +<p>Avistou por fim a vivenda dos Folhadaes, os altos telhados em +pyramide, a fachada ennegrecida pelo tempo, as janellas com grades de +convento, o escudo de armas por cima do grande portão de carro, o +extenso muro torreádo por mirantes e caramanchões.</p> + +<p>Entrou pelo postigo aberto no grande portão de cedro, <span class="pagenum"><a id="page028" name="page028"></a>(p. 028)</span> pesado +de trancas e tranquetas, ferrolhos, corrediças e argolões, e o coração +batia-lhe descompassado.</p> + +<p>Saccudiu o pó na banqueta de pedra, de onde subiam as senhoras para as +andilhas, e trepou a escada exterior, que começava na parede do fundo +e cortava em angulo para a da esquerda, receiando uma vertigem, +sentindo fugir-lhe a luz dos olhos.</p> + +<p>Sentou-se no poial do alpendre, a descançar um momento, a dominar o +tremor nervoso, e descobriu Maria ao fim da cerca, com a prima D. +Josepha da Esperança e o primo Jorge.</p> + +<p>Inclinou-se, descobriu-se, ella correspondeu n'uma venia exagerada, +curvando-se muito, no que foi imitada pelos primos, e depois +arrancando o chapeu de palha, rustico, de grandes abas, enfeitado de +espigas, papoilas e malmequeres colhidos pela quinta, imitou-o +cumprimentando como um homem.</p> + +<p>Repetiram as raparigas as zumbaias, e o primo deitava-lhes as tranças +para a frente, ao que, irritadas, respondiam com palmadas e beliscões.</p> + +<p>E quando a creada, de dentro da casa, o convidou a entrar, elle tornou +a saudal-as, e as raparigas responderam rindo ás gargalhadas, +fazendo-lhe figas.</p> + +<p>Transpoz humilhado a porta de imponentes almofadas; nunca <span class="pagenum"><a id="page029" name="page029"></a>(p. 029)</span> +lhe parecera tão triste o casarão onde passava horas enfadonhas, junto +de um frade tresandando a vinho.</p> + +<p>Sabendo os cantos á casa ia encafuar-se no escriptorio, quando a +creada lhe disse que o senhor ainda estava á meza, e o guiou á casa de +jantar.</p> + +<p>—Entra, entra, pequeno—convidou em voz entaramelada o morgado—tu és +como se fosses da familia, aqui como o mestre Jacintho, por parte de +teu avô. Aquillo é que era um homem, o capitão Silveira! Gente de +outro tempo! Hoje só ha fedelhos como tu.</p> + +<p>Ergueu pesadamente o corpanzil obeso, cambaleando nas grossas pernas a +estoirarem os calções de ganga amarella, copiados de D. João VI, que +usava com meia branca e sapatos de fivella de prata.</p> + +<p>Já pelos bofes da camisa, pelo collete e pela casaca, nodoas de vinho +affirmavam o abuso da bebida, e a mão tremula derramou-lhe o copo, que +empunhava de pé, virado para João.</p> + +<p>—Á tua, em memoria de teu avô!</p> + +<p>Bebeu e tornou a sentar-se, pesadamente, apoiando-se á borda da meza e +á grande cadeira de braços, de coiro negro e pregaria amarella, em que +presidia <span class="pagenum"><a id="page030" name="page030"></a>(p. 030)</span> á cabeceira, na velha tradição senhorial.</p> + +<p>—Grande homem que elle era!—apoiou mestre Jacintho—sem desfazer em +quem está presente.</p> + +<p>Endireitou o corpo alquebrado, illuminou-se-lhe o olhar, e o velho +soldado denunciou-se no cabello á escovinha, na colleira de coiro +negro que no pescoço escanzelado saia da camisola de linho de pastor, +na marca das bexigas que lhe favava a cara encorreada, como passada ao +lustre das mochilas.</p> + +<p>Tomou com toda a confiança um copo, bebeu e, sempre de pé, +disciplinado até a escravidão, voltou-se para Martinho Vasques:</p> + +<p>—O que nós fizemos n'aquelle Russillão!</p> + +<p>Attingia a phase piegas a embriaguez do morgado, tremia-lhe o beiço +inferior, descahido e inchado, tornavam-se-lhe muito pequeninos os +olhos duros, de um azul frio, raiados de vermelho, e o nariz +destacava-se-lhe rubro, da côr de telha do rosto apopletico, onde as +sobrancelhas asperas, espessas, unindo-se carrancudas, os longos +pellos das ventas e dos ouvidos, punham em occasiões normaes a marca +da rudeza, da selvageria.</p> + +<p>—Se não fosse teu avô não estava eu aqui! Se não me tivesse deitado a +mão quando eu caí ferido na <span class="pagenum"><a id="page031" name="page031"></a>(p. 031)</span> retirada da Montanha Negra! +Devo-lhe a vida a elle e a este velho!</p> + +<p>Mas a lingua emperrava-se-lhe, a sensibilidade engasgava-o de todo.</p> + +<p>Ancioso sempre de contar façanhas, no orgulho profissional, o +ex-soldado do Roussillon ergueu as mãos á altura dos ouvidos, como a +pedir que o escutassem, e começou n'um bom ar de velhinho, +tremendo-lhe o bigode branco em escova:</p> + +<p>—Quando aquelles malditos franceses caíram sobre nós, eu, mais o meu +capitão e mais vossa excellencia, senhor morgado, fomos para cima +d'elles como leões, e eram cutilladas de alto a baixo, golpes de +rachar de meio a meio...</p> + +<p>Ganhava-o pouco a pouco a furia de assassino profissional: +passavam-lhe no olhar relampagos sinistros; arregaçavam-se-lhe os +beiços, mostrando os dentes pôdres ainda promptos a morder; +crispava-se-lhe a mão esquerda em fórma de garra, o pollegar muito +desenvolvido, erguido acima dos outros dedos, na ameaça de premir a +guela do inimigo; e na mão direita brilhava-lhe uma faca de meza, +brandida com furôr, como nos assaltos á arma branca, em que, com as +mãos a escorrer em sangue, degolava soldados agarrados ás peças, +apertados uns contra <span class="pagenum"><a id="page032" name="page032"></a>(p. 032)</span> os outros, sem espaço para se +defenderem no recanto de uma trincheira. Tinham ás vezes que abrir-lhe +a mão á força para lhe tirarem a podôa de jardineiro, a que se +soldavam os dedos quando brigava com os cavadores, e renovava-se a +lição do mal; ou quando o vinho lhe obliterava a consciencia de homem +grato, generoso, humilde até á servidão.</p> + +<p>Sobresaltado frei Angelico na languidez da digestão, arrotando +empanturrado, flatulento, ergueu-se, arredou o habito pardo de +franciscano n'um meneio feminil, adquirido em menino do côro; o que +ainda parecia, apezar dos quarenta annos, pelo effeminado dos ademanes +de aprendiz de clerigo, pelo tom rosado da face gorda e oleosa, a que +a larga tonsura dava uma frescura de novo; e desapertando o cordão de +nós, clamou na voz de canna rachada, em que outr'ora cantava de +falsete, limpando o suor ao lenço de Alcobaça sujo de rapé:</p> + +<p>—Veja e aprenda, Joãosinho, como se pratíca a verdadeira egualdade, +não a d'esses malditos clubs, mas a que é agradavel ao ceu! Aprenda, +que está em edade. N'esta velha casa fidalga fraternisam, libando o +vinho de Deus, dando graças ao Altissimo pelas suas obras, a nobreza +representada no excellentissimo senhor <span class="pagenum"><a id="page033" name="page033"></a>(p. 033)</span> Martinho Vasques de +Linhares Soeiro, morgado dos Folhadaes, o clero n'este humilde servo +do Senhor, e o povo n'esse villão, esse ninguem, esse bicho da terra, +esse pó da estrada!—e apontava mestre Jacintho.—Exemplos d'estes, só +na educação religiosa se encontram. E para isto não é preciso ser +jacobino, nem republicano, nem pedreiro livre, nem cuspir na hostia +consagrada!</p> + +<p>Benzeu-se horrorisado e, sem transição, desceu do tom de prégador:</p> + +<p>—Mas o Joãosinho não bebeu nada. Vá lá. Um só não faz mal.</p> + +<p>Encheu-lhe um copo, derramando vinho pela toalha, e deitou outro para +si.</p> + +<p>—Beba á saude do senhor morgado, e vamos para o terraço, que se abafa +de calôr.</p> + +<p>Habituado áquellas scenas, bebeu satisfeito João. Talvez lhe désse o +vinho o animo preciso.</p> + +<p>Saíram, o morgado á frente, equilibrando-se ao bordão de marmeleiro +polido, no apparato de uma vara de juiz, em gravidade processional; +depois o frade, arrastando as sandalias, conchegando a proeminente +barriga, levando no regaço o cordão e o rosario, que desapertara; João +pisando respeitoso, ao de <span class="pagenum"><a id="page034" name="page034"></a>(p. 034)</span> leve; e por fim o mestre Jacintho, +muito curvado, rindo e falando comsigo mesmo.</p> + +<p>Assentaram-se a nobreza e o clero na banqueta de azulejo, que corria +ao longo da empêna da casa, no terraço voltado para S. Matheus. +Sentou-se João sem esperar convite, por direito proprio, +considerando-se tanto ou quanto nobre, pelos fóros de fidalguia da +espada do avô; e n'essa decisão já reconhecia o effeito do vinho +fazendo-lhe perder a usual timidez, e já acariciava a proxima +entrevista com Maria. Disciplinado como soldado, e tão firme quanto +lhe era possivel, conservava-se mestre Jacintho de pé ante os seus +superiores hierarchicos, chalaceando, contando historias de caserna, +as mãos perto dos ouvidos, o rosto expandindo-se n'um sorriso de bom +velhote.</p> + +<p>Depois saíu Martinho Vasques com o jardineiro, a vêrem os trabalhos da +quinta, e frei Angelico e João foram para o escriptorio.</p> + +<p>Dobrado para a meza de saia de baeta vermelha, limpando no cabello a +penna de pato, olhava a furto, pela janella fronteira, a varanda de +pedra do fundo da quinta, onde passeavam á sombra da parreira, Maria, +a prima que ia jantar com ella e passar a tarde, e Jorge da Feteira, +namorado de D. Josepha da <span class="pagenum"><a id="page035" name="page035"></a>(p. 035)</span> Esperança, que apparecia para a +merenda.</p> + +<p>Tinha ciumes do fidalgote que levava a confiança de primo a beijar +Maria á entrada e á saída, e invejava-lhe a liberdade em que andava +com as duas raparigas ao fresco da tarde, pela recatada vastidão do +pomar.</p> + +<p>Afastavam-se, mas elle espionava o quadro recortado pela janella na +parede nua, e tornava a vêl-os notando a impaciencia com que o +observavam.</p> + +<p>Orgulhava-o esse interesse. Sabia que o estimavam, que o esperavam +para a merenda, mas não deixava de reconhecer, por parte dos primos +reunidos para falarem, o motivo d'essa espectativa, poderem afastar-se +deixando Maria entretida com elle.</p> + +<p>Deitado em cima da papeleira encetára o frade diversas folhas de +papel, mas a penna de pato, rangendo muito, fazia-lhe uma lettra +incerta, incomprehensivel, e a mão tremula deixava cair borrões que +impossibilitavam a continuação. Deitava-lhe areia, encanudava a folha +e despejava-a no recipiente de chumbo, mas os pingos de tinta lá +ficavam. E na atarantação de poupar meia folha de garatujas +despejou-lhe por cima o proprio tinteiro, borrando o lenço, as mãos, +todos os papeis do alçapão.</p> + +<p>Rendeu-se <span class="pagenum"><a id="page036" name="page036"></a>(p. 036)</span> então á evidencia, reconheceu-se incapaz de +escrever, e lançando-se para o hirto canapé de palhinha, tomou +rascunhos de cartas e poz-se a ditar a João.</p> + +<p>Entretido com a janella, elle escrevia machinalmente, repetia +distrahido, errando o ditado; e fr. Angelico, sentindo a cabeça +pesada, crendo seu o engano, envergonhou-se do rapaz e deu por findo +esse tão pouco proveitoso trabalho.</p> + +<p>Ia emfim desabafar!</p> + +<p>Mas o acanhamento assaltava-o de novo, e ainda pensava adiar para mais +tarde essa urgente expansão.</p> + +<p>Desceu ao pateo de entrada, abriu a cancella que dava para as +trazeiras da casa, onde as gallinhas debicavam montes de estrume, e os +filhos do quinteiro pulavam nos picos de matto roçado para o lume; +passou por entre os chiqueiros, atravessou o jardim, rodeiou o +repucho, contornou os taboleiros de onde vinha o cheiro penetrante dos +cravos; e ao fim das ruas de buxo, abriu outro portal, e internou-se +na quinta, por debaixo da latada que em pilares de pedra a dividia ao +meio, deixava dois grandes rectangulos destinados a alfobres e á +horta, e continuava <span class="pagenum"><a id="page037" name="page037"></a>(p. 037)</span> contra os altos muros negros de pedra +solta ensombrando os passeios lateraes.</p> + +<p>Reuniam-se todas as tardes no pomar, ao fim das larangeiras, das +nespereiras, por baixo das quaes nascia silvestre a hortense, e +conversavam até ao escurecer.</p> + +<p>Só encontrou D. Josepha da Esperança e Jorge da Feteira sentados muito +juntos, de mãos dadas, indolentemente reclinados no grande banco de +pedra, com recosto de azulejos onde caçadores, de chapeo tricorne, +perseguiam lebres, acompanhados de cães, quasi de pé como pessoas.</p> + +<p>A falta d'ella permittiu-lhe serenar, confirmar-se no proposito de +dizer-lhe tudo, de sair por uma vez do equivoco em que vivia.</p> + +<p>N'uma aspereza que a tornava mais apetecivel, entrou Maria, saltando +irrequieta, o chapeo deliciosamente deitado para os olhos, n'um +simples vestido vermelho inteiro, de cintura alta, o collo a +descoberto, de tres folhos na saia um tanto curta, deixando vêr o +sapato branco, atado por fitas brancas, sobre a meia branca, no +tornozêlo.</p> + +<p>A sua simplicidade contrastava com o requinte de secia de Josepha, a +opulenta juventude trasbordando de um rico vestido verde, de cinco +folhos, com <span class="pagenum"><a id="page038" name="page038"></a>(p. 038)</span> capoteira de renda em bicos, sapatos de duraque +preto, cabello penteado atraz em cuia, apartado ao meio na frente, +grandes tufos nas fontes, um fio de perolas na testa, desvelos de +toucador destinados ao primo Jorge, que por sua parte caprichava em +vestir grosseiramente á D. Miguel, jaqueta de alamares, cinta, calção, +botas de prateleira, bóné azul, cabello puchado para as fontes, cara +rapada, porque o bigode denotava á legua constitucional.</p> + +<p>Andava pela edade de João, mas parecia mais nova. As doenças da +meninice, as convulsões com que a dotára o alcoolismo paterno, as +impurezas do sangue azul dos casamentos consanguineos tinham-lhe dado +a fragilidade ainda transparente na pallidez, nas fundas olheiras, no +descorado dos labios. Por volta dos onze reagira, ganhára forças, +mercê do longo tratamento com que o pae gastára muito, na teima de +assegurar emfim um herdeiro á casa, depois de tantos morgados e +morgadas, cheios de pustulasinhas, mortos no berço.</p> + +<p>Eram d'elle os olhos azues, desmaiados, o cabello castanho, e a +expressão de aspereza que as sobrancelhas, contrahindo-se, ás vezes +denotavam. Mas na boca pairava-lhe a terna brandura com que <span class="pagenum"><a id="page039" name="page039"></a>(p. 039)</span> +a mãe outrora se resignava aos beijos roubados por infindaveis legiões +de primos.</p> + +<p>Afogueada pela pressa com que viera, Maria falou a João, e sentaram-se +todos, encruzados, na relva, a comerem maçãs e marmelos assados no +forno, trespassados de assucar, que ella trouxera no regaço.</p> + +<p>Falou-se da imprevista partida do navio, dos actos do governo da ilha, +dando elle noticias com simulada indifferença.</p> + +<p>Finda a merenda foram beber agua á pequena cascata do recanto da +quinta onde se abrigavam a estufa de ananazes, e as largas folhas das +bananeiras; amadureciam maracujás do tamanho de ovos côr de chocolate; +desenrolavam-se fetos de entre as pedras negras e vermelhas, fundidas +pela lava em filigranas, em lagrimas; abriam em guarda sol as largas +folhas ovaes do inhame por cima da valla onde escoava o regueiro, +empoçado em nodoas de agrião.</p> + +<p>Satisfeita a gulodice, que já lhe ameaçava de pontos negros os dentes +miudos e mal implantados, Maria lançou-se para a rêde, que pendia +indolente da ramada dos castanheiros, e juntando as mãos sob a cabeça, +fez d'ellas e dos braços, a sairem nús <span class="pagenum"><a id="page040" name="page040"></a>(p. 040)</span> da manga arregaçada, +o travesseiro em que se reclinou indolente, cerrando os olhos, +sorrindo a João.</p> + +<p>Elle puchou uma cadeira de vimes e poz-se a baloiçal-a brandamente.</p> + +<p>Ganhava-os o odôr estonteante das magnolias, o morno perfume adocicado +recendente da estufa.</p> + +<p>De mãos dadas afastavam-se pouco a pouco, os primos namorados até, +como de costume, desapparecerem de todo.</p> + +<p>Correspondia João ao infantil sorriso de Maria, e ha dois annos que +não passavam d'ahi.</p> + +<p>Estiveram muito tempo sem falar, no prazer mudo de se contemplarem, +até que João estremeceu á ideia de a perder.</p> + +<p>—Teve noticias do primo?—perguntou-lhe de repente, indo direito ao +assumpto, sem preparação.</p> + +<p>Ella respondeu indifferente, transportada no brando oscillar da rede:</p> + +<p>—Sim. Está bem.</p> + +<p>Apparentou desinteresse, mas insistiu:</p> + +<p>—Sempre casam?</p> + +<p>N'um movimento de contrariedade, que o animou a ir mais longe, disse +Maria:</p> + +<p>—Bem <span class="pagenum"><a id="page041" name="page041"></a>(p. 041)</span> sabe que sim.</p> + +<p>Ficaria outra vez interrompida a conversação, se elle, animado pelo +que crêra adivinhar, não se arriscasse mais:</p> + +<p>—E gosta?</p> + +<p>—De quê?</p> + +<p>—De casar.</p> + +<p>N'um visivel enfado murmurou:</p> + +<p>—Sei lá!</p> + +<p>Muito nervoso, repetiu:</p> + +<p>—Quero dizer se gosta de casar com elle.</p> + +<p>Tirou-se da rede que, preoccupado, João deixára parar e n'um encolher +de hombros:</p> + +<p>—Se nunca o vi.</p> + +<p>Foi lançar-se descontente no banco de pedra, a fronte ensombrada, no +gesto do pae.</p> + +<p>Ficou João um momento indeciso, e depois approximou-se vagaroso, +offendido:</p> + +<p>—Vejo que não é minha amiga.</p> + +<p>—Porquê?</p> + +<p>—Fala-me com mau modo...</p> + +<p>—Eu?</p> + +<p>—Com frieza, com indifferença...</p> + +<p>—Para o que te havia de dar hoje!</p> + +<p>E como elle se sentasse, succumbido, soltou uma risada, <span class="pagenum"><a id="page042" name="page042"></a>(p. 042)</span> n'um +impeto de volubilidade, e beliscou-o, no seu agreste feitio infantil.</p> + +<p>—Isto então é mau modo?</p> + +<p>Ergueu-se elle corando, e supplicou:</p> + +<p>—Por amor de Deus não brinque commigo!</p> + +<p>—Estás amuado?</p> + +<p>—Pelo menos agora não graceje, e diga-me só: Gostava de ir para +Lisboa?</p> + +<p>Abrangeu n'um olhar a casa, o campo, a vida que levava enclausurada, e +respondeu:</p> + +<p>—Isso gostava.</p> + +<p>Retorquiu João em voz estrangulada:</p> + +<p>—Não se importava então de me deixar?</p> + +<p>Irritada pelo interrogatorio, Maria exclamou, sem o fitar:</p> + +<p>—Que pergunta essa!</p> + +<p>Elle approximou-se, muito commovido:</p> + +<p>—Era uma separação para sempre! para sempre!</p> + +<p>—Sim, talvez!</p> + +<p>E d'olhos no chão encarava agora as consequencias.</p> + +<p>Vendo-a impressionada, João aqueceu:</p> + +<p>—E não levava pena nenhuma?</p> + +<p>N'um repente de sinceridade, Maria accudiu ingenuamente:</p> + +<p>—De <span class="pagenum"><a id="page043" name="page043"></a>(p. 043)</span> me separar de ti, sim.</p> + +<p>—Mas não tinha ainda pensado em mim!—queixou-se elle, muito sentido.</p> + +<p>—Realmente ainda não pensára.</p> + +<p>Começava a sentir-se compromettida, olhava em torno a procurar os +primos.</p> + +<p>João deixara-se arrastar pela arrebatadora emoção d'esse momento tanta +vez sonhado, e tanta vez crido impossivel:</p> + +<p>—É porque nunca me quiz bem!</p> + +<p>Ella via embaciarem-se-lhe os olhos, tremerem-lhe os labios.</p> + +<p>Desculpou-se para não o affligir mais:</p> + +<p>—Como querias que pensasse em ti, se isto tem sido uma coisa no ar?</p> + +<p>—Mas estão preparados para o embarque...</p> + +<p>—É certo que o pae anda com isso ha muito. Mas elle faz e diz tantas +coisas sem fundamento, que eu nunca o tive por decidido.</p> + +<p>—Nem mesmo o casamento?</p> + +<p>—Não pensei a serio em coisa alguma.</p> + +<p>E n'um arremesso de creança que os mimos tornaram voluntariosa:</p> + +<p>—Mesmo isso do casamento com o primo ha de ser se me agradar.</p> + +<p>João <span class="pagenum"><a id="page044" name="page044"></a>(p. 044)</span> estremeceu, desiludido:</p> + +<p>—Ah! Então ainda é possivel?</p> + +<p>—Só Deus o sabe. Mas se não sympathisar com elle, não ha forças +humanas que me obriguem.</p> + +<p>—Quer dizer que ainda póde vir a agradar-se?</p> + +<p>—Quem sabe!</p> + +<p>Cria-o então possivel? É que nunca sentira por elle nenhuma affeição? +E a custo João comprimiu um soluço, que não lhe passou despercebido.</p> + +<p>—Que tens tu?</p> + +<p>Bailando-lhe lagrimas nas pestanas, desabafou:</p> + +<p>—Ando como um doido! Perco as noites a pensar que não nos tornamos +mais a vêr. Toda a minha vida hei de chorar esta casa...</p> + +<p>—Coitado! Faz-te falta o que o pae te dá a ganhar.</p> + +<p>Magoou-o a apreciação. Pois não presentia n'elle outro sentimento? Não +interpretára nunca o verdadeiro culto que lhe votava, olhando-a +absorto, como ás imagens.</p> + +<p>Pensou ainda em manter-se incomprehendido, em calar essa revelação. +Vinha muito tarde! Não o comprehendera em dois annos de intimidade, +não ia agora corresponder-lhe de repente. Mas revoltou-o vêr +accentuada a situação de dependente.</p> + +<p>—Não <span class="pagenum"><a id="page045" name="page045"></a>(p. 045)</span> ia ali por interesse—protestou.—Os seus deixaram-lhe +alguma coisa. Tinha com quê. Era só por ella, para estar ao seu lado, +que acceitava o sacrificio do escriptorio.</p> + +<p>Impressionou-a a paixão com que falava.</p> + +<p>Ainda em tom de gracejo, mas com a voz um tanto abafada, disse sem o +fitar:</p> + +<p>—Querem ver que te deu para me namorares?</p> + +<p>Ficou olhando para a areia vermelha. E como elle permanecesse calado, +insistiu, evitando-o sempre:</p> + +<p>—Não respondes?</p> + +<p>—Fica zangada commigo?—perguntou a medo.</p> + +<p>—Não.</p> + +<p>—Isso é que fica.</p> + +<p>Ella virou-se de repente, e fitou-o com franqueza:</p> + +<p>—Zangada porquê?</p> + +<p>Intimidou-o essa expressão, que não comprehendia; mas era tarde para +recuar. Muito envergonhado, rendeu-se:</p> + +<p>—Pois é verdade.</p> + +<p>Maria ergueu-se n'um riso forçado:</p> + +<p>—Tu, namorado de mim? Tu, meu fedelho! Ora! Não sabes o que dizes.</p> + +<p>Ia afastar-se, mas João supplicou:</p> + +<p>—Já <span class="pagenum"><a id="page046" name="page046"></a>(p. 046)</span> que me não ama, diga ao menos que me perdôa!</p> + +<p>—Tens medo? Descança, não faço queixa ao pae?</p> + +<p>—Não se ria de mim, quero-lhe muito, muito!—soluçou elle.—E quando +soube que a pretendiam casar em Lisboa, chorei de desespero, porque me +costumára a pensar que havia de ser minha mulher.</p> + +<p>Ella encarou-o, franzindo as sobrancelhas, como irritada pelo +atrevimento do plebeu, do insignificante, irrespeitoso para com o +idolo que para todos julgava ser.</p> + +<p>—Estás brincando! É lá possivel!</p> + +<p>Elle enxugou as lagrimas, conteve se:</p> + +<p>—Sinto-o agora, pelo desdem com que me trata.</p> + +<p>—É uma creancice.</p> + +<p>—Sim. Mas que me perdeu para sempre.</p> + +<p>Irritada procurou convencel-o:</p> + +<p>—Pois tu não vês que o pae nem quer que eu fale com o primo Antonio, +nem com o primo Sebastião desde que se lhes metteu em cabeça +pretenderem-me, porque são pobres? E que és tu ao pé d'elles, quasi +tão fidalgos como nós? O que diria o pae se soubesse d'isto!</p> + +<p>—E <span class="pagenum"><a id="page047" name="page047"></a>(p. 047)</span> a menina que diz?</p> + +<p>—Que digo? Não me estás ouvindo?</p> + +<p>—Se me estima.</p> + +<p>—Bem sabes que sim.</p> + +<p>—Muito?</p> + +<p>—Vê lá se me entretenho com mais alguem do que comtigo e com a prima +Josepha da Esperança.</p> + +<p>—E agora, depois do que lhe disse?</p> + +<p>Animava-se momentaneamente, olhava-a transportado, n'um lampejo de +esperança.</p> + +<p>Ella sorriu, bondosa, infantil:</p> + +<p>—Já me viste por ventura algum namorado? Todas as raparigas os têm, +aos dois e aos tres, e eu nunca achei graça a essas tolices. São +brincadeiras estupidas. Mas se gostasse de um homem, muito cá de +dentro...</p> + +<p>Transfigurou-se, dominou-a uma expressão de alegria, mas conteve-se e +exclamou abruptamente:</p> + +<p>—Olha, falemos de outra coisa.</p> + +<p>Comprehendeu que era preciso acabar:</p> + +<p>—Vejo que não quer saber de mim.</p> + +<p>—És doido. Então não temos sido tão amigos?</p> + +<p>—Oh! Como eu esperava ... não!</p> + +<p>—Sabes que mais? És um doido, é o que te digo!</p> + +<p>E <span class="pagenum"><a id="page048" name="page048"></a>(p. 048)</span> afastou-se com mau modo.</p> + +<p>—Um momento, senhora D. Maria, esqueça esta falta de respeito, antes +que me retire para nunca mais voltar.</p> + +<p>—O quê? Não estás bom de cabeça rapaz. Então é que o pae desconfia. E +o que serás tu nas suas mãos, meu franganito!</p> + +<p>—Virei despedir-me com qualquer pretexto ... e nunca mais me tornará +a vêr!</p> + +<p>Ia seguindo Maria, que se esquivava a novas lagrimas, procurando os +primos, aninhados n'algum caramanchão.</p> + +<p>Ao descobrirem-os, disse João precipitadamente:</p> + +<p>—Obrigado pela feliz illusão em que tanto tempo me manteve, e adeus +para sempre!</p> + +<p>—Vae com Deus—redarguiu ella, muito saccudida—e pede a Santa +Catharina que te dê juizo.</p> + +<p>Despediu-se João cerimoniosamente de Jorge da Feteira, de D. Josepha, +e retirou-se corrido.</p> + +<p>Não se atreveu a sair pela porta principal, á vista de todos.</p> + +<p>Atravessou o cannavial, passou ás terras lavradias, saíu pelo portão +de ferro que abria para o cerrado, e seguiu ao longo do muro da +quinta, encoberto pelas faias e caniçados.</p> + +<p>Ao <span class="pagenum"><a id="page049" name="page049"></a>(p. 049)</span> passar debaixo do mirante onde a deixara, surprehendeu +pedaços de conversação a seu respeito.</p> + +<p>Josepha da Esperança reprehendia a prima:</p> + +<p>—Não o devias ter deixado tomar tanta confiança, desde que não o +querias. Vocês pareciam mesmo dois namorados, e sempre os tive por +isso. Andastes muito mal.</p> + +<p>Indignou-se Maria:</p> + +<p>—E tu, e as outras? Vocês teem licença para tudo? E se me desse para +o namorar? Que tens que vêr com isso? Olha, talvez venha a gostar do +entretenimento.</p> + +<p>—Com este?</p> + +<p>—Com este ou com outro. Parece que é tudo o mesmo, á maneira como +vejo variar.</p> + +<p>—Isso é commigo, prima?</p> + +<p>—É com todas.</p> + +<p>—Deu-lhe volta ao miolo! Pois veja se tem mais juizo.</p> + +<p>—Olhe, prima, não a chamei para mestra, e não me venha dar lições sem +que a tome ao meu serviço.</p> + +<p>Voltou-lhe as costas e afastou-se.</p> + +<p>Josepha da Esperança ameaçou, despeitada:</p> + +<p>—O que tu merecias era que eu fosse contar tudo ao tio.</p> + +<p>—Pois <span class="pagenum"><a id="page050" name="page050"></a>(p. 050)</span> experimenta, e verás que te pico os olhos com uma +agulha.</p> + +<p>Ao perceber o tom das referencias, João apressava o passo, corrido, +humilhado, occultando se com os silvados, para que nunca mais o +vissem.</p> + + + + +<h2>III <span class="pagenum"><a id="page051" name="page051"></a>(p. 051)</span></h2> + + +<p>Passára João interminaveis dias de angustia, e agora apenas ia á lição +de latim, ficando a estudar noite e dia para poder entrar mais +depressa na universidade.</p> + +<p>Manter-se-ia em Coimbra com a pequena legitima paterna que, para se +formar, conservava intacta, sustentado pelas tias, a quem auxiliava +com os ganhos de escrevente.</p> + +<p>Para supprir as quatro patacas pedira ao Juvencio, e ao doutor Ferraz, +que o apreciava das conversas politicas da botica, alguns trabalhos de +expediente da junta provisoria, que podesse fazer de tarde e á noite.</p> + +<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page052" name="page052"></a>(p. 052)</span> a subitas abandonava o buffete, chegava á janella, e +sentava-se a contemplar a quinta dos Folhadaes, evocando a derradeira +visita.</p> + +<p>Resentia-se da frieza de Maria, do desdem transparente nas censuras de +D. Josepha da Esperança, do olhar sobranceiro de Jorge da Feteira ao +corresponder friamente ao seu cumprimento.</p> + +<p>E avaliava que tal devia ser o primo de Lisboa a quem a destinavam, +por esse arrogante analphabeto, cheirando a estrebaria, orgulhoso de +pegar toiros á unha á saída do curro, de picar a pé á vara larga, de +farpear de dentro do caixão a meio da praça, falando com desprezo da +liberdade que não comprehendia, odiando a letra redonda que nem +soletrava, copiando D. Miguel por fóra e por dentro, dizendo-se, por +bravata, capaz de defender de armas na mão o passado, que lhe dava +direito de primasia sobre a parte intellectual da nação.</p> + +<p>Como fôra ridiculo no seu acanhamento!</p> + +<p>Porque não rompera n'um rasgo soberbo, lançando-lhes em rosto alguma +dura phrase ouvida na botica, predizendo-lhes a aniquilação fatal da +fidalguia, despojada do direito de explorar o povo, annulada pelo +plebeu trabalhador, instruido e saudavel, ella, a casta analphabeta, +indolente, corroida no <span class="pagenum"><a id="page053" name="page053"></a>(p. 053)</span> sangue por heranças de miserias e de +vicios?</p> + +<p>Precisava desafrontar-se, lançar-lh'o em cara, citar-lhes os artigos +da Carta que confirmavam a Constituição na extincção dos privilegios, +no estabelecimento da egualdade.</p> + +<p>Mas teria offendido gravemente Maria...</p> + +<p>Fôra melhor assim!</p> + +<p>Ella não podia pensar como o pae, como o primo.</p> + +<p>Tratara-o sempre como um egual e, se manifestára aquella grande +estranheza, fôra decerto por ter ouvido de chofre o seu audacioso +proposito, sem que uma gradual preparação a habilitasse a encarar +aquelle amor como a natural consequencia da intimidade em que viviam.</p> + +<p>Maria amava-o, sem duvida; e assim que lhe importariam os +preconceitos?</p> + +<p>Vibrava na revolta sentimental dos poetas que, em relampagos de genio, +previam a declaração da egualdade, queixando-se de que Deus fizesse +deseguaes os homens, e lhes desse, impiedoso, olhos e sentidos para +escolherem o melhor, e um coração para estalar de dôr; e se fosse +poeta glosaria n'um sentimento vivido, para os enviar a Maria como um +formidavel protesto, os versos de Gil Vicente:</p> + +<p class="poem"> + «Que <span class="pagenum"><a id="page054" name="page054"></a>(p. 054)</span> el amor que aqui me trajo<br> + Aunque yo fuese villano,<br> + El no lo es.» +</p> + +<p>Já não havia porém villões e fidalgos; perante a lei eram todos +cidadãos!</p> + +<p>Maria agora sabia tudo e, n'esses longos dias em que se não viam, +tinha tempo de meditar.</p> + +<p>Julgal-o-ia no seu intimo, evocaria, talvez saudosamente, a +jovialidade d'essas tardes!</p> + +<p>Que pensaria o fidalgo em não o vendo?</p> + +<p>Era forçoso ir lá dar-lhe qualquer desculpa. Não podia desapparecer +como um criminoso.</p> + +<p>Precisava mesmo mostrar-lhe, e a todos, que não tinha medo.</p> + +<p>N'esse dia despedir-se-hia d'ella cerimoniosamente.</p> + +<p>Já não era dependente e, se o acolhesse, tratar-se-iam de egual para +egual.</p> + +<p>Voltaria como visita, ou falar-lhe-ia da canada, e havia de +inspirar-lhe confiança, fazendo-lhe vêr como as medidas liberaes, +extinguindo distincções, lhe permittiam elevar-se até aspirar á sua +mão.</p> + +<p>E assim caía de novo na preoccupação politica, sentindo ainda mal +seguro esse estado de coisas que <span class="pagenum"><a id="page055" name="page055"></a>(p. 055)</span> provocava um desdenhoso +riso a Martinho Vasques, e avinhados raptos oratorios ao frade.</p> + +<p>Como sempre que o intimidavam a tranquilla segurança dos adversarios, +as más noticias que por toda a parte espalhavam, decidiu ir á botica +avigorar a fé na convicção enthusiastica do velho clubista.</p> + +<p>Fôra tão forte o abalo soffrido que adiou de dia para dia a visita ao +Juvencio e, sem saír mais que para a aula do padre Jeronymo, continuou +agarrado aos livros, vendo n'elles, no curso para que o preparavam, a +sua melhor desforra.</p> + +<p>Alarmou-o uma manhã o boato trazido de fóra pela creada, quando +estavam almoçando, de que se ia embora o batalhão, e voltava a ilha á +obediencia do senhor D. Miguel. A junta reunia gente armada para +impedir o embarque, mas todos diziam que os caçadores eram levados do +demonio, e nenhum caso fariam da paisanada.</p> + +<p>Não poude encobrir o desgosto, mas não respondeu ás tias, não lhes +contestou os commentarios.</p> + +<p>D'ahi a pouco saía, muito enfiado, disposto a tudo.</p> + +<p>—Que ha de novo, senhor Fulgencio?</p> + +<p>Veiu <span class="pagenum"><a id="page056" name="page056"></a>(p. 056)</span> do interior da loja o boticario, um velho alto, secco, +ainda robusto, só divergindo dos constitucionaes na cara rapada, olhar +inquieto, ardente, bocca energicamente accentuada, expressão decidida, +barretinho de clerigo tapando-lhe a calva, muito correcto n'um velho +traje de gala, repassado aqui e ali, casaca de seda preta, calção e +meia, chinelos em vez dos sapatos de fivela, por causa dos callos.</p> + +<p>Aproximou-se n'um ar mysterioso, occultando-se das beatas que iam +vigial-o de manto, e disse-lhe baixinho:</p> + +<p>—Está reunido o conselho militar. A coisa não ha de ir assim, estejam +descançados.</p> + +<p>E retirou-se, muito activo, n'um passo miudo.</p> + +<p>Seguiu-o João, angustiado.</p> + +<p>—Vieram más novas?</p> + +<p>Voltou Fulgencio a falar-lhe entre portas:</p> + +<p>—Não vieram das melhores, não. Olha, ahi tens gazetas fresquinhas, +chegadas hontem, n'um navio da laranja. Vae-te entretendo, emquanto eu +avio a gente <i>do monte</i>, para ficar com as mãos livres, se tivermos +dança.</p> + +<p>Era domingo e, conforme o uso, viera ás compras muito povo do campo. +Estava a botica cheia de <span class="pagenum"><a id="page057" name="page057"></a>(p. 057)</span> cabaças, de alforges, de sacos de +estopa. Em cima de mezas alinhavam-se tijelas onde Fulgencio, de +espatula em punho, ia despejando boiões de unguento.</p> + +<p>Devorava João as pequenas folhas, de um palmo de largo, por palmo e +terça de alto, a duas columnas, encimada pela corôa portugueza, entre +<i>Gazeta</i> e <i>de Lisboa</i>, do titulo.</p> + +<p>Vinham cheias de saudações a D. Miguel pela «exaltação ao throno dos +seus maiores»; da lista dos «donativos voluntarios», extorquidos pela +policia e pelos caceteiros sob a ameaça da denuncia por liberal; de +congratulações officiaes pela victoria das tropas fieis contra as +rebeldes.</p> + +<p>Na ultima pagina do n.<sup>o</sup> 184, de 4 de agosto, figurava o annuncio do +retrato de D. Miguel, em ponto grande; para medalha e caixa de rapé a +40 réis a duzia, em preto, a 240 <i>illuminado</i>; para medalhas mais +pequenas respectivamente a 30 e 160 réis; para anneis e alfinetes a 20 +e 120 réis.</p> + +<p>Publicava a <i>Gazeta</i> n.<sup>o</sup> 182, de 2 de agosto, o «Assento dos tres +estados», em que se declarava D. Miguel rei absoluto, absolvendo-o de +haver jurado falso com essa interpretação do juramento, que João lia +assombrado: «irrito ou nullo quando cae sobre materia <span class="pagenum"><a id="page058" name="page058"></a>(p. 058)</span> +illicita, quando é extorquido pela violencia, quando da sua +observancia resultaria necessariamente violação de direitos das +pessoas e dos povos, e sobretudo a completa ruina da nação.»</p> + +<p>E os jornaes continuavam a bater a nota das felicitações a D. Miguel e +ás tropas.</p> + +<p>Que significava aquillo?</p> + +<p>Não podia deprehendel-o das <i>Gazetas</i>, alheio como estava ha muitos +dias ao movimento politico.</p> + +<p>Mais aliviado de freguezes, veiu Fulgencio esclarecel-o:</p> + +<p>—Sim, foi-se tudo por agua abaixo. Já o sabiamos desde o dia 5, mas +a cara era a mesma, para que esses patifes dos miguelistas não se nos +rissem nas barbas...</p> + +<p>—E as noticias que o doutor Antonio da Silveira foi procurar ao +Porto...</p> + +<p>—Já nos deram a divisão liberal em retirada para a Galliza ... mas +nós: moita, carrasco!</p> + +<p>—Pois não poderam manter-se todas essas tropas da junta do Porto?</p> + +<p>—Perdeu-os a sua ingenuidade! Tu bem sabes que nós não queremos +sangue, nem alçadas, nem perseguições, nem confiscos. Paz e egualdade +para todos! <span class="pagenum"><a id="page059" name="page059"></a>(p. 059)</span> Eis como foram até cerca de Condeixa tres mil +soldados liberaes, por assim dizer como chamariz a deserções. +Mandaram-se proclamações para o campo inimigo, e ao alarme pela +aproximação de uma força adversa romperam as bandas o hymno +constitucional, para a arrastarem á adhesão. Contava-se vencer sem +disparar um tiro, sem derramar o sangue de irmãos!</p> + +<p>—Como em Vinte!—exclamou João enthusiasmado.</p> + +<p>—Eram os principios! Mas as forças do Miguel, seis a oito mil homens, +não quizeram «abraçar os irmãos d'armas», e atacaram na Cruz dos +Moroiços, no momento em que todos os chefes, de major para cima, +tinham ido assistir ao conselho militar em Coimbra. Foi a «acção dos +capitães» e, como tal, as forças sem commando que reunisse os seus +esforços, defenderam com valentia as posições occupadas, mas não +limparam de inimigos o caminho de Lisboa. Depois o nosso general +Refoios, receando que Povoas passasse o Mondego, ordenou a retirada +para o Porto.</p> + +<p>—E ahi?</p> + +<p>—Não se poderam manter. Quando chegaram de Inglaterra os chefes +emigrados já era tarde, e voltaram no <span class="pagenum"><a id="page060" name="page060"></a>(p. 060)</span> mesmo vapor que os +levára, emquanto a divisão retirava para a Galliza.</p> + +<p>—Que desgraça!</p> + +<p>—Ou antes, que inepcia. Essa fuga dos chefes no <i>Belfast</i> não me +passa d'aqui!</p> + +<p>E levou a mão á garganta n'um gesto nervoso.</p> + +<p>Sentiu João as lagrimas nos olhos, e fez exforços para não chorar.</p> + +<p>Assim ruia n'um momento o futuro em que tanto confiára.</p> + +<p>—Então acabou-se tudo?—exclamou em voz estrangulada.</p> + +<p>—Qual! Outros virão! Ha de estalar nova revolta, e o Miguel não +levará a melhor! E agora que aprendemos á nossa custa, nada de hymnos +nem de proclamações. Ha de ser á má cara!</p> + +<p>Dava grandes pernadas pela botica, olhando inquieto a praça, onde se +juntava muito povo defronte da camara.</p> + +<p>Continuou para João, que ficára aturdido:</p> + +<p>—Assim o querem, assim o tenham! O exemplo do sangue veiu d'elles. Já +começou a trabalhar a forca, mas os estudantes de Coimbra, longe de se +intimidarem com o assassinio dos collegas condemnados pela morte dos +lentes em Condeixa...</p> + +<p>Olhou <span class="pagenum"><a id="page061" name="page061"></a>(p. 061)</span> João fixamente, crendo que a sua pallidez provinha da +referencia ao attentado e ás execuções.</p> + +<p>—Ouve lá. Tu que te fazes tão liberal, se te coubesse em sorte +executares um tyranno, um inimigo de liberdade...</p> + +<p>—Não me tremia a mão, tenha a certeza!</p> + +<p>E João ergueu-se, vibrando de enthusiasmo, na esperança de poder tomar +parte na lucta contra a casta dominante cuja oppressão tanto o +magoára.</p> + +<p>Parecia-lhe ha muito que o experimentavam os frequentadores da botica, +e sentia-se attrahido pelo maravilhoso, pelo mysterio do subterraneo +onde constava funccionar uma associação secreta.</p> + +<p>Mostrava agora uma firmeza de homem feito, sentindo-se honrado por +esse convite indirecto a entrar em acção.</p> + +<p>Juvencio fitava n'elle o olhar prescrutador.</p> + +<p>—Todos serão precisos!—disse-lhe por fim—e os rapazes mais do que +os velhos. São vocês que teem a lucrar com a liberdade. Eu não +chegarei a gosal-a em paz.</p> + +<p>Commoveu-se n'uma saudade do periodo constitucional, das humanitarias +illusões em que tinham considerado a nação livre e feliz para sempre.</p> + +<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page062" name="page062"></a>(p. 062)</span> o gesto de amargura cedeu ante a impulsão do +inquebrantavel espirito de combatividade, e proseguiu:</p> + +<p>—Como te ia dizendo, a estudantada não se intimidou, e adheriu á +revolução, formando o batalhão academico, que lá retirou com os +emigrados.</p> + +<p>Eram um novo contratempo para João as perturbações da universidade.</p> + +<p>E na obsecação do projecto que por esses dias o absorvera, perguntou:</p> + +<p>—Então assim, talvez não possa matricular-me este anno?</p> + +<p>Sorriu da ingenuidade o boticario.</p> + +<p>—És um creançola! Pois não vês que não torna a haver paz sem que +elles nos enforquem até ao ultimo, ou nós os desarmemos e ponhamos o +Miguel pela barra fóra?</p> + +<p>—Não sou tão inexperiente como julga. Mas pelo que vejo na <i>Gazeta</i>, +D. Miguel foi proclamado rei, e tudo são felicitações e offertas...</p> + +<p>—Isso não quer dizer nada. É a gente d'elle, só a d'elle, porque os +nossos estão presos ou emigrados. Mas olha que os embaixadores +cortaram todas as relações diplomaticas, em protesto contra a infamia +dos <span class="pagenum"><a id="page063" name="page063"></a>(p. 063)</span> juramentos falsos com que nos illudiu, com que enganou +as nações estrangeiras.</p> + +<p>Puxou triunfante d'uma carta:</p> + +<p>—Aqui sabe-se tudo, quer eles queiram quer não. Os tres estados, como +tu já ahi lêstes, absolvem-o a seu modo, adoptando a moral jesuitica +do juramento condiccional; mas ainda o desculpam de outra fórma, +dizendo que elle, ante o parlamento, não jurou com a mão nos +evangelhos, mas em cima dos <i>Burros</i> d'esse bandalho do José Agostinho +de Macedo. Tu sabes as minhas opiniões, para mim tanto vale um como o +outro, é tudo palavreado de frades. O crime está na má fé de bandido +com que abusou da confiança attribuida á palavra de honra de qualquer +homem de bem, quanto mais de um principe!</p> + +<p>João indicou-lhe o artigo da <i>Gazeta</i>.</p> + +<p>—Dizem que elle foi coagido a jurar.</p> + +<p>—Patife! Estava coacto, sim, é a desculpa d'esses homens que para +vergonha nossa ainda governam cidadãos livres como rebanhos de +carneiros. Na Villafrancada e na Abrilada, D. João sexto e D. Miguel +declararam-se mutuamente coactos e illudidos, para justificarem as +traições e as perfidias em que se digladiava a real familia. A sua +«sciencia certa <span class="pagenum"><a id="page064" name="page064"></a>(p. 064)</span> e o seu poder absoluto» guardam-os esses +ungidos do Senhor para pôrem os gatafunhos nas medidas uteis dos seus +ministros.</p> + +<p>Amarrotou a <i>Gazeta</i> furioso, batendo com as costas da mão no artigo +dos «tres estados», emquanto passeiava, declamando:</p> + +<p>—Isto que ele fez agora, deitar a mão á corôa, já o tentou por duas +vezes em vida d'esse pobre diabo de D. João VI, combinado com a porca +da mãe. Correu-lhe mal a coisa, teve que submetter-se na +Villafrancada, e da Abrilada foi rebolindo de castigo para o +extrangeiro. Da Austria, mal se viu livre do pae, escreveu ao senhor +D. Pedro, reconhecendo-o e aceitando-o como herdeiro do throno +portugues. Quando o grande rei liberal usou do poder para abdicar +d'elle no povo, doando nos a Carta Constitucional, e para ceder a +corôa á nossa joven rainha D. Maria da Gloria, sob a condição de D. +Miguel casar com ella e acatar a Carta, jurou-a solemnemente, e até +enviou ao irmão regente um manifesto negando a authoridade do seu nome +a quem impugnasse o novo codigo da liberdade. Escreveu ao rei de +Inglaterra garantindo-lhe o proposito de fazer respeitar as novas +instituições, mantendo por meio d'ellas a paz em Portugal. Ao chegar +<span class="pagenum"><a id="page065" name="page065"></a>(p. 065)</span> a Lisboa, em triumpho, entre meio de partidarios, sem que um +só liberal se lhe podesse aproximar, ratificou, em grande ceremonial, +os juramentos, e ainda cumpriu, a seu modo, a Carta, assignando +decretos em que a applicava. E quando pôz o exercito da sua mão, mudou +a officialidade, augmentou a policia, quando se considerou +absolutamente seguro, desmascarou-se, fez-se proclamar rei absoluto, +inventou a questão da legitimidade, que nunca até hoje fôra +apresentada, e fez trabalhar o cacete e a fôrca.</p> + +<p>—E está realmente acclamado rei em todo o reino, como diz a +<i>Gazeta</i>?—perguntou João intimidado.</p> + +<p>Mediu-o Juvencio de alto a baixo, e respondeu n'um aprumo soberbo:</p> + +<p>—Mas não o está na ilha Terceira!</p> + +<p>Elle retorquiu, receioso, mostrando o jornal:</p> + +<p>—Fala-se aqui de uma expedição em que vem a nau <i>D. João VI</i>, e mais +dez navios, contra a Madeira e as outras possessões revoltadas...</p> + +<p>—Bem sei. E já fizeram exercicio de desembarque diante do «seu anjo». +Pois que venham cá, e verão a lição que levam!</p> + +<p>Deslumbrava-o <span class="pagenum"><a id="page066" name="page066"></a>(p. 066)</span> o orgulho patriotico:</p> + +<p>—Tinha melhores dentes o Demonio do Meio-Dia, e por duas vezes lhe +corremos com a sorte. O que a nossa terra fez então, póde repetil-o +agora. Até os toiros dos nossos mattos se lhe deitaram na Salga, e +Vadez fugiu, apezar dos seus dois mil soldados cobertos de ferro! Para +se metterem cá tiveram os hespanhoes que mandar oitenta navios e +dezaseis mil homens. Onde tem o Miguel gente para isso? Pois tomára eu +que mandasse muita, para que, livres d'ella, o puzessem os liberaes +mais rasos do que um chinelo.</p> + +<p>Ardia João na impaciencia de saber toda a verdade:</p> + +<p>—Por têr mêdo da esquadra o batalhão quer saír, como corre?</p> + +<p>—Com mêdo, dizes bem. Eis o que valem fanfarronadas de caserna! +Lingua têm elles para se darem como autores de tudo, dadores da +liberdade, mantenedores da independencia. Mas vê lá se alguem os viu +quando entraram os francezes! Nem raça de um. Foram as guerrilhas, +paisanada como eu e como tu, que lhes puzeram as uvas em pisa. E +quando mataram o grande general Gomes Freire? Se foram elles proprios +que o fuzilaram! Havia officiaes <span class="pagenum"><a id="page067" name="page067"></a>(p. 067)</span> inglezes n'esse tempo, mas +só meia duzia. A soldadesca e os agaloados eram todos de cá. Que +prendas! Em Vinte sahiu tudo para a rua, que duvida, se a coisa não +cheirava a esturro. Apenas vivas e palmas! Quando se conspirava contra +a Constituição, ainda juraram defendel-a até á ultima gota do seu +sangue. Mas assim que os franceses entraram por Hespanha, e o Miguel +se levantou, puzeram-se no seguro, e trahiram todos os juramentos, +choramingando que a liberdade era má porque lhes deixava os soldos em +atrazo, quer dizer, porque não lhes dava em promoções e augmentos de +soldo tudo o que pagava o pobre povo. Lá conheceram para que serviam +ao atrelarem-se ao carro de D. João VI, que puxaram como bêstas, +organisando até a relação dos nomes, e disputando aos fidalgos a honra +da preferencia!</p> + +<p>—É então certo que retira?</p> + +<p>—O major José Quintino Dias apenou os navios da laranja para o +levarem a Inglaterra, onde devem ir ter os emigrados. Queria embarcar +hoje mesmo, 24 de agosto! Escolheu bem a data, não haja duvida, quando +faz oito annos que rebentou a revolução constitucional no Porto!</p> + +<p>Considerou tristemente:</p> + +<p>—Oito <span class="pagenum"><a id="page068" name="page068"></a>(p. 068)</span> annos! Como o tempo corre! E estamos peior do que ao +começo.</p> + +<p>Nada porém abatia a sua fé inabalavel:</p> + +<p>—Mas havemos de restaurar a liberdade, embora só vocês gosem d'ella!</p> + +<p>João commentou ainda:</p> + +<p>—Mas caçadores cinco foi sempre um corpo liberal!</p> + +<p>—Pois é isso mesmo o que mais me doe. O bravo cinco! Um batalhão +degredado para aqui pela sua firmeza, quando até o famoso dezoito de +infanteria, unico que não fôra á Villafrancada, se bandeou, depois de +ter recebido, n'essa hora tragica, um exemplar da constituição +confiado á sua guarda, e de ter jurado morrer pela liberdade! O cinco, +o bravo cinco!</p> + +<p>E reconsiderando:</p> + +<p>—Mas ouve lá, rapaz, se em geral a tropa não merece confiança, e só +pensa no venha a nós, tem tido verdadeiros heroes liberaes, embora por +excepção! Esses que emigraram, sem acceitarem as concessões do Miguel, +são portugueses de antes quebrar que torcer! Bem viste como se portou +o nosso «cinco» em vinte e dois de junho. Agora é que lhe deu +<span class="pagenum"><a id="page069" name="page069"></a>(p. 069)</span> para desmanchar-se ... Ainda tenho para mim que ha de +reconsiderar.</p> + +<p>—Tambem creio que se não vae.</p> + +<p>Juvencio exclamou exaltado:</p> + +<p>—Lá isso é que não vae, podes ter a certeza! Ha de ficar, ao bem ou +ao mal. Não é só meterem-se nas coisas. Quem as arma que as desarme. +Vae por ahi uma gritaria, um desespero que é de cortar o coração. Bem +se sabe o que o Miguel fará se entrar aqui. São mortes, confiscos, +donzellas violentadas, creanças insultadas nos seus lindos olhos +azues, a maldita côr constitucional. A elles póde não importar isso, +mas nós não queremos a desgraça na nossa querida terra. Se teimarem em +fugir, abandonando ao carrasco mulheres e creanças, ensinar-lhe-emos á +força o seu dever!</p> + +<p>Como sempre, fôra avassallado João pela fé do velho liberal:</p> + +<p>—Sim! Sim! Diz muito bem.</p> + +<p>E no rosto lia-se-lhe uma formal decisão.</p> + +<p>Agora Juvencio approximava-se, commovido, os olhos rasos de agua:</p> + +<p>—Quando fôres pae, Joãosinho, comprehenderás a minha dôr. Tenho aqui +em cima tres filhas, e já um neto, cujos cabellos loiros são o meu +encanto! A <span class="pagenum"><a id="page070" name="page070"></a>(p. 070)</span> minha familia é a minha religião. Tudo quanto +sou, me tornei por causa d'elles! A minha alegria é o reflexo da sua +alegria, a minha vida é o trasbordar da sua vida, a mesma que em mim +se definha e n'elles se perpetúa. A mulher é tão velha como eu, mas +ellas são novas e lindas. Queres saber o que os padres prégam do +pulpito abaixo? Que é preciso matar as <i>malhadas</i>, as filhas de +liberaes como as minhas, de preferencia as gravidas, porque as +creanças já trazem no ventre o ferrete da malhadice! A minha filha +casada está para dar-me outro neto. Calcula agora as minhas queridas +filhas, e os olhos azues do meu lindo neto, pasto de soldados e de +frades! Não! Não ha de ser assim!</p> + +<p>—Na nossa terra não entram esses barbaros!</p> + +<p>Mais calmo, limpando as lagrimas, aliviado pelo desabafo, Juvencio +continuou:</p> + +<p>—É preciso que não entrem! Toda a esperança da liberdade portuguesa +depende de nós. Se fossemos vencidos reinaria o Miguel por toda a +parte. É o que agora dirão no conselho ao major Quintino. O futuro de +Portugal está-se jogando, n'este instante, ali! A ilha Terceira póde +defender-se, e ha-de defender-se! É tão bravia a costa do mar, que faz +por si só uma muralha, e se n'ella nos vencerem, temos <span class="pagenum"><a id="page071" name="page071"></a>(p. 071)</span> as do +castello. A nossa terra é tão insignificante, estará dizendo Quintino, +que n'um dia se corre toda em volta a pé. Pois quanto mais pequena +fôr, maior o exemplo! Ha-de acabar-se a dependencia. Tornaram isto um +degredo, um escoadouro de tudo quanto tem de mau. Mandam para cá o +refugo dos funccionarios, o que lhes não serve de nada. Pois se o mal +vem de lá, ha-de ir-lhe de cá a lição! Aqui foi o reino do Prior do +Crato; aqui viveu ainda por dois annos o Portugal independente, +vendido pela fidalguia ao rei de Hespanha; ha-de ser aqui o sacrario +da liberdade, que depois reviverá em Portugal!</p> + +<p>Observou a praça, e ficou descontente:</p> + +<p>—Ein? Tudo na mesma. Mau signal. Já tiveram tempo de decidir qualquer +coisa. Pois vamos até lá a vêr se espertam.</p> + +<p>Desappareceu no interior da loja.</p> + +<p>Estremecia João n'um fremito de independencia.</p> + +<p>Sim, resistir aos de fóra, acabar com essa escravidão, o navio cujas +noticias o ameaçavam, o primo do continente a quem estava destinada a +mulher amada. Queria-a para si, e havia de defendel-a com o ardor com +que Juvencio pretendia bater-se pela familia.</p> + +<p>E <span class="pagenum"><a id="page072" name="page072"></a>(p. 072)</span> assim como para o velho constitucional se identificavam os +dois amores, tornando-se um a ampliação do outro, sendo o lar o mais +sentido representante do maior, assim Maria se lhe tornava o symbolo +da sua terra, ameaçada pelos de longe, dominada, como parte da sua +população, pelo preconceito, pelo fanatismo.</p> + +<p>Percorria-o um fremito de bravura, manifestava-se-lhe, ao influxo da +occasião, a hereditariedade guerreira; e sentia-se prompto a combater +por ella e pela liberdade, já sem o triste acanhamento em que se +humilhára ante a frieza do seu olhar altivo, ante o desdem de um boçal +marialva.</p> + +<p>Veiu de dentro Juvencio, de chapeu alto, vendo-se-lhe o barretinho por +baixo, emquanto, de costas, pretendia fechar a porta interior; trazia +o capote preso nos fechos de prata, e debaixo d'elle um volume que lhe +tolhia os movimentos.</p> + +<p>Voltou-se, sorriu ao encarar com João, e pediu-lhe que encostasse a +porta da rua.</p> + +<p>Desembaraçou-se, poz em cima da meza uma espingarda de pederneira e o +cinto de cartuchos.</p> + +<p>Fechou então a porta, metteu a grande chave n'uma gaveta, foi depois +verificar a escorva, e por fim desembainhando a espada posta á cinta, +mostrou a <span class="pagenum"><a id="page073" name="page073"></a>(p. 073)</span> João, que assistia n'uma impassivel gravidade de +homem feito, a lamina onde se lia: «Constituição ou Morte».</p> + +<p>Tivera-a muito bem escondida como uma reliquia, e nem as perseguições +do maldito Stokler lh'a poderam arrancar.</p> + +<p>Cingiu o cinto da polvora, enfiou no hombro a bandoleira da espingarda +e deitou por cima o capote azul, encobrindo as armas.</p> + +<p>N'uma ternura paternal poz a mão no hombro do rapaz, ao despedir-se:</p> + +<p>—Adeus, e mette-te em casa, Joãosinho. Temol-a tramada!</p> + +<p>—Em casa, eu?—protestou quasi offendido pelo conselho.—Olhe tambem +para isto, senhor Juvencio.</p> + +<p>E da alta bengala de madeira preta e castão de marfim, arrancou um +agudo estoque, e sacou das amplas algibeiras do casaco duas pistolas +de pederneira.</p> + +<p>—Estão carregadas!</p> + +<p>Enternecera-se o velho:</p> + +<p>—Pois tambem tu, pequeno! Oh! Com rapazes assim a victoria é nossa.</p> + +<p>Muito orgulhoso, João gracejava:</p> + +<p>—Então <span class="pagenum"><a id="page074" name="page074"></a>(p. 074)</span> o senhor, sósinho, é que havia de defender esta terra +toda, lá por ella ser tão pequena? Eu tambem sou terceirense, tambem +tenho direito ao meu pedaço!</p> + + + + +<h2>IV <span class="pagenum"><a id="page075" name="page075"></a>(p. 075)</span></h2> + + +<p>Saíram para a praça, repleta de gente.</p> + +<p>Não queriam voltar para as freguesias ruraes, sem saberem a decisão, +os <i>homens do monte</i>, as mulheres com o cabello de risca ao meio a +luzir de unto, saia pela cabeça, entufadas de saias sobre saias, os +pés metidos em galochas de cedro, com pálas de coiro verde, avivadas a +vermelho, luzentes de ilhós, cravejadas de pregos de aço.</p> + +<p>Nos grupos da gente da cidade graves artistas independentes, +carpinteiros, ferreiros, ourives, sapateiros, marceneiros, alfaiates, +trabalhando na propria casa, e para si, auxiliados pelos filhos, ou +<span class="pagenum"><a id="page076" name="page076"></a>(p. 076)</span> por apprendizes e officiaes, que sentavam á sua meza.</p> + +<p>Esperavam n'um grande ar de solemnidade, orgulhosos dos capotes de bom +panno azul ou castanho, presos por fechos trabalhados de latão ou de +prata.</p> + +<p>Commerciantes de chapeu alto, grande casaca, no rigor do trajo +constitucional, ostentando bigodes, afadigavam-se por entre os grupos +de artifices e camponezes, achando todo o apoio n'aquelles, e n'estes +uma desconfiança hostil.</p> + +<p>Sentia nas novas leis o seu advento a burguesia liberal, e defrontava +por toda a parte o fidalgo e o convento, senhores da terra, parasitas +do trabalho, e queria oppor aos monopolios a liberdade commercial.</p> + +<p>Mulheres do povo, de capote berneo, n'uma explosão de escarlate; +burguesas e fidalgas de manto negro, reunidas em pequenos grupos, +parentas, amigas; viravam incessantes os biôcos mal saía uma pessoa da +camara, e atravessava a praça illaqueada pela anciedade da decisão.</p> + +<p>A dentro dos capotes e dos mantos, por sob as pregas apparentemente +uniformes, adivinhavam-se no esguio, no flexivel da cintura, no +irrequieto do bico de passaro, no adejar de vôo dos largos pannos, as +noivas <span class="pagenum"><a id="page077" name="page077"></a>(p. 077)</span> do batalhão, as apaixonadas d'essa juventude que, no +prestigio da farda, na vivacidade de lisboetas, no seu falar cantado, +endoidecia as raparigas, com grave ciume dos patricios offuscados.</p> + +<p>Reconhecia-se o abandono das quarentonas sem futuro, gordanchudas, +afogadas em seios já inuteis, semeadas por entre os grupos como +escolhos, em torno dos quaes esvoaçavam os bandos de garças.</p> + +<p>Havia vendedeiras de capello deitado para traz, suffocadas pelo calor +e pelo medo de perderem o rosario de dividas deixadas pelas tropas ao +levantarem campo.</p> + +<p>Tapavam rebuços os rostos lacrimosos das namoradas e amantes dos +soldados, dos officiaes e dos sargentos; mas carpiam-se, por todas as +saudosas, as <i>mulheres da Rocha</i>, lenço de seda na cuia, chaile +terçado, rosetas de vermelhão nas faces, labios pintados, +arrepelando-se, bradando contra a saída d'esses divertidos rapazes, +cujas guitarras trinavam melhor que as enfadonhas violas de arame da +terra, d'esses bons fregueses, tão generosos e tão pandegos.</p> + +<p>Capitaneado pela Joaquinina do Ó, estava o rancho das beatas encoberto +com o canto da rua da Sé.</p> + +<p>De <span class="pagenum"><a id="page078" name="page078"></a>(p. 078)</span> atalaya á botica, destacava alviçareiras para o convento +dos franciscanos; era um constante borboletear de mantos pela ladeira +de São Francisco, e as que voltavam falavam ás que iam, encostando +n'um tremelicar nervoso os biôcos, como antenas de formigas.</p> + +<p>Traziam medalhas com o retrato de D. Miguel, bentas pelos frades, e +que elles proprios lhes tinham posto ao peito, para ostentarem +victoriosamente, mal houvesse a certeza de que retiravam os caçadores.</p> + +<p>Á apparição do boticario, afadigou-se nova emissaria ladeira acima, e +foi adejando o enxame atraz do velho e de João, seguindo-os por entre +os grupos até junto da escada de pedra, que subia exteriormente á +fachada do edificio, encimado pela torre do sino onde se tocava a +recolher.</p> + +<p>Para os lados da rua do Gallo reunia-se o grupo dos mais influentes +constitucionaes, que não tinham assento no conselho.</p> + +<p>Por vezes distrahia a espectativa o borborinho, gritos, risadas, +vindas dos arcos da cadeia.</p> + +<p>Davam para as arcadas que sustentavam a varanda de pedra da fachada, +as janellas das enxovias, onde havia <span class="pagenum"><a id="page079" name="page079"></a>(p. 079)</span> cestos arvorados em +canas, como apparelhos de pesca armados á compaixão.</p> + +<p>Ia a gente do monte agarrar-se ás grades, uns a comprarem pentes e +grosas de botões de chifre, enfiados em agulhas de feno; outros a +mirarem com olhos compassivos a nudez da prisão, a bilha de agua, o +immundo boião dos dejectos, a tarimba de madeira onde se mantinha +acocorado o <i>Marmanjão</i>, meditabundo, envolto em pedaços de colcha +esfarrapada, offendido por essa profanadora curiosidade, elle, o +santinho, como lhe chamavam os frades que o tinham de olho para +carrasco; muito temente a Deus, notavel pela frequencia com que se +confessava e commungava, e indigitado para a nobre missão de executor +pela limpeza com que em S. Bartholomeu demolira com uma só paulada o +homemzarrão de um vizinho.</p> + +<p>Regateava em voz fanhosa gaiolas de cana com melros pretos de bico +amarelo, grandes cantores, o <i>Mujinha</i>, baixo, olhinhos de bisnau, +pondo um traço de intrigante na cara rugosa; gatuno, fachina da cadeia +e afilhado de chrisma do carcereiro que lhe levava caridosamente á +porta as gaiolas, em ademanes de sacristão.</p> + +<p>Com a pronunciada queda commercial d'esse, contrastava <span class="pagenum"><a id="page080" name="page080"></a>(p. 080)</span> a do +seu visinho de janela, o <i>Zica</i>, muito correcto e limpo, cantarolando +á moda da ilha de S. Miguel, vendendo pentes de baleia, cumprindo +resignado a pena imposta por uma desforra tirada á má cara, n'uma +noitada de vinho.</p> + +<p>Este era constitucional, e arvoráva sempre, provocadoramente, as guias +do grande bigode, sem sequer as deitar abaixo, apesar das denuncias do +santarrão pretendente a carrasco, e das intrigas do gaioleiro, durante +o tempo em que a ilha acatára a usurpação.</p> + +<p>Logo na grade contigua outro miguelista, o <i>Roseiro</i>, um velhinho sem +dentes, deprimido como uma fava escoada, alegrava os curiosos com +inexgotaveis historias de toiradas, em que era uma auctoridade, e +recebia em troca pedaços de pão de milho, e algum grande pataco com a +effigie do senhor D. João VI, em premio á fidelidade e á coragem com +que descrevia o «senhor D. Miguel» rejoneando toiros desembolados, e o +seu confessor, fr. José da Rocha, saltando á praça e pegando á unha.</p> + +<p>Apoiado aos fortes varões que de seculos de afflictivas despedidas +tinham as quinas amolgadas, como que derretidas pela ardencia em que +se lhes crispavam as mãos dos desgraçados, falava com a familia e +<span class="pagenum"><a id="page081" name="page081"></a>(p. 081)</span> os visinhos do Raminho, um camponez alto, magro, rosto +ossudo, enorme nariz, gago, dentes pôdres, grandes pés descalços +espalmados, por alcunha o <i>Lindinho</i>, condemnado por morte d'homem ás +Pedras Negras.</p> + +<p>Contava com esse a fradaria para ajudante de carrasco, pois a faina +promettia, e só lamentava que não houvesse n'elle a necessaria uncção +do <i>Marmanjão</i>, e que ambos, apesar de já afeitos, não tivessem a +comprovada pericia de carrasco de officio, nem o aspecto, que só por +si fazia chorar as creanças, obrigadas por lei a presencearem as +execuções, de um celebre preto a quem fôra commutada em prisão +perpetua a pena de morte, para fazer pernear condemnados na forca, de +saco pela cabeça, ante a bandeira da misericordia.</p> + +<p>Que falta lhes fazia ali, para a restauração do governo do throno e do +altar, um patriota como o <i>Cambaças</i>, que se offerecera para enforcar +os liberaes; ou um preso como o <i>Fitas</i>, ladrão celebre, grande +partidista de D. Miguel; que até os ladrões eram por el-rei contra a +immunda canalha jacobina!</p> + +<p>Sentado de lado, contra a grade, sem encarar os ouvintes, o +<i>Ferrabrás</i>, faquista, contava historias, que <span class="pagenum"><a id="page082" name="page082"></a>(p. 082)</span> não provocavam +gargalhadas como as do <i>Roseiro</i>. Eram de bruxas, de almas do outro +mundo, e o olhar em extasis, e a barba inculta na cara descarnada, +impressionavam, tornando mais horrorosas as apparições de phantasmas +de incorrigiveis constitucionaes, como o illustre general Araujo, o +<i>diabo</i>, assassinado pelos reaccionarios, com repiques e illuminações +das freiras de S. Gonçalo, e que ao bater da ultima badalada da meia +noite arrastava correntes pelo Caminho Novo, vendo-se-lhe pelas costas +abertas o fogo do inferno que o consummia.</p> + +<p>Abaladas pelos medonhos pavores caiam mulheres com faniquitos, e então +descia uma ordenança tinindo ferros, a prohibir os choros de uns e as +berratas torreiras de outros.</p> + +<p>Puxava o carcereiro os presos para dentro, n'um ar compungido, mas +severo; obediente ás ordens, mas doendo-se da sua execução; injuriando +os renitentes entre abundancias de «valha-me Deus»; e só não levava o +seu rigor ao ponto de fechar as janelas, porque não tinham portas, +bastando á justiça o gradeamento para que não fugissem os presos, e +convindo-lhe que a chuva molhasse o lagedo, afim de que ao saírem os +condemnados, expiada a pena, se <span class="pagenum"><a id="page083" name="page083"></a>(p. 083)</span> tornasse mais salutar o seu +exemplo por irem tolhidos para o trabalho.</p> + +<p>Cumprida a ordem, ia entregar-se Benicio ao formal desempenho da sua +missão de chaveiro, vigiar a porta chapeada de ferro; e sentava-se +junto d'ella a untar de azeite as chaves do postigo, dos cadeados, do +segredo, do alçapão por onde se despejava cal para aplacar as +desordens, fechando por calculo os olhos ao negocio e os ouvidos ao +falatorio, para que «os pobres de Christo», coitados, podessem fazer o +seu vintem, tanta gente juntára o Senhor n'aquella praça; que elles +afinal não eram maus rapazes no seu fadario, «valha-os Deus», são +sortes, e até no fundo eram generosos, recompensando-lhe a caridade +com que os deixava fazer pela vida.</p> + +<p>Voltavam os presos pouco a pouco ás grades, metia-se á formiga o +povoleu pelas arcarias, e recomeçava a cantilena do «eu te requeiro da +parte de Deus e da Virgem Maria», efficaz para desembruxar almas +penadas; o pittoresco do «e vae o senhor D. Miguel ferra-lhe com o +rojão mesmo no sitio»; a «Chamarrita, chamarrita, chamarrita, chama +Rosa» das cantigas do baleeiro; e a giria commercial do <i>Mujinha</i> «Ó +meu rico freguez, perco n'esta gaiola metade do que dei ao homem que +me foi apanhar os <span class="pagenum"><a id="page084" name="page084"></a>(p. 084)</span> caniços», o chamariz com que ganhava +perdendo sempre.</p> + +<p>N'aquella mesma praça, com essa mesma gente, recordava João, fôra +celebrado ha dois mezes, em 22 de junho, o triumpho da liberdade e da +Carta, a revolução liberal do Porto de 18 de maio.</p> + +<p>Agora, em vez da alegria d'essa manifestação, o receio de que tudo se +desfizesse n'um momento. Estremeceu ao lembrar-se como então, de +subito, ficára o chão regado de sangue do povo, no tumulto provocado +pela malvadez de um padre, e em que a cobardia da soldadesca, +disparando para intimidar, matara quatro indefesos homens.</p> + +<p>Mas tranquilisou-se observando melhor. Não se via nem padres nem +soldados: não havia perigo.</p> + +<p>Fez a impaciencia de Juvencio extravasar a dos mais.</p> + +<p>Se por si só o conselho não tinha força para demover o commandante, +era tempo de intervirem.</p> + +<p>Acharam-lhe razão, e do grupo separou-se logo, sem dizer palavra, +Cypriano da Costa Pessoa, um negociante alquebrado pela doença e pela +edade.</p> + +<p>Subiu alguns degraus da escada de pedra, amparou-se ao corrimão, e +voltando-se para o povo descobriu a cabeça embranqueçida e dispoz-se a +falar:</p> + +<p>«Concidadãos!» <span class="pagenum"><a id="page085" name="page085"></a>(p. 085)</span></p> + +<p>Custou a fazer silencio e, apesar de restabelecida a ordem nos grupos +mais proximos, ainda da arcada dos carceres, de onde se não via o +orador, vinham echos desencontrados, provocando um sussurro de +protesto.</p> + +<p>«Concidadãos!»</p> + +<p>E a voz cava de Cypriano repetiu a invocação, procurando o volume +preciso para se fazer ouvir até ao extremo.</p> + +<p>Que queria ali aquelle homem?</p> + +<p>Cravavam-lhe olhos esbugalhados os camponezes, pasmados de que alguem +se atrevesse a levantar a voz em publico, sem ser um clerigo, sem ter +que contar milagres de santos.</p> + +<p>N'um grande esforço, conseguira o orador fazer retumbar até ao canto +da praça, onde costumavam juntar-se os mariólas, como um grito de +alarme:</p> + +<p>«Nas actuaes circumstancias mais vale morrer com as armas na mão do +que soffrer os insultos dos satélites do usurpador!»</p> + +<p>A convicção das suas palavras fez estremecer os proprios que +estranhavam esse secular imitando padres, fazendo pulpito da escadaria +municipal.</p> + +<p>Continuava trovejando a voz de Cypriano, modelada pela <span class="pagenum"><a id="page086" name="page086"></a>(p. 086)</span> +entoação dos prégadores, pois não tivera a lição civica da oratoria +constitucional.</p> + +<p>N'um fremito de terror echoava aos ouvintes a ameaça, correspondente á +absoluta verdade:</p> + +<p>«Não tardará o massacre de quantos liberaes elles puderem colher ás +mãos!»</p> + +<p>Ante os olhos apavorados dos que se viam, d'um momento para o outro, +sob a alçada do carrasco, passava o rosario de crimes absolutistas, as +perseguições de Stokler ali na ilha, a prisão e deportação dos +deputados ás côrtes constitucionaes, a captura em massa operada +pessoalmente por D. Miguel, de aguilhada em punho, os nove estudantes +enforcados no Caes do Tojo, as covas abertas em Portalegre á porta dos +liberaes, a tortura de Renduffe, o envenenamento de D. João VI, o +assassinio de Loulé.</p> + +<p>Iam ficar sujeitos a taes horrores se caçadores 5 abandonasse a ilha.</p> + +<p>E nas faces consternadas reappareceram as lagrimas.</p> + +<p>Mas nem Cypriano da Costa, nem os liberaes do seu grupo se mostravam +desanimados.</p> + +<p>Cheios de fé, queriam luctar e appellavam para o auxilio de todos.</p> + +<p>Por <span class="pagenum"><a id="page087" name="page087"></a>(p. 087)</span> essa praça, tão divertida em tardes de toiros e +cavalhadas, resoava a mesma voz grave, sentida:</p> + +<p>«Para desviar este mal tão imminente, poupar a nós e a nossas +familias, amigos e parentes, convém que já, já, os amantes da patria e +da boa ordem vão offerecer-se ao governo, alistando-se voluntariamente +para servirem debaixo das armas!»</p> + +<p>Ficou abalada a concorrencia, e a ideia emittida do alto agitou por +camadas a turba, enthusiasmou os liberaes mais proximos, perturbou os +mestres de officios, entonteceu as cabecinhas de capuz escarlate, +revoluteiou as dos amplos capellos, e por fim saccudiu em tardas +negativas os barretinhos de borla, de malha amarela e vermelha, e as +carapucinhas de panno preto, em forma de tijela, talhadas em quartos +como barretes de clerigo, dos camponios.</p> + +<p>Insistiu no convite:</p> + +<p>«N'esse momento, e desde já, não cuidava mais de outros negocios, nem +entendia haver occasião mais conveniente de prestar melhor serviço á +sua patria e a tantas familias,»—e aqui a voz vibrava +vergastadas—«sob pena de serem considerados como pusilanimes e +ingratos!»</p> + +<p>Só lhe restavam forças para offerecer o exemplo do seu sacrificio:</p> + +<p>«Emfim, <span class="pagenum"><a id="page088" name="page088"></a>(p. 088)</span> não ha tempo a perder! Todos os que quizerem seguir +tão brioso partido que me sigam a mim!»</p> + +<p>Agitando o chapeu, abrangendo a praça n'um olhar de convite, subiu com +firmeza as escadas, até ao alto da varanda de pedra.</p> + +<p>Foi Juvencio o primeiro a seguil-o, agitando o chapeu alto e erguendo +vivas á Carta e a D. Pedro.</p> + +<p>Responderam acclamações, agitou-se a praça inteira, e á medida que se +aplacou o vozear, perceberam-se gritos, brados de afflicção.</p> + +<p>Das janelas por cima da botica, adivinhando-lhe a intenção, gritavam +as filhas de Juvencio, mas elle, na embriaguez do rasgo, continuava a +subir.</p> + +<p>Arrancando-se aos braços de mulheres que se estorcem, debatem-se +homens enthusiasmados, olhos fitos nos voluntarios que, do alto da +varanda, agradecem as palmas e saudações.</p> + +<p>E correm por fim, vencendo a resistencia das que choram desgrenhadas, +indo sacrificar-se para lhes pouparem mais amargas lagrimas.</p> + +<p>São já quarenta, dos mais distinctos, os voluntarios, mal cabendo na +varanda de pedra, e João encontra-se entre elles, sem ter raciocinado, +sem se lembrar das velhas, do estudo, nem da ida para Coimbra, +<span class="pagenum"><a id="page089" name="page089"></a>(p. 089)</span> na impulsão geral, na ancia de defender a liberdade, na +ambição de apparecer aos olhos de Maria como um homem, aos de Jorge e +do frade como um altivo adversario, aos do morgado como um convicto de +que é egual a elle, e de que vae affirmar, com risco da propria vida, +o direito a erguer os olhos para as pompas do seu brazão.</p> + +<p>No impeto em que se haviam manifestado, logo outro negociante, João +Antonio Bacellar, entrou á frente dos companheiros na sala do conselho +e, offerecendo o serviço voluntario de todos, falou em termos taes que +obrigou o governo a declarar mantidos os principios de legalidade +contra a usurpação de D. Miguel.</p> + +<p>Manifestaram-se no mesmo sentido o secretario da junta Manuel Joaquim +Nogueira, o tenente Lobão, o doutor Antonio da Silveira e Theotonio de +Ornellas que, no enthusiasmo pela obra de 22 de junho, para que tanto +concorrera, chegou a precipitar-se de espada em punho contra o juiz +Calheiros, contrario ao movimento.</p> + +<p>Accede por fim a correr a sorte da ilha o commandante do batalhão, e +na emoção d'essa boa nova o ajudante de ordens vem agradecer e +acceitar, em nome do governo, a offerta dos terceirenses, que ficam +<span class="pagenum"><a id="page090" name="page090"></a>(p. 090)</span> constituindo a companhia de voluntarios reaes, sob o commando +do capitão de milicianos Theotonio de Ornellas, devendo eleger entre +si os outros officiaes.</p> + +<p>Então saem todos para, como em 22 de junho, irem ao castello. No +desafogo do perigo afastado sauda o povo o governo e os voluntarios. O +velho dr. João José da Cunha Ferraz, provisor do bispado, +thesoureiro-mór da Sé, e presidente do cabido, o melhor advogado da +ilha, palpita, apesar dos setenta e tantos, no delirio da juventude, e +vae atirando o barrete ao ar e correspondendo aos vivas na voz +tremula, emperrada pela gaguez.</p> + +<p>Arrebanham-se as beatas, corridas, pela ladeira de S. Francisco, +atravancando-a, alastram pela escadaria do adro, e somem-se pelas tres +grandes portas da egreja do convento, ávidas de consolarem as almas +tão opprimidas, com os exercicios espirituaes dos santos frades, que +não deixarão, decerto, de dar-lhes o prazer de um retumbante sermão de +desabafo, de protesto ao ceu, e de algum desaggravo lithurgico á +affronta feita áquella hora ao seu querido rei, essa encarnação do +archanjo S. Miguel.</p> + +<p>E ali dentro, na protecção do templo, poderiam ostentar as medalhas +dos retratos, em que o rosto do <span class="pagenum"><a id="page091" name="page091"></a>(p. 091)</span> rei apparecia córado, n'uma +vermelhidão de sangue, ostentando-o sem medo nos abundantes peitos de +amas de clerigos.</p> + +<p>Seguiam triumphantes o cortejo as que choravam pelos militares, mas +tanta gente corria ás adufas e acudia ás portas, que o novo bando, +escarlate e negro, escoava-se pela rua de S. João, para se adiantar +pela rua da Rosa, Quatro Cantos e Bôa Nova, indo esperal-o ás alturas +do Relvão, aonde já a curiosidade não macularia de suspeitas o seu +enthusiasmo.</p> + +<p>Assentadas no muro do campo de manobras da fortaleza, entre esse mar +de relva requeimado do sol, onde a primavera semeia papoulas, +borboletas e malmequeres; em face á viçosa explanada que, com as +baterias e banquetas, mascara os caminhos cobertos e os fossos; +deitaram para traz os capellos, offegantes da correria, n'uma +exposição de lindas caras que confirmava aos militares o credito de +invenciveis nas mais frequentes das suas campanhas.</p> + +<p>Transfundira-se na mais pura raça portuguesa do seculo XV o sangue +flamengo que dera o typo esbelto, a frescura de tez, a transparencia +do olhar ás delicadas louras; dotára-a o Brasil da exhuberancia +dolente <span class="pagenum"><a id="page092" name="page092"></a>(p. 092)</span> das creoulas, cabello de azeviche, dentes miudinhos, +fundas olheiras; trouxera-lhe a dominação hespanhola o galante +requebro da andaluza e o preto dos seus olhos seductores; e o dos +hebreus fugidos déra, á sadia carnação das morenas, olhos apaixonados +de judia onde esvoaça a nuvem da saudade.</p> + +<p>Amando-as olvidaram emigrados penas do exilio, e finda a guerra +voltaram, a tornar definitiva a patria em que os adoptara a meiga +ternura.</p> + +<p>Ouvia-se já perto o vivorio; vinha passando o cortejo por baixo das +gelosias do convento de S. Gonçalo, de onde as freiras constitucionaes +acenavam com lenços, gritando no falsete do côro: «Ou Constituição ou +morte!», transportadas pelo fremito de liberdade, acclamando os que +haviam de arrancal-as a essas grades, profanadoras da sua virgindade, +asphyxiantes da sua juventude, e restituil-as á vida, ao amor a que +tinham sido sequestradas.</p> + +<p>Mal as raparigas casadoiras avistaram lenços de côres de mulheres do +fado voejando entre o povo, escabrearam ladeira acima, para entrarem +pelo portão dos carros, seguidas a custo pelas mães e tias que as +pastoreavam, lingua de fóra.</p> + +<p>Já dominavam a praça do castello, da rua que dá para <span class="pagenum"><a id="page093" name="page093"></a>(p. 093)</span> as +baterias, quando resoou na tropeada a ponte de pedra, por sobre o +fosso.</p> + +<p>Sentiu-se ranger a ponte levadiça, nos seus engenhos de correntes e +contrapesos de pedra, ao echoarem as passadas na madeira; retiniu +n'uma brilhante extensão de voz um alegre brado de «ás armas»; e sob o +abobadado das portas bateram as pancadas seccas das bandoleiras ao +apresentar armas.</p> + +<p>Nos quarteis vibravam toques de corneta, vozes de commando: Caçadores +cinco que reunia na sua parada, e avançou depois até á praça do +castello.</p> + +<p>Atraz das companhias vinha de dentro, com ranchadas de filhos, outro +grupo de mulheres que as lindas raparigas e as gastas rameiras olhavam +com respeito e compaixão.</p> + +<p>Ficaram-se entre a egreja e o palacio as companheiras do batalhão, +fieis como cães, inconscientes no perigo como os soldados, firmes como +se as sujeitasse a mesma disciplina; lavadeiras das esquadras, +mulheres ou amantes de soldados, seguindo como vivandeiras a tropa; +lisboetas baixinhas, pescoço curto, sombras de buço, de uma viva +petulancia no lenço engomado, em pontas, que usavam na cabeça, com o +capote, com grave offensa dos capellos ilheus; airosas varinas, leves, +saia curta, pé descalço, <span class="pagenum"><a id="page094" name="page094"></a>(p. 094)</span> collete affirmando-lhe o busto e +erguendo-lhe o seio, chapeu de velludo, coração de ouro e grandes +argolas.</p> + +<p>Tinham atada a minguada roupa, promptas a partirem, como as escunas +inglezas que por baixo das muralhas se baloiçavam nas ancoras, sem um +protesto, como ao virem por mar com os seus degredados; na mesma +firmeza de outras bravas mulheres, que de trouxa á cabeça acompanharam +pela Galliza a divisão emigrada, e de lá seguiram com ella para as +miserias de Inglaterra.</p> + +<p>Desembrulhavam os trapos ao tempo em que os navios, desimpedidos, se +abarrotavam de caixas de laranja, e agora desabafavam contra «o +Miguel», em gestos de regateiras, em palavradas de tarimba.</p> + +<p>Formára Theotonio d'Ornellas a companhia de voluntarios á esquerda dos +caçadores, e João, que ficara entre Juvencio e o seu professor de +latinidade, aprumava-se como um verdadeiro soldado.</p> + +<p>Da escadaria do palacio do governador do castello, que servira de +prisão a Affonso VI, discursou o secretario do governo affirmando a +deliberação de se manter a causa.</p> + +<p>Respondeu-lhe o major Quintino Dias declarando-se, elle <span class="pagenum"><a id="page095" name="page095"></a>(p. 095)</span> e +todo o batalhão, dispostos a «derramarem a ultima gota de sangue».</p> + +<p>Avançou a bandeira até á frente dos Reaes Voluntarios, e estes, +estendendo a mão direita, juraram «guardar e fazer guardar a +constituição politica da monarchia portugueza».</p> + +<p>Tocou a banda o hymno constitucional composto pelo imperador em 21, +ergueram-se os vivas da praxe á Santa Religião, á Carta, e a D. Pedro, +e n'essa fraternisação de povo e tropa, gente da terra e de fóra, viu +João estabelecer-se a unidade do sentimento nacional na aspiração de +liberdade, e sentiu-se para sempre ligado ao destino da causa, até ao +triumpho da nova ideia, ou até á morte pelo ideal.</p> + +<p>Dissipara-se-lhe, como a todos, o terror de pela manhã.</p> + +<p>Tinham trepidado alguns, mas eram bem melhores do que os fugidos no +<i>Belfast</i>.</p> + +<p>Havia uma consciente decisão n'aquelles dos militares que sempre +tinham querido ficar, communicando-se agora aos que a fraqueza +dominára por um momento.</p> + +<p>Só a aspiração liberal reunia todas as classes da nação.</p> + +<p>Estavam ali, ao abrigo das muralhas, ligando-se nos <span class="pagenum"><a id="page096" name="page096"></a>(p. 096)</span> mesmos +protestos, a nobreza, o clero, a burguezia, o operariado; +profissionaes da guerra como os officiaes, os sargentos e os velhos +soldados readmittidos; populares trazidos á força para a fileira pelo +«Joaquim agarrador»; antigos voluntarios alistados em 23, ao perigar a +causa liberal; os que se offereciam agora; e todos, fardados e á +paisana, e os proprios que ainda não se tinham deixado arrastar, +formavam uma phalange, invencivel porque era realmente a nação armada, +e offereciam-se ao sacrificio no momento em que bordejava contra elles +uma forte esquadra, com o bojo cheio de juizes, de carrascos e de +forcas!</p> + + + + +<h2>V <span class="pagenum"><a id="page097" name="page097"></a>(p. 097)</span></h2> + + +<p>Já reconciliadas do arrufo, debruçaram-se as primas no mirante da +quinta dos Folhadaes, devorando com os olhos o caminho da cidade.</p> + +<p>—E nunca mais cá veiu?—perguntava Josepha da Esperança.</p> + +<p>—Nunca mais. Como se tornou esse rapaz! Tão orgulhoso como se fosse +fidalgo, tão brioso como nós!</p> + +<p>—É o que elles dizem, que valem tanto como os nobres, que somos todos +eguaes. Que te parece, prima?</p> + +<p>—Não percebo nem quero perceber d'isso. É bom para as caturreiras de +fr. Angelico e do pae.</p> + +<p>—Que <span class="pagenum"><a id="page098" name="page098"></a>(p. 098)</span> elle é melhor que o primo Jorge, lá isso é que é.</p> + +<p>—Achas?</p> + +<p>—Está feito um homem. Diz coisas graves como nenhum dos nossos primos +seria capaz.</p> + +<p>—Deu-lhe para tomar a serio o que não devia passar de uma +brincadeira.</p> + +<p>—Mas tu não desgostavas d'elle.</p> + +<p>—Não desgostava, não.</p> + +<p>—É muito sympathico.</p> + +<p>—É um bonito rapaz, confesso.</p> + +<p>—Aquelle lindo buçosinho... E a covinha do queixo, e as das faces, +quando se ri. É um amôr!</p> + +<p>—Engraças muito com elle.</p> + +<p>—Não fiques com ciumes.</p> + +<p>—Eu? Toma-o para ti, que t'o agradeço.</p> + +<p>—Isso agradecias tu. Não gosto de sobejos, mas lá por falta de mulher +não deixa elle de casar.</p> + +<p>—Como tu és! E o primo?</p> + +<p>—Não lhe chega aos calcanhares.</p> + +<p>—Olha, o teu genio é que eu nunca hei de comprehender.</p> + +<p>—Então, filha, são feitios. Cada um é como Nosso Senhor o fez. Mas ao +menos eu confesso a minha fraqueza, gosto muito, muito, de um bonito +rapaz, e <span class="pagenum"><a id="page099" name="page099"></a>(p. 099)</span> não quero meter-me a freira. E as que dizem que lhe +atiram com pedras, estão pregadas nos mirantes a vigial-os...</p> + +<p>—Já lhe disse, prima, que não quero o João para namorado.</p> + +<p>—Mas para que passa agora todas as tardes aqui, de alcateia...</p> + +<p>—É que me irrita o procedimento d'elle. Dito e feito! Que nunca mais +vinha, e nunca mais appareceu.</p> + +<p>—E isso dá-lhe pena?</p> + +<p>—Não. Mas exaspera-me pelo seu atrevimento. Queria vêl-o mais uma +vez, descompol-o muito, dar-lhe muita bofetada, muita bofetada, +puchar-lhe pelas orelhas, e depois dizer-lhe: «Põe-te fóra, fedelho, e +vê lá para quem te atreves a levantar os olhos».</p> + +<p>—Pois caiste, prima, e não foi sem tempo. Já não pódes passar sem +elle.</p> + +<p>—Não me diga isso, que até me mete raiva.</p> + +<p>—Essas furias já passaram por mim.</p> + +<p>—A prima é muito experiente.</p> + +<p>—Pois sou, e por isso sinto que lhe estás nas mãos, ou nunca mais +pensavas nas suas palavras.</p> + +<p>Maria não lhe respondeu, e continuou a observar a <span class="pagenum"><a id="page100" name="page100"></a>(p. 100)</span> estrada, +na irritação em que ficára desde a saída de João.</p> + +<p>N'uma crise nervosa passára os primeiros dias fechada no quarto, sem +vêr ninguem, depois fatigara-se em pertinazes passeios ao longo das +varandas de pedra, para cá e para lá, olhos fitos na direcção que elle +costumava trazer.</p> + +<p>Abandonada pelo pae, sem intimidade com a mãe, que passava o tempo na +cozinha fazendo doces, ou em exercicios espirituaes com fr. Angelico, +vira-se forçada a mandar chamar a prima Josepha, para ter com quem +desabafar.</p> + +<p>E apezar do que ella lhe dizia, não cuidava amar João. Nutria contra +elle, ao contrario, um sentimento de hostilidade, de revolta. Sentia +uma insurreição de todo o seu ser contra essa creança que de repente, +sem lh'o ter deixado suspeitar, entendera dispôr absolutamente do seu +futuro, querendo-a para sua mulher.</p> + +<p>Continuava Maria amuada, ria á socapa Josepha da Esperança, quando +passou o jardineiro, com um braçado de flores e a podôa na mão.</p> + +<p>—Ora tenham muito bôas tardes, minhas meninas. Então já sabem a +grande novidade? Vem cá hoje o nosso homensinho.</p> + +<p>—Quem, <span class="pagenum"><a id="page101" name="page101"></a>(p. 101)</span> tio Jacintho?—perguntou Josepha, para acirrar Maria.</p> + +<p>—Quem ha de ser? O senhor Joãosinho.</p> + +<p>—Ouves? Temol-o por ahi.</p> + +<p>—Que me importa!—protestou Maria, muito córada.</p> + +<p>—Vi-o hontem na cidade, já anda fardado de voluntario, e a farda +fica-lhe a matar. Está uma flôr! Até se parece com o avô, o capitão +Silveira, que eu vi assentar praça da mesma edade. E ha de ir longe +como elle, ha de ir longe!</p> + +<p>—Não lhe disse nada?—perguntou a prima.</p> + +<p>—Não sejas inconveniente, Josepha, ou ficamos de mal.</p> + +<p>E para impedir alguma inconfidencia do velho:</p> + +<p>—Vá com Deus, tio Jacintho, e obrigada.</p> + +<p>Mas a prima ainda o deteve:</p> + +<p>—Diga-me cá, elle agora póde chegar a official?</p> + +<p>—Até a brigadeiro, que é muito capaz d'isso, e as meninas ainda o hão +de vêr a cavallo a commandar batalhões e regimentos. Eu já hei de +estar debaixo da terra, mas vou consolado por deixal-o bem +encaminhado, que lhe quero como se fosse meu filho.</p> + +<p>Muito maldosa, Josepha virou-se para Maria:</p> + +<p>—Casarás <span class="pagenum"><a id="page102" name="page102"></a>(p. 102)</span> quando elle fôr brigadeiro, muito velhote como o +tio Vicente.</p> + +<p>—Quando deixarás de meter-te na minha vida, prima?</p> + +<p>—Quando tu m'a contares como bôa amiga. Começa lá, e confessa que te +péllas pelo João.</p> + +<p>—Se assim fosse não fazia mysterio, não tinha de quê. Mas não é +verdade, não é verdade!</p> + +<p>E sentou-se pensativa na banqueta, fronte apoiada á mão, a olhar ao +longe.</p> + +<p>Retiraram-se porém subitamente, e foram ambas esconder-se no jardim, +ao avistarem fr. Angelico. Enfadava-as a sua apologia da vida +conventual, no interesse de obter para a ordem os dotes e os bens que, +como ricas herdeiras, lhe trariam; repugnavam-lhes as pretendidas +caricias paternaes em que o seu instinto de mulheres adivinhava +desejos lubricos.</p> + +<p>O frade, que reparara na subita desapparição, passou rosnando ameaças +por debaixo do mirante, e entrou, mesmo sem bater.</p> + +<p>Bufando, limpando o suor, afrontado da caminhada, só deu com Martinho +Vasques na adega, desabotoado, sentado em cima de um barril, +observando o alambique, e provando a aguardente de vinho que mandára +queimar.</p> + +<p>Offereceu-lhe <span class="pagenum"><a id="page103" name="page103"></a>(p. 103)</span> logo uma caneca cheia, que fr. Angelico +esvasiou, limpando a bocca á manga do habito, e explodindo logo na +sentença que viera preparando pelo caminho.</p> + +<p>—Malditos tempos, senhor morgado, malditos tempos!</p> + +<p>Martinho escorropichou gulosamente, e concordou:</p> + +<p>—Não sei como tanta impiedade não provocou já um tremendo castigo! +Deus porém compadeceu-se de nós, e as vinhas continuam, como nos dias +de fé, a dar este saboroso nectar ... Outro, fr. Angelico, outro +copinho...</p> + +<p>Offereceu-lhe, na ancia de propaganda dos alcoolicos.</p> + +<p>Saboreou o frade aos goles, defendendo-se:</p> + +<p>—Senhor, preciso forças para falar.</p> + +<p>Acabando de beber, tornou a bradar em tom de sermão:</p> + +<p>—Tempo de desgraça! Tempo perverso!</p> + +<p>Mirou-o o morgado, surprehendido por essa gravidade, só usada quando +havia gente de fóra.</p> + +<p>—Você tem coisa, ó Angelico!</p> + +<p>—E grave, meu senhor.</p> + +<p>—Pois desembuche.</p> + +<p>—Tenha <span class="pagenum"><a id="page104" name="page104"></a>(p. 104)</span> V. Ex.<sup>a</sup> a bondade de subir ao escriptorio...</p> + +<p>—Homem, subir ... essa agora!</p> + +<p>E olhava apavorado a escada de mão, encostada ao alçapão que da casa +de jantar dava para a adega.</p> + +<p>—Não póde abrir o bico ahi mesmo?</p> + +<p>—Trata-se de um assumpto tão grave ... tão grave...</p> + +<p>Pelo ar mysterioso, ficou Martinho desconfiado:</p> + +<p>—Se é mais dinheiro para guerrilhas acabou-se ... Quero dizer, os +tempos vão maus, os rendeiros pouco pagam ... E você bem sabe que a +estas horas não estou em casa para taes coisas...</p> + +<p>Indo da meza para a adega, saindo da adega para a meza, reconhecera ha +muito o morgado que de tarde não fazia bons negocios, e antes de +jantar fechava as gavetas do dinheiro e saía sem cinco réis, para que +não lh'o extorquissem, com intimidações do inferno, para missas; para +que não lh'o arrancassem, com lagrimas, antigas jovens das redondezas, +invocando as complacencias de solteiras em favôr dos maridos, dos +filhos, dos netos.</p> + +<p>—Não se trata de dinheiro, meu senhor, embora saiba <span class="pagenum"><a id="page105" name="page105"></a>(p. 105)</span> que a +sua generosa bolsa está sempre aberta para a defeza da bôa causa.</p> + +<p>E falando-lhe ao ouvido, insinuou:</p> + +<p>—Trata-se da sua honra, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro!</p> + +<p>Ergueu-se, aprumou-se o morgado, e os musculos do rosto, distendidos +na bonhomia de ebrio, contrahiram-se n'uma inesperada expressão de +gravidade. A normalidade da embriaguez permittia-lhe a consciencia das +situações extremas, ao contrario da absoluta perda de conhecimento dos +que não bebem por habito, e só excepcionalmente se transtornam.</p> + +<p>—Siga-me!—ordenou ao frade, que se humilhava hypocritamente, n'um ar +compungido.</p> + +<p>Encaminhou-se para a escada de mão, segurou-se-lhe, poz o pé no +primeiro degrau, mas ao querer subir cambaleou, em risco de cair.</p> + +<p>Offegante do exforço, accentuou se-lhe na fronte uma ruga, e +pairou-lhe nos labios uma contracção de vergonha, de nojo de si mesmo. +Ia occupar-se da sua honra a cair de bebedo!</p> + +<p>Tinha de dar a volta, e entrar pela escada principal.</p> + +<p>Então abotoou o collete, compoz a casaca, puchou os <span class="pagenum"><a id="page106" name="page106"></a>(p. 106)</span> punhos, +arranjou as pregas dos bofes, e apoiando-se ao marmeleiro que deixára +contra as pipas, caminhou n'um ar magestoso, seguido pelo frade +cabisbaixo, rastejante.</p> + +<p>Pesadamente, no mesmo aprumo, entrou no escriptorio, foi sentar-se na +solida cadeira negra, de alto espaldar, encimada pelo folhado de uma +concha, e agora parecia-se com os retratos dos antepassados da sala +nobre, a grave cabeça apoiada nos hombros largos; a meza, as pennas de +pato de que nem sabia usar, a gravidade do conjuncto dando lhe o ar de +um ministro, de um desembargador.</p> + +<p>—Explique-se!—ordenou-lhe, como um juiz a um reu.</p> + +<p>De pé, nos gestos dos grandes dias, começou fr. Angelico:</p> + +<p>—Senhor, esta casa acaba de ser duplamente enxovalhada. Sentou praça +de voluntario, em reforço ao infame batalhão que é a vergonha e o +grilhão d'esta terra, esse rapaz que V. Ex.<sup>a</sup> protegeu, e que recebia +em sua casa como a um filho...</p> + +<p>—O João? Já tinha reparado na sua falta.</p> + +<p>—Hão de dizer que são os nossos exemplos!</p> + +<p>—Meteram-lhe isso em cabeça, patifes! A culpa é <span class="pagenum"><a id="page107" name="page107"></a>(p. 107)</span> de quem +perverte a juventude, e a arrasta para os abysmos da impiedade.</p> + +<p>—Talvez V. Ex.<sup>a</sup> não leve a sua generosidade a ponto de perdoar-lhe, +quando o vir logo entrar fardado aqui.</p> + +<p>—Aqui?</p> + +<p>—Sim senhor, a titulo de pedir desculpa de não poder continuar com a +escripturação, mas para nos afrontar com o maldito uniforme +constitucional, porque bem sabe quaes são as opiniões de V. Ex.<sup>a</sup> e +minhas.</p> + +<p>—Bom é que venha, que lhe quero dizer algumas verdades, e dar-lhe +puxões de orelhas, que é o que merece.</p> + +<p>—Perdôe-me V. Ex.<sup>a</sup> mas nem devia consentir que viesse...</p> + +<p>—Isso é commigo.</p> + +<p>E dirigindo ao frade um olhar severo:</p> + +<p>—Mas que tem que vêr isso com a minha honra, a que você se atreveu a +alludir?</p> + +<p>Curvou-se mais o frade, e respondeu na voz lagrimejante dos sermões +quaresmaes:</p> + +<p>—Já lá vamos, senhor morgado, já lá vamos, embora o que me pesa ... +só Deus o saiba!</p> + +<p>Aproximou-se <span class="pagenum"><a id="page108" name="page108"></a>(p. 108)</span> da meza, e quasi ao ouvido de Martinho:</p> + +<p>—Perdôe V. Ex.<sup>a</sup>, mas diz-se á bôcca pequena que o miseravel ousa +levantar os olhos para a senhora D. Maria.</p> + +<p>—Para minha filha?</p> + +<p>Ergueu-se apopletico o morgado, o sangue a rebentar do cachaço rubro, +abaixando a fronte, n'um gesto de investida. Zumbia-lhe nos ouvidos um +turbilhão de sangue exasperado, passavam-lhe no olhar relampagos de +vingança, e os labios mexiam-se-lhe convulsos.</p> + +<p>Mas tornou a sentar-se, e disse com certa compostura:</p> + +<p>—Isso póde não passar de uma brincadeira. Comtudo fez bem em me +avisar.</p> + +<p>—Desculpe V. Ex.<sup>a</sup>—insistiu o frade—mas não se trata da +infantilidade que julga. São os conselhos da botica, é a lição da +liberdade! Esses infames querem afundar tudo na anarchia, e lançar mão +das grandes casas fidalgas, em nome da egualdade que apregoam!</p> + +<p>Meditou o morgado, a cabeça apoiada entre as mãos, e depois disse +gravemente, em phrase arrastada:</p> + +<p>—Basta, <span class="pagenum"><a id="page109" name="page109"></a>(p. 109)</span> fr. Angelico. Isso póde ser um calculo d'elle, mas +não alcança minha filha, nem attinge a minha honra, entenda-o bem. +Podem fazer as leis que quizerem sobre egualdades. Quem é do nosso +sangue não desce! Vença quem vencer, nós continuaremos a ser o que +sômos, e elles o que são. Vossa reverendissima não póde comprehender +isto, porque é plebeu. Mas eu sinto-o no sangue, como minha filha o +deve sentir.</p> + +<p>Conteve n'um gesto o frade, que ia a falar.</p> + +<p>—Póde retirar-se. O que tenho a fazer é commigo, juiz e executor em +minha casa, na minha familia e na minha raça, como chefe de linhagem +que sou!</p> + +<p>E correspondendo ás subservientes reverencias de fr. Angelico:</p> + +<p>—De caminho mande-me o quinteiro, faça favôr.</p> + +<p>Saíu pouco satisfeito o franciscano, procurou o quinteiro, mandou o á +presença do fidalgo; depois chegou ao portão da quinta, observou para +fóra antes de o transpôr, e em seguida, muito cosido com o muro, +partiu para os lados de S. Carlos, para voltar á cidade sem se +encontrar com João.</p> + +<p>Notaram-lhe <span class="pagenum"><a id="page110" name="page110"></a>(p. 110)</span> as manobras Maria e Josepha da Esperança, que +tinham voltado ao mirante mal elle entrara.</p> + +<p>Satisfeitas, por se verem livres d'elle, continuaram a observar +impacientes o caminho da cidade.</p> + +<p>Distinguiram por fim ao longe uma figurinha de militar.</p> + +<p>Era João, vestido de guarda nacional, farda curta de saragoça +portugueza, com botões brancos, golla azul claro, laço azul e branco +no chapéu redondo.</p> + +<p>Do ponto onde estava, o mirante sobranceiro ao pateo, em face ao +alpendre da escada, ia vêl-o entrar e, talvez como antigamente, elle +viesse falar-lhe, arrependido da imprudencia.</p> + +<p>Pensando assim, seguia-o Maria n'um olhar de anciedade, encobrindo-se +com as trepadeiras do caniçado, para não lhe dar a confiança de +mostrar que o esperava.</p> + +<p>Vinha já perto, quando notaram dentro movimento desusado.</p> + +<p>Corria o quinteiro, e meia duzia de cavadores de enxada, batendo os +pés descalços na terra endurecida pelo calôr, varapaus ao hombro, +falando alto.</p> + +<p>Desacorrentára o creado dois grandes cães de fila, amarelos, rabo +cortado, focinho negro, fauces ameaçadoras, <span class="pagenum"><a id="page111" name="page111"></a>(p. 111)</span> que de noite +rondavam ganindo e uivando.</p> + +<p>Ao chegarem ao pateo, occultaram-se na cocheira homens e cães, e o +quinteiro foi esconder-se por traz do postigo, como se quizesse +fechal-o mal entrasse João.</p> + +<p>—Que é isto, José?—perguntou Maria, suspeitando uma violencia.</p> + +<p>—Ordens do senhor morgado—respondeu elle, rindo alvarmente—não +quero saber!</p> + +<p>Mas Josepha da Esperança, muito nervosa, nem lhe dera tempo á +resposta, e ao vêr João em frente do mirante, avisou-o:</p> + +<p>—Não entre, que lhe querem bater!</p> + +<p>Maria, correndo ao muro, bradou-lhe tambem:</p> + +<p>—Foge, foge!</p> + +<p>N'uma grande excitação, gritava a prima:</p> + +<p>—Aqui d'el-rei! Aqui d'el-rei!</p> + +<p>Elle recuára ao ouvir os gritos e, vendo apparecer ao postigo a cabeça +lanzuda, comprehendeu que lhe faziam uma espera.</p> + +<p>Desembainhou a baioneta, aprumou-se garboso, e avançou muito pallido +para a porta, que de dentro fecharam com estrondo.</p> + +<p>Sentiu então Maria que o amava, vendo-o encarnar o <span class="pagenum"><a id="page112" name="page112"></a>(p. 112)</span> typo +glorioso, cavalheiresco, da imaginação das raparigas, geralmente +fixado nos que teem por ferramenta a espada e a lança do cavalleiro +andante de outras eras.</p> + +<p>Dirigia-se-lhe com o coração nas mãos, como elle no pomar, n'um rubor +de sangue, lavada em lagrimas, pondo as mãos:</p> + +<p>—João, João, não te percas por minha causa!</p> + +<p>Sem a attender, batia exasperado no portão com o punho da baioneta, +bradando querer falar ao senhor Martinho Vasques.</p> + +<p>Ouvindo ladrar ameaçadores os cães de guarda, virou-se Maria para o +pateo.</p> + +<p>Aos gritos de soccorro de D. Josepha, correra de dentro o jardineiro +com um grosso varapau cruzado como a espingarda, a ponta á altura dos +olhos, fortemente cingido ao corpo.</p> + +<p>—Querem bater no Joãosinho!—explicou-lhe ao vêl-o.</p> + +<p>Correu o veterano ao postigo, aferrolhou-o, e berrou aos caceteiros +que se fossem embora.</p> + +<p>—Quem manda aqui é o fidalgo!—respingou o quinteiro, fazendo-se +forte á frente do bando.</p> + +<p>Mas os camponeses, receiando as furias do velho, mantinham-se +<span class="pagenum"><a id="page113" name="page113"></a>(p. 113)</span> indifferentes, apoiados aos bordões, n'um riso estupido.</p> + +<p>—Deixe-me abrir a porta!—insistia o José da Quinta, querendo deitar +os cães, segundo as ordens do amo.</p> + +<p>—Primeiro te racho de meio a meio!—ameaçou mestre Jacintho, +encostando-se ao postigo.</p> + +<p>—Avem-te com estes!—casquinou o quinteiro, abrindo com um pontapé a +porta da estrebaria.</p> + +<p>Saíram ladrando excitados <i>Marujo</i> e <i>Sultão</i>, mas conhecendo o +jardineiro, não lhe pegaram.</p> + +<p>—És peior que os cães, que os animaes não teem entendimento e não +fazem mal só porque os mandam!</p> + +<p>E o velho rilhando o dente, na furia que o tornava terrivel, avançou, +crendo-se em plena batalha, e fez recuar o capataz e o rancho, +levando-os de roldão até ao fundo do pateo.</p> + +<p>Ahi, metido em brios, tentou defender-se o mandatario do morgado, mas +caíu, lavado em sangue, com uma cacetada na cabeça.</p> + +<p>Appareceu no alpendre da escada D. Perpetua entre as creadas, +attrahida pelo alarido.</p> + +<p>Chamou a filha para casa.</p> + +<p>—Vamos para dentro, Maria. Que vergonha!</p> + +<p>E <span class="pagenum"><a id="page114" name="page114"></a>(p. 114)</span> como ella não a attendesse, deu a volta e foi obrigal-a a +saír do mirante.</p> + +<p>—Isto é alguma tarde de toiros? Gostas de vêr no que dão as +bebedeiras de teu pae?</p> + +<p>Arrastada pela mãe, envolvida no berreiro das creadas, Maria, com a +cabeça perdida, não viu que mestre Jacintho abrira a porta e, dando +conta a João do que se passava, aconselhara-o a ir-se embora. Depois +falariam.</p> + +<p>Ao passar no pateo, para entrar em casa, afastou a cabeça para não vêr +a torva lividez do ferido, os olhos vidrados, a testa gotejando, os +cabellos empastados em sangue, a mulher ajoelhada ao pé, clamando que +o morgado lhe metera o homem em trabalhos.</p> + +<p>Ao entrar em casa ainda poude Maria olhar para fóra, e ficou +descançada vendo João já muito longe, a caminho da cidade, salvo de +todo o risco.</p> + +<p>Veiu do fim da quinta Martinho Vasques a vêr como tinham sido +executadas as suas ordens. Ao conhecer o procedimento do veterano, +partiu exasperado em busca d'elle, depois de ter mandado chamar o +barbeiro para curar o ferido.</p> + +<p>—Tu é que déste a pancada no quinteiro?—perguntou-lhe colerico, +<span class="pagenum"><a id="page115" name="page115"></a>(p. 115)</span> ao vêl-o deitado n'um molho de rapa, a resfolegar, muito +cançado.</p> + +<p>Ergueu-se logo o velho, empertigou-se na rigidez do habito militar +ante o superior, mas respondeu, orgulhoso da façanha:</p> + +<p>—Pois quem havéra de ser? Quem ha ahi com alma para tirar fumaças a +pimpões?</p> + +<p>—Mas tu sabias que era ordem minha!</p> + +<p>—E que me importava isso a mim?</p> + +<p>—Então, refinadissimo tratante, comes o meu pão para me +desobedeceres?</p> + +<p>—Sabe que mais, patrão, não venha tirar palha commigo.</p> + +<p>Mas o morgado, que via n'elle o culpado da vergonhosa scena em que +fôra desrespeitado, e de que o rapaz saíra triumphante, irritava-se +cada vez mais.</p> + +<p>—Aquella pancada é como se fosse dada em mim mesmo.</p> + +<p>O ex-soldado virou-se para elle, mediu-o de alto a baixo, e de +esguelha, disse-lhe decidido, teimoso:</p> + +<p>—Se o senhor se tivesse ido metter com o menino...</p> + +<p>Arremetteu com elle Martinho Vasques. Porém a reputação do soldado, +apesar da mesquinha attitude em que ia a retirar-se, sem fazer caso, +dobrado ao <span class="pagenum"><a id="page116" name="page116"></a>(p. 116)</span> meio, as mãos pacificamente atraz das costas, o +pescoço magro saíndo da colleira negra, descarapuçado, bastou para +conter n'um prudente respeito o morgado, alto, forçoso, sanguineo, +armado do rijo varapau.</p> + +<p>—Esquecestes quem sou eu?</p> + +<p>—E o fidalgo não se esqueceu do que lhe deve ao avô, do que me deve a +mim, para vir para aqui, vermelho como uma lagosta, impar de raiva +mansa?</p> + +<p>—Se não tivesse que descer a medir-me comtigo, fazia-te engulir tudo +isso com os dentes que te restam.</p> + +<p>Tremia apertando nervosamente o bordão.</p> + +<p>—Com bem passe, senhor Martinho—e o velho dizia-lhe adeus com a mão, +sem se voltar.—Fale-me ámanhã em jejum.</p> + +<p>—Ó bandalho, tu chamas-me bebedo?</p> + +<p>—O patrão é que se está chamando, nanja eu.</p> + +<p>—Olha que eu mando-te fazer uma montaria como a lobo!</p> + +<p>—Pois vamos a isso. Coza-a commigo, que tenho o coirão duro, mas lá +com o menino, cautela! Olhe que lhe sae do pêlo, senhor morgado.</p> + +<p>—Pois atreves-te a ameaçar-me? A mim?</p> + +<p>—Hoje em dia, meu amo, já não se póde mandar matar <span class="pagenum"><a id="page117" name="page117"></a>(p. 117)</span> um homem +sem se bailar n'uma forca, porque se acabaram os fidalgos e as suas +patifarias.</p> + +<p>—Até a isto se pegou a sarna jacobina!—exclamou com desdem, com +desgosto.—Não falavas assim se eu não te désse licença para te ires +emborrachar com a choldra do castello.</p> + +<p>—Aqui, senhor morgado, aqui é que ellas se apanham de caixão á cova.</p> + +<p>Perdendo a cabeça, o morgado poz o pé atraz, empunhou o cacete, mas +envergonhando-se, atirou com elle, e deixou-se cahir no banco de pedra +como aniquilado.</p> + +<p>Ficou para ali vendo anoitecer, não querendo passar pelo pateo onde a +quinteira se arrepelava, bradando que lhe desgraçára o marido.</p> + +<p>Tinha ainda nos ouvidos os gritos de Maria, as injuriosas referencias +da esposa.</p> + +<p>Acabava de insultal-o um creado!</p> + +<p>Sentia inteiramente desfeito o poder, a autoridade de que fôra tão +cioso.</p> + +<p>Todos se voltavam contra elle, todos pareciam ter razão contra a sua +razão, a unica authentica, a unica verdadeira.</p> + +<p>Perdera se a obediencia, quebrara-se o respeito, e <span class="pagenum"><a id="page118" name="page118"></a>(p. 118)</span> em sua +casa todos queriam mandar tanto como elle.</p> + +<p>Estaria então a sociedade tão profundamente minada pelo mal, como +dizia fr. Angelico, que a filha, uma fidalga, descesse até um misero +plebeu, e todos se conspirassem contra elle, tomando partido pelo +insignificante?</p> + +<p>E atreviam-se a falar-lhe cara a cara, a elle, morgado, senhor de +terras, nas novas leis que impediam a nobreza de desafrontar a sua +honra a dentro do seu solar?</p> + +<p>Invadia-o uma amarga dôr, um triste desanimo, como se a sua +integridade physica fosse attingida, como se lhe tivesse quebrado a +cabeça a cacetada, como se lhe mordessem os proprios cães.</p> + +<p>E n'essa hora de abandono assaltava-o o remorso de muita injustiça.</p> + +<p>Mas pouco a pouco reconquistou-o a fé absoluta na verdade das suas +ideias.</p> + +<p>Reanimou-se, decidiu-se.</p> + +<p>O mal crescera, chegára a invadir-lhe a casa! Pois bem, collocar-se-ia +d'ahi em diante ao lado dos que mantinham a verdade do passado, a +honra incorruptivel da fidalguia, a fé religiosa intransigente!</p> + +<p>E <span class="pagenum"><a id="page119" name="page119"></a>(p. 119)</span> levantou-se aprumado, disposto á lucta que a todos +reclamava, e a que até ahi o subtraíra a indolencia do seu viver.</p> + + + + +<h2>VI <span class="pagenum"><a id="page121" name="page121"></a>(p. 121)</span></h2> + + +<p>Segundo o costume, mal se levantára, fôra logo o morgado para a casa +de jantar e, com a cabeça apoiada entre as mãos, os olhos fitos nos +montes de rapa, nos picos de esterco do pateo interior, onde fossavam +porcos e depenicavam gallinhas, reconstituia por partes a scena da +vespera, illuminando se-lhe successivamente zonas da memoria, mas sem +continuidade nos acontecimentos, como se uma palavra do frade lhe +ficasse menos gravada, como se um insulto do veterano se marcasse mais +fundo; e depois colligiu tudo, e poz-se a ligar os factos aos +antecedentes e a preparar-lhes, por sua iniciativa, a necessaria +conclusão.</p> + +<p>Batiam <span class="pagenum"><a id="page122" name="page122"></a>(p. 122)</span> alto na cosinha as galochas de sola de cedro da +morgada, ao passar na parte do lagedo raspada pelo rachar da lenha; em +sons abafados, surdos, ao calcar as crôstas de lama negra e luzente, +terra da horta, caldeada ás escorrencias da amassaria.</p> + +<p>Começou a chiar a frigideira na trempe, ao fogo das achas atiçadas +pelo borralho do forno, onde acabava de cozer o pão da semana.</p> + +<p>Ao cheiro da gordura e da linguiça com ovos, desabaram moscas do tecto +de maceira, onde jaziam mortas gerações e gerações, o ventre inchado, +avivado de cintas brancas, presas umas nas bambinelas de teias de +aranha, suspensas outras pela tromba á cal do forro, que sustentava a +telha, apoiando-se ás pernas de asna, firmadas por sua vez no friso +onde amadureciam maçãs, e nas grandes traves em que curavam aboboras.</p> + +<p>Esbarraram algumas, desvairadas, nos vidros poeirentos, grudados aqui +e ali por miolo de pão, no centro das rachas estrelladas; mas depois +precipitaram-se todas na cosinha, d'onde d'ali a pouco vieram pairando +por cima da pratada, quando os pés descalços da creada batiam pancadas +seccas nos degraus de pedra, da cosinha para a casa de jantar.</p> + +<p>Entraram <span class="pagenum"><a id="page123" name="page123"></a>(p. 123)</span> zumbindo pelas janellas as varejeiras dos chiqueiros +e da esterqueira, cujas emanações azedas azotadas e amoniacaes, +abafavam o cheiro da linguiça temperada a oregãos e da banha de vinha +d'alhos.</p> + +<p>Distraíu-o momentaneamente a lucta com os insectos, muitos dos quaes +iam morrer na fervente gordura em que boiava a fritada.</p> + +<p>Para comer em socego mandou fechar as janelas, e cessou a baforada da +estrumeira, onde se enthesoiravam os despejos da casa, para riqueza +das terras; mas pela do pateo da entrada, aberta para arejar, veiu o +fedôr a bêsta das estrebarias que ficavam por baixo dos quartos de +cama, onde pelas gretas do sobrado insinuavam ninhadas de pulgas.</p> + +<p>Coube a vez ás moscas de cavallo, tardas, pegajosas, expulsas ás +rabanadas pelas alimarias que, n'um luctar irritante, continuo, +escarvavam o chão calçado de pedra roliça como amendoa, boleada pelo +rolar das marés, pelo limar da areia.</p> + +<p>Postos diante d'elle os torresmos frios, conservados em banha, e o pão +de cabeça ainda quente, levantou-se o morgado e, tomando o cangirão de +barro, de aza partida, cintado por dentro de sarro, foi-se ao barril +cuidadosamente encanteirado, tirou-lhe o <span class="pagenum"><a id="page124" name="page124"></a>(p. 124)</span> espicho e o vinho +esguichou alourado, espumante, tornando a tapar por suas mãos, tanto +cuidado lhe merecia o trato, tanta habilidade considerava necessaria +para saber encher, sem deixar turvar.</p> + +<p>Atestou o grande copo de crystal floreado de meia canada, difficil de +abarcar na grande mão, ergueu-o á altura dos olhos, observou o vinho +contra a luz, sorriu vendo mosquitos sepultos no fundo pelo jacto, e +sobrenadando em redemoinho, prova de que continuava excellente o +verdelho.</p> + +<p>Esvasiou-o, excedendo a receita da sabedoria conventual «antes da sopa +molha-se a bocca», «depois da sopa lava-se a bocca»; e quedou-se a +admirar o vidro, seu unico luxo, a que ligava o valor estimativo dos +reis testando em especial a taça «porque bebiam»; por onde só elle +bebia, e bebia sempre, a não ser o vinho novo que, como entendedor, +tomava por tijelinhas de barro.</p> + +<p>Subiu da cosinha, afadigada, D. Perpetua, batendo nos degraus as +galochas.</p> + +<p>Volumosa pelas muitas saias de estopa e de panno da terra, como as +creadas e as camponezas, trazia á cinta a bolsa de velludo preto, +bordada a vidrilhos, onde tiniam grossos patacos de bronze e mólhos +de <span class="pagenum"><a id="page125" name="page125"></a>(p. 125)</span> chaves, pura ostentação, ante a dispensa escancarada, com +a esbeiçada bexiga da gordura, onde se espetava a colher de pau.</p> + +<p>Baixa, grossa, trigueira, olhar lubrico, beiços carnudos, olheiras em +papos, pelle encarquilhada nas fontes, grandes rugas atravessando a +testa de lado a lado, despenteada ainda como saíra da cama, as mãos +sujas, de unhas negras como olhos de fava, desinteressava-se de tudo +que não fosse fazer dôces, como aprendera no convento, e entregar-se a +exercicios espirituaes com fr. Angelico, a cuja intimidade se agarrara +n'um desespero de abandonada.</p> + +<p>Era o symbolo da desordem que João sentia pairar n'essa casa, +orgulhando-se de que a sua valia mais, porque n'ella transparecia a +solida união que os elevára, emquanto a embriaguez, a preguiça, o +desmazelo dissolviam aquella.</p> + +<p>Sentou-se perto da cabeceira occupada pelo marido, e os dois pareciam +degredados no isolamento da grande meza deserta, onde nos grandes dias +se ostentava a baixella de prata guardada no fundo da arca e se +alinhavam os grandes beberrões dos primos dando-lhe cresta na adega, +por dias de annos, pelas festas; onde em quinta-feira santa jantava a +creadagem <span class="pagenum"><a id="page126" name="page126"></a>(p. 126)</span> com os amos, celebrando a ceia dos apostolos.</p> + +<p>Faltava Maria, e a mãe perguntou á creada:</p> + +<p>—A menina?</p> + +<p>—Mandou ir o almoço ao quarto.</p> + +<p>—Estará doente?</p> + +<p>Interpoz-se o morgado:</p> + +<p>—Não sabe o que ella tem? Sei eu. É que vae saindo á senhora, +herda-lhe as boas prendas, porque não tem outras que herdar.</p> + +<p>Respondeu em furia de hysterica D. Perpetua, envidraçando os olhos que +só para o frade se enterneciam:</p> + +<p>—Vejo que o senhor ainda está com os destemperos de hontem. Já nem +sequer o dormir lh'as coze.</p> + +<p>Não se escandalisou o morgado, acostumado a essas violencias, e +continuou:</p> + +<p>—Por causa de sua filha houve hontem n'esta casa um escandalo. Não +quero que se repitam, nem que ella faça o que a senhora toda a sua +vida fez.</p> + +<p>—O que eu fiz? Mas o que é que eu fiz, senão caír nas bocas do mundo +por causa dos atrevidos do seu jaez. Por ter sido sua victima sou +culpada? E <span class="pagenum"><a id="page127" name="page127"></a>(p. 127)</span> então que nome merece o senhor, que com a sua +brutalidade abusou da minha innocencia?</p> + +<p>Riu Martinho estrondosamente:</p> + +<p>—A innocencia de uma menina de vinte e quatro annos, creada n'um +convento de freiras, acostumada ás denguices das grades, á intimidade +dos primos, sabida em poucas vergonhas de namoros. Innocente, a +senhora!</p> + +<p>—Ria-se, ria-se. Mas não se riu quando o pae que Deus tem, que o +conhecia por dentro e por fóra, o agarrou pelas orelhas: «Has-de +casar, maroto, ou mato-te como a cão damnado, porque me enxovalhastes +a filha». E o senhor tudo eram escrupulos do que se dizia, porque +torna porque deixa, só por eu ser filha segunda, e andar á cata de +herdeiras ricas. Quando viu sacos de cruzados não quiz saber de famas, +de ditos nem mexericos. Meteu-me aqui dentro, tratou-me sempre como +uma escrava, fez de mim esta desgraçada, mas plantou novas cepas para +se emborrachar á vontade, e concertou este pardieiro onde chovia como +na rua.</p> + +<p>E n'um gesto longo abrangeu as paredes de cantaria de onde a cal +despegava, o forro do tecto embarrigado pelo peso da telha, com +lôstras de amarelo sujo, escuras ao centro, esbatidas para os bordos, +da <span class="pagenum"><a id="page128" name="page128"></a>(p. 128)</span> agua da chuva represada pelos coiceis, nascidos nas +toiças de terra entre os regos; vertida pelas telhas rachadas por +garotos que varejavam á funda os altos alamos, á caça de melros.</p> + +<p>—Mente!—protestou o morgado contra a insinuação de +interesseiro.—Cumpri apenas um dever de honra.</p> + +<p>Riu convulsamente D. Perpetua, tendo perdido na intimidade o respeito +á importancia que elle se arrogava ante os estranhos, impressionados +pelo traje de côrte, á antiga, que o marcava como homem de outros +tempos, tornado respeitavel á força de velho.</p> + +<p>—A sua honra! Deixa-me rir! Quando o chamaram a Lisboa para a guerra +com os franceses, o senhor, apesar da sua patente de capitão, não quiz +saber de palavras bonitas, e deixou-se ficar no quartel de saude, como +diz mestre Jacintho.</p> + +<p>Iam comendo e insultando-se, na rotina de trinta annos de rancor.</p> + +<p>—Como ha-de comprehender escrupulos de honra quem nunca os +teve!—commentou o morgado.</p> + +<p>Insistia D. Perpetua, muito teimosa, desabafando o odio ao longo +captiveiro em que a mantivera:</p> + +<p>—A sua honra, a sua embofia de fidalgo, que não o impediu de explorar +como um judeu o primo Chico, <span class="pagenum"><a id="page129" name="page129"></a>(p. 129)</span> pondo-o ao descimento da cruz +com os seus contractos de avarento.</p> + +<p>—Se a senhora não havia de defender esse reles picador de toiros!</p> + +<p>—Que quer dizer com isso?</p> + +<p>—Bem sabe o que fez, mesmo depois de casada, sua descaradona!</p> + +<p>—Não tem senão lingua! Não lhe dar um estupôr que lh'a puzesse lesa!</p> + +<p>—Tambem tenho mãos!—explodiu elle n'uma ameaça, dando um murro na +meza, mostrando o punho fechado.—Não queira tornar a conhecel-as!</p> + +<p>Sentindo reviver a offensa dos bofetões que a atiravam ao chão, +replicou arripiando-se como uma gata:</p> + +<p>—Conheço-lhe as mãos, covarde, mas o primo conhece-lhe a cara. Ainda +o estou a vêr, quando cá veiu, muito enfiado, por causa da quinta do +Pico da Urze: «Tu ficaste-me com as terras, pois então fica-me lá +tambem com esta». E traz! Emplastou-lhe os cinco dedos nas bochechas!</p> + +<p>Terminára o almoço, e ambos se ergueram de mãos postas, dando graças a +Deus.</p> + +<p>Vendo ainda vinho no fundo do jarro, deitou-o Martinho no copazio, +atirou-o á bocca e chamou a mulher:</p> + +<p>—Oiça <span class="pagenum"><a id="page130" name="page130"></a>(p. 130)</span> as minhas ordens.</p> + +<p>Voltou-se D. Perpetua no habito de servidão adquirido n'uma vida +inteira de obediencia, em que apenas havia a revolta das más palavras, +que para o isolamento de ambos se tornára n'uma necessidade.</p> + +<p>Ditava o morgado, sobrancelhas contrahidas, carrancudo, como absoluto +senhor:</p> + +<p>—Maria não tornará a saír do quarto sem minha ordem!</p> + +<p>—Ah! Então fica encarcerada?</p> + +<p>—Cale-se e obedeça!</p> + +<p>—Não, que me sóbe uma coisa á garganta, e rebento se não lhe digo as +verdades! Quer fazer-lhe o que me fez a mim, que me fechou como a um +cão, para se meter com as creadas e com as mulheres do monte, vindas +de proposito pagar as rendas em vez dos homens, para levarem sua +pataca amarrada na ponta do lenço!</p> + +<p>—Já acabou? Então oiça, e veja se tem a imprudencia de me +desobedecer. Já sabe o que lhe custa!</p> + +<p>—Quere-a para freira?</p> + +<p>—D'aqui em deante não a deixe só, não lhe consinta cartas. Não a +perca de vista, tome cautella. Eu vigiarei ambas.</p> + +<p>E <span class="pagenum"><a id="page131" name="page131"></a>(p. 131)</span> confirmando a ordem n'um gesto de ameaça, saíu em passos +largos, bordão em punho, caminho da adega, a visitar o alambique.</p> + +<p>Muito irritada, porque a vigilancia da filha ia alterar-lhe os +habitos, entrou-lhe D. Perpetua com mau modo pelo quarto dentro:</p> + +<p>—Venho aqui esfogueteada por sua causa. Ouvi a seu pae o bom e o +bonito! A menina precisa ter muito juizo. Lembre-se de quem é! Seu pae +não quer que saia do quarto sem licença, e olhe que se ateima no +namoro, é capaz de lhe pregar as janelas.</p> + +<p>Recebeu Maria com indifferença a reprimenda, levantou-se e +encaminhou-se para a porta.</p> + +<p>—Que faz?!</p> + +<p>—Que tenho eu que se ponham a disputar á meza, e depois queiram +exercitar o genio commigo? Não fiz mal nenhum, não quero ficar presa! +Não quero! Não quero!</p> + +<p>—A menina está doida!</p> + +<p>E saíndo para o corredor, apezar da mãe lhe querer tomar a porta:</p> + +<p>—Vou mandar chamar a prima Josepha e o primo Jorge. Com gente de fóra +hão de ter mais vergonha.</p> + +<p>—Olhe, <span class="pagenum"><a id="page132" name="page132"></a>(p. 132)</span> eu é que não estou para me incommodar. Préso muito o +meu socego. Vou fazer queixa a seu pae, vou pôr-lhe tudo em pratos +limpos.</p> + +<p>—Pois vá, que não tenho medo do papão.</p> + +<p>Embrenhou-se na quinta, e foi para o sitio onde ouvira o que tinha +alterado o seu viver.</p> + +<p>Longe de todos, repetia as suas palavras, recordava como ellas o iam +transformando.</p> + +<p>Ao principio era ainda o pequeno de escola com quem brincava; o +humilde dependente d'esse frade, que viam passear ao longo da janela +do escriptorio, côr de papoila, dedo no ar, ditando com voz de sermão.</p> + +<p>Ao affirmar que a amava não parecia o mesmo; grave, offendido, dizendo +retirar-se para sempre, decidido talvez a morrer n'essas luctas onde +tantos caíam crivados de balas.</p> + +<p>Na sua imaginação de rapariga apparecia João envolto no prestigio do +sacrificio, via-o galhardamente na estrada brandindo uma lamina, +arrostando com as ameaças, tão differente do tempo em que córava ao +fingir-se ella convencida de que fr. Angelico lhe dava puchões de +orelhas.</p> + +<p>Parecia outro, mais esbelto, mais homem assim fardado; e agora +lembrava com desvanecimento que elle <span class="pagenum"><a id="page133" name="page133"></a>(p. 133)</span> lhe chamára bonita e +dissera ter o futuro nos seus bellos olhos, a esperança de felicidade +nos seus labios.</p> + +<p>Queria-a para mulher. E poderia ser? Elle não era nobre, o que diziam +não ser já preciso para nada. Mas o pae, só por uma desconfiança +fizera o que fizera! Não quereria ouvir falar em semelhante casamento. +Que haviam de fazer?</p> + +<p>João o diria. Decidido como se mostrára, levaria tudo a bom caminho.</p> + +<p>E se casassem?</p> + +<p>Era bem differente do pae; delicado, fino! Não seria desgraçada como a +mãe.</p> + +<p>Que alegria a d'elle se a escutasse. Ah! mas teria vergonha de lh'o +confessar. Da sua bocca nunca o ouviria. Dar-lho ia a saber pela +prima. Oh! pela prima não. Achava-o tão lindo, era capaz de +roubar-lho. Mas João amava-a muito para fazer caso de outra mulher. +Portanto não lho mandaria dizer por pessoa nenhuma, havia de +repetir-lho ella propria.</p> + +<p>Habituar-se-ia, pouco a pouco, um bocadinho de cada vez, dando-lhe a +perceber nos olhos...</p> + +<p>Pois se casassem haviam de ter segredos?</p> + +<p>Affligia-a o remorso. Porque não lhe falara assim quando <span class="pagenum"><a id="page134" name="page134"></a>(p. 134)</span> +elle, tão pallido, se arriscára a desabafar? Não sentaria praça, não +passaria pelo desgosto de o quererem espancar, e ella não estaria +agora ameaçada pelo pae e pela mãe. Sempre o estimára, é certo, mas +deixara-a fria esse inesperado desabafo, tanto estava longe de pensar +n'elle para marido, quando desdenhava morgados, e julgava tudo +merecer.</p> + +<p>Elevara-o a deliberação, a coragem, o firme bem querer manifestado no +rompimento com a situação de inferior.</p> + +<p>Agora sim! Agora comprehendia-o e queria-lhe bem.</p> + +<p>No enlevo d'essa commoção, não pensou mais nas ameaças, e +apresentou-se á hora do jantar, como se nada tivesse havido.</p> + +<p>Quando D. Perpetua lhe foi participar a desobediencia da filha, ficou +muito offendido o morgado, mas não se ergueu do barril, não desamparou +a destillação, nem sequer deu por entendido o recado.</p> + +<p>Reconhecendo a mulher, em intima alegria, quanto o pungia essa +noticia, voltou-lhe costas e foi-se.</p> + +<p>Quando ao jantar, Maria lhe tomou a benção, estremeceu Martinho +Vasques. Creára-a mimosa, votára-lhe certa <span class="pagenum"><a id="page135" name="page135"></a>(p. 135)</span> affeição, embora +o seu genio sêcco não o deixasse transparecer.</p> + +<p>Ante o seu ar alegre, de desafio, não se atreveu a censural-a, e +durante o jantar não se trocou palavra a respeito da vespera.</p> + +<p>Saíram as mulheres após as graças a Deus, e ficcou o morgado, +meditando e bebendo, até á chegada de fr. Angelico.</p> + +<p>Não libaram n'esse dia.</p> + +<p>Tomando a serio o papel de dono de casa, de senhor absoluto, +desfechou-lhe o morgado, á queima roupa, a ordem de fazer contas ao +jardineiro, e de o pôr fóra immediatamente:</p> + +<p>—Não lhe consinta lamurias nem alcovitices.</p> + +<p>Partiu o frade, humilhado da seccura e passando pelo escriptorio para +levar a pataca do mez, foi procurar mestre Jacintho ao casinhoto.</p> + +<p>Voltou á adega o morgado, encarando com mais clareza a situação. Livre +do veterano, não poderia a filha corresponder-se com João, e +esquecer-lhe-ia a perrice.</p> + +<p>E na primeira aberta que lhe permittissem as questões da ilha, toca +para Lisboa!</p> + +<p>Tencionava o frade descarregar no velho o despeito pelo tom imperioso +do fidalgo, quando o viu saír, <span class="pagenum"><a id="page136" name="page136"></a>(p. 136)</span> muito escovada a antiga +farda; posto á banda o boné, n'uma reminiscencia da passada elegancia; +calça de linho, de pastor, de onde rompiam, pesados e bolorentos, os +butes do uniforme; saco de chita debaixo do braço; cacetinho na mão.</p> + +<p>Disse-lhe n'um amargo sorriso:</p> + +<p>—Bem vê que já estava em ordem de marcha. Ao que houve, não contava +com outra coisa.</p> + +<p>Olhou em torno, e como não visse o fidalgo:</p> + +<p>—Admira-me que o senhor morgado não venha pôr-se a arrotar contra +mim.</p> + +<p>E n'um risinho de triumpho:</p> + +<p>—Tem mêdo cá do ginja! Pois não lhe comia nenhum bocado. Palavra que +tenho pena, queria dizer-lhe duas verdades. E d'ahi, não. Aquillo não +tem emenda. É falar ás paredes.</p> + +<p>Ouvia-se rir, ao longe, Maria com a prima Josepha da Esperança.</p> + +<p>—Ó aquella sim, tenho pena! Andei com ella ás cavallotas, quando me +saltava nos canteiros atraz das borboletas, estragando-me as flôres, a +traquinas.</p> + +<p>Abrangeu a casa e a quinta n'um olhar de saudade:</p> + +<p>—Cá fica, a pobre, para ter a sorte da mãe! Mas ella, <span class="pagenum"><a id="page137" name="page137"></a>(p. 137)</span> que +ri tanto, é porque não tem mêdo das parlapatices d'aquella bôa alma do +pae. Faz bem rir, é uma creança!</p> + +<p>E dando uma palmada irrespeitosa no ventre de fr. Angelico:</p> + +<p>—Por mais ameaças que lhe faça, ha de o morgado ir adiante d'ella, é +lei do mundo! Por mais intrigas que forge vossa reverendissima, tambem +irá comer hervas pela raiz, e ella ha de cá ficar, e gostará de quem +lhe der na veneta. Até eu, que não sou nenhum rato de sacristia, hei +de ir á missa de costas, e ella ainda estará em edade de casar com o +menino João.</p> + +<p>—Vocemecê nada mais tem que fazer aqui. Está pago e satisfeito...</p> + +<p>—Põe-me na rua? Não quer que me despeça da D. Mariquinhas? Pois é +melhor para me não saltarem as lagrimas, e vossa reverendissima não se +rir depois á minha custa, quando fôr á lambujem do alambique.</p> + +<p>—Avie-se, que eu tenho mais que fazer.</p> + +<p>—Pois vá-se embora, que não lhe pego. Ah! Fica de sentinella a mim! +Quem tal havia de dizer! Fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria +a governar esta casa! Olhe que eu nunca lhe gosei da <span class="pagenum"><a id="page138" name="page138"></a>(p. 138)</span> +carantonha, e agora comprehendo que vocemecê, e os outros da sucia, +como os mosquitos de roda do vinho bom, andam á espreita das casas +ricas, para apanharem freiras com bons dotes, e quintas onde se +refocillem. Mas esta não apanham, juro-lh'o eu, porque a minha menina +não é para graças. Não vae com cantigas. Aquella ha de fazer sempre o +que muito bem quizer, que a isso a costumaram desde pequena. Era o +nosso «Sant'antoninho, onde te porei»!</p> + +<p>Limpou uma lagrima ao canhão vermelho da jaleca, e virou-se contra o +frade, que já não estava nada satisfeito:</p> + +<p>—Ha de se lhe acabar o governo aqui dentro, como já se lhe acabou lá +fóra!</p> + +<p>Deu alguns passos para a porta, mas ainda se voltou para traz:</p> + +<p>—Vou para o castello. Hão de precisar lá de soldados velhos para +ensinar a recruta á galuchada.</p> + +<p>Passou o postigo que o frade lhe fechou nas costas, de pancada, indo +depois vigial-o para o alpendre.</p> + +<p>Voltara-se mestre Jacintho ao estoiro, e não poude represar as +lagrimas vendo-se expulso d'essa casa, que considerava como a sua.</p> + +<p>Deu alguns passos, vergado ao peso do saco, penosamente <span class="pagenum"><a id="page139" name="page139"></a>(p. 139)</span> +apoiado ao bordão, mas tirara-lhe as pernas a sensibilidade e veiu +sentar-se na banqueta, a refazer-se.</p> + +<p>Descendo para as bandas de S. Jorge, illuminava o sol as vidraças dos +quarteis da fortaleza.</p> + +<p>Abrangeu o velho toda a cortina que vem da bateria de São Diogo, +cintando á beira-mar o Monte Brasil, varejando a bahia do Fanal; +depois os grandes pannos da muralha do Caminho Novo, o torreão e a +ponte levadiça.</p> + +<p>Estava agora ali dentro João, o seu derradeiro affecto, e a velha +espingarda com que fizera a campanha, e que tanto chorara ao abandonar +ao quarteleiro.</p> + +<p>Tinha a proteger essa creança, a reivindicar essa arma, a punir os +aggravos do morgado e do frade.</p> + +<p>Meteu-o em brios o espirito da classe. Ergueu-se, poz o saco no poial, +abaixou-se-lhe, passou os cordões aos hombros e atou-os atraz das +costas, á laia de mochila. Levantou-se com elle e o peso, puxando-o +para traz, fez lhe perder a curvatura senil.</p> + +<p>Deu uns passos amparando-se ao bordão, mas desempenou-o o automatismo +profissional. Pôl-o ao hombro á guisa de espingarda, deu a si proprio +uma voz de commando:</p> + +<p>—Ordinario, <span class="pagenum"><a id="page140" name="page140"></a>(p. 140)</span> marche!</p> + +<p>E a passo cadenciado avançou estrada fóra, rejuvenescido pela +esperança.</p> + + + + +<h2>VII <span class="pagenum"><a id="page141" name="page141"></a>(p. 141)</span></h2> + + +<p>Na melancholia do entardecer, em que as trindades põem o echo de um +soluço, impregnado da tristeza do esmorecer do sol, fitava João o +mirante da quinta, quasi totalmente esbatido na folhagem dos pomares.</p> + +<p>Representava-se-lhe a scena da emboscada, revia-se na galharda atitude +em que provocára os adversarios, baioneta em punho; fixára na retina o +rosto transformado de Maria, a ardencia refulgindo-lhe no olhar; e +vibrava-lhe ainda nos ouvidos a commoção dos gritos afflictivos.</p> + +<p>Amava-o! Denunciara-a a surpreza.</p> + +<p>Se <span class="pagenum"><a id="page142" name="page142"></a>(p. 142)</span> estivesse contra elle, riria ao vêl-o corrido pelos cães, +ou ter-se-ia retirado indignada pela sua audacia.</p> + +<p>Mas não! Manifestára-se claramente a seu favôr, e só á força deixára o +torreão.</p> + +<p>Amava-o pois! Era o essencial.</p> + +<p>Sempre contára como hostil o pae. Haviam de vencer com persistencia, +confiando um no outro, certos da mutua fidelidade. E, tão novos, +pertencia-lhes o futuro.</p> + +<p>Como haviam de entender-se? Precisavam apoiar-se, trocar esperanças, +animar-se na penosa separação.</p> + +<p>Iria pela quinta a cavallo, para vêr para dentro, onde o muro era mais +baixo, e poder resistir melhor ás ciladas. Levaria pistolas nos +coldres, e ai de quem se lhe atrevesse!</p> + +<p>Turbavam-o impetos de vingança, deslumbramentos de sangue, ferido pelo +insulto.</p> + +<p>Como concretizar a desforra?</p> + +<p>Indicavam os preparativos que era esperado. Mas quem o denunciára?</p> + +<p>Ao lusco-fusco assoprou a creada o borralho para o corno da isca, +accendeu a candeia da cozinha, e foi levar-lhe, com as bôas noites, o +candieiro de latão de <span class="pagenum"><a id="page143" name="page143"></a>(p. 143)</span> tres bicos, e a branda luz do azeite +alagou o polido do bufete, projectada pelo reflector.</p> + +<p>Illuminado o quarto, deixou de vêr na penumbra o tenue esboço dos +Folhadaes, mas quedou-se no mesmo sitio, esperando que o pontear de +luzes lhe fôsse dando referencias para o reencontrar.</p> + +<p>Gritou lhe de baixo a tia Dorotheia:</p> + +<p>—Ahi vae uma visita.</p> + +<p>Descontente por irem perturbal-o, não acertava com quem fôsse, nem +conhecia os passos pesados, vagarosos e tropegos, subindo para a +torre.</p> + +<p>—Dá licença, camarada?—disseram da porta.</p> + +<p>Era a voz do veterano, rouca da bronchite chronica adquirida nas +noites ao relento.</p> + +<p>—Vocemecê por aqui, mestre Jacintho?</p> + +<p>E mandou-o sentar, no alvoroço de noticias.</p> + +<p>—Como tem passado? Como vae a menina Mariquinhas?</p> + +<p>Acanhou-se, sob o olhar magano do velho.</p> + +<p>—Não se faça vermelho, senhor Joãosinho.</p> + +<p>E batendo palmadas nos joelhos:</p> + +<p>—Então logo a uma morgada, hein? Sim senhor, sim senhor!</p> + +<p>João sentia o sangue rebentar-lhe pela cara, mas a anciedade +impelliu-o:</p> + +<p>—Conte-me <span class="pagenum"><a id="page144" name="page144"></a>(p. 144)</span> que se passou depois que a mãe a levou para +dentro.</p> + +<p>—Que se havia de passar? Mais era com ella!</p> + +<p>—Reprehenderam-a?</p> + +<p>—Não é para graças, não tem mêdo.</p> + +<p>—Então o morgado...</p> + +<p>—Commigo, commigo é que foi o bom e o bonito!</p> + +<p>—Coitado! Comprometter-se por minha causa.</p> + +<p>—Não me coite, que não me fui abaixo das pernas.</p> + +<p>—Na sua edade!...</p> + +<p>Ergueu-se o veterano, desvanecido pelo rasgo:</p> + +<p>—Foi-se pôr o morgado a crescer para mim, mas eu, como quem diz, +fingi que não era commigo, que aquillo não tem senão lingua, mas +tambem é como um lavadoiro!</p> + +<p>—Perdôe-me ter sido a causa de tal desgosto.</p> + +<p>—Espere, que elle não se foi sem resposta.</p> + +<p>E possuindo-se da paixão com que falára:</p> + +<p>—Disse-lhe tudo que me veiu á bôcca, deitei-lhe á cara a negra +ingratidão com que nos pagou termos-lhe salvo a pelle, eu e seu avô; e +o matreiro embuchou e ficou-se a assoprar, a roer...</p> + +<p>João pediu-lhe, compungido:</p> + +<p>—Não <span class="pagenum"><a id="page145" name="page145"></a>(p. 145)</span> tome mais o meu partido, não se inquiete por mim...</p> + +<p>—A bôas horas. Hoje o intriguista do frade poz-me na rua.</p> + +<p>—O quê? Pois está despedido?</p> + +<p>—Não se assuste, menino, não hei de morrer á mingua. Aveso algumas +patacas para pão de milho, e n'aquelle castello cabe muita gente. Já +lá fui pôr os trapicalhos e marcar poleiro.</p> + +<p>—Tem a nossa casa, mestre Jacintho.</p> + +<p>—Bem sei, mas obrigado. Se mesmo o menino á escolheu aquella, queria +que eu ficasse a rezar n'umas contas?</p> + +<p>—Vocemecê precisa de socego.</p> + +<p>—Depois, depois. Agora ninguem é de mais ali dentro, que cá por fóra +os patifes são muitos.</p> + +<p>—Desarrumar-se dos seus commodos por môr das minhas creancices!</p> + +<p>—Não se afflija, que eu por mim não tenho pena nenhuma. Só me custa +não ter dado uma afogação em fr. Angelico, que me tratou como a um +negro.</p> + +<p>Mostrava o punho cerrado:</p> + +<p>—Mas não as perde. São favas contadas!</p> + +<p>—Socegue, deixe-o lá. Essa agitação faz-lhe mal.</p> + +<p>—Hei <span class="pagenum"><a id="page146" name="page146"></a>(p. 146)</span> de escalal-o, como a um chicharro, para lhe enforcar o +Miguel nas tripas.</p> + +<p>E como João sorrisse:</p> + +<p>—Ah! Sim? Pois elle chegou muito estugado á quinta antes do menino, e +não se me tira da cabeça que foi armar a tratantada.</p> + +<p>—Elle?</p> + +<p>—Sim senhor. E depois vi arrebentar muito depressa pela porta fóra +aquella cára de condemnado, com estes dois que a terra ha de comer. +Tenho para mim que ia com ella fisgada.</p> + +<p>—Não seria simples coincidencia?</p> + +<p>—É má rez, como todo o homem que veste saias. Sucia de mandriões!</p> + +<p>—E Maria?</p> + +<p>—Não ha mal que lhe chegue.</p> + +<p>—Viu-a hoje?</p> + +<p>—O patife do frade não me deixou, e eu não teimei porque a ouvi rir a +bom rir.</p> + +<p>—Pois ella estava alegre?</p> + +<p>—Eu lhe conto. A senhora D. Perpetua foi muito prognostica dar-lhe o +recado do pae, que ao almoço esteve como uma bicha, ouvia-se-lhe ao +longe a prégação. Mas ella o caso que fez das prohibições foi +escapulir-se <span class="pagenum"><a id="page147" name="page147"></a>(p. 147)</span> logo para a quinta. Rapariga de uma cana!</p> + +<p>Reparou que João entristecera.</p> + +<p>—Não se me ponha a malucar, que se ella estava de risota com a +senhora D. Josepha da Esperança era decerto para não dar o braço a +torcer.</p> + +<p>Depois de luctar comsigo mesmo, aventurou-se a perguntar:</p> + +<p>—Manda-me dizer alguma coisa?</p> + +<p>Riu-se muito Jacintho, meneou a cabeça, e respondeu:</p> + +<p>—Estou velho, mas não ando de capote e capello.</p> + +<p>Arrependeu-se João:</p> + +<p>—Desculpe, não foi por menos consideração.</p> + +<p>—Desculpar o quê? Tivesse falado com ella, que eu mesmo lhe +perguntava se queria alguma coisa para o menino.</p> + +<p>—Como lhe hei de agradecer tanta dedicação!</p> + +<p>—É vicio velho em mim, não me caíam os parentes em deshonra.</p> + +<p>E vigiando que não fôsse ouvido:</p> + +<p>—Já n'esse particular servi de muito ao seu avôsinho.</p> + +<p>Bateu-lhe familiarmente nas costas:</p> + +<p>—Ainda <span class="pagenum"><a id="page148" name="page148"></a>(p. 148)</span> assim, elle não começou tão cêdo, verdade seja dita.</p> + +<p>Desvaneceu-se o rapaz pela admiração implicita n'aquellas palavras, e +animou-se a aproveitar a bôa vontade:</p> + +<p>—Preciso falar-lhe, ou escrever-lhe, comprehende bem. Tenho muito que +lhe dizer, e quero saber o que ella pensa de mim.</p> + +<p>—O que ahi vae, o que ahi vae.</p> + +<p>—Aconselhe-me, mestre Jacintho. Como ha de ser?</p> + +<p>—Dê tempo ao tempo!</p> + +<p>—Hei de desamparal-a quando todos a ameaçam?</p> + +<p>—Não tenha mêdo, que aquillo é taboa que não joga. Teimosa! Que o +diga eu, que muito lhe soffri em mais pequena.</p> + +<p>—Que quer dizer na sua?</p> + +<p>—Espere, espere, que ha de chegar-lhe tempo para tudo.</p> + +<p>—Esperar? Isso não. Quero entender me francamente com ella, por +palavra ou por escripto. E se me quizer como eu lhe quero, como hontem +me pareceu...</p> + +<p>—Casa immediatamente, não é verdade?</p> + +<p>—É <span class="pagenum"><a id="page149" name="page149"></a>(p. 149)</span> claro.</p> + +<p>Recreiou-se o veterano com a resposta:</p> + +<p>—E havia de casar n'essa edade, com dezaseis annos?</p> + +<p>—Que tem que vêr a edade com o amôr?</p> + +<p>—Ora vá-se crear, menino. Isso até lhe fazia mal á saude.</p> + +<p>Córou João até ás orelhas.</p> + +<p>—Não me fique amuado, que isto é brincar.</p> + +<p>—Bem. Então falemos a serio.</p> + +<p>—Não se zangue. Que geniosinho!</p> + +<p>João fôra respirar á janella, a cabeça em fogo, e puzera-se a olhar ao +longe, na direcção das raras luzes das casas de campo, em meio das +quaes reconhecia a d'ella.</p> + +<p>Chegou o velho á janela, abrangendo n'um gesto a cidade e o castello:</p> + +<p>—Sabe que mais? Ponhamos as coisas a direito, que ella lhe ha de ir +parar ás mãos.</p> + +<p>—Não póde ser. E d'aqui até lá ha de ficar abandonada ao pae e á mãe, +sem contar commigo, sem me sentir a seu lado?</p> + +<p>—Tem razão, nanja que eu lha tire. Mas deixe acabar a desconfiança do +morgado, que agora anda tudo de olho em cima d'ella...</p> + +<p>—Será <span class="pagenum"><a id="page150" name="page150"></a>(p. 150)</span> assim, mas não posso esperar.</p> + +<p>—Largos dias tem cem annos.</p> + +<p>Entendeu João pôr-lhe termo aos conselhos, e proceder por sua conta.</p> + +<p>—Pois mestre Jacintho, muito obrigado pelo que por mim fez. E não o +incommodarei mais por esta causa, que agora já não é como no seu +tempo, que só pela altura dos trinta annos é que se julgava uma +senhora em edade casar. Agora vae tudo muito mais depressa. Se até ha +barcos que andam a fogo!</p> + +<p>Queixou-se amargamente o veterano:</p> + +<p>—Foi sempre assim. A mocidade não quer saber da velhice para cousa +nenhuma.</p> + +<p>—Não diga isso. Sabe como o estimo. Só me refiro a estas coisas de +amôr, de que mostra não perceber nada, pois quer que um namorado se +cale, depois de acontecimentos como os de hontem.</p> + +<p>N'uma saudade do passado, da juventude, do amôr, do prazer, +remoçou-lhe o rosto engelhado:</p> + +<p>—Isso é que percebo! Lá por me vêr agora um velhão, olhe que já +passei pela sua edade, e até fui de mama! É o que lhe digo, não se me +ponha a rir nas minhas barbas. No seu tempo, porém, ainda me +entretinha a deitar o pião, não sabia o que fosse o bicho mulher. Mais +tarde, sim; fui desempenado, bonitóte, <span class="pagenum"><a id="page151" name="page151"></a>(p. 151)</span> e antes de me darem +as bexigas, pellavam-se bôas moças por mim. Já vê que percebo, e tive +bom mestre, olé se tive.</p> + +<p>Aproximou-se muito o veterano, e num ar de confidencia, um sorriso +bonacheirão, disse-lhe baixinho:</p> + +<p>—Lições de seu avô, que foi das pontas! Elle atirava-se ás patrôas, e +eu ás creadas. Uma vez...</p> + +<p>Mas arrependeu-se.</p> + +<p>—Nada. Nada. Suas tias podem desconfiar de que estou para aqui a +perdel-o...</p> + +<p>—Ellas não ouvem. Conte, conte.</p> + +<p>—Uma vez que elle foi de castigo para a Graciosa ... Não digo nada, +senão que muitos primos fidalgos tem por ahi, sem imaginar.</p> + +<p>—Quem? Quem?</p> + +<p>—Ora. Vão lá saber.</p> + +<p>Deliciava-se na evocação:</p> + +<p>—Só se atirava ao fino, o maroto. Deus lhe fale n'alma!</p> + +<p>Entristeceu-o a ideia da morte, mas desanuviou-se rapidamente:</p> + +<p>—O menino vae pelo mesmo caminho. Atirou-se logo a uma rica +herdeira...</p> + +<p>—Oh! Não julgue que foi por isso.</p> + +<p>Continuou <span class="pagenum"><a id="page152" name="page152"></a>(p. 152)</span> o velho, sem dar tento na interrupção:</p> + +<p>—Fidalga como as melhores, bonita sem senão, os olhos de todos +n'aquelle palminho de cara, e o morgado crente de que nenhum a valia, +a ponto de a querer levar a um primo do reino.</p> + +<p>—Fosse ella uma pobre de Christo, queria-lhe da mesma maneira, +acredite-me.</p> + +<p>—Pois sim, pois sim; mas ella é o que eu disse, isso é que é a +verdade. Se fôsse uma pobre sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, +não lhe açulavam os cães. Tratavam logo de o encambulhar com ella ... +Agora sendo o que é, não espere conseguir d'ali nada ao bem. Ha de ser +á má cara, e é se fôr.</p> + +<p>—Estou resolvido a tudo.</p> + +<p>—Não digo menos d'isso. Quem sae aos seus não degenera.</p> + +<p>—Maria ha de ser minha mulher, ao bem ou ao mal!</p> + +<p>—Que a coisa começa torta, bem vejo eu. O menino já tem chorado +lagrima gorda por causa d'ella. Mas não deve desanimar. A farda sempre +deu sorte em coisas de mulheres. Lá por ella ser morgada, não é mais +do que a imperatriz da Russia, que <span class="pagenum"><a id="page153" name="page153"></a>(p. 153)</span> dava o cavaquinho pelo +general Gomes Freire, com quem andámos no Russilhão. Pois eu não +conheci um corneta, um rapagão como um turco, o menino bonito da +rainha nossa senhora que se perdia a ouvir-lhe repetir os toques? E +não vieram todos desvanecidos os soldados do dezaseis de infantaria de +um destacamento em Queluz quando a Senhora D. Carlota Joaquina estava +presa? Até um granadeiro, alto como uma torre, valha a verdade, trazia +duas cartas de pessôa de dentro!</p> + +<p>E reparando na surpreza de João:</p> + +<p>—O menino ficou vermelho como uma malagueta. Mas olhe que é tudo +verdade. Pergunte lá no castello, que lh'o hão de trocar em miudos.</p> + +<p>Concentrou-se João, e depois perguntou:</p> + +<p>—Em resumo, mestre Jacintho. Está, ou não disposto a auxiliar-me?</p> + +<p>—Com alma e vida.</p> + +<p>—Não podia esperar de si outra coisa. Muito obrigado. Agora diga-me +lá, que lhe parece: devo procural-a ou escrever-lhe?</p> + +<p>—Por emquanto não se podem levar as coisas ás do cabo. O menino ainda +está com os dentes com que mamou, e já quer casar. Valha-o Deus!</p> + +<p>—Lá volta aos gracejos.</p> + +<p>—Mas <span class="pagenum"><a id="page154" name="page154"></a>(p. 154)</span> não torno mais. Olhe, por agora basta que lhe escreva.</p> + +<p>—Tambem me parece.</p> + +<p>—Se a sua firmeza fôr tal como diz, o tempo que levarem separados ha +de fazel-os quererem-se mais um ao outro.</p> + +<p>—Juro-te que é.</p> + +<p>—Ninguem lucra mais com o seu casamento do que eu. Voltar aos meus +canteiros, ao meu buraquinho, fazer de enxota cães quando lá fôr fr. +Angelico ou os collegas, a vêr se pilham alguma coisa.</p> + +<p>—Como lhe hei de mandar a carta, sem a comprometter?</p> + +<p>Meditou um pouco o soldado, e respondeu:</p> + +<p>—O melhor, e o mais seguro de tudo, é falar á senhora D. Josepha. É +muito capaz d'isso, porque gosta muito do menino. Até parecia uma gata +assanhada quando foi da patifaria do quinteiro, que por signal lá anda +com a cabeça amarrada, para não cair n'outra.</p> + +<p>—E como ha de ser para lhe falar?</p> + +<p>—Descance. Eu sei de uns atalhos, por entre as terras, que vão lá +sair mesmo ao pé do canavial ao fim do pomar.</p> + +<p>—Tem a certeza de que não nos podem vêr?</p> + +<p>—Conto <span class="pagenum"><a id="page155" name="page155"></a>(p. 155)</span> que não.</p> + +<p>—Pois então vamos lá amanhã mesmo, visto que não ha nada a receiar.</p> + +<p>—Amanhã? Deus te livre! Andam á espreita d'ella para ganharem o dôce. +Davam-nos logo com o rasto, e o morgado mandava alevantar o muro. +Nada! Nada! Deixe ao meu cuidado saber o que se passa lá dentro, e em +elles andando desprevenidos, damos-lhe a saltada.</p> + +<p>João, por fim, rendeu-se á evidencia:</p> + +<p>—Pois seja assim. Mas vê lá o que promettes.</p> + +<p>—Descance, que não me esquecerei. Não tenho menos vontade n'isso, +creia, para o vêr feliz, e para ajustar as minhas contas. Onde se +fazem, lá se pagam. Ali aonde me desfeitearam é que quero entrar de +cabeça levantada, a deitar foguetes, no dia do casamento.</p> + +<p>—Oxalá!</p> + +<p>—E com esta me vou, senhor Joãosinho.</p> + +<p>Já de pé, sacou do mólhinho de folhas de milho, das mais tenues +camisas que na sóca protegem o grão tenro, leitoso; alisou-a com a +navalha, acamou-lhe o picado de tabaco negro, da terra, accendeu ao +candieiro o cigarro grosso e despediu-se:</p> + +<p>—Com bem passe.</p> + +<p>Ainda <span class="pagenum"><a id="page156" name="page156"></a>(p. 156)</span> João tentou retel-o:</p> + +<p>—Porque não quer ficar? A casa é grande, cabemos todos.</p> + +<p>—Obrigado, menino. Ali é que é o meu poiso. Antes eu de lá nunca +houvesse saído, para ver o que tenho visto.</p> + +<p>E já na escada recommendou ainda, muito baixinho, o dedo na bocca:</p> + +<p>—Deixe esquecer a coisa por estes dias, olhe que o morgado anda com a +pedra no sapato.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Ao ficar só, sentou-se ao bufete e poz-se a escrever. Não se recusaria +D. Josepha a pôl-os em relações.</p> + +<p>Acceitava esse alvitre do velho, mas lá deixar de vêl-a, isso é que +não.</p> + +<p>Perguntava-lhe a melhor maneira de o fazerem, e se mestre Jacintho não +accedesse, iria sósinho.</p> + +<p>Com espanto, sentiu perdida, ao escrever-lhe, a timidez em que só por +meias palavras se lhe declarára. Enthusiasmava-se como se a tivesse +diante de si, mas dirigia-se-lhe em termos que, face a face, nunca +arriscaria.</p> + +<p>Era <span class="pagenum"><a id="page157" name="page157"></a>(p. 157)</span> o seu primeiro amor. Sentira bem como á ameaça de um +ciume, ao receiar que a entregassem a outro homem, a amisade de irmãos +se transformára na paixão em que esquecera a sua inferioridade ante a +riqueza e a nobreza da mulher para quem se atrevera a levantar os +olhos. Mas n'estes tempos de liberdade podia aspirar a ella, erguer-se +até á sua grandeza, porque d'ora ávante as posições, os cargos, a +consideração publica ganhar-se-iam com o trabalho, não se obteriam só +por herança.</p> + +<p>E n'uma grande ternura comparava o viver de ambos, tão semelhante; +elle sem pae nem mãe, ella como se os não tivesse, isolada no ermo +casarão onde pairava a sombra da tristeza.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Restituiu essa carta a Maria a tranquillidade que lhe roubára o +conflicto, e quando esperava alegremente a prima, e se perdia com ella +pela quinta, nas travessuras de outros tempos, chegava o pae a +suspeitar que recebesse noticias d'elle.</p> + +<p>Não desconfiava, porém, de D. Josepha da Esperança, e toda a +vigilancia era na porta e nos muros, receiando temeridades do veterano +ou algum arrojo de João.</p> + +<p>Tendo <span class="pagenum"><a id="page158" name="page158"></a>(p. 158)</span> como militares garantida a impunidade, cria-os capazes +de irem lá, com algum bando de camaradas, a desforrarem-se da cilada +da sua gente.</p> + +<p>Passaram-se dias, e parecia completamente esquecido o caso. Era, +porém, caprichosa de mais a filha para não querer, ao menos por +despeito, entender-se com João.</p> + +<p>No seu tempo já teria liquidado tudo á valentona. Hoje usava-se de +astucia, e n'esse terreno reconhecia-se inhabil.</p> + +<p>Eram assumptos mais para fr. Angelico, manhoso como frade, batido em +argucias de confessor habituado a lêr no intimo das almas.</p> + +<p>Deixára de apparecer, e fazia lhe falta. Offendera-o a sua +sobranceria. Puzera-se nas suas tamanquinhas, e mandar chamal-o era +uma satisfação. Mas antes dar o braço a torcer, que deixar fazer o +ninho atraz da orelha. Só o frade seria capaz de desenredar a meada, e +de trazer Maria a bom caminho.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Resfolegou triumphante fr. Angelico ao receber o recado do morgado.</p> + +<p>Dar-lhe ordens como a um feitor? Era lá coisa que lhe permittisse? +Agora o passado, passado; mas faria <span class="pagenum"><a id="page159" name="page159"></a>(p. 159)</span> render a reconciliação. +Não voltaria da quinta sem grosso donativo a pretexto do levantamento +de guerrilhas; sem algumas das peças que D. Perpetua, na intenção de +salvar a alma, forrava, em demencias de usura, ás despezas da casa, e +escondia no colchão.</p> + +<p>Servia-lhe de pretexto a atitude do fidalgo para acabar com a +intimidade da dona da casa. Fatigava-o já a paixão senil a que ella se +apegára durante vinte annos, desde que succedera na capellania da casa +ao seu mestre, de quem decerto herdára a affectuosidade da morgada, a +sua predilecção pelo lubrico contacto do aspero burel.</p> + +<p>Parecendo-lhe nos primeiros tempos uma antecipação do paraiso, +tornára-se depois o automatismo de um habito, e liquidára por fim nas +repugnancias da obrigação.</p> + +<p>Ia todos os dias a creada saber da saude de sua reverendissima e +falava-lhe da afflicção da senhora, tão sequiosa das suas bemfeitorias +espirituaes.</p> + +<p>Mostrava-se elle theatralmente, no seu palco, ao fundo do sanctuario +onde se armazenavam as imagens sem capella propria, cujos olhos de +vidro brilhavam nas meias tintas do escuro armazem.</p> + +<p>Os grandes pés descalços no lagedo, sem habito, a <span class="pagenum"><a id="page160" name="page160"></a>(p. 160)</span> camisa +desabotoada, empunhando disciplinas de grossa corda e nós nas pontas, +simulava fr. Angelico o soffrimento de terriveis expiações.</p> + +<p>Respondia n'uma voz sumida:</p> + +<p>—Diga a sua ama a grande penitencia que estou cumprindo, a pão e +agua. Que rese por este pobre peccador, para que lhe sejam perdoadas +as fraquezas.</p> + +<p>Regressou um dia a creada com a nova de que reappareceria o frade +chamado do senhor; e D. Perpetua não desamparou o mirante e a varanda, +passeando inquieta, aconchegando ao peito o embrulhinho com que faria +esquecer ao penitente as visões do inferno.</p> + +<p>Mal transpuzéra a porta da saleta, puxou-o para um canto, e meteu-lhe +na mão o saquinho de sêda carmezim, onde elle pelo tacto reconhecia as +peças de oiro.</p> + +<p>—Angelicosinho da minha alma, para que me deixaste, ingrato? Que mal +te fez a tua Perpetua?</p> + +<p>Elle simulava um terror sagrado:</p> + +<p>—Deixa-me, filha, tenho esta alma mais negra que um tição. Já estou a +arder nas penas do inferno, sinto o fogo aqui dentro.</p> + +<p>E comprimia o estomago, onde as penosas digestões de <span class="pagenum"><a id="page161" name="page161"></a>(p. 161)</span> +toucinho e presunto, servido em grandes postas no refeitorio, +fermentavam em dolorosas azias, que afogava a bôa aguardente do +fidalgo.</p> + +<p>—É assim que me pagas os sacrificios que tenho feito por ti? São +desculpas como das outras vezes. Nova confessada, descarado. Ha de ser +a tal Joaquinina do Ó, de quem me chegaram uns zum-zuns.</p> + +<p>Elle erguia o olhar ao tecto, n'um ar compungido:</p> + +<p>—Ai filha, que perdeste a minha rica alminha! E não ha remissão para +o peccado da carne, de si mesmo mortal, aggravado ainda em cima com o +disfarce de coisas de religião.</p> + +<p>Forcejava por desprender-se:</p> + +<p>—Nunca mais! Acabou-se!</p> + +<p>Perpetua agarrou-o na angustia do desamparo. Ia-se com elle o ultimo +vislumbre de mocidade, o sonho em que se emancipava da trivialidade do +seu viver. Era a morte aquelle rompimento!</p> + +<p>N'um desespero articulou surdamente:</p> + +<p>—Assim é que se perde a minha alma!</p> + +<p>—Tem paciencia, irmã. Procura a consolação espiritual na penitencia. +Verás como é bom, que gosos celestiaes dão os cilicios e as +disciplinas. Pede á Senhora da Rocha que te ajude a conformar. Tem +dado <span class="pagenum"><a id="page162" name="page162"></a>(p. 162)</span> vista aos cegos e movimento aos paralyticos, fará o +milagre de te dar resignação.</p> + +<p>E aproveitando o desanimo em que ella se amparava ao archibanco, +enfiou pelo corredor em demanda de Martinho.</p> + +<p>Lavando na aguardente o mau sabôr dos beiços de D. Perpetua, +desculpou-se fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria com a +doença, que o impedira de ir receber as ordens do seu bemfeitor.</p> + +<p>E emquanto passavam da casa de jantar á adega, sumindo-se um atraz do +outro pelo alçapão, ia o frade lamentando a incredulidade dos tempos, +e a audacia do governo provisorio.</p> + +<p>Assentado no tampo do barril, o dorso apoiado ás frescas aduelas das +pipas cheias, emquanto lá fóra escaldava o sol, desabafava o morgado, +sentindo-se sem testemunhas:</p> + +<p>—Estou muito isolado, fr. Angelico, desconfio de todos. Hoje só conto +com a sua amisade sincera e desinteressada.</p> + +<p>Agarrou logo o frade a occasião, que vinha preparando:</p> + +<p>—E desinteressada, senhor Martinho Vasques! Permitta-me v. ex.<sup>a</sup> que +accentue essa palavra, ao ser <span class="pagenum"><a id="page163" name="page163"></a>(p. 163)</span> forçado a appellar mais uma +vez para a sua inexgotavel caridade, para a sua nunca desmentida +dedicação ao throno e ao altar!</p> + +<p>Simulava não reparar nos gestos de contrariedade do morgado:</p> + +<p>—N'estes perversos tempos retraem-se os donativos, e o nosso convento +quasi não tem para a sua pobre meza. Peço, pois, uma esmolinha para os +frades de São Francisco, certo de que não recorro em vão á boa e +generosa alma de v. ex.<sup>a</sup></p> + +<p>Tartamudeou o morgado:</p> + +<p>—Ámanhã, ámanhã...</p> + +<p>Continuava, porém, infatigavel o frade:</p> + +<p>—Tudo se prepara para nos vermos livres d'essa liberdade de má morte. +Apparecerão guerrilhas no concelho da Praia, para restabelecerem os +inauferiveis direitos do nosso legitimo rei, e auxiliarem o +desembarque da esquadra que se espera a todo o momento. Ha muitos +fieis alistados, mas faltam armas e polvora. Todos os defensores da +ordem tem auxiliado a boa causa. Espera-se que v. ex.<sup>a</sup> não deixe de +concorrer...</p> + +<p>—Ámanhã, ámanhã...</p> + +<p>—É de tamanha urgencia...</p> + +<p>—Bem sabe o costume. Só mexo em dinheiro antes <span class="pagenum"><a id="page164" name="page164"></a>(p. 164)</span> do jantar. E +cada vez me sinto peior para contractos, porque o desgosto de minha +filha poz-me muito fraca esta pobre cabeça.</p> + +<p>—Isto não é negocio, senhor D. Martinho, ou antes, grande negocio é +que elle é. Quem dá aos pobres empresta a Deus, recebendo-se no ceu o +principal e os juros. Emquanto á esmola para meus irmãos em Christo. +Que do auxilio aos partidarios do senhor D. Miguel tira logo v. ex.<sup>a</sup> +o lucro, em não ter a sua casa ameaçada de confiscos...</p> + +<p>Tocado na corda sensivel, sobresaltou-se o morgado:</p> + +<p>—E elles irão de vez a terra?</p> + +<p>—Quem o póde duvidar? Em todo o Portugal governa sua magestade. Falta +só este palmo de terra, por vergonha de todos nós! Dá-se a mão aos que +vem pelo mar, e acaba-se com elles n'um instante.</p> + +<p>—Deus o permitta, que não posso ir descançado para Lisboa deixando-os +em cima. São capazes de me darem cabo de tudo.</p> + +<p>—Haja com que comprar espingardas, polvora e bala, e nem terão tempo +de dizer Jesus! Com quanto póde concorrer v. ex.<sup>a</sup>?</p> + +<p>—Já <span class="pagenum"><a id="page165" name="page165"></a>(p. 165)</span> lhe disse que ámanhã. Venha jantar, e antes de nos +sentarmos á meza...</p> + +<p>—Muito obrigado, senhor Martinho Vasques. Vou já annunciar o valioso +auxilio de v. ex.<sup>a</sup> aos amigos da religião.</p> + +<p>—Preciso-o cá, e até o tomaria para sempre como commensal, para +alivio da sua pobre meza, se lh'o consentissem os seus labores.</p> + +<p>—Que honra, senhor morgado.</p> + +<p>—E sabe porque? Preciso da sua influencia junto de minha filha. Se +podesse ganhar n'ella o ascendente que tem em minha mulher...</p> + +<p>—Quizesse-o ella—respondeu o frade n'um suspiro—e eu seria o mais +feliz dos homens!</p> + +<p>Continuou n'um arroubo ascetico:</p> + +<p>—Trazel-a ao bom caminho! Afastal-a d'esses herejes que lhe hão-de +perder a alma!</p> + +<p>—Era isso mesmo que queria que lhe dissesse, porque eu não sou capaz +de a levar ao bem, e não usarei da força senão na ultima extremidade. +Faça o possivel por demovel-a, fr. Angelico.</p> + +<p>E n'uma ameaça, para o lado do pomar, onde a sabia em colloquio com a +prima:</p> + +<p>—Mas ai d'ella se não obedecer!</p> + + + + +<h2>VIII <span class="pagenum"><a id="page167" name="page167"></a>(p. 167)</span></h2> + + +<p>—Alviçaras, senhor morgado, alviçaras! Deus amerceiou-se de nós, e +deu por terminada a expiação com que quiz provar os seus servos!</p> + +<p>Olhou-o um tanto desconfiado Martinho, pela falta de fundamento de +semelhantes boatos.</p> + +<p>Mas o frade confirmou, enthusiasmado:</p> + +<p>—Victoria! Victoria! E graças sejam dadas ao ceu!</p> + +<p>—É então verdade o que para ahi dizem?</p> + +<p>—Estão reunidos nos Biscoitos mil e quinhentos homens, commandados +por João Moniz Côrte-Real e Joaquim d'Almeida. Esperam mais gente de +outras freguesias, <span class="pagenum"><a id="page168" name="page168"></a>(p. 168)</span> e vão acclamar el-rei na villa da Praia, +e facilitar ali o desembarque á esquadra do senhor D. Miguel, que saíu +contra a Madeira, e vem agora libertar a nossa terra!</p> + +<p>—E a tropa que marchou hontem contra elles?</p> + +<p>—Protegeu o Senhor os nossos, e deu lhes logo a victoria. Foram +derrotados os dois destacamentos, e ficaram presos os infames soldados +liberaes. Que vergonha para esses fanfarrões!</p> + +<p>—E que vergonha para mim, fr. Angelico—exclamou o morgado, n'um +impeto guerreiro.—Devia estar ao lado d'elles, como me impõe o nome, +a linhagem, o serviço do throno e do estado. Venha d'ahi, sellam-se +dois cavallos, e em quatro horas estamos com elles.</p> + +<p>—Não posso, senhor Martinho Vasques; a minha missão é toda de paz!</p> + +<p>—Sei de muitos frades que se teem batido pela bôa causa.</p> + +<p>—Sempre houve meus irmãos em Christo que usassem a cruz e a espada. +Eu porém sou mais destro no manejo das armas espirituaes...</p> + +<p>—Pois irei eu só. Não quero que notem a minha falta...</p> + +<p>—Lembro-lhe a sua idade, meu senhor, e as molestias que <span class="pagenum"><a id="page169" name="page169"></a>(p. 169)</span> +tanto o tem impossibilitado. O melhor serviço que póde prestar ao +senhor D. Miguel é dar mais alguma quantia...</p> + +<p>—Tem razão, estou já muito velho para essas danças—concordou o +morgado, procurando eximir-se á nova contribuição.</p> + +<p>—Será tido na devida conta o seu soccorro, e Deus reconhecerá n'elle +a sua bôa vontade.</p> + +<p>—Se venceram, como diz, para que precisam elles mais dinheiro?</p> + +<p>—Sempre são mil e quinhentas bôcas a comer...</p> + +<p>—Tomem á força o que precisarem, como fizémos no Roussillon.</p> + +<p>—Não diria o mesmo V. Ex.<sup>a</sup> se esses valentes realistas andassem cá +pelas visinhanças.</p> + +<p>—Tem razão, tem. Mas que isto se decida por uma vez. Acabe-se com a +choldra, para que eu possa embarcar descansado.</p> + +<p>—Ainda persiste em ir para Lisboa?</p> + +<p>—E conto que vossa reverendissima prepare o espirito de minha filha, +para que de todo esqueça esse disparatado namorico, e se disponha a +desposar o primo D. Luiz de Sousa, que dará á minha casa a tão +desejada successão.</p> + +<p>—Perdôe <span class="pagenum"><a id="page170" name="page170"></a>(p. 170)</span> V. Ex.<sup>a</sup> a minha extranheza. Depois do que se tem +passado ainda pensa em tão honrosa alliança?</p> + +<p>—E porque não?</p> + +<p>—Póde um dia o nobre fidalgo a quem a destina pedir contas d'essa +peccaminosa aventura...</p> + +<p>—Noto a insistencia com que vossa reverendissima aggrava o alcance +d'essa creancice, condemnavel, sim, mas pura creancice. Sabe por +ventura alguma coisa?</p> + +<p>—Sei o bastante, senhor morgado. Elle é um perverso, um hereje, um +liberal; em conclusão: um depravado capaz de tudo.</p> + +<p>—Mas minha filha é uma fidalga, e as fidalgas estão muito acima +d'esses miseraveis, para que a sua intimidade se lhes torne perigosa.</p> + +<p>—Na minha qualidade de director espiritual d'esta casa, é-me +permitido manifestar as indicações que faz o Creador ás creaturas +servindo-se dos seus intermediarios. Assim, senhor morgado, dir lhe-ei +que uma voz occulta brada em meu peito: «Quero-a para mim! Quero-a +para mim!» Significa isto que está indicada a clausura como penitencia +da leviandade, e como resposta aos malvados constitucionaes que +<span class="pagenum"><a id="page171" name="page171"></a>(p. 171)</span> se arrojaram a cubiçar os bens de V. Ex.<sup>a</sup> para as suas obras +de Satanaz.</p> + +<p>—Se fôsse uma filha segunda já lá estava. Mas é uma morgada, não a +hei de meter freira.</p> + +<p>—Não digo que professe, senhor Martinho Vasques. Aconselho apenas que +a mande para o convento, como castigo pela sua imprudencia, e como +resposta á seita jacobina. Se mais tarde o Senhor lhe inspirasse a +vocação, ver-se-ia. A verdade é que fazendo-a passar pelo claustro, +ficava quite V. Ex.<sup>a</sup> para com seu genro. Creio que a senhora D. Maria +só foi attingida na sua bôa fama. De mais graves estragos, porém, tem +ido refazer-se jovens fidalgas ao seio das virtuosas madres, e bastou +isso para que seus nobres esposos se dessem por satisfeitos.</p> + +<p>Meditou um pouco o morgado, e respondeu:</p> + +<p>—Não posso deshabituar-me da ideia de que hei de vêr um neto varão, +já que Deus não me deixou vingar um filho, que succedesse no meu +appellido e nos meus bens. Quanto ao mais, não tenha receio. Minha +filha leva um magnifico dote, e por minha morte ficará bem. O primo, +que pouco possue, alem da herdade perto de Evora, e do seu grande +nome, terá toda a conveniencia em não dar ouvidos ás intrigas.</p> + +<p>—E <span class="pagenum"><a id="page172" name="page172"></a>(p. 172)</span> a senhora D. Maria quererá casar com elle?</p> + +<p>—Cumprirá o que lhe ordenar, como deve.</p> + +<p>—Assim é em theoria, meu senhor, mas lembro que n'estes malditos +tempos nem fica incolume a propria obediencia filial. Foram por certo +os conselhos d'esse perverso que a fizeram má filha, como a hão-de +fazer má esposa.</p> + +<p>—Entregue-a eu ao marido, e o mais é com elle. Bem sabe a fama de +leviandade que minha mulher teve, e a seriedade com que tem procedido +desde casada. Feche-a, como eu faço, tire-lhe as occasiões, e será +esposa exemplar como as outras.</p> + +<p>—Como a senhora D. Perpetua—exclamou fr. Angelico, pondo a mão no +peito—apesar das más linguas a quem irrita o exemplo da virtude! Que +até em demasia pratíca a minha senhora os seus deveres religiosos. +Appelle V. Ex.<sup>a</sup> para a sua autoridade de marido, e faça-a limitar a +frequencia ao tribunal da penitencia. Ella é insaciavel de +mortificações, e receio que acabe por lhe fazer mal. Imponha-lhe +parcimonia, porque o meu ministerio não é o mais proprio para a +arrancar a excessos de devoção.</p> + +<p>—Não se lhe preste vossa reverendissima ás rabujices de beata. Agora +todo o seu tempo será para corrigir <span class="pagenum"><a id="page173" name="page173"></a>(p. 173)</span> minha filha. Sou o +primeiro a sentir a sua desobediencia e a reconhecer a culpa que +n'ella tenho, pelo mimo de que a rodeei. Por isso recorro ás suas +luzes. Repita-lhe as confissões, meta-lhe medo com o inferno e +fale-me, á meza, dos sacrilegios d'esses patifes.</p> + +<p>—Cumprirei a minha missão de pastor, chamando ao redil a desgarrada +ovelha ... Mas o mais seguro de tudo é a caça aos lobos. É preciso +offerecer a esta nossa terra o espectaculo do desaggravo da religião e +de el-rei, encher as casamatas do castello e dar que fazer á forca!</p> + +<p>—Sim, diz bem.</p> + +<p>—Pois lembre-se V. Ex.<sup>a</sup> dos nossos amigos que já começaram a batida.</p> + +<p>Receioso da incerteza dos tempos, precavia-se d'essa fórma fr. +Angelico, enchendo o seu pé de meia antes que o morgado abalasse para +Lisboa.</p> + +<p>Deu-lhe Martinho, voltando a cara, novo saquitel de dinheiro, fechando +cuidadosamente o contador e, sem mais palavras, foram para a meza.</p> + +<p>Tirou o morgado o vinho, examinaram-o, provaram-o e aguardaram o +comer.</p> + +<p>Para affligir Maria, repetiu o frade ao jantar as noticias da revolta +miguelista, dirigindo-se a D. Perpetua, grande <span class="pagenum"><a id="page174" name="page174"></a>(p. 174)</span> partidaria de +Carlota Joaquina, hostil aos liberaes pelo seu odio aos conventos.</p> + +<p>—Pois minha querida senhora D. Perpetua, vae V. Ex.<sup>a</sup> sentir +desafogada a sua alma pela grande desafronta que na nossa terra vae +haver. Teremos carne fresca, salutares espectaculos a este povo tão +offendido, e estou certo que o senhor morgado não deixará de mandar +pôr o seu carroção para dar ás festas o prestigio da sua presença, e á +menina Mariquinhas, como é de lei, a lição do castigo dos criminosos.</p> + +<p>Muito nervosa, cravou Maria os olhos no prato, não respondeu ás +solicitações directas do frade, e sempre conseguiu reprimir os impetos +de o descompôr.</p> + +<p>Impacientava-a a demora d'esse jantar interminavel.</p> + +<p>Aterrada pelo perigo de vida em que se encontravam os constitucionaes, +anciava vêr Josepha da Esperança que lhe devia contar a verdade.</p> + +<p>Procurava convencer-se de que eram tudo exageros do frade, encommenda +do pae para a fazer abandonar João.</p> + +<p>Contava agora fr. Angelico os desacatos dos liberaes, o desabafo do +povo de Lisboa em 1820, invadindo o <span class="pagenum"><a id="page175" name="page175"></a>(p. 175)</span> palacio da inquisição, e +despedaçando a estatua da Fé, da frontaria; e as invenções fradescas +de Christos servindo de alvo, de imagens arrastadas pelos cabellos em +procissões maçonicas.</p> + +<p>Assustavam esses horrores a inconsciente credulidade de Maria, e +quando o frade lhe falou do milagre de Setubal, dois anjos a cavallo +n'uma nuvem, com a legenda de vivas a D. Miguel, temeu viver em +peccado mortal pela affeição votada a um adepto de Satanaz.</p> + +<p>Mas chocava-a a inverosimilhança de que esse pobre rapazinho, tão +meigo, tão ingenuo, tão respeitador, bebesse vinho por caveiras, e +escarrasse nas cruzes, como o frade ia insinuando, cada vez mais +excitado pelo verdelho.</p> + +<p>Mal se levantou a mãe, ergueu-se logo, e foi para o mirante esperar a +prima, deixando o frade no relato dos castigos celestes, provocados +pelo peccado da liberdade, os tremores de terra, as perdas de +colheitas, a febre amarela que flagellára a Hespanha por causa das +suas côrtes constitucionaes.</p> + +<p>Confirmou-lhe Josepha a apparição da guerrilha, e a derrota dos dois +destacamentos, mas tranquillisou-a, que aquillo não tinha importancia +nenhuma.</p> + +<p>Fôra <span class="pagenum"><a id="page176" name="page176"></a>(p. 176)</span> pedir-lhe João que a animasse.</p> + +<p>N'essa mesma tarde estaria a revolta acabada, porque saíra toda a +tropa do castello para ir afugentar os miguelistas.</p> + +<p>—Por isso ouvi tantos toques de cornetas, que o vento estava de lá.</p> + +<p>—Passaram-me pela porta. Olha que ia bonito! Nunca vi tanta +soldadesca junta, carretas com peças, officiaes a cavallo, a musica a +tocar o hymno constitucional, a garotada dançando á frente, e povo +como bichos atraz. Ao passar, o João abaixou-me a cabeça...</p> + +<p>—Pois elle tambem foi?</p> + +<p>E Maria abraçou-se á prima a chorar.</p> + +<p>—Elle, Josepha, uma creança, metido n'isso por minha causa. Sim, +porque se não fosse dar lhe para gostar de mim, não tinha ido sentar +praça, não se via agora envolvido n'essas guerras, em risco de lá +ficar.</p> + +<p>—Então, filha, aquillo não vale nada. Se tu visses como elle ia +contente, risonho! Parecia um passeio. Se prenderam as outras forças é +porque eram só de vinte homens, e foi cada qual por seu caminho.</p> + +<p>—Mas hão de dar tiros, e se algum acerta n'elle? É <span class="pagenum"><a id="page177" name="page177"></a>(p. 177)</span> capaz +d'isso, que eu sou muito desgraçada, e nunca vae por diante aquillo a +que quero bem. Elle é as flores da minha estima, os canarios das +minhas gaiolas. Credo! Credo!</p> + +<p>—Acredita que não tem perigo. O mestre Jacintho, que lá ia sentado +n'uma carreta, porque percebe muito de peças, a rir-se como um +tolinho, disse ao meu creado que ao primeiro tiro fugirão como bando +de estorninhos.</p> + +<p>—A minha desgraça, Josepha!—continuava Maria, inconsolavel—É como +se já o visse morto! Ao que eu ouvi a fr. Angelico, elles teem tudo +como feito, e já falam de enforcar os liberaes. No que se vae vêr +aquelle pobrinho!</p> + +<p>—Agora vejo que te esteve a meter mêdo, o sujo. Não sei o que me +contem, que não diga um dia ao tio porque vem elle aqui tanta vez, a +exercicios espirituaes. Mas se o maldito continua a fazer-te chorar, +olé se o desmascaro. Hypocrita! É tudo mentira, filha, acredita-me.</p> + +<p>Maria encarou-a mais esperançada.</p> + +<p>—Olha, se o visses, em vez de chorar, rias-te como eu me ri. Elle ia +de mochila, capote, bornal, correias por cima de correias, espingarda +ao hombro, tão carregado de coisas que nem sei como se podia <span class="pagenum"><a id="page178" name="page178"></a>(p. 178)</span> +mecher. Pois apezar d'isso andava tão depressa que desapparecia. Os +caçadores vão desesperados por causa dos paisanos lhe terem prendido +os camaradas. Olha que elles são soldados de fama! Onde chegam, vencem +tudo.</p> + +<p>—Estou mais descançada por ir o mestre Jacintho, que ha de tomar +conta n'elle.</p> + +<p>—Ora vê lá esse velhote, o que tem passado, as guerras em que entrou, +e como ahi está são e escorreito. Teu pae mesmo por lá andou, o avô do +João veiu morrer á sua cama, e quantos e quantos! Até me parece que +elles inventam os perigos, para se darem ares, e que no fundo é tudo +uma santa historia.</p> + +<p>—Deus te oiça, Josepha!</p> + +<p>—O que te posso dizer é que elles iam tão assustados que encaravam +com todas as janelas. E que olhares, filha, parece que queimavam, +tanto calor me subia á cara! Era tão bonito vêl-os marchar, os +officiaes muito empertigados, a retorcerem o bigode, que se me foram +os olhos n'elles.</p> + +<p>Desanuviou-a um pouco a vivacidade de Josepha:</p> + +<p>—Ainda vens a namorar um militar.</p> + +<p>—Cuidas que todas gostam de soldados, como tu?</p> + +<p>Maria <span class="pagenum"><a id="page179" name="page179"></a>(p. 179)</span> acabou por sorrir, e enxugou as ultimas lagrimas.</p> + +<p>—Sabes quem é para ter dó?—continuou Josepha.—É o primo Jorge. Anda +com os guerrilhas, o grande maluco. Foi-se-me mostrar, todo pimpão, +com uma aguilhada de carreiro para imitar o senhor D. Miguel. No que +elle se engana é que aqui os liberaes estão armados, e em Lisboa +andavam com as mãos a abanar, por isso el-rei os perseguia a pampilho. +O que vale é que, como anda a cavallo, e ha-de ser dos primeiros a +fugir, antes que o apanhe alguma bala, põe-se a salvo.</p> + +<p>—Que malditas questões!—suspirou Maria, tornando a +commover-se.—Succeda o que succeder, pelo menos uma de nós ha-de +chorar, se não chorarmos ambas.</p> + +<p>—Lá d'elle vir corrido não me importa nada. Até gosto, se queres que +te diga, porque o João deu-me volta ao miolo. Se isto é ser +constitucional e fica feio, não sei nem quero saber, mas lá em querer +acabar com os conventos teem elles carradas de razão. Para que é +aquillo bom? Para fazer dôces? Pois em nossa casa fazem-se muito +melhores, e não são lambidos por aquellas fufias, crédo, que até me +repugnam os seus beijos repenicados.</p> + +<p>Por <span class="pagenum"><a id="page180" name="page180"></a>(p. 180)</span> fim, ao despedirem-se, combinou Josepha como havia de +dar-lhe noticia certa do que se passasse. Mandaria pelo creado +pedir-lhe qualquer coisa, e isso seria o signal de que João estava +incólume.</p> + +<p>Ficando só, entregue ao seu desgosto, poz-se Maria a contemplar as +grandes serras do interior da ilha, a querer descortinar o que atraz +d'ellas se estava passando.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Para além das escuras cumeadas marchava João entre as cento e +cincoenta praças da columna, pensando amargamente na abominavel +escravidão mental em que jazia o povo, a ponto de reunir-se em armas +hostilisando os libertadores.</p> + +<p>Tinham que levar pela violencia os proprios a quem emancipavam, +erguendo-os á concepção de uma patria, á realisação de um pais +independente, entregando-lhes a posse dos seus destinos.</p> + +<p>Eram forçados a armarem-se de espingardas contra esses cujo +soffrimento interpretavam, emancipando o individuo, o trabalho, a +terra; abrangendo na mesma redempção o camponês dobrado sobre a +enxada, o plebeu asphyxiado pelo preconceito do nascimento, <span class="pagenum"><a id="page181" name="page181"></a>(p. 181)</span> +a mulher escravisada na clausura.</p> + +<p>Reclamavam para si o logar a que lhes davam direito as faculdades +intellectuaes, mas não esqueciam o cavador, o pescador, o artifice, +formulando as reclamações que elles eram incapazes de conceber, +analphabetos, desmoralisados por castigos corporaes, intimidados pelo +inferno, esperando apenas a felicidade depois de mortos a troco da +completa submissão.</p> + +<p>Por si e por esses que pretendiam elevar pelo ensino obrigatorio, pela +suppressão do direito dos senhores ao producto do trabalho, +expropriaram as classes privilegiadas: funccionarios monopolisadores +das rendas publicas; desembargadores vendilhões da justiça; militares +insaciaveis de promoção e de soldos; capitães-móres que dispensavam de +soldado a troco da honra das mulheres, da virgindade das raparigas; +fidalgos possuidores da terra, do exclusivo dos altos cargos, do +privilegio da venda do vinho, dos moinhos, dos lagares de azeite, da +agua para regas, das pescas nos rios e no mar, das coutadas que por si +sós eram a ruina da agricultura; padres, frades e freiras que, como +proprietarios, usufruiam todos os privilegios da nobreza e exerciam a +maior industria, quasi a unica industria, a exploração <span class="pagenum"><a id="page182" name="page182"></a>(p. 182)</span> da +credulidade publica, pesando terrivelmente, pelas communidades ricas e +pelas ordens mendicantes sobre todo o trabalho nacional.</p> + +<p>E mais uma vez a inconsciencia dos opprimidos, guiada pelos semeadores +do mal, desejava-lhes a morte, e reclamava-a cantando, em córos de +vozes avinhadas:</p> + +<div class="poem"> +<p class="add2em">Rebenta mação<br> + Remoe liberal,<br> + Livre é Portugal<br> + Da constituição.</p> + +<p>Ó Virgem da Bôa Morte,<br> + Senhora dae-lhes consumo<br> + Para que os <i>pedreiros</i> levem<br> + A volta que leva o fumo.</p> + +<p>A fôrca em bolandas<br> + Andando apressada<br> + Da atroz <i>pedreirada</i><br> + Acabe as demandas. +</p> +</div> + +<p>Estavam convencidos os desgraçados populares, arrancados á familia +para derramarem sangue pelos seus <span class="pagenum"><a id="page183" name="page183"></a>(p. 183)</span> parasitas, de que se +batiam pela religião, de que, combatendo os soldados de D. Pedro, esse +rei estrangeiro, liberal e pedreiro livre, que declarára guerra a +Portugal, e lhe arrancára o Brasil, calcando aos pés emblemas +nacionaes, obedeciam aos designios de Deus, que mandara á terra o +archanjo S. Miguel, incarnado no infante, para restabelecer no seu +antigo explendor a fé catholica.</p> + +<p>Tinham-o ante os olhos, resplandecente, prestigioso, n'esses retratos +postos nos altares, como os de santos, ante os quaes se rezava e se +diziam missas; n'essas gravuras que o mostravam pujante de juventude, +na sympathia dos vinte annos, no vigor dos amplos gestos, na rijeza da +musculatura, largo de hombros, amplo arcaboiço, expressão de firmeza +no rosto comprido e trigueiro, lampejos de energia no olhar vivo, a +figura dominadora a cavallo, chapéo de dois bicos vistoso de +plumagens, esmaltado de crachás, espada em punho mandando avançar.</p> + +<p>E murmuravam na uncção de orações, as cantigas em que elle apparecia +como representante do ceu:</p> + +<div class="poem"> +<p>Senhora da Conceição<br> + Madrinha de D. Miguel.</p> + +<p>D. <span class="pagenum"><a id="page184" name="page184"></a>(p. 184)</span> Miguel vae p'r'ó altar<br> + Com dois palmitos aos lados.</p> + +<p>É Miguel anjo de paz<br> + Que Deus tem por general.</p> +</div> + +<p>Chegára á villa da Praia, onde celebrou a acclamação de D. Miguel, +lavrando o respectivo auto na camara, a grande guerrilha que já reunia +cinco mil homens, mas retrocedeu ao Pico do Selleiro a esperar a +columna liberal, e ahi rompeu o combate, avançando os soldados em +atiradores até duzentos metros da elevação onde tomara posições.</p> + +<p>Empallideceu João ao vêr esses homens em attitude aggressiva, +apontando-lhe espingardas.</p> + +<p>Jurára morrer pela liberdade, mas estremecia á ideia de ter de matar +em nome d'ella.</p> + +<p>Para que a nova ideia triumphasse era preciso reduzir a um montão de +mortos e de feridos aquelles homens, seus patricios, seus irmãos ante +a noção da fraternidade.</p> + +<p>Era a ignorancia o seu unico crime, e por isso iam ser dizimados pelas +peças, pelas espingardas dos caçadores, pela sua propria arma, que +d'essa fórma ia estrear.</p> + +<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page185" name="page185"></a>(p. 185)</span> se até para o bem d'elles era preciso!</p> + +<p>E á voz de fogo, na passividade da disciplina que o tornava uma +simples peça d'essa machina de morte, poz a espingarda á cara e, +fechando os olhos, disparou.</p> + +<p>Atordoou-o a descarga geral, a seca detonação da fuzilaria, o sonoro +estampido dos canhões e, cambaleante do coice, os olhos a arderem da +explosão da carga, a face magoada pela pancada da coronha, alagado em +suor frio, mais morto que vivo, sentiu-se agarrado pelo veterano que, +mal pudéra, fôra reunir-se a elle.</p> + +<p>—Então, menino, isto não vale nada! Anime-se, que até parece mal. +Está amarelo como um defunto!</p> + +<p>—Ah! És tu, meu amigo!</p> + +<p>Recobrando-se, explicou:</p> + +<p>—O tiro rebentou-me mesmo na cara, ia-me deitando ao chão.</p> + +<p>E segurou a espingarda pela bandoleira:</p> + +<p>—Escalda, nem sei por onde lhe hei-de pegar.</p> + +<p>—Não tiveram tempo para lhe ensinar o officio. Pois bem fiz eu em vir +ser seu padrinho no baptismo de fogo, como seu avô foi para mim. Olhe, +pegue-lhe por aqui, pelo delgado do fuste, agarre-a bem, <span class="pagenum"><a id="page186" name="page186"></a>(p. 186)</span> não +a encoste á cara, e não lhe succede mal nenhum.</p> + +<p>Emquanto lhe explicava os manejos d'arma, continuava o combate; +estremecia João ao vêr caír gente do seu lado, sem que parecesse +attingida, e baixava instinctivamente a cabeça ao tiroteio do inimigo.</p> + +<p>—Deixe-os lá—continuou mestre Jacintho—estenderem-se no chão para +fazerem fogo deitado. Não me faça cortesias, menino, que não serve de +nada, e olhe bem direito para a frente, se quer vêr o enxame de moscas +azues e vermelhas que andam a zumbir por entre a gente.</p> + +<p>Fez ajoelhar João, collocou-se ao lado, e poz-se tambem a fazer fogo.</p> + +<p>—Lá vae uma para aquelle patife de desertor do Cinco, que por lá anda +envergonhando a farda Pum! Prompto! Ah! Já fostes escutar a +cavallaria? Ande com elles, Joãosinho, aponte aos fardados, que são +quem nos faz mal, e nos mandam cada <i>ameixa</i>! A paizanada, estar ali +ou não estar, é tudo o mesmo. Mire os que andam a cavallo, que são os +chefes, e ferre-me com elles em terra.</p> + +<p>Aqueceu João, enthusiasmou-se, agora carregava a arma febrilmente e, +tão sereno como se não o visassem as <span class="pagenum"><a id="page187" name="page187"></a>(p. 187)</span> duzentas espingardas da +guerrilha, apontava segundo as indicações do veterano, e disparava, de +olhos bem abertos, observando se attingia o alvo.</p> + +<p>—Agora sim! Está um homem, um bravo como seu avô! Pode servir de +exemplo aos mais velhos! Vejam este camarada, rapazes, vocês que +andaram na guerra, mas que são galuchos á minha vista!</p> + +<p>E abraçou-o entre os applausos da sua esquadra.</p> + +<p>—Cá o deixo, já não precisa de mim. Filho de peixe sabe nadar! Temos +homem para ir longe. E agora deixe-me chegar até ás peças, a vêr se me +deixam apontar uma á minha vontade, que já é tempo de varrer aquella +malta.</p> + +<p>Partiu, fazendo-se muito baixinho, dobrado ao meio, descendo aos regos +do terreno para offerecer menos alvo, occultando-se com pedregulhos, +arvores, restos de paredes derrubadas, como soldado afeito á guerra.</p> + +<p>E João continuou muito senhor de si, lembrando-se de que a illusão da +fraternidade perdera o governo constitucional, e depois a revolução do +Porto.</p> + +<p>Só pela violencia se dissolveriam as castas; só pelas armas se +imporiam as medidas liberaes; nunca o progresso se realisaria sem +sangue!</p> + +<p>Após <span class="pagenum"><a id="page188" name="page188"></a>(p. 188)</span> hora e meia de fogo, flanqueou uma força liberal a +posição miguelista, e a guerrilha debandou ao vêr despedaçar pela +metralha o <i>caçador</i>, do Porto Judeu.</p> + +<p>—Victoria! Victoria!</p> + +<p>E o veterano voltou a abraçal-o, e pegou-lhe ao collo, como se fosse a +criança que amimára, envaidecendo-se do seu recruta, recordando +enternecido a bravura do seu antigo official.</p> + +<p>Respirava João amplamente, na alegria dos vivas, no orgulho do +triumpho, e queria apparecer por encanto na quinta, mostrar a Maria +que ficára illeso, beijal-a, chorar e rir abraçado a ella, +affirmar-lhe que estava salva a causa, garantida a ventura de ambos.</p> + +<p>—Pois havemos de lá ir, que o mereceu, galucho de uma cana! Que +sustos não terão pregado á pobre menina!</p> + +<p>E a essa evocação do receio dos que ficaram, lembrou-se da afflição +das pobres tias, que tinham ido logo ajoelhar diante do oratorio, a +pedirem por elle ás imagens da sua devoção: Santa Rita, dos +impossiveis; S. José, que tinha ao lado uma palma benta em dia de +Ramos, maior do que elle; o Christo de prata n'uma cruz de ébano; um +coração com <span class="pagenum"><a id="page189" name="page189"></a>(p. 189)</span> tampa de vidro, e dentro um menino entre flôres; +um outro menino Jesus barrigudo, córado, vestido de boneca, com a bola +do mundo na mão; e ainda outro n'um berço côr de rosa, com uma +almofadinha bordada: menino Jesus nusinho para os beijos devotos, em +que as beatas bemdiziam a sua santa virilidade.</p> + +<p>Na manhã seguinte recebeu Maria o recado de Josepha. Mandava pedir +flôres. E ao ir ao jardim dal-as ao creado, soube da bôcca d'elle que +os liberaes tinham vencido facilmente; que João não soffrera nem uma +arranhadura, e que as flôres eram para as visinhas deitarem por cima +dos soldados, que n'essa tarde entrariam triumphantes.</p> + +<p>N'uma explosão de jubilo colheu quanto havia e ao deitar para o cesto +o pouco que lhe dava outubro: «rosas do Japão» vermelhas e brancas, +«esporas de cavalleiro» azul escuras, cheirosas baunilhas, a vermelha +«flôr do laço», a «corôa de rei» azul-claro, misturadas com ramos de +alecrim, era como se das janellas tambem as atirasse para cima de +João, inebriada pela sua victoria.</p> + +<p>Foi <span class="pagenum"><a id="page190" name="page190"></a>(p. 190)</span> o jantar a antithese da vespera; desabafando o frade em +improperios contra os liberaes que vira passar ao som de repiques, com +ramos de louro nas espingardas, sob uma chuva de petalas, e Maria +finava-se de rir pela parte que tivera na festa.</p> + +<p>Veiu á tarde Josepha da Esperança, e contou-lhe que o vira radiante. +Dissera-lhe «até logo», e era capaz de apparecer.</p> + +<p>Foram ambas, alvoroçadas, esperal-o do lado da canada, aonde vinham +dar os atalhos.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Mal debandou a força no quartel, correu João a casa, a socegar as +velhas.</p> + +<p>Ao vel-o a creada, a <i>tia</i> Maria da Assumpção, persignou se de uma +maneira especial:</p> + +<p class="poem"> + Eu me benzo<br> + Co'o sangue de Christo<br> + Co'o o leite da Virgem<br> + Co'o a flôr da luz<br> + Para sempre amen Jesus. +</p> + +<p>Foram mostrar-lhe a tia Dorotheia e a tia Pulcheria o oratorio a que +ardiam velas em promessa. Proclamavam <span class="pagenum"><a id="page191" name="page191"></a>(p. 191)</span> o milagre, e esperavam +que elle se rendesse, caíndo de joelhos, agradecendo o dom do ceu. Mas +só a ellas se mostrou grato, beijando-as, tornando-se de novo a +creancinha em que não podiam adivinhar o rude soldado da vespera.</p> + +<p>Debatiam-se agora as tres velhas n'um grave caso de consciencia.</p> + +<p>Para que tinham forçado ao milagre a senhora Santa Rita dos +Impossiveis? Fôra um pedido sacrilego! Vinha João mais hereje do que +fôra, sem sequer agradecer aos santinhos que se amerceiaram d'elle. +Salvando-o d'essa forma, talvez se tivessem perdido com elle!</p> + +<hr class="third"> + +<p>O mal disfarçado riso com que Maria offendera á meza o seu despeito, +encolerizára o morgado e o frade.</p> + +<p>A indifferença da vespera, a certeza com que ella n'esse dia se +mostrava ao facto da victoria, aggravou a Martinho as suspeitas de que +se correspondia com João.</p> + +<p>E depois da indispensavel visita ao alambique, foram emboscar-se a +vigial-a.</p> + +<p>Avistaram-os <span class="pagenum"><a id="page192" name="page192"></a>(p. 192)</span> ellas, e reconheceram-se alvo da sua vigilancia, +mas por coisa alguma se resignava Maria a deixar de vêr o namorado. +Far-lhe-ia signal para que não parasse, e defender-se-ia do pae +mostrando-se extranha a essa mera coincidencia.</p> + +<p>Avistaram por fim ao longe o veterano e João, cosendo-se com as +paredes dos cerrados.</p> + +<p>Ao reconhecel-os, quiz o morgado lançar-se n'um impeto, mas +conteve-lhe o frade o mau genio.</p> + +<p>Esperava o momento compromettedor, em que a filha não podesse negar a +leviandade e, confundida, ao vêr-se descoberta, pedisse perdão da +afronta, e se entregasse a um sincero arrependimento.</p> + +<p>Cedeu não sem custo, e quando tornou a olhar por entre as faias, notou +com surpreza que já tinham desapparecido.</p> + +<p>Percebendo os signaes para se afastarem, tinham os dois saltado á +canada.</p> + +<p>Rente com o muro, correra João a atirar-lhe para cima, enrolado a uma +pedra, o bilhete que levava para a hypothese de não poder falar-lhe, e +indo ter com mestre Jacintho saíram ao Caminho de Cima, por entre +quintas.</p> + +<p>Desconfiados, precipitaram-se fr. Angelico e o morgado, <span class="pagenum"><a id="page193" name="page193"></a>(p. 193)</span> ao +tempo que Maria devorava as quatro palavras de João.</p> + +<p>—Dê-me essa carta, senhora!—bradou o frade, que chegára primeiro.</p> + +<p>Sem responder, amarrotou o papel, e com elle fechado na mão, +voltou-lhe as costas n'um olhar de desprezo, e afastou-se de braço com +a prima.</p> + +<p>Deteve-a o pae, exigindo-lhe o bilhete, que Josepha já occultára no +seio, e Maria respondeu que nada tinha.</p> + +<p>—Vi-lh'a eu, senhor, a carta d'esse hereje, d'esse pedreiro livre, +que para deshonra de V. Ex.<sup>a</sup> perdeu a alma da senhora D. Maria!</p> + +<p>E fr. Angelico apoiou a denuncia agarrando-lhe a mão em que a +amarrotára.</p> + +<p>Soltou-se ella violentamente, e o frade, cambaleando com a sacudidela +de Maria e um indignado empurrão de Josepha, caíu contra um renque de +vasos, esfarrapando-se e partindo-os.</p> + +<p>Então o pae cresceu para ella:</p> + +<p>—A menina estava esperando um homem, a quem eu repelli da minha +porta. Além de me desobedecer, offendeu-me agora, resistindo a uma +ordem minha. Repare bem, sou eu quem lh'o exijo! Dê-me a carta.</p> + +<p>—Não <span class="pagenum"><a id="page194" name="page194"></a>(p. 194)</span> tenho carta nenhuma, senhor. Deixe-me passar.</p> + +<p>—Isso é que não. Iria escondel-a.</p> + +<p>E detendo-a:</p> + +<p>—Dê-me esse papel ao bem, ou arrepende-se!</p> + +<p>—Senhor, já lhe disse que não tenho. E se tivese não devia dal-o, nem +o pae m'o devia pedir.</p> + +<p>—Ah! Não tem? É o que vamos vêr.</p> + +<p>E segurando-a, o morgado apalpou-lhe o corpete, rebuscou-lhe a +algibeira da saia, apertando-lhe brutalmente os pulsos emquanto ella +se debatia, e como tudo fosse inutil, atirou-a rudemente contra o +muro.</p> + +<p>—A menina ha-de ficar sabendo que não se zomba d'um pae, e não se +emporcalha um nome fidalgo namorando soldados.</p> + +<p>N'um choro convulso Maria bradava, caída na banqueta:</p> + +<p>—O pae bateu-me! Mas foi a ultima vez. Está enganado commigo. Não +quero ter a sorte da mãe!</p> + +<p>E para Josepha da Esperança, que os dois levavam adiante de si, +tratando-a de encobridora, de enredeadeira:</p> + +<p>—Não me desampares, Josepha! Conta o que vistes, e não te esqueças de +que me bateram, e de que <span class="pagenum"><a id="page195" name="page195"></a>(p. 195)</span> esse frade me magoou! É preciso que +elle o saiba!</p> + +<hr class="third"> + +<p>Tornara-se João tudo para ella!</p> + + + + +<h2>IX <span class="pagenum"><a id="page197" name="page197"></a>(p. 197)</span></h2> + + +<p>Bloqueado por temporaes de inverno, dias de chuva torrencial, grandes +frios, installára-se fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria na +quinta dos Folhadaes, mandando como senhor, dirigindo a casa, cujo +governo D. Perpetua abandonára, para se refugiar no quarto de Maria, +horrorisada por adivinhal-o catechizando creadas pelo escuro dos +grandes corredores.</p> + +<p>Enclausurada voluntariamente com a filha, prohibida de sahir do +quarto, comiam ali ambas depois de prévia revista do morgado ou do +frade ao que recebiam, não fossem cartas escondidas.</p> + +<p>Só os dois homens pois iam á meza, e ali passavam quasi <span class="pagenum"><a id="page198" name="page198"></a>(p. 198)</span> de +uma á outra refeição, não se decidindo a arrostar a frieza da adega, +nem o chavascal do campo.</p> + +<p>Aparada em alguidares e em celhas pingava agua do tecto, alastrado de +bolôr; pelas frinchas das janellas empenadas soprava um vento cortante +que os fazia tiritar sob os capotes.</p> + +<p>Desforravam-se a bebericar aguardente, quando a criada foi annunciar o +senhor juiz corregedor.</p> + +<p>—Justiça em minha casa!—exclamou o morgado, pondo-se de pé.</p> + +<p>Chegou á janela e olhou para fóra. Não cessára de chover.</p> + +<p>—Com um tempo d'estes! Deve ser coisa grave.</p> + +<p>Voltou-se para o frade:</p> + +<p>—Descobriria a alçada que eu dei dinheiro para os guerrilhas?</p> + +<p>Tranquillisou-o logo fr. Angelico:</p> + +<p>—Quanto a isso descance v. ex.<sup>a</sup> Não invoquei o seu nome, por causa +das secretas vinganças que os pedreiros livres costumam tirar de quem +os guerreia. Lembre-se dos lentes de Condeixa.</p> + +<p>—Sim, sim, fez bem. Má gente. Mas se não é por isso, que querem de +mim?</p> + +<p>—O mesmo que pretendem dos outros. Intimidar os <span class="pagenum"><a id="page199" name="page199"></a>(p. 199)</span> partidarios +do throno e do altar. E como as suas opiniões são bem conhecidas...</p> + +<p>—Mas eu nunca as manifestei, não saio de casa, não me saliento...</p> + +<p>Voltou-se para a criada:</p> + +<p>—Elle vem só?</p> + +<p>—Saberá v. ex.<sup>a</sup> que sim senhor.</p> + +<p>—Se eu fugisse, fr. Angelico?</p> + +<p>—Não me parece que haja razão para isso.</p> + +<p>—É exactamente por não saber o motivo que receio.</p> + +<p>—Agora! Agora!—accudiu o frade, já desanuviado.—Imaginam que está +por ahi alguem escondido, e como andam á procura do João Moniz e do +Joaquim d'Almeida...</p> + +<p>—Pois lembra bem, deve ser isso—concordou o morgado.—Que hei de +fazer n'esse caso?</p> + +<p>—Recebel-o ás bôas, deixal-o dar busca á sua vontade, e ficaremos +livres d'elle.</p> + +<p>—Pois hei de franquear-lhe minha casa?</p> + +<p>—Que remedio, se pode entrar á força. Estão de cima. É aguentar e +cara alegre, emquanto não chegam melhores dias.</p> + +<p>—Vá então recebel-o em meu nome, e desculpe-me. Diga que estou +doente.</p> + +<p>—Eu, <span class="pagenum"><a id="page200" name="page200"></a>(p. 200)</span> senhor! Não sabe v. ex.<sup>a</sup> o odio que nos votam esses +adeptos de Satanaz! O pobre de mim até foi na lista que elles mandaram +ao nosso provincial, intimando-o a prohibir os franciscanos de +defenderem a causa do throno e do altar.</p> + +<p>—Não posso ver gente de justiça, e demais a mais justiça d'esta!</p> + +<p>—Tenha paciencia, que nos havemos de vingar de tudo. Vá attendel-o v. +ex.<sup>a</sup>, ponha-se ás bôas, trate-o o melhor que puder, para não dar +logar a que exhorbite, e tenho para mim que o ha de confundir a sua +respeitabilidade. Eu ficarei rogando a Deus...</p> + +<p>—Isso é que não. Ou me acompanha, ou não o recebo, e faça o que +melhor lhe parecer.</p> + +<p>Olhou irritado para os campos innundados de agua:</p> + +<p>—Tivesse cá a gente de trabalho, e outro gallo lhe cantára. Mas +assim, não ha com que lhe dar uma lição, que elle com certeza não vem +só, nem com as mãos a abanar.</p> + +<p>E como visse retrahir-se o frade:</p> + +<p>—Ande d'ahi, já lhe disse.</p> + +<p>Apavorado, pediu fr. Angelico, de mãos postas:</p> + +<p>—Só se v. ex.<sup>a</sup> me promette ser conciliador. Disse <span class="pagenum"><a id="page201" name="page201"></a>(p. 201)</span> o Divino +Mestre, que se o inimigo nos offender na face esquerda devemos +offerecer-lhe a direita.</p> + +<p>—Isso aconselharia aos frades, que aos fidalgos não!—respondeu +irritado Martinho.</p> + +<p>—Pois n'esse estado de espirito, meu senhor, Deus me defenda.</p> + +<p>—O melhor é falar vossa reverendissima. Eu acompanho-o, mas +permitto-lhe todas as habilidades conciliadoras, porque tambem prefiro +que não me incommodem.</p> + +<p>—É Deus que o illumina, senhor morgado. Assim verá que fica tudo em +bem.</p> + +<p>—Mande-o entrar para a sala dos retratos—disse o morgado á +criada—peça desculpa da demora, e que já lá vamos.</p> + +<p>Estremeceu o frade de novo:</p> + +<p>—Ah! Senhor do ceu! Basta o tempo que o fizemos esperar para o +esbirro já estar como uma bicha. Que carantonha que não vae fazer!</p> + +<p>Bebeu mais aguardente o fidalgo, tirou o capote, mirou-se, compoz os +bofes, puchou os punhos de rendas, e lançou a fr. Angelico um olhar de +desdem:</p> + +<p>—Você já não conheceu o homem de côrte. Pois fique <span class="pagenum"><a id="page202" name="page202"></a>(p. 202)</span> sabendo +que me vi muita vez nos regios paços de Queluz, e sei bem a etiqueta +das salas. Verá como procedo, e como, sem o humilhar, por que elles +estão de cima, lhe farei sentir a differença que vae de um fidalgo a +um traficante de sentenças. Basta o logar onde o recebo para o +envergonhar do seu baixo nascimento. E certas coisas que lhe direi ao +correr do pello...</p> + +<p>—Não me perca v. ex.<sup>a</sup>, por amor de Deus! Deixe-me ficar no meu +cantinho!</p> + +<p>—Não, que você é manhoso como os que o são e, se eu me desmanchar, +meterá a sua colherada. Beba uma pinga para cobrar animo, e vamos +dar-lhe uma lição mestra já que cá veiu meter o nariz.</p> + +<p>Tomou novo alento ao beber, o frade, mas ainda aconselhou:</p> + +<p>—Lembre-se v. ex.<sup>a</sup> que os demonios teem o poder na mão, e por algum +tempo. Além da victoria do Pico do Selleiro, ainda foi por elles o +temporal que destroçou a esquadra de sua magestade, depois de tomar a +Madeira, quando vinha fazer o mesmo a esta desgraçada terra. Primeiro +que se arme em Lisboa outra frota para vir até cá ... Não se esqueça +v. ex.<sup>a</sup> d'isto. Agora são elles quem manda.</p> + +<p>Ao <span class="pagenum"><a id="page203" name="page203"></a>(p. 203)</span> entrar na sala, empertigou-se mais o morgado em respeito +ao scenario aonde ultimamente só raras vezes se mostrava, télas +escurecidas pelo tempo destacando nas paredes caiadas, o cadeirado de +coiro e pregaria amarela, o grande buffete carregado de finos buzios +rosados, de amplas conchas de madreperola, os reposteiros vermelhos +onde pompeava o seu brazão, com longes de capoeira.</p> + +<p>Saudou o juiz n'uma pirueta cortez:</p> + +<p>—Desculpe v. s.<sup>a</sup> a involuntaria demora. A justiça é como se entrasse +em minha casa el-rei, que vossa senhoria já representou, e em nome de +quem continuará um dia a exercer o mando, como é timbre de homens +d'ordem.</p> + +<p>Mordeu os labios o magistrado ao tratamento e ao remoque, mas, +contando com peior acolhimento, saudou por sua vez o morgado:</p> + +<p>—Está v. s.<sup>a</sup> em sua casa, e sou eu que tenho de escusar-me de o vir +incommodar.</p> + +<p>Córou Martinho Vasques á falta de excellencia, e o frade, que o +percebeu, muito animado pelo tom ordeiro do juiz, interveiu:</p> + +<p>—Permitta-me v. ex.<sup>a</sup>, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro, +que aponte a sua senhoria os achaques...</p> + +<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page204" name="page204"></a>(p. 204)</span> o corregedor, sem fazer caso, interrompeu-o, dirigindo um +novo golpe á prosapia de fidalgo:</p> + +<p>—Não julgue, senhor Soeiro, que venho aqui por causa das tristes +perturbações fomentadas pelos mal intencionados que exploram as +disenções de irmãos. Calcula decerto o grave motivo que me traz por +semelhante tempo...</p> + +<p>Ferido no seu orgulho, julgou conveniente o morgado dar-lhe desde logo +a lição projectada, e forçando um sorriso que o tornava mais feio, +respondeu:</p> + +<p>—Quem não deve, não teme, e se eu tivesse que receiar das justiças, +ou não estaria á mercê d'ellas, ou a minha porta achar-se-ia guardada, +com o direito de que sempre usaram em Portugal fidalgos de solar.</p> + +<p>Apontou para fóra o juiz, n'um gesto amavel:</p> + +<p>—Foi informado o tribunal de que ha aqui um quinteiro brigão, o que, +para evitar algum desacato d'esse desordeiro, me forçou a vir +convenientemente acompanhado, não por causa de v. s.<sup>a</sup>, mas por via +d'elle.</p> + +<p>Trocaram um olhar fr. Angelico e o morgado. A escolta lembrava logo +uma prisão. E a referencia á cilada fazia-lhe receiar que João ou o +veterano o <span class="pagenum"><a id="page205" name="page205"></a>(p. 205)</span> tivessem denunciado como conspirador.</p> + +<p>Triumpharam os propositos conciliadores que ditava o mêdo, e o frade +adiantou-se, muito curvado:</p> + +<p>—Perdôe v. ex.<sup>a</sup>, senhor corregedor, não lhe ter offerecido já alguma +coisa quente, uma chavena de café, uma magnifica aguardente da lavra +do fidalgo, para o preservar de uma peitogueira...</p> + +<p>Sorriu muito lhano o magistrado:</p> + +<p>—Lembrou bem vossa reverendissima, e acceito de bôa vontade, com o +que provo os meus amigaveis intuitos.</p> + +<p>Saíu por um momento, muito lépido, o frade a dar ordens; e o morgado, +fazendo um exforço, recalcou as offensas, e submeteu-se ao receio da +escolta:</p> + +<p>—Vejo que v. ex.<sup>a</sup> não me conhece, por attribuir á minha atitude +intuitos diversos da justificadissima surpreza...</p> + +<p>—Oh! De modo algum.</p> + +<p>—E como v. ex.<sup>a</sup> não é da ilha, permitta-me que me apresente, +fazendo-o tomar relações com os meus antepassados, que não lhe podia +ter dado melhor companhia, pois não a ha mais escolhida n'esta +<span class="pagenum"><a id="page206" name="page206"></a>(p. 206)</span> terra, nem lá fóra é frequente a que se lhe possa comparar.</p> + +<p>—Já os estive admirando assim que entrei, e conheço-os por tradicção, +como conheço a v. ex.<sup>a</sup> mais do que imagina.</p> + +<p>Envaideceu Martinho a homenagem do tratamento e, attribuindo-o ao +effeito d'essa berrante linhagem, insistiu no proposito de desenrolar +os pergaminhos.</p> + +<p>—Perde-se a minha geração na noite dos tempos, entroncando-se por +muitas vezes no ramo da dynastia, mas a mais proxima representante é +esta minha trisavó, que morreu em Odivellas em cheiro de santidade.</p> + +<p>Apontou um retrato de moldura oval, que tão bem ia ao rostinho envolto +na toalha:</p> + +<p>—É soror Thereza de Jesus, que em formosura desbancou a madre Paula, +senhora de Melres, e conhecida por isso no convento pela <i>Melrinha</i>, +ao que allude o segundo quartel do meu brazão, tres melrinhos de oiro +sobre purpura. Era já fidalga, filha do senhor de Villar de Corvos, +representado no primeiro quartel por aquelle corvo de prata em campo +azul, mas el-rei o senhor D. João V—e curvou-se como se estivesse na +presença do monarcha—houve por <span class="pagenum"><a id="page207" name="page207"></a>(p. 207)</span> bem, ao conceder-lhe o +alvará de legitimação do filho, dar a meu bisavô o titulo de moço +fidalgo da casa real, com serviço no paço.</p> + +<p>Orgulhava-se apontando outro retrato, um homemzarrão em corpo inteiro, +grande cabelleira em caracoes, tricornio debaixo do braço:</p> + +<p>—É meu visavô, D. Francisco, com quem, dizem, me pareço muito. +Batendo-se como um heroe, conquistou para o nosso nome um immorredoiro +prestigio, merecendo pelos seus feitos d'armas, e pela particular +predilecção que sempre nutriu el-rei por minha visavó, as doações com +que se creou o nosso morgado.</p> + +<p>Indicou-lhe outro retrato, em meio corpo:</p> + +<p>—Este é meu pae, D. Fernando, intimo d'el-rei o senhor D. Pedro III, +que o teve em alta estima. A esse prestigio de que sempre gosámos no +paço, deve minha irmã, D. Mafalda, o honroso logar de dama de honor da +rainha senhora D. Carlota Joaquina.</p> + +<p>Era a dama que enchia outra grande téla, em trajo de côrte, vestida a +azul e vermelho, toucado de plumas, opulenta de rotundidades que a +tornavam celebre nos lubricos bailados da rainha, sua rival em fama.</p> + +<p>Por <span class="pagenum"><a id="page208" name="page208"></a>(p. 208)</span> sua vez, indicou o juiz um retrato:</p> + +<p>—Este, que como os meninos postos de castigo está voltado para a +parede, brilha para mim atravez da tela. Conheço-o, é D. Bernardo, o +amigo dedicado do grande marquez de Pombal, que veiu a esta terra +cumprir a ordem de expulsão dos jesuitas. Porque não honra v. ex.<sup>a</sup> as +nobres tradições d'este seu avô? Porque não reconhece que as nossas +ideias teem raizes bem fundadas, e que já foram defendidas por bons +fidalgos, como v. ex.<sup>a</sup> classifica os da sua geração?</p> + +<p>Respondeu gravemente Martinho Vasques:</p> + +<p>—Este infeliz foi transviado, corrompeu-o o mal do tempo, e a sua +alma deve estar no purgatorio, aguardando o juizo final, feliz ainda +assim por levar em seu favôr os serviços que filhos e netos teem +prestado ao throno e ao altar. Os verdadeiros principios da minha +familia são os religiosos; nasceu e creou-se meu visavô no convento; +auxiliou meu pae a restauração religiosa da senhora rainha D. Maria, +que santa gloria haja, e foi minha irmã uma das fundadoras do culto da +Senhora da Rocha.</p> + +<p>Voltára o frade, á frente da creada com a bandeja de dôces, a chicara +do Japão com o café, e a garrafinha <span class="pagenum"><a id="page209" name="page209"></a>(p. 209)</span> dourada com aguardente, +a tempo de auxiliar a defeza dos bons principios:</p> + +<p>—O timbre e lustre da linhagem, excellentissimo senhor, é D. +Francisco, que em serviço d'el-rei e gloria do reino, andou no +cruzeiro d'Angola defendendo para a nação os rebanhos de escravos de +que os malditos estrangeiros queriam lançar mão. Perseguido um dia por +um negreiro hollandez refugiou-se na costa, e com tanta felicidade que +poude dar auxilio a um barco portuguez que carregava <i>ébano</i> para o +Brasil. Não queriam obedecer os malditos pretos, e elle, n'uma +patriotica decisão, desembarcou com uma manga de arcabuzeiros. Não +intimidaram aos ferozes selvagens os elmos, as couraças, nem as +grandes armas apoiadas nas forquilhas. E quando D. Francisco, ao +cravar no sólo a nossa gloriosa bandeira, viu que não se deitavam por +terra, curvando-se ante o lábaro sagrado que levára á Africa a +religião de Christo, mandou-lhes dar uma surriada de arcabuzes, +emquanto o navio os varejava de metralha. E de toda essa multidão +bravia que nutrira a louca ideia de, com settas de cana, emplumadas de +pennas de gallinha, defender mulheres e filhos, não ficou um para +amostra. Dos nossos apenas foi ferido esse bravo dos bravos, <span class="pagenum"><a id="page210" name="page210"></a>(p. 210)</span> +com uma azagaiada na nadega, que toda a vida o fez sentar de banda.</p> + +<p>Muito ancho, accrescentou o morgado:</p> + +<p>—É o feito que commemora aquella cabeça de negro, em fundo de prata, +do meu brazão; e a esse alto tropheu de familia corresponde aquelle +outro emblema, as mãos de ouro em vermelho, como fartando-se d'esse +sangue derramado em prol da nação.</p> + +<p>Muito risonho commentou o juiz, que tomára o café e provára um calice +da justamente celebrada aguardente:</p> + +<p>—Pois conheço-o tão bem, D. Martinho, que me admiro não vêr-lhe sobre +as armas o distinctivo dos bastardos reaes.</p> + +<p>—V. ex.<sup>a</sup> confunde-me!</p> + +<p>—É um direito que só lhe contestam os primos do Alemtejo, dizendo que +n'esse tempo entrava em Odivellas o sequito do rei, até ao ultimo +lacaio, que todas as freiras reclamavam os mesmos prazeres que a madre +Paula, que as santas monjas não recusavam a esmola das graças +corporaes, e que vibrava o mosteiro em alegres risos de muitas +creanças.</p> + +<p>—Sei que meus primos falam por inveja—retorquiu o <span class="pagenum"><a id="page211" name="page211"></a>(p. 211)</span> +morgado—mas não deixam de reconhecer a superioridade do meu ramo, +tanto que requestam para seu filho a mão de minha filha.</p> + +<p>Aproveitou o juiz o ensejo:</p> + +<p>—Desculpe v. ex.<sup>a</sup> o meu involuntario esquecimento. Como está sua +excellentissima filha?</p> + +<p>—Bem, muito obrigado a v. ex.<sup>a</sup></p> + +<p>—Já que me deu o prazer de conhecer os seus antepassados, desejava +ter a honra de ser apresentado á senhora D. Maria, cujos dotes de +espirito tanto me elogiam.</p> + +<p>Trocaram novo olhar o morgado e o frade, e acudiu fr. Angelico ao amo:</p> + +<p>—Sua excellencia disse «bem», porque felizmente não é coisa de +gravidade, mas a pobre menina não se póde levantar da cama, constipada +por esta frialdade...</p> + +<p>Estranhou o juiz n'uma inflexão grave:</p> + +<p>—Parece que o contrariou o meu desejo.</p> + +<p>—De modo algum.</p> + +<p>—Não m'o recuse pois. O seu ligeiro incommodo não a impedirá de certo +de vir á sala.</p> + +<p>Interveiu de novo o frade:</p> + +<p>—Trata-se de um caso de certa gravidade, que só <span class="pagenum"><a id="page212" name="page212"></a>(p. 212)</span> para não +assustar o senhor morgado, fingimos considerar sem importancia.</p> + +<p>—Acho conveniente—retorquiu o juiz—que se não meta onde não é +chamado. Dirigia-me ao senhor Soeiro, e creio que elle, que tanto se +orgulha da sua nobreza, não ignora que os fidalgos dizem timbrar em +não mentir.</p> + +<p>—E não mentem, senhor!—protestou o morgado.</p> + +<p>—Mantenha então a primeira resposta, de que sua filha se encontrava +de perfeita saude.</p> + +<p>Encolhera-se o frade, e Martinho Vasques dirigiu-se ao juiz, mudando +de tom:</p> + +<p>—Antes de mais nada: Que significa semelhante insistencia?</p> + +<p>—Sabe-o tão bem como eu.</p> + +<p>—Sinto apenas uma certa estranheza...</p> + +<p>—Tratando de sua filha, calcula decerto ao que venho. Vá, um bom +movimento! Ponha de parte os seus escrupulos e torne felizes aquelles +que uma honesta inclinação destinaram um ao outro.</p> + +<p>Passou no olhar do morgado um lampejo de rancor; mordeu furioso os +labios, mas conteve-se ante o receio de ser dado por cumplice dos +revoltosos, e de vêr confiscados os bens.</p> + +<p>Ainda <span class="pagenum"><a id="page213" name="page213"></a>(p. 213)</span> assim entendeu dar por finda a visita:</p> + +<p>—Se v. ex.<sup>a</sup> não tem outro assumpto a tratar...</p> + +<p>Redarguiu energicamente o magistrado:</p> + +<p>—Vejo que comprehendeu o sentido das minhas palavras. Tenho pois todo +o direito a uma resposta.</p> + +<p>Fazendo esforços para se não exceder, respondeu o morgado:</p> + +<p>—Minha filha casará com o primo D. Luiz de Sousa, a quem está +prometida ha muito.</p> + +<p>—É essa a sua ultima palavra?</p> + +<p>—Naturalmente.</p> + +<p>—Desejava conhecer a resposta da senhora D. Maria.</p> + +<p>—Lá vem outra vez com minha filha!</p> + +<p>Accorreu de novo fr. Angelico:</p> + +<p>—As filhas só podem ter a vontade dos paes.</p> + +<p>Tornou a pedir o juiz:</p> + +<p>—Satisfaça v. ex.<sup>a</sup> o meu pedido, e retirar-me-hei com a resposta da +senhora D. Maria, seja qual fôr.</p> + +<p>—Senhor, a sua insistencia!</p> + +<p>—Não se exalte. Quero estabelecer a harmonia e não desejo usar de +outros processos.</p> + +<p>—Ameaça-me?</p> + +<p>—Não. <span class="pagenum"><a id="page214" name="page214"></a>(p. 214)</span> Lembro-lhe apenas quem sou, e o respeito que me é +devido.</p> + +<p>—Pois lembre-se tambem em casa de quem está, diante d'estas nobres +figuras, e reconheça que, em vez da atitude pacifica em que se +disfarça, levou a sua audacia, apoiada na escolta, a ponto de me +tratar como um igual quando eu sou um fidalgo, e o senhor, apezar do +seu cargo não passa de um plebeu.</p> + +<p>—Assim é. Na minha familia não ha femeas que tivessem servido de cano +de esgôto para a transfusão do sangue real. Não me orgulho do que +envergonha gente de bem. Quanto a esses mostrengos de narizes +coloridos pela aguardente, só podem interessar a Lavater, que teria +muito que estudar n'aquellas physionomias. Quanto a mim nada me +importam, e de grande paciencia dei provas ouvindo-lhe as historietas +do brazão.</p> + +<p>E como o frade se interpozesse, querendo abrandar o morgado, que +bufava, apopletico:</p> + +<p>—Entremos no assumpto que aqui me traz. Recebeu a justiça uma queixa +de que jaz ha muito tempo em carcere privado e recebe maus tratos, a +senhora D. Maria. A insistencia com que recusou apresentar-m'a +confirma a queixa. Ora nem v. ex.<sup>a</sup> nem <span class="pagenum"><a id="page215" name="page215"></a>(p. 215)</span> pessoa alguma póde +encarcerar por seu arbitrio quem quer que seja.</p> + +<p>Martinho Vasques desabafou:</p> + +<p>—Sente-se bem, no irritante do seu falar, que por terem vencido uma +escaramuça, e haver o temporal desviado a esquadra, tem o rei na +barriga, e se lançam em desenfreadas vinganças. Agora trazem a +anarchia ao seio da familia! Já nem respeitam a santidade do lar!</p> + +<p>—O despotismo familiar não o respeitamos, nem o consentimos. É da +lei, que temos obrigação de cumprir.</p> + +<p>—Essas malditas leis constitucionaes...</p> + +<p>—Já as ordenações do reino o prohibiam, mas eram letra morta as +medidas que defendiam os fracos, pois gosavam da impunidade os +poderosos como v. ex.<sup>a</sup>. Hoje a lei é egual para todos, quer premeie +quer castigue. Eu proprio, por esta mesma diligencia posso ser julgado +se me exceder. São regalias que custaram muito sangue, e hão de custar +ainda mais. Mas o poder despotico de maltratar, de torturar, acabou +para sempre!</p> + +<p>—Se quer que o respeite—bradou o morgado—não alluda mais ás +intrigas tecidas por um atrevido que fui forçado a expulsar d'esta +casa.</p> + +<p>—Saiba, <span class="pagenum"><a id="page216" name="page216"></a>(p. 216)</span> senhor, que a justiça não se rebaixa a intrigas. Ha +uma queixa em fórma, com testemunhas, contra o seu procedimento.</p> + +<p>—Uma queixa d'esses reles soldados...</p> + +<p>—Foi apresentada por uma fidalga, sua parenta, a sr.<sup>a</sup> D. Victoria, +digna portanto de todo o credito.</p> + +<p>—Ah! Espertezas da menina Josepha da Esperança! Essa namoradeira é +outra que tal! Se eu lhe tivesse arrancado as orelhas não era ella que +ia enredar-me...</p> + +<p>—Vem dos mesmos illustres avós que v. ex.<sup>a</sup>, essa dama que maltrata. +Mas não me pertence apreciar se o seu procedimento é ou não de +fidalgo.</p> + +<p>Fazia esforços fr. Angelico por conter Martinho.</p> + +<p>O juiz dirigiu-se a elle:</p> + +<p>—Queira vossa reverendissima aconselhar o seu amigo. É conveniente +evitar aparatos incommodos. Não desejo chamar a minha gente para +testemunhar o encarceramento da senhora D. Maria, o que redundaria +n'um processo crime, com pena de cadeia. Basta-me que lhe possa falar +livremente, e esquecerei tudo o que desagradavel se tem passado.</p> + +<p>Arrastando-o para um canto, tentava o frade convencer o <span class="pagenum"><a id="page217" name="page217"></a>(p. 217)</span> +morgado, falando-lhe em voz baixa, acaloradamente mas, não conseguindo +decidil-o a apresentar Maria, ainda pretendeu abrandar o juiz:</p> + +<p>—Se é necessario o testemunho do ministro do Senhor, aqui estou eu +prompto a jurar, pelo santo nome de Deus, que s. ex.<sup>a</sup> é incapaz de +opprimir sua filha, sendo, pelo contrario, o modelo dos Paes.</p> + +<p>Já enfadado, retorquiu-lhe o corregedor:</p> + +<p>—Vá vossa reverendissima buscar a senhora D. Maria, ou obrigam-me a +praticar uma violencia, em que tambem será envolvido.</p> + +<p>Desculpou-se o frade para com o fidalgo, indicando-lhe o magistrado +n'um gesto:</p> + +<p>—Deus é contra o escandalo.</p> + +<p>Dirigiu-se á porta, para ir chamal-a.</p> + +<p>—Seja assim—disse Martinho Vasques—vá buscal-a, e este senhor +reconhecerá a sem razão das accusações dirigidas contra mim.</p> + +<p>Depois de a vir intimidando pelo corredor, apresentou Maria fr. +Angelico:</p> + +<p>—Aqui a tem, senhor.</p> + +<p>Occupada com a pacificação da ilha, a captura dos guerrilheiros, a +investigação das cumplicidades, não pudera a justiça intervir mais +cedo.</p> + +<p>Estava <span class="pagenum"><a id="page218" name="page218"></a>(p. 218)</span> Maria ao corrente dos seus esforços. Apezar da +continua vigilancia, recebia cartas que o moço de cavallariça lhe +metia da cocheira por uma greta do sobrado, onde introduzia as +respostas, depois de bater devagarinho para baixo.</p> + +<p>Durante mezes interminaveis ambicionára esse momento, mas agora +sentia-se fraquejar ao ter de queixar-se do pae, ao quebrar, ante o +novo amor, a linha de obediencia, o respeito de filha, o periodo de +submissão.</p> + +<p>Compadeceu-se do velho, cujo rosto transtornado vira de soslaio, e +sentia-se sem forças para realisar o que planeára no seu desespero.</p> + +<p>Mas horrorisava-a o que a mãe soffrera, captiva d'esse homem que, por +se dizer seu progenitor, por um direito que era alheio ao seu +consentimento, a maltratára de palavras, a magoára brutalmente, e a +fechára á chave no quarto, prohibindo-lhe os passeios, os +entretenimentos, a correspondencia, o convivio.</p> + +<p>No absoluto isolamento dos primeiros dias horrorisara-se ante a +annulação da individualidade, a suppressão da consciencia, que era a +educação preconisada pelo pae. Ao visitar d'antes a prima Josepha +envergonhava-se de não saber tocar cravo, de <span class="pagenum"><a id="page219" name="page219"></a>(p. 219)</span> não conhecer os +livros em que ella lhe falava, e que só a furto podia devorar, porque, +no entender do morgado, a leitura pervertia a mulher. Não sabia bordar +como ella, nem fazer os pequeninos enfeites que por toda a casa lhe +denotavam a educação e o gosto.</p> + +<p>Depois, quando o frade lhe foi aconselhar uma submissão ainda mais +completa, não só nos actos externos, mas nos seus sentimentos mais +intimos, revoltou-se energicamente. E saíu corrido fr. Angelico, +queixando se de que o demonio, por intermedio do jacobino, se apossára +inteiramente d'ella.</p> + +<p>Por fim a mãe, exasperada pelo abandono, vendo o frade senhor da casa, +pastoreando o rebanho das creadas, passou a odial-o, como odiava o +esposo, comprehendendo o baixo interesse que o ligára a ella, emquanto +do sacco das despezas lhe podia ir dando suas peças, e tornára-se +cumplice da filha, protegendo-lhe a correspondencia, avisando-a do que +elles projectavam, animando-a a insurgir-se, a libertar-se d'elles.</p> + +<p>E n'esses dias enfadonhos, n'essas infindaveis noites de inverno, +contava lhe insulto a insulto, offensa a offensa, grosseria a +grosseria, o seu martyrio de trinta annos.</p> + +<p>Prohibira-lhe <span class="pagenum"><a id="page220" name="page220"></a>(p. 220)</span> o marido as idas á egreja, sua unica distração, +mandando dizer missa na capella da quinta, para lhe tirar esse +pretexto de saír; impedira-a de fazer visitas; negára-a ás pessoas que +a procuravam; afastára-lhe os derradeiros parentes, que ainda +arrostavam com o seu mau modo para não a desampararem; offendera-a, +humilhára-a em intimidades suspeitas com serviçaes, com rendeiras, e +fizera d'ella aquelle trapo, envelhecera-a aos cincoenta annos, +moera-a, tornára-a negra por dentro, matára-a lentamente: que sem +punhal ou veneno tambem se mata!</p> + +<p>Seguia o pae já com ella o systema; nunca vira com bons olhos Josepha, +e por fim expulsára-a; queria entregal-a a um homem a quem +recommendaria os seus processos, e tornal-a-ia uma escrava por sua +vez.</p> + +<p>Oh! Antes morrer!</p> + +<p>Esperava dia a dia a promettida intervenção da autoridade, e tinha-a +antecipadamente como o momento em que passaria a pertencer a João.</p> + +<p>Como elle era differente! Como seria ditosa ao seu lado, no +enthusiasmo d'esse amor juvenil, na meiguice do olhar, na delicadeza +do seu trato, na suavidade das suas falas. Com que direito pois lhe +prohibiam <span class="pagenum"><a id="page221" name="page221"></a>(p. 221)</span> a sua parte de felicidade n'este mundo, se tivera +a suprema ventura de a poder realisar?</p> + +<p>Espreitava por dentro dos ralos a chegada da justiça, adivinhando-a em +todos os vultos que divisava ao longe, nos carroções que denunciava o +estrepito distante, e só n'essa manhã tivera a fortuna de a vêr +chegar.</p> + +<p>Tremendo, abraçada á mãe, a quem n'esses dias de dôr quizera mais que +em toda uma vida de afastamento, de seccura, aguardou que a fossem +buscar.</p> + +<p>Parecia-lhe de mau agouro a demora.</p> + +<p>Quando o frade a chamou, seguiu-a D. Perpetua n'um repente tão +aggressivo que fr. Angelico receiou um desacato.</p> + +<p>Que triste que era o seu noivado! pensava Maria, ao encaminhar-se para +a sala, crente de que a esse rompimento seguiria o consorcio.</p> + +<p>Revoltou-se o juiz ao vêr-lhe os olhos pisados de chorar, as faces +pallidas, cavadas, a agitação em que tremia.</p> + +<p>Pediu-lhe que se sentasse, e perguntou-lhe se era verdade ter sido +maltratada, e encontrar-se prohibida de toda a communicação.</p> + +<p>Acobardou-se <span class="pagenum"><a id="page222" name="page222"></a>(p. 222)</span> ella ante o tom grave da pergunta, e levando o +lenço aos olhos, rompeu a chorar, sem responder.</p> + +<p>—Não preciso melhor confirmação—disse o juiz erguendo-se, e +dirigindo-se a Martinho Vasques—É o caso da lei, abuso do poder +paternal. Sou pois forçado a cumprir o que se me requer, o deposito +judicial em casa do mais proximo parente.</p> + +<p>—Protesto contra semelhante violencia, e juro que lavarei esta +afronta com sangue!—bradou o morgado.</p> + +<p>E increpou violentamente a filha:</p> + +<p>—Basta de comedia, menina. Diga claramente se lhe fiz algum mal.</p> + +<p>—Nenhum, senhor!—respondeu ella, abandonada de toda a energia, +aniquilada pela commoção que, sobre a longa espectativa, lhe esgotava +a resistencia.</p> + +<p>Mas D. Perpetua, que ficára entre portas a vigiar, desconfiada, entrou +bradando como louca:</p> + +<p>—Senhor juiz, minha filha tem mêdo da fera! Este perverso bateu-lhe, +como me bate em mim, e a pobre ainda tem os braços cheios de nodoas +negras. É verdade que a tem fechada como a um cão, e manda ameaçal-a +todos os dias por esse frade, que <span class="pagenum"><a id="page223" name="page223"></a>(p. 223)</span> já se atreveu a levantar a +mão para ella.</p> + +<p>Por unica resposta, disse o juiz:</p> + +<p>—Tenha a bondade, minha senhora, de mandar a sua filha o necessario +para que me acompanhe immediatamente.</p> + +<p>Saíu promptamente a velha, dirigindo a fr. Angelico um olhar de +triumpho.</p> + +<p>Olhar injectado de sangue, labios tremulos, ergueu-se o morgado em +passo mal seguro, e dirigiu-se a Maria, que instinctivamente se +refugiou por traz do magistrado.</p> + +<p>Este interpoz-se, na energia da sua figurinha secca, nervosa, fronte +avincada, bôcca accentuada com firmeza, olhar vivo de argumentador, o +ar decidido de homem novo, habituado aos grandes lances:</p> + +<p>—Que faz, senhor?</p> + +<p>—Quero despedir-me de minha filha!—tartamudeou Martinho—Não me +assiste esse direito?</p> + +<p>Replicou o corregedor com repugnancia:</p> + +<p>—Esta senhora não o evitaria, se fosse um movimento sincero. Está +n'essa repulsão o seu maior castigo.</p> + +<p>Atirou-se o fidalgo, esmagado, para uma cadeira, os olhos queimados de +lagrimas de desespero, fechando os punhos em crispações nervosas:</p> + +<p>—Ah! <span class="pagenum"><a id="page224" name="page224"></a>(p. 224)</span> Que se eu a abraçasse, ia esta noite ceiar com Christo!</p> + +<p>Entrou D. Perpetua, já de manto, o rebuço deitado para traz, ajudou-a +a vestir a saia de merino, atou-lhe o capuz á cintura e deitou-lh'o +pela cabeça, emquanto ella se despedia, abraçando-a e beijando-a:</p> + +<p>—Perdôe-me o passo que vou dar, e peça a Deus que me faça feliz.</p> + +<p>—Não o serás!—exclamou o pae—porque eu te amaldiçôo! Permitta o +Senhor, filha desnaturada, que caias tão baixo que ainda venhas aqui +de rastos, coberta de bichos, pedir uma côdea á porta d'esta casa que +deshonraste. Deus te amaldiçôe, como eu te amaldiçôo!</p> + +<p>—Vamos, minha senhora, tenha coragem!—disse o juiz, dando o braço a +Maria, e encaminhando-se para a porta, sem se despedir, indignado por +semelhantes palavras.</p> + +<p>—Eu vou comtigo, não fico nem mais um dia n'esta casa—murmurou-lhe +ao ouvido D. Perpetua.</p> + +<p>E cobrindo-se poz-se ao lado da filha.</p> + +<p>De um salto, o fidalgo tomou a porta, e deteve-a, emquanto o juiz e +Maria se afastavam.</p> + +<p>—Onde <span class="pagenum"><a id="page225" name="page225"></a>(p. 225)</span> vaes?</p> + +<p>—Sigo minha filha.</p> + +<p>—Isso é que não. A ti governo eu! Has de obedecer-me cegamente, has +de ficar onde eu quizer, entendes bem, onde eu quizer!</p> + +<p>Fechou a porta violentamente, e empurrou-a para dentro.</p> + +<p>De joelhos, mãos postas, ella supplicava:</p> + +<p>—Por amôr de Deus! Deixa-me acompanhal-a!</p> + +<p>—Não! Has de pagar por ella.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Já na sége, para onde se deixára arrastar atordoada, reparou Maria na +falta da mãe, e pelos gritos comprehendeu o que se passava.</p> + +<p>Pediu ao juiz que a fosse buscar, mas elle desculpou-se com a lei, que +não o autorizava a tanto.</p> + +<p>N'uma grande amargura, Maria exclamou sentidamente:</p> + +<p>—Então, senhor juiz, para que serve a liberdade, se ainda se pode +opprimir uma mulher!</p> + + + + +<h2>X <span class="pagenum"><a id="page227" name="page227"></a>(p. 227)</span></h2> + + +<p>Agora viam-se, falavam-se, estavam ali juntos um do outro, no vão da +janela, um degrau acima do sobrado, como n'um nicho, sentados nos +poiaes de pedra, os joelhos tocando-se, as mãos dadas, tão perto os +labios, que só os impedia de passarem a tarde n'um longo beijo o olhar +vigilante da tia Victorina, a mãe de Josepha da Esperança, enterrada +na poltrona, roca á cinta, fiando massarocas para a Francisca da Bica, +grande tecedeira, que as lançava no tear em guardanapos, lençoes e +colchas, a trinta reis a vara.</p> + +<p>Para impedir o escandalo de se falarem da janela abaixo, +permittia-lhes, aos domingos, a dona da <span class="pagenum"><a id="page228" name="page228"></a>(p. 228)</span> casa, esse curto +desabafo em que pesava com a sua presidencia, impassivel, entre a +commoda negra, de pés recurvos, e a porta de vidraça da escura alcova +onde dormiam as raparigas.</p> + +<p>Nos outros dias, ao passar para o castello e para casa, via-a João ao +postigo do grande ralo, de riscas em diagonal pintadas a verde, com +remates de pinhas nos rectangulos divididos pelos columnellos, manchas +rubras de cravos nos recantos, no alto gaiolas de cana onde saltitavam +canarios.</p> + +<p>Dominava-os a tristeza da casa, em que pairava a viuvez de D. +Victoria, entristecendo a propria filha a quem faltava a distração das +tardes na quinta, para onde, mal acabava de jantar, partia sentada na +burrinha, que o moço tangia, escudeirando-a.</p> + +<p>Maria, olheirenta, emmagrecida, definhada pela vida tão differente que +ali levava, fechada n'uma casa pequena, acostumada como estava a +passar ao ar livre o dia inteiro, queixou-se, dominada por uma +inconsolavel melancholia:</p> + +<p>—João, desde que saí de casa só tenho chorado. Foi praga que me +rogaram. Ha de ser a maldição do pae!</p> + +<p>Em <span class="pagenum"><a id="page229" name="page229"></a>(p. 229)</span> vão pretendia elle reagir contra o desanimo que tambem o +ganhára:</p> + +<p>—Não penses n'isso. Temos que passar por este tributo. A nossa +felicidade fará esquecer estas horas amargas, e até teu pae se cançará +da sua teima, e ha de abençoar-te e querer-te ditosa.</p> + +<p>—Oh! O pae! Não o conheces bem. Mas ainda elle me queira sempre mal, +paciencia. O que mais me custa é a mãe.</p> + +<p>—Está costumada, não soffre tanto como tu.</p> + +<p>—Deu-lhe volta ao juizo a minha saída, ficou a emprehender n'aquillo, +e como lhe fechassem as portas atirou-se da janella abaixo para me vir +vêr.</p> + +<p>—Coitada.</p> + +<p>—Tem estado á morte, e eu receio que morra sem a tornar a vêr.</p> + +<p>Sobresaltou-se João:</p> + +<p>—Acautela-te! Póde ser um estratagema para te obrigarem a voltar a +casa.</p> + +<p>—Não. Infelizmente é verdade.</p> + +<p>—E como o soubeste?</p> + +<p>—Está por ahi tudo cheio.</p> + +<p>—Sim. Eu tambem o ouvi, mas tive-o por maroteira de fr. Angelico.</p> + +<p>Encarou-o Maria aterrada:</p> + +<p>—Foi <span class="pagenum"><a id="page230" name="page230"></a>(p. 230)</span> a tua funesta hostilidade á religião que te inspirou +esse falso testemunho, pois o frade nunca mais voltou á quinta desde +que eu vim para aqui.</p> + +<p>Elle ficou mais receioso ainda:</p> + +<p>—Pois tu defendes esse homem, que tanto mal nos fez, que denunciou a +minha visita, para que me espancassem, e se atreveu a pôr-te as mãos?</p> + +<p>—Não o defendo, não; mas temo por mim e por ti essa tua inclinação +contra tudo o que respeita á egreja. Ainda te póde dar de rosto.</p> + +<p>—Agora, Maria, é que tenho razão para estar triste porque já me não +pareces a mesma!</p> + +<p>—Não sei porquê—retorquiu offendida.</p> + +<p>Atalhou João, para não a desgostar mais:</p> + +<p>—Mas o que ha de tua mãe?</p> + +<p>—Assim que soube que o Malaquias, o mulato, moço do sineiro da Sé, +fôra encanelar-lhe a perna, mandei-o chamar, e só depois de lhe acenar +com uma pataca é que aquelle recancha se decidiu a vir coxeando até +cá, pois tinha ordem de não dizer nada.</p> + +<p>—Era então verdade?</p> + +<p>—Sim. Esteve mais de um mez sem se virar, abandonada de todos, e até +foi despedida uma creada porque a tratava caridosamente.</p> + +<p>—Pobre <span class="pagenum"><a id="page231" name="page231"></a>(p. 231)</span> senhora!</p> + +<p>—Essa veiu cá, e contou-me horrores. Vive no meu quarto, fechada como +eu, arrastando-se pegada a um pausinho. E dão-lhe convulsões que fica +de bôca á banda, tomada de um lado. Para ali vive como um môcho, a +penar, a penar, que antes o Senhor se lembrasse d'ella, Deus me +perdõe!</p> + +<p>Elle tomou uma decisão:</p> + +<p>—Pois meu amôr, em vez de a lamentarmos, o que não lhe serve de nada, +tratemos de a arrancar d'essa maldita casa. Requer-se uma acção de +separação, prova-se com o testemunho da creada e do mulato o carcere +privado, vae lá a justiça, e...</p> + +<p>—Exactamente como a mim. Mas de que me serviu, se sou tão infeliz +como d'antes ... talvez ainda mais? De que servem essas leis, de que +vocês fazem tantos escarceus, se me tiraram de uma prisão para me +meterem n'outra, não nos deixando casar, como desejamos, senão quando +eu tiver vinte e cinco annos; se permittem que uma pobre mulher esteja +encerrada, pela vontade do marido, embora um juiz ouvisse que ella não +queria viver em casa? Não, a felicidade não depende da alçada das +leis, nem da vontade dos homens; a felicidade está na mão de Deus, e +os que, como nós, o teem offendido, não <span class="pagenum"><a id="page232" name="page232"></a>(p. 232)</span> a podem esperar nem +n'este mundo, nem no outro!</p> + +<p>Encarou-a João, como a lêr-lhe no olhar, e depois respondeu commovido:</p> + +<p>—Dizes bem, dizes, não depende das leis a felicidade, nem de nós +proprios, mas dos que nos educaram, dos que nos formaram o espirito, e +que governam sempre dentro em nós. O que os principios porque nos +batemos hão-de impedir d'aqui em diante, é a sementeira do mal, o +obscurecimento dos cerebros, a aniquilação das consciencias.</p> + +<p>E sobresaltado por uma desconfiança, que como um relampago o +esclareceu:</p> + +<p>—Por mais que negues, anda frade n'isto! Não é assim?</p> + +<p>Accentuou-lhe a suspeita a confusão d'ella:</p> + +<p>—Dize-me tudo. Não pódes ter segredos para mim! Sou como teu marido, +desde que por minha causa abandonaste teu pae. Falaste com algum +religioso?</p> + +<p>Negou ella, frouxamente:</p> + +<p>—Não, não falei.</p> + +<p>—Perdôa, mas não te acredito. Veiu aqui alguma d'essas aves de mau +agouro!</p> + +<p>—Como me custa ouvir-te falar assim!</p> + +<p>—Mas <span class="pagenum"><a id="page233" name="page233"></a>(p. 233)</span> veiu ou não veiu algum santo ministro do Senhor?</p> + +<p>—O padre mestre, confessor de minha tia, sim. Vem cá muitas vezes +esse santo homem: que eu distingo bem fr. Angelico d'elle, mas nem me +falou, nem eu ouvi o que diziam.</p> + +<p>—Então é intriga tecida por elle! Tem cá entrada. Mas que admiração, +se em cada rua ha um convento, se a cidade é d'elles mais que dos +moradores!</p> + +<p>E aproximando-se muito, tomando-lhe as mãos, n'uma voz grave, mas +baixa como um murmurio, para que não o ouvisse D. Victoria:</p> + +<p>—Ah, minha querida Maria, que te querem roubar-me! Por amor de Deus +desvia-te d'elles, não lhes dês ouvidos, considera antecipadamente +como envenenadas as suas palavras! Querem separar-te de mim, pretendem +desforrar-se do meu triumpho. E se ainda me queres bem, como o +provaste, recusa-te a ouvil-os, quer falem em nome de tua mãe, que +desgraçaram, porque foram elles que a inutilisaram, pergunta-lh'o um +dia, se puderes; quer te falem em nome de Deus, que trazem sempre nos +labios, tendo o demonio no coração!</p> + +<p>Maria respondeu com lagrimas na voz:</p> + +<p>—Pois <span class="pagenum"><a id="page234" name="page234"></a>(p. 234)</span> pódes duvidar de mim, ao passo que dei! Eu, uma +morgada, esquecer-me do respeito que devo ao meu nome, por amor de ti! +Eu, uma fidalga, expôr-me a commentarios vergonhosos...</p> + +<p>E não poude mais. Afogada n'um choro convulso, que disfarçava tapando +a bocca com o lenço, virando para as gelosias os olhos requeimados.</p> + +<p>Então confessou-lhe tudo.</p> + +<p>A convite do padre mestre, resolvera ir D. Victoria a uma festa em S. +Francisco. Quizera leval-a comsigo, e aos favores que lhe devia não se +pudera recusar. Como ia de manto, ninguem a conheceria. Não tencionava +confessar-lh'o, para o não desgostar.</p> + +<p>Houve missa cantada, distrahiu-se com a cantoria e com as ceremonias, +que não via ha tantos annos, mas ao sermão cuidou morrer de vergonha.</p> + +<p>Bradára um frade contra os desacatos, falára de Christo crivado de +tiros, calices profanados em orgias, altares escolhidos para sentinas; +indicára horriveis castigos para os constitucionaes e para as mulheres +que os seguissem, alvejando intencionalmente as desgraçadas que +abandonavam os paes para seguirem soldados, arrastadas por baixos +apetites, tratando-as a <span class="pagenum"><a id="page235" name="page235"></a>(p. 235)</span> todas por furias e prostitutas, +indignas de se aproximarem da mêsa da communhão.</p> + +<p>Chorára a dentro do biôco, parecendo-lhe que, como bofetadas, a +escaldavam esses insultos, e que todos se voltavam para ella, como se +o seu peccado fosse visivel através do manto, e a fulminassem os +crentes em piedosa indignação.</p> + +<p>—Trahiram-te, meu pobre amor! Ah! que cobardes! Pois não comprehendes +que tudo isso foi forjado para te intimidar! Tua prima decerto não +chorou, tenho a certeza.</p> + +<p>—Até se levantou para se ir embora em meio do sermão, e já se zangou +com o padre mestre pela linda festa para que nos convidára. Elle +desculpou-se, coitado, que todos os sermões eram assim, que se tornava +necessario combater o erro, responder com a guerra aos inimigos da fé!</p> + +<p>—Hypocrita! Mas Christo prégou uma religião de paz e de amôr, e elles +querem o odio e a vingança! Christo foi o primeiro liberal, apontando +a egualdade e a fraternidade. Christo prégou a pobreza e a humildade, +e elles são ricos e poderosos. Acredita-me, os verdadeiros christãos +somos nós!</p> + +<p>Pelo bem que lhe queria, dava-lhe João a ingenua interpretação +<span class="pagenum"><a id="page236" name="page236"></a>(p. 236)</span> do tempo, porque só gradualmente a poderia emancipar.</p> + +<p>Ella sentia-se desafogada com as explicações, porque tambem a chocára +a grossaria, o baixo espirito interesseiro dos industriaes da fé.</p> + +<p>—Mas se vocês são assim, e eu acredito que, pelo menos tu, és como +dizes, para que horrorisam os crentes com esses aggravos?</p> + +<p>—Que lucravamos com isso, tontinha! São elles que os inventam e +praticam, e mostram depois as cruzes derrubadas, para incitarem contra +nós esse pobre povo que queremos emancipar.</p> + +<p>Por fim Maria resignou-se. Tinha de ser d'elle. Estava escripto que +para o conseguir haveria de passar todos aquelles tragos. Pois que +remedio. E João confiava mais n'aquelle fatalismo, na teimosia d'ella +em levar a sua ávante, que em a ter convencido das artimanhas +fradescas.</p> + +<p>Parecia-lhe que mal tinham começado a falar, e já os interrompia a +tosse pontual de D. Victoria.</p> + +<p>—Josepha, fecha-me aquella janela, filha. Em caíndo a tarde, começa a +peitogueira ás voltas commigo.</p> + +<p>Era da praxe n'esta altura interessar-se João pela saude d'ella, não o +fazendo ao principio para não cercear <span class="pagenum"><a id="page237" name="page237"></a>(p. 237)</span> o tempo da entrevista, +e poder demorar-se depois, um pouco mais, junto de Maria.</p> + +<p>Deixara-se sempre illudir a velha.</p> + +<p>—Aquelle peito era uma panela a ferver, a referver, á tardinha +principalmente. Bastante gastára em promessas a S. Braz e Santa +Margarida, advogados contra o mal da garganta, e a S. Tude, protector +contra a tosse, mas cada vez se sentia peior.</p> + +<p>Trazia João engatilhado um repertorio de drogas e esvasiava as +algibeiras de uma provisão de papeis e embrulhinhos.</p> + +<p>—Aquella era a receita de um xarope, invenção da tia Pulcheria, que +lhe tirára uma tosse convulsa, depois de já ter sido chamado o Craca +para lhe tomar medida do caixão; estas pastilhas fizera-as o senhor +Juvencio de encommenda, com tudo quanto havia de melhor e mais +approvado.</p> + +<p>E emquanto se prolongava o colloquio, deliciando-se D. Victoria em +queixar se de todos os seus males, Maria e Josepha, como na quinta, +riam enlaçadas ao fim do corredor, desafiando João.</p> + +<p>Pingavam trindades, erguia-se a velha com esforço e benzia-se +unctuosamente, murmurando as ave-marias e a gloria-patri; e João, +emancipado em casa, transigia ali, imitando-lhe os gestos e mexendo +os <span class="pagenum"><a id="page238" name="page238"></a>(p. 238)</span> labios em furtadelas de olhos para o corredor, no que +Maria julgava, enternecida, vêr uma satisfação aos seus escrupulos, +embora a maldosa Josepha a desiludisse, elogiando as inexgotaveis +manhas do namorado.</p> + +<p>Forçava-o o lusco-fusco a despedir-se, e então seguia pelo corredor, +já escuro, emquanto Josepha avançava á sala a fazer-lhes costas, +entretendo a mãe, e a sua verdadeira entrevista era quando elle a +beijava apaixonadamente, ao propositado ruido de abrir a porta da rua.</p> + +<p>Dissipavam-se os receios de Maria, defendendo-se inhabilmente dos +beijos:</p> + +<p>—Mas como tu estás atrevido. É da farda! Olha que te fica a matar! E +porque é que nunca me beijaste quando estavamos juntos?</p> + +<p>—Não sabia se gostavas de mim.</p> + +<p>—E agora sabes?</p> + +<p>—Percebe-se.</p> + +<p>—E porque não percebias então?</p> + +<p>—Nem tu mesmo o sabias.</p> + +<p>—Isso sabia. Mas que fosse tanto, não; confesso!</p> + +<p>Echoavam estrondos de catarrho. Descia elle, corrido, <span class="pagenum"><a id="page239" name="page239"></a>(p. 239)</span> e ella +voltava de olhos baixos, para ir ao ralo vêl-o sahir.</p> + +<p>Então D. Victoria chamava pela filha, que era o mesmo que chamar por +ella:</p> + +<p>—Venha para dentro, menina, não seja janeleira, que não foi essa a +sua creação. É uma maia, sempre impeirada á janela. Muito perdeu a +menina em seu pae, Deus lhe fale n'alma, que a havia de sopear.</p> + +<p>Meteram-se para dentro, fechou-se a casa, e no escuro da alcova o +terror reconquistou Maria.</p> + +<p>Queria desfazer-lhe Josepha a impressão das reprimendas da mãe:</p> + +<p>—Não faças caso, é genio. Sempre assim foi, mas não julgues que te +quer mal. Olha que foi ella quem, a meu pedido, requereu o teu +deposito e fez a queixa.</p> + +<p>—Antes o não fizesse.</p> + +<p>—Porque? Não estás contente em minha casa? Ligas importancia a +rabugices?</p> + +<p>—Não é a tua casa, filha, é a minha situação que me afflige. Se +soubesse que havia de estar tanto tempo á espera de edade, não saía de +casa, não desgostava a mãe, não offendia o pae.</p> + +<p>—É <span class="pagenum"><a id="page240" name="page240"></a>(p. 240)</span> o que dizes agora. Mas não podias aturar aquella vida.</p> + +<p>—Nem posso supportar esta! Se tivesse casado, tapava a bôca a essa má +gente. Mas assim, fóra de casa, vendo João, recebendo-o, é ser +esbandalhada por essas linguas perversas. E hei-de passar cinco annos +assim? Oh! não posso, não posso!</p> + +<p>—Ó filha, mas se tu não casas com elle é porque não queres. Vão +juntos á missa, e quando o padre estiver quasi quasi a deitar a benção +digam, de mãos dadas, as palavras sacramentaes, que se recebem por +marido e mulher, e o padre, que não pode parar a reza por nada d'este +mundo, tem por força de deitar a benção, deita-a, está deitada, vocês +casados, com toda a egreja por testemunha, e salta logo para casa +d'elle. E se teu pae quizer melhor que se ponha ás bôas e faça boda de +estadão. E até o João pode combinar-se com o padre, que os ha muito +constitucionaes, e é dito e feito.</p> + +<p>—Uma mulher como eu não dá semelhante passo—protestou Maria—Por ter +saído de casa não deixo de ser quem sou, e nunca praticarei um acto de +que se possa fazer pouco.</p> + +<p>—Então queixa-te de ti.</p> + +<p>—Hei de casar com elle, espere quanto tempo esperar, que <span class="pagenum"><a id="page241" name="page241"></a>(p. 241)</span> +não sou das que se esquecem, nem das que se cançam. Mas ou hade ser +como deve ser, ou nunca; ainda que estale de saudade. Se eu sou assim!</p> + +<p>—Mas não vejo que te resignes, te disponhas a esperar com paciencia. +Afinal que queres tu?</p> + +<p>—O que quero? Nem eu sei, Josepha, nem eu sei!</p> + +<hr class="third"> + +<p>Assim passaram longos dias, até que a assustaram boatos de nova +esquadra.</p> + +<p>Falavam com orgulho os miguelistas do seu grande poder: vinte e um +navios, com trezentas e quarenta peças e seis mil homens, entre +soldados e marinheiros; uma alçada para julgar summariamente os +constitucionaes, e um carrasco para os despachar com promptidão.</p> + +<p>Bem sabiam os liberaes o que succederia se fosse tomada a ilha.</p> + +<p>Figuravam-se-lhes os autos de fé do miguelismo: procissões de +condemnados, descalços, entre frades, levando horas da cadeia á forca, +a entoar o <i>miserere</i> deante das capellas do percurso; depois +enforcados no <span class="pagenum"><a id="page242" name="page242"></a>(p. 242)</span> longo ceremonial que com cada um absorvia uma +hora, aggravando a tortura moral dos que esperavam, e divertindo mais +damas e frades que davam vivas a D. Miguel e á religião, acenando com +lenços, applaudindo as execuções.</p> + +<p>Estremeciam de horror ao recordar a viuva de um enforcado morrendo de +afflição; o pae de um rapaz, assassinado pela lei, suicidando-se de +desespero; uma pobre mãe affrontada pela exposição da cabeça do filho, +espetada n'um poste deante da vidraça!</p> + +<p>Era uma perseguição em massa que degradára mil e seiscentas pessoas, +forçára a esconderem-se cinco mil, arrastára á emigração treze mil e +setecentas, mantinha vinte mil sob a vigilancia de suspeitos, tinha a +dentro dos carceres mais de vinte e seis mil pessoas de ambos os +sexos, e sequestrára os bens de oitenta e duas mil familias!</p> + +<p>Longe de os acobardar, incitavam-os esses terriveis exemplos a +combaterem com desespero.</p> + +<p>O conego Ferraz, sabendo bem o que o esperava se triumphassem os +miguelistas, trazia comsigo um frasquinho de veneno, para não caír +vivo em poder do carrasco.</p> + +<p>João procurava tranquilisar Maria, ácêrca dos resultados da lucta. +Assim como se tornára a ilha, agora elevada <span class="pagenum"><a id="page243" name="page243"></a>(p. 243)</span> á cathegoria de +reino, o alvo do odio absolutista, tambem fôra o ponto de concentração +dos liberaes, e assim já tinham para se oppôr ás forças inimigas +alguns reforços de emigrados, armas e munições vindas de Inglaterra, e +um general como Villa-Flôr para dirigir a defeza.</p> + +<p>Todo o littoral estava defendido, nos poucos pontos onde a costa +permittia a abordagem.</p> + +<p>Uma manhã foi João precipitadamente despedir-se, porque ia para a +villa da Praia com os Voluntarios da Rainha.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Enthusiasmado com a vinda da esquadra, contando como certa a victoria, +tão grandes os recursos accumulados, arrancou-se o morgado do +isolamento da quinta, onde cada vez bebia mais, para esquecer a +offensa de Maria, para não ouvir os gritos da mulher, e montando a +cavallo dirigiu-se ao convento de São Francisco.</p> + +<p>Ha muito que fr. Angelico não ia á quinta.</p> + +<p>Quando lá fôra a justiça, ao sentir o chocalhar de ferragens da +traquitana, voltára-se desesperada D. Perpetua para o frade:</p> + +<p>—Se <span class="pagenum"><a id="page244" name="page244"></a>(p. 244)</span> não me defendes, Angelico, eu confesso-me a meu marido e +então acabou-se tudo!</p> + +<p>Não permittiam illusões o rosto congestionado, a bôca espumante, o +olhar desvairado, de louca. Fôra logo despedir-se de Martinho Vasques +o franciscano, pretextando o receio da denuncia do juiz e das queixas +de Maria.</p> + +<p>Era bom que n'esse mesmo dia o vissem no templo, votado ao culto, para +desmentir a accusação tanto de temer.</p> + +<p>E sem consentir que o morgado mandasse pôr o carroção, arregaçou o +habito, deitou o capuz pela cabeça, e fugiu debaixo d'agua ás +pernadas, até se abrigar n'um portal.</p> + +<p>Que lhe quereria o morgado? perguntava a si proprio, ao ir recebel-o.</p> + +<p>Dissipou-lhe porém todo o receio a attitude de Martinho, ainda na +grande paixão da desfeita recebida:</p> + +<p>—Deixe-me desabafar, fr. Angelico, que ha tanto tempo não o faço. Já +não ha religião, já não ha respeito filial, já não ha Deus!</p> + +<p>Mãos postas, olhos em alvo, voz de cana rachada, exclamou o frade, +simulando um devoto horror:</p> + +<p>—Não <span class="pagenum"><a id="page245" name="page245"></a>(p. 245)</span> blasfemes, creatura, contra o teu Creador! Curva-te á +vontade do Altissimo, que a tua expiação está terminada!</p> + +<p>E mudando de tom:</p> + +<p>—Alegrar, senhor morgado, que ha grandes novas!</p> + +<p>—Por isso vim, fr. Angelico. É então certo que voltaremos aos bons +tempos?</p> + +<p>—Só podiam duvidar gentes de pouca fé.</p> + +<p>—Pois eu julguei-me abandonado do céo!</p> + +<p>—Espere em Deus, que é pae da misericordia! Sempre ha de haver +frades, sempre ha de haver religião! Vae em dezanove seculos! Havia de +acabar assim, quando já resistiu ao proprio demonio, na pessoa de +Luthero; ao anti-christo encarnado em Bonaparte? Estes pandilhas não +valem nem um nem outro.</p> + +<p>—E agora?</p> + +<p>—Será forçada á obediencia paterna sua infeliz filha...</p> + +<p>—Já não tenho filha!</p> + +<p>Era essa a phrase feita que desde então tivera para todos, mas não +correspondia sinceramente ao seu sentir.</p> + +<p>Queria-a em casa, como desaggravo, como affirmação do <span class="pagenum"><a id="page246" name="page246"></a>(p. 246)</span> poder +paternal, como homenagem á sua categoria.</p> + +<p>—Responde v. ex.<sup>a</sup> como quem é, mas eu procedi como devia, de que lhe +peço perdão, caso não appoie os meus passos.</p> + +<p>—Que quer dizer?</p> + +<p>—Nunca abandonei a sua causa, comquanto os deveres do meu ministerio, +que me impõe a cega obediencia ao poder constituido, me impedissem de +ir receber as suas ordens...</p> + +<p>E aqui, já seguro de que não fôra descoberto, perguntou:</p> + +<p>—Como está a senhora D. Perpetua, depois d'aquella triste fatalidade? +Pobre senhora!</p> + +<p>—Não sei nem quero saber. Nunca mais verei nem uma nem outra.</p> + +<p>Tinha porém, curiosidade de conhecer o que fizera o frade:</p> + +<p>—Ia dizendo...</p> + +<p>—Que não me dei por vencido pelos inimigos de Deus. Pratiquei n'esta +egreja uma das obras de caridade, ensinando os ignorantes, castigando +os que erram, e a filha desobediente ouviu n'um terrivel sermão...</p> + +<p>—Já sei.</p> + +<p>—Mas <span class="pagenum"><a id="page247" name="page247"></a>(p. 247)</span> não foi só isso! Os miseraveis julgam que com garatujas +n'um pedaço de papel governam tudo, e afinal somos nós quem governamos +e havemos de governar sempre. O nosso reino não é d'este mundo, as +nossas armas são espirituaes, e as crenças religiosas ligam-nos para +sempre os cordeirinhos embora desgarrados, promptos a voltarem ao +aprisco mal os ameaça o lobo da heresia.</p> + +<p>—Acabe!—pedia o morgado impaciente.</p> + +<p>—Trouxe sempre vigiada a innocencia por outro grande pastor d'almas, +o nosso padre mestre, que tem feito ver a sua prima D. Victoria o +peccado que commetteu. Ella, que é uma mulher de vergonha...</p> + +<p>—Uma descarada!—protestou Martinho Vasques—Fazer-me o que me fez! +Mas não admira, a fama que ella sempre teve, com a casa cheia de +frades...</p> + +<p>Tocado na corda sensivel, voltou fr. Angelico ao pathetico:</p> + +<p>—Calumnias, meu senhor, calumnias espalhadas pelos filhos de Satanaz. +Não ha nenhum director espiritual d'essas santas senhoras que não +tenha sido conspurcado na sua virtude, na sua innocente castidade. Até +sei pelas suas creadas que a senhora D. <span class="pagenum"><a id="page248" name="page248"></a>(p. 248)</span> Perpetua, n'aquellas +terriveis convulsões em que parece possessa do inimigo, diz contra mim +coisas de se abrir o chão, decerto inspiradas pelo proprio demonio, +como vingança contra o varão forte que por tanto tempo lh'a defendeu +das garras.</p> + +<p>E n'um suspiro, como não obtivesse resposta, voltou a D. Victoria:</p> + +<p>—Ella tem feito todo o possivel para a desgostar, e não se opporá a +que lh'a tirem d'ali.</p> + +<p>Atraiçoou-se o morgado, pondo de parte a rigidez apparente:</p> + +<p>—Dava metade do que possuo para a fazer voltar a casa, sem que, pelo +triumpho dos nossos, a forçassemos, por forma a fazer rebentar a +castanha na bôca aos que se regosijavam com a minha vergonha.</p> + +<p>—Pois dê v. ex.<sup>a</sup> com que eu possa mover o ceu a nosso favor, e +tentarei o milagre.</p> + +<p>Sabendo-lhe as manhas, ia Martinho Vasques prevenido de dinheiro, a +vêr se, a troco de alguma esmola para o convento, lhe deixavam levar o +indispensavel commensal.</p> + +<p>—Pois aqui tem para principio. E quanto mais depressa, melhor.</p> + +<p>—É agora propicia a occasião. Está o seductor seguro <span class="pagenum"><a id="page249" name="page249"></a>(p. 249)</span> na +Praia. Mas pretendem recolher-se ao castello, com as familias, se +forem derrotados á beira-mar, e se lá a metem, então, meu senhor, é +que é fazer-lhe uma cruz. Ficaria perdida a senhora D. Maria, entre +semelhante malta. Da mesma sorte se os nossos desembarcarem +rapidamente, como ha de permtir o ceu, tomando-a por liberal, +violental-a-hão, e á prima, como é do seu dever, para exemplo das +malditas mulheres que preferem as creaturas de Satanaz aos amigos da +religião. Portanto, se podermos recolher desde já a filha prodiga, +teremos mais socego para os ver esganar, pois virá por ahi quem saiba +da póda.</p> + +<p>—Que tenciona fazer?</p> + +<p>—O que Deus me inspirar.</p> + +<p>—Mas quando, quando?</p> + +<p>—Elle o determinará em sua divina sabedoria.</p> + +<p>E como o morgado, apesar de devoto, não ficasse muito satisfeito:</p> + +<p>—Olhe, vá v. ex.<sup>a</sup> a pé por essa cidade, mande a besta esperal-o fóra +dos portões, e a todos que lhe perguntarem por sua esposa dê-a como +perdida, que poucos dias lhe restam de vida, para que a senhora D. +Maria o saiba. Ensinarei o recado ao padre mestre, para dizer a D. +Victoria que é um caso de <span class="pagenum"><a id="page250" name="page250"></a>(p. 250)</span> consciencia encobrir por mais +tempo a uma filha a agonia da mãe. Depois eu darei conta de mim.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Uma tarde, tendo ensaiado fr. Angelico um ar compungido, certo da +afflicção de Maria pelas más noticias da mãe, foi a casa de D. +Victoria.</p> + +<p>Mal o viu, atirou-lhe Josepha com a porta, mas o frade insistiu, +percebendo que a mãe a reprehendia, ao saber quem era.</p> + +<p>Em voz de prédica, perguntou da escada se a senhora D. Maria estava em +carcere privado, e se era contra a Carta Constitucional levar a uma +filha noticias de sua mãe.</p> + +<p>Foram abrir-lhe, e Maria, apezar dos exforços de Josepha para a fechar +na alcova, pediu por amor de Deus novas de D. Joanna.</p> + +<p>Elle, n'uma suavidade melada, ergueu os olhos, e declamou:</p> + +<p>—Deus manda perdoar as injurias, esquecer as fraquezas do proximo, e +consolar os afflictos! Fiz ideia como estaria a sua alma, e +arrisquei-me a este passo, que pode ser tão mal apreciado...</p> + +<p>—Diga-me a verdade!—implorou Maria, atterrada pelo exordio.</p> + +<p>—Peço-lhe <span class="pagenum"><a id="page251" name="page251"></a>(p. 251)</span> que não se assuste. A senhora D. Perpetua está +gravemente doente, mas ainda ha esperanças de a salvar.</p> + +<p>Maria recriminou a prima:</p> + +<p>—Ou haverá ou não! Eu bem t'o dizia, Josepha, eu bem t'o dizia.</p> + +<p>Mas ella continuava a disputal-a:</p> + +<p>—Não te deixes enredar!</p> + +<p>—E com isto não enfado mais—disse o frade, cumprimentando muito +correcto, um ar de beatitude a escorrer-lhe pela face alvar—Vim só +trazer esta palavra de consolação, como é dever do meu ministerio. Sua +mãe não está na agonia, como para ahi espalharam, o que me forçou a +vir tranquilisal-a. Eu ainda confio n'um milagre!</p> + +<p>Quiz demoral-o D. Victoria:</p> + +<p>—Então, nem sequer se senta! Faça-me um bocadinho de companhia...</p> + +<p>—Muito obrigado, minha querida senhora, mas a minha presença não +agrada...</p> + +<p>—Peço-lhe perdão pelo que toca a minha filha. Se ella tivesse um pae +que a castigasse...</p> + +<p>Aproveitou o frade o pretexto, e pegaram-se n'uma interminavel +palestra, emquanto Josepha conseguia arrastar a prima para dentro.</p> + +<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page252" name="page252"></a>(p. 252)</span> ahi Maria respondeu-lhe frenetica:</p> + +<p>—Que mau sestro tomaram todos de me governar. Foi o pae, a mãe, +depois o João, tua mãe, e agora tu! Pois eu tenho mais juizo que vocês +todos, não preciso de tutôres.</p> + +<p>—Estás sendo muito enganada!—repetiu Josepha.</p> + +<p>—Deixa-me! Deixa-me!</p> + +<p>E refugiou-se na torre, a meditar, sentada n'um bahu, a cabeça apoiada +nas mãos, os olhos vidrados muito abertos, as fontes latejando.</p> + +<p>Depois ergueu-se, enxugou os olhos, e foi direita á sala.</p> + +<p>—Que vaes fazer!—perguntou Josepha, interpondo-se:</p> + +<p>—O que devo! Larga-me.</p> + +<p>E arrependendo-se:</p> + +<p>—Bem sei que me queres bem, mas perdôa. Oh! Ninguem se veja como eu +me vejo!</p> + +<p>No estoicismo da resolução, dirigiu-se a fr. Angelico da Immaculada:</p> + +<p>—Muito obrigada a vossa reverendissima pelas suas noticias. O meu +desejo era ver a mãe...</p> + +<p>—Não esperava menos do seu coração de filha!—exclamou radiante +<span class="pagenum"><a id="page253" name="page253"></a>(p. 253)</span> o frade—É esse effectivamente o seu dever.</p> + +<p>—Ai, Maria, que caiste no laço!—bradou Josepha,—Estás doida? Estás +doida?</p> + +<p>Mas ella, sem a attender, dizia ao frade:</p> + +<p>—Se pudesse ser...</p> + +<p>—Hei de fazer o possivel, alma santa!—respondia fr. Angelico, +revirando os olhos.</p> + +<p>—O pae não ha de querer ...—continuava Maria, emquanto D. Victoria +continha a filha.</p> + +<p>—Oh! Não conhece a grandeza do seu coração! Foi muito offendido, +realmente, mas é pae, é pae!</p> + +<p>—Aconselhe-me então o que devo fazer.</p> + +<p>—Foi Deus que a inspirou. Faça o que disse. Venha vêr sua mãe. Eu +acompanho-a, e respondo pela licença do senhor morgado.</p> + +<p>—E quando? quando?</p> + +<p>—Quanto mais depressa melhor, que a vida e a morte estão nas mãos de +Deus!</p> + +<p>Josepha ainda irrompeu, avançando para o frade:</p> + +<p>—O que falta aqui é um homem para o esbofatear!</p> + +<p>Mas nada poude demover Maria, muito tremula, batendo os dentes, +convulsa, á ideia de ir vêr a mãe.</p> + +<p>Ao <span class="pagenum"><a id="page254" name="page254"></a>(p. 254)</span> saír, com a tia e o frade, ainda Josepha a puchou para +dentro:</p> + +<p>—Ó doida! E ao João, que lhe hei de dizer?</p> + +<p>E como ella balbuciasse que ia só vêl-a, e que voltava, tapando a +bôcca, abafando-se no biôco do manto para não a ouvirem soluçar, +gritou-lhe do alto da escada:</p> + +<p>—Mal empregado rapaz! Tu não o mereces!</p> + + + + +<h2>XI <span class="pagenum"><a id="page255" name="page255"></a>(p. 255)</span></h2> + + +<p>Pelo caminho, baloiçada na traquitana que tomaram no alto das Covas, +ainda lhe echoavam aos ouvidos as palavras de Josepha:</p> + +<p>«Não o merecia».</p> + +<p>E o que diria elle ao saber que destruira n'um momento o que bastante +lhe custára a conseguir? Era capaz de descrer d'ella.</p> + +<p>Roubar-lh'o-ia a prima, que tanto sympathisava com elle?</p> + +<p>Mas não havia de deixar morrer a mãe á mingua. Deus não lh'o +perdoaria, e para sempre esse peccado ameaçaria <span class="pagenum"><a id="page256" name="page256"></a>(p. 256)</span> a sua +felicidade. João, que era prudente e rasoavel, comprehendel-a-ia.</p> + +<p>E se Josepha a intrigasse? Logo aquella triste coincidencia de estar +na Praia. E ao lembrar-se que elle se encontrava em perigo de vida, +davam-lhe furias de saltar do carro, de fugir para junto da prima.</p> + +<p>Que cobardia a sua! Abandonal-o quando se arriscava, envolvido em tudo +aquillo por causa d'ella!</p> + +<p>Dominava-a, porém, o pavoroso abandono da velha, e via-a como a creada +a pintara, gaguejando, a cama por fazer, atulhada em cisco, envolvida +em trapos! Desgraçada!</p> + +<p>Na sua ingenuidade parecia-lhe assim melhor para todos. Imaginava uma +grande scena de reconciliação, o pae abraçando-a quando se lhe +deitasse aos pés a pedir perdão, e fr. Angelico abençoando-a em nome +de Deus, limpando uma lagrima.</p> + +<p>Agora não lhe parecia mau o frade, n'aquelle ar compungido.</p> + +<p>E crendo possivel pôr tudo em bem, ainda esperava falar a João na +propria quinta, e talvez, quem sabe, ganhar pouco a pouco, pela +submissão, a boa vontade do pae, podendo ser que viesse a casar por +consentimento d'elle.</p> + +<p>Esfarrapava n'um momento a suave visão o echo dos <span class="pagenum"><a id="page257" name="page257"></a>(p. 257)</span> gritos de +Josepha, a lembrança das indignações de João quando soubera do +desagravo de S. Francisco.</p> + +<p>Sendo impossivel contentar a todos, limitar-se-ia ao que a levava ali, +vêr a mãe, tranquilisar-se a respeito do seu estado.</p> + +<p>Chegaram, e, como se já contassem com elles, ninguem appareceu.</p> + +<p>Deixou-as o frade na casa de entrada, e foi em procura do morgado.</p> + +<p>Recordou-se da cilada armada a João, dos maus tratos a que só a +justiça a pudera arrancar, mas, longe de intimidar-se, sentiu que a +emancipára a saída da casa paterna, dando-lhe a consciencia da propria +individualidade.</p> + +<p>Alarmou-a um grito da mãe, um grito de desespero, rouco, abafado pela +porta, vindo do interior.</p> + +<p>Ia accudir-lhe, mas conteve-a D. Victoria, e ella propria reconheceu +então que perdera o direito de entrar como d'antes.</p> + +<p>Appareceu o frade, mostrando-se confuso, transtornado, apparentando +vir offegante como de uma grande discussão.</p> + +<p>Repetiam-se os gritos de D. Perpetua e, como incommodado por elles, +disse á pressa fr. Angelico:</p> + +<p>—Accusou-me <span class="pagenum"><a id="page258" name="page258"></a>(p. 258)</span> de desleal o senhor morgado por a ter +introduzido aqui. Diz que a senhora só póde entrar n'esta casa como +filha arrependida e submissa, e até sem esperança de um perdão, que só +a sua conducta poderá merecer. E Deus me perdoe ter procurado +semelhantes trabalhos por minhas mãos!</p> + +<p>Teve Maria um impeto de voltar para traz, mas os gritos da mãe +pregavam-a ao sobrado.</p> + +<p>Fez-se luz no seu espirito, não duvidou que o frade fôra expressamente +preparar-lhe aquella situação.</p> + +<p>E n'um relance comparou a vida que levava em casa da prima, sem poder +vêr João, senão vigiada. Era-lhe mais doloroso tel-o junto a si, sem +poder desabafar.</p> + +<p>Ali, tratando da mãe, parecer-lhe-ia menos penosa a espera.</p> + +<p>Decidira-se em casa de Josepha, apesar das suas solicitações. Tinha +por melhor esperar ali.</p> + +<p>E respondeu gravemente ao frade que sim, que ficava de vez, desde que +o pae não duvidava acceital-a.</p> + +<p>Despedira-se, applaudindo-a, D. Victoria, desejosa de se vêr livre +d'ella, e Maria, de olhos enxutos, cabeça <span class="pagenum"><a id="page259" name="page259"></a>(p. 259)</span> erguida, caminhou +após o frade em direcção ao seu quarto, aonde agora estava D. +Perpetua.</p> + +<p>Então fr. Angelico, retomando o ar de dominio de outros tempos, +reprehendeu-a severamente:</p> + +<p>—Lembre-se que a sua desobediencia trouxe a deshonra e a desgraça a +esta casa, e que a doença de sua mãe é o justo castigo de Deus.</p> + +<p>—Representou bem o seu papel—respondeu-lhe Maria—mas não julgue que +me illudiu, nem creia que se ha-de rir de mim.</p> + +<p>Abriu a porta, fechada por fóra, e tirou a chave. No leito soltava a +mãe phrases incomprehensiveis.</p> + +<p>Sabia que a esperavam, e os seus berros tinham sido para que não +ficasse, para que não tornasse a caír nas mãos dos seus algozes.</p> + +<p>O estado em que a viu fortaleceu Maria na consciencia do dever +cumprido.</p> + +<p>Vibrava o seu corpo fragil n'uma energia de ferro. Olhava para tudo +como senhora, como morgada, e revoltava-a aquelle abandono.</p> + +<p>Ia ao pae para reclamar um medico, e dar então ordem á casa.</p> + +<p>Mas D. Perpetua, temendo ficar só, chamou-a afflicta para junto de si:</p> + +<p>—Filha, <span class="pagenum"><a id="page260" name="page260"></a>(p. 260)</span> não sei se tornarei a vêr-te, que elles são capazes +de te fechar, ou até de te estrangularem, como já me teem querido +fazer.</p> + +<p>E o seu espirito doente confundia a realidade com a allucinação:</p> + +<p>—Quero confessar-me, Maria, que estou para Deus me levar; mas ha-de +ser a ti, filha, que não creio no fr. Angelico nem nos outros +malditos!</p> + +<p>Sacudia-a a convulsão, entortavam-se-lhe os olhos, ficava-lhe a bocca +arrepanhada ao lado, asphyxiava-a a escuma sanguinolenta, que Maria +limpava compadecida.</p> + +<p>—Quero confessar-me a ti, sim, filha—voltava ella n'uma insistencia +pavorosa, olhos esgazeados, a voz cortada, difficil de perceber—Tenho +um grande remorso, um peccado mortal, e tu, que estás uma mulher, +pódes comprehender-me e perdoar-me.</p> + +<p>Pedia-lhe que socegasse, mas ella tinha a ancia de falar:</p> + +<p>—Fui rapariga como tu, e não tive a felicidade de encontrar um rapaz +como o que amas, que é o brio dos homens, ao que tem feito por ti. Ha +tanto quem possa ser feliz e tanto quem nunca o poude ser! São +destinos. Eu enganei-me sempre, e querendo tornar-me <span class="pagenum"><a id="page261" name="page261"></a>(p. 261)</span> ditosa +fui ludibriada por teu pae, e vi-me casada com elle sem amor.</p> + +<p>N'uma explosão de raiva e nojo, em arrancos como se vomitasse, +contou-lhe a torpe ligação ao frade, a maneira como elle a explorára e +como por fim a tratava, unindo-se ao marido contra ella.</p> + +<p>Então Maria comprehendeu o sentido das allusões de João e Josepha, +certos sorrisos surprehendidos em beiços de creadas.</p> + +<p>Quando a viu mais tranquilla, aliviada pelo desabafo da sua miseria, +saíu Maria, cada vez mais resoluta.</p> + +<p>Encontrou o frade no escriptorio:</p> + +<p>—Fez-me minha mãe certas revelações, creio que me comprehende...</p> + +<p>E a perturbação de fr. Angelico mostrava-lhe que sim.</p> + +<p>—Não voltará a esta casa, sob pena do pae nunca mais o deixar saír. +Desculpe-se como puder. Aos seus processos, não lhe será difficil.</p> + +<p>Muito enfiado, levantou-se fr. Angelico da papeleira, e deixando a +escripta como estava, compoz o habito, desejando vêr-se muito longe +d'ali.</p> + +<p>Encontrou o morgado á meza, e não teve meio de esquivar-se +immediatamente.</p> + +<p>Podia <span class="pagenum"><a id="page262" name="page262"></a>(p. 262)</span> levantar suspeitas, que lhe seriam fataes, e +resignou-se a acompanhal-o ao jantar, no supplicio de não poder comer.</p> + +<p>Repentinamente Maria entrou e dirigiu-se a Martinho Vasques:</p> + +<p>—A sua benção, pae.</p> + +<p>Tomou-lhe a mão e beijou-lh'a, sem que elle, perturbado, podesse +retirar-lh'a.</p> + +<p>Sempre de pé, declarou n'uma voz sumida:</p> + +<p>—Conforme as suas palavras, procurarei merecer o seu perdão tratando +da mãe.</p> + +<p>Pôz o morgado os olhos no prato, e não respondeu palavra.</p> + +<p>Muito servilmente, para captar a benevolencia d'ella, interveiu o +frade:</p> + +<p>—Volta a viver como outr'ora, foram as palavras de seu pae. Tenha a +bondade de sentar-se—e offereceu-lhe uma cadeira—que eu tenho de +levar até ao fim a missão de que me encarreguei.</p> + +<p>Chamou a creada, mandou pôr-lhe talher, e voltou-se para Martinho, que +continuava comendo, como se nada fosse com elle:</p> + +<p>—O senhor morgado perdoará, porque Deus tambem perdoou!</p> + +<p>—Com licença, pae!—disse Maria sentando-se.</p> + +<p>E <span class="pagenum"><a id="page263" name="page263"></a>(p. 263)</span> emquanto redobrava o pasmo de Martinho, ella adquiria maior +firmeza, mais sangue frio.</p> + +<p>Reapossava-se do seu logar, succedia á mãe como dona da casa, para +depois succeder ao pae como senhora absoluta de tudo.</p> + +<p>Mal teve ensejo, ergueu-se o frade, a despedir-se.</p> + +<p>—Tenha a bondade de mandar immediatamente um bom medico, que não se +póde abandonar uma creatura de Deus no estado a que chegou a mãe.</p> + +<p>Para se furtar ao cumprimento da filha, ergueu-se Martinho e +agarrou-se ao franciscano:</p> + +<p>—Venha d'ahi, fr. Angelico, beber uma golada para o caminho.</p> + +<p>Sentiu-os afastar, discutindo, e então chamou as creadas, +reprehendeu-as, tratando-as de desmazeladas, e levou adiante de si, +tremendo de medo, para arranjarem o quarto, as que ainda ha pouco se +riam da velha.</p> + +<p>No dia seguinte, depois de almoçarem sem trocar palavra, veiu o +medico, que observou demoradamente D. Perpetua.</p> + +<p>Levou-o Maria á presença do pae, a quem elle expoz a situação da +doente. Devia ter sido chamado mais cedo. Talvez nas Caldas da Rainha +podesse obter melhoras. Ali ficaria entrevada de todo.</p> + +<p>Ouviu-o <span class="pagenum"><a id="page264" name="page264"></a>(p. 264)</span> o fidalgo com má sombra, sem responder.</p> + +<p>No seu impenetravel mutismo, meditava na maneira de sahir d'aquella +situação, peior que a anterior, a casa governada pela filha, o exemplo +d'essa arrogancia mostrando-lhe bem o que ella faria quando João +voltasse da Praia e começasse a rondar por ali.</p> + +<p>Animava-o, porém, a confiança de que triumphasse a esquadra +miguelista, desfazendo o castello de cartas do minusculo reino +liberal.</p> + +<p>Então recolhel-a-ia a um convento, até a levar para Lisboa, ou a casar +com o primo, se ainda a podesse render pela clausura, ou a fazel-a +professar.</p> + +<p>Descançava Maria no banco do pomar, onde passava as tardes com João, +pensando n'elle, quando uma creada a foi chamar:</p> + +<p>—Venha vêr, menina, venha vêr que coisa tão linda. É a esquadra do +senhor D. Miguel.</p> + +<p>Subiu assustada ao mirante, e viu ao largo, no pégo do mar, vinda de +oeste, a infinita linha dos navios, carregados de pannos, rebocando +enfiadas de grandes barcos que, n'uma bordada ao sul da Terceira, +tinham ido reunir ás ilhas de baixo para o desembarque. <span class="pagenum"><a id="page265" name="page265"></a>(p. 265)</span> +Rindo inconscientes, as creadas comparavam a resteas d'alhos a +correntêza de lanchas.</p> + +<p>Aterrava-a o grande poder, que ia talvez roubar-lhe para sempre o seu +noivo, a sua ventura.</p> + +<p>No torreão, munido de oculo, contava o morgado a nau, as fragatas, as +corvetas, e considerava como positivo o triumpho dos seus.</p> + +<p>Até ao pôr do sol viram-os sempre, parecendo fixos no mesmo ponto; mas +ao romper da manhã, quando Maria os procurava inquieta, já não os +avistou.</p> + +<p>Por volta das onze horas começaram a ouvir-se estampidos muito +distantes. Estava travado o combate, mas não era contra o castello, +cujas muralhas se avistavam da quinta.</p> + +<p>Só podia ser na villa da Praia, onde estava João!</p> + +<p>E n'uma desesperada angustia figurava-se-lhe o horror de carnificinas, +como a do Pico do Selleiro.</p> + +<p>Ao começo da noite, encostada ao ralo, ouviu passar homens do +trabalho, que vinham da cidade, falando alterados, decerto commentando +as noticias da batalha.</p> + +<p>Gritavam «viva a nau encalhada», mas essa phrase nada lhe fazia +comprehender.</p> + +<p>Chamou <span class="pagenum"><a id="page266" name="page266"></a>(p. 266)</span> o pae um rancho, e perguntou-lhe o que se passára.</p> + +<p>Responderam n'uma attitude hostil, repetindo os vivas, e um explicou +que a nau <i>D. João VI</i> estava perdida.</p> + +<p>—Isso póde lá ser, homem de Deus—contestou Martinho—Uma nau de tres +pontes, que é a flôr da nossa marinha!</p> + +<p>Insistiram, e accrescentaram:</p> + +<p>—A nau encalhou, e os realistas foram todos pescados!</p> + +<p>Afastaram se repetindo o grito de alegria «viva a nau encalhada!»</p> + +<p>—Tinham vencido! É porque Deus os protegia—pensava ella—tão poucos, +tão fracos, creanças como João, e os academicos que tinham ido para a +villa! E elle? Saíria a salvo? Teria ficado ferido ou morto?</p> + +<p>Logo de manhã o creado da prima appareceu com um açafate á cabeça, a +pedir flôres.</p> + +<p>Era o signal da outra vez, querida Josepha!</p> + +<p>Agora sim, agora confiava no futuro.</p> + +<p>Escoltando <span class="pagenum"><a id="page267" name="page267"></a>(p. 267)</span> carros de bois, cheios de <i>pescados</i>, vinha João +entre camaradas, enfarruscados de polvora, espingardas enramadas de +louros, cantando na musica do toque da alvorada:</p> + +<p class="poem"> + Ai, meu Deus,<br> + Isto é que é rir!<br> + Vêr os caipiras<br> + Da Praia a fugir. +</p> + +<p>Ainda lhe parecia mentira!</p> + +<p>Quando ao desfazer-se o nevoeiro vira a bahia cheia de grandes navios +ameaçadores de portinholas, onde apontavam guelas de canhões, creu +tudo perdido, porque o grosso das forças liberaes estava a quatro +leguas, no castello, e ali só havia quinhentos homens, e onze velhas +peças montadas em ruinas de fortes, com simples soldados por +commandantes!</p> + +<p>Ribombou a artilharia da esquadra, guarnecida de trezentas e quarenta +bôcas de fogo, e ensurdecido pelo estrondear, cego do fumo, da +terraceira projectada pelas balas, julgou tudo fulminado, vencido de +vez.</p> + +<p>Mas ao subir a nuvem azulada, reappareceram os exiguos <span class="pagenum"><a id="page268" name="page268"></a>(p. 268)</span> +fortes liberaes, e os artilheiros, imperturbaveis, n'essa indifferença +do habito que, mais do que tudo, o surprehendia, apontavam agora, e +alguns tiros insignificantes, um como brinco de creanças, responderam +áquella unanimidade de canhonadas.</p> + +<p>Caíu logo uma retranca á nau, e a confusão da tolda demonstrou que os +de terra não tinham perdido a serenidade.</p> + +<p>No forte de S. José, o velho ilheu Manoel Caetano acompanhava os +filhos, artilheiros da costa, para os ensinar a fazerem as pontarias.</p> + +<p>—Senhor governador—dissera ao sargento commandante—feche a porta e +guarde a chave, porque estes mancebos são muito bisonhos, e ainda não +ouviram zunir pelouros.</p> + +<p>Ao cahir um d'elles, dirigiu-se ao que lhe restava:</p> + +<p>—Desvia teu irmão que já pagou a sua divida á patria, e tratemos de o +vingar!</p> + +<p>E só assim, dedicações firmes, convicções inabalaveis, poderam +resistir a esse infernal canhoneio de cinco horas.</p> + +<p>Avançaram ao desembarque mil e tantos homens, o dobro dos que +guarneciam meia legua de areal, e a vantagem do numero e da +concentração, deu-lhes logo <span class="pagenum"><a id="page269" name="page269"></a>(p. 269)</span> o alto do Facho e o forte do +Espirito Santo.</p> + +<p>Mas os liberaes voluntarios correram-os á bayoneta, varejaram-os com +penedos rolados á força de braços, e ao verem-os vencidos, luctando +com as ondas e a braveza dos rochedos, gritavam-lhes que não fizessem +mais fogo, porque os desgraçados, que tinham ordem de não dar quartel, +contavam ser tratados de egual fórma, e ainda disparavam loucos de +desespero.</p> + +<p>Desceram a rocha os constitucionaes, meteram-se ao mar para salval-os, +e João, entre outros, com agua pelos peitos, tirava a braços os +feridos, os estropiados, que a maré dentro em pouco afogaria.</p> + +<p>As victimas da tyrannia miguelista, que até ali os arrastára, olhavam +pasmados esses homens que, para os salvar, arriscavam a vida, e não +comprehendiam a sua fraternidade.</p> + +<p>Poz termo ao combate a chegada da columna de Villa-Flôr, voltando a +tiro as lanchas do segundo desembarque, e obrigando a frota a cortar +amarras e a fazer-se ao largo, podendo agora safar-se com a enchente a +nau, que logo ao começo da acção tocára o fundo.</p> + +<p>Vinha João calculando o decisivo alcance da victoria, que <span class="pagenum"><a id="page270" name="page270"></a>(p. 270)</span> +devia despertar echo em Portugal, levar as potencias a reconhecerem o +unico governo português legitimo, permittir a reunião de recursos para +o desembarque no continente.</p> + +<p>Ao chegar á cidade soube que Maria voltara a casa, perdendo assim a +vantagem a tanto custo conquistada, exactamente quando era a seu favor +essa absoluta consolidação da ilha.</p> + +<p>Conseguira mais o trama de um frade que a natural inclinação dos dois +corações; tivera mais força n'ella a intimidação do inferno que o +enthusiasmo da mocidade a impellil-a para elle.</p> + +<p>Oh! quanto custaria emancipar os espiritos acorrentados ao erro, na +treva da oppressão!</p> + +<p>Pedia-lhe perdão a carta d'ella por não o haver consultado, mas +davam-lhe a mãe agonisante, e a pobre estava realmente mal. Tanto +fazia esperar ali como em outra parte, já que não podiam casar tão +cedo. Não receiasse que a opprimissem, porque o soffrimento fizera-a +mulher. Tivera ensejo de conhecer a hypocrisia que dictava o +procedimento dos frades, e perdera o escrupulo religioso que tanto a +affligia. Concluia affirmando a sua absoluta fidelidade. Nunca fôra +tanto sua como agora.</p> + +<p>Não lhe importavam, porém, as palavras.</p> + +<p>Caíra <span class="pagenum"><a id="page271" name="page271"></a>(p. 271)</span> na anterior situação, estando de novo sob a alçada do +frade, que continuaria a governal-a apesar dos seus ingenuos +protestos.</p> + +<p>Escreveu-lhe desesperado, queixando-se da falta de confiança que +denotava a sua precipitação.</p> + +<p>Andava como louco. Que havia de fazer para a arrancar novamente d'ali?</p> + +<p>Tinha a certeza de que ella, só por orgulho, se não reconhecia victima +de uma perfidia, mas que devia anciar por se vêr livre da tyrannia +paterna, a que tanto custára arrancal-a.</p> + +<p>Appellou para Fulgencio, mas o boticario desilludiu-o:</p> + +<p>—Agora? Era pegar-lhe com um trapo quente. Ella quebrára o deposito, +recolhera a casa por <i>motu proprio</i>, já a justiça não podia ir +reclamal-a, houvesse o que houvesse. Sim, que isso de tirar uma filha +a um pae não era brincadeira, nem devia ser.</p> + +<p>Enternecido pelas supplicas sahiu a pedir por elle, mas voltou com más +novas.</p> + +<p>—Pódes dizer-lhe adeus. Pensa n'outra, que é o menos que falta. Não +tarda o velho pela barra fóra, que está na lista dos suspeitos, dos +que tramam na sombra e ajudam as guerrilhas por baixo de mão. O +<span class="pagenum"><a id="page272" name="page272"></a>(p. 272)</span> Villa-Flor é têso, faz elle muito bem; ainda não bebeu agua +das Covas, nem bebe, honra lhe seja; não se amolda, pois, aos costumes +da terra, e não quer saber se o Martinho é muito ou pouco fidalgo, se +vem de reis ou de lacaios. Isso é bom para nós, que na nossa +insignificancia ainda caímos de cocoras diante d'esses paparrotões, só +porque teem quatro avoengos, embora os renegassem como esse +refinadissimo «corcunda», tornado em lacaio dos sotainas, quando o avô +ajudou a expulsal-os, cumprindo as medidas de Pombal. Agora que a +victoria de 11 de agosto poz isto na ordem, é preciso limpar a terra +das hervas damninhas, porque, meu rapaz, ainda ha muito e muito que +fazer.</p> + +<p>Ouvia-o João, transtornado, sem comprehender bem.</p> + +<p>—Quer dizer que Maria se vae embora?</p> + +<p>—Não se trata d'ella, meu rapaz. O nome do pae é que eu vi na lista +dos deportados.</p> + +<p>Foi procurar emigrados, rapazes que o podiam comprehender melhor do +que o velho, e cuja deliberação no combate lhe ganhara a sympathia.</p> + +<p>—Mas afinal que queres tu?—dizia um academico—A rapariga gosta de +ti, não é verdade? Pois muito bem, vamos lá uma noite, tira-se para +fóra, <span class="pagenum"><a id="page273" name="page273"></a>(p. 273)</span> dá-se uma sova nos migueis que se fizerem finos, +metel-a em tua casa, e não queiras mais saber de deposito. Em teres +andado tanto tempo ao rabo da saia d'ella, e deixal-a assim levantar o +vôo, bem mostras que foste educado por padres e te tornaste um +maricas. Havia de ser commigo!</p> + +<p>—Ella é que não quer fugir. Que ha-de casar, e não sae d'ali.</p> + +<p>—Pois tira-se mesmo contra vontade, que quem governa somos nós, e +como tu és das caras direitas que estiveram na batalha da Praia, +fecha-se os olhos á rapaziada.</p> + +<p>—Preciso consultal-a primeiro...</p> + +<p>—O que tens é medo d'ella. Pois deixa-a ir para o primo, que em +chegando a Lisboa não se lembra mais de ti. Aquillo é que é terra!</p> + +<p>—Não durmas sobre o caso—lembraram-lhe—olha que elles não tardam a +ser corridos, que isto agora é dito e feito.</p> + +<p>Escreveu-lhe, pintando o horror d'essa separação. Estava preparado +para a ir buscar, acompanhado por amigos. Não havia perigo, e no caso +de força maior tinha ella completa justificação aos olhos de todos. E +que importava que os censurassem, se a sua felicidade os faria +esquecer tudo? Se não acceitasse é <span class="pagenum"><a id="page274" name="page274"></a>(p. 274)</span> porque nunca lhe quizera +bem, porque cedera apenas a um capricho.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Quando viu o pae exultando pela ordem de deportação, arrependeu-se +amargamente Maria de ter voltado a casa.</p> + +<p>Só então o morgado quebrára o teimoso silencio, para se dar como +disposto a tratar a mulher, mas procurando prender assim a filha á +esperança de salvar a mãe.</p> + +<p>Levando Maria para Lisboa, realisaria completamente o seu velho plano.</p> + +<p>Mas comprehendia bem que João devia tentar retêl-a, e queria influir +n'ella astuciosamente, já que pela força nada poderia contra os que se +firmavam em duas victorias, e esmagavam os adversarios.</p> + +<p>Para estar precavido, augmentára o numero de homens de trabalho, a +pretexto das vindimas, e tinha ali muitos dos guerrilhas do Pico do +Selleiro, com armas á mão.</p> + +<p>Sentia ella os olhares dos guardas, mas não duvidava que, se quizesse, +João a viria buscar n'um momento.</p> + +<p>Ainda <span class="pagenum"><a id="page275" name="page275"></a>(p. 275)</span> a carta d'elle a exaltou por instantes, na seducção da +aventura, mas repugnava-lhe o coxixar dos mantos apontando-a em +mancebia; as invejosas, as rivaes voltando-lhe a cara indignadas, e +mais uma vez impoz-se-lhe o orgulho.</p> + +<p>Respondeu-lhe com serenidade, meditando muito as palavras.</p> + +<p>Devia continuar como enfermeira da mãe, que adoecera por sua causa, e +agora ia procurar a cura. Demais, viver com elle, sem casarem, +tornava-se indigno d'ambos. Era descer, abandalhar-se aos olhos de +todos, e talvez até aos d'elle proprio. Haviam de unir-se dignamente, +como mereciam. De outra maneira, não. Só Deus sabia o que lhe custava +separarem-se, mas, como sua mulher, havia de ser a guarda da sua +honra, e não podia começar por sacrificar-lhe o bom nome. Se era +differente das outras, por isso mesmo lhe devia querer mais. Concluia +insistindo que, da mesma forma, ficariam separados quando elle +embarcasse na expedição liberal ao continente, e ella ficasse na ilha +á sua espera. Assim até era melhor, porque iriam encontrar-se em +Portugal. Até lá, pois, e ou seria d'elle, ou de ninguem.</p> + +<p>E como n'essa madrugada em que a chegada do navio, <span class="pagenum"><a id="page276" name="page276"></a>(p. 276)</span> que a +devia levar, o decidira a declarar-se, João, depois de a ter visto +embarcar desfallecida, olhos vermelhos, ao lado da cadeirinha da +entrevada, foi pôr-se á janela.</p> + +<p>Viu o barco largar d'entre as escunas da laranja, que baloiçavam como +berços o leve bojo, finas, veleiras, atrevidas; que fugiam debaixo de +tempo, antes que o suéste as désse á costa; ou redemoinhavam como +pedaços de cortiça, quando os inglezes, reconhecendo se impotentes +para arcarem com a tormenta, fechavam escotilhas e emborrachavam-se na +coberta, para não darem pelo naufragio.</p> + +<p>Oh! Mas d'esta vez iria após ella, como então resolvera, sentindo se +homem ante o risco de a perder; iria após ella, a essas terras onde +tudo se decidia, já sem a emulação de outr'óra, integrado nas mesmas +aspirações dos emigrados, tendo como elles ideias a affirmar, victimas +a remir.</p> + +<hr class="third"> + +<p>Desde então só tem um fito a sua vida, partir como ella, e essa ideia +fixa mantem-o atravez dos momentos de desanimo que tiram o caracter de +decisivo ao combate da Praia; a falta de dinheiro, a <span class="pagenum"><a id="page277" name="page277"></a>(p. 277)</span> intriga +diplomatica, as rivalidades da familia liberal.</p> + +<p>E essa obsessão leva-o a consagrar-se como um fanatico á conquista do +archipelago, com um navio adquirido por subscripção.</p> + +<p>Empolga-o a figura prestigiosa de D. Pedro, indo á ilha organisar a +expedição liberal, pôr-se á frente d'ella; e n'esse imperador de +trinta annos, que abdicára duas corôas, assignára duas constituições, +proclamára a independencia de um imperio, fôra grão-mestre da +maçonaria, e interpretára em dois hymnos a sua ingenua crença liberal; +n'esse principe, hostilisado em Portugal por ter emancipado o Brasil, +guerreado no Brasil por se preocupar com Portugal, via agora o +desenlace do conflicto, pela garantia de ordem que dava á Europa a +cathegoria do novo general dos que, desde Vinte, se batiam pela +liberdade.</p> + +<p>Todos queriam partir, e os officiaes emigrados, que não cabiam nos +quadros das forças, constituiram o Batalhão Sagrado, para terem a +honra de fazer parte do exercito libertador, aonde aos veteranos do +Rousillon, aos soldados da guerra da peninsula e da legião portuguêsa +ao serviço de Napoleão, se juntavam os voluntarios de 23, os +academicos, os <span class="pagenum"><a id="page278" name="page278"></a>(p. 278)</span> alistados agora, os pescados á esquadra, +estrangeiros vibrantes da indignação que agitava a Europa contra a +oppressão portugueza, toda a juventude sangrada aos Açores para a +libertação de Portugal.</p> + +<p>Ao partirem da ilha de S. Miguel, onde se concentrára a expedição, +cantavam enthusiasmados o novo hymno constitucional, que D. Pedro +escrevera ao vir lançar-se na lucta pela carta outhorgada, pelo throno +da filha:</p> + +<div class="poem"> +<p> + Da rainha e da carta o pendão<br> + Já nos mares se vê tremular,<br> + Nobre esforço que a honra dirige,<br> + Vae de Lysia a desgraça acabar.</p> + +<p>D'entre a noite no carcere horrendo,<br> + Resurgidos ao dia fatal,<br> + Inda vertem heroes portuguêses<br> + No patibulo o sangue leal.</p> + +<p>Nas entranhas da escura masmorra<br> + Onde reina da morte o terror,<br> + Outros mil inda esperam constantes<br> + Igual sorte c'o mesmo valor.</p> + +<p>Mesta <span class="pagenum"><a id="page279" name="page279"></a>(p. 279)</span> Lysia em gemidos implora<br> + Que as algemas lhes vamos quebrar;<br> + Já nas praias as mães lagrimosas<br> + Pelos filhos se escutam bradar.</p> +</div> + +<p>A cada quadra repetia-se o estribilho:</p> + +<p class="poem"> + Foge, foge, ó tyranno e não tentes<br> + Ferreo sceptro mais tempo suster;<br> + Que nas aras da patria juramos<br> + Viver livres, ou livres morrer. +</p> + +<p>Como um signal de que o ceu respondia ao appello do hymno</p> + +<p class="poem"> + Nossos votos são carta e rainha;<br> + Nosso guia quem ambas nos deu;<br> + Defendemos a causa do mundo;<br> + É por nós a justiça do ceu. +</p> + +<p>appareceu azul o sol, velado por tons de anil, pondo em tudo reflexos +ceruleos, casando se ás côres da nova bandeira azul e branca, as côres +do laço liberal de Vinte, o branco da espuma da onda, o puro azul do +ceu de Portugal.</p> + +<p>Fez-se <span class="pagenum"><a id="page280" name="page280"></a>(p. 280)</span> ao largo temerariamente, em velhos transportes +comboiados por uma esquadrilha, esse punhado de homens, cerca de sete +mil e quinhentos, o numero que a tradicção para sempre fixou, n'uma +commovida gratidão.</p> + +<p>Realisava-se emfim o longo sonho do exilio, e, ao saltarem no +Mindello, prostravam-se os expatriados, beijando o querido solo, cujas +poças de sangue reflectiam as rubras tintas d'uma nova aurora.</p> + +<p>Apertando convulsos as armas fraticidas, com que eram forçados a +apoiar os gritos de liberdade, os votos de egualdade e fraternisação, +pediam novas forças a essa terra que ainda defenderiam cobrindo-a com +o retalho do seu corpo, osculando a na crispação da ultima agonia; +sentiam-se felizes ao tocarem-a, embora para morrerem n'ella, +ameaçados por oitenta mil soldados, e pelo fanatismo catholico mantido +por frades e jesuitas entre as populações a libertar.</p> + +<p>Na patria ensanguentada, apunhalada pelos pés das forcas, oscilavam +garrotados, como pendulos sinistros, marcando á tyrannia a hora fatal.</p> + + +<h2>XII <span class="pagenum"><a id="page281" name="page281"></a>(p. 281)</span></h2> + + +<p>Observava Maria através das grades.</p> + +<p>Iam as ruas d'Evora coalhadas de soldados miguelistas, e ao convento +chegavam novas da retirada de Santarem.</p> + +<p>—É o fim da guerra, descança—dizia-lhe uma freira de meia edade, +amarela de cera, vislumbres de juventude no olhar vivo, que tambem +observava para fóra.</p> + +<p>—De quantas batalhas o tem dito—respondeu Maria com desanimo.</p> + +<p>E lançou um olhar de desesperança á fria cella, nua, sem conforto, á +cama, á arca, a essa cruz negra que era o sêllo do captiveiro.</p> + +<p>—A <span class="pagenum"><a id="page282" name="page282"></a>(p. 282)</span> guerra prolongar-se-ha como os pesadêlos que me +endoidecem n'este carcere.</p> + +<p>—Para que has de descoroçoar?</p> + +<p>Ouvia-a, muito abatida, sem desfitar os bandos.</p> + +<p>—O peior está passado—continuou a freira.</p> + +<p>E n'um suspiro:</p> + +<p>—És nova, tens vida para tudo.</p> + +<p>—Ha quanto tempo que m'o diz!</p> + +<p>—Desde que viestes.</p> + +<p>—Não podia ser mais feliz, encontrando tão bom coração.</p> + +<p>—Podias, se me tivesses conhecido mais cedo. Aconselhar-te-ia de +outra forma, e decerto não estarias aqui.</p> + +<p>—Agora não tem remedio!</p> + +<p>Continuavam a olhar para fóra.</p> + +<p>—Admira-me não avistar o pae.</p> + +<p>—Não deve ter muita vontade de ver-te, nem suppõe que terás grande +gosto em o encontrar—disse a freira com amargura.</p> + +<p>—O mal que elle me tem feito!—murmurou Maria.</p> + +<p>—Conheço muito bem o senhor meu primo! Era outro que tal o senhor meu +pae, Deus lhe perdôe. Tinham mulheres e filhas por escravas, e +serviam-se d'estas <span class="pagenum"><a id="page283" name="page283"></a>(p. 283)</span> prisões para se desfazerem das filhas +segundas, para imporem casamentos ás morgadas como nós. Infelizes +tempos! Desgraçadas que somos!</p> + +<p>Fixou Maria novos grupos, e perguntou:</p> + +<p>—Se o pae continua a acompanhar D. Miguel, como desde que saiu +desesperado d'aqui, deve ter vindo com elle.</p> + +<p>—Sim. Ha de estar na cidade.</p> + +<p>—Só se lhe succedeu alguma coisa...</p> + +<p>—Quanto a isso está descançada. O infante viu a guerra de longe, não +é como o senhor D. Pedro, que acode ás baterias debaixo de fogo, +aponta as peças como um artilheiro, e apparece no ardôr da peleja a +animar os seus.</p> + +<p>—A não ser da vez que foi ao Porto para incitar o cerco...</p> + +<p>—Que por signal andou abandalhando-se em Braga, com mulheres de má +nota, fazendo flostrias a cavallo para lhes agradar, emquanto que +outros morriam pela sua teimosia de ter cadeias atulhadas de +innocentes, e conventos cheios de desgraçadas como nós.</p> + +<p>Na preocupação da rua, Maria respondeu:</p> + +<p>—Então é porque não quer ser visto.</p> + +<p>—Sabe <span class="pagenum"><a id="page284" name="page284"></a>(p. 284)</span> os sentimentos que inspira.</p> + +<p>E encarando com ella.</p> + +<p>—Não é por lhe querer bem que pensas n'elle, não é verdade?</p> + +<p>Maria titubeou:</p> + +<p>—Apesar de me pretender enterrar em vida, apesar do que fez á mãe...</p> + +<p>—Se elle tivesse vergonha nem voltava a esta terra, onde veiu deixar +os ossos da desgraçada. Soube-se dos seus maus tratos, e todos lh'o +levaram a mal, acredita. Olha que muitos que se dizem realistas, e o +applaudem e a outros que taes, é só por medo d'essas viboras, que se +vingam nos inermes, e fogem a sete pés dos que estão armados.</p> + +<p>Maria abraçou-se a ella, chorando:</p> + +<p>—Perdôe-me, D. Anna, mas como lhe hei de querer, se me tem tratado +cruelmente, se torturou a desgraçadinha, se lançou João no horrôr da +guerra...</p> + +<p>—Deixa-o, filha, não penses mais n'elle. É como se tivesse morrido. E +pede a Deus que ainda lhe possas pagar em caridade, nos seus ultimos +dias, que os ha de ter bem negros!</p> + +<p>—O mal que lhe desejo me venha a mim.</p> + +<p>—Elle não pensa mais em ti, descança. Ha que tempos não me escreve, +não me força a responder-lhe n'essas <span class="pagenum"><a id="page285" name="page285"></a>(p. 285)</span> cartas em que te dou a +caminho da profissão, n'uma vida de penitencia.</p> + +<p>—Tem sido tão bôa para mim.</p> + +<p>—O que mais me custa, Maria, é conter-me, lançar ao papel essas +mentiras, em vez de lhe dizer as duras verdades que merece!</p> + +<p>—Ninguem o convence.</p> + +<p>—E elle tirava-te logo d'aqui.</p> + +<p>—Se suspeitasse o que a tia tem sido para mim!</p> + +<p>—Não ha remedio senão dissimular, que felizmente ha de ser por pouco +tempo.</p> + +<p>—Agradeço lhe a bôa intenção, D. Anna, mas já não espero ver fim a +isto.</p> + +<p>—Pois não vês que a falta das cartas em que elle teimava para que +professasses, não querendo que um dia viesses a casar, mostra que já +não tem cabeça para nada? Sempre que os liberaes ganhavam um palmo de +terreno, apertava-me elle para que te lançassem o habito. Agora não +tuge nem muge. Que mais queres?</p> + +<p>—Talvez desconfie da sua amizade por mim.</p> + +<p>—Como? se só tu a conheces, e não ha muito tempo, porque ao principio +fui para ti o que tinha sido para todas, retrahida, reservada! Quando +me encerraram aqui, os escandalos com que enxovalham a <span class="pagenum"><a id="page286" name="page286"></a>(p. 286)</span> casa +de Deus, que, como tens visto, serve para as mais torpes devassidões, +não me desmoralisaram como ao geral das que cá veem parar. Fizeram-me +conservar á parte, sem me prestar a ditos e mexericos, sem beberetes +na cella ou na grade, sem dar confiança a nenhuma. Segui sempre com +sympathia os liberaes, porque bem sabia que elles libertariam as +pobres enclausuradas. Mas não me manifestei aqui dentro, porque de +nada servia, como as freiras constitucionaes postas a pão e agua no +carcere, forçadas a penitencias vergonhosas diante d'essa communidade +de descaradas, transferidas para longe dos seus. Calei-me sempre, mas +trago no exercito libertador soldados armados e pagos por mim, por via +de encubertos liberaes d'esta terra que fazem o mesmo, a occultas, +para que não os roubem e assassinem.</p> + +<p>—Pois tem feito isso?</p> + +<p>—Tenho. Mas ai de mim se o suspeitassem!</p> + +<p>—Ah! D. Anna, que tem sido a minha verdadeira mãe!</p> + +<p>—Não quiz que soffresses o que eu soffri. E tenho o gosto de te haver +salvo de vez. Sem mim, ao teu genio assomado, caías nos enganos que te +armaram, professavas, e adeus para sempre.</p> + +<p>—E <span class="pagenum"><a id="page287" name="page287"></a>(p. 287)</span> se elle morrer, faço-o, tia!</p> + +<p>—Está a acabar a guerra, foste feliz!</p> + +<p>—Quantas vezes o tenho acreditado, e quantas a realidade me +entristeceu!</p> + +<p>Recordou a sua longa espectativa, passando por alternativas dolorosas, +ora esperando João no dia seguinte, ora julgando nunca mais o vêr.</p> + +<p>Acompanhara-o em espirito, no desembarque no Mindello, e tivera a +mesma desillusão que elles, ao appellarem para os manifestos, na +repugnancia de derramar sangue, contando mais com a adhesão em massa +do que com a dolorosa guerra civil.</p> + +<p>Exultára na recepção do Porto, a cidade em delirio, damas de azul e +branco, lançando mais flores a esses queridos soldados, por entre a +tempestade dos vivas aos libertadores.</p> + +<p>Mas em breve tornaram-se em lagrimas os risos, em crepes os laços +bicolores, em chuva de granadas as de rosas, e em bravas vivandeiras +as donzellas, que os realistas offereciam em pasto á soldadesca, como +premio do assalto.</p> + +<p>Como desejaria estar entre ellas, correr animosa ás trincheiras, +servir polvora e bala aos luctadores, accudir aos feridos, estar ao +lado de João quando o trouxeram n'uma maca, exangue!</p> + +<p>Logo <span class="pagenum"><a id="page288" name="page288"></a>(p. 288)</span> sobre as noticias da entrada triumphal viera a +sangueira, a chacina dos combates, investidas ferozes contra o Porto, +e a cidade em risco de invasão, laços constitucionaes deitados fóra, +gente prestes a fugir pela barra, militares rapando os guerreiros +bigodes.</p> + +<p>Tão pouco estavel era ainda a causa, que d'um momento para o outro se +receiava a prisão, o supplicio; e os que, como João, luctavam, tinham +agora a dupla certeza da morte, ou no campo, ou na forca.</p> + +<p>Que desditosa influencia a sua n'esse rapaz, arrancado ao socego da +terra, ao conforto da casa, para dormir ao relento, passar a fome do +cerco, tremer inquieto sob esse maldito bombardeamento, usado pelos +miguelistas em requintes de tortura, em tiros descompassados, para +maior sobresalto, á hora do jantar para tirar o socego da meza, em +pontaria aos hospitaes para augmentar o horror.</p> + +<p>Tremia aos symptomas do cannibalismo da lucta, o prazer do pormenor em +que um general communicava terem ficado os bravos officiaes do +Batalhão Sagrado com as cabeças abertas de meio a meio, pelos celebres +dragões de Chaves que depois se passaram para os liberaes; o auto de +fé planeado pelos frades <span class="pagenum"><a id="page289" name="page289"></a>(p. 289)</span> de S. Francisco, deitando fogo ao +convento para queimarem o batalhão de caçadores 5, quando os soldados +dormiam fatigados da batalha de Ponte Ferreira!</p> + +<p>Para a fazerem professar, no interesse do dote, na avidez de dadivas +do morgado, no odio ao noivo liberal, aggravavam-lhe as freiras as más +novas, dando os constitucionaes como perdidos, e mostrando o evidente +castigo do ceu na morte de certos voluntarios academicos, a quem +attribuiam profanações no convento de Santo Antonio do Livramento, de +Angra, accusando-os, como outr'ora aos Templarios e aos Judeus, de +fazerem alvo da imagem do santo no nicho da frontaria.</p> + +<p>A todos os momentos receiava a noticia de que João morrera, e um dia +as freiras, qual mais havia de arreliar «a do malhado», foram dar-lhe +hypocritas condolencias porque elle recolhera ao hospital, gravemente +ferido n'uma d'essas teimosas sortidas que dizimavam a guarnição.</p> + +<p>Tivera-o por morto, como lhe insinuavam, negando frouxamente, mas +falando-lhe das consolações que a egreja reservava a todas as dôres, +insistindo em que se votasse ao divino esposo, já que tão +misericordiosamente a libertára dos laços do mundo.</p> + +<p>Tomára <span class="pagenum"><a id="page290" name="page290"></a>(p. 290)</span> então a tia, para com a abbadessa e as mais ferozes +madres, o compromisso de a decidir, e, recolhendo se a catechisal-a, +abrira-se com ella.</p> + +<p>Começára por uma reprehensão, em que o olhar brilhára apaixonado, e o +rosto pallido, enrugado, se fôra animando gradualmente, até dar longes +de outros tempos, da juventude impetuosa e ardente, do momento em que +amára e fôra amada, em que se tornára mulher e devia ser mãe.</p> + +<p>—Que mal que fizeste em resistir! Como desperdiçaste a mocidade. Em +nome d'umas formulas vasias sacrificou-te, e a elle, o teu orgulho! E +se te morrer? Que recordação te fica para evocares o breve tempo que +não volta mais?</p> + +<p>Insistira, ao vêl-a debulhar-se em lagrimas:</p> + +<p>—Chora, desabafa, que deves sentir um mortal remorso; chora as duas +vidas que despedaçaste, e convence-te de que nunca o amaste, porque o +verdadeiro amor não raciocina, porque é a suprema lei da vida, tudo se +lhe amolda, e elle não!</p> + +<p>—Que hei-de fazer agora, senão professar—bradava ella, +arrepelando-se.</p> + +<p>—O teu orgulho ainda! Cala-te, vaidosa, que darias mais uma pessima +freira. Vive para elle, é o teu dever.</p> + +<p>—Para <span class="pagenum"><a id="page291" name="page291"></a>(p. 291)</span> elle? E se morreu?</p> + +<p>—Vive para a memoria d'elle, mas nunca a dentro d'um mosteiro, porque +deves lembrar o mal que d'estas casas te adveiu.</p> + +<p>—Então que hei-de fazer?</p> + +<p>—Porque não pensaste em fugir d'aqui, em ires acudir-lhe, pôr-te á +sua cabeceira, tratal-o, acarinhal-o, cerrar-lhe os olhos se Deus o +levar, como fazem as fortes mulheres que estão velando o leito +d'outros feridos, as que não desampararam os maridos na retirada e na +emigração?</p> + +<p>E como ella a olhasse como pasmada:</p> + +<p>—É que ha mulheres, e mulheres; e as mais felizes, como tu, pelo amor +que lhes dedicam, são afinal as que menos o merecem!</p> + +<p>—Tenha dó de mim, não me trate d'essa fórma!—supplicava ella.</p> + +<p>Então compadecera-se D. Anna, e pedira-lhe, mudando de tom:</p> + +<p>—Não tornas mais a falar em profissão, haja o que houver?</p> + +<p>—Não, não torno.</p> + +<p>—Pois bem. Ouve-me agora serenamente. Que te disseram d'elle? Que +estava ferido? Pois bem, ha-de curar-se, e eu tenho maneira de saber +exactamente o <span class="pagenum"><a id="page292" name="page292"></a>(p. 292)</span> seu estado, mas não dês credito senão ao que +eu te disser, e cala-te com isto.</p> + +<p>Depois, n'um enthusiasmo que contrastava com a estudada placidez +usual:</p> + +<p>—Que elle viva ou morra, os liberaes hão de triumphar, pois ao que se +tem soffrido não é possivel vencel-os, pelo desespero com que se +batem. Os conventos acabaram, e temos de saír todas d'estes logares de +maldição. Mas os votos ninguem os tira, os padres não casarão as que +os tiverem. E aquellas que perderem a mocidade, já nada do mundo lh'a +póde restituir!</p> + +<p>Então afogaram-a as lagrimas, e revelou-se tal qual era:</p> + +<p>—Tambem me contrariaram um amor. Fugi com o meu noivo, mataram-m'o, +mas tenho vivido desde então evocando as horas em que me pertenceu. E +esse amor foi o meu culto aqui dentro, a minha religião, porque a +outra perdi-a pouco a pouco, ao vêr da parte de dentro os ministros do +Senhor e as suas esposas, os que communicam com Deus, os +intermediarios da sua graça, do seu perdão!</p> + +<p>Conseguiu D. Anna saber d'elle, e pôl-os em relações. Melhorára +depressa, era já alferes, e a Torre e Espada assignalara-lhe a ferida.</p> + +<p> +Depois <span class="pagenum"><a id="page293" name="page293"></a>(p. 293)</span> tivera-o a dois passos, na divisão do duque da +Terceira que atravessou n'um relampago do Algarve a Lisboa, levando +adiante de si os miguelistas, que fugiram espavoridos d'esses dois mil +homens, incitando em desforra as populações a tratarem-os como lobos.</p> + +<p>E o fanatismo catholico dos soldados e das tropas apunhalou no +Algarve, queimou vivos e arrastou á cauda dos cavallos os prisioneiros +liberaes; martyrisou em Beja portadores de ordens; queimou dois +constitucionaes forçando as irmãs a assistirem á execução; despedaçou +á machadada trinta e cinco presos politicos no castello de Extremôz, +incluindo uma creança de seis annos!</p> + +<p>Atravessára Telles Jordão o Tejo para fulminar os liberaes, como +esmagava os presos de S. Julião da Barra, mas ao vêl-os armados, +decididos, o valentão que esbofeteava os miseros encarcerados, lhes +sujava a comida e os obrigava a rezar o Terço, fugiu covardemente, até +que o alcançaram em Cacilhas, vingando os camaradas torturados.</p> + +<p>E fugiram de Lisboa os miguelistas que ainda na vespera, em requintes +de barbaridade, tinham enforcado um liberal, para o impedirem de gosar +o triumpho dos seus, já na Outra Banda; que haviam ensanguentado +<span class="pagenum"><a id="page294" name="page294"></a>(p. 294)</span> a cidade em barbaras repressões.</p> + +<p>Mas nem d'essa vez findára a guerra!</p> + +<p>Os miguelistas, que haviam recusado salvar a esquadra, aprisionada no +Tejo pelos franceses, dando em troca a liberdade aos afflictos +prisioneiros voltaram á carga e encheram de cadaveres, de ruinas, os +arredores da capital.</p> + +<p>Saldanha descercára Lisboa, e D. Pedro, em homenagem, mandou collocar +no pedestal da estatua de D. José o medalhão do avô, o marquez de +Pombal, que os jesuitas haviam arrancado. E assim a epopeia liberal, +ligada á obra de Vinte, á tentativa patriotica de 1817, mostrou se o +logico desenvolvimento da obra de Pombal, que se desenvolvia, +alargando a todas as ordens religiosas, fautôras do retrocesso, +incitadoras dos morticinios, a extincção dos jesuitas.</p> + +<p>Arrastara-se a lucta sanguinaria, e de retirada em retirada tinham +vindo parar ali as forças, ainda importantes, que os mais teimosos +pretendiam levar ao campo, a uma derradeira tentativa.</p> + +<p>Olhavam Maria e D. Anna os grupos de soldados, querendo lêr-lhes no +rosto as decisões d'essa hora suprema, em que as divisões de Saldanha +e Terceira <span class="pagenum"><a id="page295" name="page295"></a>(p. 295)</span> avançavam contra Evora para os esmagar, ou +reduzir á rendição.</p> + +<p>De dentro chegavam-lhes successivas noticias, andavam já em +negociações, decidira capitular o conselho de guerra, e estava +assignada a paz.</p> + +<p>Ouviram ao longe o hymno constitucional, confirmando a noticia, e ao +som da musica, ao ruido atroador dos vivas que se approximavam, +desappareceram, cabisbaixos, os soldados de D. Miguel, e a rua ficou +deserta, emquanto ao longe avançava a onda libertadora.</p> + +<p>—E João viria com esses?—exclamava Maria, em lagrimas de jubilo, +abraçada á freira.</p> + +<p>Ganhára o enthusiasmo a cidade opprimida, dos carceres do convento +irrompiam freiras desgrenhadas a saudarem das grades a victoria.</p> + +<p>Chamaram Maria ao parlatorio, e as duas mulheres desceram logo.</p> + +<p>Em vez de João, esperava-as o morgado.</p> + +<p>Por excepção não se embriágara, na dôr do derruir das ultimas +esperanças, e parecia ebrio, cambaleando, pallido, coberto de suor +frio, o olhar pasmado, as palpebres cerrando-se a meudo.</p> + +<p>Custava-lhe a encarar a luz, como se o deslumbrasse a evidencia do +triumpho.</p> + +<p>Depois <span class="pagenum"><a id="page296" name="page296"></a>(p. 296)</span> de saudar ligeiramente a prima, dirigiu-se á filha:</p> + +<p>—Menina, prepare-se para me acompanhar.</p> + +<p>Maria recuou attónita. Dava-se o que receiára. Tentava o pae +reapossar-se d'ella.</p> + +<p>—Aonde, senhor?—perguntou afflicta.</p> + +<p>Fazendo-se forte no ultimo poder que lhe restava, retorquiu o morgado:</p> + +<p>—Não aprendeu a ser obediente? Pois ainda está em edade de se tornar +bem ensinada. Obedeça-me!</p> + +<p>D. Anna falou n'uma voz grave:</p> + +<p>—Senhor, não lhe basta o mal que tem causado? Não se dá por +satisfeito?</p> + +<p>Descarregou Martinho Vasques a colera que para ellas reservara, +reduzido á impotencia pela convenção de Evora Monte:</p> + +<p>—Que significam essas palavras, prima?</p> + +<p>—Que felizmente já posso desabafar e dizer-lhe tudo o que sinto, sem +receio de que Maria soffra por minha causa.</p> + +<p>—A prima sempre foi uma doida!—explodiu elle—Vejo que fiz mal em +confiar-lhe minha filha. Mas estou a tempo de emendar o erro.</p> + +<p>E voltando-se para Maria:</p> + +<p>—Porque espera? Não ouviu o que lhe mandei?</p> + +<p>—Escusa <span class="pagenum"><a id="page297" name="page297"></a>(p. 297)</span> exaltar-se, senhor—respondeu a freira—Esta menina +está sob a guarda do mosteiro, e só póde saír por ordem superior.</p> + +<p>—Reclamo-a eu, seu pae, com o mesmo direito com que a entreguei.</p> + +<p>—Mas felizmente os seus já não governam, e agora já não se entregam +victimas aos algozes.</p> + +<p>—Tia!—interveiu Maria—pelo amor de Deus não o offenda. Bem lhe +basta o seu desgosto.</p> + +<p>—Ainda não estás pervertida, filha. Pois bem, vamos, que a dignidade +do teu nome impõe-te o dever de seguires teu pae, embora vencido.</p> + +<p>—É tarde, pae!</p> + +<p>—Que significa isso!</p> + +<p>—Já me sacrifiquei bastante. Não posso mais.</p> + +<p>—Então recusas te a acompanhar-me?</p> + +<p>—O senhor já nada representa para ella. Não quiz sepultal-a viva +n'uma tumba? Faça de contas que a matou, como á mãe, e retire-se. Quem +procede como o senhor, perde o direito a ser tratado como pae. E vá +esconder-se, para não passar pela vergonha de ter a sorte que merece.</p> + +<p>Tiniram esporas na portaria, arrastaram-se espadas, e passos d'homem +subiram a escada do locutorio.</p> + +<p>Era <span class="pagenum"><a id="page298" name="page298"></a>(p. 298)</span> João.</p> + +<p>Tendo ouvido as ultimas palavras, dirigiu-se respeitoso ao morgado:</p> + +<p>—Senhor, tanto reconheço os seus sagrados direitos, que peço +respeitosamente a v. ex.<sup>a</sup> a mão de sua filha.</p> + +<p>Elle recuou um passo:</p> + +<p>—Vem zombar dos meus cabellos brancos?</p> + +<p>Levou a mão ao lado, para arrancar da espada, mas deixou pender os +braços, desanimado.</p> + +<p>—Quebrei-a na esquina da rua a minha velha companheira para não a +entregar aos seus. Estou desarmado. Póde insultar-me!</p> + +<p>Tinham as duas mulheres abandonado a grade e, correndo á sala das +visitas, metiam-se de permeio.</p> + +<p>João respondeu commovido:</p> + +<p>—Senhor, acolhemos a todos com o perdão, abrimos os braços aos +camaradas a quem a sorte das armas foi adversa, e n'esta hora solemne +não ha logar para rancores. Fraternisam os filhos da mesma terra. Pois +perdôe-nos tambem v. ex.<sup>a</sup>, e a nossa alegria lhe fará esquecer os +seus desgostos.</p> + +<p>Dava as mãos a Maria, devorando-lhe com os olhos o rosto muito branco, +onde as olheiras pareciam mais fundas, e a dentro d'ellas maiores os +bellos <span class="pagenum"><a id="page299" name="page299"></a>(p. 299)</span> olhos claros, que a melancolia enriquecera de +ternura.</p> + +<p>Embevecia-se ella no tostado rosto de João, envolto na fina barba, +bebendo a vida n'esse firme olhar que adquirira lampejos de energia +varonil.</p> + +<p>—O vosso perdão não passa de uma caridade de phariseus!—atirára-lhe +o morgado em resposta.</p> + +<p>Debalde procurava D. Anna convencel-o, emquanto João e Maria se +contemplavam, anciosos por se abraçarem.</p> + +<p>Ainda ella teve coração para sentir o desespero do pae:</p> + +<p>—Fique comnosco, senhor! Na nossa ventura ha logar para si.</p> + +<p>—Não! Não!—retorquiu teimoso o velho—Já não tenho filha, já não +tenho familia! O meu logar é junto do principe proscripto.</p> + +<p>Revia D. Miguel na commoção da retirada, abotoado na sobrecasaca azul, +de chapéu á Napoleão; dando a mão a beijar ao povo fanatisado, com +cuja ignorancia se identificava, merecendo o mesmo perdão pela +inconsciencia em que viviam; alheio ás transformações do tempo, +contando ainda com o milagre; victima tambem, elle o chefe dos +algozes, victima da mãe quo o incitára, do anterior estado social +<span class="pagenum"><a id="page300" name="page300"></a>(p. 300)</span> que o educára, o tornára a sua bandeira, o seu symbolo, e +agora o arrastava comsigo.</p> + +<p>João tambem lhe pediu.</p> + +<p>—Não! Não!—insistia o morgado—Somos o passado, que não transige! +Tambem ha de chegar o nosso dia, e S. Miguel Archanjo ha de voltar! +Adeus, filha desventurada. O meu logar é junto d'elle.</p> + +<p>Ainda correram á janella.</p> + +<p>Afastava-se aniquilado, braços pendentes, sem o bordão que lhe dava o +ar magestoso, sem a espada a que se apoiava, desempenando-se; +irreconciliavel como o passado que ia afogar na sombra do tumulo a sua +amarga desesperança.</p> + +<hr class="third"> + +<p>—Só tu me restas, João!—e Maria deitou-se-lhe ao pescoço.</p> + +<p>—Ha quanto tempo que podia ser!—queixou-se elle, ainda cioso da +felicidade esperdiçada.</p> + +<p>—Não te amava tanto como agora! Sinto-o hoje, porque só sabe amar +quem soffreu muito!</p> + + +<h2>FIM</h2> + + + + +<h2>INDICE <span class="pagenum"><a id="page301" name="page301"></a>(p. 301)</span> DOS CAPITULOS</h2> + + +<ul> +<li>I<span class="ralign60"><a href="#page005">5</a></span></li> +<li>II<span class="ralign60"><a href="#page025">25</a></span></li> +<li>III<span class="ralign60"><a href="#page051">51</a></span></li> +<li>IV<span class="ralign60"><a href="#page075">75</a></span></li> +<li>V<span class="ralign60"><a href="#page097">97</a></span></li> +<li>VI<span class="ralign60"><a href="#page121">121</a></span></li> +<li>VII<span class="ralign60"><a href="#page141">141</a></span></li> +<li>VIII<span class="ralign60"><a href="#page167">167</a></span></li> +<li>IX<span class="ralign60"><a href="#page197">197</a></span></li> +<li>X<span class="ralign60"><a href="#page227">227</a></span></li> +<li>XI<span class="ralign60"><a href="#page255">255</a></span></li> +<li>XII<span class="ralign60"><a href="#page281">281</a></span></li> +</ul> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Os Bravos do Mindello, by Faustino da Fonseca + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS BRAVOS DO MINDELLO *** + +***** This file should be named 21290-h.htm or 21290-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/1/2/9/21290/ + +Produced by Ricardo F. Diogo, Christine P. Travers and the +Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. 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There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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