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+<head>
+<meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=iso-8859-1">
+<title>The Project Gutenberg eBook of Os Bravos Do Mindello. Author: Faustino Da Fonseca.</title>
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+<pre>
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+The Project Gutenberg EBook of Os Bravos do Mindello, by Faustino da Fonseca
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Os Bravos do Mindello
+ Romance Histórico
+
+Author: Faustino da Fonseca
+
+Release Date: May 4, 2007 [EBook #21290]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS BRAVOS DO MINDELLO ***
+
+
+
+
+Produced by Ricardo F. Diogo, Christine P. Travers and the
+Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+
+[Nota do transcritor: Esta obra apresenta algumas inconsistências
+ortográficas.]
+
+
+<h5>Obras de Faustino da Fonseca</h5>
+
+
+<p><i>Lyra da Mocidade</i> (primeiros versos) 1892. Exgotado
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Tres mezes no Limoeiro</i>, 1896, 1.<sup>a</sup> edição com illustrações
+ de Leal da Camara. Exgotado
+<span class="ralign">1 vol.</span>
+
+<p>Segunda edição (popular)
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>O descobrimento do caminho maritimo para a India</i>
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>A descoberta da India</i> (Drama historico em 5 actos) 1898
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>O escandalo dos dramas do concurso do centenario
+ da India</i>, 1898
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Regresso ao Lar</i>, romance, 1896, com illustrações
+ de Roque Gameiro (folhetim em <i>O Seculo</i>.)
+</p>
+
+<p><i>A descoberta do Brasil</i>, 1900, com illustrações de
+ Roque Gameiro, cartas, mappas, fac-similes de
+ documentos. Exgotado
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Pedro Alvares Cabral</i>, 1900
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Ignez de Castro</i> romance historico, 1900. 1.<sup>a</sup> edição
+ com illustrações de D. Virginia da Fonseca,
+ Augusto Pina, Bemvindo Ceia. Exgotado
+<span class="ralign">4 vol.</span></p>
+
+<p>Segunda edição (popular) com illustrações de Alfredo
+ de Moraes
+<span class="ralign">2 vol.</span></p>
+
+<p><i>Escravos</i>, romance, 1901 (folhetim em <i>A Folha do
+ Povo</i>.)</p>
+
+<p><i>Padeira de Aljubarrota</i>, romance historico, 1901, com
+ illustrações de Bemvindo Ceia
+<span class="ralign">2 vol.</span></p>
+
+<p><i>As mulheres portuguêsas na Restauração de Portugal</i>,
+ romance historico, 1902, com illustrações
+ de Roque Gameiro
+<span class="ralign">3 vol.</span></p>
+
+<p><i>El-rei D. Miguel</i> (chronica popular do absolutismo)
+ 1905. Illustrado com retratos e monumentos
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Os filhos de Ignez de Castro</i>, romance historico, em
+ collaboração com Joaquim Leitão, 1905
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Anedoctas de reis, principes e outras personagens
+ portuguêsas e estrangeiras</i>, extrahidas, traduzidas,
+ compiladas e prefaciadas, 1905
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Bons ditos de reis, principes e outras personagens
+ portuguêsas e estrangeiras</i>, extrahidas, traduzidas,
+ compiladas e prefaciadas, 1906
+<span class="ralign">1 vol.</span></p>
+
+<p><i>Beijos por lagrimas</i>, romance historico. 1906 (folhetim
+ em <i>A Lucta</i>).</p>
+
+
+
+<h5>FAUSTINO DA FONSECA</h5>
+
+<h1>OS BRAVOS<br>DO MINDELLO</h1>
+
+<h4>ROMANCE HISTORICO</h4>
+
+
+<h4>LISBOA</h4>
+
+<h4>Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso<br>
+<i>5&mdash;Largo de Camões&mdash;6</i><br>
+1906</h4>
+
+
+
+
+<h2>I <span class="pagenum"><a id="page005" name="page005"></a>(p. 005)</span></h2>
+
+
+<p>Ao tiro de peça acordou João de um inquieto somno de namorado e,
+apoiando o cotovelo no grande leito de alta cabeceira de tarja,
+prestou attenção.</p>
+
+<p>Seria salva do castello, ou vinha navio de Lisboa confirmar as
+aprehensões dos sonhos agitados em que Maria se esquivava sempre ao
+caloroso enlace dos seus braços, e um subito quebranto o
+impossibilitava de perseguil-a, e um sobresalto, como que a queda do
+ideal, interrompia o laborioso despertar da sua estuante virilidade?</p>
+
+<p>Não se repetiram detonações que o tranquilisassem e, no brando rumor
+cantante e alegre, reconheceu o <span class="pagenum"><a id="page006" name="page006"></a>(p. 006)</span> romper d'alva. Deitou pelos
+hombros um capote azul de cabeção, e fechos de prata, apagou a candeia
+de ferro cujo espelho areado reluzia e tirou a tranqueta que especava,
+desde a cunha ao encaixe da parede, o postigo das pesadas portas de
+cedro da janella de peitoril.</p>
+
+<p>Pelo pequeno caixilho de minguados vidros azulados percebeu a confusa
+luz da manhan.</p>
+
+<p>Então destrancou vigorosamente as portadas, retirando o grosso
+cilindro ao longo da cava da cantaria e, depondo-o contra o poial,
+puchou para si os dois pesados batentes e debruçou-se com avidez.</p>
+
+<p>&mdash;Muito madrugaste hoje&mdash;disse-lhe debaixo a tia Pulcheria, ajoujada á
+celha das lavagens, avental de barras amarellas, ainda com a rede de
+dormir apanhando os cabellos brancos.</p>
+
+<p>Deu-lhe os bons dias e viu-a, por entre os claros da parreira de
+Alicante, dirigir-se ao curral onde grunhia o porco alegremente, o
+focinho bronco farejando por cima da cancella.</p>
+
+<p>&mdash;Não ouviu uma peça, tia?</p>
+
+<p>&mdash;Ha de ser navio de Lisboa.</p>
+
+<p>Em passo miudinho, muito activa, a arregaçada cheia de milho, acudia
+ao tumulto da capoeira, onde o gallo repenicava, em desafio com os
+visinhos, emquanto da <span class="pagenum"><a id="page007" name="page007"></a>(p. 007)</span> pocilga rompia um grunhido satisfeito,
+misturado ao chapinhar na agua de semeas.</p>
+
+<p>Rompeu no castello o toque da alvorada, o echo vibrante do clarim
+dando o signal do batalhão, e o terno de cornetas atacou as notas
+baixas, até se casarem n'um hymno ao triumphal raiar da aurora.</p>
+
+<p>Passavam chocalhos de machos carregados de trigo para os moinhos do
+Pisão.</p>
+
+<p>Apregoavam leite homens do monte, vindos da Ribeirinha, barba ruiva,
+pé descalço, vestidos de linho branco alvo de neve, a camisola presa
+no pescoço por botões de oiro, carapucinha preta com orelhas
+vermelhas, pequena como a palma da mão, posta á banda n'um elegante
+equilibrio, batendo o bordão com rendilhados na ponteira; rolhas de
+pasto no bico negro das cabaças defumadas, com pontos a cordel em
+fendas, por onde o leite gotejava, aos solavancos do pau posto ao
+hombro esquerdo.</p>
+
+<p>Apregoavam rapa, vergando a grandes molhos, apressados pastores,
+anciosos por se livrarem da carga, trazida desde noite do matto.</p>
+
+<p>Chiavam carros n'uma orgulhosa competencia, irritando em furiosos
+latidos os cães das quintas.</p>
+
+<p>Soaram trindades em Santa Luzia, vibrou na alegria da madrugada esse
+toque de sino, impregnado ao <span class="pagenum"><a id="page008" name="page008"></a>(p. 008)</span> pôr do sol pela melancholia da
+tarde; seguiu-se-lhe o repique annunciando festa; tocaram na Sé á
+missa das almas.</p>
+
+<p>Cessou o bater da roupa no lavadoiro da pia, persignaram-se
+devotamente e benzeram-se de hombro a hombro a creada e a tia
+Pulcheria.</p>
+
+<p>Veiu de dentro benzendo-se tambem a tia Dorotheia, mais pesada, mais
+gorda, encher a talha no perenne jorro d'agua gorgolejando no tanque,
+onde os peixes vermelhos mostravam o amplo e fundo d'essa abundancia
+de agua, trasbordando para a grande pia de lavar, dando viço aos
+cravos, rosas, secias e perpetuas dos canteiros, á madresilva da
+janella, á abobora do telhado do forno, ao pé de vinha nascido de
+encontro á pedra do fundo, desenvolvendo-se em ramadas junto da
+arquinha onde se espetava a bica de ferro.</p>
+
+<p>Recolheu-se, para o não verem faltar á oração matinal e, assim de pé,
+varejava-lhe o olhar o braço d'agua que dera o nome d'Angra á sua
+cidade.</p>
+
+<p>Mas não avistava esse navio todos os dias receiado, cujo tiro
+alarmante vinha findar-lhe os devaneios.</p>
+
+<p>Saíam á pesca barcos á vela, avivando o azul n'um recorte de garça;
+vogavam outros em cadencia, como buzios <span class="pagenum"><a id="page009" name="page009"></a>(p. 009)</span> deitando por banda
+as curvas pernas a fugirem no calhau.</p>
+
+<p>Latinos inclinados, bordejava um cahique por dobrar a ponta de Santo
+Antonio e entrar no porto onde soprava o vento carpinteiro, lenhador
+de navios, dos ilheus ao caes da Figueirinha.</p>
+
+<p>Illuminava o nascer do sol a humida neblina, desenrolando altas
+montanhas, picos azulados, sinuosidades como largas muralhas
+flanqueadas por torres, das que vira em registos dos logares santos,
+cidades, extensas bahias, arvoredos polvilhados d'oiro, reflexos da
+Antillia submergida, que havia de irromper das ondas quando voltasse
+el-rei D. Sebastião no cavallo branco; miragem da propria ilha, como a
+que arrastára os descobridores a aproarem ao mysterio dos horizontes
+sem fim, até ao desengano do gelo do Labrador e da Terra Nova, á
+inextricavel vegetação de sargaços d'esse mar de inferno.</p>
+
+<p>Tambem sentia a ancia do desconhecido, herdada dos primeiros
+povoadores da ilha Terceira, base das arremettidas a esse mysterioso
+oriente, que pretendiam tomar por occidente, dando por fim rumo a
+Colombo; tambem queria saber o que haveria para álem da curva do mar
+largo, essas terras onde tudo <span class="pagenum"><a id="page010" name="page010"></a>(p. 010)</span> se decidia: a França, mãe da
+liberdade, regressada ao antigo regimen, invadindo a Hespanha
+constitucional, o que animara D. Miguel a derrubar na Villafrancada as
+instituições de Vinte; a Hespanha, de Cadiz, a cujo exemplo estalára a
+revolução de 24 de agosto de 1820, tentando agora restabelecer a
+inquisição; a Inglaterra, que apoiára a carta constitucional doada por
+D. Pedro, e decerto auxiliaria a revolução de 18 de maio contra a
+usurpação de D. Miguel, secundada na ilha em 22 de junho, ainda não
+havia um mez; o Brasil de onde vinha dinheiro; Portugal para onde iam
+tributos; Lisboa, de onde uma embarcação traria um primo para lhe
+arrebatar a mulher amada, ou viria buscal-a e levar-lha.</p>
+
+<p>Annullado na absorpção do mar largo e das terras aonde conduzia,
+surgiu-lhe de repente, a pannos largos, guinando n'uma bordada, saindo
+detraz do Monte Brasil, a fragata <i>Princesa Real</i>, mostrando no
+balanço a bateria rasa, cintada de peças negras em carretas vermelhas
+abocadas ás portinholas.</p>
+
+<p>Colheu o velame dos tres mastros, soltou a ancora, e o golpe rapido da
+antena, fazendo respingar a agua, foi o signal para o saltearem
+lanchas e escaleres.</p>
+
+<p>Tudo <span class="pagenum"><a id="page011" name="page011"></a>(p. 011)</span> acabaria assim?</p>
+
+<p>Sentia-se ligado áquelle navio, dependente da sua rota, do porto de
+onde vinha, do ancoradouro para onde havia de largar, das cartas que
+trazia no forte bojo, e espicaçava-o o impeto de sair d'essa
+dependencia, á mercê do que vinha de fóra, elle como a terra; de
+reagir dentro do seu meio, do seu circulo, dos seus desejos, das suas
+esperanças, por fórma a terem que contar com elle.</p>
+
+<p>Havia de ficar áquella mesma janella, vendo-o perder-se na bruma,
+adivinhando, no palpitar de um lenço, a noiva perdida para sempre?</p>
+
+<p>Voltou-se e olhou ao longo da grande bahia do Fanal, a oeste do Monte
+Brasil, desde a encosta da serra de Santa Barbara, até ás recortadas
+negruras de S. Matheus da Calheta, aonde a espuma arrebentava.</p>
+
+<p>Sem uma incerteza, por entre a mancha escura dos pomares de S. Carlos
+e do Pico da Urze; em meio do xadrez de cerrados amarellos de trigo,
+verdes de milharaes, negros da ceifa; fitava o mirante da quinta onde
+ella o vinha esperar, o caramanchel em que passavam tardes, o casarão
+onde um pae lha defendia.</p>
+
+<p>Como que via já o pateo cheio, carros de bois carregando <span class="pagenum"><a id="page012" name="page012"></a>(p. 012)</span> os
+grandes bahus, ha mezes atulhados de rouparia, empachando a casa de
+entrada; e o carroção de coiro bolorento, baloiçando-se nas grossas
+correias, de largas fivellas areiadas, arrastado á força da aguilhada
+por duas juntas, de guiseiras, levando Maria ao embarque, chocalhando
+ferrugentas ferragens.</p>
+
+<p>Ficou por muito tempo sentado no poial de pedra da janella, a fronte
+apoiada na mão esquerda, os dedos entre o cabello castanho anelado,
+anediando o ligeiro buço, os olhos pregados na quinta dos Folhadaes,
+pensando no que devia fazer.</p>
+
+<p>Ao tocarem matinas na Sé, começou a preparar-se para saír.</p>
+
+<p>Do quintal bateu palmas a tia Dorotheia.</p>
+
+<p>Estava prompto o almoço, e elle decidido a seguir Maria, se a levassem
+para Lisboa.</p>
+
+<p>Reconquistou-o ao descer da torre a sentimentalidade do lar, no cheiro
+do comer, no arrastado dos chinelos das tias, no tinir da louça da
+India, no tlintar dos talheres de prata, no ranger do trabalhado
+armario de madeira do Brasil, com guarnições tremidas e remates
+arrendados.</p>
+
+<p>Deu-lhes os bons dias, ellas beijaram-o e afagaram-o, e quando se
+sentou na cadeira de espaldar, de <span class="pagenum"><a id="page013" name="page013"></a>(p. 013)</span> onde o pae e o avô
+presidiam á grande meza oval, de pés torneados e parafusos de prata,
+cujas abas se fechavam para sempre á medida que a familia se reduzia,
+esmoreceram-lhe os impetos, esvaíu-se-lhe a energia.</p>
+
+<p>Amolentara-o a educação mulherenga, creado entre rabos de saias,
+adormecido com pavorosos contos de lobishomens e almas do outro mundo.</p>
+
+<p>Pobres velhas! Morreriam de dôr se lhes faltasse.</p>
+
+<p>E as ambições de viajar, de seguir uma carreira, de ser alguem, iam-se
+no resignado aniquilamento, na tendencia para a meditação, de que o
+haviam adoecido os dias abafadiços e humidos.</p>
+
+<p>&mdash;Já saes?&mdash;perguntou Pulcheria, mirando-o atravez dos oculos de
+tartaruga.</p>
+
+<p>Dorotheia accrescentou que não era dia de lição, e o dominio das
+velhas impoz-se-lhe, como sempre, tomando-lhe conta de todos os
+passos, vigiando-lhe as saídas e entradas, fazendo-lhe scenas de
+lagrimas quando voltava tarde «do caminho da perdição!»</p>
+
+<p>Não resistia, não se insurgia, não protestava, mas nem por isso
+deixava de sair e entrar quando lhe parecia, embriagando-se de
+liberdade, sem pae que o <span class="pagenum"><a id="page014" name="page014"></a>(p. 014)</span> derrancasse nas sovas que
+humilhavam outros da sua edade, ao recolherem fóra d'horas.</p>
+
+<p>&mdash;Nem que fosse dia de lição irias hoje ao padre Jeronymo.</p>
+
+<p>Pulcheria, magra e sêcca, nervosa, solteirona, alludia á chegada do
+navio de Lisboa, sublinhando com intenção.</p>
+
+<p>E Dorotheia, viuva, mais prompta á lagrima, supplicou-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Não te vás meter em trabalhos.</p>
+
+<p>&mdash;Não se fala senão de vinganças, de prisões, credo!&mdash;apoiou
+Pulcheria.</p>
+
+<p>Dorotheia, no instincto de dona de casa, abrangeu logo o lado
+economico das perturbações:</p>
+
+<p>&mdash;Tudo mais caro. Os ovos já estão a quatro por um vintem, e querem
+uma serrilha por uma gallinha. Os homens do monte fingem ter medo de
+entrar na cidade, e não passam do Desterro onde açambarcam a manteiga,
+os ovos e as gallinhas os revendilhões, que põem tudo pela hora da
+morte, desculpando-se que lhes pediram um horror de dinheiro. A cada
+má noticia que vem de Lisboa, os lojistas enchem-se augmentando os
+preços. Assim tem hoje casas e quintas essa orgulhosa caixeirada que
+veiu para ahi de tamancos! Já não se pagam fóros, <span class="pagenum"><a id="page015" name="page015"></a>(p. 015)</span> ha que
+tempos não entram aqui os cestinhos de ovos que nos trazia o capitão
+Toledo das Doze, nem os casaes de frangos da Fonte do Bastardo. Para
+que não se acabe a capoeira, a mana tem deitado ovos em chôco, mas
+logo na noite da revolta, com os tiros dos soldados do Lobão contra os
+milicianos, foi-se uma ninhada inteira, dezasete ovos de gallinhas das
+Flores que põem duas vezes por dia! É o que se ganha com essas
+façanhas dos constitucionaes.</p>
+
+<p>&mdash;Ó tia!...&mdash;interveiu sorrindo.</p>
+
+<p>&mdash;Se não has-de defendel-os, não fosses todo do Juvencio!&mdash;commentou
+Pulcheria, mais directamente ferida pelo gôro.</p>
+
+<p>Dorotheia censurou, muito sentida:</p>
+
+<p>&mdash;Estás sempre metido na botica a lêr as gazetas, e decerto lá vaes
+encafuar-te a saber o que veiu de Lisboa, essa Babilonia, Sodoma e
+Ghomorra, a corrupta e devassa Lisboa, como préga, acceso em santas
+iras, fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria.</p>
+
+<p>&mdash;Quando o vinho do morgado lhe sobe á cabeça.</p>
+
+<p>Pulcheria reprimiu João n'um olhar.</p>
+
+<p>&mdash;Não te fica bem o que fazes, nem o que dizes. Fr. <span class="pagenum"><a id="page016" name="page016"></a>(p. 016)</span> Angelico
+é muito de casa do senhor morgado dos Folhadaes, o nosso protector.
+Elles são do senhor D. Miguel.</p>
+
+<p>&mdash;Estão no seu direito.</p>
+
+<p>Dorotheia acudiu com a questão do dinheiro:</p>
+
+<p>&mdash;Lembra-te que elle te dá quatro patacas por mez pela escripturação
+dos rendeiros; e pelas festas, pelo Espirito Santo, e pelas matanças
+manda sempre os seus presentes em salva de prata, com sua toalha de
+damasco. Teu pae e teu avô foram muito d'aquella casa, e tu mesmo és
+tratado como amigo.</p>
+
+<p>E reparando na distracção d'elle:</p>
+
+<p>&mdash;Não comes nada? Grande coisa tens hoje!</p>
+
+<p>Pulcheria observou-o tambem:</p>
+
+<p>&mdash;Naturalmente os pedreiros livres estão falados para a chegada do
+navio de Lisboa.</p>
+
+<p>Retumbou na cosinha um penoso suspiro, como das almas penadas dos
+contos, e João surprehendeu a creada, a velha Maria da Assumpção do
+Corpo Santo, que lhos contava, movendo os seccos braços inchados de
+veias, os dedos ossudos em esgares de esconjuro, depois ungindo a
+testa encarquilhada, o nariz acavallado, os beiços pendentes, mascando
+a sua maneira especial de se benzer:</p>
+
+<div class="poem">
+<p>Eu <span class="pagenum"><a id="page017" name="page017"></a>(p. 017)</span> me benzo c'os tres cravos<br>
+ Abraçados n'uma cruz<br>
+ Para que possa dizer<br>
+ Santo nome de Jesus:</p>
+
+<p>A cruz desça do ceu<br>
+ E se deite sobre mim<br>
+ O Deus que n'ella padeceu<br>
+ Elle responda por mim.</p>
+</div>
+
+<p>Por fim o dedo pollegar da mão direita, tornado bento pela tarefa
+redemptora, foi beijado devotamente, e só depois a serva se virou para
+o lar.</p>
+
+<p>Dorotheia commentou, compadecida:</p>
+
+<p>&mdash;Dão com ella em doida as innovações dos constitucionaes. Demora-se
+toda a manhan nas compras, porque vae para a Sé pôr-se de empada, a
+rezar, a rezar, em desaggravo ás heresias, aos desacatos.</p>
+
+<p>Pulcheria insistiu teimosa, devorando o sobrinho com os olhos:</p>
+
+<p>&mdash;É para o que servem os pedreiros livres!</p>
+
+<p>Elle riu n'uma explosão juvenil.</p>
+
+<p>&mdash;Pedreiros livres? Julga-me talvez? Tem graça!</p>
+
+<p>A <span class="pagenum"><a id="page018" name="page018"></a>(p. 018)</span> tia confirmou:</p>
+
+<p>&mdash;A senhora Joaquinina do Ó vê-te sempre no falatorio da botica, e
+toda a gente sabe que é ali o coio dos que beijam o diabo á meia
+noite.</p>
+
+<p>&mdash;Admiro-me que uma mulher de tanta virtude, que anda sempre com o
+cordão de São Francisco á cinta, não diga que tambem lá vê, a jogarem
+o gamão, os meus mestres, o senhor conego Penedo, o senhor padre
+Jeronymo Emiliano d'Andrade e o senhor conego Ferraz, governador do
+bispado.</p>
+
+<p>&mdash;Esses são pedreirões dos grandes!</p>
+
+<p>&mdash;Pois tia, antes me quero com elles do que com fr. Angelico da
+Immaculada e as suas confessadas, como a senhora Joaquinina do Ó.</p>
+
+<p>Comera os figos lampos do quintal, as postas de moreia frita a que
+escolhia a pelle torriscada, o <i>affonso</i> de lapas em que o marisco
+guisado e o longo musgo das conchas conservavam o acre sabôr do mar; e
+tomára, já levantado, o café com leite, esse delicioso café vindo
+directamente do Brasil, em paga das saias bordadas em que se
+entretinham as tias.</p>
+
+<p>De olhos no tecto e mãos postas, repetiam tres vezes as velhas, junto
+da meza «Bemdito seja Deus, que me deu de comer sem eu lh'o merecer»,
+notando desgostosas que João se esquivava ultimamente á <span class="pagenum"><a id="page019" name="page019"></a>(p. 019)</span>
+acção de graças, o que para Pulcheria era um signal certo de pacto com
+o Demonio.</p>
+
+<p>Despediu-se, saiu, passou ás Monicas lançando um olhar irritado ao
+convento, cujas grades a liberdade havia de arrancar, desceu a ingreme
+Myragaia, notou grande movimento no palacio do governo, mas, evitando
+comprometter-se para com o morgado, não entrou a perguntar novidades
+de Lisboa.</p>
+
+<p>Voltou á rua do Convento da Esperança, e passou por diante do collegio
+dos jesuitas, tendo em frente a farta cerca dos franciscanos, a
+frontaria do convento esburacada de janellinhas como um pombal, a
+fachada com dois grandes braços cruzando-se de punhos fechados contra
+a cidade&mdash;as armas de S. Francisco.</p>
+
+<p>Virando a esquina entrou na praça, e foi direito á botica, ao canto do
+Passo onde parava a procissão e se cantavam motetes.</p>
+
+<p>Para ir ali tinha a justificação de falar ao mestre, e trazia-a
+engatilhada para alguma pergunta do morgado.</p>
+
+<p>Esbravejava o boticario, tornando a loja em club:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui não se recebem ordens do Miguel! Isto não é terra de burros nem
+de corcundas. Bem se quer fazer fino, mettendo-nos á cara o decreto,
+o <span class="pagenum"><a id="page020" name="page020"></a>(p. 020)</span> capitão general, mas para cá vem de carrinho! O presidente
+da camara convocou uma reunião extraordinaria, a que concorreram as
+principaes pessoas dos tres estados, clero, nobreza e povo, e
+resolveram não cumprir as cartas regias por falta das formulas da
+carta constitucional. E a fragata ha de sair immediatamente, ou não
+sae mais, que se lhe ferram dois balasios, e era uma vez uma <i>Princesa
+Real</i>!</p>
+
+<p>Não iria n'aquelle navio! E respirava desafogado. Agora nada mais lhe
+importava.</p>
+
+<p>Dissipava-se-lhe o terror, mas aproveitaria a lição, e não ficaria
+sujeito ao risco de a ver partir sem que nada tentasse para impedil-o.
+Sentia-se bem, tinha vontade de correr, de saltar, como ao sair da
+lição de latim do conego Penedo, um alto vermelhaço, de cabello branco
+com laivos do passado loiro, olhos azues escarnecendo atravez dos
+occulos de aros d'oiro, que tratava uns discipulos por Ciceros e
+outros por bêstas, e na rua correspondia aos cumprimentos com a mão
+fechada, murmurando uma grossa obscenidade dita por entre os dentes
+brancos e largos, onde se arrastavam ruidosamente os érres.</p>
+
+<p>Como no momento de libertação em que a garrida chamava <span class="pagenum"><a id="page021" name="page021"></a>(p. 021)</span> os
+conegos á Sé, e Penedo, bufando, contrariado, repoltreava-se na grande
+cadeira do côro, cabeceando, a remoer o ripanço em voz roufenha, ia
+João na doidice do mar que, antes de enamorado, era o seu encanto.</p>
+
+<p>Sentia-se tão livre de cuidados como se tornasse annos atraz, quando
+corria pela praia, emquanto espaireciam os conegos, pausadamante, rua
+da Sé acima, até ao Passeio do Alto das Covas, onde ficavam
+cavaqueando, pitadeando-se, ou deitavam, a desenferrujar as pernas,
+portões de S. Pedro em fóra, até ás quintas do Caminho do Meio, a
+admirarem as vinhas, n'um culto pagão mais sincero do que aquelle em
+que ganhavam a vida a dentro do grande templo frio e escuro.</p>
+
+<p>Tinha o desejo infantil de vêr, com os proprios olhos, sair o navio,
+para ficar com a certeza de que podia dedicar-se a resolver a sua
+situação para com Maria, antes que surgisse outra ameaça.</p>
+
+<p>Evitou o movimento do pateo da alfandega onde se accalorava a questão
+politica, seguiu pelo areal da Prainha, junto a destroços de
+naufragios, pranchões crivados pelo furo do gusano, chapas de cobre
+onde cracas e lapas, toda a riqueza organica das aguas, punham
+colonias de pequenos seres; depois abandonou <span class="pagenum"><a id="page022" name="page022"></a>(p. 022)</span> o carreiro do
+areal batido pelo constante perpassar, onde já plantas desafiavam o
+beijo da resaca, e aproveitava a descida da onda para saltar de pedra
+em pedra.</p>
+
+<p>Passou o Portinho Novo e foi até aos penedos do caes da Figueirinha,
+onde pescadores, perna pendente, pescavam á canna, aproveitando a
+fundura da rocha viva.</p>
+
+<p>Via-se limpidamente a agua escurecida pelo monte, até aos pedregulhos
+do fundo, onde a isca de trapo procurava o polvo. Passavam pequenas
+sombras fugidias, sumia-se uma lagosta n'uma fenda, vibrava uma moreia
+coleante, relampejavam cardumes de sardinha, corriam laivos azues e
+vermelhos de peixes-reis e bodeões. Acudiam engodados, vinham em
+cardume á çaga de um barco que recolhia, andavam á babugem dos navios
+arrastada pelo mar para o recanto da angra.</p>
+
+<p>Á picada no anzol correspondia a saccada lesta do caniço; saltava um
+peixe, debatendo-se, enrolando-se na linha; estrangulava-o o pescador
+adentanhando a guelra; lançava-o ao cesto, onde a frescura dos mais
+emprestava um resto de vida ao estrebuchar da sua agonia.</p>
+
+<p>Mas o cação voltava para o mar degolado, com um <span class="pagenum"><a id="page023" name="page023"></a>(p. 023)</span> escarro de
+desprezo no bico; e seguia-o o sargo, repugnado por sugar os olhos
+d'afogados.</p>
+
+<p>Subiu a Rocha até ao Relvão.</p>
+
+<p>Ouvia o batucar dos cutellos picando o engodo no castello de prôa dos
+barcos de pesca apoitados ao longe; sentia guinchar o cabrestante a
+bordo da fragata, alando os ferros.</p>
+
+<p>Abrigado do sol contra a muralha do castello de S. João Baptista,
+encostado ao granito, as pernas estendidas na relva, viu-a largar os
+pannos mal rizados, afastar-se em bordos, a montar os Ilheus, em rumo
+da ilha de S. Miguel, e quando ella se sumiu de todo sentiu-se como
+protegido pela poderosa fortaleza que a obrigára a retirar, por esse
+castello que fôra o symbolo da oppressão hespanhola e se tornára a
+unica esperança da liberdade portuguesa!</p>
+
+
+
+
+<h2>II <span class="pagenum"><a id="page025" name="page025"></a>(p. 025)</span></h2>
+
+
+<p>Com alegre surpreza das tias, João entrou á hora do jantar, ao meio
+dia em ponto; mas em breve lhes tirou toda a illusão de que não o
+interessassem os acontecimentos cujo echo já chegava á Pereira.</p>
+
+<p>Comeu á pressa, foi aperaltar-se para vêr Maria, e saiu logo, de
+chapeo alto de aba direita, casaca de briche nacional côr de castanha
+de quatro botões nas abas, collete de grande gola, alta gravata em
+volta ao collarinho, calça branca e botas altas de canhão amarello.</p>
+
+<p>Merendaria na quinta, não contassem com elle.</p>
+
+<p>E d'ahi a pouco estava na botica, sabendo os ultimos boatos,
+occultando-se da Joaquinina do Ó e <span class="pagenum"><a id="page026" name="page026"></a>(p. 026)</span> de outras beatas
+bisbilhoteiras, que rondavam o Juvencio, embiocadas no manto negro dos
+pés á cabeça, saia de merino preto, o capuz envolvendo-as do taboleiro
+de cartão até á cintura, onde passava pregueando-se, estreitamente
+cingido; os braços apanhando os extremos do involucro e rebuçando-o na
+frente, por fórma a só ficar aberto um pequeno oculo, no extremo do
+canudo de cartão, que se movia como um bico de passaro, apontando-se
+sinistramente no faro da curiosidade, permittindo-lhes verem sem serem
+vistas, para irem delatar no confessionario.</p>
+
+<p>D'ahi a pouco caminhava pelo campo, ao longo de muros de pedra solta,
+evitando a poeirada, contrariando n'uma marcha de automato o seu
+incorrigivel acanhamento.</p>
+
+<p>Lembrava saudoso a infancia em que, fugindo á escola de primeiras
+lettras, saltava paredes á cata de ninhos, de gafanhotos, de cigarras;
+revolvia os restolhos á procura de grillos, que levava no lenço para
+casa, para os ter a cantar dentro de um copo.</p>
+
+<p>Puzera termo a essas esturdias a preoccupação absorvente de Maria.</p>
+
+<p>Ao principio, quando de tarde ia trabalhar na escripta, por ter presa
+a manhan pelos estudos, lamentava essa <span class="pagenum"><a id="page027" name="page027"></a>(p. 027)</span> prisão, impedido de
+retoiçar no areal, deitar-se á agua, nadar, apanhar conchas,
+enxugar-se rebolando na areia quente, e ir depois, noite fechada, para
+a praia das mulheres, no recanto do Castellinho, vel-as metterem-se na
+agua aos gritinhos, compondo as saias enfunadas pelo mar.</p>
+
+<p>Despertára-lhe novas impressões a intimidade de Maria, e os passeios
+com ella sob as arvores substituiram d'ahi em diante todos os
+entretimentos de rapaz.</p>
+
+<p>Escutava-a encantado, admirava-lhe os movimentos, esquecia-se a
+contemplal-a e, quando retirava ao pôr do sol, voltava-se para traz a
+vêr se ainda a descobria.</p>
+
+<p>Ia já perto da quinta, mas sempre na mesma indecisão, ora desejando
+não chegar nunca, ora querendo precipitar o termo da anciedade que o
+torturava.</p>
+
+<p>Avistou por fim a vivenda dos Folhadaes, os altos telhados em
+pyramide, a fachada ennegrecida pelo tempo, as janellas com grades de
+convento, o escudo de armas por cima do grande portão de carro, o
+extenso muro torreádo por mirantes e caramanchões.</p>
+
+<p>Entrou pelo postigo aberto no grande portão de cedro, <span class="pagenum"><a id="page028" name="page028"></a>(p. 028)</span> pesado
+de trancas e tranquetas, ferrolhos, corrediças e argolões, e o coração
+batia-lhe descompassado.</p>
+
+<p>Saccudiu o pó na banqueta de pedra, de onde subiam as senhoras para as
+andilhas, e trepou a escada exterior, que começava na parede do fundo
+e cortava em angulo para a da esquerda, receiando uma vertigem,
+sentindo fugir-lhe a luz dos olhos.</p>
+
+<p>Sentou-se no poial do alpendre, a descançar um momento, a dominar o
+tremor nervoso, e descobriu Maria ao fim da cerca, com a prima D.
+Josepha da Esperança e o primo Jorge.</p>
+
+<p>Inclinou-se, descobriu-se, ella correspondeu n'uma venia exagerada,
+curvando-se muito, no que foi imitada pelos primos, e depois
+arrancando o chapeu de palha, rustico, de grandes abas, enfeitado de
+espigas, papoilas e malmequeres colhidos pela quinta, imitou-o
+cumprimentando como um homem.</p>
+
+<p>Repetiram as raparigas as zumbaias, e o primo deitava-lhes as tranças
+para a frente, ao que, irritadas, respondiam com palmadas e beliscões.</p>
+
+<p>E quando a creada, de dentro da casa, o convidou a entrar, elle tornou
+a saudal-as, e as raparigas responderam rindo ás gargalhadas,
+fazendo-lhe figas.</p>
+
+<p>Transpoz humilhado a porta de imponentes almofadas; nunca <span class="pagenum"><a id="page029" name="page029"></a>(p. 029)</span>
+lhe parecera tão triste o casarão onde passava horas enfadonhas, junto
+de um frade tresandando a vinho.</p>
+
+<p>Sabendo os cantos á casa ia encafuar-se no escriptorio, quando a
+creada lhe disse que o senhor ainda estava á meza, e o guiou á casa de
+jantar.</p>
+
+<p>&mdash;Entra, entra, pequeno&mdash;convidou em voz entaramelada o morgado&mdash;tu és
+como se fosses da familia, aqui como o mestre Jacintho, por parte de
+teu avô. Aquillo é que era um homem, o capitão Silveira! Gente de
+outro tempo! Hoje só ha fedelhos como tu.</p>
+
+<p>Ergueu pesadamente o corpanzil obeso, cambaleando nas grossas pernas a
+estoirarem os calções de ganga amarella, copiados de D. João VI, que
+usava com meia branca e sapatos de fivella de prata.</p>
+
+<p>Já pelos bofes da camisa, pelo collete e pela casaca, nodoas de vinho
+affirmavam o abuso da bebida, e a mão tremula derramou-lhe o copo, que
+empunhava de pé, virado para João.</p>
+
+<p>&mdash;Á tua, em memoria de teu avô!</p>
+
+<p>Bebeu e tornou a sentar-se, pesadamente, apoiando-se á borda da meza e
+á grande cadeira de braços, de coiro negro e pregaria amarella, em que
+presidia <span class="pagenum"><a id="page030" name="page030"></a>(p. 030)</span> á cabeceira, na velha tradição senhorial.</p>
+
+<p>&mdash;Grande homem que elle era!&mdash;apoiou mestre Jacintho&mdash;sem desfazer em
+quem está presente.</p>
+
+<p>Endireitou o corpo alquebrado, illuminou-se-lhe o olhar, e o velho
+soldado denunciou-se no cabello á escovinha, na colleira de coiro
+negro que no pescoço escanzelado saia da camisola de linho de pastor,
+na marca das bexigas que lhe favava a cara encorreada, como passada ao
+lustre das mochilas.</p>
+
+<p>Tomou com toda a confiança um copo, bebeu e, sempre de pé,
+disciplinado até a escravidão, voltou-se para Martinho Vasques:</p>
+
+<p>&mdash;O que nós fizemos n'aquelle Russillão!</p>
+
+<p>Attingia a phase piegas a embriaguez do morgado, tremia-lhe o beiço
+inferior, descahido e inchado, tornavam-se-lhe muito pequeninos os
+olhos duros, de um azul frio, raiados de vermelho, e o nariz
+destacava-se-lhe rubro, da côr de telha do rosto apopletico, onde as
+sobrancelhas asperas, espessas, unindo-se carrancudas, os longos
+pellos das ventas e dos ouvidos, punham em occasiões normaes a marca
+da rudeza, da selvageria.</p>
+
+<p>&mdash;Se não fosse teu avô não estava eu aqui! Se não me tivesse deitado a
+mão quando eu caí ferido na <span class="pagenum"><a id="page031" name="page031"></a>(p. 031)</span> retirada da Montanha Negra!
+Devo-lhe a vida a elle e a este velho!</p>
+
+<p>Mas a lingua emperrava-se-lhe, a sensibilidade engasgava-o de todo.</p>
+
+<p>Ancioso sempre de contar façanhas, no orgulho profissional, o
+ex-soldado do Roussillon ergueu as mãos á altura dos ouvidos, como a
+pedir que o escutassem, e começou n'um bom ar de velhinho,
+tremendo-lhe o bigode branco em escova:</p>
+
+<p>&mdash;Quando aquelles malditos franceses caíram sobre nós, eu, mais o meu
+capitão e mais vossa excellencia, senhor morgado, fomos para cima
+d'elles como leões, e eram cutilladas de alto a baixo, golpes de
+rachar de meio a meio...</p>
+
+<p>Ganhava-o pouco a pouco a furia de assassino profissional:
+passavam-lhe no olhar relampagos sinistros; arregaçavam-se-lhe os
+beiços, mostrando os dentes pôdres ainda promptos a morder;
+crispava-se-lhe a mão esquerda em fórma de garra, o pollegar muito
+desenvolvido, erguido acima dos outros dedos, na ameaça de premir a
+guela do inimigo; e na mão direita brilhava-lhe uma faca de meza,
+brandida com furôr, como nos assaltos á arma branca, em que, com as
+mãos a escorrer em sangue, degolava soldados agarrados ás peças,
+apertados uns contra <span class="pagenum"><a id="page032" name="page032"></a>(p. 032)</span> os outros, sem espaço para se
+defenderem no recanto de uma trincheira. Tinham ás vezes que abrir-lhe
+a mão á força para lhe tirarem a podôa de jardineiro, a que se
+soldavam os dedos quando brigava com os cavadores, e renovava-se a
+lição do mal; ou quando o vinho lhe obliterava a consciencia de homem
+grato, generoso, humilde até á servidão.</p>
+
+<p>Sobresaltado frei Angelico na languidez da digestão, arrotando
+empanturrado, flatulento, ergueu-se, arredou o habito pardo de
+franciscano n'um meneio feminil, adquirido em menino do côro; o que
+ainda parecia, apezar dos quarenta annos, pelo effeminado dos ademanes
+de aprendiz de clerigo, pelo tom rosado da face gorda e oleosa, a que
+a larga tonsura dava uma frescura de novo; e desapertando o cordão de
+nós, clamou na voz de canna rachada, em que outr'ora cantava de
+falsete, limpando o suor ao lenço de Alcobaça sujo de rapé:</p>
+
+<p>&mdash;Veja e aprenda, Joãosinho, como se pratíca a verdadeira egualdade,
+não a d'esses malditos clubs, mas a que é agradavel ao ceu! Aprenda,
+que está em edade. N'esta velha casa fidalga fraternisam, libando o
+vinho de Deus, dando graças ao Altissimo pelas suas obras, a nobreza
+representada no excellentissimo senhor <span class="pagenum"><a id="page033" name="page033"></a>(p. 033)</span> Martinho Vasques de
+Linhares Soeiro, morgado dos Folhadaes, o clero n'este humilde servo
+do Senhor, e o povo n'esse villão, esse ninguem, esse bicho da terra,
+esse pó da estrada!&mdash;e apontava mestre Jacintho.&mdash;Exemplos d'estes, só
+na educação religiosa se encontram. E para isto não é preciso ser
+jacobino, nem republicano, nem pedreiro livre, nem cuspir na hostia
+consagrada!</p>
+
+<p>Benzeu-se horrorisado e, sem transição, desceu do tom de prégador:</p>
+
+<p>&mdash;Mas o Joãosinho não bebeu nada. Vá lá. Um só não faz mal.</p>
+
+<p>Encheu-lhe um copo, derramando vinho pela toalha, e deitou outro para
+si.</p>
+
+<p>&mdash;Beba á saude do senhor morgado, e vamos para o terraço, que se abafa
+de calôr.</p>
+
+<p>Habituado áquellas scenas, bebeu satisfeito João. Talvez lhe désse o
+vinho o animo preciso.</p>
+
+<p>Saíram, o morgado á frente, equilibrando-se ao bordão de marmeleiro
+polido, no apparato de uma vara de juiz, em gravidade processional;
+depois o frade, arrastando as sandalias, conchegando a proeminente
+barriga, levando no regaço o cordão e o rosario, que desapertara; João
+pisando respeitoso, ao de <span class="pagenum"><a id="page034" name="page034"></a>(p. 034)</span> leve; e por fim o mestre Jacintho,
+muito curvado, rindo e falando comsigo mesmo.</p>
+
+<p>Assentaram-se a nobreza e o clero na banqueta de azulejo, que corria
+ao longo da empêna da casa, no terraço voltado para S. Matheus.
+Sentou-se João sem esperar convite, por direito proprio,
+considerando-se tanto ou quanto nobre, pelos fóros de fidalguia da
+espada do avô; e n'essa decisão já reconhecia o effeito do vinho
+fazendo-lhe perder a usual timidez, e já acariciava a proxima
+entrevista com Maria. Disciplinado como soldado, e tão firme quanto
+lhe era possivel, conservava-se mestre Jacintho de pé ante os seus
+superiores hierarchicos, chalaceando, contando historias de caserna,
+as mãos perto dos ouvidos, o rosto expandindo-se n'um sorriso de bom
+velhote.</p>
+
+<p>Depois saíu Martinho Vasques com o jardineiro, a vêrem os trabalhos da
+quinta, e frei Angelico e João foram para o escriptorio.</p>
+
+<p>Dobrado para a meza de saia de baeta vermelha, limpando no cabello a
+penna de pato, olhava a furto, pela janella fronteira, a varanda de
+pedra do fundo da quinta, onde passeavam á sombra da parreira, Maria,
+a prima que ia jantar com ella e passar a tarde, e Jorge da Feteira,
+namorado de D. Josepha da <span class="pagenum"><a id="page035" name="page035"></a>(p. 035)</span> Esperança, que apparecia para a
+merenda.</p>
+
+<p>Tinha ciumes do fidalgote que levava a confiança de primo a beijar
+Maria á entrada e á saída, e invejava-lhe a liberdade em que andava
+com as duas raparigas ao fresco da tarde, pela recatada vastidão do
+pomar.</p>
+
+<p>Afastavam-se, mas elle espionava o quadro recortado pela janella na
+parede nua, e tornava a vêl-os notando a impaciencia com que o
+observavam.</p>
+
+<p>Orgulhava-o esse interesse. Sabia que o estimavam, que o esperavam
+para a merenda, mas não deixava de reconhecer, por parte dos primos
+reunidos para falarem, o motivo d'essa espectativa, poderem afastar-se
+deixando Maria entretida com elle.</p>
+
+<p>Deitado em cima da papeleira encetára o frade diversas folhas de
+papel, mas a penna de pato, rangendo muito, fazia-lhe uma lettra
+incerta, incomprehensivel, e a mão tremula deixava cair borrões que
+impossibilitavam a continuação. Deitava-lhe areia, encanudava a folha
+e despejava-a no recipiente de chumbo, mas os pingos de tinta lá
+ficavam. E na atarantação de poupar meia folha de garatujas
+despejou-lhe por cima o proprio tinteiro, borrando o lenço, as mãos,
+todos os papeis do alçapão.</p>
+
+<p>Rendeu-se <span class="pagenum"><a id="page036" name="page036"></a>(p. 036)</span> então á evidencia, reconheceu-se incapaz de
+escrever, e lançando-se para o hirto canapé de palhinha, tomou
+rascunhos de cartas e poz-se a ditar a João.</p>
+
+<p>Entretido com a janella, elle escrevia machinalmente, repetia
+distrahido, errando o ditado; e fr. Angelico, sentindo a cabeça
+pesada, crendo seu o engano, envergonhou-se do rapaz e deu por findo
+esse tão pouco proveitoso trabalho.</p>
+
+<p>Ia emfim desabafar!</p>
+
+<p>Mas o acanhamento assaltava-o de novo, e ainda pensava adiar para mais
+tarde essa urgente expansão.</p>
+
+<p>Desceu ao pateo de entrada, abriu a cancella que dava para as
+trazeiras da casa, onde as gallinhas debicavam montes de estrume, e os
+filhos do quinteiro pulavam nos picos de matto roçado para o lume;
+passou por entre os chiqueiros, atravessou o jardim, rodeiou o
+repucho, contornou os taboleiros de onde vinha o cheiro penetrante dos
+cravos; e ao fim das ruas de buxo, abriu outro portal, e internou-se
+na quinta, por debaixo da latada que em pilares de pedra a dividia ao
+meio, deixava dois grandes rectangulos destinados a alfobres e á
+horta, e continuava <span class="pagenum"><a id="page037" name="page037"></a>(p. 037)</span> contra os altos muros negros de pedra
+solta ensombrando os passeios lateraes.</p>
+
+<p>Reuniam-se todas as tardes no pomar, ao fim das larangeiras, das
+nespereiras, por baixo das quaes nascia silvestre a hortense, e
+conversavam até ao escurecer.</p>
+
+<p>Só encontrou D. Josepha da Esperança e Jorge da Feteira sentados muito
+juntos, de mãos dadas, indolentemente reclinados no grande banco de
+pedra, com recosto de azulejos onde caçadores, de chapeo tricorne,
+perseguiam lebres, acompanhados de cães, quasi de pé como pessoas.</p>
+
+<p>A falta d'ella permittiu-lhe serenar, confirmar-se no proposito de
+dizer-lhe tudo, de sair por uma vez do equivoco em que vivia.</p>
+
+<p>N'uma aspereza que a tornava mais apetecivel, entrou Maria, saltando
+irrequieta, o chapeo deliciosamente deitado para os olhos, n'um
+simples vestido vermelho inteiro, de cintura alta, o collo a
+descoberto, de tres folhos na saia um tanto curta, deixando vêr o
+sapato branco, atado por fitas brancas, sobre a meia branca, no
+tornozêlo.</p>
+
+<p>A sua simplicidade contrastava com o requinte de secia de Josepha, a
+opulenta juventude trasbordando de um rico vestido verde, de cinco
+folhos, com <span class="pagenum"><a id="page038" name="page038"></a>(p. 038)</span> capoteira de renda em bicos, sapatos de duraque
+preto, cabello penteado atraz em cuia, apartado ao meio na frente,
+grandes tufos nas fontes, um fio de perolas na testa, desvelos de
+toucador destinados ao primo Jorge, que por sua parte caprichava em
+vestir grosseiramente á D. Miguel, jaqueta de alamares, cinta, calção,
+botas de prateleira, bóné azul, cabello puchado para as fontes, cara
+rapada, porque o bigode denotava á legua constitucional.</p>
+
+<p>Andava pela edade de João, mas parecia mais nova. As doenças da
+meninice, as convulsões com que a dotára o alcoolismo paterno, as
+impurezas do sangue azul dos casamentos consanguineos tinham-lhe dado
+a fragilidade ainda transparente na pallidez, nas fundas olheiras, no
+descorado dos labios. Por volta dos onze reagira, ganhára forças,
+mercê do longo tratamento com que o pae gastára muito, na teima de
+assegurar emfim um herdeiro á casa, depois de tantos morgados e
+morgadas, cheios de pustulasinhas, mortos no berço.</p>
+
+<p>Eram d'elle os olhos azues, desmaiados, o cabello castanho, e a
+expressão de aspereza que as sobrancelhas, contrahindo-se, ás vezes
+denotavam. Mas na boca pairava-lhe a terna brandura com que <span class="pagenum"><a id="page039" name="page039"></a>(p. 039)</span>
+a mãe outrora se resignava aos beijos roubados por infindaveis legiões
+de primos.</p>
+
+<p>Afogueada pela pressa com que viera, Maria falou a João, e sentaram-se
+todos, encruzados, na relva, a comerem maçãs e marmelos assados no
+forno, trespassados de assucar, que ella trouxera no regaço.</p>
+
+<p>Falou-se da imprevista partida do navio, dos actos do governo da ilha,
+dando elle noticias com simulada indifferença.</p>
+
+<p>Finda a merenda foram beber agua á pequena cascata do recanto da
+quinta onde se abrigavam a estufa de ananazes, e as largas folhas das
+bananeiras; amadureciam maracujás do tamanho de ovos côr de chocolate;
+desenrolavam-se fetos de entre as pedras negras e vermelhas, fundidas
+pela lava em filigranas, em lagrimas; abriam em guarda sol as largas
+folhas ovaes do inhame por cima da valla onde escoava o regueiro,
+empoçado em nodoas de agrião.</p>
+
+<p>Satisfeita a gulodice, que já lhe ameaçava de pontos negros os dentes
+miudos e mal implantados, Maria lançou-se para a rêde, que pendia
+indolente da ramada dos castanheiros, e juntando as mãos sob a cabeça,
+fez d'ellas e dos braços, a sairem nús <span class="pagenum"><a id="page040" name="page040"></a>(p. 040)</span> da manga arregaçada,
+o travesseiro em que se reclinou indolente, cerrando os olhos,
+sorrindo a João.</p>
+
+<p>Elle puchou uma cadeira de vimes e poz-se a baloiçal-a brandamente.</p>
+
+<p>Ganhava-os o odôr estonteante das magnolias, o morno perfume adocicado
+recendente da estufa.</p>
+
+<p>De mãos dadas afastavam-se pouco a pouco, os primos namorados até,
+como de costume, desapparecerem de todo.</p>
+
+<p>Correspondia João ao infantil sorriso de Maria, e ha dois annos que
+não passavam d'ahi.</p>
+
+<p>Estiveram muito tempo sem falar, no prazer mudo de se contemplarem,
+até que João estremeceu á ideia de a perder.</p>
+
+<p>&mdash;Teve noticias do primo?&mdash;perguntou-lhe de repente, indo direito ao
+assumpto, sem preparação.</p>
+
+<p>Ella respondeu indifferente, transportada no brando oscillar da rede:</p>
+
+<p>&mdash;Sim. Está bem.</p>
+
+<p>Apparentou desinteresse, mas insistiu:</p>
+
+<p>&mdash;Sempre casam?</p>
+
+<p>N'um movimento de contrariedade, que o animou a ir mais longe, disse
+Maria:</p>
+
+<p>&mdash;Bem <span class="pagenum"><a id="page041" name="page041"></a>(p. 041)</span> sabe que sim.</p>
+
+<p>Ficaria outra vez interrompida a conversação, se elle, animado pelo
+que crêra adivinhar, não se arriscasse mais:</p>
+
+<p>&mdash;E gosta?</p>
+
+<p>&mdash;De quê?</p>
+
+<p>&mdash;De casar.</p>
+
+<p>N'um visivel enfado murmurou:</p>
+
+<p>&mdash;Sei lá!</p>
+
+<p>Muito nervoso, repetiu:</p>
+
+<p>&mdash;Quero dizer se gosta de casar com elle.</p>
+
+<p>Tirou-se da rede que, preoccupado, João deixára parar e n'um encolher
+de hombros:</p>
+
+<p>&mdash;Se nunca o vi.</p>
+
+<p>Foi lançar-se descontente no banco de pedra, a fronte ensombrada, no
+gesto do pae.</p>
+
+<p>Ficou João um momento indeciso, e depois approximou-se vagaroso,
+offendido:</p>
+
+<p>&mdash;Vejo que não é minha amiga.</p>
+
+<p>&mdash;Porquê?</p>
+
+<p>&mdash;Fala-me com mau modo...</p>
+
+<p>&mdash;Eu?</p>
+
+<p>&mdash;Com frieza, com indifferença...</p>
+
+<p>&mdash;Para o que te havia de dar hoje!</p>
+
+<p>E como elle se sentasse, succumbido, soltou uma risada, <span class="pagenum"><a id="page042" name="page042"></a>(p. 042)</span> n'um
+impeto de volubilidade, e beliscou-o, no seu agreste feitio infantil.</p>
+
+<p>&mdash;Isto então é mau modo?</p>
+
+<p>Ergueu-se elle corando, e supplicou:</p>
+
+<p>&mdash;Por amor de Deus não brinque commigo!</p>
+
+<p>&mdash;Estás amuado?</p>
+
+<p>&mdash;Pelo menos agora não graceje, e diga-me só: Gostava de ir para
+Lisboa?</p>
+
+<p>Abrangeu n'um olhar a casa, o campo, a vida que levava enclausurada, e
+respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Isso gostava.</p>
+
+<p>Retorquiu João em voz estrangulada:</p>
+
+<p>&mdash;Não se importava então de me deixar?</p>
+
+<p>Irritada pelo interrogatorio, Maria exclamou, sem o fitar:</p>
+
+<p>&mdash;Que pergunta essa!</p>
+
+<p>Elle approximou-se, muito commovido:</p>
+
+<p>&mdash;Era uma separação para sempre! para sempre!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, talvez!</p>
+
+<p>E d'olhos no chão encarava agora as consequencias.</p>
+
+<p>Vendo-a impressionada, João aqueceu:</p>
+
+<p>&mdash;E não levava pena nenhuma?</p>
+
+<p>N'um repente de sinceridade, Maria accudiu ingenuamente:</p>
+
+<p>&mdash;De <span class="pagenum"><a id="page043" name="page043"></a>(p. 043)</span> me separar de ti, sim.</p>
+
+<p>&mdash;Mas não tinha ainda pensado em mim!&mdash;queixou-se elle, muito sentido.</p>
+
+<p>&mdash;Realmente ainda não pensára.</p>
+
+<p>Começava a sentir-se compromettida, olhava em torno a procurar os
+primos.</p>
+
+<p>João deixara-se arrastar pela arrebatadora emoção d'esse momento tanta
+vez sonhado, e tanta vez crido impossivel:</p>
+
+<p>&mdash;É porque nunca me quiz bem!</p>
+
+<p>Ella via embaciarem-se-lhe os olhos, tremerem-lhe os labios.</p>
+
+<p>Desculpou-se para não o affligir mais:</p>
+
+<p>&mdash;Como querias que pensasse em ti, se isto tem sido uma coisa no ar?</p>
+
+<p>&mdash;Mas estão preparados para o embarque...</p>
+
+<p>&mdash;É certo que o pae anda com isso ha muito. Mas elle faz e diz tantas
+coisas sem fundamento, que eu nunca o tive por decidido.</p>
+
+<p>&mdash;Nem mesmo o casamento?</p>
+
+<p>&mdash;Não pensei a serio em coisa alguma.</p>
+
+<p>E n'um arremesso de creança que os mimos tornaram voluntariosa:</p>
+
+<p>&mdash;Mesmo isso do casamento com o primo ha de ser se me agradar.</p>
+
+<p>João <span class="pagenum"><a id="page044" name="page044"></a>(p. 044)</span> estremeceu, desiludido:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Então ainda é possivel?</p>
+
+<p>&mdash;Só Deus o sabe. Mas se não sympathisar com elle, não ha forças
+humanas que me obriguem.</p>
+
+<p>&mdash;Quer dizer que ainda póde vir a agradar-se?</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe!</p>
+
+<p>Cria-o então possivel? É que nunca sentira por elle nenhuma affeição?
+E a custo João comprimiu um soluço, que não lhe passou despercebido.</p>
+
+<p>&mdash;Que tens tu?</p>
+
+<p>Bailando-lhe lagrimas nas pestanas, desabafou:</p>
+
+<p>&mdash;Ando como um doido! Perco as noites a pensar que não nos tornamos
+mais a vêr. Toda a minha vida hei de chorar esta casa...</p>
+
+<p>&mdash;Coitado! Faz-te falta o que o pae te dá a ganhar.</p>
+
+<p>Magoou-o a apreciação. Pois não presentia n'elle outro sentimento? Não
+interpretára nunca o verdadeiro culto que lhe votava, olhando-a
+absorto, como ás imagens.</p>
+
+<p>Pensou ainda em manter-se incomprehendido, em calar essa revelação.
+Vinha muito tarde! Não o comprehendera em dois annos de intimidade,
+não ia agora corresponder-lhe de repente. Mas revoltou-o vêr
+accentuada a situação de dependente.</p>
+
+<p>&mdash;Não <span class="pagenum"><a id="page045" name="page045"></a>(p. 045)</span> ia ali por interesse&mdash;protestou.&mdash;Os seus deixaram-lhe
+alguma coisa. Tinha com quê. Era só por ella, para estar ao seu lado,
+que acceitava o sacrificio do escriptorio.</p>
+
+<p>Impressionou-a a paixão com que falava.</p>
+
+<p>Ainda em tom de gracejo, mas com a voz um tanto abafada, disse sem o
+fitar:</p>
+
+<p>&mdash;Querem ver que te deu para me namorares?</p>
+
+<p>Ficou olhando para a areia vermelha. E como elle permanecesse calado,
+insistiu, evitando-o sempre:</p>
+
+<p>&mdash;Não respondes?</p>
+
+<p>&mdash;Fica zangada commigo?&mdash;perguntou a medo.</p>
+
+<p>&mdash;Não.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que fica.</p>
+
+<p>Ella virou-se de repente, e fitou-o com franqueza:</p>
+
+<p>&mdash;Zangada porquê?</p>
+
+<p>Intimidou-o essa expressão, que não comprehendia; mas era tarde para
+recuar. Muito envergonhado, rendeu-se:</p>
+
+<p>&mdash;Pois é verdade.</p>
+
+<p>Maria ergueu-se n'um riso forçado:</p>
+
+<p>&mdash;Tu, namorado de mim? Tu, meu fedelho! Ora! Não sabes o que dizes.</p>
+
+<p>Ia afastar-se, mas João supplicou:</p>
+
+<p>&mdash;Já <span class="pagenum"><a id="page046" name="page046"></a>(p. 046)</span> que me não ama, diga ao menos que me perdôa!</p>
+
+<p>&mdash;Tens medo? Descança, não faço queixa ao pae?</p>
+
+<p>&mdash;Não se ria de mim, quero-lhe muito, muito!&mdash;soluçou elle.&mdash;E quando
+soube que a pretendiam casar em Lisboa, chorei de desespero, porque me
+costumára a pensar que havia de ser minha mulher.</p>
+
+<p>Ella encarou-o, franzindo as sobrancelhas, como irritada pelo
+atrevimento do plebeu, do insignificante, irrespeitoso para com o
+idolo que para todos julgava ser.</p>
+
+<p>&mdash;Estás brincando! É lá possivel!</p>
+
+<p>Elle enxugou as lagrimas, conteve se:</p>
+
+<p>&mdash;Sinto-o agora, pelo desdem com que me trata.</p>
+
+<p>&mdash;É uma creancice.</p>
+
+<p>&mdash;Sim. Mas que me perdeu para sempre.</p>
+
+<p>Irritada procurou convencel-o:</p>
+
+<p>&mdash;Pois tu não vês que o pae nem quer que eu fale com o primo Antonio,
+nem com o primo Sebastião desde que se lhes metteu em cabeça
+pretenderem-me, porque são pobres? E que és tu ao pé d'elles, quasi
+tão fidalgos como nós? O que diria o pae se soubesse d'isto!</p>
+
+<p>&mdash;E <span class="pagenum"><a id="page047" name="page047"></a>(p. 047)</span> a menina que diz?</p>
+
+<p>&mdash;Que digo? Não me estás ouvindo?</p>
+
+<p>&mdash;Se me estima.</p>
+
+<p>&mdash;Bem sabes que sim.</p>
+
+<p>&mdash;Muito?</p>
+
+<p>&mdash;Vê lá se me entretenho com mais alguem do que comtigo e com a prima
+Josepha da Esperança.</p>
+
+<p>&mdash;E agora, depois do que lhe disse?</p>
+
+<p>Animava-se momentaneamente, olhava-a transportado, n'um lampejo de
+esperança.</p>
+
+<p>Ella sorriu, bondosa, infantil:</p>
+
+<p>&mdash;Já me viste por ventura algum namorado? Todas as raparigas os têm,
+aos dois e aos tres, e eu nunca achei graça a essas tolices. São
+brincadeiras estupidas. Mas se gostasse de um homem, muito cá de
+dentro...</p>
+
+<p>Transfigurou-se, dominou-a uma expressão de alegria, mas conteve-se e
+exclamou abruptamente:</p>
+
+<p>&mdash;Olha, falemos de outra coisa.</p>
+
+<p>Comprehendeu que era preciso acabar:</p>
+
+<p>&mdash;Vejo que não quer saber de mim.</p>
+
+<p>&mdash;És doido. Então não temos sido tão amigos?</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Como eu esperava ... não!</p>
+
+<p>&mdash;Sabes que mais? És um doido, é o que te digo!</p>
+
+<p>E <span class="pagenum"><a id="page048" name="page048"></a>(p. 048)</span> afastou-se com mau modo.</p>
+
+<p>&mdash;Um momento, senhora D. Maria, esqueça esta falta de respeito, antes
+que me retire para nunca mais voltar.</p>
+
+<p>&mdash;O quê? Não estás bom de cabeça rapaz. Então é que o pae desconfia. E
+o que serás tu nas suas mãos, meu franganito!</p>
+
+<p>&mdash;Virei despedir-me com qualquer pretexto ... e nunca mais me tornará
+a vêr!</p>
+
+<p>Ia seguindo Maria, que se esquivava a novas lagrimas, procurando os
+primos, aninhados n'algum caramanchão.</p>
+
+<p>Ao descobrirem-os, disse João precipitadamente:</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado pela feliz illusão em que tanto tempo me manteve, e adeus
+para sempre!</p>
+
+<p>&mdash;Vae com Deus&mdash;redarguiu ella, muito saccudida&mdash;e pede a Santa
+Catharina que te dê juizo.</p>
+
+<p>Despediu-se João cerimoniosamente de Jorge da Feteira, de D. Josepha,
+e retirou-se corrido.</p>
+
+<p>Não se atreveu a sair pela porta principal, á vista de todos.</p>
+
+<p>Atravessou o cannavial, passou ás terras lavradias, saíu pelo portão
+de ferro que abria para o cerrado, e seguiu ao longo do muro da
+quinta, encoberto pelas faias e caniçados.</p>
+
+<p>Ao <span class="pagenum"><a id="page049" name="page049"></a>(p. 049)</span> passar debaixo do mirante onde a deixara, surprehendeu
+pedaços de conversação a seu respeito.</p>
+
+<p>Josepha da Esperança reprehendia a prima:</p>
+
+<p>&mdash;Não o devias ter deixado tomar tanta confiança, desde que não o
+querias. Vocês pareciam mesmo dois namorados, e sempre os tive por
+isso. Andastes muito mal.</p>
+
+<p>Indignou-se Maria:</p>
+
+<p>&mdash;E tu, e as outras? Vocês teem licença para tudo? E se me desse para
+o namorar? Que tens que vêr com isso? Olha, talvez venha a gostar do
+entretenimento.</p>
+
+<p>&mdash;Com este?</p>
+
+<p>&mdash;Com este ou com outro. Parece que é tudo o mesmo, á maneira como
+vejo variar.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é commigo, prima?</p>
+
+<p>&mdash;É com todas.</p>
+
+<p>&mdash;Deu-lhe volta ao miolo! Pois veja se tem mais juizo.</p>
+
+<p>&mdash;Olhe, prima, não a chamei para mestra, e não me venha dar lições sem
+que a tome ao meu serviço.</p>
+
+<p>Voltou-lhe as costas e afastou-se.</p>
+
+<p>Josepha da Esperança ameaçou, despeitada:</p>
+
+<p>&mdash;O que tu merecias era que eu fosse contar tudo ao tio.</p>
+
+<p>&mdash;Pois <span class="pagenum"><a id="page050" name="page050"></a>(p. 050)</span> experimenta, e verás que te pico os olhos com uma
+agulha.</p>
+
+<p>Ao perceber o tom das referencias, João apressava o passo, corrido,
+humilhado, occultando se com os silvados, para que nunca mais o
+vissem.</p>
+
+
+
+
+<h2>III <span class="pagenum"><a id="page051" name="page051"></a>(p. 051)</span></h2>
+
+
+<p>Passára João interminaveis dias de angustia, e agora apenas ia á lição
+de latim, ficando a estudar noite e dia para poder entrar mais
+depressa na universidade.</p>
+
+<p>Manter-se-ia em Coimbra com a pequena legitima paterna que, para se
+formar, conservava intacta, sustentado pelas tias, a quem auxiliava
+com os ganhos de escrevente.</p>
+
+<p>Para supprir as quatro patacas pedira ao Juvencio, e ao doutor Ferraz,
+que o apreciava das conversas politicas da botica, alguns trabalhos de
+expediente da junta provisoria, que podesse fazer de tarde e á noite.</p>
+
+<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page052" name="page052"></a>(p. 052)</span> a subitas abandonava o buffete, chegava á janella, e
+sentava-se a contemplar a quinta dos Folhadaes, evocando a derradeira
+visita.</p>
+
+<p>Resentia-se da frieza de Maria, do desdem transparente nas censuras de
+D. Josepha da Esperança, do olhar sobranceiro de Jorge da Feteira ao
+corresponder friamente ao seu cumprimento.</p>
+
+<p>E avaliava que tal devia ser o primo de Lisboa a quem a destinavam,
+por esse arrogante analphabeto, cheirando a estrebaria, orgulhoso de
+pegar toiros á unha á saída do curro, de picar a pé á vara larga, de
+farpear de dentro do caixão a meio da praça, falando com desprezo da
+liberdade que não comprehendia, odiando a letra redonda que nem
+soletrava, copiando D. Miguel por fóra e por dentro, dizendo-se, por
+bravata, capaz de defender de armas na mão o passado, que lhe dava
+direito de primasia sobre a parte intellectual da nação.</p>
+
+<p>Como fôra ridiculo no seu acanhamento!</p>
+
+<p>Porque não rompera n'um rasgo soberbo, lançando-lhes em rosto alguma
+dura phrase ouvida na botica, predizendo-lhes a aniquilação fatal da
+fidalguia, despojada do direito de explorar o povo, annulada pelo
+plebeu trabalhador, instruido e saudavel, ella, a casta analphabeta,
+indolente, corroida no <span class="pagenum"><a id="page053" name="page053"></a>(p. 053)</span> sangue por heranças de miserias e de
+vicios?</p>
+
+<p>Precisava desafrontar-se, lançar-lh'o em cara, citar-lhes os artigos
+da Carta que confirmavam a Constituição na extincção dos privilegios,
+no estabelecimento da egualdade.</p>
+
+<p>Mas teria offendido gravemente Maria...</p>
+
+<p>Fôra melhor assim!</p>
+
+<p>Ella não podia pensar como o pae, como o primo.</p>
+
+<p>Tratara-o sempre como um egual e, se manifestára aquella grande
+estranheza, fôra decerto por ter ouvido de chofre o seu audacioso
+proposito, sem que uma gradual preparação a habilitasse a encarar
+aquelle amor como a natural consequencia da intimidade em que viviam.</p>
+
+<p>Maria amava-o, sem duvida; e assim que lhe importariam os
+preconceitos?</p>
+
+<p>Vibrava na revolta sentimental dos poetas que, em relampagos de genio,
+previam a declaração da egualdade, queixando-se de que Deus fizesse
+deseguaes os homens, e lhes desse, impiedoso, olhos e sentidos para
+escolherem o melhor, e um coração para estalar de dôr; e se fosse
+poeta glosaria n'um sentimento vivido, para os enviar a Maria como um
+formidavel protesto, os versos de Gil Vicente:</p>
+
+<p class="poem">
+ «Que <span class="pagenum"><a id="page054" name="page054"></a>(p. 054)</span> el amor que aqui me trajo<br>
+ Aunque yo fuese villano,<br>
+ El no lo es.»
+</p>
+
+<p>Já não havia porém villões e fidalgos; perante a lei eram todos
+cidadãos!</p>
+
+<p>Maria agora sabia tudo e, n'esses longos dias em que se não viam,
+tinha tempo de meditar.</p>
+
+<p>Julgal-o-ia no seu intimo, evocaria, talvez saudosamente, a
+jovialidade d'essas tardes!</p>
+
+<p>Que pensaria o fidalgo em não o vendo?</p>
+
+<p>Era forçoso ir lá dar-lhe qualquer desculpa. Não podia desapparecer
+como um criminoso.</p>
+
+<p>Precisava mesmo mostrar-lhe, e a todos, que não tinha medo.</p>
+
+<p>N'esse dia despedir-se-hia d'ella cerimoniosamente.</p>
+
+<p>Já não era dependente e, se o acolhesse, tratar-se-iam de egual para
+egual.</p>
+
+<p>Voltaria como visita, ou falar-lhe-ia da canada, e havia de
+inspirar-lhe confiança, fazendo-lhe vêr como as medidas liberaes,
+extinguindo distincções, lhe permittiam elevar-se até aspirar á sua
+mão.</p>
+
+<p>E assim caía de novo na preoccupação politica, sentindo ainda mal
+seguro esse estado de coisas que <span class="pagenum"><a id="page055" name="page055"></a>(p. 055)</span> provocava um desdenhoso
+riso a Martinho Vasques, e avinhados raptos oratorios ao frade.</p>
+
+<p>Como sempre que o intimidavam a tranquilla segurança dos adversarios,
+as más noticias que por toda a parte espalhavam, decidiu ir á botica
+avigorar a fé na convicção enthusiastica do velho clubista.</p>
+
+<p>Fôra tão forte o abalo soffrido que adiou de dia para dia a visita ao
+Juvencio e, sem saír mais que para a aula do padre Jeronymo, continuou
+agarrado aos livros, vendo n'elles, no curso para que o preparavam, a
+sua melhor desforra.</p>
+
+<p>Alarmou-o uma manhã o boato trazido de fóra pela creada, quando
+estavam almoçando, de que se ia embora o batalhão, e voltava a ilha á
+obediencia do senhor D. Miguel. A junta reunia gente armada para
+impedir o embarque, mas todos diziam que os caçadores eram levados do
+demonio, e nenhum caso fariam da paisanada.</p>
+
+<p>Não poude encobrir o desgosto, mas não respondeu ás tias, não lhes
+contestou os commentarios.</p>
+
+<p>D'ahi a pouco saía, muito enfiado, disposto a tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Que ha de novo, senhor Fulgencio?</p>
+
+<p>Veiu <span class="pagenum"><a id="page056" name="page056"></a>(p. 056)</span> do interior da loja o boticario, um velho alto, secco,
+ainda robusto, só divergindo dos constitucionaes na cara rapada, olhar
+inquieto, ardente, bocca energicamente accentuada, expressão decidida,
+barretinho de clerigo tapando-lhe a calva, muito correcto n'um velho
+traje de gala, repassado aqui e ali, casaca de seda preta, calção e
+meia, chinelos em vez dos sapatos de fivela, por causa dos callos.</p>
+
+<p>Aproximou-se n'um ar mysterioso, occultando-se das beatas que iam
+vigial-o de manto, e disse-lhe baixinho:</p>
+
+<p>&mdash;Está reunido o conselho militar. A coisa não ha de ir assim, estejam
+descançados.</p>
+
+<p>E retirou-se, muito activo, n'um passo miudo.</p>
+
+<p>Seguiu-o João, angustiado.</p>
+
+<p>&mdash;Vieram más novas?</p>
+
+<p>Voltou Fulgencio a falar-lhe entre portas:</p>
+
+<p>&mdash;Não vieram das melhores, não. Olha, ahi tens gazetas fresquinhas,
+chegadas hontem, n'um navio da laranja. Vae-te entretendo, emquanto eu
+avio a gente <i>do monte</i>, para ficar com as mãos livres, se tivermos
+dança.</p>
+
+<p>Era domingo e, conforme o uso, viera ás compras muito povo do campo.
+Estava a botica cheia de <span class="pagenum"><a id="page057" name="page057"></a>(p. 057)</span> cabaças, de alforges, de sacos de
+estopa. Em cima de mezas alinhavam-se tijelas onde Fulgencio, de
+espatula em punho, ia despejando boiões de unguento.</p>
+
+<p>Devorava João as pequenas folhas, de um palmo de largo, por palmo e
+terça de alto, a duas columnas, encimada pela corôa portugueza, entre
+<i>Gazeta</i> e <i>de Lisboa</i>, do titulo.</p>
+
+<p>Vinham cheias de saudações a D. Miguel pela «exaltação ao throno dos
+seus maiores»; da lista dos «donativos voluntarios», extorquidos pela
+policia e pelos caceteiros sob a ameaça da denuncia por liberal; de
+congratulações officiaes pela victoria das tropas fieis contra as
+rebeldes.</p>
+
+<p>Na ultima pagina do n.<sup>o</sup> 184, de 4 de agosto, figurava o annuncio do
+retrato de D. Miguel, em ponto grande; para medalha e caixa de rapé a
+40 réis a duzia, em preto, a 240 <i>illuminado</i>; para medalhas mais
+pequenas respectivamente a 30 e 160 réis; para anneis e alfinetes a 20
+e 120 réis.</p>
+
+<p>Publicava a <i>Gazeta</i> n.<sup>o</sup> 182, de 2 de agosto, o «Assento dos tres
+estados», em que se declarava D. Miguel rei absoluto, absolvendo-o de
+haver jurado falso com essa interpretação do juramento, que João lia
+assombrado: «irrito ou nullo quando cae sobre materia <span class="pagenum"><a id="page058" name="page058"></a>(p. 058)</span>
+illicita, quando é extorquido pela violencia, quando da sua
+observancia resultaria necessariamente violação de direitos das
+pessoas e dos povos, e sobretudo a completa ruina da nação.»</p>
+
+<p>E os jornaes continuavam a bater a nota das felicitações a D. Miguel e
+ás tropas.</p>
+
+<p>Que significava aquillo?</p>
+
+<p>Não podia deprehendel-o das <i>Gazetas</i>, alheio como estava ha muitos
+dias ao movimento politico.</p>
+
+<p>Mais aliviado de freguezes, veiu Fulgencio esclarecel-o:</p>
+
+<p>&mdash;Sim, foi-se tudo por agua abaixo. Já o sabiamos desde o dia 5, mas
+a cara era a mesma, para que esses patifes dos miguelistas não se nos
+rissem nas barbas...</p>
+
+<p>&mdash;E as noticias que o doutor Antonio da Silveira foi procurar ao
+Porto...</p>
+
+<p>&mdash;Já nos deram a divisão liberal em retirada para a Galliza ... mas
+nós: moita, carrasco!</p>
+
+<p>&mdash;Pois não poderam manter-se todas essas tropas da junta do Porto?</p>
+
+<p>&mdash;Perdeu-os a sua ingenuidade! Tu bem sabes que nós não queremos
+sangue, nem alçadas, nem perseguições, nem confiscos. Paz e egualdade
+para todos! <span class="pagenum"><a id="page059" name="page059"></a>(p. 059)</span> Eis como foram até cerca de Condeixa tres mil
+soldados liberaes, por assim dizer como chamariz a deserções.
+Mandaram-se proclamações para o campo inimigo, e ao alarme pela
+aproximação de uma força adversa romperam as bandas o hymno
+constitucional, para a arrastarem á adhesão. Contava-se vencer sem
+disparar um tiro, sem derramar o sangue de irmãos!</p>
+
+<p>&mdash;Como em Vinte!&mdash;exclamou João enthusiasmado.</p>
+
+<p>&mdash;Eram os principios! Mas as forças do Miguel, seis a oito mil homens,
+não quizeram «abraçar os irmãos d'armas», e atacaram na Cruz dos
+Moroiços, no momento em que todos os chefes, de major para cima,
+tinham ido assistir ao conselho militar em Coimbra. Foi a «acção dos
+capitães» e, como tal, as forças sem commando que reunisse os seus
+esforços, defenderam com valentia as posições occupadas, mas não
+limparam de inimigos o caminho de Lisboa. Depois o nosso general
+Refoios, receando que Povoas passasse o Mondego, ordenou a retirada
+para o Porto.</p>
+
+<p>&mdash;E ahi?</p>
+
+<p>&mdash;Não se poderam manter. Quando chegaram de Inglaterra os chefes
+emigrados já era tarde, e voltaram no <span class="pagenum"><a id="page060" name="page060"></a>(p. 060)</span> mesmo vapor que os
+levára, emquanto a divisão retirava para a Galliza.</p>
+
+<p>&mdash;Que desgraça!</p>
+
+<p>&mdash;Ou antes, que inepcia. Essa fuga dos chefes no <i>Belfast</i> não me
+passa d'aqui!</p>
+
+<p>E levou a mão á garganta n'um gesto nervoso.</p>
+
+<p>Sentiu João as lagrimas nos olhos, e fez exforços para não chorar.</p>
+
+<p>Assim ruia n'um momento o futuro em que tanto confiára.</p>
+
+<p>&mdash;Então acabou-se tudo?&mdash;exclamou em voz estrangulada.</p>
+
+<p>&mdash;Qual! Outros virão! Ha de estalar nova revolta, e o Miguel não
+levará a melhor! E agora que aprendemos á nossa custa, nada de hymnos
+nem de proclamações. Ha de ser á má cara!</p>
+
+<p>Dava grandes pernadas pela botica, olhando inquieto a praça, onde se
+juntava muito povo defronte da camara.</p>
+
+<p>Continuou para João, que ficára aturdido:</p>
+
+<p>&mdash;Assim o querem, assim o tenham! O exemplo do sangue veiu d'elles. Já
+começou a trabalhar a forca, mas os estudantes de Coimbra, longe de se
+intimidarem com o assassinio dos collegas condemnados pela morte dos
+lentes em Condeixa...</p>
+
+<p>Olhou <span class="pagenum"><a id="page061" name="page061"></a>(p. 061)</span> João fixamente, crendo que a sua pallidez provinha da
+referencia ao attentado e ás execuções.</p>
+
+<p>&mdash;Ouve lá. Tu que te fazes tão liberal, se te coubesse em sorte
+executares um tyranno, um inimigo de liberdade...</p>
+
+<p>&mdash;Não me tremia a mão, tenha a certeza!</p>
+
+<p>E João ergueu-se, vibrando de enthusiasmo, na esperança de poder tomar
+parte na lucta contra a casta dominante cuja oppressão tanto o
+magoára.</p>
+
+<p>Parecia-lhe ha muito que o experimentavam os frequentadores da botica,
+e sentia-se attrahido pelo maravilhoso, pelo mysterio do subterraneo
+onde constava funccionar uma associação secreta.</p>
+
+<p>Mostrava agora uma firmeza de homem feito, sentindo-se honrado por
+esse convite indirecto a entrar em acção.</p>
+
+<p>Juvencio fitava n'elle o olhar prescrutador.</p>
+
+<p>&mdash;Todos serão precisos!&mdash;disse-lhe por fim&mdash;e os rapazes mais do que
+os velhos. São vocês que teem a lucrar com a liberdade. Eu não
+chegarei a gosal-a em paz.</p>
+
+<p>Commoveu-se n'uma saudade do periodo constitucional, das humanitarias
+illusões em que tinham considerado a nação livre e feliz para sempre.</p>
+
+<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page062" name="page062"></a>(p. 062)</span> o gesto de amargura cedeu ante a impulsão do
+inquebrantavel espirito de combatividade, e proseguiu:</p>
+
+<p>&mdash;Como te ia dizendo, a estudantada não se intimidou, e adheriu á
+revolução, formando o batalhão academico, que lá retirou com os
+emigrados.</p>
+
+<p>Eram um novo contratempo para João as perturbações da universidade.</p>
+
+<p>E na obsecação do projecto que por esses dias o absorvera, perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Então assim, talvez não possa matricular-me este anno?</p>
+
+<p>Sorriu da ingenuidade o boticario.</p>
+
+<p>&mdash;És um creançola! Pois não vês que não torna a haver paz sem que
+elles nos enforquem até ao ultimo, ou nós os desarmemos e ponhamos o
+Miguel pela barra fóra?</p>
+
+<p>&mdash;Não sou tão inexperiente como julga. Mas pelo que vejo na <i>Gazeta</i>,
+D. Miguel foi proclamado rei, e tudo são felicitações e offertas...</p>
+
+<p>&mdash;Isso não quer dizer nada. É a gente d'elle, só a d'elle, porque os
+nossos estão presos ou emigrados. Mas olha que os embaixadores
+cortaram todas as relações diplomaticas, em protesto contra a infamia
+dos <span class="pagenum"><a id="page063" name="page063"></a>(p. 063)</span> juramentos falsos com que nos illudiu, com que enganou
+as nações estrangeiras.</p>
+
+<p>Puxou triunfante d'uma carta:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui sabe-se tudo, quer eles queiram quer não. Os tres estados, como
+tu já ahi lêstes, absolvem-o a seu modo, adoptando a moral jesuitica
+do juramento condiccional; mas ainda o desculpam de outra fórma,
+dizendo que elle, ante o parlamento, não jurou com a mão nos
+evangelhos, mas em cima dos <i>Burros</i> d'esse bandalho do José Agostinho
+de Macedo. Tu sabes as minhas opiniões, para mim tanto vale um como o
+outro, é tudo palavreado de frades. O crime está na má fé de bandido
+com que abusou da confiança attribuida á palavra de honra de qualquer
+homem de bem, quanto mais de um principe!</p>
+
+<p>João indicou-lhe o artigo da <i>Gazeta</i>.</p>
+
+<p>&mdash;Dizem que elle foi coagido a jurar.</p>
+
+<p>&mdash;Patife! Estava coacto, sim, é a desculpa d'esses homens que para
+vergonha nossa ainda governam cidadãos livres como rebanhos de
+carneiros. Na Villafrancada e na Abrilada, D. João sexto e D. Miguel
+declararam-se mutuamente coactos e illudidos, para justificarem as
+traições e as perfidias em que se digladiava a real familia. A sua
+«sciencia certa <span class="pagenum"><a id="page064" name="page064"></a>(p. 064)</span> e o seu poder absoluto» guardam-os esses
+ungidos do Senhor para pôrem os gatafunhos nas medidas uteis dos seus
+ministros.</p>
+
+<p>Amarrotou a <i>Gazeta</i> furioso, batendo com as costas da mão no artigo
+dos «tres estados», emquanto passeiava, declamando:</p>
+
+<p>&mdash;Isto que ele fez agora, deitar a mão á corôa, já o tentou por duas
+vezes em vida d'esse pobre diabo de D. João VI, combinado com a porca
+da mãe. Correu-lhe mal a coisa, teve que submetter-se na
+Villafrancada, e da Abrilada foi rebolindo de castigo para o
+extrangeiro. Da Austria, mal se viu livre do pae, escreveu ao senhor
+D. Pedro, reconhecendo-o e aceitando-o como herdeiro do throno
+portugues. Quando o grande rei liberal usou do poder para abdicar
+d'elle no povo, doando nos a Carta Constitucional, e para ceder a
+corôa á nossa joven rainha D. Maria da Gloria, sob a condição de D.
+Miguel casar com ella e acatar a Carta, jurou-a solemnemente, e até
+enviou ao irmão regente um manifesto negando a authoridade do seu nome
+a quem impugnasse o novo codigo da liberdade. Escreveu ao rei de
+Inglaterra garantindo-lhe o proposito de fazer respeitar as novas
+instituições, mantendo por meio d'ellas a paz em Portugal. Ao chegar
+<span class="pagenum"><a id="page065" name="page065"></a>(p. 065)</span> a Lisboa, em triumpho, entre meio de partidarios, sem que um
+só liberal se lhe podesse aproximar, ratificou, em grande ceremonial,
+os juramentos, e ainda cumpriu, a seu modo, a Carta, assignando
+decretos em que a applicava. E quando pôz o exercito da sua mão, mudou
+a officialidade, augmentou a policia, quando se considerou
+absolutamente seguro, desmascarou-se, fez-se proclamar rei absoluto,
+inventou a questão da legitimidade, que nunca até hoje fôra
+apresentada, e fez trabalhar o cacete e a fôrca.</p>
+
+<p>&mdash;E está realmente acclamado rei em todo o reino, como diz a
+<i>Gazeta</i>?&mdash;perguntou João intimidado.</p>
+
+<p>Mediu-o Juvencio de alto a baixo, e respondeu n'um aprumo soberbo:</p>
+
+<p>&mdash;Mas não o está na ilha Terceira!</p>
+
+<p>Elle retorquiu, receioso, mostrando o jornal:</p>
+
+<p>&mdash;Fala-se aqui de uma expedição em que vem a nau <i>D. João VI</i>, e mais
+dez navios, contra a Madeira e as outras possessões revoltadas...</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei. E já fizeram exercicio de desembarque diante do «seu anjo».
+Pois que venham cá, e verão a lição que levam!</p>
+
+<p>Deslumbrava-o <span class="pagenum"><a id="page066" name="page066"></a>(p. 066)</span> o orgulho patriotico:</p>
+
+<p>&mdash;Tinha melhores dentes o Demonio do Meio-Dia, e por duas vezes lhe
+corremos com a sorte. O que a nossa terra fez então, póde repetil-o
+agora. Até os toiros dos nossos mattos se lhe deitaram na Salga, e
+Vadez fugiu, apezar dos seus dois mil soldados cobertos de ferro! Para
+se metterem cá tiveram os hespanhoes que mandar oitenta navios e
+dezaseis mil homens. Onde tem o Miguel gente para isso? Pois tomára eu
+que mandasse muita, para que, livres d'ella, o puzessem os liberaes
+mais rasos do que um chinelo.</p>
+
+<p>Ardia João na impaciencia de saber toda a verdade:</p>
+
+<p>&mdash;Por têr mêdo da esquadra o batalhão quer saír, como corre?</p>
+
+<p>&mdash;Com mêdo, dizes bem. Eis o que valem fanfarronadas de caserna!
+Lingua têm elles para se darem como autores de tudo, dadores da
+liberdade, mantenedores da independencia. Mas vê lá se alguem os viu
+quando entraram os francezes! Nem raça de um. Foram as guerrilhas,
+paisanada como eu e como tu, que lhes puzeram as uvas em pisa. E
+quando mataram o grande general Gomes Freire? Se foram elles proprios
+que o fuzilaram! Havia officiaes <span class="pagenum"><a id="page067" name="page067"></a>(p. 067)</span> inglezes n'esse tempo, mas
+só meia duzia. A soldadesca e os agaloados eram todos de cá. Que
+prendas! Em Vinte sahiu tudo para a rua, que duvida, se a coisa não
+cheirava a esturro. Apenas vivas e palmas! Quando se conspirava contra
+a Constituição, ainda juraram defendel-a até á ultima gota do seu
+sangue. Mas assim que os franceses entraram por Hespanha, e o Miguel
+se levantou, puzeram-se no seguro, e trahiram todos os juramentos,
+choramingando que a liberdade era má porque lhes deixava os soldos em
+atrazo, quer dizer, porque não lhes dava em promoções e augmentos de
+soldo tudo o que pagava o pobre povo. Lá conheceram para que serviam
+ao atrelarem-se ao carro de D. João VI, que puxaram como bêstas,
+organisando até a relação dos nomes, e disputando aos fidalgos a honra
+da preferencia!</p>
+
+<p>&mdash;É então certo que retira?</p>
+
+<p>&mdash;O major José Quintino Dias apenou os navios da laranja para o
+levarem a Inglaterra, onde devem ir ter os emigrados. Queria embarcar
+hoje mesmo, 24 de agosto! Escolheu bem a data, não haja duvida, quando
+faz oito annos que rebentou a revolução constitucional no Porto!</p>
+
+<p>Considerou tristemente:</p>
+
+<p>&mdash;Oito <span class="pagenum"><a id="page068" name="page068"></a>(p. 068)</span> annos! Como o tempo corre! E estamos peior do que ao
+começo.</p>
+
+<p>Nada porém abatia a sua fé inabalavel:</p>
+
+<p>&mdash;Mas havemos de restaurar a liberdade, embora só vocês gosem d'ella!</p>
+
+<p>João commentou ainda:</p>
+
+<p>&mdash;Mas caçadores cinco foi sempre um corpo liberal!</p>
+
+<p>&mdash;Pois é isso mesmo o que mais me doe. O bravo cinco! Um batalhão
+degredado para aqui pela sua firmeza, quando até o famoso dezoito de
+infanteria, unico que não fôra á Villafrancada, se bandeou, depois de
+ter recebido, n'essa hora tragica, um exemplar da constituição
+confiado á sua guarda, e de ter jurado morrer pela liberdade! O cinco,
+o bravo cinco!</p>
+
+<p>E reconsiderando:</p>
+
+<p>&mdash;Mas ouve lá, rapaz, se em geral a tropa não merece confiança, e só
+pensa no venha a nós, tem tido verdadeiros heroes liberaes, embora por
+excepção! Esses que emigraram, sem acceitarem as concessões do Miguel,
+são portugueses de antes quebrar que torcer! Bem viste como se portou
+o nosso «cinco» em vinte e dois de junho. Agora é que lhe deu
+<span class="pagenum"><a id="page069" name="page069"></a>(p. 069)</span> para desmanchar-se ... Ainda tenho para mim que ha de
+reconsiderar.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem creio que se não vae.</p>
+
+<p>Juvencio exclamou exaltado:</p>
+
+<p>&mdash;Lá isso é que não vae, podes ter a certeza! Ha de ficar, ao bem ou
+ao mal. Não é só meterem-se nas coisas. Quem as arma que as desarme.
+Vae por ahi uma gritaria, um desespero que é de cortar o coração. Bem
+se sabe o que o Miguel fará se entrar aqui. São mortes, confiscos,
+donzellas violentadas, creanças insultadas nos seus lindos olhos
+azues, a maldita côr constitucional. A elles póde não importar isso,
+mas nós não queremos a desgraça na nossa querida terra. Se teimarem em
+fugir, abandonando ao carrasco mulheres e creanças, ensinar-lhe-emos á
+força o seu dever!</p>
+
+<p>Como sempre, fôra avassallado João pela fé do velho liberal:</p>
+
+<p>&mdash;Sim! Sim! Diz muito bem.</p>
+
+<p>E no rosto lia-se-lhe uma formal decisão.</p>
+
+<p>Agora Juvencio approximava-se, commovido, os olhos rasos de agua:</p>
+
+<p>&mdash;Quando fôres pae, Joãosinho, comprehenderás a minha dôr. Tenho aqui
+em cima tres filhas, e já um neto, cujos cabellos loiros são o meu
+encanto! A <span class="pagenum"><a id="page070" name="page070"></a>(p. 070)</span> minha familia é a minha religião. Tudo quanto
+sou, me tornei por causa d'elles! A minha alegria é o reflexo da sua
+alegria, a minha vida é o trasbordar da sua vida, a mesma que em mim
+se definha e n'elles se perpetúa. A mulher é tão velha como eu, mas
+ellas são novas e lindas. Queres saber o que os padres prégam do
+pulpito abaixo? Que é preciso matar as <i>malhadas</i>, as filhas de
+liberaes como as minhas, de preferencia as gravidas, porque as
+creanças já trazem no ventre o ferrete da malhadice! A minha filha
+casada está para dar-me outro neto. Calcula agora as minhas queridas
+filhas, e os olhos azues do meu lindo neto, pasto de soldados e de
+frades! Não! Não ha de ser assim!</p>
+
+<p>&mdash;Na nossa terra não entram esses barbaros!</p>
+
+<p>Mais calmo, limpando as lagrimas, aliviado pelo desabafo, Juvencio
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;É preciso que não entrem! Toda a esperança da liberdade portuguesa
+depende de nós. Se fossemos vencidos reinaria o Miguel por toda a
+parte. É o que agora dirão no conselho ao major Quintino. O futuro de
+Portugal está-se jogando, n'este instante, ali! A ilha Terceira póde
+defender-se, e ha-de defender-se! É tão bravia a costa do mar, que faz
+por si só uma muralha, e se n'ella nos vencerem, temos <span class="pagenum"><a id="page071" name="page071"></a>(p. 071)</span> as do
+castello. A nossa terra é tão insignificante, estará dizendo Quintino,
+que n'um dia se corre toda em volta a pé. Pois quanto mais pequena
+fôr, maior o exemplo! Ha-de acabar-se a dependencia. Tornaram isto um
+degredo, um escoadouro de tudo quanto tem de mau. Mandam para cá o
+refugo dos funccionarios, o que lhes não serve de nada. Pois se o mal
+vem de lá, ha-de ir-lhe de cá a lição! Aqui foi o reino do Prior do
+Crato; aqui viveu ainda por dois annos o Portugal independente,
+vendido pela fidalguia ao rei de Hespanha; ha-de ser aqui o sacrario
+da liberdade, que depois reviverá em Portugal!</p>
+
+<p>Observou a praça, e ficou descontente:</p>
+
+<p>&mdash;Ein? Tudo na mesma. Mau signal. Já tiveram tempo de decidir qualquer
+coisa. Pois vamos até lá a vêr se espertam.</p>
+
+<p>Desappareceu no interior da loja.</p>
+
+<p>Estremecia João n'um fremito de independencia.</p>
+
+<p>Sim, resistir aos de fóra, acabar com essa escravidão, o navio cujas
+noticias o ameaçavam, o primo do continente a quem estava destinada a
+mulher amada. Queria-a para si, e havia de defendel-a com o ardor com
+que Juvencio pretendia bater-se pela familia.</p>
+
+<p>E <span class="pagenum"><a id="page072" name="page072"></a>(p. 072)</span> assim como para o velho constitucional se identificavam os
+dois amores, tornando-se um a ampliação do outro, sendo o lar o mais
+sentido representante do maior, assim Maria se lhe tornava o symbolo
+da sua terra, ameaçada pelos de longe, dominada, como parte da sua
+população, pelo preconceito, pelo fanatismo.</p>
+
+<p>Percorria-o um fremito de bravura, manifestava-se-lhe, ao influxo da
+occasião, a hereditariedade guerreira; e sentia-se prompto a combater
+por ella e pela liberdade, já sem o triste acanhamento em que se
+humilhára ante a frieza do seu olhar altivo, ante o desdem de um boçal
+marialva.</p>
+
+<p>Veiu de dentro Juvencio, de chapeu alto, vendo-se-lhe o barretinho por
+baixo, emquanto, de costas, pretendia fechar a porta interior; trazia
+o capote preso nos fechos de prata, e debaixo d'elle um volume que lhe
+tolhia os movimentos.</p>
+
+<p>Voltou-se, sorriu ao encarar com João, e pediu-lhe que encostasse a
+porta da rua.</p>
+
+<p>Desembaraçou-se, poz em cima da meza uma espingarda de pederneira e o
+cinto de cartuchos.</p>
+
+<p>Fechou então a porta, metteu a grande chave n'uma gaveta, foi depois
+verificar a escorva, e por fim desembainhando a espada posta á cinta,
+mostrou a <span class="pagenum"><a id="page073" name="page073"></a>(p. 073)</span> João, que assistia n'uma impassivel gravidade de
+homem feito, a lamina onde se lia: «Constituição ou Morte».</p>
+
+<p>Tivera-a muito bem escondida como uma reliquia, e nem as perseguições
+do maldito Stokler lh'a poderam arrancar.</p>
+
+<p>Cingiu o cinto da polvora, enfiou no hombro a bandoleira da espingarda
+e deitou por cima o capote azul, encobrindo as armas.</p>
+
+<p>N'uma ternura paternal poz a mão no hombro do rapaz, ao despedir-se:</p>
+
+<p>&mdash;Adeus, e mette-te em casa, Joãosinho. Temol-a tramada!</p>
+
+<p>&mdash;Em casa, eu?&mdash;protestou quasi offendido pelo conselho.&mdash;Olhe tambem
+para isto, senhor Juvencio.</p>
+
+<p>E da alta bengala de madeira preta e castão de marfim, arrancou um
+agudo estoque, e sacou das amplas algibeiras do casaco duas pistolas
+de pederneira.</p>
+
+<p>&mdash;Estão carregadas!</p>
+
+<p>Enternecera-se o velho:</p>
+
+<p>&mdash;Pois tambem tu, pequeno! Oh! Com rapazes assim a victoria é nossa.</p>
+
+<p>Muito orgulhoso, João gracejava:</p>
+
+<p>&mdash;Então <span class="pagenum"><a id="page074" name="page074"></a>(p. 074)</span> o senhor, sósinho, é que havia de defender esta terra
+toda, lá por ella ser tão pequena? Eu tambem sou terceirense, tambem
+tenho direito ao meu pedaço!</p>
+
+
+
+
+<h2>IV <span class="pagenum"><a id="page075" name="page075"></a>(p. 075)</span></h2>
+
+
+<p>Saíram para a praça, repleta de gente.</p>
+
+<p>Não queriam voltar para as freguesias ruraes, sem saberem a decisão,
+os <i>homens do monte</i>, as mulheres com o cabello de risca ao meio a
+luzir de unto, saia pela cabeça, entufadas de saias sobre saias, os
+pés metidos em galochas de cedro, com pálas de coiro verde, avivadas a
+vermelho, luzentes de ilhós, cravejadas de pregos de aço.</p>
+
+<p>Nos grupos da gente da cidade graves artistas independentes,
+carpinteiros, ferreiros, ourives, sapateiros, marceneiros, alfaiates,
+trabalhando na propria casa, e para si, auxiliados pelos filhos, ou
+<span class="pagenum"><a id="page076" name="page076"></a>(p. 076)</span> por apprendizes e officiaes, que sentavam á sua meza.</p>
+
+<p>Esperavam n'um grande ar de solemnidade, orgulhosos dos capotes de bom
+panno azul ou castanho, presos por fechos trabalhados de latão ou de
+prata.</p>
+
+<p>Commerciantes de chapeu alto, grande casaca, no rigor do trajo
+constitucional, ostentando bigodes, afadigavam-se por entre os grupos
+de artifices e camponezes, achando todo o apoio n'aquelles, e n'estes
+uma desconfiança hostil.</p>
+
+<p>Sentia nas novas leis o seu advento a burguesia liberal, e defrontava
+por toda a parte o fidalgo e o convento, senhores da terra, parasitas
+do trabalho, e queria oppor aos monopolios a liberdade commercial.</p>
+
+<p>Mulheres do povo, de capote berneo, n'uma explosão de escarlate;
+burguesas e fidalgas de manto negro, reunidas em pequenos grupos,
+parentas, amigas; viravam incessantes os biôcos mal saía uma pessoa da
+camara, e atravessava a praça illaqueada pela anciedade da decisão.</p>
+
+<p>A dentro dos capotes e dos mantos, por sob as pregas apparentemente
+uniformes, adivinhavam-se no esguio, no flexivel da cintura, no
+irrequieto do bico de passaro, no adejar de vôo dos largos pannos, as
+noivas <span class="pagenum"><a id="page077" name="page077"></a>(p. 077)</span> do batalhão, as apaixonadas d'essa juventude que, no
+prestigio da farda, na vivacidade de lisboetas, no seu falar cantado,
+endoidecia as raparigas, com grave ciume dos patricios offuscados.</p>
+
+<p>Reconhecia-se o abandono das quarentonas sem futuro, gordanchudas,
+afogadas em seios já inuteis, semeadas por entre os grupos como
+escolhos, em torno dos quaes esvoaçavam os bandos de garças.</p>
+
+<p>Havia vendedeiras de capello deitado para traz, suffocadas pelo calor
+e pelo medo de perderem o rosario de dividas deixadas pelas tropas ao
+levantarem campo.</p>
+
+<p>Tapavam rebuços os rostos lacrimosos das namoradas e amantes dos
+soldados, dos officiaes e dos sargentos; mas carpiam-se, por todas as
+saudosas, as <i>mulheres da Rocha</i>, lenço de seda na cuia, chaile
+terçado, rosetas de vermelhão nas faces, labios pintados,
+arrepelando-se, bradando contra a saída d'esses divertidos rapazes,
+cujas guitarras trinavam melhor que as enfadonhas violas de arame da
+terra, d'esses bons fregueses, tão generosos e tão pandegos.</p>
+
+<p>Capitaneado pela Joaquinina do Ó, estava o rancho das beatas encoberto
+com o canto da rua da Sé.</p>
+
+<p>De <span class="pagenum"><a id="page078" name="page078"></a>(p. 078)</span> atalaya á botica, destacava alviçareiras para o convento
+dos franciscanos; era um constante borboletear de mantos pela ladeira
+de São Francisco, e as que voltavam falavam ás que iam, encostando
+n'um tremelicar nervoso os biôcos, como antenas de formigas.</p>
+
+<p>Traziam medalhas com o retrato de D. Miguel, bentas pelos frades, e
+que elles proprios lhes tinham posto ao peito, para ostentarem
+victoriosamente, mal houvesse a certeza de que retiravam os caçadores.</p>
+
+<p>Á apparição do boticario, afadigou-se nova emissaria ladeira acima, e
+foi adejando o enxame atraz do velho e de João, seguindo-os por entre
+os grupos até junto da escada de pedra, que subia exteriormente á
+fachada do edificio, encimado pela torre do sino onde se tocava a
+recolher.</p>
+
+<p>Para os lados da rua do Gallo reunia-se o grupo dos mais influentes
+constitucionaes, que não tinham assento no conselho.</p>
+
+<p>Por vezes distrahia a espectativa o borborinho, gritos, risadas,
+vindas dos arcos da cadeia.</p>
+
+<p>Davam para as arcadas que sustentavam a varanda de pedra da fachada,
+as janellas das enxovias, onde havia <span class="pagenum"><a id="page079" name="page079"></a>(p. 079)</span> cestos arvorados em
+canas, como apparelhos de pesca armados á compaixão.</p>
+
+<p>Ia a gente do monte agarrar-se ás grades, uns a comprarem pentes e
+grosas de botões de chifre, enfiados em agulhas de feno; outros a
+mirarem com olhos compassivos a nudez da prisão, a bilha de agua, o
+immundo boião dos dejectos, a tarimba de madeira onde se mantinha
+acocorado o <i>Marmanjão</i>, meditabundo, envolto em pedaços de colcha
+esfarrapada, offendido por essa profanadora curiosidade, elle, o
+santinho, como lhe chamavam os frades que o tinham de olho para
+carrasco; muito temente a Deus, notavel pela frequencia com que se
+confessava e commungava, e indigitado para a nobre missão de executor
+pela limpeza com que em S. Bartholomeu demolira com uma só paulada o
+homemzarrão de um vizinho.</p>
+
+<p>Regateava em voz fanhosa gaiolas de cana com melros pretos de bico
+amarelo, grandes cantores, o <i>Mujinha</i>, baixo, olhinhos de bisnau,
+pondo um traço de intrigante na cara rugosa; gatuno, fachina da cadeia
+e afilhado de chrisma do carcereiro que lhe levava caridosamente á
+porta as gaiolas, em ademanes de sacristão.</p>
+
+<p>Com a pronunciada queda commercial d'esse, contrastava <span class="pagenum"><a id="page080" name="page080"></a>(p. 080)</span> a do
+seu visinho de janela, o <i>Zica</i>, muito correcto e limpo, cantarolando
+á moda da ilha de S. Miguel, vendendo pentes de baleia, cumprindo
+resignado a pena imposta por uma desforra tirada á má cara, n'uma
+noitada de vinho.</p>
+
+<p>Este era constitucional, e arvoráva sempre, provocadoramente, as guias
+do grande bigode, sem sequer as deitar abaixo, apesar das denuncias do
+santarrão pretendente a carrasco, e das intrigas do gaioleiro, durante
+o tempo em que a ilha acatára a usurpação.</p>
+
+<p>Logo na grade contigua outro miguelista, o <i>Roseiro</i>, um velhinho sem
+dentes, deprimido como uma fava escoada, alegrava os curiosos com
+inexgotaveis historias de toiradas, em que era uma auctoridade, e
+recebia em troca pedaços de pão de milho, e algum grande pataco com a
+effigie do senhor D. João VI, em premio á fidelidade e á coragem com
+que descrevia o «senhor D. Miguel» rejoneando toiros desembolados, e o
+seu confessor, fr. José da Rocha, saltando á praça e pegando á unha.</p>
+
+<p>Apoiado aos fortes varões que de seculos de afflictivas despedidas
+tinham as quinas amolgadas, como que derretidas pela ardencia em que
+se lhes crispavam as mãos dos desgraçados, falava com a familia e
+<span class="pagenum"><a id="page081" name="page081"></a>(p. 081)</span> os visinhos do Raminho, um camponez alto, magro, rosto
+ossudo, enorme nariz, gago, dentes pôdres, grandes pés descalços
+espalmados, por alcunha o <i>Lindinho</i>, condemnado por morte d'homem ás
+Pedras Negras.</p>
+
+<p>Contava com esse a fradaria para ajudante de carrasco, pois a faina
+promettia, e só lamentava que não houvesse n'elle a necessaria uncção
+do <i>Marmanjão</i>, e que ambos, apesar de já afeitos, não tivessem a
+comprovada pericia de carrasco de officio, nem o aspecto, que só por
+si fazia chorar as creanças, obrigadas por lei a presencearem as
+execuções, de um celebre preto a quem fôra commutada em prisão
+perpetua a pena de morte, para fazer pernear condemnados na forca, de
+saco pela cabeça, ante a bandeira da misericordia.</p>
+
+<p>Que falta lhes fazia ali, para a restauração do governo do throno e do
+altar, um patriota como o <i>Cambaças</i>, que se offerecera para enforcar
+os liberaes; ou um preso como o <i>Fitas</i>, ladrão celebre, grande
+partidista de D. Miguel; que até os ladrões eram por el-rei contra a
+immunda canalha jacobina!</p>
+
+<p>Sentado de lado, contra a grade, sem encarar os ouvintes, o
+<i>Ferrabrás</i>, faquista, contava historias, que <span class="pagenum"><a id="page082" name="page082"></a>(p. 082)</span> não provocavam
+gargalhadas como as do <i>Roseiro</i>. Eram de bruxas, de almas do outro
+mundo, e o olhar em extasis, e a barba inculta na cara descarnada,
+impressionavam, tornando mais horrorosas as apparições de phantasmas
+de incorrigiveis constitucionaes, como o illustre general Araujo, o
+<i>diabo</i>, assassinado pelos reaccionarios, com repiques e illuminações
+das freiras de S. Gonçalo, e que ao bater da ultima badalada da meia
+noite arrastava correntes pelo Caminho Novo, vendo-se-lhe pelas costas
+abertas o fogo do inferno que o consummia.</p>
+
+<p>Abaladas pelos medonhos pavores caiam mulheres com faniquitos, e então
+descia uma ordenança tinindo ferros, a prohibir os choros de uns e as
+berratas torreiras de outros.</p>
+
+<p>Puxava o carcereiro os presos para dentro, n'um ar compungido, mas
+severo; obediente ás ordens, mas doendo-se da sua execução; injuriando
+os renitentes entre abundancias de «valha-me Deus»; e só não levava o
+seu rigor ao ponto de fechar as janelas, porque não tinham portas,
+bastando á justiça o gradeamento para que não fugissem os presos, e
+convindo-lhe que a chuva molhasse o lagedo, afim de que ao saírem os
+condemnados, expiada a pena, se <span class="pagenum"><a id="page083" name="page083"></a>(p. 083)</span> tornasse mais salutar o seu
+exemplo por irem tolhidos para o trabalho.</p>
+
+<p>Cumprida a ordem, ia entregar-se Benicio ao formal desempenho da sua
+missão de chaveiro, vigiar a porta chapeada de ferro; e sentava-se
+junto d'ella a untar de azeite as chaves do postigo, dos cadeados, do
+segredo, do alçapão por onde se despejava cal para aplacar as
+desordens, fechando por calculo os olhos ao negocio e os ouvidos ao
+falatorio, para que «os pobres de Christo», coitados, podessem fazer o
+seu vintem, tanta gente juntára o Senhor n'aquella praça; que elles
+afinal não eram maus rapazes no seu fadario, «valha-os Deus», são
+sortes, e até no fundo eram generosos, recompensando-lhe a caridade
+com que os deixava fazer pela vida.</p>
+
+<p>Voltavam os presos pouco a pouco ás grades, metia-se á formiga o
+povoleu pelas arcarias, e recomeçava a cantilena do «eu te requeiro da
+parte de Deus e da Virgem Maria», efficaz para desembruxar almas
+penadas; o pittoresco do «e vae o senhor D. Miguel ferra-lhe com o
+rojão mesmo no sitio»; a «Chamarrita, chamarrita, chamarrita, chama
+Rosa» das cantigas do baleeiro; e a giria commercial do <i>Mujinha</i> «Ó
+meu rico freguez, perco n'esta gaiola metade do que dei ao homem que
+me foi apanhar os <span class="pagenum"><a id="page084" name="page084"></a>(p. 084)</span> caniços», o chamariz com que ganhava
+perdendo sempre.</p>
+
+<p>N'aquella mesma praça, com essa mesma gente, recordava João, fôra
+celebrado ha dois mezes, em 22 de junho, o triumpho da liberdade e da
+Carta, a revolução liberal do Porto de 18 de maio.</p>
+
+<p>Agora, em vez da alegria d'essa manifestação, o receio de que tudo se
+desfizesse n'um momento. Estremeceu ao lembrar-se como então, de
+subito, ficára o chão regado de sangue do povo, no tumulto provocado
+pela malvadez de um padre, e em que a cobardia da soldadesca,
+disparando para intimidar, matara quatro indefesos homens.</p>
+
+<p>Mas tranquilisou-se observando melhor. Não se via nem padres nem
+soldados: não havia perigo.</p>
+
+<p>Fez a impaciencia de Juvencio extravasar a dos mais.</p>
+
+<p>Se por si só o conselho não tinha força para demover o commandante,
+era tempo de intervirem.</p>
+
+<p>Acharam-lhe razão, e do grupo separou-se logo, sem dizer palavra,
+Cypriano da Costa Pessoa, um negociante alquebrado pela doença e pela
+edade.</p>
+
+<p>Subiu alguns degraus da escada de pedra, amparou-se ao corrimão, e
+voltando-se para o povo descobriu a cabeça embranqueçida e dispoz-se a
+falar:</p>
+
+<p>«Concidadãos!» <span class="pagenum"><a id="page085" name="page085"></a>(p. 085)</span></p>
+
+<p>Custou a fazer silencio e, apesar de restabelecida a ordem nos grupos
+mais proximos, ainda da arcada dos carceres, de onde se não via o
+orador, vinham echos desencontrados, provocando um sussurro de
+protesto.</p>
+
+<p>«Concidadãos!»</p>
+
+<p>E a voz cava de Cypriano repetiu a invocação, procurando o volume
+preciso para se fazer ouvir até ao extremo.</p>
+
+<p>Que queria ali aquelle homem?</p>
+
+<p>Cravavam-lhe olhos esbugalhados os camponezes, pasmados de que alguem
+se atrevesse a levantar a voz em publico, sem ser um clerigo, sem ter
+que contar milagres de santos.</p>
+
+<p>N'um grande esforço, conseguira o orador fazer retumbar até ao canto
+da praça, onde costumavam juntar-se os mariólas, como um grito de
+alarme:</p>
+
+<p>«Nas actuaes circumstancias mais vale morrer com as armas na mão do
+que soffrer os insultos dos satélites do usurpador!»</p>
+
+<p>A convicção das suas palavras fez estremecer os proprios que
+estranhavam esse secular imitando padres, fazendo pulpito da escadaria
+municipal.</p>
+
+<p>Continuava trovejando a voz de Cypriano, modelada pela <span class="pagenum"><a id="page086" name="page086"></a>(p. 086)</span>
+entoação dos prégadores, pois não tivera a lição civica da oratoria
+constitucional.</p>
+
+<p>N'um fremito de terror echoava aos ouvintes a ameaça, correspondente á
+absoluta verdade:</p>
+
+<p>«Não tardará o massacre de quantos liberaes elles puderem colher ás
+mãos!»</p>
+
+<p>Ante os olhos apavorados dos que se viam, d'um momento para o outro,
+sob a alçada do carrasco, passava o rosario de crimes absolutistas, as
+perseguições de Stokler ali na ilha, a prisão e deportação dos
+deputados ás côrtes constitucionaes, a captura em massa operada
+pessoalmente por D. Miguel, de aguilhada em punho, os nove estudantes
+enforcados no Caes do Tojo, as covas abertas em Portalegre á porta dos
+liberaes, a tortura de Renduffe, o envenenamento de D. João VI, o
+assassinio de Loulé.</p>
+
+<p>Iam ficar sujeitos a taes horrores se caçadores 5 abandonasse a ilha.</p>
+
+<p>E nas faces consternadas reappareceram as lagrimas.</p>
+
+<p>Mas nem Cypriano da Costa, nem os liberaes do seu grupo se mostravam
+desanimados.</p>
+
+<p>Cheios de fé, queriam luctar e appellavam para o auxilio de todos.</p>
+
+<p>Por <span class="pagenum"><a id="page087" name="page087"></a>(p. 087)</span> essa praça, tão divertida em tardes de toiros e
+cavalhadas, resoava a mesma voz grave, sentida:</p>
+
+<p>«Para desviar este mal tão imminente, poupar a nós e a nossas
+familias, amigos e parentes, convém que já, já, os amantes da patria e
+da boa ordem vão offerecer-se ao governo, alistando-se voluntariamente
+para servirem debaixo das armas!»</p>
+
+<p>Ficou abalada a concorrencia, e a ideia emittida do alto agitou por
+camadas a turba, enthusiasmou os liberaes mais proximos, perturbou os
+mestres de officios, entonteceu as cabecinhas de capuz escarlate,
+revoluteiou as dos amplos capellos, e por fim saccudiu em tardas
+negativas os barretinhos de borla, de malha amarela e vermelha, e as
+carapucinhas de panno preto, em forma de tijela, talhadas em quartos
+como barretes de clerigo, dos camponios.</p>
+
+<p>Insistiu no convite:</p>
+
+<p>«N'esse momento, e desde já, não cuidava mais de outros negocios, nem
+entendia haver occasião mais conveniente de prestar melhor serviço á
+sua patria e a tantas familias,»&mdash;e aqui a voz vibrava
+vergastadas&mdash;«sob pena de serem considerados como pusilanimes e
+ingratos!»</p>
+
+<p>Só lhe restavam forças para offerecer o exemplo do seu sacrificio:</p>
+
+<p>«Emfim, <span class="pagenum"><a id="page088" name="page088"></a>(p. 088)</span> não ha tempo a perder! Todos os que quizerem seguir
+tão brioso partido que me sigam a mim!»</p>
+
+<p>Agitando o chapeu, abrangendo a praça n'um olhar de convite, subiu com
+firmeza as escadas, até ao alto da varanda de pedra.</p>
+
+<p>Foi Juvencio o primeiro a seguil-o, agitando o chapeu alto e erguendo
+vivas á Carta e a D. Pedro.</p>
+
+<p>Responderam acclamações, agitou-se a praça inteira, e á medida que se
+aplacou o vozear, perceberam-se gritos, brados de afflicção.</p>
+
+<p>Das janelas por cima da botica, adivinhando-lhe a intenção, gritavam
+as filhas de Juvencio, mas elle, na embriaguez do rasgo, continuava a
+subir.</p>
+
+<p>Arrancando-se aos braços de mulheres que se estorcem, debatem-se
+homens enthusiasmados, olhos fitos nos voluntarios que, do alto da
+varanda, agradecem as palmas e saudações.</p>
+
+<p>E correm por fim, vencendo a resistencia das que choram desgrenhadas,
+indo sacrificar-se para lhes pouparem mais amargas lagrimas.</p>
+
+<p>São já quarenta, dos mais distinctos, os voluntarios, mal cabendo na
+varanda de pedra, e João encontra-se entre elles, sem ter raciocinado,
+sem se lembrar das velhas, do estudo, nem da ida para Coimbra,
+<span class="pagenum"><a id="page089" name="page089"></a>(p. 089)</span> na impulsão geral, na ancia de defender a liberdade, na
+ambição de apparecer aos olhos de Maria como um homem, aos de Jorge e
+do frade como um altivo adversario, aos do morgado como um convicto de
+que é egual a elle, e de que vae affirmar, com risco da propria vida,
+o direito a erguer os olhos para as pompas do seu brazão.</p>
+
+<p>No impeto em que se haviam manifestado, logo outro negociante, João
+Antonio Bacellar, entrou á frente dos companheiros na sala do conselho
+e, offerecendo o serviço voluntario de todos, falou em termos taes que
+obrigou o governo a declarar mantidos os principios de legalidade
+contra a usurpação de D. Miguel.</p>
+
+<p>Manifestaram-se no mesmo sentido o secretario da junta Manuel Joaquim
+Nogueira, o tenente Lobão, o doutor Antonio da Silveira e Theotonio de
+Ornellas que, no enthusiasmo pela obra de 22 de junho, para que tanto
+concorrera, chegou a precipitar-se de espada em punho contra o juiz
+Calheiros, contrario ao movimento.</p>
+
+<p>Accede por fim a correr a sorte da ilha o commandante do batalhão, e
+na emoção d'essa boa nova o ajudante de ordens vem agradecer e
+acceitar, em nome do governo, a offerta dos terceirenses, que ficam
+<span class="pagenum"><a id="page090" name="page090"></a>(p. 090)</span> constituindo a companhia de voluntarios reaes, sob o commando
+do capitão de milicianos Theotonio de Ornellas, devendo eleger entre
+si os outros officiaes.</p>
+
+<p>Então saem todos para, como em 22 de junho, irem ao castello. No
+desafogo do perigo afastado sauda o povo o governo e os voluntarios. O
+velho dr. João José da Cunha Ferraz, provisor do bispado,
+thesoureiro-mór da Sé, e presidente do cabido, o melhor advogado da
+ilha, palpita, apesar dos setenta e tantos, no delirio da juventude, e
+vae atirando o barrete ao ar e correspondendo aos vivas na voz
+tremula, emperrada pela gaguez.</p>
+
+<p>Arrebanham-se as beatas, corridas, pela ladeira de S. Francisco,
+atravancando-a, alastram pela escadaria do adro, e somem-se pelas tres
+grandes portas da egreja do convento, ávidas de consolarem as almas
+tão opprimidas, com os exercicios espirituaes dos santos frades, que
+não deixarão, decerto, de dar-lhes o prazer de um retumbante sermão de
+desabafo, de protesto ao ceu, e de algum desaggravo lithurgico á
+affronta feita áquella hora ao seu querido rei, essa encarnação do
+archanjo S. Miguel.</p>
+
+<p>E ali dentro, na protecção do templo, poderiam ostentar as medalhas
+dos retratos, em que o rosto do <span class="pagenum"><a id="page091" name="page091"></a>(p. 091)</span> rei apparecia córado, n'uma
+vermelhidão de sangue, ostentando-o sem medo nos abundantes peitos de
+amas de clerigos.</p>
+
+<p>Seguiam triumphantes o cortejo as que choravam pelos militares, mas
+tanta gente corria ás adufas e acudia ás portas, que o novo bando,
+escarlate e negro, escoava-se pela rua de S. João, para se adiantar
+pela rua da Rosa, Quatro Cantos e Bôa Nova, indo esperal-o ás alturas
+do Relvão, aonde já a curiosidade não macularia de suspeitas o seu
+enthusiasmo.</p>
+
+<p>Assentadas no muro do campo de manobras da fortaleza, entre esse mar
+de relva requeimado do sol, onde a primavera semeia papoulas,
+borboletas e malmequeres; em face á viçosa explanada que, com as
+baterias e banquetas, mascara os caminhos cobertos e os fossos;
+deitaram para traz os capellos, offegantes da correria, n'uma
+exposição de lindas caras que confirmava aos militares o credito de
+invenciveis nas mais frequentes das suas campanhas.</p>
+
+<p>Transfundira-se na mais pura raça portuguesa do seculo XV o sangue
+flamengo que dera o typo esbelto, a frescura de tez, a transparencia
+do olhar ás delicadas louras; dotára-a o Brasil da exhuberancia
+dolente <span class="pagenum"><a id="page092" name="page092"></a>(p. 092)</span> das creoulas, cabello de azeviche, dentes miudinhos,
+fundas olheiras; trouxera-lhe a dominação hespanhola o galante
+requebro da andaluza e o preto dos seus olhos seductores; e o dos
+hebreus fugidos déra, á sadia carnação das morenas, olhos apaixonados
+de judia onde esvoaça a nuvem da saudade.</p>
+
+<p>Amando-as olvidaram emigrados penas do exilio, e finda a guerra
+voltaram, a tornar definitiva a patria em que os adoptara a meiga
+ternura.</p>
+
+<p>Ouvia-se já perto o vivorio; vinha passando o cortejo por baixo das
+gelosias do convento de S. Gonçalo, de onde as freiras constitucionaes
+acenavam com lenços, gritando no falsete do côro: «Ou Constituição ou
+morte!», transportadas pelo fremito de liberdade, acclamando os que
+haviam de arrancal-as a essas grades, profanadoras da sua virgindade,
+asphyxiantes da sua juventude, e restituil-as á vida, ao amor a que
+tinham sido sequestradas.</p>
+
+<p>Mal as raparigas casadoiras avistaram lenços de côres de mulheres do
+fado voejando entre o povo, escabrearam ladeira acima, para entrarem
+pelo portão dos carros, seguidas a custo pelas mães e tias que as
+pastoreavam, lingua de fóra.</p>
+
+<p>Já dominavam a praça do castello, da rua que dá para <span class="pagenum"><a id="page093" name="page093"></a>(p. 093)</span> as
+baterias, quando resoou na tropeada a ponte de pedra, por sobre o
+fosso.</p>
+
+<p>Sentiu-se ranger a ponte levadiça, nos seus engenhos de correntes e
+contrapesos de pedra, ao echoarem as passadas na madeira; retiniu
+n'uma brilhante extensão de voz um alegre brado de «ás armas»; e sob o
+abobadado das portas bateram as pancadas seccas das bandoleiras ao
+apresentar armas.</p>
+
+<p>Nos quarteis vibravam toques de corneta, vozes de commando: Caçadores
+cinco que reunia na sua parada, e avançou depois até á praça do
+castello.</p>
+
+<p>Atraz das companhias vinha de dentro, com ranchadas de filhos, outro
+grupo de mulheres que as lindas raparigas e as gastas rameiras olhavam
+com respeito e compaixão.</p>
+
+<p>Ficaram-se entre a egreja e o palacio as companheiras do batalhão,
+fieis como cães, inconscientes no perigo como os soldados, firmes como
+se as sujeitasse a mesma disciplina; lavadeiras das esquadras,
+mulheres ou amantes de soldados, seguindo como vivandeiras a tropa;
+lisboetas baixinhas, pescoço curto, sombras de buço, de uma viva
+petulancia no lenço engomado, em pontas, que usavam na cabeça, com o
+capote, com grave offensa dos capellos ilheus; airosas varinas, leves,
+saia curta, pé descalço, <span class="pagenum"><a id="page094" name="page094"></a>(p. 094)</span> collete affirmando-lhe o busto e
+erguendo-lhe o seio, chapeu de velludo, coração de ouro e grandes
+argolas.</p>
+
+<p>Tinham atada a minguada roupa, promptas a partirem, como as escunas
+inglezas que por baixo das muralhas se baloiçavam nas ancoras, sem um
+protesto, como ao virem por mar com os seus degredados; na mesma
+firmeza de outras bravas mulheres, que de trouxa á cabeça acompanharam
+pela Galliza a divisão emigrada, e de lá seguiram com ella para as
+miserias de Inglaterra.</p>
+
+<p>Desembrulhavam os trapos ao tempo em que os navios, desimpedidos, se
+abarrotavam de caixas de laranja, e agora desabafavam contra «o
+Miguel», em gestos de regateiras, em palavradas de tarimba.</p>
+
+<p>Formára Theotonio d'Ornellas a companhia de voluntarios á esquerda dos
+caçadores, e João, que ficara entre Juvencio e o seu professor de
+latinidade, aprumava-se como um verdadeiro soldado.</p>
+
+<p>Da escadaria do palacio do governador do castello, que servira de
+prisão a Affonso VI, discursou o secretario do governo affirmando a
+deliberação de se manter a causa.</p>
+
+<p>Respondeu-lhe o major Quintino Dias declarando-se, elle <span class="pagenum"><a id="page095" name="page095"></a>(p. 095)</span> e
+todo o batalhão, dispostos a «derramarem a ultima gota de sangue».</p>
+
+<p>Avançou a bandeira até á frente dos Reaes Voluntarios, e estes,
+estendendo a mão direita, juraram «guardar e fazer guardar a
+constituição politica da monarchia portugueza».</p>
+
+<p>Tocou a banda o hymno constitucional composto pelo imperador em 21,
+ergueram-se os vivas da praxe á Santa Religião, á Carta, e a D. Pedro,
+e n'essa fraternisação de povo e tropa, gente da terra e de fóra, viu
+João estabelecer-se a unidade do sentimento nacional na aspiração de
+liberdade, e sentiu-se para sempre ligado ao destino da causa, até ao
+triumpho da nova ideia, ou até á morte pelo ideal.</p>
+
+<p>Dissipara-se-lhe, como a todos, o terror de pela manhã.</p>
+
+<p>Tinham trepidado alguns, mas eram bem melhores do que os fugidos no
+<i>Belfast</i>.</p>
+
+<p>Havia uma consciente decisão n'aquelles dos militares que sempre
+tinham querido ficar, communicando-se agora aos que a fraqueza
+dominára por um momento.</p>
+
+<p>Só a aspiração liberal reunia todas as classes da nação.</p>
+
+<p>Estavam ali, ao abrigo das muralhas, ligando-se nos <span class="pagenum"><a id="page096" name="page096"></a>(p. 096)</span> mesmos
+protestos, a nobreza, o clero, a burguezia, o operariado;
+profissionaes da guerra como os officiaes, os sargentos e os velhos
+soldados readmittidos; populares trazidos á força para a fileira pelo
+«Joaquim agarrador»; antigos voluntarios alistados em 23, ao perigar a
+causa liberal; os que se offereciam agora; e todos, fardados e á
+paisana, e os proprios que ainda não se tinham deixado arrastar,
+formavam uma phalange, invencivel porque era realmente a nação armada,
+e offereciam-se ao sacrificio no momento em que bordejava contra elles
+uma forte esquadra, com o bojo cheio de juizes, de carrascos e de
+forcas!</p>
+
+
+
+
+<h2>V <span class="pagenum"><a id="page097" name="page097"></a>(p. 097)</span></h2>
+
+
+<p>Já reconciliadas do arrufo, debruçaram-se as primas no mirante da
+quinta dos Folhadaes, devorando com os olhos o caminho da cidade.</p>
+
+<p>&mdash;E nunca mais cá veiu?&mdash;perguntava Josepha da Esperança.</p>
+
+<p>&mdash;Nunca mais. Como se tornou esse rapaz! Tão orgulhoso como se fosse
+fidalgo, tão brioso como nós!</p>
+
+<p>&mdash;É o que elles dizem, que valem tanto como os nobres, que somos todos
+eguaes. Que te parece, prima?</p>
+
+<p>&mdash;Não percebo nem quero perceber d'isso. É bom para as caturreiras de
+fr. Angelico e do pae.</p>
+
+<p>&mdash;Que <span class="pagenum"><a id="page098" name="page098"></a>(p. 098)</span> elle é melhor que o primo Jorge, lá isso é que é.</p>
+
+<p>&mdash;Achas?</p>
+
+<p>&mdash;Está feito um homem. Diz coisas graves como nenhum dos nossos primos
+seria capaz.</p>
+
+<p>&mdash;Deu-lhe para tomar a serio o que não devia passar de uma
+brincadeira.</p>
+
+<p>&mdash;Mas tu não desgostavas d'elle.</p>
+
+<p>&mdash;Não desgostava, não.</p>
+
+<p>&mdash;É muito sympathico.</p>
+
+<p>&mdash;É um bonito rapaz, confesso.</p>
+
+<p>&mdash;Aquelle lindo buçosinho... E a covinha do queixo, e as das faces,
+quando se ri. É um amôr!</p>
+
+<p>&mdash;Engraças muito com elle.</p>
+
+<p>&mdash;Não fiques com ciumes.</p>
+
+<p>&mdash;Eu? Toma-o para ti, que t'o agradeço.</p>
+
+<p>&mdash;Isso agradecias tu. Não gosto de sobejos, mas lá por falta de mulher
+não deixa elle de casar.</p>
+
+<p>&mdash;Como tu és! E o primo?</p>
+
+<p>&mdash;Não lhe chega aos calcanhares.</p>
+
+<p>&mdash;Olha, o teu genio é que eu nunca hei de comprehender.</p>
+
+<p>&mdash;Então, filha, são feitios. Cada um é como Nosso Senhor o fez. Mas ao
+menos eu confesso a minha fraqueza, gosto muito, muito, de um bonito
+rapaz, e <span class="pagenum"><a id="page099" name="page099"></a>(p. 099)</span> não quero meter-me a freira. E as que dizem que lhe
+atiram com pedras, estão pregadas nos mirantes a vigial-os...</p>
+
+<p>&mdash;Já lhe disse, prima, que não quero o João para namorado.</p>
+
+<p>&mdash;Mas para que passa agora todas as tardes aqui, de alcateia...</p>
+
+<p>&mdash;É que me irrita o procedimento d'elle. Dito e feito! Que nunca mais
+vinha, e nunca mais appareceu.</p>
+
+<p>&mdash;E isso dá-lhe pena?</p>
+
+<p>&mdash;Não. Mas exaspera-me pelo seu atrevimento. Queria vêl-o mais uma
+vez, descompol-o muito, dar-lhe muita bofetada, muita bofetada,
+puchar-lhe pelas orelhas, e depois dizer-lhe: «Põe-te fóra, fedelho, e
+vê lá para quem te atreves a levantar os olhos».</p>
+
+<p>&mdash;Pois caiste, prima, e não foi sem tempo. Já não pódes passar sem
+elle.</p>
+
+<p>&mdash;Não me diga isso, que até me mete raiva.</p>
+
+<p>&mdash;Essas furias já passaram por mim.</p>
+
+<p>&mdash;A prima é muito experiente.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sou, e por isso sinto que lhe estás nas mãos, ou nunca mais
+pensavas nas suas palavras.</p>
+
+<p>Maria não lhe respondeu, e continuou a observar a <span class="pagenum"><a id="page100" name="page100"></a>(p. 100)</span> estrada,
+na irritação em que ficára desde a saída de João.</p>
+
+<p>N'uma crise nervosa passára os primeiros dias fechada no quarto, sem
+vêr ninguem, depois fatigara-se em pertinazes passeios ao longo das
+varandas de pedra, para cá e para lá, olhos fitos na direcção que elle
+costumava trazer.</p>
+
+<p>Abandonada pelo pae, sem intimidade com a mãe, que passava o tempo na
+cozinha fazendo doces, ou em exercicios espirituaes com fr. Angelico,
+vira-se forçada a mandar chamar a prima Josepha, para ter com quem
+desabafar.</p>
+
+<p>E apezar do que ella lhe dizia, não cuidava amar João. Nutria contra
+elle, ao contrario, um sentimento de hostilidade, de revolta. Sentia
+uma insurreição de todo o seu ser contra essa creança que de repente,
+sem lh'o ter deixado suspeitar, entendera dispôr absolutamente do seu
+futuro, querendo-a para sua mulher.</p>
+
+<p>Continuava Maria amuada, ria á socapa Josepha da Esperança, quando
+passou o jardineiro, com um braçado de flores e a podôa na mão.</p>
+
+<p>&mdash;Ora tenham muito bôas tardes, minhas meninas. Então já sabem a
+grande novidade? Vem cá hoje o nosso homensinho.</p>
+
+<p>&mdash;Quem, <span class="pagenum"><a id="page101" name="page101"></a>(p. 101)</span> tio Jacintho?&mdash;perguntou Josepha, para acirrar Maria.</p>
+
+<p>&mdash;Quem ha de ser? O senhor Joãosinho.</p>
+
+<p>&mdash;Ouves? Temol-o por ahi.</p>
+
+<p>&mdash;Que me importa!&mdash;protestou Maria, muito córada.</p>
+
+<p>&mdash;Vi-o hontem na cidade, já anda fardado de voluntario, e a farda
+fica-lhe a matar. Está uma flôr! Até se parece com o avô, o capitão
+Silveira, que eu vi assentar praça da mesma edade. E ha de ir longe
+como elle, ha de ir longe!</p>
+
+<p>&mdash;Não lhe disse nada?&mdash;perguntou a prima.</p>
+
+<p>&mdash;Não sejas inconveniente, Josepha, ou ficamos de mal.</p>
+
+<p>E para impedir alguma inconfidencia do velho:</p>
+
+<p>&mdash;Vá com Deus, tio Jacintho, e obrigada.</p>
+
+<p>Mas a prima ainda o deteve:</p>
+
+<p>&mdash;Diga-me cá, elle agora póde chegar a official?</p>
+
+<p>&mdash;Até a brigadeiro, que é muito capaz d'isso, e as meninas ainda o hão
+de vêr a cavallo a commandar batalhões e regimentos. Eu já hei de
+estar debaixo da terra, mas vou consolado por deixal-o bem
+encaminhado, que lhe quero como se fosse meu filho.</p>
+
+<p>Muito maldosa, Josepha virou-se para Maria:</p>
+
+<p>&mdash;Casarás <span class="pagenum"><a id="page102" name="page102"></a>(p. 102)</span> quando elle fôr brigadeiro, muito velhote como o
+tio Vicente.</p>
+
+<p>&mdash;Quando deixarás de meter-te na minha vida, prima?</p>
+
+<p>&mdash;Quando tu m'a contares como bôa amiga. Começa lá, e confessa que te
+péllas pelo João.</p>
+
+<p>&mdash;Se assim fosse não fazia mysterio, não tinha de quê. Mas não é
+verdade, não é verdade!</p>
+
+<p>E sentou-se pensativa na banqueta, fronte apoiada á mão, a olhar ao
+longe.</p>
+
+<p>Retiraram-se porém subitamente, e foram ambas esconder-se no jardim,
+ao avistarem fr. Angelico. Enfadava-as a sua apologia da vida
+conventual, no interesse de obter para a ordem os dotes e os bens que,
+como ricas herdeiras, lhe trariam; repugnavam-lhes as pretendidas
+caricias paternaes em que o seu instinto de mulheres adivinhava
+desejos lubricos.</p>
+
+<p>O frade, que reparara na subita desapparição, passou rosnando ameaças
+por debaixo do mirante, e entrou, mesmo sem bater.</p>
+
+<p>Bufando, limpando o suor, afrontado da caminhada, só deu com Martinho
+Vasques na adega, desabotoado, sentado em cima de um barril,
+observando o alambique, e provando a aguardente de vinho que mandára
+queimar.</p>
+
+<p>Offereceu-lhe <span class="pagenum"><a id="page103" name="page103"></a>(p. 103)</span> logo uma caneca cheia, que fr. Angelico
+esvasiou, limpando a bocca á manga do habito, e explodindo logo na
+sentença que viera preparando pelo caminho.</p>
+
+<p>&mdash;Malditos tempos, senhor morgado, malditos tempos!</p>
+
+<p>Martinho escorropichou gulosamente, e concordou:</p>
+
+<p>&mdash;Não sei como tanta impiedade não provocou já um tremendo castigo!
+Deus porém compadeceu-se de nós, e as vinhas continuam, como nos dias
+de fé, a dar este saboroso nectar ... Outro, fr. Angelico, outro
+copinho...</p>
+
+<p>Offereceu-lhe, na ancia de propaganda dos alcoolicos.</p>
+
+<p>Saboreou o frade aos goles, defendendo-se:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, preciso forças para falar.</p>
+
+<p>Acabando de beber, tornou a bradar em tom de sermão:</p>
+
+<p>&mdash;Tempo de desgraça! Tempo perverso!</p>
+
+<p>Mirou-o o morgado, surprehendido por essa gravidade, só usada quando
+havia gente de fóra.</p>
+
+<p>&mdash;Você tem coisa, ó Angelico!</p>
+
+<p>&mdash;E grave, meu senhor.</p>
+
+<p>&mdash;Pois desembuche.</p>
+
+<p>&mdash;Tenha <span class="pagenum"><a id="page104" name="page104"></a>(p. 104)</span> V. Ex.<sup>a</sup> a bondade de subir ao escriptorio...</p>
+
+<p>&mdash;Homem, subir ... essa agora!</p>
+
+<p>E olhava apavorado a escada de mão, encostada ao alçapão que da casa
+de jantar dava para a adega.</p>
+
+<p>&mdash;Não póde abrir o bico ahi mesmo?</p>
+
+<p>&mdash;Trata-se de um assumpto tão grave ... tão grave...</p>
+
+<p>Pelo ar mysterioso, ficou Martinho desconfiado:</p>
+
+<p>&mdash;Se é mais dinheiro para guerrilhas acabou-se ... Quero dizer, os
+tempos vão maus, os rendeiros pouco pagam ... E você bem sabe que a
+estas horas não estou em casa para taes coisas...</p>
+
+<p>Indo da meza para a adega, saindo da adega para a meza, reconhecera ha
+muito o morgado que de tarde não fazia bons negocios, e antes de
+jantar fechava as gavetas do dinheiro e saía sem cinco réis, para que
+não lh'o extorquissem, com intimidações do inferno, para missas; para
+que não lh'o arrancassem, com lagrimas, antigas jovens das redondezas,
+invocando as complacencias de solteiras em favôr dos maridos, dos
+filhos, dos netos.</p>
+
+<p>&mdash;Não se trata de dinheiro, meu senhor, embora saiba <span class="pagenum"><a id="page105" name="page105"></a>(p. 105)</span> que a
+sua generosa bolsa está sempre aberta para a defeza da bôa causa.</p>
+
+<p>E falando-lhe ao ouvido, insinuou:</p>
+
+<p>&mdash;Trata-se da sua honra, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro!</p>
+
+<p>Ergueu-se, aprumou-se o morgado, e os musculos do rosto, distendidos
+na bonhomia de ebrio, contrahiram-se n'uma inesperada expressão de
+gravidade. A normalidade da embriaguez permittia-lhe a consciencia das
+situações extremas, ao contrario da absoluta perda de conhecimento dos
+que não bebem por habito, e só excepcionalmente se transtornam.</p>
+
+<p>&mdash;Siga-me!&mdash;ordenou ao frade, que se humilhava hypocritamente, n'um ar
+compungido.</p>
+
+<p>Encaminhou-se para a escada de mão, segurou-se-lhe, poz o pé no
+primeiro degrau, mas ao querer subir cambaleou, em risco de cair.</p>
+
+<p>Offegante do exforço, accentuou se-lhe na fronte uma ruga, e
+pairou-lhe nos labios uma contracção de vergonha, de nojo de si mesmo.
+Ia occupar-se da sua honra a cair de bebedo!</p>
+
+<p>Tinha de dar a volta, e entrar pela escada principal.</p>
+
+<p>Então abotoou o collete, compoz a casaca, puchou os <span class="pagenum"><a id="page106" name="page106"></a>(p. 106)</span> punhos,
+arranjou as pregas dos bofes, e apoiando-se ao marmeleiro que deixára
+contra as pipas, caminhou n'um ar magestoso, seguido pelo frade
+cabisbaixo, rastejante.</p>
+
+<p>Pesadamente, no mesmo aprumo, entrou no escriptorio, foi sentar-se na
+solida cadeira negra, de alto espaldar, encimada pelo folhado de uma
+concha, e agora parecia-se com os retratos dos antepassados da sala
+nobre, a grave cabeça apoiada nos hombros largos; a meza, as pennas de
+pato de que nem sabia usar, a gravidade do conjuncto dando lhe o ar de
+um ministro, de um desembargador.</p>
+
+<p>&mdash;Explique-se!&mdash;ordenou-lhe, como um juiz a um reu.</p>
+
+<p>De pé, nos gestos dos grandes dias, começou fr. Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, esta casa acaba de ser duplamente enxovalhada. Sentou praça
+de voluntario, em reforço ao infame batalhão que é a vergonha e o
+grilhão d'esta terra, esse rapaz que V. Ex.<sup>a</sup> protegeu, e que recebia
+em sua casa como a um filho...</p>
+
+<p>&mdash;O João? Já tinha reparado na sua falta.</p>
+
+<p>&mdash;Hão de dizer que são os nossos exemplos!</p>
+
+<p>&mdash;Meteram-lhe isso em cabeça, patifes! A culpa é <span class="pagenum"><a id="page107" name="page107"></a>(p. 107)</span> de quem
+perverte a juventude, e a arrasta para os abysmos da impiedade.</p>
+
+<p>&mdash;Talvez V. Ex.<sup>a</sup> não leve a sua generosidade a ponto de perdoar-lhe,
+quando o vir logo entrar fardado aqui.</p>
+
+<p>&mdash;Aqui?</p>
+
+<p>&mdash;Sim senhor, a titulo de pedir desculpa de não poder continuar com a
+escripturação, mas para nos afrontar com o maldito uniforme
+constitucional, porque bem sabe quaes são as opiniões de V. Ex.<sup>a</sup> e
+minhas.</p>
+
+<p>&mdash;Bom é que venha, que lhe quero dizer algumas verdades, e dar-lhe
+puxões de orelhas, que é o que merece.</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe-me V. Ex.<sup>a</sup> mas nem devia consentir que viesse...</p>
+
+<p>&mdash;Isso é commigo.</p>
+
+<p>E dirigindo ao frade um olhar severo:</p>
+
+<p>&mdash;Mas que tem que vêr isso com a minha honra, a que você se atreveu a
+alludir?</p>
+
+<p>Curvou-se mais o frade, e respondeu na voz lagrimejante dos sermões
+quaresmaes:</p>
+
+<p>&mdash;Já lá vamos, senhor morgado, já lá vamos, embora o que me pesa ...
+só Deus o saiba!</p>
+
+<p>Aproximou-se <span class="pagenum"><a id="page108" name="page108"></a>(p. 108)</span> da meza, e quasi ao ouvido de Martinho:</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe V. Ex.<sup>a</sup>, mas diz-se á bôcca pequena que o miseravel ousa
+levantar os olhos para a senhora D. Maria.</p>
+
+<p>&mdash;Para minha filha?</p>
+
+<p>Ergueu-se apopletico o morgado, o sangue a rebentar do cachaço rubro,
+abaixando a fronte, n'um gesto de investida. Zumbia-lhe nos ouvidos um
+turbilhão de sangue exasperado, passavam-lhe no olhar relampagos de
+vingança, e os labios mexiam-se-lhe convulsos.</p>
+
+<p>Mas tornou a sentar-se, e disse com certa compostura:</p>
+
+<p>&mdash;Isso póde não passar de uma brincadeira. Comtudo fez bem em me
+avisar.</p>
+
+<p>&mdash;Desculpe V. Ex.<sup>a</sup>&mdash;insistiu o frade&mdash;mas não se trata da
+infantilidade que julga. São os conselhos da botica, é a lição da
+liberdade! Esses infames querem afundar tudo na anarchia, e lançar mão
+das grandes casas fidalgas, em nome da egualdade que apregoam!</p>
+
+<p>Meditou o morgado, a cabeça apoiada entre as mãos, e depois disse
+gravemente, em phrase arrastada:</p>
+
+<p>&mdash;Basta, <span class="pagenum"><a id="page109" name="page109"></a>(p. 109)</span> fr. Angelico. Isso póde ser um calculo d'elle, mas
+não alcança minha filha, nem attinge a minha honra, entenda-o bem.
+Podem fazer as leis que quizerem sobre egualdades. Quem é do nosso
+sangue não desce! Vença quem vencer, nós continuaremos a ser o que
+sômos, e elles o que são. Vossa reverendissima não póde comprehender
+isto, porque é plebeu. Mas eu sinto-o no sangue, como minha filha o
+deve sentir.</p>
+
+<p>Conteve n'um gesto o frade, que ia a falar.</p>
+
+<p>&mdash;Póde retirar-se. O que tenho a fazer é commigo, juiz e executor em
+minha casa, na minha familia e na minha raça, como chefe de linhagem
+que sou!</p>
+
+<p>E correspondendo ás subservientes reverencias de fr. Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;De caminho mande-me o quinteiro, faça favôr.</p>
+
+<p>Saíu pouco satisfeito o franciscano, procurou o quinteiro, mandou o á
+presença do fidalgo; depois chegou ao portão da quinta, observou para
+fóra antes de o transpôr, e em seguida, muito cosido com o muro,
+partiu para os lados de S. Carlos, para voltar á cidade sem se
+encontrar com João.</p>
+
+<p>Notaram-lhe <span class="pagenum"><a id="page110" name="page110"></a>(p. 110)</span> as manobras Maria e Josepha da Esperança, que
+tinham voltado ao mirante mal elle entrara.</p>
+
+<p>Satisfeitas, por se verem livres d'elle, continuaram a observar
+impacientes o caminho da cidade.</p>
+
+<p>Distinguiram por fim ao longe uma figurinha de militar.</p>
+
+<p>Era João, vestido de guarda nacional, farda curta de saragoça
+portugueza, com botões brancos, golla azul claro, laço azul e branco
+no chapéu redondo.</p>
+
+<p>Do ponto onde estava, o mirante sobranceiro ao pateo, em face ao
+alpendre da escada, ia vêl-o entrar e, talvez como antigamente, elle
+viesse falar-lhe, arrependido da imprudencia.</p>
+
+<p>Pensando assim, seguia-o Maria n'um olhar de anciedade, encobrindo-se
+com as trepadeiras do caniçado, para não lhe dar a confiança de
+mostrar que o esperava.</p>
+
+<p>Vinha já perto, quando notaram dentro movimento desusado.</p>
+
+<p>Corria o quinteiro, e meia duzia de cavadores de enxada, batendo os
+pés descalços na terra endurecida pelo calôr, varapaus ao hombro,
+falando alto.</p>
+
+<p>Desacorrentára o creado dois grandes cães de fila, amarelos, rabo
+cortado, focinho negro, fauces ameaçadoras, <span class="pagenum"><a id="page111" name="page111"></a>(p. 111)</span> que de noite
+rondavam ganindo e uivando.</p>
+
+<p>Ao chegarem ao pateo, occultaram-se na cocheira homens e cães, e o
+quinteiro foi esconder-se por traz do postigo, como se quizesse
+fechal-o mal entrasse João.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isto, José?&mdash;perguntou Maria, suspeitando uma violencia.</p>
+
+<p>&mdash;Ordens do senhor morgado&mdash;respondeu elle, rindo alvarmente&mdash;não
+quero saber!</p>
+
+<p>Mas Josepha da Esperança, muito nervosa, nem lhe dera tempo á
+resposta, e ao vêr João em frente do mirante, avisou-o:</p>
+
+<p>&mdash;Não entre, que lhe querem bater!</p>
+
+<p>Maria, correndo ao muro, bradou-lhe tambem:</p>
+
+<p>&mdash;Foge, foge!</p>
+
+<p>N'uma grande excitação, gritava a prima:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui d'el-rei! Aqui d'el-rei!</p>
+
+<p>Elle recuára ao ouvir os gritos e, vendo apparecer ao postigo a cabeça
+lanzuda, comprehendeu que lhe faziam uma espera.</p>
+
+<p>Desembainhou a baioneta, aprumou-se garboso, e avançou muito pallido
+para a porta, que de dentro fecharam com estrondo.</p>
+
+<p>Sentiu então Maria que o amava, vendo-o encarnar o <span class="pagenum"><a id="page112" name="page112"></a>(p. 112)</span> typo
+glorioso, cavalheiresco, da imaginação das raparigas, geralmente
+fixado nos que teem por ferramenta a espada e a lança do cavalleiro
+andante de outras eras.</p>
+
+<p>Dirigia-se-lhe com o coração nas mãos, como elle no pomar, n'um rubor
+de sangue, lavada em lagrimas, pondo as mãos:</p>
+
+<p>&mdash;João, João, não te percas por minha causa!</p>
+
+<p>Sem a attender, batia exasperado no portão com o punho da baioneta,
+bradando querer falar ao senhor Martinho Vasques.</p>
+
+<p>Ouvindo ladrar ameaçadores os cães de guarda, virou-se Maria para o
+pateo.</p>
+
+<p>Aos gritos de soccorro de D. Josepha, correra de dentro o jardineiro
+com um grosso varapau cruzado como a espingarda, a ponta á altura dos
+olhos, fortemente cingido ao corpo.</p>
+
+<p>&mdash;Querem bater no Joãosinho!&mdash;explicou-lhe ao vêl-o.</p>
+
+<p>Correu o veterano ao postigo, aferrolhou-o, e berrou aos caceteiros
+que se fossem embora.</p>
+
+<p>&mdash;Quem manda aqui é o fidalgo!&mdash;respingou o quinteiro, fazendo-se
+forte á frente do bando.</p>
+
+<p>Mas os camponeses, receiando as furias do velho, mantinham-se
+<span class="pagenum"><a id="page113" name="page113"></a>(p. 113)</span> indifferentes, apoiados aos bordões, n'um riso estupido.</p>
+
+<p>&mdash;Deixe-me abrir a porta!&mdash;insistia o José da Quinta, querendo deitar
+os cães, segundo as ordens do amo.</p>
+
+<p>&mdash;Primeiro te racho de meio a meio!&mdash;ameaçou mestre Jacintho,
+encostando-se ao postigo.</p>
+
+<p>&mdash;Avem-te com estes!&mdash;casquinou o quinteiro, abrindo com um pontapé a
+porta da estrebaria.</p>
+
+<p>Saíram ladrando excitados <i>Marujo</i> e <i>Sultão</i>, mas conhecendo o
+jardineiro, não lhe pegaram.</p>
+
+<p>&mdash;És peior que os cães, que os animaes não teem entendimento e não
+fazem mal só porque os mandam!</p>
+
+<p>E o velho rilhando o dente, na furia que o tornava terrivel, avançou,
+crendo-se em plena batalha, e fez recuar o capataz e o rancho,
+levando-os de roldão até ao fundo do pateo.</p>
+
+<p>Ahi, metido em brios, tentou defender-se o mandatario do morgado, mas
+caíu, lavado em sangue, com uma cacetada na cabeça.</p>
+
+<p>Appareceu no alpendre da escada D. Perpetua entre as creadas,
+attrahida pelo alarido.</p>
+
+<p>Chamou a filha para casa.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos para dentro, Maria. Que vergonha!</p>
+
+<p>E <span class="pagenum"><a id="page114" name="page114"></a>(p. 114)</span> como ella não a attendesse, deu a volta e foi obrigal-a a
+saír do mirante.</p>
+
+<p>&mdash;Isto é alguma tarde de toiros? Gostas de vêr no que dão as
+bebedeiras de teu pae?</p>
+
+<p>Arrastada pela mãe, envolvida no berreiro das creadas, Maria, com a
+cabeça perdida, não viu que mestre Jacintho abrira a porta e, dando
+conta a João do que se passava, aconselhara-o a ir-se embora. Depois
+falariam.</p>
+
+<p>Ao passar no pateo, para entrar em casa, afastou a cabeça para não vêr
+a torva lividez do ferido, os olhos vidrados, a testa gotejando, os
+cabellos empastados em sangue, a mulher ajoelhada ao pé, clamando que
+o morgado lhe metera o homem em trabalhos.</p>
+
+<p>Ao entrar em casa ainda poude Maria olhar para fóra, e ficou
+descançada vendo João já muito longe, a caminho da cidade, salvo de
+todo o risco.</p>
+
+<p>Veiu do fim da quinta Martinho Vasques a vêr como tinham sido
+executadas as suas ordens. Ao conhecer o procedimento do veterano,
+partiu exasperado em busca d'elle, depois de ter mandado chamar o
+barbeiro para curar o ferido.</p>
+
+<p>&mdash;Tu é que déste a pancada no quinteiro?&mdash;perguntou-lhe colerico,
+<span class="pagenum"><a id="page115" name="page115"></a>(p. 115)</span> ao vêl-o deitado n'um molho de rapa, a resfolegar, muito
+cançado.</p>
+
+<p>Ergueu-se logo o velho, empertigou-se na rigidez do habito militar
+ante o superior, mas respondeu, orgulhoso da façanha:</p>
+
+<p>&mdash;Pois quem havéra de ser? Quem ha ahi com alma para tirar fumaças a
+pimpões?</p>
+
+<p>&mdash;Mas tu sabias que era ordem minha!</p>
+
+<p>&mdash;E que me importava isso a mim?</p>
+
+<p>&mdash;Então, refinadissimo tratante, comes o meu pão para me
+desobedeceres?</p>
+
+<p>&mdash;Sabe que mais, patrão, não venha tirar palha commigo.</p>
+
+<p>Mas o morgado, que via n'elle o culpado da vergonhosa scena em que
+fôra desrespeitado, e de que o rapaz saíra triumphante, irritava-se
+cada vez mais.</p>
+
+<p>&mdash;Aquella pancada é como se fosse dada em mim mesmo.</p>
+
+<p>O ex-soldado virou-se para elle, mediu-o de alto a baixo, e de
+esguelha, disse-lhe decidido, teimoso:</p>
+
+<p>&mdash;Se o senhor se tivesse ido metter com o menino...</p>
+
+<p>Arremetteu com elle Martinho Vasques. Porém a reputação do soldado,
+apesar da mesquinha attitude em que ia a retirar-se, sem fazer caso,
+dobrado ao <span class="pagenum"><a id="page116" name="page116"></a>(p. 116)</span> meio, as mãos pacificamente atraz das costas, o
+pescoço magro saíndo da colleira negra, descarapuçado, bastou para
+conter n'um prudente respeito o morgado, alto, forçoso, sanguineo,
+armado do rijo varapau.</p>
+
+<p>&mdash;Esquecestes quem sou eu?</p>
+
+<p>&mdash;E o fidalgo não se esqueceu do que lhe deve ao avô, do que me deve a
+mim, para vir para aqui, vermelho como uma lagosta, impar de raiva
+mansa?</p>
+
+<p>&mdash;Se não tivesse que descer a medir-me comtigo, fazia-te engulir tudo
+isso com os dentes que te restam.</p>
+
+<p>Tremia apertando nervosamente o bordão.</p>
+
+<p>&mdash;Com bem passe, senhor Martinho&mdash;e o velho dizia-lhe adeus com a mão,
+sem se voltar.&mdash;Fale-me ámanhã em jejum.</p>
+
+<p>&mdash;Ó bandalho, tu chamas-me bebedo?</p>
+
+<p>&mdash;O patrão é que se está chamando, nanja eu.</p>
+
+<p>&mdash;Olha que eu mando-te fazer uma montaria como a lobo!</p>
+
+<p>&mdash;Pois vamos a isso. Coza-a commigo, que tenho o coirão duro, mas lá
+com o menino, cautela! Olhe que lhe sae do pêlo, senhor morgado.</p>
+
+<p>&mdash;Pois atreves-te a ameaçar-me? A mim?</p>
+
+<p>&mdash;Hoje em dia, meu amo, já não se póde mandar matar <span class="pagenum"><a id="page117" name="page117"></a>(p. 117)</span> um homem
+sem se bailar n'uma forca, porque se acabaram os fidalgos e as suas
+patifarias.</p>
+
+<p>&mdash;Até a isto se pegou a sarna jacobina!&mdash;exclamou com desdem, com
+desgosto.&mdash;Não falavas assim se eu não te désse licença para te ires
+emborrachar com a choldra do castello.</p>
+
+<p>&mdash;Aqui, senhor morgado, aqui é que ellas se apanham de caixão á cova.</p>
+
+<p>Perdendo a cabeça, o morgado poz o pé atraz, empunhou o cacete, mas
+envergonhando-se, atirou com elle, e deixou-se cahir no banco de pedra
+como aniquilado.</p>
+
+<p>Ficou para ali vendo anoitecer, não querendo passar pelo pateo onde a
+quinteira se arrepelava, bradando que lhe desgraçára o marido.</p>
+
+<p>Tinha ainda nos ouvidos os gritos de Maria, as injuriosas referencias
+da esposa.</p>
+
+<p>Acabava de insultal-o um creado!</p>
+
+<p>Sentia inteiramente desfeito o poder, a autoridade de que fôra tão
+cioso.</p>
+
+<p>Todos se voltavam contra elle, todos pareciam ter razão contra a sua
+razão, a unica authentica, a unica verdadeira.</p>
+
+<p>Perdera se a obediencia, quebrara-se o respeito, e <span class="pagenum"><a id="page118" name="page118"></a>(p. 118)</span> em sua
+casa todos queriam mandar tanto como elle.</p>
+
+<p>Estaria então a sociedade tão profundamente minada pelo mal, como
+dizia fr. Angelico, que a filha, uma fidalga, descesse até um misero
+plebeu, e todos se conspirassem contra elle, tomando partido pelo
+insignificante?</p>
+
+<p>E atreviam-se a falar-lhe cara a cara, a elle, morgado, senhor de
+terras, nas novas leis que impediam a nobreza de desafrontar a sua
+honra a dentro do seu solar?</p>
+
+<p>Invadia-o uma amarga dôr, um triste desanimo, como se a sua
+integridade physica fosse attingida, como se lhe tivesse quebrado a
+cabeça a cacetada, como se lhe mordessem os proprios cães.</p>
+
+<p>E n'essa hora de abandono assaltava-o o remorso de muita injustiça.</p>
+
+<p>Mas pouco a pouco reconquistou-o a fé absoluta na verdade das suas
+ideias.</p>
+
+<p>Reanimou-se, decidiu-se.</p>
+
+<p>O mal crescera, chegára a invadir-lhe a casa! Pois bem, collocar-se-ia
+d'ahi em diante ao lado dos que mantinham a verdade do passado, a
+honra incorruptivel da fidalguia, a fé religiosa intransigente!</p>
+
+<p>E <span class="pagenum"><a id="page119" name="page119"></a>(p. 119)</span> levantou-se aprumado, disposto á lucta que a todos
+reclamava, e a que até ahi o subtraíra a indolencia do seu viver.</p>
+
+
+
+
+<h2>VI <span class="pagenum"><a id="page121" name="page121"></a>(p. 121)</span></h2>
+
+
+<p>Segundo o costume, mal se levantára, fôra logo o morgado para a casa
+de jantar e, com a cabeça apoiada entre as mãos, os olhos fitos nos
+montes de rapa, nos picos de esterco do pateo interior, onde fossavam
+porcos e depenicavam gallinhas, reconstituia por partes a scena da
+vespera, illuminando se-lhe successivamente zonas da memoria, mas sem
+continuidade nos acontecimentos, como se uma palavra do frade lhe
+ficasse menos gravada, como se um insulto do veterano se marcasse mais
+fundo; e depois colligiu tudo, e poz-se a ligar os factos aos
+antecedentes e a preparar-lhes, por sua iniciativa, a necessaria
+conclusão.</p>
+
+<p>Batiam <span class="pagenum"><a id="page122" name="page122"></a>(p. 122)</span> alto na cosinha as galochas de sola de cedro da
+morgada, ao passar na parte do lagedo raspada pelo rachar da lenha; em
+sons abafados, surdos, ao calcar as crôstas de lama negra e luzente,
+terra da horta, caldeada ás escorrencias da amassaria.</p>
+
+<p>Começou a chiar a frigideira na trempe, ao fogo das achas atiçadas
+pelo borralho do forno, onde acabava de cozer o pão da semana.</p>
+
+<p>Ao cheiro da gordura e da linguiça com ovos, desabaram moscas do tecto
+de maceira, onde jaziam mortas gerações e gerações, o ventre inchado,
+avivado de cintas brancas, presas umas nas bambinelas de teias de
+aranha, suspensas outras pela tromba á cal do forro, que sustentava a
+telha, apoiando-se ás pernas de asna, firmadas por sua vez no friso
+onde amadureciam maçãs, e nas grandes traves em que curavam aboboras.</p>
+
+<p>Esbarraram algumas, desvairadas, nos vidros poeirentos, grudados aqui
+e ali por miolo de pão, no centro das rachas estrelladas; mas depois
+precipitaram-se todas na cosinha, d'onde d'ali a pouco vieram pairando
+por cima da pratada, quando os pés descalços da creada batiam pancadas
+seccas nos degraus de pedra, da cosinha para a casa de jantar.</p>
+
+<p>Entraram <span class="pagenum"><a id="page123" name="page123"></a>(p. 123)</span> zumbindo pelas janellas as varejeiras dos chiqueiros
+e da esterqueira, cujas emanações azedas azotadas e amoniacaes,
+abafavam o cheiro da linguiça temperada a oregãos e da banha de vinha
+d'alhos.</p>
+
+<p>Distraíu-o momentaneamente a lucta com os insectos, muitos dos quaes
+iam morrer na fervente gordura em que boiava a fritada.</p>
+
+<p>Para comer em socego mandou fechar as janelas, e cessou a baforada da
+estrumeira, onde se enthesoiravam os despejos da casa, para riqueza
+das terras; mas pela do pateo da entrada, aberta para arejar, veiu o
+fedôr a bêsta das estrebarias que ficavam por baixo dos quartos de
+cama, onde pelas gretas do sobrado insinuavam ninhadas de pulgas.</p>
+
+<p>Coube a vez ás moscas de cavallo, tardas, pegajosas, expulsas ás
+rabanadas pelas alimarias que, n'um luctar irritante, continuo,
+escarvavam o chão calçado de pedra roliça como amendoa, boleada pelo
+rolar das marés, pelo limar da areia.</p>
+
+<p>Postos diante d'elle os torresmos frios, conservados em banha, e o pão
+de cabeça ainda quente, levantou-se o morgado e, tomando o cangirão de
+barro, de aza partida, cintado por dentro de sarro, foi-se ao barril
+cuidadosamente encanteirado, tirou-lhe o <span class="pagenum"><a id="page124" name="page124"></a>(p. 124)</span> espicho e o vinho
+esguichou alourado, espumante, tornando a tapar por suas mãos, tanto
+cuidado lhe merecia o trato, tanta habilidade considerava necessaria
+para saber encher, sem deixar turvar.</p>
+
+<p>Atestou o grande copo de crystal floreado de meia canada, difficil de
+abarcar na grande mão, ergueu-o á altura dos olhos, observou o vinho
+contra a luz, sorriu vendo mosquitos sepultos no fundo pelo jacto, e
+sobrenadando em redemoinho, prova de que continuava excellente o
+verdelho.</p>
+
+<p>Esvasiou-o, excedendo a receita da sabedoria conventual «antes da sopa
+molha-se a bocca», «depois da sopa lava-se a bocca»; e quedou-se a
+admirar o vidro, seu unico luxo, a que ligava o valor estimativo dos
+reis testando em especial a taça «porque bebiam»; por onde só elle
+bebia, e bebia sempre, a não ser o vinho novo que, como entendedor,
+tomava por tijelinhas de barro.</p>
+
+<p>Subiu da cosinha, afadigada, D. Perpetua, batendo nos degraus as
+galochas.</p>
+
+<p>Volumosa pelas muitas saias de estopa e de panno da terra, como as
+creadas e as camponezas, trazia á cinta a bolsa de velludo preto,
+bordada a vidrilhos, onde tiniam grossos patacos de bronze e mólhos
+de <span class="pagenum"><a id="page125" name="page125"></a>(p. 125)</span> chaves, pura ostentação, ante a dispensa escancarada, com
+a esbeiçada bexiga da gordura, onde se espetava a colher de pau.</p>
+
+<p>Baixa, grossa, trigueira, olhar lubrico, beiços carnudos, olheiras em
+papos, pelle encarquilhada nas fontes, grandes rugas atravessando a
+testa de lado a lado, despenteada ainda como saíra da cama, as mãos
+sujas, de unhas negras como olhos de fava, desinteressava-se de tudo
+que não fosse fazer dôces, como aprendera no convento, e entregar-se a
+exercicios espirituaes com fr. Angelico, a cuja intimidade se agarrara
+n'um desespero de abandonada.</p>
+
+<p>Era o symbolo da desordem que João sentia pairar n'essa casa,
+orgulhando-se de que a sua valia mais, porque n'ella transparecia a
+solida união que os elevára, emquanto a embriaguez, a preguiça, o
+desmazelo dissolviam aquella.</p>
+
+<p>Sentou-se perto da cabeceira occupada pelo marido, e os dois pareciam
+degredados no isolamento da grande meza deserta, onde nos grandes dias
+se ostentava a baixella de prata guardada no fundo da arca e se
+alinhavam os grandes beberrões dos primos dando-lhe cresta na adega,
+por dias de annos, pelas festas; onde em quinta-feira santa jantava a
+creadagem <span class="pagenum"><a id="page126" name="page126"></a>(p. 126)</span> com os amos, celebrando a ceia dos apostolos.</p>
+
+<p>Faltava Maria, e a mãe perguntou á creada:</p>
+
+<p>&mdash;A menina?</p>
+
+<p>&mdash;Mandou ir o almoço ao quarto.</p>
+
+<p>&mdash;Estará doente?</p>
+
+<p>Interpoz-se o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;Não sabe o que ella tem? Sei eu. É que vae saindo á senhora,
+herda-lhe as boas prendas, porque não tem outras que herdar.</p>
+
+<p>Respondeu em furia de hysterica D. Perpetua, envidraçando os olhos que
+só para o frade se enterneciam:</p>
+
+<p>&mdash;Vejo que o senhor ainda está com os destemperos de hontem. Já nem
+sequer o dormir lh'as coze.</p>
+
+<p>Não se escandalisou o morgado, acostumado a essas violencias, e
+continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Por causa de sua filha houve hontem n'esta casa um escandalo. Não
+quero que se repitam, nem que ella faça o que a senhora toda a sua
+vida fez.</p>
+
+<p>&mdash;O que eu fiz? Mas o que é que eu fiz, senão caír nas bocas do mundo
+por causa dos atrevidos do seu jaez. Por ter sido sua victima sou
+culpada? E <span class="pagenum"><a id="page127" name="page127"></a>(p. 127)</span> então que nome merece o senhor, que com a sua
+brutalidade abusou da minha innocencia?</p>
+
+<p>Riu Martinho estrondosamente:</p>
+
+<p>&mdash;A innocencia de uma menina de vinte e quatro annos, creada n'um
+convento de freiras, acostumada ás denguices das grades, á intimidade
+dos primos, sabida em poucas vergonhas de namoros. Innocente, a
+senhora!</p>
+
+<p>&mdash;Ria-se, ria-se. Mas não se riu quando o pae que Deus tem, que o
+conhecia por dentro e por fóra, o agarrou pelas orelhas: «Has-de
+casar, maroto, ou mato-te como a cão damnado, porque me enxovalhastes
+a filha». E o senhor tudo eram escrupulos do que se dizia, porque
+torna porque deixa, só por eu ser filha segunda, e andar á cata de
+herdeiras ricas. Quando viu sacos de cruzados não quiz saber de famas,
+de ditos nem mexericos. Meteu-me aqui dentro, tratou-me sempre como
+uma escrava, fez de mim esta desgraçada, mas plantou novas cepas para
+se emborrachar á vontade, e concertou este pardieiro onde chovia como
+na rua.</p>
+
+<p>E n'um gesto longo abrangeu as paredes de cantaria de onde a cal
+despegava, o forro do tecto embarrigado pelo peso da telha, com
+lôstras de amarelo sujo, escuras ao centro, esbatidas para os bordos,
+da <span class="pagenum"><a id="page128" name="page128"></a>(p. 128)</span> agua da chuva represada pelos coiceis, nascidos nas
+toiças de terra entre os regos; vertida pelas telhas rachadas por
+garotos que varejavam á funda os altos alamos, á caça de melros.</p>
+
+<p>&mdash;Mente!&mdash;protestou o morgado contra a insinuação de
+interesseiro.&mdash;Cumpri apenas um dever de honra.</p>
+
+<p>Riu convulsamente D. Perpetua, tendo perdido na intimidade o respeito
+á importancia que elle se arrogava ante os estranhos, impressionados
+pelo traje de côrte, á antiga, que o marcava como homem de outros
+tempos, tornado respeitavel á força de velho.</p>
+
+<p>&mdash;A sua honra! Deixa-me rir! Quando o chamaram a Lisboa para a guerra
+com os franceses, o senhor, apesar da sua patente de capitão, não quiz
+saber de palavras bonitas, e deixou-se ficar no quartel de saude, como
+diz mestre Jacintho.</p>
+
+<p>Iam comendo e insultando-se, na rotina de trinta annos de rancor.</p>
+
+<p>&mdash;Como ha-de comprehender escrupulos de honra quem nunca os
+teve!&mdash;commentou o morgado.</p>
+
+<p>Insistia D. Perpetua, muito teimosa, desabafando o odio ao longo
+captiveiro em que a mantivera:</p>
+
+<p>&mdash;A sua honra, a sua embofia de fidalgo, que não o impediu de explorar
+como um judeu o primo Chico, <span class="pagenum"><a id="page129" name="page129"></a>(p. 129)</span> pondo-o ao descimento da cruz
+com os seus contractos de avarento.</p>
+
+<p>&mdash;Se a senhora não havia de defender esse reles picador de toiros!</p>
+
+<p>&mdash;Que quer dizer com isso?</p>
+
+<p>&mdash;Bem sabe o que fez, mesmo depois de casada, sua descaradona!</p>
+
+<p>&mdash;Não tem senão lingua! Não lhe dar um estupôr que lh'a puzesse lesa!</p>
+
+<p>&mdash;Tambem tenho mãos!&mdash;explodiu elle n'uma ameaça, dando um murro na
+meza, mostrando o punho fechado.&mdash;Não queira tornar a conhecel-as!</p>
+
+<p>Sentindo reviver a offensa dos bofetões que a atiravam ao chão,
+replicou arripiando-se como uma gata:</p>
+
+<p>&mdash;Conheço-lhe as mãos, covarde, mas o primo conhece-lhe a cara. Ainda
+o estou a vêr, quando cá veiu, muito enfiado, por causa da quinta do
+Pico da Urze: «Tu ficaste-me com as terras, pois então fica-me lá
+tambem com esta». E traz! Emplastou-lhe os cinco dedos nas bochechas!</p>
+
+<p>Terminára o almoço, e ambos se ergueram de mãos postas, dando graças a
+Deus.</p>
+
+<p>Vendo ainda vinho no fundo do jarro, deitou-o Martinho no copazio,
+atirou-o á bocca e chamou a mulher:</p>
+
+<p>&mdash;Oiça <span class="pagenum"><a id="page130" name="page130"></a>(p. 130)</span> as minhas ordens.</p>
+
+<p>Voltou-se D. Perpetua no habito de servidão adquirido n'uma vida
+inteira de obediencia, em que apenas havia a revolta das más palavras,
+que para o isolamento de ambos se tornára n'uma necessidade.</p>
+
+<p>Ditava o morgado, sobrancelhas contrahidas, carrancudo, como absoluto
+senhor:</p>
+
+<p>&mdash;Maria não tornará a saír do quarto sem minha ordem!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Então fica encarcerada?</p>
+
+<p>&mdash;Cale-se e obedeça!</p>
+
+<p>&mdash;Não, que me sóbe uma coisa á garganta, e rebento se não lhe digo as
+verdades! Quer fazer-lhe o que me fez a mim, que me fechou como a um
+cão, para se meter com as creadas e com as mulheres do monte, vindas
+de proposito pagar as rendas em vez dos homens, para levarem sua
+pataca amarrada na ponta do lenço!</p>
+
+<p>&mdash;Já acabou? Então oiça, e veja se tem a imprudencia de me
+desobedecer. Já sabe o que lhe custa!</p>
+
+<p>&mdash;Quere-a para freira?</p>
+
+<p>&mdash;D'aqui em deante não a deixe só, não lhe consinta cartas. Não a
+perca de vista, tome cautella. Eu vigiarei ambas.</p>
+
+<p>E <span class="pagenum"><a id="page131" name="page131"></a>(p. 131)</span> confirmando a ordem n'um gesto de ameaça, saíu em passos
+largos, bordão em punho, caminho da adega, a visitar o alambique.</p>
+
+<p>Muito irritada, porque a vigilancia da filha ia alterar-lhe os
+habitos, entrou-lhe D. Perpetua com mau modo pelo quarto dentro:</p>
+
+<p>&mdash;Venho aqui esfogueteada por sua causa. Ouvi a seu pae o bom e o
+bonito! A menina precisa ter muito juizo. Lembre-se de quem é! Seu pae
+não quer que saia do quarto sem licença, e olhe que se ateima no
+namoro, é capaz de lhe pregar as janelas.</p>
+
+<p>Recebeu Maria com indifferença a reprimenda, levantou-se e
+encaminhou-se para a porta.</p>
+
+<p>&mdash;Que faz?!</p>
+
+<p>&mdash;Que tenho eu que se ponham a disputar á meza, e depois queiram
+exercitar o genio commigo? Não fiz mal nenhum, não quero ficar presa!
+Não quero! Não quero!</p>
+
+<p>&mdash;A menina está doida!</p>
+
+<p>E saíndo para o corredor, apezar da mãe lhe querer tomar a porta:</p>
+
+<p>&mdash;Vou mandar chamar a prima Josepha e o primo Jorge. Com gente de fóra
+hão de ter mais vergonha.</p>
+
+<p>&mdash;Olhe, <span class="pagenum"><a id="page132" name="page132"></a>(p. 132)</span> eu é que não estou para me incommodar. Préso muito o
+meu socego. Vou fazer queixa a seu pae, vou pôr-lhe tudo em pratos
+limpos.</p>
+
+<p>&mdash;Pois vá, que não tenho medo do papão.</p>
+
+<p>Embrenhou-se na quinta, e foi para o sitio onde ouvira o que tinha
+alterado o seu viver.</p>
+
+<p>Longe de todos, repetia as suas palavras, recordava como ellas o iam
+transformando.</p>
+
+<p>Ao principio era ainda o pequeno de escola com quem brincava; o
+humilde dependente d'esse frade, que viam passear ao longo da janela
+do escriptorio, côr de papoila, dedo no ar, ditando com voz de sermão.</p>
+
+<p>Ao affirmar que a amava não parecia o mesmo; grave, offendido, dizendo
+retirar-se para sempre, decidido talvez a morrer n'essas luctas onde
+tantos caíam crivados de balas.</p>
+
+<p>Na sua imaginação de rapariga apparecia João envolto no prestigio do
+sacrificio, via-o galhardamente na estrada brandindo uma lamina,
+arrostando com as ameaças, tão differente do tempo em que córava ao
+fingir-se ella convencida de que fr. Angelico lhe dava puchões de
+orelhas.</p>
+
+<p>Parecia outro, mais esbelto, mais homem assim fardado; e agora
+lembrava com desvanecimento que elle <span class="pagenum"><a id="page133" name="page133"></a>(p. 133)</span> lhe chamára bonita e
+dissera ter o futuro nos seus bellos olhos, a esperança de felicidade
+nos seus labios.</p>
+
+<p>Queria-a para mulher. E poderia ser? Elle não era nobre, o que diziam
+não ser já preciso para nada. Mas o pae, só por uma desconfiança
+fizera o que fizera! Não quereria ouvir falar em semelhante casamento.
+Que haviam de fazer?</p>
+
+<p>João o diria. Decidido como se mostrára, levaria tudo a bom caminho.</p>
+
+<p>E se casassem?</p>
+
+<p>Era bem differente do pae; delicado, fino! Não seria desgraçada como a
+mãe.</p>
+
+<p>Que alegria a d'elle se a escutasse. Ah! mas teria vergonha de lh'o
+confessar. Da sua bocca nunca o ouviria. Dar-lho ia a saber pela
+prima. Oh! pela prima não. Achava-o tão lindo, era capaz de
+roubar-lho. Mas João amava-a muito para fazer caso de outra mulher.
+Portanto não lho mandaria dizer por pessoa nenhuma, havia de
+repetir-lho ella propria.</p>
+
+<p>Habituar-se-ia, pouco a pouco, um bocadinho de cada vez, dando-lhe a
+perceber nos olhos...</p>
+
+<p>Pois se casassem haviam de ter segredos?</p>
+
+<p>Affligia-a o remorso. Porque não lhe falara assim quando <span class="pagenum"><a id="page134" name="page134"></a>(p. 134)</span>
+elle, tão pallido, se arriscára a desabafar? Não sentaria praça, não
+passaria pelo desgosto de o quererem espancar, e ella não estaria
+agora ameaçada pelo pae e pela mãe. Sempre o estimára, é certo, mas
+deixara-a fria esse inesperado desabafo, tanto estava longe de pensar
+n'elle para marido, quando desdenhava morgados, e julgava tudo
+merecer.</p>
+
+<p>Elevara-o a deliberação, a coragem, o firme bem querer manifestado no
+rompimento com a situação de inferior.</p>
+
+<p>Agora sim! Agora comprehendia-o e queria-lhe bem.</p>
+
+<p>No enlevo d'essa commoção, não pensou mais nas ameaças, e
+apresentou-se á hora do jantar, como se nada tivesse havido.</p>
+
+<p>Quando D. Perpetua lhe foi participar a desobediencia da filha, ficou
+muito offendido o morgado, mas não se ergueu do barril, não desamparou
+a destillação, nem sequer deu por entendido o recado.</p>
+
+<p>Reconhecendo a mulher, em intima alegria, quanto o pungia essa
+noticia, voltou-lhe costas e foi-se.</p>
+
+<p>Quando ao jantar, Maria lhe tomou a benção, estremeceu Martinho
+Vasques. Creára-a mimosa, votára-lhe certa <span class="pagenum"><a id="page135" name="page135"></a>(p. 135)</span> affeição, embora
+o seu genio sêcco não o deixasse transparecer.</p>
+
+<p>Ante o seu ar alegre, de desafio, não se atreveu a censural-a, e
+durante o jantar não se trocou palavra a respeito da vespera.</p>
+
+<p>Saíram as mulheres após as graças a Deus, e ficcou o morgado,
+meditando e bebendo, até á chegada de fr. Angelico.</p>
+
+<p>Não libaram n'esse dia.</p>
+
+<p>Tomando a serio o papel de dono de casa, de senhor absoluto,
+desfechou-lhe o morgado, á queima roupa, a ordem de fazer contas ao
+jardineiro, e de o pôr fóra immediatamente:</p>
+
+<p>&mdash;Não lhe consinta lamurias nem alcovitices.</p>
+
+<p>Partiu o frade, humilhado da seccura e passando pelo escriptorio para
+levar a pataca do mez, foi procurar mestre Jacintho ao casinhoto.</p>
+
+<p>Voltou á adega o morgado, encarando com mais clareza a situação. Livre
+do veterano, não poderia a filha corresponder-se com João, e
+esquecer-lhe-ia a perrice.</p>
+
+<p>E na primeira aberta que lhe permittissem as questões da ilha, toca
+para Lisboa!</p>
+
+<p>Tencionava o frade descarregar no velho o despeito pelo tom imperioso
+do fidalgo, quando o viu saír, <span class="pagenum"><a id="page136" name="page136"></a>(p. 136)</span> muito escovada a antiga
+farda; posto á banda o boné, n'uma reminiscencia da passada elegancia;
+calça de linho, de pastor, de onde rompiam, pesados e bolorentos, os
+butes do uniforme; saco de chita debaixo do braço; cacetinho na mão.</p>
+
+<p>Disse-lhe n'um amargo sorriso:</p>
+
+<p>&mdash;Bem vê que já estava em ordem de marcha. Ao que houve, não contava
+com outra coisa.</p>
+
+<p>Olhou em torno, e como não visse o fidalgo:</p>
+
+<p>&mdash;Admira-me que o senhor morgado não venha pôr-se a arrotar contra
+mim.</p>
+
+<p>E n'um risinho de triumpho:</p>
+
+<p>&mdash;Tem mêdo cá do ginja! Pois não lhe comia nenhum bocado. Palavra que
+tenho pena, queria dizer-lhe duas verdades. E d'ahi, não. Aquillo não
+tem emenda. É falar ás paredes.</p>
+
+<p>Ouvia-se rir, ao longe, Maria com a prima Josepha da Esperança.</p>
+
+<p>&mdash;Ó aquella sim, tenho pena! Andei com ella ás cavallotas, quando me
+saltava nos canteiros atraz das borboletas, estragando-me as flôres, a
+traquinas.</p>
+
+<p>Abrangeu a casa e a quinta n'um olhar de saudade:</p>
+
+<p>&mdash;Cá fica, a pobre, para ter a sorte da mãe! Mas ella, <span class="pagenum"><a id="page137" name="page137"></a>(p. 137)</span> que
+ri tanto, é porque não tem mêdo das parlapatices d'aquella bôa alma do
+pae. Faz bem rir, é uma creança!</p>
+
+<p>E dando uma palmada irrespeitosa no ventre de fr. Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;Por mais ameaças que lhe faça, ha de o morgado ir adiante d'ella, é
+lei do mundo! Por mais intrigas que forge vossa reverendissima, tambem
+irá comer hervas pela raiz, e ella ha de cá ficar, e gostará de quem
+lhe der na veneta. Até eu, que não sou nenhum rato de sacristia, hei
+de ir á missa de costas, e ella ainda estará em edade de casar com o
+menino João.</p>
+
+<p>&mdash;Vocemecê nada mais tem que fazer aqui. Está pago e satisfeito...</p>
+
+<p>&mdash;Põe-me na rua? Não quer que me despeça da D. Mariquinhas? Pois é
+melhor para me não saltarem as lagrimas, e vossa reverendissima não se
+rir depois á minha custa, quando fôr á lambujem do alambique.</p>
+
+<p>&mdash;Avie-se, que eu tenho mais que fazer.</p>
+
+<p>&mdash;Pois vá-se embora, que não lhe pego. Ah! Fica de sentinella a mim!
+Quem tal havia de dizer! Fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria
+a governar esta casa! Olhe que eu nunca lhe gosei da <span class="pagenum"><a id="page138" name="page138"></a>(p. 138)</span>
+carantonha, e agora comprehendo que vocemecê, e os outros da sucia,
+como os mosquitos de roda do vinho bom, andam á espreita das casas
+ricas, para apanharem freiras com bons dotes, e quintas onde se
+refocillem. Mas esta não apanham, juro-lh'o eu, porque a minha menina
+não é para graças. Não vae com cantigas. Aquella ha de fazer sempre o
+que muito bem quizer, que a isso a costumaram desde pequena. Era o
+nosso «Sant'antoninho, onde te porei»!</p>
+
+<p>Limpou uma lagrima ao canhão vermelho da jaleca, e virou-se contra o
+frade, que já não estava nada satisfeito:</p>
+
+<p>&mdash;Ha de se lhe acabar o governo aqui dentro, como já se lhe acabou lá
+fóra!</p>
+
+<p>Deu alguns passos para a porta, mas ainda se voltou para traz:</p>
+
+<p>&mdash;Vou para o castello. Hão de precisar lá de soldados velhos para
+ensinar a recruta á galuchada.</p>
+
+<p>Passou o postigo que o frade lhe fechou nas costas, de pancada, indo
+depois vigial-o para o alpendre.</p>
+
+<p>Voltara-se mestre Jacintho ao estoiro, e não poude represar as
+lagrimas vendo-se expulso d'essa casa, que considerava como a sua.</p>
+
+<p>Deu alguns passos, vergado ao peso do saco, penosamente <span class="pagenum"><a id="page139" name="page139"></a>(p. 139)</span>
+apoiado ao bordão, mas tirara-lhe as pernas a sensibilidade e veiu
+sentar-se na banqueta, a refazer-se.</p>
+
+<p>Descendo para as bandas de S. Jorge, illuminava o sol as vidraças dos
+quarteis da fortaleza.</p>
+
+<p>Abrangeu o velho toda a cortina que vem da bateria de São Diogo,
+cintando á beira-mar o Monte Brasil, varejando a bahia do Fanal;
+depois os grandes pannos da muralha do Caminho Novo, o torreão e a
+ponte levadiça.</p>
+
+<p>Estava agora ali dentro João, o seu derradeiro affecto, e a velha
+espingarda com que fizera a campanha, e que tanto chorara ao abandonar
+ao quarteleiro.</p>
+
+<p>Tinha a proteger essa creança, a reivindicar essa arma, a punir os
+aggravos do morgado e do frade.</p>
+
+<p>Meteu-o em brios o espirito da classe. Ergueu-se, poz o saco no poial,
+abaixou-se-lhe, passou os cordões aos hombros e atou-os atraz das
+costas, á laia de mochila. Levantou-se com elle e o peso, puxando-o
+para traz, fez lhe perder a curvatura senil.</p>
+
+<p>Deu uns passos amparando-se ao bordão, mas desempenou-o o automatismo
+profissional. Pôl-o ao hombro á guisa de espingarda, deu a si proprio
+uma voz de commando:</p>
+
+<p>&mdash;Ordinario, <span class="pagenum"><a id="page140" name="page140"></a>(p. 140)</span> marche!</p>
+
+<p>E a passo cadenciado avançou estrada fóra, rejuvenescido pela
+esperança.</p>
+
+
+
+
+<h2>VII <span class="pagenum"><a id="page141" name="page141"></a>(p. 141)</span></h2>
+
+
+<p>Na melancholia do entardecer, em que as trindades põem o echo de um
+soluço, impregnado da tristeza do esmorecer do sol, fitava João o
+mirante da quinta, quasi totalmente esbatido na folhagem dos pomares.</p>
+
+<p>Representava-se-lhe a scena da emboscada, revia-se na galharda atitude
+em que provocára os adversarios, baioneta em punho; fixára na retina o
+rosto transformado de Maria, a ardencia refulgindo-lhe no olhar; e
+vibrava-lhe ainda nos ouvidos a commoção dos gritos afflictivos.</p>
+
+<p>Amava-o! Denunciara-a a surpreza.</p>
+
+<p>Se <span class="pagenum"><a id="page142" name="page142"></a>(p. 142)</span> estivesse contra elle, riria ao vêl-o corrido pelos cães,
+ou ter-se-ia retirado indignada pela sua audacia.</p>
+
+<p>Mas não! Manifestára-se claramente a seu favôr, e só á força deixára o
+torreão.</p>
+
+<p>Amava-o pois! Era o essencial.</p>
+
+<p>Sempre contára como hostil o pae. Haviam de vencer com persistencia,
+confiando um no outro, certos da mutua fidelidade. E, tão novos,
+pertencia-lhes o futuro.</p>
+
+<p>Como haviam de entender-se? Precisavam apoiar-se, trocar esperanças,
+animar-se na penosa separação.</p>
+
+<p>Iria pela quinta a cavallo, para vêr para dentro, onde o muro era mais
+baixo, e poder resistir melhor ás ciladas. Levaria pistolas nos
+coldres, e ai de quem se lhe atrevesse!</p>
+
+<p>Turbavam-o impetos de vingança, deslumbramentos de sangue, ferido pelo
+insulto.</p>
+
+<p>Como concretizar a desforra?</p>
+
+<p>Indicavam os preparativos que era esperado. Mas quem o denunciára?</p>
+
+<p>Ao lusco-fusco assoprou a creada o borralho para o corno da isca,
+accendeu a candeia da cozinha, e foi levar-lhe, com as bôas noites, o
+candieiro de latão de <span class="pagenum"><a id="page143" name="page143"></a>(p. 143)</span> tres bicos, e a branda luz do azeite
+alagou o polido do bufete, projectada pelo reflector.</p>
+
+<p>Illuminado o quarto, deixou de vêr na penumbra o tenue esboço dos
+Folhadaes, mas quedou-se no mesmo sitio, esperando que o pontear de
+luzes lhe fôsse dando referencias para o reencontrar.</p>
+
+<p>Gritou lhe de baixo a tia Dorotheia:</p>
+
+<p>&mdash;Ahi vae uma visita.</p>
+
+<p>Descontente por irem perturbal-o, não acertava com quem fôsse, nem
+conhecia os passos pesados, vagarosos e tropegos, subindo para a
+torre.</p>
+
+<p>&mdash;Dá licença, camarada?&mdash;disseram da porta.</p>
+
+<p>Era a voz do veterano, rouca da bronchite chronica adquirida nas
+noites ao relento.</p>
+
+<p>&mdash;Vocemecê por aqui, mestre Jacintho?</p>
+
+<p>E mandou-o sentar, no alvoroço de noticias.</p>
+
+<p>&mdash;Como tem passado? Como vae a menina Mariquinhas?</p>
+
+<p>Acanhou-se, sob o olhar magano do velho.</p>
+
+<p>&mdash;Não se faça vermelho, senhor Joãosinho.</p>
+
+<p>E batendo palmadas nos joelhos:</p>
+
+<p>&mdash;Então logo a uma morgada, hein? Sim senhor, sim senhor!</p>
+
+<p>João sentia o sangue rebentar-lhe pela cara, mas a anciedade
+impelliu-o:</p>
+
+<p>&mdash;Conte-me <span class="pagenum"><a id="page144" name="page144"></a>(p. 144)</span> que se passou depois que a mãe a levou para
+dentro.</p>
+
+<p>&mdash;Que se havia de passar? Mais era com ella!</p>
+
+<p>&mdash;Reprehenderam-a?</p>
+
+<p>&mdash;Não é para graças, não tem mêdo.</p>
+
+<p>&mdash;Então o morgado...</p>
+
+<p>&mdash;Commigo, commigo é que foi o bom e o bonito!</p>
+
+<p>&mdash;Coitado! Comprometter-se por minha causa.</p>
+
+<p>&mdash;Não me coite, que não me fui abaixo das pernas.</p>
+
+<p>&mdash;Na sua edade!...</p>
+
+<p>Ergueu-se o veterano, desvanecido pelo rasgo:</p>
+
+<p>&mdash;Foi-se pôr o morgado a crescer para mim, mas eu, como quem diz,
+fingi que não era commigo, que aquillo não tem senão lingua, mas
+tambem é como um lavadoiro!</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe-me ter sido a causa de tal desgosto.</p>
+
+<p>&mdash;Espere, que elle não se foi sem resposta.</p>
+
+<p>E possuindo-se da paixão com que falára:</p>
+
+<p>&mdash;Disse-lhe tudo que me veiu á bôcca, deitei-lhe á cara a negra
+ingratidão com que nos pagou termos-lhe salvo a pelle, eu e seu avô; e
+o matreiro embuchou e ficou-se a assoprar, a roer...</p>
+
+<p>João pediu-lhe, compungido:</p>
+
+<p>&mdash;Não <span class="pagenum"><a id="page145" name="page145"></a>(p. 145)</span> tome mais o meu partido, não se inquiete por mim...</p>
+
+<p>&mdash;A bôas horas. Hoje o intriguista do frade poz-me na rua.</p>
+
+<p>&mdash;O quê? Pois está despedido?</p>
+
+<p>&mdash;Não se assuste, menino, não hei de morrer á mingua. Aveso algumas
+patacas para pão de milho, e n'aquelle castello cabe muita gente. Já
+lá fui pôr os trapicalhos e marcar poleiro.</p>
+
+<p>&mdash;Tem a nossa casa, mestre Jacintho.</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei, mas obrigado. Se mesmo o menino á escolheu aquella, queria
+que eu ficasse a rezar n'umas contas?</p>
+
+<p>&mdash;Vocemecê precisa de socego.</p>
+
+<p>&mdash;Depois, depois. Agora ninguem é de mais ali dentro, que cá por fóra
+os patifes são muitos.</p>
+
+<p>&mdash;Desarrumar-se dos seus commodos por môr das minhas creancices!</p>
+
+<p>&mdash;Não se afflija, que eu por mim não tenho pena nenhuma. Só me custa
+não ter dado uma afogação em fr. Angelico, que me tratou como a um
+negro.</p>
+
+<p>Mostrava o punho cerrado:</p>
+
+<p>&mdash;Mas não as perde. São favas contadas!</p>
+
+<p>&mdash;Socegue, deixe-o lá. Essa agitação faz-lhe mal.</p>
+
+<p>&mdash;Hei <span class="pagenum"><a id="page146" name="page146"></a>(p. 146)</span> de escalal-o, como a um chicharro, para lhe enforcar o
+Miguel nas tripas.</p>
+
+<p>E como João sorrisse:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Sim? Pois elle chegou muito estugado á quinta antes do menino, e
+não se me tira da cabeça que foi armar a tratantada.</p>
+
+<p>&mdash;Elle?</p>
+
+<p>&mdash;Sim senhor. E depois vi arrebentar muito depressa pela porta fóra
+aquella cára de condemnado, com estes dois que a terra ha de comer.
+Tenho para mim que ia com ella fisgada.</p>
+
+<p>&mdash;Não seria simples coincidencia?</p>
+
+<p>&mdash;É má rez, como todo o homem que veste saias. Sucia de mandriões!</p>
+
+<p>&mdash;E Maria?</p>
+
+<p>&mdash;Não ha mal que lhe chegue.</p>
+
+<p>&mdash;Viu-a hoje?</p>
+
+<p>&mdash;O patife do frade não me deixou, e eu não teimei porque a ouvi rir a
+bom rir.</p>
+
+<p>&mdash;Pois ella estava alegre?</p>
+
+<p>&mdash;Eu lhe conto. A senhora D. Perpetua foi muito prognostica dar-lhe o
+recado do pae, que ao almoço esteve como uma bicha, ouvia-se-lhe ao
+longe a prégação. Mas ella o caso que fez das prohibições foi
+escapulir-se <span class="pagenum"><a id="page147" name="page147"></a>(p. 147)</span> logo para a quinta. Rapariga de uma cana!</p>
+
+<p>Reparou que João entristecera.</p>
+
+<p>&mdash;Não se me ponha a malucar, que se ella estava de risota com a
+senhora D. Josepha da Esperança era decerto para não dar o braço a
+torcer.</p>
+
+<p>Depois de luctar comsigo mesmo, aventurou-se a perguntar:</p>
+
+<p>&mdash;Manda-me dizer alguma coisa?</p>
+
+<p>Riu-se muito Jacintho, meneou a cabeça, e respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Estou velho, mas não ando de capote e capello.</p>
+
+<p>Arrependeu-se João:</p>
+
+<p>&mdash;Desculpe, não foi por menos consideração.</p>
+
+<p>&mdash;Desculpar o quê? Tivesse falado com ella, que eu mesmo lhe
+perguntava se queria alguma coisa para o menino.</p>
+
+<p>&mdash;Como lhe hei de agradecer tanta dedicação!</p>
+
+<p>&mdash;É vicio velho em mim, não me caíam os parentes em deshonra.</p>
+
+<p>E vigiando que não fôsse ouvido:</p>
+
+<p>&mdash;Já n'esse particular servi de muito ao seu avôsinho.</p>
+
+<p>Bateu-lhe familiarmente nas costas:</p>
+
+<p>&mdash;Ainda <span class="pagenum"><a id="page148" name="page148"></a>(p. 148)</span> assim, elle não começou tão cêdo, verdade seja dita.</p>
+
+<p>Desvaneceu-se o rapaz pela admiração implicita n'aquellas palavras, e
+animou-se a aproveitar a bôa vontade:</p>
+
+<p>&mdash;Preciso falar-lhe, ou escrever-lhe, comprehende bem. Tenho muito que
+lhe dizer, e quero saber o que ella pensa de mim.</p>
+
+<p>&mdash;O que ahi vae, o que ahi vae.</p>
+
+<p>&mdash;Aconselhe-me, mestre Jacintho. Como ha de ser?</p>
+
+<p>&mdash;Dê tempo ao tempo!</p>
+
+<p>&mdash;Hei de desamparal-a quando todos a ameaçam?</p>
+
+<p>&mdash;Não tenha mêdo, que aquillo é taboa que não joga. Teimosa! Que o
+diga eu, que muito lhe soffri em mais pequena.</p>
+
+<p>&mdash;Que quer dizer na sua?</p>
+
+<p>&mdash;Espere, espere, que ha de chegar-lhe tempo para tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Esperar? Isso não. Quero entender me francamente com ella, por
+palavra ou por escripto. E se me quizer como eu lhe quero, como hontem
+me pareceu...</p>
+
+<p>&mdash;Casa immediatamente, não é verdade?</p>
+
+<p>&mdash;É <span class="pagenum"><a id="page149" name="page149"></a>(p. 149)</span> claro.</p>
+
+<p>Recreiou-se o veterano com a resposta:</p>
+
+<p>&mdash;E havia de casar n'essa edade, com dezaseis annos?</p>
+
+<p>&mdash;Que tem que vêr a edade com o amôr?</p>
+
+<p>&mdash;Ora vá-se crear, menino. Isso até lhe fazia mal á saude.</p>
+
+<p>Córou João até ás orelhas.</p>
+
+<p>&mdash;Não me fique amuado, que isto é brincar.</p>
+
+<p>&mdash;Bem. Então falemos a serio.</p>
+
+<p>&mdash;Não se zangue. Que geniosinho!</p>
+
+<p>João fôra respirar á janella, a cabeça em fogo, e puzera-se a olhar ao
+longe, na direcção das raras luzes das casas de campo, em meio das
+quaes reconhecia a d'ella.</p>
+
+<p>Chegou o velho á janela, abrangendo n'um gesto a cidade e o castello:</p>
+
+<p>&mdash;Sabe que mais? Ponhamos as coisas a direito, que ella lhe ha de ir
+parar ás mãos.</p>
+
+<p>&mdash;Não póde ser. E d'aqui até lá ha de ficar abandonada ao pae e á mãe,
+sem contar commigo, sem me sentir a seu lado?</p>
+
+<p>&mdash;Tem razão, nanja que eu lha tire. Mas deixe acabar a desconfiança do
+morgado, que agora anda tudo de olho em cima d'ella...</p>
+
+<p>&mdash;Será <span class="pagenum"><a id="page150" name="page150"></a>(p. 150)</span> assim, mas não posso esperar.</p>
+
+<p>&mdash;Largos dias tem cem annos.</p>
+
+<p>Entendeu João pôr-lhe termo aos conselhos, e proceder por sua conta.</p>
+
+<p>&mdash;Pois mestre Jacintho, muito obrigado pelo que por mim fez. E não o
+incommodarei mais por esta causa, que agora já não é como no seu
+tempo, que só pela altura dos trinta annos é que se julgava uma
+senhora em edade casar. Agora vae tudo muito mais depressa. Se até ha
+barcos que andam a fogo!</p>
+
+<p>Queixou-se amargamente o veterano:</p>
+
+<p>&mdash;Foi sempre assim. A mocidade não quer saber da velhice para cousa
+nenhuma.</p>
+
+<p>&mdash;Não diga isso. Sabe como o estimo. Só me refiro a estas coisas de
+amôr, de que mostra não perceber nada, pois quer que um namorado se
+cale, depois de acontecimentos como os de hontem.</p>
+
+<p>N'uma saudade do passado, da juventude, do amôr, do prazer,
+remoçou-lhe o rosto engelhado:</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que percebo! Lá por me vêr agora um velhão, olhe que já
+passei pela sua edade, e até fui de mama! É o que lhe digo, não se me
+ponha a rir nas minhas barbas. No seu tempo, porém, ainda me
+entretinha a deitar o pião, não sabia o que fosse o bicho mulher. Mais
+tarde, sim; fui desempenado, bonitóte, <span class="pagenum"><a id="page151" name="page151"></a>(p. 151)</span> e antes de me darem
+as bexigas, pellavam-se bôas moças por mim. Já vê que percebo, e tive
+bom mestre, olé se tive.</p>
+
+<p>Aproximou-se muito o veterano, e num ar de confidencia, um sorriso
+bonacheirão, disse-lhe baixinho:</p>
+
+<p>&mdash;Lições de seu avô, que foi das pontas! Elle atirava-se ás patrôas, e
+eu ás creadas. Uma vez...</p>
+
+<p>Mas arrependeu-se.</p>
+
+<p>&mdash;Nada. Nada. Suas tias podem desconfiar de que estou para aqui a
+perdel-o...</p>
+
+<p>&mdash;Ellas não ouvem. Conte, conte.</p>
+
+<p>&mdash;Uma vez que elle foi de castigo para a Graciosa ... Não digo nada,
+senão que muitos primos fidalgos tem por ahi, sem imaginar.</p>
+
+<p>&mdash;Quem? Quem?</p>
+
+<p>&mdash;Ora. Vão lá saber.</p>
+
+<p>Deliciava-se na evocação:</p>
+
+<p>&mdash;Só se atirava ao fino, o maroto. Deus lhe fale n'alma!</p>
+
+<p>Entristeceu-o a ideia da morte, mas desanuviou-se rapidamente:</p>
+
+<p>&mdash;O menino vae pelo mesmo caminho. Atirou-se logo a uma rica
+herdeira...</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Não julgue que foi por isso.</p>
+
+<p>Continuou <span class="pagenum"><a id="page152" name="page152"></a>(p. 152)</span> o velho, sem dar tento na interrupção:</p>
+
+<p>&mdash;Fidalga como as melhores, bonita sem senão, os olhos de todos
+n'aquelle palminho de cara, e o morgado crente de que nenhum a valia,
+a ponto de a querer levar a um primo do reino.</p>
+
+<p>&mdash;Fosse ella uma pobre de Christo, queria-lhe da mesma maneira,
+acredite-me.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, pois sim; mas ella é o que eu disse, isso é que é a
+verdade. Se fôsse uma pobre sem eira, nem beira, nem ramo de figueira,
+não lhe açulavam os cães. Tratavam logo de o encambulhar com ella ...
+Agora sendo o que é, não espere conseguir d'ali nada ao bem. Ha de ser
+á má cara, e é se fôr.</p>
+
+<p>&mdash;Estou resolvido a tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Não digo menos d'isso. Quem sae aos seus não degenera.</p>
+
+<p>&mdash;Maria ha de ser minha mulher, ao bem ou ao mal!</p>
+
+<p>&mdash;Que a coisa começa torta, bem vejo eu. O menino já tem chorado
+lagrima gorda por causa d'ella. Mas não deve desanimar. A farda sempre
+deu sorte em coisas de mulheres. Lá por ella ser morgada, não é mais
+do que a imperatriz da Russia, que <span class="pagenum"><a id="page153" name="page153"></a>(p. 153)</span> dava o cavaquinho pelo
+general Gomes Freire, com quem andámos no Russilhão. Pois eu não
+conheci um corneta, um rapagão como um turco, o menino bonito da
+rainha nossa senhora que se perdia a ouvir-lhe repetir os toques? E
+não vieram todos desvanecidos os soldados do dezaseis de infantaria de
+um destacamento em Queluz quando a Senhora D. Carlota Joaquina estava
+presa? Até um granadeiro, alto como uma torre, valha a verdade, trazia
+duas cartas de pessôa de dentro!</p>
+
+<p>E reparando na surpreza de João:</p>
+
+<p>&mdash;O menino ficou vermelho como uma malagueta. Mas olhe que é tudo
+verdade. Pergunte lá no castello, que lh'o hão de trocar em miudos.</p>
+
+<p>Concentrou-se João, e depois perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Em resumo, mestre Jacintho. Está, ou não disposto a auxiliar-me?</p>
+
+<p>&mdash;Com alma e vida.</p>
+
+<p>&mdash;Não podia esperar de si outra coisa. Muito obrigado. Agora diga-me
+lá, que lhe parece: devo procural-a ou escrever-lhe?</p>
+
+<p>&mdash;Por emquanto não se podem levar as coisas ás do cabo. O menino ainda
+está com os dentes com que mamou, e já quer casar. Valha-o Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Lá volta aos gracejos.</p>
+
+<p>&mdash;Mas <span class="pagenum"><a id="page154" name="page154"></a>(p. 154)</span> não torno mais. Olhe, por agora basta que lhe escreva.</p>
+
+<p>&mdash;Tambem me parece.</p>
+
+<p>&mdash;Se a sua firmeza fôr tal como diz, o tempo que levarem separados ha
+de fazel-os quererem-se mais um ao outro.</p>
+
+<p>&mdash;Juro-te que é.</p>
+
+<p>&mdash;Ninguem lucra mais com o seu casamento do que eu. Voltar aos meus
+canteiros, ao meu buraquinho, fazer de enxota cães quando lá fôr fr.
+Angelico ou os collegas, a vêr se pilham alguma coisa.</p>
+
+<p>&mdash;Como lhe hei de mandar a carta, sem a comprometter?</p>
+
+<p>Meditou um pouco o soldado, e respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;O melhor, e o mais seguro de tudo, é falar á senhora D. Josepha. É
+muito capaz d'isso, porque gosta muito do menino. Até parecia uma gata
+assanhada quando foi da patifaria do quinteiro, que por signal lá anda
+com a cabeça amarrada, para não cair n'outra.</p>
+
+<p>&mdash;E como ha de ser para lhe falar?</p>
+
+<p>&mdash;Descance. Eu sei de uns atalhos, por entre as terras, que vão lá
+sair mesmo ao pé do canavial ao fim do pomar.</p>
+
+<p>&mdash;Tem a certeza de que não nos podem vêr?</p>
+
+<p>&mdash;Conto <span class="pagenum"><a id="page155" name="page155"></a>(p. 155)</span> que não.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então vamos lá amanhã mesmo, visto que não ha nada a receiar.</p>
+
+<p>&mdash;Amanhã? Deus te livre! Andam á espreita d'ella para ganharem o dôce.
+Davam-nos logo com o rasto, e o morgado mandava alevantar o muro.
+Nada! Nada! Deixe ao meu cuidado saber o que se passa lá dentro, e em
+elles andando desprevenidos, damos-lhe a saltada.</p>
+
+<p>João, por fim, rendeu-se á evidencia:</p>
+
+<p>&mdash;Pois seja assim. Mas vê lá o que promettes.</p>
+
+<p>&mdash;Descance, que não me esquecerei. Não tenho menos vontade n'isso,
+creia, para o vêr feliz, e para ajustar as minhas contas. Onde se
+fazem, lá se pagam. Ali aonde me desfeitearam é que quero entrar de
+cabeça levantada, a deitar foguetes, no dia do casamento.</p>
+
+<p>&mdash;Oxalá!</p>
+
+<p>&mdash;E com esta me vou, senhor Joãosinho.</p>
+
+<p>Já de pé, sacou do mólhinho de folhas de milho, das mais tenues
+camisas que na sóca protegem o grão tenro, leitoso; alisou-a com a
+navalha, acamou-lhe o picado de tabaco negro, da terra, accendeu ao
+candieiro o cigarro grosso e despediu-se:</p>
+
+<p>&mdash;Com bem passe.</p>
+
+<p>Ainda <span class="pagenum"><a id="page156" name="page156"></a>(p. 156)</span> João tentou retel-o:</p>
+
+<p>&mdash;Porque não quer ficar? A casa é grande, cabemos todos.</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado, menino. Ali é que é o meu poiso. Antes eu de lá nunca
+houvesse saído, para ver o que tenho visto.</p>
+
+<p>E já na escada recommendou ainda, muito baixinho, o dedo na bocca:</p>
+
+<p>&mdash;Deixe esquecer a coisa por estes dias, olhe que o morgado anda com a
+pedra no sapato.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Ao ficar só, sentou-se ao bufete e poz-se a escrever. Não se recusaria
+D. Josepha a pôl-os em relações.</p>
+
+<p>Acceitava esse alvitre do velho, mas lá deixar de vêl-a, isso é que
+não.</p>
+
+<p>Perguntava-lhe a melhor maneira de o fazerem, e se mestre Jacintho não
+accedesse, iria sósinho.</p>
+
+<p>Com espanto, sentiu perdida, ao escrever-lhe, a timidez em que só por
+meias palavras se lhe declarára. Enthusiasmava-se como se a tivesse
+diante de si, mas dirigia-se-lhe em termos que, face a face, nunca
+arriscaria.</p>
+
+<p>Era <span class="pagenum"><a id="page157" name="page157"></a>(p. 157)</span> o seu primeiro amor. Sentira bem como á ameaça de um
+ciume, ao receiar que a entregassem a outro homem, a amisade de irmãos
+se transformára na paixão em que esquecera a sua inferioridade ante a
+riqueza e a nobreza da mulher para quem se atrevera a levantar os
+olhos. Mas n'estes tempos de liberdade podia aspirar a ella, erguer-se
+até á sua grandeza, porque d'ora ávante as posições, os cargos, a
+consideração publica ganhar-se-iam com o trabalho, não se obteriam só
+por herança.</p>
+
+<p>E n'uma grande ternura comparava o viver de ambos, tão semelhante;
+elle sem pae nem mãe, ella como se os não tivesse, isolada no ermo
+casarão onde pairava a sombra da tristeza.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Restituiu essa carta a Maria a tranquillidade que lhe roubára o
+conflicto, e quando esperava alegremente a prima, e se perdia com ella
+pela quinta, nas travessuras de outros tempos, chegava o pae a
+suspeitar que recebesse noticias d'elle.</p>
+
+<p>Não desconfiava, porém, de D. Josepha da Esperança, e toda a
+vigilancia era na porta e nos muros, receiando temeridades do veterano
+ou algum arrojo de João.</p>
+
+<p>Tendo <span class="pagenum"><a id="page158" name="page158"></a>(p. 158)</span> como militares garantida a impunidade, cria-os capazes
+de irem lá, com algum bando de camaradas, a desforrarem-se da cilada
+da sua gente.</p>
+
+<p>Passaram-se dias, e parecia completamente esquecido o caso. Era,
+porém, caprichosa de mais a filha para não querer, ao menos por
+despeito, entender-se com João.</p>
+
+<p>No seu tempo já teria liquidado tudo á valentona. Hoje usava-se de
+astucia, e n'esse terreno reconhecia-se inhabil.</p>
+
+<p>Eram assumptos mais para fr. Angelico, manhoso como frade, batido em
+argucias de confessor habituado a lêr no intimo das almas.</p>
+
+<p>Deixára de apparecer, e fazia lhe falta. Offendera-o a sua
+sobranceria. Puzera-se nas suas tamanquinhas, e mandar chamal-o era
+uma satisfação. Mas antes dar o braço a torcer, que deixar fazer o
+ninho atraz da orelha. Só o frade seria capaz de desenredar a meada, e
+de trazer Maria a bom caminho.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Resfolegou triumphante fr. Angelico ao receber o recado do morgado.</p>
+
+<p>Dar-lhe ordens como a um feitor? Era lá coisa que lhe permittisse?
+Agora o passado, passado; mas faria <span class="pagenum"><a id="page159" name="page159"></a>(p. 159)</span> render a reconciliação.
+Não voltaria da quinta sem grosso donativo a pretexto do levantamento
+de guerrilhas; sem algumas das peças que D. Perpetua, na intenção de
+salvar a alma, forrava, em demencias de usura, ás despezas da casa, e
+escondia no colchão.</p>
+
+<p>Servia-lhe de pretexto a atitude do fidalgo para acabar com a
+intimidade da dona da casa. Fatigava-o já a paixão senil a que ella se
+apegára durante vinte annos, desde que succedera na capellania da casa
+ao seu mestre, de quem decerto herdára a affectuosidade da morgada, a
+sua predilecção pelo lubrico contacto do aspero burel.</p>
+
+<p>Parecendo-lhe nos primeiros tempos uma antecipação do paraiso,
+tornára-se depois o automatismo de um habito, e liquidára por fim nas
+repugnancias da obrigação.</p>
+
+<p>Ia todos os dias a creada saber da saude de sua reverendissima e
+falava-lhe da afflicção da senhora, tão sequiosa das suas bemfeitorias
+espirituaes.</p>
+
+<p>Mostrava-se elle theatralmente, no seu palco, ao fundo do sanctuario
+onde se armazenavam as imagens sem capella propria, cujos olhos de
+vidro brilhavam nas meias tintas do escuro armazem.</p>
+
+<p>Os grandes pés descalços no lagedo, sem habito, a <span class="pagenum"><a id="page160" name="page160"></a>(p. 160)</span> camisa
+desabotoada, empunhando disciplinas de grossa corda e nós nas pontas,
+simulava fr. Angelico o soffrimento de terriveis expiações.</p>
+
+<p>Respondia n'uma voz sumida:</p>
+
+<p>&mdash;Diga a sua ama a grande penitencia que estou cumprindo, a pão e
+agua. Que rese por este pobre peccador, para que lhe sejam perdoadas
+as fraquezas.</p>
+
+<p>Regressou um dia a creada com a nova de que reappareceria o frade
+chamado do senhor; e D. Perpetua não desamparou o mirante e a varanda,
+passeando inquieta, aconchegando ao peito o embrulhinho com que faria
+esquecer ao penitente as visões do inferno.</p>
+
+<p>Mal transpuzéra a porta da saleta, puxou-o para um canto, e meteu-lhe
+na mão o saquinho de sêda carmezim, onde elle pelo tacto reconhecia as
+peças de oiro.</p>
+
+<p>&mdash;Angelicosinho da minha alma, para que me deixaste, ingrato? Que mal
+te fez a tua Perpetua?</p>
+
+<p>Elle simulava um terror sagrado:</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-me, filha, tenho esta alma mais negra que um tição. Já estou a
+arder nas penas do inferno, sinto o fogo aqui dentro.</p>
+
+<p>E comprimia o estomago, onde as penosas digestões de <span class="pagenum"><a id="page161" name="page161"></a>(p. 161)</span>
+toucinho e presunto, servido em grandes postas no refeitorio,
+fermentavam em dolorosas azias, que afogava a bôa aguardente do
+fidalgo.</p>
+
+<p>&mdash;É assim que me pagas os sacrificios que tenho feito por ti? São
+desculpas como das outras vezes. Nova confessada, descarado. Ha de ser
+a tal Joaquinina do Ó, de quem me chegaram uns zum-zuns.</p>
+
+<p>Elle erguia o olhar ao tecto, n'um ar compungido:</p>
+
+<p>&mdash;Ai filha, que perdeste a minha rica alminha! E não ha remissão para
+o peccado da carne, de si mesmo mortal, aggravado ainda em cima com o
+disfarce de coisas de religião.</p>
+
+<p>Forcejava por desprender-se:</p>
+
+<p>&mdash;Nunca mais! Acabou-se!</p>
+
+<p>Perpetua agarrou-o na angustia do desamparo. Ia-se com elle o ultimo
+vislumbre de mocidade, o sonho em que se emancipava da trivialidade do
+seu viver. Era a morte aquelle rompimento!</p>
+
+<p>N'um desespero articulou surdamente:</p>
+
+<p>&mdash;Assim é que se perde a minha alma!</p>
+
+<p>&mdash;Tem paciencia, irmã. Procura a consolação espiritual na penitencia.
+Verás como é bom, que gosos celestiaes dão os cilicios e as
+disciplinas. Pede á Senhora da Rocha que te ajude a conformar. Tem
+dado <span class="pagenum"><a id="page162" name="page162"></a>(p. 162)</span> vista aos cegos e movimento aos paralyticos, fará o
+milagre de te dar resignação.</p>
+
+<p>E aproveitando o desanimo em que ella se amparava ao archibanco,
+enfiou pelo corredor em demanda de Martinho.</p>
+
+<p>Lavando na aguardente o mau sabôr dos beiços de D. Perpetua,
+desculpou-se fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria com a
+doença, que o impedira de ir receber as ordens do seu bemfeitor.</p>
+
+<p>E emquanto passavam da casa de jantar á adega, sumindo-se um atraz do
+outro pelo alçapão, ia o frade lamentando a incredulidade dos tempos,
+e a audacia do governo provisorio.</p>
+
+<p>Assentado no tampo do barril, o dorso apoiado ás frescas aduelas das
+pipas cheias, emquanto lá fóra escaldava o sol, desabafava o morgado,
+sentindo-se sem testemunhas:</p>
+
+<p>&mdash;Estou muito isolado, fr. Angelico, desconfio de todos. Hoje só conto
+com a sua amisade sincera e desinteressada.</p>
+
+<p>Agarrou logo o frade a occasião, que vinha preparando:</p>
+
+<p>&mdash;E desinteressada, senhor Martinho Vasques! Permitta-me v. ex.<sup>a</sup> que
+accentue essa palavra, ao ser <span class="pagenum"><a id="page163" name="page163"></a>(p. 163)</span> forçado a appellar mais uma
+vez para a sua inexgotavel caridade, para a sua nunca desmentida
+dedicação ao throno e ao altar!</p>
+
+<p>Simulava não reparar nos gestos de contrariedade do morgado:</p>
+
+<p>&mdash;N'estes perversos tempos retraem-se os donativos, e o nosso convento
+quasi não tem para a sua pobre meza. Peço, pois, uma esmolinha para os
+frades de São Francisco, certo de que não recorro em vão á boa e
+generosa alma de v. ex.<sup>a</sup></p>
+
+<p>Tartamudeou o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã, ámanhã...</p>
+
+<p>Continuava, porém, infatigavel o frade:</p>
+
+<p>&mdash;Tudo se prepara para nos vermos livres d'essa liberdade de má morte.
+Apparecerão guerrilhas no concelho da Praia, para restabelecerem os
+inauferiveis direitos do nosso legitimo rei, e auxiliarem o
+desembarque da esquadra que se espera a todo o momento. Ha muitos
+fieis alistados, mas faltam armas e polvora. Todos os defensores da
+ordem tem auxiliado a boa causa. Espera-se que v. ex.<sup>a</sup> não deixe de
+concorrer...</p>
+
+<p>&mdash;Ámanhã, ámanhã...</p>
+
+<p>&mdash;É de tamanha urgencia...</p>
+
+<p>&mdash;Bem sabe o costume. Só mexo em dinheiro antes <span class="pagenum"><a id="page164" name="page164"></a>(p. 164)</span> do jantar. E
+cada vez me sinto peior para contractos, porque o desgosto de minha
+filha poz-me muito fraca esta pobre cabeça.</p>
+
+<p>&mdash;Isto não é negocio, senhor D. Martinho, ou antes, grande negocio é
+que elle é. Quem dá aos pobres empresta a Deus, recebendo-se no ceu o
+principal e os juros. Emquanto á esmola para meus irmãos em Christo.
+Que do auxilio aos partidarios do senhor D. Miguel tira logo v. ex.<sup>a</sup>
+o lucro, em não ter a sua casa ameaçada de confiscos...</p>
+
+<p>Tocado na corda sensivel, sobresaltou-se o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;E elles irão de vez a terra?</p>
+
+<p>&mdash;Quem o póde duvidar? Em todo o Portugal governa sua magestade. Falta
+só este palmo de terra, por vergonha de todos nós! Dá-se a mão aos que
+vem pelo mar, e acaba-se com elles n'um instante.</p>
+
+<p>&mdash;Deus o permitta, que não posso ir descançado para Lisboa deixando-os
+em cima. São capazes de me darem cabo de tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Haja com que comprar espingardas, polvora e bala, e nem terão tempo
+de dizer Jesus! Com quanto póde concorrer v. ex.<sup>a</sup>?</p>
+
+<p>&mdash;Já <span class="pagenum"><a id="page165" name="page165"></a>(p. 165)</span> lhe disse que ámanhã. Venha jantar, e antes de nos
+sentarmos á meza...</p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigado, senhor Martinho Vasques. Vou já annunciar o valioso
+auxilio de v. ex.<sup>a</sup> aos amigos da religião.</p>
+
+<p>&mdash;Preciso-o cá, e até o tomaria para sempre como commensal, para
+alivio da sua pobre meza, se lh'o consentissem os seus labores.</p>
+
+<p>&mdash;Que honra, senhor morgado.</p>
+
+<p>&mdash;E sabe porque? Preciso da sua influencia junto de minha filha. Se
+podesse ganhar n'ella o ascendente que tem em minha mulher...</p>
+
+<p>&mdash;Quizesse-o ella&mdash;respondeu o frade n'um suspiro&mdash;e eu seria o mais
+feliz dos homens!</p>
+
+<p>Continuou n'um arroubo ascetico:</p>
+
+<p>&mdash;Trazel-a ao bom caminho! Afastal-a d'esses herejes que lhe hão-de
+perder a alma!</p>
+
+<p>&mdash;Era isso mesmo que queria que lhe dissesse, porque eu não sou capaz
+de a levar ao bem, e não usarei da força senão na ultima extremidade.
+Faça o possivel por demovel-a, fr. Angelico.</p>
+
+<p>E n'uma ameaça, para o lado do pomar, onde a sabia em colloquio com a
+prima:</p>
+
+<p>&mdash;Mas ai d'ella se não obedecer!</p>
+
+
+
+
+<h2>VIII <span class="pagenum"><a id="page167" name="page167"></a>(p. 167)</span></h2>
+
+
+<p>&mdash;Alviçaras, senhor morgado, alviçaras! Deus amerceiou-se de nós, e
+deu por terminada a expiação com que quiz provar os seus servos!</p>
+
+<p>Olhou-o um tanto desconfiado Martinho, pela falta de fundamento de
+semelhantes boatos.</p>
+
+<p>Mas o frade confirmou, enthusiasmado:</p>
+
+<p>&mdash;Victoria! Victoria! E graças sejam dadas ao ceu!</p>
+
+<p>&mdash;É então verdade o que para ahi dizem?</p>
+
+<p>&mdash;Estão reunidos nos Biscoitos mil e quinhentos homens, commandados
+por João Moniz Côrte-Real e Joaquim d'Almeida. Esperam mais gente de
+outras freguesias, <span class="pagenum"><a id="page168" name="page168"></a>(p. 168)</span> e vão acclamar el-rei na villa da Praia,
+e facilitar ali o desembarque á esquadra do senhor D. Miguel, que saíu
+contra a Madeira, e vem agora libertar a nossa terra!</p>
+
+<p>&mdash;E a tropa que marchou hontem contra elles?</p>
+
+<p>&mdash;Protegeu o Senhor os nossos, e deu lhes logo a victoria. Foram
+derrotados os dois destacamentos, e ficaram presos os infames soldados
+liberaes. Que vergonha para esses fanfarrões!</p>
+
+<p>&mdash;E que vergonha para mim, fr. Angelico&mdash;exclamou o morgado, n'um
+impeto guerreiro.&mdash;Devia estar ao lado d'elles, como me impõe o nome,
+a linhagem, o serviço do throno e do estado. Venha d'ahi, sellam-se
+dois cavallos, e em quatro horas estamos com elles.</p>
+
+<p>&mdash;Não posso, senhor Martinho Vasques; a minha missão é toda de paz!</p>
+
+<p>&mdash;Sei de muitos frades que se teem batido pela bôa causa.</p>
+
+<p>&mdash;Sempre houve meus irmãos em Christo que usassem a cruz e a espada.
+Eu porém sou mais destro no manejo das armas espirituaes...</p>
+
+<p>&mdash;Pois irei eu só. Não quero que notem a minha falta...</p>
+
+<p>&mdash;Lembro-lhe a sua idade, meu senhor, e as molestias que <span class="pagenum"><a id="page169" name="page169"></a>(p. 169)</span>
+tanto o tem impossibilitado. O melhor serviço que póde prestar ao
+senhor D. Miguel é dar mais alguma quantia...</p>
+
+<p>&mdash;Tem razão, estou já muito velho para essas danças&mdash;concordou o
+morgado, procurando eximir-se á nova contribuição.</p>
+
+<p>&mdash;Será tido na devida conta o seu soccorro, e Deus reconhecerá n'elle
+a sua bôa vontade.</p>
+
+<p>&mdash;Se venceram, como diz, para que precisam elles mais dinheiro?</p>
+
+<p>&mdash;Sempre são mil e quinhentas bôcas a comer...</p>
+
+<p>&mdash;Tomem á força o que precisarem, como fizémos no Roussillon.</p>
+
+<p>&mdash;Não diria o mesmo V. Ex.<sup>a</sup> se esses valentes realistas andassem cá
+pelas visinhanças.</p>
+
+<p>&mdash;Tem razão, tem. Mas que isto se decida por uma vez. Acabe-se com a
+choldra, para que eu possa embarcar descansado.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda persiste em ir para Lisboa?</p>
+
+<p>&mdash;E conto que vossa reverendissima prepare o espirito de minha filha,
+para que de todo esqueça esse disparatado namorico, e se disponha a
+desposar o primo D. Luiz de Sousa, que dará á minha casa a tão
+desejada successão.</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe <span class="pagenum"><a id="page170" name="page170"></a>(p. 170)</span> V. Ex.<sup>a</sup> a minha extranheza. Depois do que se tem
+passado ainda pensa em tão honrosa alliança?</p>
+
+<p>&mdash;E porque não?</p>
+
+<p>&mdash;Póde um dia o nobre fidalgo a quem a destina pedir contas d'essa
+peccaminosa aventura...</p>
+
+<p>&mdash;Noto a insistencia com que vossa reverendissima aggrava o alcance
+d'essa creancice, condemnavel, sim, mas pura creancice. Sabe por
+ventura alguma coisa?</p>
+
+<p>&mdash;Sei o bastante, senhor morgado. Elle é um perverso, um hereje, um
+liberal; em conclusão: um depravado capaz de tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas minha filha é uma fidalga, e as fidalgas estão muito acima
+d'esses miseraveis, para que a sua intimidade se lhes torne perigosa.</p>
+
+<p>&mdash;Na minha qualidade de director espiritual d'esta casa, é-me
+permitido manifestar as indicações que faz o Creador ás creaturas
+servindo-se dos seus intermediarios. Assim, senhor morgado, dir lhe-ei
+que uma voz occulta brada em meu peito: «Quero-a para mim! Quero-a
+para mim!» Significa isto que está indicada a clausura como penitencia
+da leviandade, e como resposta aos malvados constitucionaes que
+<span class="pagenum"><a id="page171" name="page171"></a>(p. 171)</span> se arrojaram a cubiçar os bens de V. Ex.<sup>a</sup> para as suas obras
+de Satanaz.</p>
+
+<p>&mdash;Se fôsse uma filha segunda já lá estava. Mas é uma morgada, não a
+hei de meter freira.</p>
+
+<p>&mdash;Não digo que professe, senhor Martinho Vasques. Aconselho apenas que
+a mande para o convento, como castigo pela sua imprudencia, e como
+resposta á seita jacobina. Se mais tarde o Senhor lhe inspirasse a
+vocação, ver-se-ia. A verdade é que fazendo-a passar pelo claustro,
+ficava quite V. Ex.<sup>a</sup> para com seu genro. Creio que a senhora D. Maria
+só foi attingida na sua bôa fama. De mais graves estragos, porém, tem
+ido refazer-se jovens fidalgas ao seio das virtuosas madres, e bastou
+isso para que seus nobres esposos se dessem por satisfeitos.</p>
+
+<p>Meditou um pouco o morgado, e respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Não posso deshabituar-me da ideia de que hei de vêr um neto varão,
+já que Deus não me deixou vingar um filho, que succedesse no meu
+appellido e nos meus bens. Quanto ao mais, não tenha receio. Minha
+filha leva um magnifico dote, e por minha morte ficará bem. O primo,
+que pouco possue, alem da herdade perto de Evora, e do seu grande
+nome, terá toda a conveniencia em não dar ouvidos ás intrigas.</p>
+
+<p>&mdash;E <span class="pagenum"><a id="page172" name="page172"></a>(p. 172)</span> a senhora D. Maria quererá casar com elle?</p>
+
+<p>&mdash;Cumprirá o que lhe ordenar, como deve.</p>
+
+<p>&mdash;Assim é em theoria, meu senhor, mas lembro que n'estes malditos
+tempos nem fica incolume a propria obediencia filial. Foram por certo
+os conselhos d'esse perverso que a fizeram má filha, como a hão-de
+fazer má esposa.</p>
+
+<p>&mdash;Entregue-a eu ao marido, e o mais é com elle. Bem sabe a fama de
+leviandade que minha mulher teve, e a seriedade com que tem procedido
+desde casada. Feche-a, como eu faço, tire-lhe as occasiões, e será
+esposa exemplar como as outras.</p>
+
+<p>&mdash;Como a senhora D. Perpetua&mdash;exclamou fr. Angelico, pondo a mão no
+peito&mdash;apesar das más linguas a quem irrita o exemplo da virtude! Que
+até em demasia pratíca a minha senhora os seus deveres religiosos.
+Appelle V. Ex.<sup>a</sup> para a sua autoridade de marido, e faça-a limitar a
+frequencia ao tribunal da penitencia. Ella é insaciavel de
+mortificações, e receio que acabe por lhe fazer mal. Imponha-lhe
+parcimonia, porque o meu ministerio não é o mais proprio para a
+arrancar a excessos de devoção.</p>
+
+<p>&mdash;Não se lhe preste vossa reverendissima ás rabujices de beata. Agora
+todo o seu tempo será para corrigir <span class="pagenum"><a id="page173" name="page173"></a>(p. 173)</span> minha filha. Sou o
+primeiro a sentir a sua desobediencia e a reconhecer a culpa que
+n'ella tenho, pelo mimo de que a rodeei. Por isso recorro ás suas
+luzes. Repita-lhe as confissões, meta-lhe medo com o inferno e
+fale-me, á meza, dos sacrilegios d'esses patifes.</p>
+
+<p>&mdash;Cumprirei a minha missão de pastor, chamando ao redil a desgarrada
+ovelha ... Mas o mais seguro de tudo é a caça aos lobos. É preciso
+offerecer a esta nossa terra o espectaculo do desaggravo da religião e
+de el-rei, encher as casamatas do castello e dar que fazer á forca!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, diz bem.</p>
+
+<p>&mdash;Pois lembre-se V. Ex.<sup>a</sup> dos nossos amigos que já começaram a batida.</p>
+
+<p>Receioso da incerteza dos tempos, precavia-se d'essa fórma fr.
+Angelico, enchendo o seu pé de meia antes que o morgado abalasse para
+Lisboa.</p>
+
+<p>Deu-lhe Martinho, voltando a cara, novo saquitel de dinheiro, fechando
+cuidadosamente o contador e, sem mais palavras, foram para a meza.</p>
+
+<p>Tirou o morgado o vinho, examinaram-o, provaram-o e aguardaram o
+comer.</p>
+
+<p>Para affligir Maria, repetiu o frade ao jantar as noticias da revolta
+miguelista, dirigindo-se a D. Perpetua, grande <span class="pagenum"><a id="page174" name="page174"></a>(p. 174)</span> partidaria de
+Carlota Joaquina, hostil aos liberaes pelo seu odio aos conventos.</p>
+
+<p>&mdash;Pois minha querida senhora D. Perpetua, vae V. Ex.<sup>a</sup> sentir
+desafogada a sua alma pela grande desafronta que na nossa terra vae
+haver. Teremos carne fresca, salutares espectaculos a este povo tão
+offendido, e estou certo que o senhor morgado não deixará de mandar
+pôr o seu carroção para dar ás festas o prestigio da sua presença, e á
+menina Mariquinhas, como é de lei, a lição do castigo dos criminosos.</p>
+
+<p>Muito nervosa, cravou Maria os olhos no prato, não respondeu ás
+solicitações directas do frade, e sempre conseguiu reprimir os impetos
+de o descompôr.</p>
+
+<p>Impacientava-a a demora d'esse jantar interminavel.</p>
+
+<p>Aterrada pelo perigo de vida em que se encontravam os constitucionaes,
+anciava vêr Josepha da Esperança que lhe devia contar a verdade.</p>
+
+<p>Procurava convencer-se de que eram tudo exageros do frade, encommenda
+do pae para a fazer abandonar João.</p>
+
+<p>Contava agora fr. Angelico os desacatos dos liberaes, o desabafo do
+povo de Lisboa em 1820, invadindo o <span class="pagenum"><a id="page175" name="page175"></a>(p. 175)</span> palacio da inquisição, e
+despedaçando a estatua da Fé, da frontaria; e as invenções fradescas
+de Christos servindo de alvo, de imagens arrastadas pelos cabellos em
+procissões maçonicas.</p>
+
+<p>Assustavam esses horrores a inconsciente credulidade de Maria, e
+quando o frade lhe falou do milagre de Setubal, dois anjos a cavallo
+n'uma nuvem, com a legenda de vivas a D. Miguel, temeu viver em
+peccado mortal pela affeição votada a um adepto de Satanaz.</p>
+
+<p>Mas chocava-a a inverosimilhança de que esse pobre rapazinho, tão
+meigo, tão ingenuo, tão respeitador, bebesse vinho por caveiras, e
+escarrasse nas cruzes, como o frade ia insinuando, cada vez mais
+excitado pelo verdelho.</p>
+
+<p>Mal se levantou a mãe, ergueu-se logo, e foi para o mirante esperar a
+prima, deixando o frade no relato dos castigos celestes, provocados
+pelo peccado da liberdade, os tremores de terra, as perdas de
+colheitas, a febre amarela que flagellára a Hespanha por causa das
+suas côrtes constitucionaes.</p>
+
+<p>Confirmou-lhe Josepha a apparição da guerrilha, e a derrota dos dois
+destacamentos, mas tranquillisou-a, que aquillo não tinha importancia
+nenhuma.</p>
+
+<p>Fôra <span class="pagenum"><a id="page176" name="page176"></a>(p. 176)</span> pedir-lhe João que a animasse.</p>
+
+<p>N'essa mesma tarde estaria a revolta acabada, porque saíra toda a
+tropa do castello para ir afugentar os miguelistas.</p>
+
+<p>&mdash;Por isso ouvi tantos toques de cornetas, que o vento estava de lá.</p>
+
+<p>&mdash;Passaram-me pela porta. Olha que ia bonito! Nunca vi tanta
+soldadesca junta, carretas com peças, officiaes a cavallo, a musica a
+tocar o hymno constitucional, a garotada dançando á frente, e povo
+como bichos atraz. Ao passar, o João abaixou-me a cabeça...</p>
+
+<p>&mdash;Pois elle tambem foi?</p>
+
+<p>E Maria abraçou-se á prima a chorar.</p>
+
+<p>&mdash;Elle, Josepha, uma creança, metido n'isso por minha causa. Sim,
+porque se não fosse dar lhe para gostar de mim, não tinha ido sentar
+praça, não se via agora envolvido n'essas guerras, em risco de lá
+ficar.</p>
+
+<p>&mdash;Então, filha, aquillo não vale nada. Se tu visses como elle ia
+contente, risonho! Parecia um passeio. Se prenderam as outras forças é
+porque eram só de vinte homens, e foi cada qual por seu caminho.</p>
+
+<p>&mdash;Mas hão de dar tiros, e se algum acerta n'elle? É <span class="pagenum"><a id="page177" name="page177"></a>(p. 177)</span> capaz
+d'isso, que eu sou muito desgraçada, e nunca vae por diante aquillo a
+que quero bem. Elle é as flores da minha estima, os canarios das
+minhas gaiolas. Credo! Credo!</p>
+
+<p>&mdash;Acredita que não tem perigo. O mestre Jacintho, que lá ia sentado
+n'uma carreta, porque percebe muito de peças, a rir-se como um
+tolinho, disse ao meu creado que ao primeiro tiro fugirão como bando
+de estorninhos.</p>
+
+<p>&mdash;A minha desgraça, Josepha!&mdash;continuava Maria, inconsolavel&mdash;É como
+se já o visse morto! Ao que eu ouvi a fr. Angelico, elles teem tudo
+como feito, e já falam de enforcar os liberaes. No que se vae vêr
+aquelle pobrinho!</p>
+
+<p>&mdash;Agora vejo que te esteve a meter mêdo, o sujo. Não sei o que me
+contem, que não diga um dia ao tio porque vem elle aqui tanta vez, a
+exercicios espirituaes. Mas se o maldito continua a fazer-te chorar,
+olé se o desmascaro. Hypocrita! É tudo mentira, filha, acredita-me.</p>
+
+<p>Maria encarou-a mais esperançada.</p>
+
+<p>&mdash;Olha, se o visses, em vez de chorar, rias-te como eu me ri. Elle ia
+de mochila, capote, bornal, correias por cima de correias, espingarda
+ao hombro, tão carregado de coisas que nem sei como se podia <span class="pagenum"><a id="page178" name="page178"></a>(p. 178)</span>
+mecher. Pois apezar d'isso andava tão depressa que desapparecia. Os
+caçadores vão desesperados por causa dos paisanos lhe terem prendido
+os camaradas. Olha que elles são soldados de fama! Onde chegam, vencem
+tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Estou mais descançada por ir o mestre Jacintho, que ha de tomar
+conta n'elle.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vê lá esse velhote, o que tem passado, as guerras em que entrou,
+e como ahi está são e escorreito. Teu pae mesmo por lá andou, o avô do
+João veiu morrer á sua cama, e quantos e quantos! Até me parece que
+elles inventam os perigos, para se darem ares, e que no fundo é tudo
+uma santa historia.</p>
+
+<p>&mdash;Deus te oiça, Josepha!</p>
+
+<p>&mdash;O que te posso dizer é que elles iam tão assustados que encaravam
+com todas as janelas. E que olhares, filha, parece que queimavam,
+tanto calor me subia á cara! Era tão bonito vêl-os marchar, os
+officiaes muito empertigados, a retorcerem o bigode, que se me foram
+os olhos n'elles.</p>
+
+<p>Desanuviou-a um pouco a vivacidade de Josepha:</p>
+
+<p>&mdash;Ainda vens a namorar um militar.</p>
+
+<p>&mdash;Cuidas que todas gostam de soldados, como tu?</p>
+
+<p>Maria <span class="pagenum"><a id="page179" name="page179"></a>(p. 179)</span> acabou por sorrir, e enxugou as ultimas lagrimas.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes quem é para ter dó?&mdash;continuou Josepha.&mdash;É o primo Jorge. Anda
+com os guerrilhas, o grande maluco. Foi-se-me mostrar, todo pimpão,
+com uma aguilhada de carreiro para imitar o senhor D. Miguel. No que
+elle se engana é que aqui os liberaes estão armados, e em Lisboa
+andavam com as mãos a abanar, por isso el-rei os perseguia a pampilho.
+O que vale é que, como anda a cavallo, e ha-de ser dos primeiros a
+fugir, antes que o apanhe alguma bala, põe-se a salvo.</p>
+
+<p>&mdash;Que malditas questões!&mdash;suspirou Maria, tornando a
+commover-se.&mdash;Succeda o que succeder, pelo menos uma de nós ha-de
+chorar, se não chorarmos ambas.</p>
+
+<p>&mdash;Lá d'elle vir corrido não me importa nada. Até gosto, se queres que
+te diga, porque o João deu-me volta ao miolo. Se isto é ser
+constitucional e fica feio, não sei nem quero saber, mas lá em querer
+acabar com os conventos teem elles carradas de razão. Para que é
+aquillo bom? Para fazer dôces? Pois em nossa casa fazem-se muito
+melhores, e não são lambidos por aquellas fufias, crédo, que até me
+repugnam os seus beijos repenicados.</p>
+
+<p>Por <span class="pagenum"><a id="page180" name="page180"></a>(p. 180)</span> fim, ao despedirem-se, combinou Josepha como havia de
+dar-lhe noticia certa do que se passasse. Mandaria pelo creado
+pedir-lhe qualquer coisa, e isso seria o signal de que João estava
+incólume.</p>
+
+<p>Ficando só, entregue ao seu desgosto, poz-se Maria a contemplar as
+grandes serras do interior da ilha, a querer descortinar o que atraz
+d'ellas se estava passando.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Para além das escuras cumeadas marchava João entre as cento e
+cincoenta praças da columna, pensando amargamente na abominavel
+escravidão mental em que jazia o povo, a ponto de reunir-se em armas
+hostilisando os libertadores.</p>
+
+<p>Tinham que levar pela violencia os proprios a quem emancipavam,
+erguendo-os á concepção de uma patria, á realisação de um pais
+independente, entregando-lhes a posse dos seus destinos.</p>
+
+<p>Eram forçados a armarem-se de espingardas contra esses cujo
+soffrimento interpretavam, emancipando o individuo, o trabalho, a
+terra; abrangendo na mesma redempção o camponês dobrado sobre a
+enxada, o plebeu asphyxiado pelo preconceito do nascimento, <span class="pagenum"><a id="page181" name="page181"></a>(p. 181)</span>
+a mulher escravisada na clausura.</p>
+
+<p>Reclamavam para si o logar a que lhes davam direito as faculdades
+intellectuaes, mas não esqueciam o cavador, o pescador, o artifice,
+formulando as reclamações que elles eram incapazes de conceber,
+analphabetos, desmoralisados por castigos corporaes, intimidados pelo
+inferno, esperando apenas a felicidade depois de mortos a troco da
+completa submissão.</p>
+
+<p>Por si e por esses que pretendiam elevar pelo ensino obrigatorio, pela
+suppressão do direito dos senhores ao producto do trabalho,
+expropriaram as classes privilegiadas: funccionarios monopolisadores
+das rendas publicas; desembargadores vendilhões da justiça; militares
+insaciaveis de promoção e de soldos; capitães-móres que dispensavam de
+soldado a troco da honra das mulheres, da virgindade das raparigas;
+fidalgos possuidores da terra, do exclusivo dos altos cargos, do
+privilegio da venda do vinho, dos moinhos, dos lagares de azeite, da
+agua para regas, das pescas nos rios e no mar, das coutadas que por si
+sós eram a ruina da agricultura; padres, frades e freiras que, como
+proprietarios, usufruiam todos os privilegios da nobreza e exerciam a
+maior industria, quasi a unica industria, a exploração <span class="pagenum"><a id="page182" name="page182"></a>(p. 182)</span> da
+credulidade publica, pesando terrivelmente, pelas communidades ricas e
+pelas ordens mendicantes sobre todo o trabalho nacional.</p>
+
+<p>E mais uma vez a inconsciencia dos opprimidos, guiada pelos semeadores
+do mal, desejava-lhes a morte, e reclamava-a cantando, em córos de
+vozes avinhadas:</p>
+
+<div class="poem">
+<p class="add2em">Rebenta mação<br>
+ Remoe liberal,<br>
+ Livre é Portugal<br>
+ Da constituição.</p>
+
+<p>Ó Virgem da Bôa Morte,<br>
+ Senhora dae-lhes consumo<br>
+ Para que os <i>pedreiros</i> levem<br>
+ A volta que leva o fumo.</p>
+
+<p>A fôrca em bolandas<br>
+ Andando apressada<br>
+ Da atroz <i>pedreirada</i><br>
+ Acabe as demandas.
+</p>
+</div>
+
+<p>Estavam convencidos os desgraçados populares, arrancados á familia
+para derramarem sangue pelos seus <span class="pagenum"><a id="page183" name="page183"></a>(p. 183)</span> parasitas, de que se
+batiam pela religião, de que, combatendo os soldados de D. Pedro, esse
+rei estrangeiro, liberal e pedreiro livre, que declarára guerra a
+Portugal, e lhe arrancára o Brasil, calcando aos pés emblemas
+nacionaes, obedeciam aos designios de Deus, que mandara á terra o
+archanjo S. Miguel, incarnado no infante, para restabelecer no seu
+antigo explendor a fé catholica.</p>
+
+<p>Tinham-o ante os olhos, resplandecente, prestigioso, n'esses retratos
+postos nos altares, como os de santos, ante os quaes se rezava e se
+diziam missas; n'essas gravuras que o mostravam pujante de juventude,
+na sympathia dos vinte annos, no vigor dos amplos gestos, na rijeza da
+musculatura, largo de hombros, amplo arcaboiço, expressão de firmeza
+no rosto comprido e trigueiro, lampejos de energia no olhar vivo, a
+figura dominadora a cavallo, chapéo de dois bicos vistoso de
+plumagens, esmaltado de crachás, espada em punho mandando avançar.</p>
+
+<p>E murmuravam na uncção de orações, as cantigas em que elle apparecia
+como representante do ceu:</p>
+
+<div class="poem">
+<p>Senhora da Conceição<br>
+ Madrinha de D. Miguel.</p>
+
+<p>D. <span class="pagenum"><a id="page184" name="page184"></a>(p. 184)</span> Miguel vae p'r'ó altar<br>
+ Com dois palmitos aos lados.</p>
+
+<p>É Miguel anjo de paz<br>
+ Que Deus tem por general.</p>
+</div>
+
+<p>Chegára á villa da Praia, onde celebrou a acclamação de D. Miguel,
+lavrando o respectivo auto na camara, a grande guerrilha que já reunia
+cinco mil homens, mas retrocedeu ao Pico do Selleiro a esperar a
+columna liberal, e ahi rompeu o combate, avançando os soldados em
+atiradores até duzentos metros da elevação onde tomara posições.</p>
+
+<p>Empallideceu João ao vêr esses homens em attitude aggressiva,
+apontando-lhe espingardas.</p>
+
+<p>Jurára morrer pela liberdade, mas estremecia á ideia de ter de matar
+em nome d'ella.</p>
+
+<p>Para que a nova ideia triumphasse era preciso reduzir a um montão de
+mortos e de feridos aquelles homens, seus patricios, seus irmãos ante
+a noção da fraternidade.</p>
+
+<p>Era a ignorancia o seu unico crime, e por isso iam ser dizimados pelas
+peças, pelas espingardas dos caçadores, pela sua propria arma, que
+d'essa fórma ia estrear.</p>
+
+<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page185" name="page185"></a>(p. 185)</span> se até para o bem d'elles era preciso!</p>
+
+<p>E á voz de fogo, na passividade da disciplina que o tornava uma
+simples peça d'essa machina de morte, poz a espingarda á cara e,
+fechando os olhos, disparou.</p>
+
+<p>Atordoou-o a descarga geral, a seca detonação da fuzilaria, o sonoro
+estampido dos canhões e, cambaleante do coice, os olhos a arderem da
+explosão da carga, a face magoada pela pancada da coronha, alagado em
+suor frio, mais morto que vivo, sentiu-se agarrado pelo veterano que,
+mal pudéra, fôra reunir-se a elle.</p>
+
+<p>&mdash;Então, menino, isto não vale nada! Anime-se, que até parece mal.
+Está amarelo como um defunto!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! És tu, meu amigo!</p>
+
+<p>Recobrando-se, explicou:</p>
+
+<p>&mdash;O tiro rebentou-me mesmo na cara, ia-me deitando ao chão.</p>
+
+<p>E segurou a espingarda pela bandoleira:</p>
+
+<p>&mdash;Escalda, nem sei por onde lhe hei-de pegar.</p>
+
+<p>&mdash;Não tiveram tempo para lhe ensinar o officio. Pois bem fiz eu em vir
+ser seu padrinho no baptismo de fogo, como seu avô foi para mim. Olhe,
+pegue-lhe por aqui, pelo delgado do fuste, agarre-a bem, <span class="pagenum"><a id="page186" name="page186"></a>(p. 186)</span> não
+a encoste á cara, e não lhe succede mal nenhum.</p>
+
+<p>Emquanto lhe explicava os manejos d'arma, continuava o combate;
+estremecia João ao vêr caír gente do seu lado, sem que parecesse
+attingida, e baixava instinctivamente a cabeça ao tiroteio do inimigo.</p>
+
+<p>&mdash;Deixe-os lá&mdash;continuou mestre Jacintho&mdash;estenderem-se no chão para
+fazerem fogo deitado. Não me faça cortesias, menino, que não serve de
+nada, e olhe bem direito para a frente, se quer vêr o enxame de moscas
+azues e vermelhas que andam a zumbir por entre a gente.</p>
+
+<p>Fez ajoelhar João, collocou-se ao lado, e poz-se tambem a fazer fogo.</p>
+
+<p>&mdash;Lá vae uma para aquelle patife de desertor do Cinco, que por lá anda
+envergonhando a farda Pum! Prompto! Ah! Já fostes escutar a
+cavallaria? Ande com elles, Joãosinho, aponte aos fardados, que são
+quem nos faz mal, e nos mandam cada <i>ameixa</i>! A paizanada, estar ali
+ou não estar, é tudo o mesmo. Mire os que andam a cavallo, que são os
+chefes, e ferre-me com elles em terra.</p>
+
+<p>Aqueceu João, enthusiasmou-se, agora carregava a arma febrilmente e,
+tão sereno como se não o visassem as <span class="pagenum"><a id="page187" name="page187"></a>(p. 187)</span> duzentas espingardas da
+guerrilha, apontava segundo as indicações do veterano, e disparava, de
+olhos bem abertos, observando se attingia o alvo.</p>
+
+<p>&mdash;Agora sim! Está um homem, um bravo como seu avô! Pode servir de
+exemplo aos mais velhos! Vejam este camarada, rapazes, vocês que
+andaram na guerra, mas que são galuchos á minha vista!</p>
+
+<p>E abraçou-o entre os applausos da sua esquadra.</p>
+
+<p>&mdash;Cá o deixo, já não precisa de mim. Filho de peixe sabe nadar! Temos
+homem para ir longe. E agora deixe-me chegar até ás peças, a vêr se me
+deixam apontar uma á minha vontade, que já é tempo de varrer aquella
+malta.</p>
+
+<p>Partiu, fazendo-se muito baixinho, dobrado ao meio, descendo aos regos
+do terreno para offerecer menos alvo, occultando-se com pedregulhos,
+arvores, restos de paredes derrubadas, como soldado afeito á guerra.</p>
+
+<p>E João continuou muito senhor de si, lembrando-se de que a illusão da
+fraternidade perdera o governo constitucional, e depois a revolução do
+Porto.</p>
+
+<p>Só pela violencia se dissolveriam as castas; só pelas armas se
+imporiam as medidas liberaes; nunca o progresso se realisaria sem
+sangue!</p>
+
+<p>Após <span class="pagenum"><a id="page188" name="page188"></a>(p. 188)</span> hora e meia de fogo, flanqueou uma força liberal a
+posição miguelista, e a guerrilha debandou ao vêr despedaçar pela
+metralha o <i>caçador</i>, do Porto Judeu.</p>
+
+<p>&mdash;Victoria! Victoria!</p>
+
+<p>E o veterano voltou a abraçal-o, e pegou-lhe ao collo, como se fosse a
+criança que amimára, envaidecendo-se do seu recruta, recordando
+enternecido a bravura do seu antigo official.</p>
+
+<p>Respirava João amplamente, na alegria dos vivas, no orgulho do
+triumpho, e queria apparecer por encanto na quinta, mostrar a Maria
+que ficára illeso, beijal-a, chorar e rir abraçado a ella,
+affirmar-lhe que estava salva a causa, garantida a ventura de ambos.</p>
+
+<p>&mdash;Pois havemos de lá ir, que o mereceu, galucho de uma cana! Que
+sustos não terão pregado á pobre menina!</p>
+
+<p>E a essa evocação do receio dos que ficaram, lembrou-se da afflição
+das pobres tias, que tinham ido logo ajoelhar diante do oratorio, a
+pedirem por elle ás imagens da sua devoção: Santa Rita, dos
+impossiveis; S. José, que tinha ao lado uma palma benta em dia de
+Ramos, maior do que elle; o Christo de prata n'uma cruz de ébano; um
+coração com <span class="pagenum"><a id="page189" name="page189"></a>(p. 189)</span> tampa de vidro, e dentro um menino entre flôres;
+um outro menino Jesus barrigudo, córado, vestido de boneca, com a bola
+do mundo na mão; e ainda outro n'um berço côr de rosa, com uma
+almofadinha bordada: menino Jesus nusinho para os beijos devotos, em
+que as beatas bemdiziam a sua santa virilidade.</p>
+
+<p>Na manhã seguinte recebeu Maria o recado de Josepha. Mandava pedir
+flôres. E ao ir ao jardim dal-as ao creado, soube da bôcca d'elle que
+os liberaes tinham vencido facilmente; que João não soffrera nem uma
+arranhadura, e que as flôres eram para as visinhas deitarem por cima
+dos soldados, que n'essa tarde entrariam triumphantes.</p>
+
+<p>N'uma explosão de jubilo colheu quanto havia e ao deitar para o cesto
+o pouco que lhe dava outubro: «rosas do Japão» vermelhas e brancas,
+«esporas de cavalleiro» azul escuras, cheirosas baunilhas, a vermelha
+«flôr do laço», a «corôa de rei» azul-claro, misturadas com ramos de
+alecrim, era como se das janellas tambem as atirasse para cima de
+João, inebriada pela sua victoria.</p>
+
+<p>Foi <span class="pagenum"><a id="page190" name="page190"></a>(p. 190)</span> o jantar a antithese da vespera; desabafando o frade em
+improperios contra os liberaes que vira passar ao som de repiques, com
+ramos de louro nas espingardas, sob uma chuva de petalas, e Maria
+finava-se de rir pela parte que tivera na festa.</p>
+
+<p>Veiu á tarde Josepha da Esperança, e contou-lhe que o vira radiante.
+Dissera-lhe «até logo», e era capaz de apparecer.</p>
+
+<p>Foram ambas, alvoroçadas, esperal-o do lado da canada, aonde vinham
+dar os atalhos.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Mal debandou a força no quartel, correu João a casa, a socegar as
+velhas.</p>
+
+<p>Ao vel-o a creada, a <i>tia</i> Maria da Assumpção, persignou se de uma
+maneira especial:</p>
+
+<p class="poem">
+ Eu me benzo<br>
+ Co'o sangue de Christo<br>
+ Co'o o leite da Virgem<br>
+ Co'o a flôr da luz<br>
+ Para sempre amen Jesus.
+</p>
+
+<p>Foram mostrar-lhe a tia Dorotheia e a tia Pulcheria o oratorio a que
+ardiam velas em promessa. Proclamavam <span class="pagenum"><a id="page191" name="page191"></a>(p. 191)</span> o milagre, e esperavam
+que elle se rendesse, caíndo de joelhos, agradecendo o dom do ceu. Mas
+só a ellas se mostrou grato, beijando-as, tornando-se de novo a
+creancinha em que não podiam adivinhar o rude soldado da vespera.</p>
+
+<p>Debatiam-se agora as tres velhas n'um grave caso de consciencia.</p>
+
+<p>Para que tinham forçado ao milagre a senhora Santa Rita dos
+Impossiveis? Fôra um pedido sacrilego! Vinha João mais hereje do que
+fôra, sem sequer agradecer aos santinhos que se amerceiaram d'elle.
+Salvando-o d'essa forma, talvez se tivessem perdido com elle!</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>O mal disfarçado riso com que Maria offendera á meza o seu despeito,
+encolerizára o morgado e o frade.</p>
+
+<p>A indifferença da vespera, a certeza com que ella n'esse dia se
+mostrava ao facto da victoria, aggravou a Martinho as suspeitas de que
+se correspondia com João.</p>
+
+<p>E depois da indispensavel visita ao alambique, foram emboscar-se a
+vigial-a.</p>
+
+<p>Avistaram-os <span class="pagenum"><a id="page192" name="page192"></a>(p. 192)</span> ellas, e reconheceram-se alvo da sua vigilancia,
+mas por coisa alguma se resignava Maria a deixar de vêr o namorado.
+Far-lhe-ia signal para que não parasse, e defender-se-ia do pae
+mostrando-se extranha a essa mera coincidencia.</p>
+
+<p>Avistaram por fim ao longe o veterano e João, cosendo-se com as
+paredes dos cerrados.</p>
+
+<p>Ao reconhecel-os, quiz o morgado lançar-se n'um impeto, mas
+conteve-lhe o frade o mau genio.</p>
+
+<p>Esperava o momento compromettedor, em que a filha não podesse negar a
+leviandade e, confundida, ao vêr-se descoberta, pedisse perdão da
+afronta, e se entregasse a um sincero arrependimento.</p>
+
+<p>Cedeu não sem custo, e quando tornou a olhar por entre as faias, notou
+com surpreza que já tinham desapparecido.</p>
+
+<p>Percebendo os signaes para se afastarem, tinham os dois saltado á
+canada.</p>
+
+<p>Rente com o muro, correra João a atirar-lhe para cima, enrolado a uma
+pedra, o bilhete que levava para a hypothese de não poder falar-lhe, e
+indo ter com mestre Jacintho saíram ao Caminho de Cima, por entre
+quintas.</p>
+
+<p>Desconfiados, precipitaram-se fr. Angelico e o morgado, <span class="pagenum"><a id="page193" name="page193"></a>(p. 193)</span> ao
+tempo que Maria devorava as quatro palavras de João.</p>
+
+<p>&mdash;Dê-me essa carta, senhora!&mdash;bradou o frade, que chegára primeiro.</p>
+
+<p>Sem responder, amarrotou o papel, e com elle fechado na mão,
+voltou-lhe as costas n'um olhar de desprezo, e afastou-se de braço com
+a prima.</p>
+
+<p>Deteve-a o pae, exigindo-lhe o bilhete, que Josepha já occultára no
+seio, e Maria respondeu que nada tinha.</p>
+
+<p>&mdash;Vi-lh'a eu, senhor, a carta d'esse hereje, d'esse pedreiro livre,
+que para deshonra de V. Ex.<sup>a</sup> perdeu a alma da senhora D. Maria!</p>
+
+<p>E fr. Angelico apoiou a denuncia agarrando-lhe a mão em que a
+amarrotára.</p>
+
+<p>Soltou-se ella violentamente, e o frade, cambaleando com a sacudidela
+de Maria e um indignado empurrão de Josepha, caíu contra um renque de
+vasos, esfarrapando-se e partindo-os.</p>
+
+<p>Então o pae cresceu para ella:</p>
+
+<p>&mdash;A menina estava esperando um homem, a quem eu repelli da minha
+porta. Além de me desobedecer, offendeu-me agora, resistindo a uma
+ordem minha. Repare bem, sou eu quem lh'o exijo! Dê-me a carta.</p>
+
+<p>&mdash;Não <span class="pagenum"><a id="page194" name="page194"></a>(p. 194)</span> tenho carta nenhuma, senhor. Deixe-me passar.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que não. Iria escondel-a.</p>
+
+<p>E detendo-a:</p>
+
+<p>&mdash;Dê-me esse papel ao bem, ou arrepende-se!</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, já lhe disse que não tenho. E se tivese não devia dal-o, nem
+o pae m'o devia pedir.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Não tem? É o que vamos vêr.</p>
+
+<p>E segurando-a, o morgado apalpou-lhe o corpete, rebuscou-lhe a
+algibeira da saia, apertando-lhe brutalmente os pulsos emquanto ella
+se debatia, e como tudo fosse inutil, atirou-a rudemente contra o
+muro.</p>
+
+<p>&mdash;A menina ha-de ficar sabendo que não se zomba d'um pae, e não se
+emporcalha um nome fidalgo namorando soldados.</p>
+
+<p>N'um choro convulso Maria bradava, caída na banqueta:</p>
+
+<p>&mdash;O pae bateu-me! Mas foi a ultima vez. Está enganado commigo. Não
+quero ter a sorte da mãe!</p>
+
+<p>E para Josepha da Esperança, que os dois levavam adiante de si,
+tratando-a de encobridora, de enredeadeira:</p>
+
+<p>&mdash;Não me desampares, Josepha! Conta o que vistes, e não te esqueças de
+que me bateram, e de que <span class="pagenum"><a id="page195" name="page195"></a>(p. 195)</span> esse frade me magoou! É preciso que
+elle o saiba!</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Tornara-se João tudo para ella!</p>
+
+
+
+
+<h2>IX <span class="pagenum"><a id="page197" name="page197"></a>(p. 197)</span></h2>
+
+
+<p>Bloqueado por temporaes de inverno, dias de chuva torrencial, grandes
+frios, installára-se fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria na
+quinta dos Folhadaes, mandando como senhor, dirigindo a casa, cujo
+governo D. Perpetua abandonára, para se refugiar no quarto de Maria,
+horrorisada por adivinhal-o catechizando creadas pelo escuro dos
+grandes corredores.</p>
+
+<p>Enclausurada voluntariamente com a filha, prohibida de sahir do
+quarto, comiam ali ambas depois de prévia revista do morgado ou do
+frade ao que recebiam, não fossem cartas escondidas.</p>
+
+<p>Só os dois homens pois iam á meza, e ali passavam quasi <span class="pagenum"><a id="page198" name="page198"></a>(p. 198)</span> de
+uma á outra refeição, não se decidindo a arrostar a frieza da adega,
+nem o chavascal do campo.</p>
+
+<p>Aparada em alguidares e em celhas pingava agua do tecto, alastrado de
+bolôr; pelas frinchas das janellas empenadas soprava um vento cortante
+que os fazia tiritar sob os capotes.</p>
+
+<p>Desforravam-se a bebericar aguardente, quando a criada foi annunciar o
+senhor juiz corregedor.</p>
+
+<p>&mdash;Justiça em minha casa!&mdash;exclamou o morgado, pondo-se de pé.</p>
+
+<p>Chegou á janela e olhou para fóra. Não cessára de chover.</p>
+
+<p>&mdash;Com um tempo d'estes! Deve ser coisa grave.</p>
+
+<p>Voltou-se para o frade:</p>
+
+<p>&mdash;Descobriria a alçada que eu dei dinheiro para os guerrilhas?</p>
+
+<p>Tranquillisou-o logo fr. Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;Quanto a isso descance v. ex.<sup>a</sup> Não invoquei o seu nome, por causa
+das secretas vinganças que os pedreiros livres costumam tirar de quem
+os guerreia. Lembre-se dos lentes de Condeixa.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sim, fez bem. Má gente. Mas se não é por isso, que querem de
+mim?</p>
+
+<p>&mdash;O mesmo que pretendem dos outros. Intimidar os <span class="pagenum"><a id="page199" name="page199"></a>(p. 199)</span> partidarios
+do throno e do altar. E como as suas opiniões são bem conhecidas...</p>
+
+<p>&mdash;Mas eu nunca as manifestei, não saio de casa, não me saliento...</p>
+
+<p>Voltou-se para a criada:</p>
+
+<p>&mdash;Elle vem só?</p>
+
+<p>&mdash;Saberá v. ex.<sup>a</sup> que sim senhor.</p>
+
+<p>&mdash;Se eu fugisse, fr. Angelico?</p>
+
+<p>&mdash;Não me parece que haja razão para isso.</p>
+
+<p>&mdash;É exactamente por não saber o motivo que receio.</p>
+
+<p>&mdash;Agora! Agora!&mdash;accudiu o frade, já desanuviado.&mdash;Imaginam que está
+por ahi alguem escondido, e como andam á procura do João Moniz e do
+Joaquim d'Almeida...</p>
+
+<p>&mdash;Pois lembra bem, deve ser isso&mdash;concordou o morgado.&mdash;Que hei de
+fazer n'esse caso?</p>
+
+<p>&mdash;Recebel-o ás bôas, deixal-o dar busca á sua vontade, e ficaremos
+livres d'elle.</p>
+
+<p>&mdash;Pois hei de franquear-lhe minha casa?</p>
+
+<p>&mdash;Que remedio, se pode entrar á força. Estão de cima. É aguentar e
+cara alegre, emquanto não chegam melhores dias.</p>
+
+<p>&mdash;Vá então recebel-o em meu nome, e desculpe-me. Diga que estou
+doente.</p>
+
+<p>&mdash;Eu, <span class="pagenum"><a id="page200" name="page200"></a>(p. 200)</span> senhor! Não sabe v. ex.<sup>a</sup> o odio que nos votam esses
+adeptos de Satanaz! O pobre de mim até foi na lista que elles mandaram
+ao nosso provincial, intimando-o a prohibir os franciscanos de
+defenderem a causa do throno e do altar.</p>
+
+<p>&mdash;Não posso ver gente de justiça, e demais a mais justiça d'esta!</p>
+
+<p>&mdash;Tenha paciencia, que nos havemos de vingar de tudo. Vá attendel-o v.
+ex.<sup>a</sup>, ponha-se ás bôas, trate-o o melhor que puder, para não dar
+logar a que exhorbite, e tenho para mim que o ha de confundir a sua
+respeitabilidade. Eu ficarei rogando a Deus...</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que não. Ou me acompanha, ou não o recebo, e faça o que
+melhor lhe parecer.</p>
+
+<p>Olhou irritado para os campos innundados de agua:</p>
+
+<p>&mdash;Tivesse cá a gente de trabalho, e outro gallo lhe cantára. Mas
+assim, não ha com que lhe dar uma lição, que elle com certeza não vem
+só, nem com as mãos a abanar.</p>
+
+<p>E como visse retrahir-se o frade:</p>
+
+<p>&mdash;Ande d'ahi, já lhe disse.</p>
+
+<p>Apavorado, pediu fr. Angelico, de mãos postas:</p>
+
+<p>&mdash;Só se v. ex.<sup>a</sup> me promette ser conciliador. Disse <span class="pagenum"><a id="page201" name="page201"></a>(p. 201)</span> o Divino
+Mestre, que se o inimigo nos offender na face esquerda devemos
+offerecer-lhe a direita.</p>
+
+<p>&mdash;Isso aconselharia aos frades, que aos fidalgos não!&mdash;respondeu
+irritado Martinho.</p>
+
+<p>&mdash;Pois n'esse estado de espirito, meu senhor, Deus me defenda.</p>
+
+<p>&mdash;O melhor é falar vossa reverendissima. Eu acompanho-o, mas
+permitto-lhe todas as habilidades conciliadoras, porque tambem prefiro
+que não me incommodem.</p>
+
+<p>&mdash;É Deus que o illumina, senhor morgado. Assim verá que fica tudo em
+bem.</p>
+
+<p>&mdash;Mande-o entrar para a sala dos retratos&mdash;disse o morgado á
+criada&mdash;peça desculpa da demora, e que já lá vamos.</p>
+
+<p>Estremeceu o frade de novo:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Senhor do ceu! Basta o tempo que o fizemos esperar para o
+esbirro já estar como uma bicha. Que carantonha que não vae fazer!</p>
+
+<p>Bebeu mais aguardente o fidalgo, tirou o capote, mirou-se, compoz os
+bofes, puchou os punhos de rendas, e lançou a fr. Angelico um olhar de
+desdem:</p>
+
+<p>&mdash;Você já não conheceu o homem de côrte. Pois fique <span class="pagenum"><a id="page202" name="page202"></a>(p. 202)</span> sabendo
+que me vi muita vez nos regios paços de Queluz, e sei bem a etiqueta
+das salas. Verá como procedo, e como, sem o humilhar, por que elles
+estão de cima, lhe farei sentir a differença que vae de um fidalgo a
+um traficante de sentenças. Basta o logar onde o recebo para o
+envergonhar do seu baixo nascimento. E certas coisas que lhe direi ao
+correr do pello...</p>
+
+<p>&mdash;Não me perca v. ex.<sup>a</sup>, por amor de Deus! Deixe-me ficar no meu
+cantinho!</p>
+
+<p>&mdash;Não, que você é manhoso como os que o são e, se eu me desmanchar,
+meterá a sua colherada. Beba uma pinga para cobrar animo, e vamos
+dar-lhe uma lição mestra já que cá veiu meter o nariz.</p>
+
+<p>Tomou novo alento ao beber, o frade, mas ainda aconselhou:</p>
+
+<p>&mdash;Lembre-se v. ex.<sup>a</sup> que os demonios teem o poder na mão, e por algum
+tempo. Além da victoria do Pico do Selleiro, ainda foi por elles o
+temporal que destroçou a esquadra de sua magestade, depois de tomar a
+Madeira, quando vinha fazer o mesmo a esta desgraçada terra. Primeiro
+que se arme em Lisboa outra frota para vir até cá ... Não se esqueça
+v. ex.<sup>a</sup> d'isto. Agora são elles quem manda.</p>
+
+<p>Ao <span class="pagenum"><a id="page203" name="page203"></a>(p. 203)</span> entrar na sala, empertigou-se mais o morgado em respeito
+ao scenario aonde ultimamente só raras vezes se mostrava, télas
+escurecidas pelo tempo destacando nas paredes caiadas, o cadeirado de
+coiro e pregaria amarela, o grande buffete carregado de finos buzios
+rosados, de amplas conchas de madreperola, os reposteiros vermelhos
+onde pompeava o seu brazão, com longes de capoeira.</p>
+
+<p>Saudou o juiz n'uma pirueta cortez:</p>
+
+<p>&mdash;Desculpe v. s.<sup>a</sup> a involuntaria demora. A justiça é como se entrasse
+em minha casa el-rei, que vossa senhoria já representou, e em nome de
+quem continuará um dia a exercer o mando, como é timbre de homens
+d'ordem.</p>
+
+<p>Mordeu os labios o magistrado ao tratamento e ao remoque, mas,
+contando com peior acolhimento, saudou por sua vez o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;Está v. s.<sup>a</sup> em sua casa, e sou eu que tenho de escusar-me de o vir
+incommodar.</p>
+
+<p>Córou Martinho Vasques á falta de excellencia, e o frade, que o
+percebeu, muito animado pelo tom ordeiro do juiz, interveiu:</p>
+
+<p>&mdash;Permitta-me v. ex.<sup>a</sup>, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro,
+que aponte a sua senhoria os achaques...</p>
+
+<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page204" name="page204"></a>(p. 204)</span> o corregedor, sem fazer caso, interrompeu-o, dirigindo um
+novo golpe á prosapia de fidalgo:</p>
+
+<p>&mdash;Não julgue, senhor Soeiro, que venho aqui por causa das tristes
+perturbações fomentadas pelos mal intencionados que exploram as
+disenções de irmãos. Calcula decerto o grave motivo que me traz por
+semelhante tempo...</p>
+
+<p>Ferido no seu orgulho, julgou conveniente o morgado dar-lhe desde logo
+a lição projectada, e forçando um sorriso que o tornava mais feio,
+respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Quem não deve, não teme, e se eu tivesse que receiar das justiças,
+ou não estaria á mercê d'ellas, ou a minha porta achar-se-ia guardada,
+com o direito de que sempre usaram em Portugal fidalgos de solar.</p>
+
+<p>Apontou para fóra o juiz, n'um gesto amavel:</p>
+
+<p>&mdash;Foi informado o tribunal de que ha aqui um quinteiro brigão, o que,
+para evitar algum desacato d'esse desordeiro, me forçou a vir
+convenientemente acompanhado, não por causa de v. s.<sup>a</sup>, mas por via
+d'elle.</p>
+
+<p>Trocaram um olhar fr. Angelico e o morgado. A escolta lembrava logo
+uma prisão. E a referencia á cilada fazia-lhe receiar que João ou o
+veterano o <span class="pagenum"><a id="page205" name="page205"></a>(p. 205)</span> tivessem denunciado como conspirador.</p>
+
+<p>Triumpharam os propositos conciliadores que ditava o mêdo, e o frade
+adiantou-se, muito curvado:</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe v. ex.<sup>a</sup>, senhor corregedor, não lhe ter offerecido já alguma
+coisa quente, uma chavena de café, uma magnifica aguardente da lavra
+do fidalgo, para o preservar de uma peitogueira...</p>
+
+<p>Sorriu muito lhano o magistrado:</p>
+
+<p>&mdash;Lembrou bem vossa reverendissima, e acceito de bôa vontade, com o
+que provo os meus amigaveis intuitos.</p>
+
+<p>Saíu por um momento, muito lépido, o frade a dar ordens; e o morgado,
+fazendo um exforço, recalcou as offensas, e submeteu-se ao receio da
+escolta:</p>
+
+<p>&mdash;Vejo que v. ex.<sup>a</sup> não me conhece, por attribuir á minha atitude
+intuitos diversos da justificadissima surpreza...</p>
+
+<p>&mdash;Oh! De modo algum.</p>
+
+<p>&mdash;E como v. ex.<sup>a</sup> não é da ilha, permitta-me que me apresente,
+fazendo-o tomar relações com os meus antepassados, que não lhe podia
+ter dado melhor companhia, pois não a ha mais escolhida n'esta
+<span class="pagenum"><a id="page206" name="page206"></a>(p. 206)</span> terra, nem lá fóra é frequente a que se lhe possa comparar.</p>
+
+<p>&mdash;Já os estive admirando assim que entrei, e conheço-os por tradicção,
+como conheço a v. ex.<sup>a</sup> mais do que imagina.</p>
+
+<p>Envaideceu Martinho a homenagem do tratamento e, attribuindo-o ao
+effeito d'essa berrante linhagem, insistiu no proposito de desenrolar
+os pergaminhos.</p>
+
+<p>&mdash;Perde-se a minha geração na noite dos tempos, entroncando-se por
+muitas vezes no ramo da dynastia, mas a mais proxima representante é
+esta minha trisavó, que morreu em Odivellas em cheiro de santidade.</p>
+
+<p>Apontou um retrato de moldura oval, que tão bem ia ao rostinho envolto
+na toalha:</p>
+
+<p>&mdash;É soror Thereza de Jesus, que em formosura desbancou a madre Paula,
+senhora de Melres, e conhecida por isso no convento pela <i>Melrinha</i>,
+ao que allude o segundo quartel do meu brazão, tres melrinhos de oiro
+sobre purpura. Era já fidalga, filha do senhor de Villar de Corvos,
+representado no primeiro quartel por aquelle corvo de prata em campo
+azul, mas el-rei o senhor D. João V&mdash;e curvou-se como se estivesse na
+presença do monarcha&mdash;houve por <span class="pagenum"><a id="page207" name="page207"></a>(p. 207)</span> bem, ao conceder-lhe o
+alvará de legitimação do filho, dar a meu bisavô o titulo de moço
+fidalgo da casa real, com serviço no paço.</p>
+
+<p>Orgulhava-se apontando outro retrato, um homemzarrão em corpo inteiro,
+grande cabelleira em caracoes, tricornio debaixo do braço:</p>
+
+<p>&mdash;É meu visavô, D. Francisco, com quem, dizem, me pareço muito.
+Batendo-se como um heroe, conquistou para o nosso nome um immorredoiro
+prestigio, merecendo pelos seus feitos d'armas, e pela particular
+predilecção que sempre nutriu el-rei por minha visavó, as doações com
+que se creou o nosso morgado.</p>
+
+<p>Indicou-lhe outro retrato, em meio corpo:</p>
+
+<p>&mdash;Este é meu pae, D. Fernando, intimo d'el-rei o senhor D. Pedro III,
+que o teve em alta estima. A esse prestigio de que sempre gosámos no
+paço, deve minha irmã, D. Mafalda, o honroso logar de dama de honor da
+rainha senhora D. Carlota Joaquina.</p>
+
+<p>Era a dama que enchia outra grande téla, em trajo de côrte, vestida a
+azul e vermelho, toucado de plumas, opulenta de rotundidades que a
+tornavam celebre nos lubricos bailados da rainha, sua rival em fama.</p>
+
+<p>Por <span class="pagenum"><a id="page208" name="page208"></a>(p. 208)</span> sua vez, indicou o juiz um retrato:</p>
+
+<p>&mdash;Este, que como os meninos postos de castigo está voltado para a
+parede, brilha para mim atravez da tela. Conheço-o, é D. Bernardo, o
+amigo dedicado do grande marquez de Pombal, que veiu a esta terra
+cumprir a ordem de expulsão dos jesuitas. Porque não honra v. ex.<sup>a</sup> as
+nobres tradições d'este seu avô? Porque não reconhece que as nossas
+ideias teem raizes bem fundadas, e que já foram defendidas por bons
+fidalgos, como v. ex.<sup>a</sup> classifica os da sua geração?</p>
+
+<p>Respondeu gravemente Martinho Vasques:</p>
+
+<p>&mdash;Este infeliz foi transviado, corrompeu-o o mal do tempo, e a sua
+alma deve estar no purgatorio, aguardando o juizo final, feliz ainda
+assim por levar em seu favôr os serviços que filhos e netos teem
+prestado ao throno e ao altar. Os verdadeiros principios da minha
+familia são os religiosos; nasceu e creou-se meu visavô no convento;
+auxiliou meu pae a restauração religiosa da senhora rainha D. Maria,
+que santa gloria haja, e foi minha irmã uma das fundadoras do culto da
+Senhora da Rocha.</p>
+
+<p>Voltára o frade, á frente da creada com a bandeja de dôces, a chicara
+do Japão com o café, e a garrafinha <span class="pagenum"><a id="page209" name="page209"></a>(p. 209)</span> dourada com aguardente,
+a tempo de auxiliar a defeza dos bons principios:</p>
+
+<p>&mdash;O timbre e lustre da linhagem, excellentissimo senhor, é D.
+Francisco, que em serviço d'el-rei e gloria do reino, andou no
+cruzeiro d'Angola defendendo para a nação os rebanhos de escravos de
+que os malditos estrangeiros queriam lançar mão. Perseguido um dia por
+um negreiro hollandez refugiou-se na costa, e com tanta felicidade que
+poude dar auxilio a um barco portuguez que carregava <i>ébano</i> para o
+Brasil. Não queriam obedecer os malditos pretos, e elle, n'uma
+patriotica decisão, desembarcou com uma manga de arcabuzeiros. Não
+intimidaram aos ferozes selvagens os elmos, as couraças, nem as
+grandes armas apoiadas nas forquilhas. E quando D. Francisco, ao
+cravar no sólo a nossa gloriosa bandeira, viu que não se deitavam por
+terra, curvando-se ante o lábaro sagrado que levára á Africa a
+religião de Christo, mandou-lhes dar uma surriada de arcabuzes,
+emquanto o navio os varejava de metralha. E de toda essa multidão
+bravia que nutrira a louca ideia de, com settas de cana, emplumadas de
+pennas de gallinha, defender mulheres e filhos, não ficou um para
+amostra. Dos nossos apenas foi ferido esse bravo dos bravos, <span class="pagenum"><a id="page210" name="page210"></a>(p. 210)</span>
+com uma azagaiada na nadega, que toda a vida o fez sentar de banda.</p>
+
+<p>Muito ancho, accrescentou o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;É o feito que commemora aquella cabeça de negro, em fundo de prata,
+do meu brazão; e a esse alto tropheu de familia corresponde aquelle
+outro emblema, as mãos de ouro em vermelho, como fartando-se d'esse
+sangue derramado em prol da nação.</p>
+
+<p>Muito risonho commentou o juiz, que tomára o café e provára um calice
+da justamente celebrada aguardente:</p>
+
+<p>&mdash;Pois conheço-o tão bem, D. Martinho, que me admiro não vêr-lhe sobre
+as armas o distinctivo dos bastardos reaes.</p>
+
+<p>&mdash;V. ex.<sup>a</sup> confunde-me!</p>
+
+<p>&mdash;É um direito que só lhe contestam os primos do Alemtejo, dizendo que
+n'esse tempo entrava em Odivellas o sequito do rei, até ao ultimo
+lacaio, que todas as freiras reclamavam os mesmos prazeres que a madre
+Paula, que as santas monjas não recusavam a esmola das graças
+corporaes, e que vibrava o mosteiro em alegres risos de muitas
+creanças.</p>
+
+<p>&mdash;Sei que meus primos falam por inveja&mdash;retorquiu o <span class="pagenum"><a id="page211" name="page211"></a>(p. 211)</span>
+morgado&mdash;mas não deixam de reconhecer a superioridade do meu ramo,
+tanto que requestam para seu filho a mão de minha filha.</p>
+
+<p>Aproveitou o juiz o ensejo:</p>
+
+<p>&mdash;Desculpe v. ex.<sup>a</sup> o meu involuntario esquecimento. Como está sua
+excellentissima filha?</p>
+
+<p>&mdash;Bem, muito obrigado a v. ex.<sup>a</sup></p>
+
+<p>&mdash;Já que me deu o prazer de conhecer os seus antepassados, desejava
+ter a honra de ser apresentado á senhora D. Maria, cujos dotes de
+espirito tanto me elogiam.</p>
+
+<p>Trocaram novo olhar o morgado e o frade, e acudiu fr. Angelico ao amo:</p>
+
+<p>&mdash;Sua excellencia disse «bem», porque felizmente não é coisa de
+gravidade, mas a pobre menina não se póde levantar da cama, constipada
+por esta frialdade...</p>
+
+<p>Estranhou o juiz n'uma inflexão grave:</p>
+
+<p>&mdash;Parece que o contrariou o meu desejo.</p>
+
+<p>&mdash;De modo algum.</p>
+
+<p>&mdash;Não m'o recuse pois. O seu ligeiro incommodo não a impedirá de certo
+de vir á sala.</p>
+
+<p>Interveiu de novo o frade:</p>
+
+<p>&mdash;Trata-se de um caso de certa gravidade, que só <span class="pagenum"><a id="page212" name="page212"></a>(p. 212)</span> para não
+assustar o senhor morgado, fingimos considerar sem importancia.</p>
+
+<p>&mdash;Acho conveniente&mdash;retorquiu o juiz&mdash;que se não meta onde não é
+chamado. Dirigia-me ao senhor Soeiro, e creio que elle, que tanto se
+orgulha da sua nobreza, não ignora que os fidalgos dizem timbrar em
+não mentir.</p>
+
+<p>&mdash;E não mentem, senhor!&mdash;protestou o morgado.</p>
+
+<p>&mdash;Mantenha então a primeira resposta, de que sua filha se encontrava
+de perfeita saude.</p>
+
+<p>Encolhera-se o frade, e Martinho Vasques dirigiu-se ao juiz, mudando
+de tom:</p>
+
+<p>&mdash;Antes de mais nada: Que significa semelhante insistencia?</p>
+
+<p>&mdash;Sabe-o tão bem como eu.</p>
+
+<p>&mdash;Sinto apenas uma certa estranheza...</p>
+
+<p>&mdash;Tratando de sua filha, calcula decerto ao que venho. Vá, um bom
+movimento! Ponha de parte os seus escrupulos e torne felizes aquelles
+que uma honesta inclinação destinaram um ao outro.</p>
+
+<p>Passou no olhar do morgado um lampejo de rancor; mordeu furioso os
+labios, mas conteve-se ante o receio de ser dado por cumplice dos
+revoltosos, e de vêr confiscados os bens.</p>
+
+<p>Ainda <span class="pagenum"><a id="page213" name="page213"></a>(p. 213)</span> assim entendeu dar por finda a visita:</p>
+
+<p>&mdash;Se v. ex.<sup>a</sup> não tem outro assumpto a tratar...</p>
+
+<p>Redarguiu energicamente o magistrado:</p>
+
+<p>&mdash;Vejo que comprehendeu o sentido das minhas palavras. Tenho pois todo
+o direito a uma resposta.</p>
+
+<p>Fazendo esforços para se não exceder, respondeu o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;Minha filha casará com o primo D. Luiz de Sousa, a quem está
+prometida ha muito.</p>
+
+<p>&mdash;É essa a sua ultima palavra?</p>
+
+<p>&mdash;Naturalmente.</p>
+
+<p>&mdash;Desejava conhecer a resposta da senhora D. Maria.</p>
+
+<p>&mdash;Lá vem outra vez com minha filha!</p>
+
+<p>Accorreu de novo fr. Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;As filhas só podem ter a vontade dos paes.</p>
+
+<p>Tornou a pedir o juiz:</p>
+
+<p>&mdash;Satisfaça v. ex.<sup>a</sup> o meu pedido, e retirar-me-hei com a resposta da
+senhora D. Maria, seja qual fôr.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, a sua insistencia!</p>
+
+<p>&mdash;Não se exalte. Quero estabelecer a harmonia e não desejo usar de
+outros processos.</p>
+
+<p>&mdash;Ameaça-me?</p>
+
+<p>&mdash;Não. <span class="pagenum"><a id="page214" name="page214"></a>(p. 214)</span> Lembro-lhe apenas quem sou, e o respeito que me é
+devido.</p>
+
+<p>&mdash;Pois lembre-se tambem em casa de quem está, diante d'estas nobres
+figuras, e reconheça que, em vez da atitude pacifica em que se
+disfarça, levou a sua audacia, apoiada na escolta, a ponto de me
+tratar como um igual quando eu sou um fidalgo, e o senhor, apezar do
+seu cargo não passa de um plebeu.</p>
+
+<p>&mdash;Assim é. Na minha familia não ha femeas que tivessem servido de cano
+de esgôto para a transfusão do sangue real. Não me orgulho do que
+envergonha gente de bem. Quanto a esses mostrengos de narizes
+coloridos pela aguardente, só podem interessar a Lavater, que teria
+muito que estudar n'aquellas physionomias. Quanto a mim nada me
+importam, e de grande paciencia dei provas ouvindo-lhe as historietas
+do brazão.</p>
+
+<p>E como o frade se interpozesse, querendo abrandar o morgado, que
+bufava, apopletico:</p>
+
+<p>&mdash;Entremos no assumpto que aqui me traz. Recebeu a justiça uma queixa
+de que jaz ha muito tempo em carcere privado e recebe maus tratos, a
+senhora D. Maria. A insistencia com que recusou apresentar-m'a
+confirma a queixa. Ora nem v. ex.<sup>a</sup> nem <span class="pagenum"><a id="page215" name="page215"></a>(p. 215)</span> pessoa alguma póde
+encarcerar por seu arbitrio quem quer que seja.</p>
+
+<p>Martinho Vasques desabafou:</p>
+
+<p>&mdash;Sente-se bem, no irritante do seu falar, que por terem vencido uma
+escaramuça, e haver o temporal desviado a esquadra, tem o rei na
+barriga, e se lançam em desenfreadas vinganças. Agora trazem a
+anarchia ao seio da familia! Já nem respeitam a santidade do lar!</p>
+
+<p>&mdash;O despotismo familiar não o respeitamos, nem o consentimos. É da
+lei, que temos obrigação de cumprir.</p>
+
+<p>&mdash;Essas malditas leis constitucionaes...</p>
+
+<p>&mdash;Já as ordenações do reino o prohibiam, mas eram letra morta as
+medidas que defendiam os fracos, pois gosavam da impunidade os
+poderosos como v. ex.<sup>a</sup>. Hoje a lei é egual para todos, quer premeie
+quer castigue. Eu proprio, por esta mesma diligencia posso ser julgado
+se me exceder. São regalias que custaram muito sangue, e hão de custar
+ainda mais. Mas o poder despotico de maltratar, de torturar, acabou
+para sempre!</p>
+
+<p>&mdash;Se quer que o respeite&mdash;bradou o morgado&mdash;não alluda mais ás
+intrigas tecidas por um atrevido que fui forçado a expulsar d'esta
+casa.</p>
+
+<p>&mdash;Saiba, <span class="pagenum"><a id="page216" name="page216"></a>(p. 216)</span> senhor, que a justiça não se rebaixa a intrigas. Ha
+uma queixa em fórma, com testemunhas, contra o seu procedimento.</p>
+
+<p>&mdash;Uma queixa d'esses reles soldados...</p>
+
+<p>&mdash;Foi apresentada por uma fidalga, sua parenta, a sr.<sup>a</sup> D. Victoria,
+digna portanto de todo o credito.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Espertezas da menina Josepha da Esperança! Essa namoradeira é
+outra que tal! Se eu lhe tivesse arrancado as orelhas não era ella que
+ia enredar-me...</p>
+
+<p>&mdash;Vem dos mesmos illustres avós que v. ex.<sup>a</sup>, essa dama que maltrata.
+Mas não me pertence apreciar se o seu procedimento é ou não de
+fidalgo.</p>
+
+<p>Fazia esforços fr. Angelico por conter Martinho.</p>
+
+<p>O juiz dirigiu-se a elle:</p>
+
+<p>&mdash;Queira vossa reverendissima aconselhar o seu amigo. É conveniente
+evitar aparatos incommodos. Não desejo chamar a minha gente para
+testemunhar o encarceramento da senhora D. Maria, o que redundaria
+n'um processo crime, com pena de cadeia. Basta-me que lhe possa falar
+livremente, e esquecerei tudo o que desagradavel se tem passado.</p>
+
+<p>Arrastando-o para um canto, tentava o frade convencer o <span class="pagenum"><a id="page217" name="page217"></a>(p. 217)</span>
+morgado, falando-lhe em voz baixa, acaloradamente mas, não conseguindo
+decidil-o a apresentar Maria, ainda pretendeu abrandar o juiz:</p>
+
+<p>&mdash;Se é necessario o testemunho do ministro do Senhor, aqui estou eu
+prompto a jurar, pelo santo nome de Deus, que s. ex.<sup>a</sup> é incapaz de
+opprimir sua filha, sendo, pelo contrario, o modelo dos Paes.</p>
+
+<p>Já enfadado, retorquiu-lhe o corregedor:</p>
+
+<p>&mdash;Vá vossa reverendissima buscar a senhora D. Maria, ou obrigam-me a
+praticar uma violencia, em que tambem será envolvido.</p>
+
+<p>Desculpou-se o frade para com o fidalgo, indicando-lhe o magistrado
+n'um gesto:</p>
+
+<p>&mdash;Deus é contra o escandalo.</p>
+
+<p>Dirigiu-se á porta, para ir chamal-a.</p>
+
+<p>&mdash;Seja assim&mdash;disse Martinho Vasques&mdash;vá buscal-a, e este senhor
+reconhecerá a sem razão das accusações dirigidas contra mim.</p>
+
+<p>Depois de a vir intimidando pelo corredor, apresentou Maria fr.
+Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;Aqui a tem, senhor.</p>
+
+<p>Occupada com a pacificação da ilha, a captura dos guerrilheiros, a
+investigação das cumplicidades, não pudera a justiça intervir mais
+cedo.</p>
+
+<p>Estava <span class="pagenum"><a id="page218" name="page218"></a>(p. 218)</span> Maria ao corrente dos seus esforços. Apezar da
+continua vigilancia, recebia cartas que o moço de cavallariça lhe
+metia da cocheira por uma greta do sobrado, onde introduzia as
+respostas, depois de bater devagarinho para baixo.</p>
+
+<p>Durante mezes interminaveis ambicionára esse momento, mas agora
+sentia-se fraquejar ao ter de queixar-se do pae, ao quebrar, ante o
+novo amor, a linha de obediencia, o respeito de filha, o periodo de
+submissão.</p>
+
+<p>Compadeceu-se do velho, cujo rosto transtornado vira de soslaio, e
+sentia-se sem forças para realisar o que planeára no seu desespero.</p>
+
+<p>Mas horrorisava-a o que a mãe soffrera, captiva d'esse homem que, por
+se dizer seu progenitor, por um direito que era alheio ao seu
+consentimento, a maltratára de palavras, a magoára brutalmente, e a
+fechára á chave no quarto, prohibindo-lhe os passeios, os
+entretenimentos, a correspondencia, o convivio.</p>
+
+<p>No absoluto isolamento dos primeiros dias horrorisara-se ante a
+annulação da individualidade, a suppressão da consciencia, que era a
+educação preconisada pelo pae. Ao visitar d'antes a prima Josepha
+envergonhava-se de não saber tocar cravo, de <span class="pagenum"><a id="page219" name="page219"></a>(p. 219)</span> não conhecer os
+livros em que ella lhe falava, e que só a furto podia devorar, porque,
+no entender do morgado, a leitura pervertia a mulher. Não sabia bordar
+como ella, nem fazer os pequeninos enfeites que por toda a casa lhe
+denotavam a educação e o gosto.</p>
+
+<p>Depois, quando o frade lhe foi aconselhar uma submissão ainda mais
+completa, não só nos actos externos, mas nos seus sentimentos mais
+intimos, revoltou-se energicamente. E saíu corrido fr. Angelico,
+queixando se de que o demonio, por intermedio do jacobino, se apossára
+inteiramente d'ella.</p>
+
+<p>Por fim a mãe, exasperada pelo abandono, vendo o frade senhor da casa,
+pastoreando o rebanho das creadas, passou a odial-o, como odiava o
+esposo, comprehendendo o baixo interesse que o ligára a ella, emquanto
+do sacco das despezas lhe podia ir dando suas peças, e tornára-se
+cumplice da filha, protegendo-lhe a correspondencia, avisando-a do que
+elles projectavam, animando-a a insurgir-se, a libertar-se d'elles.</p>
+
+<p>E n'esses dias enfadonhos, n'essas infindaveis noites de inverno,
+contava lhe insulto a insulto, offensa a offensa, grosseria a
+grosseria, o seu martyrio de trinta annos.</p>
+
+<p>Prohibira-lhe <span class="pagenum"><a id="page220" name="page220"></a>(p. 220)</span> o marido as idas á egreja, sua unica distração,
+mandando dizer missa na capella da quinta, para lhe tirar esse
+pretexto de saír; impedira-a de fazer visitas; negára-a ás pessoas que
+a procuravam; afastára-lhe os derradeiros parentes, que ainda
+arrostavam com o seu mau modo para não a desampararem; offendera-a,
+humilhára-a em intimidades suspeitas com serviçaes, com rendeiras, e
+fizera d'ella aquelle trapo, envelhecera-a aos cincoenta annos,
+moera-a, tornára-a negra por dentro, matára-a lentamente: que sem
+punhal ou veneno tambem se mata!</p>
+
+<p>Seguia o pae já com ella o systema; nunca vira com bons olhos Josepha,
+e por fim expulsára-a; queria entregal-a a um homem a quem
+recommendaria os seus processos, e tornal-a-ia uma escrava por sua
+vez.</p>
+
+<p>Oh! Antes morrer!</p>
+
+<p>Esperava dia a dia a promettida intervenção da autoridade, e tinha-a
+antecipadamente como o momento em que passaria a pertencer a João.</p>
+
+<p>Como elle era differente! Como seria ditosa ao seu lado, no
+enthusiasmo d'esse amor juvenil, na meiguice do olhar, na delicadeza
+do seu trato, na suavidade das suas falas. Com que direito pois lhe
+prohibiam <span class="pagenum"><a id="page221" name="page221"></a>(p. 221)</span> a sua parte de felicidade n'este mundo, se tivera
+a suprema ventura de a poder realisar?</p>
+
+<p>Espreitava por dentro dos ralos a chegada da justiça, adivinhando-a em
+todos os vultos que divisava ao longe, nos carroções que denunciava o
+estrepito distante, e só n'essa manhã tivera a fortuna de a vêr
+chegar.</p>
+
+<p>Tremendo, abraçada á mãe, a quem n'esses dias de dôr quizera mais que
+em toda uma vida de afastamento, de seccura, aguardou que a fossem
+buscar.</p>
+
+<p>Parecia-lhe de mau agouro a demora.</p>
+
+<p>Quando o frade a chamou, seguiu-a D. Perpetua n'um repente tão
+aggressivo que fr. Angelico receiou um desacato.</p>
+
+<p>Que triste que era o seu noivado! pensava Maria, ao encaminhar-se para
+a sala, crente de que a esse rompimento seguiria o consorcio.</p>
+
+<p>Revoltou-se o juiz ao vêr-lhe os olhos pisados de chorar, as faces
+pallidas, cavadas, a agitação em que tremia.</p>
+
+<p>Pediu-lhe que se sentasse, e perguntou-lhe se era verdade ter sido
+maltratada, e encontrar-se prohibida de toda a communicação.</p>
+
+<p>Acobardou-se <span class="pagenum"><a id="page222" name="page222"></a>(p. 222)</span> ella ante o tom grave da pergunta, e levando o
+lenço aos olhos, rompeu a chorar, sem responder.</p>
+
+<p>&mdash;Não preciso melhor confirmação&mdash;disse o juiz erguendo-se, e
+dirigindo-se a Martinho Vasques&mdash;É o caso da lei, abuso do poder
+paternal. Sou pois forçado a cumprir o que se me requer, o deposito
+judicial em casa do mais proximo parente.</p>
+
+<p>&mdash;Protesto contra semelhante violencia, e juro que lavarei esta
+afronta com sangue!&mdash;bradou o morgado.</p>
+
+<p>E increpou violentamente a filha:</p>
+
+<p>&mdash;Basta de comedia, menina. Diga claramente se lhe fiz algum mal.</p>
+
+<p>&mdash;Nenhum, senhor!&mdash;respondeu ella, abandonada de toda a energia,
+aniquilada pela commoção que, sobre a longa espectativa, lhe esgotava
+a resistencia.</p>
+
+<p>Mas D. Perpetua, que ficára entre portas a vigiar, desconfiada, entrou
+bradando como louca:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor juiz, minha filha tem mêdo da fera! Este perverso bateu-lhe,
+como me bate em mim, e a pobre ainda tem os braços cheios de nodoas
+negras. É verdade que a tem fechada como a um cão, e manda ameaçal-a
+todos os dias por esse frade, que <span class="pagenum"><a id="page223" name="page223"></a>(p. 223)</span> já se atreveu a levantar a
+mão para ella.</p>
+
+<p>Por unica resposta, disse o juiz:</p>
+
+<p>&mdash;Tenha a bondade, minha senhora, de mandar a sua filha o necessario
+para que me acompanhe immediatamente.</p>
+
+<p>Saíu promptamente a velha, dirigindo a fr. Angelico um olhar de
+triumpho.</p>
+
+<p>Olhar injectado de sangue, labios tremulos, ergueu-se o morgado em
+passo mal seguro, e dirigiu-se a Maria, que instinctivamente se
+refugiou por traz do magistrado.</p>
+
+<p>Este interpoz-se, na energia da sua figurinha secca, nervosa, fronte
+avincada, bôcca accentuada com firmeza, olhar vivo de argumentador, o
+ar decidido de homem novo, habituado aos grandes lances:</p>
+
+<p>&mdash;Que faz, senhor?</p>
+
+<p>&mdash;Quero despedir-me de minha filha!&mdash;tartamudeou Martinho&mdash;Não me
+assiste esse direito?</p>
+
+<p>Replicou o corregedor com repugnancia:</p>
+
+<p>&mdash;Esta senhora não o evitaria, se fosse um movimento sincero. Está
+n'essa repulsão o seu maior castigo.</p>
+
+<p>Atirou-se o fidalgo, esmagado, para uma cadeira, os olhos queimados de
+lagrimas de desespero, fechando os punhos em crispações nervosas:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! <span class="pagenum"><a id="page224" name="page224"></a>(p. 224)</span> Que se eu a abraçasse, ia esta noite ceiar com Christo!</p>
+
+<p>Entrou D. Perpetua, já de manto, o rebuço deitado para traz, ajudou-a
+a vestir a saia de merino, atou-lhe o capuz á cintura e deitou-lh'o
+pela cabeça, emquanto ella se despedia, abraçando-a e beijando-a:</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe-me o passo que vou dar, e peça a Deus que me faça feliz.</p>
+
+<p>&mdash;Não o serás!&mdash;exclamou o pae&mdash;porque eu te amaldiçôo! Permitta o
+Senhor, filha desnaturada, que caias tão baixo que ainda venhas aqui
+de rastos, coberta de bichos, pedir uma côdea á porta d'esta casa que
+deshonraste. Deus te amaldiçôe, como eu te amaldiçôo!</p>
+
+<p>&mdash;Vamos, minha senhora, tenha coragem!&mdash;disse o juiz, dando o braço a
+Maria, e encaminhando-se para a porta, sem se despedir, indignado por
+semelhantes palavras.</p>
+
+<p>&mdash;Eu vou comtigo, não fico nem mais um dia n'esta casa&mdash;murmurou-lhe
+ao ouvido D. Perpetua.</p>
+
+<p>E cobrindo-se poz-se ao lado da filha.</p>
+
+<p>De um salto, o fidalgo tomou a porta, e deteve-a, emquanto o juiz e
+Maria se afastavam.</p>
+
+<p>&mdash;Onde <span class="pagenum"><a id="page225" name="page225"></a>(p. 225)</span> vaes?</p>
+
+<p>&mdash;Sigo minha filha.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que não. A ti governo eu! Has de obedecer-me cegamente, has
+de ficar onde eu quizer, entendes bem, onde eu quizer!</p>
+
+<p>Fechou a porta violentamente, e empurrou-a para dentro.</p>
+
+<p>De joelhos, mãos postas, ella supplicava:</p>
+
+<p>&mdash;Por amôr de Deus! Deixa-me acompanhal-a!</p>
+
+<p>&mdash;Não! Has de pagar por ella.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Já na sége, para onde se deixára arrastar atordoada, reparou Maria na
+falta da mãe, e pelos gritos comprehendeu o que se passava.</p>
+
+<p>Pediu ao juiz que a fosse buscar, mas elle desculpou-se com a lei, que
+não o autorizava a tanto.</p>
+
+<p>N'uma grande amargura, Maria exclamou sentidamente:</p>
+
+<p>&mdash;Então, senhor juiz, para que serve a liberdade, se ainda se pode
+opprimir uma mulher!</p>
+
+
+
+
+<h2>X <span class="pagenum"><a id="page227" name="page227"></a>(p. 227)</span></h2>
+
+
+<p>Agora viam-se, falavam-se, estavam ali juntos um do outro, no vão da
+janela, um degrau acima do sobrado, como n'um nicho, sentados nos
+poiaes de pedra, os joelhos tocando-se, as mãos dadas, tão perto os
+labios, que só os impedia de passarem a tarde n'um longo beijo o olhar
+vigilante da tia Victorina, a mãe de Josepha da Esperança, enterrada
+na poltrona, roca á cinta, fiando massarocas para a Francisca da Bica,
+grande tecedeira, que as lançava no tear em guardanapos, lençoes e
+colchas, a trinta reis a vara.</p>
+
+<p>Para impedir o escandalo de se falarem da janela abaixo,
+permittia-lhes, aos domingos, a dona da <span class="pagenum"><a id="page228" name="page228"></a>(p. 228)</span> casa, esse curto
+desabafo em que pesava com a sua presidencia, impassivel, entre a
+commoda negra, de pés recurvos, e a porta de vidraça da escura alcova
+onde dormiam as raparigas.</p>
+
+<p>Nos outros dias, ao passar para o castello e para casa, via-a João ao
+postigo do grande ralo, de riscas em diagonal pintadas a verde, com
+remates de pinhas nos rectangulos divididos pelos columnellos, manchas
+rubras de cravos nos recantos, no alto gaiolas de cana onde saltitavam
+canarios.</p>
+
+<p>Dominava-os a tristeza da casa, em que pairava a viuvez de D.
+Victoria, entristecendo a propria filha a quem faltava a distração das
+tardes na quinta, para onde, mal acabava de jantar, partia sentada na
+burrinha, que o moço tangia, escudeirando-a.</p>
+
+<p>Maria, olheirenta, emmagrecida, definhada pela vida tão differente que
+ali levava, fechada n'uma casa pequena, acostumada como estava a
+passar ao ar livre o dia inteiro, queixou-se, dominada por uma
+inconsolavel melancholia:</p>
+
+<p>&mdash;João, desde que saí de casa só tenho chorado. Foi praga que me
+rogaram. Ha de ser a maldição do pae!</p>
+
+<p>Em <span class="pagenum"><a id="page229" name="page229"></a>(p. 229)</span> vão pretendia elle reagir contra o desanimo que tambem o
+ganhára:</p>
+
+<p>&mdash;Não penses n'isso. Temos que passar por este tributo. A nossa
+felicidade fará esquecer estas horas amargas, e até teu pae se cançará
+da sua teima, e ha de abençoar-te e querer-te ditosa.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! O pae! Não o conheces bem. Mas ainda elle me queira sempre mal,
+paciencia. O que mais me custa é a mãe.</p>
+
+<p>&mdash;Está costumada, não soffre tanto como tu.</p>
+
+<p>&mdash;Deu-lhe volta ao juizo a minha saída, ficou a emprehender n'aquillo,
+e como lhe fechassem as portas atirou-se da janella abaixo para me vir
+vêr.</p>
+
+<p>&mdash;Coitada.</p>
+
+<p>&mdash;Tem estado á morte, e eu receio que morra sem a tornar a vêr.</p>
+
+<p>Sobresaltou-se João:</p>
+
+<p>&mdash;Acautela-te! Póde ser um estratagema para te obrigarem a voltar a
+casa.</p>
+
+<p>&mdash;Não. Infelizmente é verdade.</p>
+
+<p>&mdash;E como o soubeste?</p>
+
+<p>&mdash;Está por ahi tudo cheio.</p>
+
+<p>&mdash;Sim. Eu tambem o ouvi, mas tive-o por maroteira de fr. Angelico.</p>
+
+<p>Encarou-o Maria aterrada:</p>
+
+<p>&mdash;Foi <span class="pagenum"><a id="page230" name="page230"></a>(p. 230)</span> a tua funesta hostilidade á religião que te inspirou
+esse falso testemunho, pois o frade nunca mais voltou á quinta desde
+que eu vim para aqui.</p>
+
+<p>Elle ficou mais receioso ainda:</p>
+
+<p>&mdash;Pois tu defendes esse homem, que tanto mal nos fez, que denunciou a
+minha visita, para que me espancassem, e se atreveu a pôr-te as mãos?</p>
+
+<p>&mdash;Não o defendo, não; mas temo por mim e por ti essa tua inclinação
+contra tudo o que respeita á egreja. Ainda te póde dar de rosto.</p>
+
+<p>&mdash;Agora, Maria, é que tenho razão para estar triste porque já me não
+pareces a mesma!</p>
+
+<p>&mdash;Não sei porquê&mdash;retorquiu offendida.</p>
+
+<p>Atalhou João, para não a desgostar mais:</p>
+
+<p>&mdash;Mas o que ha de tua mãe?</p>
+
+<p>&mdash;Assim que soube que o Malaquias, o mulato, moço do sineiro da Sé,
+fôra encanelar-lhe a perna, mandei-o chamar, e só depois de lhe acenar
+com uma pataca é que aquelle recancha se decidiu a vir coxeando até
+cá, pois tinha ordem de não dizer nada.</p>
+
+<p>&mdash;Era então verdade?</p>
+
+<p>&mdash;Sim. Esteve mais de um mez sem se virar, abandonada de todos, e até
+foi despedida uma creada porque a tratava caridosamente.</p>
+
+<p>&mdash;Pobre <span class="pagenum"><a id="page231" name="page231"></a>(p. 231)</span> senhora!</p>
+
+<p>&mdash;Essa veiu cá, e contou-me horrores. Vive no meu quarto, fechada como
+eu, arrastando-se pegada a um pausinho. E dão-lhe convulsões que fica
+de bôca á banda, tomada de um lado. Para ali vive como um môcho, a
+penar, a penar, que antes o Senhor se lembrasse d'ella, Deus me
+perdõe!</p>
+
+<p>Elle tomou uma decisão:</p>
+
+<p>&mdash;Pois meu amôr, em vez de a lamentarmos, o que não lhe serve de nada,
+tratemos de a arrancar d'essa maldita casa. Requer-se uma acção de
+separação, prova-se com o testemunho da creada e do mulato o carcere
+privado, vae lá a justiça, e...</p>
+
+<p>&mdash;Exactamente como a mim. Mas de que me serviu, se sou tão infeliz
+como d'antes ... talvez ainda mais? De que servem essas leis, de que
+vocês fazem tantos escarceus, se me tiraram de uma prisão para me
+meterem n'outra, não nos deixando casar, como desejamos, senão quando
+eu tiver vinte e cinco annos; se permittem que uma pobre mulher esteja
+encerrada, pela vontade do marido, embora um juiz ouvisse que ella não
+queria viver em casa? Não, a felicidade não depende da alçada das
+leis, nem da vontade dos homens; a felicidade está na mão de Deus, e
+os que, como nós, o teem offendido, não <span class="pagenum"><a id="page232" name="page232"></a>(p. 232)</span> a podem esperar nem
+n'este mundo, nem no outro!</p>
+
+<p>Encarou-a João, como a lêr-lhe no olhar, e depois respondeu commovido:</p>
+
+<p>&mdash;Dizes bem, dizes, não depende das leis a felicidade, nem de nós
+proprios, mas dos que nos educaram, dos que nos formaram o espirito, e
+que governam sempre dentro em nós. O que os principios porque nos
+batemos hão-de impedir d'aqui em diante, é a sementeira do mal, o
+obscurecimento dos cerebros, a aniquilação das consciencias.</p>
+
+<p>E sobresaltado por uma desconfiança, que como um relampago o
+esclareceu:</p>
+
+<p>&mdash;Por mais que negues, anda frade n'isto! Não é assim?</p>
+
+<p>Accentuou-lhe a suspeita a confusão d'ella:</p>
+
+<p>&mdash;Dize-me tudo. Não pódes ter segredos para mim! Sou como teu marido,
+desde que por minha causa abandonaste teu pae. Falaste com algum
+religioso?</p>
+
+<p>Negou ella, frouxamente:</p>
+
+<p>&mdash;Não, não falei.</p>
+
+<p>&mdash;Perdôa, mas não te acredito. Veiu aqui alguma d'essas aves de mau
+agouro!</p>
+
+<p>&mdash;Como me custa ouvir-te falar assim!</p>
+
+<p>&mdash;Mas <span class="pagenum"><a id="page233" name="page233"></a>(p. 233)</span> veiu ou não veiu algum santo ministro do Senhor?</p>
+
+<p>&mdash;O padre mestre, confessor de minha tia, sim. Vem cá muitas vezes
+esse santo homem: que eu distingo bem fr. Angelico d'elle, mas nem me
+falou, nem eu ouvi o que diziam.</p>
+
+<p>&mdash;Então é intriga tecida por elle! Tem cá entrada. Mas que admiração,
+se em cada rua ha um convento, se a cidade é d'elles mais que dos
+moradores!</p>
+
+<p>E aproximando-se muito, tomando-lhe as mãos, n'uma voz grave, mas
+baixa como um murmurio, para que não o ouvisse D. Victoria:</p>
+
+<p>&mdash;Ah, minha querida Maria, que te querem roubar-me! Por amor de Deus
+desvia-te d'elles, não lhes dês ouvidos, considera antecipadamente
+como envenenadas as suas palavras! Querem separar-te de mim, pretendem
+desforrar-se do meu triumpho. E se ainda me queres bem, como o
+provaste, recusa-te a ouvil-os, quer falem em nome de tua mãe, que
+desgraçaram, porque foram elles que a inutilisaram, pergunta-lh'o um
+dia, se puderes; quer te falem em nome de Deus, que trazem sempre nos
+labios, tendo o demonio no coração!</p>
+
+<p>Maria respondeu com lagrimas na voz:</p>
+
+<p>&mdash;Pois <span class="pagenum"><a id="page234" name="page234"></a>(p. 234)</span> pódes duvidar de mim, ao passo que dei! Eu, uma
+morgada, esquecer-me do respeito que devo ao meu nome, por amor de ti!
+Eu, uma fidalga, expôr-me a commentarios vergonhosos...</p>
+
+<p>E não poude mais. Afogada n'um choro convulso, que disfarçava tapando
+a bocca com o lenço, virando para as gelosias os olhos requeimados.</p>
+
+<p>Então confessou-lhe tudo.</p>
+
+<p>A convite do padre mestre, resolvera ir D. Victoria a uma festa em S.
+Francisco. Quizera leval-a comsigo, e aos favores que lhe devia não se
+pudera recusar. Como ia de manto, ninguem a conheceria. Não tencionava
+confessar-lh'o, para o não desgostar.</p>
+
+<p>Houve missa cantada, distrahiu-se com a cantoria e com as ceremonias,
+que não via ha tantos annos, mas ao sermão cuidou morrer de vergonha.</p>
+
+<p>Bradára um frade contra os desacatos, falára de Christo crivado de
+tiros, calices profanados em orgias, altares escolhidos para sentinas;
+indicára horriveis castigos para os constitucionaes e para as mulheres
+que os seguissem, alvejando intencionalmente as desgraçadas que
+abandonavam os paes para seguirem soldados, arrastadas por baixos
+apetites, tratando-as a <span class="pagenum"><a id="page235" name="page235"></a>(p. 235)</span> todas por furias e prostitutas,
+indignas de se aproximarem da mêsa da communhão.</p>
+
+<p>Chorára a dentro do biôco, parecendo-lhe que, como bofetadas, a
+escaldavam esses insultos, e que todos se voltavam para ella, como se
+o seu peccado fosse visivel através do manto, e a fulminassem os
+crentes em piedosa indignação.</p>
+
+<p>&mdash;Trahiram-te, meu pobre amor! Ah! que cobardes! Pois não comprehendes
+que tudo isso foi forjado para te intimidar! Tua prima decerto não
+chorou, tenho a certeza.</p>
+
+<p>&mdash;Até se levantou para se ir embora em meio do sermão, e já se zangou
+com o padre mestre pela linda festa para que nos convidára. Elle
+desculpou-se, coitado, que todos os sermões eram assim, que se tornava
+necessario combater o erro, responder com a guerra aos inimigos da fé!</p>
+
+<p>&mdash;Hypocrita! Mas Christo prégou uma religião de paz e de amôr, e elles
+querem o odio e a vingança! Christo foi o primeiro liberal, apontando
+a egualdade e a fraternidade. Christo prégou a pobreza e a humildade,
+e elles são ricos e poderosos. Acredita-me, os verdadeiros christãos
+somos nós!</p>
+
+<p>Pelo bem que lhe queria, dava-lhe João a ingenua interpretação
+<span class="pagenum"><a id="page236" name="page236"></a>(p. 236)</span> do tempo, porque só gradualmente a poderia emancipar.</p>
+
+<p>Ella sentia-se desafogada com as explicações, porque tambem a chocára
+a grossaria, o baixo espirito interesseiro dos industriaes da fé.</p>
+
+<p>&mdash;Mas se vocês são assim, e eu acredito que, pelo menos tu, és como
+dizes, para que horrorisam os crentes com esses aggravos?</p>
+
+<p>&mdash;Que lucravamos com isso, tontinha! São elles que os inventam e
+praticam, e mostram depois as cruzes derrubadas, para incitarem contra
+nós esse pobre povo que queremos emancipar.</p>
+
+<p>Por fim Maria resignou-se. Tinha de ser d'elle. Estava escripto que
+para o conseguir haveria de passar todos aquelles tragos. Pois que
+remedio. E João confiava mais n'aquelle fatalismo, na teimosia d'ella
+em levar a sua ávante, que em a ter convencido das artimanhas
+fradescas.</p>
+
+<p>Parecia-lhe que mal tinham começado a falar, e já os interrompia a
+tosse pontual de D. Victoria.</p>
+
+<p>&mdash;Josepha, fecha-me aquella janela, filha. Em caíndo a tarde, começa a
+peitogueira ás voltas commigo.</p>
+
+<p>Era da praxe n'esta altura interessar-se João pela saude d'ella, não o
+fazendo ao principio para não cercear <span class="pagenum"><a id="page237" name="page237"></a>(p. 237)</span> o tempo da entrevista,
+e poder demorar-se depois, um pouco mais, junto de Maria.</p>
+
+<p>Deixara-se sempre illudir a velha.</p>
+
+<p>&mdash;Aquelle peito era uma panela a ferver, a referver, á tardinha
+principalmente. Bastante gastára em promessas a S. Braz e Santa
+Margarida, advogados contra o mal da garganta, e a S. Tude, protector
+contra a tosse, mas cada vez se sentia peior.</p>
+
+<p>Trazia João engatilhado um repertorio de drogas e esvasiava as
+algibeiras de uma provisão de papeis e embrulhinhos.</p>
+
+<p>&mdash;Aquella era a receita de um xarope, invenção da tia Pulcheria, que
+lhe tirára uma tosse convulsa, depois de já ter sido chamado o Craca
+para lhe tomar medida do caixão; estas pastilhas fizera-as o senhor
+Juvencio de encommenda, com tudo quanto havia de melhor e mais
+approvado.</p>
+
+<p>E emquanto se prolongava o colloquio, deliciando-se D. Victoria em
+queixar se de todos os seus males, Maria e Josepha, como na quinta,
+riam enlaçadas ao fim do corredor, desafiando João.</p>
+
+<p>Pingavam trindades, erguia-se a velha com esforço e benzia-se
+unctuosamente, murmurando as ave-marias e a gloria-patri; e João,
+emancipado em casa, transigia ali, imitando-lhe os gestos e mexendo
+os <span class="pagenum"><a id="page238" name="page238"></a>(p. 238)</span> labios em furtadelas de olhos para o corredor, no que
+Maria julgava, enternecida, vêr uma satisfação aos seus escrupulos,
+embora a maldosa Josepha a desiludisse, elogiando as inexgotaveis
+manhas do namorado.</p>
+
+<p>Forçava-o o lusco-fusco a despedir-se, e então seguia pelo corredor,
+já escuro, emquanto Josepha avançava á sala a fazer-lhes costas,
+entretendo a mãe, e a sua verdadeira entrevista era quando elle a
+beijava apaixonadamente, ao propositado ruido de abrir a porta da rua.</p>
+
+<p>Dissipavam-se os receios de Maria, defendendo-se inhabilmente dos
+beijos:</p>
+
+<p>&mdash;Mas como tu estás atrevido. É da farda! Olha que te fica a matar! E
+porque é que nunca me beijaste quando estavamos juntos?</p>
+
+<p>&mdash;Não sabia se gostavas de mim.</p>
+
+<p>&mdash;E agora sabes?</p>
+
+<p>&mdash;Percebe-se.</p>
+
+<p>&mdash;E porque não percebias então?</p>
+
+<p>&mdash;Nem tu mesmo o sabias.</p>
+
+<p>&mdash;Isso sabia. Mas que fosse tanto, não; confesso!</p>
+
+<p>Echoavam estrondos de catarrho. Descia elle, corrido, <span class="pagenum"><a id="page239" name="page239"></a>(p. 239)</span> e ella
+voltava de olhos baixos, para ir ao ralo vêl-o sahir.</p>
+
+<p>Então D. Victoria chamava pela filha, que era o mesmo que chamar por
+ella:</p>
+
+<p>&mdash;Venha para dentro, menina, não seja janeleira, que não foi essa a
+sua creação. É uma maia, sempre impeirada á janela. Muito perdeu a
+menina em seu pae, Deus lhe fale n'alma, que a havia de sopear.</p>
+
+<p>Meteram-se para dentro, fechou-se a casa, e no escuro da alcova o
+terror reconquistou Maria.</p>
+
+<p>Queria desfazer-lhe Josepha a impressão das reprimendas da mãe:</p>
+
+<p>&mdash;Não faças caso, é genio. Sempre assim foi, mas não julgues que te
+quer mal. Olha que foi ella quem, a meu pedido, requereu o teu
+deposito e fez a queixa.</p>
+
+<p>&mdash;Antes o não fizesse.</p>
+
+<p>&mdash;Porque? Não estás contente em minha casa? Ligas importancia a
+rabugices?</p>
+
+<p>&mdash;Não é a tua casa, filha, é a minha situação que me afflige. Se
+soubesse que havia de estar tanto tempo á espera de edade, não saía de
+casa, não desgostava a mãe, não offendia o pae.</p>
+
+<p>&mdash;É <span class="pagenum"><a id="page240" name="page240"></a>(p. 240)</span> o que dizes agora. Mas não podias aturar aquella vida.</p>
+
+<p>&mdash;Nem posso supportar esta! Se tivesse casado, tapava a bôca a essa má
+gente. Mas assim, fóra de casa, vendo João, recebendo-o, é ser
+esbandalhada por essas linguas perversas. E hei-de passar cinco annos
+assim? Oh! não posso, não posso!</p>
+
+<p>&mdash;Ó filha, mas se tu não casas com elle é porque não queres. Vão
+juntos á missa, e quando o padre estiver quasi quasi a deitar a benção
+digam, de mãos dadas, as palavras sacramentaes, que se recebem por
+marido e mulher, e o padre, que não pode parar a reza por nada d'este
+mundo, tem por força de deitar a benção, deita-a, está deitada, vocês
+casados, com toda a egreja por testemunha, e salta logo para casa
+d'elle. E se teu pae quizer melhor que se ponha ás bôas e faça boda de
+estadão. E até o João pode combinar-se com o padre, que os ha muito
+constitucionaes, e é dito e feito.</p>
+
+<p>&mdash;Uma mulher como eu não dá semelhante passo&mdash;protestou Maria&mdash;Por ter
+saído de casa não deixo de ser quem sou, e nunca praticarei um acto de
+que se possa fazer pouco.</p>
+
+<p>&mdash;Então queixa-te de ti.</p>
+
+<p>&mdash;Hei de casar com elle, espere quanto tempo esperar, que <span class="pagenum"><a id="page241" name="page241"></a>(p. 241)</span>
+não sou das que se esquecem, nem das que se cançam. Mas ou hade ser
+como deve ser, ou nunca; ainda que estale de saudade. Se eu sou assim!</p>
+
+<p>&mdash;Mas não vejo que te resignes, te disponhas a esperar com paciencia.
+Afinal que queres tu?</p>
+
+<p>&mdash;O que quero? Nem eu sei, Josepha, nem eu sei!</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Assim passaram longos dias, até que a assustaram boatos de nova
+esquadra.</p>
+
+<p>Falavam com orgulho os miguelistas do seu grande poder: vinte e um
+navios, com trezentas e quarenta peças e seis mil homens, entre
+soldados e marinheiros; uma alçada para julgar summariamente os
+constitucionaes, e um carrasco para os despachar com promptidão.</p>
+
+<p>Bem sabiam os liberaes o que succederia se fosse tomada a ilha.</p>
+
+<p>Figuravam-se-lhes os autos de fé do miguelismo: procissões de
+condemnados, descalços, entre frades, levando horas da cadeia á forca,
+a entoar o <i>miserere</i> deante das capellas do percurso; depois
+enforcados no <span class="pagenum"><a id="page242" name="page242"></a>(p. 242)</span> longo ceremonial que com cada um absorvia uma
+hora, aggravando a tortura moral dos que esperavam, e divertindo mais
+damas e frades que davam vivas a D. Miguel e á religião, acenando com
+lenços, applaudindo as execuções.</p>
+
+<p>Estremeciam de horror ao recordar a viuva de um enforcado morrendo de
+afflição; o pae de um rapaz, assassinado pela lei, suicidando-se de
+desespero; uma pobre mãe affrontada pela exposição da cabeça do filho,
+espetada n'um poste deante da vidraça!</p>
+
+<p>Era uma perseguição em massa que degradára mil e seiscentas pessoas,
+forçára a esconderem-se cinco mil, arrastára á emigração treze mil e
+setecentas, mantinha vinte mil sob a vigilancia de suspeitos, tinha a
+dentro dos carceres mais de vinte e seis mil pessoas de ambos os
+sexos, e sequestrára os bens de oitenta e duas mil familias!</p>
+
+<p>Longe de os acobardar, incitavam-os esses terriveis exemplos a
+combaterem com desespero.</p>
+
+<p>O conego Ferraz, sabendo bem o que o esperava se triumphassem os
+miguelistas, trazia comsigo um frasquinho de veneno, para não caír
+vivo em poder do carrasco.</p>
+
+<p>João procurava tranquilisar Maria, ácêrca dos resultados da lucta.
+Assim como se tornára a ilha, agora elevada <span class="pagenum"><a id="page243" name="page243"></a>(p. 243)</span> á cathegoria de
+reino, o alvo do odio absolutista, tambem fôra o ponto de concentração
+dos liberaes, e assim já tinham para se oppôr ás forças inimigas
+alguns reforços de emigrados, armas e munições vindas de Inglaterra, e
+um general como Villa-Flôr para dirigir a defeza.</p>
+
+<p>Todo o littoral estava defendido, nos poucos pontos onde a costa
+permittia a abordagem.</p>
+
+<p>Uma manhã foi João precipitadamente despedir-se, porque ia para a
+villa da Praia com os Voluntarios da Rainha.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Enthusiasmado com a vinda da esquadra, contando como certa a victoria,
+tão grandes os recursos accumulados, arrancou-se o morgado do
+isolamento da quinta, onde cada vez bebia mais, para esquecer a
+offensa de Maria, para não ouvir os gritos da mulher, e montando a
+cavallo dirigiu-se ao convento de São Francisco.</p>
+
+<p>Ha muito que fr. Angelico não ia á quinta.</p>
+
+<p>Quando lá fôra a justiça, ao sentir o chocalhar de ferragens da
+traquitana, voltára-se desesperada D. Perpetua para o frade:</p>
+
+<p>&mdash;Se <span class="pagenum"><a id="page244" name="page244"></a>(p. 244)</span> não me defendes, Angelico, eu confesso-me a meu marido e
+então acabou-se tudo!</p>
+
+<p>Não permittiam illusões o rosto congestionado, a bôca espumante, o
+olhar desvairado, de louca. Fôra logo despedir-se de Martinho Vasques
+o franciscano, pretextando o receio da denuncia do juiz e das queixas
+de Maria.</p>
+
+<p>Era bom que n'esse mesmo dia o vissem no templo, votado ao culto, para
+desmentir a accusação tanto de temer.</p>
+
+<p>E sem consentir que o morgado mandasse pôr o carroção, arregaçou o
+habito, deitou o capuz pela cabeça, e fugiu debaixo d'agua ás
+pernadas, até se abrigar n'um portal.</p>
+
+<p>Que lhe quereria o morgado? perguntava a si proprio, ao ir recebel-o.</p>
+
+<p>Dissipou-lhe porém todo o receio a attitude de Martinho, ainda na
+grande paixão da desfeita recebida:</p>
+
+<p>&mdash;Deixe-me desabafar, fr. Angelico, que ha tanto tempo não o faço. Já
+não ha religião, já não ha respeito filial, já não ha Deus!</p>
+
+<p>Mãos postas, olhos em alvo, voz de cana rachada, exclamou o frade,
+simulando um devoto horror:</p>
+
+<p>&mdash;Não <span class="pagenum"><a id="page245" name="page245"></a>(p. 245)</span> blasfemes, creatura, contra o teu Creador! Curva-te á
+vontade do Altissimo, que a tua expiação está terminada!</p>
+
+<p>E mudando de tom:</p>
+
+<p>&mdash;Alegrar, senhor morgado, que ha grandes novas!</p>
+
+<p>&mdash;Por isso vim, fr. Angelico. É então certo que voltaremos aos bons
+tempos?</p>
+
+<p>&mdash;Só podiam duvidar gentes de pouca fé.</p>
+
+<p>&mdash;Pois eu julguei-me abandonado do céo!</p>
+
+<p>&mdash;Espere em Deus, que é pae da misericordia! Sempre ha de haver
+frades, sempre ha de haver religião! Vae em dezanove seculos! Havia de
+acabar assim, quando já resistiu ao proprio demonio, na pessoa de
+Luthero; ao anti-christo encarnado em Bonaparte? Estes pandilhas não
+valem nem um nem outro.</p>
+
+<p>&mdash;E agora?</p>
+
+<p>&mdash;Será forçada á obediencia paterna sua infeliz filha...</p>
+
+<p>&mdash;Já não tenho filha!</p>
+
+<p>Era essa a phrase feita que desde então tivera para todos, mas não
+correspondia sinceramente ao seu sentir.</p>
+
+<p>Queria-a em casa, como desaggravo, como affirmação do <span class="pagenum"><a id="page246" name="page246"></a>(p. 246)</span> poder
+paternal, como homenagem á sua categoria.</p>
+
+<p>&mdash;Responde v. ex.<sup>a</sup> como quem é, mas eu procedi como devia, de que lhe
+peço perdão, caso não appoie os meus passos.</p>
+
+<p>&mdash;Que quer dizer?</p>
+
+<p>&mdash;Nunca abandonei a sua causa, comquanto os deveres do meu ministerio,
+que me impõe a cega obediencia ao poder constituido, me impedissem de
+ir receber as suas ordens...</p>
+
+<p>E aqui, já seguro de que não fôra descoberto, perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Como está a senhora D. Perpetua, depois d'aquella triste fatalidade?
+Pobre senhora!</p>
+
+<p>&mdash;Não sei nem quero saber. Nunca mais verei nem uma nem outra.</p>
+
+<p>Tinha porém, curiosidade de conhecer o que fizera o frade:</p>
+
+<p>&mdash;Ia dizendo...</p>
+
+<p>&mdash;Que não me dei por vencido pelos inimigos de Deus. Pratiquei n'esta
+egreja uma das obras de caridade, ensinando os ignorantes, castigando
+os que erram, e a filha desobediente ouviu n'um terrivel sermão...</p>
+
+<p>&mdash;Já sei.</p>
+
+<p>&mdash;Mas <span class="pagenum"><a id="page247" name="page247"></a>(p. 247)</span> não foi só isso! Os miseraveis julgam que com garatujas
+n'um pedaço de papel governam tudo, e afinal somos nós quem governamos
+e havemos de governar sempre. O nosso reino não é d'este mundo, as
+nossas armas são espirituaes, e as crenças religiosas ligam-nos para
+sempre os cordeirinhos embora desgarrados, promptos a voltarem ao
+aprisco mal os ameaça o lobo da heresia.</p>
+
+<p>&mdash;Acabe!&mdash;pedia o morgado impaciente.</p>
+
+<p>&mdash;Trouxe sempre vigiada a innocencia por outro grande pastor d'almas,
+o nosso padre mestre, que tem feito ver a sua prima D. Victoria o
+peccado que commetteu. Ella, que é uma mulher de vergonha...</p>
+
+<p>&mdash;Uma descarada!&mdash;protestou Martinho Vasques&mdash;Fazer-me o que me fez!
+Mas não admira, a fama que ella sempre teve, com a casa cheia de
+frades...</p>
+
+<p>Tocado na corda sensivel, voltou fr. Angelico ao pathetico:</p>
+
+<p>&mdash;Calumnias, meu senhor, calumnias espalhadas pelos filhos de Satanaz.
+Não ha nenhum director espiritual d'essas santas senhoras que não
+tenha sido conspurcado na sua virtude, na sua innocente castidade. Até
+sei pelas suas creadas que a senhora D. <span class="pagenum"><a id="page248" name="page248"></a>(p. 248)</span> Perpetua, n'aquellas
+terriveis convulsões em que parece possessa do inimigo, diz contra mim
+coisas de se abrir o chão, decerto inspiradas pelo proprio demonio,
+como vingança contra o varão forte que por tanto tempo lh'a defendeu
+das garras.</p>
+
+<p>E n'um suspiro, como não obtivesse resposta, voltou a D. Victoria:</p>
+
+<p>&mdash;Ella tem feito todo o possivel para a desgostar, e não se opporá a
+que lh'a tirem d'ali.</p>
+
+<p>Atraiçoou-se o morgado, pondo de parte a rigidez apparente:</p>
+
+<p>&mdash;Dava metade do que possuo para a fazer voltar a casa, sem que, pelo
+triumpho dos nossos, a forçassemos, por forma a fazer rebentar a
+castanha na bôca aos que se regosijavam com a minha vergonha.</p>
+
+<p>&mdash;Pois dê v. ex.<sup>a</sup> com que eu possa mover o ceu a nosso favor, e
+tentarei o milagre.</p>
+
+<p>Sabendo-lhe as manhas, ia Martinho Vasques prevenido de dinheiro, a
+vêr se, a troco de alguma esmola para o convento, lhe deixavam levar o
+indispensavel commensal.</p>
+
+<p>&mdash;Pois aqui tem para principio. E quanto mais depressa, melhor.</p>
+
+<p>&mdash;É agora propicia a occasião. Está o seductor seguro <span class="pagenum"><a id="page249" name="page249"></a>(p. 249)</span> na
+Praia. Mas pretendem recolher-se ao castello, com as familias, se
+forem derrotados á beira-mar, e se lá a metem, então, meu senhor, é
+que é fazer-lhe uma cruz. Ficaria perdida a senhora D. Maria, entre
+semelhante malta. Da mesma sorte se os nossos desembarcarem
+rapidamente, como ha de permtir o ceu, tomando-a por liberal,
+violental-a-hão, e á prima, como é do seu dever, para exemplo das
+malditas mulheres que preferem as creaturas de Satanaz aos amigos da
+religião. Portanto, se podermos recolher desde já a filha prodiga,
+teremos mais socego para os ver esganar, pois virá por ahi quem saiba
+da póda.</p>
+
+<p>&mdash;Que tenciona fazer?</p>
+
+<p>&mdash;O que Deus me inspirar.</p>
+
+<p>&mdash;Mas quando, quando?</p>
+
+<p>&mdash;Elle o determinará em sua divina sabedoria.</p>
+
+<p>E como o morgado, apesar de devoto, não ficasse muito satisfeito:</p>
+
+<p>&mdash;Olhe, vá v. ex.<sup>a</sup> a pé por essa cidade, mande a besta esperal-o fóra
+dos portões, e a todos que lhe perguntarem por sua esposa dê-a como
+perdida, que poucos dias lhe restam de vida, para que a senhora D.
+Maria o saiba. Ensinarei o recado ao padre mestre, para dizer a D.
+Victoria que é um caso de <span class="pagenum"><a id="page250" name="page250"></a>(p. 250)</span> consciencia encobrir por mais
+tempo a uma filha a agonia da mãe. Depois eu darei conta de mim.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Uma tarde, tendo ensaiado fr. Angelico um ar compungido, certo da
+afflicção de Maria pelas más noticias da mãe, foi a casa de D.
+Victoria.</p>
+
+<p>Mal o viu, atirou-lhe Josepha com a porta, mas o frade insistiu,
+percebendo que a mãe a reprehendia, ao saber quem era.</p>
+
+<p>Em voz de prédica, perguntou da escada se a senhora D. Maria estava em
+carcere privado, e se era contra a Carta Constitucional levar a uma
+filha noticias de sua mãe.</p>
+
+<p>Foram abrir-lhe, e Maria, apezar dos exforços de Josepha para a fechar
+na alcova, pediu por amor de Deus novas de D. Joanna.</p>
+
+<p>Elle, n'uma suavidade melada, ergueu os olhos, e declamou:</p>
+
+<p>&mdash;Deus manda perdoar as injurias, esquecer as fraquezas do proximo, e
+consolar os afflictos! Fiz ideia como estaria a sua alma, e
+arrisquei-me a este passo, que pode ser tão mal apreciado...</p>
+
+<p>&mdash;Diga-me a verdade!&mdash;implorou Maria, atterrada pelo exordio.</p>
+
+<p>&mdash;Peço-lhe <span class="pagenum"><a id="page251" name="page251"></a>(p. 251)</span> que não se assuste. A senhora D. Perpetua está
+gravemente doente, mas ainda ha esperanças de a salvar.</p>
+
+<p>Maria recriminou a prima:</p>
+
+<p>&mdash;Ou haverá ou não! Eu bem t'o dizia, Josepha, eu bem t'o dizia.</p>
+
+<p>Mas ella continuava a disputal-a:</p>
+
+<p>&mdash;Não te deixes enredar!</p>
+
+<p>&mdash;E com isto não enfado mais&mdash;disse o frade, cumprimentando muito
+correcto, um ar de beatitude a escorrer-lhe pela face alvar&mdash;Vim só
+trazer esta palavra de consolação, como é dever do meu ministerio. Sua
+mãe não está na agonia, como para ahi espalharam, o que me forçou a
+vir tranquilisal-a. Eu ainda confio n'um milagre!</p>
+
+<p>Quiz demoral-o D. Victoria:</p>
+
+<p>&mdash;Então, nem sequer se senta! Faça-me um bocadinho de companhia...</p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigado, minha querida senhora, mas a minha presença não
+agrada...</p>
+
+<p>&mdash;Peço-lhe perdão pelo que toca a minha filha. Se ella tivesse um pae
+que a castigasse...</p>
+
+<p>Aproveitou o frade o pretexto, e pegaram-se n'uma interminavel
+palestra, emquanto Josepha conseguia arrastar a prima para dentro.</p>
+
+<p>Mas <span class="pagenum"><a id="page252" name="page252"></a>(p. 252)</span> ahi Maria respondeu-lhe frenetica:</p>
+
+<p>&mdash;Que mau sestro tomaram todos de me governar. Foi o pae, a mãe,
+depois o João, tua mãe, e agora tu! Pois eu tenho mais juizo que vocês
+todos, não preciso de tutôres.</p>
+
+<p>&mdash;Estás sendo muito enganada!&mdash;repetiu Josepha.</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-me! Deixa-me!</p>
+
+<p>E refugiou-se na torre, a meditar, sentada n'um bahu, a cabeça apoiada
+nas mãos, os olhos vidrados muito abertos, as fontes latejando.</p>
+
+<p>Depois ergueu-se, enxugou os olhos, e foi direita á sala.</p>
+
+<p>&mdash;Que vaes fazer!&mdash;perguntou Josepha, interpondo-se:</p>
+
+<p>&mdash;O que devo! Larga-me.</p>
+
+<p>E arrependendo-se:</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei que me queres bem, mas perdôa. Oh! Ninguem se veja como eu
+me vejo!</p>
+
+<p>No estoicismo da resolução, dirigiu-se a fr. Angelico da Immaculada:</p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigada a vossa reverendissima pelas suas noticias. O meu
+desejo era ver a mãe...</p>
+
+<p>&mdash;Não esperava menos do seu coração de filha!&mdash;exclamou radiante
+<span class="pagenum"><a id="page253" name="page253"></a>(p. 253)</span> o frade&mdash;É esse effectivamente o seu dever.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, Maria, que caiste no laço!&mdash;bradou Josepha,&mdash;Estás doida? Estás
+doida?</p>
+
+<p>Mas ella, sem a attender, dizia ao frade:</p>
+
+<p>&mdash;Se pudesse ser...</p>
+
+<p>&mdash;Hei de fazer o possivel, alma santa!&mdash;respondia fr. Angelico,
+revirando os olhos.</p>
+
+<p>&mdash;O pae não ha de querer ...&mdash;continuava Maria, emquanto D. Victoria
+continha a filha.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! Não conhece a grandeza do seu coração! Foi muito offendido,
+realmente, mas é pae, é pae!</p>
+
+<p>&mdash;Aconselhe-me então o que devo fazer.</p>
+
+<p>&mdash;Foi Deus que a inspirou. Faça o que disse. Venha vêr sua mãe. Eu
+acompanho-a, e respondo pela licença do senhor morgado.</p>
+
+<p>&mdash;E quando? quando?</p>
+
+<p>&mdash;Quanto mais depressa melhor, que a vida e a morte estão nas mãos de
+Deus!</p>
+
+<p>Josepha ainda irrompeu, avançando para o frade:</p>
+
+<p>&mdash;O que falta aqui é um homem para o esbofatear!</p>
+
+<p>Mas nada poude demover Maria, muito tremula, batendo os dentes,
+convulsa, á ideia de ir vêr a mãe.</p>
+
+<p>Ao <span class="pagenum"><a id="page254" name="page254"></a>(p. 254)</span> saír, com a tia e o frade, ainda Josepha a puchou para
+dentro:</p>
+
+<p>&mdash;Ó doida! E ao João, que lhe hei de dizer?</p>
+
+<p>E como ella balbuciasse que ia só vêl-a, e que voltava, tapando a
+bôcca, abafando-se no biôco do manto para não a ouvirem soluçar,
+gritou-lhe do alto da escada:</p>
+
+<p>&mdash;Mal empregado rapaz! Tu não o mereces!</p>
+
+
+
+
+<h2>XI <span class="pagenum"><a id="page255" name="page255"></a>(p. 255)</span></h2>
+
+
+<p>Pelo caminho, baloiçada na traquitana que tomaram no alto das Covas,
+ainda lhe echoavam aos ouvidos as palavras de Josepha:</p>
+
+<p>«Não o merecia».</p>
+
+<p>E o que diria elle ao saber que destruira n'um momento o que bastante
+lhe custára a conseguir? Era capaz de descrer d'ella.</p>
+
+<p>Roubar-lh'o-ia a prima, que tanto sympathisava com elle?</p>
+
+<p>Mas não havia de deixar morrer a mãe á mingua. Deus não lh'o
+perdoaria, e para sempre esse peccado ameaçaria <span class="pagenum"><a id="page256" name="page256"></a>(p. 256)</span> a sua
+felicidade. João, que era prudente e rasoavel, comprehendel-a-ia.</p>
+
+<p>E se Josepha a intrigasse? Logo aquella triste coincidencia de estar
+na Praia. E ao lembrar-se que elle se encontrava em perigo de vida,
+davam-lhe furias de saltar do carro, de fugir para junto da prima.</p>
+
+<p>Que cobardia a sua! Abandonal-o quando se arriscava, envolvido em tudo
+aquillo por causa d'ella!</p>
+
+<p>Dominava-a, porém, o pavoroso abandono da velha, e via-a como a creada
+a pintara, gaguejando, a cama por fazer, atulhada em cisco, envolvida
+em trapos! Desgraçada!</p>
+
+<p>Na sua ingenuidade parecia-lhe assim melhor para todos. Imaginava uma
+grande scena de reconciliação, o pae abraçando-a quando se lhe
+deitasse aos pés a pedir perdão, e fr. Angelico abençoando-a em nome
+de Deus, limpando uma lagrima.</p>
+
+<p>Agora não lhe parecia mau o frade, n'aquelle ar compungido.</p>
+
+<p>E crendo possivel pôr tudo em bem, ainda esperava falar a João na
+propria quinta, e talvez, quem sabe, ganhar pouco a pouco, pela
+submissão, a boa vontade do pae, podendo ser que viesse a casar por
+consentimento d'elle.</p>
+
+<p>Esfarrapava n'um momento a suave visão o echo dos <span class="pagenum"><a id="page257" name="page257"></a>(p. 257)</span> gritos de
+Josepha, a lembrança das indignações de João quando soubera do
+desagravo de S. Francisco.</p>
+
+<p>Sendo impossivel contentar a todos, limitar-se-ia ao que a levava ali,
+vêr a mãe, tranquilisar-se a respeito do seu estado.</p>
+
+<p>Chegaram, e, como se já contassem com elles, ninguem appareceu.</p>
+
+<p>Deixou-as o frade na casa de entrada, e foi em procura do morgado.</p>
+
+<p>Recordou-se da cilada armada a João, dos maus tratos a que só a
+justiça a pudera arrancar, mas, longe de intimidar-se, sentiu que a
+emancipára a saída da casa paterna, dando-lhe a consciencia da propria
+individualidade.</p>
+
+<p>Alarmou-a um grito da mãe, um grito de desespero, rouco, abafado pela
+porta, vindo do interior.</p>
+
+<p>Ia accudir-lhe, mas conteve-a D. Victoria, e ella propria reconheceu
+então que perdera o direito de entrar como d'antes.</p>
+
+<p>Appareceu o frade, mostrando-se confuso, transtornado, apparentando
+vir offegante como de uma grande discussão.</p>
+
+<p>Repetiam-se os gritos de D. Perpetua e, como incommodado por elles,
+disse á pressa fr. Angelico:</p>
+
+<p>&mdash;Accusou-me <span class="pagenum"><a id="page258" name="page258"></a>(p. 258)</span> de desleal o senhor morgado por a ter
+introduzido aqui. Diz que a senhora só póde entrar n'esta casa como
+filha arrependida e submissa, e até sem esperança de um perdão, que só
+a sua conducta poderá merecer. E Deus me perdoe ter procurado
+semelhantes trabalhos por minhas mãos!</p>
+
+<p>Teve Maria um impeto de voltar para traz, mas os gritos da mãe
+pregavam-a ao sobrado.</p>
+
+<p>Fez-se luz no seu espirito, não duvidou que o frade fôra expressamente
+preparar-lhe aquella situação.</p>
+
+<p>E n'um relance comparou a vida que levava em casa da prima, sem poder
+vêr João, senão vigiada. Era-lhe mais doloroso tel-o junto a si, sem
+poder desabafar.</p>
+
+<p>Ali, tratando da mãe, parecer-lhe-ia menos penosa a espera.</p>
+
+<p>Decidira-se em casa de Josepha, apesar das suas solicitações. Tinha
+por melhor esperar ali.</p>
+
+<p>E respondeu gravemente ao frade que sim, que ficava de vez, desde que
+o pae não duvidava acceital-a.</p>
+
+<p>Despedira-se, applaudindo-a, D. Victoria, desejosa de se vêr livre
+d'ella, e Maria, de olhos enxutos, cabeça <span class="pagenum"><a id="page259" name="page259"></a>(p. 259)</span> erguida, caminhou
+após o frade em direcção ao seu quarto, aonde agora estava D.
+Perpetua.</p>
+
+<p>Então fr. Angelico, retomando o ar de dominio de outros tempos,
+reprehendeu-a severamente:</p>
+
+<p>&mdash;Lembre-se que a sua desobediencia trouxe a deshonra e a desgraça a
+esta casa, e que a doença de sua mãe é o justo castigo de Deus.</p>
+
+<p>&mdash;Representou bem o seu papel&mdash;respondeu-lhe Maria&mdash;mas não julgue que
+me illudiu, nem creia que se ha-de rir de mim.</p>
+
+<p>Abriu a porta, fechada por fóra, e tirou a chave. No leito soltava a
+mãe phrases incomprehensiveis.</p>
+
+<p>Sabia que a esperavam, e os seus berros tinham sido para que não
+ficasse, para que não tornasse a caír nas mãos dos seus algozes.</p>
+
+<p>O estado em que a viu fortaleceu Maria na consciencia do dever
+cumprido.</p>
+
+<p>Vibrava o seu corpo fragil n'uma energia de ferro. Olhava para tudo
+como senhora, como morgada, e revoltava-a aquelle abandono.</p>
+
+<p>Ia ao pae para reclamar um medico, e dar então ordem á casa.</p>
+
+<p>Mas D. Perpetua, temendo ficar só, chamou-a afflicta para junto de si:</p>
+
+<p>&mdash;Filha, <span class="pagenum"><a id="page260" name="page260"></a>(p. 260)</span> não sei se tornarei a vêr-te, que elles são capazes
+de te fechar, ou até de te estrangularem, como já me teem querido
+fazer.</p>
+
+<p>E o seu espirito doente confundia a realidade com a allucinação:</p>
+
+<p>&mdash;Quero confessar-me, Maria, que estou para Deus me levar; mas ha-de
+ser a ti, filha, que não creio no fr. Angelico nem nos outros
+malditos!</p>
+
+<p>Sacudia-a a convulsão, entortavam-se-lhe os olhos, ficava-lhe a bocca
+arrepanhada ao lado, asphyxiava-a a escuma sanguinolenta, que Maria
+limpava compadecida.</p>
+
+<p>&mdash;Quero confessar-me a ti, sim, filha&mdash;voltava ella n'uma insistencia
+pavorosa, olhos esgazeados, a voz cortada, difficil de perceber&mdash;Tenho
+um grande remorso, um peccado mortal, e tu, que estás uma mulher,
+pódes comprehender-me e perdoar-me.</p>
+
+<p>Pedia-lhe que socegasse, mas ella tinha a ancia de falar:</p>
+
+<p>&mdash;Fui rapariga como tu, e não tive a felicidade de encontrar um rapaz
+como o que amas, que é o brio dos homens, ao que tem feito por ti. Ha
+tanto quem possa ser feliz e tanto quem nunca o poude ser! São
+destinos. Eu enganei-me sempre, e querendo tornar-me <span class="pagenum"><a id="page261" name="page261"></a>(p. 261)</span> ditosa
+fui ludibriada por teu pae, e vi-me casada com elle sem amor.</p>
+
+<p>N'uma explosão de raiva e nojo, em arrancos como se vomitasse,
+contou-lhe a torpe ligação ao frade, a maneira como elle a explorára e
+como por fim a tratava, unindo-se ao marido contra ella.</p>
+
+<p>Então Maria comprehendeu o sentido das allusões de João e Josepha,
+certos sorrisos surprehendidos em beiços de creadas.</p>
+
+<p>Quando a viu mais tranquilla, aliviada pelo desabafo da sua miseria,
+saíu Maria, cada vez mais resoluta.</p>
+
+<p>Encontrou o frade no escriptorio:</p>
+
+<p>&mdash;Fez-me minha mãe certas revelações, creio que me comprehende...</p>
+
+<p>E a perturbação de fr. Angelico mostrava-lhe que sim.</p>
+
+<p>&mdash;Não voltará a esta casa, sob pena do pae nunca mais o deixar saír.
+Desculpe-se como puder. Aos seus processos, não lhe será difficil.</p>
+
+<p>Muito enfiado, levantou-se fr. Angelico da papeleira, e deixando a
+escripta como estava, compoz o habito, desejando vêr-se muito longe
+d'ali.</p>
+
+<p>Encontrou o morgado á meza, e não teve meio de esquivar-se
+immediatamente.</p>
+
+<p>Podia <span class="pagenum"><a id="page262" name="page262"></a>(p. 262)</span> levantar suspeitas, que lhe seriam fataes, e
+resignou-se a acompanhal-o ao jantar, no supplicio de não poder comer.</p>
+
+<p>Repentinamente Maria entrou e dirigiu-se a Martinho Vasques:</p>
+
+<p>&mdash;A sua benção, pae.</p>
+
+<p>Tomou-lhe a mão e beijou-lh'a, sem que elle, perturbado, podesse
+retirar-lh'a.</p>
+
+<p>Sempre de pé, declarou n'uma voz sumida:</p>
+
+<p>&mdash;Conforme as suas palavras, procurarei merecer o seu perdão tratando
+da mãe.</p>
+
+<p>Pôz o morgado os olhos no prato, e não respondeu palavra.</p>
+
+<p>Muito servilmente, para captar a benevolencia d'ella, interveiu o
+frade:</p>
+
+<p>&mdash;Volta a viver como outr'ora, foram as palavras de seu pae. Tenha a
+bondade de sentar-se&mdash;e offereceu-lhe uma cadeira&mdash;que eu tenho de
+levar até ao fim a missão de que me encarreguei.</p>
+
+<p>Chamou a creada, mandou pôr-lhe talher, e voltou-se para Martinho, que
+continuava comendo, como se nada fosse com elle:</p>
+
+<p>&mdash;O senhor morgado perdoará, porque Deus tambem perdoou!</p>
+
+<p>&mdash;Com licença, pae!&mdash;disse Maria sentando-se.</p>
+
+<p>E <span class="pagenum"><a id="page263" name="page263"></a>(p. 263)</span> emquanto redobrava o pasmo de Martinho, ella adquiria maior
+firmeza, mais sangue frio.</p>
+
+<p>Reapossava-se do seu logar, succedia á mãe como dona da casa, para
+depois succeder ao pae como senhora absoluta de tudo.</p>
+
+<p>Mal teve ensejo, ergueu-se o frade, a despedir-se.</p>
+
+<p>&mdash;Tenha a bondade de mandar immediatamente um bom medico, que não se
+póde abandonar uma creatura de Deus no estado a que chegou a mãe.</p>
+
+<p>Para se furtar ao cumprimento da filha, ergueu-se Martinho e
+agarrou-se ao franciscano:</p>
+
+<p>&mdash;Venha d'ahi, fr. Angelico, beber uma golada para o caminho.</p>
+
+<p>Sentiu-os afastar, discutindo, e então chamou as creadas,
+reprehendeu-as, tratando-as de desmazeladas, e levou adiante de si,
+tremendo de medo, para arranjarem o quarto, as que ainda ha pouco se
+riam da velha.</p>
+
+<p>No dia seguinte, depois de almoçarem sem trocar palavra, veiu o
+medico, que observou demoradamente D. Perpetua.</p>
+
+<p>Levou-o Maria á presença do pae, a quem elle expoz a situação da
+doente. Devia ter sido chamado mais cedo. Talvez nas Caldas da Rainha
+podesse obter melhoras. Ali ficaria entrevada de todo.</p>
+
+<p>Ouviu-o <span class="pagenum"><a id="page264" name="page264"></a>(p. 264)</span> o fidalgo com má sombra, sem responder.</p>
+
+<p>No seu impenetravel mutismo, meditava na maneira de sahir d'aquella
+situação, peior que a anterior, a casa governada pela filha, o exemplo
+d'essa arrogancia mostrando-lhe bem o que ella faria quando João
+voltasse da Praia e começasse a rondar por ali.</p>
+
+<p>Animava-o, porém, a confiança de que triumphasse a esquadra
+miguelista, desfazendo o castello de cartas do minusculo reino
+liberal.</p>
+
+<p>Então recolhel-a-ia a um convento, até a levar para Lisboa, ou a casar
+com o primo, se ainda a podesse render pela clausura, ou a fazel-a
+professar.</p>
+
+<p>Descançava Maria no banco do pomar, onde passava as tardes com João,
+pensando n'elle, quando uma creada a foi chamar:</p>
+
+<p>&mdash;Venha vêr, menina, venha vêr que coisa tão linda. É a esquadra do
+senhor D. Miguel.</p>
+
+<p>Subiu assustada ao mirante, e viu ao largo, no pégo do mar, vinda de
+oeste, a infinita linha dos navios, carregados de pannos, rebocando
+enfiadas de grandes barcos que, n'uma bordada ao sul da Terceira,
+tinham ido reunir ás ilhas de baixo para o desembarque. <span class="pagenum"><a id="page265" name="page265"></a>(p. 265)</span>
+Rindo inconscientes, as creadas comparavam a resteas d'alhos a
+correntêza de lanchas.</p>
+
+<p>Aterrava-a o grande poder, que ia talvez roubar-lhe para sempre o seu
+noivo, a sua ventura.</p>
+
+<p>No torreão, munido de oculo, contava o morgado a nau, as fragatas, as
+corvetas, e considerava como positivo o triumpho dos seus.</p>
+
+<p>Até ao pôr do sol viram-os sempre, parecendo fixos no mesmo ponto; mas
+ao romper da manhã, quando Maria os procurava inquieta, já não os
+avistou.</p>
+
+<p>Por volta das onze horas começaram a ouvir-se estampidos muito
+distantes. Estava travado o combate, mas não era contra o castello,
+cujas muralhas se avistavam da quinta.</p>
+
+<p>Só podia ser na villa da Praia, onde estava João!</p>
+
+<p>E n'uma desesperada angustia figurava-se-lhe o horror de carnificinas,
+como a do Pico do Selleiro.</p>
+
+<p>Ao começo da noite, encostada ao ralo, ouviu passar homens do
+trabalho, que vinham da cidade, falando alterados, decerto commentando
+as noticias da batalha.</p>
+
+<p>Gritavam «viva a nau encalhada», mas essa phrase nada lhe fazia
+comprehender.</p>
+
+<p>Chamou <span class="pagenum"><a id="page266" name="page266"></a>(p. 266)</span> o pae um rancho, e perguntou-lhe o que se passára.</p>
+
+<p>Responderam n'uma attitude hostil, repetindo os vivas, e um explicou
+que a nau <i>D. João VI</i> estava perdida.</p>
+
+<p>&mdash;Isso póde lá ser, homem de Deus&mdash;contestou Martinho&mdash;Uma nau de tres
+pontes, que é a flôr da nossa marinha!</p>
+
+<p>Insistiram, e accrescentaram:</p>
+
+<p>&mdash;A nau encalhou, e os realistas foram todos pescados!</p>
+
+<p>Afastaram se repetindo o grito de alegria «viva a nau encalhada!»</p>
+
+<p>&mdash;Tinham vencido! É porque Deus os protegia&mdash;pensava ella&mdash;tão poucos,
+tão fracos, creanças como João, e os academicos que tinham ido para a
+villa! E elle? Saíria a salvo? Teria ficado ferido ou morto?</p>
+
+<p>Logo de manhã o creado da prima appareceu com um açafate á cabeça, a
+pedir flôres.</p>
+
+<p>Era o signal da outra vez, querida Josepha!</p>
+
+<p>Agora sim, agora confiava no futuro.</p>
+
+<p>Escoltando <span class="pagenum"><a id="page267" name="page267"></a>(p. 267)</span> carros de bois, cheios de <i>pescados</i>, vinha João
+entre camaradas, enfarruscados de polvora, espingardas enramadas de
+louros, cantando na musica do toque da alvorada:</p>
+
+<p class="poem">
+ Ai, meu Deus,<br>
+ Isto é que é rir!<br>
+ Vêr os caipiras<br>
+ Da Praia a fugir.
+</p>
+
+<p>Ainda lhe parecia mentira!</p>
+
+<p>Quando ao desfazer-se o nevoeiro vira a bahia cheia de grandes navios
+ameaçadores de portinholas, onde apontavam guelas de canhões, creu
+tudo perdido, porque o grosso das forças liberaes estava a quatro
+leguas, no castello, e ali só havia quinhentos homens, e onze velhas
+peças montadas em ruinas de fortes, com simples soldados por
+commandantes!</p>
+
+<p>Ribombou a artilharia da esquadra, guarnecida de trezentas e quarenta
+bôcas de fogo, e ensurdecido pelo estrondear, cego do fumo, da
+terraceira projectada pelas balas, julgou tudo fulminado, vencido de
+vez.</p>
+
+<p>Mas ao subir a nuvem azulada, reappareceram os exiguos <span class="pagenum"><a id="page268" name="page268"></a>(p. 268)</span>
+fortes liberaes, e os artilheiros, imperturbaveis, n'essa indifferença
+do habito que, mais do que tudo, o surprehendia, apontavam agora, e
+alguns tiros insignificantes, um como brinco de creanças, responderam
+áquella unanimidade de canhonadas.</p>
+
+<p>Caíu logo uma retranca á nau, e a confusão da tolda demonstrou que os
+de terra não tinham perdido a serenidade.</p>
+
+<p>No forte de S. José, o velho ilheu Manoel Caetano acompanhava os
+filhos, artilheiros da costa, para os ensinar a fazerem as pontarias.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor governador&mdash;dissera ao sargento commandante&mdash;feche a porta e
+guarde a chave, porque estes mancebos são muito bisonhos, e ainda não
+ouviram zunir pelouros.</p>
+
+<p>Ao cahir um d'elles, dirigiu-se ao que lhe restava:</p>
+
+<p>&mdash;Desvia teu irmão que já pagou a sua divida á patria, e tratemos de o
+vingar!</p>
+
+<p>E só assim, dedicações firmes, convicções inabalaveis, poderam
+resistir a esse infernal canhoneio de cinco horas.</p>
+
+<p>Avançaram ao desembarque mil e tantos homens, o dobro dos que
+guarneciam meia legua de areal, e a vantagem do numero e da
+concentração, deu-lhes logo <span class="pagenum"><a id="page269" name="page269"></a>(p. 269)</span> o alto do Facho e o forte do
+Espirito Santo.</p>
+
+<p>Mas os liberaes voluntarios correram-os á bayoneta, varejaram-os com
+penedos rolados á força de braços, e ao verem-os vencidos, luctando
+com as ondas e a braveza dos rochedos, gritavam-lhes que não fizessem
+mais fogo, porque os desgraçados, que tinham ordem de não dar quartel,
+contavam ser tratados de egual fórma, e ainda disparavam loucos de
+desespero.</p>
+
+<p>Desceram a rocha os constitucionaes, meteram-se ao mar para salval-os,
+e João, entre outros, com agua pelos peitos, tirava a braços os
+feridos, os estropiados, que a maré dentro em pouco afogaria.</p>
+
+<p>As victimas da tyrannia miguelista, que até ali os arrastára, olhavam
+pasmados esses homens que, para os salvar, arriscavam a vida, e não
+comprehendiam a sua fraternidade.</p>
+
+<p>Poz termo ao combate a chegada da columna de Villa-Flôr, voltando a
+tiro as lanchas do segundo desembarque, e obrigando a frota a cortar
+amarras e a fazer-se ao largo, podendo agora safar-se com a enchente a
+nau, que logo ao começo da acção tocára o fundo.</p>
+
+<p>Vinha João calculando o decisivo alcance da victoria, que <span class="pagenum"><a id="page270" name="page270"></a>(p. 270)</span>
+devia despertar echo em Portugal, levar as potencias a reconhecerem o
+unico governo português legitimo, permittir a reunião de recursos para
+o desembarque no continente.</p>
+
+<p>Ao chegar á cidade soube que Maria voltara a casa, perdendo assim a
+vantagem a tanto custo conquistada, exactamente quando era a seu favor
+essa absoluta consolidação da ilha.</p>
+
+<p>Conseguira mais o trama de um frade que a natural inclinação dos dois
+corações; tivera mais força n'ella a intimidação do inferno que o
+enthusiasmo da mocidade a impellil-a para elle.</p>
+
+<p>Oh! quanto custaria emancipar os espiritos acorrentados ao erro, na
+treva da oppressão!</p>
+
+<p>Pedia-lhe perdão a carta d'ella por não o haver consultado, mas
+davam-lhe a mãe agonisante, e a pobre estava realmente mal. Tanto
+fazia esperar ali como em outra parte, já que não podiam casar tão
+cedo. Não receiasse que a opprimissem, porque o soffrimento fizera-a
+mulher. Tivera ensejo de conhecer a hypocrisia que dictava o
+procedimento dos frades, e perdera o escrupulo religioso que tanto a
+affligia. Concluia affirmando a sua absoluta fidelidade. Nunca fôra
+tanto sua como agora.</p>
+
+<p>Não lhe importavam, porém, as palavras.</p>
+
+<p>Caíra <span class="pagenum"><a id="page271" name="page271"></a>(p. 271)</span> na anterior situação, estando de novo sob a alçada do
+frade, que continuaria a governal-a apesar dos seus ingenuos
+protestos.</p>
+
+<p>Escreveu-lhe desesperado, queixando-se da falta de confiança que
+denotava a sua precipitação.</p>
+
+<p>Andava como louco. Que havia de fazer para a arrancar novamente d'ali?</p>
+
+<p>Tinha a certeza de que ella, só por orgulho, se não reconhecia victima
+de uma perfidia, mas que devia anciar por se vêr livre da tyrannia
+paterna, a que tanto custára arrancal-a.</p>
+
+<p>Appellou para Fulgencio, mas o boticario desilludiu-o:</p>
+
+<p>&mdash;Agora? Era pegar-lhe com um trapo quente. Ella quebrára o deposito,
+recolhera a casa por <i>motu proprio</i>, já a justiça não podia ir
+reclamal-a, houvesse o que houvesse. Sim, que isso de tirar uma filha
+a um pae não era brincadeira, nem devia ser.</p>
+
+<p>Enternecido pelas supplicas sahiu a pedir por elle, mas voltou com más
+novas.</p>
+
+<p>&mdash;Pódes dizer-lhe adeus. Pensa n'outra, que é o menos que falta. Não
+tarda o velho pela barra fóra, que está na lista dos suspeitos, dos
+que tramam na sombra e ajudam as guerrilhas por baixo de mão. O
+<span class="pagenum"><a id="page272" name="page272"></a>(p. 272)</span> Villa-Flor é têso, faz elle muito bem; ainda não bebeu agua
+das Covas, nem bebe, honra lhe seja; não se amolda, pois, aos costumes
+da terra, e não quer saber se o Martinho é muito ou pouco fidalgo, se
+vem de reis ou de lacaios. Isso é bom para nós, que na nossa
+insignificancia ainda caímos de cocoras diante d'esses paparrotões, só
+porque teem quatro avoengos, embora os renegassem como esse
+refinadissimo «corcunda», tornado em lacaio dos sotainas, quando o avô
+ajudou a expulsal-os, cumprindo as medidas de Pombal. Agora que a
+victoria de 11 de agosto poz isto na ordem, é preciso limpar a terra
+das hervas damninhas, porque, meu rapaz, ainda ha muito e muito que
+fazer.</p>
+
+<p>Ouvia-o João, transtornado, sem comprehender bem.</p>
+
+<p>&mdash;Quer dizer que Maria se vae embora?</p>
+
+<p>&mdash;Não se trata d'ella, meu rapaz. O nome do pae é que eu vi na lista
+dos deportados.</p>
+
+<p>Foi procurar emigrados, rapazes que o podiam comprehender melhor do
+que o velho, e cuja deliberação no combate lhe ganhara a sympathia.</p>
+
+<p>&mdash;Mas afinal que queres tu?&mdash;dizia um academico&mdash;A rapariga gosta de
+ti, não é verdade? Pois muito bem, vamos lá uma noite, tira-se para
+fóra, <span class="pagenum"><a id="page273" name="page273"></a>(p. 273)</span> dá-se uma sova nos migueis que se fizerem finos,
+metel-a em tua casa, e não queiras mais saber de deposito. Em teres
+andado tanto tempo ao rabo da saia d'ella, e deixal-a assim levantar o
+vôo, bem mostras que foste educado por padres e te tornaste um
+maricas. Havia de ser commigo!</p>
+
+<p>&mdash;Ella é que não quer fugir. Que ha-de casar, e não sae d'ali.</p>
+
+<p>&mdash;Pois tira-se mesmo contra vontade, que quem governa somos nós, e
+como tu és das caras direitas que estiveram na batalha da Praia,
+fecha-se os olhos á rapaziada.</p>
+
+<p>&mdash;Preciso consultal-a primeiro...</p>
+
+<p>&mdash;O que tens é medo d'ella. Pois deixa-a ir para o primo, que em
+chegando a Lisboa não se lembra mais de ti. Aquillo é que é terra!</p>
+
+<p>&mdash;Não durmas sobre o caso&mdash;lembraram-lhe&mdash;olha que elles não tardam a
+ser corridos, que isto agora é dito e feito.</p>
+
+<p>Escreveu-lhe, pintando o horror d'essa separação. Estava preparado
+para a ir buscar, acompanhado por amigos. Não havia perigo, e no caso
+de força maior tinha ella completa justificação aos olhos de todos. E
+que importava que os censurassem, se a sua felicidade os faria
+esquecer tudo? Se não acceitasse é <span class="pagenum"><a id="page274" name="page274"></a>(p. 274)</span> porque nunca lhe quizera
+bem, porque cedera apenas a um capricho.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Quando viu o pae exultando pela ordem de deportação, arrependeu-se
+amargamente Maria de ter voltado a casa.</p>
+
+<p>Só então o morgado quebrára o teimoso silencio, para se dar como
+disposto a tratar a mulher, mas procurando prender assim a filha á
+esperança de salvar a mãe.</p>
+
+<p>Levando Maria para Lisboa, realisaria completamente o seu velho plano.</p>
+
+<p>Mas comprehendia bem que João devia tentar retêl-a, e queria influir
+n'ella astuciosamente, já que pela força nada poderia contra os que se
+firmavam em duas victorias, e esmagavam os adversarios.</p>
+
+<p>Para estar precavido, augmentára o numero de homens de trabalho, a
+pretexto das vindimas, e tinha ali muitos dos guerrilhas do Pico do
+Selleiro, com armas á mão.</p>
+
+<p>Sentia ella os olhares dos guardas, mas não duvidava que, se quizesse,
+João a viria buscar n'um momento.</p>
+
+<p>Ainda <span class="pagenum"><a id="page275" name="page275"></a>(p. 275)</span> a carta d'elle a exaltou por instantes, na seducção da
+aventura, mas repugnava-lhe o coxixar dos mantos apontando-a em
+mancebia; as invejosas, as rivaes voltando-lhe a cara indignadas, e
+mais uma vez impoz-se-lhe o orgulho.</p>
+
+<p>Respondeu-lhe com serenidade, meditando muito as palavras.</p>
+
+<p>Devia continuar como enfermeira da mãe, que adoecera por sua causa, e
+agora ia procurar a cura. Demais, viver com elle, sem casarem,
+tornava-se indigno d'ambos. Era descer, abandalhar-se aos olhos de
+todos, e talvez até aos d'elle proprio. Haviam de unir-se dignamente,
+como mereciam. De outra maneira, não. Só Deus sabia o que lhe custava
+separarem-se, mas, como sua mulher, havia de ser a guarda da sua
+honra, e não podia começar por sacrificar-lhe o bom nome. Se era
+differente das outras, por isso mesmo lhe devia querer mais. Concluia
+insistindo que, da mesma forma, ficariam separados quando elle
+embarcasse na expedição liberal ao continente, e ella ficasse na ilha
+á sua espera. Assim até era melhor, porque iriam encontrar-se em
+Portugal. Até lá, pois, e ou seria d'elle, ou de ninguem.</p>
+
+<p>E como n'essa madrugada em que a chegada do navio, <span class="pagenum"><a id="page276" name="page276"></a>(p. 276)</span> que a
+devia levar, o decidira a declarar-se, João, depois de a ter visto
+embarcar desfallecida, olhos vermelhos, ao lado da cadeirinha da
+entrevada, foi pôr-se á janela.</p>
+
+<p>Viu o barco largar d'entre as escunas da laranja, que baloiçavam como
+berços o leve bojo, finas, veleiras, atrevidas; que fugiam debaixo de
+tempo, antes que o suéste as désse á costa; ou redemoinhavam como
+pedaços de cortiça, quando os inglezes, reconhecendo se impotentes
+para arcarem com a tormenta, fechavam escotilhas e emborrachavam-se na
+coberta, para não darem pelo naufragio.</p>
+
+<p>Oh! Mas d'esta vez iria após ella, como então resolvera, sentindo se
+homem ante o risco de a perder; iria após ella, a essas terras onde
+tudo se decidia, já sem a emulação de outr'óra, integrado nas mesmas
+aspirações dos emigrados, tendo como elles ideias a affirmar, victimas
+a remir.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>Desde então só tem um fito a sua vida, partir como ella, e essa ideia
+fixa mantem-o atravez dos momentos de desanimo que tiram o caracter de
+decisivo ao combate da Praia; a falta de dinheiro, a <span class="pagenum"><a id="page277" name="page277"></a>(p. 277)</span> intriga
+diplomatica, as rivalidades da familia liberal.</p>
+
+<p>E essa obsessão leva-o a consagrar-se como um fanatico á conquista do
+archipelago, com um navio adquirido por subscripção.</p>
+
+<p>Empolga-o a figura prestigiosa de D. Pedro, indo á ilha organisar a
+expedição liberal, pôr-se á frente d'ella; e n'esse imperador de
+trinta annos, que abdicára duas corôas, assignára duas constituições,
+proclamára a independencia de um imperio, fôra grão-mestre da
+maçonaria, e interpretára em dois hymnos a sua ingenua crença liberal;
+n'esse principe, hostilisado em Portugal por ter emancipado o Brasil,
+guerreado no Brasil por se preocupar com Portugal, via agora o
+desenlace do conflicto, pela garantia de ordem que dava á Europa a
+cathegoria do novo general dos que, desde Vinte, se batiam pela
+liberdade.</p>
+
+<p>Todos queriam partir, e os officiaes emigrados, que não cabiam nos
+quadros das forças, constituiram o Batalhão Sagrado, para terem a
+honra de fazer parte do exercito libertador, aonde aos veteranos do
+Rousillon, aos soldados da guerra da peninsula e da legião portuguêsa
+ao serviço de Napoleão, se juntavam os voluntarios de 23, os
+academicos, os <span class="pagenum"><a id="page278" name="page278"></a>(p. 278)</span> alistados agora, os pescados á esquadra,
+estrangeiros vibrantes da indignação que agitava a Europa contra a
+oppressão portugueza, toda a juventude sangrada aos Açores para a
+libertação de Portugal.</p>
+
+<p>Ao partirem da ilha de S. Miguel, onde se concentrára a expedição,
+cantavam enthusiasmados o novo hymno constitucional, que D. Pedro
+escrevera ao vir lançar-se na lucta pela carta outhorgada, pelo throno
+da filha:</p>
+
+<div class="poem">
+<p>
+ Da rainha e da carta o pendão<br>
+ Já nos mares se vê tremular,<br>
+ Nobre esforço que a honra dirige,<br>
+ Vae de Lysia a desgraça acabar.</p>
+
+<p>D'entre a noite no carcere horrendo,<br>
+ Resurgidos ao dia fatal,<br>
+ Inda vertem heroes portuguêses<br>
+ No patibulo o sangue leal.</p>
+
+<p>Nas entranhas da escura masmorra<br>
+ Onde reina da morte o terror,<br>
+ Outros mil inda esperam constantes<br>
+ Igual sorte c'o mesmo valor.</p>
+
+<p>Mesta <span class="pagenum"><a id="page279" name="page279"></a>(p. 279)</span> Lysia em gemidos implora<br>
+ Que as algemas lhes vamos quebrar;<br>
+ Já nas praias as mães lagrimosas<br>
+ Pelos filhos se escutam bradar.</p>
+</div>
+
+<p>A cada quadra repetia-se o estribilho:</p>
+
+<p class="poem">
+ Foge, foge, ó tyranno e não tentes<br>
+ Ferreo sceptro mais tempo suster;<br>
+ Que nas aras da patria juramos<br>
+ Viver livres, ou livres morrer.
+</p>
+
+<p>Como um signal de que o ceu respondia ao appello do hymno</p>
+
+<p class="poem">
+ Nossos votos são carta e rainha;<br>
+ Nosso guia quem ambas nos deu;<br>
+ Defendemos a causa do mundo;<br>
+ É por nós a justiça do ceu.
+</p>
+
+<p>appareceu azul o sol, velado por tons de anil, pondo em tudo reflexos
+ceruleos, casando se ás côres da nova bandeira azul e branca, as côres
+do laço liberal de Vinte, o branco da espuma da onda, o puro azul do
+ceu de Portugal.</p>
+
+<p>Fez-se <span class="pagenum"><a id="page280" name="page280"></a>(p. 280)</span> ao largo temerariamente, em velhos transportes
+comboiados por uma esquadrilha, esse punhado de homens, cerca de sete
+mil e quinhentos, o numero que a tradicção para sempre fixou, n'uma
+commovida gratidão.</p>
+
+<p>Realisava-se emfim o longo sonho do exilio, e, ao saltarem no
+Mindello, prostravam-se os expatriados, beijando o querido solo, cujas
+poças de sangue reflectiam as rubras tintas d'uma nova aurora.</p>
+
+<p>Apertando convulsos as armas fraticidas, com que eram forçados a
+apoiar os gritos de liberdade, os votos de egualdade e fraternisação,
+pediam novas forças a essa terra que ainda defenderiam cobrindo-a com
+o retalho do seu corpo, osculando a na crispação da ultima agonia;
+sentiam-se felizes ao tocarem-a, embora para morrerem n'ella,
+ameaçados por oitenta mil soldados, e pelo fanatismo catholico mantido
+por frades e jesuitas entre as populações a libertar.</p>
+
+<p>Na patria ensanguentada, apunhalada pelos pés das forcas, oscilavam
+garrotados, como pendulos sinistros, marcando á tyrannia a hora fatal.</p>
+
+
+<h2>XII <span class="pagenum"><a id="page281" name="page281"></a>(p. 281)</span></h2>
+
+
+<p>Observava Maria através das grades.</p>
+
+<p>Iam as ruas d'Evora coalhadas de soldados miguelistas, e ao convento
+chegavam novas da retirada de Santarem.</p>
+
+<p>&mdash;É o fim da guerra, descança&mdash;dizia-lhe uma freira de meia edade,
+amarela de cera, vislumbres de juventude no olhar vivo, que tambem
+observava para fóra.</p>
+
+<p>&mdash;De quantas batalhas o tem dito&mdash;respondeu Maria com desanimo.</p>
+
+<p>E lançou um olhar de desesperança á fria cella, nua, sem conforto, á
+cama, á arca, a essa cruz negra que era o sêllo do captiveiro.</p>
+
+<p>&mdash;A <span class="pagenum"><a id="page282" name="page282"></a>(p. 282)</span> guerra prolongar-se-ha como os pesadêlos que me
+endoidecem n'este carcere.</p>
+
+<p>&mdash;Para que has de descoroçoar?</p>
+
+<p>Ouvia-a, muito abatida, sem desfitar os bandos.</p>
+
+<p>&mdash;O peior está passado&mdash;continuou a freira.</p>
+
+<p>E n'um suspiro:</p>
+
+<p>&mdash;És nova, tens vida para tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Ha quanto tempo que m'o diz!</p>
+
+<p>&mdash;Desde que viestes.</p>
+
+<p>&mdash;Não podia ser mais feliz, encontrando tão bom coração.</p>
+
+<p>&mdash;Podias, se me tivesses conhecido mais cedo. Aconselhar-te-ia de
+outra forma, e decerto não estarias aqui.</p>
+
+<p>&mdash;Agora não tem remedio!</p>
+
+<p>Continuavam a olhar para fóra.</p>
+
+<p>&mdash;Admira-me não avistar o pae.</p>
+
+<p>&mdash;Não deve ter muita vontade de ver-te, nem suppõe que terás grande
+gosto em o encontrar&mdash;disse a freira com amargura.</p>
+
+<p>&mdash;O mal que elle me tem feito!&mdash;murmurou Maria.</p>
+
+<p>&mdash;Conheço muito bem o senhor meu primo! Era outro que tal o senhor meu
+pae, Deus lhe perdôe. Tinham mulheres e filhas por escravas, e
+serviam-se d'estas <span class="pagenum"><a id="page283" name="page283"></a>(p. 283)</span> prisões para se desfazerem das filhas
+segundas, para imporem casamentos ás morgadas como nós. Infelizes
+tempos! Desgraçadas que somos!</p>
+
+<p>Fixou Maria novos grupos, e perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Se o pae continua a acompanhar D. Miguel, como desde que saiu
+desesperado d'aqui, deve ter vindo com elle.</p>
+
+<p>&mdash;Sim. Ha de estar na cidade.</p>
+
+<p>&mdash;Só se lhe succedeu alguma coisa...</p>
+
+<p>&mdash;Quanto a isso está descançada. O infante viu a guerra de longe, não
+é como o senhor D. Pedro, que acode ás baterias debaixo de fogo,
+aponta as peças como um artilheiro, e apparece no ardôr da peleja a
+animar os seus.</p>
+
+<p>&mdash;A não ser da vez que foi ao Porto para incitar o cerco...</p>
+
+<p>&mdash;Que por signal andou abandalhando-se em Braga, com mulheres de má
+nota, fazendo flostrias a cavallo para lhes agradar, emquanto que
+outros morriam pela sua teimosia de ter cadeias atulhadas de
+innocentes, e conventos cheios de desgraçadas como nós.</p>
+
+<p>Na preocupação da rua, Maria respondeu:</p>
+
+<p>&mdash;Então é porque não quer ser visto.</p>
+
+<p>&mdash;Sabe <span class="pagenum"><a id="page284" name="page284"></a>(p. 284)</span> os sentimentos que inspira.</p>
+
+<p>E encarando com ella.</p>
+
+<p>&mdash;Não é por lhe querer bem que pensas n'elle, não é verdade?</p>
+
+<p>Maria titubeou:</p>
+
+<p>&mdash;Apesar de me pretender enterrar em vida, apesar do que fez á mãe...</p>
+
+<p>&mdash;Se elle tivesse vergonha nem voltava a esta terra, onde veiu deixar
+os ossos da desgraçada. Soube-se dos seus maus tratos, e todos lh'o
+levaram a mal, acredita. Olha que muitos que se dizem realistas, e o
+applaudem e a outros que taes, é só por medo d'essas viboras, que se
+vingam nos inermes, e fogem a sete pés dos que estão armados.</p>
+
+<p>Maria abraçou-se a ella, chorando:</p>
+
+<p>&mdash;Perdôe-me, D. Anna, mas como lhe hei de querer, se me tem tratado
+cruelmente, se torturou a desgraçadinha, se lançou João no horrôr da
+guerra...</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-o, filha, não penses mais n'elle. É como se tivesse morrido. E
+pede a Deus que ainda lhe possas pagar em caridade, nos seus ultimos
+dias, que os ha de ter bem negros!</p>
+
+<p>&mdash;O mal que lhe desejo me venha a mim.</p>
+
+<p>&mdash;Elle não pensa mais em ti, descança. Ha que tempos não me escreve,
+não me força a responder-lhe n'essas <span class="pagenum"><a id="page285" name="page285"></a>(p. 285)</span> cartas em que te dou a
+caminho da profissão, n'uma vida de penitencia.</p>
+
+<p>&mdash;Tem sido tão bôa para mim.</p>
+
+<p>&mdash;O que mais me custa, Maria, é conter-me, lançar ao papel essas
+mentiras, em vez de lhe dizer as duras verdades que merece!</p>
+
+<p>&mdash;Ninguem o convence.</p>
+
+<p>&mdash;E elle tirava-te logo d'aqui.</p>
+
+<p>&mdash;Se suspeitasse o que a tia tem sido para mim!</p>
+
+<p>&mdash;Não ha remedio senão dissimular, que felizmente ha de ser por pouco
+tempo.</p>
+
+<p>&mdash;Agradeço lhe a bôa intenção, D. Anna, mas já não espero ver fim a
+isto.</p>
+
+<p>&mdash;Pois não vês que a falta das cartas em que elle teimava para que
+professasses, não querendo que um dia viesses a casar, mostra que já
+não tem cabeça para nada? Sempre que os liberaes ganhavam um palmo de
+terreno, apertava-me elle para que te lançassem o habito. Agora não
+tuge nem muge. Que mais queres?</p>
+
+<p>&mdash;Talvez desconfie da sua amizade por mim.</p>
+
+<p>&mdash;Como? se só tu a conheces, e não ha muito tempo, porque ao principio
+fui para ti o que tinha sido para todas, retrahida, reservada! Quando
+me encerraram aqui, os escandalos com que enxovalham a <span class="pagenum"><a id="page286" name="page286"></a>(p. 286)</span> casa
+de Deus, que, como tens visto, serve para as mais torpes devassidões,
+não me desmoralisaram como ao geral das que cá veem parar. Fizeram-me
+conservar á parte, sem me prestar a ditos e mexericos, sem beberetes
+na cella ou na grade, sem dar confiança a nenhuma. Segui sempre com
+sympathia os liberaes, porque bem sabia que elles libertariam as
+pobres enclausuradas. Mas não me manifestei aqui dentro, porque de
+nada servia, como as freiras constitucionaes postas a pão e agua no
+carcere, forçadas a penitencias vergonhosas diante d'essa communidade
+de descaradas, transferidas para longe dos seus. Calei-me sempre, mas
+trago no exercito libertador soldados armados e pagos por mim, por via
+de encubertos liberaes d'esta terra que fazem o mesmo, a occultas,
+para que não os roubem e assassinem.</p>
+
+<p>&mdash;Pois tem feito isso?</p>
+
+<p>&mdash;Tenho. Mas ai de mim se o suspeitassem!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! D. Anna, que tem sido a minha verdadeira mãe!</p>
+
+<p>&mdash;Não quiz que soffresses o que eu soffri. E tenho o gosto de te haver
+salvo de vez. Sem mim, ao teu genio assomado, caías nos enganos que te
+armaram, professavas, e adeus para sempre.</p>
+
+<p>&mdash;E <span class="pagenum"><a id="page287" name="page287"></a>(p. 287)</span> se elle morrer, faço-o, tia!</p>
+
+<p>&mdash;Está a acabar a guerra, foste feliz!</p>
+
+<p>&mdash;Quantas vezes o tenho acreditado, e quantas a realidade me
+entristeceu!</p>
+
+<p>Recordou a sua longa espectativa, passando por alternativas dolorosas,
+ora esperando João no dia seguinte, ora julgando nunca mais o vêr.</p>
+
+<p>Acompanhara-o em espirito, no desembarque no Mindello, e tivera a
+mesma desillusão que elles, ao appellarem para os manifestos, na
+repugnancia de derramar sangue, contando mais com a adhesão em massa
+do que com a dolorosa guerra civil.</p>
+
+<p>Exultára na recepção do Porto, a cidade em delirio, damas de azul e
+branco, lançando mais flores a esses queridos soldados, por entre a
+tempestade dos vivas aos libertadores.</p>
+
+<p>Mas em breve tornaram-se em lagrimas os risos, em crepes os laços
+bicolores, em chuva de granadas as de rosas, e em bravas vivandeiras
+as donzellas, que os realistas offereciam em pasto á soldadesca, como
+premio do assalto.</p>
+
+<p>Como desejaria estar entre ellas, correr animosa ás trincheiras,
+servir polvora e bala aos luctadores, accudir aos feridos, estar ao
+lado de João quando o trouxeram n'uma maca, exangue!</p>
+
+<p>Logo <span class="pagenum"><a id="page288" name="page288"></a>(p. 288)</span> sobre as noticias da entrada triumphal viera a
+sangueira, a chacina dos combates, investidas ferozes contra o Porto,
+e a cidade em risco de invasão, laços constitucionaes deitados fóra,
+gente prestes a fugir pela barra, militares rapando os guerreiros
+bigodes.</p>
+
+<p>Tão pouco estavel era ainda a causa, que d'um momento para o outro se
+receiava a prisão, o supplicio; e os que, como João, luctavam, tinham
+agora a dupla certeza da morte, ou no campo, ou na forca.</p>
+
+<p>Que desditosa influencia a sua n'esse rapaz, arrancado ao socego da
+terra, ao conforto da casa, para dormir ao relento, passar a fome do
+cerco, tremer inquieto sob esse maldito bombardeamento, usado pelos
+miguelistas em requintes de tortura, em tiros descompassados, para
+maior sobresalto, á hora do jantar para tirar o socego da meza, em
+pontaria aos hospitaes para augmentar o horror.</p>
+
+<p>Tremia aos symptomas do cannibalismo da lucta, o prazer do pormenor em
+que um general communicava terem ficado os bravos officiaes do
+Batalhão Sagrado com as cabeças abertas de meio a meio, pelos celebres
+dragões de Chaves que depois se passaram para os liberaes; o auto de
+fé planeado pelos frades <span class="pagenum"><a id="page289" name="page289"></a>(p. 289)</span> de S. Francisco, deitando fogo ao
+convento para queimarem o batalhão de caçadores 5, quando os soldados
+dormiam fatigados da batalha de Ponte Ferreira!</p>
+
+<p>Para a fazerem professar, no interesse do dote, na avidez de dadivas
+do morgado, no odio ao noivo liberal, aggravavam-lhe as freiras as más
+novas, dando os constitucionaes como perdidos, e mostrando o evidente
+castigo do ceu na morte de certos voluntarios academicos, a quem
+attribuiam profanações no convento de Santo Antonio do Livramento, de
+Angra, accusando-os, como outr'ora aos Templarios e aos Judeus, de
+fazerem alvo da imagem do santo no nicho da frontaria.</p>
+
+<p>A todos os momentos receiava a noticia de que João morrera, e um dia
+as freiras, qual mais havia de arreliar «a do malhado», foram dar-lhe
+hypocritas condolencias porque elle recolhera ao hospital, gravemente
+ferido n'uma d'essas teimosas sortidas que dizimavam a guarnição.</p>
+
+<p>Tivera-o por morto, como lhe insinuavam, negando frouxamente, mas
+falando-lhe das consolações que a egreja reservava a todas as dôres,
+insistindo em que se votasse ao divino esposo, já que tão
+misericordiosamente a libertára dos laços do mundo.</p>
+
+<p>Tomára <span class="pagenum"><a id="page290" name="page290"></a>(p. 290)</span> então a tia, para com a abbadessa e as mais ferozes
+madres, o compromisso de a decidir, e, recolhendo se a catechisal-a,
+abrira-se com ella.</p>
+
+<p>Começára por uma reprehensão, em que o olhar brilhára apaixonado, e o
+rosto pallido, enrugado, se fôra animando gradualmente, até dar longes
+de outros tempos, da juventude impetuosa e ardente, do momento em que
+amára e fôra amada, em que se tornára mulher e devia ser mãe.</p>
+
+<p>&mdash;Que mal que fizeste em resistir! Como desperdiçaste a mocidade. Em
+nome d'umas formulas vasias sacrificou-te, e a elle, o teu orgulho! E
+se te morrer? Que recordação te fica para evocares o breve tempo que
+não volta mais?</p>
+
+<p>Insistira, ao vêl-a debulhar-se em lagrimas:</p>
+
+<p>&mdash;Chora, desabafa, que deves sentir um mortal remorso; chora as duas
+vidas que despedaçaste, e convence-te de que nunca o amaste, porque o
+verdadeiro amor não raciocina, porque é a suprema lei da vida, tudo se
+lhe amolda, e elle não!</p>
+
+<p>&mdash;Que hei-de fazer agora, senão professar&mdash;bradava ella,
+arrepelando-se.</p>
+
+<p>&mdash;O teu orgulho ainda! Cala-te, vaidosa, que darias mais uma pessima
+freira. Vive para elle, é o teu dever.</p>
+
+<p>&mdash;Para <span class="pagenum"><a id="page291" name="page291"></a>(p. 291)</span> elle? E se morreu?</p>
+
+<p>&mdash;Vive para a memoria d'elle, mas nunca a dentro d'um mosteiro, porque
+deves lembrar o mal que d'estas casas te adveiu.</p>
+
+<p>&mdash;Então que hei-de fazer?</p>
+
+<p>&mdash;Porque não pensaste em fugir d'aqui, em ires acudir-lhe, pôr-te á
+sua cabeceira, tratal-o, acarinhal-o, cerrar-lhe os olhos se Deus o
+levar, como fazem as fortes mulheres que estão velando o leito
+d'outros feridos, as que não desampararam os maridos na retirada e na
+emigração?</p>
+
+<p>E como ella a olhasse como pasmada:</p>
+
+<p>&mdash;É que ha mulheres, e mulheres; e as mais felizes, como tu, pelo amor
+que lhes dedicam, são afinal as que menos o merecem!</p>
+
+<p>&mdash;Tenha dó de mim, não me trate d'essa fórma!&mdash;supplicava ella.</p>
+
+<p>Então compadecera-se D. Anna, e pedira-lhe, mudando de tom:</p>
+
+<p>&mdash;Não tornas mais a falar em profissão, haja o que houver?</p>
+
+<p>&mdash;Não, não torno.</p>
+
+<p>&mdash;Pois bem. Ouve-me agora serenamente. Que te disseram d'elle? Que
+estava ferido? Pois bem, ha-de curar-se, e eu tenho maneira de saber
+exactamente o <span class="pagenum"><a id="page292" name="page292"></a>(p. 292)</span> seu estado, mas não dês credito senão ao que
+eu te disser, e cala-te com isto.</p>
+
+<p>Depois, n'um enthusiasmo que contrastava com a estudada placidez
+usual:</p>
+
+<p>&mdash;Que elle viva ou morra, os liberaes hão de triumphar, pois ao que se
+tem soffrido não é possivel vencel-os, pelo desespero com que se
+batem. Os conventos acabaram, e temos de saír todas d'estes logares de
+maldição. Mas os votos ninguem os tira, os padres não casarão as que
+os tiverem. E aquellas que perderem a mocidade, já nada do mundo lh'a
+póde restituir!</p>
+
+<p>Então afogaram-a as lagrimas, e revelou-se tal qual era:</p>
+
+<p>&mdash;Tambem me contrariaram um amor. Fugi com o meu noivo, mataram-m'o,
+mas tenho vivido desde então evocando as horas em que me pertenceu. E
+esse amor foi o meu culto aqui dentro, a minha religião, porque a
+outra perdi-a pouco a pouco, ao vêr da parte de dentro os ministros do
+Senhor e as suas esposas, os que communicam com Deus, os
+intermediarios da sua graça, do seu perdão!</p>
+
+<p>Conseguiu D. Anna saber d'elle, e pôl-os em relações. Melhorára
+depressa, era já alferes, e a Torre e Espada assignalara-lhe a ferida.</p>
+
+<p>
+Depois <span class="pagenum"><a id="page293" name="page293"></a>(p. 293)</span> tivera-o a dois passos, na divisão do duque da
+Terceira que atravessou n'um relampago do Algarve a Lisboa, levando
+adiante de si os miguelistas, que fugiram espavoridos d'esses dois mil
+homens, incitando em desforra as populações a tratarem-os como lobos.</p>
+
+<p>E o fanatismo catholico dos soldados e das tropas apunhalou no
+Algarve, queimou vivos e arrastou á cauda dos cavallos os prisioneiros
+liberaes; martyrisou em Beja portadores de ordens; queimou dois
+constitucionaes forçando as irmãs a assistirem á execução; despedaçou
+á machadada trinta e cinco presos politicos no castello de Extremôz,
+incluindo uma creança de seis annos!</p>
+
+<p>Atravessára Telles Jordão o Tejo para fulminar os liberaes, como
+esmagava os presos de S. Julião da Barra, mas ao vêl-os armados,
+decididos, o valentão que esbofeteava os miseros encarcerados, lhes
+sujava a comida e os obrigava a rezar o Terço, fugiu covardemente, até
+que o alcançaram em Cacilhas, vingando os camaradas torturados.</p>
+
+<p>E fugiram de Lisboa os miguelistas que ainda na vespera, em requintes
+de barbaridade, tinham enforcado um liberal, para o impedirem de gosar
+o triumpho dos seus, já na Outra Banda; que haviam ensanguentado
+<span class="pagenum"><a id="page294" name="page294"></a>(p. 294)</span> a cidade em barbaras repressões.</p>
+
+<p>Mas nem d'essa vez findára a guerra!</p>
+
+<p>Os miguelistas, que haviam recusado salvar a esquadra, aprisionada no
+Tejo pelos franceses, dando em troca a liberdade aos afflictos
+prisioneiros voltaram á carga e encheram de cadaveres, de ruinas, os
+arredores da capital.</p>
+
+<p>Saldanha descercára Lisboa, e D. Pedro, em homenagem, mandou collocar
+no pedestal da estatua de D. José o medalhão do avô, o marquez de
+Pombal, que os jesuitas haviam arrancado. E assim a epopeia liberal,
+ligada á obra de Vinte, á tentativa patriotica de 1817, mostrou se o
+logico desenvolvimento da obra de Pombal, que se desenvolvia,
+alargando a todas as ordens religiosas, fautôras do retrocesso,
+incitadoras dos morticinios, a extincção dos jesuitas.</p>
+
+<p>Arrastara-se a lucta sanguinaria, e de retirada em retirada tinham
+vindo parar ali as forças, ainda importantes, que os mais teimosos
+pretendiam levar ao campo, a uma derradeira tentativa.</p>
+
+<p>Olhavam Maria e D. Anna os grupos de soldados, querendo lêr-lhes no
+rosto as decisões d'essa hora suprema, em que as divisões de Saldanha
+e Terceira <span class="pagenum"><a id="page295" name="page295"></a>(p. 295)</span> avançavam contra Evora para os esmagar, ou
+reduzir á rendição.</p>
+
+<p>De dentro chegavam-lhes successivas noticias, andavam já em
+negociações, decidira capitular o conselho de guerra, e estava
+assignada a paz.</p>
+
+<p>Ouviram ao longe o hymno constitucional, confirmando a noticia, e ao
+som da musica, ao ruido atroador dos vivas que se approximavam,
+desappareceram, cabisbaixos, os soldados de D. Miguel, e a rua ficou
+deserta, emquanto ao longe avançava a onda libertadora.</p>
+
+<p>&mdash;E João viria com esses?&mdash;exclamava Maria, em lagrimas de jubilo,
+abraçada á freira.</p>
+
+<p>Ganhára o enthusiasmo a cidade opprimida, dos carceres do convento
+irrompiam freiras desgrenhadas a saudarem das grades a victoria.</p>
+
+<p>Chamaram Maria ao parlatorio, e as duas mulheres desceram logo.</p>
+
+<p>Em vez de João, esperava-as o morgado.</p>
+
+<p>Por excepção não se embriágara, na dôr do derruir das ultimas
+esperanças, e parecia ebrio, cambaleando, pallido, coberto de suor
+frio, o olhar pasmado, as palpebres cerrando-se a meudo.</p>
+
+<p>Custava-lhe a encarar a luz, como se o deslumbrasse a evidencia do
+triumpho.</p>
+
+<p>Depois <span class="pagenum"><a id="page296" name="page296"></a>(p. 296)</span> de saudar ligeiramente a prima, dirigiu-se á filha:</p>
+
+<p>&mdash;Menina, prepare-se para me acompanhar.</p>
+
+<p>Maria recuou attónita. Dava-se o que receiára. Tentava o pae
+reapossar-se d'ella.</p>
+
+<p>&mdash;Aonde, senhor?&mdash;perguntou afflicta.</p>
+
+<p>Fazendo-se forte no ultimo poder que lhe restava, retorquiu o morgado:</p>
+
+<p>&mdash;Não aprendeu a ser obediente? Pois ainda está em edade de se tornar
+bem ensinada. Obedeça-me!</p>
+
+<p>D. Anna falou n'uma voz grave:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, não lhe basta o mal que tem causado? Não se dá por
+satisfeito?</p>
+
+<p>Descarregou Martinho Vasques a colera que para ellas reservara,
+reduzido á impotencia pela convenção de Evora Monte:</p>
+
+<p>&mdash;Que significam essas palavras, prima?</p>
+
+<p>&mdash;Que felizmente já posso desabafar e dizer-lhe tudo o que sinto, sem
+receio de que Maria soffra por minha causa.</p>
+
+<p>&mdash;A prima sempre foi uma doida!&mdash;explodiu elle&mdash;Vejo que fiz mal em
+confiar-lhe minha filha. Mas estou a tempo de emendar o erro.</p>
+
+<p>E voltando-se para Maria:</p>
+
+<p>&mdash;Porque espera? Não ouviu o que lhe mandei?</p>
+
+<p>&mdash;Escusa <span class="pagenum"><a id="page297" name="page297"></a>(p. 297)</span> exaltar-se, senhor&mdash;respondeu a freira&mdash;Esta menina
+está sob a guarda do mosteiro, e só póde saír por ordem superior.</p>
+
+<p>&mdash;Reclamo-a eu, seu pae, com o mesmo direito com que a entreguei.</p>
+
+<p>&mdash;Mas felizmente os seus já não governam, e agora já não se entregam
+victimas aos algozes.</p>
+
+<p>&mdash;Tia!&mdash;interveiu Maria&mdash;pelo amor de Deus não o offenda. Bem lhe
+basta o seu desgosto.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda não estás pervertida, filha. Pois bem, vamos, que a dignidade
+do teu nome impõe-te o dever de seguires teu pae, embora vencido.</p>
+
+<p>&mdash;É tarde, pae!</p>
+
+<p>&mdash;Que significa isso!</p>
+
+<p>&mdash;Já me sacrifiquei bastante. Não posso mais.</p>
+
+<p>&mdash;Então recusas te a acompanhar-me?</p>
+
+<p>&mdash;O senhor já nada representa para ella. Não quiz sepultal-a viva
+n'uma tumba? Faça de contas que a matou, como á mãe, e retire-se. Quem
+procede como o senhor, perde o direito a ser tratado como pae. E vá
+esconder-se, para não passar pela vergonha de ter a sorte que merece.</p>
+
+<p>Tiniram esporas na portaria, arrastaram-se espadas, e passos d'homem
+subiram a escada do locutorio.</p>
+
+<p>Era <span class="pagenum"><a id="page298" name="page298"></a>(p. 298)</span> João.</p>
+
+<p>Tendo ouvido as ultimas palavras, dirigiu-se respeitoso ao morgado:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, tanto reconheço os seus sagrados direitos, que peço
+respeitosamente a v. ex.<sup>a</sup> a mão de sua filha.</p>
+
+<p>Elle recuou um passo:</p>
+
+<p>&mdash;Vem zombar dos meus cabellos brancos?</p>
+
+<p>Levou a mão ao lado, para arrancar da espada, mas deixou pender os
+braços, desanimado.</p>
+
+<p>&mdash;Quebrei-a na esquina da rua a minha velha companheira para não a
+entregar aos seus. Estou desarmado. Póde insultar-me!</p>
+
+<p>Tinham as duas mulheres abandonado a grade e, correndo á sala das
+visitas, metiam-se de permeio.</p>
+
+<p>João respondeu commovido:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor, acolhemos a todos com o perdão, abrimos os braços aos
+camaradas a quem a sorte das armas foi adversa, e n'esta hora solemne
+não ha logar para rancores. Fraternisam os filhos da mesma terra. Pois
+perdôe-nos tambem v. ex.<sup>a</sup>, e a nossa alegria lhe fará esquecer os
+seus desgostos.</p>
+
+<p>Dava as mãos a Maria, devorando-lhe com os olhos o rosto muito branco,
+onde as olheiras pareciam mais fundas, e a dentro d'ellas maiores os
+bellos <span class="pagenum"><a id="page299" name="page299"></a>(p. 299)</span> olhos claros, que a melancolia enriquecera de
+ternura.</p>
+
+<p>Embevecia-se ella no tostado rosto de João, envolto na fina barba,
+bebendo a vida n'esse firme olhar que adquirira lampejos de energia
+varonil.</p>
+
+<p>&mdash;O vosso perdão não passa de uma caridade de phariseus!&mdash;atirára-lhe
+o morgado em resposta.</p>
+
+<p>Debalde procurava D. Anna convencel-o, emquanto João e Maria se
+contemplavam, anciosos por se abraçarem.</p>
+
+<p>Ainda ella teve coração para sentir o desespero do pae:</p>
+
+<p>&mdash;Fique comnosco, senhor! Na nossa ventura ha logar para si.</p>
+
+<p>&mdash;Não! Não!&mdash;retorquiu teimoso o velho&mdash;Já não tenho filha, já não
+tenho familia! O meu logar é junto do principe proscripto.</p>
+
+<p>Revia D. Miguel na commoção da retirada, abotoado na sobrecasaca azul,
+de chapéu á Napoleão; dando a mão a beijar ao povo fanatisado, com
+cuja ignorancia se identificava, merecendo o mesmo perdão pela
+inconsciencia em que viviam; alheio ás transformações do tempo,
+contando ainda com o milagre; victima tambem, elle o chefe dos
+algozes, victima da mãe quo o incitára, do anterior estado social
+<span class="pagenum"><a id="page300" name="page300"></a>(p. 300)</span> que o educára, o tornára a sua bandeira, o seu symbolo, e
+agora o arrastava comsigo.</p>
+
+<p>João tambem lhe pediu.</p>
+
+<p>&mdash;Não! Não!&mdash;insistia o morgado&mdash;Somos o passado, que não transige!
+Tambem ha de chegar o nosso dia, e S. Miguel Archanjo ha de voltar!
+Adeus, filha desventurada. O meu logar é junto d'elle.</p>
+
+<p>Ainda correram á janella.</p>
+
+<p>Afastava-se aniquilado, braços pendentes, sem o bordão que lhe dava o
+ar magestoso, sem a espada a que se apoiava, desempenando-se;
+irreconciliavel como o passado que ia afogar na sombra do tumulo a sua
+amarga desesperança.</p>
+
+<hr class="third">
+
+<p>&mdash;Só tu me restas, João!&mdash;e Maria deitou-se-lhe ao pescoço.</p>
+
+<p>&mdash;Ha quanto tempo que podia ser!&mdash;queixou-se elle, ainda cioso da
+felicidade esperdiçada.</p>
+
+<p>&mdash;Não te amava tanto como agora! Sinto-o hoje, porque só sabe amar
+quem soffreu muito!</p>
+
+
+<h2>FIM</h2>
+
+
+
+
+<h2>INDICE <span class="pagenum"><a id="page301" name="page301"></a>(p. 301)</span> DOS CAPITULOS</h2>
+
+
+<ul>
+<li>I<span class="ralign60"><a href="#page005">5</a></span></li>
+<li>II<span class="ralign60"><a href="#page025">25</a></span></li>
+<li>III<span class="ralign60"><a href="#page051">51</a></span></li>
+<li>IV<span class="ralign60"><a href="#page075">75</a></span></li>
+<li>V<span class="ralign60"><a href="#page097">97</a></span></li>
+<li>VI<span class="ralign60"><a href="#page121">121</a></span></li>
+<li>VII<span class="ralign60"><a href="#page141">141</a></span></li>
+<li>VIII<span class="ralign60"><a href="#page167">167</a></span></li>
+<li>IX<span class="ralign60"><a href="#page197">197</a></span></li>
+<li>X<span class="ralign60"><a href="#page227">227</a></span></li>
+<li>XI<span class="ralign60"><a href="#page255">255</a></span></li>
+<li>XII<span class="ralign60"><a href="#page281">281</a></span></li>
+</ul>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Os Bravos do Mindello, by Faustino da Fonseca
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS BRAVOS DO MINDELLO ***
+
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+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
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+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
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+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
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+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
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+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
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+
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