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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:35:18 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Agulha em Palheiro + Quinta edição + +Author: Camilo Castelo Branco + +Release Date: December 16, 2008 [EBook #27541] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AGULHA EM PALHEIRO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + +</pre> + + + +<div class="rodape"> +<h3>Notas de transcrição:</h3> +<p><a name="footA" href="#tex2htmlA"><sup>[A]</sup></a> Nesta 5ª edição desta obra detectámos uma falta de texto muito significativa. Parece ter sido removida por descuido do editor, e por isso resolvemos adicionar no local próprio o segmento em falta. Usámos para o efeito o texto da 2ª edição, de 1865, sem alteração ortográfica. Para evidenciar esta alteração marcámos o segmento de texto inserido com entre as marcas [A] e [B], e nesta versão html ainda alterámos a cor de fundo para melhor realçar a diferença.</p> + +<p>Foram ainda encontrados diversos erros de impressão, que por não terem qualquer impacto na interpretação do texto, foram corrigidos sem qualquer nota.</p> +</div> + + +<div style="text-align:center;"> +<span style="font-size: 1.5em;"><span +style="font-size: 1.5em;">OBRAS</span></span> + +<p><span style="font-size: 0.8em;">DE</span></p> + +<p>CAMILLO CASTELLO BRANCO</p> + +<p><span style="font-size: 0.8em;">EDIÇÃO POPULAR</span></p> + +<p><span style="font-size: 1.2em;">XXII</span></p> + +<p><span style="font-size: 1.2em;">AGULHA EM PALHEIRO</span><span +class="pagenum"><a id="pag_225" name="pag_225">[2]</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<div> +<p style="text-align:center;">VOLUMES PUBLICADOS</p> + +<div id="lista_coleccao"> +<p>I—Coisas espantosas.</p> + +<p>II—As tres irmans.</p> + +<p>III—A engeitada.</p> + +<p>IV—Doze casamentos felizes.</p> + +<p>V—O esqueleto.</p> + +<p>VI—O bem e o mal.</p> + +<p>VII—O senhor do Paço de Ninães.</p> + +<p>VIII—Anathema.</p> + +<p>IX—A mulher fatal.</p> + +<p>X—Cavar em ruinas.</p> + +<p>XI e XII—Correspondencia epistolar.</p> + +<p>XIII—Divindade de Jesus.</p> + +<p>XIV—A doida do Candal.</p> + +<p>XV—Duas horas de leitura.</p> + +<p>XVI—Fanny.</p> + +<p>XVII, XVIII e XIX—Novellas do Minho.</p> + +<p>XX e XXI—Horas de paz.</p> + +<p>XXII—Agulha em palheiro.</p> +</div> + +<p><span class="pagenum"><a id="pag_3" name="pag_3">[3]</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<div id="capa"> +<p><i><span style="font-size: 1.5em;">CAMILLO CASTELLO BRANCO</span></i></p> + +<p> </p> + +<p><span style="font-size: 2.5em;">AGULHA EM PALHEIRO</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p><i>QUINTA EDIÇÃO</i></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>LISBOA<span class="small-caps"><br> +Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA</span><br> +<span style="font-size: 0.8em;">LIVRARIA EDITORA</span><i><br> +Rua Augusta, 50, 52 e 54</i><br> +1904<span class="pagenum"><a id="pag_4" name="pag_4">[4]</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<hr> + +<p>LISBOA<span class="small-caps"><br> +Officinas Typographica e de Encadernação</span> <br> +<span style="font-size: 0.8em;">Movidas a vapor</span><i><br> +Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º</i><br> +1904<span class="pagenum"><a id="pag_510" name="pag_510">[5]</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<h2>DEDICATORIA</h2> + +<h3>Ao poeta das creanças, das flores, do Amor, da Melancolia e dos +desgraçados</h3> + +<p>AO ILL.<sup>mo</sup> E EX.<sup>mo</sup> SR.</p> + +<h2>ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h2> + +<h4>Honra da Patria, honra dos que o prezam, e amam a Patria</h4> + +<h4>OFFERECE</h4> + +<h5>O AMIGO, O RESPEITADOR, O DISCIPULO MAIS DEVEDOR</h5> + +<p><i>Camillo Castello Branco.</i><span class="pagenum"><a id="pag_61" +name="pag_61">[6]</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h1><a name="SECTION0010">DUAS PALAVRAS</a></h1> + +<p>A primeira edição d'este romance saiu de uma typographia do Rio de +Janeiro. Parece que houve proposito em desdourar os prelos brasileiros! +Poderá parecer tambem que se intentou desdourar o auctor; mas semelhante +suspeita não vingaria, attendendo a que não é coisa verosimil alguem escrever +assim. O que mais depressa poderia crer-se seria que o escriptor mais +fleumatico morresse de fulminante desgosto, vendo a sua obra tão damnificada, +e suja de todas as nodoas, para lavagem das quaes se crearam as quatro partes +constitutivas da grammatica.</p> + +<p>Imprime-se o livro, como o auctor escreveu o manuscripto, e chama-se +<i>segunda edição</i>, porque o titulo e substancia da obra está no livro +publicado no Brasil.</p> + +<p> </p> + +<p>Porto, janeiro de 1865.<span class="pagenum"><a id="pag_8" +name="pag_8">[8]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0020">AGULHA EM PALHEIRO</a></h1> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0030">I</a></h1> + +<p>Em 1803, o sapateiro de Manuel Maria Barbosa du Bocage era Francisco +Lourenço Gomes, estabelecido na calçada do Sacramento, em Lisboa.</p> + +<p>Francisco Lourenço era, n'aquelle tempo, rapaz de dezoito annos; mas, por +sua muita esperteza e actividade, merecera que o pae lhe confiasse a gerencia +da loja, grandemente afreguezada.</p> + +<p>Os poetas notaveis do tempo calçavam todos de casa de Francisco Lourenço; +um só, porém, o maioral de todos, o repentista Bocage, calçava gratuitamente. +</p> + +<p>Os coevos do poeta recordam-se de o terem visto quasi sempre mal entrajado +de casacas, pantalonas e chapéos: mas, no tocante a botas, dizem todos que o +vate Elmano primava em aceio, e raro dia saía á rua com ellas sem muito +lustro de fina graxa.<span class="pagenum"><a id="pag_10" +name="pag_10">[10]</a></span></p> + +<p>Este accidente da vida de Bocage, omittido nas biographias do immortal +improvisador, escriptas por Castilho e Rebello da Silva, tive eu a fortuna de +apanha-lo casualmente. Assim, pois, se explica a distincção das botas de +Manuel Maria entre as dos seus collegas e rivaes do botequim Nicola: +Francisco Lourenço, o sapateiro dos casquilhos d'aquelle tempo, era amante de +versos. Principiára saboreando as trovas chôchas de José Daniel; e ditosa +correra a vida pedestre ao infausto poetrasto, em quanto a admiração do +sapateiro lhe foi prodiga de botas; quando, porém, o moço ouviu Bocage +improvisar na festividade de Corpus-Christi, fatal hora badalou para o auctor +do <i>Almocreve das Pêtas</i>, que nunca mais encontrou graça no seu Mecenas +de bezerro e sola.</p> + +<p>O enthusiasta de poesia presenteou Bocage com umas botas, e a quitação de +dois remontes que lhe devia. O poeta, não vezado a taes galhardias do vulgo +profano, posto que a pouco mais subisse a capacidade do <i>claro auditorio +seu</i>, retribuiu a generosidade do moço com prosa chan, mas muito mais +sincera e cordeal que os versos.</p> + +<p>Francisco tomou a cuidado seu mandar todas as manhãs buscar o calçado do +poeta predilecto, e devolver-lh'o brunido e lustroso como um espelho; e, +apenas as solas se gretavam ou os saltos iam entortando, logo novas botas, em +fazenda e feitios primorosas, iam saudar o vate acordado para um novo dia dos +seus desvairados prazeres de praças e tavernas.</p> + +<p>A repetição d'estes brindes abriu, no animo generoso<span +class="pagenum"><a id="pag_11" name="pag_11">[11]</a></span> e popular do +poeta, as portas á confiança timida do artista. Francisco Lourenço teve a +honra de almoçar com Bocage no <i>botequim das Parras</i>, e d'aqui sairam +juntos a jantar n'uma horta do Campo-Grande, onde Elmano, fiel aos seus usos +e costumes, bebeu á tripa fôrra, e poetou, consoante o auditorio lhe beliscou +a musa escandecida.</p> + +<p>O sapateiro, instigado por sua doce embriaguez, que era suave e honrada +embriaguez do amor casto a uma prima, revelou ao poeta a sua paixão, e +pediu-lhe umas quadras natalicias para festejar os annos da sua amada. Esta +confidencia rebentou do coração do moço alli pelas alturas de S. Sebastião da +Pedreira. Bocage, sem mais averiguações, entrou n'uma tenda, pediu papel, +disse a Francisco Lourenço que escrevesse, e improvisou torrentes de quadras +que extravasaram da folha de papel almaço. O sapateiro amante chorava de +alegria; e o especieiro ficou pasmado e maravilhado de ter tido em sua loja o +famoso poeta, que era o esfarrapado idolo do povo, como todos os idolos do +povo, que assim os quer esfarrapados, ou tarde ou cedo os esfarrapa, se elles +lhe cáem nas mãos bem ageitados.</p> + +<p>Francisco Lourenço, ao despedir-se do poeta, que ia passar a noite em casa +do marquez de Anjeja, delicadamente lhe introduziu na algibeira do collete +uma peça. Que bizarria de animo! Uma peça seria hoje o primeiro dinheiro que +um editor portuguez offereceria a Bocage pela propriedade de um volume!</p> + +<p>Bem empregados seis mil e quatrocentos réis! A<span class="pagenum"><a +id="pag_12" name="pag_12">[12]</a></span> prima de Francisco, ao ver-se +cantada assim, e, de Maria que era, transformada em <i>Marilia</i>, ganhou ao +primo tamanho amor, que logo d'ali esqueceu sagradas promessas, que fizera a +outro; e tanto foi, que, estando ella a bordar um coração varado por duas +settas em cruz, com o intento de mandal-o ao rival de Francisco, o symbolico +lencinho, dias depois, estava em poder do primo, que o beijava em transporte +de jubilo.</p> + +<p>Bocage via a seus pés o mais ditoso dos amantes confessando que aos seus +versos devia a immensa felicidade, que lhe não cabia no peito. Esta situação, +grata ao genio, reaccendeu-lhe o estro em novas flammas. Um soneto divino +caiu no coração do reconhecido moço, que foi logo d'ahi leva-lo ao coração de +Marilia.</p> + +<p>Esta menina era filha de um colchoeiro da rua Augusta, filha unica, e +esperançada em bom patrimonio—que seu pae, tio materno de Francisco +Lourenço, passava por abastado. Além d'isso Maria Luciana era galantinha, +arranjadeira de casa, prendada, e amiga de ler livros de devoção, e o +<i>Almocreve das Pêtas</i>, e o <i>Anatomico jocoso</i>, obras do engenho +humano, que o bom do colchoeiro pasmava de ouvir, e, com as mãos nas +ilhargas, era todo elle então uma risada, que não ha conta-lo.</p> + +<p>Depois, porém, que Maria Luciana lera os dois poemas de Bocage, que lhe +diziam respeito, o seu poeta valido era o grande cantor, e os livros ao +divino pareciam-lhe coisa de moer a paciencia. A reformada creatura, quando a +mãe lhe tirava das mãos as rimas de Bocage, e a obrigava a lêr o <i>Retiro +espiritual</i><span class="pagenum"><a id="pag_13" +name="pag_13">[13]</a></span> e a <i>Novena de Santa Ursula</i>, zangava-se +tanto lá no seu interior, que chegava a duvidar que Santa Ursula e sua mãe +tivessem senso-commum!</p> + +<p>Não desagradava ao colchoeiro o sobrinho. Seu cunhado, além da acreditada +loja na calçada do Sacramento, possuia no Cartaxo uma quintinha de recreio e +algumas terras lavradias, e vinhedos herdados e adquiridos pelo officio. O +rapaz desempenhava, em annos verdes, o bom governo da loja, e mostrava +tendencias a ganhar freguezia de gente limpa, com quem elle se relacionava. +Porém, estas boas predisposições eram rijamente contrariadas pela funesta +noticia, que lhe chegara aos ouvidos, e vinha a ser: o escandalo de ter ido o +moço algumas vezes almoçar ao botequim das Parras, em companhia de poetas! +Esta reluctancia durou dois annos, ou mais; mas, a final, como quer que Maria +perdesse a saude e amarellasse, o colchoeiro, que não tinha outra filha, +deixou-a casar, dotando-a com seis mil cruzados.</p> + +<p>No fausto dia do casamanto, Francisco Lourenço foi convidar Bocage para +jantar em sua casa. O poeta estava enfermo; prometteu ir n'outro dia, se não +morresse d'aquella aneurisma que o tinha nos umbraes da eternidade. As portas +da eternidade, porém, estavam a abrir-se, n'aquella hora, ao mais inspirado e +desditoso genio que ainda viram portuguezes, sendo tantos os inspirados e +desditosos á competencia de desgraça com elle!</p> + +<p>Poucos dias depois, n'esse anno de 1806, morreu Bocage.</p> + +<p>Francisco Lourenço chorou-o, como se ás lavaredas<span class="pagenum"><a +id="pag_14" name="pag_14">[14]</a></span> d'aquelle incendio d'alma tambem +elle tivesse aquecido os embriões do seu talento. O artista não era poeta, +nem tinha o parvulez de crer-se tal porque adorava Bocage. O que elle tinha +era a paixão do bello, com a entranhada magua de não ter sido educado e +guiado por aquelle rumo de magestosa desgraça. Bem sabia elle que Luiz de +Camões morrera sem lençol em que amortalhar-se, e Antonio José da Silva n'uma +fogueira, e Maximiano Torres nos presidios da Trafaria, e Garção na cadeia, e +Quita na indigencia, e Bocage no desamparo. Sabia-o, e invejava a brilhante +desdita de taes destinos, ao passo que os grandes de entendimento rojavam aos +pés dos grandes da fortuna seu ignobil servilismo para não emparelharem na +invejavel miseria com os Camões e os Bocages.</p> + +<p>Quando acontecia Francisco Lourenço dar largas a sua candida alma, +lamentando o mau fim dos grandes espiritos em Portugal, os freguezes, que o +ouviam, disfructavam-n'o, como hoje se diz, e iam chancear á custa do sincero +artista. A voga, que lavrou da sua mania lamuriante, grangeou-lhe freguezia. +Os peraltas e piza-verdes iam, acintemente, ás chusmas tomar medidas de +botas, buscando azo de o moverem á costumada dissertação. Muitos o ouviam +discorrer tão de sizo em tal materia, que saiam mais commovidos que dispostos +a motejarem a louvavel sensibilidade do moço. Aos mais intimos ou mais +velhacos recitava elle as quadras natalicias, que Barbosa du Bocage +improvisara em S. Sebastião da Pedreira, e o soneto posterior, ao qual o +coração de sua mulher de todo em todo se rendera.<span class="pagenum"><a +id="pag_15" name="pag_15">[15]</a></span> Estes eram os que divulgavam, como +ridicula, a confidencia do sapateiro; e nunca lhe perdoaram ter elle na sua +sala, impressa em pergaminho, e encaixilhada em retabulo dourado, a estrophe +do epicedio a Elmano, por Francisco Manuel do Nascimento, que dizia assim em +linguagem de anjos:</p> + +<blockquote> + «<span class="small-caps">Elmano</span>! oh! <span + class="small-caps">vate</span>! A abelha em teu moimento, <br> + Sempre o seu mel componha! <br> + Manná dos céos, e balsamos da Arabia <br> + Alli distillem; louros enverdeçam, <br> + Heras, nevados lirios! <br> + Basto rosal, com mil botões o abrace! <br> + Mangerona, tomilho e a flôr vermelha <br> + Que annuncia em queixumes <br> + De Ajax a dôr, n'um ai tinto em seu seio! <br> + Do Sado as Nymphas, nymphas do aureo Tejo <br> + E as indicas Nereas <br> + Com lagrimas a campa lhe humedeçam!» <br> + ............................................ </blockquote> + +<p>Francisco Lourenço recitava com lagrimoso enthusiasmo estes versos, e como +thema os tomava para maldizer a nação e o governo que deixavam morrer de fome +de pão e da patria o auctor de tão doridos queixumes, o exilado Filinto +Elysio. E d'isso riam os casquilhos, os miseraveis cujo nome ninguem sabe, e +cujos netos a gente não conhece, quando os topa ahi por esse Chiado e Rocio, +cascalhando, com seus avós, umas risadas alvares, unico symptoma de vida +intellectual que dispensam n'esta sua pasagem sobre o globo, que é d'elles e +das moscas.</p> + +<p>O pae de Francisco Lourenço afez-se a ouvir o<span class="pagenum"><a +id="pag_16" name="pag_16">[16]</a></span> filho fallar de poetas, e +achava-lhe razão. Ouvia-o queixar-se da nenhuma educação litteraria que +tivera, e sentia sinceramente não ter aproveitado as tendencias de Francisco. +Dizia elle:</p> + +<p>—Olha, rapaz, eu tinha um parente, que ia muito bem com a sua vida, em +quanto olhou pela loja de mercearia que seus paes lhe deixaram. Depois +assentou o pobre Francisco Dias Gomes em se fazer poeta, e deixou ir o +negocio pela agua abaixo, a ponto de deixar para ahi a familia pobre. As +obras d'elle andam impressas por esse mundo á custa da academia; mas isso não +remedeia, em quanto a mim, a pobreza da familia. Ora eu, como tinha este +exemplo na familia, resisti á tua e á minha inclinação. Achei que o melhor +era dar-te o officio que me deu a mim muito trabalho com bom estipendio, e +vida socegada. Já agora, Francisco, o remedio é conformares-te com a tua +sorte. Se gostas de ler, lê, que eu não te levo isso a mal; mas bom será que +olhes sempre para o essencial, que é a loja. Deixa-te de acamaradar com gente +de outra laia, que a final ha de dar-te mau pago. Trago cá as minhas +desconfianças de que muitas pessoas veem aqui fallar comtigo em poesias, e +vão lá para fóra zombar de ti. Eu, que t'o digo, é por que alguem m'o disse. +Lê os teus livros no teu quarto; mas na loja, se alguem te fallar em versos, +fala-lhe tu em botas. Cada qual no seu officio. Ora agora, como estás casado +e pódes ter filhos, farás o que melhor entenderes: educa-os como quizeres, +que eu, graças a Deus, hei de deixar-vos o necessario para fechardes a loja, +e cuidar n'outro modo de vida.<span class="pagenum"><a id="pag_17" +name="pag_17">[17]</a></span></p> + +<p>Desde este dia Francisco Lourenço comediu-se nas palestras litterarias. Os +disfructadores deram tento da reforma, e foram rareando a pouco e pouco. Se o +provocavam a discorrer sobre Camões, Bocage ou Filinto, o ajuizado Francisco +lançava mão da craveira, e dizia:</p> + +<p>—Já não conheço de versos; agora o que sei é medir pontos de pés.</p> + +<p>—Spondeus ou dactilos? atalhou um faceto de mais presumido chiste.</p> + +<p>—Pés de toda a casta, replicou Francisco, pés mesmo dos que são a quatro +em cada sujeito, como posso provar a vossa senhoria.</p> + +<p>O farçola entendeu que o sapateiro lhe chamava quadrupede: suspeita bem +cabida, mas não cabalmente averiguada.</p> + +<p>O certo é que este freguez deixou de o ser de Francisco Lourenço; e outros +de sua roda se afastaram tambem, visto que o mestre se esquivava a ser pasto +de seus ocios.</p> + +<p>Que selvagens tempos aquelles!</p> + +<p>Francisco Lourenço, se vem cincoenta annos depois, sem embargo de ser um +habil sapateiro, poderia entrar dignamente na republica das lettras: +começaria versejando, em solteiro, estas faceis quadrinhas, cheias de fogo e +alma, com que todos os marechaes das lettras velaram as armas, ao vestirem-se +cavalleiros para a crusada da civilisação. Depois escreveria o seu folhetim, +variado em côres, como um mosaico de differentes linguas, e com atrevimento +de idéas, que forçariam a critica a qualifical-as de originalidades. +Francisco Lourenço teria uma luneta,<span class="pagenum"><a id="pag_18" +name="pag_18">[18]</a></span> um charuto, e um bigode encerado, e uma esquina +alli no largo de Camões onde encostar os hombros, vergados sob o peso da +cabeça prenhe de idéas. Depois, naufragado o coração, Francisco Lourenço iria +salvar a humanidade, com o seu septicismo, nas regiões da politica. Faria, +portanto, a um tempo botas para os pés, e sciencia para a cabeça da +humanidade. Se absurdos fados o bafejassem, Francisco Lourenço subiria a +ministro, e ninguem lhe perguntaria d'onde veio, nem a tripeça ainda quente +lhe seria desdouro. Esta é a unica vantagem que a civilisação tem trazido +para a fusão dos homens n'um só principio derivativo do pae commum. Cá, tanto +faz vêr do acume das grandezas cair um homem no raso da lama, como erguer-se +da lama um homem ao mais culminante da escala social. Ninguem se espanta, nem +sequer pára a discutir estes vulgares accidentes da reformação social.</p> + +<p>Isto assim é que é bom.<span class="pagenum"><a id="pag_19" +name="pag_19">[19]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0040">II</a></h1> + +<p>Posto que a leitura lhe deliciasse muitas horas do dia e noite, Francisco +Lourenço cuidava attentivamente no bom regimen de sua casa. Era elle quem +talhava a obra superior, e a distribuia aos officiaes, quem recebia as damas +freguezas, e com muito bom modo satisfazia seus caprichos. Os dias +sanctificados passava-os com sua mulher e pae no Cartaxo, onde ia formando +deposito de livros, <i>amigos da velhice</i>, como elle dizia. Tencionava +Francisco ir lá passar o ultimo quartel da vida, empregando-a, sem outras +distracções, no enlevo dos bons auctores que ia conhecendo.</p> + +<p>A carinhosa esposa ajustava perfeitamente com os prazeres intellectuaes de +seu marido. Nunca elle descobriu pagina de livro encantador que a não lesse a +sua mulher. Como não tinham filhos, sobejavam os ocios do arrumamento das +coisas domesticas.<span class="pagenum"><a id="pag_20" +name="pag_20">[20]</a></span> Maria sentava-se a costurar, nas noites de +inverno ao lado da banca de seu marido. Elle recitava com emphase, e ella +chorava ou admirava-se com delicado sentir do coração ou espirito. A +<i>Cantata de Dido</i>, a pagina mais maviosa entre as mais inspiradas da +poesia portugueza, já ella a sabia de cór, á custa de ouvi-la e honra-la com +as suas lagrimas. Ouvira ella ler todos os poetas nacionaes antigos e do seu +tempo, excepto José Agostinho de Macedo, que Francisco aborrecia por ter sido +o detractor de Camões, e o émulo atrevido e torpe de Bocage. O artista, +quando acertava de encontrar o frade graciano, sentia calafrios na espinha; +e, segundo elle dizia, vontade de escorchar com um pontapé aquelle ôdre de +vinho e peçonha.</p> + +<p>Em 1816, dez annos depois de casado, Francisco Lourenço agradecia a Deus a +felicidade do primeiro filho, quando o já não pedia nem esperava.</p> + +<p>—Ainda estou em edade de poder educal-o, e vel-o homem—disse o festivo +pae a sua mulher.—Tenho vinte e nove annos: quando meu filho tiver a minha +edade, posso ainda viver, como vive meu pae, sadio e robusto. Já sei para +quem estou enriquecendo esta livraria. A minha velhice ha de ser um descançar +em leito de rosas. Irei d'este mundo, deixando na alma de meu filho uma boa +porção da minha essencia.</p> + +<p>Não deve o leitor duvidar d'esta linguagem levantada em bocca do artista. +As mais vulgares e rasteiras coisas da vida, naturalmente, se haviam vestido, +em seu espirito, com as galas da poesia, cujo perfume lhe rescendia em tudo. +O seu permanente<span class="pagenum"><a id="pag_21" +name="pag_21">[21]</a></span> privar com poetas, ou com a natureza, mãe de +todos, e mais mãe dos que a amam sem lhe devassarem os segredos, +necessariamente influenciariam a singela alma do homem, que para sentir +vibrar as cordas todas da poesia, estava nos primeiros arrobamentos de pae. +</p> + +<p>Por esse tempo falleceu o velho Lourenço e o pae de Maria. A herança de +ambos daria sobeja independencia a Francisco; porém, a existencia da creança, +dilatando o alcance das ambições paternas, desviou-o do antigo proposito de +passar a loja, e ir viver folgado em sua quinta. Um filho é realmente um +aguilhão que aperta os temperamentos mais desleixados em grangeio de bens de +fortuna. Já lhe queria parecer a Francisco Lourenço que quarenta mil cruzados +em propriedades era pouco patrimonio para o seu Fernando; e quando bastasse a +um filho, quem saberia os filhos porvindouros? Se fossem mais de quatro, +reflectia o pae, pouco menos de pobres ficariam todos. Entendeu, pois, em +proseguir no trabalho, afanar-se cada vez mais, encurtar as horas de leitura, +e augmentar o numero de officiaes, a fim de exportar calçado para o Ultramar. +</p> + +<p>No anno seguinte nasceu uma menina, e outra no anno immediato. Sem querer +desagradecer a Deus, Francisco desgostou-se da duplicada mercê das meninas. +Andava elle scismatico e melancholico a escogitar no futuro que havia de +preparar a suas filhas. O bom homem cuidava que sem educação scientifica +ninguem podia ter futuro; e lamentava não poder crear suas filhas, pondo o +fito nas Bernardas Ferreiras de Lacerdas e Violantes do<span +class="pagenum"><a id="pag_22" name="pag_22">[22]</a></span> Céo, litteratas +famosas que o leitor conhece. Acudia a senhora Maria Luciana ás tristezas de +seu marido, dizendo-lhe que as meninas podiam ser freiras, e instruirem-se no +seu convento. Isto consolava as tristes apprehensões do pae; mas era ainda +pouco para allivial-o do desgosto de não ter filhos, que podessem ser tres +grandes poetas, ou, ao menos, tres sabios que é um grau de sciencia muito +mais facil de attingir, no voto d'elle, e no meu tambem.</p> + +<p>Fernando, aos quatro annos, frequentava as primeiras lettras; aos nove +annos estudava latim com admiravel intelligencia; assim, até aos dezeseis, +cursou humanidades, no intento de ir graduar-se a Coimbra.</p> + +<p>N'esta edade Fernando conhecia os poetas latinos e portuguezes: lia uns +com seu pae, e traduzia-lhe os outros, explicando os pontos obscuros de +Horacio e Ovidio.</p> + +<p>Grande era o dissabor do moço, quando vinha das aulas, e via, atravez da +vidraça que abria para o pateo, seu pae talhando o bezerro de umas botas ou o +duraque de uns sapatos. Ia elle ter com sua mãe, e pedia-lhe que aconselhasse +o pae a passar a loja, e remediar-se com o bastante, que já tinham para +viverem em decente mediania. A boa mãe não se esquivava de pedir tal coisa; +mas admoestava Fernando a evitar quanto podesse mostrar-se envergonhado do +officio de seu pae.</p> + +<p>O imprudente moço não deu o devido peso ás reflexões da mãe, e insistiu no +seu desgosto e rogos. Bem póde ser que os condiscipulos lhe atirassem á cara, +como despique de inveja dos progressos<span class="pagenum"><a id="pag_23" +name="pag_23">[23]</a></span> d'elle, o seu nascimento humilde. Aquelles +tempos eram infamados com muitos exemplos d'este barbaro quilate. Á peonagem +nem a muita riqueza a salvava dos remoques da fidalguia. Nos collegios, os +mestres eram os primeiros a darem o exemplo das preferencias. A applicação no +moço da baixa tracção era menos louvada que a preguiça no escolar de familia +illustre. Este escarneo do Evangelho chegava até Coimbra, onde se degladiavam +primazias de nobreza, e só com muita paciencia para ultrages e desprezos, +conseguia formar-se o filho do artifice, que não se abalançava a entrar em +communhão de sciencia com os privilegiados da boa fortuna.</p> + +<p>É, pois, de crêr que Fernando Gomes, matraqueado pelos condiscipulos, +desejasse que seu pae levantasse mão do officio de sapateiro, que mais que +outro qualquer—sem podermos dar razão do porque—se presta á zombaria nas +facecias dos chocarreiros.</p> + +<p>Aventurou-se, um dia, Fernando a pedir ao pae que fechasse a loja.</p> + +<p>—Porque?!—perguntou Francisco Lourenço.</p> + +<p>—Porque...—tartamudeou o filho—se meu pae quer formar-me... não me +parece...</p> + +<p>—Diz, homem!—acudiu o pae á indecisão de Fernando, com semblante +transtornado—não te parece o que?</p> + +<p>—Que seja bom ter loja de...</p> + +<p>—De sapateiro?... parece que te custa a dizer a palavra <i>sapateiro</i>! +Sapateiro, sim!... Queres tu dizer que te envergonhas do officio de teu +pae?<span class="pagenum"><a id="pag_24" name="pag_24">[24]</a></span></p> + +<p>Fernando baixou os olhos e não respondeu; mas o silencio era, no caso, a +mais eloquente das confirmações.</p> + +<p>—Está bom—disse Francisco—descança que se ha de remediar tudo o melhor +que puder ser. Hoje não vaes á aula. Amanhã falaremos.</p> + +<p>Francisco Lourenço fechou-se no quarto com sua esposa, e, antes de referir +o que passara com o filho, rompeu n'um choro soluçante, que a consternada +mulher não sabia como explicar nem consolar.</p> + +<p>Falaram largo tempo. O marido saíu de melhor sombra. Maria chamou Fernando +e disse-lhe:</p> + +<p>—Deus te perdôe o mal que fazes a teu pae! Eu não quiz dizer-lhe que +fechasse a loja, e tu commetteste a imprudencia de lh'o dizer!... Fernando, +d'esta vez vali-te; mas não caias n'outra. Olha que teu pae é tão bom como +severo. Segue a carreira que elle te dá, e deixa-o lá com a sua vida. Cuidas +que teu pae acha prazer em estar na loja a trabalhar? Enganas-te. Bem sabes +quanto apaixonado elle é de livros. Se trabalha, para ti é, e para tuas +irmãs. O que temos seria bastante para um, se tivesse juizo; mas seria quasi +nada para tres filhos. Tu não has de querer ser doutor, e ver tuas irmãs sem +nada. Vae á aula; e, se alguem te disser que és filho de sapateiro, +responde-lhe tu que tens muita honra em ser filho de quem és... Póde ser que +os fidalgos, que t'o disserem, te devam a ti o par de botas que trazem ... +</p> + +<p>Estas judiciosas razões não consolaram a Fernando.</p> + +<p>A resposta foi um calado despeito, e uma visagem<span class="pagenum"><a +id="pag_25" name="pag_25">[25]</a></span> de desdem, que Maria viu com os +olhos humidos.</p> + +<p>Decorridos poucos dias, Fernando foi ter com sua mãe, e disse-lhe que não +tornava á aula, porque os seus condiscipulos o vexavam. Descendo a explicar o +vexame por miudos, disse que o filho do conde de tal, zangado com elle por +ter-lhe corrigido um theorema de geometria, lhe replicara qual era a figura +geometrica de uma tomba; e se as entrecospias em logica pertenciam ao +dilemma. A mãe não conheceu o travôr do epigramma. Chamou o marido, e quiz +que o filho repetisse o conflicto diante de seu pae. Francisco ouviu-o, +doeu-se, dissimulou o pesar, e disse-lhe:</p> + +<p>—Irás frequentar outra aula.</p> + +<p>—Acontece-me o mesmo em toda a parte, contrariou Fernando com certo +desabrimento deshumilde.—Emquanto o pae estiver n'este modo de vida, hei de +ser enxovalhado por todos os condiscipulos, tanto monta em Lisboa, como em +Coimbra.</p> + +<p>—Está bom, disse serenamente o pae. Eu vou pensar e resolverei.</p> + +<p>A resolução foi prompta. Francisco Lourenço entrou no quarto onde Fernando +estudava, e disse-lhe:</p> + +<p>—Arruma esses livros, que já te não servem de nada. És sapateiro como teu +pae e teu avô.</p> + +<p>Fernando perdeu a côr, e quasi o sentimento. Francisco Lourenço saíu, e +foi verter torrentes de lagrimas no seio da mulher, exclamando a +intervallos:<span class="pagenum"><a id="pag_26" +name="pag_26">[26]</a></span></p> + +<p>—Lá vão todas as minhas esperanças!... Assim havia de ser, porque ouvi a +voz da minha vaidade, e nunca me lembrei que um filho podia ter vergonha do +officio do pae... Vê tu, mulher, que soberba maldita eu andei gerando e +engrossando no animo d'aquelle rapaz! Se eu lhe désse largas, onde iria dar +comsigo tamanho orgulho! Ahi tens tu a sciencia a desnaturar-me um filho!... +Santo Deus! Bem m'o pregava meu bom pae!... Quantas vezes lhe ouvi dizer que +eu, se fosse um sabio, me correria de o vêr a elle na baixa condição de +sapateiro!... Não posso nem devo consentir que meu filho se deshonre por amor +da sabedoria... Se a sociedade o vexa, paciencia; que fuja da sociedade. Eu +antes o quero sapateiro honrado, que filho infamado pela ingratidão. Façamos +um homem de bem, e os nobres que façam os sabios ... Mas é dôr, é uma grande +afflicção, ter de renunciar ao proposito de tantos annos! É por isso que eu +choro ... e bem vejo que é fraqueza chorar! Tenho pena d'elle; tenho-a de +véras... mas só assim é que eu posso resgata-lo das mãos do mundo, que m'o ha +de perder!</p> + +<p>Maria Luciana tentou demover a intenção do marido com razões, e mais que +tudo com lagrimas. Lembrou ella que o mandassem logo para Coimbra, onde os +condiscipulos o não conheciam. Este remedio azedou mais a ferida do artista. +</p> + +<p>—Pois eu, exclamou elle, hei de estar evitando que o meu nome seja +conhecido?! Hei de esconder-me para que meu filho se não envergonhe? Hei de +recommendar a Fernando que não diga em<span class="pagenum"><a id="pag_27" +name="pag_27">[27]</a></span> Coimbra quem é seu pae, ou consentir que elle +me negue para ser mais bem recebido? Que respondes, Maria? ...</p> + +<p>Não respondeu nada a pesarosa mulher. A dizer a verdade, com que +argumentos responderia ella, sem molestar-lhe o espirito? O ponto mais +sensivel da questão era a dignidade do homem mecanico, trabalhando para +engrandecer o filho. Se este desejo e afan lhe era deslustrado por desprezo +do seu mister, qual gloria lhe restava? Quem lhe asseverava a elle que o +filho, mais tarde, fugiria d'elle como d'um estorvo ao seu maior +engrandecimento?</p> + +<p>Não obstante, Maria chamou o filho, e mandou-o pedir perdão a seu pae, se +não queria ir para a loja trabalhar com os officiaes.</p> + +<p>—E porque não hei de eu ir?!—respondeu placidamente Fernando, com grande +assombro da mãe.—Eu não tenho vergonha de ser sapateiro. Quero sê-lo quando +m'o chamarem.</p> + +<p>—E não te importa o tempo que perdeste a estudar, Fernando?—tornou a +mãe, commovida pela briosa resolução e desapego do filho.</p> + +<p>—Não perdi de todo o tempo: serei um sapateiro illustrado como meu pae o +é. Antes isso. Terei horas de estudo e horas de trabalho. Não receio que me +humilhem na loja.</p> + +<p>Fernando, obedecendo aos novos impulsos do momento, não sabia bem o que +dizia, nem, a menos que a natureza se não houvesse singularisado n'elle, +devia insistir muito tempo em pontos de tão isempta grandeza de animo.</p> + +<p>N'aquelle mesmo dia desceu á officina, e disse<span class="pagenum"><a +id="pag_28" name="pag_28">[28]</a></span> ao pae que lhe talhasse o seu +serviço. O pae encarou n'elle com muita amargura e disse-lhe:</p> + +<p>—Vá para cima!</p> + +<p>Os officiaes olharam-se com espanto, como adivinhando a significação +d'aquelle incidente. Fernando, desde a idade de nove annos, nunca descêra á +casa de trabalho, nem trocára palavra com algum dos officiaes. Estes, por +ironia, e lá muito em secreta maledicencia, denominavam-n'o o +<i>fidalguinho</i>, e riam á sucapa, quando, atravez das portas envidraçadas, +o viam passar no pateo sem lhes virar um canto de olho.</p> + +<p>A situação de Francisco Lourenço era afflictiva. A corajosa apresentação +do filho desarmara-lhe a tal qual ira, que elle muito precisava azedar com a +rebeldia, para tirar a limpo o seu plano. Pensava elle que o estudante +recebera aterrado a nova: não se enganou; mas longe estava de cuidar que a +reacção do brio o determinasse a acceitar sem custo um tirocinio de +sapateiro. A verdade é que ambos estavam enganados: o pae com a franqueza do +filho, e o filho com a sua propria coragem.</p> + +<p>Não sabia Francisco que dizer nem fazer. Evitava encontrar Fernando; mas +forçoso era verem-se á mesa da ceia. O artista não poude engulir bocado. +Maria ensopava o lenço em lagrimas. Fernando, grave, mas não triste, ia +comendo, segundo o seu costume, e fazia o prato de suas irmãs, extranhas ás +amarguras dos paes.</p> + +<p>Quando as meninas, depois de darem graças a Deus, se retiraram ao seu +quarto, Fernando disse com muita brandura:<span class="pagenum"><a +id="pag_29" name="pag_29">[29]</a></span></p> + +<p>—Porque hão de estar tristes?! Eu já disse á mãe que acceito qualquer +posição que meu pae me der. Estou muito em tempo de aprender o officio: se +meu pae não quer que seja o seu, indique-me outro. Vou sem saudades dos +livros, nem pesar de esperanças perdidas em grandezas do mundo.</p> + +<p>—Mas envergonhas-te de ser filho d'um homem do povo!—atalhou o pae.</p> + +<p>—Não me envergonho: vocemecê não entendeu bem a minha magua. O que eu não +posso supportar são as zombarias dos meus condiscipulos, que por força me hão +de encher de fel o coração, e fazerem-me mau. Qualquer que seja o officio +mechanico que me derem, viverei com os meus eguaes, e poderei distinguir-me +d'elles com a minha instrucção, sem que ella me faça alvo dos seus motejos. +Isto é o que eu desejo e penso.</p> + +<p>—Tens dezesete annos, Fernando!—disse o pae—É tarde para recomeçares +nova carreira.</p> + +<p>—Eu me applicarei para ganhar tempo. Não lhe dê isso cuidado, meu pae. +</p> + +<p>—E queres ser sapateiro?</p> + +<p>—Serei...</p> + +<p>Como este <span class="small-caps">serei</span> foi dito! Que livro eu tenho debaixo d'aquella palavra! +Que volume de psycologia, de physiologia de coração, de philosophia +transcendental, de tudo quanto ha ahi attinente ao homem, eu era capaz de +extrahir d'aquelle <span class="small-caps">serei</span>! Da accentuação que +Francisco Lorenço deu á palavra <i>sapateiro</i>, tambem podia formar-se +outro volume psycologico, physiologico, um tractado completo do espirito +homem em todas as suas variantes desde a sinceridade<span class="pagenum"><a +id="pag_30" name="pag_30">[30]</a></span> do santo, até á ironia do demonio +de Goëthe, que era o mais argucioso e ironico argumentador, que o inferno cá +mandou, depois dos enviados que prégaram a distincção entre homem e +homem!<span class="pagenum"><a id="pag_31" name="pag_31">[31]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0050">III</a></h1> + +<p>Aquelle dia e o seguinte passaram em indecisões do pae e do filho. +Fernando esperava as ordens, sem ousar abrir um livro. A pobre mãe andava, de +um para outro, a negociar a reconciliação: ao marido dizia que Fernando não +podia nem devia retroceder: ao filho prégava-lhe sermões de paciencia para +tolerar os ditos dos companheiros de aula, e ter bastante vaidade de ser +filho de um operario honrado. O certo é que Maria com os seus sermões +conseguiu revirar o animo do filho a tal ponto, que o moço, olhou em si, e +viu-se ridiculo por dar tamanho pêso ás chufas dos condiscipulos.</p> + +<p><i>O que a mulher quer, Deus quer</i>: é o titulo de um livro francez, que +póde ser um proverbio em todas as linguas. Francisco Lourenço, com os seus +assomos de louvavel dignidade, ia transtornando a carreira do filho, tão de +longe pensada e afagada; ora<span class="pagenum"><a id="pag_32" +name="pag_32">[32]</a></span> Maria Luciana, em termos brandos, com o imperio +de lagrimas, com aquelle feminil despotismo que tudo amolga e dobra, mais +cedo do que devia esperar-se, reduziu o filho á rasão e consciencia de +verdadeiros brios.</p> + +<p>Não contente ainda, levou Fernando a pedir perdão ao pae de o ter magoado +com as suas vaidosas queixas, promettendo honrar-se em confessar por si +mesmo, e com orgulho, o officio de seu pae.</p> + +<p>Francisco Lourenço resurgiu do seu quebranto, chorou mais doces lagrimas, +e perguntou a Fernando se elle queria ir logo para Coimbra, e concluir lá os +estudos preparatorios.</p> + +<p>Fernando mostrou desejos de ir, e logo os satisfez.</p> + +<p>Não comprehendia a mãe como pudesse ir sósinho, por esse mundo além, um +menino de dezesete annos! Queria acompanhal-o, estar lá algum mez a +ordenar-lhe a casa, ou esquadrinhar familia que lh'o recebesse e tratasse. +Fernando, já sciente do que era vida de estudante, dissuadiu a mãe do seu +proposito, e prometteu regular-se de modo que nem o desaconchego o +molestasse, nem seus paes se arrependessem de o deixarem ir entregue a si +mesmo.</p> + +<p>Fernando tomou casa em Coimbra, e viveu sósinho, e arredado de todo o +concurso de academicos. Esta soledade não era de genio nem gosto. Embora +tivesse elle dito que se honraria de confessar cujo filho era, manda a minha +fidelidade de historiador asseverar, que o moço se esquivava dos +condiscipulos folgasãos para forrar-se á contrafeita honra de se apregoar +filho d'um sapateiro.</p> + +<p>Poucos dias depois de sua estada em Coimbra, organisou-se<span +class="pagenum"><a id="pag_33" name="pag_33">[33]</a></span> o batalhão +academico para ter parte na guerra da restauração. Fernando Gomes alistou-se +sem licença de seu pae. A bandeira hasteada era a da liberdade. As doutrinas +proclamadas eram as da egualdade. O filho do artista sympathisava com a causa +ventilada desde 1820. Ouvira desde creança citar os egregios nomes de +Ferreira Borges e Fernandes Thomaz, arvores frondosas de civilisação, regadas +com o sangue de Gomes Freire, e de outros martyres iniciados da revolução. +Execrava as forcas hasteadas no Porto, tres annos antes, e em Lisboa, para o +supplicio dos academicos. Além de tudo, acorçoava-se do intimo rancor que +votava a fidalgos, por ter sido victima dos escarneos d'elles nas aulas de +Lisboa. Sobejava-lhe causa a justificar o enthusiasmo com que pediu uma +espingarda, e, primeiro que nenhum, se fardou, e impacientou com a demora da +primeira batalha.</p> + +<p>Maria Luciana, quando tal soube, quiz ir em cata do filho: o marido +antecipou-a no intento, e foi a Coimbra. O batalhão academico ia já marchando +caminho do Porto. Francisco Lourenço retrocedeu para Lisboa, cogitando em +mandar soccorros a Fernando.</p> + +<p>Devemos conjecturar, sem receio de erro, que o desembarque do libertador +no Mindello fôra saudado de todo o coração do amigo de Bocage. Francisco +Lourenço, com quanto arredado da phalange dos poetas mortos no começo d'este +seculo, embriagou-se no ambiente d'elles, e bebeu a sorvos a liberdade nos +hymnos propheticos dos timidos evangelisadores, que a não viram, senão ao +longe na inundação sanguinea da França, e nas victorias de Bonaparte,<span +class="pagenum"><a id="pag_34" name="pag_34">[34]</a></span> que abrazavam +allumiando ao mesmo tempo. Bocage devia de muitas vezes romper em apostrophes +contra os frades que o viam amansado nos carceres da inquisição, e nos +cubiculos conventuaes. Póde ser que o humilde amigo do poeta, em expansivas +horas, merecesse a confidencia das amarguras que ennoitaram o melhor da vida +do alquebrado espirito de Elmano. Se isto não bastasse a acrisolar o coração +do homem do povo, quer-me parecer que o velho odio a José Agostinho de +Macedo—energumeno panegyrista das forcas—bastaria a fazer d'elle um +acerrimo <i>malhado</i>.</p> + +<p>Em quanto a mim, Francisco Lourenço abençoara secretamente a deliberação +de Fernando; e, se foi a Coimbra, o intento de tal ida por certo não era +estorvar-lhe o ir onde o melhor da mocidade academica levava suas forças de +alma, e o prestigio da intelligencia, com que muito se move e reanima a força +material das massas. Póde ser que o artista levasse recheadas as algibeiras +de peças para fornecer o moço, e preparal-o para as contingencias de +emigração. Esta hypothese dá em certeza, quando vemos Francisco Lourenço +empenhado com uma casa mercantil ingleza para fazer chegar ás mãos do filho +avultada quantia, que o moço recebeu com alegres hymnos á liberdade ... e ao +dinheiro tambem.</p> + +<p>Fernando Gomes, em todos os recontros com o inimigo, deu provas de grande +e imprudente coragem. Foi duas vezes ferido, e muitas vezes obrigado por +disciplina a retirar do fogo. N'aquellas vertigens de bravura, que tanto +pódem ser desprezo da vida, como culposa ambição de gloria, nenhuma +consideração<span class="pagenum"><a id="pag_35" +name="pag_35">[35]</a></span> de obediencia o retinha em seu posto. Lá, os +camaradas, denominavam-n'o o <i>pequeno diabo</i>, termos que se conformavam +com a pequenez e magreza do seu corpo. O imperador já o conhecia de vista e +de nome: muito fôra preciso para realçar entre tantos bravos, saídos dos +bancos escolares, e quasi todos a competirem em intrepidez com José Estevão +de Magalhães, aquella vivida lampada que ainda hontem se apagou no altar da +patria, se é que das cinzas d'elle a arvore da liberdade não tem sempre de +haurir seiva para reflorescimentos novos.</p> + +<p>Terminada a guerra nas provincias do norte, Fernando Gomes, condecorado +com o habito da Torre e Espada, foi a Lisboa abraçar sua familia, e seguir as +manobras do exercito que rebatia o assedio de Lisboa.</p> + +<p>Depois da convenção de Evora-Monte, e de todo apaziguada a guerra civil, +Fernando tornou para Coimbra a começar sua formatura em direito.</p> + +<p>Proclamada a egualdade, extinctos os privilegios, rotos os diques que +estancavam as prerogativas das raças nobres, e derramado o thesouro das +coisas boas á vida por todos os homens indiscriminadamente, era de esperar +que Fernando Gomes se désse por contente de ter nascido filho de um +sapateiro, visto que o sapateiro ficava social e legalmente egualado ao +titular. Tambem assim o esperava o, ha pouco, valente soldado das linhas do +Porto, e, agora, desvelado e distinctissimo soldado nas lides da +intelligencia!</p> + +<p>Sublime engano!</p> + +<p>Os seus mesmos camaradas, quer invejosos da<span class="pagenum"><a +id="pag_36" name="pag_36">[36]</a></span> condecoração, quer da +intelligencia, uns com outros celebravam sarcasticamente os triumphos do +filho do mestre Francisco Lourenço. Os conterraneos diziam que as suas +melhores botas as deviam ao engenho do sapateiro-poeta da calçada do +Sacramento; os provincianos, pela maior parte oriundos de uns fidalgos de +meia-tigela, como lá dizem uns dos outros, não apertavam, sem repugnancia, a +mão de Fernando, nem se detinham a falar com elle, quando podiam ser vistos e +censurados pelos academicos de Lisboa.</p> + +<p>Isto acontecia um anno depois da restauração dos direitos do homem! Trinta +annos já rodaram sobre esse facto de ridiculas convenções, e o filho do +sapateiro é ainda hoje, e o mesmo será d'aqui a cem annos, um conviva chamado +pela lei a sentar-se á mesa universal; mas a lei é uma tola: lá está o fiscal +d'estas universaes communhões, que tranca os cancêllos do banquete, e diz ao +filho do sapateiro o que já Horacio lhe dizia: <i>ne sutor ultra +crepidam</i>; ou <i>tractent fabrilia fabri</i>, que tudo quer dizer: «não se +admittem sapateiros cá.»</p> + +<p>Fernando recalcava em flagellador silencio o seu pesar. Nem mesmo a sua +mãe se abria. Quando esta lhe perguntava que tratamento recebia de seus +condiscipulos, o academico respondia:</p> + +<p>—Tratam-me bem.</p> + +<p>—Os tempos mudaram—accrescentava o pae.</p> + +<p>—Mudaram; os homens é que não—dizia Fernando; e de salto, aventava +assumpto que désse córte na conversação penosa.</p> + +<p>Proseguiu o moço em sua formatura, e concluiu-a<span class="pagenum"><a +id="pag_37" name="pag_37">[37]</a></span> com ser premiado no ultimo anno, +como em todos tinha sido.</p> + +<p>Suppunha Francisco Lourenço que seu filho, notavel pelos serviços +prestados á restauração, e por seus premios, fosse chamado ás funcções da +republica, sem que as elle solicitasse. Decorreram mezes, sem que o correio +de algum ministro batesse á porta de Francisco Lourenço a procurar da parte +de seu amo o valente e intelligente bacharel.</p> + +<p>O artista, de véras offendido de tamanha incuria, queixou-se d'isso ao +filho. Fernando sorriu da boa fé e crença de seu pae, e disse-lhe que estava +sinceramente arrependido de não ter renunciado ao estudo, quando chegou a +descer á loja para sentar-se entre os officiaes.</p> + +<p>Este arrependimento, sincero ou não, desgostou o pae, e toldou-lhe o rosto +de tristeza inconsolavel.</p> + +<p>Fernando foi ao Cartaxo, onde Francisco Lourenço tinha o melhor da sua +livraria, comprada em nove annos com dispendiosa liberalidade de bibliómano. +Como o local era triste, e a bibliotheca mui convidativa, o bacharel alli +passou um anno, quasi só, raras vezes visitado por seus paes. Leu muito, leu +tudo, e ardeu em desejos de ir vêr os locaes descriptos nos livros de +viagens, e os monumentos perpetuados na historia. Virgilio e Dante deram-lhe +o amor ás ruinas da Italia, Byron ás da Grecia, Lamartine, Chateaubriande e +Volney ás do Oriente.</p> + +<p>Pediu a seu pae moderados recursos para viajar dois ou tres annos. +Francisco Lourenço, antes do filho lh'os pedir, quizera offerecer-lh'os, +pesaroso de o ver assim solitario, e receioso d'algum funesto<span +class="pagenum"><a id="pag_38" name="pag_38">[38]</a></span> resultado em tão +contumaz estudo. Deixa-lo ir, porém, custava-lhe a vida; e a estremosa mãe, +quando era consultada a tal respeito, dava o seu parecer com lagrimas.</p> + +<p>Aos rogos de Fernando nenhumas razões empeceram: Maria Luciana transigiu +com o assentimento do marido.</p> + +<p>Os recursos pedidos eram muito inferiores á liberalidade com que o pae lhe +estipulou o dispendio de dois annos, confiando-lhe, afóra isso, ordens de +quantias indeterminadas. Tal confiança era bem cabida no moço, que durante a +guerra e a formatura, cerceara, ainda de suas mesadas, economias com que +comprava livros de recreio.</p> + +<p>Sahiu Fernando por França em direitura á Italia. Deteve-se em Roma alguns +mezes, que lhe pareceram rapidos e deleitosos. Ninguem o conhecia; a ninguem +procurava. Sósinho, de ruina em ruina, vivia com o passado, e dava +pouquissima de sua admiração ás grandezas do presente. Conversava com Ovidio +em Sulmona, com Virgilio em Mantua, e com Horacio em Tibur. Deliciavam-no +mais as ruinas do theatro de Marcellus, que as pompas do Vaticano. Qualquer +estatua mutilada, extrahida das escavações dos esboroados templos dos idolos, +lhe tomava mais espirito e contemplação que as obras primas de Miguel Angelo. +</p> + +<p>Encontrava portuguezes emigrados n'aquellas paragens, onde D. Miguel de +Bragança procurava hospitalidade á sombra da theara pontifical. O principe de +Portugal, com quanto convisinhasse do Vigario de Christo, que tem as chaves +do céo, não sabemos<span class="pagenum"><a id="pag_39" +name="pag_39">[39]</a></span> se teve fome: as chronicas contemporaneas dizem +que sim. O successor de S. Pedro de certo lhe emprestaria as chaves do céo, +se sua alteza quizesse para lá ir, as chaves porém, dos reaes celleiros e +cofres, essas é que decerto lhe não emprestou. Os papas dão muito mais +facilmente as ambrosias celestiaes, que umas sopas diarias aos principes +proscriptos.</p> + +<p>Não sei se Fernando Gomes pensava n'isto quando via o senhor D. Miguel de +Bragança, e um emigrado portuguez lhe dizia que o rei não tivera com que +comprar leite para o almoço d'aquelle dia. O emigrado que estas miudezas +referia era um major Pacheco, que seguira o seu soberano, espontaneamente, +desde o embarque até Roma. Casualmente o encontrara Fernando por lá escondido +nos pardieiros da Roma dos Cezares, ou meditando nas virtudes de Tito, ou nas +cruezas de Nero. Qualquer das meditações frisariam como o infante desterrado, +que uns chamavam-lhe Tito, e Nero outros, posto que elle não fosse uma nem +outra cousa: era apenas uma creança, quando rei; e um instrumento cego em +mãos de togados infames, de prelados devassos, e de fidalgos estupidos. Desde +que o raio, forjado ao fogo da civilisação e na bigorna mysteriosa do tempo, +o fulminou a elle e aos seus, o filho de Bragança ficou sendo um desgraçado +digno de respeito, de commiseração, e de real parentella mais compassiva e +generosa.</p> + +<p>Ora vejam em que ladeira eu ia escorregando agora: Ahi está o meu pobre +romance guindado a umas alturas de transcendental politica, d'onde<span +class="pagenum"><a id="pag_40" name="pag_40">[40]</a></span> se lhe não +acudo, o coitado vinha abaixo estoirar n'alguma estrondosa parvoiçada! E tudo +isto veio assim de seu natural. Por amor d'aquelle major Pacheco de Lobrigos +que Fernando Gomes topou lá n'umas ruinas do Colyseu, ou cousa assim. E +insisti n'este ponto, porque eu conheci em Villa Real, ahi por 1847, este +major que voltara de Roma poucos mezes antes, e andava esmolando pelo Douro, +com as suas barbas apostolicas, e grandes oculos de metal branco. Depois +tornei a vel-o, estendido na estrada que conduz de Villa Real a Chaves, +traspassado por duas espadas, e com a cabeça fendida até aos dentes. Fôra +assim espedaçado pelas hostes do conde de Vinhaes, que mais acima mandou +espingardear o general miguelista Mac-Donell, a cujas ordens andava o major +Pacheco.</p> + +<p>E como quer que este ancião assim espostejado, e sepultado no adro d'um +presbyterio contiguo á estrada, deixasse uma filha linda e pura como um anjo, +e esta filha enlouquecesse de dôr, escrevi eu n'estes tempos uma elegia em +prosa muito dorida, a qual publiquei no <i>Nacional</i> do Porto. Em tão má +hora dei a lume este testemunho de minha compaixão por os dois infelizes, que +ambos jaziam mortos, e não sei qual d'elles mais cruelmente morto, em tão má +hora digo, que se pude sair vivo das garras dos sicarios, mui pouco catholico +sou em me não ter pesado a cera, e converter esta cera em cirios, e adornar +com estes cirios o altar das liberdades patrias!</p> + +<p>Agora é de mais!<span class="pagenum"><a id="pag_41" +name="pag_41">[41]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0060">IV</a></h1> + +<p>Transferiu-se Fernando Gomes á Grecia. Estanceou com o seu Homero e Byron +de um a outro padrão das fabulosas façanhas, historiadas em Thucidides e +Plutarcho. Viu Grecia degenerada escrava, e de todo perdida para a +resurreição da sua dignidade. Não teve um suspiro que lhe désse em +hemistichio de ode, ou decima de hymno, como toda a gente faz quando carpe um +povo cancellado do mappa das nações livres. «Nações livres!—dizia entre si +Fernando Gomes.—Eu sei cá o que são livres! nem homens livres! Liberdade de +morrer de fome, em toda a parte a ha, graças a Deus e ao progresso! Poemas ao +trabalho e ao artista, em toda a parte se escrevem, graças á metrificação e +aos especuladores ociosos, que deificam o suor e as mãos calosas, sentando-se +em espaldares flacidos, e vedando o accesso de seus gabinetes aos<span +class="pagenum"><a id="pag_42" name="pag_42">[42]</a></span> operarios +suados, calejados e sujos! Em toda a parte se mantem em nome da liberdade, e +se chora em nome da servidão! Oh! meus pobres gregos, deixai-vos viver e +morrer em vossa lethargia, que, se sacudires o torpôr de sobre o peito, virão +depois uns próceres e éphoros, como os antigos, que vos hão de uns pôr o pé +no peito desentorpecido, para subirem ao ponto donde vos atirem para baixo +com muita injuria e muito desprezo da vossa ignobil raça de servos redimidos +por elles!»</p> + +<p>Assim devia falar comsigo e com os gregos o nosso viajante.</p> + +<p>Mezes depois, temos Fernando em Paris, onde o senhorêa profundo fastio. +Muito especial devia ser a compleição de moço de vinte e seis annos, que se +anojava em Paris!</p> + +<p>Passou á Allemanha, marinhou os pincaros da Suissa, e desceu outra vez á +Italia, fatigado d'alma e corpo, triste como um desterrado, saudoso do seu +Cartaxo, saudoso de paes e irmãs; porém sem forças com que aproar no rumo da +patria.</p> + +<p>Estava em Florença: restavam-lhe dois mezes dos dois annos concedidos. +Releu Virgilio e Dante, Petrarcha e Tasso, os seus amigos de Italia, os seus +guias e commensaes, as pallidas sombras que o seguiam até ás regiões +convisinhas do sepulcro, ás tenebrosidades mysteriosas do sonho.</p> + +<p>E hei de eu acreditar (diz a leitora que sabe o que vale) hei de eu +acreditar que Fernando não encontrasse nos mais formosos pontos do globo as +mais formosas creações do universo? Não viu elle uma ou cem mulheres... (cem +<i>senhoras</i>, emendarei<span class="pagenum"><a id="pag_43" +name="pag_43">[43]</a></span> eu, se vossa excellencia permitte) ou cem +senhoras que o tirassem pelos cabellos d'essa escuridade de alma em que o +exquisito moço se engolfava com as pataratas dos Virgilios e Dantes, e outros +que taes pesadelos de um espirito que almeja diffundir-se e embeber-se nas +delicias da poesia, tres vezes santa, do bello ideal!?</p> + +<p>Respondo: tem vossa excellencia razão de estar assim pasmada do homem: eu +tambem, com quanto já saiba a preceito o que é pão bolorento por dentro e +cordas de viola por fóra, começava a espantar-me, justamente no ponto em que +vossa excellencia fez favor de interromper-me.</p> + +<p>Não ha duvida nenhuma: a cousa é muito para assombros. Bravia é a arvore +que aos vinte e seis annos não floresce nem fructifica! Anasada alma deve ser +essa que se dispende toda em extasis de livros velhos e paredes velhas, e +historias revelhas, que nem recontadas por Michelet ou Castilho se podem +aturar. Com um homem assim o romance era impossivel. Quem houvesse de +descreve-lo, iria na piugada d'elle por esse mundo fóra, onde ha plinthos e +peristylos derrocados, e confundi-lo-ia com algum troço de columna corynthia +ou jonica. Fernando seria empolgado pela caterva empedernida dos antiquarios, +que dariam com elle n'este museu de Lisboa, onde não ha nada que o valha, a +não ser o titulo do edificio, que é museu de si mesmo.</p> + +<p>Estava eu, pois, a despenhar-me com o meu estylo espalmado na voragem dos +escrevedores malditos da paciencia humana, quando, n'estes apontamentos<span +class="pagenum"><a id="pag_44" name="pag_44">[44]</a></span> que me dirigem, +encontro o capitulo intitulado: <span class="small-caps">primeira e ultima +paixão de fernando gomes</span>. </p> + +<p>Primeira e ultima! exclamei. Não gosto d'isto! Com uma só paixão hei de eu +encher duzentas paginas! Uma só paixão, n'estes nossos dias, em que vinte e +quatro horas bastam para o prologo e o epilogo da tragedia, se é tragica a +paixão!</p> + +<p>Comecei a lêr desanimado; cobrei esperanças no segundo capitulo; ao +terceiro obrigar-me-ia, sendo preciso, por escriptura, a escrever dois +volumes; ao quarto fechei o manuscripto, e coordenei os apontamentos pelo +theor seguinte:</p> + +<p>Demorava em Florença uma familia portugueza, expatriada por affecta á +realeza absoluta. Compunha-se esta familia de pae e duas filhas. O emigrado +era um ex-desembargador do paço, ministro da Alçada, que assignara o accordão +de pena ultima comminada aos academicos de Coimbra que, em 18 de março de +1828, mataram, no Cartaxinho, os lentes Matheus de Sousa Coutinho, Jeronymo +Joaquim de Figueiredo, e feriram outros que, no dizer do accordão, <i>iam +beijar a mão ao serenissimo senhor infante regente pela sua feliz chegada a +estes reinos</i>.</p> + +<p>Bartholo de Briteiros se chamava o realista. Uma das meninas era Eugenia, +e a outra Paulina. Em quanto á linhagem, estude quem quizer a origem dos +Briteiros, que ha de encontra-la desde logo que as aguas do diluvio universal +se recolheram ao centro do globo, e consentiram que os casaes contidos na +arca procreassem os Briteiros e outras familias do mesmo tamanho genealogico. +No que toca a riqueza,<span class="pagenum"><a id="pag_45" +name="pag_45">[45]</a></span> dizia-se que Bartholo possuia, em cada +provincia de Portugal, duas, e tres e mais quintas: o que eu não averiguei +por me parecer desnecessario.</p> + +<p>O emigrado vivia regaladamente na Praça do Dome, o mais vistoso local de +Florença, servido de muitos creados, em palacio exornado de primosas alfaias +e baixella. O <i>vassallo</i> de D. Miguel de Bragança pompeava faustos de +rei, em quanto seu <i>senhor</i>, o tão chorado principe dos seus amigos, +mendigava em Roma. Este contraste offerece um lado de muita philosophia, que +eu me dispenso de explanar por ter muito amor a quem me lê, e me não lerá, se +eu me entro a enredar em camisa de onze varas... (Cá em Portugal já se não +diz varas: é <i>metros</i>: camisa de quinze metros e vinte e cinco +centimetros, corresponde a isso; por causa da metromania não se ha de perder +o anexim que é expressivo).</p> + +<p>Escreve Méry a respeito de Florença: «Não me espanta que proscriptos e +exilados, violentamente arrancados aos costumes de suas patrias, se lancem +nos braços d'aquella Florença, que é mãe commum dos que padecem, e para todos +se desentranha em palavras consoladoras...» E n'outro relanço das suas +<i>Noites de Italia</i>: «Entende-se facilmente que homens e mulheres de alto +porte, condemnados a exularem, pelo infortunio d'esta epocha tão atormentada, +confluam a Florença de todos os pontos da Europa. O exilio aqui é menos +penoso: não será paradoxo termos em conta de exilados todos os que vivem +longe d'aquella cidade.»</p> + +<p>Bartholo de Briteiros, guiado pelo instincto, e<span class="pagenum"><a +id="pag_46" name="pag_46">[46]</a></span> não pelos viajantes—que o +magistrado não lia viajantes—deu comsigo na formosa Toscana.</p> + +<p>Estanceavam por lá, em 1834, polacos proscriptos e muitos refugiados +nobres da França, cujos exforços se mallograram na Vendéa. O palacio +Orlandini, onde residia o principe de Monfort, irmão mais novo do imperador +Napoleão, era o receptaculo de todos os proscriptos illustres, em +nascimentos, artes e sciencias.</p> + +<p>Bartholo de Briteiros, tinha a illustração triplicada da fortuna. Era +notorio que elle mobilara faustosamente um palacio campestre em <i>Poggi +Bonzi</i>, e d'alli saia de passeio, em graciosa berlinda, com suas filhas, a +<i>Val d'Arno</i>, á <i>Poggia Imperiale</i>, e a quantos pontos convergia a +nobreza toscana.</p> + +<p>Isto lhe dera renome e accesso aos palacios Orlandini, Ricchardi, +Strozzino.</p> + +<p>A formosura das filhas contribuia não pouco para a consideração que o pae +gosava. Eram duas gemmas inestimaveis que sobredouravam a hypothetica riqueza +do fidalgo portuguez. A mais nova era Paulina; quem perguntava porém qual das +duas fosse a mais velha? Cada uma estava n'aquelle desabotoar de +florescencia, e irradiação de graças, que seriam delicias da vida humana, se +cada mulher bella assim, ao tocar os dezesete annos, alli ficasse, +inamovivel, indestructivel, perpetua imagem do anjo, dominadora do tempo, e +assim de gala, para entrar com todo o viço de sua formosura, e esplendor de +encantos, em corpo e alma, na gloria do seu Creador.</p> + +<p>A mãe d'estas duas meninas morrera aos vinte annos,<span +class="pagenum"><a id="pag_47" name="pag_47">[47]</a></span> quando, em +Lisboa, reinava como primeira em belleza. Os dois seraphins, que deixara no +berço, conforme iam crescendo, recebiam do céo os dons soberanos que sua mãe +levara. Aos quatorze d'uma, e quinze annos d'outra, dizia-se que a mãe não +fôra mais linda que ellas.</p> + +<p>O desembargador desvelara-se medianamente na educação litteraria das +filhas. Era elle homem de poucas lettras, e muito dado aos ocios de uma certa +ignorancia, que é o supremo bem d'este mundo pelas muitas e boas horas de +lerda pachorra em que a alma se embala no regaço d'ella. Briteiros sabia de +jurisprudencia o necessario para convencer-se do pouquissimo que necessitava +saber um magistrado palaciano, bemquisto para as alçadas, e braço inflexivel +para hastear patibulos. Chamado sempre para mordomar n'estes festins de +cannibaes, o amigo do throno e do altar via em si um homem dos antigos +tempos, e gloriava-se. A juizo d'elle, os homens dos tempos antigos, eram os +romanos, que condemnavam á morte os filhos, se o bom regimen da patria o +requeria. Não cuidem, porém, que o austero Bartholo de Briteiros frouxamente +acariciava as filhas, ou as affastava de si como cousas incompativeis da +gravidade do seu funccionalismo e meditações. O contrario, de todo em todo. +Brincava com ellas; com uma em cada braço, em quanto meninas até aos nove +annos, andava de sala em sala, e assim recebia as mais circumspectas visitas. +A orçarem por senhoras, nem assim as desquitava da obrigação de brincarem com +elle: escondia-se nas dobras dos reposteiros, e queria que o andassem<span +class="pagenum"><a id="pag_48" name="pag_48">[48]</a></span> procurando. +Muitas vezes saía d'estes brinquedos para assignar ao lavrar o accordão de +uma sentença de forca, muito firme de pulso, e convicto da sua fidelidade aos +principios, á moralisação dos povos, á ordem publica, e á justiça, filha +primogenita de Jesus Christo.</p> + +<p>N'aquelle dia em que o exercito libertador assomou em Almada, e o Telles +Jordão foi espingardeado, Bartholo de Briteiros, ainda duvidoso do +desesperado desenlace da causa que elle julgava vencida por parte de seu rei, +enfardelou á pressa o mais valioso de sua casa, ensacou muito cabedal em +moeda que tinha herdado de avós, prescreveu ordens aos seus mordomos e +caseiros das provincias, e embarcou em navio inglez, ancorado no Tejo, com as +duas meninas palidas de susto.</p> + +<p>Horas depois, saía barra fóra, quando já em Lisboa repicavam os sinos á +fuga do duque do Cadaval, e ao approximar-se o duque da Terceira. A esse +tempo estalavam apedrejadas todas as vidraças do palacio de Bartholo de +Briteiros, ás Amoreiras, e a populaça, a brava e briosa gentalha, +apossava-se, por direito de conquista, da mobilia do desembargador, e +repartia, a soccos fraternaes, o espolio do miguelista.<span +class="pagenum"><a id="pag_49" name="pag_49">[49]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0070">V</a></h1> + +<p>Estava Fernando Gomes em Florença, conforme o seu costume em toda a parte, +sequestrado de toda a convivencia, visitando antiguidades, lendo outras, e +como que mumificando-se a si proprio entre tantas velharias.</p> + +<p>Alguem disse a Fernando que o hospedeiro principe de Monfort mostrava aos +seus visitadores a espada que Napoleão floreara na batalha de Marengo. Posto +que o nosso portuguez presasse muito mais contemplar a lança de Leonidas ou o +punhal de Bruto, não quiz perder o lanço de ver o sabre oriental do maior +capitão do mundo, depois de Alexandre, e Cesar, dizia elle.</p> + +<p>O princepe recebeu-o no gabinete, onde estava escrevendo as suas +<i>Memorias</i>: mostrou-lhe a espada, facultou-lhe o exame dos tropheus +d'armas, recolhidos n'um armario envidraçado; e bem assim<span +class="pagenum"><a id="pag_50" name="pag_50">[50]</a></span> as chaves de +ouro da cidade de Breslaw, quaes o imperador lh'as dera, congratulando-o pela +conquista d'aquella cidade.</p> + +<p>Fernando, incitado a fallar pelo tom familiar do erudito principe, deu de +seu saber muito boa conta sobre pontos de historia antiga, romana e grega, +monumentos, batalhas, sciencias, e tudo quanto mereceria ser archivado em +volumes grossos de soporiferas academias. O ex-rei de Westphalia deleitou-se +em ouvi-lo, não sabendo ainda se era expatriado da Vandêa o cavalheiro que +tão correctamente fallava lingua franceza.</p> + +<p>Fallou de si Fernando em breves termos, dizendo-se portuguez, soldado da +liberdade, o infimo dos seus fautores em Portugal. Accrescentou logo que +deixara a liberdade do seu paiz, e saíra a procura-la n'outros pontos do +mundo, a fim de compara-la com a que deixara na sua terra, rachitica, +derrengada e aleijadinha.</p> + +<p>Gostou o principe da grave sombra com que o douto moço mofava da liberdade +dos portuguezes, (gente malquista sempre dos Bonapartes) e prolongou a +palestra até horas de jantar. Fernando despediu-se já fatigado da +convivencia: o filho do artista dava pouco pela gloria de conversar fito a +fito com um ex-monarcha, irmão do heroe de Austerlitz, das Pyramides e de +Friedland.</p> + +<p>Dias decorridos, Fernando foi convidado, em nome do principe de Monfort, a +passar a noite no palacio Orlandini. Cogitou o moço no mais urbano modo de +esquivar-se ás pesadas honras de tão luzida sociedade. A educação acanhara-o; +e os dissabores,<span class="pagenum"><a id="pag_51" +name="pag_51">[51]</a></span> suggeridos por causa de seu nascimento, +eram-lhe um constante espinho a impellirem-no para longe de ajuntamentos. +Assustava-o de mais o receio de encontrar portuguezes nos salões do principe, +e ter de responder-lhe ás naturaes perguntas entre conterraneos que se +encontram em paiz estrangeiro. Precisamente quereriam saber o seu nome, o +nome de seu pae, as suas relações na patria, as mil coisas que se presumem +sabidas de homens que viajam e se relacionam com principes. Todos estes +barrancos lhe empeciam o caminho do palacio Orlandini, e nenhum expediente +lhe suggeriram com que delicadamente recusasse o convite. Sacrificou-se ao +dever de quem tinha sido tão affavelmente tratado por personagem assim +venerada nos prestigios da magestade, a magestade dos heroismos, mais +imponente que a do sceptro hereditario.</p> + +<p>Antes da sua entrada no palacio, chegara Bartholo de Briteiros com as +bellas meninas. Em quanto as duas portuguezas levadas pelas damas se gosavam +da frescura da noite nos jardins, que muitas vezes serviam de salões, +Jeronymo Bonaparte conversou com Briteiros largamente ácerca do moço +portuguez que muito o encantara com a sua vasta erudição, e perguntou ao +hospede se conhecia <i>Fernando Gomes</i>. O fidalgo franziu a testa, e +disse:</p> + +<p>—Não sei dizer a vossa alteza quem seja Fernando Gomes. Os <i>Gomes</i> +em Portugal não sei quem sejam. Antigamente houveram os de bom toque; mas de +D. João I para cá não acho menção d'elles nas chronicas. É appellido +obscurecido, ou se perdeu.<span class="pagenum"><a id="pag_52" +name="pag_52">[52]</a></span></p> + +<p>—Póde ser que o seu patricio achasse o <i>Gomes</i> perdido!...—disse o +principe com ar de riso.—O que eu sei é que o portuguez Fernando Gomes sabe +muito, e entretem com assumptos, aborrecidos quando a gente os lê nos livros, +ou nos monumentos. Gostei muito d'elle, e estimarei que a minha estima agrade +ao seu patricio.</p> + +<p>Pouco depois foi annunciado Fernando Gomes, e logo conduzido á sala em que +já estavam as damas da primeira jerarchia toscana; e, entre tantas e tão +perigrinas, as nossas angelicaes portuguezas, honrando mais a terra de +Camões, que quantos diplomatas nos andam lá por fóra engrandecendo.</p> + +<p>Bartholo de Briteiros fitou os olhos no portuguez, e lá entre si disse: +«Não conheço: isto é homem ordinario.»</p> + +<p>—Tem aqui um patricio—disse o principe a Fernando.—É emigrado, e pae +das duas meninas, que o senhor além vê, que parecem madonas. Ditosas +revoluções as que obrigam a sair do seu ninho as formosuras que Deus faz para +que todo o mundo as veja! O senhor de Briteiros é um pae ditoso, que se revê +nos seus dois cherubins, dignos de Florença mais que de Lisboa. Os modelos +que Raphael e Ticiano adivinharam, justo é que vivam em Italia, que é o céo +das artes e das maravilhas. Não conhecia o senhor de Briteiros?</p> + +<p>—Não, senhor—respondeu Fernando.</p> + +<p>—De onde é o cavalheiro?—perguntou Bartholo.</p> + +<p>—Sou de Lisboa.</p> + +<p>—Talvez que, se me disser o nome de seu pae, eu possa conhecer a sua +familia.<span class="pagenum"><a id="pag_53" name="pag_53">[53]</a></span> +</p> + +<p>—Vossa excellencia não conhece de certo o nome de meu pae. Sou filho de +um homem do povo.</p> + +<p>—De onde saem os reis do genio—ajuntou Jeronymo Bonaparte.</p> + +<p>Bartholo fez um gesto insignificativo com a cabeça, e disse, passados +minutos:</p> + +<p>—Veio de Portugal ha muito tempo?</p> + +<p>—Ha vinte e tres mezes.</p> + +<p>—Como estão as cousas por lá? Quem governa a canalha?</p> + +<p>—Governa-se ella, presumo eu—disse Fernando.</p> + +<p>O principe sorriu e murmurou:</p> + +<p>—A resposta é um livro completo. A canalha governa-se a si em Portugal... +</p> + +<p>—Em Roma no reinado dos Cezares e no Baixo Imperio, e em toda a parte +onde as nacionalidades se dissolvem—accrescentou Fernando.</p> + +<p>—Diz muito bem!—acudiu Briteiros—Portugal está em dissolução. O senhor +é necessariamente realista!</p> + +<p>—Não, senhor. Fui soldado nas linhas do Porto. Pugnei a favor da +liberdade, synonimo de humanidade. Servi-me a mim, servindo as classes +abatidas pelo privilegio. Se me enganei, a culpa não foi minha.</p> + +<p>—Mas enganou-se...—atalhou Bartholo com má cara—A canalha é que reina. +</p> + +<p>—Mas com gravata, luva branca, espada, chapeu de plumas, e +arminhos—ajuntou Fernando Gomes.</p> + +<p>—E isso é bom?—redarguiu o fidalgo.</p> + +<p>—É bom como lição, como experiencia...</p> + +<p>—E depois? quando se quizerem emendar, era uma vez Portugal...<span +class="pagenum"><a id="pag_54" name="pag_54">[54]</a></span></p> + +<p>—Seremos hespanhoes, inglezes, ou turcos, mas com juizo—disse Fernando. +</p> + +<p>—Ahi está o patriotismo dos <i>malhados</i>—exclamou Briteiros.</p> + +<p>—Basta de politica—interveio o principe de Monfort, a quem destoara a +violencia da ultima phrase do ex-ministro da Alçada.</p> + +<p>Fernando ficou pensativo a um canto do salão, meditando no appellido +<i>Briteiros</i>. Sabia de cór os nomes dos signatarios do accordão que +enforcou os academicos. Não lhe era extranho o feio aspecto d'aquelle homem. +Devia ser elle: ouvira em Lisboa dizer que o mais façanhudo dos algozes vivia +em Florença, com grande luxo, e segura posse de seus bens na patria. Odiou-o; +não poude mais fital-o em rosto. Pensava em sair da sala, quando Jeronymo +Bonaparte lhe disse:</p> + +<p>—Venha ver as suas lindas patricias, que desejam conhecer o portuguez... +Mas tome tento em não argumentar com o pae. O senhor de Briteiros é contumaz +inimigo do povo e da liberdade. Cá entre os meus hospedes francezes é +conhecido por <i>Luiz XI</i>. O homem é um apologista das gaiolas de ferro +para uso das avesinhas que cantam a liberdade. Detesta Lamartine, que +escreveu contra a pena de morte, e defende que a arvore da liberdade deve ser +cortada, torada, serrada e afeiçoada á maneira de forcas. Tem de bom que +salga as suas theses com muita inepcia: gente emigrada não póde desprezar +estes perrexis do riso, por isso o senhor de Briteiros é muito procurado. +Agora vamos ver que duas flores saíram d'aquelle bravio matagal.<span +class="pagenum"><a id="pag_55" name="pag_55">[55]</a></span></p> + +<p>Approximou-se o principe de Eugenia e Paulina.</p> + +<p>—Aqui está o seu patricio, minhas senhoras—disse elle, indicando a +Fernando uma cadeira—conversem; espaireçam saudades da sua terra.</p> + +<p>Retirou-se o apresentante, deixando o filho de Francisco Lourenço +penosamente enleiado.</p> + +<p>—Está ha muito em Florença?—perguntou Eugenia.</p> + +<p>—Ha dois mezes, minha senhora.</p> + +<p>—Lisboa é mais linda, não é?</p> + +<p>—Lisboa é a patria; mas Florença é a perola do mundo—disse +Fernando.—Não vi na Grecia vestigios de lá ter havido uma Florença; e, com +tudo, a Grecia era a colmeia dos mais doces favos do mundo antigo. Aqui me +parece que vejo resurgidas as delicias da Roma imperial, os jardins de +Lucullo, os marmores jorrando espadanas de crystal, as thermas de Antonio, +os...</p> + +<p>Reteve-se Fernando. Reparou que o estavam escutando duas meninas, que, no +ar do semblante, pareciam escutar idioma desconhecido. Que sabiam ellas de +Lucullo e Antonio, as florinhas dos anjos, que da vida e mundo apenas +conheciam o espaço perfumado de seus virginaes aromas? A ellas que se lhes +dava de Florença, onde viviam tristes, com saudades do seu jardim de Lisboa, +onde tinham cada uma seu canteiro, e em cada canteiro as plantas do seu amor? +Seis annos havia que tinham deixado a patria, e ainda se diziam uma á outra: +«Ainda veremos as nossas casinhas de murta? Já arrancariam as trepadeiras que +se entrançavam em redor das janellas do<span class="pagenum"><a id="pag_56" +name="pag_56">[56]</a></span> nosso quarto?» O que ellas queriam era ouvir +falar de Portugal, de Lisboa, do seu palacio, e talvez das suas flôres. +Conheceria Fernando as flôres que ellas tinham?</p> + +<p>—Tem muitas saudades de Portugal?—disse Fernando.</p> + +<p>—Sempre...—respondeu Paulina.</p> + +<p>—E quem priva seu pae de voltar á patria?</p> + +<p>—Elle não quer!—disse Eugenia—Tanto lhe temos pedido! Responde nos +sempre que só volta a Portugal com o sr. D. Miguel... Quando irá o sr. D. +Miguel, sabe?</p> + +<p>—Não sei, minhas senhoras... Parece-me que o sr. D. Miguel não pensa em +lá voltar...</p> + +<p>—Não?!—atalhou Paulina—E o papá a dizer que sim!... Então nunca lá +tornaremos!</p> + +<p>—Tornam, tornam. A final o pae de vossas excellencias vae sem a companhia +do sr. D. Miguel, e supponho até que elle póde viver tranquillo sem a +protecção do principe. As pessoas, que serviram o partido do sr. D. Miguel, +teem toda a segurança em Portugal; d'isto deve estar sobejamente informado o +pae de vossa excellencia.</p> + +<p>—Diga-lh'o, sim?—tornou Eugenia.</p> + +<p>—Não me atrevo a aconselhal-o; porém, se o sr. Bartholo de Briteiros +quizesse ouvir o meu parecer, dir-lhe-ia que o partido liberal só persegue os +seus proprios amigos.</p> + +<p>As meninas não entenderam a doble intenção d'estas ultimas palavras. +Fernando, em virtude do nenhum uso que tinha de trato com senhoras, compunha +sempre as suas phrases em estylo sentencioso,<span class="pagenum"><a +id="pag_57" name="pag_57">[57]</a></span> como se as estivesse palestrando +com philosophos ou politicos.</p> + +<p>A mim, comtudo, o que mais me espanta é a facilidade com que Fernando +Gomes dizia aquellas coisas, mais ou menos convinhaveis ás pessoas com quem +falava! Não o insandeceram duas mulheres que eram lindas a capricho de Deus! +Poder estar assim um mortal, razoando em termos communs, diante de espiritos +para quem se fez a linguagem mellica do madrigal, a poesia, como ella é no +Oriente, e como os hebreus a saberiam lêr no cantico dos canticos! Pois não +tinha elle olhos, á mingua de coração! Acaso o temperamento lymphatico póde +tanto que as imagens objectivas se não espelhem na retina, e o coração não +tome conta dos filtros que os olhos lhe côam como arames abrazeados de +electricidade?!</p> + +<p>Eu sei cá!...</p> + +<p>Fernando, passado um quarto de hora, saiu do lado das filhas de Bartholo +de Briteiros, e desceu ao gabinete do principe, onde sua alteza estava +fumando e tratando assumptos litterarios com artistas, poetas, e eruditos de +differentes paizes.</p> + +<p>O principe chamou-o á sua beira, e segredou-lhe:</p> + +<p>—Pois fugiu-lhes?! Não o entretiveram as patricias? Já sei o que foi: as +pequenas não sabiam nada de Roma e Grecia... Mas lindas de véras, não? Qual +lhe parece mais moldada pelos velhos typos da sua predilecta Grecia?—disse +Jeronymo Bonaparte com jovialissimo rosto.</p> + +<p>—São formosas como portuguezas—respondeu Fernando Gomes—mas em Londres +seriam mediocremente<span class="pagenum"><a id="pag_58" +name="pag_58">[58]</a></span> graciosas. Os typos gregos eram menos +correctos; todavia a fórma antiga, como a estatuaria a perpetuou, exprime os +estupendos lances das tragedias que não se adivinham nas physionomias +aperfeiçoadas pela lima das gerações. As cabeças de marmore parece que ainda +fremem cheias de vulcões. O busto das Aspazias, Corinnas, Faustinas e +Cleopatras dardejam fogo d'aquelles pedaços de Carrara e Paros. A mulher +viril da esplendida antiguidade, conforme a civilisação a veiu entronando +atravez dos seculos, mais e mais se foi amollentando em feminilidades. +Ganhava em prestigio o que perdia em realeza de forças. A mulher esculpturada +em Roma e Grecia, ainda amante e amada, incutia pavor aos seus sacerdotes; a +mulher dos nossos tempos é uma creança que se quer acariciada e bajulada como +se as graças da infancia lhe aquilatasse o merecimento.</p> + +<p>—Parece-me porém—interrompeu o principe de Monfort—que as vantagens são +a favor da mulher comtemporanea, da mulher mulher. Que entende o +cavalheiro?... As suas patricias, a meu vêr, são perfeitas mulheres para se +amarem sem inveja de gregas e romanas...</p> + +<p>—Certamente.</p> + +<p>—E saiba que teem sido pretendidas de grandes senhores da França, da +Polonia, e da Italia. E o avarento pae não as cede ás mais remontadas stirpes +nem aos mais abastados concorrentes. Fidalgo diz elle que o é dos mais +antigos das Hespanhas; e, como o senhor Fernando sabe, o Creador ordenou, +quando fez ou refez o globo, que a Hespanha<span class="pagenum"><a +id="pag_59" name="pag_59">[59]</a></span> ficasse sendo um estanque de +fidalgos retemperados por sangue ostrogôdo, alano e suevo, sangue barbaro, +que teve quatro mil annos a sua nobreza escondida nas florestas do norte... +Advirto-o, meu amigo, d'esta avareza do senhor de Briteiros, que não vá +succeder apaixonar-se o senhor por alguma das suas patricias!... Eu ficaria +com eterno remorso de o ter apresentado, se o visse ámanhã a braços com um +amor funesto!...</p> + +<p>Fernando Gomes sorriu-se das graciosidades do principe, e saiu, pouco +depois, do baile.</p> + +<p>No restante d'aquella noite não viu Grecia nem Roma. Por sobre os vastos +destroços, que compunham as necropolis da sua memoria, adejava um cherubim em +nuvens de perfumes, era tudo primavera com seus devaneios; flôres e mocidade +e verdura em tudo: de tudo tirava esperanças que lhe chamavam a alma ao +futuro. O passado, então, pareceu-lhe melancholico: a poesia dos imperios +pulverisados avultou-lhe como horrenda soledade; e o sol do dia seguinte +encontrou-o ainda buscando no esplendor das suas visões o cherubim, que era, +em todo o rigor da fidelidade, a imagem de Paulina Briteiros.<span +class="pagenum"><a id="pag_60" name="pag_60">[60]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0080">VI</a></h1> + +<p>Tinha expirado o prazo da viagem, estipulado por Fernando, e aceite por +seu pae. No penultimo mez dos dois annos, recebeu o moço carta de Francisco +Lourenço, instando por sua ida antes de concluido os dois annos, se possivel +fosse. O artista dizia assim em sua carta:</p> + +<p> </p> + +<p>«Está pactuado o casamento de tuas irmãs.</p> + +<p>«Gracinda casa com um official de secretaria, rapaz de bom proceder, e +familia honrada. Genoveva, não menos feliz, vae unir-se a um capitão de mar e +guerra, homem já entrado na edade, mas muito estimavel, e muito do agrado +d'ella. O prazer de nós todos seria que assistisses a esta festa, e +enxugasses as lagrimas de teus velhos paes, quando as duas meninas, na mesma +hora, se apartarem de nós! A estas dôres chama o mundo <i>festas</i>. O +apartar-me<span class="pagenum"><a id="pag_62" name="pag_62">[62]</a></span> +de meus filhos quer o mundo que eu o festeje, como se approximasse mais de +minha alma! Que tristeza será a d'esta casa se tu aqui não estiveres, filho! +Que direi eu ás lagrimas de tua mãe, e ella ás minhas!... É preciso que nos +ampares a ambos: aos teus braços é que ambos pediremos força para acceitar +com resignação esta dôr obrigatoria, pela qual alguns paes recebem parabens! +Não me detenho a pedir-te que venhas. Surda estaria a tua alma se não +ouvisses os dois velhos que te estremecem...»</p> +<hr class="dotted"> + +<p>Eu podia escrever muitas paginas soberbas de hyperboles, umas minhas, e +outras copiadas, para dizer quanto Fernando amava Paulina; porém, n'essas +muitas paginas, seria tudo pouco para dizer tanto como n'esta linha: +<i>Fernando leu a carta de seu pae, e não sahiu de Florença</i>. Isto vai sem +ponto de admiração, porque eu, em materia d'amor, estou como Horacio a +respeito de tudo mais: <i>nihil mirari</i>. Maiores desatinos que o de +Fernando Gomes reclamam indulgencia das almas bem formadas, almas que não +sejam raio de luz sem calor n'uma pouca de lama, ou humano barro, que dispara +no mesmo.</p> + +<p>Fernando mentiu a seu pae: disse que estava enfermo de febres, apanhadas +em Roma nas lagôas pontinas. E mentiu sem vergonha de si mesmo! A celebrada +honra de Epaminondas é a fabula mais paradoxal da antiguidade. Amasse elle +uma Paulina, e estivesse em Florença, em Florença que, no dizer do author de +<i>André Chénier</i>, «é como a Circe que maneata os forasteiros de +invisiveis liames, e<span class="pagenum"><a id="pag_63" +name="pag_63">[63]</a></span> lhes dá continuada festa de musica, paisagens, +perfumes, pompas e mulheres, a fim de incutir-lhes o esquecimento do seu +paiz!...»</p> + +<p>Fernando fugiu ás musicas e aos perfumes da magica cidade. O seu amor era +taciturno e solitario, como um luto de saudade inconsolavel. Nascera em +rebentações de fogo como as lavaredas da Sicilia. Estava debaixo do céo +italiano; incubou-se d'aquelle fogo, bebeu a peçonha da immensa mansenilha, +que braceja serpentes de mortal amor por todos aquelles remansos fataes de +Genova, Piza, Veneza e Napoles. O céo esperara-o n'aquelle ponto para lhe +emborcar d'um jorro todo o amor, que lá em cima é glorificação, e cá em baixo +inferno. As flôres de sua alma desabrolharam das mil côres da esperança, e no +viço de primeiras; mas logo amarelleceram. O formidavel «impossivel!» +bateu-lhe na cabeça e peito, para que a razão e o coração morressem a um +tempo. A razão morreu para não reagir. O coração vivia com centenares de +cabeças como a hydra. O coração é a salamandra de seus proprios incendios; +lacera-se, como o pelicano; de cada golpeada tira golfos de sangue, e n'este +sangue medram esperanças, cada dia mais infernadas. Este é o amor maldito dos +que amam, como amava Fernando a creatura divinisada por todos, isempta de +todos, vigiada pelos olhos coruscantes do velho, que tinha coração de pae, +com ferocidades de rei das selvas, velador dos seus leonculos.</p> + +<p>Seria este imaginar impossiveis uma hallucinação do nosso homem? A gente +mais sisuda e mais desbaratada em lidar com o mundo não lhe acontece<span +class="pagenum"><a id="pag_64" name="pag_64">[64]</a></span> tantas vezes +fazer pé atraz, diante de travancos que uma borboleta transmonta a brincar +por entre arbustos floridos? N'este artigo de mulheres, quantas vezes se nos +figuram castellos roqueiros umas sobrancerias que lá ao pé se alhanam como +relvados macios, planos, chãos, e todos desentranhados em boninas, que se +estão como offerecendo ás solicitas abelhas, e até a zangãos damninhos!</p> + +<p>Ora vamos ver se Fernando cae das alturas por onde se anda após do +cherubim, e vem cá baixo á estrada coimbran, ao amor rameraneiro, de theor e +modo que o estylo possa assingelar-se o necessario para ser bem entendido e +estimado. Fuja todo o romancista de entender com personagens que trazem a +cabeça de telhas acima: a nossa linguagem lusitana é pouco para exorbitancias +taes. Os francezes dizem tudo o que querem, e até o que não ha, nem tem ideia +correspondente. Os allemães tambem. Cá entre nós, boa gente do velho +Portugal, gente que é toda vulgo nas paixões quotidianas, quem quizer remedar +extrangeiros nublando os ares com fumaças de idealismo, despega em tolice +tamanha, que não será assombroso fecharem-se-lhe as portas da academia real +das sciencias, ou negar-se-lhe venera da ordem de S. Thiago da Espada! Não +póde ir mais longe o menos preço dos parvos.</p> + +<p>Paulina via todos os dias Fernando na <i>piazza di Dome</i>, sobre a qual +se abriam as janellas dos seus aposentos. Chamava logo a irmã, clamando +pressurosa:</p> + +<p>—Vem vêr o nosso patricio, Eugenia!</p> + +<p>Assentavam os cotovellos no peitoril do balcão<span class="pagenum"><a +id="pag_65" name="pag_65">[65]</a></span> de marmore, e alli se quedavam como +duas rolas, a contemplar o portuguez, que as cortejara, e parecia te-las logo +esquecido. Não ousava elle fita-las segunda vez! Remirava-as por entre os +grupos: e o espaço aereo d'entre quatro cabeças era a suprema ambição do +moço, a entre-aberta do céo nas visões de um santo anachoreta.</p> + +<p>Algumas noites as filhas de Bartholo de Briteiros viram Fernando no +palacio Orlandini.</p> + +<p>—Que terá elle que nos não procura?!—dizia Paulina a sua irmã—Mas +repara que não dá preferencia a ninguem!</p> + +<p>—É tão triste aquelle homem! Serão assim todos em Portugal?—dizia +Eugenia.</p> + +<p>—Faz-me pena aquella tristeza! acudiu Paulina.</p> + +<p>N'outra noite a compassiva filha do fidalgo disse á irmã:</p> + +<p>—Chamemo-lo, sim? não parecerá mal?</p> + +<p>—Não; pois que mal é chamarmos o nosso patricio?</p> + +<p>Eugenia fez signal a um francez, que não era principe, nem duque, nem se +quer especieiro rico: era um pintor, um amigo querido de Bonaparte.</p> + +<p>—Senhor Leopoldo Roberto—disse ella—conhece aquelle portuguez que está +falando com a princeza Carlota?</p> + +<p>—Fernando?... Conheço-o desde que elle chegou a Florença—respondeu o +palido mancebo.—Achei-o um desgraçado.</p> + +<p>—Desgraçado?!—atalhou Paulina.—Que infortunios são os d'elle?<span +class="pagenum"><a id="pag_66" name="pag_66">[66]</a></span></p> + +<p>—Os extremos: os do amor sem esperança—respondeu o pintor.</p> + +<p>Paulina encontrou os olhos de sua irmã, que pareciam dizer-lhe: «ouves?» +</p> + +<p>Leopoldo Roberto esperou novas perguntas das meninas. Passados minutos, +aventurou-se o artista a perguntar:</p> + +<p>—Pois não conheciam o seu patricio?</p> + +<p>—Foi-nos apresentado pelo principe de Monfort—disse Eugenia—mas dos +seus infortunios não sabiamos.</p> + +<p>—É de Florença a senhora que elle ama?—perguntou Paulina.</p> + +<p>—É de Portugal.</p> + +<p>—E elle está em Italia?!—accrescentou Eugenia—porque não vae então para +Portugal?</p> + +<p>—Andará a viajar para conhecer se ella o ama, e sente a ausencia—disse +Paulina.</p> + +<p>—A dama está em Florença. A formosa Paulina conhece-a.</p> + +<p>—Eu!...</p> + +<p>—Sim, minha senhora. Digo-lhe o grande amor de Fernando, e peço-lhe que o +salve.</p> + +<p>O pintor ia retirar: Paulina exclamou:</p> + +<p>—Venha cá... explique-me esse mysterio... Eu conheço a senhora portugueza +que Fernando ama?!</p> + +<p>—Os anjos de innocencia nem mesmo tem o coração que adivinha?—replicou +Leopoldo—Hei de eu por força dizer-lhe que Fernando queria morrer sem que a +imprevista Paulina soubesse que o matava?!</p> + +<p>As meninas não proferiram um monosyllabo.<span class="pagenum"><a +id="pag_67" name="pag_67">[67]</a></span> Leopoldo, o ascetico amante de +Carlota Napoleão, approximou-se de Fernando, que falava com a princeza. +Levava nos olhos uma alegria desusada. Carlota mudou de local, e o pintor +disse a Fernando:</p> + +<p>—Quebrei o encanto. Paulina sabe que a amas. É bom que estas mulheres se +glorifiquem com saberem os nomes das victimas. Morrer obscuramente!... morrer +ignorado da mulher por quem diluimos a vida em lagrimas de sangue! Isso não! +é preciso abrir larga fenda no peito, arrancar fóra o coração, e +mostrar-lh'o. Então sim! ao menos servimos á gloria da mulher que se amou. +Ella, se não póde dizer «amei-o,» diz «matei-o!» e póde ser que o diga com +piedade; venha, pois, essa piedade posthuma, que deve ser regalo do cadaver! +Que maior serviço posso eu fazer-te, amigo?</p> + +<p>Fernando apertou convulsamente a mão de Leopoldo, saiu aos jardins a +dilatar o peito, a desdobrar da alegria que vos commove como os assaltos do +medo. O pintor não o seguiu, dizendo:</p> + +<p>—Vae só, que eu não tenho alegria nem lagrimas que esconder. Recorda-te +sempre de mim: propiciei-te o idolo em cujas aras era desconhecido +holocausto. Agora pódes acabar, que cumpristes a tua missão. A minha ainda +está imperfeita.</p> + +<p>Para que o leitor me não tome como cousa de destemperada imaginativa este +Leopoldo Roberto, pintor francez, amante de Carlota Napoleão, peço-lhe que +abra um livro de Eugenio Pelletan, o qual livro se chama <i>Horas de +Trabalho</i>. Ahi, por algures, achará em resumo, n'aquella linguagem +diamantina do illustre professor de philosophia, a historia<span +class="pagenum"><a id="pag_68" name="pag_68">[68]</a></span> dos amores; e, +logo na pagina seguinte, a historia do suicidio do pintor.</p> + +<p>Hão de ver como elle atirou com o peito ás puas do despedaçador +<span class="small-caps">impossivel</span>, e arquejou voluptuariamente n'aquellas agonias, sem esperança de +sentir a mão da princeza enxugar-lhe o suor glacial. Reparem no quadro que +elle aperfeiçoou na vespera do seu dia final. São scenas campezinas: obreiros +que vão ás ceifas e voltam dos campos coroados de espigas. Oh! que +formosissimas visões antecedem os paroxismos do talento! Que lucido agonisar +o dos genios? Quem ha de crêr na mortalidade da alma, quando ella assim se +rejubila ao pé do golfão em que o corpo se despenha como pedaço de materia +postulosa e tábida?</p> + +<p>E não te salvou o anjo da arte, ó poeta das primaveras, dos arreboes, e +dos crepusculos? Não tinhas uma Galathea em cada uma das tuas camponezas? Não +te palpitavam aquelles corações debaixo da palheta? Já sabias que a tua +immortalidade estava á porta do seu templo, para abrir-t'o logo que a lousa +te batesse em cheio sobre o craneo estalado pela bala?</p> + +<p>Que princeza te valia uma inspiração das tuas noites desveladas!</p> + +<p>Quantas rainhas de virtudes deixaste lá em baixo escondidas nas florestas +que perpetuaste em teus quadros!</p> + +<p>E não as amaste, como prodigo, e as déstes ao mundo, que t'as ama e as +adora nas galerias, nos museus, nos empórios das summas maravilhas do +bello!<span class="pagenum"><a id="pag_69" name="pag_69">[69]</a></span></p> + +<p>Olha ahi por esses palacios de principes, na Florença, em que premeditaste +morrer, olha ahi como as turbas se enlevam no teu genero immorredoiro!</p> + +<p>E vê tu quantas princezas, como a tua Carlota Napoleão, desceram do solio +ao exilio, do exilio á tumba, da tumba ao esquecimento; e os teus poemas +ficam; e o teu espirito revive em céo e terra, e o homem pára diante da tua +sombra, e deplora que uma princeza não subisse a ti para tu não desceres a +procura-la no bojo negro do teu inferno, ou nas explendorosas serpes da +chamma em que te abrasaste, ó crysalida d'um anjo!<span class="pagenum"><a +id="pag_70" name="pag_70">[70]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION0090">VII</a></h1> + +<p>Queremos agora vêr como procede o portuguez.</p> + +<p>A poesia do mysterio está aguada. Descerraram-se d'entre as nevoas as duas +estrellas que devem approximar-se ou repellir-se. A constellação é mais de +esperar, quando os prenuncios são d'esta ordem.</p> + +<p>Tenha-se em seus brios, Fernando Gomes! Portuguezes são pouco dados a +beberem trago a trago uma prosaica morte em ideaes mysterios! Costumâmos +abrir o coração e despejar á flux quanto lá ha. Se nos desdenham, a dignidade +propria nos rehabilita. Se nos acolhem, damos pelo commum excellentes +maridos, carinhosos paes, e preciosos jarretas na velhice.</p> + +<p>Romances d'amor, que desandam em morte de tuberculos moraes, não pegam cá. +Isto é terra de Hespanha e o céo de Italia, como diz o mais poeta dos +portuguezes, o dulcissimo Castilho. Ama-se como<span class="pagenum"><a +id="pag_72" name="pag_72">[72]</a></span> na Italia, e entendia-se como em +Hespanha. Quem quer saber o que é amar em Italia, leia Byron em Veneza, e +Henry Beile em todos os seus romances, e peculiarmente na <i>Physiologia do +amor</i>. Eu gosto de indicar as fontes limpas, para que me não attribuam +aguas sujas, nem acoimem o romance de hoje em dia de pêco e ôco de +conhecimentos uteis.</p> + +<p>Ora vamos lá ao conto, que está a meada a desencadilhar-se.</p> + +<p>Fernando Gomes venceu o seu pejo, e voltou dos jardins ao salão. Um +francez, desconhecido d'elle, perguntou-lhe se era o portuguez Fernando.</p> + +<p>—Sou o portuguez Fernando—disse o moço.</p> + +<p>—As suas patricias encarregaram-me de perguntar a Leopoldo Roberto se o +senhor sahira; Leopoldo Roberto não sei onde está: porém, como encontro o +senhor, creio que lhe dou prazer communicando-lhe directamente os cuidados +das senhoras de Briteiros.</p> + +<p>Fernando agradeceu affectuosamente a urbanidade do francez, e convisinhou +das meninas, a tempo que chegava Bartholo.</p> + +<p>—Patricio e amigo—disse este a Fernando—não fuja da gente. Amigos, +amigos, politica á parte.</p> + +<p>—Eu não fujo de vossa excellencia—disse o moço côr de rosa, quanto +rosas se alastram em rosto de homem trigueiro.</p> + +<p>—Pois o senhor sabe—tornou Bartholo—que está um portuguez em Florença, +portuguez dos bons tempos, e não o procura?!</p> + +<p>—Vossa excellencia até hoje não me deu bastante afouteza para solicitar +tamanha honra.<span class="pagenum"><a id="pag_73" +name="pag_73">[73]</a></span></p> + +<p>—Vá quando quizer. As minhas portas estão francas a quantos portuguezes, +realistas ou não realistas, quizerem visitar um portuguez que honrou sua +patria!—Ora o senhor, que saíu ha dois annos de Lisboa, ha de dizer-me se +lá viu meninas mais galantes do que as minhas filhas!</p> + +<p>Fernando córou outra vez, e tartamudeou; as meninas sorriram; e o pae +insistiu na pergunta com certo desplante que não vae mal em velhos folgasãos, +e até faz gosto ouvi-los n'estas liberdades, quando se fundam em muito amor +ás filhas.</p> + +<p>Fernando respondeu:</p> + +<p>—Posto que eu conhecesse pouquissimo a sociedade de Lisboa, digo, sem +receio de baixa lisonja, que as filhas de vossa excellencia seriam em Lisboa, +como em toda a parte, bellezas distinctas.</p> + +<p>—São a pintura da mãe—atalhou Bartholo.—Minha mulher foi a dama mais +linda de Portugal. Deixou-me estes anjos para me ampararem. Se não fossem +ellas, eu tinha-me atirado á cova que m'a roubou!</p> + +<p>Assomaram subitamente lagrimas aos olhos do quinquagenario. Fernando +hauriu prazer d'aquellas lagrimas. Porque? O moço queria presuppôr coração, +sensibilidade e affectos brandos n'aquelle homem que lhe avultava de bronze á +phantasia.</p> + +<p>Passou Bartholo o lenço pelos olhos, e continuou:</p> + +<p>—E ha por ahi quem se tenha lembrado de me privar das filhas!... Veem com +a palavra «casamento» propôr afoitamente a um pae que rompa os laços de +dezoito annos, que lance de si as suas<span class="pagenum"><a id="pag_74" +name="pag_74">[74]</a></span> joias, a luz dos seus olhos, o ar do seu peito, +e as deixe ir nos braços de uns libertinos fatigados, que as viram hontem +pela primeira vez, e ámanhã lhes voltarão a face com sobranceria de maridos! +É horrivel este systema de organisação social! A sociedade não se sustenta +senão á custa d'estes roubos legaes feitos ao coração de um pae. E isto se +chama manutenção da moral!... Deixa-la ser! As minhas filhas são a minha +vida. Em quanto eu respirar, quero ve-las, quero te-las ao lado do meu leito +de agonia. Custaram-me muito. Ficaram sem mãe muito tenrinhas. Criei-as eu +nos meus braços: passava as noites com o ouvido collado á fechadura das +alcovas onde dormiam as amas, para, assim que os anjinhos chorassem, acordar +as mercenarias creadas. Isto fazia eu, senhor Fernando, quando negocios +importantissimos de estado dependiam das minhas vigilias. Cresceram aquecidas +pelo meu bafejo. Trouxe-as desde os seis annos na minha carruagem, quando ia +aos tribunaes; não as confiava de ninguem. E queriam roubar-m'as agora que +estão feitas, lindas, e ricas de felicidade e alegria para me retribuirem o +muito que soffri por ellas!... Ainda bem que nenhuma me tem sido ingrata. +Quando rejeito os pretendentes, adivinho-lhes a vontade d'ellas. O maximo +prazer que me dão é serem dignas de illimitada confiança. Dizem que as vigio; +tem-n'o dito o principe de Monfort; é falso, é calumnia; ellas ahi estão que +o digam. São senhoras das suas acções: vão onde querem: ordenam seus passeios +e visitas; e eu sigo-as com a docilidade e contentamento de uma creança. +Ambas<span class="pagenum"><a id="pag_75" name="pag_75">[75]</a></span> ellas +sabem que me matam no momento em que me deixarem; e por isso Florença, +Londres, Paris tem sido para minhas filhas como desertos... Coitadinhas! +querem ir para Portugal; teem saudades de não sei que ninharias pueris!... +Deixae estar, filhas, lá iremos, lá iremos em dias mais ditosos. A justiça ha +de vencer, porque sois dois anjos, e estaes da parte da justiça. Tendes muita +vida para largas esperanças. Voltaremos a Portugal talvez mais cedo do que +vós mesmas ambicionaes. O rei... Agora reparo que estou falando com um +soldado <i>mindeleiro</i>...</p> + +<p>—Não, senhor—atalhou Fernando—não posso gloriar-me da façanha do +Mindello...</p> + +<p>—Façanha!... Ora essa! que façanha?!</p> + +<p>—Coragem, atrevimento, se vossa excellencia antes quer...</p> + +<p>—Qual coragem!... O senhor então não sabe a historia contemporanea... +Fale-me de traições, se quer que eu lhe explique a façanha do Mindello, que, +espremida na mão imparcial d'um critico, dá de si um heroismo negativo, uma +pagina de historia que, d'aqui a cincoenta annos, quando os taes sete mil e +quinhentos tiverem morrido, será reduzida á data do desembarque d'um principe +foragido do Brazil, e mais nada...</p> + +<p>Fernando Gomes estava escarlate, e reteve-se a ponto de murmurar apenas: +</p> + +<p>—A historia não se faz assim. Vossa excellencia está brincando!...</p> + +<p>—Brincando!... interrompeu o membro da Alçada.—Creia o que eu lhe digo, +que tenho o segredo<span class="pagenum"><a id="pag_76" +name="pag_76">[76]</a></span> da rebelião desde mil oitocentos e dez. O +senhor nasceu hontem: não sabe nada. Pegou d'uma arma, quando naturalmente +largou a espada de folha de flandres, e a pistola de matar moscas...</p> + +<p>Paulina fitou os olhos em Fernando, e fez com elles e com os labios a mais +ameigadora supplica de silencio e tolerancia. O condecorado das linhas do +Porto sorriu-se, já perdida a côr, e fez um gesto mezureiro ás galhofas algum +tanto colericas do fidalgo.</p> + +<p>Bartholo cahiu de seus azedumes, quasi furioso, na razão e arrependimento +do excesso. Com brandos termos e rosto prasenteiro se desculpou, promettendo +nunca mais fallar em rei nem roque; e ajuntou:</p> + +<p>—Sabe o que faz isto? É eu não ter portuguez com quem fale nas desgraças +de Portugal, que tanto o são para gregos como para troianos. Estes emigrados +francezes e polacos todos me falam dos negocios da sua terra, e ninguem sabe +nada dos negocios da minha. Chamam-me hespanhol, e não querem acreditar que +Portugal é uma nação que faz reis e desordens por sua conta e risco. Um +francez a quem eu descrevi os tumultos de Portugal, desde que Napoleão lhe +quiz lançar as garras, teve a petulancia de me dizer que qualquer poça d'agua +suja, examinada com um microscopio, offerecia um rebuliço de vermes +admiravel! Confesso-lhe, que se não tivesse duas filhas, havia de pôr a cara +ao francez em apuros de ser examinada com o microscopio!<span +class="pagenum"><a id="pag_77" name="pag_77">[77]</a></span></p> + +<p>Fernando Gomes soffreando a indignação, sorriu-se. O seu primeiro assomo +fôra pedir o nome do francez; reflectindo, porém, um momento, desculpou o +atrevido com as objurgatorias ridiculas e talvez sanguinarias de Bartholo de +Briteiros contra Napoleão, na propria casa de Jeronymo Bonaparte, o irmão +predilecto do imperador.</p> + +<p>O dialogo terminou assim, sem que as meninas proferissem palavra. Fernando +afastou se com tristeza, recordando as vehementes expressões de Bartholo, com +referencia ao casamento impossivel das filhas. Quem, d'animo frio, ouvisse o +cioso pae de Paulina, daria pouco peso aos termos acres e despoticos do +velho: o mais racional seria preparar a rebellião no espirito da filha, e +vingar assim a sociedade ultrajada pelo egoismo d'um tyranno de dois +corações, sedentos de mais amoraveis affectos, e mirando a elles por +providencial influxo. Fernando, porém, com o seu verdadeiro, e, por isso +mesmo, timorato amor, ponderou como invencivel a vontade do pae, e +inconquistavel a vontade de Paulina.</p> + +<p>Estava elle engolfado n'estes pensares, a distancia visivel das meninas. +Eugenia chamou-o, e disse-lhe:</p> + +<p>—O papá affligiu-o com as suas rabugices?</p> + +<p>—Não, minha senhora: eu respeito a paixão do senhor Bartholo de +Briteiros.</p> + +<p>—Olhe que elle diz assim as coisas; mas não odeia ninguem—disse +Paulina.—Quando vae a nossa casa? Estimavamos muito vel-o, para +conversarmos muito da nossa terra... Vá ámanhã, sim?</p> + +<p>—Com o maior prazer...—balbuciou Fernando.<span class="pagenum"><a +id="pag_78" name="pag_78">[78]</a></span></p> + +<p>—Demora-se em Florença? tornou Paulina.</p> + +<p>—Não sei dizer a vossa excellencia...</p> + +<p>—Depende o demorar-se da vontade de sua familia?—perguntou Eugenia.</p> + +<p>—Já desobedeci á vontade de meus paes. Eu devia estar em Lisboa a esta +hora... Estou em Florença, e Deus sabe onde o meu destino me chama...</p> + +<p>Se Leopoldo Roberto houvesse sido menos explicito com a filha de Bartholo +de Briteiros, o tom em que Fernando respondeu á pergunta de Eugenia bastaria +a manifestal-o. O silencio de ambas, e a meiga expressão de Paulina foi +tambem para elle sobeja prova de que o tinham comprehendido. Os dois +corações, n'aquelle instante, esposaram-se em mysteriosas delicias. Tinham-se +revelado tudo no magnetico relance d'olhos que se trocaram. Aquellas almas ou +se haviam mentido, ou identificado para sempre. Nenhum d'elles assim o +pensava. Nós, os que estamos de fóra, é que sabemos decidir d'estes vinculos +eternos, e raro nos illudimos. Pena é que cada amante não traga á sua beira +um observador, bastante martellado n'estas psycologias, para desde logo +caminhar em terreno seguro, com a sibylla ao lado.</p> + +<div style="background-color: silver;"> +<p><sup><a href="#footA" name="tex2htmlA">[A]</a></sup>Fernando visitou o fidalgo. O acolhimento foi excellente. As meninas reviveram quantas recordações ainda tinham de Lisboa. O antigo desembargador, com insolita moderação, relatou ao hospede a chronica mysteriosa de Portugal desde 1810, a revolução de Gomes Freire de Andrade, a de 1820, e as alternativas sequentes das duas parcialidades. Teve momentos lucidos de consciencia politica, e de admiravel modestia. Pelos modos, se em vez do conde da Barca, ou do conde de Basto, elle fosse o ministro valído de D. João VI, ou de D. Miguel, Portugal voltaria á sua idade de ouro. Para se exaltar era justo que desluzisse a reputação dos privados de D. Carlota Joaquina, e então foi verdadeiro. Deu como decidido ter sido envenenado D. João VI. Contou minudenciosamente a morte do marquez de Loulé em Salvaterra: chamou-lhe <i>golpe de estado</i>: mas a historia ha de chamar-lhe golpe de cajado, porque o palaciano foi morto a pauladas. Deteve-se por descuido a fallar dos supplicios de Lisboa, Porto e Extremoz. Eram tudo, no seu modo de ver, sacrificios necessarios á manutenção da ordem. E argumentava com a historia. O protestantismo, dizia elle, não entrou em Portugal: graças ás fogueiras da inquisição. Em quanto a Europa ardia em guerras religiosas, Portugal gosava pacificamente da sua prosperidade, e da pureza do seu catholicismo. D'estas sublimes paragens da historia portugueza, descia o apologista do fogo depurativo da fé a provar a necessidade da pena de morte como cauterio ás chagas sociaes, antes que ellas contaminem os membros sãos. <i>Etc.</i></p> + +<p>Fernando ouvia-o silencioso. No entanto as meninas, entretidas com os taboleiros floridos dos seus jardins, diziam entre si:</p> + +<p>—E tu és capaz de lhe dar o ramo, Paulina?</p> + +<p>—Era... mas... que hei de eu dizer-lhe? Ensina-me Eugenia.</p> + +<p>—Eu sei cá!... não lhe digas nada... Quando o pae não vir, offerece-lhe</p> +as flores. + +<p>—O melhor era deitar o ramo no chapéo.</p> + +<p>—Mas se elle o deixa ver ao papá?--redarguiu Eugenia.</p> + +<p>—Deus nos livre! E que pensas tu?...</p> + +<p>—De que, Paulina?</p> + +<p>—Será verdade o que disse o Leopoldo Roberto?<a href="#footA" name="tex2htmlB"><sup>[B]</sup></a></p> +</div> + +<p>—Se elle te ama?</p> + +<p>—Sim...</p> + +<p>—Pois não vês?! Eu ia jurar que sim... E tu? tu é que devéras gostas +d'elle...</p> + +<p>—Penso que sim... E de que serve?!... Este amor que o pae nos tem, é uma +prisão! Todas as meninas da nossa idade tão felizes!... e a gente n'esta +melancholia, a dominar as inclinações... para o não desgostar! Os outros paes +não se importam.<span class="pagenum"><a id="pag_79" +name="pag_79">[79]</a></span> A gente vê tanta gente alegre com seus maridos! +pois não vê?</p> + +<p>—Pois sim; mas tu que queres, Paulina? O pae não nos deixa casar...</p> + +<p>—É porque a gente não se tem importado...</p> + +<p>—Estás enganada... O pae soube que eu gostava do conde de Rohan, e fingiu +que não o sabia. Lembras-te? Uma vez disse-me que se eu amasse alguem em +Florença, ia immediatamente comnosco para a Azia! Quando tu em Paris gostaste +d'aquelle emigrado portuguez, não viste como elle sahiu logo para Londres? +</p> + +<p>—Depois, o Albuquerque foi ter a Londres—atalhou Paulina—e o pae foi +logo para a Escossia.</p> + +<p>—É verdade; e depois, diz a toda a gente que as grandes cidades são +desertos para nós! Tu verás, Paulina... Se elle desconfiar que amas Fernando, +leva-nos para a Russia...</p> + +<p>—Isso leva!</p> + +<p>—Então, vê lá se te sabes esconder; e, se fallares com o Fernando, +diz-lhe que seja acautelado, senão...</p> + +<p>—Como hei de eu falar-lhe?! Não vês que o papá já hoje me perguntou o que +hontem estivemos a falar com elle na <i>soirée</i> do principe?... Já me +lembrou escrever-lhe duas palavras...</p> + +<p>—Ai! escrever-lhe!—atalhou Eugenia assustada.</p> + +<p>—Pois então? isso que tem? é crime?</p> + +<p>—E se o papá vem a saber que lhe escreveste?</p> + +<p>—Quem lh'o ha de dizer?...</p> + +<p>—Agora é que eu vejo que o amas seriamente, Paulina.<span +class="pagenum"><a id="pag_80" name="pag_80">[80]</a></span></p> + +<p>—Amo: de ti não me escondo, Eugenia.</p> + +<p>—Pois então, se queres, escreve-lhe.</p> + +<p>—E que hei eu dizer-lhe? Eu nunca escrevi... Tu é que já sabes, minha +Geni.</p> + +<p>—Diz-lhe que não denuncie que te ama: senão que o papá nos tira logo de +Florença.</p> + +<p>—Só isso?!</p> + +<p>—Pois que mais? Quando elle te escrever, então responderás...</p> +<hr class="dotted"> + +<p>Este dialogo, que parece estirado, correu em menos de quatro minutos. As +meninas pediram ao pae licença para subirem do jardim a casa.</p> + +<p>Ora aqui tem o leitor como conversam os anjos.</p> + +<p>Quem, com ouvidos corporaes, ouvisse aquellas meninas, havia de suppor que +estavam alli duas creaturas vulgares, como todas as que procedem de Eva, que +dialogava com serpentes, e comia fructas da sciencia do mal! Cumpre saber que +os anjos, em quanto perigrinam cá por estes pantanos do globo, fallam segundo +ouvem fallar. Parece que ao descerem do céo, trazem, como regra, o anexim: +<i>cada terra com seu uso</i>. A gente não acaba de capacitar-se d'isto!<span +class="pagenum"><a id="pag_81" name="pag_81">[81]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00100">VIII</a></h1> + +<p>Demoremos em Portugal algum espaço. A imaginação, que tem andado +acorrentada aos apontamentos lá por essas terras lindas, mas alheias, já tem +saudades das suas.</p> + +<p>Cá estamos em Lisboa na calçada do Sacramento, em casa do artista +Francisco Lourenço.</p> + +<p>Estão os dois velhos á meza, onde o almoço lhes arrefece. Nenhum põe mão +na comida. Encaram-se, e choram. Gracinda e Genoveva sahiram hontem para casa +de seus maridos. Alli estão as cadeiras d'ellas, e sobre a meza as chavenas +do almoço, e os guardanapos que lhes serviram dois dias antes.</p> + +<p>—E sahiram sem lagrimas!—disse o artista, com a voz golpeada de soluços. +</p> + +<p>—Como eu saí de casa de meus paes para a tua...—respondeu a mulher.</p> + +<p>—Mas que tristeza... que solidão esta, Maria!...<span class="pagenum"><a +id="pag_82" name="pag_82">[82]</a></span> Nem as filhas! Nem agora, +Fernando... de mais a mais enfermo, tão longe de nós! Que fins de vida os +nossos, mulher! Como eu de longe via isto tão differente! Falava-te no prazer +de acabarmos entre filhos e netos! vê tu! ninguem, ninguem comnosco!</p> + +<p>—Tem paciencia, homem, tem paciencia! Fernando ha de vir logo que esteja +bom. As pequenas prometteram passar o domingo comnosco. Para a primavera, +vamos todos para o Cartaxo. Não te afflijas, Francisco. Isto, assim triste e +sósinho, é hoje. A gente afaz-se a tudo.</p> + +<p>—Afaz-se á ingratidão dos filhos? interrompeu o artista.</p> + +<p>—Ingratidão! Não é ingratidão! As meninas casaram com o teu +consentimento: não foram ingratas.</p> + +<p>—Sairam sem verter uma lagrima.</p> + +<p>—Pois que queres tu? O Evangelho não diz: «deixarás pae e mãe»? Deixaram +pae e mãe por seus maridos. É lei da natureza. Que havemos nós fazer-lhe? +Almoça, Francisquinho, almoça.</p> + +<p>—E tu que fazes? porque não almoças?</p> + +<p>—Que queres tu! Não posso. Tenho um nó na garganta... Tambem eu... E +Fernando longe de nós, Maria!... Que te diz o coração?</p> + +<p>—Que não tarda ahi. Talvez já venha a caminho. Se vier, não temos carta +para a semana. Se estiver ainda doente, escreve-nos. Depois nos lastimaremos +homem... Não tentemos a Deus.</p> + +<p>A carta, não desejada, chegou. Fernando dizia estar ainda doente, e não +poder assignalar o tempo<span class="pagenum"><a id="pag_83" +name="pag_83">[83]</a></span> da sua volta. A linguagem era triste: dir-se-ia +que a mentira lhe custava lagrimas. Os paes inferiram da tristeza a gravidade +da doença. Francisco pensou em ir á Italia; porém, doia-lhe deixar sua mulher +sósinha, doente de saudades, e mais lastimosa que elle. Esperou nova carta, +contando os minutos por ancias, que o avelhentavam rapidamente. Ia, com sua +mulher, buscar allivios a casa das filhas: encontrava uma e outra contentes, +cuidando das suas occupações domesticas, cariciosas para os maridos, e +levemente commovidas com as afflicções dos paes. A linguagem d'uma era a da +outra:</p> + +<p>—Não se inquietem, que o Fernando ha de vir. Póde ser que nem esteja +doente. Anda por lá a divertir-se, e vem quando estiver farto.</p> + +<p>Os velhos sahiam mais acabrunhados das frivolas consolações das filhas e +genros.</p> + +<p>Passadas semanas, chegou nova carta. Fernando, aconselhado pelos medicos, +ia convalescer para Napoles; e, logo que estivesse restaurado, voltava para +Portugal, immediatamente. Era o resumo da carta; mas o dizer era mais escuro; +a espaços lhe tinham fugido uns desmentidos á falsidade. Taes como: <i>Tenho +desejado a morte: o futuro é negro, mais negro que a sepultura</i>. E n'outro +relanço: <i>Eu nunca devia ter saido da nossa casa de campo. A má estrella +não me acharia n'aquella obscuridade.</i> E, finalmente, rematando a carta, +dizia: <i>Quem sabe se eu tornarei a ve-los, meu querido pae, e minha santa +mãe?... Tenho presagios terriveis....</i> Era para muita pena vêr os dois +velhos, cada um a seu lado, com o rosto entre as mãos, arrancando<span +class="pagenum"><a id="pag_84" name="pag_84">[84]</a></span> soluços e +exclamações, que ninguem consolava!</p> + +<p>—Que mal fizemos nós a Deus!—clamava Francisco. Não fui eu sempre bom +filho, bom marido, e bom pae? A quem fiz eu mal voluntario d'este mundo? Quem +se queixa de mim do céo para me ver assim, e te ver ahi, pobre mulher, sem +consolação de tuas filhas? Que desgraças são estas de Fernando!—proseguia o +artista, relendo a carta.—Na doença pouco falla: nunca me disse que doença +tinha... <i>Tenho desejado a morte; o futuro é negro, mais negro que a +sepultura!</i>... Vê tu estas palavras, Maria! Eu não lhe tenho faltado com +as ordens do dinheiro muito a tempo. Já lhe escrevi, admirando e louvando que +elle gastasse muito menos do que esperava. Tem tudo o que quer de mim, e ha +de ter, se Deus me não transtornar a vida, meios abundantes para viver com +decencia... Então por que se chora elle? que <i>má estrella o persegue</i>? +porque <i>não ha de tornar a ver-nos</i>?</p> + +<p>—A mim...—atalhou Maria—certo é que não... Pouco tenho de vida, +Francisco...; mas olha, meu filho, sabes tu o que me lembrou agora de +repente?...</p> + +<p>—Dize, Maria...</p> + +<p>—Estará Fernando por lá apaixonado? Queres tu vêr que elle olhou para +alguma senhora, que o traz em torturas, e o pobre rapaz não tem coração que o +tire de lá para fóra?</p> + +<p>—A fallar a verdade—disse Francisco—a idade das paixões é a d'elle... +Póde ser que adivinhasses mulher, e oxalá que sim... Se a paixão fôr bôa, o +resultado bom ha de ser; se fôr má ou<span class="pagenum"><a id="pag_85" +name="pag_85">[85]</a></span> impropria d'elle, o tempo ha de cura-la... Mas +isto não allivia a nossa dôr, Maria! Eu preciso de vêr Fernando; quero com a +minha presença reduzi-lo aos seus deveres; não tenho meio de saber o que isto +é, se não fôr em pessoa procura-lo. Deixas-me tu ir, mulher?</p> + +<p>Maria deteve a resposta alguns segundos, expediu um gemido do fundo da +alma, e murmurou:</p> + +<p>—Vae, Francisco, vae, eu irei para casa de uma das filhas, se tu +quizeres. Não te peço que me leves comtigo para te não dar que soffrer na +viagem. Sinto-me muito doente. Vieram as afflicções juntas, e acabaram-me... +Pois vae, e não te demores. Dize a Fernando que venha dar-me um abraço, que +eu quero despedir-me d'elle; e, depois, que torne para onde estiver melhor. +</p> + +<p>Francisco Lourenço, sem mais preparativos que um passaporte e dinheiro, +sahiu de Lisboa no primeiro navio que lhe deu passagem para porto de +Italia.<span class="pagenum"><a id="pag_86" name="pag_86">[86]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00110">IX</a></h1> + +<p><i>A gente não acaba de capacitar-se d'isto</i>, diz o final do capitulo +VII, a proposito dos anjos, que em pousando pé no mundo, perdem memoria do +céo, e aclimam-se logo n'estes pantanos, cujas exhalações pestilenciaes +teimam poetas em dizer que sobem a glorificar o Creador!</p> + +<p>Vamos ao essencial.</p> + +<p>Paulina escreveu um bilhete assim:</p> + +<p>«O papá é muito desconfiado. Tenha muita cautella, se a separação lhe é +tão dolorosa como a mim. Não passeie na praça do Dome áquellas horas. O papá +dorme sempre desde as quatro ás sete. Eu tenho uma creada de confiança a quem +póde entregar as suas cartas. Adeus. Guarde com amor estas florinhas».</p> + +<p>Dobrou em tira estreita o bilhete, e cingiu-o em volta das astes do +ramo.<span class="pagenum"><a id="pag_88" name="pag_88">[88]</a></span></p> + +<p>Veja agora a leitora, mais superciliosa em pontos de dignidade e pudor +senhoril, como os extremos se tocam! O que o despejo e desenvoltura teria +feito, é a innocencia e candura que o faz n'este caso, n'estes amores +começados com tal qual originalidade! Aposto que nenhuma dama, amestrada em +galanterias, escriptora de resmas sobre resmas de cartas amorosas, se +affoitaria a escrever aquellas linhas sem previamente ter recebido +irrefragaveis provas escriptas e oraes de uma paixão homicida! Escrever a um +homem sem ter sido a isso mil vezes solicitada! ennodoar assim o amiculo +virginal! dar uma menina a saber que é capaz de compôr um periodo com +sujeito, verbo e caso!</p> + +<p>Eu não louvo meninas que escrevem bilhetes, e se sujeitam a uma analyse de +regencia; porém, não sei sobre que argumentos hei de fundar a censura. Não +censuro, nem louvo. A moral é uma questão de felicidade, segundo as regras do +dever n'este mundo. Ora, a meu juizo, a moral tanto se lhe dá que Paulina +escrevesse primeiro a Fernando, como Fernando a Paulina. Além de que, a +desmoralisação é o escandalo. Escandalo n'este facto, se alguem o dá, sou eu, +que conto a historia; todavia, provando eu a final que o acto em si era +innocente e as consequencias não desfitaram do mais honesto scopo, é justo +que me descoimem do escandalo, e agradeçam a historia.</p> + +<p>Em quanto á felicidade, segundo as regras do dever, sou a dizer-lhes que +não ha nada mais incerto que as regras do dever em materia de felicidade +n'este mundo. Muita gente vae direito á rasão pela<span class="pagenum"><a +id="pag_89" name="pag_89">[89]</a></span> estrada do paradoxo. Outra muita +gente, a fugir da absurdidade, quebra as pernas no barranco da rasão. Uma +menina escreve um bilhete a um homem: o mundo sabe-o, e vitupera-a. Outra +menina faz-se vermelha de lacre ao receber a primeira carta de um homem: o +mundo tem noticia d'um pudor tamanho, e cita o exemplo d'esta santa a quantas +meninas o demonio tentador negaceia. Vae, depois, á primeira abre-se o +coração de anjo, uns braços de esposo, e um horisonte de summa felicidade; e +á segunda, que em solteira não ousara escrever duas linhas a furto de olhos +maternos, depara-se-lhe um marido, que só viu n'ella o merecimento boçal de +não saber calligraphicamente dizer que o amava! O primeiro pergunta á sua +«Porque me escreveste» e ella responde-lhe:—Amava-te.—O segundo faz a mesma +pergunta á sua; e ella, a pudica, a santa do pejo, ha de, por mais que +tergiverse, responder-lhe: «Não te escrevi, porque me não merecias +confiança». Uma exalta; a outra rebaixa; uma faz-se amar pelo duplo prestigio +de sua innocencia; a outra deve entediar mais cedo que o costume, porque +embaiu a gente, encampando como innocencia uma boa dóse de velhacaria. Ha +muito d'isto; mas não é assim tudo. Já disse que regras fixas nenhumas ha. As +meninas n'este ponto, consultem as damas virtuosas e illustradas. A mim não +me chamem para coisa de tamanha responsabilidade. N'estes combates das +paixões, os romancistas são como os escrevedores que os antigos cabos de +guerra levavam comsigo para historiarem as carnificinas: ficam-se cá de longe +alapados a verem o fogo, e relatam<span class="pagenum"><a id="pag_90" +name="pag_90">[90]</a></span> ao universo os varios successos. Tornemos ao +essencial.</p> + +<p>Fernando Gomes viu entrar as meninas na sala em que Bartholo de Briteiros +lhe andava mostrando alguns bustos de Bartholini, famigerado esculptor de +Florença, que cinzelara tambem os bustos de Paulina e Eugenia. Estava o +magistrado encarecendo com voluptuoso enthusiasmo a Bacchante de Bartholini, +que elle vira na galeria do duque de Devonshire, e contava d'um francez que +chegara a Florença, e pedira venia ao esculptor para dar um beijo na sua +Bacchante, beijo ardente que parecera filtrar fogo nos beiços marmoreos da +lasciva tentadora.</p> + +<p>Bartholo mudou de tom, quando ouviu o ciciar de sedas. Entraram as +meninas, e approximaram-se do piano. Eugenia tocou: Paulina cantou uma aria +da <i>Norma</i>; e, durante o alegro, como o chapeu de Fernando estivesse +sobre a cadeira contigua ao piano, e os olhos de Fernando n'ella, e os de +Bartholo em uma estatua da Sabina de João de Bolonha, a menina lançou no +chapeu o ramo.</p> + +<p>Fernando viu, e sentou-se, sentou-se violentado por umas caimbras de +pernas. Parece que devia ser unicamente abalado o coração; mas estou em crer +que homem amante é todo e em tudo coração.</p> + +<p>D'ahi a pouco, eram horas de jantar.</p> + +<p>Fernando ouviu o chamamento d'um escudeiro agaloado. Tomou o chapeu: não +lhe podiam as mãos convulsas com o thesouro. Aterrava-o a magnitude da sua +felicidade. O quer que era de idiota lhe desmanchava as feições. Bartholo +convidou-o a<span class="pagenum"><a id="pag_91" +name="pag_91">[91]</a></span> jantar ceremoniosamente. Fernando balbuciou +expressões confusas de reconhecimento, ajustando bem cerradas com o peito as +abas do chapeu e saíu.</p> + +<p>Não lhe cabia o coração no quarto da hospedaria. Queria o sol, o azul do +céo, os pinhaes, os vinhedos, e as flôres das margens do Arno como +testemunhas da sua alegria.</p> + +<p>Áquella mesma hora é que os dois velhos, na calçada do Sacramento, se +abraçavam, debulhados em lagrimas, e diziam:</p> + +<p>—Que mal fizemos a Deus!</p> + +<p>Que faces a vida tem!</p> + +<p>Fernando leu um poema em cada lettra d'aquelle insignificante escripto. +<i>Insignificante</i>, digo! Injustiça de critico litterario, que só vê a +magestade do entendimento humano nas ramagens floridas do estylo! Como +<i>insignificante</i>! Cada palavra d'aquelle singelo bilhete salvaria +Leopoldo Roberto, Chatterton, e quantos por amor se tem lançado nos braços da +morte! Dae a cada desventurado, em transes de suicidio, um bilhete assim, de +mulher como aquella, e eu vos restituirei um homem com vida exhuberante, com +alma recaldeada para todas as adversidades, com amor a Deus e aos homens, +retemperado de juizo para se predispor aos gosos da velhice, e d'uma numerosa +posteridade—destino humanal mais efficazmente averiguado e demonstrado.</p> + +<p>Ao escurecer, Fernando voltou a Florença, e velou a noite inteira, +escrevendo. Quando os primeiros raios do sol lhe douraram a ultima pagina da +carta a Paulina, a cabeça do moço, calcinada pela<span class="pagenum"><a +id="pag_92" name="pag_92">[92]</a></span> febre da felicidade, pendeu sobre a +mesa, e immergiu em não melhores delicias de sonhos.</p> + +<p>Despertaram-n'o para lhe entregarem uma das succesivas cartas que seu pae +lhe estava sempre mandando, quer por navios que saíam de Lisboa para França, +quer pelo correio de Hespanha.</p> + +<p>Que melancholica transição a da leitura das suas paginas arrebatadas para +este chão e monotono escrever do artista:</p> + +<p>«Lemos a tua carta com muita magua. Bem me dizia o coração que tu não +vinhas! A tua carta entristece mais esta separação de tuas irmãs. Se ao menos +tivesses saude, Fernando! Mas doente, sem me dizeres que molestia soffres, +isto augmenta a afflicção de teus velhos paes. Muito enfermo deves estar +para, ainda com sacrificio, não accudires á nossa saudade! Deus te allivie, e +encaminhe para nós.</p> + +<p>«Vejo que essa cidade te prende mais que as outras; mas foi-te ingrata, +filho. Tiveste saude em toda a parte, e só ahi adoeceste, dizendo-me tu que +era um clima celestial o de Florença.</p> + +<p>«Talvez te prendessem as memorias d'aquelle poeta que tu me lias, ha +annos. Era Dante, se bem me lembro; mas eu queria que o teu coração de filho +vencesse os prazeres do espirito; queria que os não esquecesses por amor da +sciencia.</p> + +<p>«Isto não são queixumes, Fernando, não são. É rabugice estar eu a ralhar +comtigo porque a doença te impede de vir. O que eu te rogo, e mando, filho é +que, assim que as forças t'o permittirem, venhas dar contentamento á tua boa +mãe, que<span class="pagenum"><a id="pag_93" name="pag_93">[93]</a></span> +está muito acabadinha, e mais depressa irá ao seu fim, se desconfiar que nos +esqueceste...»</p> + +<p> </p> + +<p>A carta continuava assim por longo espaço de papel, manchado de lagrimas. +</p> + +<p>Fernando não tinha a força de alma que caracterisa os homens grandes. +Estamos vezados a dar carta de grandeza a uns vermes que não teem lagrimas, +nem se deixam alquebrar de vulgares contingencias da vida. O filho do artista +depôz a carta, e murmurou:</p> + +<p>—Meus queridos paes! como eu vos sacrifico sem saber a que!... Pude +enganar-vos para me gosar das primicias de alguma desgraça!</p> + +<p>E, respondendo a esta carta, escreveu aquella em que transluzia a muita +acerba previdencia do seu futuro, com phrases incongruentes, e por virtude da +qual Francisco Lourenço se fizera no caminho de Napoles. <span +class="pagenum"><a id="pag_94" name="pag_94">[94]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00120">X</a></h1> + +<p>O marquez de Tavira...</p> + +<p>—Temos gente nova na historia?</p> + +<p>—É verdade, leitor. Chegou agora mesmo de Roma e Florença o marquez de +Tavira, aulico da côrte do proscripto, emigrado desde a convenção, do +primeiro sangue de Portugal, sujeito de quarenta annos bem conservados, que +parecem trinta, arruinado desde o seu setimo avô, mas ainda rico de umas +riquezas inexauriveis de fidalgos portuguezes velhos—a gente de mais +industria e artimanhas que eu conheço—não desfazendo nos fidalgos +portuguezes novos, que estes, para se esquivarem á arguição de terem avós, +avós arruinados, começam por não terem avós, e renegam os paes como logicos +que são. Este periodo é de abafar!</p> + +<p>O marquez de Tavira hospedou-se em casa de Bartholo de Briteiros. Não se +viam desde 1832. Conheciam-se do paço, tratavam-se de <i>tu</i>, e +tinham<span class="pagenum"><a id="pag_96" name="pag_96">[96]</a></span> +rapaziadas communs, posto que Bartholo se lhe avantajasse em onze annos.</p> + +<p>Mania fôra sempre de Briteiros aparentar-se com Cogominhos de Tavira. O +marquez dizia que seu avô falava no parentesco dos Briteiros da casa de +Robordochão; e, dito isto, regularmente pedia a Bartholo dinheiro, e Bartholo +dava dinheiro ao primo marquez, que era expansivo, quando embriagado; e +embriagado nas orgias de Queluz, Salvaterra e Alfeite, costumava rir de +Bartholo de Robordochão, que dava metal amarello a troco de sangue azul.</p> + +<p>O marquez, desde a convenção em que largara a espada de coronel de +artilheria, vagueara por França e Belgica, destroçando o restante do +patrimonio vendido pelo terço do valor. Depois fôra a Allemanha em cata do +senhor D. Miguel de Bragança; e, como encontrasse pobre o real exilado, +invocou o seu inquebrantavel espirito e aproou para Florença, onde o chamava +a pascacice do primo Bartholo de Briteiros.</p> + +<p>O acolhimento frizou com as melhores esperanças.</p> + +<p>O marquez teve logo, e muito rogado a possui-los, bellos aposentos, +dinheiro a granel, optima convivencia de duas meninas, que o festejavam com +franqueza de primas, e as melhores relações de Florença.</p> + +<p>Este incídente coincidiu com aquellas tristezas e alegrias de Fernando +Gomes, na manhã em que fechava uma carta para Paulina, e abria outra de seu +pae.<span class="pagenum"><a id="pag_97" name="pag_97">[97]</a></span></p> + +<p>Bartholo, sedento de noticias, enguliu quantas mirificas pêtas o marquez +inventou, concernentes a restaurar D. Miguel no throno. No dizer do +industrioso hospede, a Russia estava a disciplinar-se para talar a Europa, e +passar o rôdo sobre as corôas usurpadas. O ex-ministro da Alçada, como +bebesse mais alguns calices de champagne, no auge de sua alegria gosou-se de +visões deliciosas, entre as quaes, se a conjectura me é fiel, avultavam uns +triangulos do caes do Sodré, e umas lavaredas do Campo de Sant'Anna. Bartholo +quiz pôr luminarias; mas o marquez dissuadiu-o d'uma virtude, que pareceria +ridicula a olhos extranhos: a virtude das luminarias!</p> + +<p>Passeava, ás seis horas da tarde d'aquelle dia, Fernando na praça do Dome. +Paulina estava na janella. Passados momentos recolheu-se, e reappareceu com +uma creada. Fernando comprehendeu, e avisinhou-se. Paulina apontou para o +muro do jardim, e sahiu da janella.</p> + +<p>Caminhou o moço, rente com a parede, e viu a creada debruçada no peitoril +d'um caramanchão angular do jardim. Atirou-lhe a carta, e apanhou um bilhete +que ella ao mesmo tempo deixara cahir, com uma <i>saudade</i>, flôr que, em +parte alguma, tem o nome suave que portuguezes lhe dão.</p> + +<p>Dizia o bilhete:</p> + +<p>«Ámanhã vamos para Piza, onde temos de passar alguns dias. Vae comnosco o +primo marquez de Tavira, que chegou hoje de Roma. Se não fosse o medo e os +conselhos da mana Eugenia, pedia-lhe que se fizesse encontrado comnosco. +Seria temeridade?<span class="pagenum"><a id="pag_98" +name="pag_98">[98]</a></span> Eu lerei muitas vezes a sua carta, sempre que +puder fugir á vigilancia de meu pae. São tres dias: paciencia! Mando-lhe uma +flôr, que me faz lembrar as da nossa patria... Ainda nos veremos lá, +Fernando?...»</p> + +<p><i>Seria temeridade?</i> Este modo de perguntar, esta duvida em que +Paulina ficava, teve Fernando na perplexidade de minutos em que o coração usa +demorar as suas decisões. A ida do marquez com ella para Piza, o primo +marquez, tres dias de ausencia com o primo marquez... Este primo marquez foi +quem deu um empurrão em Fernando, pela porta fóra de Florença, caminho de +Piza. <i>Seria temeridade</i>? seria; mas o contrario, o ficar, o estar tres +dias sem ve-la ainda mesmo que o primo marquez não fosse, isso é que seria +pusillanimidade, juizo de mais, excesso que mulheres amantes consideram +coração de menos.</p> + +<p>Fernando viu Bartholo e o marquez, com as duas meninas, entrarem na +caleche. O de Tavira sentou-se em frente de Paulina. O filho do artista +esperou que a locomotiva passasse rente por elle, e fitou o fidalgo, emquanto +Paulina ia de rosto voltado para ve-lo. Seria já o ciume que lhe afuzilava +nos olhos? O primo convencional dos Briteiros era, como já disse, um rapaz de +quarenta annos, um gentil rapaz, quanto se póde se-lo, com um fardo de quasi +meio seculo no espinhaço. As barbas intensas, nitidas, e negras, os longos +cabellos á <i>Saint-Simon</i>, o porte soberbo, as fórmas fidalgas e +significativas de destreza e força, as faces ainda rosadas, eram predicados +de assustarem um amante de compleição<span class="pagenum"><a id="pag_99" +name="pag_99">[99]</a></span> doentia, poucas carnes, estatura mediana, ar e +olhar timorato, e outros attributos de que os authores de novellas nunca +revestem os personagens fataes, ditos <i>leões</i>.</p> + +<p>Assim que a serpe do ciume o mordeu, não havia já consideração que lhe +estorvasse o passo. Fernando partiu para Piza, curta jornada de algumas +horas. Passou na <i>piazza del Calvalieri</i>, para esperar, n'aquelle centro +da celebrada cidade, a passagem da familia. Em que monumentos iria elle +procurar Paulina? Áquella hora, a illustre familia de Portugal estava em casa +da opulenta ingleza Smith, cujo palacio nas margens do Arno abria seus salões +na noite d'aquelle dia. A que parte iria o triste moço, mais triste na +soledade da terra estranha, onde elle, como de si dizia Méry, se julgava, ao +meio dia, o locatario unico de uma grande cidade? Foi ao <i>Campo santo</i>, +vasto jazigo dos que morreram lidando na conquista do sepulcro de Jesus +Christo. Seria aquelle o local mais ajustado á sua dôr? Os tristes sem +consolação, como que refugiados da vida, se travam em mysticas confidencias +com as cinzas dos que passaram seu dia chorando e, alli enxugaram as ultimas +lagrimas no lençol humido da leiva.</p> + +<p>Ao entrar no cemiterio, Fernando recordou as palavras d'um illustre +viajante, que tambem lá fôra a recobrar-se de alentos para arcar com a +desventura do seu curto dia:</p> + +<p>«O <i>Campo santo</i> exhala poesia de morte, a poesia do nada, a poesia +da immortalidade. Este é o verdadeiro cemiterio do christão: não se sente +aqui<span class="pagenum"><a id="pag_100" name="pag_100">[100]</a></span> a +constricção d'alma que nos causa o tumulo do homem, suave e religiosa +melancholia vae comvosco por entre as quatro galerias funebres, e vos inspira +pensares de morte sem pavor. Este torrão não se desentranha em ossadas, nem o +verme corroe as carnes: é terra milagrosa que preserva os corpos do insulto +das herpes. Envolve-se em magnifico lençol de relvados floridos; inquadra-se +em puras e graciosas ogivas do marmore alvissimo: é terra de Jerusalem sobre +as galerias travadas; os cadaveres dos velhos christãos de Piza estão aqui +santificados; é o leito de descanço dos homens fortes, que morreram em Deus, +com a espada á ilharga e os rins ciliciados. Quão suave é este ciciar da +relva que ressoa ao longo das galerias! Cuidaes ouvir psalmodia entoada por +sombras, hymno de sepulcros escripto em linguagem, que, só depois da morte +conheceremos.»</p> + +<p>Mas não era cemiterio remanso ao soffrimento do moço. Ancias de coração +não as suavisa a philosophia da morte. Aquillo serve para os que, n'outro +ponto, deixaram fechada a sepultura de suas esperanças.</p> + +<p>Passou arrastado o dia, sem que Fernando encontrasse vestigios de Paulina. +Na manhã do seguinte dirigiu-se á praça onde se ergue a famosa <i>torre +torta</i>, que o leitor tem visto pintada, e que o marquez de Tavira queria +ver, mais que tudo. De feito, estavam o curioso emigrado e Bartholo e as +meninas ao pé da maravilha, quando Fernando assombrou n'um angulo da praça. +</p> + +<p>Foi Paulina quem primeiro o viu, e trocou olhares<span class="pagenum"><a +id="pag_101" name="pag_101">[101]</a></span> de susto com Eugenia. Bartholo +de Briteiros, que já muitas vezes admirara a inclinação mysteriosa da torre, +estava mais attento nos palacios da praça, e, de relance, viu parado o +portuguez.</p> + +<p>—Aquelle não é o Fernando Gomes?!—disse elle ás filhas.</p> + +<p>—Parece...—balbuciou Paulina.</p> + +<p>—Quem?—disse o marquez.</p> + +<p>—Aquelle patricio em que eu te falei, primo Tavira.</p> + +<p>—Ah! o mindeleiro?—tornou o primo.</p> + +<p>—Tal qual.</p> + +<p>—Sempre lhe quero ver o bellicoso aspeito! Ainda não vi um dos sete mil e +quinhentos roldões do Mindello—tornou o marquez, dando a saber que tinha sua +tal qual instrucção do <i>Carlos Magno</i>.</p> + +<p>Fernando, posto que tarde, simulou que não vira Bartholo, e foi indo +lentamente seu caminho.</p> + +<p>O fidalgo deixou as meninas com o marquez, e atravessou a praça, estugando +o passo, para se avisinhar a distancia que elle o ouvisse chamar.</p> + +<p>—Sr. Fernando! clamou Bartholo—patricio! vae tão meditabundo! Parece que +receia que a torre venha abaixo?!</p> + +<p>Fernando olhou com bem fingida surpreza, e retrocedeu a comprimentar o +fidalgo.</p> + +<p>—Então por aqui!—disse o pae de Paulina.—Acolá estão as meninas, e meu +primo o marquez de Tavira, chegado hontem de Roma. Venha cá, se quer conhecer +um dos primeiros fidalgos de Portugal.</p> + +<p>—Com muito prazer irei comprimentar um primo de vossa excellencia—disse +Fernando.<span class="pagenum"><a id="pag_102" +name="pag_102">[102]</a></span></p> + +<p>—Aqui está o senhor Gomes—disse Bartholo ao fidalgo—filho de Lisboa, +bacharel em direito, e bom rapaz, posto que mordeu muito cartucho nas linhas +do Porto, na qualidade de soldado do batalhão academico, e é, aqui onde o vê, +cavalleiro da torre e espada, valor, lealdade e merito!...</p> + +<p>O sorriso, que envenenava estas palavras, queimou o sangue do filho do +artista. Paulina tinha os olhos fitos n'elle, olhos de dôr e compuncção. Se +Fernando os visse, daria graças a Deus pela angustia que lhe era premiada com +a maviosa paixão d'elles.</p> + +<p>O marquez gesticulou ligeiramente um cortejo de cabeça, e disse:</p> + +<p>—Consta-me que em Portugal é toda a gente condecorada por façanhas das +linhas do Porto!</p> + +<p>—Toda a gente, não, senhor marquez—disse Fernando.—Ás linhas do Porto +não foi toda a gente, mas todos quantos lá estiveram mereciam bem a +condecoração de valor, lealdade e merito.</p> + +<p>O legitimista desfranziu um riso de compassivo escarneo, e disse:</p> + +<p>—Em quanto a <i>valor</i>, o general Povoas que o diga, se os +<i>valorosos</i> o não querem dizer. Em quanto a lealdade, bem se sabe qual +foi a lealdade dos bravos que apedrejaram com patacos D. Pedro no theatro, e +mataram Agostinho José Freire nas ruas de Lisboa. Em quanto a merito, isso +agora é uma questão de barriga: a barriga de cada um é que diz o merito de +cada qual...</p> + +<p>Fernando olhou de revez o marquez, e disse a Bartholo:<span +class="pagenum"><a id="pag_103" name="pag_103">[103]</a></span></p> + +<p>—Vossa excellencia continúa a admirar a torre, e eu vou dar as voltas que +preciso, antes de recolher-me a Florença.</p> + +<p>O marquez ficou mais que muito corrido d'este ar de desprezo com que +Fernando replicou aos seus dizeres, que elle imaginou não só irrespondiveis, +mas capazes de atirar a terra com os creditos de uma politica. Bartholo +tambem se desgostou do menos preço com que o <i>quidam</i> tratava seu primo, +e não teve mão da sua zanga, exclamando:</p> + +<p>—Então não tem resposta o que alli disse meu primo?!</p> + +<p>—Não, senhor—disse Fernando Gomes.—Dá-me sua excellencia as suas +ordens?</p> + +<p>—Passe muito bem, senhor Gomes—disse Bartholo, chofrado.</p> + +<p>Paulina e Eugenia corresponderam ao comprimento reverencioso de Fernando. +Paulina sentia-se contente, soberba da dignidade d'aquelle moço; Eugenia, +porém, doía-se da quebra de brios que soffrera o primo, temia que a ira do +pae resultasse desgosto á irmã, e anteviu a impossibilidade de nunca mais os +dois se approximarem, sem aberta declaração de guerra com o pae.</p> + +<p>—Este sujeito—disse, azedado, o de Tavira—quem é lá na sua terra?</p> + +<p>—Eu sei cá? É o senhor Fernando Gomes; tal m'o apresentou Jeronymo +Bonaparte! Estes Bonapartes, que se fizeram reis mais depressa que os reis do +theatro do Salitre e da rua dos Condes, impingem á gente com titulo de +<i>notabilidades</i> quantos patavinas os visitam no desterro! Qualquer +pintor,<span class="pagenum"><a id="pag_104" name="pag_104">[104]</a></span> +esculptor, ou poeta, em casa do principe de Monfort é egual aos duques, e tem +uma cadeira ao lado dos principes. Quem lá vae tem de apertar a mão ao +pianista Sampieri, ao cantor Tachinardi, á cantora Degli-Antoni, ao poeta +Méry, ao pintor Vernet, ao esculptor Bartolini, e ao senhor Fernando Gomes, +que, no dizer do ex-rei de Westphalia, é um enorme sabio. Aqui tens tu, primo +marquez, como eu conheci o senhor Gomes. Dei-lhe uma vez entrada em minha +casa, porque me pareceu humilde o sujeito: agora descobri que elle tem seus +fumos de orgulho!...</p> + +<p>—Não se me dava de lhe abater a prôa!—atalhou o marquez.—Queria ver se +estes valentões do Mindello sustentam a fama cá fóra das linhas...</p> + +<p>Bartholo riu-se, e Paulina olhou em rosto o primo com visivel gesto de +despeito.</p> + +<p>—Porque?!—disse ella, com mal represada ira.</p> + +<p>—Paulina!—murmurou-lhe Eugenia ao ouvido.</p> + +<p>Bartholo não dera conta d'este incidente, e o marquez, quando ia +esclarecer a significação do gesto extranho de sua prima, viu que ella +voltava o rosto, e se encobria com as franjas da <i>sombrinha</i>.</p> + +<p>—Querem ver que ella ama o tal sujeito?!—disse o marquez entre si, e +differiu para mais ao diante a elucidação d'esta importante suspeita.</p> + +<p>No dia seguinte a familia voltou para Florença.</p> + +<p>Fernando já tinha ido.</p> + +<p>Ás affrontosas palavras do marquez de sobra respondera o silencioso +desprezo do filho do artista: não obstante, o tom injurioso alanceara-lhe +<span class="pagenum"><a id="pag_105" name="pag_105">[105]</a></span> muito +dentro o coração, por ter sido Paulina testemunha da zombaria.</p> + +<p>Pensava elle que a filha do nobre devia ama-lo menos por ve-lo assim +desdourado, e sem vingança egual ao affrontamento. É um inferno, na alma de +quem ama, pensar assim!<span class="pagenum"><a id="pag_106" +name="pag_106">[106]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00130">XI</a></h1> + +<p>Ao cabo de tres semanas de hospedagem regalada, disse o marquez a +Bartholo:</p> + +<p>—Ora, primo e amigo, é tempo de continuar a minha missão, que interrompi +por tres semanas. Bem sabes que a politica me não deixa ser das minhas +vontades. Preciso de ir a Inglaterra em serviço do rei e da nossa causa. Tu, +como rico em toda a parte do mundo, não queres participar dos trabalhos +lentos da restauração: fazes bem, primo Briteiros: eu é que não posso +libertar-me d'esta missão diplomatica. Espera-me o Saraiva em Londres, e o +rei em Berlim, no espaço de quarenta dias. Aqui tens a razão da minha saída. +</p> + +<p>—Pois vae, primo—disse Bartholo—mas logo que te desempenhes d'essa +missão, volta a viver comnosco em Florença.</p> + +<p>—Não prometto.<span class="pagenum"><a id="pag_108" +name="pag_108">[108]</a></span></p> + +<p>—Não promettes, marquez? Pois assim nos pagas a boa vontade com que te +convido e o muito affecto das meninas, que te desejam comnosco?!</p> + +<p>—Se ellas me desejam—tornou o primo com intencional sorriso—isso é que +resta demonstrar, primo Bartholo...</p> + +<p>—Pois que! duvidas?</p> + +<p>—D'uma, duvido; da outra tenho quasi a evidencia que me deseja vêr pelas +costas.</p> + +<p>—Ora essa! qual d'ellas?</p> + +<p>—Permitte que não vamos adiante n'esta penosa conversação, primo... +Evitemos desgostos communs. Tanto soffrerias tu, como eu tenho soffrido... +</p> + +<p>—Que tens soffrido, marquez? Pois ainda agora m'o dizes!...—tornou +Briteiros sinceramente inquieto.</p> + +<p>—Devêra ter-t'o dito ha muitos dias, desde o segundo em que vi tua filha +Paulina... basta.</p> + +<p>—Homem! explica-te, se não eu obrigo-te a faze-lo por tua honra!</p> + +<p>—Pois que assim o queres, sabe a verdade inteira, e reprehende-me se eu +tiver procedido mais segundo os dictames do coração, que os da honra e +parentesco. Eu amei tua filha Paulina com paixão. Se não t'o disse logo, foi +porque me julguei superior a mim mesmo, e aos despotismos do amor. Muitas +vezes em Portugal, em Paris, em Roma, em todas as capitaes da Europa, me +julguei vencido por diversas mulheres que encontrei; e, logo depois de chorar +a derrota, de repente me rehabilitava pelo esquecimento instantaneo e quasi +prodigioso<span class="pagenum"><a id="pag_109" +name="pag_109">[109]</a></span> da mulher que horas antes me acorrentava aos +seus mais levianos caprichos. Cuidei que o mesmo me aconteceria com tua filha +Paulina: aqui é que o meu orgulho pagou amargamente as suas passadas +sobrancerias. Verdadeira e insanavel paixão me inspirou Paulina; e, para +cumulo de desgraça e vingança d'outras, tua filha, bem longe de amar-me, +convencido me deixou de me aborrecer. Primeiro imaginei que Paulina não podia +ou não queria amar alguem: isto podia ser; porque ha mulheres sem coração, e +ha outras que parecem ter quatro: com os homens dá-se o mesmo caso. Porém, +primo Briteiros, a razão do desamor de tua filha era a mais natural do mundo; +é por que tua filha amava e ama outro homem.</p> + +<p>—O que?!—interrompeu iracundo o fidalgo.—Minha filha ama outro homem! +Calumnia! A minha Paulina não ama ninguem; e hade ser tua mulher, se eu +quizer que ella seja tua mulher. Entendes tu, marquez?</p> + +<p>—Perfeitamente entendi, primo; mas eu é que sou incapaz de permittir +violencias, e acceitar esposa violentada. Outrem me julgue tal; mas tu não, +Bartholo, que conheces a nossa familia, e sabes que meus avós deram para casa +dos reis suas irmãs, e receberam como esposas as filhas dos reis.</p> + +<p>—Bem sei, bem sei que foram esses os costumes da nossa familia; mas por +isso mesmo é preciso que eu obrigue a minha filha a manter-se na dignidade de +seus avós. Quem é o homem que ella ama?</p> + +<p>—Pergunta-lh'o tu, primo. Se ella não t'o disser,<span class="pagenum"><a +id="pag_110" name="pag_110">[110]</a></span> consente que eu, por honra mesmo +de nosso sangue, o não pronuncie.</p> + +<p>—Que? pois ella ama algum mechanico? Responde por quem és, marquez! +Depressa, que me sobe o sangue ao cerebro!</p> + +<p>—Já te disse que ha grande deshonra em tal inclinação, primo... Não +forces a minha repugnancia a revelar-te o que de mim mesmo eu quizera poder +esconder.</p> + +<p>Bartholo de Briteiros andava na sala, aos empurrões das furias, sacudindo +vertiginosamente os braços, emquanto o marquez com a face entre as mãos, e os +cotovellos encostados ás almofadas de uma ottomana lhe relanceava os olhos de +infame penetração. Quando viu que era tempo, ergueu-se, tomou nos braços o +pae de Paulina, e disse-lhe:</p> + +<p>—Estou vivamente arrependido. Não devia ter dito nada. Era mais nobre +esmagar-me no coração, e poupar o teu de pae, e pae como tu és, meu caro +primo. Perdoa-me, e perdoa as fragilidades de tua filha. É um amor de creança +que ella tem ao...</p> + +<p>—Ao... quem?—exclamou Briteiros com uma grammatica desculpavel á sua +angustia.</p> + +<p>—Porque não hei de eu dizer-t'o, se o enlace mesmo de sangue me obriga a +velar pela honra de tua familia, que tambem é minha! Tu nunca suspeitaste +d'este Fernando Gomes?</p> + +<p>—Fernando Gomes! pois tu crês que minha filha ama Fernandes Gomes?!</p> + +<p>—Creio, sei-o, tenho a maxima certeza. Agora não ha que tergiversar. +Cheguei ao ponto de me perder no teu conceito, se não adduzir provas. +Paulina<span class="pagenum"><a id="pag_111" name="pag_111">[111]</a></span> +vae ao caramanchão que está sobre o caminho, e d'alli fala a Fernando, ás +horas em que tu dormes a sesta. Trocam-se cartas todos os dias. Estes factos +são presenciados por quem os quer ver. Vi eu mesmo, depois que me avisaram. +Reprehendi a prima Paulina, em termos de bom e zeloso parente e amigo. Tua +filha respondeu-me com azedume, recommendando-me que me não intromettesse na +vida alheia. Repliquei com as mais sagradas razões; dei-lhe como possivel, se +não certo, ser Fernando algum miseravel dos que de repente se levantaram da +lama de Portugal, e vieram no extrangeiro fazer luzir o ouro, que lhes seria +vergonha na patria. Rebateu-me com o mais formal e mais descomposto desdem, +que meus olhos nunca viram em menina com tal edade e educação, e de tal +linhagem! N'esta altura da questão, entendi que o meu dever era deixal-a ao +espirito tentador que a quer perder; todavia, mais sagrado dever me admoestou +a que te avisasse, primo, para não tomar sobre mim a cumplicidade de alguma +enorme desgraça, e mais enorme deshonra. Agora encarecidamente te rogo que te +hajas com a cautela e prudencia que tão melindroso negocio requer.</p> + +<p>—Que hei de eu fazer?!—bradou Bartholo.</p> + +<p>—Sae com tuas filhas de Florença. Vamos para Londres. Eu irei adiante +preparar-te aposentos. Lá, se o biltre a perseguir, eu lhe tornarei +impossivel o accesso, e a possibilidade de a ver. Se outro passo deres, +receio que seja o peor para te saíres dignamente da difficuldade. O ar com +que tua filha me falou revela proposito de ferro, e resolução +inabalavel.<span class="pagenum"><a id="pag_112" +name="pag_112">[112]</a></span> Póde temer-te; mas obedecer-te não. Fia-te em +mim, que eu sei o que são mulheres, primo. Finge que não sabes nada. Prepara +com qualquer pretexto a tua viagem, e tu colherás depois os bons fructos da +prudencia. Se, como creio, tua filha mudar de idéas em Londres, com o mais +sincero coração te digo que serei ditoso fazendo-a marqueza de Tavira; mas, +para que este enlace se possa fazer, é necessario que ella nunca desconfie +que eu fui o denunciante d'este vergonhoso affecto. Convens n'isto, primo +Bartholo?</p> + +<p>—Convenho, marquez... Seja assim..</p> + +<p>Acabava o pae de Paulina de proferir a ultima palavra, quando as duas +meninas, pé ante pé, se afastavam ao longo do corredor que conduzia da sala, +em que os dois dialogaram, para o interior da casa.</p> + +<p>Paulina lançou-se no braços da irmã, e exclamou:</p> + +<p>—Oh! que infame é aquelle homem! que infame!... Que hei de eu fazer, +Eugenia? diz-m'o por compaixão da tua pobre Paulina!</p> + +<p>—Que has de tu fazer, filha?... Eu sei!... Soffrer como eu soffri, quando +o pae nos tirou de Paris...</p> + +<p>—Isso é que não!—replicou Paulina—Não me deixo assim esmagar! Fernando +ha de ir tambem para Londres. Vou escrever-lhe e contar-lhe tudo... se o não +puder ver, terei a coragem de soffrer e esperar, com a certeza de que elle +está tambem em Londres... Pois que pensas tu?... Eu não posso esquecel-o, +assim como tu esqueceste o francez, Eugenia! É porque tu o não amavas; se o +amasses, a desesperação te daria forças! Tenho-as; sinto-me<span +class="pagenum"><a id="pag_113" name="pag_113">[113]</a></span> capaz de +tudo!... O malvado!... á custa de que infamia elle queria fazer-me +marqueza!...</p> + +<p>—Eu logo te disse—atalhou Eugenia—que não fazias bem em falar com tanta +soberba, quando elle te reprehendeu...</p> + +<p>—Fiz muito bem! desenganei-o: está desenganado para sempre... Agora tudo +que elle fizer são indignidades, e cada dia, e cada hora, hei de abominal-o +mais.</p> + +<p>Aqui tem a leitora bem significada Paulina n'este conhecido verso:</p> + +<blockquote> + <i>Ás vezes branca nuvem cospe um raio!</i></blockquote> + +<p>Quem diria que tamanhos vulcões de colera se escondiam no sereno peito da +gentil creatura, que parecia talhada de molde para soffrer docilmente o +martyrio! Ahi está o que faz o sol de Florença! Devem-se á Italia aquellas +conflagrações! Em Portugal me quer parecer que Paulina não fosse aquillo. A +minha espionagem de romancista nunca me alviçarou casos identicos de +barreiras de Portugal a dentro. Por isso mesmo é que eu tenho de ir em cata +dos meus personagens lá fora, para alternar, com lances de estremecer, as +frias historias que tenho posto em livros de que ninguem se espanta, e que +passam por as mais frias, insipidas, e inertes lucubrações do espirito +humano. Esta agora, sim!</p> + +<p>Paulina cortou o folego da imprecação para ir escrever a Fernando.</p> + +<p>Poz em resumo o dialogo do pae com o marquez, e a resolução de ambos. +Pedia-lhe que os seguisse<span class="pagenum"><a id="pag_114" +name="pag_114">[114]</a></span> para Londres, e averiguasse onde se alojavam. +Asseverava-lhe que, á custa de tudo, se haviam de ver em Londres; e +terminava, com a mais candida desenvoltura que póde ter uma menina, dizendo +que, extremos de perseguição, ella fugiria para elle, e seria sua esposa.</p> + +<p>Na tarde d'este dia Bartholo de Briteiros deitou-se a dormir a sesta: +assim lh'o impoz o cauteloso espião. Fernando já tinha em si a carta e a +resposta. Appareceu na praça do Dome, e Paulina no caramanchão. Poucas +expressões se trocaram depois que Fernando atirou a carta.</p> + +<p>A resposta era qual a delicada menina podia mais ambicionar. O amante +sentia-se menos desditoso do que ella se imaginava. Para elle a afflicção de +Paulina era extrema prova de amor. Antes a queria assim contrariada, e +acrisolada ao fogo da oppressão. Incutia-lhe animo e esperanças. Promettia, +mediante o auxilio do ministro em Londres, espiar os menores passos do +marquez e de Bartholo. Se a não acoroçoava a fugir de seu pae, antevia, como +primeira hora de sua felicidade sem nuvem, aquella em que Paulina se +confiasse á sua honra. Do marquez dizia apenas que era inferior ao seu nojo, +e lamentava que os grandes fidalgos andassem a competir em aviltamento com a +mais infima ralé.</p> + +<p>O marquez, escondido n'uma loja da praça, presenciava os passos de +Fernando. O homem, que tanto preleccionara acerca da prudencia, não teve mão +de si. O demonio da pobreza espicaçava-o! Era o demonio da pobreza que +prevalecia ás furias<span class="pagenum"><a id="pag_115" +name="pag_115">[115]</a></span> do ciume. Saiu da loja, e veio ao meio da +praça por onde Fernando caminhava com a altivez que dá a felicidade do +coração.</p> + +<p>Viu elle o marquez, e, a seu pesar, dardejou-lhe um olhar de desprezo, que +parecia provocação. O neto de reis, se havia de ir ávante, e deixar o verme, +parou, metteu as mãos nas algibeiras; e fez um tregeito de pernas, e assobiou +umas toadas, que fariam as delicias de um faiante em pleno goso de seus +tavernaes meneios.</p> + +<p>Fernando sorriu-se, e caminhou.</p> + +<p>—O senhor ri-se?—exclamou o marquez.</p> + +<p>—Ri, sim, senhor—disse placidamente o filho de Francisco Lourenço.</p> + +<p>—Que quer dizer o seu riso?!—replicou o fidalgo.</p> + +<p>—Que vossa excellencia é uma pessoa irrisoria.</p> + +<p>—Mas eu arranco-lhe os figados pela boca, bradou o marquez.</p> + +<p>—Operação difficil!... tornou Fernando sorrindo.</p> + +<p>—Julga-me da sua bitola, sô villão?</p> + +<p>—Eu não sei como hei de julga-lo, senhor marquez, depois que o julguei +tolo!</p> + +<p>E approximou-se com magestosa serenidade. Fernando parecia crescer, +nutrir, illuminar-se, e tornar-se mesmo grande aos olhos do convencionado de +Evora-Monte.</p> + +<p>—Tem de dar-me uma satisfação com armas! replicou o marquez. Joga alguma +que não seja o arcabuz do cerco do Porto?</p> + +<p>—Não senhor; não jogo armas.<span class="pagenum"><a id="pag_116" +name="pag_116">[116]</a></span></p> + +<p>—Quer dizer que não se bate?</p> + +<p>—Bato com todas.</p> + +<p>—Tem padrinhos?</p> + +<p>—Os dois primeiros homens que se encontrarem. O primeiro já eu vi.</p> + +<p>—Quem? diga-o, para lhe enviar os meus.</p> + +<p>—É um pintor: chama-se Leopoldo Roberto.</p> + +<p>—Lá me quiz parecer! disse o marquez gargalhando uma risada secca.</p> + +<p>—Que lhe quiz parecer a vossa excellencia?!</p> + +<p>—Que os seus padrinhos haviam de ser pintores ou cousa que o valesse... +</p> + +<p>—A coarctada é miseravel, senhor marquez! vossa excellencia é um covarde, +que não vale o desprezo do pintor.</p> + +<p>O marquez de Tavira levou as mãos ás proprias respeitaveis barbas. Puchou +as mechas a um lado e outro com tregeitos muito de incutir terror em almas +fracas. Deteve-se um pouco n'esta operação minacissima, e tirou do peito +alfim estas memorandas coisas:</p> + +<p>—Villão seria eu se expozesse a minha vida ao revez de sujar-me com tal +competidor! Precisamente o senhor é um aventureiro, que anda a farejar mulher +dotada cá por paizes onde lhe não conhecem a suja betesga d'onde saiu. Lá na +patria sabem-lhe o nome, ou ninguem lh'o sabe, é mais acertado dizer!... +Convinha-lhe a filha de Bartholo de Briteiros? Que atrevimento de ambições o +seu! Afinal, que espera colher d'esta aventura?... A correcção dada por um +lacaio de meu primo!</p> + +<p>—Se o lacaio tiver mais coragem do que vossa<span class="pagenum"><a +id="pag_117" name="pag_117">[117]</a></span> excellencia, em cujos hombros +assentaria cabalmente a farda.</p> + +<p>—Miseravel!...—rugiu o marquez!</p> + +<p>—Tolo!—replicou Fernando.</p> + +<p>O primeiro voltou as costas; o filho do artista permaneceu no seu posto +alguns minutos, encarando as duas meninas, que os viram approximar da praça, +e esperavam, atribuladas, a infelicidade do encontro.<span class="pagenum"><a +id="pag_118" name="pag_118">[118]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00140">XII</a></h1> + +<p>Decorridos dez dias, chegou a Napoles Francisco Lourenço. Aqui o trouxera +a certeza anciosa de encontrar seu filho em convalescença, se é que Fernando +o não enganára com o louvavel intento de o poupar a maiores afflicções. +Durante a viagem para França, o artista entendeu que saíra precipitadamente +de Lisboa, sem agenciar relações que o dirigissem a Napoles. Quem o guiaria +n'uma grande cidade como aquella? Estaria o filho n'um hotel ou nos +arrebaldes?</p> + +<p>Para remediar semelhante imprevidencia, dirigiu-se, torcendo o seu +itenerario, a Paris, e apresentou-se ao ministro portuguez, expondo o seu +destino. O ministro deu-lhe carta para Napoles.</p> + +<p>Poucas horas depois da chegada, Francisco Lourenço tinha a certeza de que +seu filho saira de Napoles dois annos antes, e nunca mais ahi voltára, e<span +class="pagenum"><a id="pag_120" name="pag_120">[120]</a></span> a certeza +tambem de que o moço estava em Florença, havia quinze dias.</p> + +<p>Saiu Francisco para Florença, cuidando que seu filho peorára, ou melhorára +a ponto de dispensar a convalescença n'outros ares. Com as recommendações que +levára de Napoles, soube em pouco tempo que Fernando embarcára em Genova com +destino a Londres.</p> + +<p>—A Londres!...—exclamou o velho.—Então é certo que meu filho me vae +fugindo.</p> + +<p>—É mais natural que o vá procurando—respondeu a pessoa a quem o artista +ia de Florença recommendado.—Póde ser que seu filho fosse embarcar para +Portugal em algum dos portos de Inglaterra. O certo é que, minutos depois da +sua chegada a Londres, o senhor ha de saber onde seu filho está hospedado, se +é que elle lá está. Entretanto as minhas informações dão que Fernando +Gomes—continuou o chefe da policia de Florença—estava mais ou menos ligado +com uma familia portugueza emigrada, cuja cabeça é Bartholo de Briteiros, +residente n'esta cidade por espaço de dois annos e tantos mezes. Dizem mais +que Fernando Gomes e um tal marquez de Tavira concorreram a amar uma filha do +senhor de Briteiros, e por ciume se insultaram na praça do Dome.</p> + +<p>—E meu filho—atalhou Francisco Lourenço com amargura—não esteve +doente?!</p> + +<p>—As minhas informações não me dizem que elle estivesse doente, e penso +poder asseverar-lhe que seu filho gosou em Florença a melhor saude. +Encontrei-o miudas vezes em casa de Jeronymo Bonaparte,<span +class="pagenum"><a id="pag_121" name="pag_121">[121]</a></span> onde elle era +muito estimado do principe. Comquanto não estivessemos relacionados, só de o +ver devo crer que o senhor Fernando Gomes passasse bem, a julgar pelo seu +aspecto não doentio, posto que pallido.</p> + +<p>Munido de indicações e uma carta, Francisco foi esperar em Genova a sahida +de um barco inglez para Falmouth.</p> + +<p>Tão rapidamente quanto em Florença lhe prometteram esclarecimentos, +recebeu-os em Londres, na repartição da policia, onde lhe deram um +<i>policeman</i> que o guiou á rua, hotel, e numero do quarto em que assistia +Fernando. O velho fez mentalmente o elogio da policia britannica.</p> + +<p>Bateu Francisco Lourenço na porta indicada. Abriu-lh'a o filho.</p> + +<p>—Entro com os braços abertos!—disse o velho convulsivo de jubilo.—Não +te venho ralhar, filho!...</p> + +<p>Fernando abraçou-o com fervor, e limpou-lhe as lagrimas copiosas.</p> + +<p>—Minha mãe como está?—disse Fernando...</p> + +<p>—Doente a deixei... Deus sabe como ella está... Acho-te bom, meu +Fernando... Ainda bem!... Não cuides que eu antes queria achar-te doente... +Perdôo-te a mentira, porque... antes assim... E agora?... Agora vens ver tua +mãe?...</p> + +<p>—Descance, meu pae—atalhou o enleiado moço.—Descance, e depois...</p> + +<p>—Não póde ser depois, Fernando... Que faço eu aqui?! Não vim vêr Londres; +vim procurar-te, vim chamar-te. Se me não seguires, que faço eu longe de tua +mãe, que a esta hora mal sabe que<span class="pagenum"><a id="pag_122" +name="pag_122">[122]</a></span> voltas tenho dado... Era melhor que me não +dissesses que ias para Napoles: poupavas-me tanto desgosto e fadiga!... Bem +vês que estou muito velho... Não me deixaste assim... Em tres annos ninguem +envelhece tanto...</p> + +<p>—Perdão, meu pae!—exclamou Fernando, apertando contra o seio as cans do +velho lagrimoso.</p> + +<p>—Tanto chorar, na minha edade, é sorte de poucos... Vejo tantos paes, com +os meus annos, em socego, á espera da morte, rodeados de seus filhos, fartos +e ricos do fructo dos trabalhos d'elles...</p> + +<p>—Tem razão...—atalhou Fernando—mas esses são os paes que teem filhos +menos desgraçados que eu! Eu queria contar-lhe a minha vida... uma só palavra +a explica... é uma paixão, meu pae, que me deshonrou aos seus olhos; por amor +d'uma mulher lhe menti, e me envileci em minha propria consciencia...</p> + +<p>—Não estás deshonrado aos meus olhos, Fernando... Desgraçado é que me +pareces, filho... Não me contes a tua vida, que a sei. Lá deixaste em +Florença as tuas memorias... Isso mesmo por que m'o não disseste? Antes isso +que o engano. Eu não me espantaria que deixasses pae e mãe por uma mulher. +Tuas irmãs tinham sido criadas no regaço de tua mãe, e fizeram o mesmo... +Deixaram-nos sósinhos. Mas poderás tu dizer-me que futuro é o teu? que +tencionas fazer? Bartholo de Briteiros, esse mau homem, que tem uma historia +escripta com sangue, foge-te com a filha para Londres. Que vens tu aqui +fazer? Queres tirar-lh'a?</p> + +<p>—Não, meu pae; quero vel-a, unicamente vel-a;<span class="pagenum"><a +id="pag_123" name="pag_123">[123]</a></span> porque no dia em que perder a +esperança de a tornar a vêr, hei de matar-me para esquecel-a...</p> + +<p>Fernando escondeu o rosto no seio do pae, e exclamou:</p> + +<p>—Deixe-me chorar, que são as primeiras lagrimas. Não houve coração algum +que m'as recebesse...</p> + +<p>E soluçava convulsivamente nos braços do velho, que o apertava ao peito +com tremuras de compaixão e amor.</p> + +<p>—Diz-me tu, filho...—tornou com muita brandura Francisco Lourenço—essa +senhora despreza-te?</p> + +<p>—Oh! não!... O desprezo seria a minha salvação—respondeu Fernando com +vehemencia.—A desgraça é ella amar-me, e ser uma santa em dedicação e +sacrificios. Por amor de mim foi tirada de Florença para Londres; e ha quinze +dias que a cada instante a espero aqui... fugindo á crueza do pae, que quer +casal-a...</p> + +<p>—E tu has de acceitar uma filha fugida a seu pae?...—interrompeu o +velho.—Vê se podes, á custa mesmo da vida, ser honrado, filho! Seja o pae um +malvado, seja a filha uma santa, embora...; mas não te absolvas em tua +consciencia, se consentires que essa menina fuja para ti.</p> + +<p>—Mas o pae faz-me a injustiça de suppôr que eu não irei logo recebel-a +como esposa? Não sabe que ella é...</p> + +<p>—Sei que é rica... os Briteiros são muito ricos... Isso é que me queres +dizer, Fernando?...</p> + +<p>—Não, senhor; queria dizer-lhe que Paulina Briteiros<span +class="pagenum"><a id="pag_124" name="pag_124">[124]</a></span> não é mulher +que algum homem possa victimar, por mais infame que ser possa; ora eu, meu +pae, amo-a com esta paixão que vê. O mundo não nos perdoaria a culpa de nos +unirmos contra a vontade de seu pae?</p> + +<p>—O mundo não vos deixaria unir sem grande perseguição, filho. Antes de +alcançares o descanço de uma honrada lucta com a sociedade, serias muitas +vezes infamado, esmagado e talvez vencido.</p> + +<p>—Espere, meu pae!... cale-se!—exclamou de subito Fernando.—Estes passos +são de mulher...</p> + +<p>—Será ella, meu Deus!—disse Francisco Lourenço.</p> + +<p>Fernando foi á porta, viu a criada confidente de Paulina. A moça assim que +o viu debulhou-se em lagrimas, e balbuciou:</p> + +<p>—A menina não pôde escrever-lhe... Está-se preparando para sair com o +pae... Recebeu ordem de repente. Vai para um convento da Irlanda: foi o que +elle lhe disse, a não querer ella casar com o maldito marquez. A senhora D. +Paulina não verteu nem uma lagrima, e respondeu: «Irei para onde o pae +quizer; não caso com o marquez, que é um villão». Que coragem a d'aquella +menina! Depois fez-me um signal; e eu corri a participar-lhe isto. A senhora +D. Eugenia manda-lhe pedir que, para salvar a irmã de morrer no convento, +indo o senhor para fóra de Londres, talvez se conseguisse que o pae a +deixasse ficar em casa, e manda-lhe dizer que o faça se tem amor á pobre +menina.</p> + +<p>—E porque não hade elle fazel-o?—atalhou Francisco Lourenço.—Diga +vocemecê a sua ama que ao<span class="pagenum"><a id="pag_125" +name="pag_125">[125]</a></span> lado de Fernando está seu pae, e que meu +filho, por amor da senhora que soffre tanto, nos ha de obedecer a ambos.</p> + +<p>—É impossivel!—exclamou Fernando allucinado por sua enorme angustia.—É +impossivel desamparal-a no maior aperto da perseguição! Para que me quer meu +pae em Portugal, se eu vou lá morrer?!... Que vil eu seria no conceito de +Paulina, affastando-me na occasião em que ella mais precisa do meu +conforto?... Diga á sr.ª D. Eugenia—proseguiu elle voltando-se para a +criada—que eu não posso obedecer lhe, salvo se ella entende que a minha +morte remedeia os desgostos de sua irmã. É de crer que sim; mas eu é que +estou convencido que Paulina quer que eu viva.</p> + +<p>Francisco Lourenço fitava o filho com os olhos embaciados de lagrimas, e +não o contradisse.</p> + +<p>A creada saíu com um bilhete d'oito linhas escriptas por Fernando.</p> + +<p>Após breves instantes de silencio d'ambos, o filho disse serenamente:</p> + +<p>—Meu bom pae, eu agradeço á Providencia poder n'esta hora falar com um +homem a quem devo as primeiras luzes da minha intelligencia. Maior desgraça +seria a minha, se meu pae não podesse comprender-me, indultar-me, e +compadecer-se. Accuso-me de o ter enganado; era mais honroso dizer-lhe que +tinha coração, mas eu cuidei que mentindo, sem medo de ser descoberto, +salvava a irreverencia inseparavel de confidencias taes a um pae. O meu +engano duplica o merecimento de ser perdoado. Conhece a minha situação, meu +pae. Com<span class="pagenum"><a id="pag_126" name="pag_126">[126]</a></span> +a alma despedaçada lhe digo que não sei como remedial-a. Quer que eu o siga? +Seguirei: já vejo de todo e para sempre negra a minha vida... Seguirei; mas +uma hora virá em que meu pae se lastime por ter imposto ao meu coração a sua +respeitavel vontade. Se quer que eu viva e procure alguma saída d'este +circulo de ferro, deixe-me seguir Paulina á Irlanda...</p> + +<p>—Bem, filho—atalhou o velho contrafazendo placidez e seguridade de +animo—Concedo o que desejas e precisas; mas escuta: os meus haveres são +poucos; tuas irmãs casaram dotadas; tu pouco tens gastado comparativamente ao +que eu antevia; mas assim mesmo excede o que devia ser teu dote. A officina +dá pouco, porque a tenho desamparada. Desde que em Lisboa se estabeleceram +sapateiros francezes, muita freguezia me deixou. Não me affligiu este +desprezo do que é nosso, porque, bemdito seja Deus, contava com o pouco para +muita felicidade. Eu estou reduzido a tres contos de réis, e os bens do +Cartaxo, que outro tanto poderão valer. Acabado isto, irei pedir agasalho a +uma tua irmã, e tua mãe a outra; e tu, que és formado, a todo o tempo +conseguirás algum emprego que te alimente. O fim da nossa vida póde assim +talhar-se, e Deus permittirá que não seja peor. Digo-te isto para que saibas +com que pódes contar, Fernando. Lança as tuas contas; e, quando vires que +tens consumido o que possuo, tem tu a generosa compaixão de não pedir mais. +Eu comigo não posso contar para o trabalho. Estou com pouquissima vista; mais +de uma vez n'estes ultimos annos me tem ameaçado<span class="pagenum"><a +id="pag_127" name="pag_127">[127]</a></span> a cegueira. Corre tudo na loja +por conta dos officiaes: uns roubam, outros desmazelam-se; ninguem tenho em +que possa fiar-me. Aqui tens singelamente dito tudo. Agora sê o que poderes +ser em favor d'essa senhora; mas não te deshonres por causa do amor. Eu creio +que é falso o amor que leva o homem á indignidade.</p> + +<p>Fernando, após breve pausa, respondeu:</p> + +<p>—Eu sabia quaes eram os haveres de meu pae, quando saí de Lisboa. Viajei +dois annos, gastando o menos que podia. Como o meu viver era só, e +indifferente ás regalias das cidades em que passei, restringi as minhas +despezas á sustentação parca, e ao vestido mais urgente. Assim mesmo gastei +muito em proporção do que devia gastar. Pouco tem hoje meu pae para a sua +subsistencia: não devo pedir-lhe um quinhão d'essas migalhas. Irei ensinar +linguas na Irlanda: sei um pouco de todas as que se falam na Europa. Muitos +emigrados portuguezes aqui viveram assim. A fome illude-se com pouco.</p> + +<p>Francisco Lourenço abraçou o filho, e murmurou:</p> + +<p>—Não quero, filho, não quero isso assim. Quando a necessidade te obrigar +ao trabalho e á independencia dos impossiveis recursos de teu pae, eu t'o +direi sem pejo, nem pesar de te ver humilhado. Então trabalharás para ti, e +verás quão doce é o pão negro que se lavra com o proprio suor...<span +class="pagenum"><a id="pag_128" name="pag_128">[128]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00150">XIII</a></h1> + +<p>Paulina leu o bilhete de Fernando, que dizia assim:</p> + +<p> </p> + +<p>«Ver-me-has em toda a parte; e, quando me não vires, sabe que eu contemplo +o céo que te cobre, ou te espero em outro mundo para uma outra vida. Vivo ou +morto, a minha alma será sempre comtigo, Paulina! Ámanhã parto para Irlanda. +Não sei se é para Dublin que te levam. Eu te encontrarei... Até lá.»</p> + +<p> </p> + +<p>E estava alli, á beira d'elle, o choroso velho, aquelle pae amantissimo, +quando Fernando escreveu: <i>Ámanhã parto</i>!... A crueldade dos filhos que +amam! Que fragil é tudo isto que ahi chamam leis da natureza, quando o amor, +aquella creança dos fabulistas, mesmo ás cegas, lhes atira um encontrão!<span +class="pagenum"><a id="pag_130" name="pag_130">[130]</a></span></p> + +<p>Em quanto Paulina relia o bilhete e o mostrava á irmã com a douda alegria +de mulher amada, Bartholo de Briteiros, encerrado com o marquez de Tavira, +dialogavam d'este theor:</p> + +<p>—Mas não me saberás tu explicar o contentamento com que Paulina se está +preparando?!—dizia Bartholo.</p> + +<p>—Aquillo é febre que arrefece depressa, primo Briteiros. As mulheres são +assim.</p> + +<p>—E era capaz de entrar no convento, e esquecer-se de pae, irmã, e tudo! +</p> + +<p>—Nos primeiros dias, sim; depois, quando lhe faltasse o animo, e não +visse o Fernando, nem tivesse noticias d'elle, modificava o seu parecer a +respeito de conventos e de amor. As mulheres são assim, primo Briteiros. Umas +ha que são capazes de morrer por orgulho, e outras por soberba são capazes de +se envilecerem. Mas a nossa Paulina não ha de morrer nem aviltar-se, visto +que o convento é uma fabula, e a fria Irlanda se não ha de gosar de a ter nos +seus mosteiros. A creada desempenhou perfeitamente o papel, pelos modos. É o +dinheiro mais bem empregado que tu tens consumido para salvar tuas filhas das +unhas dos aventureiros...</p> + +<p>Corte-se aqui o dialogo para dar um esboço muito pela rama d'esta ladina +creada, que tambem tinha a honra de ser portugueza.</p> + +<p>O marquez descobrira que ella era a intermediaria de Paulina e Fernando. +Aconselhou, por isso, Bartholo que a seduzisse com dinheiro a ir participar a +Fernando que a menina se recolhia a um<span class="pagenum"><a id="pag_131" +name="pag_131">[131]</a></span> mosteiro da Irlanda; e ao mesmo tempo, da +parte de Eugenia, lhe pedisse que se retirasse de Londres, a ver se assim +abrandavam os rigores do pae. A creada accedeu á proposta com o mais +admiravel desapego de gratificação. Saiu logo a cumprir o mandado, e recebeu +o bilhete de Fernando. Na fiel entrega do bilhete a Paulina é que assenta o +elogio da creada. Bartholo ficou contente d'ella, e Paulina extremamente +grata á expontanea resolução da creada. Mas é pena que tanto a ama, como a +creada, como Fernando Gomes fossem enganados por cavillações suggeridas pelo +marquez de Tavira, que era o mais refinado velhaco de que ainda tivemos +noticia!</p> + +<p>Agora ate-se o dialogo.</p> + +<p>—Foi bem lembrada a tua ideia, primo!—tornou o ministro da Alçada, como +que orgulhando-se de ter na sua parentella um sujeito com ideias.—O homem +agora vae dar comsigo em Irlanda. Quem diabo lhe ha de lá dizer que nós vamos +para Madrid?</p> + +<p>—É verdade!—exclamou o inventor da ideia com radiosa ufania.</p> + +<p>—Quando elle o souber—tornou Bartholo—espero eu que tu sejas meu genro, +e minha filha feliz... Palavra de cavalheiro! eu não tinha alma de a fechar +n'um convento! Quero-lhe muito, e por isso t'a dou com a condição de que +nunca sairá da minha companhia, primo.</p> + +<p>—Já te disse que a minha maior dôr seria separar-me de ti, primo +Briteiros! Se ha pessoa n'este mundo que eu preze tanto como a tua filha, és +tu!<span class="pagenum"><a id="pag_132" name="pag_132">[132]</a></span> +Ainda mesmo que Paulina me fique odiando para sempre, e não venha a ser minha +mulher, crê tu que tamanho golpe não cortará os vinculos de amizade que nos +prendem. Serei um teu dedicado irmão, um vigilante mordomo do teu bem estar, +capaz de todo me sacrificar ao zêlo com que tu olhas pela ventura de tuas +filhas.</p> + +<p>—És honrado, primo Tavira!—exclamou Bartholo—Conta com o amor da minha +Paulina, quando esse maldito demonio a tiver deixado...</p> + +<p>—D'elle estás tu livre, Briteiros! Se outro peor não vier depois... mas +eu terei astucia para te salvar de todos.</p> + +<p>A creada, que captivara a confiança do amo, como sentisse remorder-lhe o +remorso de ter, apesar de tudo, atraiçoado a menina que a tratara sempre como +amiga, desde a infancia de ambas, cogitou no modo como foi industriada, e de +si para si decidiu que a ida de Paulina para um convento de Irlanda era um +logro a Fernando Gomes. Levada d'esta apprehensão, e do desejo de remediar o +mal, se era um mal ser ecco da mentira, foi manso e manso colar a orelha á +fechadura da porta que separava Bartholo e o marquez das salas mais +frequentadas da casa. A parte do dialogo que ella escutou era a mais +importante. O amo erguera a voz, quando perguntou ao marquez:</p> + +<p>—<i>Quem diabo lhe ha de dizer que nós vamos para Madrid?</i></p> + +<p>—A criada respondeu entre si: «Hei de ser eu» e foi de corrida contar a +Paulina o que ouvira; e, instantes depois, ia a caminho do hotel de +Fernando<span class="pagenum"><a id="pag_133" name="pag_133">[133]</a></span> +com a nova, e já em toda a seguridade de sua consciencia. O filho do artista +ouviu o contra annuncio com prazer. Estava a seu lado o velho, como a +gosar-se em lagrimas das poucas horas de convivencia com seu filho. Esperava +dar-lhe na manhã do dia seguinte o adeus de indeterminada, e talvez eterna +separação. A nova foi de prazer para ambos. Francisco Lourenço iria com seu +filho para Hespanha, e te-lo-hia menos longe de si. O prazer de Fernando, de +natureza diversa, consistia em ser Paulina menos sacrificada por amor d'elle. +O convento avultava-lhe com mil angustias, que lá não existem. O receio de a +ver sossobrar entre ferros, em lucta com os apertos monasticos recommendados +por Bartholo, era a mais pungente de suas dôres. Entreluziam-lhe esperanças +em Madrid: mais facilidade na fuga, mais protecção nos costumes; amigos que +lhe dessem auxilio; e a breve jornada a Portugal.</p> + +<p>N'este enlevo de alegrias, forçoso era que viesse logo o desconto. +Francisco Lourenço, quasi sem ponderar o valor da pergunta, disse a Fernando: +</p> + +<p>—Essa senhora sabe de quem és filho?</p> + +<p>—Nunca m'o perguntou...</p> + +<p>—Nem tu lh'o dirias... mas tens tu reflectido n'este ponto? A senhora D. +Paulina de Briteiros amar-te-hia se lhe tu houvesses dito que teu pae é o +sapateiro da calçada do Sacramento? E amar-te-ha, quando alguem, bastante +curioso, ou encarregado de saber o teu nascimento, a informe de que o +viajante portuguez, posto que viva de seus proprios recursos, é filho de um +sapateiro?<span class="pagenum"><a id="pag_134" +name="pag_134">[134]</a></span></p> + +<p>Fernando odiou-se a si proprio n'este momento, e respondeu com um gesto +desabrido.</p> + +<p>O artista achegou-se do filho para lhe vêr o rosto, cujas alterações seus +olhos não alcançavam. E disse:</p> + +<p>—Fizeram-te mal estas reflexões, Fernando?</p> + +<p>—Fizeram, meu pae—disse o moço agastado.—Por isso mesmo, para me forrar +d'estas agonias horriveis, melhor fôra que me tivesse dado a felicidade do +artista. Eu seria a esta hora um homem com a alegria pura de todo o homem que +trabalha, e tem suas ambições e coração circumscriptos a muito pouco. Que +fatal lembrança a de me arrancar da minha esphera, para que eu hoje não tenha +nenhuma! Os pequenos regeitar-me-hão como os grandes me regeitam, quando +souberem quem eu sou!...</p> + +<p>—Deus se compadeça de ti!—murmurou o velho, limpando as lagrimas—e me +perdôe a mim o mal que te fiz, pelo muito que tenho expiado a minha vaidade +de te fazer maior do que teu pae. Valha-te o Senhor! Que direitos tens tu a +uma felicidade que te custa humilhações? Para que a procuras afincadamente, +se vaes de rastros após ella! Por que has de tu querer hombrear com os +grandes, se eu apenas te fiz entrar n'uma carreira por onde levarias teus +filhos á grandeza! São as tuas cartas de bacharel formado que te arremessam +aos despropositos das ambições? Ou é a tua intelligencia que te diz que não +nasceste para a mediania? Se é a tua habilitação, faz que ella te sirva, +filho. Entra como quem és, e o pouco que és, na estrada da honra: faz realçar +o teu merecimento com tua<span class="pagenum"><a id="pag_135" +name="pag_135">[135]</a></span> mesma humildade, e lá irás dar ao ponto onde +chega o homem honrado, todo o homem, ainda que a muitos pareça que não. A tua +intelligencia é impossivel que te aconselhe esse odio ao acaso que te fez +nascer de paes mechanicos. Eu, filho, li quanto pude, estudei quanto os meus +poucos principios me permittiram; e Deus sabe que nunca tive pejo de ser quem +era. A razão esclarecida é o que falta aos homens que se envergonham de não +terem nascido já nobres, já respeitados, e idolatrados do mundo. Pensava eu +que, allumiando a tua razão, te dava armas para combateres os prejuizos e +preconceitos miseraveis das raças. Fiz o contrario, filho; justamente o +contrario...</p> + +<p>—Não, meu pae...—interrompeu Fernando—perdoe-me, e não se afflija, por +amor de minha mãe lh'o rogo! Eu tenho o presentimento de que ainda hei de +provar-lhe que me não vexo da baixeza do meu nascimento... esta dôr foi uma +irreflexão, meu pae. Tem o coração estes desgraçados caprichos... Caprichos, +e mais nada... Se Paulina me perguntar quem sou, dir-lhe-hei quem sou; se +quizer saber quem é meu pae, dir-lhe-hei ufanamente quem é meu pae. Por que +não?... Aquella candida alma deslustrar-se-hia em me ter pertencido? Então +que torpe deve ser o coração humano! Com que prazer e ardor eu iria buscar á +derradeira ordem social a mulher pobre, a filha do varredor das ruas, a filha +do carrasco, que me desse o seu amor, sem perguntar-me a minha origem?...</p> + +<p>Alongou-se o dialogo entre os dois, que terminaram abraçando-se, e +chorando.<span class="pagenum"><a id="pag_136" +name="pag_136">[136]</a></span></p> + +<p>Era tempo de se aprestarem para a viagem. Fernando, sabendo que a familia +Briteiros havia de atravessar o Canal no dia seguinte, de passagem para +França, tomou nota da saida de um navio de Plymouth para portos de Hespanha. +Resolveram seguir o caminho mais perto, consultando a vontade de seu pae.</p> + +<p>Pessoa extranha, que observasse o aspecto de Fernando, veria as nuvens que +lhe assombreavam a alma. Embaciára-se-lhe, não sabemos por que maravilhoso +influxo, a limpidez da esperança, com a qual até áquella hora conseguira +affrontar a adversidade. Era o desalento, um não sei que de contricção +intima, que paralysa as faculdades robustas da vontade n'um quasi morrer de +toda ella.</p> + +<p>As terriveis hypotheses do pae, concernentes ao sapateiro em amores com a +illustrissima pretendida do marquez de Tavira, poderiam tanto!</p> + +<p>O orgulho do coração do homem do povo será capaz de aniquilar tamanha +paixão?</p> + +<p>Ha exemplos; mas tão obscuros que nenhum romancista quer fazer obra por +elles.</p> + +<p>Em novella, criada para as folgas de grandes damas, e galans mancebos, +enfastiados d'outros gosos, qual romancista baixa das alturas da sua +imaginação a historiar quadros sociaes de sapateiros?</p> + +<p>Se em Portugal os sapateiros lessem, tal livro seria comprado por uma +classe e pagaria as fadigas do popular escriptor.</p> + +<p>É precisa muita abnegação para isto, n'esta terra e com esta gente, que +acha mesmo illiteraria a palavra «sapateiro».<span class="pagenum"><a +id="pag_137" name="pag_137">[137]</a></span></p> + +<p><i>Artista</i>, recommendam-me que diga <i>artista</i>, para não offender +o apparelho articular das pessoas afidalgadas de nervos!</p> + +<p>Já é! ha poucos mezes contei, romanceei, panegyriquei a vida de um gallego +n'um volume de duzentas e tantas paginas! É rastear muito esta arte! Ha tanto +principe na historia portugueza a pedir romance! e tanta princeza tambem!</p> + +<p>Por que não hei de eu escrever historias de principes e de princezas, e +deixar os sapateiros subir algum tanto na escala d'umas qualificações +modernas que elles se vão inventando para seu uso, que a isso os obriga o +menos-preço d'esta luminosissima e fraternal civilisação?</p> + +<p>O nome de sapateiro está a sumir-se. Já muitos do menoscabado officio se +denominam <i>artistas d'artes correlativas</i>... dos pés. Dos individuos +cultos, que os mettem n'estas andanças e chibanças, deviam elles chamar-se +não <i>sapateiros</i>, mas <i>ferradores</i>.<span class="pagenum"><a +id="pag_139" name="pag_139">[139]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00160">XV</a></h1> + +<p>O secretario da embaixada portugueza em Madrid havia sido camarada de +Fernando Gomes no cerco do Porto; e seu contemporaneo na universidade. +Approximara-os mais em Coimbra o paralelo dos nascimentos: eram ambos filhos +de artistas. Separados depois da formatura, um para os cargos publicos, outro +para as viagens, continuaram sempre correspondencia de bons amigos. O +secretario da legação recebeu a nova da chegada de Fernando a Madrid, e +maravilhou-se de encontral-o sumido n'um quarto de obscura estalagem.</p> + +<p>Contou o bacharel diffusamente a historia dos seus vagabundos amores, e +explicou a obscuridade e recato em que tencionava viver para não causar +desgostos á filha de Bartholo de Briteiros. Queria elle existir secretamente +em Madrid, de modo que o pae de Paulina o imaginasse na Irlanda, procurando +a<span class="pagenum"><a id="pag_140" name="pag_140">[140]</a></span> +reclusa nos conventos; entretanto, era seu intento diligenciar casarem-se +judicialmente, ou, no extremo d'algum imprevisto accidente, fugir com ella +para Portugal. O amigo escusava prometter-lhe todo o auxilio. Era este um dos +academicos que frequentavam a universidade em 1828, quando os dois lentes +foram assassinados. Fôra elle um dos sorteados para a impolitica vingança; +como quer, porém, que estivesse enfermo n'essa occasião, forrou-se assim ao +incommodo de ser estrangulado. Ora Bartholo de Briteiros, como sabem, tinha +sido o mais impassivel signatario do accordão: o amigo de Fernando vira +caminharem á forca os seus condiscipulos; e tal rancor ganhou aos juizes, que +só o nome de Briteiros lhe trouxe aos olhos faulas de raiva mal abafada pelo +correr de dez annos. Para elle era não só prova de amigo, mas desforra de +inimigo coadjuvar o camarada das linhas do Porto a zombar das astucias do +ministro da Alçada.</p> + +<p>Com tal protecção, Fernando soube a hora em que chegou Bartholo, a rua e +hotel onde se aposentou; e Paulina, pouco depois da sua chegada, recebia +d'uma creada do seu quarto, na hospedaria, uma carta de Fernando.</p> + +<p>Francisco Lourenço, cuidando que assim ficavam bem encaminhados os +honestos intentos de seu filho, seguiu para Lisboa. A mãe, anciada de +saudades de ambos, quando viu o marido sem o filho, arrancou um ai, e perdeu +o sentimento. Volvendo a si, ouviu com pasmo a miuda narrativa dos casos +acontecidos ao esposo, e deu graças a Deus sem arguir a dura alma do filho. Á +santa mulher, para<span class="pagenum"><a id="pag_141" +name="pag_141">[141]</a></span> sua consolação, bastou lhe saber que Fernando +vivia. O procurar elle sua felicidade, na idade propria do amor, com tantas +adversidades, foi á boa mãe maior motivo de compadecimento que de censura. +Como, por momentos, o considerou morto, era natural que tudo lhe perdoasse, +estando elle vivo. Assim ficaram os dois velhos, esperando que +inesperadamente lhes apparecessem casados o filho e a gentil fidalga. +Francisco Lourenço foi ao Cartaxo dar ordens a confortos da casa, mobilação, +e mais aprestos, sendo que Fernando mostrara desejos d'ir alli descançar +annos, ou talvez a vida toda, qualquer que fosse o incerto desenlace de suas +canceiras.</p> + +<p>Bartholo e o marquez de Tavira davam-se os embora do feliz exito da sua +falcatrua. Viam Paulina alegre, dada a bailes e a theatros, com bom rosto +para o proprio marquez, e nem por sombras magoada d'alguma fugitiva saudade! +O fidalgo continuava sempre a dizer «que as mulheres eram assim». E o pae de +Paulina admirava a esperteza e acume seu futuro genro.</p> + +<p>Raro dia faltava á menina carta de Fernando, por intervenção do secretario +da legação, que acintemente acceitara o conhecimento do marquez de Tavira, +para mais de perto collaborar na derrota do Bartholo.</p> + +<p>Paulina entretinha horas de conversação com o amigo de Fernando, +intervaladas por troca rapida de palavras concernentes ao intento que os +approximava. No animo do fidalgo já a suspeita se ia ingerindo: a assiduidade +das visitas do secretario incommodava-o,<span class="pagenum"><a id="pag_142" +name="pag_142">[142]</a></span> e tinha-o de atalaia. O marquez inquietava-se +não menos que o primo. Acordaram os dois em dar de mão ao visitante diario +d'algumas horas. Mas, nos bailes ou nos theatros, o secretario era o flagello +dos dois olheiros, que se viam baldeados, como lá dizem, entre Scylla e +Charybdes.</p> + +<p>Assentou Bartholo em ser pae severo. Apresentou-se á filha. Ia de catadura +horrida. Dir-se-ia que empunhava a penna para assignar um accordão de pena +ultima.</p> + +<p>—Paulina!—disse.</p> + +<p>—Meu papá.</p> + +<p>—Vamos a contas.</p> + +<p>—A contas?!</p> + +<p>—Que quer dizer a pertinacia d'este homem, que te não deixa?</p> + +<p>—Qual homem, meu papá?—disse ella, pensando que Fernando fôra descoberto +no seu esconderijo.</p> + +<p>—O homem da embaixada... este mal trapilho que tem o pae em Lisboa a +fazer candieiros na rua Augusta.</p> + +<p>—Eu sei cá o que elle quer?... O primo marquez foi quem o apresentou, e +não me disse se o pae d'elle fazia candieiros.</p> + +<p>—Fale-me com mais humildade!—bradou Bartholo.</p> + +<p>—Pois eu que disse menos humilde?</p> + +<p>—Não quero ironias.</p> + +<p>—Ironias!... O papá é injusto comigo!... Eu posso lá saber a razão porque +o homem nos procura? Pensei que o faria por delicadeza, por sermos<span +class="pagenum"><a id="pag_143" name="pag_143">[143]</a></span> patricios, e +conhecermos pouco a sociedade de Madrid.</p> + +<p>—Então...—tornou o pae—asseveras-me que elle não tem intenção nenhuma +menos respeitosa?</p> + +<p>—Pois elle ha de faltar-me ao respeito?... Jesus!</p> + +<p>Ó céos! o rosto de innocencia estupida com que Paulina fez aquella +pergunta! Ó amor, o que tu pódes e fazes! Que uma dama de bons annos, +quarenta pelo menos, puxados á fieira do amor, consiga lograr uma criança +incauta, isto está de seu na natureza das cousas; mas que uma menina de +dezesete annos, ainda agora a florescer a sua primeira primavera de coração, +zombe da vigilancia e perspicacia d'um pae quinquagenario, e o esteja assim +logrando com uns dizeres de parvoinha candura!... Uma hora de amor é um curso +de theatro completo. Quantas ficções lá se aprendem, com grandes estafas, nas +aulas do conservatorio dramatico, vae ahi qualquer menina espigadinha +exercita-las todas ante o auditorio da sua familia, se me concedeis que ella +tenha uma faisca de lume no olho, e um Etna dentro do peito!</p> + +<p>E diz o apophtegma antigo: <i>Amor logra muitas cousas, e o dinheiro +tudo</i>! Não é assim: as luzes desmentiram tambem os Senecas e Theophrastos. +O dinheiro não consegue desbestialisar o alarve que o tem a rôdos; e o amor +vae dentro do espirito mais rombo e bôto, e eil-o que o desentranha em +prodigios de subtilezas, argucias, e sublimes velhacarias! E até talento! Ha +ahi sujeito que vingou um nome esperançoso n'uma época de sua vida:<span +class="pagenum"><a id="pag_144" name="pag_144">[144]</a></span> chegou mesmo +a escrever locaes com certo orientalismo; e de repente tapam-se-lhe as +valvulas, e o talento suppura por tolice. Que foi? Averigua-se e sabe-se que +o homem deixou de escrever as locaes aziaticas assim que a mulher amada casou +com outro.</p> + +<p>Bartholo não teve que recalcitrar a esta pergunta:</p> + +<p>—Pois ha de elle faltar-me ao respeito!?—E depois a exclamação «Jesus!» +desarmou-lhe de todo as suspeitas. E, como se tanto fosse pouco, Paulina +continuou:</p> + +<p>—Não quer o papá que eu fale mais com o Almeida? Não falarei. Verá como +lhe volto as costas assim que o vir.</p> + +<p>—Não é preciso tanto, nem nada, filha—redarguiu de muito bom rosto o +pae—se me tu dizes que o Almeida nada te diz que te preoccupe o coração... +</p> + +<p>—O coração!—interrompeu a menina com o mais pasmado e lindo +semblante.—Ora essa!... O papá está a rir-se de mim, não está?</p> + +<p>—Falo-te serio, Paulina... Tenho muito medo da inexperiencia dos teus +annos. Tu tens-me feito o sangue de fel e vinagre por causa d'aquelle homem, +que me ia roubando a tua estima, e a ti mesma te ia fazendo esquecer de quem +és... Ora agora, filhinha, que essa tempestade passou, tu não me dirás que +foi o que te moveu a gostar do tal Gomes?... Não te envergonhes, menina, que +ninguem nos ouve... Elle não se inculcava sequer pessoa de bem; era um +bacharelzito, um inimigo das nossas crenças politicas e religiosas; em +quanto<span class="pagenum"><a id="pag_145" name="pag_145">[145]</a></span> á +figura, tudo n'elle é plebeu, trivial; mesmo em talento e instrucção, que o +principe gabava muito, eu nunca lhe ouvi dizer cousa que admirasse a gente; +emfim, queria eu que me tu dissesses por que amaste tal homem...</p> + +<p>—Era um passa-tempo, papá!</p> + +<p>—Não duvido, Paulina; mas as meninas da tua qualidade, quando galanteiam +para se divertirem, escolhem outra casta de homens, para que se lhes não +atire á cara com precedentes desairosos, quando ellas amam seriamente, e com +proposito de se casarem. Ora diz-me tu cá: se teu primo marquez se lembra de +casar comtigo, cuidas que elle ha de gostar que tu hajas acceitado a côrte +d'um sarrafaçal sem nome, que andava por esse mundo a gastar uns safados +cobres lá do pae, que ninguem conhece?</p> + +<p>—Pois sim...—disse Paulina com mal refreada vehemencia—mas como o primo +marquez se não lembra de ser meu marido, nem eu o queria, ainda mesmo que +elle pensasse em tal...</p> + +<p>—Não o querias? então que mais querias tu, filha.</p> + +<p>—Eu não queria mais, nem tanto... Quero estar assim solteira, que estou +bem... O papá não me dizia, ha poucos mezes ainda, que eu e a mana o +matavamos se casassemos!...</p> + +<p>—Disse isso, na supposição de que saíeis da minha companhia; mas o +marquez, se casar comtigo, não sae da minha casa. É já um contracto +estipulado, filha... A minha palavra está dada; contei com o teu são juizo, +quando a dei... Que respondes tu, Paulinasinha?<span class="pagenum"><a +id="pag_146" name="pag_146">[146]</a></span></p> + +<p>—Deixe-me pensar, meu pae. O primo marquez não tem pressa da resposta, e +o papá tambem não. Deixe-me gosar mais algum tempo a minha liberdade, e +depois eu direi o que tiver pensado.</p> + +<p>—Pois sim, filha: dou-te quinze dias. Sou um bom pae, não sou? Outro +qualquer diria: isto ha de fazer-se, porque quero que se faça. Eu, não. +Transijo com a minha criança, na certeza de que ella ha de saber-me agradecer +a brandura e os carinhos. Não has de querer que eu morra sem te ver +<i>marqueza de Tavira</i>! O primo tem os vinculos desfalcados; mas a +fidalguia d'aquelle sangue vale milhões para quem se preza de ser maior pelo +nascimento que pelos bens da fortuna. Morro consolado se encontrar para tua +irmã um marido egual... Em quanto ao secretario da legação, não deixes de lhe +falar: trata-o bem, porque, a falar a verdade, lhe devemos a elle a alguma +consideração que temos em Madrid. Não me parece mau rapaz; mas zangava-me +ve-lo sempre que podia em segredos comtigo!... Que te dizia elle?</p> + +<p>—Nada que se não podesse ouvir... Só alguma vez, nos bailes ou no +theatro, me fez rir com as suas satyras ás fidalgas hespanholas... é o que +elle me diz baixinho, para os outros não ouvirem.</p> + +<p>—Ah! é isso?—atalhou com boçal confiança o jubiloso Bartholo.—Então, +filha, continúa a rir-te com elle; mas tem compaixão do primo marquez, que +arde em zêlos quando falas com alguem.</p> + +<p>—Pois que não arda, que eu tanto se me dá como não que elle fale com quem +quizer. O pae cuida<span class="pagenum"><a id="pag_147" +name="pag_147">[147]</a></span> que posso amar o primo marquez, com vinte e +tres annos mais do que eu?...</p> + +<p>—Mas parece um rapaz, e ha de ser um excellente esposo, Paulina. Os +maridos querem-se d'aquella edade.</p> + +<p>—Não sei para que!...—acudiu com perdoavel desenvoltura a menina.</p> + +<p>Bartholo ia explicar a vantagem que sobrelevam os maridos de quarenta aos +de vinte annos, quando algum incidente privou a minha joven leitora de ver +aqui tratada a preceito uma materia, que poderia cooperar grandemente para a +sua futura felicidade. Decorreram os quinze dias aprazados para a decisão de +Paulina.</p> + +<p>N'este espaço estreitou-se mais a correspondencia d'ella e Fernando, já +inclinado á suspirada catastrophe do casamento judicial. A actividade do +secretario, como agente d'este inesperado desfecho, foi inexcedivel. Opinara +elle pela fuga, e depois casarem-se em Portugal. O filho do artista, com o +animo abalado pelas honradas admoestações de seu pae, optou pelo casamento +judicial, sem prescripção da menor formalidade honesta. Paulina pendia mais +ao parecer do secretario, e achava escusadas as demasias de probidade com que +o noivo queria tratado o seu casamento. Assim mesmo Fernando reagia á vontade +de Paulina, e dizia acceitar o plano da fuga em ultimo recurso. A recusa +estribava n'estas razões, dadas por elle ao seu amigo:</p> + +<p>—Se eu fujo com Paulina, porei um cunho infamante no meu procedimento. Se +eu fosse um grande de Portugal, por brazões ou riquezas, a sociedade <span +class="pagenum"><a id="pag_148" name="pag_148">[148]</a></span> diria que eu +tomára o violento alvitre da fuga para remover d'um lanço todas as +difficuldades antepostas pelo capricho do pae. Assim plebeu, e quasi pobre, se +fujo com ella, dir-se-ha que desprezei os meios judiciarios por medo de não +achar justiça que ousasse contrariar a vontade do fidalgo poderoso.</p> + +<p>—Mas—atalhou o sincero amigo, que sabia muito do coração das damas, +estudado em Hespanha—quem te diz a ti que, durante o processo necessario ao +supprimento do consentimento paterno, a senhora D. Paulina varia de ideias, e +requer a remoção do deposito para casa de seu pae? Quem te diz que...</p> + +<p>—Se o fizer—atalhou Fernando—mais tenho de me louvar pelo meu +procedimento; claro é que Paulina devia arrepender-se, e dar-me o inferno, as +mais tormentuosas agonias que tu podes imaginar. Antes isso, meu amigo: antes +essa prova! Poderás tu fazer-me a justiça de suppôr que eu sigo os caprichos +d'uma mulher rica?</p> + +<p>—Não.</p> + +<p>—Pois bem: venha depressa o momento em que eu possa conhecer-lhe a alma, +cuja nobreza tu me deixas entrever a luz duvidosa.</p> + +<p>—Não é assim: eu previno, e mais nada.</p> + +<p>—Prevines a possibilidade do arrependimento, emquanto dura o processo. +</p> + +<p>—É bem de ver.</p> + +<p>—E d'esperar?</p> + +<p>—Isso não sei; mas deves temer muito da força do adversario. Os juizes em +Madrid são corruptissimos, e pesam na balança o oiro do fidalgo +realista,<span class="pagenum"><a id="pag_149" +name="pag_149">[149]</a></span> e se o oiro do fidalgo realista pesar o +quilate legal, acceitam esta legalidade, em vez d'outra que as leis +estatuiram. Esta é uma das faces: a outra é a dos meios empregados no +convento onde vae ser depositada Paulina, para a demoverem. Raro acontece que +elles não vinguem, ao cabo de seis mezes d'espera. Insisto. Eu, em teu logar, +fugia. A meia legua de Madrid estás em segurança. Na semana que vem, entras +em Portugal. Chegas a Lisboa, e encontras na primeira egreja um prior que vos +absolve. Uma batalha assim vencida é plena e gloriosa: a outra, que vaes dar, +costuma ser tão golpeada de contrariedades, que, afinal, o triumpho é +semsabor. Mas faz o que quizeres. Decide-te por um dos conselhos, que nunca +poderás identificar os dois. Honra e coração costumam andar bem-avindos, mas +é só nos romances.</p> + +<p>—E fóra dos romances, amigo Almeida—disse Fernando.—Agora mesmo te +estou dando a prova. Diante das razoaveis difficuldades que me levantas, ouso +ainda insistir pelo deposito, e envergonho-me de ter vacillado entre o +processo judicial e a fuga.<span class="pagenum"><a id="pag_150" +name="pag_150">[150]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00170">XV</a></h1> + +<p>Paulina convidara Fernando a um colloquio nocturno, na vespera do dia em +que havia de ser requerido o deposito. Este convite fôra-lhe suggerido pelo +secretario da legação, que antevia mau desfecho do negocio tratado com pannos +quentes. Induzira elle a menina a propôr de viva voz e com instancia ao noivo +a fuga immediata: esperava Almeida que a presença, a resolução e intimativa +de Paulina quebrantassem a firmeza do seu amigo.</p> + +<p>Era aquella a primeira vez que Fernando Gomes ouviu a voz de Paulina, +depois da saída de Florença. Foi com alegria de coração; todavia algum vago +presagio lhe ennublava o espirito.</p> + +<p>A familia Briteiros occupava o primeiro andar do melhor hotel de Madrid. +Fernando devia entrar ás nove horas da noite e pedir um quarto no +<i>entre-sol</i> do edificio. O corredor commum d'estes quartos<span +class="pagenum"><a id="pag_152" name="pag_152">[152]</a></span> baixos tinha +escada que subia ao primeiro andar. Ás onze horas Fernando subiria esta +escada, e encontraria Paulina no tôpo. A excellencia do plano correspondeu á +execução. Ninguem occupava os quartos inferiores, excepto um francez chegado +á mesma hora. O hospede entrara, e fechara-se em sua camara. Ás onze horas +era completo o silencio no andar superior. Bartholo dormia o pacifico somno +de quem tomou o chá com algumas inoffensivas gottas de extracto de morfina, +ministrado á filha pelo previdente secretario da legação, que assim pensava +ir lentamente vingando os condiscipulos enforcados. O marquez recolhia da +tertulia ás tres horas da manhã. Eugenia velava com sua irmã, como quem +velava em cousa muito de seu interesse, e vae já dizer-se para que não +esqueça.</p> + +<p>Fernando subiu as escadinhas em espiral.</p> + +<p>Quiz-lhe parecer que via um vulto á porta, aberta no cimo da escada, e +parou no intento de retroceder. Fez-se um pallido clarão no interior da sala. +Assomou á entrada Paulina, e murmurou:</p> + +<p>—Sóbe sem receio, Fernando.</p> + +<p>—Parece-me que estava aqui gente, quando eu subia...—disse o moço.</p> + +<p>—Não te enganaste.</p> + +<p>—Quem era?</p> + +<p>—Depois saberás tudo: escuso dizer-te que não tem nada comtigo o vulto. É +um homem que ama minha irmã: é o conde de Rohan. Não podemos perder +tempo—continua Paulina com adoravel alvoroço.—Preferes os mil estorvos com +que vamos luctar á certeza da ventura sem o menor desgosto?<span +class="pagenum"><a id="pag_153" name="pag_153">[153]</a></span></p> + +<p>—E o que é a ventura sem o menor desgosto, minha querida +Paulina?—perguntou Fernando, já meio aturdido pelo magnetismo d'aquella voz, +d'aquelles olhos, d'aquellas roupas brancas, d'aquella luz, d'aquelles +braços, que, a tremerem, se lhe ousavam enlaçar no pescoço com o mais pudico +despejo das almas puras, que tudo fazem com a mais santa das intenções.</p> + +<p>—Pois não achas mil vezes melhor que fujamos para Portugal?—tornou +Paulina—Tu não me amas, não!... Vê tu que differença do teu coração para o +meu!</p> + +<p>—Por Deus!—atalhou Fernando.—Eu não te amo, Paulina!?...</p> + +<p>—Que quer dizer a tua repugnancia em acabar com isto d'uma vez!?... Ha +tanto tempo a soffrer a perseguição de meu pae!... Desde que acabaram os +quinze dias, estou n'um martyrio incessante com perguntas, maus modos, e +desprezos! E a padecer tanto por amor de ti! Sei que, se fôr depositada, meu +pae ha de dar-me dias horriveis de amargura; e, por fim, tu verás que a +justiça me entrega a elle para nunca mais saberes de mim, nem eu de ti, meu +Fernando! Olha, querido amigo, tira-me d'aqui; fujamos para a tua familia; +vamos ser felizes; lembra-te que eu deixo o amor de meu pae, e tudo, para +seguir a tua sorte! Leva-me, Fernando, leva-me, porque depois de ámanhã +n'esta casa nem tenho mesmo minha irmã que me console as tristezas e +saudades. Minha irmã foge ámanhã por noite com o conde. Vão casar-se a Paris. +Assim que ella lhe escreveu a chama-lo, veiu logo, e preparou tudo<span +class="pagenum"><a id="pag_154" name="pag_154">[154]</a></span> para a fuga. +E eu pensava que o teu amor era mais forte que o d'elle!... Porque me não +levas, Fernando? Falas-me tanto em honra, meu amado! Eu não entendo os pontos +de honra em que me estás sempre falando! O nosso amigo Almeida tambem os não +entende. Quando se ama verdadeiramente, as considerações, que tu me fazes, +parece-me que ninguem as faz... Que prazer tens tu em que eu vá estar seis +mezes ou mais n'um convento á espera que a demanda se decida, sem mesmo +antevermos a certeza da decisão favoravel!? Isso é crueldade! Olha que me não +vês, Fernando, nem talvez possas escrever-me! Se eu morrer de magua, de quem +é a culpa? Quantas vezes te arrependerás de me não ter ouvido n'esta hora? +</p> + +<p>Não era necessario tanto. Fernando Gomes estava vencido e convencido. As +ultimas palavras de Paulina tinham sido cortadas de soluços. Nunca homem +algum resistiu a isto! Scipião, o respeitador historico das mulheres, se +visse este lance viria outra vez ao mundo dar testemunho de uma virtude, que +a sua celebrada continencia usurpava.</p> + +<p>Fernando tomou nos braços a soluçante menina, e disse-lhe:</p> + +<p>—Fugiremos, Paulina. Fugiremos, quando quizeres. Ámanhã, se te apraz. +Deus vê as minhas e tuas intenções. Espero que nunca te arrependas do passo, +que o mundo, a seu pezar, não poderá infamar-te.</p> + +<p>Paulina expandiu-se em requebros de ternura e raptos de alegria. A +combinação de horas, signaes, e menores accidentes da fuga ficou pactuado. +Disse<span class="pagenum"><a id="pag_155" name="pag_155">[155]</a></span> a +menina que se conservasse elle á escuta algum tempo, emquanto ella ia +preparar o pacotinho da mais necessaria bagagem; e, depois, a recadasse no +seu quarto, e de madrugada a levasse comsigo, sendo este o melhor modo de não +inspirar desconfianças. Como embriagado de alegria, Fernando accedeu a tudo +sem contestar; esperou, e recebeu o pacote, que era uma mala ingleza +quadrada, cujo peso elle notou com admiração.</p> + +<p>Ao romper da manhã, o passageiro, com ar de quem vae entrar nos vehiculos +da madrugada, saíu do hotel; sobraçando a mala com grande espanto do creado, +que o vira entrar sem ella, e recolheu-se á sua pousada, d'onde logo escreveu +ao secretario da legação.</p> + +<p>Almeida acudiu logo a felicitar o reconsiderado amigo, congratulando-se de +ter elle sido o indirecto motor da saudavel reforma nos estoicos principios +do seu camarada. Traçaram o plano facilimo da fuga. Fóra de portas estariam +cavalgaduras. O funccionario diplomatico iria com os fugitivos para remover +obstaculos imprevistos da policia. Fernando era já o homem avesso do dia +anterior. Falava o coração, alliviado do pesadello da impertinente honra.</p> + +<p>Sentia-se enlouquecer de esperanças alegres, anciosas, insoffridas da +morosidade do tempo.</p> + +<p>—Aqui tens a riqueza da minha Paulina!—disse elle sorrindo e mostrando a +mala.—Ninguem dirá que eu a raptei por causa d'essa malinha, que deve +encerrar algum vestido, e as minhas cartas...</p> + +<p>Almeida tomou ao alto a mala, e disse:<span class="pagenum"><a +id="pag_156" name="pag_156">[156]</a></span></p> + +<p>—Não: aqui ha alguma cousa mais que sedas e papeis! Isto pesa como ouro. +</p> + +<p>—Ouro?! estás brincando!—disse Fernando.</p> + +<p>—Está aberta a mala. Se não temes a profanação, vejamos o que vae aqui. +</p> + +<p>—Sim, vejamos—condescendeu Fernando, desfivellando as correias.</p> + +<p>Ao de cima iam as cartas em massos, cintadas com fitas de diversas côres. +Seguia-se alguma, pouca e finissima roupa branca, cuja hollandilha, e +cambraia tomava pouco espaço. Depois, um vestido de seda azul, o que ella +vestia no baile de Jeronymo Bonaparte, onde viu Fernando Gomes pela primeira +vez. Depois, sobre o fundo da mala, descobriram uma caixa de tartaruga, pouco +mais larga e comprida que um palmo. Esta caixa é que realmente pesava como +ouro, e estava fechada.</p> + +<p>Fernando esteve algum tempo tomando o peso da caixa, em meditativo +silencio, e disse:</p> + +<p>—Não levo isto: é preciso que faças chegar, antes de á noite, este +objecto a Paulina. Aqui vão grandes valores... não levarei comigo, aqui +fechada, a minha condemnação. O mundo chama ladrões aos homens que praticam +assim. Depressa, Almeida. Inventa o milagre de fazer entregar isto a Paulina, +quando não, está tudo transtornado.</p> + +<p>—És um homem impossivel!—replicou o secretario da legação, menos +escrupuloso que philosopho, se é que se chama acertadamente philosophos, uns +sujeitos que sabem receber, em pleno espirito, a luz toda do seculo.—Pois tu +recusas acceitar Paulina com as joias do seu uso?<span class="pagenum"><a +id="pag_157" name="pag_157">[157]</a></span></p> + +<p>—Recuso. Paulina não tem nada.</p> + +<p>—Nem a legitima de sua mãe?</p> + +<p>—Paulina é menor: seu pae é que lh'a administra.</p> + +<p>—Eu não discuto direito comtigo; limito-me a descobrir que és um asno +exemplar, e dá-me vontade de te mandar cavar pés de... Com effeito! Venham +aqui aprender moralisação os futuros amadores de meninas que levam +caixõesinhos pesados, quando fogem com os amantes!...</p> + +<p>—Tens graça; mas eu tenho razão, que é melhor—retorquiu Fernando Gomes. +</p> + +<p>Emquanto elles altercam já em phrases desabridas, saibamos que rumor é +este que vae em casa de Bartholo de Briteiros.</p> + +<p>O creado do hotel, como visse saír o hospede de algumas horas com a mala +que não trouxera, obedeceu ao instincto da curiosidade, e seguiu-o com todas +as precauções. Viu a pousada em que entrára, tomou o numero da porta, e +voltou a casa a dar conta ao patrão.</p> + +<p>O dono do hotel, timbroso em manter a fama honrada do seu estabelecimento, +consultou o alcaide sem aventar suspeitas além das que realmente davam em +resultado a verdade inteira do facto.</p> + +<p>Sabia elle que o locatario do primeiro andar era um portuguez riquissimo, +e que mais de uma vez pernoitara, nos baixos da casa, um francez mysterioso, +que tinha intelligencias com uma das filhas do portuguez, segundo elle +deprehendera d'uma troca de escriptos, por alta noite, entre as janellas do +primeiro andar e sobre-lojas. Estes esclarecimentos<span class="pagenum"><a +id="pag_158" name="pag_158">[158]</a></span> deram rastros ao alcaide para +suas averiguações.</p> + +<p>Com quanto o sujeito da mala não fosse o francez alludido, observou mais o +austero hospedeiro que, no mesmo dia, entre as oito e nove horas da manhã, o +francez rebuçado cautelosamente sahira com um volume debaixo do braço. Estas +coincidencias de dois homens na mesma pousada, na mesma noite, e com volumes +iguaes, ou cousa assim, feriram faiscas de penetração na cabeça, aliás +cerrada, do hespanhol, que, de collaboração com o alcaide, deu como effeito +um consideravel roubo ao portuguez Bartholo de Briteiros.</p> + +<p>Esclarecido assim o facto, o alcaide apresentou-se ao fidalgo ás dez horas +da manhã, e perguntou-lhe se suspeitava que em sua casa faltassem objectos de +valor.</p> + +<p>—Não!—disse Briteiros—Quem ha de subtrahir objectos de valor de minha +casa?!</p> + +<p>—Examine, senhor—disse o subalterno da policia—que a minha obrigação é +averiguar, e sem detença.</p> + +<p>Bartholo entrou nos quartos de suas filhas improvisamente, e encontrou-as +empacotando e dobrando roupa de seu uso.</p> + +<p>—Que fazem as meninas?!—perguntou o pae com assombro.</p> + +<p>Paulina e Eugenia ficaram tolhidas, interdictas, e incapazes de responder +um monossyllabo.</p> + +<p>—Que estão a fazer, não ouvem?!—replicou Bartholo examinando a roupa +dobrada.</p> + +<p>Acudiu-lhe uma atroz suspeita. Fez-se côr de<span class="pagenum"><a +id="pag_159" name="pag_159">[159]</a></span> terra. Dilataram-se-lhe em +arqueijos as azas do nariz. Raiaram-se-lhe os olhos de linhas sanguineas. +Correu ás gavetas dos toucadores e das commodas; remexeu tudo, revistou tudo +impetuosamente, e exclamou:</p> + +<p>—As caixas das joias!? As tuas joias, Paulina, e as tuas, Eugenia? Onde +estão cem mil cruzados de brilhantes de vossa mãe?</p> + +<p>Paulina cravou os olhos no chão, perdida a côr, e quasi os sentidos. +Eugenia, mais fraca de compleição, e muito timorata, cahiu em joelhos, e +exclamou:</p> + +<p>—Perdão, meu pae!...</p> + +<p>—Roubado! roubado!—bradou o velho—roubado por minhas filhas!</p> + +<p>E saiu em vertiginosa corrida e a brados por a casa fora, até entrar na +sala onde estava o alcaide.</p> + +<p>Paulina, logo que o pae sahiu, disse á irmã:</p> + +<p>—Tu és uma miseravel se descobrires alguma cousa. Não pronuncies o nome +dos desgraçados, Eugenia! Ainda que nos matem, salvemo-los a elles!</p> + +<p>D'ahi a instantes, foram as meninas chamadas á sala, e interrogadas. +Nenhuma resposta deram ás perguntas do alcaide. Ás do pae respondiam, +principalmente Paulina:</p> + +<p>—Os brilhantes e as joias não estão em poder de ladrões.</p> + +<p>Mas, no tocante a nomes, nenhuma proferiu palavra.</p> + +<p>N'este momento angustioso, entrou o secretario da legação. N'um relance +comprehendeu tudo. Briteiros abraçara-se n'elle, exclamando:<span +class="pagenum"><a id="pag_160" name="pag_160">[160]</a></span></p> + +<p>—Roubado em muitos contos de réis por consentimento de minhas filhas... E +ellas, estas infames, estavam-se preparando para seguir os ladrões! Não +haverá justiça em Hespanha, senhor alcaide?</p> + +<p>—Ha—respondeu Almeida—e o ministro portuguez, em Madrid, é o +funccionario a quem primariamente compete solicitar a justiça em favor do +senhor Bartholo de Briteiros. Os passos do senhor alcaide hão de ser dados de +accordo comigo. Queiram esperar-me, que eu volto.</p> + +<p>Sahiu Almeida, e entrou em sua sege, que o transportou á pousada de +Fernando Gomes.</p> + +<p>Sem lhe dar completa explicação das causas, obrigou-o a sair, e +transportou-o a sua casa. Ahi, simplesmente lhe disse:</p> + +<p>—Se o meu plano vingar, d'aqui a pouco ha de estar Paulina comtigo.</p> + +<p>E saíu, a desapoderado galope dos cavallos, para o hotel de Briteiros.</p> + +<p>Ao apear, disse ao boleeiro:</p> + +<p>—Se uma senhora saltar na sege, vai n'um raio apea-la em casa, mas torce +o caminho.</p> + +<p>Subiu. As meninas tinham saído da sala.</p> + +<p>Bartholo e o alcaide estavam ouvindo o depoimento do dono e creado do +hotel, que denominavam francezes os conductores dos volumes.</p> + +<p>Almeida pediu licença para ter particular conferencia com as meninas. +Bartholo cedeu de prompto, entregou-se cegamente ás deliberações do +funccionario, que se dava o ar mysterioso de quem tem o fio da meada.</p> + +<p>A conferencia foi sem testemunhas.<span class="pagenum"><a id="pag_161" +name="pag_161">[161]</a></span></p> + +<p>—Fernando está em minha casa—disse Almeida.—Aqui ha um desesperado +recurso, um unico. A senhora D. Paulina entra na minha sege, e é conduzida a +Fernando.</p> + +<p>—Oh! meu Deus! já!—exclamou ella, erguendo-se para saír.</p> + +<p>—E eu fico, Paulina?—bradou Eugenia.</p> + +<p>—Pois vossa excellencia tambem quer fugir com Fernando?—disse Almeida. +</p> + +<p>—Eu havia de fugir esta noite com o conde de Rohan—respondeu Eugenia. +</p> + +<p>—Fujam ambas!—tornou o secretario, mas onde está esse conde?</p> + +<p>—Era hospede cá no hotel... Amo-o ha cinco annos... Vamos, vamos, +Paulina...</p> + +<p>—Eu indagarei onde está o conde—disse Almeida—Não se demorem.</p> + +<p>Alguns segundos depois, o estrepito da carruagem fazia tremer as vidraças +do hotel. A visinhança viu o rapido saltar de duas meninas, veleiras como +anjos alados, cobertas e encapuzadas de capas de merino branco com bordados e +borlas verdes nos capuzes. Ninguem soube dizer mais nada.</p> + +<p>O secretario saíu com o alcaide, e Bartholo de Briteiros tornou aos +aposentos das filhas, no intento de as mandar vestir para entrarem n'um +convento.</p> + +<p>Quando assomou á porta do quarto, viu duas creadas debulhadas em lagrimas. +<span class="pagenum"><a id="pag_162" name="pag_162">[162]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00180">XVI</a></h1> + +<p>Paulina e Eugenia, menos apavoradas do que suppõe o leitor, apearam no +pateo do secretario da legação, e foram guiadas a uma sala, em que Fernando +Gomes, prostrado mais que o commum em lances taes, parecia meditar no +suicidio. Paulina galvanisou-o moderadamente, apertando-lhe as mãos com mais +tremor de ternura que d'afflicção.</p> + +<p>—Que abatimento, Fernando!—disse ella, em quanto Eugenia, desalentada +pelo quebrantamento do moço, soluçava a chorar, na incerteza do seu destino. +</p> + +<p>—Isto não é abatimento, Paulina...—disse elle—é porque em verdade eu +recebo com dôr a alcunha de ladrão!... Falei-te eu em joias? Que infernal +lembrança a de me dares os brilhantes de teu pae!... Quando te disse eu que +precisava de ser infame para ser feliz?<span class="pagenum"><a id="pag_164" +name="pag_164">[164]</a></span></p> + +<p>—Foi uma indiscrição, meu amigo; mas perdoa-m'a...—disse Paulina—Como +os brilhantes tinham sido da mamã, e o papá muitas vezes nos disse que eram +nossos, cuidámos que podiamos reparti-los entre ambas, sem medo de que +chamassem roubo a isto. Agora não tem remedio a nossa loucura... Não te +estejas tu assim a matar, meu Fernando. O crime é meu e não teu...</p> + +<p>—Cala-te, pobre criança!—redarguiu Fernando—tu não sabes que mal me +fizeste...</p> + +<p>Algumas phrases mais, talvez inopportunas, do filho do artista, obrigaram +Paulina a chorar e arrepender-se.</p> + +<p>Chegou, n'este escuro trance, o secretario, e todos o viram como prenuncio +de bonança. Eugenia saíu logo a perguntar-lhe se sabia onde estava o conde. +</p> + +<p>—Ainda não, minha senhora. Será talvez, difficil encontra-lo, se elle já +souber que o perseguem.</p> + +<p>—Sou tambem perseguido?—atalhou Fernando.</p> + +<p>—Ninguem sabe o teu nome, mas precisamente te procuram na estalagem onde +estavas. Porém, como falaste sempre francez, e, por bom alvitre meu, te +despediste como quem vae para França, muito diabolica será a alcaidaria +madrilense se te farejar aqui. Observo que os meus amigos estão todos tres +sem juizo para decidirem o que lhes convém.</p> + +<p>—Eu decidi—disse Fernando.</p> + +<p>—O teu plano deve ser o unico racional na tua situação: é a fuga. A sr.ª +D. Eugenia dir-me-ha o que tenciona fazer se o seu conde não apparece.<span +class="pagenum"><a id="pag_165" name="pag_165">[165]</a></span></p> + +<p>—Não apparece!—exclamou ella atribulada.</p> + +<p>—Póde não apparecer, minha senhora, e não ha motivo para que vossa +excellencia o considere descuidado, covarde, ou traidor.</p> + +<p>—Então que eu hei de fazer?!—tornou Eugenia, pondo as mãos com +dilacerante angustia.</p> + +<p>—Quer vossa excellencia seguir sua irmã, e esperar em Portugal que eu a +avise do destino do conde?</p> + +<p>—Não lembres á sr.ª D. Eugenia um destino impossivel—disse Fernando +Gomes.—Eu não vou para Portugal.</p> + +<p>—Como?! não vaes para Portugal?</p> + +<p>—Não fujo—replicou Fernando—e, quando fugisse, não iria levar a meu pae +a noticia do nome que deixo em Madrid.</p> + +<p>—Pois se ninguem te sabe aqui o nome?</p> + +<p>—Sabe-o a minha consciencia.</p> + +<p>—Pois foge para França—recalcitrou Almeida—ou para a Italia, ou para +onde quizeres.</p> + +<p>—Não fujo; e perdoa-me, Paulina... Nós não podemos fugir. Teu pae vae +receber de minha mão os brilhantes de sua mulher e de sua filha; tu entras +espontaneamente n'um convento; de lá requeres dispensa do consentimento de +teu pae: sairás de Madrid com honestidade, e eu com honra. É impossivel ser +feliz, e dar-te felicidade, se faltarem estas condições á nossa união. Isto é +irrevogavel, meu amigo. Por delicadeza e compaixão não discutas comigo. Temo +que este anjo suspeite da minha dedicação, se tu me condemnares pela fraqueza +das minhas apprehensões.<span class="pagenum"><a id="pag_166" +name="pag_166">[166]</a></span></p> + +<p>Paulina teve momentos de suspeita, e outros peores de arrependimento. +Quizera ella esconder-se com a vergonha de seu acto a um coração bastante +forte, ou bastante desempoeirado, que lhe fizesse sentir com vaidade a +grandeza do seu heroismo. Nem elle mesmo a absolvia! elle, por quem a +imprudente se perdera no conceito do mundo, e na estima do pae! São +pungentissimos os espinhos das corôas que santificam os martyres da honra! +Este é um dos casos em que a mulher amada, amigo, sociedade tudo conjura a +azedar com mais fel o calix do homem probo! Acontece que o leitor de um +romance, que taes casos narra, sympathisa com semelhantes excepções d'este +mundo sublunar, mas assim mesmo, o panegyrico do romance é galardão tardio, +que não vale a menor das dôres que excruciavam a alma do pobre filho de +Francisco Lourenço.</p> + +<p>Estavam como atrophiadas as duas meninas. Almeida, sem dizer o seu +destino, tinha saído. Fernando encarou na lagrimosa Paulina, correu a ella, e +ajoelhou-se-lhe aos pés, murmurando:</p> + +<p>—Duvidarás tu que te adoro, ó anjo da minha alma!... Poderás crer que o +receio de ser apregoado ladrão me faz baixar ao egoismo de maldizer a hora em +que te vi!... Não, não, minha querida filha; não me julgues capaz de afastar +uma infamia com outra...</p> + +<p>—Degradei-me por amor de ti—soluçou ella—e agora hei de ir morrer n'um +convento, sem a amizade de ninguem, perdida no conceito de toda a gente, e +tratada com vilipendio por todos... Cuidei<span class="pagenum"><a +id="pag_167" name="pag_167">[167]</a></span> que não me tornava indigna aos +teus olhos...</p> + +<p>—Indigna aos meus olhos!—exclamou Fernando coberto de lagrimas—quando +te disse eu palavra que te dê razão de tamanha calumnia! Ó Paulina, eu +quero-te pobre, quero fugir comtigo já, mas salva tu da deshonra o meu nome, +que ha de ser tambem o teu. Não leves o valor de um ceitil da casa de teu +pae. Espera que o boato do grande roubo de cem mil cruzados, de que teu pae +te argue, se desvaneça, para que a tua dignidade não fique tão feiamente +manchada. Não vês tu que se trata de salvar o teu nome?</p> + +<p>—Salva-lo, como?...—redarguiu Paulina.</p> + +<p>—Restituindo os brilhantes—disse Fernando.</p> + +<p>—De que serve restitui-los? Crês tu que o pae me dará licença de ser tua +esposa por isso? Meu pae tem cem vezes o valor dos brilhantes... Ha de +perseguir-me atrozmente para eu não casar comtigo, Fernando...</p> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> +<hr class="dotted"> + +<p>No entanto, o secretario da legação entrou no hotel de Bartholo de +Briteiros.</p> + +<p>Encontrou o velho prostrado no leito, espertando d'uma demorada syncope. +Ninguem ao lado do pobre pae! N'aquelle instante solemne calou-se o velho +rancor de Almeida, e falou a compaixão.</p> + +<p>—Mataram-me, as ingratas!—exclamou Bartholo—fugiram, fugiram as +perdidas! Deixaram-me assim, sósinho, a amaldiçoa-las, agora, e sempre, e na +hora da morte...<span class="pagenum"><a id="pag_168" +name="pag_168">[168]</a></span></p> + +<p>Almeida deixou-se abraçar pelo anciado velho, e disse-lhe:</p> + +<p>—Cobre a possivel serenidade para me ouvir, senhor Bartholo.</p> + +<p>—Diga o que quizer, meu amigo. Pouca vida terei para ouvi-lo.</p> + +<p>—Suas filhas deviam fugir ao vexame dos interrogatorios judiciaes, e +fugiram. Conduziu-as a minha carruagem; estão em minha casa.</p> + +<p>—Estão?!...—exclamou Bartholo.</p> + +<p>—Estão, como se estivessem na austeridade d'um mosteiro. Vossa +excellencia deu-lhes o impulso desgraçado que dão os paes que o não sabem +ser. Quiz vossa excellencia pautar o coração de suas filhas: tentou um +absurdo, que deu origem á culpa. A natureza reage contra as violencias; e a +reacção é quasi sempre indiscreta ou criminosa. Sua filha Eugenia amava o +conde de Rohan, sua filha Paulina amava Fernando Gomes. O francez sei quem é +de tradição; Fernando, que eu conheço desde as escolas, é um homem de tantas +e tão insolitas virtudes, que o mundo actual ha de vêr-lh'as com extranheza. +Vossa excellencia impugnou o enlace de suas filhas com estes dois mancebos +escolhidos por ellas. Uma, ia ser immolada ao marquez de Tavira, que sae +embriagado dos alcouces ás tres horas da manhã; a outra estava esperando a +sua hora de sacrificio. O funesto resultado d'estas coacções foi uma e outra +conspirarem surdamente contra a insensata tyrannia de vossa excellencia. +Fernando Gomes chegava a Madrid um dia antes de vossa excellencia, em vez de +estar na Irlanda procurando<span class="pagenum"><a id="pag_169" +name="pag_169">[169]</a></span> a senhora D. Paulina nos mosteiros; o conde +de Rohan, chamado de França por a senhora D. Eugenia, veiu hospedar-se n'este +mesmo hotel.</p> + +<p>—E eu sempre vendido e enganado por ellas!...—exclamou Bartholo.</p> + +<p>—Era a justa paga do despotismo com que vossa excellencia dispunha de +suas filhas, que tinham em si o despotismo mais imperioso do coração! +Pergunto eu ao sr. Bartholo de Briteiros: se suas filhas, para se libertarem +d'um jugo violento, deram o extranho passo de prepararem a fuga, que crimes e +vergonhas as reterão no mau caminho que tomaram, se vossa excellencia não +tiver a prudencia de as chamar a si, e rehabilita-las no conceito do +mundo?!... Por em quanto não ha nada que as avilte. O levarem ellas suas +joias e as de sua mãe, isso, a meu vêr e de toda a gente, é cousa de si tão +desculpavel, que não tem mesmo penas na lei que a puna. O valor moral do acto +tambem nada significa. Imagine vossa excellencia que as suas filhas gostavam +dos seus enfeites, e, quando fugiam, levaram comsigo esses adornos da +vaidade, aos quaes ellas não ligaram valor algum real. Já disse a vossa +excellencia que não conheço pessoalmente o conde, amado pela senhora D. +Eugenia. Informei-me agora mesmo na embaixada franceza, e soube que o conde +era um dos mais nobres legitimistas da França, e tem castellos, senão +reconstruidos á moderna, cravejados de muitos brazões, que, se me não engano, +podem competir antiguidade com os de vossa excellencia. Este cavalheiro era +incapaz de ser o receptador de um furto. Em quanto a Fernando, o<span +class="pagenum"><a id="pag_170" name="pag_170">[170]</a></span> portuguez, +posto que não tenha castellos nem mais appellido que o <i>Gomes</i>, que +vossa excellencia provavelmente não encontra nos seus nobiliarios, os +brilhantes que se presumem ter ido n'uma caixa, em tão pouco os reputa elle, +que me encarrega a mim de os depositar nas mãos de vossa excellencia. Queira +o senhor Bartholo estalar a fechadura da caixa para verificar a identidade +dos objectos. Fernando Gomes não sabe o que está ahi.</p> + +<p>Almeida entregou a caixa a Bartholo, que apenas o interrompia com variados +gestos de raiva, surpreza e condescendencia.</p> + +<p>Depois proseguiu:</p> + +<p>—Fernando Gomes está fazendo companhia ás filhas de vossa excellencia em +minha casa. O conde de Rohan está hospedado na embaixada franceza. O que o +conde quer não sei; o que Fernando deseja é que a senhora D. Paulina entre +pacificamente n'um convento, e de lá instaure um processo para vossa +excellencia ser ouvido na questão de consentimento para matrimonio. Resolvi +eu, sem permissão d'uns e d'outros, vir propôr a vossa excellencia o +seguinte: suas filhas voltarão para casa, e vossa excellencia consentirá que +ellas se desposem com homens de sua escolha, recahindo ella em sujeitos tão +benemeritos como o conde e Fernando Gomes. Ouvirei a sua resposta.</p> + +<p>Bartholo desceu do leito, amparando-se ao hombro de Almeida. Passou á +ante-camara, sentou-se a chorar e enxugar lagrimas, reflectiu alguns +segundos, e disse:</p> + +<p>—Pois que venham as minhas filhas para casa,<span class="pagenum"><a +id="pag_171" name="pag_171">[171]</a></span> e eu cederei o que fôr de razão +ceder. Mas, senhor Almeida!... Esta ignominia já deve ser notoria em todo o +Madrid!</p> + +<p>—Apenas a justiça, auctorisada por vossa excellencia, anda em +averiguações inuteis. Mande o senhor Bartholo suspender a vulgarisação que os +esbirros estão dando aos desgostos particularissimos de sua vida.</p> + +<p>—Vou mandar...—disse Bartholo.</p> + +<p>—Veem, por tanto, suas filhas. Eu não levo a certeza dos bons intentos de +vossa excellencia. Por isso mesmo ouso lembrar-lhe que, se forem o inverso +dos meus bons desejos, as consequencias redundarão todas em desgostos maiores +para vossa excellencia, e póde ser que mui grande vilipendio para suas +filhas. O senhor Briteiros, se as chama para as castigar com violencias, abre +n'esta casa trinta portas por onde ellas podem fugir. Ha uma hora em que um +pae reconhece que toda a sua força se quebra diante do aceno d'uma debil +criança. A lucta é desigual com o coração, senhor Bartholo...</p> + +<p>—Diz bem...—atalhou o velho.—Fui eu que as perdi com a educação, com o +mundo, com a vida de Paris e Florença...</p> + +<p>—Assim seria; mas o mal é insanavel com cauterios: requer muita prudencia +o corrigi-lo. Vossa excellencia póde faltar a suas filhas ámanhã; e o mundo +ha de chama-las a si com a educação que lhes deu, e engolfa-las no seu +abysmo. Salve-as com tempo, senhor Briteiros. A sociedade dá ás mulheres este +nefasto prestigio, que as enthrona, com<span class="pagenum"><a id="pag_172" +name="pag_172">[172]</a></span> a condição de se despenharem depois na +voragem onde foram buscar a realeza.</p> + +<p>—Diz bem...—repetiu Bartholo de Briteiros, que, segundo minha opinião, +percebeu levemente o interlocutor.<span class="pagenum"><a id="pag_173" +name="pag_173">[173]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00190">XVII</a></h1> + +<p>Almeida foi apresentado ao conde de Rohan, que se envolvera na bandeira +franceza, logo que houve noticia do descobrimento da projectada fuga.</p> + +<p>Para honra da França, diremos que o descendente do famoso cardeal, quando +recebeu o pacote de Eugenia, se bem que o achou pesado, não cuidou que levava +metade das joias e brilhantes. A mim, porém, me quer parecer que o illustre +conde não faria caramunhas de mau gosto, quando a menina lhe mostrasse os +aderesses de ricas pedras. A França, n'isto e em tudo, vae na dianteira dos +espiritos. A virtude, lá, é cousa tão contingente, que chega a não ser regra. +Menina que foge, não perde aos olhos do seu raptor, nem o tribunal do mundo +se entoga com gravidade de juiz para cousa tão futil. O conde de Rohan +pensava muito em descobrir Eugenia, e pouquissimo nos brilhantes, quando o +cavalheiro<span class="pagenum"><a id="pag_174" +name="pag_174">[174]</a></span> d'Almeida lhe foi apresentado pelo benevolo +embaixador francez, amigo de ambos.</p> + +<p>Contou o secretario os successos decorridos, e a convenção, pouco segura, +mas preparatoria para bom resultado, que fizera com Bartholo de Briteiros. O +francez, approvando tudo com palavras de muito reconhecimento, pediu a +Almeida a grande mercê de ser o apresentante dos brilhantes e dos seus +respeitos ao fidalgo de Portugal. Estes <i>respeitos</i>, associados aos +brilhantes, fizeram que o secretario notasse a superioridade do espirito da +França sobre o de Portugal. Em quanto Fernando se estava n'aquellas lamurias +e quebrantos, o conde de Rohan, fumando um perfumado charuto de Havana, com a +chavena de chocolate ao lado, sorria mui placidamente, ao passo que o +informador contava os acontecimentos occorridos; e, com quanta graça +mesureira tinha de seus placidos modos, enviou <i>ao fidalgo portuguez</i> +(hidalgo, disse elle) os seus brilhantes e os respeitos d'elle.</p> + +<p>—Em quanto á minha boa Eugenia—accrescentou o conde—terá o cavalheiro a +benevolencia de lhe asseverar que eu sou sempre o mesmo homem, submisso +escravo das suas vontades.</p> + +<p>Com tão boas novas, correu Almeida a sua casa.</p> + +<p>As noticias foram gratas a todos, posto que Paulina por palavras não +denotasse a satisfação intima, que sentira. Póde deduzir-se, sem desairar a +menina, que as amarguras de Fernando, aquellas exuberancias de dignidade, o +muito falar na honra de seu nome, agradaram mediocremente á filha de +Bartholo. Perguntei a differentes senhoras, differentes em<span +class="pagenum"><a id="pag_175" name="pag_175">[175]</a></span> temperamento, +se o despeito de Paulina seria justo. Com muita magua de meu coração ouvi +resposta, unanime de todas—que Paulina tinha razão; que Fernando encerrava +nas arterias agua chilra; que um homem, assim apontado em subtilezas de +honra, poderá ser um bom guarda-livros, um bom mordomo d'uma casa, mas que ha +de sempre ser um amante glacial.</p> + +<p>Fiquei suspenso, e prometti refutar semelhantes despropositos, quando +escrevesse este romance. Desisto da tenção formada.</p> + +<p>Antes quero que o leitor discuta e abysme as senhoras que injuriaram o +pobre moço, e acharam extrema graça e galhardia de animo no conde de Rohan. +</p> + +<p>Entretanto, Paulina, ao despedir-se de Fernando, abraçou-o com +exterioridades de muito affecto, e pediu-lhe que não chorasse, +accrescentando:</p> + +<p>—Tu podes contar sempre comigo, Fernando. Esperanças de que meu pae +consinta no casamento, não levo nenhuma; mas se tu entenderes que, por meios +da justiça, podemos conseguir os nossos desejos, tão desgraçadamente +contrariados quando eu me julgava e te julgava feliz, estou prompta a +requerer.</p> + +<p>Notem a frialdade d'esta linguagem! Fernando, Eugenia e Almeida todos a +notaram. Elle, porém, beijou-lhe a mão, e disse:</p> + +<p>—Vae, minha amiga, e esquece-me, se quizeres e poderes. O que nunca +poderás esquecer é que o homem, que te não servia para o coração, tinha +alguma boa qualidade que ha de eternamente viver<span class="pagenum"><a +id="pag_176" name="pag_176">[176]</a></span> em tua memoria. Antes esquecido +por ti, que deshonrado por amor de ti, Paulina.</p> + +<p>Sobreveiu o secretario com reflexões tendentes a conciliar os animos +despeitados dos dois tão amantes, tão doidos de alegria, algumas horas antes; +e agora, a separarem-se, com a desconfiança n'alma, a desconfiança que é +quasi sempre a doença morta do coração!</p> + +<p>Paulina desceu, chorando, encostada ao braço de Almeida.</p> + +<p>O filho do artista lembrou-se, n'este acerbo momento, de sua mãe, porque +teve precisão de orar, e quem lhe ensinara a oração fôra sua mãe.</p> + +<p>Deixemo-lo orar e chorar. Preces e lagrimas assim, os anjos as levam ao +Senhor. Áquellas almas disse Jesus: «pedi, e sereis attendidas.»</p> + +<p>Os que dão cegamente sua alma a quem a não merece, e rogam a Deus o +resgate d'ella, sentem-se livres.</p> + +<p>Os que vão de rastros e quasi moribundos sob o pé da injustiça humana, +oram, e recobram uma força, que é insulto á covardia dos fortes. Deixa-los +chorar e orar.</p> + +<p>Deus lhes mostrará os balsamos das urnas que ahi estão a desbordar desde +que o Homem-divino perdoou aos que o matavam por ignorancia. Porque não hão +de perdoar estes homens de barro á cafila de farizeus que os não entendem? +</p> + +<p>Da cafila de farizeus exceptuo Paulina de Briteiros. Se eu não podesse +estrema-la, rasgava aqui estas paginas, e queimava os apontamentos, para que +nenhum collega meu d'este maldito officio<span class="pagenum"><a +id="pag_177" name="pag_177">[177]</a></span> saísse alguma vez a lume com a +historia d'uma linda mulher com alma tão feia!</p> + +<p>Paulina e Eugenia entraram nos seus aposentos, sem verem o pae.</p> + +<p>O secretario foi ao quarto de Bartholo entregar a outra porção de +brilhantes, e continuar sua missão de conciliador e conselheiro.</p> + +<p>O fidalgo denotava boas intenções, em quanto ao conde de Rohan. De +Fernando Gomes disse, á terceira pergunta, que havia de pensar no melhor modo +de se realisarem os desejos de sua filha.</p> + +<p>As meninas passaram aquelle dia sem leve incommodo de sua saude, nem +accessos de lagrimas que mereçam chronica. Doe-me ter de dizer que, ahi por +fins da tarde, riram com as creadas da figura que ellas deviam fazer, quando +saltaram á carroagem, desgrenhadas, com os capuzes das capas encarapuçados á +laia de feiticeiras. Esta frivolidade de espirito feminil é cousa tão vulgar, +que eu peço á leitora que não levante a pedra, e deixe ir as cousas em paz, +como Christo mandou ir uma peccadora.</p> + +<p>No dia seguinte Fernando Gomes, instado por seu amigo, saíu com elle em +carroagem. Passearam até á ponte de Segovia, e apearam na praça do Sol, onde +o secretario havia de cumprir ordens do ministro.</p> + +<p>O acaso encaminhara para alli o marquez de Tavira, que trazia o espirito +encavalgado por um dragão.</p> + +<p>Viram-se e reconheceram-se.</p> + +<p>O marquez, cego de sua raiva, parou em frente<span class="pagenum"><a +id="pag_178" name="pag_178">[178]</a></span> de Fernando, e disse a brados +que muita gente ouviu:</p> + +<p>—Ainda tem a pouca vergonha de se mostrar nas praças um biltre que seduz +filhas-familias a roubarem seus paes!</p> + +<p>Se o periodo fosse mais comprido, morria incompleto na garganta do +marquez. O filho de Francisco Lourenço engriphou os dedos com sanha felina. O +rancor, brutalisando o homem, parece que lhe dá parecenças com a fera, cuja +sanha imita! As dez unhas de Fernando faziam espirrar o sangue gothico do +marquez, que escabujava como o Lacoonte de Virgilio nas roscas das serpentes. +Cairam ambos de modo que o de Tavira foi fender o occipital no eixo d'uma +carroagem, cujo dono fizera alto para disfructar a lucta.</p> + +<p>Almeida estava, poucos passos distante, observando o desenlace, que o +enchia de jubilo. O marquez, ensanguentado, coberto de lama, e quasi +desaccordado, nem de leve se boliu, quando Fernando desencravou as unhas. +Approximou-se Almeida, e offereceu ao fidalgo a sua carroagem para conduzi-lo +onde quizesse. O soberbo de sua miseria respondeu com uma insolencia, e +retirou-se com respeitosa, mas curiosa cauda de gaiatos, testemunhas +pertinazes e minudenciosas de todos os conflictos magnificos.</p> + +<p>Constou ao secretario que o marquez saíra, no seguinte dia, de Madrid, com +direcção a Portugal, onde a presença do convencionado não incommodava +ninguem. Parece que Bartholo de Briteiros lhe emprestara dinheiro com que +elle podesse na<span class="pagenum"><a id="pag_179" +name="pag_179">[179]</a></span> patria sustentar a antiga ociosidade e +dissipação de seus avós. E, como não sei se virá de molde lembrar o nome +d'este sujeito no decurso da novella, fique o leitor sabendo que o marquez de +Tavira, depois de residir em Lisboa alguns mezes, fez-se um liberal rasgado, +ou roto, como quizerem, e conseguiu ser nomeado ministro n'uma das côrtes da +Europa, e mais tarde governador dos estados da India, d'onde veiu, já muito +na flôr dos sessenta annos, casar em Portugal, onde está rico e honrado.</p> + +<p>Paulina, sabedora da derrota que soffrera o primo marquez, sentiu uma +satisfação que eu sinceramente lhe não louvo, e ao mesmo tempo um accrescimo +de estima por Fernando, estima que eu não posso attribuir ao coração. Estas +anomalias que a moral reprova e a animalogia desentende, são uns geitos de +mulher que avisadamente não discuto. São assim. Deus as faça melhores ou +peores, de modo, porém, que fiquem mais decifraveis e intelligiveis.</p> + +<p>Bartholo, como é bem de ver, ficou raivoso contra Fernando Gomes, e esteve +uma noite toda a scismar no modo menos estrondoso de se desfazer d'aquelle +inimigo. Ponderou o malvado intento de lhe comprar a vida; mas occorria-lhe +que em Madrid era difficil e arriscado andar em cata de um sicario destro e +fiel. Desanimou: mas jurou que sua filha Paulina havia de morrer n'um +convento, se teimasse em querer casar com o facinoroso.</p> + +<p>Este successo apressou o casamento de Eugenia<span class="pagenum"><a +id="pag_180" name="pag_180">[180]</a></span> com o conde de Rohan. O fidalgo +colheu informações, que condisseram exactamente com as do secretario, mas +muito por miudo. O conde era oriundo dos primeiros soberanos da Bretanha, +condes de Porrhoit, viscondes de Rennes, por Alain I, quarto filho de Eudon, +que vivia no seculo X. D'esta nobilissima stirpe procediam os duques de +Rohan, com esta legenda no escudo: <span class="small-caps">roi ne puis, +prince ne daigne, Rohan je suis</span>.</p> + +<p>Á vista d'isto, e do mais que deixo á averiguação dos genealogicos, +Bartholo de Briteiros deu Eugenia ao conde, liberalmente dotada, e resolveu +ir viver em Paris no inverno, e n'um dos castellos da Bretanha, no verão, em +companhia de seu genro.</p> + +<p>O velho principiava assim a vingar-se de Fernando Gomes.</p> + +<p>No jantar nupcial, ao qual assistiram titulares hespanhoes, e a diplomacia +dos differentes estados, Bartholo de Briteiros, n'um brinde que propôz a seu +genro, disse em remate do discurso:</p> + +<p>—Eu morrerei feliz, se vir minha filha Paulina casada com um parente dos +Rohan; e, se não puder ser tanto, que seja, e muito ainda será, um nobre da +França ou das Hespanhas, a quem meu genro aperte a mão, sem receio de a +retirar suja.</p> + +<p>—De sangue...—disse Almeida com um sorriso que tinha fogo do inferno. +</p> + +<p>Esta palavra «sangue» turvou um pouco o vinho que Bartholo bebia. Ao +ex-ministro da Alçada quiz parecer que havia n'aquelle dizer succinto uma +allusão. Nem que o secretario da legação fallasse em corda!<span +class="pagenum"><a id="pag_181" name="pag_181">[181]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00200">XVIII</a></h1> + +<p>Fernando Gomes, informado, não por Paulina, mas por Almeida, dos successos +que se iam encaminhando a um natural e triste desfecho de tantos trabalhos, +póde dizer-se que morreu antes que o matassem. Senhoreou-o amargura serena, +sem contorsões; mas profunda, luctuosa, e inalteravel por nenhuma diversão. +</p> + +<p>Alguma carta que escrevia a Paulina ia breve, desalentada, sem a palavra +esperança, sem a palavra saudade, sem a palavra amor.</p> + +<p>Divagava por uns nevoentos dizeres, como devem ser os do enfermo de mortal +doença, que antevê o fim, e se está, meio vida, meio eternidade, conversando +com amigos, que deixa sem saudade e sem esperança de tornar a ve-los n'outro +mundo.</p> + +<p>Paulina entendia mal esta nova phase do espirito de Fernando, e +respondia-lhe queixando-se da seccura<span class="pagenum"><a id="pag_182" +name="pag_182">[182]</a></span> de suas cartas; porém, a tibieza dos +queixumes podia apostar lethargia d'alma com o apparente regelo das cartas de +Fernando.</p> + +<p>—Como cahiste n'esse estado? perguntava Almeida ao seu amigo.</p> + +<p>—Era o meu estado natural. Assim me conheceste no cerco e na +universidade. Paulina emprestou-me uma segunda natureza que eu lhe devolvi em +lagrimas, e fiquei como era, peor do que era, porque havia uma virtude em que +eu tinha fé—o coração da mulher—e esta crença tambem se foi diluida em +lagrimas.</p> + +<p>—Injustiça!—interrompeu Almeida.—Não te diz ella que está prompta a +requerer o seu deposito?</p> + +<p>—Disse, não diz.</p> + +<p>—Propõe-lh'o.</p> + +<p>—Não. Quero forrar o meu pundonor ao ultraje da negativa.</p> + +<p>—Farei eu a proposta, mediante o conde de Rohan.</p> + +<p>—Recuso o favor. Quem te diz a ti que o conde de Rohan deseja o casamento +de sua cunhada comigo?</p> + +<p>—Elle.</p> + +<p>—Não creias. O conde de Rohan tem irmãos. Paulina é rica e formosa como +Eugenia.</p> + +<p>—Imponho-me o dever de não julgar ninguem pelos teus olhos. Tu és uma +raridade, um excentrico, uma cousa com geitos de pessoa. Erras quantos juizos +fazes. Eu hei de sondar o conde. Póde ser que tudo se consiga sem processo +judicial.<span class="pagenum"><a id="pag_183" +name="pag_183">[183]</a></span></p> + +<p>O secretario procurou o conde. Fallou amplamente de Fernando Gomes, e das +suas injustiças ao caracter de Paulina. O conde mostrou sympathisar com o +caracter do portuguez, e disse:</p> + +<p>—Eu fallarei a meu sogro.</p> + +<p>E falou de modo que as suas ultimas palavras summariam o elogio que se lhe +deve:</p> + +<p>—O homem, cuja mão eu aperto com sincera satisfação de quem sabe prezar a +virtude, é Fernando Gomes. Peço encarecidamente a mão de minha cunhada para +este tão modesto como honrado mancebo. Condescenda, meu sogro, para eu poder +dar-lhe o nome de provado amigo.</p> + +<p>Bartholo de Briteiros respondeu umas palavras oscillantes, que nenhuma +resolução significavam. O conde saiu maguado d'esta conferencia, e disse á +cunhada:</p> + +<p>—Se Paulina quizer casar com Fernando, tem de adoptar meios +extraordinarios. Requeira o deposito, que a familia do ministro francez +presta-lhe sua casa.</p> + +<p>Paulina respondeu:</p> + +<p>—Era preciso que Fernando ao menos me enganasse, para eu acceitar o seu +conselho. Fernando, quando me escreve, nem ao menos diz que me ama.</p> + +<p>—Ama com a mais segura das paixões: a paixão que mata com infernal +lentidão.</p> + +<p>—Se elle m'o fizesse assim acreditar!...—replicou ella.</p> + +<p>O conde inferiu que Paulina estava cançada das virtuosas, +incomprehensiveis e fastidíosas singularidades<span class="pagenum"><a +id="pag_184" name="pag_184">[184]</a></span> de Fernando. E assim, muito á +puridade, o communicou ao secretario.</p> + +<p>Bartholo chamou Paulina, e mostrou-lhe cartas de Lisboa. A importancia +d'estas cartas ha de ressumbrar na seguinte, que ella escreveu a Fernando: +</p> + +<p> </p> + +<p>«Meu querido amigo.</p> + +<p>«Nem a cegueira do amor me engana. As tuas cartas dizem-me tudo que está +em tua alma. Eu não sei por que desmereci aos teus olhos. Não sei, Fernando! +Aquella impensada fuga que eu havia de fazer, com teu consentimento, creio +que me tirou todo o prestigio. Esta pobre formosura, que tanto encarecias, já +te não inspira mesmo as palavras animadoras que releio nas antigas cartas, +com o coração traspassado de dôr! O ser rica sabia eu que era cousa nenhuma +em teu conceito; mas o ser-te leal ha dois annos, á custa de tormentos +tamanhos, cuidava eu que seria um titulo á tua eterna dedicação. Louca +mulher, que tão vaidosa julguei merecer o que o mundo não póde dar! Com que +me recompensas tu o fel que eu tenho tragado desde que voltei dos teus frios +braços para debaixo dos olhos severos e queixosos de meu pae? O teu +esfriamento é incrivel! Se me dissessem que amas outra mulher, comprehenderia +o homem e a ingratidão. Mas sei que vives só, que vives triste, que tudo te é +indifferente, e eu mesma quasi esquecida! Cada carta que me envias é como +obrigada pela delicadeza. Palavras inintelligiveis, apprehensões vagas, e +nenhuma em que me digas positivamente o que pensas, e esperas de mim! E +eu<span class="pagenum"><a id="pag_185" name="pag_185">[185]</a></span> +amante como sempre! Capaz de tudo, mas incapaz de me abalançar a novos +sacrificios, sem que me tu digas corajosamente: «Luctemos de novo!» Porque +m'o não dizes, ó Fernando!?</p> + +<p>«Ainda agora saí do quarto de meu pae, onde fui chamada, e entrei a +tremer. Mostrou-me cartas de Portugal, cartas forjadas talvez aqui, e +mandadas lançar lá no correio. Todas falam de ti miserias que eu me pejo de +dizer. Mas adivinho que desejas ouvi-las. Creio que, em dizer-t'as, te +allivio de conjunturas dolorosas. Noticiam que teu pae é um sapateiro de +Lisboa, que tua mãe era colchoeira, e que andas por aqui a estragar as +economias de teu pae, em quanto elle lá está quebrado de trabalho, cerceando +ao pão de cada dia para te sustentar uma vida aventureira. São assim miserias +d'este jaez. Irritou-me a alegria de meu pae, quando elle com ar de victoria +me estava lendo estas calumnias. Não tive mão em mim, e disse-lhe: «Isso é +tudo falso. Se o pae de Fernando fosse um sapateiro, não iria visita-lo a +Londres, nem lhe daria a decencia com que tem vivido ha dois annos em +Florença, aqui, e em toda a parte. Meu pae encontrou-o em casa d'um principe, +e o principe de Monfort não aperta a mão a filhos de sapateiros, nem +ministros de Portugal em Hespanha o tratariam com tanta consideração, se elle +fosse o que essas cartas dizem. Meu pae enfureceu-se dizendo que o Almeida +era filho d'um latoeiro, e por isso occultava o teu nascimento...»</p> + +<p>Fernando, n'este ponto, machucou a carta na mão direita, e atirou-a aos +pés.<span class="pagenum"><a id="pag_186" name="pag_186">[186]</a></span></p> + +<p> </p> + +<p class="centrado">RESPOSTA</p> + +<p> </p> + +<p>«Minha senhora.</p> + +<p>«Não mentiram ao pae de vossa excellencia. Sou filho d'um sapateiro, e +d'uma colchoeira. Meu pae está ganhando o pão que me sustenta, e vendendo as +suas economias para suprir ás despezas que o seu trabalho não alcança. O +sapateiro foi a Londres, é certo; mas não foi visitar-me, como vossa +excellencia presume: foi pedir-me que voltasse á pobre casa, onde minha boa +mãe me chamava para me abraçar antes de morrer. Ensurdeci ao chamamento de +minha mãe, e não vi as lagrimas de meu pae. Vossa excellencia tinha-me levado +ouvidos e olhos, deixando-me no coração apenas a fibra do remorso de ser mau +filho.</p> + +<p>«Humilho-me diante de vossa excellencia, não como filho do sapateiro, mas +avergado pelo arrependimento de lhe ter occultado a minha humilde origem. Foi +o coração que me trahiu, dizendo-me que para vossa excellencia era cousa de +nenhuma significação o meu nascimento. Penso que devo ser desculpado d'esta +falta: seria grande extranheza andar eu divulgando o meu nascimento. Eu tinha +estado em França, e vira ministros sahirem das officinas: e o mundo +respeitava-os pela honra dos paes, e por sua elevação com esforços proprios. +Tudo me induziu, não a esquecer-me de que meu pae era sapateiro, mas a +presumir que me era licito com minhas acções continuar a ser honrado como meu +pae, sendo certo, minha senhora, que eu nunca ousei suppôr que meu pae +carecia de minhas virtudes para se dar nobreza de si.<span class="pagenum"><a +id="pag_187" name="pag_187">[187]</a></span></p> + +<p>«Faz-me pena o desgosto de vossa excellencia quando esta carta estiver +lendo!</p> + +<p>«O que a senhora D. Paulina de Briteiros tem soffrido por minha causa! Que +mal empregados sacrificios!</p> + +<p>«Não foi a mão de Deus que a susteve á borda do abysmo, minha senhora? Que +immensa vergonha e agonia devia ser a sua, se vossa excellencia a esta hora +fosse minha mulher?! Que torturas irremediaveis! Como havia dizer-lhe eu em +Portugal o nome de meu pae?</p> + +<p>«Nunca pensára n'isto!... Agora me parece incrivel que não pensasse!</p> + +<p>«Escrevo-lhe com quanta quietação de espirito se póde, minha senhora. O +coração está esmagado. Matou-o a vergonha de ter pulsado em tão baixo peito, +vergonha que eu confesso sentir diante da sombra de vossa excellencia, agora, +e sempre.</p> + +<p>«Veja que horrivel organisação social esta, senhora D. Paulina! Diga vossa +excellencia em sua intima e clara razão, se eu merecia ser vilipendiado por +meu nascimento, emquanto não praticasse alguma acção infamante! que mal fiz +eu á sociedade em ter nascido de operarios?... Desculpe-me vossa excellencia +estas perguntas vans, desordenadas e indignas da sua attenção.</p> + +<p>«N'este momento vou queimar as cartas de vossa excellencia, menos d'esta +ultima a pagina em que, por suas mãos, a Providencia me ministra uma lição, +que me póde ainda levantar diante de mim mesmo.</p> + +<p>«De novo lhe rogo me perdôe, no silencio de sua<span class="pagenum"><a +id="pag_188" name="pag_188">[188]</a></span> consciencia, porque as suas +palavras já não poderei vê-las escriptas. Subscrevo-me, com quanto respeito +me inspiram suas virtudes, creado de vossa excellencia</p> + +<p class="direita">«<i>Fernando Gomes.</i>»</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>Almeida tinha saído com o ministro para o Aranjuez, para voltar quatro +dias depois. Fernando queimou as cartas de Paulina, lendo as primeiras de +Florença, quanto as lagrimas lh'o consentiam. Enfardou o seu fato. Comprou +passagem na primeira diligencia em direcção á fronteira de Portugal, e mandou +entregar a sua ultima carta a Paulina, ao embarcar-se na locomotiva.</p> + +<p>Almeida, recolhendo do Aranjuez, encontrou este conciso escripto:</p> + +<p> </p> + +<p>«Vou vêr o pobre artista, e a pobre companheira do artista, que não tem +culpa dos meus infortunios.</p> + +<p>«Com as mãos erguidas te rogo que não digas a alguem o meu destino.</p> + +<p>«Terás as minhas cartas regularmente, em quanto viver.</p> + +<p>«Graças, meu amigo, pelo coração de irmão que me déste. A recompensa é +este chorar que me tolhe poder escrever-te mais. São as ultimas lagrimas do +teu Fernando.»<span class="pagenum"><a id="pag_189" +name="pag_189">[189]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00210">XIX</a></h1> + +<p class="centrado">DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">Lisboa, 4 de agosto de 1842.</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>«Meu presado amigo.</p> + +<p>«Aqui estou na casa onde nasci, no pequeno quarto em que os livros me +iniciaram para tormentos superiores aos que conheceste em minha vida.</p> + +<p>«Entrei em casa inesperadamente, e encontrei minha mãe chorando, e nos +braços d'ella, uma de minhas irmãs viuva, e alli, ao lado, deitada n'um +berço, uma criancinha de dois mezes.</p> + +<p>«Minha irmã casára com um capitão de mar e guerra, que morreu em viagem +para Moçambique. Fôra ella dotada com dez mil cruzados, cuja maior parte o +marido empregou em mercadorias, que levava comsigo, na esperança de grandes +lucros.<span class="pagenum"><a id="pag_190" name="pag_190">[190]</a></span> +</p> + +<p>«O navio deu á costa, e presume-se que meu cunhado se suicidou. A minha +pobre irmã ainda ignora que está em pobreza extrema.</p> + +<p>«Sabe-o meu pae, que é um santo, e acceita das mãos da Providencia tudo +que vier.</p> + +<p>«Outra minha irmã, casada com um official de secretaria, vive muito +infeliz, e tem querido refugiar-se no abrigo dos paes; o marido, em poucos +mezes, leva quasi dissipado o dote, sem mesmo assim poder resgatar-se de +descreditos que mais tarde ou mais cedo o reduzirão a vir pedir esmola á +porta do seu sogro. Acaba meu pae de me contar estas alegrias, que eu te +refiro para que vejas os ditosos auspicios com que entrei nos lares +domesticos.</p> + +<p>«Meu pae está quasi cego, e minha mãe n'um estado de decrepidez +extraordinaria. As minhas despezas dos ultimos oito mezes custaram ao santo +velho o sacrificio da venda dos bens do Cartaxo. O que elle não vendeu foi a +livraria, nem os manuscriptos de Bocage, seu amigo da mocidade. Disse-me que +me salvara os livros para me legar amigos. Perdôa ao bom velho o seu descrer +em amigos: elle não sabia que tu eras mais verdadeiro e valedor que os +livros.</p> + +<p>«O meu futuro é facil de conjecturar. Tenho uma numerosa familia +dependente de mim. A outra minha irmã, e uma filha, não tardarão aqui. Meu +pae ainda vae á loja examinar, ou finge que examina, o trabalho dos +officiaes. Estes são já pouquissimos, em relação com o diminuto consumo que +tem a obra.</p> + +<p>«Penso em arranjar emprego; mas sinceramente<span class="pagenum"><a +id="pag_191" name="pag_191">[191]</a></span> te digo que não sei o para que +sirvo, nem como estas cousas se alcançam. Lembra-me abrir loja de conselhos e +requerimentos; estou esquecido do pouco que aprendi; careço de muita pratica, +e de muita paciencia. Falta-me gosto, alma e vontade. Nenhuns estimulos +d'actividade me impellem. Este espectaculo inesperado escureceu-me o espirito +de modo que nenhum raio d'esperança já póde reanimar-me. Espero em Deus que +esta crise não se demore; e, depois, veremos.</p> + +<p>«N'outra carta me abrirei mais comtigo. A oppressão produz no animo +dolorosa preguiça. Em contentamento sereno ou nas afflicções agitadas, +n'estes dois extremos, é que o espirito se compraz ou desafoga em diffusas +cartas. Esta minha dôr é termo medio que prostra e embrutece. Adeus. Teu +amigo muito grato</p> + +<p class="direita"><i>Fernando.</i>»</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="centrado">DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">Madrid, 14 de agosto de 1842.</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>«Meu Fernando. Quando recebi no Aranjuez, onde tive de demorar-me, a tua +carta de despedida, corri logo a Madrid, não esperançado em encontrar-te, mas +em ancias de saber o que se havia passado em minha ausencia. Esporeava-me o +odio que recresceu n'estes ultimos mezes contra o algoz togado, o villão que +me enganou quando eu tinha na mão o fio com que esperava cortar-lhe a vida na +garganta.<span class="pagenum"><a id="pag_192" +name="pag_192">[192]</a></span></p> + +<p>«Deram-me a tua carta, e contou-me o creado que te vira queimar as de +Paulina. Percebi logo que um completo rompimento vos separara para sempre. +Odiei-a! Dei-te logo razão, porque eu sabia que tu eras um anjo merecedor de +melhor alma.</p> + +<p>«Na incerteza de me estarem trancadas as portas de Bartholo, procurei na +rua o conde de Rohan, e soube que Paulina estava doente. Perguntei, sem +rebuço, que razões se haviam dado para a tua saida repentina de Madrid, e +elle sem me dar explicações, instou por saber o teu destino. Não lh'o podia +dizer, não lh'o diria, ainda mesmo que antevisse n'esta infracção a tua +felicidade. <i>A tua felicidade</i>, digo eu!</p> + +<p>«Ha homens que ninguem deve conduzir a uma supposta felicidade: a má sina +póde tudo com elles, e reverte-lhes em mal os mais logicos planos do bem. Os +proprios amigos se tornam fautores da sua desgraça.</p> + +<p>«N'este mesmo dia recebi um bilhete de Paulina, a perguntar-me onde +estarias. Respondi que o não podia declarar. Redobraram instancias: permaneci +inabalavel. O ultimo bilhete d'ella é este que te envio<a name="tex2html1" +href="#foot476"><sup>1</sup></a>. Não calculo o que succedeu para resolução +tão improvisa! Dar-se-ha caso, Fernando, que a tua doentia imaginação te +enganasse? Poderias tu ser injusto, sem consciencia de o ser? Irias +arrebatadamente,<span class="pagenum"><a id="pag_193" +name="pag_193">[193]</a></span> onde com alguma hora de reflexão, deixarias +de ir?</p> + +<p>«Não ouso decidir por mim a hypothese: tamanha confiança me merece o teu +bom juizo e reflexiva dignidade. Antes me quiz persuadir que procedeste como +devias. Esperei.</p> + +<p>«Agora, porém, recebo a tua carta de 4 de agosto. Nem uma palavra a tal +respeito! Dir-se-hia que eu sonhei que tinhas amado Paulina, ou tu d'uma para +outra semana perdeste a memoria do teu coração! Isto mais me capacita de que +a razão do teu proceder foi tão grande que presumes deva eu já sabe-la, e por +amor de ti proprio a omittes. Juro-te que apenas sei o que devo inferir dos +bilhetes d'ella.</p> + +<p>«O conde ignora tudo. Bartholo está com ares de satisfação; nada, porém, +diz ao genro nem a Eugenia. Este mysterio mortifica-me. Esclarece-m'o, que o +deves ao teu Almeida.</p> + +<p>«Falemos agora da tua situação. Compunge-me a sorte de tuas irmãs, e de +teus bons paes. Triste espectaculo, na verdade; mas providencial e necessario +para a glorificação da tua honra. Precisas de força, e de paciencia para +poder emprega-la.</p> + +<p>«Queres um cargo publico? Os teus estudos, talento e serviços hão-de +obte-lo; mas não cuides que será já, meu amigo. Tu perdeste a occasião de +entrar nas secretarias com o arcabuz do cêrco do Porto debaixo do braço. As +gravatas dos heroes de gabinete na emigração já se não temem das dragonas. +Estamos em tempos pacificos. O que ha seis annos se conseguia e recebia com a +mão a cheirar<span class="pagenum"><a id="pag_194" +name="pag_194">[194]</a></span> a polvora, é preciso have-lo agora das mãos +enluvadas das mulheres, que fazem os despachos nas othomanas, com os +ministros reclinados sobre o seio. Advirto-te, para que a decepção te não +surprehenda.</p> + +<p>«Entretanto, meu caro Fernando, o que tu precisas é de encaminhar desde já +a tua pretenção, dando ares de que não pretendes. Resgata os teus bens do +Cartaxo, se o comprador t'os ceder: ostenta uma independencia que fira o +orgulho villão dos grandes que não supportam animos generosos e isemptos; +entra na politica, e escreve, que necessariamente has de escrever coisas +excellentes, visto que é esse o ramo de conhecimentos humanos que dá fructo a +quem lh'o pede, e para o qual todo o homem está habilitado. A honra ha de +ser-te um empeço á boa saída; mas póde ser que a mesma excepção te aproveite. +Ora como para estas coisas, e principalmente para a independencia, é +necessario o dinheiro, vae ter á rua Augusta, procura meu velho pae, que has +de encontrar a bater alguma caldeira, e diz-lhe quem és. Deves saber que eu +sou já senhor da legitima materna, e este capital, que excede a vinte contos +de réis, lá o tem meu pae á espera que eu lhe dê destino. A tal qual +decencia, com que vivo aqui, é meu pae que m'a dá, prohibindo-me que eu gaste +da herança de minha mãe. Vê tu que animo este de artista, que ainda não +despegou uma semana de trabalhar! Vae lá, meu amigo; elle está prevenido, e +sabe que és meu irmão. Pede o que quizeres, para m'o pagares quando +puderes.<span class="pagenum"><a id="pag_195" name="pag_195">[195]</a></span> +</p> + +<p>«Fecho, que está a partir o correio. Escreve muito ao teu</p> + +<p class="direita"><i>Almeida</i>.»</p> + +<p> </p> + +<p class="centrado">DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">Lisboa, 31 de agosto de 1842.</p> + +<p> </p> + +<p>«Meu irmão.</p> + +<p>«Guardo em minha alma a tua carta.</p> + +<p>«Falarei primeiro dos teus fraternaes offerecimentos.</p> + +<p>«Fui vêr teu pae, porque desejava conhece-lo e abraça-lo. Que cabellos +brancos, e que mãos calejadas aquellas! Que bem e orgulhoso me senti nos +braços d'elle! Falla de ti com lagrimas; mas todo aquelle rosto se abre em +contentamentos d'um justo!</p> + +<p>«Quiz que lhe contasse pormenores da tua vida em Madrid.</p> + +<p>«Satisfiz aquella ancia do teu velho. Foi dia de férias na officina a +minha visita. Mandou os operarios passear, recommendando-lhes que não fossem +á taverna. Depois jantei com elle, e lá fiquei até á noite. Teu pae deita se +ao escurecer e ergue-se com a aurora. Disse-me elle quando eu estava para +sahir: «Veja lá o dinheiro que quer, doutor.» Respondi-lhe que não queria +nenhum. Montou os seus grandes oculos de cobre, arregaçou os punhos da +camisa, releu a tua carta, e exclamou: «Então como se entende o que reza esta +carta do meu Hypolito?!» Satisfiz ás suas duvidas, dizendo-lhe que o teu +offerecimento não fôra solicitado, nem por em quanto me era preciso +aceita-lo.<span class="pagenum"><a id="pag_196" +name="pag_196">[196]</a></span></p> + +<p>«Assim passaram quatro boas horas da minha vida. Face a face com o +principe de Monfort não me senti tão feliz e entranhado de respeito como ao +lado do artista, do teu digno pae, meu querido Almeida.</p> + +<p>«Beijo-te as mãos pelo amigo que me déste. Em quanto ao dinheiro, +deixemo-lo estar, <i>como nosso</i>, na mão do honrado depositario. Quando +precisarmos, lá iremos.</p> + +<p>«Agora direi pouco de Paulina para te satisfazer, e menos terei que +dizer-te, enviando-te uma copia da pagina da sua ultima carta. Ahi tens +decifrado o enygma. O filho do sapateiro teve pejo e arrependimento de se +haver abalançado ao coração da filha de um Briteiros: pejo de se haver +abatido, e arrependido de a ter humilhado. Cahi em mim. Podia ser mais tarde, +e mais funestamente para ambos. Deus poupou-me ao aperto de entrar em +Portugal, e por esta porta dentro, onde todos choram, com a faustuosa e +brilhante Paulina, que está fadada para alegrias e esplendores. Que sentiria +aquella alma vendo-se aqui n'este ambiente de pobreza, pobreza que se +adivinha em tudo! Alli dois velhos; além duas irmãs uma viuva, outra +divorciada; acolá duas criancinhas, cada uma em seu berço, vagindo; lá em +baixo o martellar do trabalho; em tudo o cunho de uma maneira de ser +incompativel com a indole e educação de Paulina!...</p> + +<p>«Que queres tu, á vista d'isto, que eu faça ao coração?</p> + +<p>«Suffoco-o; obrigo-o a repartir-se por estas quatro creaturas, que não +teem mais ninguem.<span class="pagenum"><a id="pag_197" +name="pag_197">[197]</a></span></p> + +<p>«O bilhete de Paulina como não me auctorisas a queima-lo, devolvo-t'o; +póde ser que ella venha a envergonhar-se de te-lo escripto, e t'o reclame. +</p> + +<p>«Persiste em não dizer nada de mim; e, se tenho algum outro favor a +pedir-te, é que me não fales d'ella; antes me ajuda a esquece-la.</p> + +<p>«Meu generoso pae ainda a tal respeito me não disse palavra. Adivinhou +tudo. Tudo me tinha prophetisado em Londres, com estas palavras: <i>Que +direitos tens tu a uma felicidade que te custa humilhações? Para que a +procuras afincadamente, se vaes de rastros apoz ella? Porque has de tu querer +hombrear com os grandes, se eu apenas te fiz entrar n'uma carreira por onde +levarias teus filhos á grandeza?</i></p> + +<p>«Na ultima pergunta é que o propheta ouviu demasiadamente os seus +arremessados desejos. Esta minha carreira é a da inhabilidade e da pobreza; +mas cá estou a refazer-me de alentos para a trilhar. Adeus, meu extremoso +amigo. Não acceito o teu alvitre de me fazer politico. Já vi o que isto é. +Não estou ainda bastante pôdre para adubar o torrão em que braceja a arvore +da immoralidade. Estou envergonhado de ter dado o meu sangue para isto! Ás +vezes chego a scismar se Bartholo de Briteiros teria razão!</p> + +<p>«Perdôa esta impia ironia. Antes isto que os patibulos. Cada qual enforca +a sua honra á sua vontade, e não causa lastima nem espanto. Não ha tempo para +mais. Adeus. Teu</p> + +<p class="direita"><i>Fernando</i>.»<span class="pagenum"><a id="pag_198" +name="pag_198">[198]</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00220">XX</a></h1> + +<p class="centrado">DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">Madrid, 3 de setembro de 1842.</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>«Meu Fernando, não espero a tua resposta para te escrever. Tenho só tempo +de participar-te que Paulina entrou hoje n'um convento, contra a vontade do +pae. O conde de Rohan suppõe que és tu a causa d'este successo. Bartholo +suppõe que a filha se enclausurou para de lá requerer casamento comtigo. +Elles e eu andamos litteralmente ás aranhas. Ella e tu sois os ferrolhos do +mysterio. Sae a mala. Adeus.</p> + +<p class="direita"><i>Almeida.»</i></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="centrado">DO MESMO AO MESMO</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">Madrid, 12 de setembro de 1842.</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>«Viva Deus! que quebraste os sete cadeados do<span class="pagenum"><a +id="pag_200" name="pag_200">[200]</a></span> cofre! Vi o altissimo quilate do +oiro da tua honra. Já o conhecia.</p> + +<p>«Estas linhas deviam magoar-te; mas não justificam a fuga, e menos ainda o +desprezo. Não é desprezo o que sentes por ella; mas, seja o que fôr os +effeitos são analogos.</p> + +<p>«Paulina, como já deves saber, vive no convento das Therezinhas. +Consta-me, de informações exactas, que Paulina está n'um consternador +abatimento de espirito. Raro se deixa vêr e apenas sáe da cella para receber, +na grade, a visita do conde ou do pae. Eugenia entra no convento, e passa +muitas horas com ella; mas nem assim lhe arranca o essencial motivo do +rompimento e reclusão.</p> + +<p>«Bartholo tem providenciado para o caso de haver deposito judicial. +Realisa-se o que eu te havia dito. Sei que de antemão, e por hypothese, já +estão alugados os juizes.</p> + +<p>«Eugenia pediu-me hontem um encontro no Prado. Insistiu comigo para eu lhe +descobrir a tua residencia. Inutil. Jura que Paulina te ama até se deixar +morrer, para assim pelo remorso se vingar da tua ingratidão. Estive, sem +receio de quebrantar minha palavra, quasi a mostrar-lhe a copia da pagina da +ultima carta da irmã. Desisti, por me não parecer, ainda assim, justificavel +o teu procedimento, e tambem para respeitar o sigillo de Paulina. Ella, que o +reserva, lá tem suas razões, e nós as nossas.</p> + +<p>«Aconselhar-te eu? não me atrevo a tanto. Já disse: contra certos destinos +é impotente esta logica vulgar, <i>vade-mecum</i> de todos os homens +vulgares.<span class="pagenum"><a id="pag_201" +name="pag_201">[201]</a></span> Escuta o teu coração, sem menos-preço da +consciencia. Obriga a razão a obtemperar a certas e importantissimas +pequenezas, que são o essencial da vida. Isto não é conselho: é supplica.</p> + +<p>«Bartholo vive muito ha dias com um marquez gallego, que veio ao senado; +riquissimo gallego, e descendente dos monarchas de Aragão. Presume o conde de +Rohan, com o muito sal do seu espirito, que Paulina corre risco de ser +encabeçada na côrte descabeçada de Aragão. Eugenia accrescenta a estas +observações que Paulina só sairá do mosteiro, se a não deixarem lá sepultar +na clausura. Isto parece-me extremamente grave, Fernando.</p> + +<p>«Queres tu que eu ultrapasse as tuas ordens, ou prescrever-m'as novas? +Custa-me a ser-te fiel entre as reiteradas insistencias do conde, de Eugenia, +e da piedade a que indirectamente me compunge Paulina.</p> + +<p>«Anceio a tua resposta.</p> + +<p>«Dá outro abraço ao meu bom pae. Diz-lhe que eu vou muito cedo aperta-lo +ao coração, e que, se o aborrecimento d'esta vida diplomatica fôr assim +augmentando, de certo lá ficarei a ouvir o estrondear das caldeiras. Adeus. +Muito do coração.</p> + +<p class="direita"><i>Almeida.</i></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="centrado">DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">«Lisboa, 12 de setembro de 1842.</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>«Respondo, meu amigo, á tua cartinha. A esta hora<span class="pagenum"><a +id="pag_202" name="pag_202">[202]</a></span> já recebeste a carta explicativa +do meu procedimento. Julga-me, e absolve-me, se fui injusto. O meu destino é +vêr que as minhas acções, aconselhadas pelo dever, redundam sempre em gravame +alheio e desconceito meu. Estou enganado com o mundo. Devo restringir-me, +cada vez mais, n'um curto espaço em que todas as operações de minha +intelligencia, se reduzam ao trabalho necessario á vida. Só assim poderei +achar um cantinho da sociedade, onde caiba com a minha insignificancia.</p> + +<p>«Cuidei que, saindo de Madrid, deixava essa senhora em paz comsigo e com o +mundo. Puz o coração debaixo dos pés, e nem assim consigo a liberdade do +espirito!</p> + +<p>«A entrada de Paulina no convento, a meu parecer, significa uma fadiga de +alma, que faz as mulheres eguaes aos homens. Paulina soffreu; creio que sim. +Está repousando para reassumir as poderosas faculdades de sua juventude, +formosura e aspirações. Póde ser que, ao receberes esta carta, ella tenha já +deixado o mosteiro pelas salas; e ámanhã deixará as salas pelo mosteiro. +Paulina lê romances. Os personagens femininos, da novella moderna, são quasi +todos a copia fiel da brilhante extravagancia do espirito. Leem-se, e a +sympathia, em vez do riso, nos impressiona. Imitam-se, onde ha espaço, e é +preciso te-lo, ainda assim, para as scenas grandiosas, que, a final, +desfecham em tragedias que o mundo, futil e chocarreiro, denomina «comedias». +</p> + +<p>«Na proxima carta me dirás o proseguimento d'esse estranho passo. +Authoriso-te a dizer-lhe, tão directamente quanto puderes, que respeito em +silencio<span class="pagenum"><a id="pag_203" name="pag_203">[203]</a></span> +todos os seus designios, e peço a Deus, que ao encontro d'elles, lhe saia o +anjo da felicidade. Em quanto a ama-la, faz-lhe sentir que eu sou bastante +desgraçado para não poder esquece-la.</p> + +<p>«Vou ámanhã ao Porto a fim de solicitar o embolso de algumas dividas de +calçado que lá devem a meu pae as lojas que se forneciam de nossa casa. Tudo +é necessario para ir custeando estas grandes despezas. Já vês que estou feito +caixeiro de cobrança de uma loja de sapatos. Para bem desempenhar estas +funcções, levo comigo as minhas cartas de bacharel formado em leis!</p> + +<p>«Vou ver as paragens onde vimos juntos a morte tantas vezes! Procurarei o +rochedo das Antas, onde me encostei ferido no dia em que fui condecorado. Ama +o teu camarada d'aquelles bons dias de sangue, de esperanças, de alegrias. +</p> + +<p class="direita"><i>Fernando.</i></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="centrado"><span class="small-caps">de Hypolito de Almeida a +Fernando Gomes</span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p class="direita">Madrid, 25 de setembro de 1842.<a name="tex2html2" +href="#foot527"><sup>2</sup></a></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>«Meu amigo.</p> + +<p>«Bartholo de Briteiros está na eternidade. O marquez gallego foi o +indirecto homicida do lambaz Briteiros! Houve jantar opiparo no hotel. O +amphitrião recolheu-se pesado á cama, e, se adormeceu, acordou na +eternidade.<span class="pagenum"><a id="pag_204" +name="pag_204">[204]</a></span></p> + +<p>«Não fez testamento. Achou o conde umas declarações, ou norma de +testamento, que dão noticia da grande fortuna de Bartholo. Orçam-n'a em +seiscentos contos, em differentes especies.</p> + +<p>«Paulina saiu do mosteiro para a companhia de Eugenia. Fiz a minha visita +de pezames ao conde, que me disse ir brevemente a Portugal liquidar a herança +do sogro, e vae depois para França. É de suppôr que Paulina acompanhe a irmã. +</p> + +<p>«Em vista do que, já não receio que a joven menina pereça no mosteiro.</p> + +<p>«Ninguem me tem fallado de ti. A tristeza de Paulina sei eu que é +inalteravel.</p> + +<p>«Diz-me o que fazes: fala-me da tua familia. Teu sempre extremoso</p> + +<p class="direita"><i>H. de Almeida</i>.»</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>Nenhuma outra carta nos veiu á mão.</p> + +<p>Fernando Gomes, voltando do Porto com os creditos de seu pae liquidados, +melhorou o pessoal dos operarios, e alargou o seu commercio, creando +freguezias de lojas nas terras que percorreu. Em toda a parte encontrou +condiscipulos, que se maravilharam de o verem agenciando os interesses d'uma +loja de sapateiro. Deu isto em resultado que ninguem o visitou nas estalagens +onde se aposentava.</p> + +<p>Francisco Lourenço mostrava-se penalisado de vêr seu filho occupar-se em +tal mister, tão incongruente com sua educação. Reconhecia a iniciativa +melhoradora do estabelecimento; mas, ainda assim,<span class="pagenum"><a +id="pag_205" name="pag_205">[205]</a></span> pedia-lhe incessantemente que +requeresse um emprego, allegando sua instrucção e serviços.</p> + +<p>Fernando, submisso a seu pae, aos prantos da mãe, e meiguices das pobres +irmãs, requereu, apresentou ao ministro seus papeis, foi tres vezes á +audiencia geral do secretario de Estado, e esperou.</p> + +<p>De vez em quando ia examinar o seu nome no livro da secretaria, e lia +sempre: <span class="small-caps">esperado</span>.</p> + +<p>Este <i>esperado</i> é regularmente o prologo do <i>indeferido</i>. +Indeferiram-lhe o requerimento. O logar pedido na thesouraria fôra dado a um +filho de regedor, que puzera ás ordens da situação oito votos e quatro +cacetes, que valiam vinte e quatro votos.</p> + +<p>Fernando leu o despacho no <i>Diario do Governo</i>, leu os commentarios +n'um jornal da opposição, e riu-se.</p> + +<p>Pegou na medalha de Torre e Espada, embrulhou-a n'um papel de mata-borrão, +e enviou-a ao ministro, com esta carta:</p> + +<p> </p> + +<p>«Excellentissimo. As <i>honras</i> a quem competem. Faça vossa excellencia +presente d'isso ao meu feliz competidor. Ganhei essa coisa por ter suado +sangue a favor d'esta causa em que o merito do cacete devia ser instaurado. O +cacete venceu. Agora competem aos sacerdotes do pagode, que eu ajudei a +erguer, as condecorações que nada prestam aos operarios inactivos. Eu, e o +meu competidor, que ceifou o carvalho civico com o cacete paterno, o que +fizemos foi derramar sangue de irmãos. Devemos hombrear nas honras. Ora, os +arrependidos devem rejeita-las em favor dos contumazes.<span +class="pagenum"><a id="pag_206" name="pag_206">[206]</a></span> Deus guarde a +vossa excellencia, como todos havemos mister, e de veras lh'o deseja o criado +inutil de vossa excellencia, <i>Fernando Gomes</i>, com loja de sapateiro na +calçada do Sacramento, n.º 11—Lisboa.»</p> + +<p> </p> + +<p>O ministro recebeu a carta e o embrulho. Pensou em autoar o signatario; +mas o official maior pediu licença para observar a sua excellencia que a +carta não encerrava injuria pessoal nem collectiva, salvo aos caceteiros, por +cuja honra não ficava airoso ao ministro saír. Assim acabou o episodio.</p> + +<p>Fernando Gomes passou de agente exterior a fiscal da officina. Descia á +loja, e examinava de perto a labutação; ajudava a encaixotar o calçado, e +assignava, em nome de seu pae, a correspondencia com os freguezes. Os +officiaes antigos respeitavam-n'o, dando-lhe sempre o epitheto de doutor. Ora +o doutor um dia, alto e bom som, disse a todos os seus officiaes que se +chamava Fernando.</p> + +<p>Esta metamorphose divulgou-se, contada pelos operarios. É admiravel que +ninguem lhe désse grande peso! Muitos doutores disseram: «se elle viu que não +tinha geito para mais nada, fez bem em se fazer sapateiro, assim como dizem +que o pae se queria transformar de sapateiro em poeta».</p> + +<p>O mundo tem d'estes escarneos, que fazem vontade de perguntar ao Creador +se está contente com a obra que fez.</p> + +<p>Á força de muito observar, Fernando já sabia talhar umas botas como se +fosse creado no officio. Diante, porém, do pae não ousava fazel-o, nem +os<span class="pagenum"><a id="pag_207" name="pag_207">[207]</a></span> +officiaes ousavam dizel-o ao velho. Parecia a Francisco Lourenço que o +trabalho de talha andava muito supprido, e elogiava a actividade do +contra-mestre encarregado d'aquelle serviço. Elle, por si, o pobre cego, nada +fazia já.</p> + +<p>Fernando passava todas as noites em casa, ora contando á mãe e irmãs o que +vira em suas viagens; ora lendo a seu pae os poetas relidos na infancia, e os +livros de historia e viagens, que elle trouxera do estrangeiro. Estas +leituras coavam calor de contentamento, a través dos setenta invernos de +Francisco Lourenço, e embalavam o rebelde somno da mãe, que acabava por +adormecer entre o seu rozario e uma descripção dos gelos polares por Cook. +</p> + +<p>Esta vida durou assim seis mezes. É de crer que n'este espaço se trocassem +interessantes cartas entre Fernando e o secretario da legação. Como as não +alcançámos, o que podemos conjecturar é que Paulina se conservou em Madrid +esperando que o seu saudoso amigo, alguma hora, alli voltasse, conduzido pelo +amor, ou pelo pezar de tão dura ingratidão. Não sabemos se o conde veiu a +Portugal liquidar o patrimonio de sua mulher, como Almeida annunciára. Se +veiu, é muito de suppôr que ninguem em Lisboa lhe désse noticias do +<i>chevalier Ferdinand Gomes</i>, como elle euphonicamente o conhecia.<span +class="pagenum"><a id="pag_208" name="pag_208">[208]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00230">XXI</a></h1> + +<p>Estava um dia, 5 de janeiro de 1843, Fernando Gomes na loja da calçada do +Sacramento, aviando uma carregação de fazenda para o Porto.</p> + +<p>Antes de descer á loja, sua mãe, quando ia para a mesa do almoço, +abraçou-se n'elle, e disse-lhe:</p> + +<p>—Olha Fernando, tu não crês em sonhos, e eu creio!... Tive um sonho +alegre!...</p> + +<p>—Então sonhou que vendiamos algumas grozas de botas, minha mãe? Os nossos +sonhos alegres não pódem ir mais além d'esta ambição de vender muito sapato. +</p> + +<p>—Bemdito seja o Senhor, que nos ajuda, filho!—disse a velhinha.—Desde +que tu diriges a casa, parece que tudo levou volta! Olha que teu pae já disse +que, se assim continuarmos um anno mais, havemos de resgatar os nossos +bemzinhos do Cartaxo.</p> + +<p>—Então sonhou, minha mãe, que estavamos outra vez proprietarios no +Cartaxo?<span class="pagenum"><a id="pag_210" name="pag_210">[210]</a></span> +</p> + +<p>—Não foi isso, Fernando... Sonhei mais alguma coisa... Sonhei que te via +vestido de principe.</p> + +<p>—De principe?! Ólé! de principe! Sabe o que deu causa a esse sonho?</p> + +<p>—Que foi, meu filho?</p> + +<p>—É porque hontem á noite estivemos a conversar a respeito do entrudo, que +está á porta. A mãe adormeceu com a ideia do entrudo, e por isso sonhou que +me via vestido de principe. Não foi outra coisa, minha querida mãesinha... +Venha almoçar, que eu levo-a pelo braço, como em casa de Jeronymo Bonaparte +levei uma vez a princeza Carolina.</p> + +<p>—Valha-te nosso Senhor! não me deixas dizer o meu sonho até ao +fim!—tornou ella, dando-lhe uma fagueira palmada na face esquerda.</p> + +<p>—Pois o sonho estava no principio, minha mãe?</p> + +<p>—Estava... Credo!</p> + +<p>—Cuidei que o principe acabava principe. Querem ver que elle se fez +sapateiro?</p> + +<p>As irmãs riram; e o velho, abrindo os seus grandes olhos cataratosos, +largou tambem uma casquinada de alegre riso.</p> + +<p>Fernando temperou o chá de sua mãe, serviu o pae, e proseguiu:</p> + +<p>—Ora agora, ninguem a interrompe, mãesinha. Exponha lá as suas alegres +visões.</p> + +<p>—Tu eras principe; ou estavas vestido de principe; mas, através do +peitilho da farda, batido a ouro, via-se-te o coração. Quando tu assim +estavas, começaste a chorar, porque descera do céo um anjo, e te levara o +coração para Deus. N'isto appareces vestido de negro, muito pallido, menos no +logar do<span class="pagenum"><a id="pag_211" name="pag_211">[211]</a></span> +rosto onde corriam as lagrimas, que brilhavam como diamantes. Quando assim +estavas muito triste, e nós todos a chorar comtigo, torna a descer o anjo, e +dá-te o coração, que te havia levado, dizendo-te umas palavras, que se me +varreram da memoria. Eis se não quando, appareces vestido todo de +resplendores de luz, com um semblante muito luminoso, e uma alegria, como a +pintam no rosto dos bem-aventurados que adoram o Altissimo. Teu pae estava +como absorto a olhar para ti, eu tambem, todos riamos e choravamos de +felicidade, ao mesmo tempo, e n'este momento é que eu acordei.</p> + +<p>—Alegre sonho, minha mãe! disse Fernando. O que eu agora queria era que +vocemecê me explicasse o como se ha de converter em realidade esse bonito +vestido de resplendores.</p> + +<p>—Pergunta-o ao Senhor que me deu o sonho, filho, disse a mãe.</p> + +<p>—O seu chá arrefece, tornou Fernando, eu faço-lhe outra chavena.</p> + +<p>—Pois sim, meu querido filho; tem paciencia, que eu estou a tremer o +queixo. A velhice parece que traz comsigo uma constante Siberia!</p> + +<p>—Vejo que ainda se lembra das suas lições de geographia, que o pae lhe +dava ha vinte annos, minha mãe. Ainda sabe que a Siberia é fria!</p> + +<p>—Não, que tu cuidas que a velha ha de ser estupida por que é +velha!...—disse ella risonha.—Olha que ainda ás vezes recordo os versos do +nosso Bocage, e do nosso Francisco Dias Gomes. Este era do nosso sangue; o +outro era do nosso coração, não era Francisco?<span class="pagenum"><a +id="pag_212" name="pag_212">[212]</a></span></p> + +<p>—Oh! se era! estou-o vendo, como se fosse hontem, quando elle, na +mercearia, a S. Sebastião da Pedreira, me improvisou os versos com que eu te +venci, minha ingrata! Amaste-me por não poderes amar o Bocage, não foi? Ora +confessa a verdade, que eu agora já não tenho ciumes...</p> + +<p>—Olha o tolo!—disse a senhora Maria Luciana, com a bocca cheia pelo +bocado de pão, rebelde aos seus raros dentes.—Lá que os versinhos me +encantaram, isso te juro eu que sim, Francisco... Não sei o que seria se me +dissesses em prosa aquellas coisas... Tu eras tão acanhado quando ias lá a +casa! Olha se te lembras que para me dares um raminho de violetas em dia de +meus annos, andaste a pedir ao aprendiz, quinze dias antes, que m'o +entregasse...</p> + +<p>Fernando e as irmãs sorriam, sem quebra de respeito, d'estas amorosas +reminiscencias dos dois velhos, que trocavam gracejos, que era um como prazer +de lagrimas ouvi-los, de lagrimas, digo, para ouvintes que tivessem coração +muito sensivel ás poucas coisas commoventes que tem a vida humana.</p> + +<p>Findo o almoço desceu Fernando á loja, como já se disse começando este +capitulo.</p> + +<p>Acabára elle de dar saída aos caixões de embarque, e outras ordens, quando +Hypolito de Almeida apeou d'uma carruagem, com as cortinas corridas por +dentro das vidraças.</p> + +<p>Fernando viu-o no limiar da loja, e correu a abraça-lo, exclamando:</p> + +<p>—Que surpreza! Eu não te esperava, meu querido<span class="pagenum"><a +id="pag_213" name="pag_213">[213]</a></span> amigo! Subamos á saleta. +Deixa-me ao menos tirar esta jaleca!</p> + +<p>Almeida fitou os olhos no amigo do cêrco, de Coimbra, de Paris, de Madrid, +e as lagrimas rebentaram-lhe a quatro.</p> + +<p>—Isso que é?—disse Fernando.—Que tens tu, Almeida?</p> + +<p>—Tenho a alegria, que precisa chorar como a dôr. A tua virtude causa-me +uma vehemencia de respeito, de piedade, sensações tão estranhas e fortes, que +me fazem isto que vês, estas não sei se primeiras lagrimas de minha vida. O +que tu pudeste sobre ti, ó Fernando!</p> + +<p>Os officiaes pararam de trabalhar, enleados n'este lance, e chorando sem +comprehender o alcance do que viam.</p> + +<p>—Subamos—repetiu Fernando commovido.—Vem dar um abraço em meu pae, em +paga dos muitos abraços que tenho dado no teu.</p> + +<p>—Pois sim, vamos—tartamudeou Almeida, n'uma irresolução.—Vamos... +tambem quero vêr tua mãe...</p> + +<p>Subiram, e os dois velhos vieram logo espontaneamente á saleta por ouvirem +pronunciar o appellido <i>Almeida</i>.</p> + +<p>—É o amigo do nosso Fernando—disse Francisco—vem d'ahi, Maria! vem +abraça-lo.</p> + +<p>Oh meu Deus! que magnificos lances preparam as vossas divinas leis! +Quantas vezes, e quantos lances assim passam despercebidos na obscuridade +onde vivem os vossos eleitos!</p> + +<p>Os dois velhinhos acharam-se nos braços de Hypolito<span +class="pagenum"><a id="pag_214" name="pag_214">[214]</a></span> de Almeida, +que sentiu em suas faces as lagrimas de ambos. Fernando, electrisado por +aquelle instante da vida do céo, beijou a mão do amigo, por que elle assim +respeitava e amava seus paes humildes.</p> + +<p>Almeida parecia querer dizer alguma coisa que se lhe não moldava á +expressão. Aquelle vacillar, e olhar d'um para outro rosto, o começar e +recomeçar da phrase, terminou por esta abrupta pergunta á mãe de Fernando: +</p> + +<p>—Minha senhora, quer ter a delicadeza de offerecer a sua casa a uma dama, +que veio em minha companhia, e me está lá fóra esperando na carruagem?</p> + +<p>—É sua irmã, senhor Almeida?—perguntou a velha.</p> + +<p>—Não tem irmã—disse Fernando.—Será sua esposa. Queres surprehender-me +com a tua noiva? é hespanhola?</p> + +<p>—Não é noiva—tornou o secretario—é irmã.</p> + +<p>—Irmã!—redarguiu Fernando com espanto.</p> + +<p>—Sim, irmã, porque tu és meu irmão.</p> + +<p>—Como?!—exclamou impetuosamente Fernando.</p> + +<p>—Vá, vá!—volveu Almeida—vá, minha senhora, offerecer a sua casa á sua +filha Paulina, que vem aqui pedir-lhe a mão de seu filho!</p> + +<p>—Fernando já tinha corrido a escada abaixo; mas, a meia descida, parou, +olhou para si, e viu-se n'aquelle traje. Hesitou instantes, e disse:</p> + +<p>—Porque não?! Ainda me torturas, miseravel vaidade!</p> + +<p>A mãe seguia-o de perto, ajudada por Almeida.<span class="pagenum"><a +id="pag_215" name="pag_215">[215]</a></span></p> + +<p>Em seguida iam as duas irmãs de Fernando, cada uma com seu filhinho nos +braços.</p> + +<p>Francisco Lourenço, que mal descortinava as escaleiras, ia mui de manso, +tacteando o mainel da escada.</p> + +<p>Fernando abriu a portinhola da carroagem.</p> + +<p>Paulina saltou-lhe aos braços; e, antes de proferir palavra, rompeu n'um +chorar e soluçar tão suffocante, que, nos braços dos dois e da velhinha, foi +transportada para o pateo.</p> + +<p>Fernando ajoelhou á beira de Paulina, que recostava a face desmaiada ao +seio de Maria Luciana. Uma das creancinhas, do colo de sua mãe, estendeu-lhe +a mão a um dos anneis dos cabellos negros.</p> + +<p>Paulina abriu os olhos, e sorriu á creança, e apertou a mão de Fernando. +</p> + +<p>Maria, com as mãos erguidas, murmurou:</p> + +<p>—É o anjo do Senhor que volta com o coração de meu filho. Vejo-te agora +vestido de resplendores, Fernando!</p> + +<p>O moço lembrou-se do sonho de sua mãe, e respondeu beijando-lhe a mão.</p> + +<p>Ainda agora chegava Francisco Lourenço. Pediu que o deixassem approximar +de Paulina, e disse com a voz convulsa de lagrimas:</p> + +<p>—Eu lhe agradeço, minha senhora! Eu lhe agradeço o bem que faz ao meu +virtuoso filho. Deus a abençôe, santa, que soube avaliar os merecimentos +d'este anjo. Deixe-me rojar as cans aos seus pés, que não ha desaire n'esta +humildade do pobre velho, ainda que elle fosse um rei!<span +class="pagenum"><a id="pag_216" name="pag_216">[216]</a></span></p> + +<p>Paulina abraçou-se expansivamente ao artista, e chamou-lhe pae.</p> + +<p>—Pae! meu Deus!—exclamou elle—Com que liberalidade me pagaes os +padecimentos de alguns annos! Minha filha, que immensa alegria vem trazer a +tantos que a pediam ao Senhor! Eu quero que meu filho sinta mais intensa +felicidade que eu!...</p> + +<p>Paulina sahiu amparada ao braço de Fernando, e no pescoço de Maria +Luciana. Entraram na saleta da livraria. Era a riqueza d'aquella casa. +Sentou-se a ditosa na cadeira de Fernando, junto á meza onde elle fazia as +suas leituras. Relanceou os olhos sobre a mesa, e viu na capa d'um grosso +volume de papel almasso esta palavra—<i>Paulina.</i>—</p> + +<p>Lançou rapida mão ao livro. Leu das ultimas paginas escriptas as linhas +finaes, que diziam assim:</p> + +<p> </p> + +<p>«<i>Porque te vejo ainda, ó abençoado anjo do meu infortunio! Que luz é +que tu me mandas em sonhos, se o meu despertar é sempre no meu abysmo de +saudade?... Ainda te verei, ó Paulina?...</i>»</p> + +<p> </p> + +<p>Ergueu-se, escarlate d'alegria, o anjo abençoado d'aquelle augusto +infortunio, abraçou Fernando com fremente ardor, e disse:</p> + +<p>—Pois não vim eu trazer-te a luz dos teus sonhos, meu querido +Fernando?<span class="pagenum"><a id="pag_217" +name="pag_217">[217]</a></span></p> + +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION00240">CONCLUSÃO</a></h1> + +<p>Fernando Gomes não pedia explicações de sua felicidade a Hypolito de +Almeida, nem a Paulina de Briteiros.</p> + +<p>Aquellas alegrias tinham ainda a vaga desconnexão d'um sonho.</p> + +<p>Os enlevos do presente não pedia ao passado a sua razão de existencia.</p> + +<p>Os paes, e as irmãs de Fernando, pallidas e melancholicas meninas, tão na +madrugada da vida desgraçadas, pareciam estar agradecendo a Paulina o bem que +fazia a seu irmão, unico amparo d'ellas.</p> + +<p>Almeida, quando pôde falar, sem desdizer da eloquencia das lagrimas da +bem-aventurada familia, disse gravemente o seguinte:</p> + +<p>—Fernando, eu já te vi de joelhos aos pés d'esta senhora; mas não te ouvi +pedir perdão...<span class="pagenum"><a id="pag_218" +name="pag_218">[218]</a></span></p> + +<p>—Ah! exclamou Paulina, apertando ao seio Fernando para que has de tu +ajoelhar-te? Não quero, meu querido amigo. A mais desgraçada não era eu!... +Eu sabia que havia de encontrar-te, Fernando; tu é que não esperavas mais +ver-me. Eras incomparavelmente mais atormentado que eu...</p> + +<p>—Mas, atalhou Almeida, vossa excellencia dá-me licença de expôr o +relatorio conciso... (o <i>sizo</i>, n'estes relatorios d'amores, é +extraordinaria coisa...)</p> + +<p>Fernando e Paulina sorriram com o secretario, que proseguiu:</p> + +<p>—Expôr o relatorio, dizia eu, dos imperiosos acontecimentos que me +constituiram na gloriosa obrigação de ser o mais ditoso dos casamenteiros. +Permitte vossa excellencia?</p> + +<p>—Se fôr sempre engraçado como começa, consinto, disse Paulina.</p> + +<p>—Como hei de eu ser engraçado contando uma historia de lagrimas, minha +senhora?</p> + +<p>—Então não diga, não diga; eu contarei tudo ao meu Fernando. São poucas +palavras, meu amigo; é uma só palavra... <i>amava-te</i>; mas o teu Almeida +foi um barbaro! Sabia as minhas angustias, e deixava-me morrer. Mandei-lhe +pedir do convento, tantas vezes, que me dissesse em que ponto da terra eu +poderia encontrar-te!... Por fim calei-me, e esperei acabar alli, e deixar-te +uma lembrança que havia de vingar-me... Não recordemos... não queiras que eu +recorde o que soffri, até á hora em que me vi livre para te procurar... Aqui +estou, Fernando... É a segunda vez que te procuro... D'esta<span +class="pagenum"><a id="pag_219" name="pag_219">[219]</a></span> vez não me +deixes mais sair do abrigo da tua grande alma...</p> + +<p>Não sei se o prolongar o colloquio d'estas felizes creaturas seria dar ao +leitor um quinhão do contentamento d'aquella familia; o que certamente me +dispensam, é preambular para chegarmos ao ponto do casamento.</p> + +<p>Almeida, n'este mesmo dia, voltou com a licença do patriarcha para os +esposorios se celebrarem logo, onde aprouvesse aos contrahentes, dentro do +patriarchado.</p> + +<p>Paulina quiz ser recebida na egreja onde fôra baptisada, e onde estava a +sepultura de sua mãe. Do templo de Santa Izabel passaram a visitar, nas +Amoreiras, o palacio onde Paulina tinha nascido.</p> + +<p>—Pedia-te—disse ella a Fernando—que ficasses aqui, e a nossa familia +toda. Vê tu como em vinte e quatro horas o nosso bom Almeida fez mobilar esta +casa, ha nove annos deshabitada! Meu pae não consentiu nunca que vivesse +alguem na casa onde minha mãe tinha morrido... Olha, Fernando, n'este quarto +morreu ella e nasci eu!...</p> + +<p>Desceram ao jardim. Lá estavam os canteiros, mas nenhuma flôr das que ella +memorava com infantil saudade em Florença.</p> + +<p>—Ellas renascerão!—disse Paulina.—Nós teremos as minhas flôres, +Fernando! Serão os meus enfeites nos dias memoraveis de nossos prazeres e +amarguras! Na felicidade deve ser tão doce recordar os gosos como as +lagrimas...</p> + +<p>A familia de Fernando aposentou-se no palacio das Amoreiras. A loja da +calçada do Sacramento<span class="pagenum"><a id="pag_220" +name="pag_220">[220]</a></span> fechou-se, depois que Francisco Lourenço +andou repartindo por asylos, e cadeias, e familias pobres, a fazenda com que +ia recomeçar a prosperidade do estabelecimento.</p> + +<p>O primeiro e unico desgosto que assaltou, de surpreza, Fernando Gomes, foi +quererem os governos faze-lo por força visconde. O ministro que, á conta da +remessa da medalha e da carta memoranda, o quizera metter nas garras da +justiça, era o mais pertinaz thuribulario do homem que, um anno antes, fôra +vencido em concorrencia com o filho do regedor. O ministerio estava entalado +entre o Banco de Portugal e a divida activa, e a divida passiva, e a divida +fluctuante. Fernando Gomes era convidado a salvar a ordem e as liberdades +patrias, mediante cincoenta contos, garantidos pelas contribuições directas, +indirectas, quinto para amortisação, real de agua... garantiam-lhe os +cincoenta contos até com os brilhantes da corôa, se elle pagasse á guarnição +do Porto, que ameaçava sublevar-se. Fernando Gomes teve pejo de ser +portuguez, e respondeu que pagaria os direitos do viscondado se o dessem ao +sobrinho do regedor, o qual sobrinho do regedor—diga-se aqui de +passagem—chegou a ser visconde, sem que ninguem lhe pagasse os direitos.</p> + +<p>Francisco Lourenço morreu em 1848, e a senhora Maria Luciana dois annos +depois.</p> + +<p>Tão ditosos lhes correram estes ultimos annos da existencia, que mais +parece que os anjos vieram a traslada-los de um céo para outro.</p> + +<p>Gracinda e Genoveva educaram seus filhos na<span class="pagenum"><a +id="pag_221" name="pag_221">[221]</a></span> abundancia e melindre com que +foram educados os de Paulina. Entre a filha do nobilissimo Briteiros e as +empobrecidas filhas do artista, nenhuma estrema observavam os servos e a +sociedade. As pompas no trajar eram eguaes, e raro se encontrava uma sem as +outras nos bailes, onde Fernando ia por comprazer com sua mulher, e ella por +comprazer com as invenciveis prescripções do mundo.</p> + +<p>Eugenia passava em Paris os invernos, e alguns passou em Lisboa. Todas as +damas bem sorteadas em felicidade conjugal, poderiam inveja-la, menos +Paulina. A condessa de Rohan dizia que, a não o ter, teria pedido a Deus um +marido como o de sua irmã.</p> + +<p>São volvidos vinte annos. Paulina deve ter quarenta. É ainda uma +d'aquellas privilegiadas formosuras, que Deus faz e conserva para que a +adoração dos esposos não afrouxe nunca. Fernando Gomes, a orçar por cincoenta +e dois annos, promette prolongada vida: a alegria do coração, e da +consciencia é muito na pureza do sangue, no equilibrio nervoso, e n'esta +suprema felicidade humana chamada saude, isto havemos de inferil-o da nenhuma +concorrencia de medicos e padres ao palacio das Amoreiras.</p> + +<p>Quem alli é certo, todas as noites, é Hypolito de Almeida, conde de S. +Salvador, par do reino, ministro de estado honorario, e padrinho dos dois +filhos de Fernando. Como é riquissimo e solteiro, espera-se que os afilhados +lhe succedam na herança.</p> + +<p>A um seu amigo contou o conde de S. Salvador que, um d'estes ultimos dias, +Fernando Gomes descia<span class="pagenum"><a id="pag_222" +name="pag_222">[222]</a></span> a calçada do Sacramento com sua mulher e +filhos. Em frente da loja onde morou Francisco Lourenço, parou Fernando, +chamou os filhos, e disse-lhes:</p> + +<p>—Vosso avô foi cincoenta annos sapateiro n'esta casa. Se alguma vez o +orgulho vos quizer perder, vinde aqui, e lembrae-vos que vosso honrado e +santo avô foi cincoenta annos sapateiro n'esta casa.</p> + +<p>E voltando-se a Paulina, disse-lhe:</p> + +<p>—Lembras-te, filha?... Ha vinte e dois annos, feitos em cinco de janeiro, +que tu apeaste n'este mesmo sitio... Foi aqui... Minha mãe e eu levámos-te em +braços para aquella pobre salinha dos meus livros. Recordas-te, Paulina?</p> + +<p>A senhora, com os olhos turvos de lagrimas, apertou a mão do marido, que +lh'a beijou sem pejo de seus filhos.</p> + +<p> </p> + +<p>Ha um annexim, que diz:</p> + +<p><span class="small-caps">Procurar agulha em palheiro.</span></p> + +<p>É baldado empenho?</p> + +<p>Pois eu assevero que, uma vez, procurei uma, e achei-a!</p> + +<p>E, desde então, com a minha infinita paciencia, acho tudo que quero, +n'este palheiro da humanidade, mórmente quando os individuos, que procuro, +teem devorado a palha, e se me apresentam a nu,—coisa que me tem acontecido +mais vezes do que mereço a Deus.</p> + +<p>Agora não espero achar tão cedo sujeito como Fernando Gomes.</p> + +<p>Paulinas de certo ha muitas. As senhoras, em geral,<span +class="pagenum"><a id="pag_223" name="pag_223">[223]</a></span> são, como +ella, todas, todas, quando encontram homens como aquelle.</p> + +<p>Nós, miseraveis despotas e miseraveis escravos, é que as fazemos más ao +parecer do mundo; mas na pureza de sua essencia, na angelica porção que +trazem do céo, não podemos nós corrompel-as.</p> + +<p>Se não, corrompiamos.</p> + +<p>Ó santas do infortunio, vós sois, no juizo de Deus, como as santas da +virtude!</p> + +<h2>FIM</h2> + +<p><span class="pagenum"><a id="pag_224" name="pag_224">[224]</a></span> </p> +</div> + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot476" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> Dizia assim:—«Guarde +o seu segredo; mas diga ao seu amigo que ainda o amo, e cada vez mais o +admiro. Peça-lhe que me accuse, para eu poder defender-me. Pergunte-lhe se eu +mereço tal desprezo!»</p> + +<p><a name="foot527" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> Fernando recebeu, +voltando do Porto, em começo de outubro, esta carta, com atrazo de oito +dias.</p> +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Agulha em Palheiro, by Camilo Castelo Branco + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AGULHA EM PALHEIRO *** + +***** This file should be named 27541-h.htm or 27541-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/7/5/4/27541/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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