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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:37:27 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O presbyterio da montanha + +Author: António Feliciano de Castilho + +Release Date: September 24, 2012 [EBook #28127] +First Posted: February 19, 2009 + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + + *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste + texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em + caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. + No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. + + Rita Farinha (Fev. 2009) + + + +Obras completas de A. F. de Castilho + +XIX + +O Presbyterio da Montanha + +VOLUME I + +[Figura] + + +LISBOA +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL +95, Rua Augusta, 95 +1905 + + + + + +OBRAS COMPLETAS + +DE + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO + +VOLUME 19.^o + + + + +VOLUMES PUBLICADOS: + + +I--Amor e melancolia. +II--A chave do enigma. +III--Cartas de Ecco e Narciso. +IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.) +V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.) +VI--A primavera (1.^o vol.) +VII--A primavera (2.^o vol.) +VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas. +IX--Vivos e mortos (2.^o vol.) +X--Vivos e mortos (3.^o vol.) +XI--Vivos e mortos (4.^o vol.) +XII--Vivos e mortos (5.^o vol.) +XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.) +XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.) +XV--Vivos e mortos (8.^o vol.) +XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.) +XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.) +XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.) +XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.) + + +NO PRÈLO: + + +XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.) + + + + + +OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos + +XIX + +O PRESBYTERIO DA MONTANHA + +VOLUME I + +[Figura] + +LISBOA + +Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_ + + +LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA +Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47 + + +1905 + + + + +Advertencia dos Editores + + +Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos +antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa solidão de mais +de sete annos de homisio na serra do Caramulo. A esses manuscritos, que +ia publicar com o titulo de _O Presbyterio da montanha_, escreveu um +prologo extenso, descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos +de distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as saudades +de um irmão, o melhor dos irmãos, o já então fallecido Abbade de S. +Mamede da Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo +concluiu-se, imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a +publicar-se. + +O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes +da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, +fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer como; +e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, são hoje +considerados especies bibliographicas de primeira raridade. + +Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional +de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, bibliógrapho, e +escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, outro; a fallecida snr.^a D. +Maria Peregrina de Sousa, poetisa portuense, possuia outro, que parece +ter levado caminho; Innocencio no Tomo I do Supplemento do seu immortal +_Diccionario_, não declara se era dono de algum; menciona a obra, +apenas. + +Quanto á parte poetica do livro projectado, essa, não impressa, +desappareceu em parte. Só algumas poucas peças encontrámos, umas +inteiras outras incompletas; materiaes truncados da collecção. Salvando +esses versos, cumprimos um dever moral, e outro literario. + +O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico de um edificio ainda em +construcção, e já em ruinas; é inquestionavelmente uma das obras mais +curiosas e instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a +historia, a lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o +_folk-lore_, d'aquella região alpestre, tão portugueza, mas tão +desconhecida, tudo isso é tratado com amor, com o cuidadoso amor de um +archeologo-poeta. + +Appareceu tambem uma _Introducção_ em verso sôlto a certo poema +intitulado _O Sepulcro, historia de uma noite de S. João_, projectado +pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito phantastico, +infelizmente por concluir. Entendemos não menos intercalar essa curiosa +Introducção, no seu logar chronologico, por varios motivos: dá-nos +Castilho sob uma feição poetica diversa da sua habitual, e pinta-nos o +estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia soffregamente o ar, +a vida, os usos populares da montanha. O _Sepulcro_ é pois optimo +contribuinte d'este truncado banquete literario, e fôra imperdoavel, +apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do borrão original, que +possuimos pela letra do amoravel secretario Augusto Frederico, para esta +licção actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor +ditadas em 1864. + +Além do _Sepulcro_, outras peças, portuguezas e latinas, já impressas +nas _Excavações_, teriam logar aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, +pela sua indole; mas o autor preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. +Facil é ao leitor intelligente o procural-as. + + + + +Á MEMORIA + +DO + +EXEMPLAR DE IRMÃOS + +AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO + +PRIOR DE + +S. Mamede da Castanheira do Vouga + +_Em testemunho publico e perenne_ + +_DE_ + +AFFECTO E GRATIDÃO + +Offerece + +_Antonio Feliciano de Castilho_ + + + + +PREAMBULO + + +I + +O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o +classifical-o podesse por alguma via valer a pena. + +Não é historico, nem ficticio; não é didactico, philosophico, nem +descriptivo; não é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada +de tudo isso, de tudo isso participa. + +Nem sequer é um livro; é uma congérie de pequenas coisas, todas mais ou +menos obscuras, e quasi todas desconnexas, e de pensamentos não +procurados, se não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem +determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles +banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que ha em casa, + + + _...dapibus mensas oneramus inemptis,_ + + +para hospedar a cortesãos que lhe passaram pela porta. Não procura +enganal os]: com mãos limpas e coração lavado lhes põe diante o que só +para si tinha tratado na sua horta, ceifado no seu chão, cevado no seu +pateo, ou colhido do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem; +algumas flores, já pode ser que as apresentará em vasos de barro; mas +como vos assoalha com bom rosto quanto possue, não se vos alardeia de +abastado, nem se compara com os visinhos de casas altas e balcões +envidraçados. Como quer que vós d'elle o fiqueis, não ficará elle +descontente de si mesmo á despedida. + + * * * * * + +Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de carreira, parte apenas +esboçado ou apontado, ha hoje doze, treze, quatorze, quinze, e dezasseis +annos, sem pensar no Publico; para mero desenfadamento de horas +abhorrecidas; para ajudar a correr mais depressa, em sitios tristes e +ermos, uns tempos muito ermos, muito tristes, e para mim, que nunca bem +atinei com o futuro, muito desconfortados de esperanças. + +Como todo o meu fim em fazer versos não era outro senão o fazel-os, de +todo o modo me nasciam bem. Não tinham de apparecer entre gente; não os +educava; não os corrigia; não lhes punha galas e arrebiques. Assim +sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci. + +Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que não tornasse; +achei-os os mesmos que os tinha deixado: sinceros, mas incultos e +semi-silvestres, como nados e creados que eram por entre troncos e +penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por fora o mesmo que por +dentro faz a consciencia. + +Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram filhos; contavam já +annos: recordavam-me tempo de saudades; eram me saudades elles proprios; +reconheci-os; dei-lhes o meu nome; com elle os apresento. + + +II + +Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu que +_se compõem_ para o Publico; e, bem hajam elles!: não levam á praça +senão o que teem averiguado que por lá se deseja e se procura; põem de +parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao interesse ou gosto +alheio. + +Nada d'isso tenho eu n'estas paginas. + +Não sou eu que vou para os leitores; são os leitores que teem de vir +para mim, se as quizerem ler. Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; +as suas occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela minha rudeza; os +seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da sua vida, pelo +recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte desconhecida e +pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só vista de cima pelo ramo de +tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela andorinha cujo ventre branco +ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar desde aqui +(a fim de que não venham depois obrigar-me por divida que eu não +contraio), que a unica deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar +alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no interior da casa +alheia, e nos segredos do visinho. + +É o que faz com que, por mais futeis que pareçam as memorias, que alguns +escrevem de suas vidas, e as correspondencias epistolares, quando por +acaso vão dar ao prelo sem terem sido ordenadas para elle, commummente +são lidas com interesse. + +É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as achadas de +antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma antiga vivenda +particular ou casa rustica, onde os vasos e utensís do viver quotidiano +veem logo suscitar na phantasia os costumes, o trato, e o ser intimo, da +gente que ali houve. + +Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o ladrilho do +forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos banquetes, +dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas ressurgem tambem uns +eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; confusos, mas a todos +intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, de velhos e meninos, dos +animaes caseiros, dos passarinhos e virações do ceo, do sussurro das +plantas, dos sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e +feneceu, deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e +a lampada que allumiou calada os prazeres ou os somnos de seus senhores. + +Os monumentos são artificiaes, e artificiosos; são estudados, e +emphaticos; a historia que elles resam é fria. Mas cá, o romance que +engenhamos, ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado, é +todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades. + + * * * * * + +As _impressões de viagens_ estão sendo ao presente um genero de +Literatura mixta mui usado e mui querido. + +Não admira: para os autores é facil; para os leitores, recreativo quando +menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que todos temos muito ou pouco; +sem cançasso nem más poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por +aguas do mar; sem desabrimento de estações; sem saudades do que lá fica +para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que é repetir +algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a pessoa a viajar em +corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando aonde ninguem a +espera, nem festeja, nem conhece, e onde não ouve pelas ruas palavra nem +som da sua creação. + +A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos +atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam, com a nossa +casa e familia, sem até nos demovermos do nosso quarto nem da nossa +cama, se como Ovidio somos, que punha entre os regalos da vida o de ler +deitado. + + * * * * * + +Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o gosto de +conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são extranhos, e não medir +as distancias que nol os apartam, que esse, pelo contrario, é o maior +desconto do peregrinar, ¿por que se apeteceriam mais as viagens á +França, á Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás margens do Rheno, á Russia, +ao Egypto, á China, ou ainda á Lua, do que a um qualquer monte da nossa +terra, só conhecido de seus moradores e visinhos? + +¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em cujas faldas está +assentado S. Mamede da Castanheira do Vouga, como um neto no regaço de +sua avó triste e taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se +abriu a arca depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto. + +Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar montanhezes, agrestes porém +bons; e tão bons, que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal +productivos, nos seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e +pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, entalados nos +córregos, ou inclinados a scismar tristezas sobre algum rio fundo e +triste, nunca se lembraram de vos invejar a vós outros as vossas cidades +opulentas e festivas. + +Estes, com falarem portuguez, são para vós estrangeiros, ou quasi. Como +taes, não vos despraza conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com +quem por entre elles demorou annos, e de boa-mente lá iria agora +enterrar os restos cançados da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe +lá ficou em quieto desterro para todo sempre.[1] + + +III + +A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região o novo +Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade minha continuada e +sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a sua pequena familia, +de que era eu parte inseparavel. + +Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais florídos; +Lisboa, a do nosso berço e da nossa infancia. Uma e outra me chamariam +pelos affectos em qualquer parte do mundo em que eu estivesse; e não +houvera eu valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que então +cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos elle e eu, por nos +sentirmos um como o outro tão encantados com o nosso futuro, já palpado +e colhido ás mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os +outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, mais +amenas ou mais vívidas, por aquellas gentilezas incultas e mais poeticas +de uma natureza quasi primitiva. + + * * * * * + +Passámos n'uma bateirinha remada por uma velha moleira da margem, o +viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje corrupto, segundo a +tradição, o _bom fiar_ de certa moça mui santa, que junto d'elle vivia +n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o trabalho da +sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros lhe viesse o appellido, +significando _pepinal_, ou _rio das terras dos pepinos_; pacifico rio, +que então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas altas e +verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de se deter +enlevado na amenidade de tal painel. + +Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para um e outro +cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes, só de longe a longe +interruptas de um sovereiro torcido e mal posto, ou de um rebanho; +terreno boleado e ondeado como um lago, que em meio de tempestades se +houvesse petrificado por encanto. São já fronteiras do Caramulo. + + +IV + +A freguezia de S. Mamede não se vê em parte alguma; é dispersa, e +emboscada. A magreza da terra não dá para grandes espessuras de +povoação. + +O aspecto do paiz, para quem só o atravessa é de inhospedeiro. Mas que +se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea e +desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em todos os +corações. É porque a solidão é de si mais affectuosa, e a pobreza mais +liberal e larga, que o rico povoado. + +Esta differença e vantagem que os moradores levam á sua terra, +experimentámol-as nós ainda antes de chegarmos á egreja e residencia, +sahindo a receber o seu Pastor novo não só os maioraes, se não quasi +todo o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das +cerejeiras e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde +áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas brancas. + +A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para o seu adro +muito verde, apresenta-se solitaria. Das povoações em que a freguezia se +divide, nenhuma lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia +parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de traz, como +serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por entre os plátanos, que +o portal do seu pateo toucado e semi-velado das mais espêssas, crespas, +e lustrosas heras, onde jámais se esconderam e cantaram melros. + +Ambos os edificios ficam no meio do _passal_, antiga quinta «das +Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do sinuoso +deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, que ali +teem o seu foco espiritual. + +Um grande silencio rodeia largamente a casa da oração. O presbyterio não +lh'o quebra. + +Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo rustico mas +espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da sua frontaria principal +unicamente para o ceo, e para umas formosas e corpolentas laranjeiras, +que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle clausuradas, o modesto +domicilio, proporcionado pelo que sempre deverá ser o pastor de tal +rebanho, não se retrahiu para mais longe, por traz da sombra do +santuario, porque não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez +mais precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa para além +a esconcear, descer, e afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e +espumifero rio de S. Mamede. + +Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a grande altura, +por cima das aguas escuras e raro alcançadas do sol, communica esta com +a ribanceira ulterior, não menos carrancuda, fragosa, arripiada, e a +pique. + +Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até ao moirisco logar de +Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da penedia d'alem-rio, +entremeia apenas distancia, que, pela calada das noites, deixa ouvir de +parte a parte os ladridos dos cães de gado, as cantigas do serão, e os +alertas dos gallos a deshoras. E comtudo, aquelle _quasi-nada_ para os +ouvidos e olhos, é para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem +perigos. + +As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte, giram enleadas +e perplexas, torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a +esquerda, como espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a +subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra. + +Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, são os unicos +entes vivos, que por ali se affoitam a tomar pé. Os seus frutos +vermelhos, quando o vento lh'os despega maduros, vão sumir-se entre as +espumas arrebatadas. + +Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes escarpas, com +poucas braças de ceo por cima, e por baixo de si o rugir de tantas +aguas, dá as sensações de um bello horror. + +Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas esquecidas para +aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas vezes ahi me veio por +tardes de Junho, em quanto, calado e estendido sobre as táboas, gastadas +e rôtas da humidade, me gosava da viração transpirada pela corrente. +¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma inspiração de religiosa +poesia no fundador, a que fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço, +como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja? +¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão escura, tão angustiada, +tão clamorosa, e com tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras +inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo +ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre, tão aberta, o +dia inteiro, ao generoso sol dos campos, tão gorgeada a ambas suas +portas de passarinhos, tão garrida de espadanas sobre as campas do +pavimento, e nos seus cinco altares tão ridente de flores silvestres, +symbolo da alma refugida das tormentas do mundo para o ineffavel asylo +da Fé e das Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e +transição dos dois extremos, a casinha do Pastor, alva como a confiança, +verdejante e florida como as promessas, recatada como a esmola, +inexhaurivel no seu celleiro como a Providencia, tácita como a +meditação, com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas +para a torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores +de Deus para o firmamento..... + +O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a +torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou Mamante, foi um +humilde e obscuro pastor de gado na Capadócia, e do qual toda a Egreja +do Oriente pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou +martyr, por volta do anno 274 da nossa era. + +O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o +vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres e pacificos +arredores, para o Menino, já moço na valentia, ou para o moço, ainda +menino na innocencia. + +Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos concertou. + + +V + +Era a residencia, quando a ella chegámos, decrépita e caduca: apparencia +de choça fabricada de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior; +por fora negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de +inuteis e desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor +a havia em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado. + +A transformação foi rapida e completa. Os alpendres desappareceram. Na +casa remoçada entrou por vidraças abundancia de luz. O pateo +desafrontado foi revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de +cal bem candida, logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro +n'elle plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que +n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já não existe na +terra, o outro declina para o occaso, elle, medrando ainda, é já, como +lh'o eu augurára nos meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu +tronco cinco palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura.[2] + +O novo Prior, o Rev.^{do} snr. Padre Antonio José Rodrigues de Campos, a +quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, varão de virtude, e +espirito cultivado por Letras, filho d'aquellas boas terras, e amigo +nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do nosso nome, conserva e zéla +tudo aquillo com amor. + +É para mim delicia o considerar, que á sombra grande d'aquelle cedro, +que eu regava todos os dias, quando um menino de tres annos o poderia +ainda arrancar sem custo, lerá talvez, depois do seu Breviario, este +livrinho das minhas memorias, em que deposíto o seu nome mollemente +reclinado entre tantas outras saudades minhas. + + +VI + +Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me escondeu +sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de 1834, o ninho em que +nasceram, sem pensarem em abrir o vôo que hoje abrem para o mundo, estas +poesias montesinhas. + +Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo esboçado, +peço-lhes ainda um pouco de indulgencia, para lhes dar a conhecer, por +alto, os arredores. + + * * * * * + +O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo por +traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno, a escoar-se +cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede. + +Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e erma de +Falgozelhe, se boleiam melancolica mas graciosamente as suas hortas, os +seus pomares, a sua fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras, +que até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois de +povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada horizontal, +por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, até ir +bater, lá ao longe, na capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe +servem de limite. + +Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias folgavam de +avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades protectoras da +Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo agricola como este, do que +achar a casa do Creador, e a do seu dispenseiro, no centro da abundancia +das messes, e saudal a com a invocação de um Pastorinho santo? + +O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. Sebastião, por entre +duas grinaldas de oliveiras e vinha, o meu passal até ao adro; costeia a +egreja e a casa pela direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai +mergulhando para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura +sombria da fonte sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja +antiga, um altar de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, +assoberbada com um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um +troço de lança enferrujado de musgo. + + +VII + +Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé d'este altar, onde já +ninguem ajoelha, sobre sepulturas que hoje são tremoços, e recordemos a +obscura historia d'este sitio. + +¿Por que razão só as grandes ruinas se hão-de haver por merecedoras de +attenção? Todo o passado é poetico; todo o evocar imagens humanas de sob +a terra que pisamos, é proveitoso para alguma coisa. Nas solidões, +mormente como esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, +e que onde hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de ninho +quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos bons, e +até festas. + +Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da +Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela +margem de cá ás aguas do S. João do Monte, que logo a diante troca o +nome no de S. Mamede, um moço por nome Jorge, humilde de geração como +tudo quanto por ali nasce e se cria, mas de coração alto e espiritos +levantados. + +Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal uma velha, que o ouvira +em pequenina a seus paes, que o tinham recebido não sabia de quem)... +mas emfim, namorára-se, que o sabia ella, de certa moça de alem-rio, +guardadora de cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro +grau de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da sua vivenda entre +penedos, levava, os dias com os olhos sempre içados aos cabeços de +Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de serguilha, ou do seu +sombreiro preto; e ainda não de todo malcontente, quando, por entre os +penedos pardos e as urzes côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do +precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que obedeciam á +sua voz melodiosa. + +A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a esperdiçava +cantando n'aquellas solidões, parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a +estava captando com ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido +entre as nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a interrompesse, +porque não sabia de coisa mais de molde para o seu coração. + +Vel-a á sua vontade, não a via se não aos domingos na egreja; e nem +então, que para esses dias tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias +muito alvas, e tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe +que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a +fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das +aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que prestem para +communicar dois estados tão diversos. + + * * * * * + +Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é poesia; e poesia +não é vida. Ousou, e declarou-se a medo á sua formosa; não foi +repellido. Affoitou-se a mais: ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario +em confissão. O que entre elles se passou, não se sabe; taboas de +confessionario não são carvalhos dodónios que chocalhem tudo. O que se +sabe, é que a moça não tornou a apascentar para aquella banda, e que +elle, pouco depois, deixou a terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos, +sem dizer nada a ninguem, e não levando senão o fatinho que tinha no +corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo dizem, era grande, e o +seu amor, que não era pequeno. + +Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el +Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus para onde, e +para quê..... + +No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento, +assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida, apegou-se +com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse com tudo seu +a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, uma capella +da sua invocação com duas Missas por semana, defronte de Falgozelhe, +onde vivia a noiva do seu coração, por cima da Talhada, onde tinha os +irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o baptisaram a elle, e onde a +avistava todos os domingos..... + +Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria muito em semelhante +lance, em que as ondas formavam, por instantes montanhas tão altas e +escarpadas, porém mais temerosas e feias que ess'outras, entre cujas +quebradas, e por cujos visos, elle variára a sua infancia. + +Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido. + +Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em Angeja, que em +boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e nunca mais tornou a +aventurar-se sobre aguas do mar. + +Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que ainda ali se +divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi demolido, para ir servir +como materiaes na edificação de parte da residencia, e da egreja nova, +que já sabeis lhe estão visinhas. + + * * * * * + +--¿Mas o fim de seus amores?--me perguntareis vós. + +Memoria é essa que eu tambem procurei, porém não consegui desencantal-a. + +O que só pude desenterrar da tradição, foi: que este mesmo Jorge viera a +casar-se na freguezia; que tivera um filho nascido na póvoa da Talhada; +que este se ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e arribára a Cardeal; em +memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada da antiga, e +mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito amadas, uma +Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com braços em baixo e +em cima, oleada de verde, doirada nas pontas, e n'ella pintados tres +cravos, duas chagas, e uma corôa de espinhos. + +Vê se, venera-se, e commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na +parede do arco cruzeiro da banda direita; e affirma-se, que na capella +de S. Jorge permanecêra com egual honra em quanto ella durou. + +Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma +póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro velho, e +onde o que só fazia bulha no meu tempo era um pequeno moinho, rôto por +todos os lados aos ventos e chuvas, foi, ou não, nascido do consorcio a +que o Padre Vigario e seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não +alcancei; e não quero invental-o. Provavel me parece que sim, quando me +lembro do que a minha velha me contava d'aquelles amores, e o combino +com a ideia que formei da constancia no bem querer dos moradores da +minha serra. + +A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a Jorge, qualquer +apostaria que o foi sempre. A fortuna entulhára com riqueza o abysmo que +os separava; e S. Jorge, que não é Santo para meias victorias, havia +forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto. + +Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de +pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome +ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os +recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e beber +á saúde da futura geração algumas malgas de vinho verde na sua casa da +Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do Monte. + + +VIII + +A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o antigo oratorio +dos Condes da Feira; e a residencia, já depois duas vezes transformada, +albergue do feitor que elles ahi tinham para lhes receber os fóros, e +lhes tratar d'aquella sua quinta, chamada, como já tocámos, «das +Limeiras». + +Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto, +havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão, do Bispado +de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de distancia +da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para Alcafaz, pertencente +agora á freguezia de Agadão, sitio ainda desfavoravel pelo estirado e +descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem ermida, +casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a sustentação de Parochia +sobre si. + +N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos +hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus +amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a espessura das +moitas então creava, segundo parece, como ainda hoje cria lobos. Folga a +phantasia comparando e contrapondo aquelles tempos a estes, e reanimando +o actual silencio com um reflexo e ecco da vida estrepitosa de outra +edade. + + +IX + +Explorámos as convisinhanças do templo e residencia. Estendâmos agora os +olhos até ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico +senhorio. + + * * * * * + +D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o logar +das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S. João Baptista, e sua +fonte muito fresca. + +Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da +Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa +com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do +Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que desde +as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no alto do seu +oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam, de extrema a +extrema do Reino, quantas noticias o revolvem, sem que a boa da villa, +nem outro algum dos logares que entram na sua abençoada confederação de +rustica ignorancia, as adivinhem, nem suspeitem, nem cubicem. + +A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a humilde póvoa de +Falgarinho, de não mais que oito visinhos. + +Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se, +n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres +pessoas. + +Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores, +e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e agradavel +quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de Nossa Senhora +do Livramento. + +Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S. João do Monte, +que a seus pés corre, está em amphitheatro o Avelal-de-cima, de vinte e +quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da egreja. + +Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis, a +meio quarto de legua está para o nordeste o Avelal-de-baixo, logarejo de +quarenta e sete almas, e uma capella de Nossa Senhora da Conceição. + +Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo +bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de observação. + +Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi toda a costa dos +Ferreiros, passa-se o rio de S. João do Monte, junto ao seu confluente +Alcafaz (nome arabe, que significa «o salto») nome que para ali está, ha +mais de setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a sua +origem, nem se corromper. + +Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa Talhada, de +honrada memoria, berço de um Cardeal, de um fundador de capellas, e de +um namorado de lei; tres celebridades para um ninho hoje de quatorze +almas, coberto de loisas e colmo, e coroado de sarças e medronheiros; +dista-nos um quarto de legua para nordeste. + +Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede (que +toma este nome na juncção dos dois afluentes) se atravessa na ponte de +pau que já sabeis, e onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a +apanhar á fresca. + +Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas rochas, toma-se +a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda, que em travessia +da montanha, sobre a esquerda do rio, leva até ao casal do Fontão, de +onze almas, sito na margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz, +a quarto e meio de legua para nós. + +Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a encosta; +e no cimo se encontra a povoação de Falgozelhe, de setenta e uma almas, +posta a um quarto de legua da egreja, a les-sueste, quasi na extremidade +occidental de um ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração é o que +á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz. + +Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por outra ponte de +pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo está o pequeno e vistoso logar +da Falgarosa, de trinta e seis moradores, com uma sua ermida da Senhora +da Boa-Morte, a tres quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o +delicioso de seus pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de +sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo, +com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje rege aquelle +rebanho. + +Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de +se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S. Mamede. + +Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda, de cincoenta almas, com +sua capella de S. Gonçalo, a quarto e meio de legua a sudoeste da +egreja. Redonda se chama, por estar á borda de um leito semi-circular. + + * * * * * + +Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas confrontações +externas. + +Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do Préstimo; pelo +poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da Aguada de cima, e +Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão, filial, ou annexa, que aínda +então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre si; paiz ainda por +ventura mais serrano e variado, mas que eu não cheguei a descobrir. + + +X + +O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um corpulento ramo +do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em voz de Moiros quer +dizer «abobada», ou montanha boleada á feição d'ella. + +Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros +ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que merece. Mas, +sobre que nunca o visitei, apesar de tão visinho, recearia apoucar-lhe a +veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas +noticias que d'elle tive. + +Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando d'entre as +nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa em +tempestades, em frutos magra, mas opíma em homens e mulheres de antiga +tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da fome, e da nudez; é +um paiz de selvagens christãos, para o qual as rudes terras do meu S. +Mamede estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios +poderia estar a antiga Attica. + + * * * * * + +Dois monumentos accrescentam veneração ao Caramulo, quanto o podem +mesquinhas obras humanas ás grandiosas moles naturaes. + +N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos principios d'este +seculo, uma especie de zimborio de doze palmos de altura, pouco mais ou +menos, de pedra muito bem lavrada e argamassada. Para quê, não dizem; +mas dizem que por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da +circumvisinhança, por occasião da guerra peninsular, commetteram +demolil-o; mas só lhe poderam fazer pelo norte um pequeno estrago. Dura +em pé, e só é accessivel do nascente por uma vereda estreita e tortuosa. + +O outro monumento não é menos enigmatico, e deve estar farto de ver +passar seculos e desfazer-se gerações. + +N'uma arremeçada crista, a duzentos passos da egreja do Espirito Santo +de Arca, se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de Arca». É +uma desconforme loisa inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por +esteios de pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo +sido um arrancado para as obras da visinha egreja. + +Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura dezasseis; de +grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte quatorze, pelo poente +onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam de altura doze palmos, +só da flor da terra para cima; de largura, um que fica para o poente +apresenta nove palmos, tendo de grossura pelo poente palmo e meio, e +pelo nascente um palmo. Um, que diz para o sul, tem de largura, por +baixo quatro palmos e meio, e por cima tres, e de grossura um palmo de +cada lado. O ultimo, que está para o norte, tem de largura, por baixo +cinco palmos e polegada, e por cima quatro palmos e polegada. + +¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que eras, e para que fim, +se alevantou ali aquella, que á phantasia se figura bruta meza de +gigantes silvestres? ¿Sería obra de fortificação n'um systema de guerra +desconhecido? Quasi que nem possibilidades o abonam. Uso agrícola, +industrial, ou civil, nem a imaginação mais inventiva lh'o rastreia. +Memoria de algum varão ou feito insigne, já a poderia ser. Mas então, ¡a +que rudes tempos a não havemos de referir, visto como nem data, nem +letra, nem escultura tôsca, nem vestigio algum de arte nem de +architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira! + +Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais, +quando se adverte na semelhança que tem com os altares druidicos, ainda +hoje conservados em varias partes do que foram Gallias e Germania. + +Verdade é, que por estas nossas terras não rezam as Historias, que se +estendesse aquella abominavel seita de sacrificadores de humanas +victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que, perseguidos, como o vieram +a ser, pelos Imperadores romanos, alguns druidas se refugiassem para +este Occidente, e aqui, em retiros montesinhos, menos accessiveis a +pesquizas e perseguições, professassem e mantivessem o seu culto, do +qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade comparadas) +não muito discreparia talvez a religião do Endovélico lusitano. + +Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem, se vale a +pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro dos meus +affectos. + + +XI + +Nada concita aos logares veneração, como a antiguidade. + +Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além de Moiros, +Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure, não rastejo noticia +d'essas edades, com que fazer obra. + +Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve +memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas terras, nem +ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem tradições o denunciam. +O solo enguliu tudo; e nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou +letra para enigmas. + +Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra da sua lavoira, na primeira +valleira que se encontra á direita do caminho indo para Agueda, se vê +uma fiada de umas como torrinhas, que se estende por mil e quarenta +palmos; das quaes torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e +algumas porções deseguaes de muros esboroados a delir-se. + +E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se dá em uma +furna chamada «a buraca da cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva; +a qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de +largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é geral fama +que fôra aberta pelos Moiros. + + * * * * * + +Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou se, dizem os +netos, que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S. +João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus thesoiros +por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados. + +N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a estancia, e +que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro. + +Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente +já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem medo os rebanhos para a +sua visinhança; cantam aos seus hombraes trovas muito christans; e quem +quer, lhe devassa (como eu fiz) o seu palacio subterraneo. + +A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina aberta, pelos Moiros +sim, mas não para tirar oiro, que é sempre a primeira conjectura, nem +para serventia militar, que é sempre a segunda, se não só, e +prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de lá mana, muito fresca +e saborosa, mas em pequena copia. + + * * * * * + +Sobre as fortificações engenha cada um a sua hypóthese. + +Ha quem as supponha posteriores á invenção da artilharia, por se lhe +figurar que só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros +as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por ali outros +vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares demonstra, que +elles por lá viveram. E se por lá nasceram e se crearam, não podiam +deixar de fortificar-se e defender-se contra commettimentos de inimigos, +que é esse um instinto natural a todos os homens, mas nos homens das +montanhas mais energico. + + * * * * * + +Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto que o seu +nome, se christão não é (como de certo não é), tambem por arabe se não +reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga? + +Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que +podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella serrana +região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi deixaram menos rasto +que em muitas das terras visinhas, seria porque a bruteza do monte era +já então como hoje, que não dava meios nem licença para grandes obras. +Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito faziam em +tirar da terra pão com que se manterem; ¡quanto mais, erigirem +castellos, pontes, ou mesquitas, de que se podessem admirar fragmentos +depois de sete seculos! + +Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo de +outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar +d'estes, se acalentaram creanças com versos do Alcorão. Outras arvores, +de que estas são remota descendencia, viram passar á sombra das suas +copas esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda, e +turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje é talvez +poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e ficariam confusos e +immoveis se revivessem para ouvir as da nossa lingua. + +Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos, +que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de mim o são e +serão sempre. + + * * * * * + +Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes, manteem-se ainda +antigos. As novidades das civilisações são como a escravidão, e os +diluvios: tarde chegam a engulir as serras. + +A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucidez. Se +os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se perdessem, pela +conversação corrente d'aquellas aldeias e póvoas se poderia restaurar. + +Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos, phraseado, e +construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um palrar de sésta de +segadores entre carvalheiras rusticas, ao estridor das cigarras amadas +de Anacreonte, do que entre o ranger dos prelos e o resfolegar das +balas, n'um anno inteiro da melhor typographia de Lisboa. + +Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos, como +o _nanja_ o _bofé_, o _canté_, o _quiçá_, e mil outros, sôam por lá sem +extranheza em boccas de mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de +namoradas de dezoito nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria. + +Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós aos netos a das +crenças e praticas piedosas, e com esta a de muitos seus erros e +abusões. São os insectos e musgos parasitas da arvore robustissima da +Fé. Abençoada a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os +ramos ou cerceal-a pelo pé. + +O tempo vai fazendo a pouco e pouco o seu officio. Não ha curas nem +reformações mais prudentes e certas do que as suas, quando á força lh'as +não ajudam ou contrariam. + +Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade de +apparições, phantasmas de almas do outro-mundo, Moiras encantadas, +thesoiros escondidos e lobis-homens; e ainda hoje a mór parte dos +moradores acredita nos esconjuros, feitiços, bruxarias, adivinhações, e +virtudes de certas praticas e fórmulas, para curar ou empecer. + +Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis, dão comtudo +sua côr poetica muito particular ao Povo, cuja simplicidade primitiva no +viver e trajar harmonisam com taes simplezas da intelligencia. + + * * * * * + +Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto +vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos, são por +ora totalmente incognitos na serra. A moda não exerce por lá as suas +costumadas devastações de cabedaes, bons costumes, e saude. Os +vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma +uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal +renova as suas folhas e flores. + +Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada ás costas das +suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e tecida por suas mães, +mulheres, e filhas, apizoada e tinta (quando o é) sem sahir da +freguesia. Trazem grandes chapeos pretos desabados, grande bordão +ferrado, menos para defensa, que para arrimo pelo resvaladio das +ladeiras, e tamancos cravejados. + +As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra, sáia de +burel de meio pizão, côr de pinhão ou preta, collete comprido justo, sem +apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de burel mais apertado no +tear, e sem pizão, que lhes serve de capa, lançado ao desgarre por sobre +os hombros. A cabeça, cobrem-n-a, ou com o mesmo mandil, ou com um +chapeo como o dos homens. As suas tamancas são menos grosseiras. O lenço +de seda ao pescoço é, como as arrecadas e o cordão de oiro, o ultimo da +magnificencia, e as flores da urze ou da carqueja o mais galante enfeite +dos seus sombreiros. + +São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou romagens, quando +calçam, com meias brancas, tamanquinhos de pregaria doirada com sua meia +palla de marroquim vermelho, vestem roupinhas de pano burel fino, ou +chita, põem gorjetes de filó, ou lenços de cassa bem pregados, e +capoteiras de pontas compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as +mais ricas e senhoras teem mantilhas e sapatos. + + +XII + +A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita como a cultura do solo +ingrato, só põe mira no essencial: em desenvolver os sentimentos +naturaes e religiosos, o afferro á justiça e á verdade, os differentes +amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o +respeito á velhice e ao infortunio. + +As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas. Esses +discursos de cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora +deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam, +inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e dizem-n-o como o +pensam. + +Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para ser bons +lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas mães, depois +de terem sido bons filhos e boas filhas; e n'isso limitam a sua ambição. + +Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para +folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras, em +saraus esplendidos. + +Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam a nossa, que é melhor. + +Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um só livro em +toda a freguezia; mas os louvores da sua moralidade dariam com que +encher mais de um livro para nos envergonhar. + +A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o +coração bem nascido dará gosto. A _mercê_ e o _vós_ de nossos maiores +são tratamentos para os raros casos em que não cabe o _tu_. + +Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um dos outros. +O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou á meza do mais rico; +isto é, do que na sua tulha tem centeio ou milho para todo o anno; e o +abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com os seus bois a +geirasinha do indigente que a não pode pagar; e lhe leva pendurado na +canga do arado o sacco da semente, para que elle tenha tambem, lá para o +verão, que ceifar para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por +instinto, que as lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas +para quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as +presenceia. + +É um povo agricola, que ainda não aprendeu a envergonhar-se do seu +parentesco chegado com a terra. Entre elles se diz «lavrador», e +«trabalhador», como em Londres «fabricante», ou «lord», em Roma +«cardeal», ou «monsenhor», em Paris «sabio», ou «homem de Letras», e em +Lisboa «deputado», ou «millionario». + +As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão, com o seu +paquife de pâmpanos e espigas, e a letra _Ut operaretur terram, de qua +sumptus_. + + * * * * * + +¡Que impressão, a principio de espanto, logo de respeito, e a final de +amor, me não fez o presenciar, como, ao revéz da pragmatica das cidades, +o trabalho das mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior +vergonha!! + +Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido o +sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava (como as andorinhas +do seu beirado para o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal +roupido, carrear o adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na +roça dos mattos entre os seus operarios. A estes, ¿que os poderia +admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios, e dos Camillos, se alguem +lh'a lesse, a não ser a admiração dos historiadores? + + * * * * * + +As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não poderiam deixar de +ser mais varonís do que os homens de muitas outras terras, e de todas as +deliciosas. + +Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha, com o seu +costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes, que vão +formando semelhante á precedente a geração seguinte, só são passatempos +do serão, á luz da candeia, das pinhas bravas, ou da fogueira, que +allumia e alegra os penates afumados. Madrugam como a aurora para os +trabalhos fortes. Os bois conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente +jungir e guiar pelas suas mãos. Na vindima, carregam á cabeça cestos, +que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as mãos alvas +e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas ceifas, transportam á cabeça +montanhas de espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan +sob o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua +grinalda de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em +bemaventurança para dez familias. Nas renques dos saxadores e dos +roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião não mais leve, deixal-os +muitas vezes para traz, e envergonhal-os com seu riso de triumpho. + +Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O exercicio, Anjo +custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra ao mesmo tempo +no sangue a saude, que do sangue se côa ao leite, e do leite aos filhos. +Seriam as amasonas da paz, se não tivessem ambos os peitos muito bem +inteiros, e se os homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as +lidas. + + * * * * * + +Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz, que moralmente parece +distar do nosso duas mil léguas, é a sujeição da mulher; facto que eu +não moraliso, mas só historio. + +As mais graves, tanto como as mais somenos, não só á laia das Penélopes +e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio +até meia-perna; não só no tráfego de porta a dentro, na cosinha para a +familia e para os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de +ministrar de pé, como servas, á meza de seus maridos e filhos, nem em +dias de festa ou bodo, quando a assistencia de hospedes mais poderia +assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as. São sempre aquillo: sempre +passivas, boas, e contentes. + + +XIII + +Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão já minuciosas e pueris +estas noticias; mas hei-de já agora continual-as, e seja com vénia sua. +A outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns +annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem renteado as asperezas +das serras, alguem festejará encontrar estas antigualhas, nas folhas já +por ventura rôtas e descosidas d'este livro. + +Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao commum da nossa +gente; mas então hão-de ser antigualhas fosseis, e portanto com +veneração duplicada venerandas. + + * * * * * + +A indole da gente é de si commedida e pacifica. + +De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre ella achar +amostras, que emfim, terra é, e não paraiso; mas nem tantas +proporcionalmente, nem tão feias e monstruosas em geral, como em outras +partes, e em quasi todas. + +Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com +todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico; +ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de trabalhar contínuo, para +se despender em vida de enredos, corrupção e maleficios; nem tão +extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o +despeito, o despenhem de salto em salto até ao fundo da depravação. É o +_inter utrumque_, a _aurea mediocritas_. + +Conservam inteira a Fé religiosa. + +Não lêem, nem conhecem, nem levariam á paciencia, jornaes que +desorientam, desencantam, e põem o genero humano em guerra viva comsigo +mesmo. + +E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura toda +novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e venenosa, que por cá +nos trabalha, e de cujos herpes adoecem até as familias, que a maldizem, +e a repulsam da sua porta. + +Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de só provir da fragilidade, ou dos +impulsos subitos da natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na +consciencia remordimentos. + +Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a julgam; +quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida como +aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se +conchava. + +D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais, +resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e +innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em graças +exteriores, em tactica, em egoismo infernal e assolador. Nos amores +ponhâmos o exemplo: + + * * * * * + +Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e persuade: +tendem á união, de que se originam as familias, e por onde a especie se +mantém. + +Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior +arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além do ocio lhes +fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que estimulam e irritam as +phantasias, para o casamento se namoram, e não por alardo; para goso do +coração, e não da vaidade. Põem no merecer as diligencias que outros +põem no conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar +no repellir e despresar depois de saciados. + +Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de seducções, de emboscadas, +enganando-se e sacrificando-se um ao outro. + +A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem se ufana em +desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um theatro, ou +no vão de uma janella de club, em noite de baile, um copioso canhenho, +meio historico meio fabuloso, dos seus triumphos. Ali, ali é que as +mulheres se podem gabar de ser amadas, pois o são sem disfarces nem +encarecimentos; são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem modistas, +nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem mestres, nem +lisonjeiros, nem romances, as transformaram. São-n-o pelo que são, e não +pelo que possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada. + +Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão lá supprir lindezas do +corpo, graças do animo, ou preciosidades do coração. + +Não é entre prestigios deslumbradores, n'um ambiente de calor +artificial, estimuladas ou vencidas do exemplo, da occasião, do medo ao +ridiculo, e da audacia emprehendedora, não é ao abrigo do estrondo e +confusão de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras +declarações; é ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de suas +mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva com as parentas e +amigas, em derredor da merenda, á sombra das carvalheiras. + +São amores que se não escondem, porque não teem de quê; amores que se +exhalam debaixo do ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada +capella do festejo, ao som folgasão da _Mirontella_ roncada pela gaita +de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante do arraial. + +No progresso de taes inclinações é sabedora e consentidora toda a +visinhanca; e esta mesma notoriedade defende os nossos namorados, tanto +de se deixarem arrastar de seus mutuos desejos, como de se desvairarem e +cahirem em infieis. + +Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações, não menos obrigado a +lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia commetteria galantear +a conhecida por _emprêgo_ de outrem, certo em que nenhuns lucros lhe +surtiria o empenho, senão só motejos e descredito. + +D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma constancia +verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o bem-querer d'estes +Jacobs e d'estas Rachéis. + +¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser sinceras, hão de confessar +que a escolha que n'um baile fizeram... só durou até que veio o baile +seguinte! ¡Quantas, quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que +pelas duas orelhas que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo tempo) se +poderia contar, perguntando á sua modista franceza quantos vestidos +novos lhes havia feito! + +Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno passado, demorar-se mais +a encher a malga para certo segador que para todos os outros, e +pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a pôr á cabeça a gavella das +espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este anno; +continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua mulher, os cuidados +dos filhos e da casa a impidam de seguir, como antes, por passos +contados, o seu gosto. + +Observação tão curiosa como verdadeira: + +Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós, que a +variedade dos serviços rusticos tão a miudo lhes depara, rodeadas da +Natureza por todas as partes, vendo livre o amor nas aves e nos +rebanhos, favorecidas pela solidão selvática e pelo silencio, e pelas +moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois crepusculos em cada dia, e +em cada semana de inverno por tantas tempestades improvisas, como +aquella que rendeu e debellou a vidual constancia de Dido e a piedade de +Enêas, quando o hymeneu deu com o relampago o signal de suas bôdas, e as +nymphas pelos altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de +fragilidade como a de Dido por phenómeno se apontam; e annos e annos se +devolvem, sem que um só se realise. + +Quando porém se dá, e vem a lume filho não de benção, o peccado de amor +não se carrega de crueldade. O innocente não se faz victima expiatoria +dos culpados, perdendo a vida entre as mãos de quem lh'a deu; horror +nefandíssimo, inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; +nem tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas da noite, á porta +lá ao longe de um desconsolado asylo, aberto pela misericordia em +lagrimas ás lagrimas dos filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor +para se crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, +e se finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias. + +Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo infanticidio moral, +mereceria qualquer das minhas serranas um falso titulo, que ainda mais a +faria corar, que a tácita confissão da sua culpa. Sabe renunciar os +louvores com que d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu +cadaver do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa; +tudo... como lhe fique para consolação da sua queda o encanto ineffavel +de apertar nos braços o seu filho. Se o mundo todo, se o proprio amante, +a desamparasse, tudo tudo esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se +afortunada. De não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a +consciencia de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o +sublime encargo, o natural sacerdocio da maternidade. + +Estas resignadas victimas, immoladas por um amor, por outro amor +ressuscitadas mais interessantes, estas victimas, em quem a virtude, +produzida pelo arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi +em lustre a virgindade, são poucas; são rarissimas; custar-nos-hia a +encontrar uma. Quando porém a desencantasseis, lembrando vos do que +sabeis d'estas nossas grandes terras, fio-vos que bastante commiseração +e respeito vos infundira. + + * * * * * + +Casas de perdição para a mocidade, como nos povoados grandes se alinham +em ruas e ruas, e até já por villas e aldeias vão surdindo, não se +conhecem lá, nem se poderão tão cedo conhecer. + +Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de vergonha, a que +se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em que as +sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso, são victimas +das victimas que ellas sacrificam. + +Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se +transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade dos +casaes. + + +XIV + +Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve +de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento. + + * * * * * + +Os casamentos não são nunca determinados por considerações de haveres ou +de jerarchia. O cálculo rala pouco os pensamentos d'estas gentes, +acostumadas a viver com pouco, e a confiar muito na Providencia. As +palavras _dote_ e _escrituras_ apenas seriam entendidas. + +Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e +economia, a ajuntar para _uma cama de roupa_, uma teia de estôpa, outra +de linho, uma peça de burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma +panella e dois pratos, uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires +de milho, e outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da +fortuna, e trata logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor. + +O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo commum, consta de um +anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro uma camisa para o dia +grande. + +Mal que este desponta, vê já de pé os dois afortunados, garridos e +bizarros com o seu _aceio_ dos domingos: ella, sobretudo, flammante como +uma Imagem, com arrecadas, cordões, e alfinetes sobre lenço de seda, +mantilha lustrosa, ou chapeo de feltro novo com enfeites. + +As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e visinhas, que de +boa-mente lhes acodem, cada uma com o seu _melhorado_, convencidas como +estão (especialmente as solteiras) de que alguma coisa da benção +matrimonial poderá vir apegada aos diches e galas que figuraram no +apertar das mãos. + +Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se preparam de vespera +para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que sendo florído tem +mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do travesseiro +(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem +liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e lan; no que, +vai grande condão de conformidade de animos, perfeição de ajuntamento, e +dura do bem-querer; com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, +não faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio. + +O pretendente, com os seus apaniguados, espera já á porta da noiva a sua +sahida. Esta apparece emfim, como uma aurora da serra, incendida de +pejo, e orvalhada com as lagrimas da mãe; e segue com o rancho, a pé, +caminho da egreja, levando ás costas as bençãos do pae, em que ainda por +lá se crê, a turbação no seio, e nos ouvidos os votos e resas de bom +agoiro, recitadas com fé por alguma velha mais sabida. + +...................................................................... + +A egreja está já á sua espera aberta, juncada de espadana, com o altar +enflorado de fresco, e a alampada atiçada. + +A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas +cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a +todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do +sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso sobre os +deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo do templo +não é interrompido com pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de +tropa, brados de mendigos, assobios de rapazes, martellar de artifices, +zabumbas de arlequins. + +Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai +profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e +afugentar as evocadas memorias de Lia, de Rachel, e de Rebecca. + +O que unicamente chega lá de fóra, é o chilrar de algum passaro sobre +alguma cerejeira do adro, o amoroso carpir de alguma rôla na matta de S. +Sebastião, ou a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no +trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da +Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da progénie de Adão. + +Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com mais clara e +muito mais formosa benção. + + * * * * * + +É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a Deus não ser +mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de dois nomes um só nome, +como de duas metades distinctas se forma um todo inseparavel. + +É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra, solemnissimo, e que, por +isso mesmo, se deveria por todos os modos pintar com indeléveis e suaves +tintas na memoria, para que a sua imagem no meio das tentações podesse +acudir como Santelmo resplandecente no meio das tempestades. + +Quem se recordar de que proferiu o seu voto, e escutou com jubilo outro +egual, onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de +obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde com o sol +entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e fragrancias +naturaes com as virações, quem, repito, de tudo isto se recordar, +ha-de-lhe parecer que Deus percebeu melhor as suas palavras; ha-de +alguma vez devanear em si (mas que o não diga) que bem poderia ser que +alguns Anjos estivessem ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a +prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a mulher... + + * * * * * + +Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos alvoroçados, +e por entre os parabens e vivas dos assistentes, encontram, começando +logo no adro, de praso a praso, por toda a extensão do caminho até á +casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro, ramos de pinheiro, oliveira, +roble, canas verdes, e quantas hervas e plantas bravas menos espinhosas +ou mais floridas brota o monte. + +Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua toalha, e +ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa, estão, postos +de antemão pelos muchachinhos que formam a primeira frente do préstito +triumphal, um prato de bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os +quizer tomar; outro vazio, para a gratificação voluntaria, que ninguem +deixa de lhe lançar. + +Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa, e industria mais esmerada; +foram esses prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de +seus afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes +naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos +padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem +concertadas que podem, um á moça, outro ao mancebo; os quaes, logo a +diante, de ordinario entre si os trocam; e junto á salva dos ramalhetes +se vê um abundante refresco de bebida e comida para todo o +acompanhamento, sendo o acepipe obrigado ás filhós de mel. + +Em cada uma d'estas _estações_ chove de todas as partes a saraivada dos +confeitos; bebe-se á saúde dos «bem empregados» e «de quem d'ahi a nove +mezes ha-de vir.» + + * * * * * + +O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos convivas quantos +admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as boas vontades +prestes para quem se quizer apresentar. + +Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e +o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse «o +desposado» (contra a regra do nosso falar galanteador), porque o logar +da direita se lhe dá a elle. A dignidade varonil em nenhum lance esquece +entre aquellas gentes primitivas. + +N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e +com um só talher, e bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer +durar a refeição dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu +bonissimo sentido, que não podia ser outro senão representar a +communidade e harmonia intima, em que esperavam e professavam de viver. + + * * * * * + +Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas, rabecas, e ferrinhos, +dando se a rôdo comer e beber aos tangedores. + +Em quanto dançam, algumas moças donzellas se furtam subtilmente á +companhia, para irem enfeitar de flores o leito nupcial, desfolhar entre +os lençoes rosas de cheiro (se a estação as dá), e guarnecer a roca e +fuzo symbolicos de amores perfeitos. + +Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita +da quinta que é meia-noite, ha já muito que os obsequiadores bondosos +teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas de calmaria de certo +suavissimas, apóz um dia todo por fora e por dentro tão festejado e tão +revôlto..... + + +XV + +O nascer de cada filho é uma festa. + +Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e mostra a experiencia que +se não enganam), crêem e repetem, que filhos ainda em casa pobre são +riqueza; que por taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a +lhes acudir com mais larga mão; e que a meza, por ter mais Anjinhos ao +pé de si, se não ha-de fazer mais escaça, se não medrar á proporção de +tão bons hóspedes. + +E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes um onus, um +sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se ouvem mães e paes +deploral-a como castigo e praga; lá na serra, onde ha trabalho +proporcionado a cada edade, lá na serra, onde, como em enxame bem +regido, todos os consumidores são productores; lá, onde só são +necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes são os mestres, o +exemplo lição, a laboriosidade e sobriedade herança; ninguem se +atormenta sorteando na phantasia empregos ou futuros novos para a sua +progénie. Lá os filhos são rebentões, que alegram, remoçam, e espécarão +a seu tempo a velhice decadente de quem lhes deu o ser, seiba, e sombra. + + * * * * * + +Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres experimentadas em taes +lances, que supprem a falta de parteiras e doutores, tem-se já prompta a +canastra que lhe ha-de servir de berço. + +Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é +escrupulosamente velada, para que não venham bruxas malfazejas a +chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol candeia bem experta; e +ao clarão d'ella, com os olhos fitos no innocente, e quasi sempre em pé +para que as não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as +amigas da casa. + +Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão entoando com +a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do pé embalam brandamente +o bercinho. Algumas folhas de oliveira ou palma, que figuraram no altar +em Domingo de Ramos, queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam +muito bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e +janellas. + + * * * * * + +Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de romanas crenças a +graça, a fragrancia poetica, o saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu +sinto. + +¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e tão +christan como ella é, praticam o mesmo que os legionários romanos +provavelmente ensinaram a nossas avós ha mil annos, e mais, pelo terem +visto fazer nas aldeias da sua terra a suas mães e mulheres! ¡Cuidar que +estamos vendo, com pequena degeneração, o que o mais rico poeta da +Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente! E se não, +oiçâmol-o, e julgareis: + + + Negreja ao réz do Tibre annoso Helerno, +santo bosque, onde levam sacrificios +inda agora os Pontífices romanos. + + Ali nasceu outr'ora, ali vivia +a que nossos avós chamavam Grane, +casta Nympha, de excelsos pretensores +pedida vezes mil e em vão pedida. +Era seu exercicio errar nos campos, +as feras perseguir com dardo agudo, +e as redes emboscar nos fundos valles. +Inda que aljava ao lado não trouxesse, +criam-n-a irman de Phebo; o parentesco +não poderia, ó Phebo, envergonhar-te. + + Quando algum namorado a requestava, +tinha prompta a resposta.--«Aqui,--dizia-- +ha nímia luz, e a luz dobra a vergonha... +Se preferes entrar n'aquella gruta, +sigo-te.»--Á gruta o crédulo voava; +ella torcia o passo, ia á carreira +das moitas na espessura homisiar-se; +d'ali desencantal-a era impossivel. + + Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido; +combateu lhe o rigor com brandos rogos, +e a sólita resposta obteve em prémio: +que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe; +segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge. +O que lhe fica apóz vê Jano. Ó louca, +no usado esconderijo em vão confias; +olha como t'o observa, e t'o devassa. +Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus braços; +eil-o comtigo a sós na cava penha, +onde havias buscado o teu refugio. + + Saciados os sôffregos desejos, +--«Em paga d'este goso--exclama o Nume-- +dos quícios a tutella eu te confio; +pela honra perdida esta conserva.» +Assim falando, candida varinha +lhe entrega, com que os tétricos asares +das protegidas portas afugente. + + Existem de brutal voracidade +umas infames aves; não já essas +que de Phineu a meza espoliavam, +mas da mesma relé: cabeça grande, +fito olhar, bico audaz, grizalhas plumas, +garra adunca; esvoaçam pela noite; +onde encontram creança ao desamparo, +que a ama deixou só, prestes a empólgam, +arrancam-n-a do berço, e a dilaceram. +Diz que as lactentes vísceras co'os róstros +lhes picam, lhes devoram; teem as fauces +sempre repletas de sorvido sangue. +Do _estridor_ com que as trevas alvorótam, +lhes vem o nome: _estriges_ se nomeiam. + + Estas pois, quer de si nascessem aves, +quer em aves, de velhas que antes foram, +fatal conjuro marso as encantasse, +penetraram de Proca no aposento. + + Com cinco soes de edade, o innocentinho +era ao bando ferino egregio pasto. +Já co'as gulosas linguas ferem, sugam +o tenro peito nu; sôam do infante +os consternados trémulos vagidos, +com que, á falta de voz, auxilio pede. + + Corre a ama assustada; acha nas faces +do caro alumno seu lavado em sangue +das brutas garras os crueis vestigios. +¿Que fará? vê-lhe o rosto exangue, murcho, +que na côr arremeda as tardas folhas +já do rígido inverno bafejadas. + + Corre a Grane; o successo lhe relata. +--«Cobra valor--a Nympha lhe responde;-- +viverá teu alumno.» + Entrada ao berço, +acha a mãe, acha o pae, sôltos em pranto. + + --«Eis-me; enxugae as lágrimas--exclama;-- +vou tornar-vol-o são.» Diz, e tres vezes +de medronheiro com frondosa vara +fere da estancia as portas; outras tantas +co'a mesma vara o limiar sinála; +rega o ádito; as aguas com que o rega +encerram salutifera mistura. +Entranhas cruas de bimestre porca +toma nas mãos, e diz: + --«Aves da noite, +í-vos, deixae as puerís entranhas. +N'esta pequena victima tenrinha +o tenro pequenino aqui resgato; +é coração por coração; tomae-o; +por visceras são visceras; redima +esta existencia immunda outra mais nobre.» + + Finda a sacra oblação, corta o deventre, +e esmiunçado o vai pôr aos ares livres, +prohibindo do rito ás testemunhas +olhal-a então ninguem; por fim colloca +a vara de oxiacanta, o don de Jano, +na janellinha que dá luz ao quarto. + + Consta que desde então não mais volveram +ao berço aves ruins; saude, cores, +tudo refloresceu no innocentinho.[3] + + + * * * * * + +O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois côvados de +baêta encarnada ou verde, vinho, assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, +conforme o dia em que acerta. A madrinha dá um vestido, duas camisas, e +uma touca. Cada um dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu +brio. + +Este dia é quasi tão festivo como o do casamento, pois n'elle se cumpre +a benção que no primeiro dia se recebêra, e está salvo o interessante +pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que as bruxas +nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo do peccado. + + +XVI + +Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e baptisado, +cada povoação celébra a sua, pública, no dia do Orago da sua capella. +Tem fogo do ar e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns +aos outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o consentem, andam +já desde a vespera á tarde pelo adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o +tambor, e despovôa-se a visinhança com o chamariz do fogo de vistas +nomeado de _armação_, ou _parreira_. + +Por esta occasião, nas casas principaes, isto é, nas menos apertadas, +saltam-se até a meia-noite as danças, pela mór parte cantadas, do bom +Portugal velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle vivente archivo +de antiguidades, nem já, quasi, os nomes se conservam. São o _caracol_, +o _Senhor da serra_, o _lundú_, ou _landum_, o _escalhabardo_, a +_ribaldeira_, o _Francisco bandalho_, etc. + +A excitação do saltar, a virtude inspiradora do vinho verde, e um +poucochinho o natural desejo de brilhar diante das raparigas e dos +rapazes, fazem ás vezes com que ahi appareçam, como nas romarias, como +nos serões dos lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de +gosto, poetas e poetisas que trovam de repente, e á porfia, por espaço +de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola. + + * * * * * + +Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos. + +Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem, estão em pé, +um diante do outro, no meio da roda dos ouvintes. A toada de que se +ambos servem, é sempre das mais populares, e vai toda remançada, para +que as ideias e rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou +desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de declamação +accentuada. + +O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro versos, +correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou consoantes; isto +é: usam das quadras correntes em todo o Reino. + +Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme +lhes convém. + +Principiam (é obrigado) por uma especie de elogio, ou vénia, ao dono da +casa, se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se é em +terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou dos seus proprios +amores; e d'ahi, muitas vezes sem transição, saltam para um genero entre +elles muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico fescenino», se, de +envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como entre os Antigos, os +dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se empulham e desempulham, +como os dois pastores virgilianos, com surriadas de impropérios sempre +ao galarim, sem que o fogo das palavras prenda nunca nos corações. Com a +mesma feição com que dizem, com a mesma ouvem; e tão avindos saem da +contenda, como n'ella entraram. + +Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da +sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por +mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e que tudo +quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo. + + * * * * * + +Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes +porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é: que a primeira metade +de cada quadra tem frequentemente um sentido diverso, e desconnexo do +sentido da segunda metade. + +Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma verdade vulgar, +uma imagem campestre, a exposição succinta de qualquer facto, mas sem +relação alguma com o assumpto que se versa, o qual só nos dois versos +ultimos apparece. + +Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em pratica de amigos com +meus leitores: + + +O loireiro bate bate, +que eu bem o sinto bater. +Para comigo cantares +has-de tornar a nascer. + +Á couve se come a folha; +come-se a raiz ao nabo. +Só te espero ver casado +sendo mulher o diabo. + +Navio d'el-Rei é grande, +é grande e chega ao Brazil. +Se namorares alguma, +não seja á luz do candil. + +Sequidão cria o centeio, +frescura cria os repolhos. +¡Quem me estreára comtigo, +menina, os lençoes de folhos! + + +Já se vê, por estas amostras, que a improvisação não é tão difficil +coisa, nem para tantos encarecimentos, como a teem feito alguns +viajantes, d'estes que só viajam no seu quarto, embarcados na sua +poltrona. + +É por cá o mesmo, que provavelmente será por toda a parte, sem exceptuar +a Italia, com que tanta bulha se nos faz. + + +_Al porto di Livorno +è giunto un bastimento. +Cara, morir mi sento! +mi sento, o Dio, mancar!_ + + + +XVII + +Muito, porém, se enganára, quem inferisse que toda a poesia dos meus +serranos é de egual teor; porque, sobre conservarem muita xácara de bons +tempos, com as suas lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices e +aprasiveis como ellas (o que já não seria pequeno cabedal), cantam, e ás +vezes engenham com singular felicidade, quadras repassadas de amoroso +affecto e graça natural, que um poeta de nome não enjeitaria. + +E ¿que muito? ¿Por que não haviam de nascer estros por ali, onde ha +tanta Natureza, tantos sitios inspirativos, tão bons ocios na solidão, +tantos amores (¡e amores tão bem empregados!), e tão largos horizontes +para a saudade! + +¿Por que não haviam elles de nascer, quando até pelas nossas +encruzilhadas mal cheirosas e escuras, pelos nossos botequins fumosos e +azoinados, pelas casas d'essas ruas feias, onde olhos e ouvidos se +perdem e afogam em prosidade vil, rebentam, viçam, e não raro florejam, +talentos de estimação e de valia? + +Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades, muitas +coisas lhes empecem (não falando no desamor que os esfria, e nas parvoas +invejas que os matam); aos montanhezes, afóra a Natureza, que lhes +abunda, tudo mais lhe mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha poesia, +como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde pastor, appareceram as +Musas, não invocadas, para o bemfadarem. + + * * * * * + +¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não esperdiçam, e, por falta de um prodigio que +os desencante, fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos! + +...................................................................... + +De uma pobre mocinha ovelheira posso eu dizer; que por tardes de verão +muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado nos degraus da +capella de S. Sebastião; ella ali perto, cantando e fiando em pé á +sombra de um sobreiro, no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como +bem se pode crer, ¡enfeitiçados com a placidez de tão livres horas em +logares tão fugidos, tão sobranceiros ao mundo todo! + +De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos +corados, não da memoria se não do espirito; e o espirito d'ella, +estava-se conhecendo que lhe residia no coração, tão bem, tão bem, tanto +a seu grado, como em estufa bem quente uma planta mimosa, que um ameaço +de frio mataria. + +Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca ouvira de obras +de poesia senão as cantigas da sua terra, o murmurinho dos seus rios; de +madrugada a cotovia perdida pelos altos do ceo; ao meio-dia as porfias +das cigarras; ao descahir da tarde o badalar longinquo das Ave-Marias; +ao cerrar da noite o regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus +moradores, os seus rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus +rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a alma; de noite +os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do seu namorado. + +Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha encarecer o que +ella improvisava para as suas ovelhas, que a não entendiam; para mim, +que me occultava com mil cuidados para não afugentar tão melodiosa ave; +e para o ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se +ao-pé da sua. + +Era a inspiração lyrica mais formosa, se não a mais remontada. Eram os +objectos do seu limitado universo a mirarem-se na limpidez dos seus +affectos, virginaes e namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras +destillando-se cada uma da sua ideia com a propria côr, com a propria +fragrancia que lhe competia. Era o metro a correr, sem quebra nem +extravasamento, a flux, sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as +rimas a vir poisar espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da +outra, como em dois arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois +passaros gorgeando. Era tudo, emfim, quanto a Arte requer, e só a +Natureza pode dar aos seus mimosos + +...................................................................... + +¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!... Até já as suas ovelhas se +esqueceriam d'ella. Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais +vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus poemas. +Se ainda canta... já não é a terra quem a ouve. Remontou o vôo muito +mais alto que o da cotovia sua mestra; engolfou-se por entre as +scismadoras estrellas, que tantas coisas em segredo lhe ensinavam; e +virgem entre os Anjos, irman entre seus irmãos, entretece a sua voz +immortal no cantico sem limite + +...................................................................... + + +XVIII + +Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem menção da sua Musica. + +É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos dizer de muita; e +conserva puro e extréme o primitivo sabor. Condiz com a Linguagem, com o +trajar, com os costumes; seria excellente oráculo para consultarem os +modernos compositores de operas nacionaes. Assim se temperariam para os +nossos ouvidos, os quaes, posto que affeitos de annos para cá a +peregrinas melodias de muito mais altos quilates, ainda comtudo se +ageitam e conchegam melhor com as toadas sentidas e singelas da nossa +creação. + +Nas boas horas fique a musica italiana, pois que entrou, e nos cahiu, e +o merece; mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda, não se diga +que aposentámos nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por trazer +vasquinha e falar chão. + +Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o até (se já +não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a granel por essas +comedias e farças, em que fala gente do nosso sangue e dos nossos nomes. +Mas uma vez ou outra (_al de menos por cortezia_, como dizem os meus +serranos), deixem-nos ouvir em boccas patricias coisa que nos alembre +das cantilenas de nossas amas, cantilenas que, ainda depois de apagadas +da memoria, lá se ficam algures no coração, com quanto basta de vida +para ressurgirem ao primeiro aceno. + +Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e +arbustos exóticos da mais admiravel louçania; mostre-nos lá, +emboscadinho na herva, o malmequer da nossa primeira adolescencia, a +papoila retinta, que nos ria d'entre o verde da seára, quando meninos; a +papoila e o malmequer muito mais nos hão-de conversar com o coração um +só minuto, que todas ess'outras flores mais soberbas em toda uma +primavera. + +Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que muita vez +n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com saudades os descantes +da serra. + +Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de difficuldades, a +dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe revolve aos pés, a +sumir os seus píncaros florídos e trémulos pelas nuvens, admiro-a, +applaudo-a, e esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o coração. + +Porém certas cantigas que eu sei... não as applaudi, não as admirei +quando as ouvi, mas senti-as repassar-me até ás fibras intimas; +assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em +substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do +silencio. + +Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares, +da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter +encontrado. + +E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas não são algumas, até para +orelhas forasteiras, quanto mais para as do seu molde! + + * * * * * + +¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de condão! ¡Se, em vez de vos falar do que +por vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos lá de subito, a +beberdes com aquelles ares bonissimos aquellas cantorias agrestes, sem +cultura, sem enxerto, luxuriantes de natureza, macias, avelludadas, +rescendendo a amor e contentamento! + +Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas por mãos +perítas, nos podiam abastar de muito oiro, que a Arte, batendo-o e +cunhando-o a seu modo, poria em facil giro com geral proveito. + +O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas solidões, +edificaria como Amphião novas Thebas, attrahindo e congregando com a sua +lyra penedias e florestas. + +¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final. Mas por ora, o +thermómetro do patriotismo assignala graus para baixo de zero. + +Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se teem voltado; +e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo, querendo Deus; ¿mas +quando? sabe-o Elle. + +Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer levantar-se. +Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que se admiram em +alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem pequeno custo, bem farta +corôa grangeára. + +¿Que digo «custo»? ¿Onde ha ahi delicia como é o viajar caçador de +Artes, por toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com +agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto +dos thesoiros que se tomam? + + * * * * * + +Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus +espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular feição de melancolia mui +suave, era a extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes +a perder de fôlego. É donosa coisa; mórmente pela noite, e ao longe... + +A explicação d'esta singular maneira deve ser, segundo me parece, o +costume de cantarem muitas vezes a sós por lombas descampadas e cumes de +oiteiros, d'onde a voz tem de correr, e correr, primeiro que tope com +ouvido em que se hospéde. Outras vezes é ao-pé de estrépito de aguas, +que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em paragens de eccos, +nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si mesma namorando. + + * * * * * + +De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro por estirado valle, +ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras conversando por cantoria; e, +graças a este methodo de irem fiando cada syllaba... comprida... +comprida... entendiam-se (podendo apenas enxergar-se), como se estiveram +assentadas mão por mão, e muito manas, á soalheira no seu aido. + +Sustentam-se estas entoadas conversações, em prosa inteiramente desatada +de rithmo, e não obstante rimada, rimada por um modo tão insólito como +facil. + +Exemplo: + +¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha: + + +--Ó ia, eu te digo ó Maria, +Ó iga, que se tu és minha amiga, +Ó á, botes as cabras para cá, +Ó enda para me ajudares a comer a merenda, +Ó eijo, que tenho aqui brôa e queijo, +Ó ôas, e umas maçans muito bôas. + + +E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a outra +interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão no colloquio por +ter chegado a sua vez. + + +XIX + +Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica. +Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas. + + * * * * * + +As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos as de cada familia e as +de cada aldeia) são: o Anno-bom, o Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e +o Natal. + + * * * * * + +O Anno-bom não é ao presente senão um rebate para comesaina rasgada, e +se deitar uma can fora. + +As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado, já lá +vão. + +Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras ao cabo se +desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao romper do primeiro sol do +anno os cachopinhos de cada povoação, todos em bando, o mais bem +arreados que podiam, com suas sacólas, ou alcôfas, ás costas, a cantarem +de porta em porta, e, percorrido o logar, de aldeia em aldeia, até se +lhes acabar o dia, umas trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de +campanudos louvores á bizarria do pae ou mãe de familias, e desfechando +sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou pão branco, para a +ajuda do _refestêllo_; contribuição com força de Lei, mas de que todos +se desempenhavam á boa-mente. + + * * * * * + +O Carnaval, é como ainda nós por aqui o conhecemos nos seus dias aureos, +tríduo de folia desatada, guerra porfiada e bem rida de todos contra +cada um, e de cada um contra todos. + +São as pulhas, as peças, os esguichos, os pós, a laranja + + + .....que derruba o chapeo, + + +de que o bom Filinto com tanta saudade se lembrava lá em París, o +rabo-leva de tripas entufadas, a mão de ferrugem da chaminé com azeite +pelos fucinhos, as estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho com +sal, as filhós com trapos, e todos os mais adminiculos, que no ritual +classico se conteem. + +Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se não veja povoa nem +viva alma, duas coisas se hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e +apupar; toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra são +descargas de espingardaria. Ninguem tem caçadeira velha em termos de dar +fogo, que não saia com ella a salvar. + +N'esta occasião (não sei por quê) o rio de S. Mamede parece marcar +fronteira entre duas nações inimigas; a metade cíterior, e a metade +ulterior da freguesia, formam dois exercitos, que, disposto cada um na +sua banda pelos altos mais patentes e convisinhos aos seus adversarios, +para lá lhe atira por cima da torrente, sem folga nem misericordia, +turbilhões de chascos, de apupos, de rugidos de buzinas, de buxas +accezas, e fumarada. Estremece a terra sob os pés; retumbam pelo ouco +dos valles, pelas refolhadas e sinuosas lapas das ribanceiras, os +rolantes trovões centuplicados... + +O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado asninho, +visitando as povoações, com barbas brancas em faces avinhadas, e canna +em punho para se abordoar, facil, prasenteiro, com séquito de rapazía a +abuzinar, e de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem poderá +ser o próprio Sileno das bacchanaes, metamorphoseado pelo tempo, +constante parodiador das suas mesmas obras, pois não é necessaria grande +perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se conciliaram +diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as saturnaes; por +embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e quejandas (o numero era +folgado). + +As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos redís e +apriscos, para se estarem regalando ao banquete da familia, teem um +Carnaval particular, um Carnaval nómada e silvestre, cosinhado e comido +ao ar livre, e a que ellas chamam «o seu gôrdo». + +O _gôrdo_, para o qual de tempos se andam aparelhando, é feito por +varias d'ellas em commum, convidadas e admittidas outras amigas, e +algumas vezes tambem alguns moços seus parentes. + +Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um gôrdo; e ainda +agora me está sabendo. + +Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso +de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um vestíbulo de +areia parda e fina, á borda da agua. + + + Nympharum domus..... + + +não lhes faltando os competentes + + + .....vivo sedilia saxo. + + +O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os +comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria +folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de leite +recem-mugido. + +Terminaram com uma dança no areal, por não haver melhor, e debandaram, +cada uma atraz do seu gado, quando já lá por cima branquejavam +estrellas. A fogueira serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na +corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as +levaria. + +Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos, parecidas com +o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas, travada com ellas, +uma usança ha ali, que só ali ha, e que eu aponto, não só porque me +ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não porque dará luz para se +entender o poema que a diante vai, com o titulo de _Domingo gordo dos +montanhezes_. + +N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S. Sebastião, que já +sabeis orla o passal pela banda do poente, todos os moços solteiros da +freguesia, a plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o +quê, e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para isso a +Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para suas +terras a folgar. + +Nem o introductor, nem o tempo da introducção d'esta pratica, são já +hoje conhecidos. É uma tradição piedosa, uma lei moral, sem nenhum +genero de comminação, mas tão á risca obedecida, como se as tivera. + +É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um bello exemplo +de desinteresse; pois na plantação quem só ganha é a selva, que se +dilata, e o Santo, a quem se engrossam os rendimentos. + +Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a capellinha, ou de algum outro +Bemaventurado, com fama de boa-mão para casamentos, ainda se aventaria +um motivo pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que só da peste é +advogado!... + +Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra, ¡e oxalá dure sempre! ¡e +oxalá por muitas partes o imitassem! + + * * * * * + +Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de nós +outros, bastam duas considerações: a d'elles é festa do espirito, e mais +do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem do espirito. + +Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva lhes faz estar vendo +ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie humana; e do corpo +tambem, porque o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas +succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e bem jejuada quarentena. + +Move suavemente os corações acompanhar a procissão, que da egreja sai +depois da Missa cantada, com os seus cirios accezos, cantando as +aleluias, atravessa o amplo adro alcatifado de bordada relva, sombreado +das suas cerejeiras já revestidas, atravessa o passal por entre as alas +das pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se espairece +ao longe, como uma piedosa exultação, por entre os mattos +rejuvenescentes. + +O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As +arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado +de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora todas suas +galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a Natureza parece +ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe entôam canticos, como +os homens, as mulheres, e as creanças. A aleluia ressôa em toda a parte; +lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os corações +ferve o amor de Deus, o amor da Natureza, e o amor mutuo. + +¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os arroubados requebros do +Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh! ¡que permutar de boas-festas! Mal +o presumem, os que todas as cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um +cartão alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada. + +Recolhida a procissão, tornam-se todos correndo a suas casas, a acabar +de as pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se de +ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores baixellas; +crepíta o lume na cosinha revôlta; idéia-se um simulacro de altar, ou se +enroupa uma cama de lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o +senhor Prior, com a sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar +(quando mais não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da +familia falta á porta para receber a aspersão de agua benta, que elle ao +entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras rituaes da benção: «Paz +a esta casa, e a todos que n'ella moram.» + +Tal visitação, que (já se vê) se não conclue no primeiro, nem muitas +vezes, no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda de +prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada fogo; não pelos +saccos de folares que se ajuntam; mas pelo muito que assim de novo se +apertam os vinculos mutuos do Pastor e do rebanho. + + * * * * * + +No 1.^o de Maio põem, á entrada das habitações, _maias_, que são ramos +de sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com seus fuzos, +carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo se fadam a +terra e a casa: a terra, para que dê linho comprido e sedoso; a casa, +para que se guarde e mantenha próspera. + +¿Quem não vê n'estas maias outra degenerada herança dos nossos antigos +senhoreadores? No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo +domestico dos seus _Lares_, deuses protectores da poisada, e cujos +idolos se tinham junto ao fogo da cosinha, ou em nichos por de traz da +porta principal. Revestiam-n-os de pelle canina; e em monumentos antigos +se vê ao pé d'estes deuses representado o animal symbolo da fidelidade, +e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio nos seus +_Fastos_ nol-o descreve. Brindavam-n-os com libações de bom comer e +beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de flores, e já de lan. + +Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois acreditavam +que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se compraziam de +habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde vivia gente do +seu sangue. + +Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do +mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas. +Vieram Lares _viaes_ (dos caminhos), _compitaes_ (das encruzilhadas), +_urbanos_ (os padroeiros de cada cidade), _publicos_ (os mantenedores +dos publicos edificios), _rusticos_ (os custodios do campo), _hostis_ +(os amparadores contra inimigos), _marinhos_ (os guardiães dos navios). + +É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem Romanos, se +haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de suas religiosas +praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre estrangeiros; e bem +boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle cahos de poeticissimos +desatinos e devassidões. Fazia venerar e amar a casa; com a casa, a +familia; com a familia, os sãos costumes da creação. Ainda por cima, +fazia resplandecer luzeiros de esperança na cerração das adversidades; o +que dá coração e brios para as resistir. + +Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana provincia +Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que, aliás, podem ser +documentos, além de outros, o nome de _lareira_, geralmente conservado +ao lastro da chaminé, e o proprio de _lar_, com que em Traz-os-Montes se +chama a corrente de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a +fogueira. + +Já cada um inferirá que as _maias_ dos meus serranos, festejo que só á +casa se refere, coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como +quer que seja, o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de +ter, aquella origem. + +Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito +christão, ainda mais poetico, chamado das Rogações ou Ladainhas de Maio. + +Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e acompanhando em +chusma as entoadas preces da Egreja, a procissão, que lá se vai, +humilde, atravez dos campos desatados em flor. Imploram as bençãos do +Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos não devorem +a vinha ou seára; que intempéries do ar e trovejados granizos não +derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares. + + * * * * * + +O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado de dia pelos +oiteiros, de noite pelos serões. + +Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que +se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora, não sem graça), +que por ali em louvor do Baptista se exhalaram outr'ora do seio de +poetas desconhecidos. + +A medo me rendo á tentação urgente de as mostrar; que, despojadas da sua +melodia, desquitadas das vozes tão frescas e juvenís das suas cantoras, +e nuas dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e +sombras em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão parecer-se +comsigo mesmas. + +Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja differença na +substancia, vai tanto, como de uma formosa donzella podéra differir o +seu cadaver. + +Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que no fundo da alma se me +estão ainda cantando, por entre simulacros de figueiras, que entretecem +sobreceo verde á fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, +não as contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil +maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com que umas rusticasinhas +de roca á cinta tratam o Santo Precursor. São amores velhos; não ha que +lhes dizer. + + +--¿San-João das barbas doiradas, +onde foste ter as orvalhadas? +--Fui as ter áquellas hortas, +recordar aquellas cachopas. + +Recordae, recordae, perguiçosas, +que da fonte já veem as formosas, +com as talhas cheias de cravos, +que lh'os deram os seus namorados, +com as talhas cheias de flores, +que lh'as deram os seus amores. + +San-João, rico cavalleiro, +companheiro de Nosso Senhor, +acompanhae a minha alma +quando d'este mundo fôr. + +--¿Por que tendes, San-João, +esses sapatinhos brancos? +--Para passear ás moças +domingos e dias santos. + +--¿D'onde vindes, San-João, +que assim cheirais á macella? +--Venho da serra da Estrella, +de fazer uma capella. + +--¿D'onde vindes, San-João, +pela calma sem chapeo? +--Venho beber agua fresca, +que faz calor lá no ceo. +................................... + + +Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os aferidores e malsins da +Literatura, que, se me tomam, com isto nas mãos, dão comigo do avêsso. + +Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes. Á +noite accendem fogueiras, dançam, cantam, namoram, e galhofeiam em de +redor d'ellas. + +Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao sereno, que lhes ha-de +n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu futuro, e chamuscam as +hervas e flores, que sabem de constancias e inconstancias. + +Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes virtudes e +preservativos; mas especialmente o de S. João do Monte, á conta do seu +nome bento. + +Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta colhem ramos +orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram de raio; +trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os partos, +apertando-se nas mãos. + +A agua da fonte da manhan de S. João é como a primeira que chove em +Maio: torna o carão formoso. + + * * * * * + +Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo +descoberto, não correndo o tempo de invernia. São rebordans a granel, +entre grande larada de brazido, a estoirarem e a acerejar-se, em quanto +um farto lombo de cevado rechína e fumega em vergante espeto de pau, a +pingar n'uma telha ou frigideira. + +É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos rapazitos, e pelos +visinhos menos folgados, que todos então se convidam. + +Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já então arripiada. Mas... +quanto mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e +para a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os animos dos +convivas. + +Á fé que lhes não falta por quê. O dia que apóz vem, é o dos finados; +dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos, para todos +quantos, com Fé ou sem ella, possuem um entendimento, e meditam. + +¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem mais devaneador e +recolhido, que homens acostumados a solidão, curtidos nas duras +realidades da vida, remotos do cortesão bulicio, embotador pessimo de +toda a sensibilidade! + + * * * * * + +Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a noite não +quieta. + +Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe, até se esvaecerem, +os tons afflictos, que a nenhuma de tantas poisadas deixam de dizer +algum segredo de dor, e de encommendar algum suffragio. ¡Oh! ¡se não se +elevarão elles, e bem ferventes, exhalados pela voz do sangue, pelo +amor, pela amisade, pela caridade! + +Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz +bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura se +descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis côro de +Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta, pelo meio da +povoação, a supplicar em nome dos penados de alem mundo, que para si não +podem requerer, esmola de orações, refrigerio para os ardores que lá +padecem. + +Não ha seio tão escudado, que um santo horror o não estremeça; egoismo +tão empedrenido, que sustenha as lagrimas. + +...Até que o solemne pregão transpõe e se esvai; e na calada se torna a +perceber o dobre longinquo da egreja. + +Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o +interior. + +Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que vão de aldeia em aldeia +_amentando_ as almas, arrastavam d'antes grilhões aos pés, o que ainda +augmentava o pavor do seu pregão. + +Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes quem entre nós os +soffreria? Por lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, +como exactores que são de um tributo da outra vida. + +Desde o romper d'alva não descança a egreja de absorver povo. Todos os +caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques, todas as ladeiras, todos +os valles, todos os oiteiros, o brotam e expedem á porfia. + +Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o moço em flor de annos; a +donzella; os irmãos, pequeninos e já orphãos, pela mão de sua mãe; todos +graves, cuidosos, taciturnos; todos lá por dentro orando; todos +anhelando irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali +assistirem ao incruento Sacrificio. + +Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o semi-festim da +vespera é quasi geralmente descontado pelo jejum mais rigoroso. + + * * * * * + +Emfim vem o Natal. + +Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas +christianissima (quizera eu dizer) do Christianismo, nenhures cabe tão +em cheio, nem tanto com os animos e corações se coaduna, de veras crida +e com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres. + +Víreis o Presépio de Belem, não já por caprichosas artes remedado, mas +em tão cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a +adoral o. + +Disséreis que ao soar da ave da meia-noite, desferiu vôo d'entre as +estrellas, de que se corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos +pegureiros com o pregão de «Gloria e Paz», com a nova de ser nascido o +Desejado das gentes. + +¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de toda a parte confluem +pelo escuro em demanda do Menino! + +Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso dentro +n'alma. + +O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par aberto, +é a santa Gruta. + +Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o Divino Infante. + +O adro vê dançar as rondas de camponezes á roda de um monte de arvores +accezas, ao som da gaita e do tamboril. + +Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada. + +Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as cantigas da +benta noite. Cada um d'estes córos é exclusivamente composto das +moradoras de cada margem do rio que biparte a freguesia. Vai entre ellas +a mesma rivalidade, que já descobrimos entre os homens, quando no +Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um estrepitoso +arremêdo de combate. + +É a qual dos bandos trará mais formosas quadras para entretecer com as +antigas, mais argentinas falas e melhores requebros para as gargantear. +Cuida-se ouvir musica de Seraphins; exulta o coração; e, sem vergonha, +se estão sentindo as faces humedecer-se. + +Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que se estão +vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em braços do Parocho o Menino, +a fazer colheita de beijos e louvores, de supplicas e offertas. Então é +que surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e á +porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de ordinario, a todos, +os mui primorosos artefactos de pinhões e frutos sêccos. + +¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que ali pendem ao collo de suas +mães! vão-se-lhes os olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz lindezas +tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se destinam, com os seus +olhos tão azues, a bocca tão amorosa, as faces tão coradas como as +maçans que se lhe offerecem, é já a Elle que só cubiçam; e só choram, +porque o não deixam acompanhal-o. + + * * * * * + +Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente. + +¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem a +destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé? + +É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na resposta. + + * * * * * + +Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza, nobres de +humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores de S. Mamede da +Castanheira do Vouga. + + +XX + +Que eu por lá versejasse, já a ninguem ficará sendo maravilha; antes, +sim, a podéra ser, que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas +as rasões d'isso de si mesmas se confessam. + +Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me foram totalmente +desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri possivel, que houvessemos +jámais, eu nem coisa minha, de reparecer no mundo. + +Assim, só por desabhorrimento é que poetava de longe em longe; isto é: +poetava por fóra, e no papel, que no coração e no animo estava eu comigo +a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de leve me acreditarão os +que d'isto sabem) não foi a que se escreveu, se não a que deslizou +suave, entre sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, +suspira e medita. + +Escrever só para si, não sei que ninguem escreva; é trabalho supérfluo, +e que, se dá fruto, o dá ruim, que de pêco e descorado nos desconsola. + +¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou affecto, que no trabalho +de se corporificar para sahir a lume e correr por mãos e olhos, não +perde muito do seu primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou +do seu calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja +que era seu, e que era elle mesmo em grande parte? + +Isto dos livros não são senão uns retratos mortos, umas toadas, +reflexos, e sombras, de festas que se fazem n'um interior, e de que os +passageiros, por mais que se lhes abram as janellas, e que elles +appliquem os olhos e ouvidos, só podem perceber a totalidade, e +conjecturar as circumstancias. + +O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros +de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda +para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder, +ás concepções e aos affectos. + + * * * * * + +Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que peor é) do livrinho, +está em que a maior e melhor parte dos condões e feitiços da montanha, +que ora cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis, então que eu os +tratava e d'elles vivia colmado, me não faziam os effeitos, que atravéz +dos vidros da saudade me produzem. + +Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o perdido; que já +por isso dizia Rousseau, que nunca tão bem falaria da liberdade, como +entre ferros da Bastilha. + +¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a abrolhar? é no meio do outono +a desvestir-se. ¿A do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que +tirita e se encanece de geada. + +¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros, não é paraiso, para +onde todos, todos, nos quizéramos tornar? + +¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo extremo os +camponezes, se acabassem de entender os bens que logram!» + +Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar, é +este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a instante m'o +explica. + +Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e collo +descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando +importunas obrigações me veem ripar e consumir as semanas a dia e dia, +os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto. + +Pela conversação pacifica das moitas e torrentes me definho, quando, no +mais fortuito, no mais leve, tratar com homens me aguardam sempre +desencantamentos, desconsolos, rasões para os desprezar, ou para +fugil-os. + +Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor. Aqui, pelo +contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste. + +Lá, a benevolencia é semente de benevolencia, para dar cento por um. +Aqui, é grão que sempre degenéra, ou não germina, ou brota villans +ingratidões, que envergonham até a quem as ouve. + +Lá, o folgar é franco, e as festas são festas. Aqui, o folgar é escaço e +fingido; as festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de +gladiadores, que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns +aos outros, e aos ausentes, e aos amigos, e aos finados. + +O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo mais +cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão roda; e em vez de o +esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como o Iscariotes por sua +mão, para escarmento a sevandijas e lição a paes que estão creando feras +bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de applaudil-o por medo, +apertar lhe a mão dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, +com sabel-o expulso de muitas portas. + +Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para o que Deus +os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia, para macío +agazalho nas horas do somno ou da doença, para gala candida dos altares, +e a final para curativo de feridas. + +Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao alvorecer de Maio, a +sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do seu linho, a cabo de +tão bons serviços, poderia vir ainda a converter-se em papel para a +nossa Imprensa, isto é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e +absurdo, a ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de +descredito e odios, em disseminador de todos os principios de +dissolução, já moral, e já politica?! ¡Pôr-lhe ella a sua roca para +benção! ella, a boa filha das serras, fêmea sincera e verdadeira, +coração lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe ella +encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre companheira, a que +tão santas maximas e tão formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar +á sementeira o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que +vale o mesmo. + + +XXI + +¡Que de vantagens para o ermo não são todas estas! + +E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem nascido! + +Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de espaço e tempo, e pela +contraposição, que se conhecem. ¡E eu malbaratei quasi tudo isso!... + + + ........ munera nondum + Intellecta deum!.... + + +Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão quebrantador martyrio +da experiencia, + + + ..... Oh ubi campi! + + +¡Como me não agarrára, com raizes mais fundas e tenazes que o meu cedro, +ao chão da vida facil, innocente, e obscura! ¡Como não borbotára em +hymnos o meu jubilo! ¡Como não saudára com lagrimas de gratidão a +aurora, tornando a encontral-a! ¡Que não palrára com as torrentes! ¡Que +noites desveladas sob o pavilhão estrellado e vastissimo da montanha! + +Em vez de rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar este painel +noticias de logares, e até de usos, tudo eu mesmo visitára com devoção +de peregrino; tudo revolvêra; com tudo me identificára. + +As saudades, que de lá para aqui me estão salteando, d'aqui para lá já +não atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira +sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me perdessem +logo. + + * * * * * + +--O abdicar--dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro e +hortelão de Salona--o abdicar é o começo do viver. + +¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso da fortuna o rir, o +dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na primeira hora que +empunhassem, com animo feito, uma rabiça ou um foicinho! + +¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e até imperios romanos, como +elle, quando renunciar o pouco, o quasi nada, que se tem de cidade.... +só de o cuidar, tanto namora a phantasia! + +¡Se jamais virá tempo de eu poisar em torrão meu, debaixo de sombras +minhas, a cabeça encanecida e regalada! + +Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e limas, como o +presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda, quanto o filhinho mais +pequeno atravessasse correndo de um fôlego. Mas isto em solidão bem +solidão, onde só os astros me enxergassem, só as estações me visitassem, +e da banda do mundo nada me chegasse, senão o vento, já expurgado e +esquecido de humanas vozes. + +Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio e +reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor. + +Ahi me reverdecêram o coração e mais o espirito, que me elles por cá +trazem tão lastimosamente desfloridos e murchos. + +Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol remoçador de quanto +existe. + +A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa eólia entre +jasmineiros, pendente em hombral de gruta ás virações da primavera. + +Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em tarefas ephémeras e +sem gloria, posto que não sem consciencia e diligencia, se me +desbarataram na galé da Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) +nas palhas d'essa doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do +Universo; doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis. + +Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me enguliu, com os annos +que me tomou, outros tantos da minha existencia para diante; pois em +cada tomo de periodico, sincera e honradamente redigido, se podia +escrever este epitaphio: _Aqui jaz um anno de fadiga e dois de vida +de.... Orae por elle_.[4] Vendem-se ainda primogenituras por menos que +prato de lentilhas. + +Vingára-me (¡oh! ¡se me vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda +por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes, +appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os +seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden. + + + Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in Urbem. + + + * * * * * + +--¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus gostos e +desejos?--dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que sabemos, que nunca +faltam, escoimadores _ex-officio_ do alheio. + +--Senhor meu,--lhe respondo eu já:--pois é por isso mesmo, de não +passarem de fabula os meus gostos e desejos, que se me ha-de relevar o +dar-lhes eu largas no papel. + +Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal, coroados +de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar do Empyrio +a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o tempo que n'estas palavras +gasto aproveitara-o melhor, em correr para o meu refugio, beijal-o, +replantal-o, aformosental-o. E em lá vindo o florído Maio, ride-vos de +pagão que brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor. + + * * * * * + +¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem por longe se pareça com +a de um viver remançado, em casa sem numero, nem espias, ao som da +Natureza, á lei da propria inclinação; sem ouvir horas que nos chamem, +sem encontrar com glosadores que nos aboquem no ar acções e palavras, +para nol-as tingirem de branco em preto; nem cahir nas garras de +ociosos, que vos emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma +noite de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que são +a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de abhorrimento; +seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de quem vos não +vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido, refulgente epigramma de +esmalte contra meritos e virtudes; e de noite, interrompido na +meditação, ou cortado no melhor do somno, pelo retroar de carroagens, +que em fluxo e refluxo continuo levam e trazem, sempre a correrem para +nada, pygmeus, histriões, da farça séria d'este mundo? + +Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura, +ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis mais depressa +coisa a ella parecida, do que não por estas almotaçadas metrópoles, onde +se blasona que ella tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre +são festas acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao +mesmo tempo: este, o _Te Deum_; aquelle, o _De profundis_; um, o +_Quomodo cecidit civitas plena populo_; outro, o _Cantemus Domino_; +qual, o _Miseremini mei_; qual, o _Ecce sacerdos magnus_. + +Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade, +derrubaram-n-a do seu pedestal as aguas do diluvio de Noé, quando +arrojavam cada coisa para seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o +pedestal razo, com o formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha +de ser ermo pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. +Aqui, pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo. + + * * * * * + +E quando não, mettei bem por dentro a mão na consciencia; e, deixado o +palavrório que não sôa muito senão por ser vazio (como tambor de +foliões), dizei-me, ou dizei-o a vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem +que desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, +e não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem alvoroto de +praças, e reboliço de vizinhos, pois diante de suas janellas o que só se +meneia e conversa são arvores, e por cima do seu tecto não moram senão +hervas, que mal ciciam, e só recebem de visitas passarinhos ou +borboletas? + +¿Quem mais livre? + +Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu, +sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o +cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos +convites. ¿Quem mais livre? + +Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as +occupações de todo o dia. ¿Quem mais livre? + +Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons somnos, pão, e +para conduto um apetite desenganado, entre o trabalhar, repito, canta, +ou traz o espirito a monte, a sabor de suas chyméras (que tambem as tem +como qualquer outro); e é este o mais invejavel privilegio do trabalho +corporal, sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não captivar +senão os braços; cavando, podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da +obra, estar armando doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir +com os companheiros, ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a +alegria que se esconde. + +Este _deus in nobis_, unica das divindades campestres em que se pode +crer, perguntae se não será para muitas invejas aos taciturnos enxames +que pejam escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi todos os que +remam á consciencia o seu remo na galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais +livre? + +Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o +meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço, para folgar +entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de coser ao lume +que o aquece. Não tem de ir fazer sala a ninguem; respira a peito cheio; +não ha que ciar se de mulher e filhas, que não dá a terra operas nem +bailes; filhas e mulher á roda lhe serôam, tão satisfeitas como elle. +Não se levanta ali jogo, que, por tentação ou falso pondonor, o obrigue +a pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida. Não o compellem a +ajudar com desatinos seus os alvitristas regedores do mundo em sêcco; +nem mesmo a ouvir ler, n'uma coisa mal-cheirosa chamada periodico +(especie de cogumellos da Imprensa, em que entre os não maléficos tantos +ha de sapo), o artigo famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe +levantam falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do +chylo. Quem não tem com que incite invejas, seguro está de vis +praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre? + +Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas +destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não creal-os o sitio, +nada reluz na poisada que os attráia. + +Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os pães para a tulha, o +vinho para a adega, o azeite e os frutos para a dispensa, a hortaliça +para a panellinha de barro, as filhas para o casamento, os rapazes para +lhe pagarem na velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o +Ceo, onde crêem de fé que os estão seus parentes esperando. + +¿Então, será, ou não será, este um viver dez vezes mais livre e +afortunado que o nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o +direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo, que não deixei +na matéria udo nem miudo; ¡como se miudos houvera no que são condições +de boa ventura! + +Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu +proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao coração de +alguns d'estes, que vivem na Côrte por fadario, por vezo, ou por +inercia, sempre mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou +podendo, se uma hora olhassem por si, adquirir, sem nenhuma +difficuldade, o que eu, e outros taes, tão baldadamente supplicamos á +fortuna: uma vivenda campestre, uma existencia natural, serena, commoda, +florescente, risonha para a pessoa, dadivosa e exemplar para os +visinhos, manancial de riqueza privada e publica, abonadora de bons +costumes, e de afortunada descendencia; uma existencia, em summa, que, a +de mais de retemperar corpo, animo, e coração, para se n'ella +saborearem, até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto, +quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles. + + * * * * * + +Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o +medicinalissimo _Livro da Solidão_ do Doutor Zimmermann. Aprenderiam a +perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a embellezarem-se n'ella, a serem e +a fazerem venturosos, quanto é dado havel-os n'este mundo tão instavel, +tão fugidio, tão calabreado de bens e males. + +O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra servindo; +na solidão é um homem. Na sociedade, é uma partícula irresistivelmente +arrebatada n'um redemoinho; na solidão um todo quieto. + +Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde uma vez +passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra d'ella; porque o +homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro das humanas tirannias, se +faz em algum modo semelhante á creança; readquire o que quer que seja da +sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus gostos, dos seus brincos. + +¿Quem se lembraria de pôr um barco de cortiça (ainda que de seu natural +tivesse o ousal-o) n'um tanque do Passeio publico, cercado dos fumantes +do Marrare, e dos collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas +que fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa, até só +para si, faz d'isso; e mais se encanta em o fazer, que um ricaço em +torrear palacios. + +Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no cêvo das armadilhas +que lhes andou dispondo, edifica á borda de um arroio uma azenha de dois +palmos, com seu rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear, +respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para horas. + +Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam com a familia de um +coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva, como Werther e Hugo +se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e reinos de animálculos, em +que só o mancebinho muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam +enlevar. + +¡A solidão! ¡a solidão!... provae-a, sequer, affligidos do mundo, e +pregoareis d'ella o que eu me não affoito a encarecer-vos. + + * * * * * + +Um só achaque hei-de eu impôr á boa da solidão, á gentil namorada de +Rousseau, de Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos; e vem a ser: +que, pois nos descalleja o coração, banhado nas suavidades da mãe +Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos detrai, +assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas, quando não as +podemos extirpar. No ermo ressôam mais alto os gemidos, como na calada +da noite se dão a ouvir mais claras as vozes. + +Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita colheita, +o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos enfermos, +quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo aquillo; e o coração, +que não tem para dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange +todo, e se espedaça. + +¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão pouco! ¡sería tão +festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria! ¡deixaria, por corôa +de beneficios, tão sinceros, tão duradoiros agradecimentos! + + * * * * * + +Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que d'aquellas +alturas se não percebem; mas a que menos de todas se percebêra é o +coração metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, +os seus ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia +terrestre, e ferrolham-n-a a sete chaves. Podiam ser adorados como +deuses propicios, conquistar a unica invejavel gloria, emendando os +erros da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando. + +Então sim, que haveria que se lhes invejar. + +Dôr d'alma é, na verdade, não poder homem na solidão pagar por estes, e +por si mesmo, dividas grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá +estende os braços valedores até onde lhe é dado. Onde não chega a +remediar com obras, ajuda com o bom conselho, com as recommendacões +poderosas, com as esperanças, com a presença, com a uncção da palavra +amigavel, com o deixar correr sobre a ferida o balsamico das lagrimas. +Assim, se terá sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo +trabalhos, e no seio coração. + + +XXII + +Isto presenciei eu: + +O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural +pejo me veda transladar louvores, que por lá se lêem em todos os peitos, +contava entre as primeiras de suas ditas a beneficencia, que não pára +onde se lhe exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo +Bispo Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem +ainda para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo. + +Era para ver (se elle não poséra tanto em recatal-a) a alacridade, a +sôffrega alacridade, com que ia levar aqui um pão, que se devorava como +vida que em realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos, +a reconciliação; ao ocioso, o convite para trabalho; ao orphanado, a +paciencia; ao errado, a luz para atinar com a senda, e o bordão para a +seguir; ao moribundo, o conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, +cunhada de uma banda com a effigie do coração, da outra com a da Cruz +florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se cambía; o affecto +fraternal. + +Ali, sim, que é o ser Parocho. + +¡Oh officio divinamente instituido, como te hão degenerado annos frios +de descrença e desamor! ¡Com que maravilhoso laço não cifravas o que de +mais nobre, o que de mais amavel, se abrange nas ideias da eternidade e +nas do mundo! + +O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso de +eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os mysterios, os preceitos, os +exemplos, as ameaças, os anáthemas, as absolvições, os confortos, e os +jubilos. Todos os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra +d'elle. + +Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de Fé, á nossa espera +diante da fonte da Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos +purificar. + +Arribados á edade da rasão e dos delirios, tornavamol-o a achar na +piscina da penitencia para nos restituir, com eloquencia affectiva de +Apóstolo, a foragida paz do interior. + +No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos entregavam, com +bençãos d'alma e sincera prophecia, a mão tremente da futura mãe de +nossos filhos. + +Nas calamidades publicas, era a sua voz supplice e crente, e afogada em +lagrimas, a que levava, como guia segura, o côro de todas as nossas á +presença do Senhor da Natureza. + +Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da concordancia, que +primeiro apparecia. + +Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos alçava. + +Nas tribulações, elle o nosso mais previsto conselheiro. + +Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado. + +Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e +aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças para o caminho. + +Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros medicos iam +longe, e até nossos paes e nossos filhos nos deixavam sós. Com preces +fervorosas nos acompanhava, até que a terra nos submergisse; e ainda +então nos não largava, senão para ir instaurar novas preces por nós +sobre os altares. + +Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com +quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da sua +pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e pequenos, só temido dos +maus, ainda que tambem d'esses respeitado. + +Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa, elle, que tão amenos +quadros do casamento sabia apresentar aos noivos ao recebel-os, contava +por irmãos e filhos todos os seus parochianos; tinha o seu thálamo de +oiro a aguardal-o no paraizo, região que todos os dias entrevia atravéz +das folhas do seu breviário; e, se ainda no coração lhe podia alguma +ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como esposa; em quem +se revía; que se recreava em ataviar, em enriquecer, em lhe adquirir +galas de roupas, de sedas, de joias, de flores, de perfumes; em cujas +festas se remoçava; em cujos canticos se desvanecia de misturar a sua +voz. + +No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava +tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um representante da +Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse caracter augusto e +sobrehumano. + +A hora em que elle expirava, hora de consternação e alaridos para todo +um povo, era a unica, talvez, em que pelos espiritos fuzilavam alguns +relampagos de duvidas sobre a justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO; +duvidas, que a bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus +olhos fechados, já não podia fulminar, mas que a sua presença, mal +chegavam a beijar-lhe os pés como a bemaventurado, promptamente +desvanecìa. Bem se adivinhava, ao olhal-o, que a sua morte não era mais +que somno; e bem se entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão zeloso +trabalhar, era rasão colher descanço e premio, como só lá em cima os +pode haver. + + * * * * * + +Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e prospérrimas da +Christandade. + +De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas tão raro, +que a dedo se apontam; e ainda se não hão-de crer, se não fôrem vistos +bem por miudo, e contrasteados bem de espaço. + +De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça. + +Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte sempre algum achaque +principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a febre da superstição; +está agora no frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com +elle, até que do alto lhe venha o remedio. + + * * * * * + +Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma +de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca, nem um +phantasma. + +A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra, pegou-se d'ella, +pelo contacto, primeiro á superior, depois á infima. + +Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta entra na conta. + +A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada já +quer ir convalescendo; já convalesce em muitas partes, se em nenhuma se +acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu, por isso mesmo, e por ser a +mais rude e numerosa, labora no auge da enfermidade, e ainda muito longe +(segundo todos os symptômas) de se restaurar. + +Hoje o materialismo é especialmente plebeu. + +Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo a raio e raio, e +descendo manso e manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro +desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam tudo. + +Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda noite, nem se derrama da +Imprensa, de que a mean classe é representante. + +O Poder, fingindo _proteger_, apenas _tolera_ os escassos restos da +crença. Se alguma vez lhes dá consideração, é quando se lhe antólha que +os poderá empregar, por material, para obras politicas a seu modo. + +A Literatura, ou por especulação de popularidade, ou por extravagancia +de muito joven, ou porque o seculo XVIII do «Paiz modelo» só poude +chegar cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem á +unica Religião civilisadora, tão decepada e desgeitosa se avém, que, por +entre as suas expremidas lagrimas de compuncção, se lhe está vendo +voltear por dentro dos labios o seu lembrado sorriso de septicismo. + +A sua religiosidade é um cálculo; ¡grande mal! é um cálculo +transparente; ¡mal ainda muito mais funesto! + +Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida, não é da verdade +real e absoluta que diz, mas da utilidade (ou necessidade) de que seus +ouvintes a acreditem. + +Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e +aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e ás escuras +por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro para a turba. + +Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o _Christo_» (como lhe +ella sempre chama), que a sua cabeça ennastrada de loiros não fique, +mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada de espinhos. + +¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras aleluias da Fé e da Moral, +este vaidoso e vanissimo apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo +do falso nome de Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas, +paginas desconnexas, reformadas, e adulteradas? + +Quanto entre si concordavam as inspirações dos quatro Evangelistas, +tanto discrepam uns dos outros (e não raro de si mesmos) os novos +evangelhos d'estes missionarios sem missão. Á prima-vista se averigua +que lhes fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a unidade. ¿Quem +se irá apóz taes innovadores? Ninguem. + +Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só valeriam para +acabar de destruir, se podesse ser destruida a Religião de Jesu-Christo. + +A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem a força, nem o poder da +terra tem a minima jurisdicção para alterar. + +Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um átomo de menos, sem um +átomo de mais... ou nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a +cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem estupidamente n'uma cruz +desbenzida, revirado com a cabeça para a terra, e os calcanhares contra +o Ceo. Em tal caso o indifferentismo, e até o atheismo, seria menos +descommodo e mais logico dobradamente. + + * * * * * + +Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o poderia +fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo, ¿como é que a +trata a autoridade mundana? + +Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe, protectora +desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a cabeça despojada do +diadema luminoso, diz-lhe que se apegue, para não cahir, ao sceptro que +a diante lhe caminha. ¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco +roborava os thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os seus +inimigos o ludibriem! + +A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da arvore da vida, +d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer derramal-a sobre as +multidões pelo crivo immenso da Imprensa, e ficar impune; ou o seu +castigo, se por erro lhe cahir o da Lei, orçará apenas pelo dos crimes +leves, e indifferentes ao Estado. + + * * * * * + +Não é ainda tudo. + +Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como filhos e +herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra já meio derretido, luz +do mundo já mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e +relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo os +nas temporalidades odiosas. + +Repitâmol o: não é isto culpa de ninguem, sendo de todos desaventura. É +uma calamidade providencial, que lá se encaminha para fins certamente +gloriosos, que não podemos enxergar. + +Em Religião, como em Politica, somos nós, enfatuada geração de hoje, +mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros hão-de ceifar em vindo a +quadra. + +Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em que os direitos e os +deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido nome não seja, como +pomba timida, empolgado por abutres ferozes logo ao abrir o primeiro +vôo; em que todas as causas santas e uteis se conheçam e respeitem; em +que nem a régia tribu de Judá seja, como outr'ora, apesinhada pela de +Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje, mercenária, captiva, e +escrava da de Judá. + +Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e frutear (como a vara do +Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de alimento, de forças, de +esperança, e de felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, +então os pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi +mendigos, e cuja fronte perdeu o sello da eleição, tornarão a assentar +ao-pé da arca santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas +dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas penetrem melhor +até ao velho os gemidos do mais necessitado que elle, e para que os +olhos d'elle entrevejam as estrellas. + +¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias da Egreja acrisolada pelo fogo! +Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os. + + * * * * * + +O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não acredita em +malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de recommendar aqui, uma +verdade, que a sua posição d'elles lhes não deixou talvez ainda +perceber; verdade importante para applicações, verdade a cujo +escurecimento se pode imputar já muito e muito damno: + +O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades, uma +importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e +prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição humana poderia +confrontar a sua. + +Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano é quasi um +pastor sem rebanho; não conhece as ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A +ellas, falta-lhes o tempo e a vontade para o rodearem; a elle, se para o +officio entrou com zelo e propositos magnanimos, tudo se lhe veio a +acabar com a esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez +tambem a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços se haviam sempre +de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua voz, se lograsse +vencer o estrépito circumfuso, só serviria para lhe atrahir escárneos e +motejos, ou de fanatico, ou de tartufo. + +Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e abscônditas +sobre tudo, ainda não é totalmente assim. Á entidade abstracta _Parocho_ +se conserva, no respeito e benevolencia dos subdítos, um resto da sua +antiga majestade, da sua benéfica influencia, das suas altissimas +prerogativas. + +Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas, uma especie +de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos Patriarchas, e +os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um magistrado sem +appellação para as consciencias; um censor, não em nome da Lei (como os +de Roma), porém em nome, e com delegação, e por inspiração, do Espirito +de Verdade, com quem se crê ter commercio no fundo do santuario. +Qualquer que seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como á +principal. + +Tal é, repito, a entidade _Parocho_ em abstracto. + + +XXIII + +Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se não deverão +empregar-se as mais incessantes, as mais efficazes diligencias, para que +o provimento das parochias (das rusticas ao menos) recaia sempre em +homens de cultivado e provado entendimento, de sincera e illustrada Fé, +humanos e caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel +trato. + +Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que, segundo sua qualidade, +teem de dessedentar e fertilisar, ou de esterilisar e consumir, a terra +que os rodeia. + +N'estes agros tempos de contínua revolução e peleja, ou porque tão +momentosa ponderação não occorresse, ou porque a vista, de dentro da +cidade, não traspassa os muros d'ella, ou porque conveniencias pessoaes +e ephémeras, mas urgentes, mas gravissimas, tenham feito postergar +considerações de maior utilidade, mas de effeito mais tardío; as egrejas +ruraes, como as urbanas, jazem, pelo commum, peor que ao desamparo: +entregues, não como egrejas, a homens de oração e de esmola, mas, como +torres e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do +conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando. + +¡Oh! que não sem rasão se collocou a rixosa urna dos suffragios +politicos na extranhada mansão dos serenos suffragios religiosos. A um +clero secularisado, competia um templo secularisado tambem. + + * * * * * + +E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade; é peccado, que todas +ellas peccam; ou, para falar com mais justiça, é açoite que Deus mette +na mão de cada uma, quando lhe chega a sua hora de ephémero triumpho. + +Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até ás mais +illusas, como as devemos suppôr, cordealmente empenhadas na civilisação +e no progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a revêzes +a favor de todas e contra todas, vem a ser, a final, para todas e para +cada uma, como se de feito não existira. + +O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso, nem tudo +permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas suas pelejas, a Politica +reconhecer limites, onde o Ceo e a rasão os teem marcado? + +Combatam se os adversarios; mas não se envenenem as aguas; e se a +desavença é entre consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para +aquecer o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que já +deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que ainda podem liberalisar o +mesmo a nossos netos. + +¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos do Templo? + +Se é chyméra a Religião, se Jesus não é em realidade senão «o Christo», +vão fóra tartufías, que não deshonram menos a uma nação que a um +individuo; acabe-se de uma vez com _superstições_ importunas e +dispendiosas. + +Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o sol; se o sol é ainda +agora a vida do genero humano; se a Cruz é o unico pezo que faz crescer +a quem a soffre; se na terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda +a negação expira nos labios de quem chega a ouvir como se amiudam os +anhélitos do estertor, forcejae, forcejae para restituir, ó vós que +ainda o podeis, ao santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle +conhece, ao Povo os unicos oráculos em que elle pode crer, ás miserias o +seu antigo e tão amado refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já +tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram. + +¿Não é assaz amplo o thesoiro que entre as mãos tendes de destinos +humanos? + +¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas as +magistraturas, todos os magisterios, todas as exacções, todas as +administrações, não vos dão de sobejo com que pagar ou empenhar +amisades, zelos, e serviços, sem ser mistér que o povo de Deus venha, +escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda, carregar a +pedra e a areia para o vosso arco de triumpho? + +Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada porque elles +não existem para ella. Os moradores de Sião não entôam os seus +inspirados canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de +Babylonia. Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os +seus moradores. + +A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha. +A Cidade santa restaurará as suas festas. + +Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e despedindo-os das +vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da vossa parcialidade, +qualquer que ella seja, se torne mais fraco. + +Pelo contrario: então é que a victoria, filha das bençãos da terra e do +Ceo, ha-de poisar para sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso +estandarte, porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os fortes, os que +bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a quem o Senhor +outorgará dominação, porque elles lhe hão restituido os sacrificios.» + + +XXIV + +Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso assumpto. + + * * * * * + +Logo que na legislação entrar mais _bom-senso_ que _politica_, mais +realidade que ficção, mais pensamento de semear que de ceifar, mais amor +do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da milicia sagrada +devolver-se-hão inteiramente, francamente, sem restricções mesquinhas e +nocivas, das mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros +naturaes: os Prelados. + +O Governo se gloriará de haver se desembaraçado de uma tarefa, de pouca +importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia de incerteza, e de +responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha ainda mais, de haver +facultado com a sua restituição o incremento da religiosidade; por ella +o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas; por +tudo, o da prosperidade do Estado. + +Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei, +podér escolher por si mesmo, affeiçoar de espaço, collocar por sua mão, +os vigias de cada um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem duvída de que +então os desacertos nas ponderadas escolhas hão-de ser tão raros, como +os acertos o são no actual systema, em que são as casualidades, quando +não as affeições ou os interesses, que predominam? + + * * * * * + +Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a todos), as +eleições do poder temporal teem merecido a geral approvação; teem +recahido, pelo commum, em varões de mui notoria sciencia e prudencia, +equidistantes dos dois oppostos fanatismos, concertados nos costumes, e +zelosos discretamente. + +Graças, graças ao poder temporal, que já deu o primeiro passo, passo de +gigante, para a suspirada reformação. Agora os restantes hão de +seguir-se, porque são consequencia. + +Logo que soube, e quiz, prepôr ao Episcopado varões taes, logo que +manifestou ao mundo que n'elles a todos os respeitos se fiava, +tacitamente se obrigou a lhes repôr... (estas suas usurpadas regalias, +ia eu dizer, e era um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua +cruz, este accrescimo de trabalhos e mortificações, este para uma +consciencia melindrosa martyrio das horas todas. + +Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os hombros +a tão duro redobramento de carga, se a caridade, obrigada nos do seu +officio, os não forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com exultação, +e seguir via pelas asperezas do Calvario para o Ceo. + + * * * * * + +¿E que são em verdade os Parochos, ou antes: ¿que foram os Parochos +desde os antigos seculos da sua instituição, que foram, se não uns +coadjutores dos Prelados maiores, para fazerem chegar até aos minimos e +mais obscuros recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e +os seus exemplos? + +Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um só, e quasi +sempre velho e cançado, não podiam alcançar tão longe como o seu +espirito; medicos de populosos hospitaes de almas (e de corpos tambem), +não lhes chegando as forças para estarem dia e noite a todas as +cabeceiras, contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, +estudarem todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em +todos e com todos, segundo a maravilhosa expressão do Apóstolo das +gentes; distribuiram em cada enfermaría quem os supprisse, quem os +fizesse sempre estar presentes, quem em seu nome, e segundo a sua +sciencia, receitasse e administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse +de subito acudir. + +¿Como póde portanto, quando militam as mesmas rasões que presidiram á +creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em que tudo vai +falsificado? + +Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens +inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e não ha-de ser sempre; +e cabe nos esperar que nem continuará a ser por muito tempo. + +O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o +indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os +presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres, vão ser como essas +torrinhas, que se branqueiam e se perfumam de incenso para morada de +pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão, até ao possivel auge, +em creanças innocentes e instruidas, em adultos pios e laboriosos, em +mulheres castas e amantes do seu lar e dos seus deveres, em velhos +pacientes, resignados e conselheiros, em sólo bem cultivado e bem +festivo; e o Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que +lhe virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte. + + +XXV + +Não venha agora, no processo d'esta santificação, intrometter se o +_Cardeal-diabo_ do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a +máscara é de vidro, já d'aqui lh'a havemos de quebrar nas mãos, +batendo-lhe em cheio com tres nomes todos presados: França, Italia, +Inglaterra. + + * * * * * + +¿Que nação mais ciosa das suas immunidades, que a franceza? ¿Que nação +menos para consentir á Egreja o que de jus estricto lhe não compita? + +Nenhuma. + +Ora em França, bem sabemos todos que são unicamente os Prelados os que +formam o seu Clero. Educam-n-o longamente. Instruem-n o copiosamente, +por livros não escolhidos (como entre nós) pela Autoridade civil, ainda +que (de si se entende) sujeitos á sua inspecção. Acostumam n-o ás +praticas do seu não facil ministerio. Estudam, provam, e contraprovam, a +aptidão e especial préstimo de cada um. Aproveitam só os que n'esse +crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram; e outra vez os escolhem á +mão, para os irem repartindo pelas Parochias do modo que mais +aproveitem; pois de ver está, que, differindo em indole e circumstancias +as povoações como os individuos, tal individuo, que em tal povoação +quadrará á justa, a afortunará afortunando-se; n'outra, que menos lhe +molde, valerá menos, trabalhando e padecendo mais. + + * * * * * + +O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor; porque, se lá os +Bispos são independentes, como em França, para o provimento de suas +egrejas, não é porque em mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o +Sceptro é Bago juntamente. + + * * * * * + +Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por ultimo a Gran +Bretanha. + +Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida se não +tolerada, não acarinhada se não temida pelo seu progressivo, cada vez +mais rapido, mais assombroso, engrandecimento, gosa se, não obstante, +por longa e pacifica posse, d'este seu não _privilegio_, se não +_direito_ essencial; e os seus Bispos são pelo menos tão independentes +no tocante á cura de almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas +os proprios Bispos protestantes. + + +XXVI + +Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo a +regeneração do Clero pelos seus principes (unicos legitimos em tudo que +ao seu ministerio se refere) cabe esperar que a optima parte das nossas +populações ruraes se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que +a minha gente de S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida até +por cortesãos, quando sahirem a folgar no campo algum estio. + +Para então é que este livrinho, semelhante aos frutos que amadurecem em +casa e ás escuras, ha-de ter para mais alguem o sabor que eu já lhe +tomo. + + * * * * * + +Se elle consegue, para além das raias da minha expectação, fazer com que +um só captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou que um unico +solitário aprenda a conhecer alguma parte da sua encoberta +bemaventurança, já não trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos +maiores triumphos literarios. + + +FIM DO PROLOGO + + + + + +Notas de Castilho a este Preambulo + + +NOTA I + +Fontes de estudo + + +Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela mente que +houvesse algum dia de bosquejar esta humilde Odyssêa dos sitios e gente +d'ella, nada trouxe apontado a tal respeito. Revolvendo as minhas +memorias não escritas, achei n'ellas consideraveis lacunas, mormente no +tocante á topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. +N'esta pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S. +Mamede da Castanheira, o Rev.^{do} Padre Antonio Jozé Rodrigues de +Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos imperfeito o meu +painel, em que faltará tudo, á excepção de verdade nas coisas, e nos +retratos parecença. + + +NOTA II + +Parochos + +Na generalidade que estabeleço, por muito convencido, caberá fazer +algumas gloriosas excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho, n'esta +freguesia de Santa Isabel[5], o Rev.^{do} Padre Jozé Jacintho Tavares, é +varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de sãos costumes, +sobredoirados de indole sociavel e amena, e incançavel na caridade. As +reparações e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que +elle serve, nada são comparados com os soccorros de pão, de letras, e de +instrucção christan e civil, que já começam a disfrutar os indigentes da +sua freguesia. Largos são ainda os seus projectos; ajude-o a +Providencia; deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade +filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá transformado, +pela educação, creancinhas ainda hontem desamparadas, e a pique de +perdimento. Não quiz perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o +clamor da gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto. + + +FIM DO PRIMEIRO VOLUME + + + + +Notas: + +[1] O Doutor de capello José Feliciano de Castilho Barreto falleceu na +Castanheira do Vouga a 6 de Março de 1827, e foi enterrado na capella +mór da egreja parochial. Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os +seus restos mortaes para o jasigo da sua familia no cemiterio dos +Praseres em Lisboa, onde se conservam. + + Os Editores + +[2] Existe ainda este cedro que tem alcançado descommunal corpulencia. +Chamam-lhe por lá _o cedro do poeta_, ou _do Castilho_. + + Os Editores. + +[3] Ovidio--_Os Fastos_--Liv. VI. + +[4] Allusão aos amargores da redacção da _Revista Universal Lisbonense_, +minuciosamente narrados _nas Memorias de Castilho_. + + Os Editores. + +[5] Castilho morava então na rua de S. Marçal. + + Os Editores. + + + + + + + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL + +Sociedade editora + +Livraria Moderna + +95--RUA AUGUSTA--LISBOA + + + + +Obras completas de A. F. de Castilho + +XX + +O Presbyterio da Montanha + +VOLUME II + +[Figura] + + +LISBOA +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL +95, Rua Augusta, 95 +1905 + + +OBRAS COMPLETAS + +DE + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO + +VOLUME 20.^o + + + + +VOLUMES PUBLICADOS: + + +I--Amor e melancolia. +II--A chave do enigma. +III--Cartas de Ecco e Narciso. +IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.) +V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.) +VI--A primavera (1.^o vol.) +VII--A primavera (2.^o vol.) +VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas. +IX--Vivos e mortos (2.^o vol.) +X--Vivos e mortos (3.^o vol.) +XI--Vivos e mortos (4.^o vol.) +XII--Vivos e mortos (5.^o vol.) +XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.) +XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.) +XV--Vivos e mortos (8.^o vol.) +XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.) +XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.) +XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.) +XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.) +XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.) + + +NO PRÉLO: + + +XXI--O Outono. + + + + + +OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos + +XX + +O PRESBYTERIO DA MONTANHA + +VOLUME II + +[Figura] + +LISBOA + +Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_ + + +LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA +Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47 + + +1905 + + + + +I + +A PRIMEIRA NOITE NA SERRA + + + + ... Ibi haec incondita solus montibus et silvis studio jactabat + inani. + + +¿Vélo? ¿Sonho? ¿Deliro?! ¿Em solitario monte, +que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte +nada avistou jamais, no amplissimo horizonte, +de mundo a tumultuar, de cidades a rir... + n'este ermo ignaro, frio, mudo... +aqui... (¿deliro? ¿ou sonho?) aqui meu lar, meu tudo! + ¡o meu presente e o meu porvir! + + Genio invisivel da montanha, + de astros, de sol, o ceo te banha; + o mar de longe te acompanha + no livre cantico sem fim. +Escada de Jacob da terra ao firmamento, + a mansão tua é monumento +da potencia, do amor, das glorias d'Eloïm. + +Emquanto, em derredor do solio teu sublime, +a baixa terra vil que a instavel sorte opprime, +se volve, se transforma, e sua angustia exprime +n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor, + a variedades sobranceiro +mantens-te qual surgiste, e do cahos primeiro, + e do diluvio assolador. + + Silencio e paz comtigo habita; + o ermo é como o eremita; + loucas vaidades não cogita; + ama o seu rustico trajar; +em apparente inercia ama que ferva occulto + de seus affectos o tumulto, +seus extasis, seus ais, seus gostos, seu orar. + +Sim, Genio da montanha, Archanjo de poesia: +eu creio em ti; eu creio em que alma ingenua, pia, +póde ouvir de tua harpa a casta melodia, +e abrazar-se de amor e endoidecer por ti; + sim; mas eu, frivolo, profano, +á solidão extranho, affeito ao mundo insano, + ¿que hei-de esperar? ¿que tenho aqui? + + Toda a minh'alma se entristece, + e se confrange, e se ennoitece, + ao ver que a sorte lhe destece + de um sopro os aureos sonhos seus. +Sonhava applausos, gloria... ¡em desterro desperto! + sonhava mundo... ¡acho um deserto! +sonhava inda illusões... ¡e escuto-lhes o adeus! + +Náufrago, perco a lyra em meio da viagem. +¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal paragem, +quem me resurgirá? Dos montes a linguagem... +oiço... escuto... medito... e em vão quero entender + é como uns sons de ignota fala; +qual ás penhas o mar, me inunda e me resvala, + sem me abalar, nem me embeber. + + ¡Oh! ¿á minh'alma taciturna + que importa, ó montanha soturna, + que de perfumes sejas urna + da terra erguida sobre o altar? +¿que o ceo te ria azul, mais amplo e mais de perto, + que o sol doirado, ao teu deserto +mais cedo suba, e á tarde o desça com pesar? + +Vir mais tardia a noite, a aurora vir mais cedo, +¿que me aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo, +só ouvindo os tufões e os corvos no arvoredo, +bramirei:--«¡Cresce o tempo! ¡oh! ¡supplicio cruel! + ¡são mais pesares, mais saudades, +mais estro a arder em vão, mais visões de cidades, + mais tentações a dar-me fel!...» + + ¡Ai! ¡mundo! ¡ai! ¡eccos seductores! + ¡Tanto vate a ceifar louvores!... + ¡Tanto moço a colher amores!... + ¡Tantos loireiros e rosaes!... +E eu n'esta solidão a torcer-me arraigado, + qual roble que geme indignado, +vendo ao longe no Oceano os lenhos triumphaes! + +Assim ruge, baldão de vingativo nume, +esse que a argilla outr'ora encheu de ethereo lume; +assim, nos gelos sua, agrilhoado ao cume +do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz. + Só o abutre de eterna fome, +que o grande coração algoz sem fim lhe come, + responde em ais á sua voz. + + Fenece o dia. ¡Hora jocunda, + que eu tanto amava! ¡hora fecunda + dos cantos meus! ¿por que me inunda + nova amargura o coração? +¿Sino crepuscular, tôas funéreo dobre? + a serra em luto se me encobre; +a nocturna mudez duplica a solidão. + +Nenhuma luz scintilla; humana voz não sôa. +De estrellas a accender-se o Empyrio se povôa; +tal a fada Coimbra, a senhoril Lisboa, +nest'hora a quem as olha, entram no escuro a abrir + de luzeiros um labyrinto. +¡Ceos! ¡Não oiço eu troar... seus coches!... O que sinto + é vento em selvas a rugir. + + Calae, fugi, ventos agrestes; + sumi-vos, lampadas celestes; + n'um seio a delirios já prestes + não susciteis mais tentações. +Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; ou antes... + vós, astros, cifras de diamantes, +o arcano me aclarae lá d'essas regiões. + +¡Oh! ¡se á minha razão, contradictoria, altiva, +que ás trevas sente horror, e á clara Fé se esquiva, +de vós, faroes do Ceo, baixasse a crença viva, +que aos moradores do ermo inspira a vossa luz!... + ¡se me volvesseis as ditosas +esp'ranças que hei perdido, alvas, ethereas rosas, + com que se enfeita e esconde a Cruz!... + + Tornar-se-me-hiam de improviso + a solidão, em paraizo; + a magua, em perenne sorriso; + em alto cantico, a mudez; +a mallograda lyra, o não colhido loiro, + em harpa augusta, em palmas d'oiro; +e o monte, solio então, veria o mundo aos pés. + +Delirios sempre vãos, fugi de um peito enfermo; +tu, só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr termo; +ermo para ambições, é inferno, e não ermo; +para a humilde piedade é que elle espelha o Ceo. + Gentis phantasmas de cidades, +vinde, escondei-me o ermo em vossas claridades, + como um esquife em aureo veo. + + ¡Vinde, cercae-me, endoidecei-me, + (embora em saudades me eu queime)! + O somno, as vigilias enchei-me + da vossa esplendida vizão. +¿Val o riso choroso as festas da loucura? + vinde, guiae-me á sepultura, +crente no amor, na gloria, e rindo á solidão. + +¡Eu blasphemo, eu desvairo! Aos encontrados votos, +nem ecco respondeu n'estes covões ignotos. +Não, cumes glaciaes, tão outros, tão remotos +dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer; + não, no silvestre seio vosso, +nem de amenas ficções apascentar-me posso, + nem menos as posso esquecer. + + ¡Valor! ¡valor! ¿Quem do futuro + sondou jamais o abysmo escuro? + ¡Apenas chego e já murmuro! + ¿O de que tremo acaso sei? +Esperemos: talvez que inglorios, mas doirados, + aqui me aguardem, recatados, +dias de estro e de paz, quaes nunca disfrutei. + +Se além, no presbyterio, humillima choupana, +(Vaticano, e Queluz da pobre grei serrana) +mais que fraterno amor sollícito se afana +em me afôfar o ninho, a vida em me inflorar; + se n'um retiro verde e mudo, +por elle tenho o leito, a mesa, o doce estudo, + sombras no estio, o inverno ao lar; + + se a solidão que me apavora, + sómente o fôr vista de fóra; + se em seus recôncavos demora + gente feliz, povo de irmãos; +se do antigo viver, das crenças de outra edade, + vestigios guarda a soledade; +se poesia se vive entre estes aldeãos; + +se a alegria, serena, isenta de pesares, +como a fresca saude, habita os puros ares; +se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e mares, +se Deus em toda a parte á Natureza ri... + coração meu, não desanimes, +gozos que não prevês, e cantos mais sublimes, + encontrarás talvez aqui. + + ¡Ah! sendo assim, ¡que importa a fama! + Tambem philoméla derrama + sua harmonia ás selvas que ama + longe de ouvintes e do sol. +Cantarei. ¿Meu cantar mais ambições teria + que a viva, a lustrosa poesia, +de perolas que a flux borbóta o rouxinol? + + + + Castanheira do Vouga + + Outubro de 1826. + + + + + +II + +O SEPULCRO OU HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO (POEMA) + + +INTRODUCÇÃO + +(QUE É MELHOR DORMIR, QUE LER) + + + (Ermo alpestre entre cabeços de rocha e pinheiros, na serra do + Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um arrieiro, ambos a + cavallo, transviados na montanha.) + + + +I + + +--Bem lh'o disse eu, perdemos o caminho; +a velha era por força alguma bruxa. +Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a touca! +--Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?) +tres vezes t'o ensinou. + --Nem trinta vezes +que eu passasse por elle, o aprenderia; +a não ser pelo rasto que deixasse +esmurrando o nariz por essas lapas. +Já levo sem ferrage ambas as mulas; +perdeu-se o norte; não descubro casa, +nem gente, nem caminho, e é quasi noite. +Patrão, por meia legua mais ou menos, +não se deixa uma estrada como aquella, +que costeava o monte á beira da agua. +A velha era uma bruxa, e nós dois asnos. +--Dize um que vale dois, mas dois não digas. +Se tomámos o atalho em vez da estrada, +toda a culpa foi tua; eu não queria, +porem teimaste; e eu não me opponho a teimas. +--Mas eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita, +com ar de santa, e palavrinhas manças, +nos rabiscou co'o pau no pó da estrada +tão claramente as idas, as venidas +d'esta serra sem fim, não lhe escapando +lomba, moiteira, torcicólo ou brenha, +que a mula mesma entenderia o mappa! +¿Quem não cahia em tal? cahiam todos. +E de mais ¿quem nos diz que aquelles riscos +não tinham diabrura ou nigromancia +capazes de encarchar um Santo em carne? +¿E quem me diz a mim que a grenha russa +não vai ao pé de nós? ¡talvez sentada +na anca da mula!... ¡_fúgite_, demonios! + Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa; +quem mais anda, mais sabe; e eu não sou tolo, +nem creancinha de honte. ¡Olha o diabo! +bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto; +caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a parta! +¿que havemos de fazer nestas alturas? +--Tornarmos para traz. + --¿Por este escuro? +¿quer dar cabo das mulas, e estoirar-me? +¡co'um milhão de diabos!!... + --Pois fiquemos. +--E as mulas comam terra, como os sapos, +e nós carqueja. + --As noites são bem curtas. +--Se ao menos se avistasse alguma venda... +--Em rompendo a manhan teremos tudo. +Por agora apeemo-nos. + +(_Apeiam-se._) + + * * * * * + + --No inferno +estoire entre um milhão de Satanazes +o que inventou primeiro andar de noite; +era o maior ladrão... ¿Que bulha é essa? +--Não é nada; uma pedra que rebola. +--¡Que rebola!? ¡e sem mão! será bonito, +mas nem por isso engraço. ¿E aquelle bruto +lá em cima no pinhal, que guincha tanto! +--Algum mocho. + --Más balas o atravessem, +e lhe acabem co'a casta antes de um'hora; +cuidei que era outra coisa. Eu na taverna +valho por cinco ou seis; mas cá perdido, +e então de noite, um pisco me põe medo. +--Pois dorme. + --¿O quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás barbas! +só se eu fôsse algum bêbado. Esta noite +nem pregar olho, nem largar das unhas +dois penedos; e ao pé já está reforço. +--Golgan, já que não foi por nossa escolha, +busquemos contentar-nos co'a poisada, +que inda não é tão má como o parece. +¡Quantos ha menos bem acomodados +por esse mundo agora! uns em cadeias, +outros entre ladrões, náufragos outros, +estes em luto, aquelles em doença. +Bastantes em colxões de plumas fôfas +revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro, +cuidados tristes, asperos remorsos. +¡Quantos até nas salas mais alegres, +entre as luzes, e as muzicas, e as danças, +mas em face de um sôffrego banqueiro, +padecem mais que um reo chegando á fôrca +Não ha mal sem peor; qualquer estado +se se compara, é bom; com cara alegre +suavisam-se os incommodos; um fardo +n'um hombro impaciente é fardo e meio. +Quem não soffre um descommodo pequeno +nos grandes morre; um leve desagrado +dá realce ao prazer quando nos volta. +Qualquer estado, e pessimo que seja, +tem seu lado risonho; e é da prudencia +d'entre os picos da silva achar a amora. +_Amen_.--Brava o latim; dá ceia e cama. +--A falta d'esta ceia é novo adubo +do almoço de amanhan; e emquanto á cama, +¿que outra melhor do que esta em mez de Junho? +Nem paredes nem tectos, que nos roubem +a viração da noite apoz a calma; +por entre essa quebrada dos penhascos +lá em baixo o mar co'os seus murmurios frescos; +sobre nós, e por baixo das estrellas, +pendendo como um lustre, este carvalho +cravejado de insectos que entre-luzem; +dois rouxinoes ao longe; as lageas, mornas. +Vê; que soberba camara!; que leitos +desde a origem dos seculos nos guarda +no seio d'esta brenha a Natureza! +--Ao menos não tem pulgas. ¡Xó, canalha! +¡leva rumor! é bom pregar de coices. +Não durma, Sôr Doutor. + --Não tarda muito +que eu não entre a sonhar ¡Que bellos sonhos +não devem ser os de uma noite d'estas! +--Tenha lá mão com isso; o que eu prometto, +para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada +de casos que eu passei na minha vida; +tão rara, que podia ir á _Gazeta_! + + + * * * * * + + +Uma vez ia eu só; era em Novembro; +chuviscava e fazia um tal escuro +que era metter os dedos pelos olhos. +(Lembrou-me esta a proposito da mula +escoicinhar sem causa.) E era bom tempo +aquelle; andava Christo pelo mundo; +tinha eu mais duros, que patacos hoje, +e andava o oiro aos pontapés da gente; +tambem... ¡já cá não torna! O grande caso +é que n'aquelle tempo era eu solteiro, +e rapaz bonitote; e havia muitas +que me fizessem fogo; eu cuido, e é certo, +que não pelos vintens; nem pela cara; +mas isto de casar co'um almocreve, +seja elle o diabo dos infernos, +parece a todas bem: é uma delicia +ter o seu homem só de vez em quando, +em logar do espião de um pegamaço +com residencia fixa em ar de abbade. +Mas... não é bom falar na vida alheia. + + + * * * * * + + +Como lhe ia contando, era almocreve; +chamavam-me o _Chupista_. ¡Oh! que bolaxa +que eu pespeguei na cara do coécas +que me inventou a alcunha em certa venda! +qualquer creança lhe moia os queixos; +já lá está onde o pague ¿Onde ia o ponto? +¡ah! sim; era almocreve e recoveiro; +e andava com dez machos todo o anno +a correr quanto valle e monte havia +para cobrar o fôro aos Frades Cruzios. +Que isto do fôro é bom, nem que pareça; +uns pagam-lhe borel, outros centeio, +queijos, presuntos, lan, cevada, vinho, +gallinhame por arte do diabo, +ovos, e até o musgo onde se empalham.[1] +Não ha n'um pardieiro um desgraçado +que não deva pagar alguma nica. +Já vê donde me vinha a minha alcunha; +mas sem rasão; é porque andava ás ordens. +Tambem já tenho ouvido alguns autores, +tal como o meu cunhado, e mais uns certos, +que é coisa bem mal feita a tal derriça; +Mas bem feito ou mal feito, eu não sou Papa. +Vamos cá co'o meu conto. + + + * * * * * + + + Era uma noite, +cuido que já lh'o disse, ali por Maio, +e fazia um luar... que era um consolo. + + Eu saio a meu avô; se é boa a estrada, +gósto de andar de noite havendo lua; +cá pelas brenhas não, que não sou lobo. +Vinha eu mui fresco em mangas de camisa, +em cima de uma carga de presuntos, +pela estrada real, co'os sete machos +a dormitar ao som da chocalhada. +Vinhamos caminhando em certo passo +de quem gosta da noite, ou vem sem pressa, +ou de quem traz comida a gente farta. + + + * * * * * + + +Que lhe digo, em abono da verdade, +que servir Santa-Cruz não dá desgosto: +pagam bem, fazem festa ao gallinheiro, +vendo os machos no pateo é uma alegria!... +¡aquillo até os olhos se lhes riem! +dão pinga, e de cear, e muitas vezes +vi eu estar vai não vai a dar-me um beijo +o Frade gordo que recebe o saque. +¡Bom tempo! ¡bom de lei! já cá não torna. +Não durma Sôr Doutor. + --Não durmo; acaba. +--¡Acabar! não acabo em toda a noite, +nem que estoire a barriga do diabo. +Inda eu não comecei. Lembra-me um Frade +que havia em Santarem; tinha um cachaço,... +por tal signal que até revia enxundia; +¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!... +¡Mas aquillo! a prégar era uma joia; +um sermãosinho d'elle atarantava +e punha tudo azul. Tinha a constancia +de arrumar prègações de duas horas. +N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito... +(e olhe, foi tanto, que eu, e muita gente, +já tinhamos dormido á regalada) +disse muito pausado: «Eu principio.» + + Assim faço eu tambem. Todos devemos +tirar das prègações algum proveito. +Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia; +porém tenha lá mão, que a levo errada. + + + * * * * * + + +Nesse dia á tardinha, na estalage +tinha entrado uma velha; era um diabo, +que isso... só visto! pequenina, magra, +muito preta; era um bilro de pau santo. +Tinha pela cabeça um lenço pardo +atado pela barba, um manteo ruço, +e uma mantinha exotica e de agoiro. +Tinha então uma cara não sei como; +nem parecia cara; era um nó cego +que fazia azoar a toda a gente; +mas muito experta; e uns olhos como um bixo. +¡Tambem aquella rez tinha no corpo +muita pipa de sangue de creanças! + + + * * * * * + + +Cheguei eu á estalage, e ia com fome; +vou-me á carga do fôro, agarro uns ovos, +mando os frigir com mel, que é papa fina; +e então para quem tem de andar de noite +dizem que é bom, que livra do catarro, +já se sabe com quatro pingarolas. +Ia se preparando o meu guizado, +e era um cheiro tão bom pela cosinha, +que isso não ha dizer. Já dois gallegos, +e mais, tinham ceado; andavam tolos +a cochichar, e ás voltas pela casa, +um olho em mim, outro olho na tigella, +e eu muito concho a rir, e a pescar tudo. +Basta dizer que me pediram ambos +que vendesse um quinhão; ¡e isto em gallegos! + + + * * * * * + + + Emfim, cheirava bem, e estava d'alma. +Mas o monstro da velha era uma estaca +ali muito direita ao pé dos ovos, +com cada olho aberto, ¡que te parto! +Era mesmo um olhar de inveja e zanga. +Logo eu tive má fé co'a tal menina +quando ella perguntou quem era o dono. +Porém quem mal não usa mal não cuida; +sentei-me á meza a codear nos ovos. +Ora agora o vereis: a minha amiga +amúa-se n'um canto, mais vermelha +que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella. +Ferra os olhos em mim com tal quezilia, +que a não ser por temer a Deus e a ella, +batia-lhe co'o prato pelas trombas. +Botava cada lagrima... ¡de punho! +dava cada suspiro, a excommungada, +¡que punha medo! accendo o meu cigarro, +pago, monto a cavallo, e sigo a estrada. + + Era já noite escura, e um vento frio +como o gran Satanaz. + + + * * * * * + + + ¿Que diabo é isso? +ressona?; ou já na costa anda algum moiro? +--Avante; são as ramas que sussurram. +--Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando +pela estrada real por ser já tarde, +e a assobiar sósinho o _tiroliro_. +Vai senão quando, estacam-se-me as bestas. +Á esquerda, como ahi, ficava um monte; +d'esta banda um pinhal muito fechado; +de sorte que o caminho (e então mui longe +de todo o povoado) era um soturno, +que nem Roldão o andava áquellas horas. +Entrei logo a suar e a arripiar-me; +e as mulas n'um inferno de pinotes +sem quê nem para quê; davam taes rinchos, +que se fundia o chão; pregavam coices, +que assoviavam no ar; ¡que contradança! +era uma groza de diabos doidos, +e eu mais doido, no meio, á bordoada.[2] +Aqui digo eu como dizia o Frade +n'outro sermão de um Santo; _não lh'o pinto +por não ter um pincel_. Mas faça ideia +que tal eu ficaria lobrigando +(¡eu te arrenego diabo!) uma luzerna +a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo, +lá longe no pinhal. Que era bruxedo +tive eu logo de fé; muitos que m'o ouvem +riem-se, e tal; deixal-os rir; ha bruxas; +que isso sei eu; ¡e então ali! ¡tão tarde! +Por força era algum sabbado lá d'ellas, +que as taes amigas juntam-se de noite +a fazer os seus sabbados, o mesmo +como nós no Natal á meia noite... +Ha muita comezana de creanças, +sarrabulhos de sangue, cambalhotas, +e umas rizadas..... que até Deus se admira. +No meio anda um pretinho muito gordo, +que é o proprio diabo em carne e osso. +Diz então muita coisa a todas ellas, +dá-lhe lá seus conselhos, toma contas +do que teem feito, e..... acaba a tal comedia. +Untam-se co'uma untura que lá sabem, +transformam-se em corujas e mosquitos, +o diabo e o lume sorvem-se na terra +dizendo boa noite até tal dia, +e ellas voltam-se a casa a armar já outras. +Isto sabia-o eu como os meus dedos. +Lembrou-me a tal gulosa da estalage, +e então é que dei tudo por perdido. +Deitei fóra o cigarro, e entro em voz baixa +(¡sempre isto do pavor faz muita asneira!) +entrei eu co'as mãos postas para as mulas +a pedir-lhes co'as lagrimas nos olhos, +pelas Almas Bemditas, que deixassem +todo aquelle motim, que me perdiam; +que fugissem d'ali, que andavam bruxas, +e que pé ante pé viessem vindo; +que eu promettia uma ração dobrada. +Partimos. De repente desembésta +d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto +direito para nós como uma xára. +Com seis milhões de grozas de diabos! +¿quem havia de ser, senão a velha? +Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte, +chega ao cimo, e de lá muito sizuda +entra a dizer-me adeus, e (¡t'arrenego!) +a fazer-me uma cara dos infernos... +--¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro? +--Certo é que lembrou bem; tambem agora +lá me faz confusão ter visto a cara. +¿Escuro? isso era escuro como um prego; +não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e vi-lh'a; +¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje +tão bem encasquetada no juizo, +que a podia pintar, e era pintura, +que urrariam os bois se lh'a mostrassem. +Quer escuro quer não, vi-a, e está dito. + + + * * * * * + + +Mas o bom não foi isso; o mais bonito +foi entrar de repente o gallinhaço +nas canastras da carga em cantarolas, +a romper, a fugir, e eu pila pila +para aqui, para ali, correndo ás cegas +sem as poder juntar. Foi se-me a noite +n'esta labutação; de cada canto +sentia um cacarejo, ia ás carreiras, +gallinha... por um oculo. Já rouco, +moido e desesp'rado, ao romper d'alva +vejo as minhas senhoras mui contentes +todas juntas n'um bando ao pé das mulas. + + + * * * * * + + +Mas alto; esta é peor. ¿Não vê? repare: +¡um clarão para ali!! d'esta nos trincam; +¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a morte!! +--Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta? +--Para nós ambos de Fieis defuntos. +--De San João. + --¡Ah! sim; pois é fogueira, +e não é outra coisa. ¡Ora o diabo! +sempre tive uma colica soffrível. +Mas vamos nós a andar, se lhe parece. +Dizia um Padre Mestre ali do Algarve, +n'umas rasões que teve com meu tio, +que era barbeiro então, e o Padre Mestre +era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio, +ia fazer-lhe a barba e mais ao preto, +que era um tição que só á bofetada; +¡mas muito presumido! ¡e então por moças +dava o grande magano um cavaquinho!!... +Com que emfim, tinha o Padre este ditado: +aonde ha lume ha fumo; e eu então digo +que por força onde ha lume ha-de haver gente; +e que onde ha gente ha casa; e toda a casa +tem a sua cosinha, e então ceâmos. +E é partir de repente em quanto ha lume. +......................................... +......................................... + + + +II + + +Eis aqui um dialogo de ensanchas +sem geito, sem sabor, sem fim, sem nexo-- +grita o leitor perdendo as estribeiras. +¿Onde foi isto? ¿ou quando? ¿quem são elles? +¿onde vão? ¿d'onde veem? + + + * * * * * + + + Leitor amigo, +ha duas horas que soubéras tudo, +se o cruel arrieiro o permittisse; +mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas. +Quanto a elle, presumo que o conheces; +o nome do outro autor dir-t'o-hei n'um verso +não peor que outros muitos portuguezes: +Antonio Feliciano de Castilho. +Venho do Minho de assistir a bodas; +recolho me outra vez á Castanheira[3] +a casa do Prior, a fazer versos, +beber-lhe o vinho verde, e dormir muito. +O theatro da scena é certo monte +de que me esquece o nome; o anno, e o dia, +Mil oitocentos e vinte e oito, á noite, +vespera de S. João. Se mais desejas, +é perguntar, que eu te respondo a tudo. + + + * * * * * + + +Mas o melhor (se queres um conselho) +é fazer-me um favor, ao qual protesto +ser toda a vida grato: anda comnosco; +a noite está bellissima; podemos +ir co'o nosso vagar pataratando, +e conduzindo as mulas pela redea. +Mas tens medo ao Golgan; pois boas noites; +fica-te em paz, regala te, que eu juro +que estando em teu logar fazia o mesmo. +Se queres, faze ás paginas seguintes +onde vai mais Golgan (porque já agora +hei-de contar a historia por miudo) +faze, digo, a taes paginas o mesmo +que eu, tu, e elle, e nós, e vós, e elles, +fazemos ás dos _Martyres_ do Padre, +que são apezar d'isso uma obra prima. +Passa-as em claro, e dize que já leste. +Quem fala assim não quer suor alheio. +E adeus; até mais ver que vou com pressa. +......................................... +......................................... + + + +III + + +--Olhe lá, Sôr Doutor; diz um livrito, +que a gente sem falar é como os burros; +e eu digo que diz bem. Quero contar-lhe, +para ver se se encurta este caminho, +o mais que se passou depois da historia. +Mas vá picando a mula; ¡olhe a fogueira! + + + * * * * * + + +Com que, como eu já disse, ao outro dia +vi as gallinhas ao redor das bestas; +torno-as a pôr na carga, e digo logo: +A Santa-Cruz não vão vocês de certo; +nem vocês, nem a carga dos presuntos, +nem nada que aqui vai, ¡com trinta infernos! +Servos de Deus tão bons, tão meus amigos, +¡haviam comer tal! ¡metter no corpo +talvez quanto bruxedo ha neste mundo! +Deus me livre do mais, que de encarrêgos +posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas +direito á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos, +com carga e tudo. + --¿As mulas! + --Pois as mulas +tinham tantos diabos na muchilla +como as gallinhas, os boreis, e os ovos. +Mas eu era rapaz; se fosse agora, +não digo que o fizesse. O divertido +foi andar eu trez annos para quatro +a correr Portugal e Hespanha toda +a buscar confessor; ¡tudo ignorante! +Padre douto, nem um que me absolvesse. +Por fim achei o filho de um cigano, +dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo. +Mas então penitencia não falemos; +se a quizesse rezar, ¡nem toda a vida! +Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro duro, +e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella; +mas disse-me que havia até ser velho +mortificar o corpo co'um vergalho, +e com muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato! +Sabe então o que fiz inda algum tempo? +era correr de chôto os meus pedaços, +e depois descançar. + + + * * * * * + + + Deixemos isto, +que não lhe importa muito, e a mim nem nada; +vim para a minha terra apenas pude, +muito pimpão, e cheio como um ovo. +Namorei, namoraram-me bastantes; +por encurtar rasões, casei com uma +que era filha do irmão de um primo ou tio +de um meu compadre Abreu, que era cunhado +da sogra d'esta mesma rapariga, +e enteado do irmão do Cura velho; +tudo gente limpinha, muito boa, +e temente ao Senhor, que é todo o caso. +Gastei para impôr Bulla os meus tanturrios, +¡e não foi lá tão pouco! ¡Veja agora: +¡para a gente casar largar dinheiro! +É como ir para a India ou para a fôrca, +e pagar inda em cima aos da sentença. +Perguntei ao Banqueiro a causa d'isto, +disse me elle que a causa era nós termos +quatro humores no corpo, e d'aqui vinha +haver os quatro grãos na parentela; +que ella era minha prima, e que entre primos +havia os quatro grãos todos inteiros. +Não se riu, nem me eu ri; paguei-lhe em peças +não só os quatro grãos que se não viam, +mas ainda mais cá certa brincadeira. + + + * * * * * + + +Deixar; fosse o que fosse; emfim, casei me. +Aquelle mez primeiro é uma delicia; +foi todo elle um _cantate_; muito amigos, +muito beijo, e comer; muita broega, +muita romage, e tudo muito e muito. +Nunca houve um par assim tão contentinho; +nanja na aldeia e na comarca em roda; +era até amizade escandalosa. +Tanto assim, que o Prior, mais era amigo +de fazer a vontade a toda a gente, +n'um dia santo á pratica da Missa +deu-me um foguete ¡caspite! Disse elle +que marido e mulher com tal namoro +era coisa mais vil que mil diabos. +Fizemos-lhe a vontade antes de muito; +ella entrou-me a azoar com trinta coisas, +e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas, +o asneirão do Juiz, que era vizinho, +tomou isto em trambolho, e ameaçou-me +de me encaixar no fundo dos infernos. + + + * * * * * + + +¿E então que lhe parece a entaladella? +Vivia em paz, ralha o Prior; dezanco-a, +vem o Juiz, promette-me a enxovia. +É como o conto de um palerma velho +que ia a pé co'um rapaz e mais um burro. +--Bem sei. + --Pois sim senhor. Com que, tivemos, +não digo bem; teve ella oito ou dez filhos; +e sempre a dois e dois; forte coelha! +Entrei a dar á bruta; acudiu povo, +ella fugiu, mas eu fugi sem ella. +E d'então para cá desandou tudo. +E hoje ando aqui por moço de arrieiro, +a perder noites, e a estrompar as ventas. +Aqui está por que eu digo que este mundo +é coisa muito celebre! uns ovitos +e uma pinga de mel fizeram tudo. +........................................ + + + * * * * * + + +¡Brava! ¿não ouve uns sinos que repicam? +¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o Vinagre! +¡e viva a ceia e a cama que estão perto! + + + +IV + + +Com effeito, assim era; a poucos passos +já se ouvia tambor, gaita de folles, +risadas, bombas. Apressando as mulas +na direcção dos sons e da fogueira, +descemos uma encosta, a cujas abas, +entre uns poucos de antigos castanheiros, +uns cinco ou seis pastores se occupavam +a abobadar de murta uma fontinha. +Interromperam logo o seu trabalho +para nos vir saudar; mostraram pena +de ouvir que nos perdêramos no monte, +off'recendo á porfia os seus albergues. +Não findara a benevola contenda, +se um d'elles agarrando o freio á mula +me não posesse a andar; agradecendo +os desejos dos mais que inda ficavam, +segui affoitamente o nosso guia. + + + * * * * * + + +Uma ponte de pau que atravessámos +coberta de chorões, nos poz á borda +de um trigo já maduro e sussurrante, +contiguo ao seu casal. ¡Quanto eu folgara +de descrever tudo isto! Uma casinha +plantada ahi como risonha ilhota +n'um vasto mar de tremulas searas, +e clara como a neve, ou como a lua +que a espreitava do ceo por entre as folhas +de um esquivo parreiral. Junto ás paredes, +de rosas e limeiras revestidas, +canapés de cortiça apresentavam +a imagem do descanço e a do convite. +Não era necessario entrar a porta, +para já conhecer o domicilio +da hospedage e da paz; que as proprias auras, +como que em tão poeticas folhagens +se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo o estranho!» + + + * * * * * + + + Não longe lhe ficava a sua aldeia +na c'roa de um oiteiro; pensarieis, +vendo-as tão perto, e um bosque a separal-as, +a aldeia tão brilhante de fogueiras +e esta casa tão só mas tão alegre, +pensarieis, como eu, ver n'uma festa +moça ausente e feliz, amante e amada, +que entre o prazer commum não quer nem deve +ir desfazer seus pensamentos doces. + + + * * * * * + + + Visinho seu mui proximo era o templo, +aos valles do arredor alardeando +na sua torre branca um Anjo de oiro, +e a um lado a Residencia, occulta em parte +n'um ramilhete de altas cerejeiras. + + + * * * * * + + + Nunca mão de pintor juntou n'um quadro +objectos mais simpathicos. Tal como +trépido arroio em tacita espessura +das copas bebe a sombra, e envia ás copas, +do sol reflexo voadores raios, +do casal a presença alegra o templo; +a presença do templo está lançando +sobre o casal o sério da virtude. +Tudo isto sob um ceo de fertil benção, +sobre um chão de abundancia, e no ar mais puro! +--¡Meu Pae,!--grita o pastor entrando á pressa-- +minhas irmans! ¡um hospede!-- + + + * * * * * + + + A tal nome, +como se fosse á voz de alguma fada, +com repentina luz nos apparecem +creanças folgasans, esbeltas moças, +um ancião, e uma velha. Imagináreis +ver Graças, ver Amores, ver Napêas, +trajados de aldeãos, e honrando os lares +de Baucis e Philémon, que o parecem +na edade e na virtude os meus dois velhos. + + + * * * * * + + +Não mora entre seáras a etiqueta; +mas sobre herdada meza de pinheiro +em troco adeja a cordeal franqueza, +o bom desejo adubo da abundancia, +e a amisade dos bons, filha do instincto, +que nasce qual relampago, mas dura. +Deu-se o primeiro instante ao comprimento, +logo o segundo aos commodos; o resto +á conversa, e ao bulicio de tal noite. + + + * * * * * + + +Vem-nos do forno, envolto co'as risadas, +vital perfume de mellifluos bolos, +que em molles virações traz a alegria. +Aquella vai e vem compondo a meza; +esta afervora a ceia, e a cada instante +corre á janella que descobre a aldeia. +Juntam-se á bulha os sinos da parochia, +que o sacristão na vespera do Orago +jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra. +O festivo repique exalta as mentes, +os meninos não param, correm, gritam, +repartem bombas, furtam-se valverdes, +e rindo ameaçam fogo á pipa velha. +A boa annosa mãe ralha do estrondo, +e o faz inda maior; o esposo enfia +uma sobre outra historias do seu tempo. +O avito candieiro de tres lumes +cobre da meza o centro, e chama á ceia; +a sôlta sociedade eis se lhe aggrega. +Não foi longo o festim, mas cada copo +lhe augmentava o praser. ¡Salve tres vezes, +ó dos tres lumes candieiro avito! +¡quanto amor, quanta paz, que bens, que festas +não tens visto florir em tua casa! +¡quantas mãos tão felizes como puras +te hão accendido em noite igual! ¡quem sabe +que de memorias para ti conservas! +¡Em premio da hospedage aqui te accendam +longas eras em noites semelhantes +dignos de seus avós contentes netos! + + + * * * * * + + +Iria a muda apostrophe adiante, +mas ouviu-se o zabumba.--¡Ahi veem! ¡são elles!-- +dizem todos, e todos saem pulando. +--Olhae; olhae; ¡nem uma luz na aldeia! +este anno veio tudo. ¡Que alegria +terá o nosso Parocho! + --Maria, +dá cá o meu chapéo. + --¡Corre, Pedrinho! +--¿Onde está meu irmão? + --¡Não se demorem! +--Vamos dançar. + --Perdi as alcaxofras. +--Vinde por cá; passemos-lhes adiante; +que rancho que lá vem!................ +.......................................... +.................... Golgan, que eu fosse, +não pintara a estrondosa miscellanea +que vôa do cazal ao Presbyterio. +Lavra nos proprios velhos o alvoroço; +vão co'os mais quasi a par; lavra em mim mesmo, +estranho á festa. O pateo illuminado +nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo. +--Viva o nosso Prior!... + --¡Viva!!!... + Mil vozes +restrugem o ecco apenas avistaram +rindo á janella o velho gordo e alegre. +--¡Viva o Senhor San João! ¡viva a alegria! + + + +V + + +Bate o zabumba; a muzica rebenta; +fogem foguetes pelos ares livres +estrepitando; o campanario ovante +de jubilo endoidece; repentina +por dez partes acceza alta fogueira +dentro de um vasto circulo purpureo +mostra o prazer brincando em cada rosto. +Bello é ver n'este lance as raparigas +compondo mais o lenço, alevantando +o chapeo, que o semblante lhes encobre, +dando, como a descuido, um toque leve, +mas gracioso, ás flores que lh'o adornam, +e á flor do seio, e ao laço do collete. +¡Quantos nós ata amor n'esses instantes! +¡quantos outros aperta! ¡em quantos outros +embebe o espinho de um sutil ciume! + +¡Chiton! temos o Parocho na frente; +e as cangalhas vêem mais do que parece. +A _alegria decente_, eis o estribilho +com que recheia as praticas. Se cantam, +co'a cabeça e co'o pé bate o compasso; +se pulam boa dança em honra ao Santo, +bota fora uma can. Por isso o baile +circula agora a estridula fogueira; +por isso o San João vai toda a noite +injuriado em canticos devotos. + + + +VI + + +Meia noite. Que som mysterioso! +interrupção no baile e nos descantes. + + + * * * * * + + +Fada das amorosas prophecias, +tu, tu passaste agora em concha aerea +tirada pelo zephyro; sentimos +todos nós tua magica presença. +¡Boa viagem, Fada, e boa noite! +¡Salve, hora duodecima; bateste, +e descerrou-se a porta do futuro. +Sua nevoa desfeita em orvalhadas +vai nas plantas eleitas, vai nas flores +mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes +benção, certeza, amor, felicidade. +Já se interrompem bailes e descantes. +Embebida em potentes nigromancias +toda esta multidão por modos varios +exerce escrupulosa altos mysterios. +Mas renasce o alvoroço; é porque os copos +dos bilhetes fatidicos chegaram +da ama nas mãos com riso de importancia. + +--Não falta aqui rapaz nem rapariga-- +diz ella;--o senhor Padre escreveu todos, +mesmo á vista do rol dos confessados. +Meia noite já deu; quem quer casar-se, +pode vir vindo. + + Ao grande reboliço +succedeu a attenção, que a cada sorte +outra vez se converte em gargalhadas. +Por cada par que amor approvaria, +veem disparates comicos ás duzias, +e dão rebate ás palmas e epigrammas. +O proprio bom do velho applaude a tudo, +e por primeira vez da sua vida +encontra em si chorrilhos de finuras. +Já pede a uma o bolo do noivado; +quer ser padrinho de outra; e ás mais bonitas +quer baptisar de graça os pequerruchos. + +Muito custa no mundo o ser discreto +sem descambar o pé! coisas escapam... +que é por Deus não haver o Santo Officio, +como esta ao nosso padre: + --Olhae, rapazes, +vai n'estas sortes o que vai no mundo: +o acaso e a Providencia, ao que parece, +ambos lêem pelo mesmo Breviario. + +Não foi dos mais christãos o epiphonema, +mas fez rir. O Golgan neste comenos +chega, furta uma sorte, e diz abrindo-a: +--Esta, seja quem fôr, é cá p'ra nostri. + +Pede que a leiam; lê-se-lhe:--O coveiro.-- +Mudo o povo se entre-olha; e de repente +co'as pragas do Golgan destampam risos, +como os que o padre Homero encaixa aos deuses; +¡inextinguiveis risos! Mas não cede +a chufas nem a agoiro o varão forte; +e com mão bem segura extrae sublime +do outro copo outra sorte:--Ambrosia Trécula. + +Então do pateo o riso clamoroso +deveu-se ouvir no Artabro e Guadiana, +e retumbou nos ceos: Trécula... Trécula. + +--¿Quem diabo é esta Ambrosia?--o heroe pergunta. +--Sou eu--responde a ama. + --¡Está brincando! +é talvez sua neta ou titrineta. +--Vá-se, tolo. + --Olhe cá, senhora tia, +não vai a arrenegar; não lhe pergunto +por cara, corpo e modos, que são lindos; +¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa? + +Com o desdem mais dramatico, a matrona +voltou costas; e o bêbado prosegue: +--Sô Reverendo, não lhe aceite os banhos, +que eu sou casado, e ponho impedimentos. + +Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem +tirar tambem; tirei; ¿quem tiraria? +uma das filhas do meu bom Philémon. +Recebi parabens de todo o povo; +deixei-o bem disposto a divertir-se, +e tornei co'o o meu _sogro_ ao nosso albergue. +Instou que me deitasse; respondi-lhe +que em noite de San-João ninguem se deita; +que alem d'isso a jornada fôra curta, +e sem nimia fadiga; ultimamente +que, pois que elle esperava a mais familia, +esperava eu tambem; não sendo airoso +faltar á noiva no primeiro dia. +--Cedo, mas só co'a clausula--disse elle-- +que inda amanhan sois nosso. + --Assigno. + --¡Bello! + + + * * * * * + + +Então toca a palrar até que venham. +Saiâmos, que faz calma; alem, na eira, +sobre a alta palha do centeio novo +tomaremos a fresca e as orvalhadas. + + + * * * * * + + +Disse, e fez se. ¡Que ceo! ¡que paz! ¡que noite! +na molle aragem das fagueiras horas +meu coração feliz desabroxado +me enchia de um perfume egual ao vosso, +nocturnas flores, que o gosais sosinhas. +¡Quem podesse apanhar, prender na vida +estes momentos lubricos, momentos +que só caem do ceo durante a noite, +e só na solidão! Temi perdel-os +co'a triste distracção de mutuas falas. +Lembrou-me haver notado no meu velho +um genio amigo de contar historias; +pedi-lhe uma qualquer, bem decidido +a deixal-o á vontade espanejar-se +sem lhe dar attenção; mas enganei-me, +Pondo o rosto na mão, nos céos os olhos, +entra a buscar pela memoria antiga +algum caso mais raro; e como desse +casualmente co'a vista em certo lume +n'um cabeço remoto, + + + * * * * * + + + --Ouvi--me disse;-- +por aquella luzinha lá ao longe +lembra-me um caso, e um caso que foi certo, +passado ali no Minho ha largos annos. +Inda eu conservo em casa uns Breviarios +de um Padre irmão da minha avó materna, +que poderão servir de documento. +Elle mesmo o escreveu nas folhas brancas +do principio e do fim dos quatro tomos. +E era um clerigo honrado, o que escrevia; +merece tanta fé como a Escritura. +Diz elle então ali (nem é só elle; +minha Avó sua irman dizia o mesmo): +que esta nossa familia inda descende +da Rosa de quem fala a dita historia. +A minha avó foi Rosa, e tinha o nome +de sua mãe; a minha mãe foi Rosa; +a vossa _noiva_ é Rosa; e n'esta casa, +querendo Deus, sempre ha-de haver o nome. + + + * * * * * + + +Depois d'este preambulo de Rosas, +veio a historia, e encantou-me; ou fossem causa +hora e sitio, ou a amavel singeleza +com que narrava o historiador das medas, +ou já disposição com que eu me achasse. +Creio que sim: do espirito do ouvinte +vem mais de meio o merito das obras. +Por exemplo: da Eneida o livro quarto +dias ha que me enfada; ha tambem dias +em que se atura o _Italico_ do Padre;[4] +e em que se entende um pouco a pálrea bruta +que aos brutos deu do amavel Lafontaine.[5] +Nada parece mal, trazido a tempo; +fora de tempo, tudo. A mesma coisa +entre obras e leitores acontece, +que entre os garfos e as arvores: se enxertam +quando o não pede o tronco e o veda a lua, +¡adeus ramo bastardo! e se ao contrario, +penetra a seiva toda, e pula o ramo. + +Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto, +que protestei contar-vol-o a meu modo; +e o poema seguinte é o desempenho. +Tivesse elle, o que em vão lhe hei procurado, +da prosa do meu sogro o tom singelo, +talvez, leitores meus, o relerieis. + +Inventar, descrever, compor os versos, +são os tres pés, da trípode de Apollo. +Já sabereis do Reverendo Kinsey +que eu não tenho invenção; que nada pinto +co'a verdadeira côr da Natureza; +que os versos meus são bons, mas que aborrecem; +o que não tira que um poéta eu seja +digno de ser notado entre os que vivem. +Ora, quanto á invenção d'este poema, +bem vedes que a não ha, ou se a ha que é d'outrem. +E quanto ás descripcões, fiz o possivel +para não metter mais que as do meu _sogro_. +Mas faltava o melhor, e o mais difficil: +versificar á moda. Atirei fora +o Virgilio, o Racine, e o Metastasio, +gebos todos monótonos, que enfiam +os versos bons e os optimos aos centos; +atirei-me ao Filinto e aos Filintistas; +estudei, fiz ensaios, compuz paginas +de embréxados velhissimos e esdruxulos, +e não foi sem proveito o estudo acerrimo. + + + * * * * * + + +Perdoae se este livro inda vai falho +d'esses donaires que travêssos fogem +de mal expertas mãos; soffrei-o em quanto +vou destilar sobre outro o _Elucidario_, +qual se espreme um limão sobre um guizote. + + +Abril de 1831. + +FIM DA INTRODUCÇÃO[6] + + + + +III + +EPISTOLA + +A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA + +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) + + + +Da paz de um ermo ao turbilhão da côrte +a Musa de Castilho á do seu Costa +saude e amor. Já outra primavera +se enflora, a seu pesar, desde que ausente +pede aos montes a irman, que a não suspira, +e dorme ao lado de um feliz ingrato. + + +Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios +em cantos cujo ecco além não passa +.................................... + + +1831--Abril, 21. + + + + +IV + +O PRESBYTÉRIO + + + +¡Salvè, principio e fim dos meus passeios! +¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha, +cobre ha perto de um lustro os meus autores, +meus castellos no ar, meus faceis versos! +¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas limas, +festivo ornato das paredes brancas; +co'o teu portão patente oppresso de heras; +e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro, +brasão futuro do obumbrado pateo! +¡Salvè outra vez, meu presbytério! ¡Salvè! + + + * * * * * + + +Hoje, que o caprichoso do meu estro +(bem sabes se elle o é) deixa inconstante +versos índa no chôco, outros que apenas +vão da casca a sahir, outros que breve +teem de fugir do ninho em vôos livres, +entrou, mal veio a aurora esclarecer-te, +a doidejar-te em roda, a namorar-te, +qual borboleta ociosa ou leve abelha. +Pois que elle o quer.... cantemos-te; e perdôa +se o canto falador, transpondo os cumes +das tuas cerejeiras, fôr mais longe +revelar tua humilde obscuridade. + + + * * * * * + + +A antiga mediania, a segurança, +a paz, o amor dos Ceos, o amor dos homens, +genios foram, que em bençãos presidiram +aos alicerces teus. De Pário monte +não foi mistér que entranhas te enviassem +chão, columnas, e abóbadas, e estatuas; +tuas portas sem chave não cresceram +lá nas florestas do hemisphério opposto. +Foi visinho pinhal teu sôlho e tecto; +deu-te paredes mais visinho oiteiro; +portões e meza um cedro bom da extrema. +Não custaste nem lagrimas a pobre, +que á força te cedesse a choça avita, +nem odioso suor; e não se dormem +somnos melhores em Belem nem Mafra. + + + * * * * * + + +¿Que importa que no centro d'estes ermos +vivas tão só, que apenas descortines +n'um dos altos d'em torno esquiva aldeia? +Tu e o templo co'as messes que vos cingem +bastais no quadro agreste; em vós affluem +(como em sua Queluz) nos festos dias +ondas e ondas de amaveis saudadores. +Os rebanhos ociosos não desdenham +tôjo em flor, que te doira o chão das mattas, +d'onde envôltos co' os trémulos balidos, +veem cantos de amorosas guardadoras +endoidecer teu ecco. + Os caminheiros +abençôam-te a sombra; aqui teem fonte, +que em tua relva, ao fresco das parreiras, +detém, dessedentando-as, caravanas +que vão ou veem no alpestre Caramulo. + + + * * * * * + + +O anjo das flores liberal te arqueia +de bordada verdura as rescendentes +claras janellas. + Um bulicio manso +de amigas vozes teu recinto alegra. +Na sua tépida choça os bois ruminam +ante o feno em montões; dorme no páteo +farto esquadrão lanigero; ao sol pôsto, +cão, dos lobos terror, te vela as noites; +teus gallos as demarcam vigilantes. +Co'a luz primeira arrulha-te alvejando +cypria nuvem plumosa; e apenas saltam +da dextra mão mesquinha os grãos doirados, +em torno da gentil madrugadeira +de toda a parte os hospedes revôam. +Bicam por entre as pombas á porfia +a gallinha de filhos rodeada, +o manso grasnador do aquoso tanque, +o vaidoso perú, que ri cantando, +e vós, e vós, mais vivos do que todos, +não chamados, mas sempre a nós bemvindos, +passarinhos do ceo, turba sem dono. + + * * * * * + +Singelo presbyterio, ¡oh! ¡como te amo, +co'o teu ar casaleiro! Amo o teu forno, +tão social á noite; a simples sala, +quasi sempre deserta; a livraria, +deserta rara vez; estas alcôvas, +que enche um só leito; e a adega, assoviada +do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia +da cheirosa vendima; e o teu celleiro, +alto, arejado, e tão patente aos pobres, +como as portas do templo convisinho. + + + * * * * * + + +¡Floresças para o Ceo e para a terra +nos inconstantes seculos! ¡floresças, +feliz, co'o feliz dono, edade longa! +E se, lá no futuro, algum amigo, +sócio dos dias bons, saudoso e triste, +torcendo a estrada, a te pedir viesse +novas do teu cantor,--«Amou me, e amei-o-- +lhe dirias mostrando-te; e--«Seus ossos-- +juntaria o teu velho--aqui descançam.» + + * * * * * + +Sim; apraz-me cuidar que inda os meus restos, +gratos aos bons d'este recanto obscuro, +onde escapei no seculo de sangue, +cá ficarão n'este ocio, inda alguns dias +do simples montanhez talvez chorados. + + * * * * * + +Oh santa perseguida Liberdade, +¡onde te achei!.... Onde não vivem homens; +n'um torrão bravo que não chama invejas. + + * * * * * + +Em quanto, ora que a noite o ceo regela +humida e turva, tantos ricos enchem +de bocejante enôjo as assemblêas, +e tantos, tantos miseros, sem lares, +sem consôlo, sem pão, sem voz de amigo, +só reos de patrio amor, dormem nas furnas, +pelas praias do Oceano, e pelas rochas +(sublimes troncos pelo pé cortados)... +tua clara fogueira nos aquece; +¡graças, graças a um Deus! + Assim vagava +sobre o universo undoso a arca do justo. + + * * * * * + +Nós, depois de annos tres, inda esperâmos. +Ainda do trovão eccos retumbam. +Ainda os escarceos assoladores +remugem lá por fóra. Ainda a pomba +co'o ramo de oliveira inda não volve. + + * * * * * + +¡Oh santa perseguida Liberdade! +¡Oh! ¡Se eu podesse, a trôco dos meus dias, +restituir-te á minha Patria!.... + + * * * * * + + Basta. +Esperemos ainda. Oremos sempre; +e talvez que não tarde a grata aurora, +em que, a adejar da serra pelos pincaros, +venha de longe a nuncia das venturas, +a pomba com o seu ramo de oliveira!... + +Castanheira de Vouga + + Maio de 1831. + + + + + +V + +A LYRA DO DESTERRADO + +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) + + + +Era a noite dos finados; +sombria noite de outono. +Entre sinos acordados +lá jaz Roma entregue ao sono; +seus luzeiros apagados. + +Do ceo pelo rôto manto +só brilham frouxas estrellas; +sai a custo o clarão santo +dos templos pelas janellas; +e Petrarcha vela emtanto. + +Véla Petrarcha, e suspira +no leito amoroso e ermo; +olhos na véla que expira; +saudades no peito enfermo; +nem gloria sonha, nem lyra. + +Qual raio sôlto de lua +por móveis aguas vibrada +n'um bosque inteiro flutúa, +tal adeja no passado +a saudosa mente sua. + +¿Quem dirá seus pensamentos? +a douta lingua está muda. +¡Que paixões, que sentimentos, +no rosto, que aspeitos muda, +veem transluzir por momentos! + +Ora é dor, ora é sorriso, +esperança, amor, transporte; +queixas, ternuras diviso; +desce aos abysmos da morte, +vôa aéreo ao Paraizo. + +¡Não falar o Vate agora +co'os labios que move apenas! +¡Que torrente abrazadora! +¡que amor! ¡que incendidas penas! +¡quão nova a paixão não fôra! + +Vai a noite adiantada; +humido vento assovia; +treme a luz quasi apagada. +Do grão Cantor que vigia +ferve a mente a sonhos dada. + +--«Eís o templo conhecido +que os meus destinos encerra. +A mãe terna, o pae querido, +cá m'os tem no seio a terra. +Cá vi Laura, e fui perdido... +............................... + +Castanheira do Vouga + 1830...(?) + + + + + +VI + +EPISTOLA + +(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho) + + + +A minha primavera emfim renasce. +Té n'este horror selvatico dos montes +roupas traja nupciaes a Natureza. +O ceo azul, o ar morno, as aguas puras, +tudo nos diz «amor»; dizem-n-o as aves +chalreando ao florir das alvoradas; +bala o rebanho alegre; armento o muge; +na folha nova zéphiro o cicia; +a camponeza em meio de mil flores, +que lh'o exhalam balsamico, o suspira, +e ao viçoso tapiz, á sombra vasta +macia e tentadora lança os olhos. + +Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso, +enleva a fonte e as arvores nocturnas, +cantando amor, da lua ao raio incerto, +lições que mais de um ente ao longe estuda +(e pratica talvez); em sons de lyra, +solitario eu tambem, lições de affectos +de cá te envio ao centro da cidade. +N'esse ruidoso vórtice de povo, +de vãos praseres, de negocios futeis, +a geral rotação te arrasta ás cegas; +é dever da amisade erguer-te aos olhos +luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas +pode não ver a táboa ás vezes perto; +pode a praia ignorar, e tel a em face. +Táboa amor te lançou da praia firme; +ledo e fausto Hymeneu te está chamando. +....................................... + + + + + +VII + +A ROMARIA + + + +Lá vem Maio rosado. Já floreja +nas planicies, verdeja pelos montes; +é o mez de Amor, é o mez de Philoméla. + +Aureo amanhece o dia suspirado +da romaria annual; léguas em roda +já tudo é festa, esp'rança, e regosijo. +As povoações, desertas. Por estradas, +por torcidos atalhos, por oiteiros, +correm de toda a parte ornados bandos. +Lá retrôa nos eccos aturdidos +a matinal girandola ruidosa; +acorda ao longe a torre com repiques; +um povo de cem povos misturado +enche a vozeada selva, a acceza ermida, +e de ondeado matiz cobre o terreno. +Arfa ao sol, no alto mastro volteando, +triumphante bandeira alvi-cerúlea. +Vai e vem, ora chega, ora se allonga, +não está em nenhum sitio, e assoma em todos, +a alma da festa, a gloria do Gallego, +a aguda gaita túmida e franjada, +que ao rufado tambor sócia, repete +a moda velha e alegre, amor dos campos. +Em vidrado alguidar reluzem n'agua +os doirados tremóços, que afadigam +com compradores a afrontada tia. +As navalhas e anéis, o apito, o espelho, +se assoalham mais além; na alva toalha, +alva e folhuda, estão chamando o exul. +Em cima de seus carros triumphantes +os laureados tonéis, reis da alegria, +dão n'um fogo perenne a vida a tudo. + +Aqui se ouve o descante ao desafio, +que a viola ora segue, ora acompanha. +Ali se apinham para ver as danças, +que a discorde rabecca entorta ás vezes. +Lá, se entorna o licor em puros vidros; +ao pé se adoça a fresca limonada. + +Aqui se comprimentam; além chamam; +um se perde, outro se acha, outro convida. +Este corre; esta pára a ataviar-se, +por mostrar o cordão e o lenço novo. +Estirados na relva os velhos palram; +grita o rapaz. O amante, recostado +ao páu, por onde um braço lhe serpeia, +faz longa côrte á tímida futura, +que em resposta de amor lhe dá tremóços. + +N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens. +Lá sai a procissão; lá foram todos. +¡Ah! depois do jantar comido ás sombras, +cada um levará, volvendo a casa, +gratas lembranças para o anno inteiro. + + + + + +VIII + +O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES + +OU + +A MATTA DE S. SEBASTIÃO + + + Versos na plantação de uns carvalhos junto á egreja de S. Mamede da + Castanheira do Vouga pelos rapazes solteiros da freguezia no + Domingo do Carnaval de 183... + + + +I + + +N'este dia, em que o povo tumultuando +nos casaes, nas aldeias, nas cidades, +troca a enxada, o tear, o livro, a agulha, +por copos, danças, máscaras, e risos +nas saturnaes christans; quando se espraia, +desde o seio de Roma aos fins da terra, +de um praser contagioso alta vertigem; +¿por que retreme ao golpe das enxadas +sob os meus pés a solitaria encosta? + + * * * * * + +¡Saude a vós, a vós louvor. Bemvindos, +montanhezes, fieis aos priscos usos! +O cântaro do estylo ahi está coroado, +risonho e prestes a inundar os copos; +o prémio á vista vos redobre as forças. + + + * * * * * + + +Rasgae co'o duro ferro a terra dura; +de vossos paes a matta veneranda +em torno de seu santo antigo dono +se accrescente por vós. Plantae, que é tempo, +no chão, sagrado de suor devoto, +ó presente annual, que o Ceo prospére. + + + * * * * * + + +Onde quer que elle jaz, abençoemos +as cinzas do homem bom, lá d'essas eras +que a pia usança introduziu primeiro. +¡Quanto a sua virtude era risonha! +--«Cada solteiro plantará n'este ermo +mais uma arvoresinha de anno em anno, +que lá em cima encontrará seu premio.» +¡Oh! estes rogos, sim, este pedido, +doce e desint'ressado, uncção respira; +manda mais do que as Leis; morrer não deve. + + + * * * * * + + +Produz, produz a miudo, ó Natureza, +por teu bem, por bem nosso, homens como esse. +Haja quem diga ao joven par, que ás aras +sobe apenas amante, e desce esposo: +--«Hoje, que são já fruto esp'ranças de hontem, +entrae sorrindo pelo chão da vida; +plantae, plantae um'arvore que o lembre.» + + + * * * * * + + +Quando a cabana festival se enrama, +se enflora a meza, e os aldeãos visinhos +veem festejar na casa um filho novo, +a mão paterna, de praser tremendo, +orne de um novo tronco o prédio avito. + + + * * * * * + + +¿Depois de suspirada e curta ausencia +volve um irmão das terras estrangeiras? +¿Convalesce um parente? ¿Em bem se acaba +suado, volumoso, eterno pleito, +que empobreceu o avô, o filho, e o neto? +¿Fizestes o adversario amigo vosso? +¿Sorriu-vos a ventura? ¿É farto o anno? +A sêrdes Reis, alçáreis monumentos; +¿que vale um monumento? O homem dos campos +melhores pode erguer a menos custo: +plante sobre o caminho arvores férteis. +Por elle o passageiro ardendo em calma +ache a sombra hospedeira que o recreie. +Por elle o pobre, que seu pão mendiga +de casal em casal, de monte em monte, +que não vê ceo, nem lar onde se aqueça, +nem feno onde descance, e em todo o mundo +só tem por património a caridade, +ache a fruta a pender em curvos ramos, +a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe. +Assim, do bem de um só germinariam +mil bens communs; e do praser de um homem +o publico praser, publicas bençãos. + + + +II + + +Se tendes de nascer, nascei mui breve, +sensiveis corações a quem Deus guarda, +a gloria de influir eguaes costumes. +Desde já nossas lagrimas de affecto +correm por vós; ao seio do futuro +nós vos lançamos desde cá louvores. + + + +III + + +Sentemo-nos, em quanto os vossos filhos +aqui se embebem na tarefa honrosa, +sentemo-nos á sombra, a vós bem grata, +do carvalhal que as vossas mãos plantaram, +homens das cans, antigas testemunhas +dos tempos que não são. + + + * * * * * + + + Vós, deputados +das mortas gerações aos vivos de hoje +como pregões propheticos; thesoiro +de saudades, de dor, de experiencia; +bons velhos, á vossa alma taciturna +aprazem mais que a festa os pensamentos. + + + * * * * * + + +Falae: ¿d'onde vos nasce essa tristeza +profunda a um tempo e vaga, amarga e doce? +¿Será de enfeitiçada sympathia +que nos attrai á terra, ao chão da vida, +chão sempre cubiçado e sempre ingrato? + + + * * * * * + + +O coração, zeloso da existencia, +compara os dias seus do tronco aos dias, +e a conta desegual o opprime e o fecha. +¡Annos a nós, e seculos aos bosques!... +Planta o pae, mas a sombra hospéda os filhos; +netos, que não verá, gosarão d'ella; +e indiff'rentes incógnitos vindoiros +rirão contentes ao folhudo abrigo. + + + * * * * * + + +Mas, velhos, mui ditoso o que em seu predio +dispõe arvore fértil de esperanças, +que irá legada aos filhos de seus filhos. +Prophecias de amor lhe expande o seio, +sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos. +Mas feliz egualmente o que em seu predio +possue vaidoso um tronco hereditario. + + + * * * * * + + +Na réga, e ao vir da flor, e ao dar do fruto, +¿como ha-de não pensar em seus maiores? +Um lh'o plantou, os outros lh'o trataram; +¿Como ha-de recusar-lhe uma saudade, +um suspiro, um suffragio, um elogio? +A gratidão medita á mesma sombra +onde já meditára o amor paterno. +Esta arvore mortal é o santo marco, +em que se juntam, se entrelaçam, crescem, +dos idos o interesse e o dos vindoiros; +nó de affeição, que os seculos reune. + + + * * * * * + + +¿Vedes vós essa mãe, que ha tantos annos +chora um filho alem-mar, em longes terras? +Mostrae-lhe um passageiro a dar á vella +para o porto feliz; ¡com que ternura +lhe não dará, chorando, um longo abraço, +que leve, que lh'o entregue, ao seu querido, +e todo o amor de mãe lhe exprima n'elle!... +¡E com quanto alvoroço o desterrado +não cingirá o amavel mensageiro!... +Eis o emblema da arvore, cruzando +viva e lembrada o Oceano das edades, +mensageira de int'resse aos paes e aos filhos. + + + +IV + + +¿Qual de vós, repoisando n'esta cama +de folhas mortas, qual de vós, no meio +d'esses troncos musgosos, seculares, +não viaja com o espirito espraiado +por esse mundo antigo e antigos homens? +Sim, vossa alma se apraz, phantasiando +de lhe restituir quanto houve d'elles: +uma vida, uma choça, herdade e patria. +Deslembram cans; rugosas faces riem; +reviveis n'um minuto annos de infancia +sob a affeição de um pae, de um pae nos lares; +sem cuidados, sem prole, e sem temores, +entrais folgando o limiar da vida. +¡Podesse n'este ponto o pensamento, +como ave em ramo flórido e viscoso, +deter-se a recordar, ficar pregado! +¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o sonho, +e a extincta geração recai nas campas. + + + * * * * * + + +¿Mas quê? ¿d'esses antigos plantadores +nada mais resta além de uns troncos mudos +n'este universo movediço e instavel? +¿nem uma só lembrança, um dito, um nome? +Tudo passou sem mínimo vestigio, +como os sons leves de um descante ao longe. +........................................... + + + +V + + +Bons aldeões, estas sombras regaladas +vos falam nos avós; porém comigo, +comigo, extranho, e novo em meio d'ellas, +conversam no aureo tempo a que assistiram; +recordam-me as edades do Universo, +e os varios povos, e os paizes varios, +contemporaneos do nascente mundo. + + + * * * * * + + +Intonsas, invioladas, venerandas, +outras selvas, como esta que nos fecha, +fecharam do homem a primeira origem. +Sob as verdes abóbadas immensas +as velhas tradições nol-os descrevem +pobres e alegres, nús e satisfeitos, +saboreando em ocio a glande e a fonte, +dormindo sobre a folha, e sem pedirem +outra casa, outro templo, outra cidade. + + + * * * * * + + +A pouco e pouco o numero crescia, +minguando a pouco e pouco a singeleza. +Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam; +a um Maio eterno as estações succedem; +o ar se gela e accende, alaga e silva; +já bravejam leões, já bramam tigres; +o homem se acoita ao seio das cavernas. + + + * * * * * + + +Vós, troncos, até ali seus companheiros, +acudís a servil-o; ¡e em quantos modos! +lá, crepitais em rútila fogueira; +aqui, das feras prohibís a entrada; +dais uma clava ao caçador valente; +na serviçal cortiça um berço aos filhos; +leitos a amor, assentos á velhice, +aos enxames um lar, um copo ás festas. + + + * * * * * + + +Das precisões ao grito, o engenho acorda; +lá surgem povoações, curraes, tugúrios, +e uma capella ás rusticas deidades. +Lá rompe o novo arado a terra dura; +lá geme, a transportar enormes pezos, +o carro, e sulca atónitos caminhos. +O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo; +a rudeza se pule; as artes crescem; +a especie racional das mais triumpha. + + + * * * * * + + +As gerações do ceo, do mar, da terra, +tudo é já seu; os campos lhe obedecem; +faltava o Oceano; affoita quilha o rasga. + + + * * * * * + + +Então foi, que estas arvores, tão uteis +no patrio continente, abriram vôo +sobre o liquido abysmo a novos climas. + + + * * * * * + + +¿E em que parte do globo, arvore excelsa, +te podes presentar, que não recordes +uma façanha, um culto, um grão successo? + + + * * * * * + + +¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta +que foste invicta clava em mão de Alcides; +vê-te, suspira, bate o chão raivando +de achar-se escravo, e de não ter-lhe as forças. +¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta +do arvoredo Dodónio as mil respostas, +o passado e o porvir patente a todos, +e o livro do destino aberto ao mundo. + + + * * * * * + + +¿Na Ausónia? Mas Cybelle amou teus ramos; +Roma os sagrou a Jove; e, fulminada, +eras tremendo agoiro a todo o Imperio. +¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica? + + + * * * * * + + + ¿Nos campos? +¿E Phílémon, o justo, o caro aos deuses? + + + * * * * * + + +¿Nas Gallias? em seus barbaros oiteiros +tu, só, eras o altar, o deus, e o templo. + + + * * * * * + + +¿Na Caledonia, em Morven, junto aos lagos, +sobre os cumes, á beira das torrentes? +Lá tu viste Tremnor, Fingal, e os bravos, +reunidos na vespera do sangue +em nocturno festim que allumiavas, +quando na harpa dos bardos reviviam +os feitos dos heroes do antigo tempo. + + + * * * * * + + +¡Salve, eleito Israel! Eis-nos em campos +de Sichem. Vejo os principes e os velhos, +os juizes, as tribus, apinhar-se +em torno ao tabernáculo de Sila. +Por cima d'este mar ondeado e vivo +reina de praia em praia alto silencio. +Sublime como o cedro do deserto, +se levanta Josué, braço do Eterno, +em nome do Senhor, que o manda e inspira; +os favores do Ceo recorda ao povo; +renasce a Fé; os idolos se arrazam; +--«¡Gloria ao Deus de Israel!--vozeia a turba-- +¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos! +--Erga-se um monumento,--exclama o chefe-- +que, se infieis um dia os esquecerdes, +vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.» +E a monumento põe no logar santo +enorme pedra á sombra de um carvalho, +que abrigava co'a copa o santuário.[7] +Despede o Povo, e em paz contente expira; +em paz, que já não vê perjúrios novos. + + + * * * * * + + +Escrava de Madian a plebe expia, +na miseria e no opprobrio, os males torpes +que fez ante o Senhor. Mas inda existe +um justo, a quem Deus fie o libertal-a: +é Gedeão, é o Josué segundo.[8] +Este, em quanto seu pae lança aos caminhos +medroso olhar á espera do inimigo +para fugir com elle, ajunta á pressa +o trigo que limpou. + Vê de repente +um Anjo, que debaixo do carvalho +se assenta, e lhe repete a lei do Eterno. +Esse mesmo carvalho é testemunha +da belleza do alado mensageiro, +da voz de salvação mandada ao Povo, +e do holocausto acceito e posto em cinzas, +e do altar, a quem _Paz_ foi dada em nome. + + + * * * * * + + +E este, que tão frondoso opáca os valles, +¿por que o rodeia um bando taciturno +dos fortes de Galaad? as suas armas +jazem quebradas; sua dor vai funda; +dos olhos tristes para o ceo voltados +pelo rosto amarello lhes escorre +grosso pranto, que alaga as f'ridas frescas. +Choram Saul, e a régia descendencia, +que mortos no combate aqui descançam. +Para o Monarcha agigantado e invicto +nenhuma estátua se erguerá na campa. +Sua columna e funebre palacio +preparou-lh'os com tempo a Natureza: +o tronco, rei da selva, o está cobrindo. + + + * * * * * + + +¡Mas quanto é mais tocante o que se eleva +nas faldas solitarias da montanha! +Ali Débora jaz; ali Rebecca +chora na morte a que a nutriu na infancia, +ama no coração, mãe nos extremos, +de seus primeiros e ultimos segredos +confidente fiel no lar paterno, +querida socia na feliz viagem, +e no lar conjugal seu doce allivio. +¿Arvore a tanto affecto consagrada +na affectuosa Biblia irá sem nome? +o _carvalho das lagrimas_ lhe chamam. + + + +VI + + +¡Que uso tão doce aos corações piedosos! +Reverdecei, costumes do bom tempo, +quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem, +tinham sob um ceo livre a sepultura. +A Morte, menos barbara do que hoje, +com avarenta mão não ferrolhava +sob um tecto pezado, entre altos muros, +as prezas, cá de fóra em vão pedidas. +Não era um templo um cárcere de mortos. +Dormiam mollemente em terra franca, +em jardins frescos, em copadas selvas. +Esta esp'rança adoçava um pouco o amargo +do ultimo trago aos labios moribundos. +Este bem, tão pequeno em mal tão grande, +¡quanto valor não tinha aos que ficavam! +O irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo, +podiam livremente, a toda a hora, +ir regar de seu pranto amadas cinzas, +fartar saudades, inflammar lembranças, +delirar doce a noite, e o dia inteiro, +e de praser a um peito onde palpitam +superstições de amor ou de amisade, +dizer: + «Este tapiz relvoso o cobre; +esta ave lhe gorgeia; esta aura sôlta +o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes; +a primavera m'o visita, e espalha +tambem por cima d'elle o seu regaço; +esta violeta é sua, hei-de colhel-a; +d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte, +nutre-se do seu pó, vive por elle, +é elle mesmo em parte; arvore amiga, +recebe o nome caro, hoje sem dono, +toma os abraços que não posso dar-lhe.» + + + * * * * * + + +Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas. +A arvore, Deus a fez como passagem +do mundo que respira ao mundo inerte; +commum co'os animaes, commum co'a terra, +vive e não sente; habita e ignora o mundo, +sympathisa co'a morte e co'a existencia, +é grata ás cinzas, á saude é grata. + + + * * * * * + + +¡Que férreos somos nós, que a um como vago +atiramos sem dó perdidos, mixtos, +o detestado, o amigo, o estranho, e o nosso! +Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros +arrojasse o que os seculos pouparam, +bronzes, escritos, marmores romanos, +ou, derrotando porticos, columnas, +theatros, colliseus, palacios, templos, +em serra inutil amontoasse as pedras, +¿quem não vertêra em lagrimas o sangue? +¡E ante a nossa affeição teem menos pezo +que as ruinas de Roma as que são nossas?!... +¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes, +espectaculos, jogos, aureas festas, +jardins, parques!... ¡e aos miseros que gemem, +e aos peitos melancólicos, viuvos, +ha-de negar se um canto onde pranteiem!?... +¿De tanto mundo que pertence aos vivos +nada dareis aos seus antigos donos? +¡nem um torrão perdido, e uns troncos nullos?!... + + + * * * * * + + +¿Quando virá um dia, em que estes bosques, +semeados de tumulos não altos, +de lugubres saudades se povôem? +Então, a propria Morte, hoje tão sêcca, +terá sua grinalda; a dor, seu gosto; +e visitas o pó, e cultos o ermo. + + + * * * * * + + +Pelas noites mui placidas do estio, +ao duvidoso alvor da lua incerta, +bello será, sentado n'este sitio, +ver vir, d'aqui, d'ali, frouxos, dispersos, +o do casal, o morador na aldeia, +entrar chorando, e procurar seus mortos. +Aqui duas irmans resam de joelhos +sobre o seio materno sepultado. +Aqui o velho attento as contas passa +pelos dedos convulsos, e se encosta, +sem o saber, na fallecida esposa. +O filho aos pés da mãe co'os mais soluça +o Padre-Nosso apenas aprendido. +Deitado ao lado do submerso amigo, +o amigo devaneia antigos annos. +Por toda a parte, as lagrimas e affectos, +memorias doces, orações e esp'ranças. + + + * * * * * + + +¿E a quem não conviria egual retiro? +N'elle a tristeza encontraria um pasto; +a sciencia, reflexões; o vicio, escolhos; +a leviandade, assento; a desventura, +consolação; o amor, silencio e pranto. +Ensaiára-se o infante para a vida; +o velho, para a morte; o moralista +viria achar uncção para a verdade; +o orador, persuasões, ternura, encantos. + + + * * * * * + + +Ó filhos da montanha, ¡oh! libertae-vos +de um preconceito vão; é toda a terra +a terra do Senhor; afora o vicio, +debaixo d'este ceo nada é profano. +A benção do Pastor consagraria +vosso asylo feliz; e a Cruz em meio +todo de um santo influxo enchêra o bosque. + + + +VII + + +Mas, em quanto esses dias vos não raiam, +bons velhos, vigiae que, de anno em anno, +aos juvenis futuros plantadores, +em vez de se afrouxar, se inflamme o zelo. +Cresça com seu favor por estas serras +a geração dos vegetaes gigantes. +Com todos vós conversam todos elles +sem cobrir campas; guardam-vos saudades, +são parentes de todas as aldeias, +e o brasão da montanha é o vosso parque. +Sobre tudo influi que a vossa raça +trema ao só nome do brutal machado +que ouse violar a veneranda herança. +O que só Deus medrou, só Deus derribe. + + + * * * * * + + +Crêde-me (eu já vi outras) vossa terra +é descrida, enteada á Natureza. +Cumpre a vós adoçar-lhe o aspecto agreste, +amiudar-lhe no oceano ermo dos ares +estas ilhas, virentes, graciosas, +que espalhem primavera pelos montes, +que attráiam as volantes caravanas +do rouxinol, da rôla, e da andorinha. + + + +VIII + + +Lá em baixo a casa humilde que branqeja, +entre os alegres plátanos e o templo, +quasi que pasma, e se entristece e encolhe, +de ver em torno a solidão tão vasta. +Como que está pedindo... ao menos bosques; +não tem outros jardins, outros passeios, +que offereça a seu dono, o Pastor vosso. +Preparae desde já para o futuro +sombras novas aos novos successores, +e refrigério estivo ás cans do velho. +Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio. +Mil vezes sua voz reconhecida +rogará paz ditosa aos vossos netos, +quando, serena a mente, e sôlta a vista +lá fôrem divagar, ora embebidos +nos psalmos, nos poeticos arrojos, +ora admirando o Autor e o Nó dos mundos, +no largo azul dos ceos, no alto dos troncos +e no zumbir e no voar do insecto. + + + * * * * * + + +¡Surgi! ¡surgi! Lá jazem as enxadas. + + Velhos, surgi! La voltam triumphantes, +findo o novo trabalho, os vossos filhos. +Agora espumem copos, sôem risos, +exulte a dança, alonguem-se os cantores. +Conquistastes o inculto á Natureza: +forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas. +Toda a vasta planicie, hontem tão erma, +¡que povoada vai já! ¡como promette +lembrar ao vosso gado, ás vossas filhas! + + +UM VELHO + +Sim, dará sombra e vai povoado o valle: +mas fosse eu rico, e lhe dobrára encantos. + + +SEGUNDO VELHO + +¿E como, irmão? + + +O PRIMEIRO + + No alto d'este oiteiro, +d'onde se avista o mar, o ceo, a terra, +poria uma capella, e um San-Mamede +co'o rosto de um menino, e o rir de um Anjo; +nas mãos o cajadito, o alforge ao lado, +e o seu rafeiro ao pé todo soberbo +co'a colleira escarlate, e todo amigo +a lamber o seu Santo. É bom que os altos +se c'rôem de capellas, que levantem +o pensamento aos Ceos, no campo espalhem +devoção e piedade, e aos peregrinos +ensinem o caminho e a vista alegrem. + + +UM PASTOR + +Sim, co'o santo pastor de guarda aos bosques, +¿que haviam de temer, nem cães nem gado? +Nos degraus da capella, á sombra inquieta, +longas séstas sonháramos de amores. + + +TERCEIRO VELHO + +Já lá vão o bom tempo e os bons costumes; +foi-se a abundancia e os corações piedosos. +Esses fundavam templos, como o nosso, +n'um árido deserto; e hoje.... se estala +no campanario um sino, em ocio eterno +fica mudo a pender dos braços podres. + + + +IX + + +Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria, +serei eu quem consagre o vosso oiteiro; +não a Mamede, não ao pastor martyr, +mas á contrita amavel Peccadora. +¿Não valem mais as lagrimas que o sangue? +¿Mais que heroico valor não nos commove +doce humildade e penitencia longa? +E de mais: se ás aspérrimas proezas +vos não destina o Ceo, todos nascestes +captivos frágeis de amorosas culpas. +Muita virgem no monte solitario +tentada pelo amor e pelo amante, +só com ver a capella ha-de livrar-se, +e pela salva flor dar lhe-ha mil flores. +E quando aqui errantes missionarios +vierem dar, e á sombra dos carvalhos, +as turbas apinhadas instruirem, +¡que persuasões, que lagrimas, que exemplos +hão-de tirar da veneranda Imagem!.... + + + * * * * * + + +¡Qual me ri já na mente o grão projecto! +Eu serei pois o fundador de um culto +que aos frutos da moral reuna flores. +Sim; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente? +........................................... + + + +X + + +Partiram. E eis-me só. Todos partiram. +O alvoroço do entrudo os chama aos lares. +¡Oh! ¡Bemdita a ignorancia d'estas serras! +O rustico inda ri na Patria em luto, +e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro. +¡Bem sabe elle que lagrimas aos mares +d'este horizonte em roda estão correndo! +¿Sabe elle que o atro dia é menos atro? +A paz, a confiança, as alegrias, +a abundancia, a união de antigos Lusos, +não deixaram, fugindo, um só vestigio. +No vaivem das facções, que se entrevencem, +tudo se perde e esquece, afora a raiva. +Os bons usos, as festas populares, +a romaria alegre, as patrias danças, +vão-se apagando... Aqui, mesmo na brenha, +a pastora, esquecendo os seus amores, +canta a questão dos Reis, o hymno da guerra, +sons novos, que o seu gado e o ecco extranham. + + + * * * * * + + +Ó Patria, bella Italia do Occidente, +tu que egual a Parthénope repoisas +debaixo da invejada laranjeira +e do mirto florido, ao deleitoso +ruido de aguas limpidas, no abri +de um ceo inspirador tão proprio ao genio, +ó bella Italia do Occidente, ó Patria, +¿era pois fado teu lidar sem fruto +para seres a inveja, a flor das gentes?.... +A guerra, sim, te coroou co'as palmas +das quatro partes do orbe, e as naus do mundo +trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros. +Mas as flores das artes, mas os frutos +das sciencias, no chão dos outros povos +com tanto custo e com suor medrados, +¿espontâneos no teu medraram nunca?... +¿Tiveste nunca os dons, que em paz florentes +ornam e absolvem da conquista os loiros? +¡Que imperios teem cahido! e tu, tu ousas, +hoje ainda, aspirar á eternidade!!... +Talvez bem perto os seculos se cheguem, +que hão-de ver cego arado andar lavrando +tuas cidades de esquecido nome, +e o rebanho indiff'rente apascentar-se +sobre os teus tribunaes, theatros, praças. + + + * * * * * + + +Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo, +Lusitania, que á borda do Oceano +brilhas qual deusa em majestade e em graça. +Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes +entre tropheos em pó, lavada em sangue. +Deshonrada Cleópatra, inda és bella, +mas já nas veias te circula a morte. +¡Ai de quem nutre as áspides no seio!... + + + * * * * * + + +¡Ó Patria, ó Patria, com que voz tão baixa, +com que pejo te expróbro! ¡Ah! se podéres, +perdôa meu furor, vê só meu pranto; +ó Patria, ó mãe, ó misera querida!... + + + * * * * * + + +¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que seria? +¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são homens +que nos matam irmãos... ¡Alerta!... oiçâmos... + +.............................................. + + + + + +IX + +O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO + + + Dia em que o Poeta plantou por suas mãos um cedro no pateo da + residencia parochial da Castanheira do Vouga + + +(FRAGMENTO) + + + +.......................................... + + Se, de teus annos na madura força, +a mão que te ora planta inda fôr viva, +essa mesma, já trémula e caduca, +no tronco te abrirá, com pio exforço, +graciosa capellinha, onde sorria +um San-João, o Santo alegre do ermo, +trajo de pelles, juvenil frescura, +olhos nos Ceos, aos pés cordeiro branco. + + + * * * * * + + +N'essa noite poetica e devota, +em que o praser, centuplicando aspectos, +povôa, anima, encanta o mundo inteiro, +agua e terra, ar e ceo, tudo é macio, +em que a velhice, a mocidade, a infancia, +sympathisam no vago da alegria; +quando n'alma insaciavel de delicias +se juntam, com mistura inexplicavel, +ao saudoso passado, aos bens presentes, +as mil visões do esplendido futuro; +quando em laço phantastico se aggregam +da vida e eternidade os pensamentos, +gosos, superstições, fraquezas, cultos, +qual ramalhete de cipreste e rosas +na caprichosa mão das feiticeiras; +n'essa noite, das noites invejada, +a ti concorrerão por toda a parte, +té das aldeias do horizonte extremo, +dançantes bandos que a viola guia. + + + * * * * * + + +Verás girar seus bailes clamorosos +em redor das estrídulas fogueiras; +ouvirás os seus cânticos em côro +devoto e ennamorado. A bomba foge, +zune fugindo, e sollapada estoira; +o buscapé no ar caracolando +morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos, +dispersa os grupos, gasta-se raivando, +e entre os risos rebenta atroando os ares; +ali circula em vórtice perenne +a roda leve espadanando incendios, +chovendo oiro luzente e estrellas alvas; +aqui floreia o fúlgido valverde, +vesuviosinho que arremette ás nuvens; +arranca o vôo e vai rugindo aos astros +o ignívomo foguete estrepitoso. + + + * * * * * + + +¡E a musica entretanto! ¡e as doces falas! +¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta! +¡e essa mão dada a furto e a furto acceita! +¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes +da meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada! +¡e as sortes que a fortuna extrai ás vezes, +e muitas mais a próvida malicia! +¡e a fonte que amanhece entre descantes, +e pasma rindo de se ver coroada +de festões verdes e entrançadas flores! +¡Que noites, que alegrias, que triumphos, +te aguardam no porvir, me estão na mente![9] +............................................ + + + + + +X + +O MOSTEIRO + + + +Vós, que sois do amavel sexo +ardentes adoradores, +que girais de bella em bella, +qual leve abelha entre as flores, + +que sabeis n'um só momento +a mil deusas incensar, +e pareceis de ternura +não poder-vos saciar, + +mancebos, o mundo é vosso; +mil bellas o mundo tem; +mas não choreis as que á sombra +repoisar das aras veem. + +Se um jardim, florído, immenso, +encontrais na sociedade, +¿que importa que poucas rosas +lhe furte a mão da piedade? + +poucas rosas, que dispostas +vão depois na solidão +lançar mais doces perfumes, +seguras de extranha mão. + +Vagae, vagae livremente +nos jardins da Idália Venus; +segui as Nymphas e as Graças +pelos seus bosques amenos; + +os prazeres vos rodeiem, +os jogos em torno vôem; +a mocidade vos ria; +espêssas rosas vos c'rôem; + +¿que falta aos desejos vossos? +¡ah! soffrei, sem murmurar, +ver d'entre os vergéis florídos +poucas pombas desertar, + +poucas pombas, que innocentes, +e temendo o caçador, +vão nos ermos solitarios +buscar um fado melhor. + +Do Libano opacos cedros, +de Sião bosque tranquillo, +vós, palmeiras de Idumêa, +prestae-lhes seguro asylo. + +Estranhas vistas não turbem +os seus piedosos segredos; +contentes á sombra vivam +dos sagrados arvoredos. + +Silencio, paz, e ternura, +alva estrella de innocencia, +e a vista de um ceo risonho, +lhes doirem toda a existencia. + +Murmúrio de castas fontes, +perfume de simples flores, +lhes paguem jardins que infestam +os abutres e os açores. + +Eu vos lamento e vos chóro, +insensiveis corações, +que de um mosteiro entre os muros +não vêdes senão prisões. + +Córae da vossa loucura. +Correi a ver de mais perto +o Eden recatado ao mundo +no seio d'este deserto. + +Modestas virgens o habitam, +que só não teem liberdade +de colher em frutos de oiro +as festas da sociedade. + +Segui-me, segui-me affoitos, +entremos. Abriu-se o templo. +Seus ermos, ao mundo ignotos, +inteiros d'aqui contemplo. + +¿Não vêdes sobre os altares +com graça engrupadas flores +lançar torrentes de aromas, +brilhar co'as mais vivas cores? + +N'esses prados invisiveis +tambem pois se eleva a aurora; +sol, e zephyros, e fontes, +lhes dão sorrisos de Flora. + +Essas pois, que vós julgaveis +desgraçadas prisioneiras, +teem praseres, teem delicias, +teem jardins, são jardineiras. + +Vêde ornar formosa Imagem +rico manto que fulgura, +de oiro e sedas matizado +com vistosa bordadura. + +Vêde a grinalda florida; +vêde o ramo; estes jasmins, +estes lirios, estas rosas, +não são já de seus jardins. + +Não devem sua existencia +nem á terra nem ao Ceo, +e nem zephyros nem fontes +serviram no augmento seu. + +Formou-as arte engenhosa; +poude mais que a Natureza; +deu mais vida ás suas flores; +prestou-lhes egual belleza. + +¿Sabeis, que mãos feiticeiras +obraram prodigios taes? +eis o trabalho e os recreios +d'essas piedosas Vestaes. + +Ellas no côro apparecem; +e, ao som dos orgãos divinos, +de sua alma aos Ceos se elevam +devotos brilhantes hymnos. + +Innocentes e macias, +d'estas vozes a mistura +sem perturbar os sentidos +infunde n'alma ternura. + +Em seus canticos não reina +terreno vulgar affecto; +é mais puro, é mais sublime +de seus amores o objecto. + +O pensamento que as ouve, +sai da térrea habitação, +deixa os ares, das esphéras +atravessa o turbilhão, + +vê do Empyrio as portas de oiro +abertas á humanidade, +rompe audaz, vai submergir-se +no fulgor da Divindade. + +Cessa a musica, e de novo +volve a mente ao patrio mundo; +mas dos virgineos desertos +primeiro se arroja ao fundo. + +Lá divisa, em liberdade, +nas livres tranquillas horas, +dadas a cantos diversos +estas formosas cantoras. + +Na sombra d'aquelles bosques, +n'aquelles molles passeios, +tambem pois das Musas entram +os aprasiveis recreios. + +Olhae por fim seus aspectos, +¿Não vedes vós a bondade, +a alegria da innocencia, +as virtudes da piedade? + +Eis os Genios que lhes tornam +encantadora a existencia: +as virtudes da piedade, +os praseres da innocencia. + +A amisade entre ellas reina; +¿os encantos da amisade +não prestarão, por ventura, +delicias á soledade? + +Mas basta, insensatos, basta; +á scena se corra o veo; +não profanem vossos olhos +mais tempo os átrios do Ceo. + +Ide no mundo esquecel-as, +em vez de as irdes chorar; +e o vosso mundo vos baste, +como lhes basta um altar. + +Mas esperae; respondei-me; +consultae vosso interior: +¿sois ditosos co'os sorrisos +de um falso inconstante amor? + +¿Sabeis vós o que amor seja? +¿Satisfaz-se o coração +com esses fogos incertos, +e essa eterna agitação? + +¿Não virá talvez um dia, +em que, mais sabios, queirais +unir os vossos destinos +á melhor d'entre as mortaes? + +¿Como a haveis de achar no mundo, +no mundo, cujos enganos +vós conheceis, ajudastes, +seguistes, por tantos annos? + +Tremereis de um laço eterno. +A vossa pena consiste +em pensardes que a virtude +que não tendes, não existe. + +Então aqui vos espero, +n'estes quietos retiros. +Estes muros que insultaveis, +ouvirão vossos suspiros. + +Entre estas virgens mimosas, +que severa educação +forma, longe dos humanos, +á sombra da solidão, + +viréis procurar o objecto, +cuja ternura innocente +vos deve tornar a vida +risonha, pura, e contente. + +Não detesteis um recinto, +onde Amor, onde Hymeneu, +onde um Genio, amigo vosso, +vosso thesoiro escondeu. + +Pensae, pensae que ali vive, +cresce em virtude e talentos, +e em graças, aquella que ha-de +doirar os vossos momentos. + +Qual arbusto delicado, +que a viçosa louçania +mostrar em seu proprio clima, +em seu proprio ceo, devia, + +mas foi por mão inimiga +trazido a estranhos logares, +onde murcho cederia +a influxos de infestos ares, + +se da estufa compassiva +lhe não fosse aberto o seio, +onde vegeta e floresce +de arbustos eguaes no meio; + +ali não receia as neves; +não treme da tempestade; +gosa o sol; vive no mundo, +vivendo na soledade; + +de extranhos somente é visto; +tem louvor; é cubiçado; +mas das flores, mas dos frutos, +não é jamais despojado. + +¡Mil vezes feliz, mil vezes, +quem ousa, á luz da verdade, +queimar a máscara d'oiro +ás larvas da sociedade! + +Medrae, sagrados mosteiros; +medrae, desprezando a inveja; +jamais fulminar-vos possa +calumnia que em vão troveja. + +Brilhae, como ilhas florídas, +no meio do mar profundo +de vicios, crimes, e horrores, +que alaga, que abrange o mundo. + +Sêde o asylo das virtudes, +do Eden a propria entrada, +o enlace dos Ceos co'a terra, +do Empyrio a sublime escada. + + +Coimbra--1826 (?) + + + + +XI + +SANTA MARIA EGYPCÍACA + +(Fragmento de um poema) + + + +......................................... +Prostrada aos pés da Cruz, ante a caveira, +jaz solitaria a Egypcia. Rios descem +de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam, + + + * * * * * + + +¿Tão nova, e isenta? ¡Oh! não; mudou de amores. +Dos primeiros só guarda a dor e as penas; +mas os novos, os ultimos, protesta +conserval-os em vida, e em morte havel-os. + + + * * * * * + + +Té aqui, pela alma escura só lhe ardiam +relampagos dispersos; derretido +raio dos Ceos lhe côa pelas veias. + + + * * * * * + + +Brilhou no mundo como a flor de um dia. +Os soes vivos, os ventos importunos, +lhe ameaçavam fim; ruins borboletas +captivas da belleza iam murchal-a. +Imprevisto invisivel jardineiro +a tempo a salva, e a transplantou no ermo. + + + * * * * * + + +No mundo, sobre o abysmo, hontem folgava +impróvida e leviana; hoje pranteia +na solidão, mas sob um Ceo que a espera. +As cidades, em que ídolo brilhára, +inda a chamam em vão, e em vão a aguardam. +De um lustro que a houveram, ¡quantos lustros +lhe volveram saudade! + + + * * * * * + + + Em viço de annos, +e mais bella que as flores todas juntas +das dezassete suas primaveras, +qual fugaz sonho de manhan de estio, +foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde. +Murcharam festas; esmorecem danças; +os banquetes, diffusos pela noite, +já não veem despertar ternura e risos. +Nas roseiras intactas se desfolham +os botões das grinaldas; o alaúde, +que falou tanto amor nas mãos da bella, +discorde jaz, e mudo... + + + * * * * * + + + Ella, entretanto, +co'os mimosos pés nús calcando areias, +desornado o cabello, envôlta em pelles, +timida, envergonhada, pesarosa, +vai caminho do Ceo co'a fronte baixa. +Mil vezes á avesinha se compára, +sem família, sem lar; corre erradia; +¿não ha-de ambas manter a paz que é de ambas? +Beija a caverna frígida que a hospéda, +e agradecendo este hórrido paraizo +ao Deus que lh'o depára, esquece o mundo, +ou sem saudade e com horror o aviva. + + + * * * * * + + +Ai coração tão amplo, onde estuava +mar de affectos sem conto, escoado agora, +¿quem o ha de encher? ¡em solidão tão funda! +¿quem o ha-de encher? Já o enche o que enche tudo, +o que brilha na luz, no sol, nos astros, +corre nos aquilões, anima os troncos. + + + * * * * * + + +Só conversa com Deus, e a Deus só ouve. +Este seio, estas tranças desatadas, +são brinco só do vento do deserto. +Esta mão, tão mimosa e tão querida, +só procura, excavando a terra ingrata, +a amorosa raiz, ou já se encurva +para dar agua aos labios sequiosos. +A aurora a vem saudar já de joelhos. +Não ha um sol, não ha na noite um astro, +que não saiba os seus ais e eternas preces. +Nem que passe o chacal, a hiena, a onça, +foge, ou quebra os devotos exercicios. +Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos; +e a Estrangeira não treme; ora, e descança. + + + * * * * * + + +Ao fresco desmaiar da extrema tarde, +quando os raios do sol já mal doiravam +da longinqua palmeira o incerto cume, +¡que vezes, assentada, e sustentando +na eburnea mão o pallido semblante, +atraz do astro fogoso e fugitivo, +mandava o coração, mandava os olhos! + + + * * * * * + + +--«Além--dizia--além, n'esse Occidente, +corre o santo Jordão delicias minhas, +que o Salvador banhou, que eu passei mesma. +Talvez aquella nevoa que lá brilha, +mudada em rosa, em purpuras, em oiro, +seja da santa veia alegre filha, +Além... Jerusalem, Sião, Judêa...» + + + * * * * * + + +E a taes nomes, enxames de memorias, +de saudades, de affectos, lhe adejavam +pela alma, alegre em parte, em parte escura. +Raro, mas inda ás vezes lhe assomavam +no involuntario somno ideias meigas. +Inda, uma vez ou outra, o amor banido +entrava de relance o antigo alvergue, +e apóz elle os passeios namorados, +os theatros esplendidos, as galas, +as mezas rindo, os bailes desenvôltos; +e as victorias, e as chusmas dos praseres, +como á sua rainha vão saudal-a. +Acordava sorrindo, a Cruz fitava; +e atirando se á terra, e sôlta em chóros, +pagava erros não seus com dor bem sua. + + + * * * * * + + +Taes se lhe vão no ermo deslizando +dias e annos, sem ver na areia impressos +mais vestigios que os seus. + + + * * * * * + + + De tempo em tempo, +só vê talvez, ou ver presume ao longe, +do horisonte nas sombras pavorosas, +o ténue pó da immensa caravana, +que vai de Alépo á Méka em certa estrada. +Por ella ora, e entre o orar lamenta +a devota fanática impiedade. + + + * * * * * + + +Tal vai manando a limpida existencia. +Egual ao ramalhete que desmaia, +e se esfólha no altar entre os perfumes, +tal, sem gosto e sem dor, e sem que o note, +perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia +encantos, já seu mal, e mal do mundo. +O juvenil das formas exteriores +concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas +se esconde um coração de amor não farto. + + + * * * * * + + +Quem a tivesse visto, e a visse agora, +sentiria o que sente o viajante, +quando, perto d'ali, vai dar co'os restos, +saudosos restos, da gentil Palmyra. +Uma e outra já gloria do Universo; +agora mudas, sós, e deslembradas, +e socias no deserto, e eguaes no exemplo. + + + * * * * * + + +Meio seculo a viu prantear sosinha +annos ligeiros da fugaz infancia. +Ao fim da gran carreira, o Ceo lhe envia +o solitario Zózimo, como ella +ancião virtuoso, e habitador das covas, +que lhe oiça a longa vida, a anime, e exforce; +lhe dê perdão e paz de um Deus em nome. + + + * * * * * + + +Pela primeira vez contente e alegre, +ousando olhar os Ceos, + --«¿Trareis,--lhe disse-- +á pobre peccadora o manjar de Anjos?» +--«Sim.» + E partiu. + Com vista prolongada +ella o segue; co'os olhos no deserto +o espera todo o dia; ¡e este é tão longo!... +¡tarda tanto o bom hóspede!... + + + * * * * * + + + Passou-se +um anno inteiro. É elle agora; é elle; +conheço o fraco andar que o zelo apressa, +e as cans, e a calva, e as faces penitentes... + + + * * * * * + + +Chega; clama; a caverna não responde; +grita, e só ouve a si. Olha em redondo, +vê-a jazer na areia, e a areia escrita +por mão trémula, errante, ao que parece: + + +Bom Zózimo, por santa caridade +enterra o corpo da infeliz Maria. +Aqui morri no dia em que te fôste. +Encommenda-me a Deus, e Deus t'o pague. + +............................................ + + + + + +XII + +EPISTOLA + +Ao meu amigo o Desembargador Manuel Venancio Deslandes + +(NO DIA DOS MEUS ANNOS) + +FRAGMENTO + + + +Em torno ao teu amigo estão fervendo, +Deslandes meu, na hora em que te escreve, +de uma festa caseira o reboliço. + + + * * * * * + + +Bem que alveje de neve o Caramulo, +e um frígido suão de lá nos venha, +ninguem hoje de frio aqui se queixa. +Não descança nem pé, nem mão, nem lingua; +o sumptuoso lar arde em tres fógos; +o forno se afogueia; a branca meza +vai-se de loiça e vidros alegrando. + + + * * * * * + + +Uma estuda em compôr as sobremezas; +outra enrama de loiro alta ferrugem +das vigas da cosinha; esta, sizuda, +de riscado avental e nus os braços, +com importancia e afan revira espêtos; +aquella, anda scismatica, e raivosa +de eu nascer em Janeiro, um mez agreste, +que além de um alecrim, de umas violetas, +nascidas por engano, além de rosas, +frágeis, sem cheiro, e languidas, não cria +com que se enflore a meza dos meus annos. + + + * * * * * + + +¿Porque é, quando a sorrir divagam todos, +quando só para mim se andam tecendo +estas pompas domesticas, agora +que a potente amisade em meu obsequio +para tudo fazer até fez estros; +agora, emfim, que aos raios da alegria +não ha um coração que se não abra... +¿por que se fecha o meu? ¿Dará (não creio) +da Natureza o luto um certo assombro +ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado +d'esta patria amargura, a filtre aos gostos, +qual vaso que azedado a tudo azéda?... +............................................. + +26 de Janeiro +de 1833. + + +FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA + + + + +NOTAS DOS EDITORES + +AO VOLUME I DO + +PRESBYTERIO DA MONTANHA + + +Da villa da Castanheira--No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de +Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o +sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam +da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella entra em +correição o seu Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja +parochial da invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da Feira, que +rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo tem uma freguezia +dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de Aguadão, que consta de 100 +visinhos. É curado annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu +Prior. Tem este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que +fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes de todo +genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes ordinarios, +Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão da Camara, Juiz dos +Orphãos com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da Ordenança. + +(_Chorographia portugueza_ pelo Padre Antonio Carvalho da Costa.--T. II, +pag. 176--1708.) + + +Castanheira do Vouga--Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de +Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem 803 visinhos. +Está situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S. Mamede. +Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros são do Santissimo, +de Nossa Senhora da Expectação, com sua irmandade, e outro de S. Jorge. +O Parocho é Prior, apresentação da casa do Infantado; tem de renda +400$000 reis. Tem tres ermidas, que são: a do Espirito Santo, a de Nossa +Senhora do Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra são +milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa um Juiz +ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios Aguedão, +Alfusqueiro, e Agueda. + +(_Diccionario geographico_ pelo Padre Luiz Cardoso. 1751.) + + + * * * * * + + +Castanheira do Vouga.--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago S. +Mamede; o Parocho é Prior da apresentação da Casa do Infantado; rende +480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 7; tem 58 fogos. + +Ágadão--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago Santa Maria +Magdalena; o Parocho é Cura da apresentação do Prior da Castanheira; +rende 40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem 102 +moradores + +(_Portugal sacro-profano_--por Paulo Dias de Niza; cryptonimo do Padre +Luiz Cardoso--Lisboa--1767--8.^o--2 vol) + + + * * * * * + + +Castanheira do Vouga.--Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do +Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140 +fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto +administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da +Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um monte proximo +á serra do Caramulo. A Casa do Infantado apresentava o Prior, que tinha +400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz algum vinho, e do mais +pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a 16 de Junho de 1514. Era +cabeça do concelho do seu nome e tinha Juiz ordinario, Camara, +Escrivães, e mais Justiças. Passam pela freguezia os rios Agueda, +Aguedão, e Alfusqueira. + +(_Portugal antigo e moderno_--por Augusto Soares de Azevedo Barbosa de +Pinho Leal--Lisboa, 1874). + + + * * * * * + + +Pag. 11 lin. ultima + +Dapibus mensas oneramus inemptis + + +Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto é, vivemos, sem +comprar, das nossas lavras proprias. + +Citação de Virgilio (_Georgicas_, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina +variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é: + + + _....Sero que revertens +nocte domum, dapibus mensas onerabat inemptis._ + + +Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que vamos ouvir +na traducção de Castilho: + + + ......Alembra-me que outr'ora, +lá por onde o Galeso arrasta a veia escura +por entre loiros chãos de cereal cultura, +junto á Ebália cidade, a de torreados muros, +conheci um corycio em annos já maduros, +dono de uma chanzinha ali desamparada. +O pobre do torrão de si não dava nada: +nem pasto para bois, nem para um fato hervinha. +Sumitico de pães, escasso para vinha, +era um sarçal fechado; e no sarçal, comtudo, +o bom velho, a poder de diligencia e estudo, +tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno +com seve de jardim para maior adorno, +alvos lirios, verbena, e papoilas de prato. +Não trocára co'os Reis seu parco haver tão grato. +Recolhia ao casal já noite; e, ¡que riqueza +de iguarias de graça a assoberbar-lhe a meza! + + + +Pag. 18 lin. 3 + +Passámos n'uma bateirinha, remada por uma velha moleira da margem, o +víçoso rio de Bolfiar. + + +Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O +caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos modernos, +deram cabo da antiga viagem tão pittoresca. + + +Pag. 36 lin. 20 + +Uma especie de zimborio de doze palmos de altura. + + +Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que +primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação do Reino. + + +Pag. 37 lin. 3 + +Uma desconforme loisa inteiriça horizontalmente aguentada nos ares por +esteios de pedra. + + +Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em muitas +partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da sciencia moderna. + + +Pag. 42 lin. 6 + +A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucídez. + + +O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho o +seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas _Excavações poeticas_ o +que elle diz do velho camponez Francisco Gomes, creado da casa, e «um +dos mais chapados classicos» que elle jamais encontrou. + + +Pag. 58 lin. 7 + +Lia, Rachel e Rebecca + + +Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel. Achando-se Rachel +ajustada para casar com Jacob, teve Labão astucia de lhe substituir Lia, +apesar de menos formosa. Foi mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá, Issachar, +Zabulon, e Dina. + +Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve +José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que ainda se +conserva e mostra o seu tumulo. + +Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de +Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob. + +Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan, +são encantadoras de singeleza e graça nas descripções que d'ellas nos +deixaram os Livros santos. + + +Pag. 72 lin. 15 + +Uma pobre mocinha ovelheira + + +Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era +Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta na +sua _Chave do enigma_. + + +Pag. 80, lin. 9 + +Filinto e o entrudo + + +Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom Francisco +Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da velha +Lisboa. + + +¡Viva o meu Portugal! ¡viva a laranja +que derruba o chapeo! + + +exclamava elle em París, ao lembrar-se das grosseiras costumagens dos +Portuguezes, felizmente meio polídas já hoje. + + +Pag. 82 linhas 6 e 8 + +Citações latinas + + +Essas duas são de Virgilio (_Eneida_, Livro I) + + +_Fronte sub adversa scopulis pendentibus antrum; +intus aquae dulces, vivoque sedilia saxo; +nympharum domus_. + + +Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um antro; e lá +dentro correm aguas doces, e apparecem assentos como que talhados na +rocha viva; verdadeira habitação de nymphas. + + +Pag. 87 lin. 21 + +As rogações de Maio + +Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado, +fallecido no anno 475. + + +Pagina 99 linha 23 + +O ubi campi! + + +Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II das _Georgicas_: + + +_Rura mihi et rigui placeant in vallibus amnes; +flumina amem silvasque inglorius. O ubi campi +Spercheosque, et virginibus bacchata Lacaems +Taygeta!......_ + + +Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles; +encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou. ¿Onde estais, +campinas? ¿onde estás, rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas +alegres virgens espartanas? + +Castilho traduziu assim este trecho: + + +Então amar só quero os rios e arvoredos, +de glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos! +ai ribeiras do Spérchio, oiteiros do Taygéto, +das virgens de Lacónia ás órgias predilecto, +¿onde, onde me estais vós?.... + + + +Pag. 102, lin. 10 + +Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in urbem + + +Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das _Tristezas_. +Dirigindo-se ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no +desterro, entre os gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno +livro; has-de entrar sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal. + + +Parte, ó meu pobre livro; irás sem mim, sosinho, +correr na gran Cidade incognito caminho + + +traduziu alguem + + +Pag. 107, lin. 17 + +Zimmermann + + +João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de Berne, a 8 de Dezembro +de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi abalisado sabio. Nomeou-o +medico da sua camara em 1768 el-Rei de Inglaterra; el Rei de Prussia +Frederico, o grande, foi tratado por elle na sua ultima doença, e deveu +allivios aos seus cuidados intelligentes. O Principe russo Orloff foi de +proposito com sua mulher consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se +a S. Petersburgo falou d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina, +que em 1784 procurou attrahir á sua côrte aquelle luminar da sciencia. +Elle pediu excusa, porque a vida mundana não condizia com os habitos que +tinha creado o seu espirito; não se ofendeu a eminente Princeza, e +conferiu-lhe a ordem de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu +morrer-lhe entre os braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho. +Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de outras +obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa, publicou em +1756 o seu _Tratado da Solidão_, onde todas as vantagens moraes do +isolamento são defendidas com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia +exagerada. + + +Pag. 108, lin. 6 + +O Passeio publico e o Marrare + + +Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico, +riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas +Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar +os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos Restauradores até +á extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No sitio exacto +do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande tanque redondo +(hoje no jardim da Graça). + +O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no Chiado. + + + + +ADDITAMENTO + + +Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu bom irmão, +pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres sermões que ainda restam +d'este. As suas obras ineditas mandou o proprio Doutor Augusto Frederico +de Castilho que lh'as queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as +seguintes: + + + I--O sermão de S. Pedro, ou da Fé; II--O sermão da esmola, ou da + Caridade; III--O sermão nas exequias do senhor D. Pedro IV; IV--A + pastoral dedicada ao seu rebanho episcopal de Beja; V--Uns versos + na _Primavera_ de Antonio Feliciano. + +-----File: 111.png---\-----------------[Blank Page] -----File: +112.png---\----------------- + + + + +SERMÃO + +DA + +ESMOLA OU DA CARIDADE + + + Prégado na 5.^a dominga da Quaresma de 1839 na Sé de Lisboa pelo + Conego Arcipreste da mesma Sé, o Doutor de capello em Canones + Augusto Frederico de Castilho + + + +_Jesus abscondit se, et exivit de templo._ +Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo. + + + +De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de +Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por escondido, +deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu serviço. Jesus vivo, e +na occasião de que trata o Evangelho, estava no mundo, e faltava no +templo. Jesus, hoje, por dois milagres de fé e amor, por duas +eucharistias, está no templo, e mais no mundo: no _templo_, encoberto no +Sacramento; no _mundo_, encoberto nos seus pobres. N'uma e n'outra parte +o devemos servir com egual zelo. + +Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer á fome e ao frio +os necessitados, não é de christão; é fé morta. Soccorrer aos infelizes, +sem crer (se tal é possivel) n'Aquelle que elles representam, é caridade +morta; tambem não é de christão. + +Vós pareceis christãos pela fé, pois que vindes á casa de Deus; vós o +pareceis, mas não o sois, porque essa fé é morta; cumpre que se +resuscite pela caridade. + +Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que é a caridade +pratica e activa; é o christianismo na sua parte mundana, o culto do +Verbo humanado aos olhos de todos, a religião de todas as religiões, a +philosophia de todas as philosophias, o axioma para todos os +entendimentos, o dogma até para o atheismo. O objecto é o mais +accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa faria á +vossa piedade, se vos exigisse a attenção. + + * * * * * + +Alma e coração, discurso e affectos, convencem e persuadem como dever a +esmola. Não creou a Natureza irmãos privilegiados, e morgados na familia +dos homens: para uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para +outros, encargos de miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou +malicias, estabeleceram essa desegualdade; e andou tambem ahi traça +recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se uns de outros +não carecessemos, não nos amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos, +não fôramos virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, +desentranhada de nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e +purissima fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos, pois, a +Natureza; a Providencia nos desegualou; e n'esta contradicção apparente, +é que Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus +conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça, quiz que tivessemos uma +norma de egualdade; na Providencia, isto é, na sua caridade, que +aprendessemos a restabelecer, quanto em nós coubesse, aquella egualdade +primitiva por mutuos soccorros. + +O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho mimoso da +Providencia, depositario e executor da Justiça de Deus, transumpto e +argumento de sua bondade e misericordia. + +O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o patrimonio dos +pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo injustiça e barbaridade, egual á +do depositario que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que +converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a +substancia do seu pupillo; é ainda mais: é declararmo-nos inimigos de +Deus, desacreditando, e dando, de certo modo, quebra áquella +Providencia, cujos éramos dispensadores e supplementos; áquella +Providencia, que não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes +pelo ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae Celeste. + +Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra bello, generoso, heroico, +brota (não duvidemos) da caridade. Deus, para tornar as virtudes caras, +e accessiveis até aos mais faltos de discurso, não creou a caridade, +senão que a tirou de suas proprias entranhas, e orvalhando-a sobre a +terra, lhe deu por benção que de todas as mais virtudes fosse ella +semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos +ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato, instinto (¿por +que o não diremos?), instinto moral. + +Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais profundo, mas tambem o mais +extenso de todos os affectos, para que, sobre encher-nos o coração de +virtude, ella nol o podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, +nol-a podesse tornar permanente. + +¡Oh! ¡que maravilhosa não é esta caridade, que em todas as edades, e em +todas as circumstancias da vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre +lhe renascem objectos, e infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, +como elle, toda a Natureza creada, passa dos homens aos animaes brutos, +d'estes aos proprios entes insensiveis, adivinha infortunios, inventa e +persuade soccorros, até para entes que os não sabem agradecer, que os +não requerem, que os não precisam! + +Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos; momentos em +que se não sabe conter, nem governar; suspiros, lagrimas, e desalentos; +enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas, como tudo lhe nasce do +amor e compaixão, tudo é terno, tudo é mavioso e consolador. Virtude de +virtudes, virtude unica onde não ha excessos. + +Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras +primas da creação. ¡Ah! ¡que se jamais se podessem tributar ao homem +cultos, que só á Divindade se devem, ninguem tanto os merecêra, como +esses que, possuindo os thesoiros dos bens terrestres, os derramam no +seio dos infelizes! + +Porém, meus irmãos, não é mistér uma brandura de animo requintada, para +nos movermos com os infortunios dos nossos semelhantes, e +procurarmos-lhes o remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um animalsinho, +morto de fome, transido de frio, desamparado ás inclemencias de uma +noite de inverno, e invocando a nossa piedade com aquelles gritos +lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes para dizerem as +suas dores, qual de nós se não sentiria profundamente condoído, não +correria a abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah! ¿e +deixariamos no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso +irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens possuimos, +cuja felicidade é tão travada com a nossa, e cuja desgraça tem sido +talvez effeito da nossa injustiça, da nossa barbaridade? + +¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o coração... ¿que +digo? que o trazeis defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores +mais doridos da Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se estão +sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis, ¿que uso mais +util farieis vós de vossos bens, do que seria o acudir-lhes? Na vossa +avidez insaciavel (semelhantes ao inferno, que, por mais victimas que lá +chovam, não cessa de clamar _affer_, _affer_, mais e mais), uns de vós, +ó ricos do mundo, se contentam com a visão beatifica dos seus cofres; a +sua alegria, a sua felicidade, o seu proximo, o seu mundo, a sua alma, o +seu Deus, tudo seu ali jaz; ali enterraram o coração, e o conservam mais +duro, mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que +amontoaram; em quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus +thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por +luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem, sem destino, sem uma só +utilidade real. Mais loucos ainda e mais infelizes, outros emfim, +parecendo arrenegar dos beneficios da Providencia, os cofres que ella +confiou nas suas mãos, elles os despedaçam e espalham, não só sem +vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de +si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios, +abysmaram a rasão, destruiram as forças, aniquilaram a saude, +anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus irmãos, ¡que de inquietações, de +violencias, de trabalhos e de dores, para comprar uma eternidade +desgraçada! ¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o +inferno! + +Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses dinheiros de +maldição, preço dos tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os +dias se renova nos seus pobres, que vós entregais e desamparais sem +piedade, com esses dinheiros de maldição, ides comprar um arrependimento +esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o odio dos homens, a +vingança de Deus, os tormentos eternos! + +¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara opulencia! Injustiça para +com os infelizes, cujos bens sonegamos, cujos lamentos não queremos +escutar, cuja morte mesmo antecipamos muitas vezes.--Injustiça para com +Deus, de quem recebemos esses bens, com a condição da caridade, e cuja +Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos beneficios e +esmolas, desde que entramos no mundo.--Injustiça para comnosco mesmos, a +quem fechamos as portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os +sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de toda a +felicidade.--Injustiça, emfim, para com todo o genero humano, de quem +nos afastamos, a quem não queremos pertencer, de quem até nos declaramos +inimigos. + +¿E para onde fugirão os nossos olhos, que lá não vá a miseria publica +perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos desgraçados, porque +nunca a nossa immoralidade foi tão barbara. Realisou-se sobre tantos +irmãos nossos parte grande das maldições, com que Deus, por bocca de +Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por todas as guaridas da +indigencia; visitae os tugurios e choupanas miseraveis das aldeias, das +maiores povoações, e até das cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e +variedade de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e +doentias, mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de +pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas; ¡quantas se não +chamam poisadas e casas, que antes são covas, masmorras, ou jazigo de +viventes! ¡de quantos não é cama a terra humida, e vestido o que nem +lhes encobre a nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos, +chorando e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais +infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na Natureza, além do sol +que os aquece, e do ar que respiram, e começam a conhecer tão cedo a +dureza dos homens, obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar +por si mesmos com que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas +tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas sem protecção, em quem, sobre o +desamparo e dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus bens +arrancados por crédores, e quantas vezes por ladrões, debaixo do nome de +crédores! ¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores ás suas +forças, ou á sua creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com o +suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está derretendo e +mirrando! ¡Tantos enfermos expirando á mingua, sem medico, sem +tratamento, sem remedios, sem enfermeiros, sem alma viva que os console, +que lhes suscite as ideias da Eternidade, e até sem um lençol que os +amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços, e do uso dos sentidos +mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados para a borda dos +caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol, as chuvas, os +frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros de outra +especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem lar, sem nada, nem um +amigo, sósinhos em meio de tanto mundo! + +¡Mas que me canço eu a enfeixar o que não tem conta! E quando de taes +miserias conseguisse fazer aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras +não ficariam de fóra, mais profundas, e mais miserias, porque ellas +mesmas refogem e se escondem! As ruas e as praças, com todos os seus +clamores e penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie +está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não sei que reflexo de +verniz e doirado, um não sei que ruido festivo, um perfume de opulencia +e sabores, um certo sorrir, um raio de sol, um aspecto de céo azul, uma +vida e uma esperança, que são disfarce, e mascara da existencia do povo, +real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida. Sahindo-se para a rua, +deixam-se á porta as lagrimas, e cuidados verdadeiros, e toma-se na +bocca e faces o contentamento postiço. Por fóra andam os corpos em toda +a sua gala; mas dentro, por todo esse immenso _dentro_, nas entranhas +d'esse infinito massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos +sem termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão chorando +milhares de corações, estão-se desesperando milhares de almas. + +Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira para se +recrear, por esses caminhos tão lageados de marmores, tão ataviados de +vidros de cores, de metaes brilhantes, de todas as espumas mais formosas +do luxo, se Deus permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos +por entre que duas montanhas de infortunio, vai caminhando! ¡oh! ¡como +de repente, semelhante a Pharaó, na estrada do Mar Vermelho, desabariam +de todas as partes a afogal-o ondas e mares de dor! + +Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da caridade, +¡quantos pobres envergonhados que abafam soluços e gemidos entre as +quatro paredes da sua casa! Nas horas da noite, quando das dansas, dos +jogos, dos espectaculos, e de peores logares, saem torrentes de +mundanos, em quem parece que o tempo, o dinheiro, a saude e a fama pesam +insoffrivelmente, ¡que de vezes se lhes não atravessam diante uns +phantasmas de penuria, em fórma já de mulheres, já de meninos, já de +anciãos, a quem a vergonha do sol não consentíra sahir dos seus +sepulcros! De um portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, +nos saem as suas vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de +que não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo a mão a +receber a esmola, e a abençoar a caridade; algum vos esconde um rosto, +que, em melhores dias, tinheis visto brilhar á luz da prosperidade. + +Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os +dias, e não temem o aspecto da noite, porque já não podem ser mais +infelizes, é Deus quem nol os envia ao encontro, menos por elles que por +nós, menos para alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem +algum affecto ao coração gasto, algum pensamento fundo e importante á +alma dissipada. ¡Felizes vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos +da desgraça, estas embaixadas solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que, +em vez de os repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade, +com a esperança ao queixume, e com a commiseração a quem não cuidava que +no mundo a houvesse! + +--Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que +me desatinam, que me desesperam (dizeis vós), ¿quem me abona a sua +pobreza? e concedendo-lh'a, ¿quem me affirma que não é ella castigo da +sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que vos importa? Se póde ser uma +coisa ou outra, dae; antes lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em +vaso cheio, ou em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a +quem do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe +recusasseis, padecêra n'um dia o que vós não padeceis n'um anno, ou, +para o não padecer, commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle +n'este mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós, que tão de +repente sentenciais o desgraçado que não conheceis, ¿por que vos não +sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a vós? + +_Póde não ser pobre o que vos pede._--Sim, e algumas vezes se tem +visto.--_Póde ter merecimentos para muito mais ainda do que +padece._--Sim, que é homem como vós, e com mais razão do que vós para +aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde ser; ¿mas +examinastes vós se era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a +esmola por tal motivo, ¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a +injuria? ¡Ah! em quanto sentenciais uma alma que não conheceis, e +condemnais o vosso semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais +razão não tem elle para condemnar a vossa alma, que vós mesmos lhe +descobristes inteira com uma só palavra! + +Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a concessão), que todos esses +andam expiando peccados seus; são até criminosos e facinorosos; que nem +um d'elles tem necessidade; são até abastados e opulentos; que todo o +mendigo é um salteador e um millionario. ¿Estais contentes com a +concessão, ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o não ha. +Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos apresentar pobres, de uma +pobreza processada e demonstrada, que vos não importunam nem se queixam, +dos quaes muitos, dos quaes inteiras classes, não mereceram, nem poderam +merecer, o seu estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito que o +sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas mães; ahi os +tendes, que a Misericordia mesma não basta a amamental-os e vestil-os, +e, de seus pobres bercinhos, caem em cardumes nas sepulturas, e vôam a +ir depôr na presença de Deus, contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes +dado a vida por um peccado, por um peccado ainda mais mortal (se é +licito dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a morte. + +¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem innocentes. +Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida, onde se queria educar e +felicitar um seculo novo, e que, por falta de caridade publica, +morreram, depois de tão bem nascidos e esperançosos. + +¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice, tambem e mais desvalida, +onde os soccorros nunca são sobejos, nem sufficientes; porque muitos +mais são sempre os que batem e choram áquellas portas de refugio, que os +que a estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro á meza do +convite de Deus. + +Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o Senhor chamando o +coração, e por toda a parte vos tem cercado do dever da esmola. + +¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias. + +¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos, a quem +falta pão, lar, vestido, mundo, que o não conhecem, nem elle os conhece; +militares que envelheceram nas armas e morrem á míngua; viuvas e orphãos +de servidores do Estado, a quem se não paga, nem com esperanças. + +¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos politicos +vencidos, em quem não é mister longo exame para se reconhecer a +desgraça, porque é corollario evidente de causas notorias. A terça parte +de uma edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais longe, tem +sido entre nós consumidos em dissenções e odios. Com successivos +terremotos políticos, teem desabado as mais altas torres de fortuna; +desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram arrancadas de +furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes esperanças; os +caminhos trilhados e sabidos subverteram-se; por onde se descia, +sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum +dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de oiro, e o ancião doirado, +que ainda hontem lhe houvera matado a fome, lhe alonga a mão, da margem +do caminho, clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o +presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado; entendo +os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e bens do +futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males extraordinarios, +que não são, para que assim digâmos, nem do homem, nem da Natureza, nem +de Deus, mas sim da mudança, da transformação da fortuna, da fortuna +cega, que, no trocar das mãos, quebra sem pejo, nem dó, nem consciencia, +o que depois todos choram e ninguem concerta. + +Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que não vemos, +pela peior de todas as cegueiras, que é o não querer ver. E quando +d'esta somnolencia, d'este lethargo, d'esta morte do coração, acordamos +algum momento a este som _Esmola a este vosso irmão pelas chagas de +Nosso Senhor Jesu-Christo_, já nos reputâmos muito generosos, se em vez +do silencio ou de uma injuria, lhe acudimos com um _Deus o favoreça_; e +tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos vãos ou +peccaminosos que traziamos; e lá deixámos para traz a Jesu-Christo morto +de fome, a Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o +seu estado de abjecção os não obrigasse á humildade ínfima, se o uso de +soffrer estas repulsas os não tornasse já meio insensiveis, se elles nos +podessem retorquir, «¡Quê! (nos responderiam) ¿Deus que nos favoreça? +Deus nos favoreceu com esses bens que indevidamente retendes; Deus nos +favoreceu com os thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes. +¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis acaso tental-o? ¿que elle obre em +nosso favor um milagre desnecessario? ¿que torne a chover o maná do céo, +não sobre um deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, +que por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas dádivas? Esse +maná vós o possuis, e encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará +que se corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos favoreça, deshumanos? Sim, +sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os merecimentos que +terieis na sua presença em serdes misericordiosos, elle os accumula +sobre a nossa resignação; com os infortunios que nos accrescentais, e os +prémios que rejeitais, se juntarão em nosso favor aos prémios de que a +sua misericordia nos achar dignos.» + +¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza fossemos capazes de +entender os gritos e lagrimas de tantos paes de familias, cujas familias +podem dizer que não teem pae, tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas +desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos +enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos pobres +envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a +significação das suas dôres e desalento, que uma reprehensão amarga da +nossa barbaridade para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão para +com Deus; acharíamos, sim, acharíamos até n'esses lamentos, a expressão +propria com que devêramos deplorar nós mesmos a dureza, antes +ferocidade, dos nossos corações. + +Não só, meus irmãos, as nossas liberalidades atalham todas estas +miserias, mas ainda vão precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre +rapariga, a cuja honra se preparam violentos ataques. O Céo a dotára das +qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou de algum modo desfazer a +obra do Céo, juntando-lhe a pobreza com a formosura. Do seio da +opulencia, um libertino já vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario +da virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e +todas as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que +exaltaram o seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os +seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque; +frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na repulsa, o +merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a seducção, de +mãos dadas com a indigencia... ¿não vencerão cedo ou tarde? Chegou emfim +esse dia; ¡venceu! e com um sorriso infernal applaudiu o seu triumpho, e +a desgraça que consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre +victima. Ali jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo; +ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que, depois de a +desgraçar, chegou mesmo a aborrecel a; ali jaz na mesma indigencia que +d'antes, porém mais infeliz agora; a sua honra fugindo abalou-lhe todas +as outras virtudes. Em odio a Deus e a si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um +refugio no mundo? nenhum, porque o traidor, declarando-se seu cruel +inimigo, foi divulgar o segredo, e exigir esses applausos infames, que +tanto mereceu. ¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, +seriais sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te houvesse a +tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e modesto, onde +vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos homens, ¿não se teria +afastado ainda o raio que reduziu a cinzas o desambicioso edificio da +tua felicidade? + +Além é um moço, que, cançado da dureza dos homens, começa a não conhecer +as leis na sua necessidade. Por toda a parte repellido, julgou direito +prover por si mesmo, e a todos os despeitos, á sua conservação.--«Todos +esses a quem recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não quero a sua +felicidade; mas tenho, como elles, direito de viver.»--Levado assim +pelos raciocinios errados do vicio, ou só por um instinto que lhe +bafejou a injustiça dos homens, começou por pequenos furtos; passou a +maiores; nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; +zombou de todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e +acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o affasta do +precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe tira deante dos +olhos dois futuros que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere +perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas +correspondentes, em si e na sua duração, a crimes de que nunca se +arrependeu, e damnos que nunca tiveram restituição. E quando elle passar +para o patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis: «Não +tenho coração para taes espectaculos;» ¡como se esse mesmo coração não +fosse o seu peor algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso! + +N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade, +mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas +esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os amigos que o +atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que se vê precipitado n'uma +desgraça a que não prevê termo na sua desesperação, insulta o Céo, +blasfema da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe se irá (como +tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender um +laço, por onde arranque uma existencia que o importuna! ¿E a caridade e +a ternura não poderão ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe +rebentar as lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o +coração? ¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e abençoar o pão com que +lhe sustentamos uma vida que lhe fizemos amar ainda? + +¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas não déstes vós ás almas +generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos alcançava uma côroa o +que salvava os dias do seu concidadão, ¡que honras não merece dos outros +homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma vida +infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que já suppunham surdo e injusto! +¡e que até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da +miseria que lhes arrancariam os meios de salvação! + +¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para reconhecermos como bem +real esta doce obrigação da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que +mais fortes motivos não tem o homem christão, para ser esmoler, segundo +as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os deveres da caridade não +são para nós simplices axiomas, ou preceitos da philosophia; não são o +resultado de um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas +vieram não só confirmar, mas dar ainda, se é possível, uma extensão +muito maior a tudo quanto n'esta parte a Religião natural nos havia +imposto. + +Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos modos, até +indirectos, nos não é persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós +todo o thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais +perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo qual +nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as Escrituras); não só nos +adornou de todas as graças que perdemos na desobediência de nossos paes, +mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem (mais +parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma +habitação commoda e feliz. Esse sol que nos allumia o theatro do mundo, +essas estações que lhe mudam as scenas, os frutos saborosos e delicados +que rompem da terra, os vestidos que nos cobrem, o ar que respiramos, o +somno que nos restaura as forças, os prazeres que nos lisonjeiam os +sentidos, os prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do +coração, são outras tantas esmolas, com que Deus proveu desde a +eternidade ao homem, sobre fraco e indigente, ingrato a tantos +beneficios. + +Na sábia disposição com que de mais o Eterno Padre arranjou todo o +grande systema da Natureza, ¿não nos deu Elle uma grande lição de +caridade, estabelecendo em todas as suas obras uma encadeacão successiva +e mutua de dependencias e soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares +liberalisam as suas aguas ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em +chuvas, a terra ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos +mares; e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo +se conserva, se reanima, se restaura. + +D'esta mesma sorte, não só as grandes porções da Natureza, mas ainda os +seus minimos individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e +os soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes á +existencia dos outros. É assim que, por toda a parte envolvidos pela +Natureza, do meio da qual nos elevamos, como obras as mais perfeitas, +não só nos não devemos resvalar a uma condição inferior á da propria +materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade, quanto +nos devemos considerar como entes, cuja conservação é mais importante +para a manifestação da gloria de Deus. + +O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia, +desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de +felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o seu sangue, +lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o Céo e a +terra. + +O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de santificação, e +nos accode com esmolas continuas, desde que abrimos os olhos, até que +deixamos o mundo; pelo baptismo assenta os nossos nomes no livro da +vida; confirma-nos e augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas +vezes quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos anjos; e +accode-nos até com remedios temporaes, á hora em que as portas do +carcere se vão abrir, e a alma sôlta reverter á sua origem. + +Mas não só pelo seu exemplo e meios tão indirectos nos persuadiu Deus a +esmola; não é uma simples recommendação, é um dos preceitos mais +rigorosos:--_Ego proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et +pauperi qui tecum versatur in terra_: Sou eu, é o teu proprio Deus, quem +te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e ao pobre, que lida +comtigo sobre a terra. Esta lei tão clara, tão precisa e absoluta na sua +letra, ¿terá acaso todos esses caractéres que devem sempre manifestar-se +em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e seja o proprio Deus quem nol-a +interprete. + +É _justa e necessaria_: necessaria muito mais ainda para o bem +espiritual dos bem-feitores, do que para o commodo temporal do +soccorrido. A esmola, segundo Jesu-Christo, é um acto de Religião, +conjuntamente com a oração e jejuns; é pois rigorosamente um meio +expiatorio; é um commercio que temos com Deus por meio do nosso proximo; +é uma agua copiosa (diz o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio +das nossas iniquidades; é uma santa usura, em que trocamos bens +superfluos e temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros +que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão sempre +clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas que nunca teem de se estragar +nem de esgotar-se, que nunca nos serão roubadas nem podem ser +consumidas; é um seguro para o dia da afflicção; é finalmente um arrimo +a que nos soccorremos para não cahir. + +Mais: é _util_, considerada mesmo temporalmente para quem a dá. O +Espirito-Santo o disse tambem nos Proverbios: _Aquelle que der ao pobre, +de nada carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas, cahirá tambem +na pobreza._--Eis aqui, meus irmãos, eis aqui patente o terrivel segredo +da vingança divina, quando aniquilla tantas fortunas que pareciam tão +solidamente estabelecidas: _Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil +inanes_. Sim, porque as maldições, ó ricos do mundo, que o pobre vos +lança em segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas +imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca d'elle arredará os +seus olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, +sereis ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos +thesoiros; _et sepultus est in inferno_. E se as vossas riquezas vos são +consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso inferno no +mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa quéda seja mais +espantosa, ou para que os vossos descendentes, que não são culpados nas +vossas iniquidades, não experimentem a punição da vossa dureza, e +recebam juntos esses bens a que irão dar um justo emprego. + +¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes vós, pelo contrario, que homem algum +se arruinasse jámais pelas suas larguezas com os pobres? ¿Não é antes +uma verdade, confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as +familias de mais caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o +Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os prophetas: +«Se derramares toda a tua misericordia sobre os necessitados, e encheres +de consolação almas que gemiam na afflicção, a tua casa se tornará como +um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será tão perenne como a +fonte que a todos offerece os seus licores, e por mais que a bebam nunca +se esgota, nem cessará de correr.» ¿E o Redemptor não disse ainda mais +expressamente: _Date et dabitur vobis_? ¿Não compara elle a retribuição +com que o Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades, com uma medida +avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os lados, que se nos +vasará para o regaço? ¡Oh! não duvidemos: os bens do misericordioso, +repartidos pelos infelizes, são o azeite e a farinha milagrosa da santa +viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a Escritura, comeu ella e a sua casa; +e desde aquelle dia nunca lhe faltou a farinha no pote, nunca o azeite +do vasinho se diminuia. + +Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de bençãos as Escrituras não veem +chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o +Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no mundo, o livre das mãos +dos seus inimigos, o allivie no leito da sua dôr. O que dispersar os +seus bens pelos pobres, viverá de seculo em seculo na memoria dos +homens, abençoado será o seu nome, e n'elle se despontarão as settas +envenenadas da calumnia. _Justitia ejus manet in saeculum saeculi. +Exaltabitur in gloria. Ab auditione mala non timebit._ ¿Que significam +tantas promessas, meus irmãos, tantos premios, tanta abundancia de +bençãos, as glorias do Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem +benefico? ¿Que sacrificio tão importante se vai exigir d'elle? ¿a que +lances heroicos o querem persuadir? ¿que perdas soffrerá que cumpra +contrabalançar por premios de tão alta valia? ¿Exige-se-lhe a +mendicidade e a miseria, em que viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um +exterminio de todas as paixões? ¿uma abnegação de todos os prazeres? ¿as +mortificacões da penitencia? ¿a constancia e morte gloriosa dos +martyres? Não, não. Pede-se-lhe só amor e provas de amor para com seu +irmão; pedem-se-lhe só lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe +intima que dê, com prejuizo seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas +empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e +patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para lhe pedir +só as migalhas superfluas da sua meza. + +¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a vossa! ¡Remunerardes +como sacrificio uma virtude, e acceitardes como virtude o que nada custa +ao coração! ¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres mais doces +da consciencia! ¡Considerardes em mais do que homem a quem só cumprìu +com deveres da humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que +trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já nol-o havieis dado com +essa condição! ¡Acceitardes, finalmente, esses bens frageis, temporaes e +caducos, esses bens que só devemos á vossa liberalidade, como moeda +correspondente em valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros +infinitos! + +Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos nos deveriamos abysmar, +vós me chamais, meus irmãos, vós me fazeis descer ás profundezas da +vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um segredo bem +importante. ¿E não adivinho eu quaes teem sido, desde que enunciei o +thema e objecto do meu discurso, os pensamentos de muitos de vós, da +maior parte, ou antes de quasi todos os que me escutais?--«Feliz +(exclama cada um de vós, no seu coração) feliz de mim, se eu podera +soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me veria de posse do Céo. +Porém Deus não me destinou a mim esses premios e bençãos; e se a esmola +fôra um meio indispensavel de salvação, eu me perderia sem remedio, não +por minha culpa, mas por culpa da fortuna. Todos os meus bens +escassamente chegam para a minha sustentação e da minha casa.»--Assim +pensais; assim buscamos pretextos para illudir todos os preceitos até os +mais terminantes e expressos da Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua +presença, dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa +propria crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu do +Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos, que ahi estão +comvosco. Folgais talvez com a sua confusão; e a doutrina da caridade, a +doutrina de tanto amor, só serve de despertar em vós a insolencia, o +desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa semente se +perca d'este modo; que só a acceite um pequeno torrão de terra, e que em +vez de produzir os bellos frutos do Senhor, a maior parte do seu campo, +ou quasi todo elle, continue a só desatar-se em cardos e espinhos. +Afugentemos as aves d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e +não consintâmos que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por +mais pequeno, da sua terra. + +Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem excepção, vos achais obrigados +a ella; e esta universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o +seu segundo caracter de lei. + +Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a +outra do coração. Tão longe vai, pois, a esmola como a caridade; e para +podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos possuir um coração. ¿Não +tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por tantos +famintos. ¿Escassamente vos chega o pão, mas tendes algumas roupas +superfluas? Cobri com ellas tantos nús. ¿Nada tendes hoje? Promettei +para ámanhan; enchei de esperanças o seio vazio de todas as consolações. +¿São a caso insignificantes os bens que vos restam para os frutos da +caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que deis só um copo de agua +fria a um dos mais pequenos do mundo, lembrando-vos de que elle é meu +discipulo (vos diz Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que não +ficará sem recompensa. ¿Nada tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes +que dar? Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a vossa +fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não mentis ao desgraçado, se na +verdade vos achais privado de todo o genero de haveres, ainda possuis +muitos bens em que não reparaveis. São os que existem dentro do vosso +coração. Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre +todas as feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com o +vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que os ricos sem elle, +afogados nos seus thesoiros. Consultae esse coração; ouvi como um +oraculo as suas respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus +impulsos. + +¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi á morada do rico. +Entrae affoitos. + +Pintae-lhe as miserias do seu semelhante. Mostrae que só os interesses +da humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os +vossos olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae +as eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos +corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com o pão e com +a carne, que vos deu essa Providencia, que assim soubestes interessar. + +¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o trabalho dos vossos +braços. Advogae perante o poderoso a causa do fraco. Desfazei os enredos +e calumnias, que ennegreceram vosso irmão, que lhe roubaram todas as +protecções. + +¡Não tendes que dar! Congraçae o homem com o homem, a familia com a +familia. + +¡Não tendes que dar! Visitae tantos desgraçados, que gemem por esses +carceres; persuadi-lhes a paciencia, e a resignação evangelica; +confortae-os com palavras doces, com esperanças consoladoras. +Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com mão carinhosa, os +remedios; animae-o com os vossos sorrisos, e fazei que troque os +suspiros da sua dôr e do seu desalento em suspiros de ternura, em +expressões de confôrto; que veja os Céos abertos, e que goze +antecipadamente de premios, que, se não fosseis vós, talvez não tivesse +de possuir. + +¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a tantos meninos, e +ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de vosso proximo na +presença, assim como na ausencia. Ajudae-o com as vossas orações. + +Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas. +São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca se esgota +para um christão. Tomae a vós uma parte do seu infortunio, e elles +ficarão menos oppressos. ¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do +oiro! ¡De quantos e quantos modos, não sabe reproduzir-se a +beneficencia! + +Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia, +porque elles alcançarão misericordia. + +Eis aqui as bençãos e os premios do Céo, recahindo sobre todos vós, sem +exclusão de um só. Ahi vos tendes tão ricos, aos olhos do Senhor, como +esses ricos, cuja dureza lamentaveis, a cujos bens vos promettieis dar +um melhor emprego, se os possuisseis. ¿Quem vos detem? ¿por que não +correis a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a +merecerdes essas bençãos e premios, que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê! +¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o zêlo, que murmura, que reprehende, +que insulta nos outros a infracção dos deveres, em quanto os julga +alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por +mais injusta contradicção, as fraquezas, que não perdoamos no mundo, +sendo em nós, já as sabemos desculpar; ¡e quantas vezes não passam de +desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão, se a +humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os interesses do mundo, +se as bençãos do tempo e da Eternidade, se todos os premios de Deus, +emfim, nada podem comvosco, possam-n-o, ao menos, as suas ameaças, +castigos e maldições, que vão constituir a sua lei perfeitamente +obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter. + +¿Recusais a misericordia de Deus? Já não tendes que escolher. Só lhe +ficaram as vinganças. Affastae-vos, ó santa familia de infelizes. +Pobresinhos do Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover +fogo e colera do Céo. Para além, para além, é o vosso refugio, á dextra +do Eterno Padre. _Venite ad me, omnes qui laboratis, etc._ ¿Não vos +tinha elle dito que os vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as +humiliações se lhes converteriam um dia em triumphos? Sim, sim, ó +famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos, ¡jubilae! +Vós nunca cessastes de ser os seus filhos muito amados. Eu vou reassumir +todos os thesoiros (vos diz elle) que a minha Providencia repartira +pelos vossos barbaros oppressores. Eu lhes havia dado mais altos meios +do que a vós mesmos de alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos +custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de os fazer +ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o vós, ó +meus pobres; frutos que eu vou recolher e guardar para sempre no meu +seio; elles foram arvores estereis, que, dominando toda a sementeira, a +açoitaram com os ramos, a damnaram com a sombra, a devoraram com as +raizes; infecundas e nocivas eu as arranquei em meu furor; eu vou +lançal-as ao fogo. Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no +incendio eterno, que foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu +tive fome, e vós me não déstes de comer; eu tive sêde, e vós me não +déstes de beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e não me +vestistes; enfermo e encarcerado, e não me visitastes. Todas as vezes +que despedistes, que calcastes os pequenos do mundo, a mim, a mim o +fizestes. + +¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença de maldição estampar-se hoje com +letras de fogo e indeleveis nos vossos corações. Este Jesus escondido +nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos templos, coberto de +remendos, macilento, prostrado debaixo do pêso de tantas cruzes, é um +rei de majestade, é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda +a sua cólera, e de cujas sentenças nunca poderêis mais appelar. ¡Oh! +compadecei-vos d'elle, soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e +humilhado, para o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador. +¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o coração me-diz que esta semente +não será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros e consolações. + +Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda é tempo. Aqui +promettemos soccorrer-vos com o que é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a +vós, cahido, a vós humilhado, para vos não experimentarmos depois +accusador, testemunha, vingador e inexoravel. Antes que nos-accendais +esses fogos de maldicção, já era nossos corações temos accezos outros, +que muito mais são vossos: os da caridade. + +Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em tôrno da meza do vosso +banquete celestial, aonde se assenta o opulento Salomão a par do Lazaro +mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador arrependido com +o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos sôbre o vosso seio; e n'um +abraço de eterno amor nos-apertae a todos sôbre o vosso coração +paternal, por todos os séculos dos séculos. + +Assim seja. + + + + +INDICE + + +I--A primeira noite na serra 5 + +II--O sepulchro, ou historia de uma noite +de S. João 11 + +III--Epistola a João Evangelista Pereira da +Costa 41 + +IV--O Presbyterio 43 + +V--A lyra do desterrado 49 + +VI--Epistola a 51 + +VII--A romaria 53 + +VIII--O Domingo gordo dos montanhezes 55 + +IX--O S. João nas faldas do Caramulo 77 + +X--O mosteiro 81 + +XI--Santa Maria Egypcíaca 91 + +XII--Epistola ao Desembargador Deslandes 97 + +Notas ao 1.^o volume 99 + +Additamento 107 + +Sermão da Esmola ou da Caridade 109 + + + + + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade editora + +[Figura] + +LIVRARIA MODERNA 95--RUA AUGUSTA--LISBOA + + + + +*Notas:* + +[1] Verbi gratia na quinta da Domanderes. + + + Nota do autor. + + +[2] Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos com o +gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz descarregar +uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos ladrões, pelas muitas +perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.--Nota do +secretario Augusto. + +[3] A Castanheira do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da Feira, a uma +legua de Agueda. + + + Nota do autor. + + +[4] A traducção de parte de Silio Italico pelo Padre Francisco Manoel do +Nascimento (Filinto Elysio.) + + + Nota do autor. + + +[5] Traducção da escolha das Fabulas de Lafontaine pelo mesmo. + + + Nota do autor. + + +[6] (O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.) + + + Nota dos Editores. + + +[7] Josué--cap. XXIV + +[8] Juizes--cap. VI. + +[9] Foi este fragmento publicado na _Revista Universal Lisbonense_ de 19 +de Junho de 1845--Tomo IV, pag. 582. + + + Os Editores. + + + +Lista de erros corrigidos + + +Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: + + + +----------+---------------------+----------------------+ + | | Original | Correcção | + +----------+---------------------+----------------------+ + | Volume I | | | + |#pág. 20| a ém | além | + |#pág. 33| «o salto)» | «o salto») | + |#pág. 56| lnes | lhes | + |#pág. 69| fescenino,» | fescenino», | + |#pág. 94| acompapanhal-o | acompanhal-o | + | | | | + | Volume II| | | + |#pág. 45| dextra não | dextra mão | + |#pág. 113| tarrestres | terrestres | + +----------+---------------------+----------------------+ + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by +António Feliciano de Castilho + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + +***** This file should be named 28127-8.txt or 28127-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28127/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation information page at www.gutenberg.org + + +Section 3. 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Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For forty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/28127-8.zip b/28127-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..56cfcd4 --- /dev/null +++ b/28127-8.zip diff --git a/28127-h.zip b/28127-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..7cf6985 --- /dev/null +++ b/28127-h.zip diff --git a/28127-h/28127-h.htm b/28127-h/28127-h.htm new file mode 100644 index 0000000..5fbb4a5 --- /dev/null +++ b/28127-h/28127-h.htm @@ -0,0 +1,18038 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <title>O presbyterio da montanha</title> + + + <meta name="AUTHOR" content="António Feliciano de Castilho" /> + + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" /> + + <style type="text/css"> +body {width: 50%; margin-left:10%; text-align: justify;} +h1, h2, h3, h4, h5 { text-align: center;} +h1 {margin: 2em; text-align: center;} +h2, h4 {margin-top: 2em;} +.tiny {font-size: 75%; text-align: center;} +.tinys {font-size: 90%;} +.tinyl {font-size: 95%;} +.bbox {border: solid black 1px; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} +.fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 75%; margin-left: 10%; margin-right: 10%;} +.intro {font-size: 90%; font-style: italic; margin-left:7%;} +.intro1 {margin-left:20%;} +.signature { +margin-right: 5%; +text-align: right;} +.smallcaps {font-variant: small-caps;} +.quote {margin-left:7%; margin-right:7%;} +.quote1 {margin-left:30%;} +.quote2 {margin-left:45%;} +.quote3 {margin-left:10%; margin-right:7%;} +.right {text-align: right;} +.break { +width: 40%; +margin-left:30%;} +.sbreak { +width: 20%; +margin-left:40%;} +.breaks { +width: 10%; +margin-left:45%;} +.note {font-size: 75%;} +.dots {color: #fff; background-color: inherit; border: 3px dotted #555; border-style: none none dotted;} +.poetry {margin-left:25%;} +.poetry1 {margin-left:20%;} +.poetry2 {margin-left:50%;} +.poetry3 {margin-left:30%;} +.poetry4 {margin-left:40%;} +.poetry5 {margin-left:60%;} +.pagenum { position: absolute; right: 35%; +font-size: 75%; +text-align: right; +text-indent: 0em; +font-style: normal; +font-weight: normal; +color: silver; background-color: inherit; +font-variant: normal;} + </style> +</head> + + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by +António Feliciano de Castilho + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: O presbyterio da montanha + +Author: António Feliciano de Castilho + +Release Date: September 24, 2012 [EBook #28127] +First Posted: February 19, 2009 + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + +</pre> + + +<div> +<div> +<div class="fbox"> <b>Nota de editor:</b> +Devido à +existência de erros tipográficos neste texto, +foram tomadas várias decisões quanto à +versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi +mantida de acordo com o original. No final deste livro +encontrará a lista de erros corrigidos.<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita +Farinha (Fev. 2009) +</div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>O Presbyterio da Montanha:<br /> + +<br /> + +<a href="#Vol.I">Volume I</a><br /> + +<a href="#Vol.II">Volume II</a></h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4> + +<h4> +XIX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME I</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +95, Rua Augusta, 95<br /> + +1905</h4> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +OBRAS COMPLETAS<br /> + +DE<br /> + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4> + +<h4><br /> + +VOLUME 19.º</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">I</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor +e melancolia.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A +chave do enigma.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas +de Ecco e Narciso.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(1.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span>―Apreciações moraes, +litterarias, e artisticas.</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">X</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(3.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(4.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(5.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (6.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(7.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span> (8.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (1.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (2.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (3.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da +montanha</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<h3>NO PRÈLO:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 41px;">XX</td> + + <td style="width: 10px;">―</td> + + <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O +Presbyterio da montanha</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4><a name="Vol.I" id="Vol.I"></a>OBRAS COMPLETAS DE A. +F. DE CASTILHO<br /> + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4> + +<h4> +XIX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da<br /> + +Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME I</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br /> + +<em>Sociedade Editora</em><br /> + +</h4> + +<span style="font-weight: bold;"><br /> + +</span> +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td> + + <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td> + + <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <b>Rua +Augusta, 95</b></td> + + <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<h4>1905 +</h4> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>Advertencia dos Editores</h3> + +<br /> + +<br /> + +Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos +antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa +solidão de mais de sete annos de homisio na serra +do Caramulo. A esses manuscritos, que ia publicar com o titulo de <em>O +Presbyterio da montanha</em>, escreveu um prologo extenso, +descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos de +distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as +saudades de um irmão, o melhor dos irmãos, o +já então fallecido Abbade de S. Mamede da +Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo concluiu-se, +imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a +publicar-se.<br /> + +<br /> + +O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes +da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, +fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer +como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, +são hoje considerados espe +O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes +da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, +fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer +como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, +são hoje considerados especies bibliographicas de primeira +raridade. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[6]</span> +Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional +de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, +bibliógrapho, e escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, +outro; a fallecida snr. <sup>a</sup> D. Maria Peregrina de +Sousa, poetisa +portuense, possuia outro, que parece ter levado caminho; Innocencio no +Tomo I do Supplemento do seu immortal <em>Diccionario</em>, +não declara se era dono de algum; menciona a obra, apenas.<br /> + +<br /> + +Quanto á parte poetica do livro projectado, essa, +não impressa, desappareceu em parte. Só algumas +poucas peças +encontrámos, umas inteiras outras incompletas; materiaes +truncados da collecção. Salvando esses versos, +cumprimos um dever moral, e outro literario.<br /> + +<br /> + +O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico +de um edificio ainda em +construcção, e já em ruinas; +é inquestionavelmente uma das obras mais curiosas e +instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a historia, a +lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o <em>folk-lore</em>, +d'aquella +região alpestre, tão portugueza, mas +tão desconhecida, tudo isso é tratado com amor, +com o cuidadoso amor de um archeologo-poeta.<br /> + +<br /> + +Appareceu tambem uma +<em>Introducção</em> em +verso sôlto a certo poema intitulado <em>O +Sepulcro, historia de uma noite de S. João</em>, +projectado pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito +phantastico, infelizmente por concluir. Entendemos não menos +intercalar essa curiosa Introducção, no seu logar +chronologico, por varios motivos: dá-nos +<span class="pagenum">[7]</span> +Castilho sob uma +feição poetica diversa da sua habitual, e +pinta-nos o estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia +soffregamente o ar, a vida, os usos populares da montanha. O <em>Sepulcro</em> +é +pois optimo contribuinte d'este truncado banquete literario, e +fôra imperdoavel, apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do +borrão original, que possuimos pela letra do amoravel +secretario Augusto Frederico, para esta licção +actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor ditadas em +1864.<br /> + +<br /> + +Além do <em>Sepulcro</em>, outras +peças, portuguezas e latinas, já impressas nas +<em>Excavações</em>, teriam logar +aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, pela sua indole; mas o autor +preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. Facil é ao leitor +intelligente o procural-as.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +Á MEMORIA<br /> + +<br /> + +DO<br /> + +<br /> + +EXEMPLAR DE IRMÃOS</h4> + +<h4><br /> + +AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO<br /> + +<br /> + +PRIOR DE<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">S. Mamede da Castanheira do Vouga</span> +</h4> + +<h4><br /> + +<em>Em testemunho publico e perenne</em><br /> + +<br /> + +<em>DE</em><br /> + +<br /> + +AFFECTO E GRATIDÃO</h4> + +<h4><br /> + +Offerece<br /> + +<br /> + +<em>Antonio Feliciano de Castilho</em></h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>PREAMBULO</h3> + +<h4> +I</h4> + +O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o +classifical-o podesse por alguma via valer a pena.<br /> + +<br /> + +Não é historico, nem ficticio; não +é didactico, philosophico, nem descriptivo; não +é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de +tudo isso, de tudo isso participa.<br /> + +<br /> + +Nem sequer é um livro; é uma congérie +de pequenas coisas, todas mais ou menos obscuras, e quasi todas +desconnexas, e de pensamentos não procurados, se +não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem +determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles +banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que +ha em casa,<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry"> <em><a name="n1" id="n1"></a>...dapibus +mensas oneramus +inemptis,</em></div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[12]</span> +para hospedar a +cortesãos que lhe passaram pela porta. Não +procura enganal os: com mãos limpas e +coração lavado lhes +põe diante o que só para si tinha tratado na sua +horta, ceifado no seu chão, cevado no seu pateo, ou colhido +do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem; algumas +flores, já pode ser que as apresentará em vasos +de barro; mas como vos assoalha com bom rosto quanto possue, +não se vos alardeia de abastado, nem se compara com os +visinhos de casas altas e balcões envidraçados. +Como quer que vós d'elle o fiqueis, não +ficará elle descontente de si mesmo á despedida.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de +carreira, parte apenas esboçado ou apontado, ha hoje doze, +treze, quatorze, quinze, e dezasseis annos, sem pensar no Publico; para +mero desenfadamento de horas abhorrecidas; para ajudar a correr mais +depressa, em sitios tristes e ermos, uns tempos muito ermos, muito +tristes, e para mim, que nunca bem atinei com o futuro, muito +desconfortados de esperanças.<br /> + +<br /> + +Como todo o meu fim em fazer versos não era outro +senão o fazel-os, de todo o modo me nasciam bem. +Não tinham de apparecer entre gente; não os +educava; não os corrigia; não lhes punha galas e +arrebiques. Assim sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.<br /> + +<br /> + +Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que +não tornasse; achei-os +<span class="pagenum">[13]</span> +os mesmos que os tinha deixado: +sinceros, mas incultos e semi-silvestres, como nados e creados que eram +por entre troncos e penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por +fora o mesmo que por dentro faz a consciencia.<br /> + +<br /> + +Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram +filhos; contavam já annos: recordavam-me tempo de saudades; +eram me saudades elles proprios; reconheci-os; dei-lhes o +meu nome; com elle os apresento.<br /> + +<br /> + +<h4>II</h4> + +<br /> + +Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu +que <em>se +compõem</em> para o Publico; e, bem hajam elles!: +não levam á praça senão o +que teem averiguado que por lá se deseja e se procura; +põem de parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao +interesse ou gosto alheio.<br /> + +<br /> + +Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.<br /> + +<br /> + +Não sou eu que vou para os leitores; são os +leitores que teem de vir para mim, se as quizerem ler. +Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; as suas +occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela +minha rudeza; os seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da +sua vida, pelo recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte +desconhecida e pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só +vista de cima pelo ramo de tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela +andorinha cujo ventre branco +<span class="pagenum">[14]</span> +ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar +desde aqui (a fim de que não venham depois obrigar-me por +divida que eu não contraio), que a unica +deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar +alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no +interior da casa alheia, e nos segredos do visinho.<br /> + +<br /> + +É o que faz com que, por mais futeis que pareçam +as memorias, que alguns escrevem de suas vidas, e as correspondencias +epistolares, quando por acaso vão dar ao prelo sem terem +sido ordenadas para elle, commummente são lidas com +interesse.<br /> + +<br /> + +É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as +achadas de antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma +antiga vivenda particular ou casa rustica, onde os vasos e +utensís do viver quotidiano veem logo suscitar na phantasia +os costumes, o trato, e o ser intimo, da gente que ali houve.<br /> + +<br /> + +Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o +ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos +banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas +ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; +confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, +de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e +virações do ceo, do sussurro das plantas, dos +sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu, +deixando de si menos v +Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o +ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos +banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas +ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; +confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, +de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e +virações do ceo, do sussurro das plantas, dos +sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu, +deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e a +lampada que allumiou +<span class="pagenum">[15]</span> +calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.<br /> + +<br /> + +Os monumentos são artificiaes, e artificiosos; +são estudados, e emphaticos; a historia que elles resam +é fria. Mas cá, o romance que engenhamos, +ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado, +é todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +As <em>impressões de viagens</em> +estão sendo ao presente um genero de Literatura mixta mui +usado e mui querido.<br /> + +<br /> + +Não admira: para os autores é facil; para os +leitores, recreativo quando menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que +todos temos muito ou pouco; sem cançasso nem más +poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por aguas do mar; +sem desabrimento de estações; sem saudades do que +lá +fica para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que +é repetir algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a +pessoa a viajar em corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando +aonde ninguem a espera, nem festeja, nem conhece, e onde não +ouve pelas ruas palavra nem som da sua creação.<br /> + +<br /> + +A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos +atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam, +com a nossa casa e familia, sem até nos demovermos do nosso +quarto nem da nossa cama, se como Ovidio somos, que punha entre os +regalos da vida o de ler deitado.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[16]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o +gosto de conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são +extranhos, e não medir as distancias que nol os apartam, que +esse, pelo contrario, é o maior desconto do peregrinar, +¿por que se apeteceriam mais as viagens á +França, á +Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás +margens do Rheno, +á Russia, ao Egypto, á China, ou ainda +á Lua, do que a um qualquer monte da nossa terra, +só conhecido de seus moradores e visinhos?<br /> + +<br /> + +¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em +cujas faldas está assentado S. Mamede da Castanheira do +Vouga, como um neto no regaço de sua avó triste e +taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se abriu a arca +depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.<br /> + +<br /> + +Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar +montanhezes, agrestes porém bons; e tão bons, +que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal productivos, nos +seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e +pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, +entalados nos córregos, ou inclinados a scismar tristezas +sobre algum rio fundo e triste, nunca se lembraram de vos invejar a +vós outros as vossas cidades opulentas e festivas.<br /> + +<br /> + +Estes, com falarem portuguez, são para vós +estrangeiros, ou quasi. Como taes, não vos despraza +conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com quem por entre elles +demorou annos, e de boa-mente lá iria +<span class="pagenum">[17]</span> +agora enterrar os restos cançados +da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe lá +ficou em quieto desterro para todo sempre. <sup> <a href="#nt1">[1]</a></sup><br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>III</h4> + +<br /> + +A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região +o novo Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade +minha continuada e sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a +sua pequena familia, de que era eu parte inseparavel.<br /> + +<br /> + +Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais +florídos; Lisboa, a do nosso berço e da nossa +infancia. Uma e outra me chamariam pelos affectos em qualquer parte do +mundo em que eu estivesse; e não houvera eu +valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que +então cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos +elle e eu, por nos sentirmos um como o outro tão encantados +com o nosso futuro, já palpado e colhido ás +mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os +outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, +mais amenas ou mais vívidas, +<span class="pagenum">[18]</span> +por aquellas gentilezas +incultas e mais poeticas de uma natureza quasi primitiva.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<a name="n2" id="n2"></a>Passámos n'uma +bateirinha remada por uma velha moleira da +margem, o viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje +corrupto, segundo a tradição, o <em>bom +fiar</em> de certa moça mui santa, que junto d'elle +vivia n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o +trabalho da sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros +lhe viesse o appellido, significando <em>pepinal</em>, ou +<em>rio das terras dos pepinos</em>; pacifico rio, que +então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas +altas e verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de +se deter enlevado na amenidade de tal painel.<br /> + +<br /> + +Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para +um e outro cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes, +só de longe a longe interruptas de um sovereiro torcido e +mal posto, ou de um rebanho; terreno boleado e ondeado como um lago, +que em meio de tempestades se houvesse petrificado por encanto. +São já fronteiras do Caramulo.<br /> + +<br /> + +<h4>IV</h4> + +<br /> + +A freguezia de S. Mamede não se vê em parte +alguma; é dispersa, e emboscada. A magreza da terra +não dá para grandes espessuras de +povoação.<br /> + +<br /> + +O aspecto do paiz, para quem só o atravessa +<span class="pagenum">[19]</span> +é de inhospedeiro. Mas que +se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea +e desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em +todos os +corações. É porque a +solidão é de si mais +affectuosa, e a pobreza mais liberal e larga, que o rico povoado.<br /> + +<br /> + +Esta differença e vantagem que os moradores levam +á sua terra, experimentámol-as nós +ainda antes de chegarmos á egreja e +residencia, sahindo a receber o seu Pastor novo não +só os maioraes, se não quasi todo +o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das cerejeiras +e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde +áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas +brancas.<br /> + +<br /> + +A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para +o seu adro muito verde, apresenta-se solitaria. Das +povoações em que a freguezia se divide, nenhuma +lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia +parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de +traz, como serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por +entre os plátanos, que o portal do seu pateo toucado e +semi-velado das mais espêssas, crespas, e lustrosas heras, +onde jámais se esconderam e cantaram melros.<br /> + +<br /> + +Ambos os edificios ficam no meio do +<em>passal</em>, antiga quinta «das +Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do +sinuoso deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, +que ali teem o seu foco espiritual.<br /> + +<br /> + +Um grande silencio rodeia largamente a +<span class="pagenum"> <a name="p20" id="p20">[20]</a></span> +casa da oração. O presbyterio não lh'o +quebra.<br /> + +<br /> + +Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo +rustico mas espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da +sua frontaria principal unicamente para o ceo, e para umas formosas e +corpolentas laranjeiras, que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle +clausuradas, o modesto domicilio, proporcionado pelo que sempre +deverá ser o pastor de tal rebanho, não se +retrahiu para mais longe, por traz da sombra do santuario, porque +não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez mais +precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa +para <a href="#e1">além</a> a esconcear, +descer, e +afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e +espumifero rio de S. Mamede.<br /> + +<br /> + +Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a +grande altura, por cima das aguas escuras e raro alcançadas +do sol, communica esta com a ribanceira ulterior, não menos +carrancuda, fragosa, arripiada, e a pique.<br /> + +<br /> + +Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até +ao moirisco logar de Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da +penedia d'alem-rio, entremeia apenas distancia, que, pela calada das +noites, deixa ouvir de parte a parte os ladridos dos cães de +gado, as cantigas do serão, e os alertas dos gallos a +deshoras. E comtudo, aquelle +<em>quasi-nada</em> para os ouvidos e olhos, é +para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem +perigos.<br /> + +<br /> + +As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte, +giram enleadas e perplexas, +<span class="pagenum">[21]</span> +torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a esquerda, como +espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a +subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.<br /> + +<br /> + +Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, +são os unicos entes vivos, que por ali se affoitam a tomar +pé. Os seus frutos vermelhos, quando o vento lh'os despega +maduros, vão sumir-se entre as espumas arrebatadas.<br /> + +<br /> + +Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes +escarpas, com poucas braças de ceo por cima, e por baixo de +si o rugir de tantas aguas, dá as +sensações de um +bello horror.<br /> + +<br /> + +Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas +esquecidas para aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas +vezes ahi me veio por tardes de Junho, em quanto, calado e estendido +sobre as táboas, gastadas e rôtas da humidade, me +gosava da viração transpirada pela corrente. +¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma +inspiração de religiosa poesia no fundador, a que +fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço, +como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja? +¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão +escura, tão angustiada, tão clamorosa, e com +tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras +inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo +ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre, +tão aberta, o dia inteiro, ao generoso sol dos campos, +tão gorgeada a ambas suas portas +<span class="pagenum">[22]</span> +de passarinhos, tão garrida de +espadanas sobre as campas do pavimento, e nos seus cinco altares +tão ridente de flores silvestres, symbolo da alma refugida +das tormentas do mundo para o ineffavel asylo da Fé e das +Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e +transição dos dois extremos, a casinha do Pastor, +alva como a confiança, verdejante e florida como as +promessas, recatada como a esmola, inexhaurivel no seu celleiro como a +Providencia, tácita como a meditação, +com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas para a +torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores de +Deus para o firmamento.....<br /> + +<br /> + +O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a +torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou +Mamante, foi um humilde e obscuro pastor de gado na +Capadócia, e do qual toda a Egreja do Oriente +pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou +martyr, por volta do anno 274 da nossa era.<br /> + +<br /> + +O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o +vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres +e pacificos arredores, para o Menino, já moço na +valentia, ou para o moço, ainda menino na innocencia.<br /> + +<br /> + +Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos +concertou.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[23]</span> +<h4>V</h4> + +<br /> + +Era a residencia, quando a ella chegámos, +decrépita e caduca: apparencia de choça fabricada +de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior; por fora +negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de inuteis e +desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor a havia +em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado.<br /> + +<br /> + +A transformação foi rapida e completa. Os +alpendres desappareceram. Na casa remoçada entrou por +vidraças abundancia de luz. O pateo desafrontado foi +revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de cal bem candida, +logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro n'elle +plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que +n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já +não existe na terra, o outro declina para o occaso, elle, +medrando ainda, é já, como lh'o eu +augurára nos +meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu tronco cinco +palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura. <sup> <a href="#nt2">[2]</a></sup><br /> + +<br /> + +O novo Prior, o Rev. <sup>do</sup> snr. Padre Antonio +José Rodrigues +de Campos, a quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, +varão de virtude, e espirito cultivado +<span class="pagenum">[24]</span> +por Letras, filho d'aquellas boas +terras, e amigo nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do +nosso nome, conserva e zéla tudo aquillo com amor.<br /> + +<br /> + +É para mim delicia o considerar, que á sombra +grande d'aquelle cedro, que eu regava todos os dias, quando um menino +de tres annos o poderia ainda arrancar sem custo, lerá +talvez, depois do seu Breviario, este livrinho das minhas memorias, em +que deposíto o seu nome mollemente reclinado entre tantas +outras saudades minhas.<br /> + +<br /> + +<h4>VI</h4> + +<br /> + +Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me +escondeu sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de +1834, o ninho em que nasceram, sem pensarem em abrir o vôo +que hoje abrem para o mundo, estas poesias montesinhas.<br /> + +<br /> + +Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo +esboçado, peço-lhes ainda um pouco de +indulgencia, para lhes dar a conhecer, por alto, os arredores.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo +por traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno, +a escoar-se cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.<br /> + +<br /> + +Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e +erma de Falgozelhe, se boleiam +<span class="pagenum">[25]</span> +melancolica mas graciosamente as suas hortas, os seus pomares, a sua +fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras, que +até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois +de povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada +horizontal, por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, +até ir bater, lá ao longe, na +capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe servem de +limite.<br /> + +<br /> + +Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias +folgavam de avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades +protectoras da Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo +agricola como este, do que achar a casa do <span class="smallcaps">Creador</span>, +e a do seu +dispenseiro, no centro da abundancia das messes, e saudal +a com a invocação de um +Pastorinho santo?<br /> + +<br /> + +O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. +Sebastião, por entre duas grinaldas de oliveiras e vinha, o +meu passal até ao adro; costeia a egreja e a casa pela +direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai mergulhando +para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura sombria da fonte +sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja antiga, um altar +de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, assoberbada com +um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um troço +de lança enferrujado de musgo. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[26]</span> +<h4>VII</h4> + +<br /> + +Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé +d'este altar, onde já ninguem ajoelha, sobre sepulturas que +hoje são tremoços, e recordemos a obscura +historia d'este sitio.<br /> + +<br /> + +¿Por que razão só as grandes ruinas se +hão-de haver por merecedoras de +attenção? Todo o passado é poetico; +todo o evocar imagens humanas de sob a terra que pisamos, é +proveitoso para alguma coisa. Nas solidões, mormente como +esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, e que onde +hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de +ninho quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos +bons, e até festas.<br /> + +<br /> + +Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da +Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela +margem de cá ás aguas do S. João do +Monte, que logo a diante troca o nome no de S. Mamede, um +moço por nome Jorge, humilde de +geração como tudo quanto por ali nasce e se cria, +mas de coração alto e espiritos levantados.<br /> + +<br /> + +Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal +uma velha, que o ouvira em pequenina a seus paes, que o tinham recebido +não sabia de quem)... mas emfim, namorára-se, que +o sabia ella, de certa moça de alem-rio, guardadora de +cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro grau +de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da +<span class="pagenum">[27]</span> +sua vivenda entre penedos, levava, os dias +com os olhos sempre içados aos cabeços de +Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de +serguilha, ou do seu sombreiro preto; e ainda não de todo +malcontente, quando, por entre os penedos pardos e as urzes +côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do +precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que +obedeciam á sua voz melodiosa.<br /> + +<br /> + +A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a +esperdiçava cantando n'aquellas solidões, +parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a estava captando com +ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido entre as +nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a +interrompesse, porque não sabia de coisa mais de molde para +o seu coração.<br /> + +<br /> + +Vel-a á sua vontade, não a via se não +aos domingos na egreja; e nem então, que para esses dias +tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias muito alvas, e +tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe +que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a +fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das +aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que +prestem para communicar dois estados tão diversos.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é +poesia; e poesia não é vida. Ousou, e declarou-se +a medo á sua formosa; não foi repellido. +Affoitou-se a mais: +<span class="pagenum">[28]</span> +ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario em confissão. O +que +entre elles se passou, não se sabe; taboas de confessionario +não são carvalhos dodónios que +chocalhem tudo. O que se sabe, é que a moça +não tornou +a apascentar para aquella banda, e que elle, pouco depois, deixou a +terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos, sem +dizer nada a ninguem, e não levando senão o +fatinho que tinha no corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo +dizem, era grande, e o seu amor, que não era pequeno.<br /> + +<br /> + +Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el +Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus +para onde, e para quê.....<br /> + +<br /> + +No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento, +assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida, +apegou-se com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse +com tudo seu a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, +uma capella da sua invocação com duas Missas por +semana, defronte de Falgozelhe, onde vivia a noiva do seu +coração, por cima da Talhada, onde tinha os +irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o +baptisaram a elle, e onde a avistava todos os domingos.....<br /> + +<br /> + +Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria +muito em semelhante lance, em que as ondas formavam, por instantes +montanhas tão altas e escarpadas, porém mais +temerosas e feias que ess'outras, entre cujas quebradas, e por cujos +visos, elle variára a sua infancia. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[29]</span> +Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.<br /> + +<br /> + +Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em +Angeja, que em boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e +nunca mais tornou a aventurar-se sobre aguas do mar.<br /> + +<br /> + +Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que +ainda ali se divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi +demolido, para ir servir como materiaes na +edificação de parte da residencia, e da egreja +nova, que já sabeis lhe estão visinhas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +―¿Mas o fim de seus amores?―me perguntareis +vós.<br /> + +<br /> + +Memoria é essa que eu tambem procurei, porém +não consegui desencantal-a.<br /> + +<br /> + +O que só pude desenterrar da tradição, +foi: que este mesmo Jorge viera a casar-se na freguezia; que tivera um +filho nascido na póvoa da Talhada; que este se +ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e +arribára a +Cardeal; em memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada +da antiga, e mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito +amadas, uma Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com +braços em baixo e em cima, oleada de verde, doirada nas +pontas, e n'ella pintados tres cravos, duas chagas, e uma +corôa de espinhos.<br /> + +<br /> + +Vê se, venera-se, e +commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na parede do +<span class="pagenum">[30]</span> +arco cruzeiro da banda direita; e +affirma-se, que na capella de S. Jorge permanecêra com egual +honra em quanto ella durou.<br /> + +<br /> + +Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma +póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro +velho, e onde o que só fazia bulha no meu tempo era um +pequeno moinho, rôto por todos os lados aos ventos e chuvas, +foi, ou não, nascido do consorcio a que o Padre Vigario e +seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não +alcancei; e não quero +invental-o. Provavel me parece que sim, quando me lembro do que a minha +velha me contava d'aquelles amores, e o combino com a ideia que formei +da constancia no bem querer dos moradores da minha serra.<br /> + +<br /> + +A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a +Jorge, qualquer apostaria que o foi sempre. A fortuna +entulhára com riqueza o abysmo que os separava; e S. Jorge, +que não é Santo para meias victorias, havia +forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto. +<br /> + +<br /> + +Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de +pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome +ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os +recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e +beber á saúde da futura +geração algumas malgas de vinho verde na sua casa +da Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do +Monte.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[31]</span> +<h4>VIII</h4> + +<br /> + +A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o +antigo oratorio dos Condes da Feira; e a residencia, já +depois duas vezes transformada, albergue do feitor que elles ahi tinham +para lhes receber os fóros, e lhes tratar d'aquella sua +quinta, chamada, como já tocámos, «das +Limeiras».<br /> + +<br /> + +Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto, +havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão, +do Bispado de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de +distancia da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para +Alcafaz, pertencente agora á freguezia de Agadão, +sitio ainda desfavoravel pelo estirado +e descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem +ermida, casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a +sustentação de Parochia sobre si.<br /> + +<br /> + +N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos +hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus +amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a +espessura das moitas então creava, segundo parece, como +ainda hoje cria lobos. Folga a phantasia comparando e contrapondo +aquelles tempos a estes, e reanimando o actual silencio com um reflexo +e ecco da vida estrepitosa de outra edade. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[32]</span> +<h4>IX</h4> + +<br /> + +Explorámos as convisinhanças do templo e +residencia. Estendâmos agora os olhos até +ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico +senhorio.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o +logar das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S. +João Baptista, e sua fonte muito fresca.<br /> + +<br /> + +Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da +Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa +com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do +Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que +desde as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no +alto do seu oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam, +de extrema a extrema do Reino, quantas noticias o revolvem, +sem que a boa da villa, nem outro algum dos logares que entram na sua +abençoada +confederação de rustica ignorancia, as adivinhem, +nem suspeitem, nem cubicem.<br /> + +<br /> + +A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a +humilde póvoa de Falgarinho, de não mais que oito +visinhos.<br /> + +<br /> + +Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se, +n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres +pessoas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum"> <a name="p33" id="p33">[33]</a></span> +Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores, +e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e +agradavel quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de +Nossa Senhora do Livramento.<br /> + +<br /> + +Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S. +João do Monte, que a seus pés corre, +está em amphitheatro o Avelal-de-cima, +de vinte e quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da +egreja.<br /> + +<br /> + +Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis, +a meio quarto de legua está para o nordeste o +Avelal-de-baixo, logarejo de quarenta e sete almas, e uma capella de +Nossa Senhora da Conceição.<br /> + +<br /> + +Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo +bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de +observação.<br /> + +<br /> + +Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi +toda a costa dos Ferreiros, passa-se o rio de S. João do +Monte, junto ao seu confluente Alcafaz (nome arabe, que significa +<a href="#e2">«o salto»)</a> +nome +que para ali está, ha mais de +setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a +sua origem, nem se corromper.<br /> + +<br /> + +Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa +Talhada, de honrada memoria, berço de um Cardeal, de um +fundador de capellas, e de um namorado de lei; tres celebridades para +um ninho hoje de quatorze almas, coberto de loisas e colmo, e coroado +de sarças e medronheiros; dista-nos um quarto de legua para +nordeste. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[34]</span> +Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede +(que toma este nome na juncção dos dois +afluentes) se atravessa na ponte de pau que já sabeis, e +onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a apanhar +á fresca.<br /> + +<br /> + +Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas +rochas, toma-se a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda, +que em travessia da montanha, sobre a esquerda do rio, leva +até ao casal do Fontão, de onze almas, sito na +margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz, a quarto +e meio de legua para nós.<br /> + +<br /> + +Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a +encosta; e no cimo se encontra a povoação de +Falgozelhe, de setenta e uma almas, posta a um quarto de legua da +egreja, a les-sueste, quasi na extremidade occidental de um +ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração +é o que á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz. +<br /> + +<br /> + +Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por +outra ponte de pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo +está o pequeno e vistoso logar da Falgarosa, de trinta e +seis moradores, com uma sua ermida da Senhora da Boa-Morte, a tres +quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o delicioso de seus +pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de +sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo, +com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje +rege aquelle rebanho. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[35]</span> +Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de +se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S. +Mamede.<br /> + +<br /> + +Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda, +de cincoenta almas, com sua capella de S. Gonçalo, a quarto +e meio de legua a sudoeste da egreja. Redonda se chama, por estar +á borda de um leito semi-circular.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas +confrontações externas.<br /> + +<br /> + +Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do +Préstimo; pelo poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da +Aguada de cima, e Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão, +filial, ou annexa, que aínda +então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre +si; paiz ainda por ventura mais serrano e variado, mas que eu +não cheguei a descobrir.<br /> + +<br /> + +<h4>X</h4> + +<br /> + +O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um +corpulento ramo do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em +voz de Moiros quer dizer «abobada», ou montanha +boleada á feição d'ella.<br /> + +<br /> + +Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros +ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que +merece. Mas, sobre que nunca o visitei, apesar de tão +visinho, recearia apoucar-lhe a +<span class="pagenum">[36]</span> +veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas +noticias que d'elle tive.<br /> + +<br /> + +Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando +d'entre as nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa +em tempestades, em frutos magra, mas opíma +em homens e +mulheres de antiga tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da +fome, e da nudez; é um paiz de selvagens +christãos, para o qual as rudes terras do meu S. Mamede +estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios +poderia estar a antiga Attica.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Dois monumentos accrescentam veneração ao +Caramulo, quanto o podem mesquinhas obras humanas ás +grandiosas moles naturaes.<br /> + +<br /> + +N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos +principios d'este seculo, <a name="n3" id="n3"></a>uma +especie de zimborio de doze +palmos de altura, pouco mais ou menos, de pedra muito bem lavrada e +argamassada. Para quê, não dizem; mas dizem que +por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da +circumvisinhança, por occasião da guerra +peninsular, commetteram demolil-o; mas só lhe poderam fazer +pelo norte um pequeno estrago. Dura em pé, e só +é accessivel do +nascente por uma vereda estreita e tortuosa.<br /> + +<br /> + +O outro monumento não é menos enigmatico, e deve +estar farto de ver passar seculos e desfazer-se +gerações.<br /> + +<br /> + +N'uma arremeçada crista, a duzentos passos +<span class="pagenum">[37]</span> +da egreja do Espirito Santo de Arca, +se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de +Arca». É <a name="n4" id="n4"></a>uma +desconforme loisa +inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por esteios de +pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo +sido um arrancado para as obras da visinha egreja.<br /> + +<br /> + +Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura +dezasseis; de grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte +quatorze, pelo poente onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam +de altura doze palmos, só da flor da terra para cima; de +largura, um que fica para o poente apresenta nove palmos, tendo de +grossura pelo poente palmo e meio, e pelo nascente um palmo. Um, que +diz para o sul, tem de largura, por baixo quatro palmos e meio, e por +cima tres, e de grossura um palmo de cada lado. O ultimo, que +está para o norte, tem de largura, por baixo cinco palmos e +polegada, e por cima quatro palmos e polegada.<br /> + +<br /> + +¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que +eras, e para que fim, se alevantou ali aquella, que á +phantasia se figura bruta meza de gigantes silvestres? +¿Sería obra de fortificação +n'um systema de guerra desconhecido? Quasi que nem possibilidades o +abonam. Uso agrícola, industrial, ou civil, nem a +imaginação mais inventiva lh'o rastreia. Memoria +de algum varão ou feito insigne, já a poderia +ser. Mas então, +¡a que rudes tempos a não havemos de referir, +visto como nem data, nem letra, nem escultura tôsca, nem +vestigio algum de arte +<span class="pagenum">[38]</span> +nem de +architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira!<br /> + +<br /> + +Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais, +quando se adverte na semelhança que tem com os altares +druidicos, ainda hoje conservados em varias partes do que +foram Gallias e Germania.<br /> + +<br /> + +Verdade é, que por estas nossas terras não rezam +as Historias, que se estendesse aquella abominavel seita de +sacrificadores de humanas victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que, +perseguidos, como o vieram a ser, pelos Imperadores romanos, alguns +druidas se refugiassem para este Occidente, e aqui, em retiros +montesinhos, menos accessiveis a pesquizas e +perseguições, professassem e mantivessem o seu +culto, do qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade +comparadas) não muito discreparia talvez a +religião do Endovélico lusitano.<br /> + +<br /> + +Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem, +se vale a pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro +dos meus affectos.<br /> + +<br /> + +<h4>XI</h4> + +<br /> + +Nada concita aos logares veneração, como a +antiguidade.<br /> + +<br /> + +Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além +de Moiros, Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure, +não rastejo noticia d'essas edades, com que fazer obra. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[39]</span> +Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve +memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas +terras, nem ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem +tradições o denunciam. O solo enguliu tudo; e +nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou letra para enigmas.<br /> + +<br /> + +Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra +da sua lavoira, na primeira valleira que se encontra á +direita do caminho indo para Agueda, se vê uma fiada de +umas como +torrinhas, que se estende por mil e quarenta palmos; das quaes +torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e algumas +porções deseguaes de muros esboroados a delir-se. +<br /> + +<br /> + +E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se +dá em uma furna chamada «a buraca da +cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva; a +qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de +largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é +geral fama que fôra aberta pelos Moiros.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou +se, dizem os netos, +que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S. +João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus +thesoiros por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.<br /> + +<br /> + +N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a +estancia, e que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[40]</span> +Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente +já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem +medo os rebanhos para a sua visinhança; cantam aos seus +hombraes trovas muito christans; e quem quer, lhe devassa (como eu fiz) +o seu palacio subterraneo.<br /> + +<br /> + +A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina +aberta, pelos Moiros sim, mas não para tirar oiro, que +é sempre a primeira conjectura, nem para serventia militar, +que é sempre a segunda, se não só, e +prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de +lá mana, muito fresca e saborosa, mas em pequena copia.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Sobre as fortificações engenha cada um a sua +hypóthese.<br /> + +<br /> + +Ha quem as supponha posteriores á +invenção da artilharia, por se lhe figurar que +só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros +as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por +ali outros vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares +demonstra, que elles por lá viveram. E se por lá +nasceram e se crearam, não podiam deixar de fortificar-se e +defender-se contra commettimentos de inimigos, que é esse um +instinto natural a todos os homens, mas nos homens das montanhas mais +energico.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto +que o seu nome, se +<span class="pagenum">[41]</span> +christão não é (como de certo +não é), tambem por arabe se não +reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga? +<br /> + +<br /> + +Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que +podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella +serrana região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi +deixaram menos rasto que em muitas das terras visinhas, seria porque a +bruteza do monte era já então como hoje, que +não dava meios nem licença para grandes obras. +Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito +faziam em tirar da terra pão com que se manterem; +¡quanto mais, erigirem castellos, pontes, ou mesquitas, de +que se podessem admirar fragmentos depois de sete seculos!<br /> + +<br /> + +Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo +de outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar +d'estes, se acalentaram creanças com versos do +Alcorão. Outras arvores, de que estas são remota +descendencia, viram passar á sombra das suas copas +esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda, +e turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje +é talvez poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e +ficariam confusos e immoveis se revivessem para ouvir as da nossa +lingua.<br /> + +<br /> + +Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos, +que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de +mim o são e serão sempre. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[42]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes, +manteem-se ainda antigos. As novidades das +civilisações são como +a escravidão, e os diluvios: tarde chegam a engulir as +serras.<br /> + +<br /> + +<a name="n5" id="n5"></a>A Linguagem é ali, como +os ares, de uma admiravel pureza e +lucidez. Se os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se +perdessem, pela conversação corrente d'aquellas +aldeias e póvoas se poderia restaurar.<br /> + +<br /> + +Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos, +phraseado, e +construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um +palrar de sésta de segadores entre carvalheiras rusticas, ao +estridor das cigarras amadas de Anacreonte, do que entre o ranger dos +prelos e o resfolegar das balas, n'um anno inteiro da melhor +typographia de Lisboa.<br /> + +<br /> + +Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos, +como o +<em>nanja</em> o <em>bofé</em>, o +<em>canté</em>, o +<em>quiçá</em>, e mil +outros, sôam por lá sem extranheza em boccas de +mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de namoradas de dezoito +nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.<br /> + +<br /> + +Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós +aos netos a das crenças e praticas piedosas, e com esta a de +muitos seus erros e abusões. São os insectos e +musgos parasitas da arvore robustissima da Fé. +Abençoada +a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os ramos ou +cerceal-a pelo pé.<br /> + +<br /> + +O tempo vai fazendo a pouco e pouco o +<span class="pagenum">[43]</span> +seu officio. Não ha curas nem +reformações mais prudentes e certas do que as +suas, quando á força lh'as não ajudam +ou +contrariam.<br /> + +<br /> + +Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade +de apparições, phantasmas de almas do +outro-mundo, Moiras encantadas, thesoiros escondidos e lobis-homens; e +ainda hoje a mór parte dos moradores acredita nos +esconjuros, feitiços, bruxarias, +adivinhações, e virtudes de certas praticas e +fórmulas, para curar ou empecer.<br /> + +<br /> + +Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis, +dão comtudo sua côr poetica muito particular ao +Povo, cuja simplicidade primitiva no viver e trajar harmonisam com taes +simplezas da intelligencia.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto +vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos, +são por ora totalmente incognitos na serra. A moda +não exerce por lá as suas costumadas +devastações de cabedaes, bons costumes, e saude. +Os vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma +uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal +renova as suas folhas e flores.<br /> + +<br /> + +Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada +ás costas das suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e +tecida por suas mães, mulheres, e filhas, apizoada e tinta +(quando o é) sem sahir da freguesia. Trazem +<span class="pagenum">[44]</span> +grandes chapeos pretos desabados, +grande bordão ferrado, menos para defensa, que para arrimo +pelo resvaladio das ladeiras, e tamancos cravejados.<br /> + +<br /> + +As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra, +sáia de burel de meio pizão, côr de +pinhão ou preta, collete comprido justo, sem +apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de +burel mais apertado no tear, e sem pizão, que lhes serve de +capa, lançado ao desgarre por sobre os hombros. A +cabeça, cobrem-n-a, ou com o +mesmo mandil, ou com um chapeo como o dos homens. As suas tamancas +são menos grosseiras. O lenço de seda ao +pescoço é, como as arrecadas e o +cordão de oiro, o ultimo da magnificencia, e as flores da +urze ou da carqueja o mais galante enfeite dos seus sombreiros.<br /> + +<br /> + +São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou +romagens, quando calçam, com meias brancas, tamanquinhos de +pregaria doirada com sua meia palla de marroquim vermelho, vestem +roupinhas de pano burel fino, ou chita, põem gorjetes de +filó, ou +lenços de cassa bem pregados, e capoteiras de pontas +compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as mais ricas e senhoras +teem mantilhas e sapatos.<br /> + +<br /> + +<h4>XII</h4> + +<br /> + +A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita +como a cultura do solo ingrato, só põe mira no +essencial: em desenvolver os sentimentos naturaes e religiosos, o +afferro +<span class="pagenum">[45]</span> +á +justiça e á verdade, os differentes +amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o +respeito á velhice e ao infortunio.<br /> + +<br /> + +As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas. +Esses discursos de +cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora +deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam, +inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e +dizem-n-o como o pensam.<br /> + +<br /> + +Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para +ser bons lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas +mães, depois de terem sido bons filhos e boas filhas; e +n'isso limitam a sua ambição.<br /> + +<br /> + +Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para +folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras, +em saraus esplendidos.<br /> + +<br /> + +Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam +a nossa, que é melhor.<br /> + +<br /> + +Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um +só livro em toda a freguezia; mas os louvores da sua +moralidade dariam com que encher mais de um livro para nos envergonhar. +<br /> + +<br /> + +A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o +coração bem nascido dará gosto. A +<em>mercê</em> e o +<em>vós</em> de nossos maiores são +tratamentos para os raros casos em que não cabe o +<em>tu</em>.<br /> + +<br /> + +Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um +dos outros. O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou +á meza do mais rico; isto é, do que na sua tulha +<span class="pagenum">[46]</span> +tem centeio ou milho para +todo o anno; e o abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com +os seus bois a geirasinha do indigente que a não pode pagar; +e lhe leva pendurado na canga do arado o sacco da semente, para que +elle tenha tambem, lá para o verão, que ceifar +para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por instinto, que as +lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas para +quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as presenceia.<br /> + +<br /> + +É um povo agricola, que ainda não aprendeu a +envergonhar-se do seu parentesco chegado com a terra. Entre elles se +diz «lavrador», e +«trabalhador», como em Londres +«fabricante», ou «lord», em +Roma +«cardeal», ou «monsenhor», em +Paris +«sabio», ou «homem de Letras», +e em Lisboa «deputado», ou +«millionario».<br /> + +<br /> + +As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão, +com o seu paquife de pâmpanos e espigas, e a letra <em>Ut +operaretur terram, de qua sumptus</em>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡Que impressão, a principio de espanto, logo de +respeito, e a final de amor, me não fez o presenciar, como, +ao revéz da pragmatica das cidades, o trabalho das +mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior +vergonha!!<br /> + +<br /> + +Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido +o sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava +<span class="pagenum">[47]</span> +(como as andorinhas do seu beirado para +o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal roupido, carrear o +adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na +roça dos mattos entre os seus operarios. A estes, +¿que os poderia admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios, +e dos Camillos, se alguem lh'a lesse, a não ser a +admiração dos +historiadores? +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não +poderiam deixar de ser mais varonís do que os homens de +muitas outras terras, e de todas as deliciosas.<br /> + +<br /> + +Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha, +com o seu costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes, +que vão formando semelhante á precedente a +geração seguinte, só são +passatempos do serão, á luz da candeia, das +pinhas bravas, ou da fogueira, que allumia e alegra os penates +afumados. Madrugam como a aurora para os trabalhos fortes. Os bois +conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente jungir e guiar pelas suas +mãos. Na vindima, carregam á cabeça +cestos, que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as +mãos alvas e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas +ceifas, transportam á cabeça montanhas de +espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan sob +o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua grinalda +de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em +bemaventurança para dez familias. Nas renques +<span class="pagenum">[48]</span> +dos saxadores e dos +roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião +não mais leve, deixal-os muitas vezes para traz, e +envergonhal-os com seu riso de triumpho.<br /> + +<br /> + +Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O +exercicio, Anjo custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra +ao mesmo tempo no sangue a saude, que do sangue se côa ao +leite, e do leite aos filhos. Seriam as amasonas da paz, se +não tivessem ambos os peitos muito bem inteiros, e se os +homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as lidas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz, +que moralmente parece distar do nosso duas mil léguas, +é a +sujeição da mulher; facto que eu não +moraliso, mas só historio.<br /> + +<br /> + +As mais graves, tanto como as mais somenos, não +só á laia das Penélopes +e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio +até meia-perna; não só no +tráfego de porta a dentro, na cosinha para a familia e para +os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de +ministrar de pé, como servas, á meza de seus +maridos e filhos, nem em dias de festa ou bodo, quando a assistencia de +hospedes mais poderia assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as. +São sempre aquillo: sempre passivas, boas, e contentes. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[49]</span> +<h4>XIII</h4> + +<br /> + +Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão +já minuciosas e pueris estas noticias; mas hei-de +já agora continual-as, e seja com vénia sua. A +outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns +annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem +renteado as asperezas das serras, alguem festejará encontrar +estas antigualhas, nas folhas já por ventura rôtas +e descosidas d'este livro.<br /> + +<br /> + +Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao +commum da nossa gente; mas então hão-de ser +antigualhas fosseis, e portanto com veneração +duplicada venerandas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +A indole da gente é de si commedida e pacifica.<br /> + +<br /> + +De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre +ella achar amostras, que emfim, terra é, e não +paraiso; mas nem tantas proporcionalmente, nem tão feias e +monstruosas em geral, como em outras partes, e em quasi todas.<br /> + +<br /> + +Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com +todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico; +ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de +trabalhar contínuo, para se despender em vida de enredos, +corrupção e maleficios; nem tão +extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o +despeito, o despenhem de salto em +<span class="pagenum">[50]</span> +salto até ao fundo da +depravação. +É o <em>inter utrumque</em>, a <em>aurea +mediocritas</em>.<br /> + +<br /> + +Conservam inteira a Fé religiosa.<br /> + +<br /> + +Não lêem, nem conhecem, nem levariam á +paciencia, jornaes que desorientam, desencantam, e põem o +genero humano em guerra viva comsigo mesmo.<br /> + +<br /> + +E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura +toda novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e +venenosa, que por cá nos trabalha, e de cujos herpes adoecem +até as familias, que a maldizem, e a repulsam da sua porta.<br /> + +<br /> + +Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de +só provir da fragilidade, ou dos impulsos subitos da +natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na consciencia +remordimentos.<br /> + +<br /> + +Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a +julgam; quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida +como aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se +conchava.<br /> + +<br /> + +D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais, +resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e +innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em +graças exteriores, em tactica, em egoismo infernal e +assolador. Nos amores ponhâmos o exemplo:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e +persuade: tendem á união, de que se originam as +familias, e por onde a especie se mantém. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[51]</span> +Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior +arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além +do ocio lhes fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que +estimulam e irritam as phantasias, para o casamento se namoram, e +não por alardo; para goso do +coração, e não da vaidade. +Põem no merecer as diligencias que outros põem no +conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar no +repellir e despresar depois de saciados.<br /> + +<br /> + +Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de +seducções, de emboscadas, enganando-se e +sacrificando-se um ao outro.<br /> + +<br /> + +A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem +se ufana em desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um +theatro, ou no vão de uma janella de club, em noite de +baile, um copioso canhenho, meio historico meio fabuloso, dos seus +triumphos. Ali, ali é que as mulheres se podem gabar de ser +amadas, pois o são sem disfarces nem encarecimentos; +são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem +modistas, nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem +mestres, nem lisonjeiros, nem romances, as transformaram. +São-n-o pelo que são, e não pelo que +possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.<br /> + +<br /> + +Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão +lá supprir lindezas do corpo, +graças do animo, ou preciosidades do +coração.<br /> + +<br /> + +Não é entre prestigios deslumbradores, n'um +ambiente de calor artificial, estimuladas +<span class="pagenum">[52]</span> +ou vencidas do exemplo, da +occasião, do medo ao ridiculo, e da audacia emprehendedora, +não é ao abrigo do estrondo e confusão +de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras +declarações; é +ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de +suas mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva +com as parentas e amigas, em derredor da merenda, á sombra +das carvalheiras.<br /> + +<br /> + +São amores que se não escondem, porque +não teem de quê; amores que se exhalam debaixo do +ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada capella do festejo, ao +som folgasão da <em>Mirontella</em> roncada +pela gaita de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante +do arraial.<br /> + +<br /> + +No progresso de taes inclinações é +sabedora e consentidora toda a visinhanca; e esta mesma notoriedade +defende os nossos namorados, tanto de se deixarem arrastar de seus +mutuos desejos, como de se desvairarem e cahirem em infieis.<br /> + +<br /> + +Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações, +não menos obrigado a +lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia +commetteria galantear a conhecida por +<em>emprêgo</em> de outrem, certo em que nenhuns +lucros lhe surtiria o empenho, senão só motejos e +descredito.<br /> + +<br /> + +D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma +constancia verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o +bem-querer d'estes Jacobs e d'estas Rachéis.<br /> + +<br /> + +¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser +sinceras, hão de confessar que a escolha +<span class="pagenum">[53]</span> +que n'um baile fizeram... só +durou até que veio o baile seguinte! ¡Quantas, +quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que pelas duas orelhas +que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo +tempo) se poderia contar, perguntando á sua modista franceza +quantos vestidos novos lhes havia feito!<br /> + +<br /> + +Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno +passado, demorar-se mais a encher a malga para certo segador que para +todos os outros, e pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a +pôr á cabeça a gavella das +espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este +anno; continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua +mulher, os cuidados dos filhos e da casa a impidam de seguir, como +antes, por passos contados, o seu gosto.<br /> + +<br /> + +Observação tão curiosa como +verdadeira:<br /> + +<br /> + +Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós, +que a variedade dos serviços rusticos tão a miudo +lhes depara, rodeadas da Natureza por todas as partes, vendo livre o +amor nas aves e nos rebanhos, favorecidas pela solidão +selvática e pelo +silencio, e pelas moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois +crepusculos em cada dia, e em cada semana de inverno por tantas +tempestades improvisas, como aquella que rendeu e debellou a vidual +constancia de Dido e a piedade de Enêas, quando o hymeneu deu +com o relampago o signal de suas bôdas, e as nymphas pelos +altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de fragilidade +como a de Dido por phenómeno +<span class="pagenum">[54]</span> +se apontam; e annos e annos se devolvem, sem que +um só se realise.<br /> + +<br /> + +Quando porém se dá, e vem a lume filho +não de benção, o peccado de amor +não se carrega de crueldade. O innocente não se +faz victima expiatoria dos culpados, perdendo a vida entre as +mãos de quem lh'a deu; horror nefandíssimo, +inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; nem +tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas +da noite, á porta lá ao longe de um desconsolado +asylo, aberto pela misericordia em lagrimas ás lagrimas dos +filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor para se +crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, e se +finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias.<br /> + +<br /> + +Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo +infanticidio moral, mereceria qualquer das minhas serranas um falso +titulo, que ainda mais a faria corar, que a tácita +confissão da sua culpa. Sabe renunciar os louvores com que +d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu cadaver +do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa; +tudo... como lhe fique para consolação da sua +queda o encanto ineffavel de apertar nos braços o seu filho. +Se o mundo todo, se o proprio amante, a desamparasse, tudo tudo +esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se afortunada. De +não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a consciencia +de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o sublime +encargo, o natural sacerdocio da maternidade.<br /> + +<br /> + +Estas resignadas victimas, immoladas por +<span class="pagenum">[55]</span> +um amor, por outro amor ressuscitadas mais +interessantes, estas victimas, em quem a virtude, produzida pelo +arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi em lustre a +virgindade, são poucas; são rarissimas; +custar-nos-hia a encontrar uma. Quando porém a +desencantasseis, lembrando vos do que sabeis d'estas nossas grandes +terras, fio-vos que bastante commiseração e +respeito vos infundira.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Casas de perdição para a mocidade, como nos +povoados grandes se alinham em ruas e ruas, e até +já por villas e aldeias +vão surdindo, não se conhecem lá, nem +se poderão tão cedo conhecer.<br /> + +<br /> + +Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de +vergonha, a que se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em +que as sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso, +são victimas das victimas que ellas sacrificam.<br /> + +<br /> + +Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se +transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade +dos casaes.<br /> + +<br /> + +<h4>XIV</h4> + +<br /> + +Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve +de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Os casamentos não são nunca determinados por +considerações de haveres ou de jerarchia. +<span class="pagenum"> <a name="p56" id="p56">[56]</a></span> +O cálculo rala pouco +os pensamentos d'estas gentes, acostumadas a viver com pouco, e a +confiar muito na Providencia. As palavras <em>dote</em> e +<em>escrituras</em> apenas seriam entendidas. +<br /> + +<br /> + +Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e +economia, a ajuntar para <em>uma cama de roupa</em>, +uma teia de estôpa, outra de linho, uma peça de +burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma panella e dois pratos, +uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires de milho, e +outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da fortuna, e trata +logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.<br /> + +<br /> + +O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo +commum, consta de um anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro +uma camisa para o dia grande.<br /> + +<br /> + +Mal que este desponta, vê já de pé os +dois afortunados, garridos e bizarros com o seu <em>aceio</em> +dos domingos: ella, sobretudo, +flammante como uma Imagem, com arrecadas, cordões, e +alfinetes sobre lenço de seda, mantilha lustrosa, ou chapeo +de feltro novo com enfeites.<br /> + +<br /> + +As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e +visinhas, que de boa-mente <a href="#e4">lhes</a> +acodem, cada uma com o seu +<em>melhorado</em>, convencidas como estão +(especialmente as solteiras) de que alguma coisa da +benção matrimonial poderá vir apegada +aos diches e galas que figuraram no apertar das mãos.<br /> + +<br /> + +Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se +preparam de vespera para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que +<span class="pagenum">[57]</span> +sendo florído tem +mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do +travesseiro +(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem +liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e +lan; no que, vai grande condão de conformidade de animos, +perfeição de ajuntamento, e dura do bem-querer; +com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, não +faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.<br /> + +<br /> + +O pretendente, com os seus apaniguados, espera já +á porta da noiva a sua sahida. Esta apparece emfim, como uma +aurora da serra, incendida de pejo, e orvalhada com as lagrimas da +mãe; e segue com o rancho, a pé, caminho da +egreja, levando ás costas as bençãos +do pae, em que ainda por lá se +crê, a turbação no seio, e nos ouvidos +os votos e resas de bom agoiro, recitadas com fé por alguma +velha mais sabida.<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +A egreja está já á sua espera aberta, +juncada de espadana, com o altar enflorado de fresco, e a alampada +atiçada.<br /> + +<br /> + +A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas +cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a +todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do +sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso +sobre os deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo +do templo não é interrompido com +pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de tropa, +brados de mendigos, assobios +<span class="pagenum">[58]</span> +de rapazes, martellar de artifices, zabumbas de arlequins.<br /> + +<br /> + +Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai +profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e +afugentar as evocadas memorias de <a name="n6" id="n6"></a>Lia, +de Rachel, e de Rebecca.<br /> + +<br /> + +O que unicamente chega lá de fóra, é o +chilrar de algum passaro sobre alguma cerejeira do adro, o amoroso +carpir de alguma rôla na matta de S. Sebastião, ou +a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no +trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da +Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da +progénie de Adão.<br /> + +<br /> + +Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com +mais clara e muito mais formosa benção.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a +Deus não ser mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de +dois nomes um só nome, como de duas metades distinctas se +forma um todo inseparavel.<br /> + +<br /> + +É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra, +solemnissimo, e que, por isso mesmo, se deveria por todos os modos +pintar com indeléveis e suaves tintas na memoria, para que a +sua imagem no meio das tentações podesse acudir +como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.<br /> + +<br /> + +Quem se recordar de que proferiu o seu +<span class="pagenum">[59]</span> +voto, e escutou com jubilo outro egual, +onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de +obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde +com o sol entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e +fragrancias naturaes com as virações, quem, +repito, de tudo isto se recordar, ha-de-lhe parecer que Deus percebeu +melhor as suas palavras; ha-de alguma vez devanear em si (mas que o +não diga) que bem poderia ser que alguns Anjos estivessem +ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a +prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a +mulher...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos +alvoroçados, e por entre os parabens e vivas dos +assistentes, encontram, começando logo no adro, de praso a +praso, por toda a extensão do caminho até +á casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro, +ramos de pinheiro, oliveira, roble, canas verdes, e quantas hervas e +plantas bravas menos espinhosas ou mais floridas brota o monte.<br /> + +<br /> + +Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua +toalha, e ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa, +estão, postos de antemão pelos muchachinhos que +formam a primeira frente do préstito triumphal, um prato de +bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os quizer tomar; +outro vazio, para a gratificação voluntaria, que +ninguem deixa de lhe lançar.<br /> + +<br /> + +Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa, +<span class="pagenum">[60]</span> +e industria mais esmerada; foram esses +prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de seus +afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes +naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos +padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem +concertadas que podem, um á moça, outro ao +mancebo; os quaes, logo a diante, de ordinario entre si os trocam; e +junto á salva dos ramalhetes se vê um abundante +refresco de bebida e comida para todo o acompanhamento, sendo o acepipe +obrigado ás filhós de mel.<br /> + +<br /> + +Em cada uma d'estas +<em>estações</em> chove +de todas as partes a saraivada dos confeitos; bebe-se á +saúde dos «bem +empregados» e «de quem d'ahi a nove mezes ha-de +vir.»<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos +convivas quantos admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as +boas vontades prestes para quem se quizer apresentar.<br /> + +<br /> + +Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e +o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse +«o desposado» (contra a regra do nosso falar +galanteador), porque o logar da direita se lhe dá a elle. A +dignidade varonil em nenhum lance esquece entre aquellas gentes +primitivas.<br /> + +<br /> + +N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e +com um +<span class="pagenum">[61]</span> +só talher, e +bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer durar a +refeição +dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu +bonissimo sentido, que não podia ser outro senão +representar a communidade e harmonia intima, em que esperavam e +professavam de viver.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas, +rabecas, e ferrinhos, dando se a rôdo comer e beber aos +tangedores.<br /> + +<br /> + +Em quanto dançam, algumas moças donzellas se +furtam subtilmente á companhia, para irem enfeitar de flores +o leito nupcial, desfolhar entre os lençoes rosas de cheiro +(se a estação as dá), e guarnecer a +roca e fuzo symbolicos de amores perfeitos.<br /> + +<br /> + +Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita +da quinta que é meia-noite, ha já muito que os +obsequiadores bondosos teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas +de calmaria de certo suavissimas, apóz um dia todo por fora +e por dentro tão festejado e tão +revôlto.....<br /> + +<br /> + +<h4>XV</h4> + +<br /> + +O nascer de cada filho é uma festa.<br /> + +<br /> + +Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e +mostra a experiencia que se não enganam), crêem e +repetem, que filhos ainda em casa pobre são riqueza; que por +taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a lhes +acudir com mais larga mão; +<span class="pagenum">[62]</span> +e que a meza, por ter mais Anjinhos ao +pé de si, se não ha-de fazer mais +escaça, se não medrar á +proporção de +tão bons hóspedes.<br /> + +<br /> + +E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes +um onus, um sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se +ouvem mães e paes deploral-a como castigo e praga; +lá na serra, onde ha trabalho proporcionado a cada edade, +lá na serra, onde, como em enxame bem regido, todos os +consumidores são productores; lá, onde +só +são necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes +são os mestres, o exemplo +lição, a laboriosidade e sobriedade +herança; ninguem se atormenta sorteando na phantasia +empregos ou futuros novos para a sua progénie. Lá +os filhos são +rebentões, que alegram, remoçam, e +espécarão a seu tempo a velhice decadente de +quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres +experimentadas em taes lances, que supprem a falta de parteiras e +doutores, tem-se já prompta a canastra que lhe ha-de servir +de berço.<br /> + +<br /> + +Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é +escrupulosamente velada, para que não venham bruxas +malfazejas a chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol +candeia bem experta; e ao clarão d'ella, com os olhos fitos +no innocente, e quasi sempre em pé para que as +não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as +amigas da casa. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[63]</span> +Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão +entoando com a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do +pé embalam brandamente o bercinho. Algumas folhas de +oliveira ou palma, que figuraram no altar em Domingo de Ramos, +queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam muito +bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e janellas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de +romanas crenças a graça, a fragrancia poetica, o +saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu sinto.<br /> + +<br /> + +¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e +tão christan como ella é, praticam o mesmo que os +legionários romanos provavelmente ensinaram a nossas +avós ha mil annos, e mais, pelo terem visto fazer nas +aldeias da sua terra a suas mães e mulheres! +¡Cuidar que estamos vendo, com pequena +degeneração, o que o mais rico poeta da +Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente! +E se não, +oiçâmol-o, e julgareis:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Negreja ao réz do Tibre +annoso Helerno,</div> + +<div class="poetry1">santo bosque, onde levam sacrificios<br /> + +inda agora os Pontífices romanos.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Ali nasceu outr'ora, ali vivia</div> + +<div class="poetry1">a que nossos avós chamavam +Grane,<br /> + +casta Nympha, de excelsos pretensores</div> + +<span class="pagenum">[64]</span> +<div class="poetry1">pedida vezes mil e em vão +pedida.<br /> + +Era seu exercicio errar nos campos,<br /> + +as feras perseguir com dardo agudo,<br /> + +e as redes emboscar nos fundos valles.<br /> + +Inda que aljava ao lado +não trouxesse,<br /> + +criam-n-a irman de Phebo; o parentesco<br /> + +não poderia, ó Phebo, envergonhar-te.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Quando algum namorado a requestava,</div> + +<div class="poetry1">tinha prompta a +resposta.―«Aqui,―dizia―<br /> + +ha nímia luz, e a luz +dobra a vergonha...<br /> + +Se preferes entrar n'aquella gruta,<br /> + +sigo-te.»―Á gruta o crédulo voava;<br /> + +ella torcia o passo, ia á carreira<br /> + +das moitas na espessura +homisiar-se;<br /> + +d'ali desencantal-a era impossivel.</div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;</div> + +<div class="poetry1">combateu lhe o rigor +com brandos rogos,<br /> + +e a sólita resposta obteve em +prémio:<br /> + +que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe;<br /> + +segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge.<br /> + +O que +lhe fica apóz vê Jano. Ó louca,<br /> + +no +usado esconderijo em vão confias;<br /> + +olha como t'o observa, e +t'o devassa.<br /> + +Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus +braços;<br /> + +eil-o comtigo a sós na cava penha,<br /> + +onde havias buscado o teu +refugio.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Saciados os sôffregos +desejos,</div> + +<div class="poetry1">―«Em +paga d'este goso―exclama o Nume―<br /> + +dos quícios a tutella eu +te confio;<br /> + +pela honra perdida esta conserva.»<br /> + +Assim falando, +candida varinha<br /> + +lhe entrega, com que os tétricos asares<br /> + +das +protegidas portas afugente.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[65]</span> +<div class="poetry">Existem de brutal voracidade</div> + +<div class="poetry1">umas infames aves; +não já essas<br /> + +que de Phineu a meza espoliavam,<br /> + +mas +da mesma relé: cabeça grande,<br /> + +fito olhar, bico +audaz, grizalhas plumas,<br /> + +garra adunca; esvoaçam pela noite;<br /> + +onde encontram creança ao desamparo,<br /> + +que a ama deixou +só, prestes a empólgam,<br /> + +arrancam-n-a do +berço, e a dilaceram.<br /> + +Diz que as lactentes +vísceras co'os róstros<br /> + +lhes picam, lhes devoram; +teem as fauces<br /> + +sempre repletas de sorvido sangue.<br /> + +Do <em>estridor</em> +com que as trevas +alvorótam,<br /> + +lhes vem o nome: <em>estriges</em> +se +nomeiam.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Estas pois, quer de si nascessem aves,</div> + +<div class="poetry1">quer em aves, de +velhas que antes foram,<br /> + +fatal conjuro marso as encantasse,<br /> + +penetraram +de Proca no aposento.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Com cinco soes de edade, o innocentinho</div> + +<div class="poetry1">era ao bando ferino +egregio pasto.<br /> + +Já co'as gulosas linguas ferem, sugam<br /> + +o tenro +peito nu; sôam do infante<br /> + +os consternados trémulos +vagidos,<br /> + +com que, á falta de voz, auxilio pede.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Corre a ama assustada; acha nas faces</div> + +<div class="poetry1">do caro alumno seu +lavado em sangue<br /> + +das brutas garras os crueis vestigios.<br /> + +¿Que +fará? vê-lhe o rosto exangue, +murcho,<br /> + +que na côr arremeda as tardas folhas<br /> + +já do +rígido inverno bafejadas.</div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Corre a Grane; o successo lhe relata.</div> + +<div class="poetry1">―«Cobra +valor―a Nympha lhe responde;― +<span class="pagenum">[66] +</span><br /> + +viverá teu +alumno.»</div> + +<div class="poetry2"> +Entrada ao berço,</div> + +<div class="poetry1">acha a mãe, acha o pae, +sôltos em pranto.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">―«Eis-me; enxugae as +lágrimas―exclama;―</div> + +<div class="poetry1">vou tornar-vol-o +são.» Diz, e tres vezes<br /> + +de medronheiro com +frondosa vara<br /> + +fere da estancia as portas; outras tantas<br /> + +co'a mesma vara +o limiar sinála;<br /> + +rega o ádito; as aguas com que o +rega<br /> + +encerram salutifera mistura.<br /> + +Entranhas cruas de +bimestre porca<br /> + +toma nas mãos, e diz:</div> + +<div class="poetry2"> +―«Aves da noite,</div> + +<div class="poetry1">í-vos, deixae as +puerís entranhas.<br /> + +N'esta pequena victima tenrinha<br /> + +o tenro +pequenino aqui resgato;<br /> + +é coração por +coração; tomae-o;<br /> + +por visceras são +visceras; redima<br /> + +esta existencia immunda outra mais nobre.»</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Finda a sacra +oblação, corta o +deventre,</div> + +<div class="poetry1">e esmiunçado o vai +pôr aos ares livres,<br /> + +prohibindo do rito ás testemunhas<br /> + +olhal-a então +ninguem; por fim colloca<br /> + +a vara de oxiacanta, o don de Jano,<br /> + +na +janellinha que dá luz ao quarto.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Consta que desde então +não mais +volveram</div> + +<div class="poetry1">ao berço aves ruins; +saude, cores,<br /> + +tudo refloresceu +no innocentinho. <sup> <a href="#nt3">[3]</a></sup></div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[67]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois +côvados de baêta encarnada ou verde, vinho, +assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, conforme o dia em que acerta. A +madrinha dá um vestido, duas camisas, e uma touca. Cada um +dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu brio.<br /> + +<br /> + +Este dia é quasi tão festivo como o do casamento, +pois n'elle se cumpre a benção que no primeiro +dia se recebêra, e está salvo o interessante +pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que +as bruxas nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo +do peccado.<br /> + +<br /> + +<h4>XVI</h4> + +<br /> + +Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e +baptisado, cada povoação celébra a +sua, pública, no dia do Orago da sua capella. Tem fogo do ar +e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns aos +outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o +consentem, andam já desde a vespera á tarde pelo +adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o tambor, e despovôa-se +a visinhança com o chamariz do fogo de vistas nomeado de +<em>armação</em>, ou +<em>parreira</em>.<br /> + +<br /> + +Por esta occasião, nas casas principaes, isto é, +nas menos apertadas, saltam-se até a meia-noite as +danças, pela mór parte cantadas, do bom Portugal +velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle +vivente archivo +<span class="pagenum">[68]</span> +de antiguidades, nem +já, quasi, os nomes se conservam. São o <em>caracol</em>, +o <em>Senhor da serra</em>, o <em>lundú</em>, +ou +<em>landum</em>, o +<em>escalhabardo</em>, a <em>ribaldeira</em>, +o +<em>Francisco bandalho</em>, etc.<br /> + +<br /> + +A excitação do saltar, a virtude inspiradora do +vinho verde, e um poucochinho o natural desejo de brilhar diante das +raparigas e dos rapazes, fazem ás vezes com que ahi +appareçam, como nas romarias, como nos serões dos +lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de gosto, poetas e +poetisas que trovam de repente, e á porfia, por +espaço de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.<br /> + +<br /> + +Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem, +estão em pé, um diante do outro, no meio da roda +dos ouvintes. A toada de que se ambos servem, é sempre das +mais populares, e vai toda remançada, para que as ideias e +rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou +desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de +declamação accentuada.<br /> + +<br /> + +O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro +versos, correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou +consoantes; isto é: usam das quadras correntes em todo o +Reino.<br /> + +<br /> + +Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme +lhes convém.<br /> + +<br /> + +Principiam (é obrigado) por uma especie +<span class="pagenum"> <a name="p69" id="p69">[69]</a></span> +de elogio, ou vénia, ao dono da casa, +se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se +é em terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou +dos seus proprios amores; e d'ahi, muitas vezes sem +transição, saltam para um genero entre elles +muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico +<a href="#e5">fescenino»,</a> +se, de envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como +entre os Antigos, os dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se +empulham e desempulham, como os dois pastores virgilianos, com +surriadas de impropérios sempre ao galarim, sem que o fogo +das palavras prenda nunca nos corações. Com a +mesma +feição com que dizem, com a mesma ouvem; e +tão avindos saem da contenda, como n'ella entraram.<br /> + +<br /> + +Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da +sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por +mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e +que tudo quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes +porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é: +que a primeira metade de cada quadra tem frequentemente um sentido +diverso, e desconnexo do sentido da segunda metade.<br /> + +<br /> + +Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma +verdade vulgar, uma +<span class="pagenum">[70]</span> +imagem campestre, +a exposição succinta de qualquer facto, mas sem +relação alguma com o assumpto que se versa, o +qual só nos dois versos ultimos apparece.<br /> + +<br /> + +Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em +pratica de amigos com meus leitores:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3">O loireiro bate bate,<br /> + +que eu bem o sinto bater.<br /> + +Para comigo cantares<br /> + +has-de tornar a nascer.<br /> + +<br /> + +Á couve se come a folha;<br /> + +come-se a raiz ao nabo.<br /> + +Só te espero ver casado<br /> + +sendo mulher o diabo.<br /> + +<br /> + +Navio d'el-Rei é grande,<br /> + +é grande e chega ao +Brazil.<br /> + +Se namorares alguma,<br /> + +não seja á luz do +candil.<br /> + +<br /> + +Sequidão cria o centeio,<br /> + +frescura cria os repolhos.<br /> + +¡Quem me estreára comtigo,<br /> + +menina, os +lençoes de folhos!</div> + +<br /> + +<br /> + +Já se vê, por estas amostras, que a +improvisação não é +tão difficil coisa, nem para tantos encarecimentos, como a +teem feito alguns viajantes, d'estes que só viajam no seu +quarto, embarcados na sua poltrona.<br /> + +<br /> + +É por cá o mesmo, que provavelmente +<span class="pagenum">[71]</span> +será por toda a parte, sem exceptuar a +Italia, com que tanta bulha se nos faz.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3"> <em>Al porto di Livorno<br /> + +è giunto un bastimento.<br /> + +Cara, morir mi sento!<br /> + +mi sento, o Dio, mancar!</em></div> + +<br /> + +<h4>XVII</h4> + +<br /> + +Muito, porém, se enganára, quem inferisse que +toda a poesia dos meus serranos é de egual teor; porque, +sobre conservarem muita xácara de bons tempos, com as suas +lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices +e aprasiveis como ellas (o que já não seria +pequeno cabedal), cantam, e ás vezes engenham com singular +felicidade, quadras repassadas de amoroso affecto e graça +natural, que um poeta de nome não enjeitaria.<br /> + +<br /> + +E ¿que muito? ¿Por que não haviam de +nascer estros por ali, onde ha tanta Natureza, tantos sitios +inspirativos, tão bons ocios na solidão, tantos +amores (¡e amores +tão bem empregados!), e tão largos horizontes +para a saudade!<br /> + +<br /> + +¿Por que não haviam elles de nascer, quando +até pelas nossas encruzilhadas mal cheirosas e escuras, +pelos nossos botequins fumosos e azoinados, pelas casas d'essas ruas +feias, onde olhos e ouvidos se perdem e afogam em prosidade vil, +rebentam, viçam, e não raro florejam, talentos de +estimação e de valia?<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[72]</span> +Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades, +muitas coisas lhes empecem (não falando no desamor que os +esfria, e nas parvoas invejas que os matam); aos montanhezes, +afóra a Natureza, que lhes abunda, tudo mais lhe +mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha +poesia, como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde +pastor, appareceram as Musas, não invocadas, para o +bemfadarem.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não +esperdiçam, e, por falta de um prodigio que os desencante, +fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +<a name="n7" id="n7"></a>De uma pobre mocinha ovelheira +posso eu dizer; que por tardes de +verão muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado +nos degraus da capella de S. Sebastião; ella ali perto, +cantando e fiando em pé á sombra de um sobreiro, +no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como bem se pode crer, +¡enfeitiçados com a placidez de tão +livres horas em logares tão fugidos, tão +sobranceiros ao mundo todo!<br /> + +<br /> + +De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos +corados, não da memoria se não do espirito; e o +espirito d'ella, estava-se conhecendo que lhe residia no +coração, tão bem, +tão bem, tanto a seu grado, como em estufa bem quente uma +planta mimosa, que um ameaço de frio mataria. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[73]</span> +Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca +ouvira de obras de poesia senão as cantigas da sua terra, o +murmurinho dos seus rios; de madrugada a cotovia perdida pelos altos do +ceo; ao meio-dia as porfias das cigarras; ao descahir da tarde o +badalar longinquo das Ave-Marias; ao cerrar da noite o +regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus moradores, os seus +rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus +rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a +alma; de noite os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do +seu namorado.<br /> + +<br /> + +Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha +encarecer o que ella improvisava para as suas ovelhas, que a +não entendiam; para mim, que me occultava com mil cuidados +para não afugentar tão melodiosa ave; e para o +ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se +ao-pé da sua.<br /> + +<br /> + +Era a inspiração lyrica mais formosa, se +não a mais remontada. Eram os objectos do seu limitado +universo a mirarem-se na limpidez dos seus affectos, virginaes e +namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras destillando-se cada uma da +sua ideia com a propria côr, com a propria fragrancia que lhe +competia. Era o metro a correr, sem quebra nem extravasamento, a flux, +sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as rimas a vir poisar +espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da outra, como em dois +arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois passaros gorgeando. +Era tudo, emfim, quanto +<span class="pagenum">[74]</span> +a Arte requer, e só a Natureza pode dar aos seus mimosos<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!... +Até já as suas ovelhas se esqueceriam d'ella. +Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais +vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus +poemas. Se ainda canta... já não é a +terra +quem a ouve. Remontou o vôo muito mais alto que o da cotovia +sua mestra; engolfou-se por entre as scismadoras estrellas, que tantas +coisas em segredo lhe ensinavam; e virgem entre os Anjos, irman entre +seus irmãos, entretece a sua voz immortal no cantico sem +limite<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +<h4>XVIII</h4> + +<br /> + +Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem +menção da sua Musica.<br /> + +<br /> + +É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos +dizer de muita; e conserva puro e extréme o primitivo sabor. +Condiz com a Linguagem, com o trajar, com os costumes; seria excellente +oráculo para consultarem os modernos compositores de operas +nacionaes. Assim se temperariam para os nossos ouvidos, os quaes, posto +que affeitos de annos para cá a peregrinas melodias de muito +mais altos quilates, ainda comtudo se ageitam e conchegam melhor com as +toadas sentidas e singelas da nossa creação.<br /> + +<br /> + +Nas boas horas fique a musica italiana, +<span class="pagenum">[75]</span> +pois que entrou, e nos cahiu, e o merece; +mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda, +não se diga que aposentámos +nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por +trazer vasquinha e falar chão.<br /> + +<br /> + +Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o +até (se já +não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a +granel por essas comedias e farças, em que fala gente do +nosso sangue e dos nossos nomes. Mas uma vez ou outra ( <em>al +de +menos por +cortezia</em>, como dizem os meus serranos), deixem-nos ouvir em +boccas patricias coisa que nos alembre das cantilenas de nossas amas, +cantilenas que, ainda depois de apagadas da memoria, lá se +ficam algures no +coração, com quanto basta de vida para +ressurgirem ao primeiro aceno.<br /> + +<br /> + +Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e +arbustos exóticos da mais admiravel louçania; +mostre-nos lá, emboscadinho na herva, o malmequer da nossa +primeira adolescencia, a papoila retinta, que nos ria d'entre o verde +da seára, quando meninos; a papoila e o malmequer muito mais +nos hão-de conversar com o +coração um só minuto, que todas +ess'outras flores mais soberbas em toda uma primavera.<br /> + +<br /> + +Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que +muita vez n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com +saudades os descantes da serra.<br /> + +<br /> + +Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de +difficuldades, a dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe +revolve aos pés, a sumir os seus píncaros +florídos +<span class="pagenum">[76]</span> +e trémulos pelas nuvens, admiro-a, applaudo-a, e +esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o +coração.<br /> + +<br /> + +Porém certas cantigas que eu sei... não as +applaudi, não as admirei quando as ouvi, mas senti-as +repassar-me até ás fibras intimas; +assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em +substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do +silencio.<br /> + +<br /> + +Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares, +da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter +encontrado.<br /> + +<br /> + +E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas +não são algumas, até para orelhas +forasteiras, quanto mais para as do seu molde!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de +condão! ¡Se, em vez de vos falar do que por +vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos +lá de subito, a beberdes com aquelles ares bonissimos +aquellas cantorias agrestes, sem cultura, sem enxerto, luxuriantes de +natureza, macias, avelludadas, rescendendo a amor e +contentamento!<br /> + +<br /> + +Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas +por mãos perítas, nos podiam abastar de muito +oiro, que a Arte, batendo-o e cunhando-o a seu modo, poria em facil +giro com geral proveito.<br /> + +<br /> + +O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas +solidões, edificaria como Amphião novas Thebas, +attrahindo e +<span class="pagenum">[77]</span> +congregando com a +sua lyra penedias e florestas.<br /> + +<br /> + +¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final. +Mas por ora, o thermómetro do patriotismo assignala graus +para baixo de zero.<br /> + +<br /> + +Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se +teem voltado; e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo, +querendo Deus; ¿mas quando? sabe-o Elle.<br /> + +<br /> + +Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer +levantar-se. Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que +se admiram em alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem +pequeno custo, bem farta corôa grangeára.<br /> + +<br /> + +¿Que digo «custo»? ¿Onde ha +ahi delicia como é o viajar caçador de Artes, por +toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com +agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto +dos thesoiros que se tomam?<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus +espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular +feição de melancolia mui suave, era a +extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes a +perder de fôlego. É donosa coisa; +mórmente pela noite, e ao longe...<br /> + +<br /> + +A explicação d'esta singular maneira deve ser, +segundo me parece, o costume de cantarem muitas vezes a sós +por lombas descampadas e cumes de oiteiros, d'onde a voz tem de correr, +e correr, primeiro que tope com ouvido em que se hospéde. +Outras vezes +<span class="pagenum">[78]</span> +é +ao-pé de estrépito de aguas, +que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em +paragens de eccos, nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si +mesma namorando.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro +por estirado valle, ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras +conversando por cantoria; e, graças a este methodo de irem +fiando cada syllaba... comprida... comprida... entendiam-se (podendo +apenas enxergar-se), como se estiveram assentadas mão por +mão, e muito manas, á +soalheira no seu aido.<br /> + +<br /> + +Sustentam-se estas entoadas conversações, em +prosa inteiramente desatada de rithmo, e não obstante +rimada, rimada por um modo tão insólito como +facil.<br /> + +<br /> + +Exemplo:<br /> + +<br /> + +¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">―Ó ia, eu te digo +ó Maria,<br /> + +Ó iga, que se tu +és minha amiga,<br /> + +Ó á, botes as cabras para +cá,<br /> + +Ó enda para me ajudares a comer a merenda,<br /> + +Ó eijo, que +tenho aqui brôa e queijo,<br /> + +Ó ôas, e umas +maçans muito bôas.</div> + +<br /> + +<br /> + +E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a +outra interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão +no colloquio por ter chegado a sua vez. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[79]</span> +<h4>XIX</h4> + +<br /> + +Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica. +Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos +as de cada familia e as de cada aldeia) são: o Anno-bom, o +Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e o Natal.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O Anno-bom não é ao presente senão um +rebate para comesaina rasgada, e se deitar uma can fora.<br /> + +<br /> + +As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado, +já lá vão.<br /> + +<br /> + +Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras +ao cabo se desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao +romper do primeiro sol do anno os cachopinhos de cada +povoação, todos em bando, o mais bem arreados que +podiam, com suas sacólas, ou alcôfas, +ás costas, a cantarem de porta em porta, e, percorrido o +logar, de aldeia em aldeia, até se lhes acabar o dia, umas +trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de campanudos louvores +á bizarria do pae ou mãe de familias, e +desfechando sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou +pão branco, para a ajuda do +<em>refestêllo</em>; +contribuição com força de Lei, mas de +que todos se desempenhavam á boa-mente. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[80]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O Carnaval, é como ainda nós por aqui o +conhecemos nos seus dias aureos, tríduo de folia desatada, +guerra porfiada e bem rida de todos contra cada um, e de cada um contra +todos.<br /> + +<br /> + +São as pulhas, as peças, os esguichos, os +pós, a laranja<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....que +derruba o chapeo,</div> + +<br /> + +<br /> + +de que o bom <a name="n8" id="n8"></a>Filinto com tanta +saudade se lembrava lá em +París, o rabo-leva de tripas entufadas, a mão de +ferrugem da chaminé com azeite pelos fucinhos, as +estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho +com sal, as filhós com trapos, e todos os mais +adminiculos, que no +ritual classico se conteem.<br /> + +<br /> + +Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se +não veja povoa nem viva alma, duas coisas se +hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e apupar; +toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra +são descargas de espingardaria. Ninguem tem +caçadeira velha em termos de dar fogo, que não +saia com ella a salvar.<br /> + +<br /> + +N'esta occasião (não sei por quê) o rio +de S. Mamede parece marcar fronteira entre duas +nações inimigas; a metade +cíterior, e a metade ulterior da freguesia, formam dois +exercitos, que, disposto cada um na sua banda pelos altos mais patentes +e convisinhos aos seus adversarios, para lá lhe atira por +cima da torrente, sem folga nem misericordia, turbilhões de +chascos, de apupos, de rugidos +<span class="pagenum">[81]</span> +de buzinas, de buxas accezas, e fumarada. Estremece a terra sob +os pés; retumbam pelo ouco dos valles, pelas refolhadas e +sinuosas lapas das ribanceiras, os rolantes trovões +centuplicados...<br /> + +<br /> + +O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado +asninho, visitando as povoações, com barbas +brancas em faces avinhadas, e canna em punho para se abordoar, facil, +prasenteiro, com séquito de rapazía a abuzinar, e +de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem +poderá ser o próprio Sileno das bacchanaes, +metamorphoseado pelo tempo, constante parodiador das suas mesmas obras, +pois não é necessaria grande +perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se +conciliaram diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as +saturnaes; por embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e +quejandas (o numero era folgado).<br /> + +<br /> + +As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos +redís e apriscos, para se estarem regalando ao banquete da +familia, teem um Carnaval particular, um Carnaval nómada e +silvestre, cosinhado e comido ao ar livre, e a que ellas chamam +«o seu gôrdo».<br /> + +<br /> + +O <em>gôrdo</em>, para o qual de +tempos se andam aparelhando, é feito por varias d'ellas em +commum, convidadas e admittidas outras amigas, e algumas vezes tambem +alguns moços seus parentes.<br /> + +<br /> + +Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um +gôrdo; e ainda agora me está sabendo. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[82]</span> +Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso +de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um +vestíbulo de areia parda e fina, á borda da agua.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n9" id="n9"></a>Nympharum +domus.....</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +não lhes faltando os competentes<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....vivo +sedilia saxo. +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os +comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria +folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de +leite recem-mugido.<br /> + +<br /> + +Terminaram com uma dança no areal, por não haver +melhor, e debandaram, cada uma atraz do seu gado, quando já +lá por cima branquejavam estrellas. A fogueira +serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na +corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as +levaria.<br /> + +<br /> + +Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos, +parecidas com o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas, +travada com ellas, uma usança ha ali, que só ali +ha, e que eu aponto, não só +porque me ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não +porque dará luz para se entender o poema que a diante vai, +com o titulo de <em>Domingo gordo dos montanhezes</em>.<br /> + +<br /> + +N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S. +Sebastião, que já sabeis +orla o passal pela banda do poente, todos os +<span class="pagenum">[83]</span> +moços solteiros da freguesia, a +plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o quê, +e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para +isso a Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para +suas terras a folgar.<br /> + +<br /> + +Nem o introductor, nem o tempo da introducção +d'esta pratica, são já hoje conhecidos. +É uma tradição piedosa, uma lei moral, +sem nenhum genero de comminação, mas +tão á risca obedecida, como se as tivera.<br /> + +<br /> + +É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um +bello exemplo de desinteresse; pois na plantação +quem só ganha +é a selva, que se dilata, e o Santo, a quem se engrossam os +rendimentos.<br /> + +<br /> + +Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a +capellinha, ou de algum outro Bemaventurado, com fama de +boa-mão para casamentos, ainda se aventaria um motivo +pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que +só da peste é advogado!...<br /> + +<br /> + +Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra, +¡e oxalá dure sempre! ¡e +oxalá por muitas partes o imitassem!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de +nós outros, bastam duas considerações: +a d'elles é festa +do espirito, e mais do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem +do espirito.<br /> + +<br /> + +Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva +lhes faz estar vendo ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie +humana; +<span class="pagenum">[84]</span> +e do corpo tambem, porque +o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas +succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e +bem jejuada quarentena.<br /> + +<br /> + +Move suavemente os corações acompanhar a +procissão, que da egreja sai depois da Missa cantada, com os +seus cirios accezos, cantando as aleluias, atravessa o amplo adro +alcatifado de bordada relva, sombreado das suas cerejeiras +já revestidas, atravessa o passal por entre as alas das +pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se +espairece ao longe, como uma piedosa exultação, +por entre os mattos rejuvenescentes.<br /> + +<br /> + +O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As +arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado +de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora +todas suas galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a +Natureza parece ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe +entôam canticos, como os homens, as mulheres, e as +creanças. A aleluia ressôa em toda a parte; +lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os +corações ferve o amor de Deus, o amor da +Natureza, e o amor mutuo.<br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os +arroubados requebros do Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh! +¡que permutar de boas-festas! Mal o presumem, os que todas as +cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um cartão +alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.<br /> + +<br /> + +Recolhida a procissão, tornam-se todos +<span class="pagenum">[85]</span> +correndo a suas casas, a acabar de as +pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se +de ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores +baixellas; crepíta o lume na cosinha revôlta; +idéia-se um simulacro de altar, ou se enroupa uma cama de +lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o senhor Prior, com a +sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar (quando mais +não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da +familia falta á porta para receber a aspersão de +agua benta, que elle ao entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras +rituaes da benção: «Paz +a esta casa, e a todos que n'ella moram.»<br /> + +<br /> + +Tal visitação, que (já se +vê) se não conclue no primeiro, nem muitas vezes, +no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda +de prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada +fogo; não pelos saccos de folares que se ajuntam; mas pelo +muito que assim de novo se apertam os vinculos mutuos do Pastor e do +rebanho.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +No 1.º de Maio põem, á entrada das +habitações, <em>maias</em>, que +são ramos de +sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com +seus fuzos, carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo +se fadam a terra e a casa: a terra, para que dê linho +comprido e sedoso; a casa, para que se guarde e mantenha +próspera.<br /> + +<br /> + +¿Quem não vê n'estas maias outra +degenerada herança dos nossos antigos senhoreadores? +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[86]</span> +No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo domestico dos seus <em>Lares</em>, +deuses protectores da poisada, e cujos idolos se tinham junto ao fogo +da cosinha, ou em nichos por de traz da porta principal. Revestiam-n-os +de pelle canina; e em monumentos antigos se vê ao +pé d'estes deuses representado o animal symbolo da +fidelidade, e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio +nos seus <em>Fastos</em> nol-o +descreve. Brindavam-n-os com libações de bom +comer e beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de +flores, e já de lan.<br /> + +<br /> + +Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois +acreditavam que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se +compraziam de habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde +vivia gente do seu sangue.<br /> + +<br /> + +Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do +mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas. +Vieram Lares +<em>viaes</em> (dos caminhos), <em>compitaes</em> +(das +encruzilhadas), <em>urbanos</em> (os padroeiros de cada +cidade), <em>publicos</em> (os mantenedores dos +publicos edificios), <em>rusticos</em> (os custodios do +campo), +<em>hostis</em> (os amparadores contra inimigos), +<em>marinhos</em> (os guardiães dos navios).<br /> + +<br /> + +É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem +Romanos, se haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de +suas religiosas praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre +estrangeiros; e bem boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle +cahos de poeticissimos desatinos e devassidões. +<span class="pagenum">[87]</span> +Fazia venerar e amar a +casa; com a casa, a familia; com a familia, os sãos costumes +da creação. Ainda por cima, fazia resplandecer +luzeiros de esperança na +cerração das adversidades; o que dá +coração e brios para as resistir.<br /> + +<br /> + +Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana +provincia Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que, +aliás, podem ser documentos, além de outros, o +nome de <em>lareira</em>, geralmente +conservado ao lastro da chaminé, e o proprio de +<em>lar</em>, com que em Traz-os-Montes se chama a corrente +de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a +fogueira.<br /> + +<br /> + +Já cada um inferirá que as +<em>maias</em> dos meus serranos, festejo que só +á casa se refere, +coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como quer que seja, +o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de +ter, aquella origem.<br /> + +<br /> + +Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito +christão, ainda mais poetico, chamado das +<a name="n10" id="n10"></a>Rogações ou +Ladainhas de Maio.<br /> + +<br /> + +Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e +acompanhando em chusma as entoadas preces da Egreja, a +procissão, que lá se vai, humilde, atravez dos +campos desatados em flor. Imploram as bençãos do +Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos +não devorem a vinha ou seára; que +intempéries do ar e trovejados granizos não +derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[88]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado +de dia pelos oiteiros, de noite pelos serões.<br /> + +<br /> + +Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que +se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora, +não sem graça), que por ali em louvor do Baptista +se exhalaram outr'ora do seio de poetas desconhecidos.<br /> + +<br /> + +A medo me rendo á tentação urgente de +as mostrar; que, despojadas da sua melodia, desquitadas das vozes +tão frescas e juvenís das suas cantoras, e nuas +dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e sombras +em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão +parecer-se comsigo mesmas.<br /> + +<br /> + +Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja +differença na substancia, vai tanto, como de uma formosa +donzella podéra differir o seu cadaver.<br /> + +<br /> + +Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que +no fundo da alma se me estão ainda cantando, por entre +simulacros de figueiras, que entretecem sobreceo verde á +fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, não as +contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil +maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com +que umas rusticasinhas de roca á cinta tratam o Santo +Precursor. São amores velhos; não ha que lhes +dizer.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">―¿San-João das +barbas doiradas,<br /> + +onde foste +ter as orvalhadas?<br /> + +―Fui as ter áquellas hortas,<br /> + +recordar +aquellas cachopas.<br /> + +<span class="pagenum">[89]</span> +<br /> + +Recordae, recordae, perguiçosas,<br /> + +que da fonte +já veem as formosas,<br /> + +com as talhas cheias de cravos,<br /> + +que +lh'os deram os seus namorados,<br /> + +com as talhas cheias de flores,<br /> + +que +lh'as deram os seus amores.<br /> + +<br /> + +San-João, rico cavalleiro,<br /> + +companheiro de Nosso Senhor,<br /> + +acompanhae a minha alma<br /> + +quando d'este mundo fôr.<br /> + +<br /> + +―¿Por que tendes, San-João,<br /> + +esses sapatinhos +brancos?<br /> + +―Para passear ás moças<br /> + +domingos e dias +santos.<br /> + +<br /> + +―¿D'onde vindes, San-João,<br /> + +que assim cheirais +á macella?<br /> + +―Venho da serra da Estrella,<br /> + +de fazer uma +capella.<br /> + +<br /> + +―¿D'onde vindes, San-João,<br /> + +pela calma sem +chapeo?<br /> + +―Venho beber agua fresca,<br /> + +que faz calor lá no ceo.<br /> + +<table style="text-align: left; width: 305px; height: 31px;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os +aferidores e malsins da Literatura, que, se me tomam, com isto nas +mãos, dão comigo do avêsso.<br /> + +<br /> + +Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes. +Á noite accendem fogueiras, dançam, cantam, +namoram, e galhofeiam em de redor d'ellas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[90]</span> +Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao +sereno, que lhes ha-de n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu +futuro, e chamuscam as hervas e flores, que sabem de constancias e +inconstancias.<br /> + +<br /> + +Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes +virtudes e preservativos; mas especialmente o de S. João do +Monte, á conta do seu nome bento.<br /> + +<br /> + +Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta +colhem ramos orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram +de raio; trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os +partos, apertando-se nas mãos.<br /> + +<br /> + +A agua da fonte da manhan de S. João é como a +primeira que chove em Maio: torna o carão formoso.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo +descoberto, não correndo o tempo de invernia. São +rebordans a granel, entre grande larada de brazido, a estoirarem e a +acerejar-se, em quanto um farto lombo de cevado rechína e +fumega em vergante espeto de pau, a pingar n'uma telha ou frigideira.<br /> + +<br /> + +É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos +rapazitos, e pelos visinhos menos folgados, que todos então +se convidam.<br /> + +<br /> + +Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já +então arripiada. Mas... quanto +mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e para +a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os +animos dos convivas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[91]</span> +Á fé que lhes não falta por +quê. O dia que apóz vem, é o dos +finados; dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos, +para todos quantos, com Fé ou sem ella, possuem um +entendimento, e meditam.<br /> + +<br /> + +¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem +mais devaneador e recolhido, que homens acostumados a +solidão, curtidos nas duras realidades da vida, remotos do +cortesão bulicio, embotador pessimo de toda a sensibilidade! +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a +noite não quieta.<br /> + +<br /> + +Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe, +até se esvaecerem, os tons afflictos, que a nenhuma de +tantas poisadas deixam de dizer algum segredo de dor, e de encommendar +algum suffragio. ¡Oh! ¡se +não se elevarão elles, e bem ferventes, exhalados +pela voz do sangue, pelo amor, pela amisade, pela caridade!<br /> + +<br /> + +Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz +bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura +se descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis +côro de Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta, +pelo meio da povoação, a supplicar em nome dos +penados de alem mundo, que para si não podem requerer, +esmola de orações, refrigerio para os ardores que +lá padecem.<br /> + +<br /> + +Não ha seio tão escudado, que um santo horror o +não estremeça; egoismo tão +empedrenido, que sustenha as lagrimas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[92]</span> +...Até que o solemne pregão transpõe e +se esvai; e na calada se torna a perceber o dobre longinquo da egreja.<br /> + +<br /> + +Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o +interior.<br /> + +<br /> + +Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que +vão de aldeia em aldeia +<em>amentando</em> as almas, arrastavam d'antes +grilhões aos pés, o que ainda augmentava o pavor +do seu pregão.<br /> + +<br /> + +Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes +quem entre nós os soffreria? Por +lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, como +exactores que são de um +tributo da outra vida.<br /> + +<br /> + +Desde o romper d'alva não descança a egreja de +absorver povo. Todos os caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques, +todas as ladeiras, todos os valles, todos os oiteiros, o brotam e +expedem á porfia.<br /> + +<br /> + +Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o +moço em flor de annos; a donzella; os irmãos, +pequeninos e já orphãos, +pela mão de sua mãe; todos graves, cuidosos, +taciturnos; todos lá por dentro orando; todos anhelando +irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali +assistirem ao incruento Sacrificio.<br /> + +<br /> + +Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o +semi-festim da vespera é quasi geralmente descontado pelo +jejum mais rigoroso.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Emfim vem o Natal.<br /> + +<br /> + +Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas +christianissima +<span class="pagenum">[93]</span> +(quizera eu dizer) +do Christianismo, nenhures cabe tão em cheio, nem tanto com +os animos e corações se coaduna, de veras crida e +com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.<br /> + +<br /> + +Víreis o Presépio de Belem, não +já por caprichosas artes remedado, mas em tão +cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a adoral +o.<br /> + +<br /> + +Disséreis que ao soar da ave da meia-noite, +desferiu vôo d'entre as estrellas, de que se +corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos +pegureiros com o pregão de «Gloria e +Paz», com a nova de ser nascido o Desejado das gentes.<br /> + +<br /> + +¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de +toda a parte confluem pelo escuro em demanda do Menino!<br /> + +<br /> + +Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso +dentro n'alma.<br /> + +<br /> + +O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par +aberto, é a santa Gruta.<br /> + +<br /> + +Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o +Divino Infante.<br /> + +<br /> + +O adro vê dançar as rondas de camponezes +á roda de um monte de arvores accezas, ao som da +gaita e do tamboril.<br /> + +<br /> + +Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada.<br /> + +<br /> + +Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as +cantigas da benta noite. Cada um d'estes córos é +exclusivamente composto das moradoras de cada margem do rio que biparte +a freguesia. Vai entre ellas a mesma rivalidade, que já +descobrimos entre +<span class="pagenum"> <a name="p94" id="p94">[94]</a></span> +os homens, +quando no Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um +estrepitoso arremêdo de combate.<br /> + +<br /> + +É a qual dos bandos trará mais formosas quadras +para entretecer com as antigas, mais argentinas falas e melhores +requebros para as gargantear. Cuida-se ouvir musica de Seraphins; +exulta o coração; e, sem vergonha, se +estão sentindo as faces humedecer-se.<br /> + +<br /> + +Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que +se estão vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em +braços do Parocho o Menino, a fazer colheita de beijos e +louvores, de supplicas e offertas. Então é que +surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e +á porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de +ordinario, a todos, os mui primorosos artefactos de pinhões +e frutos sêccos.<br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que +ali pendem ao collo de suas mães! vão-se-lhes os +olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz +lindezas tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se +destinam, com os seus olhos tão azues, a bocca +tão amorosa, as faces tão coradas como as +maçans que se lhe offerecem, é já a +Elle que só +cubiçam; e só choram, porque o não +deixam +<a href="#e6">acompanhal-o</a>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente.<br /> + +<br /> + +¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem +a destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé? +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[95]</span> +É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na +resposta.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza, +nobres de humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores +de S. Mamede da Castanheira do Vouga.<br /> + +<br /> + +<h4>XX</h4> + +<br /> + +Que eu por lá versejasse, já a ninguem +ficará sendo maravilha; antes, sim, a podéra ser, +que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas as +rasões d'isso de si mesmas se confessam.<br /> + +<br /> + +Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me +foram totalmente desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri +possivel, que houvessemos jámais, eu nem coisa minha, de +reparecer no mundo.<br /> + +<br /> + +Assim, só por desabhorrimento é que poetava de +longe em longe; isto é: poetava por fóra, e no +papel, que no coração e no +animo estava eu comigo a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de +leve me acreditarão os que d'isto sabem) não foi +a que se escreveu, se não a que deslizou suave, entre +sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, suspira e +medita.<br /> + +<br /> + +Escrever só para si, não sei que ninguem escreva; +é trabalho supérfluo, e que, se +dá fruto, o dá ruim, que de pêco e +descorado nos desconsola. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[96]</span> +¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou +affecto, que no trabalho de se corporificar para sahir a lume e correr +por mãos e olhos, não perde muito do seu +primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou do seu +calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja que +era seu, e que era elle mesmo em grande parte?<br /> + +<br /> + +Isto dos livros não são senão uns +retratos mortos, umas toadas, reflexos, e sombras, de festas que se +fazem n'um interior, e de que os passageiros, por mais que se lhes +abram as janellas, e que elles appliquem os olhos e ouvidos, +só podem perceber a totalidade, e conjecturar as +circumstancias.<br /> + +<br /> + +O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros +de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda +para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder, +ás concepções e aos affectos.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que +peor é) do livrinho, está em que a maior e melhor +parte dos condões e feitiços da montanha, que ora +cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis, +então que eu os tratava e d'elles vivia colmado, me +não faziam os effeitos, que atravéz dos vidros da +saudade me produzem.<br /> + +<br /> + +Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o +perdido; que já por isso dizia Rousseau, que nunca +tão bem falaria da liberdade, como entre ferros da Bastilha. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[97]</span> +¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a +abrolhar? é no meio do outono a desvestir-se. ¿A +do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que +tirita e se encanece de geada.<br /> + +<br /> + +¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros, +não é paraiso, para onde todos, todos, nos +quizéramos tornar?<br /> + +<br /> + +¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo +extremo os camponezes, se acabassem de entender os bens que +logram!»<br /> + +<br /> + +Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar, +é este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a +instante m'o explica.<br /> + +<br /> + +Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e +collo descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando +importunas obrigações me veem ripar e consumir as +semanas a dia e dia, os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto. +<br /> + +<br /> + +Pela conversação pacifica das moitas e torrentes +me definho, quando, no mais fortuito, no mais leve, tratar com homens +me aguardam sempre desencantamentos, desconsolos, rasões +para os desprezar, ou para fugil-os.<br /> + +<br /> + +Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor. +Aqui, pelo contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.<br /> + +<br /> + +Lá, a benevolencia é semente de benevolencia, +para dar cento por um. Aqui, é grão que sempre +degenéra, ou não germina, ou brota villans +ingratidões, que envergonham até a quem as ouve. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[98]</span> +Lá, o folgar é franco, e as festas são +festas. Aqui, o folgar é escaço e fingido; as +festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de gladiadores, +que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns aos outros, e +aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.<br /> + +<br /> + +O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo +mais cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão +roda; e em vez de o esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como +o Iscariotes por sua mão, para escarmento a sevandijas e +lição a paes que estão creando feras +bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de +applaudil-o por medo, apertar lhe a +mão +dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, com sabel-o +expulso de muitas portas.<br /> + +<br /> + +Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para +o que Deus os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia, +para macío agazalho nas horas do somno ou da +doença, para gala candida dos altares, e a final para +curativo de feridas.<br /> + +<br /> + +Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao +alvorecer de Maio, a sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do +seu linho, a cabo de tão bons serviços, poderia +vir ainda a converter-se em papel para a nossa Imprensa, isto +é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e absurdo, a +ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de +descredito e odios, em disseminador de todos os principios de +dissolução, +já moral, e já politica?! +¡Pôr-lhe ella a +sua roca para benção! ella, a boa filha das +serras, +<span class="pagenum">[99]</span> +fêmea sincera e verdadeira, coração +lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe +ella encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre +companheira, a que tão santas maximas e tão +formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar á sementeira +o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que +vale o mesmo.<br /> + +<br /> + +<h4>XXI</h4> + +<br /> + +¡Que de vantagens para o ermo não são +todas estas!<br /> + +<br /> + +E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem +nascido!<br /> + +<br /> + +Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de +espaço e tempo, e pela +contraposição, que se conhecem. ¡E eu +malbaratei quasi tudo isso!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3 tinyl">........ munera nondum<br /> + +Intellecta deum!....</div> + +<br /> + +<br /> + +Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão +quebrantador martyrio da experiencia,<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3 tinyl"><a name="n11" id="n11"></a>..... +Oh ubi campi!</div> + +<br /> + +<br /> + +¡Como me não agarrára, com raizes mais +fundas e tenazes que o meu cedro, ao chão da vida facil, +innocente, e obscura! ¡Como não +borbotára em hymnos o meu jubilo! ¡Como +não saudára com lagrimas de +gratidão a aurora, tornando a encontral-a! ¡Que +não palrára com as torrentes! ¡Que +noites +<span class="pagenum">[100]</span> +desveladas sob o +pavilhão estrellado e vastissimo da montanha!<br /> + +<br /> + +Em vez de +rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar +este painel noticias de logares, e até de usos, tudo eu +mesmo visitára com devoção de +peregrino; tudo +revolvêra; com tudo me identificára.<br /> + +<br /> + +As saudades, que de lá para aqui me estão +salteando, d'aqui para lá já não +atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira +sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me +perdessem logo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +―O abdicar―dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro +e hortelão de Salona―o abdicar é o +começo do viver.<br /> + +<br /> + +¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso +da fortuna o rir, o dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na +primeira hora que empunhassem, com animo feito, uma rabiça +ou um foicinho!<br /> + +<br /> + +¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e +até imperios romanos, como elle, quando renunciar o pouco, o +quasi nada, que se tem de cidade.... só de o cuidar, tanto +namora a phantasia!<br /> + +<br /> + +¡Se jamais virá tempo de eu poisar em +torrão meu, debaixo de sombras minhas, a cabeça +encanecida e regalada!<br /> + +<br /> + +Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e +limas, como o presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda, +quanto o filhinho mais pequeno atravessasse correndo de um +fôlego. Mas isto em solidão bem +solidão, +<span class="pagenum">[101]</span> +onde só os +astros me enxergassem, +só as estações me visitassem, e da +banda do mundo nada me chegasse, senão o vento, +já expurgado e esquecido de humanas vozes.<br /> + +<br /> + +Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio +e reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.<br /> + +<br /> + +Ahi me reverdecêram o coração e mais o +espirito, que me elles por cá trazem tão +lastimosamente desfloridos e murchos.<br /> + +<br /> + +Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol +remoçador de quanto existe.<br /> + +<br /> + +A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa +eólia entre jasmineiros, pendente em hombral de gruta +ás virações da primavera.<br /> + +<br /> + +Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em +tarefas ephémeras e sem gloria, posto que não sem +consciencia e diligencia, se me desbarataram na galé da +Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) nas palhas d'essa +doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do Universo; +doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.<br /> + +<br /> + +Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me +enguliu, com os annos que me tomou, outros tantos da minha existencia +para diante; pois em cada tomo de periodico, sincera e honradamente +redigido, se podia escrever este epitaphio: <em>Aqui jaz um anno +de fadiga e dois de vida de.... Orae por elle</em>. <sup> <a href="#nt4">[4]</a></sup> +<span class="pagenum">[102]</span> +Vendem-se ainda primogenituras +por menos que prato de lentilhas.<br /> + +<br /> + +Vingára-me (¡oh! ¡se me +vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda +por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes, +appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os +seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n12" id="n12"></a>Parve, +nec invideo, sine +me, liber, ibis in Urbem.<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +―¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus +gostos e desejos?―dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que +sabemos, que nunca faltam, escoimadores +<em>ex-officio</em> do alheio.<br /> + +<br /> + +―Senhor meu,―lhe respondo eu já:―pois é por +isso mesmo, de não passarem de fabula os meus gostos e +desejos, que se me ha-de relevar o dar-lhes eu largas no papel.<br /> + +<br /> + +Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal, +coroados de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar +do Empyrio a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o +tempo que n'estas palavras gasto aproveitara-o melhor, em correr para o +meu refugio, beijal-o, replantal-o, +aformosental-o. E em lá +vindo o florído Maio, ride-vos de pagão que +brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem +por longe se pareça com a de um +<span class="pagenum">[103]</span> +viver remançado, em casa sem +numero, nem espias, ao som da Natureza, á lei da propria +inclinação; sem ouvir horas que nos chamem, sem +encontrar com glosadores que nos aboquem no ar +acções e palavras, para nol-as tingirem de branco +em preto; nem cahir nas garras de ociosos, que vos +emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma noite +de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que +são a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de +abhorrimento; seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de +quem vos não vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido, +refulgente epigramma de esmalte contra meritos e virtudes; e de noite, +interrompido na meditação, ou cortado no melhor +do somno, pelo retroar de carroagens, que em fluxo e refluxo continuo +levam e trazem, sempre a correrem para nada, pygmeus, +histriões, da farça séria d'este +mundo?<br /> + +<br /> + +Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura, +ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis +mais depressa +coisa a ella parecida, do que não por estas +almotaçadas metrópoles, onde se blasona que ella +tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre são festas +acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao +mesmo tempo: este, o <em>Te Deum</em>; aquelle, o <em>De +profundis</em>; um, o +<em>Quomodo cecidit civitas plena populo</em>; outro, o +<em>Cantemus Domino</em>; qual, o <em>Miseremini +mei</em>; qual, o <em>Ecce sacerdos magnus</em>.<br /> + +<br /> + +Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade, +derrubaram-n-a do seu +<span class="pagenum">[104]</span> +pedestal +as aguas do diluvio de Noé, quando arrojavam cada coisa para +seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o pedestal razo, com o +formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha de ser ermo +pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. Aqui, +pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +E quando não, mettei bem por dentro a mão na +consciencia; e, deixado o palavrório que não +sôa muito senão por ser vazio +(como tambor de foliões), dizei-me, ou dizei-o a +vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem que +desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, e +não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem +alvoroto de praças, e reboliço de vizinhos, pois +diante de suas janellas o que só se meneia e conversa +são arvores, e por cima do seu tecto não moram +senão hervas, que mal ciciam, e só recebem de +visitas passarinhos ou borboletas?<br /> + +<br /> + +¿Quem mais livre?<br /> + +<br /> + +Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu, +sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o +cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos +convites. ¿Quem mais livre?<br /> + +<br /> + +Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as +occupações de todo o dia. ¿Quem mais +livre?<br /> + +<br /> + +Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons +somnos, pão, e para conduto um +<span class="pagenum">[105]</span> +apetite desenganado, entre o trabalhar, +repito, canta, ou traz o espirito a monte, a sabor de suas +chyméras (que tambem as tem como qualquer outro); e +é este o mais invejavel privilegio do trabalho corporal, +sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não +captivar senão os braços; cavando, +podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da obra, estar armando +doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir com os companheiros, +ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a alegria que se +esconde.<br /> + +<br /> + +Este <em>deus in nobis</em>, unica das +divindades campestres em que se pode crer, perguntae se não +será para muitas invejas aos taciturnos enxames que pejam +escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi +todos os que remam á consciencia o seu remo na +galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais +livre?<br /> + +<br /> + +Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o +meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço, +para folgar entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de +coser ao lume que o aquece. Não tem de ir fazer sala a +ninguem; respira a peito cheio; não ha que ciar se de mulher +e filhas, que +não dá a terra operas nem bailes; filhas e mulher +á roda lhe serôam, tão satisfeitas como +elle. Não se levanta ali jogo, que, por +tentação ou falso pondonor, o obrigue a +pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida. +Não o compellem a ajudar com desatinos seus os alvitristas +regedores do mundo em sêcco; nem mesmo a ouvir ler, n'uma +coisa mal-cheirosa chamada periodico (especie de cogumellos +<span class="pagenum">[106]</span> +da Imprensa, em que entre os +não maléficos tantos ha de sapo), o artigo +famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe levantam +falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do chylo. Quem +não tem com que incite invejas, seguro está de +vis praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre?<br /> + +<br /> + +Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas +destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não +creal-os o sitio, nada reluz na poisada que os attráia.<br /> + +<br /> + +Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os +pães para a tulha, o vinho para a adega, o azeite e os +frutos para a dispensa, a hortaliça para a panellinha de +barro, as filhas para o casamento, os rapazes para lhe pagarem na +velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o Ceo, onde +crêem de fé que os estão seus parentes +esperando.<br /> + +<br /> + +¿Então, será, ou não +será, este um viver dez vezes mais livre e afortunado que o +nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o +direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo, +que não deixei na matéria udo nem +miudo; ¡como se miudos houvera no que são +condições de boa +ventura!<br /> + +<br /> + +Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu +proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao +coração de alguns d'estes, que vivem na +Côrte por fadario, por vezo, ou por inercia, sempre +mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou podendo, se uma +hora olhassem +<span class="pagenum">[107]</span> +por si, adquirir, sem +nenhuma difficuldade, o que eu, e outros taes, tão +baldadamente supplicamos á fortuna: uma vivenda campestre, +uma existencia natural, serena, commoda, florescente, risonha para a +pessoa, dadivosa e exemplar para os visinhos, manancial de riqueza +privada e publica, abonadora de bons costumes, e de afortunada +descendencia; uma existencia, em summa, que, a de mais de retemperar +corpo, animo, e coração, para se n'ella +saborearem, +até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto, +quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o +medicinalissimo <em>Livro da Solidão</em> do +<a name="n13" id="n13"></a>Doutor Zimmermann. Aprenderiam a +perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a +embellezarem-se n'ella, a serem e a fazerem venturosos, quanto +é dado havel-os n'este mundo tão instavel, +tão fugidio, tão calabreado de bens e males.<br /> + +<br /> + +O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra +servindo; na solidão é um homem. Na sociedade, +é uma +partícula irresistivelmente arrebatada n'um redemoinho; na +solidão um todo quieto.<br /> + +<br /> + +Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde +uma vez passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra +d'ella; porque o homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro +das humanas tirannias, se faz em algum modo semelhante á +creança; +<span class="pagenum">[108]</span> +readquire +o que quer que seja da sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus +gostos, dos seus brincos.<br /> + +<br /> + +¿Quem se lembraria de pôr um barco de +cortiça (ainda que de seu natural tivesse o ousal-o) n'um +tanque do <a name="n14" id="n14"></a>Passeio publico, +cercado dos fumantes do Marrare, e dos +collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas que +fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa, +até só para si, faz d'isso; e mais se encanta em +o fazer, que um ricaço em torrear palacios.<br /> + +<br /> + +Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no +cêvo das armadilhas que lhes andou dispondo, edifica +á borda de um arroio uma azenha de dois palmos, com seu +rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear, +respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para +horas.<br /> + +<br /> + +Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam +com a familia de um coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva, +como Werther e Hugo se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e +reinos de animálculos, em que só o mancebinho +muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam enlevar.<br /> + +<br /> + +¡A solidão! ¡a solidão!... +provae-a, sequer, affligidos do mundo, e pregoareis d'ella o que eu me +não affoito a encarecer-vos.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Um só achaque hei-de eu impôr á boa da +solidão, á gentil namorada de Rousseau, de +Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos; +<span class="pagenum">[109]</span> +e vem a ser: que, pois nos descalleja o +coração, banhado nas suavidades da mãe +Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos +detrai, assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas, +quando não as podemos extirpar. No ermo ressôam +mais alto os gemidos, como na calada da noite se dão a ouvir +mais claras as vozes.<br /> + +<br /> + +Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita +colheita, o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos +enfermos, quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo +aquillo; e o coração, que não tem para +dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange todo, e +se espedaça.<br /> + +<br /> + +¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão +pouco! ¡sería tão +festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria! +¡deixaria, por corôa de beneficios, tão +sinceros, tão +duradoiros agradecimentos!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que +d'aquellas alturas se não percebem; mas a que menos de todas +se percebêra é o coração +metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus +ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia +terrestre, e ferrolham-n-a a sete +chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, c +Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que +d'aquellas alturas se não percebem; mas a que menos de todas +se percebêra é o coração +metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus +ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia +terrestre, e ferrolham-n-a a sete +chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, conquistar a unica +invejavel gloria, emendando os erros +<span class="pagenum">[110]</span> +da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.<br /> + +<br /> + +Então sim, que haveria que se lhes invejar.<br /> + +<br /> + +Dôr d'alma é, na verdade, não poder +homem na solidão pagar por estes, e por si mesmo, dividas +grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá estende os +braços valedores até onde lhe é dado. +Onde +não chega a remediar com obras, ajuda com o bom conselho, +com as recommendacões poderosas, com as +esperanças, com a presença, com a +uncção da palavra amigavel, com o deixar correr +sobre a ferida o balsamico das lagrimas. Assim, se terá +sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo trabalhos, e no +seio coração.<br /> + +<br /> + +<h4>XXII</h4> + +<br /> + +Isto presenciei eu:<br /> + +<br /> + +O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural +pejo me veda transladar louvores, que por lá se +lêem em todos os peitos, contava entre as primeiras de suas +ditas a beneficencia, que não pára onde se lhe +exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo Bispo +Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem ainda +para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.<br /> + +<br /> + +Era para ver (se elle não poséra tanto em +recatal-a) a alacridade, a sôffrega alacridade, com que ia +levar aqui um pão, que se devorava como vida que em +realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos, +a +<span class="pagenum">[111]</span> +reconciliação; +ao ocioso, o convite para +trabalho; ao orphanado, a paciencia; ao errado, a luz para atinar +com a senda, e o bordão para a seguir; ao moribundo, o +conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, cunhada de uma banda com a +effigie do coração, da outra com a da Cruz +florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se +cambía; o affecto +fraternal.<br /> + +<br /> + +Ali, sim, que é o ser Parocho.<br /> + +<br /> + +¡Oh officio divinamente instituido, como te hão +degenerado annos frios de descrença e desamor! +¡Com que maravilhoso laço +não cifravas o que de mais nobre, o que de mais amavel, se +abrange nas ideias da eternidade e nas do mundo!<br /> + +<br /> + +O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso +de eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os +mysterios, os preceitos, os exemplos, as ameaças, os +anáthemas, +as absolvições, os confortos, e os jubilos. Todos +os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra +d'elle.<br /> + +<br /> + +Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de +Fé, á nossa espera diante da fonte da +Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos +purificar.<br /> + +<br /> + +Arribados á edade da rasão e dos delirios, +tornavamol-o a achar na piscina da penitencia para nos restituir, com +eloquencia affectiva de Apóstolo, a foragida paz do +interior.<br /> + +<br /> + +No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos +entregavam, com bençãos d'alma e sincera +prophecia, a mão tremente da futura mãe de nossos +filhos.<br /> + +<br /> + +Nas calamidades publicas, era a sua voz +<span class="pagenum">[112]</span> +supplice e crente, e afogada em lagrimas, a que levava, como guia +segura, o côro de todas as nossas á +presença do Senhor da Natureza.<br /> + +<br /> + +Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da +concordancia, que primeiro apparecia.<br /> + +<br /> + +Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos +alçava.<br /> + +<br /> + +Nas tribulações, elle o nosso mais previsto +conselheiro.<br /> + +<br /> + +Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado.<br /> + +<br /> + +Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e +aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças +para o caminho.<br /> + +<br /> + +Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros +medicos iam longe, e até nossos paes e nossos filhos nos +deixavam sós. Com preces fervorosas nos acompanhava, +até que a terra nos submergisse; e ainda então +nos não largava, senão para ir +instaurar novas preces por nós sobre os altares.<br /> + +<br /> + +Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com +quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da +sua pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e +pequenos, +só temido dos maus, ainda que tambem d'esses respeitado.<br /> + +<br /> + +Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa, +elle, que tão amenos quadros do casamento sabia apresentar +aos noivos ao recebel-os, contava por irmãos e filhos todos +os seus parochianos; tinha o seu thálamo de oiro +<span class="pagenum">[113]</span> +a aguardal-o no paraizo, +região que todos os dias entrevia atravéz das +folhas do seu breviário; e, se ainda no +coração lhe +podia alguma ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como +esposa; em quem se revía; que se recreava em ataviar, em +enriquecer, em lhe adquirir galas de roupas, de sedas, de joias, de +flores, de perfumes; em cujas festas se remoçava; em cujos +canticos se desvanecia de misturar a sua voz.<br /> + +<br /> + +No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava +tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um +representante da Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse +caracter augusto e sobrehumano.<br /> + +<br /> + +A hora em que elle expirava, hora de consternação +e alaridos para todo um povo, era a unica, talvez, em que pelos +espiritos fuzilavam alguns relampagos de duvidas sobre a +justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO; duvidas, que a +bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus olhos +fechados, já não podia fulminar, mas que a sua +presença, mal chegavam a beijar-lhe os pés como a +bemaventurado, promptamente desvanecìa. Bem se adivinhava, +ao olhal-o, que a sua morte não era mais que somno; e bem se +entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão +zeloso trabalhar, era rasão colher descanço e +premio, como só lá em cima os pode haver.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e +prospérrimas da Christandade. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[114]</span> +De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas +tão raro, que a dedo se apontam; e ainda se não +hão-de crer, se +não fôrem vistos bem por miudo, e contrasteados +bem de espaço.<br /> + +<br /> + +De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça.<br /> + +<br /> + +Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte +sempre algum achaque principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a +febre da superstição; está agora no +frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com +elle, até que do alto lhe venha o remedio.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma +de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca, +nem um phantasma.<br /> + +<br /> + +A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra, +pegou-se d'ella, pelo contacto, primeiro á superior, depois +á infima.<br /> + +<br /> + +Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta +entra na conta.<br /> + +<br /> + +A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada +já quer ir convalescendo; já convalesce em muitas +partes, se em nenhuma se acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu, +por isso mesmo, e por ser a mais rude e numerosa, labora no auge da +enfermidade, e ainda muito longe (segundo todos os symptômas) +de se restaurar.<br /> + +<br /> + +Hoje o materialismo é especialmente plebeu.<br /> + +<br /> + +Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo +<span class="pagenum">[115]</span> +a raio e raio, e descendo manso e +manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro +desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam +tudo.<br /> + +<br /> + +Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda +noite, nem se derrama da Imprensa, de que a mean classe é +representante.<br /> + +<br /> + +O Poder, fingindo <em>proteger</em>, apenas +<em>tolera</em> os escassos restos da crença. Se +alguma vez lhes dá consideração, +é +quando se lhe antólha que os poderá empregar, por +material, para obras politicas a seu modo.<br /> + +<br /> + +A Literatura, ou por especulação de popularidade, +ou por extravagancia de muito joven, ou porque o seculo XVIII do +«Paiz modelo» só poude chegar +cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem +á unica Religião civilisadora, tão +decepada e desgeitosa se avém, que, por entre as suas +expremidas lagrimas de compuncção, se lhe +está vendo voltear por dentro dos labios o seu lembrado +sorriso de septicismo.<br /> + +<br /> + +A sua religiosidade é um cálculo; +¡grande mal! é um cálculo transparente; +¡mal +ainda muito mais funesto!<br /> + +<br /> + +Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida, +não é da verdade real e absoluta que diz, mas da +utilidade (ou necessidade) de que seus ouvintes a acreditem. +<br /> + +<br /> + +Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e +aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e +ás escuras por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro +para a turba.<br /> + +<br /> + +Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o <em>Christo</em>» +(como lhe ella sempre chama), +<span class="pagenum">[116]</span> +que a sua cabeça ennastrada de loiros não +fique, mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada +de espinhos.<br /> + +<br /> + +¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras +aleluias da Fé e da Moral, este vaidoso e vanissimo +apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo do falso nome de +Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas, paginas +desconnexas, reformadas, e adulteradas?<br /> + +<br /> + +Quanto entre si concordavam as inspirações dos +quatro Evangelistas, tanto discrepam uns dos outros (e não +raro de si mesmos) os novos evangelhos d'estes missionarios sem +missão. Á prima-vista se averigua que lhes +fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a +unidade. ¿Quem se irá +apóz taes innovadores? Ninguem.<br /> + +<br /> + +Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só +valeriam para acabar de destruir, se podesse ser destruida a +Religião de Jesu-Christo.<br /> + +<br /> + +A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem +a força, nem o poder da terra tem a minima +jurisdicção para alterar.<br /> + +<br /> + +Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um +átomo de menos, sem um átomo de mais... ou +nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a +cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem +estupidamente n'uma cruz desbenzida, revirado com a cabeça +para a terra, e os calcanhares contra o Ceo. Em tal caso o +indifferentismo, e até o atheismo, seria menos descommodo e +mais logico dobradamente.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[117]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<br /> + +Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o +poderia fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo, +¿como é que a trata a autoridade mundana?<br /> + +<br /> + +Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe, +protectora desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a +cabeça despojada do diadema luminoso, diz-lhe que se apegue, +para não cahir, ao sceptro que a diante lhe caminha. +¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco roborava os +thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os +seus inimigos o ludibriem!<br /> + +<br /> + +A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da +arvore da vida, d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer +derramal-a sobre as multidões pelo crivo immenso da +Imprensa, e ficar impune; ou o seu castigo, se por erro lhe cahir o da +Lei, orçará apenas pelo dos crimes leves, e +indifferentes ao Estado.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Não é ainda tudo.<br /> + +<br /> + +Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como +filhos e herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra +já meio derretido, luz do mundo já +mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e +relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo +os nas temporalidades odiosas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[118]</span> +Repitâmol o: +não é isto culpa de ninguem, sendo de todos +desaventura. É uma calamidade providencial, que +lá se encaminha para fins certamente gloriosos, que +não podemos enxergar.<br /> + +<br /> + +Em Religião, como em Politica, somos nós, +enfatuada geração de hoje, +mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros +hão-de ceifar em vindo a quadra.<br /> + +<br /> + +Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em +que os direitos e os deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido +nome não seja, como pomba timida, empolgado por abutres +ferozes logo ao abrir o primeiro vôo; em que todas as causas +santas e uteis se conheçam e respeitem; em que nem a +régia tribu de Judá seja, como outr'ora, +apesinhada pela de Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje, +mercenária, captiva, e escrava da de Judá.<br /> + +<br /> + +Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e +frutear (como a vara do Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de +alimento, de forças, de esperança, e de +felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, então os +pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi mendigos, e +cuja fronte perdeu o sello da eleição, +tornarão a assentar ao-pé da arca +santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas +dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas +penetrem melhor até ao velho os gemidos do mais necessitado +que elle, e para que os olhos d'elle entrevejam as estrellas.<br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias +<span class="pagenum">[119]</span> +da Egreja acrisolada pelo fogo! +Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não +acredita em malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de +recommendar aqui, uma verdade, que a sua posição +d'elles lhes não deixou talvez ainda perceber; verdade +importante para applicações, verdade a cujo +escurecimento se pode imputar já muito e muito damno:<br /> + +<br /> + +O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades, +uma importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e +prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição +humana poderia confrontar a sua.<br /> + +<br /> + +Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano +é quasi um pastor sem rebanho; não conhece as +ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A ellas, falta-lhes o tempo e a +vontade para o rodearem; a elle, se para o officio entrou com zelo e +propositos magnanimos, tudo se lhe veio a acabar com a +esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez tambem +a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços +se haviam sempre de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua +voz, se lograsse vencer o estrépito circumfuso, +só serviria para lhe atrahir escárneos e motejos, +ou de fanatico, ou de tartufo.<br /> + +<br /> + +Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e +abscônditas sobre tudo, ainda +<span class="pagenum">[120]</span> +não é totalmente +assim. Á entidade +abstracta <em>Parocho</em> se conserva, no respeito e +benevolencia dos subdítos, um resto da sua antiga majestade, +da sua +benéfica influencia, das suas altissimas prerogativas.<br /> + +<br /> + +Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas, +uma especie de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos +Patriarchas, e os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um +magistrado sem appellação para as consciencias; +um censor, não em nome da Lei (como os de Roma), +porém em nome, e com delegação, +e por inspiração, do Espirito de Verdade, com +quem se crê ter commercio no fundo do santuario. Qualquer que +seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como +á principal.<br /> + +<br /> + +Tal é, repito, a entidade +<em>Parocho</em> em abstracto.<br /> + +<br /> + +<h4>XXIII</h4> + +<br /> + +Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se +não deverão empregar-se as mais incessantes, as +mais efficazes diligencias, para que o provimento das parochias (das +rusticas ao menos) recaia sempre em homens de cultivado e provado +entendimento, de sincera e illustrada Fé, humanos e +caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel trato.<br /> + +<br /> + +Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que, +segundo sua qualidade, teem de dessedentar e fertilisar, ou de +esterilisar e consumir, a terra que os rodeia.<br /> + +<br /> + +N'estes agros tempos de contínua +revolução +<span class="pagenum">[121]</span> +e peleja, ou +porque tão momentosa +ponderação não occorresse, ou porque a +vista, de dentro da cidade, não traspassa os muros d'ella, +ou porque conveniencias pessoaes e ephémeras, mas urgentes, +mas gravissimas, tenham feito postergar +considerações de maior utilidade, mas de effeito +mais tardío; as egrejas ruraes, como as urbanas, jazem, pelo +commum, peor que ao desamparo: entregues, não como egrejas, +a homens de oração e de esmola, mas, como torres +e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do +conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.<br /> + +<br /> + +¡Oh! que não sem rasão se collocou a +rixosa urna dos suffragios politicos na extranhada mansão +dos serenos suffragios religiosos. A um clero secularisado, competia um +templo secularisado tambem.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade; +é peccado, que todas ellas peccam; ou, para falar com mais +justiça, é +açoite que Deus mette na mão de cada uma, quando +lhe chega a sua hora de ephémero triumpho.<br /> + +<br /> + +Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até +ás mais illusas, como as devemos suppôr, +cordealmente empenhadas na civilisação e no +progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[122]</span> +O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso, +nem tudo permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas +suas pelejas, a Politica reconhecer limites, onde o Ceo e a +rasão os teem marcado?<br /> + +<br /> + +Combatam se os adversarios; mas não +se envenenem as aguas; e se a desavença é entre +consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para aquecer +o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que +já deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que +ainda podem liberalisar o mesmo a nossos netos.<br /> + +<br /> + +¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos +do Templo?<br /> + +<br /> + +Se é chyméra a Religião, se Jesus +não é em realidade senão «o +Christo», +vão fóra tartufías, que não +deshonram menos a uma nação que a um individuo; +acabe-se de uma vez com +<em>superstições</em> +importunas e dispendiosas.<br /> + +<br /> + +Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o +sol; se o sol é ainda agora a vida do genero humano; se a +Cruz é o unico pezo que faz crescer a quem a soffre; se na +terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda +a negação expira nos labios de quem chega a ouvir +como se amiudam os anhélitos do estertor, forcejae, forcejae +para restituir, ó vós que ainda o podeis, ao +santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle conhece, ao Povo +os unicos oráculos em que elle pode crer, ás +miserias o seu antigo e tão amado +refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já +tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[123]</span> +¿Não é assaz amplo o thesoiro que +entre as mãos tendes de destinos humanos?<br /> + +<br /> + +¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas +as magistraturas, todos os magisterios, todas as +exacções, todas as +administrações, não vos +dão de sobejo com que pagar ou empenhar amisades, zelos, e +serviços, sem ser mistér que o povo de Deus +venha, escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda, +carregar a pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?<br /> + +<br /> + +Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada +porque elles não existem para ella. Os moradores de +Sião não entôam os seus inspirados +canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de Babylonia. +Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os +seus moradores.<br /> + +<br /> + +A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha. +A Cidade santa restaurará as suas festas.<br /> + +<br /> + +Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e +despedindo-os das vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da +vossa parcialidade, qualquer que ella seja, se torne mais fraco.<br /> + +<br /> + +Pelo contrario: então é que a victoria, filha das +bençãos da terra e do Ceo, ha-de poisar para +sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso estandarte, +porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os +fortes, os que bastam per si para se defenderem. E +Pelo contrario: então é que a victoria, filha das +bençãos da terra e do Ceo, ha-de poisar para +sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso estandarte, +porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os +fortes, os que bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a +quem o Senhor outorgará dominação, +porque elles lhe hão +restituido os sacrificios.»<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[124]</span> +<h4>XXIV</h4> + +<br /> + +Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso +assumpto.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Logo que na legislação entrar mais +<em>bom-senso</em> que <em>politica</em>, mais +realidade que +ficção, mais pensamento de semear que de ceifar, +mais amor do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da +milicia sagrada devolver-se-hão inteiramente, francamente, +sem restricções mesquinhas e nocivas, das +mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros +naturaes: os Prelados.<br /> + +<br /> + +O Governo se gloriará de haver se desembaraçado +de uma tarefa, de pouca importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia +de incerteza, e de responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha +ainda mais, de haver facultado com a sua +restituição o incremento da religiosidade; por +ella o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas; +por tudo, o da prosperidade do Estado.<br /> + +<br /> + +Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei, +podér escolher por si mesmo, affeiçoar de +espaço, collocar por sua mão, os vigias de cada +um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem +duvída de que +então os desacertos nas ponderadas escolhas +hão-de ser tão raros, como os acertos o +são no actual systema, em que são as +casualidades, quando não as affeições +ou os interesses, que predominam?<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[125]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a +todos), as eleições do +poder temporal teem merecido a geral approvação; +teem recahido, pelo commum, em varões de mui notoria +sciencia e prudencia, equidistantes dos dois oppostos fanatismos, +concertados nos costumes, e zelosos discretamente.<br /> + +<br /> + +Graças, graças ao poder temporal, que +já deu o primeiro passo, passo de gigante, para a suspirada +reformação. Agora os restantes hão de +seguir-se, porque +são consequencia.<br /> + +<br /> + +Logo que soube, e quiz, prepôr ao +Episcopado varões taes, logo que manifestou ao mundo que +n'elles a todos os respeitos se fiava, tacitamente se obrigou a lhes +repôr... (estas suas usurpadas regalias, ia eu dizer, e era +um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua cruz, este +accrescimo de trabalhos e mortificações, este +para uma consciencia melindrosa martyrio das horas todas.<br /> + +<br /> + +Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os +hombros a tão duro redobramento de carga, se a caridade, +obrigada nos do seu officio, os não +forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com +exultação, e seguir via pelas asperezas do +Calvario para o Ceo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¿E que são em verdade os Parochos, ou antes: +¿que foram os Parochos desde os antigos seculos da sua +instituição, que foram, se não uns +coadjutores dos Prelados maiores, +<span class="pagenum">[126]</span> +para fazerem chegar até aos minimos e mais obscuros +recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e +os seus exemplos?<br /> + +<br /> + +Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um +só, e quasi sempre velho e cançado, +não podiam alcançar +tão longe como o seu espirito; medicos de populosos +hospitaes de almas (e de corpos tambem), não lhes chegando +as forças para estarem dia e noite a todas as cabeceiras, +contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, estudarem +todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em todos e com +todos, segundo a maravilhosa expressão do +Apóstolo das gentes; distribuiram em cada +enfermaría quem os supprisse, quem os fizesse sempre estar +presentes, quem em seu nome, e segundo a sua sciencia, receitasse e +administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse de subito acudir.<br /> + +<br /> + +¿Como póde portanto, quando militam as mesmas +rasões que presidiram á +creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em +que tudo vai falsificado?<br /> + +<br /> + +Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens +inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e +não ha-de ser sempre; e cabe nos esperar que nem +continuará a ser por muito tempo.<br /> + +<br /> + +O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o +indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os +presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres, +vão ser como essas torrinhas, que se branqueiam e se +perfumam de +<span class="pagenum">[127]</span> +incenso para morada de +pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão, +até ao possivel auge, em creanças innocentes e +instruidas, em adultos pios e laboriosos, em mulheres castas e amantes +do seu lar e dos seus deveres, em velhos pacientes, resignados e +conselheiros, em sólo bem cultivado e bem festivo; e o +Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que lhe +virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte. +<br /> + +<br /> + +<h4>XXV</h4> + +<br /> + +Não venha agora, no processo d'esta +santificação, intrometter se o <em>Cardeal-diabo</em> +do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a +máscara é de vidro, já d'aqui lh'a +havemos de quebrar nas mãos, batendo-lhe em cheio com tres +nomes todos presados: França, Italia, Inglaterra.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¿Que nação mais ciosa das suas +immunidades, que a franceza? ¿Que +nação menos para consentir á Egreja o +que de jus estricto lhe não compita?<br /> + +<br /> + +Nenhuma.<br /> + +<br /> + +Ora em França, bem sabemos todos que são +unicamente os Prelados os que formam o seu Clero. Educam-n-o +longamente. Instruem-n o copiosamente, por livros não +escolhidos +(como entre nós) pela Autoridade civil, ainda que (de si se +entende) sujeitos á sua inspecção. +Acostumam n-o +ás praticas do seu não facil ministerio. Estudam, +provam, e contraprovam, a aptidão e especial +<span class="pagenum">[128]</span> +préstimo de cada um. Aproveitam +só os que n'esse crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram; +e outra vez os escolhem á mão, para os irem +repartindo pelas Parochias do modo que mais aproveitem; pois de ver +está, que, differindo em indole e circumstancias as +povoações como os individuos, tal individuo, que +em tal povoação +quadrará á justa, a afortunará +afortunando-se; n'outra, que menos lhe molde, valerá menos, +trabalhando e padecendo mais.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor; +porque, se lá os Bispos +são independentes, como em França, para o +provimento de suas egrejas, não é porque em +mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o Sceptro +é Bago juntamente.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por +ultimo a Gran Bretanha.<br /> + +<br /> + +Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida +se não tolerada, não acarinhada se não +temida pelo seu progressivo, cada vez mais rapido, mais assombroso, +engrandecimento, gosa se, não obstante, por longa e pacifica +posse, d'este seu não <em>privilegio</em>, se +não +<em>direito</em> essencial; e os seus Bispos são +pelo menos tão independentes no tocante á cura de +almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas os +proprios Bispos protestantes. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[129]</span> +<h4>XXVI</h4> + +<br /> + +Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo +a regeneração do Clero pelos seus principes +(unicos legitimos em tudo que ao seu ministerio se refere) cabe esperar +que a optima parte das nossas populações ruraes +se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que a minha gente de +S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida +até por cortesãos, quando sahirem a folgar no +campo algum estio.<br /> + +<br /> + +Para então é que este livrinho, semelhante aos +frutos que amadurecem em casa e ás escuras, ha-de ter para +mais alguem o sabor que eu já lhe tomo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Se elle consegue, para além das raias da minha +expectação, fazer com que um só +captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou +que um unico solitário aprenda a conhecer alguma parte da +sua encoberta bemaventurança, já não +trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos maiores triumphos +literarios.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>FIM DO PROLOGO</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>Notas de Castilho a este Preambulo</h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<h4>NOTA I</h4> + +<h3> +Fontes de estudo</h3> + +<br /> + +Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela +mente que houvesse algum dia de bosquejar esta humilde +Odyssêa dos sitios e gente d'ella, nada trouxe apontado a tal +respeito. Revolvendo as minhas memorias não escritas, achei +n'ellas consideraveis lacunas, mormente no tocante á +topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. N'esta +pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S. +Mamede da Castanheira, o Rev.<sup>do</sup> Padre Antonio +Jozé +Rodrigues de Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos +imperfeito o meu painel, em que faltará tudo, á +excepção de verdade nas +coisas, e nos retratos parecença.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>NOTA II</h4> + +<h3> +Parochos</h3> + +<br /> + +Na generalidade que estabeleço, por muito convencido, +caberá fazer algumas gloriosas +excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho, +<span class="pagenum">[132]</span> +n'esta freguesia de Santa +Isabel<sup><a href="#nt5">[5]</a></sup>, o +Rev.<sup>do</sup> Padre Jozé Jacintho Tavares, +é +varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de +sãos costumes, sobredoirados de indole sociavel e amena, e +incançavel na caridade. As reparações +e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que +elle serve, nada são comparados com os soccorros de +pão, de letras, e de +instrucção christan e civil, que já +começam a disfrutar os indigentes da sua freguesia. Largos +são ainda os seus projectos; ajude-o a Providencia; +deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade +filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá +transformado, pela educação, creancinhas ainda +hontem desamparadas, e a pique de perdimento. Não quiz +perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o clamor da +gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>FIM DO PRIMEIRO VOLUME</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<b>Notas:</b><br /> + +<br /> + +<a name="nt1" id="nt1"></a> <sup>[1]</sup> O +Doutor +de capello José Feliciano de Castilho +Barreto falleceu na Castanheira do Vouga a 6 de Março de +1827, e foi enterrado na capella mór da egreja parochial. +Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os seus restos mortaes para +o jasigo da sua familia no cemiterio dos Praseres em Lisboa, onde se +conservam.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os +Editores</span></div> + +</div> + +<br /> + +<a name="nt2" id="nt2"></a> <sup>[2]</sup> Existe +ainda este cedro que tem alcançado +descommunal corpulencia. Chamam-lhe por lá +<em>o cedro do poeta</em>, ou <em>do +Castilho</em>.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os +Editores</span>.</div> + +<br /> + +<a name="nt3" id="nt3"></a> <sup>[3]</sup> +Ovidio― <em>Os +Fastos</em>―Liv. +VI.<br /> + +<br /> + +<a name="nt4" id="nt4"></a> <sup>[4]</sup> +Allusão aos amargores da +redacção da <em>Revista Universal +Lisbonense</em>, minuciosamente narrados <em>nas Memorias +de Castilho</em>.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Os +Editores</span>.</div> + +<br /> + +<a name="nt5" id="nt5"></a> <sup>[5]</sup> +Castilho morava então na rua de S. +Marçal.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps"> +Os Editores</span>.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +Sociedade editora </h4> + +<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br /> + +95―RUA AUGUSTA―LISBOA</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4> + +<h4> +XX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME II</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +95, Rua Augusta, 95<br /> + +1905</h4> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +OBRAS COMPLETAS<br /> + +DE<br /> + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4> + +<h4><br /> + +VOLUME 20.º</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">I</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor +e melancolia.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A +chave do enigma.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas +de Ecco e Narciso.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(1.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span>―Apreciações moraes, +litterarias, e artisticas.</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">X</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(3.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(4.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(5.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (6.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(7.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span> (8.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (1.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (2.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (3.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da +montanha</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XX</td> + + <td>―</td> + + <td><span class="smallcaps">O +Presbyterio da montanha</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<h3>NO PRÉLO:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 41px;">XXI</td> + + <td style="width: 10px;">―</td> + + <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O Outono.</span></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4><a name="Vol.II" id="Vol.II"></a>OBRAS COMPLETAS DE A. +F. DE CASTILHO<br /> + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4> + +<h4> +XX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da<br /> + +Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME II</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br /> + +<em>Sociedade Editora</em><br /> + +</h4> + +<span style="font-weight: bold;"><br /> + +</span> +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td> + + <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td> + + <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <b>Rua +Augusta, 95</b></td> + + <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<h4>1905 +</h4> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c1" id="c1"></a>I </h4> + +<h3><br /> + +A PRIMEIRA NOITE NA SERRA </h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry4 tinyl">... Ibi hæc +incondita solus<br /> + +montibus et silvis studio jactabat inani.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Vélo? +¿Sonho? ¿Deliro?! +¿Em solitario monte,<br /> + +que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte<br /> + +nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,<br /> + +de mundo a tumultuar, de cidades a rir...</div> + +<div class="poetry">n'este ermo ignaro, frio, mudo...</div> + +<div class="poetry1">aqui... (¿deliro? +¿ou sonho?) aqui meu lar, meu +tudo!</div> + +<div class="poetry">¡o meu presente e o meu +porvir! </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Genio invisivel da montanha,<br /> + +de astros, de sol, o ceo te banha;<br /> + +o mar de longe te acompanha<br /> + +no livre cantico sem fim.</div> + +<div class="poetry1">Escada de +Jacob da terra ao firmamento,</div> + +<div class="poetry">a +mansão tua é +monumento</div> + +<div class="poetry1">da potencia, do amor, das glorias +d'Eloïm. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Emquanto, em derredor do solio teu +sublime,<br /> + +a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,<br /> + +se volve, se transforma, e sua angustia exprime<br /> + +n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,</div> + +<div class="poetry">a variedades sobranceiro</div> + +<div class="poetry1">mantens-te qual surgiste, e do cahos +primeiro,</div> + +<div class="poetry">e do diluvio assolador.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[6]</span> +<div class="poetry">Silencio e paz comtigo habita;<br /> + +o ermo é como o eremita;<br /> + +loucas vaidades não cogita;<br /> + +ama o seu rustico trajar;</div> + +<div class="poetry1">em apparente inercia ama que ferva +occulto</div> + +<div class="poetry">de seus affectos o tumulto,</div> + +<div class="poetry1">seus extasis, seus ais, seus gostos, +seu orar.</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Sim, Genio da montanha, Archanjo de +poesia:<br /> + +eu creio em ti; eu creio em +que alma ingenua, pia,<br /> + +póde ouvir de tua harpa a casta +melodia,<br /> + +e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;</div> + +<div class="poetry">sim; mas eu, frivolo, profano,</div> + +<div class="poetry1">á solidão +extranho, affeito ao mundo insano,</div> + +<div class="poetry">¿que hei-de esperar? +¿que tenho aqui? </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Toda a minh'alma se entristece,<br /> + +e se confrange, e se ennoitece,<br /> + +ao ver que a sorte lhe destece<br /> + +de um sopro os aureos sonhos seus.</div> + +<div class="poetry1">Sonhava applausos, gloria... +¡em desterro desperto!</div> + +<div class="poetry">sonhava mundo... ¡acho um +deserto!</div> + +<div class="poetry1">sonhava inda illusões... +¡e escuto-lhes o adeus! </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Náufrago, perco a lyra em +meio da viagem.<br /> + +¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal +paragem,<br /> + +quem me resurgirá? Dos montes a linguagem...<br /> + +oiço... escuto... medito... e em vão quero +entender</div> + +<div class="poetry">é como +uns sons de ignota +fala;</div> + +<div class="poetry1">qual ás penhas o mar, me +inunda e me resvala,</div> + +<div class="poetry"> +sem me abalar, nem me embeber. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Oh! +¿á +minh'alma taciturna<br /> + +que importa, ó montanha soturna,<br /> + +que de perfumes sejas urna<br /> + +da terra erguida sobre o altar?</div> + +<span class="pagenum">[7]</span> +<div class="poetry1">¿que o ceo te ria azul, +mais amplo e mais de perto,</div> + +<div class="poetry">que o sol +doirado, ao teu deserto</div> + +<div class="poetry1">mais cedo suba, e á tarde +o +desça com pesar? </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Vir mais tardia a noite, a aurora vir +mais cedo,<br /> + +¿que me +aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,<br /> + +só ouvindo os +tufões e os corvos no arvoredo,<br /> + +bramirei:―«¡Cresce o tempo! ¡oh! +¡supplicio cruel!</div> + +<div class="poetry">¡são mais +pesares, +mais saudades,</div> + +<div class="poetry1">mais estro a arder em vão, +mais +visões de +cidades,</div> + +<div class="poetry">mais +tentações a +dar-me fel!...» </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Ai! ¡mundo! +¡ai! ¡eccos seductores!<br /> + +¡Tanto vate a ceifar +louvores!...<br /> + +¡Tanto +moço a +colher amores!...<br /> + +¡Tantos +loireiros e rosaes!...</div> + +<div class="poetry1">E eu n'esta solidão a +torcer-me arraigado,</div> + +<div class="poetry">qual roble que geme indignado,</div> + +<div class="poetry1">vendo ao +longe no Oceano os lenhos triumphaes! </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Assim ruge, baldão de +vingativo nume,<br /> + +esse que a argilla +outr'ora encheu de ethereo lume;<br /> + +assim, nos gelos sua, agrilhoado ao +cume<br /> + +do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz.</div> + +<div class="poetry">Só o abutre de eterna fome,</div> + +<div class="poetry1">que o grande +coração algoz sem fim lhe come, +</div> + +<div class="poetry">responde em ais á sua voz. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Fenece o dia. ¡Hora jocunda,<br /> + +que eu tanto amava! ¡hora +fecunda<br /> + +dos cantos meus! ¿por +que me +inunda<br /> + +nova amargura o +coração?</div> + +<div class="poetry1">¿Sino crepuscular, +tôas funéreo dobre?</div> + +<div class="poetry"> +a serra em luto se me encobre;</div> + +<div class="poetry1">a nocturna mudez duplica a +solidão.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[8]</span> +<div class="poetry1">Nenhuma luz scintilla; humana voz +não sôa.<br /> + +De +estrellas a accender-se o Empyrio se povôa;<br /> + +tal a fada +Coimbra, a senhoril Lisboa,<br /> + +nest'hora a quem as olha, entram no escuro +a abrir</div> + +<div class="poetry">de luzeiros um labyrinto.</div> + +<div class="poetry1">¡Ceos! +¡Não oiço eu troar... +seus coches!... O que sinto</div> + +<div class="poetry">é +vento em selvas a rugir. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Calae, fugi, ventos agrestes;<br /> + +sumi-vos, lampadas celestes;<br /> + +n'um seio a delirios já +prestes<br /> + +não susciteis mais +tentações.</div> + +<div class="poetry1">Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; +ou antes...</div> + +<div class="poetry">vós, astros, +cifras de +diamantes,</div> + +<div class="poetry1">o arcano me aclarae lá +d'essas +regiões. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Oh! ¡se +á minha razão, +contradictoria, altiva,<br /> + +que ás trevas sente horror, e +á clara +Fé se esquiva,<br /> + +de vós, faroes do Ceo, baixasse a +crença viva,<br /> + +que aos moradores do ermo inspira a vossa +luz!...</div> + +<div class="poetry">¡se me volvesseis as +ditosas</div> + +<div class="poetry1">esp'ranças que hei +perdido, alvas, ethereas rosas,</div> + +<div class="poetry">com que se enfeita e esconde a +Cruz!... </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Tornar-se-me-hiam de improviso<br /> + +a solidão, em paraizo;<br /> + +a magua, em perenne sorriso;<br /> + +em alto cantico, a mudez;</div> + +<div class="poetry1">a mallograda +lyra, o não colhido loiro,</div> + +<div class="poetry">em +harpa augusta, em palmas d'oiro;</div> + +<div class="poetry1">e o monte, solio então, +veria o mundo aos pés. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Delirios sempre vãos, fugi +de um peito enfermo;<br /> + +tu, +só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr +termo;<br /> + +ermo para ambições, é inferno, +e +não ermo;<br /> + +para a humilde piedade é que elle +espelha o Ceo.</div> + +<span class="pagenum">[9]</span> +<div class="poetry">Gentis phantasmas de cidades,</div> + +<div class="poetry1">vinde, escondei-me o ermo em vossas +claridades,</div> + +<div class="poetry">como um esquife em aureo veo. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Vinde, cercae-me, +endoidecei-me,<br /> + +(embora em saudades me eu +queime)!<br /> + +O somno, as vigilias enchei-me<br /> + +da vossa esplendida vizão.</div> + +<div class="poetry1">¿Val o riso choroso as +festas da loucura?</div> + +<div class="poetry">vinde, guiae-me á +sepultura,</div> + +<div class="poetry1">crente no amor, na gloria, e rindo +á solidão. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Eu blasphemo, eu desvairo! +Aos encontrados votos,<br /> + +nem ecco +respondeu n'estes covões ignotos.<br /> + +Não, cumes +glaciaes, tão outros, tão +remotos<br /> + +dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;</div> + +<div class="poetry">não, no silvestre seio +vosso,</div> + +<div class="poetry1">nem de amenas +ficções apascentar-me posso,</div> + +<div class="poetry">nem menos as posso esquecer. </div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +¡Valor! ¡valor! +¿Quem do futuro<br /> + +sondou jamais +o abysmo escuro?<br /> + +¡Apenas chego +e já +murmuro!<br /> + +¿O de que tremo +acaso sei?</div> + +<div class="poetry1">Esperemos: talvez que inglorios, mas +doirados,</div> + +<div class="poetry">aqui me aguardem, recatados,</div> + +<div class="poetry1">dias de +estro e de paz, quaes nunca disfrutei.</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Se além, no presbyterio, +humillima choupana,<br /> + +(Vaticano, e +Queluz da pobre grei serrana)<br /> + +mais que fraterno amor +sollícito se afana<br /> + +em me afôfar o ninho, a vida em +me inflorar;</div> + +<div class="poetry">se n'um retiro verde e +mudo,</div> + +<div class="poetry1">por elle tenho o leito, a mesa, o +doce estudo,</div> + +<div class="poetry">sombras no estio, o inverno ao lar;</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[10]</span> +<div class="poetry">se a solidão +que me +apavora,<br /> + +sómente o +fôr vista +de fóra;<br /> + +se em seus +recôncavos demora<br /> + +gente feliz, +povo de irmãos;</div> + +<div class="poetry1">se do antigo viver, das +crenças +de outra edade, </div> + +<div class="poetry">vestigios guarda a +soledade;</div> + +<div class="poetry1">se poesia se vive entre estes +aldeãos; </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">se a alegria, serena, isenta de +pesares,<br /> + +como a fresca saude, habita os +puros ares;<br /> + +se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e +mares,<br /> + +se Deus em toda a parte á Natureza ri...</div> + +<div class="poetry">coração meu, +não desanimes,</div> + +<div class="poetry1">gozos que não +prevês, e +cantos mais sublimes,</div> + +<div class="poetry">encontrarás talvez aqui. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Ah! sendo assim, +¡que importa a fama!<br /> + +Tambem +philoméla derrama<br /> + +sua +harmonia ás selvas que +ama<br /> + +longe de ouvintes e do sol.</div> + +<div class="poetry1">Cantarei. ¿Meu cantar mais +ambições +teria</div> + +<div class="poetry">que a viva, a lustrosa poesia,</div> + +<div class="poetry1">de +perolas que a flux borbóta o rouxinol?<br /> + +<br /> + +<br /> + +</div> + +<div class="poetry">Castanheira do Vouga </div> + +<div class="poetry3">Outubro de 1826.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[11]</span> +<h4><a name="c2" id="c2"></a>II</h4> + +<br /> + +<h3>O SEPULCRO<br /> + +OU<br /> + +HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO<br /> + +(POEMA) </h3> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<h4>INTRODUCÇÃO<br /> + +(QUE É MELHOR DORMIR, QUE +LER) </h4> + +<br /> + +<div class="intro">(Ermo alpestre entre cabeços +de rocha e pinheiros, na +serra +do Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um +arrieiro, ambos a cavallo, transviados na montanha.)</div> + +<br /> + +<h4>I </h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">―Bem lh'o disse eu, perdemos o +caminho;<br /> + +a velha era por +força alguma bruxa.<br /> + +Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a +touca!<br /> + +―Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?)<br /> + +tres vezes +t'o ensinou.</div> + +<div class="poetry2"> +―Nem trinta vezes</div> + +<div class="poetry1">que eu passasse por elle, o +aprenderia;<br /> + +a +não ser pelo rasto que deixasse<br /> + +esmurrando o nariz por essas +lapas.<br /> + +Já levo sem ferrage ambas as mulas;<br /> + +perdeu-se o +norte; não descubro casa,<br /> + +nem gente, nem caminho, e +é quasi noite. +</div> + +<span class="pagenum">[12]</span> +<div class="poetry1">Patrão, por meia legua +mais ou menos,<br /> + +não se +deixa uma estrada como aquella,<br /> + +que costeava o monte á beira +da agua.<br /> + +A velha era uma bruxa, e nós dois asnos.<br /> + +―Dize um +que vale dois, mas dois não digas.<br /> + +Se tomámos o +atalho em vez da estrada,<br /> + +toda a culpa foi tua; eu não +queria,<br /> + +porem teimaste; e eu não me opponho a teimas.<br /> + +―Mas +eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita,<br /> + +com ar de +santa, e palavrinhas manças,<br /> + +nos rabiscou co'o pau no +pó da estrada<br /> + +tão claramente as idas, as venidas<br /> + +d'esta serra sem fim, não lhe escapando<br /> + +lomba, moiteira, +torcicólo ou brenha,<br /> + +que a mula mesma entenderia o mappa!<br /> + +¿Quem não cahia em tal? cahiam todos.<br /> + +E de mais +¿quem nos diz que aquelles riscos<br /> + +não tinham +diabrura ou nigromancia<br /> + +capazes de encarchar um Santo em carne?<br /> + +¿E quem me diz a mim que a grenha russa<br /> + +não vai +ao pé de nós? +¡talvez sentada<br /> + +na anca da mula!... +¡<em>fúgite</em>, +demonios!</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;</div> + +<div class="poetry1">quem mais +anda, mais sabe; e eu não sou tolo,<br /> + +nem creancinha de honte. +¡Olha o diabo!<br /> + +bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;<br /> + +caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a +parta!<br /> + +¿que havemos de fazer nestas alturas?<br /> + +―Tornarmos +para traz.</div> + +<div class="poetry2"> +―¿Por este escuro?</div> + +<div class="poetry1">¿quer dar cabo das mulas, +e +estoirar-me?<br /> + +¡co'um milhão de diabos!!...</div> + +<div class="poetry2"> +―Pois fiquemos.</div> + +<div class="poetry1">―E as mulas comam terra, como os +sapos,<br /> + +e +nós carqueja.</div> + +<div class="poetry4"> +―As noites são bem curtas.</div> + +<span class="pagenum">[13]</span> +<div class="poetry1">―Se ao menos se avistasse alguma +venda...<br /> + +―Em rompendo a manhan teremos tudo.<br /> + +Por agora apeemo-nos. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">(<em>Apeiam-se.</em>)</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +―No inferno</div> + +<div class="poetry1">estoire entre um milhão de +Satanazes<br /> + +o que +inventou primeiro andar de noite;<br /> + +era o maior ladrão... +¿Que bulha é +essa?<br /> + +―Não é nada; uma pedra que rebola.<br /> + +―¡Que rebola!? ¡e sem mão! +será bonito,<br /> + +mas nem por isso engraço. +¿E aquelle bruto<br /> + +lá em cima no pinhal, que +guincha tanto!<br /> + +―Algum mocho.</div> + +<div class="poetry4"> +―Más balas o atravessem,</div> + +<div class="poetry1">e lhe acabem co'a casta antes de +um'hora;<br /> + +cuidei que era outra coisa. Eu na taverna<br /> + +valho por cinco ou +seis; mas cá perdido,<br /> + +e então de noite, um pisco +me põe medo.<br /> + +―Pois dorme.</div> + +<div class="poetry3">―¿O +quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás +barbas!</div> + +<div class="poetry1">só se eu fôsse +algum bêbado. +Esta noite<br /> + +nem pregar olho, nem largar das unhas<br /> + +dois penedos; e ao +pé já está +reforço.<br /> + +―Golgan, já que não foi por +nossa escolha,<br /> + +busquemos contentar-nos co'a poisada,<br /> + +que inda +não é tão má como +o parece.<br /> + +¡Quantos ha menos bem acomodados<br /> + +por esse mundo +agora! uns em cadeias,<br /> + +outros entre ladrões, +náufragos outros,<br /> + +estes em luto, aquelles em +doença.<br /> + +Bastantes em colxões de plumas +fôfas<br /> + +revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,<br /> + +cuidados +tristes, asperos remorsos.<br /> + +¡Quantos até nas salas +mais alegres,<br /> + +entre as luzes, e as muzicas, e as danças,<br /> + +mas +em face de um sôffrego banqueiro,</div> + +<span class="pagenum">[14]</span> +<div class="poetry1">padecem mais que um reo chegando +á fôrca<br /> + +Não ha mal sem peor; qualquer estado<br /> + +se se +compara, é bom; com cara alegre<br /> + +suavisam-se os incommodos; +um fardo<br /> + +n'um hombro impaciente é fardo e meio.<br /> + +Quem +não soffre um descommodo pequeno<br /> + +nos grandes morre; um leve +desagrado<br /> + +dá realce ao prazer quando nos volta.<br /> + +Qualquer +estado, e pessimo que seja,<br /> + +tem seu lado risonho; e é da +prudencia<br /> + +d'entre os picos da silva achar a amora.<span style="font-style: italic;"><br /> + +</span><em>Amen</em>.―Brava +o latim; dá +ceia e cama.<br /> + +―A falta d'esta ceia é novo adubo<br /> + +do +almoço de amanhan; e emquanto á cama,<br /> + +¿que outra melhor do que esta em mez de Junho?<br /> + +Nem paredes +nem tectos, que nos roubem<br /> + +a viração da noite +apoz a calma;<br /> + +por entre essa quebrada dos penhascos<br /> + +lá em +baixo o mar co'os seus murmurios frescos;<br /> + +sobre nós, e por +baixo das estrellas,<br /> + +pendendo como um lustre, este carvalho<br /> + +cravejado +de insectos que entre-luzem;<br /> + +dois rouxinoes ao longe; as lageas, +mornas.<br /> + +Vê; que soberba camara!; que leitos<br /> + +desde a origem +dos seculos nos guarda<br /> + +no seio d'esta brenha a Natureza!<br /> + +―Ao menos +não tem pulgas. ¡Xó, +canalha!<br /> + +¡leva rumor! é bom pregar de coices.<br /> + +Não durma, Sôr Doutor.</div> + +<div class="poetry2">―Não tarda muito</div> + +<div class="poetry1">que eu não entre a sonhar +¡Que bellos sonhos<br /> + +não devem ser os de uma noite +d'estas!<br /> + +―Tenha lá mão com isso; o que eu +prometto,<br /> + +para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada<br /> + +de casos +que eu passei na minha vida;<br /> + +tão rara, que podia ir +á +<em>Gazeta</em>!</div> + +<span class="pagenum">[15]</span> +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Uma vez ia eu só; era em +Novembro;<br /> + +chuviscava e fazia um +tal escuro<br /> + +que era metter os dedos pelos olhos.<br /> + +(Lembrou-me esta a +proposito da mula<br /> + +escoicinhar sem causa.) E era bom tempo<br /> + +aquelle; +andava Christo pelo mundo;<br /> + +tinha eu mais duros, que patacos hoje,<br /> + +e +andava o oiro aos pontapés da gente;<br /> + +tambem... +¡já cá não torna! +O grande caso<br /> + +é que n'aquelle tempo era eu solteiro,<br /> + +e rapaz +bonitote; e havia muitas<br /> + +que me fizessem fogo; eu cuido, e é +certo,<br /> + +que não pelos vintens; nem pela cara;<br /> + +mas isto de +casar co'um almocreve,<br /> + +seja elle o diabo dos infernos,<br /> + +parece a todas +bem: é uma delicia<br /> + +ter o seu homem só de vez em +quando,<br /> + +em logar do espião de um pegamaço<br /> + +com +residencia fixa em ar de abbade.<br /> + +Mas... não é bom +falar na vida alheia.</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Como lhe ia contando, era almocreve;<br /> + +chamavam-me o <em>Chupista</em>. +¡Oh! que bolaxa<br /> + +que eu pespeguei na cara do coécas<br /> + +que me inventou a alcunha em certa venda!<br /> + +qualquer creança +lhe moia os queixos;<br /> + +já lá está onde o +pague +¿Onde ia o ponto?<br /> + +¡ah! sim; era almocreve e +recoveiro;<br /> + +e andava com dez machos todo o anno<br /> + +a correr quanto valle e +monte havia<br /> + +para cobrar o fôro aos Frades Cruzios.<br /> + +Que isto +do fôro é bom, nem que pareça;</div> + +<span class="pagenum">[16]</span> +<div class="poetry1">uns pagam-lhe borel, outros centeio,<br /> + +queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,<br /> + +gallinhame por arte do diabo,<br /> + +ovos, e até o musgo onde se empalham.<sup><a href="#nt6">[1]</a></sup><br /> + +Não ha +n'um pardieiro um desgraçado<br /> + +que não deva pagar +alguma nica.<br /> + +Já vê donde me vinha a minha alcunha;<br /> + +mas sem rasão; é porque andava ás +ordens.<br /> + +Tambem já tenho ouvido alguns autores,<br /> + +tal como o +meu cunhado, e mais uns certos,<br /> + +que é coisa bem mal feita a +tal derriça;<br /> + +Mas bem feito ou mal feito, eu não +sou Papa.<br /> + +Vamos cá co'o meu conto.</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Era uma noite,</div> + +<div class="poetry1">cuido que já lh'o disse, +ali por Maio,<br /> + +e fazia um luar... que era um consolo.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Eu saio a meu +avô; se é boa a estrada,</div> + +<div class="poetry1">gósto de andar +de noite havendo lua;<br /> + +cá pelas brenhas não, que +não sou +lobo.<br /> + +Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,<br /> + +em cima de uma carga de +presuntos,<br /> + +pela estrada real, co'os sete machos<br /> + +a dormitar ao som da +chocalhada.<br /> + +Vinhamos caminhando em certo passo<br /> + +de quem gosta da noite, +ou vem sem pressa,<br /> + +ou de quem traz comida a gente farta.</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Que lhe digo, em abono da verdade,<br /> + +que servir Santa-Cruz +não dá desgosto:<br /> + +pagam bem, fazem festa ao +gallinheiro,</div> + +<span class="pagenum">[17]</span> +<div class="poetry1">vendo os machos no +pateo é uma alegria!...<br /> + +¡aquillo até os +olhos se lhes riem!<br /> + +dão pinga, e de cear, e muitas vezes<br /> + +vi +eu estar vai não vai a dar-me um beijo<br /> + +o Frade gordo que +recebe o saque.<br /> + +¡Bom tempo! ¡bom de lei! +já +cá não torna.<br /> + +Não durma Sôr +Doutor.</div> + +<div class="poetry2"> +―Não durmo; acaba.</div> + +<div class="poetry1">―¡Acabar! não +acabo em toda a noite,<br /> + +nem que estoire a barriga do diabo.<br /> + +Inda eu +não comecei. Lembra-me um Frade<br /> + +que havia em Santarem; tinha +um cachaço,...<br /> + +por tal signal que até revia +enxundia;<br /> + +¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!...<br /> + +¡Mas aquillo! a prégar era uma joia;<br /> + +um +sermãosinho d'elle atarantava<br /> + +e punha tudo azul. Tinha a +constancia<br /> + +de arrumar prègações de +duas horas.<br /> + +N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...<br /> + +(e olhe, foi +tanto, que eu, e muita gente,<br /> + +já tinhamos dormido +á regalada)<br /> + +disse muito pausado: «Eu +principio.»<br /> + +<br /> + +</div> + +<div class="poetry">Assim faço eu tambem. Todos +devemos</div> + +<div class="poetry1">tirar das +prègações algum +proveito.<br /> + +Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia;<br /> + +porém tenha lá mão, que a levo errada.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Nesse dia á tardinha, na +estalage<br /> + +tinha entrado uma +velha; era um diabo,<br /> + +que isso... só visto! pequenina, magra,<br /> + +muito preta; era um bilro de pau santo.<br /> + +Tinha pela cabeça um +lenço pardo<br /> + +atado pela barba, um manteo ruço,<br /> + +e +uma mantinha exotica e de agoiro.</div> + +<span class="pagenum">[18]</span> +<div class="poetry1">Tinha então uma cara +não sei como;<br /> + +nem parecia +cara; era um nó cego<br /> + +que fazia azoar a toda a gente;<br /> + +mas +muito experta; e uns olhos como um bixo.<br /> + +¡Tambem aquella rez +tinha no corpo<br /> + +muita pipa de sangue de creanças!</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Cheguei eu á estalage, e +ia com fome;<br /> + +vou-me á +carga do fôro, agarro uns ovos,<br /> + +mando +os frigir com mel, que é papa +fina;<br /> + +e então para quem tem de andar de noite<br /> + +dizem que +é bom, que livra do catarro,<br /> + +já se sabe com +quatro pingarolas.<br /> + +Ia se preparando o meu +guizado,<br /> + +e era um cheiro tão bom pela cosinha,<br /> + +que isso +não ha dizer. Já dois gallegos,<br /> + +e mais, tinham +ceado; andavam tolos<br /> + +a cochichar, e ás voltas pela casa,<br /> + +um +olho em mim, outro olho na tigella,<br /> + +e eu muito concho a rir, e a pescar +tudo.<br /> + +Basta dizer que me pediram ambos<br /> + +que vendesse um +quinhão; ¡e isto em gallegos!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.</div> + +<div class="poetry1">Mas o monstro da +velha era uma estaca<br /> + +ali muito direita ao pé dos ovos,<br /> + +com +cada olho aberto, ¡que te parto!<br /> + +Era mesmo um olhar de inveja +e zanga.<br /> + +Logo eu tive má fé co'a tal menina<br /> + +quando ella perguntou quem era o dono.<br /> + +Porém quem mal +não usa mal não cuida;<br /> + +sentei-me á +meza a codear nos ovos.</div> + +<span class="pagenum">[19]</span> +<div class="poetry1">Ora +agora o vereis: a minha amiga<br /> + +amúa-se n'um canto, mais +vermelha<br /> + +que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella.<br /> + +Ferra os olhos em mim com tal quezilia,<br /> + +que a não ser por +temer a Deus e a ella,<br /> + +batia-lhe co'o prato pelas trombas.<br /> + +Botava cada +lagrima... ¡de punho!<br /> + +dava cada suspiro, a excommungada,<br /> + +¡que punha medo! accendo o meu cigarro,<br /> + +pago, monto a +cavallo, e sigo a estrada.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Era já noite escura, e +um vento frio</div> + +<div class="poetry1">como o gran Satanaz.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +¿Que diabo é isso?</div> + +<div class="poetry1">ressona?; ou já na +costa anda algum moiro?<br /> + +―Avante; são as ramas que +sussurram.<br /> + +―Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando<br /> + +pela estrada +real por ser já tarde,<br /> + +e a assobiar sósinho o +<em>tiroliro</em>.<br /> + +Vai senão quando, +estacam-se-me as bestas.<br /> + +Á esquerda, como ahi, ficava um +monte;<br /> + +d'esta banda um pinhal muito fechado;<br /> + +de sorte que o caminho (e +então mui longe<br /> + +de todo o povoado) era um soturno,<br /> + +que nem +Roldão o andava áquellas horas.<br /> + +Entrei logo a +suar e a arripiar-me;<br /> + +e as mulas n'um inferno de pinotes<br /> + +sem +quê nem para quê; davam taes rinchos,<br /> + +que se fundia +o chão; pregavam coices,<br /> + +que assoviavam no ar; +¡que contradança!<br /> + +era uma groza de diabos doidos,<br /> + +e eu mais doido, no meio, á bordoada.<sup><a href="#nt7">[2]</a></sup></div> + +<span class="pagenum">[20]</span> +<div class="poetry1">Aqui +digo eu como dizia o Frade<br /> + +n'outro sermão de um Santo; +<em>não lh'o pinto<br /> + +por não ter um pincel</em>. +Mas faça +ideia<br /> + +que tal eu ficaria lobrigando<br /> + +(¡eu te arrenego diabo!) +uma luzerna<br /> + +a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo,<br /> + +lá longe no pinhal. Que era bruxedo<br /> + +tive eu logo de +fé; muitos que m'o ouvem<br /> + +riem-se, e tal; deixal-os rir; ha +bruxas;<br /> + +que isso sei eu; ¡e então ali! +¡tão tarde!<br /> + +Por força era algum sabbado +lá d'ellas,<br /> + +que as taes amigas juntam-se de noite<br /> + +a fazer os +seus sabbados, o mesmo<br /> + +como nós no Natal á meia +noite...<br /> + +Ha muita comezana de creanças,<br /> + +sarrabulhos de +sangue, cambalhotas,<br /> + +e umas rizadas..... que até Deus se +admira.<br /> + +No meio anda um pretinho muito gordo,<br /> + +que é o +proprio diabo em carne e osso.<br /> + +Diz então muita coisa a todas +ellas,<br /> + +dá-lhe lá seus conselhos, toma contas<br /> + +do +que teem feito, e..... acaba a tal comedia.<br /> + +Untam-se co'uma untura que +lá sabem,<br /> + +transformam-se em corujas e mosquitos,<br /> + +o diabo e o +lume sorvem-se na terra<br /> + +dizendo boa noite até tal dia,<br /> + +e +ellas voltam-se a casa a armar já outras.<br /> + +Isto sabia-o eu +como os meus dedos.<br /> + +Lembrou-me a tal gulosa da estalage,<br /> + +e +então é que dei tudo por perdido.<br /> + +Deitei +fóra o cigarro, e entro em voz baixa<br /> + +(¡sempre isto +do pavor faz muita asneira!)</div> + +<span class="pagenum">[21]</span> +<div class="poetry1">entrei eu +co'as mãos postas para as mulas<br /> + +a pedir-lhes co'as lagrimas +nos olhos,<br /> + +pelas Almas Bemditas, que deixassem<br /> + +todo aquelle motim, que +me perdiam;<br /> + +que fugissem d'ali, que andavam bruxas,<br /> + +e que pé +ante pé viessem vindo;<br /> + +que eu promettia uma +ração dobrada.<br /> + +Partimos. De repente +desembésta<br /> + +d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto<br /> + +direito para nós como uma xára.<br /> + +Com seis +milhões de grozas de diabos!<br /> + +¿quem havia de ser, +senão a velha?<br /> + +Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,<br /> + +chega ao cimo, e de lá muito sizuda<br /> + +entra a dizer-me adeus, +e (¡t'arrenego!)<br /> + +a fazer-me uma cara dos infernos...<br /> + +―¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?<br /> + +―Certo +é que lembrou bem; tambem agora<br /> + +lá me faz +confusão ter visto a cara.<br /> + +¿Escuro? isso era +escuro como um prego;<br /> + +não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e +vi-lh'a;<br /> + +¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje<br /> + +tão bem encasquetada no juizo,<br /> + +que a podia pintar, e era +pintura,<br /> + +que urrariam os bois se lh'a mostrassem.<br /> + +Quer escuro quer +não, vi-a, e está dito.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas o bom não foi isso; o +mais bonito<br /> + +foi entrar de +repente o gallinhaço<br /> + +nas canastras da carga em cantarolas,<br /> + +a +romper, a fugir, e eu pila pila<br /> + +para aqui, para ali, correndo +ás cegas<br /> + +sem as poder juntar. Foi +se-me a noite<br /> + +n'esta labutação; de cada canto</div> + +<span class="pagenum">[22]</span> +<div class="poetry1">sentia um cacarejo, ia +ás carreiras,<br /> + +gallinha... por um oculo. Já rouco,<br /> + +moido e desesp'rado, ao romper d'alva<br /> + +vejo as minhas senhoras mui +contentes<br /> + +todas juntas n'um bando ao pé das mulas.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas alto; esta é peor. +¿Não +vê? repare:<br /> + +¡um clarão para ali!! d'esta +nos trincam;<br /> + +¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a +morte!!<br /> + +―Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta?<br /> + +―Para nós ambos de Fieis defuntos.<br /> + +―De San +João.</div> + +<div class="poetry4"> +―¡Ah! sim; pois é fogueira,</div> + +<div class="poetry1">e não +é outra coisa. ¡Ora o diabo!<br /> + +sempre tive uma +colica soffrível.<br /> + +Mas vamos nós a andar, se lhe +parece.<br /> + +Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,<br /> + +n'umas rasões +que teve com meu tio,<br /> + +que era barbeiro então, e o Padre +Mestre<br /> + +era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,<br /> + +ia fazer-lhe a barba e +mais ao preto,<br /> + +que era um tição que só +á +bofetada;<br /> + +¡mas muito presumido! ¡e então +por +moças<br /> + +dava o grande magano um cavaquinho!!...<br /> + +Com que emfim, +tinha o Padre este ditado:<br /> + +aonde ha lume ha fumo; e eu então +digo<br /> + +que por força onde ha lume ha-de haver gente;<br /> + +e que +onde ha gente ha casa; e toda a casa<br /> + +tem a sua cosinha, e +então ceâmos.<br /> + +E é partir de repente em +quanto ha lume.<br /> + +...........................................................<br /> + +...........................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[23]</span> +<h4>II</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Eis aqui um dialogo de ensanchas<br /> + +sem +geito, sem sabor, sem fim, sem +nexo―<br /> + +grita o leitor perdendo as estribeiras.<br /> + +¿Onde foi +isto? ¿ou quando? ¿quem +são elles?<br /> + +¿onde vão? +¿d'onde veem?</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Leitor amigo,</div> + +<div class="poetry1">ha duas horas que soubéras +tudo,<br /> + +se o cruel +arrieiro o permittisse;<br /> + +mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.<br /> + +Quanto a elle, presumo que o conheces;<br /> + +o nome do outro autor +dir-t'o-hei n'um verso<br /> + +não peor que outros muitos +portuguezes:<br /> + +Antonio Feliciano de Castilho.<br /> + +Venho do Minho de assistir +a bodas;<br /> + +recolho me outra vez á +Castanheira <sup><a href="#nt8">[3]</a></sup><br /> + +a casa do Prior, a fazer versos,<br /> + +beber-lhe o vinho +verde, e dormir muito.<br /> + +O theatro da scena é certo monte<br /> + +de +que me esquece o nome; o anno, e o dia,<br /> + +Mil oitocentos e vinte e oito, +á noite,<br /> + +vespera de S. João. Se mais desejas,<br /> + +é perguntar, que eu te respondo a tudo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas o melhor (se queres um conselho)<br /> + +é fazer-me um favor, +ao qual protesto<br /> + +ser toda a vida grato: anda comnosco;</div> + +<span class="pagenum">[24]</span> +<div class="poetry1">a +noite está bellissima; podemos<br /> + +ir co'o nosso vagar +pataratando,<br /> + +e conduzindo as mulas pela redea.<br /> + +Mas tens medo ao Golgan; +pois boas noites;<br /> + +fica-te em paz, regala te, que eu juro<br /> + +que estando em +teu logar fazia o mesmo.<br /> + +Se queres, faze ás paginas +seguintes<br /> + +onde vai mais Golgan (porque já agora<br /> + +hei-de +contar a historia por miudo)<br /> + +faze, digo, a taes paginas o mesmo<br /> + +que eu, +tu, e elle, e nós, e vós, e elles,<br /> + +fazemos +ás dos <em>Martyres</em> +do Padre,<br /> + +que são apezar d'isso uma obra prima.<br /> + +Passa-as em +claro, e dize que já leste.<br /> + +Quem fala assim não +quer suor alheio.<br /> + +E adeus; até mais ver que vou com pressa.<br /> + +............................................................<br /> + +............................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>III</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">―Olhe lá, Sôr +Doutor; diz um livrito,<br /> + +que a +gente sem falar é como os burros;<br /> + +e eu digo que diz bem. +Quero contar-lhe, <br /> + +para ver se se encurta este caminho,<br /> + +o mais que se +passou depois da historia.<br /> + +Mas vá picando a +mula; ¡olhe a fogueira!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Com que, como eu já disse, +ao outro dia<br /> + +vi as gallinhas +ao redor das bestas;<br /> + +torno-as a pôr na carga, e digo logo:<br /> + +A +Santa-Cruz não vão vocês de certo;<br /> + +nem +vocês, nem a carga dos presuntos,<br /> + +nem nada que aqui vai, +¡com trinta infernos!</div> + +<span class="pagenum">[25]</span> +<div class="poetry1">Servos de Deus tão bons, +tão meus amigos,<br /> + +¡haviam comer tal! ¡metter no corpo<br /> + +talvez quanto +bruxedo ha neste mundo!<br /> + +Deus me livre do mais, que de +encarrêgos<br /> + +posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas<br /> + +direito +á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,<br /> + +com carga e tudo.</div> + +<div class="poetry4"> +―¿As mulas!</div> + +<div class="poetry2"> +―Pois as mulas</div> + +<div class="poetry1">tinham tantos diabos na muchilla<br /> + +como as gallinhas, os +boreis, e os ovos.<br /> + +Mas eu era rapaz; se fosse agora,<br /> + +não +digo que o fizesse. O divertido<br /> + +foi andar eu trez annos para quatro<br /> + +a +correr Portugal e Hespanha toda<br /> + +a buscar confessor; ¡tudo +ignorante!<br /> + +Padre douto, nem um que me absolvesse.<br /> + +Por fim achei o filho +de um cigano,<br /> + +dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.<br /> + +Mas +então penitencia não falemos;<br /> + +se a quizesse +rezar, ¡nem toda a vida!<br /> + +Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro +duro,<br /> + +e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;<br /> + +mas disse-me que havia +até ser velho<br /> + +mortificar o corpo co'um vergalho,<br /> + +e com +muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato!<br /> + +Sabe +então o que fiz inda algum tempo?<br /> + +era correr de +chôto os meus pedaços,<br /> + +e depois +descançar.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2">Deixemos isto,</div> + +<div class="poetry1">que não lhe importa muito, +e a mim nem nada;<br /> + +vim para a minha terra apenas pude,<br /> + +muito pimpão, e cheio +como um ovo.</div> + +<span class="pagenum">[26]</span> +<div class="poetry1">Namorei, +namoraram-me bastantes;<br /> + +por encurtar rasões, casei com uma<br /> + +que era filha do irmão de um primo ou tio<br /> + +de um meu compadre +Abreu, que era cunhado<br /> + +da sogra d'esta mesma rapariga,<br /> + +e enteado do +irmão do Cura velho;<br /> + +tudo gente limpinha, muito boa,<br /> + +e +temente ao Senhor, que é todo o caso.<br /> + +Gastei para +impôr Bulla os meus tanturrios,<br /> + +¡e não +foi lá tão pouco! +¡Veja agora:<br /> + +¡para a gente casar largar dinheiro!<br /> + +É como ir para a India ou para a fôrca,<br /> + +e pagar +inda em cima aos da sentença.<br /> + +Perguntei ao Banqueiro a causa +d'isto,<br /> + +disse me elle que a causa era nós termos<br /> + +quatro +humores no corpo, e d'aqui vinha<br /> + +haver os quatro grãos na +parentela;<br /> + +que ella era minha prima, e que entre primos<br /> + +havia os quatro +grãos todos inteiros.<br /> + +Não se riu, nem me eu ri; +paguei-lhe em peças<br /> + +não só os quatro +grãos que se +não viam,<br /> + +mas ainda mais cá certa brincadeira.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Deixar; fosse o que fosse; emfim, +casei me.<br /> + +Aquelle mez primeiro é uma delicia;<br /> + +foi +todo elle um <em>cantate</em>; muito +amigos,<br /> + +muito beijo, e comer; muita broega,<br /> + +muita romage, e tudo muito +e muito.<br /> + +Nunca houve um par assim tão contentinho;<br /> + +nanja na +aldeia e na comarca em roda;<br /> + +era até amizade escandalosa.<br /> + +Tanto assim, que o Prior, mais era amigo<br /> + +de fazer a vontade a toda a +gente,<br /> + +n'um dia santo á pratica da Missa</div> + +<span class="pagenum">[27]</span> +<div class="poetry1">deu-me um foguete ¡caspite! +Disse +elle<br /> + +que marido e mulher com tal namoro<br /> + +era coisa mais vil que mil +diabos.<br /> + +Fizemos-lhe a vontade antes de muito;<br /> + +ella entrou-me a azoar +com trinta coisas,<br /> + +e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,<br /> + +o +asneirão do Juiz, que era vizinho,<br /> + +tomou isto em trambolho, +e ameaçou-me<br /> + +de me encaixar no fundo dos infernos.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿E então que +lhe parece a entaladella?<br /> + +Vivia +em paz, ralha o Prior; dezanco-a,<br /> + +vem o Juiz, promette-me a enxovia.<br /> + +É como o conto de um palerma velho<br /> + +que ia a pé +co'um rapaz e mais um burro.<br /> + +―Bem sei.</div> + +<div class="poetry3">―Pois sim senhor. Com que, tivemos,</div> + +<div class="poetry1">não digo bem; teve ella +oito ou dez filhos;<br /> + +e sempre a dois e dois; forte coelha!<br /> + +Entrei a dar +á bruta; acudiu povo,<br /> + +ella fugiu, mas eu fugi sem ella.<br /> + +E +d'então para cá desandou tudo.<br /> + +E hoje ando aqui +por moço de arrieiro,<br /> + +a perder noites, e a estrompar as +ventas.<br /> + +Aqui está por que eu digo que este mundo<br /> + +é coisa muito celebre! uns ovitos<br /> + +e uma pinga de mel fizeram +tudo.<br /> + +............................................................ </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Brava! +¿não ouve uns sinos que +repicam?<br /> + +¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o +Vinagre!<br /> + +¡e viva a ceia e a cama que estão perto!</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[28]</span> +<h4>IV</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Com effeito, assim era; a poucos +passos<br /> + +já se ouvia +tambor, gaita de folles,<br /> + +risadas, bombas. Apressando as mulas<br /> + +na +direcção dos sons e da fogueira,<br /> + +descemos uma +encosta, a cujas abas,<br /> + +entre uns poucos de antigos castanheiros,<br /> + +uns +cinco ou seis pastores se occupavam<br /> + +a abobadar de murta uma fontinha.<br /> + +Interromperam logo o seu trabalho<br /> + +para nos vir saudar; mostraram pena<br /> + +de ouvir que nos perdêramos no monte,<br /> + +off'recendo +á porfia os seus albergues.<br /> + +Não findara a +benevola contenda,<br /> + +se um d'elles agarrando o freio á mula<br /> + +me +não posesse a andar; agradecendo<br /> + +os desejos dos mais que +inda ficavam,<br /> + +segui affoitamente o nosso guia.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Uma ponte de pau que +atravessámos<br /> + +coberta de +chorões, nos poz á borda<br /> + +de um trigo +já maduro e sussurrante,<br /> + +contiguo ao seu casal. +¡Quanto eu folgara<br /> + +de descrever tudo isto! Uma casinha<br /> + +plantada ahi como risonha ilhota<br /> + +n'um vasto mar de tremulas searas,<br /> + +e +clara como a neve, ou como a lua<br /> + +que a espreitava do ceo por entre as +folhas<br /> + +de um esquivo parreiral. Junto ás paredes,<br /> + +de rosas e +limeiras revestidas,<br /> + +canapés de cortiça +apresentavam<br /> + +a imagem do descanço e a do convite.<br /> + +Não era necessario entrar a porta,</div> + +<span class="pagenum">[29]</span> +<div class="poetry1">para já conhecer o +domicilio<br /> + +da +hospedage e da paz; que as proprias auras,<br /> + +como que em tão +poeticas folhagens<br /> + +se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo +o +estranho!»</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry">Não longe lhe ficava a sua +aldeia</div> + +<div class="poetry1">na c'roa de +um oiteiro; pensarieis,<br /> + +vendo-as tão perto, e um bosque a +separal-as,<br /> + +a aldeia tão brilhante de fogueiras<br /> + +e esta casa +tão só mas tão alegre,<br /> + +pensarieis, +como eu, ver n'uma festa<br /> + +moça ausente e feliz, amante e +amada,<br /> + +que entre o prazer commum não quer nem deve<br /> + +ir +desfazer seus pensamentos doces.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry">Visinho seu mui proximo era o templo,</div> + +<div class="poetry1">aos valles do arredor +alardeando<br /> + +na sua torre branca um Anjo de oiro,<br /> + +e a um lado a +Residencia, occulta em parte<br /> + +n'um ramilhete de altas cerejeiras.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry">Nunca mão de pintor juntou +n'um quadro</div> + +<div class="poetry1">objectos mais simpathicos. Tal como<br /> + +trépido arroio em tacita +espessura<br /> + +das copas bebe a sombra, e envia ás copas,<br /> + +do sol +reflexo voadores raios,<br /> + +do casal a presença alegra o templo;<br /> + +a presença do templo está lançando<br /> + +sobre o casal o sério da virtude.<br /> + +Tudo isto sob um ceo de +fertil benção,</div> + +<span class="pagenum">[30]</span> +<div class="poetry1">sobre um chão de +abundancia, e no +ar mais puro!<br /> + +―¡Meu Pae,!―grita o pastor entrando +á pressa―<br /> + +minhas irmans! ¡um hospede!―</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2">A tal nome,</div> + +<div class="poetry1">como se fosse +á voz de alguma fada,<br /> + +com repentina luz nos apparecem<br /> + +creanças folgasans, esbeltas moças,<br /> + +um +ancião, e uma velha. Imagináreis<br /> + +ver +Graças, ver Amores, ver Napêas,<br /> + +trajados de +aldeãos, e honrando os lares<br /> + +de Baucis e +Philémon, que o parecem<br /> + +na edade e na virtude os meus dois +velhos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Não mora entre seáras a etiqueta;<br /> + +mas sobre +herdada meza de pinheiro<br /> + +em troco adeja a cordeal franqueza,<br /> + +o bom +desejo adubo da abundancia,<br /> + +e a amisade dos bons, filha do instincto,<br /> + +que nasce qual relampago, mas dura.<br /> + +Deu-se o primeiro instante ao +comprimento,<br /> + +logo o segundo aos commodos;<br /> + +o resto á +conversa, e ao bulicio de tal noite.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,<br /> + +vital perfume de mellifluos +bolos,<br /> + +que em molles virações traz a alegria.<br /> + +Aquella vai e vem compondo a meza;<br /> + +esta afervora a ceia, e a cada +instante<br /> + +corre á janella que descobre a aldeia.<br /> + +Juntam-se +á bulha os sinos da parochia,</div> + +<span class="pagenum">[31]</span> +<div class="poetry1">que o +sacristão na vespera do Orago<br /> + +jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra.<br /> + +O festivo repique +exalta as mentes,<br /> + +os meninos não param, correm, gritam,<br /> + +repartem bombas, furtam-se valverdes,<br /> + +e rindo ameaçam fogo +á pipa velha.<br /> + +A boa annosa mãe ralha do estrondo,<br /> + +e o faz inda maior; o esposo enfia<br /> + +uma sobre outra historias do seu +tempo.<br /> + +O avito candieiro de tres lumes<br /> + +cobre da meza o centro, e chama +á ceia;<br /> + +a sôlta sociedade eis se lhe aggrega.<br /> + +Não foi longo o festim, mas cada copo<br /> + +lhe augmentava o +praser. ¡Salve tres vezes,<br /> + +ó dos tres lumes +candieiro avito!<br /> + +¡quanto amor, quanta paz, que bens, que +festas<br /> + +não tens visto florir em tua casa!<br /> + +¡quantas +mãos tão felizes como puras<br /> + +te hão +accendido em noite igual! ¡quem sabe<br /> + +que de memorias para ti +conservas!<br /> + +¡Em premio da hospedage aqui te accendam<br /> + +longas +eras em noites semelhantes<br /> + +dignos de seus avós contentes +netos!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Iria a muda apostrophe adiante,<br /> + +mas ouviu-se o +zabumba.―¡Ahi veem! ¡são +elles!―<br /> + +dizem todos, e todos saem pulando.<br /> + +―Olhae; olhae; +¡nem uma luz na aldeia!<br /> + +este anno veio tudo. ¡Que +alegria<br /> + +terá o nosso Parocho!</div> + +<div class="poetry2"> +―Maria,</div> + +<div class="poetry1">dá cá o meu +chapéo.</div> + +<div class="poetry2"> +―¡Corre, Pedrinho!</div> + +<div class="poetry1">―¿Onde está +meu +irmão?</div> + +<span class="pagenum">[32]</span> +<div class="poetry2">―¡Não se +demorem!</div> + +<div class="poetry1">―Vamos dançar.</div> + +<div class="poetry4"> +―Perdi as alcaxofras.</div> + +<div class="poetry1">―Vinde por cá; +passemos-lhes +adiante;<br /> + +que rancho que lá vem!.....................<br /> + +..........................................................<br /> + +........................... Golgan, que eu fosse,<br /> + +não pintara a +estrondosa miscellanea<br /> + +que vôa do cazal ao Presbyterio.<br /> + +Lavra +nos proprios velhos o alvoroço;<br /> + +vão co'os mais +quasi a par; lavra em mim mesmo,<br /> + +estranho á festa. O pateo +illuminado<br /> + +nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.<br /> + +―Viva o nosso +Prior!...</div> + +<div class="poetry2"> +―¡Viva!!!...</div> + +<div class="poetry5"> +Mil vozes</div> + +<div class="poetry1">restrugem o ecco apenas avistaram<br /> + +rindo á janella +o velho gordo e alegre.<br /> + +―¡Viva o Senhor San João! +¡viva a +alegria!</div> + +<br /> + +<h4>V</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bate o zabumba; a muzica rebenta;<br /> + +fogem foguetes pelos ares livres<br /> + +estrepitando; o campanario ovante<br /> + +de jubilo endoidece; repentina<br /> + +por +dez partes acceza alta fogueira<br /> + +dentro de um vasto circulo purpureo<br /> + +mostra o prazer brincando em cada rosto.<br /> + +Bello é ver n'este +lance as raparigas<br /> + +compondo mais o lenço, alevantando<br /> + +o +chapeo, que o semblante lhes encobre,<br /> + +dando, como a descuido, um toque +leve,<br /> + +mas gracioso, ás flores que lh'o adornam,<br /> + +e +á flor do seio, e ao laço do collete.<br /> + +¡Quantos nós ata amor n'esses instantes!</div> + +<span class="pagenum">[33]</span> +<div class="poetry1">¡quantos outros aperta! +¡em quantos outros<br /> + +embebe o espinho de um sutil ciume! <br /> + +<br /> + +¡Chiton! temos o Parocho na frente;<br /> + +e as cangalhas +vêem mais do que parece.<br /> + +A <em>alegria decente</em>, eis o estribilho<br /> + +com que +recheia as praticas. Se cantam,<br /> + +co'a cabeça e co'o +pé bate o compasso;<br /> + +se pulam boa dança em honra +ao Santo,<br /> + +bota fora uma can. Por isso o baile<br /> + +circula agora a estridula +fogueira;<br /> + +por isso o San João vai toda a noite<br /> + +injuriado em +canticos devotos.</div> + +<br /> + +<h4>VI</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Meia noite. Que som mysterioso!<br /> + +interrupção no +baile e nos descantes.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Fada das amorosas prophecias,<br /> + +tu, tu passaste agora em concha aerea<br /> + +tirada pelo zephyro; sentimos<br /> + +todos nós tua magica +presença.<br /> + +¡Boa viagem, Fada, e boa noite!<br /> + +¡Salve, hora duodecima; bateste,<br /> + +e descerrou-se a porta do +futuro.<br /> + +Sua nevoa desfeita em orvalhadas<br /> + +vai nas plantas eleitas, vai +nas flores<br /> + +mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes<br /> + +benção, certeza, amor, felicidade.<br /> + +Já +se interrompem bailes e descantes.<br /> + +Embebida em potentes nigromancias</div> + +<span class="pagenum">[34]</span> +<div class="poetry1">toda esta multidão por +modos +varios<br /> + +exerce escrupulosa altos mysterios.<br /> + +Mas renasce o +alvoroço; é porque os copos<br /> + +dos bilhetes +fatidicos chegaram<br /> + +da ama nas mãos com riso de importancia. <br /> + +<br /> + +―Não falta aqui rapaz nem rapariga―<br /> + +diz ella;―o senhor +Padre escreveu todos,<br /> + +mesmo á vista do rol dos confessados.<br /> + +Meia noite já deu; quem quer casar-se,<br /> + +pode vir vindo.</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Ao grande reboliço</div> + +<div class="poetry1">succedeu a +attenção, que a cada sorte<br /> + +outra vez se converte +em gargalhadas.<br /> + +Por cada par que amor approvaria,<br /> + +veem disparates +comicos ás duzias,<br /> + +e dão rebate ás +palmas e epigrammas.<br /> + +O proprio bom do velho applaude a tudo,<br /> + +e por +primeira vez da sua vida<br /> + +encontra em si chorrilhos de finuras.<br /> + +Já pede a uma o bolo do noivado;<br /> + +quer ser padrinho de outra; +e ás mais bonitas<br /> + +quer baptisar de graça os +pequerruchos. <br /> + +<br /> + +Muito custa no mundo o ser discreto<br /> + +sem descambar o pé! +coisas escapam...<br /> + +que é por Deus não haver o +Santo Officio,<br /> + +como esta ao nosso padre: </div> + +<div class="poetry2"> +―Olhae, rapazes,</div> + +<div class="poetry1">vai n'estas sortes o que vai no mundo:<br /> + +o acaso e a +Providencia, ao que parece,<br /> + +ambos lêem pelo mesmo Breviario. <br /> + +<br /> + +Não foi dos mais christãos o epiphonema,<br /> + +mas fez +rir. O Golgan neste comenos</div> + +<span class="pagenum">[35]</span> +<div class="poetry1">chega, +furta uma sorte, e diz abrindo-a:<br /> + +―Esta, seja quem fôr, +é cá p'ra +nostri. <br /> + +<br /> + +Pede que a leiam; lê-se-lhe:―<span class="smallcaps">O +coveiro</span>.―<br /> + +Mudo o povo se entre-olha; e de repente<br /> + +co'as +pragas do Golgan destampam risos,<br /> + +como os que o padre Homero encaixa +aos deuses;<br /> + +¡inextinguiveis risos! Mas não cede<br /> + +a +chufas nem a agoiro o varão forte;<br /> + +e com mão bem +segura extrae sublime<br /> + +do outro copo outra sorte:―<span class="smallcaps">Ambrosia +Trécula</span>. <br /> + +<br /> + +Então do pateo o riso clamoroso<br /> + +deveu-se ouvir no Artabro e +Guadiana<br /> + +retumbou nos ceos: <span class="smallcaps">Trécula... +Trécula</span>. <br /> + +<br /> + +―¿Quem diabo é esta Ambrosia?―o heroe pergunta.<br /> + +―Sou eu―responde a ama.</div> + +<div class="poetry2"> +―¡Está brincando!</div> + +<div class="poetry1">é talvez sua neta ou +titrineta. ―Vá-se, tolo.</div> + +<div class="poetry4"> +―Olhe cá, senhora tia,</div> + +<div class="poetry1">não vai a arrenegar; +não lhe pergunto<br /> + +por cara, corpo e modos, que são +lindos;<br /> + +¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa? <br /> + +<br /> + +Com o desdem mais dramatico, a matrona<br /> + +voltou costas; e o +bêbado prosegue:<br /> + +―Sô Reverendo, não lhe +aceite os banhos,<br /> + +que eu sou casado, e ponho impedimentos. <br /> + +<br /> + +Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem<br /> + +tirar tambem; tirei; +¿quem tiraria?<br /> + +uma das filhas do meu bom +Philémon.<br /> + +Recebi parabens de todo o povo;<br /> + +deixei-o bem +disposto a divertir-se,</div> + +<span class="pagenum">[36]</span> +<div class="poetry1">e tornei co'o o meu <em>sogro</em> +ao +nosso +albergue.<br /> + +Instou que me deitasse; respondi-lhe<br /> + +que em noite de +San-João ninguem se deita;<br /> + +que alem d'isso a jornada +fôra curta,<br /> + +e sem nimia fadiga; ultimamente<br /> + +que, pois que +elle esperava a mais familia,<br /> + +esperava eu tambem; não sendo +airoso<br /> + +faltar á noiva no primeiro dia.<br /> + +―Cedo, mas só co'a clausula―disse elle―<br /> + +que +inda amanhan sois nosso.</div> + +<div class="poetry2"> +―Assigno.</div> + +<div class="poetry5">―¡Bello!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Então toca a palrar até que venham.<br /> + +Saiâmos, que faz calma; alem, na eira,<br /> + +sobre a alta palha do +centeio novo<br /> + +tomaremos a fresca e as orvalhadas.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Disse, e fez se. ¡Que ceo! +¡que paz! +¡que +noite!<br /> + +na molle aragem das fagueiras horas<br /> + +meu +coração feliz desabroxado<br /> + +me enchia de um perfume +egual ao vosso,<br /> + +nocturnas flores, que o gosais sosinhas.<br /> + +¡Quem podesse apanhar, prender na vida<br /> + +estes momentos +lubricos, momentos<br /> + +que só caem do ceo durante a noite,<br /> + +e +só na solidão! Temi perdel-os<br /> + +co'a triste +distracção de mutuas falas.<br /> + +Lembrou-me haver +notado no meu velho<br /> + +um genio amigo de contar historias;<br /> + +pedi-lhe uma +qualquer, bem decidido<br /> + +a deixal-o á vontade espanejar-se<br /> + +sem +lhe dar attenção; mas enganei-me,<br /> + +Pondo o rosto +na mão, nos céos os olhos,</div> + +<span class="pagenum">[37]</span> +<div class="poetry1">entra a buscar pela memoria antiga<br /> + +algum caso mais raro; e como desse<br /> + +casualmente co'a vista em certo lume<br /> + +n'um cabeço remoto,</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +―Ouvi―me disse;―</div> + +<div class="poetry1">por aquella luzinha lá ao +longe<br /> + +lembra-me um caso, e um caso que foi certo,<br /> + +passado ali no Minho ha +largos annos.<br /> + +Inda eu conservo em casa uns Breviarios<br /> + +de um Padre +irmão da minha avó materna,<br /> + +que +poderão servir de documento.<br /> + +Elle mesmo o escreveu nas +folhas brancas<br /> + +do principio e do fim dos quatro tomos.<br /> + +E era um clerigo +honrado, o que escrevia;<br /> + +merece tanta fé como a Escritura.<br /> + +Diz elle então ali (nem é só elle;<br /> + +minha Avó sua irman dizia o mesmo):<br /> + +que esta nossa familia +inda descende<br /> + +da Rosa de quem fala a dita historia.<br /> + +A minha +avó foi Rosa, e tinha o nome<br /> + +de sua mãe; a minha +mãe foi Rosa;<br /> + +a vossa <em>noiva</em> +é Rosa; e +n'esta casa,<br /> + +querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Depois d'este preambulo de Rosas,<br /> + +veio a historia, e encantou-me; ou +fossem causa<br /> + +hora e sitio, ou a amavel singeleza<br /> + +com que narrava o +historiador das medas,<br /> + +ou já +disposição com que eu me +achasse.<br /> + +Creio que sim: do espirito do ouvinte<br /> + +vem mais de meio o +merito das obras.<br /> + +</div> + +<span class="pagenum">[38]</span> +<div class="poetry1">Por exemplo: da Eneida o livro quarto<br /> + +dias ha que me enfada; ha +tambem dias<br /> + +em que se atura o <em>Italico</em> do +Padre;<sup><a href="#nt9">[4]</a></sup><br /> + +e +em que se entende um pouco a pálrea bruta<br /> + +que +aos brutos deu do amavel Lafontaine.<sup><a href="#nt10">[5]</a></sup><br /> + +Nada parece mal, trazido a +tempo;<br /> + +fora de tempo, tudo. A mesma coisa<br /> + +entre obras e leitores +acontece,<br /> + +que entre os garfos e as arvores: se enxertam<br /> + +quando o +não pede o tronco e o veda a lua,<br /> + +¡adeus ramo +bastardo! e se ao contrario,<br /> + +penetra a seiva toda, e pula o ramo. <br /> + +<br /> + +Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,<br /> + +que protestei contar-vol-o a +meu modo;<br /> + +e o poema seguinte é o desempenho.<br /> + +Tivesse elle, o +que em vão lhe hei procurado,<br /> + +da prosa do meu sogro o tom +singelo,<br /> + +talvez, leitores meus, o relerieis. <br /> + +<br /> + +Inventar, descrever, compor os versos,<br /> + +são os tres +pés, da trípode de Apollo.<br /> + +Já sabereis do Reverendo Kinsey<br /> + +que eu não tenho +invenção; que nada +pinto<br /> + +co'a verdadeira côr da Natureza;<br /> + +que os versos meus +são bons, mas que aborrecem;<br /> + +o que não tira que +um poéta eu seja<br /> + +digno de ser notado entre os que vivem.</div> + +<span class="pagenum">[39]</span> +<div class="poetry1">Ora, quanto á +invenção d'este poema,<br /> + +bem vedes que a +não ha, ou se a ha que é +d'outrem.<br /> + +E quanto ás descripcões, fiz o possivel<br /> + +para não metter mais que as do meu +<em>sogro</em>.<br /> + +Mas faltava o melhor, e o mais difficil:<br /> + +versificar á moda. Atirei fora<br /> + +o Virgilio, o Racine, e o +Metastasio,<br /> + +gebos todos monótonos, que enfiam<br /> + +os versos bons +e os optimos aos centos;<br /> + +atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;<br /> + +estudei, fiz ensaios, compuz paginas<br /> + +de embréxados +velhissimos e esdruxulos,<br /> + +e não foi sem proveito o estudo +acerrimo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Perdoae se este livro inda vai falho<br /> + +d'esses donaires que +travêssos fogem<br /> + +de mal expertas mãos; soffrei-o em +quanto<br /> + +vou destilar sobre outro o +<em>Elucidario</em>,<br /> + +qual se espreme um limão +sobre um guizote.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Abril de 1831.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">FIM DA +INTRODUCÇÃO<sup><a href="#nt11">[6]</a></sup> +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c3" id="c3"></a>III </h4> + +<br /> + +<h3> +EPISTOLA<br /> + +<br /> + +A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA </h3> + +<h4> +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Da paz de um ermo ao +turbilhão da côrte<br /> + +a Musa +de Castilho á do seu Costa<br /> + +saude e amor. Já outra +primavera<br /> + +se enflora, a seu pesar, desde que ausente<br /> + +pede aos montes a +irman, que a não suspira,<br /> + +e dorme ao lado de um feliz +ingrato. <br /> + +<br /> + +<br /> + +Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios<br /> + +em cantos cujo ecco +além não passa<br /> + +..........................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">1831―Abril, 21.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c4" id="c4"></a>IV </h4> + +<br /> + +<h3> +O PRESBYTÉRIO </h3> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +¡Salvè, principio e fim dos meus passeios!<br /> + +¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha,<br /> + +cobre ha perto de um lustro os meus autores,<br /> + +meus castellos no ar, meus +faceis versos!<br /> + +¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas +limas,<br /> + +festivo ornato das paredes brancas;<br /> + +co'o teu portão +patente oppresso de heras;<br /> + +e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,<br /> + +brasão futuro do obumbrado pateo!<br /> + +¡Salvè outra vez, meu presbytério! +¡Salvè!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Hoje, que o caprichoso do meu estro<br /> + +(bem sabes se elle o é) +deixa inconstante<br /> + +versos índa no chôco, outros que +apenas<br /> + +vão da casca a sahir, outros que breve<br /> + +teem de fugir +do ninho em vôos livres,<br /> + +entrou, mal veio a aurora +esclarecer-te,<br /> + +a doidejar-te em roda, a namorar-te,<br /> + +qual borboleta +ociosa ou leve abelha.<br /> + +Pois que elle o quer.... cantemos-te; e +perdôa<br /> + +se o canto falador, transpondo os cumes<br /> + +das tuas +cerejeiras, fôr mais longe<br /> + +revelar tua humilde obscuridade. +</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[44]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">A antiga mediania, a +segurança,<br /> + +a paz, o amor dos Ceos, o +amor dos homens,<br /> + +genios foram, que em bençãos +presidiram<br /> + +aos alicerces teus. De Pário monte<br /> + +não +foi mistér que entranhas te enviassem<br /> + +chão, +columnas, e abóbadas, e estatuas;<br /> + +tuas portas sem chave +não cresceram<br /> + +lá nas florestas do +hemisphério opposto.<br /> + +Foi visinho pinhal teu sôlho +e tecto;<br /> + +deu-te paredes mais visinho oiteiro;<br /> + +portões e meza +um cedro bom da extrema.<br /> + +Não custaste nem lagrimas a pobre,<br /> + +que á força te cedesse a choça avita,<br /> + +nem odioso suor; e não se dormem<br /> + +somnos melhores em Belem +nem Mafra.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +¿Que importa que no centro d'estes ermos<br /> + +vivas +tão só, que apenas descortines<br /> + +n'um dos altos +d'em torno esquiva aldeia?<br /> + +Tu e o templo co'as messes que vos cingem<br /> + +bastais no quadro agreste; em vós affluem<br /> + +(como em sua +Queluz) nos festos dias<br /> + +ondas e ondas de amaveis saudadores.<br /> + +Os +rebanhos ociosos não desdenham<br /> + +tôjo em flor, que +te doira o chão das mattas,<br /> + +d'onde envôltos co' os +trémulos balidos,<br /> + +veem cantos de amorosas guardadoras<br /> + +endoidecer teu ecco.</div> + +<br /> + +<div class="poetry4"> +Os caminheiros</div> + +<div class="poetry1">abençôam-te a +sombra; aqui teem +fonte,<br /> + +que em tua relva, ao fresco das parreiras,<br /> + +detém, +dessedentando-as, caravanas<br /> + +que vão ou veem no alpestre +Caramulo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum"><a name="p45" id="p45">[45]</a></span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">O anjo das flores liberal te arqueia<br /> + +de bordada verdura as rescendentes<br /> + +claras janellas.</div> + +<div class="poetry4">Um bulicio manso</div> + +<div class="poetry1">de amigas vozes teu recinto alegra.<br /> + +Na sua +tépida choça os bois ruminam<br /> + +ante o feno em +montões; dorme no páteo<br /> + +farto +esquadrão lanigero; ao sol pôsto,<br /> + +cão, +dos lobos terror, te vela as noites;<br /> + +teus gallos as demarcam +vigilantes.<br /> + +Co'a luz primeira arrulha-te alvejando<br /> + +cypria nuvem +plumosa; e apenas saltam<br /> + +da <a href="#e6">dextra mão</a> +mesquinha os grãos doirados,<br /> + +em torno da gentil madrugadeira<br /> + +de toda a parte os hospedes revôam.<br /> + +Bicam por entre as pombas +á porfia<br /> + +a gallinha de filhos rodeada,<br /> + +o manso grasnador do +aquoso tanque,<br /> + +o vaidoso perú, que ri cantando,<br /> + +e +vós, e vós, mais vivos do que todos,<br /> + +não chamados, mas sempre a nós bemvindos,<br /> + +passarinhos do ceo, turba sem dono.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Singelo presbyterio, ¡oh! +¡como te amo,<br /> + +co'o teu ar +casaleiro! Amo o teu forno,<br /> + +tão social á noite; a +simples sala,<br /> + +quasi sempre deserta; a livraria,<br /> + +deserta rara vez; estas +alcôvas,<br /> + +que enche um só leito; e a adega, +assoviada<br /> + +do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia<br /> + +da +cheirosa vendima; e o teu celleiro,<br /> + +alto, arejado, e tão +patente aos pobres,<br /> + +como as portas do templo convisinho.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[46]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Floresças para +o Ceo e para a terra<br /> + +nos +inconstantes seculos! ¡floresças,<br /> + +feliz, co'o +feliz dono, edade longa!<br /> + +E se, lá no futuro, algum amigo,<br /> + +sócio dos dias bons, saudoso e triste,<br /> + +torcendo a estrada, a +te pedir viesse<br /> + +novas do teu cantor,―«Amou me, e amei-o―<br /> + +lhe dirias mostrando-te; e―«Seus ossos―<br /> + +juntaria o teu +velho―aqui descançam.» </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Sim; apraz-me cuidar que inda os meus +restos,<br /> + +gratos aos bons d'este +recanto obscuro,<br /> + +onde escapei no seculo de sangue,<br /> + +cá +ficarão n'este ocio, inda alguns dias<br /> + +do simples montanhez +talvez chorados. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Oh santa perseguida Liberdade,<br /> + +¡onde te achei!.... Onde +não vivem homens;<br /> + +n'um torrão bravo que +não chama invejas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Em quanto, ora que a noite o ceo regela<br /> + +humida e turva, tantos ricos +enchem<br /> + +de bocejante enôjo as assemblêas,<br /> + +e tantos, +tantos miseros, sem lares,<br /> + +sem consôlo, sem pão, +sem voz de amigo,<br /> + +só reos de patrio amor, dormem nas furnas,<br /> + +pelas praias do Oceano, e pelas rochas<br /> + +(sublimes troncos pelo +pé cortados)...</div> + +<span class="pagenum">[47]</span> +<div class="poetry1">tua clara fogueira nos aquece;<br /> + +¡graças, +graças a um Deus!</div> + +<div class="poetry5">Assim +vagava</div> + +<div class="poetry1">sobre o universo undoso a arca do +justo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Nós, depois de annos tres, +inda esperâmos.<br /> + +Ainda +do trovão eccos retumbam.<br /> + +Ainda os escarceos assoladores<br /> + +remugem lá por fóra. Ainda a pomba<br /> + +co'o ramo de +oliveira inda não volve.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Oh santa perseguida +Liberdade!<br /> + +¡Oh! ¡Se +eu podesse, a trôco dos meus +dias,<br /> + +restituir-te á minha Patria!....</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry5"> +Basta.</div> + +<div class="poetry1">Esperemos ainda. Oremos sempre;<br /> + +e +talvez que não tarde a grata aurora,<br /> + +em que, a adejar da +serra pelos pincaros,<br /> + +venha de longe a nuncia das venturas,<br /> + +a pomba com +o seu ramo de oliveira!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Castanheira de Vouga</div> + +<br /> + +<div class="poetry3">Maio de 1831.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c5" id="c5"></a>V </h4> + +<br /> + +<h3>A LYRA DO DESTERRADO </h3> + +<h4> +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Era a noite dos finados;<br /> + +sombria noite de outono.<br /> + +Entre sinos +acordados<br /> + +lá jaz Roma entregue ao sono;<br /> + +seus luzeiros +apagados. <br /> + +<br /> + +Do ceo pelo rôto manto<br /> + +só brilham frouxas +estrellas;<br /> + +sai a custo o clarão santo<br /> + +dos templos pelas +janellas;<br /> + +e Petrarcha vela emtanto. <br /> + +<br /> + +Véla Petrarcha, e suspira<br /> + +no leito amoroso e ermo;<br /> + +olhos na +véla que expira;<br /> + +saudades no peito enfermo;<br /> + +nem gloria +sonha, nem lyra. <br /> + +<br /> + +Qual raio sôlto de lua<br /> + +por móveis aguas vibrada<br /> + +n'um bosque inteiro flutúa,<br /> + +tal adeja no passado<br /> + +a saudosa +mente sua.<br /> + +<br /> + +¿Quem dirá seus pensamentos?<br /> + +a douta lingua +está muda.<br /> + +¡Que paixões, que +sentimentos,<br /> + +no rosto, que aspeitos muda,<br /> + +veem transluzir por momentos! +<br /> + +<br /> + +Ora é dor, ora é sorriso,<br /> + +esperança, +amor, transporte;<br /> + +queixas, ternuras diviso;<br /> + +desce aos abysmos da morte,<br /> + +vôa aéreo ao Paraizo. <br /> + +<br /> + +¡Não falar o Vate agora<br /> + +co'os labios que move +apenas!<br /> + +¡Que torrente abrazadora!<br /> + +¡que amor! +¡que incendidas penas!<br /> + +¡quão nova a +paixão não +fôra! <br /> + +<br /> + +Vai a noite adiantada;<br /> + +humido vento assovia;<br /> + +treme a luz quasi apagada.<br /> + +Do grão Cantor que vigia<br /> + +ferve a mente a sonhos dada. <br /> + +<br /> + +―«Eís o templo conhecido<br /> + +que os meus destinos +encerra.<br /> + +A mãe terna, o pae querido,<br /> + +cá m'os tem +no seio a terra.<br /> + +Cá vi Laura, e fui perdido...<br /> + +........................................ </div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Castanheira do Vouga</div> + +<div class="poetry3">1830...(?)</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c6" id="c6"></a>VI </h4> + +<br /> + +<h3>EPISTOLA </h3> + +<h4> +(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">A minha primavera emfim renasce.<br /> + +Té n'este horror +selvatico dos montes<br /> + +roupas traja nupciaes a Natureza.<br /> + +O ceo azul, o ar +morno, as aguas puras,<br /> + +tudo nos diz «amor»; +dizem-n-o as aves<br /> + +chalreando ao florir das alvoradas;<br /> + +bala o rebanho +alegre; armento o muge;<br /> + +na folha nova zéphiro o cicia;<br /> + +a +camponeza em meio de mil flores,<br /> + +que lh'o exhalam balsamico, o suspira,<br /> + +e ao viçoso tapiz, á sombra vasta<br /> + +macia e +tentadora lança os olhos. <br /> + +<br /> + +Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,<br /> + +enleva a fonte e as arvores +nocturnas,<br /> + +cantando amor, da lua ao raio incerto,<br /> + +lições que mais de um ente ao longe estuda<br /> + +(e +pratica talvez); em sons de lyra,<br /> + +solitario eu tambem, +lições de affectos<br /> + +de cá te envio ao +centro da cidade.</div> + +<span class="pagenum">[52]</span> +<div class="poetry1">N'esse ruidoso vórtice de +povo,<br /> + +de vãos praseres, +de negocios futeis,<br /> + +a geral rotação te arrasta +ás cegas;<br /> + +é dever da amisade erguer-te aos olhos<br /> + +luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas<br /> + +pode não +ver a táboa ás vezes perto;<br /> + +pode a praia ignorar, +e tel a em face.<br /> + +Táboa amor te lançou da praia +firme;<br /> + +ledo e fausto Hymeneu te está chamando.<br /> + +..........................................................<br /> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c7" id="c7"></a>VII </h4> + +<br /> + +<h3>A ROMARIA </h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Lá vem Maio rosado. +Já floreja<br /> + +nas planicies, +verdeja pelos montes;<br /> + +é o mez de Amor, é o mez de +Philoméla. +<br /> + +<br /> + +Aureo amanhece o dia suspirado<br /> + +da romaria annual; léguas em +roda<br /> + +já tudo é festa, esp'rança, e +regosijo.<br /> + +As povoações, desertas. Por estradas,<br /> + +por torcidos atalhos, por oiteiros,<br /> + +correm de toda a parte ornados +bandos.<br /> + +Lá retrôa nos eccos aturdidos<br /> + +a matinal +girandola ruidosa;<br /> + +acorda ao longe a torre com repiques;<br /> + +um povo de cem +povos misturado<br /> + +enche a vozeada selva, a acceza ermida,<br /> + +e de ondeado +matiz cobre o terreno.<br /> + +Arfa ao sol, no alto mastro volteando,<br /> + +triumphante bandeira alvi-cerúlea.<br /> + +Vai e vem, ora chega, ora +se allonga,<br /> + +não está em nenhum sitio, e assoma em +todos,<br /> + +a alma da festa, a gloria do Gallego,<br /> + +a aguda gaita +túmida e franjada,<br /> + +que ao rufado tambor sócia, +repete<br /> + +a moda velha e alegre, amor dos campos.</div> + +<span class="pagenum">[54]</span> +<div class="poetry1">Em vidrado alguidar reluzem n'agua<br /> + +os doirados +tremóços, que afadigam<br /> + +com compradores a +afrontada tia.<br /> + +As navalhas e anéis, o apito, o espelho,<br /> + +se +assoalham mais além; na alva toalha,<br /> + +alva e folhuda, +estão chamando o exul.<br /> + +Em cima de seus carros triumphantes<br /> + +os laureados tonéis, reis da alegria,<br /> + +dão n'um +fogo perenne a vida a tudo. <br /> + +<br /> + +Aqui se ouve o descante ao desafio,<br /> + +que a viola ora segue, ora +acompanha.<br /> + +Ali se apinham para ver as danças,<br /> + +que a discorde +rabecca entorta ás vezes.<br /> + +Lá, se entorna o licor +em puros vidros;<br /> + +ao pé se adoça a fresca +limonada. <br /> + +<br /> + +Aqui se comprimentam; além chamam;<br /> + +um se perde, outro se +acha, outro convida.<br /> + +Este corre; esta pára a ataviar-se,<br /> + +por +mostrar o cordão e o lenço novo.<br /> + +Estirados na +relva os velhos palram;<br /> + +grita o rapaz. O amante, recostado<br /> + +ao +páu, por onde um braço lhe serpeia,<br /> + +faz longa +côrte á tímida futura,<br /> + +que em resposta +de amor lhe dá +tremóços. <br /> + +<br /> + +N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens.<br /> + +Lá sai a procissão; lá foram todos.<br /> + +¡Ah! depois do jantar comido ás sombras,<br /> + +cada um +levará, volvendo a casa,<br /> + +gratas lembranças para o +anno inteiro.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c8" id="c8"></a>VIII </h4> + +<br /> + +<h3> +O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES<br /> + +<br /> + +OU<br /> + +<br /> + +A MATTA DE S. SEBASTIÃO </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Versos +na +plantação de uns carvalhos junto +á egreja de S. Mamede<br /> + +da Castanheira do Vouga pelos rapazes +solteiros da freguezia<br /> + +no Domingo do Carnaval de 183... <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>I </h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">N'este dia, em que o povo tumultuando<br /> + +nos casaes, nas aldeias, nas +cidades,<br /> + +troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,<br /> + +por copos, +danças, máscaras, e risos<br /> + +nas saturnaes +christans; quando se espraia,<br /> + +desde o seio de Roma aos fins da terra,<br /> + +de um praser contagioso alta vertigem;<br /> + +¿por que retreme ao +golpe das enxadas<br /> + +sob os meus pés a solitaria encosta? </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Saude a vós, a +vós louvor. Bemvindos,<br /> + +montanhezes, fieis aos priscos usos!<br /> + +O cântaro do estylo ahi +está coroado,<br /> + +risonho e prestes a inundar os copos;<br /> + +o +prémio á vista vos redobre as +forças.<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[56]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Rasgae co'o duro ferro a terra dura;<br /> + +de vossos paes a matta veneranda<br /> + +em torno de seu santo antigo dono<br /> + +se accrescente por vós. +Plantae, que é tempo,<br /> + +no chão, sagrado de suor +devoto,<br /> + +ó presente annual, que o Ceo prospére.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Onde quer que elle jaz, +abençoemos<br /> + +as cinzas do homem bom, +lá d'essas eras<br /> + +que a pia usança introduziu +primeiro.<br /> + +¡Quanto a sua virtude era risonha!<br /> + +―«Cada solteiro plantará n'este ermo<br /> + +mais uma +arvoresinha de anno em anno,<br /> + +que lá em cima +encontrará seu premio.»<br /> + +¡Oh! estes +rogos, sim, este pedido,<br /> + +doce e desint'ressado, +uncção respira;<br /> + +manda mais do que as Leis; morrer +não deve. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Produz, produz a miudo, ó +Natureza,<br /> + +por teu bem, por bem +nosso, homens como esse.<br /> + +Haja quem diga ao joven par, que ás +aras<br /> + +sobe apenas amante, e desce esposo:<br /> + +―«Hoje, que +são já fruto +esp'ranças de hontem,<br /> + +entrae sorrindo pelo chão +da vida;<br /> + +plantae, plantae um'arvore que o lembre.» </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Quando a cabana festival se enrama,<br /> + +se enflora a meza, e os +aldeãos visinhos</div> + +<span class="pagenum">[57]</span> +<div class="poetry1">veem +festejar na casa um filho novo,<br /> + +a mão paterna, de praser +tremendo,<br /> + +orne de um novo tronco o prédio avito. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Depois de suspirada e +curta ausencia<br /> + +volve um +irmão das terras estrangeiras?<br /> + +¿Convalesce um +parente? ¿Em bem se acaba<br /> + +suado, volumoso, eterno pleito,<br /> + +que empobreceu o avô, o filho, e o neto?<br /> + +¿Fizestes +o adversario amigo vosso?<br /> + +¿Sorriu-vos a ventura? +¿É farto o +anno?<br /> + +A sêrdes Reis, alçáreis +monumentos;<br /> + +¿que vale um monumento? O homem dos campos<br /> + +melhores pode erguer a menos custo:<br /> + +plante sobre o caminho arvores +férteis.<br /> + +Por elle o passageiro ardendo em calma<br /> + +ache a +sombra hospedeira que o recreie.<br /> + +Por elle o pobre, que seu +pão mendiga<br /> + +de casal em casal, de monte em monte, <br /> + +que +não vê ceo, nem lar onde se aqueça,<br /> + +nem feno onde descance, e em todo o mundo<br /> + +só tem por +património a caridade,<br /> + +ache a fruta a pender em curvos +ramos,<br /> + +a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.<br /> + +Assim, do bem de +um só germinariam <br /> + +mil bens communs; e do praser de um homem<br /> + +o publico praser, publicas bençãos. </div> + +<br /> + +<h4>II</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Se tendes de nascer, nascei mui breve,<br /> + +sensiveis +corações a quem Deus guarda,<br /> + +a gloria de influir +eguaes costumes.</div> + +<span class="pagenum">[58]</span> +<div class="poetry1">Desde +já nossas lagrimas de affecto<br /> + +correm por vós; ao +seio do futuro<br /> + +nós vos lançamos desde +cá louvores.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>III</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Sentemo-nos, em quanto os vossos +filhos<br /> + +aqui se embebem na tarefa +honrosa,<br /> + +sentemo-nos á sombra, a vós bem grata,<br /> + +do carvalhal que as vossas mãos plantaram,<br /> + +homens das cans, +antigas testemunhas<br /> + +dos tempos que não são. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Vós, deputados</div> + +<div class="poetry1">das mortas +gerações aos +vivos de hoje<br /> + +como pregões propheticos; thesoiro<br /> + +de +saudades, de dor, de experiencia;<br /> + +bons velhos, á vossa alma +taciturna<br /> + +aprazem mais que a festa os pensamentos.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Falae: ¿d'onde vos nasce +essa tristeza<br /> + +profunda a um tempo e +vaga, amarga e doce?<br /> + +¿Será de +enfeitiçada sympathia<br /> + +que nos attrai á terra, ao +chão da vida,<br /> + +chão sempre cubiçado e +sempre ingrato?</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">O coração, +zeloso da existencia,<br /> + +compara os dias +seus do tronco aos dias,<br /> + +e a conta desegual o opprime e o fecha.<br /> + +¡Annos a nós, e seculos aos bosques!...<br /> + +Planta o +pae, mas a sombra hospéda os filhos;</div> + +<span class="pagenum">[59]</span> +<div class="poetry1">netos, que não +verá, +gosarão d'ella;<br /> + +e indiff'rentes incógnitos +vindoiros<br /> + +rirão contentes ao folhudo abrigo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas, velhos, mui ditoso o que em seu +predio<br /> + +dispõe arvore +fértil de esperanças,<br /> + +que irá legada +aos filhos de seus filhos.<br /> + +Prophecias de amor lhe expande o seio,<br /> + +sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos.<br /> + +Mas feliz egualmente o que em seu predio<br /> + +possue vaidoso um tronco +hereditario. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Na réga, e ao vir da flor, +e ao dar do fruto,<br /> + +¿como ha-de não pensar em seus maiores?<br /> + +Um lh'o +plantou, os outros lh'o trataram;<br /> + +¿Como ha-de recusar-lhe +uma saudade,<br /> + +um suspiro, um suffragio, um elogio?<br /> + +A gratidão +medita á mesma sombra<br /> + +onde já meditára +o amor paterno.<br /> + +Esta arvore mortal é o santo marco,<br /> + +em que +se juntam, se entrelaçam, crescem,<br /> + +dos idos o interesse e o +dos vindoiros;<br /> + +nó de affeição, que os +seculos reune. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Vedes vós essa +mãe, que ha tantos +annos<br /> + +chora um filho alem-mar, em longes terras?<br /> + +Mostrae-lhe um +passageiro a dar á vella<br /> + +para o porto feliz; ¡com +que ternura<br /> + +lhe não dará, chorando, um longo +abraço,<br /> + +que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,</div> + +<span class="pagenum">[59]</span> +<div class="poetry1">e todo o amor de mãe lhe +exprima n'elle!...<br /> + +¡E com quanto alvoroço o +desterrado<br /> + +não cingirá o amavel mensageiro!...<br /> + +Eis o emblema da arvore, cruzando<br /> + +viva e lembrada o Oceano das edades,<br /> + +mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.</div> + +<br /> + +<h4>IV</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Qual de vós, +repoisando n'esta cama<br /> + +de folhas +mortas, qual de vós, no meio<br /> + +d'esses troncos musgosos, +seculares,<br /> + +não viaja com o espirito espraiado<br /> + +por esse mundo +antigo e antigos homens?<br /> + +Sim, vossa alma se apraz, phantasiando<br /> + +de lhe +restituir quanto houve d'elles:<br /> + +uma vida, uma choça, herdade +e patria.<br /> + +Deslembram cans; rugosas faces riem;<br /> + +reviveis n'um minuto +annos de infancia<br /> + +sob a affeição de um pae, de um +pae nos lares;<br /> + +sem cuidados, sem prole, e sem temores,<br /> + +entrais folgando +o limiar da vida.<br /> + +¡Podesse n'este ponto o pensamento,<br /> + +como +ave em ramo flórido e viscoso,<br /> + +deter-se a recordar, ficar +pregado!<br /> + +¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o +sonho,<br /> + +e a extincta geração recai nas campas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Mas quê? +¿d'esses antigos plantadores<br /> + +nada mais resta além de uns troncos mudos<br /> + +n'este universo +movediço e instavel?<br /> + +¿nem uma só +lembrança, um dito, um +nome?<br /> + +Tudo passou sem mínimo vestigio,<br /> + +como os sons leves de +um descante ao longe.<br /> + +................................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[61]</span> +<h4>V</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bons aldeões, estas +sombras regaladas<br /> + +vos falam nos +avós; porém comigo,<br /> + +comigo, extranho, e novo em +meio d'ellas,<br /> + +conversam no aureo tempo a que assistiram;<br /> + +recordam-me as +edades do Universo,<br /> + +e os varios povos, e os paizes varios,<br /> + +contemporaneos do nascente mundo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Intonsas, invioladas, venerandas,<br /> + +outras selvas, como esta que nos +fecha,<br /> + +fecharam do homem a primeira origem.<br /> + +Sob as verdes +abóbadas immensas<br /> + +as velhas tradições +nol-os descrevem<br /> + +pobres e alegres, nús e satisfeitos,<br /> + +saboreando em ocio a glande e a fonte,<br /> + +dormindo sobre a folha, e sem +pedirem<br /> + +outra casa, outro templo, outra cidade. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">A pouco e pouco o numero crescia,<br /> + +minguando a pouco e pouco a +singeleza.<br /> + +Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam;<br /> + +a um +Maio eterno as estações succedem;<br /> + +o ar se gela e +accende, alaga e silva;<br /> + +já bravejam leões, +já bramam tigres;<br /> + +o homem se acoita ao seio das cavernas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Vós, troncos, +até ali seus companheiros,<br /> + +acudís a servil-o; ¡e em quantos modos!</div> + +<span class="pagenum">[62]</span> +<div class="poetry1">lá, crepitais em +rútila fogueira;<br /> + +aqui, das feras prohibís a +entrada;<br /> + +dais uma clava ao caçador valente;<br /> + +na +serviçal cortiça um berço aos +filhos;<br /> + +leitos a amor, assentos á velhice,<br /> + +aos enxames um +lar, um copo ás festas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Das precisões ao grito, o +engenho acorda;<br /> + +lá +surgem povoações, curraes, +tugúrios,<br /> + +e uma capella ás rusticas deidades.<br /> + +Lá rompe o novo arado a terra dura;<br /> + +lá geme, a +transportar enormes pezos,<br /> + +o carro, e sulca atónitos +caminhos.<br /> + +O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;<br /> + +a rudeza se +pule; as artes crescem;<br /> + +a especie racional das mais triumpha. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">As gerações do +ceo, do mar, da terra,<br /> + +tudo +é já seu; os campos lhe obedecem;<br /> + +faltava o +Oceano; affoita quilha o rasga. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Então foi, que estas +arvores, tão uteis<br /> + +no patrio +continente, abriram vôo<br /> + +sobre o liquido abysmo a novos +climas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿E em que parte do globo, +arvore excelsa,<br /> + +te podes +presentar, que não recordes<br /> + +uma façanha, um +culto, um grão successo?</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[63]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Na Grecia? Mas o Grego +inda hoje conta<br /> + +que foste invicta +clava em mão de Alcides;<br /> + +vê-te, suspira, bate o +chão raivando<br /> + +de achar-se escravo, e de não +ter-lhe as forças.<br /> + +¿Na Grecia? Mas o Grego inda +hoje conta<br /> + +do arvoredo Dodónio as mil respostas,<br /> + +o passado e +o porvir patente a todos,<br /> + +e o livro do destino aberto ao mundo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Na Ausónia? +Mas Cybelle amou teus ramos;<br /> + +Roma os +sagrou a Jove; e, fulminada,<br /> + +eras tremendo agoiro a todo o Imperio.<br /> + +¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica? </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry5"> +¿Nos campos?</div> + +<div class="poetry1">¿E +Phílémon, o +justo, o caro aos +deuses? </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Nas Gallias? em seus +barbaros oiteiros<br /> + +tu, só, +eras o altar, o deus, e o templo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Na Caledonia, em Morven, +junto aos lagos,<br /> + +sobre os cumes, +á beira das torrentes?<br /> + +Lá tu viste Tremnor, +Fingal, e os bravos,<br /> + +reunidos na vespera do sangue<br /> + +em nocturno festim +que allumiavas,<br /> + +quando na harpa dos bardos reviviam<br /> + +os feitos dos +heroes do antigo tempo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[64]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Salve, eleito Israel! +Eis-nos em campos<br /> + +de Sichem. Vejo os +principes e os velhos,<br /> + +os juizes, as tribus, apinhar-se<br /> + +em torno ao +tabernáculo de Sila.<br /> + +Por cima d'este mar ondeado e vivo <br /> + +reina de praia em praia alto silencio.<br /> + +Sublime como o cedro do deserto,<br /> + +se levanta Josué, braço do Eterno,<br /> + +em nome do +Senhor, que o manda e inspira;<br /> + +os favores do Ceo recorda ao povo;<br /> + +renasce a Fé; os idolos se arrazam;<br /> + +―«¡Gloria ao Deus de Israel!―vozeia a turba―<br /> + +¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!<br /> + +―Erga-se um +monumento,―exclama o chefe―<br /> + +que, se infieis um dia os esquecerdes,<br /> + +vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.»<br /> + +E a monumento +põe no logar santo<br /> + +enorme pedra á sombra de um +carvalho,<br /> + +que abrigava co'a copa o santuário.<sup><a href="#nt12">[7]</a></sup><br /> + +Despede o +Povo, e em paz contente expira;<br /> + +em paz, que já +não vê +perjúrios novos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Escrava de Madian a plebe expia,<br /> + +na miseria e no opprobrio, os males +torpes<br /> + +que fez ante o Senhor. Mas inda existe<br /> + +um justo, a quem Deus fie +o libertal-a:<br /> + +é Gedeão, é o +Josué +segundo.<sup><a href="#nt13">[8]</a></sup><br /> + +Este, em quanto seu pae lança aos caminhos<br /> + +medroso olhar á espera do inimigo</div> + +<span class="pagenum">[65]</span> +<div class="poetry1">para fugir com elle, ajunta +á pressa<br /> + +o trigo que limpou.</div> + +<div class="poetry2">Vê de repente</div> + +<div class="poetry1">um Anjo, que debaixo do carvalho<br /> + +se assenta, e +lhe repete a lei do Eterno.<br /> + +Esse mesmo carvalho é testemunha<br /> + +da belleza do alado mensageiro,<br /> + +da voz de +salvação mandada ao Povo,<br /> + +e do holocausto acceito +e posto em cinzas,<br /> + +e do altar, a quem <em>Paz</em> foi +dada em +nome. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">E este, que tão frondoso +opáca os valles,<br /> + +¿por que o rodeia um bando taciturno<br /> + +dos fortes de Galaad? +as suas armas<br /> + +jazem quebradas; sua dor vai funda;<br /> + +dos olhos tristes +para o ceo voltados<br /> + +pelo rosto amarello lhes escorre<br /> + +grosso pranto, que +alaga as f'ridas frescas.<br /> + +Choram Saul, e a régia +descendencia,<br /> + +que mortos no combate aqui descançam.<br /> + +Para o +Monarcha agigantado e invicto<br /> + +nenhuma estátua se +erguerá na campa.<br /> + +Sua columna e funebre palacio<br /> + +preparou-lh'os com tempo a Natureza:<br /> + +o tronco, rei da selva, o +está cobrindo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Mas quanto é +mais tocante o que se eleva<br /> + +nas +faldas solitarias da montanha!<br /> + +Ali Débora jaz; ali Rebecca<br /> + +chora na morte a que a nutriu na infancia,<br /> + +ama no +coração, mãe nos extremos,<br /> + +de seus +primeiros e ultimos segredos</div> + +<span class="pagenum">[66]</span> +<div class="poetry1">confidente fiel no lar paterno,<br /> + +querida socia na feliz viagem,<br /> + +e no lar +conjugal seu doce allivio.<br /> + +¿Arvore a tanto affecto +consagrada<br /> + +na affectuosa Biblia irá sem nome?<br /> + +o <em>carvalho +das lagrimas</em> lhe chamam.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>VI</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Que uso tão +doce aos +corações piedosos!<br /> + +Reverdecei, costumes do bom +tempo,<br /> + +quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,<br /> + +tinham sob um ceo +livre a sepultura.<br /> + +A Morte, menos barbara do que hoje,<br /> + +com avarenta +mão não ferrolhava<br /> + +sob um tecto pezado, entre +altos muros,<br /> + +as prezas, cá de fóra em +vão pedidas.<br /> + +Não era um templo um +cárcere de mortos.<br /> + +Dormiam mollemente em terra franca,<br /> + +em +jardins frescos, em copadas selvas.<br /> + +Esta esp'rança +adoçava um pouco o amargo <br /> + +do ultimo trago aos labios +moribundos. <br /> + +Este bem, tão pequeno em mal tão +grande,<br /> + +¡quanto valor não tinha aos que ficavam!<br /> + +O +irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo,<br /> + +podiam livremente, +a toda a hora,<br /> + +ir regar de seu pranto amadas cinzas,<br /> + +fartar saudades, +inflammar lembranças,<br /> + +delirar doce a noite, e o dia inteiro,<br /> + +e de praser a um peito onde palpitam<br /> + +superstições +de amor ou de amisade,<br /> + +dizer:</div> + +<div class="poetry3">«Este tapiz relvoso o cobre;</div> + +<div class="poetry1">esta ave lhe gorgeia; esta aura +sôlta<br /> + +o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;<br /> + +a primavera +m'o visita, e espalha</div> + +<span class="pagenum">[67]</span> +<div class="poetry1">tambem +por cima d'elle o seu regaço;<br /> + +esta violeta é sua, +hei-de colhel-a;<br /> + +d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,<br /> + +nutre-se do +seu pó, vive por elle,<br /> + +é elle mesmo em parte; +arvore amiga,<br /> + +recebe o nome caro, hoje sem dono,<br /> + +toma os +abraços que não posso dar-lhe.» +</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas.<br /> + +A +arvore, Deus a fez como passagem<br /> + +do mundo que respira ao mundo inerte;<br /> + +commum co'os animaes, commum co'a terra,<br /> + +vive e não sente; +habita e ignora o mundo,<br /> + +sympathisa co'a morte e co'a existencia,<br /> + +é grata ás cinzas, á saude +é grata. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Que férreos +somos nós, que a um como +vago<br /> + +atiramos sem dó perdidos, mixtos,<br /> + +o detestado, o amigo, +o estranho, e o nosso!<br /> + +Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros<br /> + +arrojasse o que os seculos pouparam,<br /> + +bronzes, escritos, marmores +romanos,<br /> + +ou, derrotando porticos, columnas,<br /> + +theatros, colliseus, +palacios, templos,<br /> + +em serra inutil amontoasse as pedras,<br /> + +¿quem não vertêra em lagrimas o sangue?<br /> + +¡E ante a nossa affeição teem menos +pezo<br /> + +que as +ruinas de Roma as que são nossas?!...<br /> + +¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes,<br /> + +espectaculos, jogos, aureas festas,<br /> + +jardins, parques!... ¡e +aos miseros que gemem,<br /> + +e aos peitos melancólicos, viuvos,</div> + +<span class="pagenum">[68]</span> +<div class="poetry1">ha-de negar se um canto onde +pranteiem!?...<br /> + +¿De tanto mundo que pertence aos vivos<br /> + +nada +dareis aos seus antigos donos?<br /> + +¡nem um torrão +perdido, e uns troncos nullos?!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Quando virá um +dia, em que estes bosques,<br /> + +semeados de tumulos não altos,<br /> + +de lugubres saudades se +povôem?<br /> + +Então, a propria Morte, hoje +tão sêcca,<br /> + +terá sua grinalda; a dor, seu gosto;<br /> + +e visitas o +pó, e cultos o ermo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Pelas noites mui placidas do estio,<br /> + +ao duvidoso alvor da lua incerta,<br /> + +bello será, sentado n'este sitio,<br /> + +ver vir, d'aqui, d'ali, +frouxos, dispersos,<br /> + +o do casal, o morador na aldeia,<br /> + +entrar chorando, e +procurar seus mortos.<br /> + +Aqui duas irmans resam de joelhos<br /> + +sobre o seio +materno sepultado.<br /> + +Aqui o velho attento as contas passa<br /> + +pelos dedos +convulsos, e se encosta,<br /> + +sem o saber, na fallecida esposa.<br /> + +O filho aos +pés da mãe co'os mais +soluça<br /> + +o Padre-Nosso apenas aprendido.<br /> + +Deitado ao lado do +submerso amigo,<br /> + +o amigo devaneia antigos annos. <br /> + +Por toda a parte, as +lagrimas e affectos, <br /> + +memorias doces, orações e +esp'ranças. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿E a quem não +conviria egual retiro? <br /> + +N'elle a +tristeza encontraria um pasto;</div> + +<span class="pagenum">[69]</span> +<div class="poetry1">a sciencia, reflexões; o +vicio, escolhos;<br /> + +a leviandade, +assento; a desventura,<br /> + +consolação; o amor, +silencio e pranto.<br /> + +Ensaiára-se o infante para a vida;<br /> + +o +velho, para a morte; o moralista<br /> + +viria achar +uncção para a verdade;<br /> + +o orador, +persuasões, ternura, encantos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ó filhos da montanha, +¡oh! libertae-vos<br /> + +de um +preconceito vão; é toda a terra<br /> + +a terra do +Senhor; afora o vicio,<br /> + +debaixo d'este ceo nada é profano.<br /> + +A +benção do Pastor consagraria<br /> + +vosso asylo feliz; e +a Cruz em meio<br /> + +todo de um santo influxo enchêra o bosque.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>VII</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas, em quanto esses dias vos +não raiam,<br /> + +bons velhos, +vigiae que, de anno em anno,<br /> + +aos juvenis futuros plantadores,<br /> + +em vez de +se afrouxar, se inflamme o zelo.<br /> + +Cresça com seu favor por +estas serras<br /> + +a geração dos vegetaes gigantes. <br /> + +Com +todos vós conversam todos elles<br /> + +sem cobrir campas; +guardam-vos saudades,<br /> + +são parentes de todas as aldeias,<br /> + +e o +brasão da montanha é o vosso parque.<br /> + +Sobre tudo +influi que a vossa raça<br /> + +trema ao só nome do +brutal machado <br /> + +que ouse violar a veneranda herança.<br /> + +O que +só Deus medrou, só Deus derribe.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[70]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Crêde-me (eu já +vi outras) vossa terra<br /> + +é descrida, enteada á Natureza.<br /> + +Cumpre a +vós adoçar-lhe o aspecto agreste,<br /> + +amiudar-lhe no +oceano ermo dos ares<br /> + +estas ilhas, virentes, graciosas,<br /> + +que espalhem +primavera pelos montes,<br /> + +que attráiam as volantes caravanas<br /> + +do rouxinol, da rôla, e da andorinha.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>VIII</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Lá em baixo a casa humilde +que branqeja,<br /> + +entre os alegres +plátanos e o templo,<br /> + +quasi que pasma, e se entristece e +encolhe,<br /> + +de ver em torno a solidão tão vasta.<br /> + +Como que está pedindo... ao menos bosques;<br /> + +não +tem outros jardins, outros passeios,<br /> + +que offereça a seu dono, o Pastor +vosso.<br /> + +Preparae desde já para o futuro<br /> + +sombras novas aos +novos successores,<br /> + +e refrigério estivo ás cans do +velho.<br /> + +Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.<br /> + +Mil vezes sua voz +reconhecida<br /> + +rogará paz ditosa aos vossos netos,<br /> + +quando, +serena a mente, e sôlta a vista<br /> + +lá fôrem +divagar, ora embebidos<br /> + +nos psalmos, nos poeticos arrojos,<br /> + +ora admirando +o Autor e o Nó dos mundos,<br /> + +no largo azul dos ceos, no alto +dos troncos<br /> + +e no zumbir e no voar do insecto. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Surgi! ¡surgi! +Lá jazem as enxadas.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Velhos, surgi! La voltam triumphantes,</div> + +<div class="poetry1">findo o novo trabalho, os vossos +filhos.</div> + +<span class="pagenum">[71]</span> +<div class="poetry1">Agora espumem copos, +sôem risos,<br /> + +exulte a dança, alonguem-se os +cantores.<br /> + +Conquistastes o inculto á Natureza:<br /> + +forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas.<br /> + +Toda +a vasta planicie, hontem tão erma,<br /> + +¡que povoada +vai já! ¡como promette<br /> + +lembrar ao vosso gado, +ás vossas filhas! </div> + +<br /> + +<h5>UM VELHO </h5> + +<div class="poetry1">Sim, dará sombra e vai +povoado o valle:<br /> + +mas fosse eu rico, e +lhe dobrára encantos. </div> + +<br /> + +<h5>SEGUNDO VELHO </h5> + +<div class="poetry1">¿E como, irmão? +</div> + +<br /> + +<h5>O PRIMEIRO </h5> + +<div class="poetry2"> +No alto d'este oiteiro,</div> + +<div class="poetry1">d'onde se avista o mar, o ceo, a +terra,<br /> + +poria +uma capella, e um San-Mamede<br /> + +co'o rosto de um menino, e o rir de um +Anjo;<br /> + +nas mãos o cajadito, o alforge ao lado,<br /> + +e o seu +rafeiro ao pé todo soberbo<br /> + +co'a colleira escarlate, e todo +amigo<br /> + +a lamber o seu Santo. É bom que os altos<br /> + +se +c'rôem de capellas, que levantem<br /> + +o pensamento aos Ceos, no +campo espalhem<br /> + +devoção e piedade, e aos +peregrinos<br /> + +ensinem o caminho e a vista alegrem. </div> + +<br /> + +<h5>UM PASTOR </h5> + +<div class="poetry1">Sim, co'o santo pastor de guarda aos +bosques,<br /> + +¿que haviam de +temer, nem cães nem gado?</div> + +<span class="pagenum">[72]</span> +<div class="poetry1">Nos degraus da capella, á +sombra inquieta,<br /> + +longas séstas sonháramos de +amores. </div> + +<br /> + +<h5>TERCEIRO VELHO </h5> + +<div class="poetry1">Já lá +vão o bom tempo e os bons +costumes;<br /> + +foi-se a abundancia e os corações +piedosos.<br /> + +Esses fundavam templos, como o nosso,<br /> + +n'um árido +deserto; e hoje.... se estala<br /> + +no campanario um sino, em ocio eterno<br /> + +fica mudo a pender dos braços podres.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>IX</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,<br /> + +serei eu quem consagre o +vosso oiteiro;<br /> + +não a Mamede, não ao pastor +martyr,<br /> + +mas á contrita amavel Peccadora.<br /> + +¿Não valem mais as lagrimas que o sangue?<br /> + +¿Mais que heroico valor não nos commove<br /> + +doce +humildade e penitencia longa?<br /> + +E de mais: se ás +aspérrimas proezas<br /> + +vos não destina o Ceo, todos +nascestes<br /> + +captivos frágeis de amorosas culpas.<br /> + +Muita virgem +no monte solitario<br /> + +tentada pelo amor e pelo amante,<br /> + +só com +ver a capella ha-de livrar-se,<br /> + +e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.<br /> + +E quando aqui errantes missionarios<br /> + +vierem dar, e á sombra +dos carvalhos,<br /> + +as turbas apinhadas instruirem,<br /> + +¡que +persuasões, que lagrimas, que exemplos<br /> + +hão-de +tirar da veneranda Imagem!....</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[73]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Qual me ri já +na mente o grão +projecto!<br /> + +Eu serei pois o fundador de um culto<br /> + +que aos frutos da moral +reuna flores. <br /> + +im; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente?<br /> + +............................................................. </div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>X</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Partiram. E eis-me só. +Todos partiram.<br /> + +O +alvoroço do entrudo os chama aos lares.<br /> + +¡Oh! +¡Bemdita a ignorancia d'estas serras!<br /> + +O rustico inda ri na +Patria em luto,<br /> + +e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.<br /> + +¡Bem +sabe elle que lagrimas aos mares<br /> + +d'este horizonte em roda +estão correndo!<br /> + +¿Sabe elle que o atro dia +é menos atro?<br /> + +A paz, a confiança, as alegrias,<br /> + +a +abundancia, a união de antigos Lusos,<br /> + +não +deixaram, fugindo, um só vestigio.<br /> + +No vaivem das +facções, que se entrevencem,<br /> + +tudo se perde e +esquece, afora a raiva.<br /> + +Os bons usos, as festas populares,<br /> + +a romaria +alegre, as patrias danças,<br /> + +vão-se apagando... +Aqui, mesmo na brenha,<br /> + +a pastora, esquecendo os seus amores,<br /> + +canta a +questão dos Reis, o hymno da guerra,<br /> + +sons novos, que o seu +gado e o ecco extranham. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ó Patria, bella Italia do +Occidente,<br /> + +tu que egual a +Parthénope repoisas<br /> + +debaixo da invejada laranjeira<br /> + +e do +mirto florido, ao deleitoso<br /> + +ruido de aguas limpidas, no abri</div> + +<span class="pagenum">[74]</span> +<div class="poetry1">de um ceo inspirador +tão proprio ao genio,<br /> + +ó bella Italia do +Occidente, ó Patria,<br /> + +¿era pois fado teu lidar sem +fruto<br /> + +para seres a inveja, a flor das gentes?....<br /> + +A guerra, sim, te +coroou co'as palmas<br /> + +das quatro partes do orbe, e as naus do mundo<br /> + +trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros.<br /> + +Mas as flores das +artes, mas os frutos<br /> + +das sciencias, no chão dos outros povos<br /> + +com tanto custo e com suor medrados,<br /> + +¿espontâneos +no teu medraram nunca?...<br /> + +¿Tiveste nunca os dons, que em paz +florentes<br /> + +ornam e absolvem da conquista os loiros?<br /> + +¡Que +imperios teem cahido! e tu, tu ousas,<br /> + +hoje ainda, aspirar á +eternidade!!...<br /> + +Talvez bem perto os seculos se cheguem,<br /> + +que +hão-de ver cego arado andar lavrando<br /> + +tuas cidades de +esquecido nome,<br /> + +e o rebanho indiff'rente apascentar-se<br /> + +sobre os teus +tribunaes, theatros, praças. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo,<br /> + +Lusitania, que +á borda do Oceano<br /> + +brilhas qual deusa em majestade e em +graça.<br /> + +Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes<br /> + +entre tropheos em pó, lavada em sangue.<br /> + +Deshonrada +Cleópatra, inda és bella,<br /> + +mas já nas +veias te circula a morte.<br /> + +¡Ai de quem nutre as +áspides no seio!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Ó Patria, +ó Patria, com que voz +tão baixa,<br /> + +com que pejo te expróbro! +¡Ah! se +podéres,</div> + +<span class="pagenum">[75]</span> +<div class="poetry1">perdôa meu furor, +vê só meu pranto;<br /> + +ó Patria, ó mãe, ó misera +querida!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que +seria?<br /> + +¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são +homens<br /> + +que nos matam irmãos... ¡Alerta!... +oiçâmos...<br /> + +<br /> + +.................................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c9" id="c9"></a>IX </h4> + +<h3> +O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Dia +em que o Poeta +plantou por suas mãos um cedro no pateo<br /> + +da residencia parochial da Castanheira do Vouga <br /> + +</div> + +<br /> + +<h4>(FRAGMENTO) </h4> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +.......................................................... </div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Se, de teus +annos na madura força,</div> + +<div class="poetry1"> +a mão que te ora planta +inda fôr viva,<br /> + +essa mesma, já trémula e +caduca,<br /> + +no tronco te abrirá, com pio exforço,<br /> + +graciosa capellinha, onde sorria<br /> + +um San-João, o Santo alegre +do ermo,<br /> + +trajo de pelles, juvenil frescura,<br /> + +olhos nos Ceos, aos +pés cordeiro branco. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">N'essa noite poetica e devota,<br /> + +em que +o praser, centuplicando aspectos,<br /> + +povôa, anima, encanta o mundo inteiro,<br /> + +agua e terra, ar e +ceo, tudo é macio,<br /> + +em que a velhice, a mocidade, a infancia,<br /> + +sympathisam no vago da alegria;<br /> + +quando n'alma insaciavel de delicias<br /> + +se +juntam, com mistura inexplicavel,<br /> + +ao saudoso passado, aos bens +presentes,<br /> + +as mil visões do esplendido futuro;</div> + +<span class="pagenum">[78]</span> +<div class="poetry1">quando em laço phantastico +se +aggregam<br /> + +da vida e eternidade os pensamentos,<br /> + +gosos, +superstições, fraquezas, cultos,<br /> + +qual ramalhete +de cipreste e rosas<br /> + +na caprichosa mão das feiticeiras;<br /> + +n'essa noite, das noites invejada,<br /> + +a ti concorrerão por toda +a parte,<br /> + +té das aldeias do horizonte extremo,<br /> + +dançantes bandos que a viola guia. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Verás girar seus bailes +clamorosos<br /> + +em redor das +estrídulas fogueiras;<br /> + +ouvirás os seus +cânticos em côro<br /> + +devoto e ennamorado. A bomba foge,<br /> + +zune fugindo, e sollapada estoira;<br /> + +o buscapé no ar +caracolando<br /> + +morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,<br /> + +dispersa os grupos, gasta-se raivando,<br /> + +e entre os risos rebenta +atroando os ares;<br /> + +ali circula em vórtice perenne<br /> + +a roda leve +espadanando incendios,<br /> + +chovendo oiro luzente e estrellas alvas;<br /> + +aqui +floreia o fúlgido valverde,<br /> + +vesuviosinho que arremette +ás nuvens;<br /> + +arranca o vôo e vai rugindo aos astros<br /> + +o ignívomo foguete estrepitoso. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡E a musica entretanto! +¡e as doces falas!<br /> + +¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta!<br /> + +¡e essa mão dada a furto e a furto acceita!<br /> + +¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes<br /> + +da +meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada!</div> + +<span class="pagenum">[79]</span> +<div class="poetry1">¡e as sortes que a fortuna +extrai +ás vezes,<br /> + +e muitas mais a próvida malicia!<br /> + +¡e a fonte que amanhece entre descantes,<br /> + +e pasma rindo de se +ver coroada<br /> + +de festões verdes e entrançadas +flores!<br /> + +¡Que noites, que alegrias, que triumphos,<br /> + +te aguardam +no porvir, me estão na mente!<sup><a href="#nt14">[9]</a></sup> +<br /> + +...............................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c10" id="c10"></a>X </h4> + +<h3> +O MOSTEIRO </h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Vós, que sois do amavel +sexo<br /> + +ardentes adoradores,<br /> + +que +girais de bella em bella,<br /> + +qual leve abelha entre as flores, <br /> + +<br /> + +que sabeis n'um só momento<br /> + +a mil deusas incensar,<br /> + +e pareceis +de ternura<br /> + +não poder-vos saciar, <br /> + +<br /> + +mancebos, o mundo é vosso;<br /> + +mil bellas o mundo tem;<br /> + +mas +não choreis as que á sombra<br /> + +repoisar das aras +veem. <br /> + +<br /> + +Se um jardim, florído, immenso,<br /> + +encontrais na sociedade,<br /> + +¿que importa que poucas rosas<br /> + +lhe furte a mão da +piedade? <br /> + +<br /> + +poucas rosas, que dispostas<br /> + +vão depois na solidão<br /> + +lançar mais doces perfumes,<br /> + +seguras de extranha +mão.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[82]</span> +<div class="poetry1">Vagae, vagae livremente<br /> + +nos jardins da Idália Venus;<br /> + +segui as Nymphas e as Graças<br /> + +pelos seus bosques amenos; <br /> + +<br /> + +os prazeres vos rodeiem,<br /> + +os jogos em torno vôem;<br /> + +a mocidade +vos ria;<br /> + +espêssas rosas vos c'rôem; <br /> + +<br /> + +¿que falta aos desejos vossos?<br /> + +¡ah! soffrei, sem +murmurar,<br /> + +ver d'entre os vergéis florídos<br /> + +poucas +pombas desertar, <br /> + +<br /> + +poucas pombas, que innocentes,<br /> + +e temendo o caçador,<br /> + +vão nos ermos solitarios<br /> + +buscar um fado melhor. <br /> + +<br /> + +Do Libano opacos cedros,<br /> + +de Sião bosque tranquillo,<br /> + +vós, palmeiras de Idumêa,<br /> + +prestae-lhes seguro +asylo. <br /> + +<br /> + +Estranhas vistas não turbem<br /> + +os seus piedosos segredos;<br /> + +contentes á sombra vivam<br /> + +dos sagrados arvoredos. <br /> + +<br /> + +Silencio, paz, e ternura,<br /> + +alva estrella de innocencia,<br /> + +e a vista de um +ceo risonho,<br /> + +lhes doirem toda a existencia.</div> + +<span class="pagenum">[83]</span> +<div class="poetry1"><br /> + +Murmúrio de castas fontes,<br /> + +perfume de simples flores,<br /> + +lhes paguem jardins que infestam <br /> + +os abutres e os açores. <br /> + +<br /> + +Eu vos lamento e vos chóro,<br /> + +insensiveis +corações,<br /> + +que de um mosteiro entre os muros<br /> + +não vêdes senão prisões. <br /> + +<br /> + +Córae da vossa loucura.<br /> + +Correi a ver de mais perto<br /> + +o Eden +recatado ao mundo<br /> + +no seio d'este deserto. <br /> + +<br /> + +Modestas virgens o habitam,<br /> + +que só não teem +liberdade<br /> + +de colher em frutos de oiro<br /> + +as festas da sociedade. <br /> + +<br /> + +Segui-me, segui-me affoitos,<br /> + +entremos. Abriu-se o templo.<br /> + +Seus ermos, +ao mundo ignotos,<br /> + +inteiros d'aqui contemplo. <br /> + +<br /> + +¿Não vêdes sobre os altares<br /> + +com +graça engrupadas flores<br /> + +lançar torrentes de +aromas,<br /> + +brilhar co'as mais vivas cores? <br /> + +<br /> + +N'esses prados invisiveis<br /> + +tambem pois se eleva a aurora;<br /> + +sol, e +zephyros, e fontes,<br /> + +lhes dão sorrisos de Flora.</div> + +<span class="pagenum">[84]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Essas pois, que vós julgaveis<br /> + +desgraçadas +prisioneiras,<br /> + +teem praseres, teem delicias,<br /> + +teem jardins, +são jardineiras. <br /> + +<br /> + +Vêde ornar formosa Imagem<br /> + +rico manto que fulgura,<br /> + +de oiro e +sedas matizado<br /> + +com vistosa bordadura. <br /> + +<br /> + +Vêde a grinalda florida;<br /> + +vêde o ramo; estes +jasmins,<br /> + +estes lirios, estas rosas,<br /> + +não são +já de seus jardins. <br /> + +<br /> + +Não devem sua existencia<br /> + +nem á terra nem ao Ceo,<br /> + +e nem zephyros nem fontes<br /> + +serviram no augmento seu. <br /> + +<br /> + +Formou-as arte engenhosa;<br /> + +poude mais que a Natureza;<br /> + +deu mais vida +ás suas flores;<br /> + +prestou-lhes egual belleza. <br /> + +<br /> + +¿Sabeis, que mãos feiticeiras<br /> + +obraram prodigios +taes?<br /> + +eis o trabalho e os recreios<br /> + +d'essas piedosas Vestaes. <br /> + +<br /> + +Ellas no côro apparecem;<br /> + +e, ao som dos orgãos +divinos,<br /> + +de sua alma aos Ceos se elevam<br /> + +devotos brilhantes hymnos.</div> + +<span class="pagenum">[85]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Innocentes e macias,<br /> + +d'estas vozes a mistura<br /> + +sem perturbar os +sentidos<br /> + +infunde n'alma ternura. <br /> + +<br /> + +Em seus canticos não reina<br /> + +terreno vulgar affecto;<br /> + +é mais puro, é mais sublime<br /> + +de seus amores o +objecto. <br /> + +<br /> + +O pensamento que as ouve,<br /> + +sai da térrea +habitação,<br /> + +deixa os ares, das esphéras<br /> + +atravessa o turbilhão, <br /> + +<br /> + +vê do Empyrio as portas de oiro<br /> + +abertas á +humanidade,<br /> + +rompe audaz, vai submergir-se<br /> + +no fulgor da Divindade. <br /> + +<br /> + +Cessa a musica, e de novo<br /> + +volve a mente ao patrio mundo;<br /> + +mas dos +virgineos desertos<br /> + +primeiro se arroja ao fundo. <br /> + +<br /> + +Lá divisa, em liberdade,<br /> + +nas livres tranquillas horas,<br /> + +dadas +a cantos diversos<br /> + +estas formosas cantoras. <br /> + +<br /> + +Na sombra d'aquelles bosques,<br /> + +n'aquelles molles passeios,<br /> + +tambem pois +das Musas entram<br /> + +os aprasiveis recreios.</div> + +<span class="pagenum">[86]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Olhae por fim seus aspectos,<br /> + +¿Não vedes +vós a bondade,<br /> + +a alegria da innocencia,<br /> + +as virtudes da +piedade? <br /> + +<br /> + +Eis os Genios que lhes tornam<br /> + +encantadora a existencia:<br /> + +as virtudes da +piedade,<br /> + +os praseres da innocencia. <br /> + +<br /> + +A amisade entre ellas reina;<br /> + +¿os encantos da amisade<br /> + +não prestarão, por ventura,<br /> + +delicias á +soledade? <br /> + +<br /> + +Mas basta, insensatos, basta;<br /> + +á scena se corra o veo;<br /> + +não profanem vossos olhos<br /> + +mais tempo os átrios do +Ceo. <br /> + +<br /> + +Ide no mundo esquecel-as,<br /> + +em vez de as irdes chorar;<br /> + +e o vosso mundo +vos baste,<br /> + +como lhes basta um altar. <br /> + +<br /> + +Mas esperae; respondei-me;<br /> + +consultae vosso interior:<br /> + +¿sois +ditosos co'os sorrisos<br /> + +de um falso inconstante amor? <br /> + +<br /> + +¿Sabeis vós o que amor seja?<br /> + +¿Satisfaz-se o coração<br /> + +com esses fogos +incertos,<br /> + +e essa eterna agitação?</div> + +<span class="pagenum">[87]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +¿Não virá talvez um dia,<br /> + +em que, +mais sabios, queirais<br /> + +unir os vossos destinos<br /> + +á melhor +d'entre as mortaes? <br /> + +<br /> + +¿Como a haveis de achar no mundo,<br /> + +no mundo, cujos enganos<br /> + +vós conheceis, ajudastes,<br /> + +seguistes, por tantos annos? <br /> + +<br /> + +Tremereis de um laço eterno.<br /> + +A vossa pena consiste<br /> + +em +pensardes que a virtude<br /> + +que não tendes, não +existe. <br /> + +<br /> + +Então aqui vos espero,<br /> + +n'estes quietos retiros.<br /> + +Estes muros +que insultaveis,<br /> + +ouvirão vossos suspiros. <br /> + +<br /> + +Entre estas virgens mimosas,<br /> + +que severa educação<br /> + +forma, longe dos humanos,<br /> + +á sombra da solidão, <br /> + +<br /> + +viréis procurar o objecto,<br /> + +cuja ternura innocente<br /> + +vos deve +tornar a vida<br /> + +risonha, pura, e contente. <br /> + +<br /> + +Não detesteis um recinto,<br /> + +onde Amor, onde Hymeneu,<br /> + +onde um +Genio, amigo vosso,<br /> + +vosso thesoiro escondeu.</div> + +<span class="pagenum">[88]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Pensae, pensae que ali vive,<br /> + +cresce em virtude e talentos,<br /> + +e em +graças, aquella que ha-de<br /> + +doirar os vossos momentos. <br /> + +<br /> + +Qual arbusto delicado,<br /> + +que a viçosa louçania<br /> + +mostrar em seu proprio clima,<br /> + +em seu proprio ceo, devia, <br /> + +<br /> + +mas foi por mão inimiga<br /> + +trazido a estranhos logares,<br /> + +onde +murcho cederia<br /> + +a influxos de infestos ares, <br /> + +<br /> + +se da estufa compassiva<br /> + +lhe não fosse aberto o seio,<br /> + +onde +vegeta e floresce<br /> + +de arbustos eguaes no meio; <br /> + +<br /> + +ali não receia as neves;<br /> + +não treme da tempestade;<br /> + +gosa o sol; vive no mundo,<br /> + +vivendo na soledade; <br /> + +<br /> + +de extranhos somente é visto;<br /> + +tem louvor; é +cubiçado;<br /> + +mas das flores, mas dos frutos,<br /> + +não +é jamais despojado. <br /> + +<br /> + +¡Mil vezes feliz, mil vezes,<br /> + +quem ousa, á luz da +verdade,<br /> + +queimar a máscara d'oiro<br /> + +ás larvas da +sociedade!</div> + +<span class="pagenum">[89]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Medrae, sagrados mosteiros;<br /> + +medrae, desprezando a inveja;<br /> + +jamais +fulminar-vos possa<br /> + +calumnia que em vão troveja. <br /> + +<br /> + +Brilhae, como ilhas florídas,<br /> + +no meio do mar profundo<br /> + +de +vicios, crimes, e horrores,<br /> + +que alaga, que abrange o mundo. <br /> + +<br /> + +Sêde o asylo das virtudes,<br /> + +do Eden a propria entrada,<br /> + +o +enlace dos Ceos co'a terra,<br /> + +do Empyrio a sublime escada. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Coimbra―1826 (?)</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c11" id="c11"></a>XI </h4> + +<br /> + +<h3> +SANTA MARIA EGYPCÍACA </h3> + +<h4> +(Fragmento de um poema) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">...........................................................<br /> + +Prostrada aos +pés da Cruz, ante a caveira,<br /> + +jaz solitaria a Egypcia. Rios +descem<br /> + +de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam, </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Tão nova, e +isenta? ¡Oh! +não; mudou de amores.<br /> + +Dos primeiros só guarda a +dor e as penas;<br /> + +mas os novos, os ultimos, protesta<br /> + +conserval-os em +vida, e em morte havel-os. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Té aqui, pela alma escura +só lhe ardiam<br /> + +relampagos dispersos; derretido<br /> + +raio dos Ceos lhe côa pelas +veias. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Brilhou no mundo como a flor de um +dia.<br /> + +Os soes vivos, os ventos +importunos,<br /> + +lhe ameaçavam fim; ruins borboletas<br /> + +captivas da +belleza iam murchal-a.<br /> + +Imprevisto invisivel jardineiro<br /> + +a tempo a salva, +e a transplantou no ermo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[92]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">No mundo, sobre o abysmo, hontem +folgava<br /> + +impróvida e +leviana; hoje pranteia<br /> + +na solidão, mas sob um Ceo que a +espera.<br /> + +As cidades, em que ídolo brilhára,<br /> + +inda a +chamam em vão, e em vão a aguardam.<br /> + +De um lustro +que a houveram, ¡quantos lustros<br /> + +lhe volveram saudade! </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Em viço de annos,</div> + +<div class="poetry1">e mais bella que as flores todas +juntas<br /> + +das dezassete suas primaveras,<br /> + +qual fugaz sonho de manhan de estio,<br /> + +foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde.<br /> + +Murcharam +festas; esmorecem danças;<br /> + +os banquetes, diffusos pela noite,<br /> + +já não veem despertar ternura e risos.<br /> + +Nas +roseiras intactas se desfolham<br /> + +os botões das grinaldas; o +alaúde,<br /> + +que falou tanto amor nas mãos da bella,<br /> + +discorde jaz, e mudo... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Ella, entretanto,</div> + +<div class="poetry1">co'os mimosos pés +nús calcando +areias,<br /> + +desornado o cabello, envôlta em pelles,<br /> + +timida, +envergonhada, pesarosa,<br /> + +vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.<br /> + +Mil vezes +á avesinha se compára,<br /> + +sem família, +sem lar; corre erradia;<br /> + +¿não ha-de ambas manter a +paz que é de +ambas?<br /> + +Beija a caverna frígida que a hospéda,<br /> + +e +agradecendo este hórrido paraizo<br /> + +ao Deus que lh'o depára, +esquece o mundo,<br /> + +ou sem saudade e com horror o aviva.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[93]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ai coração +tão amplo, onde estuava<br /> + +mar +de affectos sem conto, escoado agora,<br /> + +¿quem o ha de encher? +¡em solidão +tão funda!<br /> + +¿quem o ha-de encher? Já o +enche o que enche +tudo,<br /> + +o que brilha na luz, no sol, nos astros,<br /> + +corre nos +aquilões, anima os troncos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Só conversa com Deus, e a +Deus só ouve.<br /> + +Este +seio, estas tranças desatadas,<br /> + +são brinco +só do vento do deserto.<br /> + +Esta mão, tão +mimosa e tão querida,<br /> + +só procura, excavando a +terra ingrata,<br /> + +a amorosa raiz, ou já se encurva<br /> + +para dar +agua aos labios sequiosos.<br /> + +A aurora a vem saudar já de +joelhos.<br /> + +Não ha um sol, não ha na noite um astro,<br /> + +que não saiba os seus ais e eternas preces.<br /> + +Nem que passe o +chacal, a hiena, a onça,<br /> + +foge, ou quebra os devotos +exercicios.<br /> + +Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;<br /> + +e a Estrangeira +não treme; ora, e descança. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ao fresco desmaiar da extrema tarde,<br /> + +quando os raios do sol +já mal doiravam<br /> + +da longinqua palmeira o incerto cume,<br /> + +¡que vezes, assentada, e sustentando<br /> + +na eburnea +mão o pallido semblante,<br /> + +atraz do astro fogoso e fugitivo,<br /> + +mandava o coração, mandava os olhos!</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[94]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">―«Além―dizia―além, +n'esse Occidente,<br /> + +corre o santo Jordão delicias minhas,<br /> + +que o Salvador banhou, +que eu passei mesma.<br /> + +Talvez aquella nevoa que lá brilha,<br /> + +mudada em rosa, em purpuras, em oiro,<br /> + +seja da santa veia alegre filha,<br /> + +Além... Jerusalem, Sião, +Judêa...» </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">E a taes nomes, enxames de memorias,<br /> + +de saudades, de affectos, lhe +adejavam<br /> + +pela alma, alegre em parte, em parte escura.<br /> + +Raro, mas inda +ás vezes lhe assomavam<br /> + +no involuntario somno ideias meigas.<br /> + +Inda, uma vez ou outra, o amor banido<br /> + +entrava de relance o antigo +alvergue,<br /> + +e apóz elle os passeios namorados,<br /> + +os theatros +esplendidos, as galas,<br /> + +as mezas rindo, os bailes desenvôltos;<br /> + +e as victorias, e as chusmas dos praseres,<br /> + +como á sua rainha +vão saudal-a.<br /> + +Acordava sorrindo, a Cruz fitava;<br /> + +e atirando +se á terra, e sôlta em +chóros,<br /> + +pagava erros não seus com dor bem sua. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Taes se lhe vão no ermo +deslizando<br /> + +dias e annos, sem ver na +areia impressos<br /> + +mais vestigios que os seus. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +De tempo em tempo,</div> + +<div class="poetry1">só vê talvez, ou +ver presume ao +longe,</div> + +<span class="pagenum">[95]</span> +<div class="poetry1">do horisonte nas +sombras pavorosas,<br /> + +o ténue pó da immensa +caravana,<br /> + +que vai de Alépo á Méka em +certa +estrada.<br /> + +Por ella ora, e entre o orar lamenta<br /> + +a devota +fanática impiedade. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Tal vai manando a limpida existencia.<br /> + +Egual ao ramalhete que desmaia,<br /> + +e +se esfólha no altar entre os perfumes,<br /> + +tal, sem gosto e sem +dor, e sem que o note,<br /> + +perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia<br /> + +encantos, já seu mal, e mal do mundo.<br /> + +O juvenil das formas +exteriores<br /> + +concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas<br /> + +se esconde um +coração de amor não +farto. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Quem a tivesse visto, e a visse agora,<br /> + +sentiria o que sente o viajante,<br /> + +quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,<br /> + +saudosos restos, da gentil +Palmyra.<br /> + +Uma e outra já gloria do Universo;<br /> + +agora mudas, +sós, e deslembradas,<br /> + +e socias no deserto, e eguaes no +exemplo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Meio seculo a viu prantear sosinha<br /> + +annos ligeiros da fugaz infancia.<br /> + +Ao +fim da gran carreira, o Ceo lhe envia<br /> + +o solitario Zózimo, +como ella<br /> + +ancião virtuoso, e habitador das covas,<br /> + +que lhe +oiça a longa vida, a anime, e exforce;<br /> + +lhe dê +perdão e paz de um Deus em nome.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[96]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Pela primeira vez contente e alegre,<br /> + +ousando olhar os Ceos,</div> + +<div class="poetry2"> +―«¿Trareis,―lhe disse―</div> + +<div class="poetry1">á pobre +peccadora o manjar de Anjos?»<br /> + +―«Sim.»</div> + +<div class="poetry4">E partiu.</div> + +<div class="poetry2">Com vista prolongada</div> + +<div class="poetry1">ella o segue; co'os olhos no deserto<br /> + +o espera todo +o dia; ¡e este é tão +longo!...<br /> + +¡tarda tanto o bom hóspede!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry5"> +Passou-se</div> + +<div class="poetry1">um anno inteiro. É elle +agora; é elle;<br /> + +conheço o fraco andar que o zelo apressa,<br /> + +e as cans, e a +calva, e as faces penitentes... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Chega; clama; a caverna +não responde;<br /> + +grita, e só +ouve a si. Olha em redondo,<br /> + +vê-a jazer na areia, e a areia +escrita<br /> + +por mão trémula, errante, ao que parece: </div> + +<br /> + +<div class="poetry tinyl">Bom Zózimo, por santa +caridade<br /> + +enterra o corpo da infeliz +Maria.<br /> + +Aqui morri no dia em que te fôste.<br /> + +Encommenda-me a +Deus, e Deus t'o pague. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">..................................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c12" id="c12"></a>XII </h4> + +<br /> + +<h3> +EPISTOLA </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Ao +meu amigo o Desembargador +Manuel Venancio<br /> + +Deslandes +</div> + +<br /> + +<h4> +(NO DIA DOS MEUS ANNOS)<br /> + +<br /> + +FRAGMENTO </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Em torno ao teu amigo +estão fervendo,<br /> + +Deslandes meu, na hora +em que te escreve,<br /> + +de uma festa caseira o reboliço. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bem que alveje de neve o Caramulo,<br /> + +e um frígido +suão de lá nos venha,<br /> + +ninguem hoje de frio aqui +se queixa.<br /> + +Não descança nem pé, nem +mão, nem lingua;<br /> + +o sumptuoso lar arde em tres +fógos;<br /> + +o forno se afogueia; a branca meza<br /> + +vai-se de +loiça e vidros alegrando. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Uma estuda em compôr as +sobremezas;<br /> + +outra enrama de loiro +alta ferrugem<br /> + +das vigas da cosinha; esta, sizuda,<br /> + +de riscado avental e +nus os braços,</div> + +<span class="pagenum">[98]</span> +<div class="poetry1">com importancia e afan revira +espêtos;<br /> + +aquella, anda +scismatica, e raivosa<br /> + +de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,<br /> + +que +além de um alecrim, de umas violetas,<br /> + +nascidas por engano, +além de rosas,<br /> + +frágeis, sem cheiro, e languidas, +não cria<br /> + +com que se enflore a meza dos meus annos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Porque é, +quando a sorrir divagam todos,<br /> + +quando +só para mim se andam tecendo<br /> + +estas pompas domesticas, agora<br /> + +que a potente amisade em meu obsequio<br /> + +para tudo fazer até +fez estros;<br /> + +agora, emfim, que aos raios da alegria<br /> + +não ha um +coração que se +não abra...<br /> + +¿por que se fecha o meu? +¿Dará +(não creio)<br /> + +da Natureza o luto um certo assombro<br /> + +ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado<br /> + +d'esta +patria amargura, a filtre aos gostos,<br /> + +qual vaso que azedado a tudo +azéda?...<br /> + +.......................................................... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">26 de Janeiro</div> + +<div class="poetry3">de 1833.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c13" id="c13"></a>NOTAS DOS EDITORES<br /> + +<br /> + +AO VOLUME I DO<br /> + +<br /> + +PRESBYTERIO DA MONTANHA </h3> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Da villa da Castanheira―No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de +Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o +sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam +da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella +entra em correição o seu +Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja parochial da +invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da +Feira, que rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo +tem uma freguezia dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de +Aguadão, que consta de 100 visinhos. É curado +annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu Prior. Tem +este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que +fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes +de todo genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes +ordinarios, Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão +da Camara, Juiz dos Orphãos +com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da +Ordenança. <br /> + +<br /> + +(<em>Chorographia portugueza</em> pelo Padre +Antonio Carvalho da Costa.―T. II, pag. 176―1708.) +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[100]</span> +Castanheira do Vouga―Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de +Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem +803 visinhos. Está +situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S. +Mamede. Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros +são do Santissimo, de Nossa Senhora da +Expectação, com sua irmandade, e outro de S. +Jorge. O Parocho é Prior, apresentação +da +casa do Infantado; tem de renda 400$000 reis. Tem tres ermidas, que +são: a do Espirito Santo, a de Nossa Senhora do +Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra +são milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa +um Juiz ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios +Aguedão, Alfusqueiro, e Agueda. <br /> + +<br /> + +(<em>Diccionario geographico</em> pelo Padre +Luiz Cardoso. 1751.) <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +Castanheira do Vouga.―Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago +S. Mamede; o Parocho é Prior da +apresentação da Casa do +Infantado; rende 480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e +de Coimbra 7; tem 58 fogos. <br /> + +<br /> + +Ágadão―Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por +Orago Santa Maria Magdalena; o Parocho é Cura da +apresentação do Prior da Castanheira; rende +40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem +102 moradores <br /> + +<br /> + +(<em>Portugal sacro-profano</em>―por Paulo +Dias de Niza; cryptonimo do Padre Luiz +Cardoso―Lisboa―1767―8.º―2 +vol) <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +Castanheira do Vouga.―Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do +Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140 +fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto +administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da +Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um +monte proximo á serra do Caramulo. A Casa do Infantado +<span class="pagenum">[101]</span> +apresentava o Prior, que tinha +400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz +algum vinho, e do mais pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a +16 de Junho de 1514. Era cabeça do concelho do seu nome e +tinha Juiz ordinario, Camara, Escrivães, e mais +Justiças. Passam pela freguezia +os rios Agueda, Aguedão, e Alfusqueira.<br /> + +<br /> + +(<em>Portugal antigo e moderno</em>―por +Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal―Lisboa, 1874). <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<h4><a href="#n1"> +Pag. 11</a> lin. ultima +</h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Dapibus mensas oneramus +inemptis<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto +é, vivemos, sem comprar, das nossas lavras proprias. <br /> + +<br /> + +Citação de Virgilio +(<em>Georgicas</em>, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina +variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +<em>....Sero que revertens</em></div> + +<div class="poetry1"><em>nocte domum, dapibus mensas +onerabat +inemptis.</em></div> + +<br /> + +<br /> + +Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que +vamos ouvir +na traducção de Castilho: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry4">......Alembra-me +que +outr'ora,</div> + +<div class="poetry1">lá por onde o Galeso +arrasta a veia escura<br /> + +por +entre loiros chãos de cereal cultura,<br /> + +junto á +Ebália cidade, a de torreados muros,<br /> + +conheci um corycio em +annos já maduros,<br /> + +dono de uma chanzinha ali desamparada.<br /> + +O +pobre do torrão de si não dava nada:<br /> + +nem pasto +para bois, nem para um fato hervinha.<br /> + +Sumitico de pães, +escasso para vinha,<br /> + +era um sarçal fechado; e no +sarçal, comtudo,<br /> + +o bom velho, a poder de diligencia e +estudo,<br /> + +tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno<br /> + +com +seve de jardim para maior adorno,<br /> + +alvos lirios, verbena, e papoilas de +prato.<br /> + +Não trocára co'os Reis seu parco haver +tão grato. <br /> + +Recolhia ao casal já noite; e, +¡que riqueza<br /> + +de iguarias de graça a assoberbar-lhe +a meza!</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[102]</span> +<h4><a href="#n2">Pag. 18</a> lin. 3 </h4> + +<br /> + +<div class="quote">Passámos n'uma bateirinha, +remada por uma velha moleira da +margem, o +víçoso rio de Bolfiar. </div> + +<br /> + +<br /> + +Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O +caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos +modernos, deram cabo da antiga viagem tão pittoresca. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n3">Pag. 36</a> lin. 20 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Uma especie de zimborio +de doze palmos de altura. <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que +primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação +do Reino. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n4">Pag. 37</a> lin. 3 </h4> + +<br /> + +<div class="quote">Uma desconforme loisa +inteiriça horizontalmente aguentada +nos ares por esteios de pedra. </div> + +<br /> + +<br /> + +Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em +muitas partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da +sciencia moderna. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n5">Pag. 42</a> lin. 6 </h4> + +<br /> + +<div class="quote">A Linguagem é ali, como os +ares, de uma admiravel pureza e +lucídez. </div> + +<br /> + +<br /> + +O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho +o seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas <em>Excavações +poeticas</em> o que elle diz do velho camponez Francisco Gomes, +creado da casa, e «um dos mais chapados classicos» +que elle jamais encontrou. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n6">Pag. 58</a> lin. 7 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Lia, Rachel e Rebecca <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel. +Achando-se Rachel ajustada para casar com Jacob, teve Labão +astucia de lhe substituir Lia, apesar de menos formosa. Foi +mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá, +Issachar, Zabulon, e Dina. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[103]</span> +Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve +José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que +ainda se conserva e mostra o seu tumulo. <br /> + +<br /> + +Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de +Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob. <br /> + +<br /> + +Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan, +são encantadoras de singeleza e graça nas +descripções que d'ellas nos +deixaram os Livros santos. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n7">Pag. 72</a> lin. 15 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Uma pobre mocinha +ovelheira <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era +Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta +na sua <em>Chave do enigma</em>. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n8">Pag. 80</a>, lin. 9 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Filinto e o entrudo <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom +Francisco Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da +velha Lisboa. <br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Viva o meu Portugal! +¡viva a laranja<br /> + +que +derruba o chapeo!</div> + +<br /> + +exclamava elle em París, ao lembrar-se das +grosseiras costumagens dos Portuguezes, felizmente meio +polídas já hoje. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n9">Pag. 82</a> linhas 6 e 8 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Citações +latinas <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Essas duas são de Virgilio +(<em>Eneida</em>, Livro I) <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1"><em>Fronte sub adversa scopulis +pendentibus antrum;<br /> + +intus +aquae dulces, vivoque sedilia saxo;<br /> + +nympharum domus</em>.</div> + +<br /> + +<br /> + +Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um +antro; e lá dentro correm aguas doces, e apparecem assentos +como que talhados na rocha viva; verdadeira +habitação de nymphas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[104]</span> +<h4><a href="#n10">Pag. 87</a> lin. 21 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">As +rogações de Maio <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado, +fallecido no anno 475. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n11">Pagina 99</a> linha 23 </h4> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +O ubi campi! <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II +das <em>Georgicas</em>: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1"><em>Rura mihi et rigui placeant +in vallibus amnes;<br /> + +flumina +amem silvasque inglorius. O ubi campi<br /> + +Spercheosque, et virginibus +bacchata Lacaems<br /> + +Taygeta!......</em></div> + +<br /> + +<br /> + +Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles; +encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou. +¿Onde estais, campinas? ¿onde estás, +rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas alegres +virgens espartanas? <br /> + +<br /> + +Castilho traduziu assim este trecho: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Então amar só +quero os rios e arvoredos,<br /> + +de +glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos!<br /> + +ai ribeiras +do Spérchio, oiteiros do Taygéto,<br /> + +das virgens de +Lacónia ás órgias +predilecto,<br /> + +¿onde, onde me estais vós?....</div> + +<br /> + +<h4><a href="#n12">Pag. 102</a>, lin. 10 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Parve, nec invideo, sine +me, liber, ibis in urbem <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das <em>Tristezas</em>. +Dirigindo-se +ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no desterro, entre os +gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno livro; has-de entrar +sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal. <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Parte, ó meu pobre livro; +irás sem mim, +sosinho,<br /> + +correr na gran Cidade incognito caminho<br /> + +<br /> + +traduziu alguem</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[105]</span> +<h4><a href="#n13">Pag. 107</a>, lin. 17 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Zimmermann <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de +Berne, a 8 de Dezembro de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi +abalisado sabio. Nomeou-o medico da sua camara em 1768 el-Rei de +Inglaterra; el Rei de Prussia Frederico, o grande, foi tratado por elle +na sua ultima doença, e deveu allivios aos seus cuidados +intelligentes. O Principe russo Orloff foi de proposito com sua mulher +consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se a S. Petersburgo falou +d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina, que em 1784 +procurou attrahir á sua côrte aquelle +luminar da sciencia. Elle pediu excusa, porque a vida mundana +não condizia com os habitos que tinha creado o seu espirito; +não se ofendeu a eminente Princeza, e conferiu-lhe a ordem +de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu morrer-lhe entre os +braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho. +Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de +outras obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa, +publicou em 1756 o seu <em>Tratado da Solidão</em>, +onde todas as vantagens moraes do isolamento são defendidas +com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia +exagerada. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n14">Pag. 108</a>, lin. 6 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">O Passeio publico e o +Marrare <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico, +riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas +Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar +os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos +Restauradores até á +extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No +sitio exacto do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande +tanque redondo (hoje no jardim da Graça). <br /> + +<br /> + +O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no +Chiado.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c14" id="c14"></a>ADDITAMENTO </h3> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu +bom irmão, pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres +sermões que ainda restam d'este. As suas obras ineditas +mandou o proprio Doutor Augusto Frederico de Castilho que lh'as +queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as seguintes:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">I</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">O sermão de S. +Pedro, ou da Fé;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">II</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">O +sermão da esmola, ou da Caridade;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">III</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">O sermão +nas exequias do senhor D. Pedro IV;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">IV</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">A pastoral dedicada ao seu +rebanho episcopal de Beja;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">V</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">Uns versos na <em>Primavera</em> +de +Antonio Feliciano.</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c15" id="c15"></a>SERMÃO<br /> + +<br /> + +DA<br /> + +<br /> + +ESMOLA OU DA CARIDADE </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Prégado +na 5.ª dominga da Quaresma de 1839<br /> + +na +Sé de Lisboa<br /> + +pelo Conego Arcipreste da mesma Sé,<br /> + +o Doutor de capello em Canones Augusto Frederico de Castilho</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="quote2"><em>Jesus abscondit se, et +exivit de +templo.</em><br /> + +Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.</div> + +<br /> + +<br /> + +De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de +Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por +escondido, deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu +serviço. Jesus vivo, e na occasião de que trata o +Evangelho, estava no mundo, e faltava no templo. Jesus, hoje, por dois +milagres de fé e amor, por duas eucharistias, +está no templo, e mais no mundo: no <em>templo</em>, +encoberto no +Sacramento; no <em>mundo</em>, encoberto nos seus pobres. +N'uma e n'outra parte o devemos servir com egual zelo. <br /> + +<br /> + +Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer +á fome e ao frio os necessitados, não +é de christão; é +fé morta. Soccorrer aos infelizes, sem crer (se tal +é possivel) +<span class="pagenum">[110]</span> +n'Aquelle que elles representam, é caridade morta; tambem +não é de christão. <br /> + +<br /> + +Vós pareceis christãos pela fé, pois +que vindes á casa de Deus; vós o pareceis, mas +não o sois, porque essa fé é morta; +cumpre que se resuscite pela caridade. <br /> + +<br /> + +Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que +é a caridade pratica e activa; é o christianismo +na sua parte mundana, o culto do Verbo humanado aos olhos de todos, a +religião de todas as religiões, a philosophia de +todas as philosophias, o axioma para todos os entendimentos, o dogma +até para o atheismo. O objecto é o mais +accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa +faria á vossa piedade, se vos exigisse a +attenção. <br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Alma e coração, discurso e affectos, convencem e +persuadem como dever a esmola. Não creou a Natureza +irmãos privilegiados, e morgados na familia dos homens: para +uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para outros, encargos de +miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou malicias, estabeleceram +essa desegualdade; e andou tambem ahi traça +recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se +uns de outros não carecessemos, não nos +amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos, +não fôramos +virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, desentranhada de +nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e purissima +fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos, +<span class="pagenum">[111]</span> +pois, a Natureza; a Providencia nos +desegualou; e n'esta contradicção apparente, +é que +Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus +conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça, +quiz que tivessemos uma norma de egualdade; na Providencia, isto +é, na sua caridade, que aprendessemos a restabelecer, quanto +em nós coubesse, aquella egualdade primitiva por mutuos +soccorros. <br /> + +<br /> + +O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho +mimoso da Providencia, depositario e executor da Justiça de +Deus, transumpto e argumento de sua bondade e misericordia. <br /> + +<br /> + +O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o +patrimonio dos pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo +injustiça e barbaridade, egual á do depositario +que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que +converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a +substancia do seu pupillo; é ainda mais: é +declararmo-nos inimigos de Deus, desacreditando, e dando, de certo +modo, quebra áquella Providencia, cujos éramos +dispensadores e supplementos; áquella Providencia, que +não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes pelo +ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae +Celeste. <br /> + +<br /> + +Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra +bello, generoso, heroico, brota (não duvidemos) da caridade. +Deus, para tornar as virtudes caras, e accessiveis até aos +mais faltos de discurso, não creou a caridade, +senão que a tirou de suas proprias entranhas, +<span class="pagenum">[112]</span> +e orvalhando-a sobre a terra, lhe deu por +benção que de todas as mais virtudes fosse ella +semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos +ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato, +instinto (¿por que o não diremos?), instinto +moral. <br /> + +<br /> + +Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais +profundo, mas tambem o mais extenso de todos os affectos, para que, +sobre encher-nos o coração de virtude, ella nol o +podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, nol-a podesse tornar +permanente. <br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡que maravilhosa não é +esta caridade, que em todas as edades, e em todas as circumstancias da +vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre lhe renascem objectos, e +infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, como elle, toda a Natureza +creada, passa dos homens aos animaes brutos, d'estes aos proprios entes +insensiveis, adivinha infortunios, inventa e persuade soccorros, +até para entes que os não sabem agradecer, que os +não requerem, que os não precisam! <br /> + +<br /> + +Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos; +momentos em que se não sabe conter, nem governar; suspiros, +lagrimas, e desalentos; enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas, +como tudo lhe nasce do amor e compaixão, tudo é +terno, tudo +é mavioso e consolador. Virtude de virtudes, virtude unica +onde não ha excessos. <br /> + +<br /> + +Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras +primas da creação. ¡Ah! ¡que +se jamais +se podessem tributar ao homem cultos, que só á +Divindade +<span class="pagenum"><a name="p113" id="p113">[113]</a></span> +se devem, ninguem tanto +os merecêra, como esses que, possuindo os thesoiros dos bens +<a href="#e7">terrestres</a>, os derramam no seio +dos infelizes! <br /> + +<br /> + +Porém, meus irmãos, não é +mistér uma brandura de animo requintada, para nos movermos +com os infortunios dos nossos semelhantes, e procurarmos-lhes o +remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um +animalsinho, morto de fome, transido de frio, desamparado ás +inclemencias de uma noite de inverno, e invocando a nossa piedade com +aquelles gritos lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes +para dizerem as suas dores, qual de nós se não +sentiria profundamente condoído, não correria a +abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah! +¿e deixariamos +no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso +irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens +possuimos, cuja felicidade é tão travada com a +nossa, e cuja desgraça tem sido talvez effeito da nossa +injustiça, da nossa barbaridade? <br /> + +<br /> + +¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o +coração... ¿que digo? que o trazeis +defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores mais doridos da +Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se +estão sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis, +¿que uso mais util farieis vós de vossos bens, do +que seria o acudir-lhes? Na vossa avidez insaciavel (semelhantes ao +inferno, que, por mais victimas que lá chovam, +não cessa de clamar +<em>affer</em>, +<em>affer</em>, mais e mais), uns de vós, +ó ricos do mundo, se contentam +com a visão beatifica dos seus cofres; +<span class="pagenum">[114]</span> +a sua alegria, a sua felicidade, o seu +proximo, o seu mundo, a sua alma, o seu Deus, tudo seu ali jaz; ali +enterraram o coração, e o conservam mais duro, +mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que amontoaram; em +quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus +thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por +luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem, +sem destino, sem uma só utilidade real. Mais loucos ainda e +mais infelizes, outros emfim, parecendo arrenegar dos beneficios da +Providencia, os cofres que ella confiou nas suas mãos, elles +os despedaçam e espalham, não só sem +vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de +si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios, +abysmaram a rasão, destruiram as forças, +aniquilaram a saude, anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus +irmãos, ¡que de +inquietações, de violencias, de trabalhos e de +dores, para comprar uma eternidade desgraçada! +¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o +inferno! <br /> + +<br /> + +Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses +dinheiros de maldição, preço dos +tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os dias se renova nos +seus pobres, que vós entregais e desamparais sem piedade, +com esses dinheiros de maldição, ides comprar um +arrependimento esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o +odio dos homens, a vingança de Deus, os tormentos eternos! +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[115]</span> +¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara +opulencia! Injustiça para com os infelizes, cujos bens +sonegamos, cujos lamentos não queremos escutar, cuja morte +mesmo antecipamos muitas vezes.―Injustiça para com Deus, de +quem recebemos esses bens, com a condição da +caridade, e cuja Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos +beneficios e esmolas, desde que entramos no +mundo.―Injustiça para comnosco mesmos, a quem fechamos as +portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os +sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de +toda a felicidade.―Injustiça, emfim, para com todo o genero +humano, de quem nos afastamos, a quem não queremos +pertencer, de quem até nos declaramos inimigos. <br /> + +<br /> + +¿E para onde fugirão os nossos olhos, que +lá não vá a miseria publica +perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos +desgraçados, +porque nunca a nossa immoralidade foi tão barbara. +Realisou-se sobre tantos irmãos nossos parte grande das +maldições, com que Deus, por bocca de +Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por +todas as guaridas da indigencia; visitae os tugurios e choupanas +miseraveis das aldeias, das maiores povoações, e +até das +cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e +variedade +de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e doentias, +mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de +pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas; +¡quantas se não chamam poisadas e casas, que antes +são covas, +<span class="pagenum">[116]</span> +masmorras, +ou jazigo de viventes! ¡de quantos não +é cama a terra humida, e vestido o que nem lhes encobre a +nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos, chorando +e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais +infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na +Natureza, +além do sol que os aquece, e do ar que respiram, e +começam a conhecer tão cedo a dureza dos homens, +obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar por si mesmos com +que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas +tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas +sem protecção, em quem, sobre o desamparo e +dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus +bens arrancados por crédores, e quantas vezes por +ladrões, debaixo do nome de crédores! +¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores +ás suas forças, ou á sua +creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com +o suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está +derretendo e mirrando! ¡Tantos enfermos expirando +á mingua, sem medico, sem tratamento, sem remedios, sem +enfermeiros, sem alma viva que os console, que lhes suscite as ideias +da Eternidade, e até sem um lençol que os +amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços, +e do uso dos sentidos mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados +para a borda dos caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol, +as chuvas, os frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros +de outra especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem +lar, sem nada, nem um amigo, sósinhos em meio de tanto +mundo! +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[117]</span> +¡Mas que me canço eu a enfeixar o que +não tem conta! E quando de taes miserias conseguisse fazer +aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras não +ficariam de fóra, +mais profundas, e mais miserias, porque ellas mesmas refogem e se +escondem! As ruas e as praças, com todos os seus clamores e +penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie +está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não +sei que reflexo de verniz e doirado, um não sei que ruido +festivo, um perfume de opulencia e sabores, um certo sorrir, um raio de +sol, um aspecto de céo azul, uma vida e uma +esperança, que são disfarce, e mascara da +existencia do povo, real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida. +Sahindo-se para a rua, deixam-se á porta as lagrimas, e +cuidados verdadeiros, e toma-se na bocca e faces o contentamento +postiço. Por fóra andam os corpos em toda a sua +gala; mas dentro, por todo esse immenso +<em>dentro</em>, nas entranhas d'esse infinito +massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos sem +termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão +chorando milhares de corações, +estão-se desesperando milhares de almas. <br /> + +<br /> + +Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira +para se recrear, por esses caminhos tão lageados de +marmores, tão ataviados de vidros de cores, de metaes +brilhantes, de todas as espumas mais formosas do luxo, se Deus +permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos por entre que +duas montanhas de infortunio, vai caminhando! +<span class="pagenum">[118]</span> +¡oh! +¡como de repente, semelhante a Pharaó, na estrada +do Mar Vermelho, desabariam de todas as partes a afogal-o ondas e mares +de dor! <br /> + +<br /> + +Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da +caridade, ¡quantos pobres envergonhados que abafam +soluços e gemidos entre as quatro paredes da sua casa! Nas +horas da noite, quando das dansas, dos jogos, dos espectaculos, e de +peores logares, saem torrentes de mundanos, em quem parece que o tempo, +o dinheiro, a saude e a fama pesam insoffrivelmente, ¡que de +vezes se lhes não atravessam diante uns phantasmas de +penuria, em fórma já de mulheres, já +de meninos, +já de anciãos, a quem a vergonha do sol +não consentíra sahir dos seus sepulcros! De um +portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, nos saem as suas +vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de que +não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo +a mão a receber a esmola, e a abençoar a +caridade; algum vos esconde um rosto, que, em melhores dias, tinheis +visto brilhar á luz da prosperidade. <br /> + +<br /> + +Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os +dias, e não temem o aspecto da noite, porque já +não podem ser mais infelizes, é Deus quem nol os +envia ao encontro, menos por elles que por nós, menos para +alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem algum affecto +ao coração gasto, algum pensamento fundo e +importante á alma dissipada. ¡Felizes +vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos da +<span class="pagenum">[119]</span> +desgraça, estas embaixadas +solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que, em vez de os +repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade, +com a esperança ao queixume, e com a +commiseração a quem não +cuidava que no mundo a houvesse! <br /> + +<br /> + +―Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que +me desatinam, que me desesperam (dizeis vós), +¿quem me abona a sua pobreza? e concedendo-lh'a, +¿quem me affirma que não é ella +castigo da sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que +vos importa? Se póde ser uma coisa ou outra, dae; antes +lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em vaso cheio, ou +em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a quem +do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe +recusasseis, padecêra n'um dia o que vós +não padeceis n'um anno, ou, para o não padecer, +commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle n'este +mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós, +que tão de repente sentenciais o desgraçado que +não conheceis, ¿por que +vos não sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a +vós? <br /> + +<br /> + +<em>Póde não ser pobre o que vos +pede.</em>―Sim, e algumas vezes se tem visto.―<em>Póde +ter merecimentos para muito mais ainda do que padece.</em>―Sim, +que é homem como +vós, e com mais razão do que vós para +aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde +ser; ¿mas examinastes vós se +era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a esmola por tal motivo, +¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a +injuria? +<span class="pagenum">[120]</span> +¡Ah! em quanto +sentenciais uma alma que não conheceis, e condemnais o vosso +semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais +razão não tem elle para condemnar a vossa alma, +que vós mesmos lhe descobristes inteira com uma +só palavra! <br /> + +<br /> + +Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a +concessão), que todos esses andam expiando peccados seus; +são até criminosos e facinorosos; que nem um +d'elles tem necessidade; são até abastados e +opulentos; que todo o mendigo é um salteador e um +millionario. ¿Estais contentes com a concessão, +ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o +não ha. Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos +apresentar pobres, de uma pobreza processada e demonstrada, que vos +não importunam nem se queixam, dos quaes muitos, dos quaes +inteiras classes, não mereceram, nem poderam merecer, o seu +estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito +que o sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas +mães; ahi os tendes, que a Misericordia mesma não +basta a amamental-os e vestil-os, e, de seus pobres bercinhos, caem em +cardumes nas sepulturas, e vôam a ir depôr na +presença de Deus, +contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes dado a vida por um peccado, +por um peccado ainda mais mortal (se é licito +dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a +morte. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem +innocentes. Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida, +onde se queria educar e felicitar um seculo novo, e que, por falta de +caridade publica, morreram, +<span class="pagenum">[121]</span> +depois de tão bem nascidos e esperançosos. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice, +tambem e mais desvalida, onde os soccorros nunca são +sobejos, nem sufficientes; porque muitos mais são sempre os +que batem e choram áquellas portas de refugio, que os que a +estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro +á meza do convite de Deus. <br /> + +<br /> + +Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o +Senhor chamando o +coração, e por toda a parte vos tem cercado do +dever da esmola. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias. +<br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos, +a quem falta pão, lar, vestido, mundo, que o não +conhecem, nem elle os conhece; militares que envelheceram nas armas e +morrem á míngua; viuvas e orphãos de +servidores do Estado, a quem se não paga, nem com +esperanças. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos +políticos vencidos, em quem não é +mister longo +exame para se reconhecer a desgraça, porque é +corollario evidente de causas notorias. A terça parte de uma +edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais +longe, tem sido entre nós consumidos em +dissenções e odios. Com successivos terremotos +politicos, teem desabado as mais altas torres de fortuna; +desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram +arrancadas de +furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes +esperanças; os caminhos trilhados e sabidos subverteram-se; +<span class="pagenum">[122]</span> +por onde se descia, +sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum +dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de +oiro, e o ancião doirado, que ainda hontem lhe houvera +matado a fome, lhe alonga a mão, da margem do caminho, +clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o +presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado; +entendo os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e +bens do futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males +extraordinarios, que não são, para que assim +digâmos, nem do +homem, nem da Natureza, nem de Deus, mas sim da mudança, da +transformação +da fortuna, da fortuna cega, que, no trocar das mãos, quebra +sem pejo, nem dó, nem consciencia, o que depois todos choram +e ninguem concerta. <br /> + +<br /> + +Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que +não vemos, pela peior de todas as cegueiras, que +é o não querer ver. E quando d'esta somnolencia, +d'este lethargo, d'esta morte do coração, +acordamos algum momento a este som <em>Esmola a este vosso +irmão pelas chagas de Nosso Senhor Jesu-Christo</em>, +já nos +reputâmos muito generosos, se em vez do silencio ou de uma +injuria, lhe acudimos com um <em>Deus o favoreça</em>; +e +tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos +vãos ou peccaminosos que traziamos; e lá +deixámos para traz a Jesu-Christo morto de fome, a +Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o +seu estado de abjecção +<span class="pagenum">[123]</span> +os não obrigasse á +humildade ínfima, +se o uso de soffrer estas repulsas os não tornasse +já meio insensiveis, se elles nos podessem retorquir, +«¡Quê! (nos responderiam) +¿Deus que nos favoreça? Deus nos favoreceu com +esses bens que indevidamente retendes; Deus nos favoreceu com os +thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes. +¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis +acaso tental-o? ¿que elle obre em nosso favor um milagre +desnecessario? ¿que torne a chover o maná do +céo, não sobre um +deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, que +por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas +dádivas? Esse maná vós o possuis, e +encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará que se +corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos +favoreça, +deshumanos? Sim, sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os +merecimentos que terieis na sua presença em serdes +misericordiosos, elle os accumula sobre a nossa +resignação; com os infortunios que nos +accrescentais, e os prémios que rejeitais, se +juntarão em nosso favor aos prémios de que a sua +misericordia nos achar dignos.» <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza +fossemos capazes de entender os gritos e lagrimas de tantos paes de +familias, cujas familias podem dizer que não teem pae, +tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas +desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos +enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos +pobres envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a +<span class="pagenum">[124]</span> +significação +das suas dôres e +desalento, que uma reprehensão amarga da nossa barbaridade +para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão +para com Deus; acharíamos, sim, acharíamos +até n'esses lamentos, a +expressão propria com que devêramos deplorar +nós mesmos a dureza, antes ferocidade, dos nossos +corações. <br /> + +<br /> + +Não só, meus irmãos, as nossas +liberalidades atalham todas estas miserias, mas ainda vão +precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre rapariga, a cuja +honra se preparam violentos ataques. O Céo a +dotára das qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou +de algum modo desfazer a obra do Céo, juntando-lhe a pobreza +com a formosura. Do seio da opulencia, um libertino já +vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario da +virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e todas +as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que exaltaram o +seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os +seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque; +frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na +repulsa, o merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a +seducção, de mãos dadas com a +indigencia... ¿não vencerão cedo +ou tarde? Chegou emfim esse dia; ¡venceu! e com um sorriso +infernal applaudiu o seu triumpho, e a desgraça que +consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre victima. Ali +jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo; +ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que, +<span class="pagenum">[125]</span> +depois de a desgraçar, chegou mesmo a +aborrecel a; ali jaz na mesma +indigencia que d'antes, porém mais infeliz agora; a sua +honra fugindo abalou-lhe todas as outras virtudes. Em odio a Deus e a +si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um refugio no mundo? nenhum, +porque o traidor, declarando-se seu cruel inimigo, foi divulgar o +segredo, e exigir esses applausos infames, que tanto mereceu. +¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, seriais +sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te +houvesse a tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e +modesto, onde vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos +homens, ¿não se teria afastado ainda o raio que +reduziu a cinzas o desambicioso edificio da tua felicidade? <br /> + +<br /> + +Além é um moço, que, +cançado da dureza dos homens, começa a +não conhecer as leis na sua necessidade. Por toda a parte +repellido, julgou direito prover por si mesmo, e a todos os despeitos, +á sua +conservação.―«Todos esses a quem +recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não +quero a sua felicidade; mas tenho, como elles, direito de +viver.»―Levado assim pelos raciocinios errados do vicio, ou +só por um instinto que lhe bafejou a injustiça +dos homens, começou por pequenos furtos; passou a maiores; +nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; zombou de +todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e +acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o +affasta do precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe +<span class="pagenum">[126]</span> +tira deante dos olhos dois futuros +que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere +perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas +correspondentes, em si e na sua duração, a crimes +de que nunca se arrependeu, e damnos que nunca tiveram +restituição. E quando elle passar para o +patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis: +«Não tenho +coração para taes espectaculos;» +¡como se esse mesmo coração +não fosse o seu peor +algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso! <br /> + +<br /> + +N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade, +mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas +esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os +amigos que o atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que +se vê precipitado n'uma desgraça a que +não prevê termo na sua +desesperação, insulta o Céo, blasfema +da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe +se irá +(como tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender +um laço, por onde arranque uma existencia que o importuna! +¿E a caridade e a ternura não poderão +ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe rebentar as +lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o +coração? +¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e +abençoar o pão com que lhe sustentamos uma vida +que lhe fizemos amar ainda? <br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas +não déstes vós ás almas +generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos +alcançava uma côroa o que salvava os dias do seu +<span class="pagenum">[127]</span> +concidadão, +¡que honras não merece dos +outros homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma +vida infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que +já suppunham surdo e injusto! ¡e que +até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da +miseria que lhes arrancariam os meios de +salvação! <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para +reconhecermos como bem real esta doce obrigação +da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que mais +fortes motivos não tem o homem christão, para ser +esmoler, segundo as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os +deveres da caridade não são para nós +simplices axiomas, ou +preceitos da philosophia; não são o resultado de +um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas vieram +não só confirmar, mas dar ainda, se é +possível, uma +extensão muito maior a tudo quanto n'esta parte a +Religião natural nos havia imposto. <br /> + +<br /> + +Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos +modos, até indirectos, nos não é +persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós todo o +thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais +perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo +qual nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as +Escrituras); não só nos adornou de todas as +graças que perdemos na desobediência de nossos +paes, mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem +(mais parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma +habitação commoda e feliz. +<span class="pagenum">[128]</span> +Esse sol que nos allumia o theatro do +mundo, essas estações que lhe mudam as scenas, os +frutos saborosos e delicados que rompem da terra, os vestidos que nos +cobrem, o ar que respiramos, o somno que nos restaura as +forças, os prazeres que nos lisonjeiam os sentidos, os +prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do +coração, são outras tantas esmolas, +com que Deus proveu desde a eternidade ao homem, sobre fraco e +indigente, ingrato a tantos beneficios. <br /> + +<br /> + +Na sábia disposição com que de mais o +Eterno Padre arranjou todo o grande systema da Natureza, +¿não nos deu Elle uma grande +lição de caridade, estabelecendo em todas as suas +obras uma encadeacão successiva e mutua de dependencias e +soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares liberalisam as suas aguas +ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em chuvas, a terra +ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos mares; +e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo se +conserva, se reanima, se restaura. <br /> + +<br /> + +D'esta mesma sorte, não só as grandes +porções da Natureza, mas ainda os seus minimos +individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e os +soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes +á existencia dos outros. É assim que, por toda a +parte envolvidos pela Natureza, do meio da qual nos elevamos, como +obras as mais perfeitas, não só nos +não +devemos resvalar a uma condição inferior +á da +propria materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade, +quanto nos devemos +<span class="pagenum">[129]</span> +considerar +como entes, cuja conservação é mais +importante para a manifestação da gloria de Deus. +<br /> + +<br /> + +O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia, +desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de +felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o +seu sangue, lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o +Céo e a terra. <br /> + +<br /> + +O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de +santificação, e nos accode com esmolas continuas, +desde que abrimos os olhos, até que deixamos o mundo; pelo +baptismo assenta os nossos nomes no livro da vida; confirma-nos e +augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas vezes +quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos +anjos; e accode-nos até com remedios temporaes, á +hora em que as portas do carcere se vão abrir, e a alma +sôlta reverter á sua origem. <br /> + +<br /> + +Mas não só pelo seu exemplo e meios +tão indirectos nos persuadiu Deus a esmola; não +é uma simples recommendação, +é um dos preceitos mais rigorosos:―<em>Ego +proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et pauperi qui +tecum versatur in terra</em>: Sou eu, é o teu proprio +Deus, quem te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e +ao pobre, que lida comtigo sobre a terra. Esta lei tão +clara, tão precisa e absoluta na sua letra, +¿terá acaso todos esses caractéres que +devem sempre manifestar-se em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e +seja o proprio Deus quem nol-a interprete. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[130]</span> +É <em>justa e necessaria</em>: +necessaria muito mais ainda para o bem espiritual dos bem-feitores, do +que para o commodo temporal do soccorrido. A esmola, segundo +Jesu-Christo, é um acto de Religião, +conjuntamente com a oração e jejuns; é +pois +rigorosamente um meio expiatorio; é um commercio que temos +com Deus por meio do nosso proximo; é uma agua copiosa (diz +o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio das nossas iniquidades; +é uma santa usura, em que trocamos bens superfluos e +temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros +que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão +sempre clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas +que nunca teem de se estragar nem de esgotar-se, que nunca nos +serão roubadas nem podem ser consumidas; é um +seguro para o dia da +afflicção; é finalmente um arrimo a +que nos soccorremos para não cahir. <br /> + +<br /> + +Mais: é <em>util</em>, considerada +mesmo temporalmente para quem a dá. O Espirito-Santo o disse +tambem nos Proverbios: <em>Aquelle que der ao pobre, de nada +carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas, +cahirá tambem na pobreza.</em>―Eis aqui, meus +irmãos, eis +aqui patente o terrivel segredo da vingança divina, quando +aniquilla tantas fortunas que pareciam tão solidamente +estabelecidas: <em>Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil +inanes</em>. Sim, porque as maldições, +ó ricos do mundo, que o pobre vos lança em +segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas +imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca +d'elle arredará os seus +<span class="pagenum">[131]</span> +olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, sereis +ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos +thesoiros; <em>et sepultus est in +inferno</em>. E se as vossas riquezas vos são +consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso +inferno no mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa +quéda seja mais espantosa, ou para que os vossos +descendentes, que +não são culpados nas vossas iniquidades, +não +experimentem a punição da vossa dureza, e recebam +juntos esses bens a que irão dar um justo emprego. <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes +vós, pelo contrario, que homem algum se arruinasse +jámais pelas suas larguezas com os pobres? +¿Não é antes uma verdade, +confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as familias de mais +caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o +Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os +prophetas: «Se derramares toda a tua misericordia sobre os +necessitados, e encheres de consolação almas que +gemiam na afflicção, a tua casa se +tornará +como um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será +tão perenne como a fonte que a todos offerece os seus +licores, e por mais que a bebam nunca se esgota, nem cessará +de correr.» ¿E o Redemptor não disse +ainda mais expressamente: <em>Date et dabitur +vobis</em>? ¿Não compara elle a +retribuição com que o +Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades, +com uma medida avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os +lados, que se nos vasará para o regaço? +¡Oh! não duvidemos: +<span class="pagenum">[132]</span> +os bens +do misericordioso, repartidos pelos infelizes, são o azeite +e a farinha milagrosa da santa viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a +Escritura, comeu ella e a sua casa; e desde aquelle dia nunca lhe +faltou a farinha no pote, nunca o azeite do vasinho se diminuia. <br /> + +<br /> + +Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de +bençãos as Escrituras não veem +chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o +Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no +mundo, o livre das mãos dos seus inimigos, o allivie no +leito da sua dôr. O que dispersar os seus bens pelos pobres, +viverá de seculo em seculo na memoria dos homens, +abençoado será o seu nome, e n'elle se +despontarão as settas envenenadas da calumnia. <em>Justitia +ejus manet in saeculum saeculi. Exaltabitur in +gloria. Ab auditione mala non timebit.</em> ¿Que +significam tantas promessas, meus irmãos, tantos premios, +tanta abundancia de bençãos, as glorias do +Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem benefico? +¿Que sacrificio tão importante se vai exigir +d'elle? ¿a que lances heroicos o querem persuadir? +¿que perdas soffrerá +que cumpra contrabalançar por premios de tão alta +valia? ¿Exige-se-lhe a mendicidade e a miseria, em que +viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um exterminio de todas +as paixões? ¿uma +abnegação de todos os prazeres? ¿as +mortificacões da penitencia? ¿a constancia e +morte gloriosa dos martyres? Não, não. +Pede-se-lhe só amor e provas +de amor para com seu irmão; pedem-se-lhe só +lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe +<span class="pagenum">[133]</span> +intima que dê, com prejuizo +seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas +empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e +patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para +lhe pedir só as migalhas superfluas da sua meza. <br /> + +<br /> + +¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a +vossa! ¡Remunerardes como sacrificio uma virtude, e +acceitardes como virtude o que nada custa ao +coração! +¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres +mais doces da consciencia! ¡Considerardes em mais do que +homem a quem só cumprìu com deveres da +humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que +trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já +nol-o havieis dado com essa +condição! ¡Acceitardes, finalmente, +esses bens frageis, temporaes e caducos, esses bens que só +devemos á vossa liberalidade, como moeda correspondente em +valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros infinitos! <br /> + +<br /> + +Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos +nos deveriamos abysmar, vós me chamais, meus +irmãos, vós me fazeis descer ás +profundezas da vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um +segredo bem importante. ¿E não adivinho eu quaes +teem sido, desde que enunciei o thema e objecto do meu discurso, os +pensamentos de muitos de vós, da maior parte, ou antes de +quasi todos os que me escutais?―«Feliz (exclama cada um de +vós, no seu coração) feliz de mim, se +eu podera soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me +veria de posse do Céo. Porém Deus não +me destinou +<span class="pagenum">[134]</span> +a mim esses premios e +bençãos; e se a esmola fôra um meio +indispensavel de salvação, +eu me perderia sem remedio, não por minha culpa, mas por +culpa da fortuna. Todos os meus bens escassamente chegam para a minha +sustentação e da minha +casa.»―Assim pensais; assim buscamos pretextos para illudir +todos os preceitos até os mais terminantes e expressos da +Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua presença, +dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa propria +crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu +do Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos, +que ahi estão comvosco. Folgais talvez com a sua +confusão; e a doutrina da caridade, a doutrina de tanto +amor, só serve de despertar em vós a insolencia, +o desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa +semente se perca d'este modo; que só a acceite um pequeno +torrão de terra, e que em vez de produzir os bellos frutos +do Senhor, a maior parte do seu campo, ou quasi todo elle, continue a +só desatar-se em cardos e espinhos. Afugentemos as aves +d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e não +consintâmos +que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por mais pequeno, da +sua terra. <br /> + +<br /> + +Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem +excepção, vos achais obrigados a ella; e esta +universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o seu segundo +caracter de lei. <br /> + +<br /> + +Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a +outra do coração. +<span class="pagenum">[135]</span> +Tão longe vai, pois, a esmola +como a caridade; e para podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos +possuir um coração. ¿Não +tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por +tantos famintos. ¿Escassamente vos chega o pão, +mas tendes algumas roupas superfluas? Cobri com ellas tantos +nús. +¿Nada tendes hoje? Promettei para ámanhan; enchei +de esperanças o seio vazio de todas as +consolações. +¿São a caso insignificantes os bens que vos +restam para os frutos da caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que +deis só um copo de agua fria a um dos mais pequenos do +mundo, lembrando-vos de que elle é meu discipulo (vos diz +Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que +não ficará sem recompensa. ¿Nada +tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes que dar? +Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a +vossa fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não +mentis ao +desgraçado, se na verdade vos achais privado de todo o +genero de haveres, ainda possuis muitos bens em que não +reparaveis. São os que existem dentro do vosso +coração. +Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre todas as +feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com +o vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que +os ricos sem elle, afogados nos seus thesoiros. Consultae esse +coração; ouvi como um oraculo as suas +respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus impulsos. <br /> + +<br /> + +¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi +á morada do rico. Entrae affoitos. <br /> + +<br /> + +Pintae-lhe as miserias do seu semelhante. +<span class="pagenum">[136]</span> +Mostrae que só os interesses da +humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os vossos +olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae as +eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos +corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com +o pão e com a carne, que vos deu essa Providencia, que assim +soubestes interessar. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o +trabalho dos vossos braços. Advogae perante o poderoso a +causa do fraco. Desfazei os enredos e calumnias, que ennegreceram vosso +irmão, que lhe roubaram todas as +protecções. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Congraçae o homem +com o homem, a familia com a familia. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Visitae tantos +desgraçados, que gemem por esses carceres; persuadi-lhes a +paciencia, e a resignação evangelica; +confortae-os com palavras doces, com esperanças +consoladoras. Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com +mão carinhosa, os remedios; animae-o com os vossos sorrisos, +e fazei que troque os suspiros da sua dôr e do seu desalento +em suspiros de ternura, em expressões de confôrto; +que veja os Céos abertos, e que goze antecipadamente de +premios, que, se não fosseis vós, talvez +não tivesse de possuir. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a +tantos meninos, e ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de +vosso proximo na presença, assim como na ausencia. Ajudae-o +com as vossas orações. <br /> + +<br /> + +Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que +<span class="pagenum">[137]</span> +dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas. +São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca +se esgota para um christão. Tomae a vós uma parte +do seu infortunio, e elles ficarão menos oppressos. +¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do oiro! +¡De quantos e quantos modos, não sabe +reproduzir-se a beneficencia! <br /> + +<br /> + +Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia, +porque elles alcançarão misericordia. <br /> + +<br /> + +Eis aqui as bençãos e os premios do +Céo, recahindo sobre todos vós, sem +exclusão de um só. Ahi vos tendes tão +ricos, aos olhos do Senhor, como esses ricos, cuja dureza lamentaveis, +a cujos bens vos promettieis dar um melhor emprego, se os possuisseis. +¿Quem vos detem? ¿por que não correis +a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a +merecerdes essas bençãos e premios, +que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê! +¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o +zêlo, que murmura, que reprehende, que insulta nos outros a +infracção dos deveres, em quanto os julga +alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por +mais injusta contradicção, as fraquezas, que +não +perdoamos no mundo, sendo em nós, já as sabemos +desculpar; ¡e quantas vezes não passam de +desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão, +se a humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os +interesses do mundo, se as bençãos do tempo e da +Eternidade, se todos os premios de Deus, emfim, nada podem comvosco, +possam-n-o, ao menos, as suas ameaças, castigos e +maldições, +<span class="pagenum">[138]</span> +que vão constituir a sua +lei perfeitamente obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter. <br /> + +<br /> + +¿Recusais a misericordia de Deus? Já +não tendes que escolher. Só lhe ficaram as +vinganças. +Affastae-vos, ó santa familia de infelizes. Pobresinhos do +Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover fogo e colera do +Céo. Para além, para além, +é o vosso refugio, á dextra do Eterno Padre. <em>Venite +ad me, omnes qui laboratis, +etc.</em> ¿Não vos tinha elle dito que os +vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as +humiliações se lhes converteriam um dia em +triumphos? Sim, sim, ó +famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos, +¡jubilae! Vós nunca cessastes de ser os seus +filhos muito amados. Eu vou reassumir todos os thesoiros (vos diz elle) +que a minha Providencia repartira pelos vossos barbaros oppressores. Eu +lhes havia dado mais altos meios do que a vós mesmos de +alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos +custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de +os fazer ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o +vós, ó meus pobres; frutos que eu vou recolher e +guardar para sempre no meu seio; elles foram arvores estereis, que, +dominando toda a sementeira, a açoitaram com os ramos, a +damnaram com a sombra, a devoraram com as raizes; infecundas e nocivas +eu as arranquei em meu furor; eu vou lançal-as ao fogo. +Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no incendio eterno, que +foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu tive fome, e +vós me não déstes de comer; eu tive +<span class="pagenum">[139]</span> +sêde, e vós +me não déstes de +beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e +não me vestistes; enfermo e encarcerado, e não me +visitastes. Todas as vezes que despedistes, que calcastes os pequenos +do mundo, a mim, a mim o fizestes. <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença +de maldição estampar-se hoje com letras de fogo e +indeleveis nos vossos corações. Este Jesus +escondido nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos +templos, coberto de remendos, macilento, prostrado debaixo do +pêso de tantas cruzes, é um rei de majestade, +é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda a sua +cólera, e de cujas sentenças nunca +poderêis mais appelar. ¡Oh! compadecei-vos d'elle, +soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e humilhado, para +o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador. +¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o +coração me-diz que esta semente não +será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros +e consolações. <br /> + +<br /> + +Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda +é tempo. Aqui promettemos soccorrer-vos com o que +é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a +vós, cahido, a vós humilhado, para vos +não experimentarmos depois accusador, testemunha, vingador e +inexoravel. Antes que nos-accendais esses fogos de +maldicção, +já era nossos corações temos accezos +outros, que muito mais são vossos: os da caridade. <br /> + +<br /> + +Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em +tôrno da meza do vosso banquete celestial, aonde se assenta o +opulento Salomão +<span class="pagenum">[140]</span> +a par +do Lazaro mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador +arrependido com o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos +sôbre o vosso seio; e n'um abraço de eterno amor +nos-apertae a todos sôbre o vosso +coração paternal, por todos os +séculos dos séculos. <br /> + +<br /> + +Assim seja.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>INDICE </h3> + +<br /> + +<div class="breaks"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">I</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>A primeira noite na serra</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c1">5</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O sepulchro, ou historia de uma noite de S. +João</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c2">11</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Epistola a João Evangelista Pereira da +Costa</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c3">41</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O Presbyterio</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c4">43</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>A lyra do +desterrado</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c5">49</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Epistola a</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c6">51</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>A romaria</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c7">53</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O Domingo gordo dos +montanhezes</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c8">55</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O S. João nas faldas do +Caramulo</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c9">77</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">X</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O mosteiro</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c10">81</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Santa Maria +Egypcíaca</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c11">91</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Epistola ao Desembargador +Deslandes</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c12">97</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td></td> + + <td></td> + + <td>Notas ao 1.º +volume</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c13">99</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td></td> + + <td></td> + + <td>Additamento</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c14">107</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"></td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + <td>Sermão da Esmola ou da +Caridade</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c15">109</a></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +Sociedade editora </h4> + +<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br /> + +95―RUA AUGUSTA―LISBOA</h4> + +<br /> + +<br /> + +<b>Notas:</b><br /> + +<br /> + +<br /> + +<a name="nt6" id="nt6"></a><sup>[1]</sup> Verbi +gratia na quinta da Domanderes. +<br /> + +<div class="signature">Nota do autor.</div> + +<br /> + +<a name="nt7" id="nt7"></a><sup>[2]</sup> +Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos +com o gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz +descarregar uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos +ladrões, pelas +muitas perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.―<span class="smallcaps">Nota do secretario +Augusto</span>.<br /> + +<br /> + +<a name="nt8" id="nt8"></a><sup>[3]</sup> A +Castanheira +do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da +Feira, a uma legua de Agueda.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +do autor</span>.</div> + +<br /> + +<a name="nt9" id="nt9"></a><sup>[4]</sup> A +traducção de parte de Silio +Italico pelo Padre Francisco Manoel do Nascimento (Filinto Elysio.) <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +do autor</span>.</div> + +<br /> + +<a name="nt10" id="nt10"></a><sup>[5]</sup> +Traducção da escolha das Fabulas de +Lafontaine pelo mesmo. <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +do autor</span>.</div> + +<br /> + +<a name="nt11" id="nt11"></a><sup>[6]</sup> +(O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.) <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +dos Editores.</span></div> + +<br /> + +<a name="nt12" id="nt12"></a><sup>[7]</sup> +Josué―cap. XXIV<br /> + +<br /> + +<a name="nt13" id="nt13"></a><sup>[8]</sup> +Juizes―cap. VI.<br /> + +<br /> + +<a name="nt14" id="nt14"></a><sup>[9]</sup> Foi este +fragmento publicado na <em>Revista +Universal Lisbonense</em> de 19 de Junho de 1845―Tomo IV, pag. +582. <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Os +Editores</span>.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="fbox"> +<h2>Lista de erros corrigidos</h2> + +<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se +listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div> + +<br /> + +<br /> + +<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4"> + + <tbody> + + <tr align="right"> + + <td style="width: 61px;"></td> + + <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;"></td> + + <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correcção</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: center;">Volume I</td> + + <td></td> + + <td></td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e1" id="e1"></a> <a href="#p20">#pág. +20</a></td> + + <td style="text-align: center; width: 121px;">a +ém</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td> + + <td style="text-align: center; width: 135px;">além</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e2" id="e2"></a> <a href="#p33">#pág. +33</a></td> + + <td style="text-align: center; width: 121px;">«o +salto)»</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td> + + <td style="text-align: center; width: 135px;">«o +salto»)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; vertical-align: top;"> + <a name="e3" id="e3"></a> <a href="#p56">#pág. +56</a></td> + + <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">lnes</td> + + <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">...</td> + + <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">lhes</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <a name="e4" id="e4"></a> + <a href="#p69">#pág. 69</a></td> + + <td style="text-align: center;">fescenino,»</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">fescenino»,</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <a name="e5" id="e5"></a> + <a href="#p94">#pág. 94</a></td> + + <td style="text-align: center;">acompapanhal-o</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">acompanhal-o</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: center;">Volume II</td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a> + <a href="#p45">#pág. 45</a></td> + + <td style="text-align: center;">dextra não</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">dextra mão</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a> + <a href="#p113">#pág. 113</a></td> + + <td style="text-align: center;">tarrestres</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">terrestres</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +</div> +</div> + +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by +António Feliciano de Castilho + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + +***** This file should be named 28127-h.htm or 28127-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28127/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. 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Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For forty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. 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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.net + + +Title: O presbyterio da montanha + +Author: António Feliciano de Castilho + +Release Date: February 19, 2009 [EBook #28127] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + + *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste + texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em + caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. + No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. + + Rita Farinha (Fev. 2009) + + + +Obras completas de A. F. de Castilho + +XIX + +O Presbyterio da Montanha + +VOLUME I + +[Figura] + + +LISBOA +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL +95, Rua Augusta, 95 +1905 + + + + + +OBRAS COMPLETAS + +DE + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO + +VOLUME 19.^o + + + + +VOLUMES PUBLICADOS: + + +I--Amor e melancolia. +II--A chave do enigma. +III--Cartas de Ecco e Narciso. +IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.) +V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.) +VI--A primavera (1.^o vol.) +VII--A primavera (2.^o vol.) +VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas. +IX--Vivos e mortos (2.^o vol.) +X--Vivos e mortos (3.^o vol.) +XI--Vivos e mortos (4.^o vol.) +XII--Vivos e mortos (5.^o vol.) +XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.) +XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.) +XV--Vivos e mortos (8.^o vol.) +XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.) +XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.) +XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.) +XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.) + + +NO PRÈLO: + + +XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.) + + + + + +OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos + +XIX + +O PRESBYTERIO DA MONTANHA + +VOLUME I + +[Figura] + +LISBOA + +Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_ + + +LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA +Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47 + + +1905 + + + + +Advertencia dos Editores + + +Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos +antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa solidão de mais +de sete annos de homisio na serra do Caramulo. A esses manuscritos, que +ia publicar com o titulo de _O Presbyterio da montanha_, escreveu um +prologo extenso, descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos +de distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as saudades +de um irmão, o melhor dos irmãos, o já então fallecido Abbade de S. +Mamede da Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo +concluiu-se, imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a +publicar-se. + +O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes +da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, +fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer como; +e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, são hoje +considerados especies bibliographicas de primeira raridade. + +Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional +de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, bibliógrapho, e +escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, outro; a fallecida snr.^a D. +Maria Peregrina de Sousa, poetisa portuense, possuia outro, que parece +ter levado caminho; Innocencio no Tomo I do Supplemento do seu immortal +_Diccionario_, não declara se era dono de algum; menciona a obra, +apenas. + +Quanto á parte poetica do livro projectado, essa, não impressa, +desappareceu em parte. Só algumas poucas peças encontrámos, umas +inteiras outras incompletas; materiaes truncados da collecção. Salvando +esses versos, cumprimos um dever moral, e outro literario. + +O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico de um edificio ainda em +construcção, e já em ruinas; é inquestionavelmente uma das obras mais +curiosas e instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a +historia, a lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o +_folk-lore_, d'aquella região alpestre, tão portugueza, mas tão +desconhecida, tudo isso é tratado com amor, com o cuidadoso amor de um +archeologo-poeta. + +Appareceu tambem uma _Introducção_ em verso sôlto a certo poema +intitulado _O Sepulcro, historia de uma noite de S. João_, projectado +pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito phantastico, +infelizmente por concluir. Entendemos não menos intercalar essa curiosa +Introducção, no seu logar chronologico, por varios motivos: dá-nos +Castilho sob uma feição poetica diversa da sua habitual, e pinta-nos o +estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia soffregamente o ar, +a vida, os usos populares da montanha. O _Sepulcro_ é pois optimo +contribuinte d'este truncado banquete literario, e fôra imperdoavel, +apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do borrão original, que +possuimos pela letra do amoravel secretario Augusto Frederico, para esta +licção actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor +ditadas em 1864. + +Além do _Sepulcro_, outras peças, portuguezas e latinas, já impressas +nas _Excavações_, teriam logar aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, +pela sua indole; mas o autor preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. +Facil é ao leitor intelligente o procural-as. + + + + +Á MEMORIA + +DO + +EXEMPLAR DE IRMÃOS + +AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO + +PRIOR DE + +S. Mamede da Castanheira do Vouga + +_Em testemunho publico e perenne_ + +_DE_ + +AFFECTO E GRATIDÃO + +Offerece + +_Antonio Feliciano de Castilho_ + + + + +PREAMBULO + + +I + +O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o +classifical-o podesse por alguma via valer a pena. + +Não é historico, nem ficticio; não é didactico, philosophico, nem +descriptivo; não é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada +de tudo isso, de tudo isso participa. + +Nem sequer é um livro; é uma congérie de pequenas coisas, todas mais ou +menos obscuras, e quasi todas desconnexas, e de pensamentos não +procurados, se não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem +determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles +banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que ha em casa, + + + _...dapibus mensas oneramus inemptis,_ + + +para hospedar a cortesãos que lhe passaram pela porta. Não procura +enganal os]: com mãos limpas e coração lavado lhes põe diante o que só +para si tinha tratado na sua horta, ceifado no seu chão, cevado no seu +pateo, ou colhido do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem; +algumas flores, já pode ser que as apresentará em vasos de barro; mas +como vos assoalha com bom rosto quanto possue, não se vos alardeia de +abastado, nem se compara com os visinhos de casas altas e balcões +envidraçados. Como quer que vós d'elle o fiqueis, não ficará elle +descontente de si mesmo á despedida. + + * * * * * + +Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de carreira, parte apenas +esboçado ou apontado, ha hoje doze, treze, quatorze, quinze, e dezasseis +annos, sem pensar no Publico; para mero desenfadamento de horas +abhorrecidas; para ajudar a correr mais depressa, em sitios tristes e +ermos, uns tempos muito ermos, muito tristes, e para mim, que nunca bem +atinei com o futuro, muito desconfortados de esperanças. + +Como todo o meu fim em fazer versos não era outro senão o fazel-os, de +todo o modo me nasciam bem. Não tinham de apparecer entre gente; não os +educava; não os corrigia; não lhes punha galas e arrebiques. Assim +sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci. + +Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que não tornasse; +achei-os os mesmos que os tinha deixado: sinceros, mas incultos e +semi-silvestres, como nados e creados que eram por entre troncos e +penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por fora o mesmo que por +dentro faz a consciencia. + +Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram filhos; contavam já +annos: recordavam-me tempo de saudades; eram me saudades elles proprios; +reconheci-os; dei-lhes o meu nome; com elle os apresento. + + +II + +Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu que +_se compõem_ para o Publico; e, bem hajam elles!: não levam á praça +senão o que teem averiguado que por lá se deseja e se procura; põem de +parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao interesse ou gosto +alheio. + +Nada d'isso tenho eu n'estas paginas. + +Não sou eu que vou para os leitores; são os leitores que teem de vir +para mim, se as quizerem ler. Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; +as suas occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela minha rudeza; os +seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da sua vida, pelo +recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte desconhecida e +pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só vista de cima pelo ramo de +tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela andorinha cujo ventre branco +ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar desde aqui +(a fim de que não venham depois obrigar-me por divida que eu não +contraio), que a unica deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar +alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no interior da casa +alheia, e nos segredos do visinho. + +É o que faz com que, por mais futeis que pareçam as memorias, que alguns +escrevem de suas vidas, e as correspondencias epistolares, quando por +acaso vão dar ao prelo sem terem sido ordenadas para elle, commummente +são lidas com interesse. + +É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as achadas de +antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma antiga vivenda +particular ou casa rustica, onde os vasos e utensís do viver quotidiano +veem logo suscitar na phantasia os costumes, o trato, e o ser intimo, da +gente que ali houve. + +Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o ladrilho do +forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos banquetes, +dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas ressurgem tambem uns +eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; confusos, mas a todos +intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, de velhos e meninos, dos +animaes caseiros, dos passarinhos e virações do ceo, do sussurro das +plantas, dos sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e +feneceu, deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e +a lampada que allumiou calada os prazeres ou os somnos de seus senhores. + +Os monumentos são artificiaes, e artificiosos; são estudados, e +emphaticos; a historia que elles resam é fria. Mas cá, o romance que +engenhamos, ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado, é +todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades. + + * * * * * + +As _impressões de viagens_ estão sendo ao presente um genero de +Literatura mixta mui usado e mui querido. + +Não admira: para os autores é facil; para os leitores, recreativo quando +menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que todos temos muito ou pouco; +sem cançasso nem más poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por +aguas do mar; sem desabrimento de estações; sem saudades do que lá fica +para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que é repetir +algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a pessoa a viajar em +corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando aonde ninguem a +espera, nem festeja, nem conhece, e onde não ouve pelas ruas palavra nem +som da sua creação. + +A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos +atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam, com a nossa +casa e familia, sem até nos demovermos do nosso quarto nem da nossa +cama, se como Ovidio somos, que punha entre os regalos da vida o de ler +deitado. + + * * * * * + +Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o gosto de +conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são extranhos, e não medir +as distancias que nol os apartam, que esse, pelo contrario, é o maior +desconto do peregrinar, ¿por que se apeteceriam mais as viagens á +França, á Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás margens do Rheno, á Russia, +ao Egypto, á China, ou ainda á Lua, do que a um qualquer monte da nossa +terra, só conhecido de seus moradores e visinhos? + +¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em cujas faldas está +assentado S. Mamede da Castanheira do Vouga, como um neto no regaço de +sua avó triste e taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se +abriu a arca depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto. + +Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar montanhezes, agrestes porém +bons; e tão bons, que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal +productivos, nos seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e +pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, entalados nos +córregos, ou inclinados a scismar tristezas sobre algum rio fundo e +triste, nunca se lembraram de vos invejar a vós outros as vossas cidades +opulentas e festivas. + +Estes, com falarem portuguez, são para vós estrangeiros, ou quasi. Como +taes, não vos despraza conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com +quem por entre elles demorou annos, e de boa-mente lá iria agora +enterrar os restos cançados da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe +lá ficou em quieto desterro para todo sempre.[1] + + +III + +A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região o novo +Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade minha continuada e +sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a sua pequena familia, +de que era eu parte inseparavel. + +Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais florídos; +Lisboa, a do nosso berço e da nossa infancia. Uma e outra me chamariam +pelos affectos em qualquer parte do mundo em que eu estivesse; e não +houvera eu valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que então +cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos elle e eu, por nos +sentirmos um como o outro tão encantados com o nosso futuro, já palpado +e colhido ás mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os +outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, mais +amenas ou mais vívidas, por aquellas gentilezas incultas e mais poeticas +de uma natureza quasi primitiva. + + * * * * * + +Passámos n'uma bateirinha remada por uma velha moleira da margem, o +viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje corrupto, segundo a +tradição, o _bom fiar_ de certa moça mui santa, que junto d'elle vivia +n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o trabalho da +sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros lhe viesse o appellido, +significando _pepinal_, ou _rio das terras dos pepinos_; pacifico rio, +que então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas altas e +verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de se deter +enlevado na amenidade de tal painel. + +Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para um e outro +cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes, só de longe a longe +interruptas de um sovereiro torcido e mal posto, ou de um rebanho; +terreno boleado e ondeado como um lago, que em meio de tempestades se +houvesse petrificado por encanto. São já fronteiras do Caramulo. + + +IV + +A freguezia de S. Mamede não se vê em parte alguma; é dispersa, e +emboscada. A magreza da terra não dá para grandes espessuras de +povoação. + +O aspecto do paiz, para quem só o atravessa é de inhospedeiro. Mas que +se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea e +desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em todos os +corações. É porque a solidão é de si mais affectuosa, e a pobreza mais +liberal e larga, que o rico povoado. + +Esta differença e vantagem que os moradores levam á sua terra, +experimentámol-as nós ainda antes de chegarmos á egreja e residencia, +sahindo a receber o seu Pastor novo não só os maioraes, se não quasi +todo o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das +cerejeiras e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde +áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas brancas. + +A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para o seu adro +muito verde, apresenta-se solitaria. Das povoações em que a freguezia se +divide, nenhuma lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia +parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de traz, como +serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por entre os plátanos, que +o portal do seu pateo toucado e semi-velado das mais espêssas, crespas, +e lustrosas heras, onde jámais se esconderam e cantaram melros. + +Ambos os edificios ficam no meio do _passal_, antiga quinta «das +Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do sinuoso +deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, que ali +teem o seu foco espiritual. + +Um grande silencio rodeia largamente a casa da oração. O presbyterio não +lh'o quebra. + +Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo rustico mas +espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da sua frontaria principal +unicamente para o ceo, e para umas formosas e corpolentas laranjeiras, +que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle clausuradas, o modesto +domicilio, proporcionado pelo que sempre deverá ser o pastor de tal +rebanho, não se retrahiu para mais longe, por traz da sombra do +santuario, porque não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez +mais precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa para além +a esconcear, descer, e afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e +espumifero rio de S. Mamede. + +Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a grande altura, +por cima das aguas escuras e raro alcançadas do sol, communica esta com +a ribanceira ulterior, não menos carrancuda, fragosa, arripiada, e a +pique. + +Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até ao moirisco logar de +Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da penedia d'alem-rio, +entremeia apenas distancia, que, pela calada das noites, deixa ouvir de +parte a parte os ladridos dos cães de gado, as cantigas do serão, e os +alertas dos gallos a deshoras. E comtudo, aquelle _quasi-nada_ para os +ouvidos e olhos, é para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem +perigos. + +As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte, giram enleadas +e perplexas, torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a +esquerda, como espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a +subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra. + +Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, são os unicos +entes vivos, que por ali se affoitam a tomar pé. Os seus frutos +vermelhos, quando o vento lh'os despega maduros, vão sumir-se entre as +espumas arrebatadas. + +Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes escarpas, com +poucas braças de ceo por cima, e por baixo de si o rugir de tantas +aguas, dá as sensações de um bello horror. + +Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas esquecidas para +aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas vezes ahi me veio por +tardes de Junho, em quanto, calado e estendido sobre as táboas, gastadas +e rôtas da humidade, me gosava da viração transpirada pela corrente. +¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma inspiração de religiosa +poesia no fundador, a que fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço, +como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja? +¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão escura, tão angustiada, +tão clamorosa, e com tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras +inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo +ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre, tão aberta, o +dia inteiro, ao generoso sol dos campos, tão gorgeada a ambas suas +portas de passarinhos, tão garrida de espadanas sobre as campas do +pavimento, e nos seus cinco altares tão ridente de flores silvestres, +symbolo da alma refugida das tormentas do mundo para o ineffavel asylo +da Fé e das Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e +transição dos dois extremos, a casinha do Pastor, alva como a confiança, +verdejante e florida como as promessas, recatada como a esmola, +inexhaurivel no seu celleiro como a Providencia, tácita como a +meditação, com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas +para a torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores +de Deus para o firmamento..... + +O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a +torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou Mamante, foi um +humilde e obscuro pastor de gado na Capadócia, e do qual toda a Egreja +do Oriente pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou +martyr, por volta do anno 274 da nossa era. + +O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o +vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres e pacificos +arredores, para o Menino, já moço na valentia, ou para o moço, ainda +menino na innocencia. + +Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos concertou. + + +V + +Era a residencia, quando a ella chegámos, decrépita e caduca: apparencia +de choça fabricada de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior; +por fora negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de +inuteis e desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor +a havia em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado. + +A transformação foi rapida e completa. Os alpendres desappareceram. Na +casa remoçada entrou por vidraças abundancia de luz. O pateo +desafrontado foi revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de +cal bem candida, logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro +n'elle plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que +n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já não existe na +terra, o outro declina para o occaso, elle, medrando ainda, é já, como +lh'o eu augurára nos meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu +tronco cinco palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura.[2] + +O novo Prior, o Rev.^{do} snr. Padre Antonio José Rodrigues de Campos, a +quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, varão de virtude, e +espirito cultivado por Letras, filho d'aquellas boas terras, e amigo +nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do nosso nome, conserva e zéla +tudo aquillo com amor. + +É para mim delicia o considerar, que á sombra grande d'aquelle cedro, +que eu regava todos os dias, quando um menino de tres annos o poderia +ainda arrancar sem custo, lerá talvez, depois do seu Breviario, este +livrinho das minhas memorias, em que deposíto o seu nome mollemente +reclinado entre tantas outras saudades minhas. + + +VI + +Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me escondeu +sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de 1834, o ninho em que +nasceram, sem pensarem em abrir o vôo que hoje abrem para o mundo, estas +poesias montesinhas. + +Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo esboçado, +peço-lhes ainda um pouco de indulgencia, para lhes dar a conhecer, por +alto, os arredores. + + * * * * * + +O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo por +traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno, a escoar-se +cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede. + +Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e erma de +Falgozelhe, se boleiam melancolica mas graciosamente as suas hortas, os +seus pomares, a sua fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras, +que até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois de +povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada horizontal, +por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, até ir +bater, lá ao longe, na capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe +servem de limite. + +Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias folgavam de +avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades protectoras da +Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo agricola como este, do que +achar a casa do Creador, e a do seu dispenseiro, no centro da abundancia +das messes, e saudal a com a invocação de um Pastorinho santo? + +O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. Sebastião, por entre +duas grinaldas de oliveiras e vinha, o meu passal até ao adro; costeia a +egreja e a casa pela direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai +mergulhando para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura +sombria da fonte sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja +antiga, um altar de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, +assoberbada com um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um +troço de lança enferrujado de musgo. + + +VII + +Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé d'este altar, onde já +ninguem ajoelha, sobre sepulturas que hoje são tremoços, e recordemos a +obscura historia d'este sitio. + +¿Por que razão só as grandes ruinas se hão-de haver por merecedoras de +attenção? Todo o passado é poetico; todo o evocar imagens humanas de sob +a terra que pisamos, é proveitoso para alguma coisa. Nas solidões, +mormente como esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, +e que onde hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de ninho +quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos bons, e +até festas. + +Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da +Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela +margem de cá ás aguas do S. João do Monte, que logo a diante troca o +nome no de S. Mamede, um moço por nome Jorge, humilde de geração como +tudo quanto por ali nasce e se cria, mas de coração alto e espiritos +levantados. + +Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal uma velha, que o ouvira +em pequenina a seus paes, que o tinham recebido não sabia de quem)... +mas emfim, namorára-se, que o sabia ella, de certa moça de alem-rio, +guardadora de cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro +grau de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da sua vivenda entre +penedos, levava, os dias com os olhos sempre içados aos cabeços de +Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de serguilha, ou do seu +sombreiro preto; e ainda não de todo malcontente, quando, por entre os +penedos pardos e as urzes côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do +precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que obedeciam á +sua voz melodiosa. + +A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a esperdiçava +cantando n'aquellas solidões, parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a +estava captando com ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido +entre as nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a interrompesse, +porque não sabia de coisa mais de molde para o seu coração. + +Vel-a á sua vontade, não a via se não aos domingos na egreja; e nem +então, que para esses dias tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias +muito alvas, e tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe +que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a +fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das +aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que prestem para +communicar dois estados tão diversos. + + * * * * * + +Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é poesia; e poesia +não é vida. Ousou, e declarou-se a medo á sua formosa; não foi +repellido. Affoitou-se a mais: ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario +em confissão. O que entre elles se passou, não se sabe; taboas de +confessionario não são carvalhos dodónios que chocalhem tudo. O que se +sabe, é que a moça não tornou a apascentar para aquella banda, e que +elle, pouco depois, deixou a terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos, +sem dizer nada a ninguem, e não levando senão o fatinho que tinha no +corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo dizem, era grande, e o +seu amor, que não era pequeno. + +Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el +Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus para onde, e +para quê..... + +No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento, +assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida, apegou-se +com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse com tudo seu +a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, uma capella +da sua invocação com duas Missas por semana, defronte de Falgozelhe, +onde vivia a noiva do seu coração, por cima da Talhada, onde tinha os +irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o baptisaram a elle, e onde a +avistava todos os domingos..... + +Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria muito em semelhante +lance, em que as ondas formavam, por instantes montanhas tão altas e +escarpadas, porém mais temerosas e feias que ess'outras, entre cujas +quebradas, e por cujos visos, elle variára a sua infancia. + +Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido. + +Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em Angeja, que em +boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e nunca mais tornou a +aventurar-se sobre aguas do mar. + +Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que ainda ali se +divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi demolido, para ir servir +como materiaes na edificação de parte da residencia, e da egreja nova, +que já sabeis lhe estão visinhas. + + * * * * * + +--¿Mas o fim de seus amores?--me perguntareis vós. + +Memoria é essa que eu tambem procurei, porém não consegui desencantal-a. + +O que só pude desenterrar da tradição, foi: que este mesmo Jorge viera a +casar-se na freguezia; que tivera um filho nascido na póvoa da Talhada; +que este se ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e arribára a Cardeal; em +memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada da antiga, e +mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito amadas, uma +Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com braços em baixo e +em cima, oleada de verde, doirada nas pontas, e n'ella pintados tres +cravos, duas chagas, e uma corôa de espinhos. + +Vê se, venera-se, e commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na +parede do arco cruzeiro da banda direita; e affirma-se, que na capella +de S. Jorge permanecêra com egual honra em quanto ella durou. + +Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma +póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro velho, e +onde o que só fazia bulha no meu tempo era um pequeno moinho, rôto por +todos os lados aos ventos e chuvas, foi, ou não, nascido do consorcio a +que o Padre Vigario e seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não +alcancei; e não quero invental-o. Provavel me parece que sim, quando me +lembro do que a minha velha me contava d'aquelles amores, e o combino +com a ideia que formei da constancia no bem querer dos moradores da +minha serra. + +A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a Jorge, qualquer +apostaria que o foi sempre. A fortuna entulhára com riqueza o abysmo que +os separava; e S. Jorge, que não é Santo para meias victorias, havia +forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto. + +Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de +pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome +ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os +recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e beber +á saúde da futura geração algumas malgas de vinho verde na sua casa da +Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do Monte. + + +VIII + +A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o antigo oratorio +dos Condes da Feira; e a residencia, já depois duas vezes transformada, +albergue do feitor que elles ahi tinham para lhes receber os fóros, e +lhes tratar d'aquella sua quinta, chamada, como já tocámos, «das +Limeiras». + +Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto, +havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão, do Bispado +de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de distancia +da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para Alcafaz, pertencente +agora á freguezia de Agadão, sitio ainda desfavoravel pelo estirado e +descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem ermida, +casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a sustentação de Parochia +sobre si. + +N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos +hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus +amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a espessura das +moitas então creava, segundo parece, como ainda hoje cria lobos. Folga a +phantasia comparando e contrapondo aquelles tempos a estes, e reanimando +o actual silencio com um reflexo e ecco da vida estrepitosa de outra +edade. + + +IX + +Explorámos as convisinhanças do templo e residencia. Estendâmos agora os +olhos até ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico +senhorio. + + * * * * * + +D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o logar +das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S. João Baptista, e sua +fonte muito fresca. + +Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da +Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa +com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do +Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que desde +as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no alto do seu +oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam, de extrema a +extrema do Reino, quantas noticias o revolvem, sem que a boa da villa, +nem outro algum dos logares que entram na sua abençoada confederação de +rustica ignorancia, as adivinhem, nem suspeitem, nem cubicem. + +A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a humilde póvoa de +Falgarinho, de não mais que oito visinhos. + +Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se, +n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres +pessoas. + +Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores, +e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e agradavel +quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de Nossa Senhora +do Livramento. + +Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S. João do Monte, +que a seus pés corre, está em amphitheatro o Avelal-de-cima, de vinte e +quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da egreja. + +Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis, a +meio quarto de legua está para o nordeste o Avelal-de-baixo, logarejo de +quarenta e sete almas, e uma capella de Nossa Senhora da Conceição. + +Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo +bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de observação. + +Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi toda a costa dos +Ferreiros, passa-se o rio de S. João do Monte, junto ao seu confluente +Alcafaz (nome arabe, que significa «o salto») nome que para ali está, ha +mais de setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a sua +origem, nem se corromper. + +Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa Talhada, de +honrada memoria, berço de um Cardeal, de um fundador de capellas, e de +um namorado de lei; tres celebridades para um ninho hoje de quatorze +almas, coberto de loisas e colmo, e coroado de sarças e medronheiros; +dista-nos um quarto de legua para nordeste. + +Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede (que +toma este nome na juncção dos dois afluentes) se atravessa na ponte de +pau que já sabeis, e onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a +apanhar á fresca. + +Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas rochas, toma-se +a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda, que em travessia +da montanha, sobre a esquerda do rio, leva até ao casal do Fontão, de +onze almas, sito na margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz, +a quarto e meio de legua para nós. + +Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a encosta; +e no cimo se encontra a povoação de Falgozelhe, de setenta e uma almas, +posta a um quarto de legua da egreja, a les-sueste, quasi na extremidade +occidental de um ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração é o que +á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz. + +Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por outra ponte de +pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo está o pequeno e vistoso logar +da Falgarosa, de trinta e seis moradores, com uma sua ermida da Senhora +da Boa-Morte, a tres quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o +delicioso de seus pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de +sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo, +com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje rege aquelle +rebanho. + +Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de +se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S. Mamede. + +Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda, de cincoenta almas, com +sua capella de S. Gonçalo, a quarto e meio de legua a sudoeste da +egreja. Redonda se chama, por estar á borda de um leito semi-circular. + + * * * * * + +Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas confrontações +externas. + +Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do Préstimo; pelo +poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da Aguada de cima, e +Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão, filial, ou annexa, que aínda +então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre si; paiz ainda por +ventura mais serrano e variado, mas que eu não cheguei a descobrir. + + +X + +O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um corpulento ramo +do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em voz de Moiros quer +dizer «abobada», ou montanha boleada á feição d'ella. + +Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros +ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que merece. Mas, +sobre que nunca o visitei, apesar de tão visinho, recearia apoucar-lhe a +veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas +noticias que d'elle tive. + +Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando d'entre as +nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa em +tempestades, em frutos magra, mas optíma em homens e mulheres de antiga +tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da fome, e da nudez; é +um paiz de selvagens christãos, para o qual as rudes terras do meu S. +Mamede estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios +poderia estar a antiga Attica. + + * * * * * + +Dois monumentos accrescentam veneração ao Caramulo, quanto o podem +mesquinhas obras humanas ás grandiosas moles naturaes. + +N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos principios d'este +seculo, uma especie de zimborio de doze palmos de altura, pouco mais ou +menos, de pedra muito bem lavrada e argamassada. Para quê, não dizem; +mas dizem que por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da +circumvisinhança, por occasião da guerra peninsular, commetteram +demolil-o; mas só lhe poderam fazer pelo norte um pequeno estrago. Dura +em pé, e só é accessivel do nascente por uma vereda estreita e tortuosa. + +O outro monumento não é menos enigmatico, e deve estar farto de ver +passar seculos e desfazer-se gerações. + +N'uma arremeçada crista, a duzentos passos da egreja do Espirito Santo +de Arca, se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de Arca». É +uma desconforme loisa inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por +esteios de pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo +sido um arrancado para as obras da visinha egreja. + +Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura dezasseis; de +grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte quatorze, pelo poente +onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam de altura doze palmos, +só da flor da terra para cima; de largura, um que fica para o poente +apresenta nove palmos, tendo de grossura pelo poente palmo e meio, e +pelo nascente um palmo. Um, que diz para o sul, tem de largura, por +baixo quatro palmos e meio, e por cima tres, e de grossura um palmo de +cada lado. O ultimo, que está para o norte, tem de largura, por baixo +cinco palmos e polegada, e por cima quatro palmos e polegada. + +¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que eras, e para que fim, +se alevantou ali aquella, que á phantasia se figura bruta meza de +gigantes silvestres? ¿Sería obra de fortificação n'um systema de guerra +desconhecido? Quasi que nem possibilidades o abonam. Uso agrícola, +industrial, ou civil, nem a imaginação mais inventiva lh'o rastreia. +Memoria de algum varão ou feito insigne, já a poderia ser. Mas então, ¡a +que rudes tempos a não havemos de referir, visto como nem data, nem +letra, nem escultura tôsca, nem vestigio algum de arte nem de +architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira! + +Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais, +quando se adverte na semelhança que tem com os altares druidicos, ainda +hoje conservados em varias partes do que foram Gallias e Germania. + +Verdade é, que por estas nossas terras não rezam as Historias, que se +estendesse aquella abominavel seita de sacrificadores de humanas +victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que, perseguidos, como o vieram +a ser, pelos Imperadores romanos, alguns druidas se refugiassem para +este Occidente, e aqui, em retiros montesinhos, menos accessiveis a +pesquizas e perseguições, professassem e mantivessem o seu culto, do +qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade comparadas) +não muito discreparia talvez a religião do Endovélico lusitano. + +Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem, se vale a +pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro dos meus +affectos. + + +XI + +Nada concita aos logares veneração, como a antiguidade. + +Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além de Moiros, +Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure, não rastejo noticia +d'essas edades, com que fazer obra. + +Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve +memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas terras, nem +ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem tradições o denunciam. +O solo enguliu tudo; e nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou +letra para enigmas. + +Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra da sua lavoira, na primeira +valleira que se encontra á direita do caminho indo para Agueda, se vê +uma fiada de umas como torrinhas, que se estende por mil e quarenta +palmos; das quaes torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e +algumas porções deseguaes de muros esboroados a delir-se. + +E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se dá em uma +furna chamada «a buraca da cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva; +a qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de +largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é geral fama +que fôra aberta pelos Moiros. + + * * * * * + +Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou se, dizem os +netos, que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S. +João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus thesoiros +por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados. + +N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a estancia, e +que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro. + +Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente +já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem medo os rebanhos para a +sua visinhança; cantam aos seus hombraes trovas muito christans; e quem +quer, lhe devassa (como eu fiz) o seu palacio subterraneo. + +A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina aberta, pelos Moiros +sim, mas não para tirar oiro, que é sempre a primeira conjectura, nem +para serventia militar, que é sempre a segunda, se não só, e +prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de lá mana, muito fresca +e saborosa, mas em pequena copia. + + * * * * * + +Sobre as fortificações engenha cada um a sua hypóthese. + +Ha quem as supponha posteriores á invenção da artilharia, por se lhe +figurar que só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros +as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por ali outros +vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares demonstra, que +elles por lá viveram. E se por lá nasceram e se crearam, não podiam +deixar de fortificar-se e defender-se contra commettimentos de inimigos, +que é esse um instinto natural a todos os homens, mas nos homens das +montanhas mais energico. + + * * * * * + +Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto que o seu +nome, se christão não é (como de certo não é), tambem por arabe se não +reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga? + +Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que +podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella serrana +região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi deixaram menos rasto +que em muitas das terras visinhas, seria porque a bruteza do monte era +já então como hoje, que não dava meios nem licença para grandes obras. +Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito faziam em +tirar da terra pão com que se manterem; ¡quanto mais, erigirem +castellos, pontes, ou mesquitas, de que se podessem admirar fragmentos +depois de sete seculos! + +Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo de +outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar +d'estes, se acalentaram creanças com versos do Alcorão. Outras arvores, +de que estas são remota descendencia, viram passar á sombra das suas +copas esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda, e +turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje é talvez +poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e ficariam confusos e +immoveis se revivessem para ouvir as da nossa lingua. + +Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos, +que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de mim o são e +serão sempre. + + * * * * * + +Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes, manteem-se ainda +antigos. As novidades das civilisações são como a escravidão, e os +diluvios: tarde chegam a engulir as serras. + +A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucidez. Se +os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se perdessem, pela +conversação corrente d'aquellas aldeias e póvoas se poderia restaurar. + +Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos, phraseado, e +construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um palrar de sésta de +segadores entre carvalheiras rusticas, ao estridor das cigarras amadas +de Anacreonte, do que entre o ranger dos prelos e o resfolegar das +balas, n'um anno inteiro da melhor typographia de Lisboa. + +Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos, como +o _nanja_ o _bofé_, o _canté_, o _quiçá_, e mil outros, sôam por lá sem +extranheza em boccas de mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de +namoradas de dezoito nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria. + +Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós aos netos a das +crenças e praticas piedosas, e com esta a de muitos seus erros e +abusões. São os insectos e musgos parasitas da arvore robustissima da +Fé. Abençoada a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os +ramos ou cerceal-a pelo pé. + +O tempo vai fazendo a pouco e pouco o seu officio. Não ha curas nem +reformações mais prudentes e certas do que as suas, quando á força lh'as +não ajudam ou contrariam. + +Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade de +apparições, phantasmas de almas do outro-mundo, Moiras encantadas, +thesoiros escondidos e lobis-homens; e ainda hoje a mór parte dos +moradores acredita nos esconjuros, feitiços, bruxarias, adivinhações, e +virtudes de certas praticas e fórmulas, para curar ou empecer. + +Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis, dão comtudo +sua côr poetica muito particular ao Povo, cuja simplicidade primitiva no +viver e trajar harmonisam com taes simplezas da intelligencia. + + * * * * * + +Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto +vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos, são por +ora totalmente incognitos na serra. A moda não exerce por lá as suas +costumadas devastações de cabedaes, bons costumes, e saude. Os +vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma +uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal +renova as suas folhas e flores. + +Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada ás costas das +suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e tecida por suas mães, +mulheres, e filhas, apizoada e tinta (quando o é) sem sahir da +freguesia. Trazem grandes chapeos pretos desabados, grande bordão +ferrado, menos para defensa, que para arrimo pelo resvaladio das +ladeiras, e tamancos cravejados. + +As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra, sáia de +burel de meio pizão, côr de pinhão ou preta, collete comprido justo, sem +apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de burel mais apertado no +tear, e sem pizão, que lhes serve de capa, lançado ao desgarre por sobre +os hombros. A cabeça, cobrem-n-a, ou com o mesmo mandil, ou com um +chapeo como o dos homens. As suas tamancas são menos grosseiras. O lenço +de seda ao pescoço é, como as arrecadas e o cordão de oiro, o ultimo da +magnificencia, e as flores da urze ou da carqueja o mais galante enfeite +dos seus sombreiros. + +São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou romagens, quando +calçam, com meias brancas, tamanquinhos de pregaria doirada com sua meia +palla de marroquim vermelho, vestem roupinhas de pano burel fino, ou +chita, põem gorjetes de filó, ou lenços de cassa bem pregados, e +capoteiras de pontas compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as +mais ricas e senhoras teem mantilhas e sapatos. + + +XII + +A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita como a cultura do solo +ingrato, só põe mira no essencial: em desenvolver os sentimentos +naturaes e religiosos, o afferro á justiça e á verdade, os differentes +amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o +respeito á velhice e ao infortunio. + +As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas. Esses +discursos de cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora +deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam, +inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e dizem-n-o como o +pensam. + +Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para ser bons +lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas mães, depois +de terem sido bons filhos e boas filhas; e n'isso limitam a sua ambição. + +Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para +folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras, em +saraus esplendidos. + +Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam a nossa, que é melhor. + +Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um só livro em +toda a freguezia; mas os louvores da sua moralidade dariam com que +encher mais de um livro para nos envergonhar. + +A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o +coração bem nascido dará gosto. A _mercê_ e o _vós_ de nossos maiores +são tratamentos para os raros casos em que não cabe o _tu_. + +Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um dos outros. +O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou á meza do mais rico; +isto é, do que na sua tulha tem centeio ou milho para todo o anno; e o +abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com os seus bois a +geirasinha do indigente que a não pode pagar; e lhe leva pendurado na +canga do arado o sacco da semente, para que elle tenha tambem, lá para o +verão, que ceifar para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por +instinto, que as lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas +para quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as +presenceia. + +É um povo agricola, que ainda não aprendeu a envergonhar-se do seu +parentesco chegado com a terra. Entre elles se diz «lavrador», e +«trabalhador», como em Londres «fabricante», ou «lord», em Roma +«cardeal», ou «monsenhor», em Paris «sabio», ou «homem de Letras», e em +Lisboa «deputado», ou «millionario». + +As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão, com o seu +paquife de pâmpanos e espigas, e a letra _Ut operaretur terram, de qua +sumptus_. + + * * * * * + +¡Que impressão, a principio de espanto, logo de respeito, e a final de +amor, me não fez o presenciar, como, ao revéz da pragmatica das cidades, +o trabalho das mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior +vergonha!! + +Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido o +sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava (como as andorinhas +do seu beirado para o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal +roupido, carrear o adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na +roça dos mattos entre os seus operarios. A estes, ¿que os poderia +admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios, e dos Camillos, se alguem +lh'a lesse, a não ser a admiração dos historiadores? + + * * * * * + +As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não poderiam deixar de +ser mais varonís do que os homens de muitas outras terras, e de todas as +deliciosas. + +Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha, com o seu +costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes, que vão +formando semelhante á precedente a geração seguinte, só são passatempos +do serão, á luz da candeia, das pinhas bravas, ou da fogueira, que +allumia e alegra os penates afumados. Madrugam como a aurora para os +trabalhos fortes. Os bois conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente +jungir e guiar pelas suas mãos. Na vindima, carregam á cabeça cestos, +que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as mãos alvas +e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas ceifas, transportam á cabeça +montanhas de espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan +sob o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua +grinalda de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em +bemaventurança para dez familias. Nas renques dos saxadores e dos +roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião não mais leve, deixal-os +muitas vezes para traz, e envergonhal-os com seu riso de triumpho. + +Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O exercicio, Anjo +custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra ao mesmo tempo +no sangue a saude, que do sangue se côa ao leite, e do leite aos filhos. +Seriam as amasonas da paz, se não tivessem ambos os peitos muito bem +inteiros, e se os homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as +lidas. + + * * * * * + +Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz, que moralmente parece +distar do nosso duas mil léguas, é a sujeição da mulher; facto que eu +não moraliso, mas só historio. + +As mais graves, tanto como as mais somenos, não só á laia das Penélopes +e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio +até meia-perna; não só no tráfego de porta a dentro, na cosinha para a +familia e para os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de +ministrar de pé, como servas, á meza de seus maridos e filhos, nem em +dias de festa ou bodo, quando a assistencia de hospedes mais poderia +assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as. São sempre aquillo: sempre +passivas, boas, e contentes. + + +XIII + +Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão já minuciosas e pueris +estas noticias; mas hei-de já agora continual-as, e seja com vénia sua. +A outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns +annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem renteado as asperezas +das serras, alguem festejará encontrar estas antigualhas, nas folhas já +por ventura rôtas e descosidas d'este livro. + +Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao commum da nossa +gente; mas então hão-de ser antigualhas fosseis, e portanto com +veneração duplicada venerandas. + + * * * * * + +A indole da gente é de si commedida e pacifica. + +De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre ella achar +amostras, que emfim, terra é, e não paraiso; mas nem tantas +proporcionalmente, nem tão feias e monstruosas em geral, como em outras +partes, e em quasi todas. + +Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com +todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico; +ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de trabalhar contínuo, para +se despender em vida de enredos, corrupção e maleficios; nem tão +extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o +despeito, o despenhem de salto em salto até ao fundo da depravação. É o +_inter utrumque_, a _aurea mediocritas_. + +Conservam inteira a Fé religiosa. + +Não lêem, nem conhecem, nem levariam á paciencia, jornaes que +desorientam, desencantam, e põem o genero humano em guerra viva comsigo +mesmo. + +E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura toda +novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e venenosa, que por cá +nos trabalha, e de cujos herpes adoecem até as familias, que a maldizem, +e a repulsam da sua porta. + +Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de só provir da fragilidade, ou dos +impulsos subitos da natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na +consciencia remordimentos. + +Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a julgam; +quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida como +aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se +conchava. + +D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais, +resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e +innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em graças +exteriores, em tactica, em egoismo infernal e assolador. Nos amores +ponhâmos o exemplo: + + * * * * * + +Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e persuade: +tendem á união, de que se originam as familias, e por onde a especie se +mantém. + +Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior +arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além do ocio lhes +fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que estimulam e irritam as +phantasias, para o casamento se namoram, e não por alardo; para goso do +coração, e não da vaidade. Põem no merecer as diligencias que outros +põem no conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar +no repellir e despresar depois de saciados. + +Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de seducções, de emboscadas, +enganando-se e sacrificando-se um ao outro. + +A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem se ufana em +desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um theatro, ou +no vão de uma janella de club, em noite de baile, um copioso canhenho, +meio historico meio fabuloso, dos seus triumphos. Ali, ali é que as +mulheres se podem gabar de ser amadas, pois o são sem disfarces nem +encarecimentos; são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem modistas, +nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem mestres, nem +lisonjeiros, nem romances, as transformaram. São-n-o pelo que são, e não +pelo que possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada. + +Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão lá supprir lindezas do +corpo, graças do animo, ou preciosidades do coração. + +Não é entre prestigios deslumbradores, n'um ambiente de calor +artificial, estimuladas ou vencidas do exemplo, da occasião, do medo ao +ridiculo, e da audacia emprehendedora, não é ao abrigo do estrondo e +confusão de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras +declarações; é ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de suas +mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva com as parentas e +amigas, em derredor da merenda, á sombra das carvalheiras. + +São amores que se não escondem, porque não teem de quê; amores que se +exhalam debaixo do ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada +capella do festejo, ao som folgasão da _Mirontella_ roncada pela gaita +de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante do arraial. + +No progresso de taes inclinações é sabedora e consentidora toda a +visinhanca; e esta mesma notoriedade defende os nossos namorados, tanto +de se deixarem arrastar de seus mutuos desejos, como de se desvairarem e +cahirem em infieis. + +Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações, não menos obrigado a +lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia commetteria galantear +a conhecida por _emprêgo_ de outrem, certo em que nenhuns lucros lhe +surtiria o empenho, senão só motejos e descredito. + +D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma constancia +verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o bem-querer d'estes +Jacobs e d'estas Rachéis. + +¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser sinceras, hão de confessar +que a escolha que n'um baile fizeram... só durou até que veio o baile +seguinte! ¡Quantas, quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que +pelas duas orelhas que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo tempo) se +poderia contar, perguntando á sua modista franceza quantos vestidos +novos lhes havia feito! + +Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno passado, demorar-se mais +a encher a malga para certo segador que para todos os outros, e +pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a pôr á cabeça a gavella das +espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este anno; +continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua mulher, os cuidados +dos filhos e da casa a impidam de seguir, como antes, por passos +contados, o seu gosto. + +Observação tão curiosa como verdadeira: + +Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós, que a +variedade dos serviços rusticos tão a miudo lhes depara, rodeadas da +Natureza por todas as partes, vendo livre o amor nas aves e nos +rebanhos, favorecidas pela solidão selvática e pelo silencio, e pelas +moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois crepusculos em cada dia, e +em cada semana de inverno por tantas tempestades improvisas, como +aquella que rendeu e debellou a vidual constancia de Dido e a piedade de +Enêas, quando o hymeneu deu com o relampago o signal de suas bôdas, e as +nymphas pelos altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de +fragilidade como a de Dido por phenómeno se apontam; e annos e annos se +devolvem, sem que um só se realise. + +Quando porém se dá, e vem a lume filho não de benção, o peccado de amor +não se carrega de crueldade. O innocente não se faz victima expiatoria +dos culpados, perdendo a vida entre as mãos de quem lh'a deu; horror +nefandíssimo, inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; +nem tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas da noite, á porta +lá ao longe de um desconsolado asylo, aberto pela misericordia em +lagrimas ás lagrimas dos filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor +para se crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, +e se finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias. + +Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo infanticidio moral, +mereceria qualquer das minhas serranas um falso titulo, que ainda mais a +faria corar, que a tácita confissão da sua culpa. Sabe renunciar os +louvores com que d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu +cadaver do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa; +tudo... como lhe fique para consolação da sua queda o encanto ineffavel +de apertar nos braços o seu filho. Se o mundo todo, se o proprio amante, +a desamparasse, tudo tudo esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se +afortunada. De não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a +consciencia de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o +sublime encargo, o natural sacerdocio da maternidade. + +Estas resignadas victimas, immoladas por um amor, por outro amor +ressuscitadas mais interessantes, estas victimas, em quem a virtude, +produzida pelo arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi +em lustre a virgindade, são poucas; são rarissimas; custar-nos-hia a +encontrar uma. Quando porém a desencantasseis, lembrando vos do que +sabeis d'estas nossas grandes terras, fio-vos que bastante commiseração +e respeito vos infundira. + + * * * * * + +Casas de perdição para a mocidade, como nos povoados grandes se alinham +em ruas e ruas, e até já por villas e aldeias vão surdindo, não se +conhecem lá, nem se poderão tão cedo conhecer. + +Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de vergonha, a que +se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em que as +sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso, são victimas +das victimas que ellas sacrificam. + +Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se +transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade dos +casaes. + + +XIV + +Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve +de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento. + + * * * * * + +Os casamentos não são nunca determinados por considerações de haveres ou +de jerarchia. O cálculo rala pouco os pensamentos d'estas gentes, +acostumadas a viver com pouco, e a confiar muito na Providencia. As +palavras _dote_ e _escrituras_ apenas seriam entendidas. + +Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e +economia, a ajuntar para _uma cama de roupa_, uma teia de estôpa, outra +de linho, uma peça de burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma +panella e dois pratos, uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires +de milho, e outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da +fortuna, e trata logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor. + +O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo commum, consta de um +anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro uma camisa para o dia +grande. + +Mal que este desponta, vê já de pé os dois afortunados, garridos e +bizarros com o seu _aceio_ dos domingos: ella, sobretudo, flammante como +uma Imagem, com arrecadas, cordões, e alfinetes sobre lenço de seda, +mantilha lustrosa, ou chapeo de feltro novo com enfeites. + +As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e visinhas, que de +boa-mente lhes acodem, cada uma com o seu _melhorado_, convencidas como +estão (especialmente as solteiras) de que alguma coisa da benção +matrimonial poderá vir apegada aos diches e galas que figuraram no +apertar das mãos. + +Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se preparam de vespera +para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que sendo florído tem +mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do travesseiro +(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem +liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e lan; no que, +vai grande condão de conformidade de animos, perfeição de ajuntamento, e +dura do bem-querer; com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, +não faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio. + +O pretendente, com os seus apaniguados, espera já á porta da noiva a sua +sahida. Esta apparece emfim, como uma aurora da serra, incendida de +pejo, e orvalhada com as lagrimas da mãe; e segue com o rancho, a pé, +caminho da egreja, levando ás costas as bençãos do pae, em que ainda por +lá se crê, a turbação no seio, e nos ouvidos os votos e resas de bom +agoiro, recitadas com fé por alguma velha mais sabida. + +...................................................................... + +A egreja está já á sua espera aberta, juncada de espadana, com o altar +enflorado de fresco, e a alampada atiçada. + +A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas +cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a +todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do +sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso sobre os +deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo do templo +não é interrompido com pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de +tropa, brados de mendigos, assobios de rapazes, martellar de artifices, +zabumbas de arlequins. + +Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai +profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e +afugentar as evocadas memorias de Lia, de Rachel, e de Rebecca. + +O que unicamente chega lá de fóra, é o chilrar de algum passaro sobre +alguma cerejeira do adro, o amoroso carpir de alguma rôla na matta de S. +Sebastião, ou a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no +trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da +Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da progénie de Adão. + +Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com mais clara e +muito mais formosa benção. + + * * * * * + +É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a Deus não ser +mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de dois nomes um só nome, +como de duas metades distinctas se forma um todo inseparavel. + +É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra, solemnissimo, e que, por +isso mesmo, se deveria por todos os modos pintar com indeléveis e suaves +tintas na memoria, para que a sua imagem no meio das tentações podesse +acudir como Santelmo resplandecente no meio das tempestades. + +Quem se recordar de que proferiu o seu voto, e escutou com jubilo outro +egual, onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de +obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde com o sol +entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e fragrancias +naturaes com as virações, quem, repito, de tudo isto se recordar, +ha-de-lhe parecer que Deus percebeu melhor as suas palavras; ha-de +alguma vez devanear em si (mas que o não diga) que bem poderia ser que +alguns Anjos estivessem ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a +prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a mulher... + + * * * * * + +Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos alvoroçados, +e por entre os parabens e vivas dos assistentes, encontram, começando +logo no adro, de praso a praso, por toda a extensão do caminho até á +casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro, ramos de pinheiro, oliveira, +roble, canas verdes, e quantas hervas e plantas bravas menos espinhosas +ou mais floridas brota o monte. + +Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua toalha, e +ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa, estão, postos +de antemão pelos muchachinhos que formam a primeira frente do préstito +triumphal, um prato de bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os +quizer tomar; outro vazio, para a gratificação voluntaria, que ninguem +deixa de lhe lançar. + +Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa, e industria mais esmerada; +foram esses prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de +seus afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes +naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos +padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem +concertadas que podem, um á moça, outro ao mancebo; os quaes, logo a +diante, de ordinario entre si os trocam; e junto á salva dos ramalhetes +se vê um abundante refresco de bebida e comida para todo o +acompanhamento, sendo o acepipe obrigado ás filhós de mel. + +Em cada uma d'estas _estações_ chove de todas as partes a saraivada dos +confeitos; bebe-se á saúde dos «bem empregados» e «de quem d'ahi a nove +mezes ha-de vir.» + + * * * * * + +O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos convivas quantos +admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as boas vontades +prestes para quem se quizer apresentar. + +Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e +o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse «o +desposado» (contra a regra do nosso falar galanteador), porque o logar +da direita se lhe dá a elle. A dignidade varonil em nenhum lance esquece +entre aquellas gentes primitivas. + +N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e +com um só talher, e bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer +durar a refeição dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu +bonissimo sentido, que não podia ser outro senão representar a +communidade e harmonia intima, em que esperavam e professavam de viver. + + * * * * * + +Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas, rabecas, e ferrinhos, +dando se a rôdo comer e beber aos tangedores. + +Em quanto dançam, algumas moças donzellas se furtam subtilmente á +companhia, para irem enfeitar de flores o leito nupcial, desfolhar entre +os lençoes rosas de cheiro (se a estação as dá), e guarnecer a roca e +fuzo symbolicos de amores perfeitos. + +Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita +da quinta que é meia-noite, ha já muito que os obsequiadores bondosos +teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas de calmaria de certo +suavissimas, apóz um dia todo por fora e por dentro tão festejado e tão +revôlto..... + + +XV + +O nascer de cada filho é uma festa. + +Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e mostra a experiencia que +se não enganam), crêem e repetem, que filhos ainda em casa pobre são +riqueza; que por taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a +lhes acudir com mais larga mão; e que a meza, por ter mais Anjinhos ao +pé de si, se não ha-de fazer mais escaça, se não medrar á proporção de +tão bons hóspedes. + +E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes um onus, um +sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se ouvem mães e paes +deploral-a como castigo e praga; lá na serra, onde ha trabalho +proporcionado a cada edade, lá na serra, onde, como em enxame bem +regido, todos os consumidores são productores; lá, onde só são +necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes são os mestres, o +exemplo lição, a laboriosidade e sobriedade herança; ninguem se +atormenta sorteando na phantasia empregos ou futuros novos para a sua +progénie. Lá os filhos são rebentões, que alegram, remoçam, e espécarão +a seu tempo a velhice decadente de quem lhes deu o ser, seiba, e sombra. + + * * * * * + +Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres experimentadas em taes +lances, que supprem a falta de parteiras e doutores, tem-se já prompta a +canastra que lhe ha-de servir de berço. + +Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é +escrupulosamente velada, para que não venham bruxas malfazejas a +chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol candeia bem experta; e +ao clarão d'ella, com os olhos fitos no innocente, e quasi sempre em pé +para que as não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as +amigas da casa. + +Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão entoando com +a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do pé embalam brandamente +o bercinho. Algumas folhas de oliveira ou palma, que figuraram no altar +em Domingo de Ramos, queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam +muito bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e +janellas. + + * * * * * + +Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de romanas crenças a +graça, a fragrancia poetica, o saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu +sinto. + +¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e tão +christan como ella é, praticam o mesmo que os legionários romanos +provavelmente ensinaram a nossas avós ha mil annos, e mais, pelo terem +visto fazer nas aldeias da sua terra a suas mães e mulheres! ¡Cuidar que +estamos vendo, com pequena degeneração, o que o mais rico poeta da +Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente! E se não, +oiçâmol-o, e julgareis: + + + Negreja ao réz do Tibre annoso Helerno, +santo bosque, onde levam sacrificios +inda agora os Pontífices romanos. + + Ali nasceu outr'ora, ali vivia +a que nossos avós chamavam Grane, +casta Nympha, de excelsos pretensores +pedida vezes mil e em vão pedida. +Era seu exercicio errar nos campos, +as feras perseguir com dardo agudo, +e as redes emboscar nos fundos valles. +Inda que aljava ao lado não trouxesse, +criam-n-a irman de Phebo; o parentesco +não poderia, ó Phebo, envergonhar-te. + + Quando algum namorado a requestava, +tinha prompta a resposta.--«Aqui,--dizia-- +ha nímia luz, e a luz dobra a vergonha... +Se preferes entrar n'aquella gruta, +sigo-te.»--Á gruta o crédulo voava; +ella torcia o passo, ia á carreira +das moitas na espessura homisiar-se; +d'ali desencantal-a era impossivel. + + Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido; +combateu lhe o rigor com brandos rogos, +e a sólita resposta obteve em prémio: +que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe; +segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge. +O que lhe fica apóz vê Jano. Ó louca, +no usado esconderijo em vão confias; +olha como t'o observa, e t'o devassa. +Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus braços; +eil-o comtigo a sós na cava penha, +onde havias buscado o teu refugio. + + Saciados os sôffregos desejos, +--«Em paga d'este goso--exclama o Nume-- +dos quícios a tutella eu te confio; +pela honra perdida esta conserva.» +Assim falando, candida varinha +lhe entrega, com que os tétricos asares +das protegidas portas afugente. + + Existem de brutal voracidade +umas infames aves; não já essas +que de Phineu a meza espoliavam, +mas da mesma relé: cabeça grande, +fito olhar, bico audaz, grizalhas plumas, +garra adunca; esvoaçam pela noite; +onde encontram creança ao desamparo, +que a ama deixou só, prestes a empólgam, +arrancam-n-a do berço, e a dilaceram. +Diz que as lactentes vísceras co'os róstros +lhes picam, lhes devoram; teem as fauces +sempre repletas de sorvido sangue. +Do _estridor_ com que as trevas alvorótam, +lhes vem o nome: _estriges_ se nomeiam. + + Estas pois, quer de si nascessem aves, +quer em aves, de velhas que antes foram, +fatal conjuro marso as encantasse, +penetraram de Proca no aposento. + + Com cinco soes de edade, o innocentinho +era ao bando ferino egregio pasto. +Já co'as gulosas linguas ferem, sugam +o tenro peito nu; sôam do infante +os consternados trémulos vagidos, +com que, á falta de voz, auxilio pede. + + Corre a ama assustada; acha nas faces +do caro alumno seu lavado em sangue +das brutas garras os crueis vestigios. +¿Que fará? vê-lhe o rosto exangue, murcho, +que na côr arremeda as tardas folhas +já do rígido inverno bafejadas. + + Corre a Grane; o successo lhe relata. +--«Cobra valor--a Nympha lhe responde;-- +viverá teu alumno.» + Entrada ao berço, +acha a mãe, acha o pae, sôltos em pranto. + + --«Eis-me; enxugae as lágrimas--exclama;-- +vou tornar-vol-o são.» Diz, e tres vezes +de medronheiro com frondosa vara +fere da estancia as portas; outras tantas +co'a mesma vara o limiar sinála; +rega o ádito; as aguas com que o rega +encerram salutifera mistura. +Entranhas cruas de bimestre porca +toma nas mãos, e diz: + --«Aves da noite, +í-vos, deixae as puerís entranhas. +N'esta pequena victima tenrinha +o tenro pequenino aqui resgato; +é coração por coração; tomae-o; +por visceras são visceras; redima +esta existencia immunda outra mais nobre.» + + Finda a sacra oblação, corta o deventre, +e esmiunçado o vai pôr aos ares livres, +prohibindo do rito ás testemunhas +olhal-a então ninguem; por fim colloca +a vara de oxiacanta, o don de Jano, +na janellinha que dá luz ao quarto. + + Consta que desde então não mais volveram +ao berço aves ruins; saude, cores, +tudo refloresceu no innocentinho.[3] + + + * * * * * + +O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois côvados de +baêta encarnada ou verde, vinho, assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, +conforme o dia em que acerta. A madrinha dá um vestido, duas camisas, e +uma touca. Cada um dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu +brio. + +Este dia é quasi tão festivo como o do casamento, pois n'elle se cumpre +a benção que no primeiro dia se recebêra, e está salvo o interessante +pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que as bruxas +nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo do peccado. + + +XVI + +Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e baptisado, +cada povoação celébra a sua, pública, no dia do Orago da sua capella. +Tem fogo do ar e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns +aos outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o consentem, andam +já desde a vespera á tarde pelo adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o +tambor, e despovôa-se a visinhança com o chamariz do fogo de vistas +nomeado de _armação_, ou _parreira_. + +Por esta occasião, nas casas principaes, isto é, nas menos apertadas, +saltam-se até a meia-noite as danças, pela mór parte cantadas, do bom +Portugal velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle vivente archivo +de antiguidades, nem já, quasi, os nomes se conservam. São o _caracol_, +o _Senhor da serra_, o _lundú_, ou _landum_, o _escalhabardo_, a +_ribaldeira_, o _Francisco bandalho_, etc. + +A excitação do saltar, a virtude inspiradora do vinho verde, e um +poucochinho o natural desejo de brilhar diante das raparigas e dos +rapazes, fazem ás vezes com que ahi appareçam, como nas romarias, como +nos serões dos lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de +gosto, poetas e poetisas que trovam de repente, e á porfia, por espaço +de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola. + + * * * * * + +Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos. + +Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem, estão em pé, +um diante do outro, no meio da roda dos ouvintes. A toada de que se +ambos servem, é sempre das mais populares, e vai toda remançada, para +que as ideias e rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou +desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de declamação +accentuada. + +O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro versos, +correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou consoantes; isto +é: usam das quadras correntes em todo o Reino. + +Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme +lhes convém. + +Principiam (é obrigado) por uma especie de elogio, ou vénia, ao dono da +casa, se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se é em +terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou dos seus proprios +amores; e d'ahi, muitas vezes sem transição, saltam para um genero entre +elles muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico fescenino», se, de +envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como entre os Antigos, os +dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se empulham e desempulham, +como os dois pastores virgilianos, com surriadas de impropérios sempre +ao galarim, sem que o fogo das palavras prenda nunca nos corações. Com a +mesma feição com que dizem, com a mesma ouvem; e tão avindos saem da +contenda, como n'ella entraram. + +Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da +sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por +mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e que tudo +quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo. + + * * * * * + +Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes +porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é: que a primeira metade +de cada quadra tem frequentemente um sentido diverso, e desconnexo do +sentido da segunda metade. + +Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma verdade vulgar, +uma imagem campestre, a exposição succinta de qualquer facto, mas sem +relação alguma com o assumpto que se versa, o qual só nos dois versos +ultimos apparece. + +Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em pratica de amigos com +meus leitores: + + +O loireiro bate bate, +que eu bem o sinto bater. +Para comigo cantares +has-de tornar a nascer. + +Á couve se come a folha; +come-se a raiz ao nabo. +Só te espero ver casado +sendo mulher o diabo. + +Navio d'el-Rei é grande, +é grande e chega ao Brazil. +Se namorares alguma, +não seja á luz do candil. + +Sequidão cria o centeio, +frescura cria os repolhos. +¡Quem me estreára comtigo, +menina, os lençoes de folhos! + + +Já se vê, por estas amostras, que a improvisação não é tão difficil +coisa, nem para tantos encarecimentos, como a teem feito alguns +viajantes, d'estes que só viajam no seu quarto, embarcados na sua +poltrona. + +É por cá o mesmo, que provavelmente será por toda a parte, sem exceptuar +a Italia, com que tanta bulha se nos faz. + + +_Al porto di Livorno +è giunto un bastimento. +Cara, morir mi sento! +mi sento, o Dio, mancar!_ + + + +XVII + +Muito, porém, se enganára, quem inferisse que toda a poesia dos meus +serranos é de egual teor; porque, sobre conservarem muita xácara de bons +tempos, com as suas lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices e +aprasiveis como ellas (o que já não seria pequeno cabedal), cantam, e ás +vezes engenham com singular felicidade, quadras repassadas de amoroso +affecto e graça natural, que um poeta de nome não enjeitaria. + +E ¿que muito? ¿Por que não haviam de nascer estros por ali, onde ha +tanta Natureza, tantos sitios inspirativos, tão bons ocios na solidão, +tantos amores (¡e amores tão bem empregados!), e tão largos horizontes +para a saudade! + +¿Por que não haviam elles de nascer, quando até pelas nossas +encruzilhadas mal cheirosas e escuras, pelos nossos botequins fumosos e +azoinados, pelas casas d'essas ruas feias, onde olhos e ouvidos se +perdem e afogam em prosidade vil, rebentam, viçam, e não raro florejam, +talentos de estimação e de valia? + +Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades, muitas +coisas lhes empecem (não falando no desamor que os esfria, e nas parvoas +invejas que os matam); aos montanhezes, afóra a Natureza, que lhes +abunda, tudo mais lhe mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha poesia, +como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde pastor, appareceram as +Musas, não invocadas, para o bemfadarem. + + * * * * * + +¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não esperdiçam, e, por falta de um prodigio que +os desencante, fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos! + +...................................................................... + +De uma pobre mocinha ovelheira posso eu dizer; que por tardes de verão +muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado nos degraus da +capella de S. Sebastião; ella ali perto, cantando e fiando em pé á +sombra de um sobreiro, no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como +bem se pode crer, ¡enfeitiçados com a placidez de tão livres horas em +logares tão fugidos, tão sobranceiros ao mundo todo! + +De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos +corados, não da memoria se não do espirito; e o espirito d'ella, +estava-se conhecendo que lhe residia no coração, tão bem, tão bem, tanto +a seu grado, como em estufa bem quente uma planta mimosa, que um ameaço +de frio mataria. + +Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca ouvira de obras +de poesia senão as cantigas da sua terra, o murmurinho dos seus rios; de +madrugada a cotovia perdida pelos altos do ceo; ao meio-dia as porfias +das cigarras; ao descahir da tarde o badalar longinquo das Ave-Marias; +ao cerrar da noite o regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus +moradores, os seus rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus +rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a alma; de noite +os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do seu namorado. + +Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha encarecer o que +ella improvisava para as suas ovelhas, que a não entendiam; para mim, +que me occultava com mil cuidados para não afugentar tão melodiosa ave; +e para o ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se +ao-pé da sua. + +Era a inspiração lyrica mais formosa, se não a mais remontada. Eram os +objectos do seu limitado universo a mirarem-se na limpidez dos seus +affectos, virginaes e namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras +destillando-se cada uma da sua ideia com a propria côr, com a propria +fragrancia que lhe competia. Era o metro a correr, sem quebra nem +extravasamento, a flux, sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as +rimas a vir poisar espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da +outra, como em dois arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois +passaros gorgeando. Era tudo, emfim, quanto a Arte requer, e só a +Natureza pode dar aos seus mimosos + +...................................................................... + +¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!... Até já as suas ovelhas se +esqueceriam d'ella. Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais +vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus poemas. +Se ainda canta... já não é a terra quem a ouve. Remontou o vôo muito +mais alto que o da cotovia sua mestra; engolfou-se por entre as +scismadoras estrellas, que tantas coisas em segredo lhe ensinavam; e +virgem entre os Anjos, irman entre seus irmãos, entretece a sua voz +immortal no cantico sem limite + +...................................................................... + + +XVIII + +Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem menção da sua Musica. + +É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos dizer de muita; e +conserva puro e extréme o primitivo sabor. Condiz com a Linguagem, com o +trajar, com os costumes; seria excellente oráculo para consultarem os +modernos compositores de operas nacionaes. Assim se temperariam para os +nossos ouvidos, os quaes, posto que affeitos de annos para cá a +peregrinas melodias de muito mais altos quilates, ainda comtudo se +ageitam e conchegam melhor com as toadas sentidas e singelas da nossa +creação. + +Nas boas horas fique a musica italiana, pois que entrou, e nos cahiu, e +o merece; mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda, não se diga +que aposentámos nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por trazer +vasquinha e falar chão. + +Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o até (se já +não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a granel por essas +comedias e farças, em que fala gente do nosso sangue e dos nossos nomes. +Mas uma vez ou outra (_al de menos por cortezia_, como dizem os meus +serranos), deixem-nos ouvir em boccas patricias coisa que nos alembre +das cantilenas de nossas amas, cantilenas que, ainda depois de apagadas +da memoria, lá se ficam algures no coração, com quanto basta de vida +para ressurgirem ao primeiro aceno. + +Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e +arbustos exóticos da mais admiravel louçania; mostre-nos lá, +emboscadinho na herva, o malmequer da nossa primeira adolescencia, a +papoila retinta, que nos ria d'entre o verde da seára, quando meninos; a +papoila e o malmequer muito mais nos hão-de conversar com o coração um +só minuto, que todas ess'outras flores mais soberbas em toda uma +primavera. + +Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que muita vez +n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com saudades os descantes +da serra. + +Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de difficuldades, a +dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe revolve aos pés, a +sumir os seus píncaros florídos e trémulos pelas nuvens, admiro-a, +applaudo-a, e esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o coração. + +Porém certas cantigas que eu sei... não as applaudi, não as admirei +quando as ouvi, mas senti-as repassar-me até ás fibras intimas; +assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em +substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do +silencio. + +Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares, +da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter +encontrado. + +E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas não são algumas, até para +orelhas forasteiras, quanto mais para as do seu molde! + + * * * * * + +¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de condão! ¡Se, em vez de vos falar do que +por vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos lá de subito, a +beberdes com aquelles ares bonissimos aquellas cantorias agrestes, sem +cultura, sem enxerto, luxuriantes de natureza, macias, avelludadas, +rescendendo a amor e contentamento! + +Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas por mãos +perítas, nos podiam abastar de muito oiro, que a Arte, batendo-o e +cunhando-o a seu modo, poria em facil giro com geral proveito. + +O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas solidões, +edificaria como Amphião novas Thebas, attrahindo e congregando com a sua +lyra penedias e florestas. + +¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final. Mas por ora, o +thermómetro do patriotismo assignala graus para baixo de zero. + +Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se teem voltado; +e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo, querendo Deus; ¿mas +quando? sabe-o Elle. + +Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer levantar-se. +Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que se admiram em +alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem pequeno custo, bem farta +corôa grangeára. + +¿Que digo «custo»? ¿Onde ha ahi delicia como é o viajar caçador de +Artes, por toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com +agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto +dos thesoiros que se tomam? + + * * * * * + +Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus +espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular feição de melancolia mui +suave, era a extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes +a perder de fôlego. É donosa coisa; mórmente pela noite, e ao longe... + +A explicação d'esta singular maneira deve ser, segundo me parece, o +costume de cantarem muitas vezes a sós por lombas descampadas e cumes de +oiteiros, d'onde a voz tem de correr, e correr, primeiro que tope com +ouvido em que se hospéde. Outras vezes é ao-pé de estrépito de aguas, +que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em paragens de eccos, +nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si mesma namorando. + + * * * * * + +De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro por estirado valle, +ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras conversando por cantoria; e, +graças a este methodo de irem fiando cada syllaba... comprida... +comprida... entendiam-se (podendo apenas enxergar-se), como se estiveram +assentadas mão por mão, e muito manas, á soalheira no seu aido. + +Sustentam-se estas entoadas conversações, em prosa inteiramente desatada +de rithmo, e não obstante rimada, rimada por um modo tão insólito como +facil. + +Exemplo: + +¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha: + + +--Ó ia, eu te digo ó Maria, +Ó iga, que se tu és minha amiga, +Ó á, botes as cabras para cá, +Ó enda para me ajudares a comer a merenda, +Ó eijo, que tenho aqui brôa e queijo, +Ó ôas, e umas maçans muito bôas. + + +E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a outra +interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão no colloquio por +ter chegado a sua vez. + + +XIX + +Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica. +Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas. + + * * * * * + +As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos as de cada familia e as +de cada aldeia) são: o Anno-bom, o Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e +o Natal. + + * * * * * + +O Anno-bom não é ao presente senão um rebate para comesaina rasgada, e +se deitar uma can fora. + +As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado, já lá +vão. + +Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras ao cabo se +desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao romper do primeiro sol do +anno os cachopinhos de cada povoação, todos em bando, o mais bem +arreados que podiam, com suas sacólas, ou alcôfas, ás costas, a cantarem +de porta em porta, e, percorrido o logar, de aldeia em aldeia, até se +lhes acabar o dia, umas trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de +campanudos louvores á bizarria do pae ou mãe de familias, e desfechando +sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou pão branco, para a +ajuda do _refestêllo_; contribuição com força de Lei, mas de que todos +se desempenhavam á boa-mente. + + * * * * * + +O Carnaval, é como ainda nós por aqui o conhecemos nos seus dias aureos, +tríduo de folia desatada, guerra porfiada e bem rida de todos contra +cada um, e de cada um contra todos. + +São as pulhas, as peças, os esguichos, os pós, a laranja + + + .....que derruba o chapeo, + + +de que o bom Filinto com tanta saudade se lembrava lá em París, o +rabo-leva de tripas entufadas, a mão de ferrugem da chaminé com azeite +pelos fucinhos, as estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho com +sal, as filhós com trapos, e todos os mais adminiculos, que no ritual +classico se conteem. + +Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se não veja povoa nem +viva alma, duas coisas se hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e +apupar; toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra são +descargas de espingardaria. Ninguem tem caçadeira velha em termos de dar +fogo, que não saia com ella a salvar. + +N'esta occasião (não sei por quê) o rio de S. Mamede parece marcar +fronteira entre duas nações inimigas; a metade cíterior, e a metade +ulterior da freguesia, formam dois exercitos, que, disposto cada um na +sua banda pelos altos mais patentes e convisinhos aos seus adversarios, +para lá lhe atira por cima da torrente, sem folga nem misericordia, +turbilhões de chascos, de apupos, de rugidos de buzinas, de buxas +accezas, e fumarada. Estremece a terra sob os pés; retumbam pelo ouco +dos valles, pelas refolhadas e sinuosas lapas das ribanceiras, os +rolantes trovões centuplicados... + +O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado asninho, +visitando as povoações, com barbas brancas em faces avinhadas, e canna +em punho para se abordoar, facil, prasenteiro, com séquito de rapazía a +abuzinar, e de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem poderá +ser o próprio Sileno das bacchanaes, metamorphoseado pelo tempo, +constante parodiador das suas mesmas obras, pois não é necessaria grande +perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se conciliaram +diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as saturnaes; por +embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e quejandas (o numero era +folgado). + +As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos redís e +apriscos, para se estarem regalando ao banquete da familia, teem um +Carnaval particular, um Carnaval nómada e silvestre, cosinhado e comido +ao ar livre, e a que ellas chamam «o seu gôrdo». + +O _gôrdo_, para o qual de tempos se andam aparelhando, é feito por +varias d'ellas em commum, convidadas e admittidas outras amigas, e +algumas vezes tambem alguns moços seus parentes. + +Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um gôrdo; e ainda +agora me está sabendo. + +Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso +de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um vestíbulo de +areia parda e fina, á borda da agua. + + + Nympharum domus..... + + +não lhes faltando os competentes + + + .....vivo sedilia saxo. + + +O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os +comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria +folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de leite +recem-mugido. + +Terminaram com uma dança no areal, por não haver melhor, e debandaram, +cada uma atraz do seu gado, quando já lá por cima branquejavam +estrellas. A fogueira serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na +corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as +levaria. + +Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos, parecidas com +o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas, travada com ellas, +uma usança ha ali, que só ali ha, e que eu aponto, não só porque me +ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não porque dará luz para se +entender o poema que a diante vai, com o titulo de _Domingo gordo dos +montanhezes_. + +N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S. Sebastião, que já +sabeis orla o passal pela banda do poente, todos os moços solteiros da +freguesia, a plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o +quê, e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para isso a +Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para suas +terras a folgar. + +Nem o introductor, nem o tempo da introducção d'esta pratica, são já +hoje conhecidos. É uma tradição piedosa, uma lei moral, sem nenhum +genero de comminação, mas tão á risca obedecida, como se as tivera. + +É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um bello exemplo +de desinteresse; pois na plantação quem só ganha é a selva, que se +dilata, e o Santo, a quem se engrossam os rendimentos. + +Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a capellinha, ou de algum outro +Bemaventurado, com fama de boa-mão para casamentos, ainda se aventaria +um motivo pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que só da peste é +advogado!... + +Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra, ¡e oxalá dure sempre! ¡e +oxalá por muitas partes o imitassem! + + * * * * * + +Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de nós +outros, bastam duas considerações: a d'elles é festa do espirito, e mais +do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem do espirito. + +Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva lhes faz estar vendo +ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie humana; e do corpo +tambem, porque o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas +succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e bem jejuada quarentena. + +Move suavemente os corações acompanhar a procissão, que da egreja sai +depois da Missa cantada, com os seus cirios accezos, cantando as +aleluias, atravessa o amplo adro alcatifado de bordada relva, sombreado +das suas cerejeiras já revestidas, atravessa o passal por entre as alas +das pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se espairece +ao longe, como uma piedosa exultação, por entre os mattos +rejuvenescentes. + +O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As +arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado +de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora todas suas +galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a Natureza parece +ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe entôam canticos, como +os homens, as mulheres, e as creanças. A aleluia ressôa em toda a parte; +lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os corações +ferve o amor de Deus, o amor da Natureza, e o amor mutuo. + +¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os arroubados requebros do +Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh! ¡que permutar de boas-festas! Mal +o presumem, os que todas as cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um +cartão alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada. + +Recolhida a procissão, tornam-se todos correndo a suas casas, a acabar +de as pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se de +ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores baixellas; +crepíta o lume na cosinha revôlta; idéia-se um simulacro de altar, ou se +enroupa uma cama de lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o +senhor Prior, com a sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar +(quando mais não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da +familia falta á porta para receber a aspersão de agua benta, que elle ao +entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras rituaes da benção: «Paz +a esta casa, e a todos que n'ella moram.» + +Tal visitação, que (já se vê) se não conclue no primeiro, nem muitas +vezes, no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda de +prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada fogo; não pelos +saccos de folares que se ajuntam; mas pelo muito que assim de novo se +apertam os vinculos mutuos do Pastor e do rebanho. + + * * * * * + +No 1.^o de Maio põem, á entrada das habitações, _maias_, que são ramos +de sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com seus fuzos, +carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo se fadam a +terra e a casa: a terra, para que dê linho comprido e sedoso; a casa, +para que se guarde e mantenha próspera. + +¿Quem não vê n'estas maias outra degenerada herança dos nossos antigos +senhoreadores? No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo +domestico dos seus _Lares_, deuses protectores da poisada, e cujos +idolos se tinham junto ao fogo da cosinha, ou em nichos por de traz da +porta principal. Revestiam-n-os de pelle canina; e em monumentos antigos +se vê ao pé d'estes deuses representado o animal symbolo da fidelidade, +e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio nos seus +_Fastos_ nol-o descreve. Brindavam-n-os com libações de bom comer e +beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de flores, e já de lan. + +Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois acreditavam +que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se compraziam de +habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde vivia gente do +seu sangue. + +Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do +mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas. +Vieram Lares _viaes_ (dos caminhos), _compitaes_ (das encruzilhadas), +_urbanos_ (os padroeiros de cada cidade), _publicos_ (os mantenedores +dos publicos edificios), _rusticos_ (os custodios do campo), _hostis_ +(os amparadores contra inimigos), _marinhos_ (os guardiães dos navios). + +É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem Romanos, se +haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de suas religiosas +praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre estrangeiros; e bem +boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle cahos de poeticissimos +desatinos e devassidões. Fazia venerar e amar a casa; com a casa, a +familia; com a familia, os sãos costumes da creação. Ainda por cima, +fazia resplandecer luzeiros de esperança na cerração das adversidades; o +que dá coração e brios para as resistir. + +Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana provincia +Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que, aliás, podem ser +documentos, além de outros, o nome de _lareira_, geralmente conservado +ao lastro da chaminé, e o proprio de _lar_, com que em Traz-os-Montes se +chama a corrente de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a +fogueira. + +Já cada um inferirá que as _maias_ dos meus serranos, festejo que só á +casa se refere, coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como +quer que seja, o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de +ter, aquella origem. + +Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito +christão, ainda mais poetico, chamado das Rogações ou Ladainhas de Maio. + +Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e acompanhando em +chusma as entoadas preces da Egreja, a procissão, que lá se vai, +humilde, atravez dos campos desatados em flor. Imploram as bençãos do +Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos não devorem +a vinha ou seára; que intempéries do ar e trovejados granizos não +derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares. + + * * * * * + +O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado de dia pelos +oiteiros, de noite pelos serões. + +Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que +se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora, não sem graça), +que por ali em louvor do Baptista se exhalaram outr'ora do seio de +poetas desconhecidos. + +A medo me rendo á tentação urgente de as mostrar; que, despojadas da sua +melodia, desquitadas das vozes tão frescas e juvenís das suas cantoras, +e nuas dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e +sombras em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão parecer-se +comsigo mesmas. + +Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja differença na +substancia, vai tanto, como de uma formosa donzella podéra differir o +seu cadaver. + +Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que no fundo da alma se me +estão ainda cantando, por entre simulacros de figueiras, que entretecem +sobreceo verde á fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, +não as contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil +maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com que umas rusticasinhas +de roca á cinta tratam o Santo Precursor. São amores velhos; não ha que +lhes dizer. + + +--¿San-João das barbas doiradas, +onde foste ter as orvalhadas? +--Fui as ter áquellas hortas, +recordar aquellas cachopas. + +Recordae, recordae, perguiçosas, +que da fonte já veem as formosas, +com as talhas cheias de cravos, +que lh'os deram os seus namorados, +com as talhas cheias de flores, +que lh'as deram os seus amores. + +San-João, rico cavalleiro, +companheiro de Nosso Senhor, +acompanhae a minha alma +quando d'este mundo fôr. + +--¿Por que tendes, San-João, +esses sapatinhos brancos? +--Para passear ás moças +domingos e dias santos. + +--¿D'onde vindes, San-João, +que assim cheirais á macella? +--Venho da serra da Estrella, +de fazer uma capella. + +--¿D'onde vindes, San-João, +pela calma sem chapeo? +--Venho beber agua fresca, +que faz calor lá no ceo. +................................... + + +Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os aferidores e malsins da +Literatura, que, se me tomam, com isto nas mãos, dão comigo do avêsso. + +Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes. Á +noite accendem fogueiras, dançam, cantam, namoram, e galhofeiam em de +redor d'ellas. + +Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao sereno, que lhes ha-de +n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu futuro, e chamuscam as +hervas e flores, que sabem de constancias e inconstancias. + +Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes virtudes e +preservativos; mas especialmente o de S. João do Monte, á conta do seu +nome bento. + +Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta colhem ramos +orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram de raio; +trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os partos, +apertando-se nas mãos. + +A agua da fonte da manhan de S. João é como a primeira que chove em +Maio: torna o carão formoso. + + * * * * * + +Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo +descoberto, não correndo o tempo de invernia. São rebordans a granel, +entre grande larada de brazido, a estoirarem e a acerejar-se, em quanto +um farto lombo de cevado rechína e fumega em vergante espeto de pau, a +pingar n'uma telha ou frigideira. + +É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos rapazitos, e pelos +visinhos menos folgados, que todos então se convidam. + +Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já então arripiada. Mas... +quanto mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e +para a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os animos dos +convivas. + +Á fé que lhes não falta por quê. O dia que apóz vem, é o dos finados; +dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos, para todos +quantos, com Fé ou sem ella, possuem um entendimento, e meditam. + +¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem mais devaneador e +recolhido, que homens acostumados a solidão, curtidos nas duras +realidades da vida, remotos do cortesão bulicio, embotador pessimo de +toda a sensibilidade! + + * * * * * + +Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a noite não +quieta. + +Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe, até se esvaecerem, +os tons afflictos, que a nenhuma de tantas poisadas deixam de dizer +algum segredo de dor, e de encommendar algum suffragio. ¡Oh! ¡se não se +elevarão elles, e bem ferventes, exhalados pela voz do sangue, pelo +amor, pela amisade, pela caridade! + +Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz +bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura se +descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis côro de +Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta, pelo meio da +povoação, a supplicar em nome dos penados de alem mundo, que para si não +podem requerer, esmola de orações, refrigerio para os ardores que lá +padecem. + +Não ha seio tão escudado, que um santo horror o não estremeça; egoismo +tão empedrenido, que sustenha as lagrimas. + +...Até que o solemne pregão transpõe e se esvai; e na calada se torna a +perceber o dobre longinquo da egreja. + +Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o +interior. + +Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que vão de aldeia em aldeia +_amentando_ as almas, arrastavam d'antes grilhões aos pés, o que ainda +augmentava o pavor do seu pregão. + +Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes quem entre nós os +soffreria? Por lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, +como exactores que são de um tributo da outra vida. + +Desde o romper d'alva não descança a egreja de absorver povo. Todos os +caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques, todas as ladeiras, todos +os valles, todos os oiteiros, o brotam e expedem á porfia. + +Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o moço em flor de annos; a +donzella; os irmãos, pequeninos e já orphãos, pela mão de sua mãe; todos +graves, cuidosos, taciturnos; todos lá por dentro orando; todos +anhelando irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali +assistirem ao incruento Sacrificio. + +Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o semi-festim da +vespera é quasi geralmente descontado pelo jejum mais rigoroso. + + * * * * * + +Emfim vem o Natal. + +Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas +christianissima (quizera eu dizer) do Christianismo, nenhures cabe tão +em cheio, nem tanto com os animos e corações se coaduna, de veras crida +e com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres. + +Víreis o Presépio de Belem, não já por caprichosas artes remedado, mas +em tão cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a +adoral o. + +Disséreis que ao soar da ave da meia-noite, desferiu vôo d'entre as +estrellas, de que se corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos +pegureiros com o pregão de «Gloria e Paz», com a nova de ser nascido o +Desejado das gentes. + +¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de toda a parte confluem +pelo escuro em demanda do Menino! + +Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso dentro +n'alma. + +O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par aberto, +é a santa Gruta. + +Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o Divino Infante. + +O adro vê dançar as rondas de camponezes á roda de um monte de arvores +accezas, ao som da gaita e do tamboril. + +Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada. + +Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as cantigas da +benta noite. Cada um d'estes córos é exclusivamente composto das +moradoras de cada margem do rio que biparte a freguesia. Vai entre ellas +a mesma rivalidade, que já descobrimos entre os homens, quando no +Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um estrepitoso +arremêdo de combate. + +É a qual dos bandos trará mais formosas quadras para entretecer com as +antigas, mais argentinas falas e melhores requebros para as gargantear. +Cuida-se ouvir musica de Seraphins; exulta o coração; e, sem vergonha, +se estão sentindo as faces humedecer-se. + +Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que se estão +vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em braços do Parocho o Menino, +a fazer colheita de beijos e louvores, de supplicas e offertas. Então é +que surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e á +porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de ordinario, a todos, +os mui primorosos artefactos de pinhões e frutos sêccos. + +¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que ali pendem ao collo de suas +mães! vão-se-lhes os olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz lindezas +tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se destinam, com os seus +olhos tão azues, a bocca tão amorosa, as faces tão coradas como as +maçans que se lhe offerecem, é já a Elle que só cubiçam; e só choram, +porque o não deixam acompanhal-o. + + * * * * * + +Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente. + +¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem a +destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé? + +É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na resposta. + + * * * * * + +Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza, nobres de +humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores de S. Mamede da +Castanheira do Vouga. + + +XX + +Que eu por lá versejasse, já a ninguem ficará sendo maravilha; antes, +sim, a podéra ser, que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas +as rasões d'isso de si mesmas se confessam. + +Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me foram totalmente +desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri possivel, que houvessemos +jámais, eu nem coisa minha, de reparecer no mundo. + +Assim, só por desabhorrimento é que poetava de longe em longe; isto é: +poetava por fóra, e no papel, que no coração e no animo estava eu comigo +a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de leve me acreditarão os +que d'isto sabem) não foi a que se escreveu, se não a que deslizou +suave, entre sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, +suspira e medita. + +Escrever só para si, não sei que ninguem escreva; é trabalho supérfluo, +e que, se dá fruto, o dá ruim, que de pêco e descorado nos desconsola. + +¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou affecto, que no trabalho +de se corporificar para sahir a lume e correr por mãos e olhos, não +perde muito do seu primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou +do seu calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja +que era seu, e que era elle mesmo em grande parte? + +Isto dos livros não são senão uns retratos mortos, umas toadas, +reflexos, e sombras, de festas que se fazem n'um interior, e de que os +passageiros, por mais que se lhes abram as janellas, e que elles +appliquem os olhos e ouvidos, só podem perceber a totalidade, e +conjecturar as circumstancias. + +O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros +de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda +para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder, +ás concepções e aos affectos. + + * * * * * + +Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que peor é) do livrinho, +está em que a maior e melhor parte dos condões e feitiços da montanha, +que ora cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis, então que eu os +tratava e d'elles vivia colmado, me não faziam os effeitos, que atravéz +dos vidros da saudade me produzem. + +Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o perdido; que já +por isso dizia Rousseau, que nunca tão bem falaria da liberdade, como +entre ferros da Bastilha. + +¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a abrolhar? é no meio do outono +a desvestir-se. ¿A do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que +tirita e se encanece de geada. + +¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros, não é paraiso, para +onde todos, todos, nos quizéramos tornar? + +¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo extremo os +camponezes, se acabassem de entender os bens que logram!» + +Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar, é +este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a instante m'o +explica. + +Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e collo +descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando +importunas obrigações me veem ripar e consumir as semanas a dia e dia, +os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto. + +Pela conversação pacifica das moitas e torrentes me definho, quando, no +mais fortuito, no mais leve, tratar com homens me aguardam sempre +desencantamentos, desconsolos, rasões para os desprezar, ou para +fugil-os. + +Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor. Aqui, pelo +contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste. + +Lá, a benevolencia é semente de benevolencia, para dar cento por um. +Aqui, é grão que sempre degenéra, ou não germina, ou brota villans +ingratidões, que envergonham até a quem as ouve. + +Lá, o folgar é franco, e as festas são festas. Aqui, o folgar é escaço e +fingido; as festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de +gladiadores, que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns +aos outros, e aos ausentes, e aos amigos, e aos finados. + +O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo mais +cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão roda; e em vez de o +esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como o Iscariotes por sua +mão, para escarmento a sevandijas e lição a paes que estão creando feras +bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de applaudil-o por medo, +apertar lhe a mão dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, +com sabel-o expulso de muitas portas. + +Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para o que Deus +os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia, para macío +agazalho nas horas do somno ou da doença, para gala candida dos altares, +e a final para curativo de feridas. + +Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao alvorecer de Maio, a +sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do seu linho, a cabo de +tão bons serviços, poderia vir ainda a converter-se em papel para a +nossa Imprensa, isto é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e +absurdo, a ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de +descredito e odios, em disseminador de todos os principios de +dissolução, já moral, e já politica?! ¡Pôr-lhe ella a sua roca para +benção! ella, a boa filha das serras, fêmea sincera e verdadeira, +coração lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe ella +encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre companheira, a que +tão santas maximas e tão formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar +á sementeira o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que +vale o mesmo. + + +XXI + +¡Que de vantagens para o ermo não são todas estas! + +E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem nascido! + +Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de espaço e tempo, e pela +contraposição, que se conhecem. ¡E eu malbaratei quasi tudo isso!... + + + ........ munera nondum + Intellecta deum!.... + + +Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão quebrantador martyrio +da experiencia, + + + ..... Oh ubi campi! + + +¡Como me não agarrára, com raizes mais fundas e tenazes que o meu cedro, +ao chão da vida facil, innocente, e obscura! ¡Como não borbotára em +hymnos o meu jubilo! ¡Como não saudára com lagrimas de gratidão a +aurora, tornando a encontral-a! ¡Que não palrára com as torrentes! ¡Que +noites desveladas sob o pavilhão estrellado e vastissimo da montanha! + +Em vez de rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar este painel +noticias de logares, e até de usos, tudo eu mesmo visitára com devoção +de peregrino; tudo revolvêra; com tudo me identificára. + +As saudades, que de lá para aqui me estão salteando, d'aqui para lá já +não atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira +sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me perdessem +logo. + + * * * * * + +--O abdicar--dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro e +hortelão de Salona--o abdicar é o começo do viver. + +¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso da fortuna o rir, o +dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na primeira hora que +empunhassem, com animo feito, uma rabiça ou um foicinho! + +¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e até imperios romanos, como +elle, quando renunciar o pouco, o quasi nada, que se tem de cidade.... +só de o cuidar, tanto namora a phantasia! + +¡Se jamais virá tempo de eu poisar em torrão meu, debaixo de sombras +minhas, a cabeça encanecida e regalada! + +Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e limas, como o +presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda, quanto o filhinho mais +pequeno atravessasse correndo de um fôlego. Mas isto em solidão bem +solidão, onde só os astros me enxergassem, só as estações me visitassem, +e da banda do mundo nada me chegasse, senão o vento, já expurgado e +esquecido de humanas vozes. + +Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio e +reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor. + +Ahi me reverdecêram o coração e mais o espirito, que me elles por cá +trazem tão lastimosamente desfloridos e murchos. + +Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol remoçador de quanto +existe. + +A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa eólia entre +jasmineiros, pendente em hombral de gruta ás virações da primavera. + +Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em tarefas ephémeras e +sem gloria, posto que não sem consciencia e diligencia, se me +desbarataram na galé da Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) +nas palhas d'essa doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do +Universo; doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis. + +Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me enguliu, com os annos +que me tomou, outros tantos da minha existencia para diante; pois em +cada tomo de periodico, sincera e honradamente redigido, se podia +escrever este epitaphio: _Aqui jaz um anno de fadiga e dois de vida +de.... Orae por elle_.[4] Vendem-se ainda primogenituras por menos que +prato de lentilhas. + +Vingára-me (¡oh! ¡se me vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda +por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes, +appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os +seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden. + + + Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in Urbem. + + + * * * * * + +--¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus gostos e +desejos?--dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que sabemos, que nunca +faltam, escoimadores _ex-officio_ do alheio. + +--Senhor meu,--lhe respondo eu já:--pois é por isso mesmo, de não +passarem de fabula os meus gostos e desejos, que se me ha-de relevar o +dar-lhes eu largas no papel. + +Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal, coroados +de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar do Empyrio +a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o tempo que n'estas palavras +gasto aproveitara-o melhor, em correr para o meu refugio, beijal-o, +replantal-o, aformosental-o. E em lá vindo o florído Maio, ride-vos de +pagão que brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor. + + * * * * * + +¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem por longe se pareça com +a de um viver remançado, em casa sem numero, nem espias, ao som da +Natureza, á lei da propria inclinação; sem ouvir horas que nos chamem, +sem encontrar com glosadores que nos aboquem no ar acções e palavras, +para nol-as tingirem de branco em preto; nem cahir nas garras de +ociosos, que vos emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma +noite de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que são +a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de abhorrimento; +seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de quem vos não +vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido, refulgente epigramma de +esmalte contra meritos e virtudes; e de noite, interrompido na +meditação, ou cortado no melhor do somno, pelo retroar de carroagens, +que em fluxo e refluxo continuo levam e trazem, sempre a correrem para +nada, pygmeus, histriões, da farça séria d'este mundo? + +Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura, +ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis mais depressa +coisa a ella parecida, do que não por estas almotaçadas metrópoles, onde +se blasona que ella tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre +são festas acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao +mesmo tempo: este, o _Te Deum_; aquelle, o _De profundis_; um, o +_Quomodo cecidit civitas plena populo_; outro, o _Cantemus Domino_; +qual, o _Miseremini mei_; qual, o _Ecce sacerdos magnus_. + +Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade, +derrubaram-n-a do seu pedestal as aguas do diluvio de Noé, quando +arrojavam cada coisa para seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o +pedestal razo, com o formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha +de ser ermo pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. +Aqui, pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo. + + * * * * * + +E quando não, mettei bem por dentro a mão na consciencia; e, deixado o +palavrório que não sôa muito senão por ser vazio (como tambor de +foliões), dizei-me, ou dizei-o a vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem +que desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, +e não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem alvoroto de +praças, e reboliço de vizinhos, pois diante de suas janellas o que só se +meneia e conversa são arvores, e por cima do seu tecto não moram senão +hervas, que mal ciciam, e só recebem de visitas passarinhos ou +borboletas? + +¿Quem mais livre? + +Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu, +sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o +cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos +convites. ¿Quem mais livre? + +Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as +occupações de todo o dia. ¿Quem mais livre? + +Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons somnos, pão, e +para conduto um apetite desenganado, entre o trabalhar, repito, canta, +ou traz o espirito a monte, a sabor de suas chyméras (que tambem as tem +como qualquer outro); e é este o mais invejavel privilegio do trabalho +corporal, sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não captivar +senão os braços; cavando, podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da +obra, estar armando doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir +com os companheiros, ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a +alegria que se esconde. + +Este _deus in nobis_, unica das divindades campestres em que se pode +crer, perguntae se não será para muitas invejas aos taciturnos enxames +que pejam escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi todos os que +remam á consciencia o seu remo na galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais +livre? + +Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o +meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço, para folgar +entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de coser ao lume +que o aquece. Não tem de ir fazer sala a ninguem; respira a peito cheio; +não ha que ciar se de mulher e filhas, que não dá a terra operas nem +bailes; filhas e mulher á roda lhe serôam, tão satisfeitas como elle. +Não se levanta ali jogo, que, por tentação ou falso pondonor, o obrigue +a pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida. Não o compellem a +ajudar com desatinos seus os alvitristas regedores do mundo em sêcco; +nem mesmo a ouvir ler, n'uma coisa mal-cheirosa chamada periodico +(especie de cogumellos da Imprensa, em que entre os não maléficos tantos +ha de sapo), o artigo famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe +levantam falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do +chylo. Quem não tem com que incite invejas, seguro está de vis +praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre? + +Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas +destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não creal-os o sitio, +nada reluz na poisada que os attráia. + +Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os pães para a tulha, o +vinho para a adega, o azeite e os frutos para a dispensa, a hortaliça +para a panellinha de barro, as filhas para o casamento, os rapazes para +lhe pagarem na velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o +Ceo, onde crêem de fé que os estão seus parentes esperando. + +¿Então, será, ou não será, este um viver dez vezes mais livre e +afortunado que o nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o +direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo, que não deixei +na matéria udo nem miudo; ¡como se miudos houvera no que são condições +de boa ventura! + +Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu +proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao coração de +alguns d'estes, que vivem na Côrte por fadario, por vezo, ou por +inercia, sempre mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou +podendo, se uma hora olhassem por si, adquirir, sem nenhuma +difficuldade, o que eu, e outros taes, tão baldadamente supplicamos á +fortuna: uma vivenda campestre, uma existencia natural, serena, commoda, +florescente, risonha para a pessoa, dadivosa e exemplar para os +visinhos, manancial de riqueza privada e publica, abonadora de bons +costumes, e de afortunada descendencia; uma existencia, em summa, que, a +de mais de retemperar corpo, animo, e coração, para se n'ella +saborearem, até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto, +quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles. + + * * * * * + +Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o +medicinalissimo _Livro da Solidão_ do Doutor Zimmermann. Aprenderiam a +perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a embellezarem-se n'ella, a serem e +a fazerem venturosos, quanto é dado havel-os n'este mundo tão instavel, +tão fugidio, tão calabreado de bens e males. + +O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra servindo; +na solidão é um homem. Na sociedade, é uma partícula irresistivelmente +arrebatada n'um redemoinho; na solidão um todo quieto. + +Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde uma vez +passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra d'ella; porque o +homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro das humanas tirannias, se +faz em algum modo semelhante á creança; readquire o que quer que seja da +sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus gostos, dos seus brincos. + +¿Quem se lembraria de pôr um barco de cortiça (ainda que de seu natural +tivesse o ousal-o) n'um tanque do Passeio publico, cercado dos fumantes +do Marrare, e dos collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas +que fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa, até só +para si, faz d'isso; e mais se encanta em o fazer, que um ricaço em +torrear palacios. + +Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no cêvo das armadilhas +que lhes andou dispondo, edifica á borda de um arroio uma azenha de dois +palmos, com seu rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear, +respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para horas. + +Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam com a familia de um +coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva, como Werther e Hugo +se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e reinos de animálculos, em +que só o mancebinho muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam +enlevar. + +¡A solidão! ¡a solidão!... provae-a, sequer, affligidos do mundo, e +pregoareis d'ella o que eu me não affoito a encarecer-vos. + + * * * * * + +Um só achaque hei-de eu impôr á boa da solidão, á gentil namorada de +Rousseau, de Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos; e vem a ser: +que, pois nos descalleja o coração, banhado nas suavidades da mãe +Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos detrai, +assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas, quando não as +podemos extirpar. No ermo ressôam mais alto os gemidos, como na calada +da noite se dão a ouvir mais claras as vozes. + +Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita colheita, +o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos enfermos, +quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo aquillo; e o coração, +que não tem para dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange +todo, e se espedaça. + +¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão pouco! ¡sería tão +festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria! ¡deixaria, por corôa +de beneficios, tão sinceros, tão duradoiros agradecimentos! + + * * * * * + +Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que d'aquellas +alturas se não percebem; mas a que menos de todas se percebêra é o +coração metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, +os seus ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia +terrestre, e ferrolham-n-a a sete chaves. Podiam ser adorados como +deuses propicios, conquistar a unica invejavel gloria, emendando os +erros da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando. + +Então sim, que haveria que se lhes invejar. + +Dôr d'alma é, na verdade, não poder homem na solidão pagar por estes, e +por si mesmo, dividas grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá +estende os braços valedores até onde lhe é dado. Onde não chega a +remediar com obras, ajuda com o bom conselho, com as recommendacões +poderosas, com as esperanças, com a presença, com a uncção da palavra +amigavel, com o deixar correr sobre a ferida o balsamico das lagrimas. +Assim, se terá sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo +trabalhos, e no seio coração. + + +XXII + +Isto presenciei eu: + +O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural +pejo me veda transladar louvores, que por lá se lêem em todos os peitos, +contava entre as primeiras de suas ditas a beneficencia, que não pára +onde se lhe exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo +Bispo Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem +ainda para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo. + +Era para ver (se elle não poséra tanto em recatal-a) a alacridade, a +sôffrega alacridade, com que ia levar aqui um pão, que se devorava como +vida que em realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos, +a reconciliação; ao ocioso, o convite para trabalho; ao orphanado, a +paciencia; ao errado, a luz para atinar com a senda, e o bordão para a +seguir; ao moribundo, o conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, +cunhada de uma banda com a effigie do coração, da outra com a da Cruz +florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se cambía; o affecto +fraternal. + +Ali, sim, que é o ser Parocho. + +¡Oh officio divinamente instituido, como te hão degenerado annos frios +de descrença e desamor! ¡Com que maravilhoso laço não cifravas o que de +mais nobre, o que de mais amavel, se abrange nas ideias da eternidade e +nas do mundo! + +O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso de +eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os mysterios, os preceitos, os +exemplos, as ameaças, os anáthemas, as absolvições, os confortos, e os +jubilos. Todos os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra +d'elle. + +Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de Fé, á nossa espera +diante da fonte da Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos +purificar. + +Arribados á edade da rasão e dos delirios, tornavamol-o a achar na +piscina da penitencia para nos restituir, com eloquencia affectiva de +Apóstolo, a foragida paz do interior. + +No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos entregavam, com +bençãos d'alma e sincera prophecia, a mão tremente da futura mãe de +nossos filhos. + +Nas calamidades publicas, era a sua voz supplice e crente, e afogada em +lagrimas, a que levava, como guia segura, o côro de todas as nossas á +presença do Senhor da Natureza. + +Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da concordancia, que +primeiro apparecia. + +Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos alçava. + +Nas tribulações, elle o nosso mais previsto conselheiro. + +Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado. + +Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e +aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças para o caminho. + +Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros medicos iam +longe, e até nossos paes e nossos filhos nos deixavam sós. Com preces +fervorosas nos acompanhava, até que a terra nos submergisse; e ainda +então nos não largava, senão para ir instaurar novas preces por nós +sobre os altares. + +Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com +quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da sua +pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e pequenos, só temido dos +maus, ainda que tambem d'esses respeitado. + +Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa, elle, que tão amenos +quadros do casamento sabia apresentar aos noivos ao recebel-os, contava +por irmãos e filhos todos os seus parochianos; tinha o seu thálamo de +oiro a aguardal-o no paraizo, região que todos os dias entrevia atravéz +das folhas do seu breviário; e, se ainda no coração lhe podia alguma +ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como esposa; em quem +se revía; que se recreava em ataviar, em enriquecer, em lhe adquirir +galas de roupas, de sedas, de joias, de flores, de perfumes; em cujas +festas se remoçava; em cujos canticos se desvanecia de misturar a sua +voz. + +No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava +tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um representante da +Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse caracter augusto e +sobrehumano. + +A hora em que elle expirava, hora de consternação e alaridos para todo +um povo, era a unica, talvez, em que pelos espiritos fuzilavam alguns +relampagos de duvidas sobre a justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO; +duvidas, que a bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus +olhos fechados, já não podia fulminar, mas que a sua presença, mal +chegavam a beijar-lhe os pés como a bemaventurado, promptamente +desvanecìa. Bem se adivinhava, ao olhal-o, que a sua morte não era mais +que somno; e bem se entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão zeloso +trabalhar, era rasão colher descanço e premio, como só lá em cima os +pode haver. + + * * * * * + +Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e prospérrimas da +Christandade. + +De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas tão raro, +que a dedo se apontam; e ainda se não hão-de crer, se não fôrem vistos +bem por miudo, e contrasteados bem de espaço. + +De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça. + +Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte sempre algum achaque +principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a febre da superstição; +está agora no frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com +elle, até que do alto lhe venha o remedio. + + * * * * * + +Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma +de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca, nem um +phantasma. + +A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra, pegou-se d'ella, +pelo contacto, primeiro á superior, depois á infima. + +Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta entra na conta. + +A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada já +quer ir convalescendo; já convalesce em muitas partes, se em nenhuma se +acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu, por isso mesmo, e por ser a +mais rude e numerosa, labora no auge da enfermidade, e ainda muito longe +(segundo todos os symptômas) de se restaurar. + +Hoje o materialismo é especialmente plebeu. + +Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo a raio e raio, e +descendo manso e manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro +desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam tudo. + +Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda noite, nem se derrama da +Imprensa, de que a mean classe é representante. + +O Poder, fingindo _proteger_, apenas _tolera_ os escassos restos da +crença. Se alguma vez lhes dá consideração, é quando se lhe antólha que +os poderá empregar, por material, para obras politicas a seu modo. + +A Literatura, ou por especulação de popularidade, ou por extravagancia +de muito joven, ou porque o seculo XVIII do «Paiz modelo» só poude +chegar cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem á +unica Religião civilisadora, tão decepada e desgeitosa se avém, que, por +entre as suas expremidas lagrimas de compuncção, se lhe está vendo +voltear por dentro dos labios o seu lembrado sorriso de septicismo. + +A sua religiosidade é um cálculo; ¡grande mal! é um cálculo +transparente; ¡mal ainda muito mais funesto! + +Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida, não é da verdade +real e absoluta que diz, mas da utilidade (ou necessidade) de que seus +ouvintes a acreditem. + +Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e +aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e ás escuras +por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro para a turba. + +Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o _Christo_» (como lhe +ella sempre chama), que a sua cabeça ennastrada de loiros não fique, +mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada de espinhos. + +¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras aleluias da Fé e da Moral, +este vaidoso e vanissimo apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo +do falso nome de Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas, +paginas desconnexas, reformadas, e adulteradas? + +Quanto entre si concordavam as inspirações dos quatro Evangelistas, +tanto discrepam uns dos outros (e não raro de si mesmos) os novos +evangelhos d'estes missionarios sem missão. Á prima-vista se averigua +que lhes fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a unidade. ¿Quem +se irá apóz taes innovadores? Ninguem. + +Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só valeriam para +acabar de destruir, se podesse ser destruida a Religião de Jesu-Christo. + +A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem a força, nem o poder da +terra tem a minima jurisdicção para alterar. + +Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um átomo de menos, sem um +átomo de mais... ou nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a +cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem estupidamente n'uma cruz +desbenzida, revirado com a cabeça para a terra, e os calcanhares contra +o Ceo. Em tal caso o indifferentismo, e até o atheismo, seria menos +descommodo e mais logico dobradamente. + + * * * * * + +Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o poderia +fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo, ¿como é que a +trata a autoridade mundana? + +Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe, protectora +desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a cabeça despojada do +diadema luminoso, diz-lhe que se apegue, para não cahir, ao sceptro que +a diante lhe caminha. ¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco +roborava os thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os seus +inimigos o ludibriem! + +A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da arvore da vida, +d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer derramal-a sobre as +multidões pelo crivo immenso da Imprensa, e ficar impune; ou o seu +castigo, se por erro lhe cahir o da Lei, orçará apenas pelo dos crimes +leves, e indifferentes ao Estado. + + * * * * * + +Não é ainda tudo. + +Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como filhos e +herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra já meio derretido, luz +do mundo já mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e +relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo os +nas temporalidades odiosas. + +Repitâmol o: não é isto culpa de ninguem, sendo de todos desaventura. É +uma calamidade providencial, que lá se encaminha para fins certamente +gloriosos, que não podemos enxergar. + +Em Religião, como em Politica, somos nós, enfatuada geração de hoje, +mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros hão-de ceifar em vindo a +quadra. + +Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em que os direitos e os +deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido nome não seja, como +pomba timida, empolgado por abutres ferozes logo ao abrir o primeiro +vôo; em que todas as causas santas e uteis se conheçam e respeitem; em +que nem a régia tribu de Judá seja, como outr'ora, apesinhada pela de +Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje, mercenária, captiva, e +escrava da de Judá. + +Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e frutear (como a vara do +Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de alimento, de forças, de +esperança, e de felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, +então os pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi +mendigos, e cuja fronte perdeu o sello da eleição, tornarão a assentar +ao-pé da arca santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas +dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas penetrem melhor +até ao velho os gemidos do mais necessitado que elle, e para que os +olhos d'elle entrevejam as estrellas. + +¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias da Egreja acrisolada pelo fogo! +Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os. + + * * * * * + +O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não acredita em +malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de recommendar aqui, uma +verdade, que a sua posição d'elles lhes não deixou talvez ainda +perceber; verdade importante para applicações, verdade a cujo +escurecimento se pode imputar já muito e muito damno: + +O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades, uma +importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e +prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição humana poderia +confrontar a sua. + +Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano é quasi um +pastor sem rebanho; não conhece as ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A +ellas, falta-lhes o tempo e a vontade para o rodearem; a elle, se para o +officio entrou com zelo e propositos magnanimos, tudo se lhe veio a +acabar com a esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez +tambem a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços se haviam sempre +de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua voz, se lograsse +vencer o estrépito circumfuso, só serviria para lhe atrahir escárneos e +motejos, ou de fanatico, ou de tartufo. + +Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e abscônditas +sobre tudo, ainda não é totalmente assim. Á entidade abstracta _Parocho_ +se conserva, no respeito e benevolencia dos subdítos, um resto da sua +antiga majestade, da sua benéfica influencia, das suas altissimas +prerogativas. + +Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas, uma especie +de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos Patriarchas, e +os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um magistrado sem +appellação para as consciencias; um censor, não em nome da Lei (como os +de Roma), porém em nome, e com delegação, e por inspiração, do Espirito +de Verdade, com quem se crê ter commercio no fundo do santuario. +Qualquer que seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como á +principal. + +Tal é, repito, a entidade _Parocho_ em abstracto. + + +XXIII + +Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se não deverão +empregar-se as mais incessantes, as mais efficazes diligencias, para que +o provimento das parochias (das rusticas ao menos) recaia sempre em +homens de cultivado e provado entendimento, de sincera e illustrada Fé, +humanos e caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel +trato. + +Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que, segundo sua qualidade, +teem de dessedentar e fertilisar, ou de esterilisar e consumir, a terra +que os rodeia. + +N'estes agros tempos de contínua revolução e peleja, ou porque tão +momentosa ponderação não occorresse, ou porque a vista, de dentro da +cidade, não traspassa os muros d'ella, ou porque conveniencias pessoaes +e ephémeras, mas urgentes, mas gravissimas, tenham feito postergar +considerações de maior utilidade, mas de effeito mais tardío; as egrejas +ruraes, como as urbanas, jazem, pelo commum, peor que ao desamparo: +entregues, não como egrejas, a homens de oração e de esmola, mas, como +torres e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do +conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando. + +¡Oh! que não sem rasão se collocou a rixosa urna dos suffragios +politicos na extranhada mansão dos serenos suffragios religiosos. A um +clero secularisado, competia um templo secularisado tambem. + + * * * * * + +E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade; é peccado, que todas +ellas peccam; ou, para falar com mais justiça, é açoite que Deus mette +na mão de cada uma, quando lhe chega a sua hora de ephémero triumpho. + +Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até ás mais +illusas, como as devemos suppôr, cordealmente empenhadas na civilisação +e no progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a revêzes +a favor de todas e contra todas, vem a ser, a final, para todas e para +cada uma, como se de feito não existira. + +O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso, nem tudo +permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas suas pelejas, a Politica +reconhecer limites, onde o Ceo e a rasão os teem marcado? + +Combatam se os adversarios; mas não se envenenem as aguas; e se a +desavença é entre consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para +aquecer o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que já +deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que ainda podem liberalisar o +mesmo a nossos netos. + +¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos do Templo? + +Se é chyméra a Religião, se Jesus não é em realidade senão «o Christo», +vão fóra tartufías, que não deshonram menos a uma nação que a um +individuo; acabe-se de uma vez com _superstições_ importunas e +dispendiosas. + +Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o sol; se o sol é ainda +agora a vida do genero humano; se a Cruz é o unico pezo que faz crescer +a quem a soffre; se na terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda +a negação expira nos labios de quem chega a ouvir como se amiudam os +anhélitos do estertor, forcejae, forcejae para restituir, ó vós que +ainda o podeis, ao santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle +conhece, ao Povo os unicos oráculos em que elle pode crer, ás miserias o +seu antigo e tão amado refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já +tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram. + +¿Não é assaz amplo o thesoiro que entre as mãos tendes de destinos +humanos? + +¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas as +magistraturas, todos os magisterios, todas as exacções, todas as +administrações, não vos dão de sobejo com que pagar ou empenhar +amisades, zelos, e serviços, sem ser mistér que o povo de Deus venha, +escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda, carregar a +pedra e a areia para o vosso arco de triumpho? + +Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada porque elles +não existem para ella. Os moradores de Sião não entôam os seus +inspirados canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de +Babylonia. Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os +seus moradores. + +A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha. +A Cidade santa restaurará as suas festas. + +Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e despedindo-os das +vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da vossa parcialidade, +qualquer que ella seja, se torne mais fraco. + +Pelo contrario: então é que a victoria, filha das bençãos da terra e do +Ceo, ha-de poisar para sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso +estandarte, porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os fortes, os que +bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a quem o Senhor +outorgará dominação, porque elles lhe hão restituido os sacrificios.» + + +XXIV + +Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso assumpto. + + * * * * * + +Logo que na legislação entrar mais _bom-senso_ que _politica_, mais +realidade que ficção, mais pensamento de semear que de ceifar, mais amor +do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da milicia sagrada +devolver-se-hão inteiramente, francamente, sem restricções mesquinhas e +nocivas, das mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros +naturaes: os Prelados. + +O Governo se gloriará de haver se desembaraçado de uma tarefa, de pouca +importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia de incerteza, e de +responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha ainda mais, de haver +facultado com a sua restituição o incremento da religiosidade; por ella +o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas; por +tudo, o da prosperidade do Estado. + +Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei, +podér escolher por si mesmo, affeiçoar de espaço, collocar por sua mão, +os vigias de cada um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem duvída de que +então os desacertos nas ponderadas escolhas hão-de ser tão raros, como +os acertos o são no actual systema, em que são as casualidades, quando +não as affeições ou os interesses, que predominam? + + * * * * * + +Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a todos), as +eleições do poder temporal teem merecido a geral approvação; teem +recahido, pelo commum, em varões de mui notoria sciencia e prudencia, +equidistantes dos dois oppostos fanatismos, concertados nos costumes, e +zelosos discretamente. + +Graças, graças ao poder temporal, que já deu o primeiro passo, passo de +gigante, para a suspirada reformação. Agora os restantes hão de +seguir-se, porque são consequencia. + +Logo que soube, e quiz, prepôr ao Episcopado varões taes, logo que +manifestou ao mundo que n'elles a todos os respeitos se fiava, +tacitamente se obrigou a lhes repôr... (estas suas usurpadas regalias, +ia eu dizer, e era um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua +cruz, este accrescimo de trabalhos e mortificações, este para uma +consciencia melindrosa martyrio das horas todas. + +Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os hombros +a tão duro redobramento de carga, se a caridade, obrigada nos do seu +officio, os não forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com exultação, +e seguir via pelas asperezas do Calvario para o Ceo. + + * * * * * + +¿E que são em verdade os Parochos, ou antes: ¿que foram os Parochos +desde os antigos seculos da sua instituição, que foram, se não uns +coadjutores dos Prelados maiores, para fazerem chegar até aos minimos e +mais obscuros recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e +os seus exemplos? + +Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um só, e quasi +sempre velho e cançado, não podiam alcançar tão longe como o seu +espirito; medicos de populosos hospitaes de almas (e de corpos tambem), +não lhes chegando as forças para estarem dia e noite a todas as +cabeceiras, contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, +estudarem todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em +todos e com todos, segundo a maravilhosa expressão do Apóstolo das +gentes; distribuiram em cada enfermaría quem os supprisse, quem os +fizesse sempre estar presentes, quem em seu nome, e segundo a sua +sciencia, receitasse e administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse +de subito acudir. + +¿Como póde portanto, quando militam as mesmas rasões que presidiram á +creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em que tudo vai +falsificado? + +Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens +inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e não ha-de ser sempre; +e cabe nos esperar que nem continuará a ser por muito tempo. + +O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o +indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os +presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres, vão ser como essas +torrinhas, que se branqueiam e se perfumam de incenso para morada de +pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão, até ao possivel auge, +em creanças innocentes e instruidas, em adultos pios e laboriosos, em +mulheres castas e amantes do seu lar e dos seus deveres, em velhos +pacientes, resignados e conselheiros, em sólo bem cultivado e bem +festivo; e o Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que +lhe virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte. + + +XXV + +Não venha agora, no processo d'esta santificação, intrometter se o +_Cardeal-diabo_ do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a +máscara é de vidro, já d'aqui lh'a havemos de quebrar nas mãos, +batendo-lhe em cheio com tres nomes todos presados: França, Italia, +Inglaterra. + + * * * * * + +¿Que nação mais ciosa das suas immunidades, que a franceza? ¿Que nação +menos para consentir á Egreja o que de jus estricto lhe não compita? + +Nenhuma. + +Ora em França, bem sabemos todos que são unicamente os Prelados os que +formam o seu Clero. Educam-n-o longamente. Instruem-n o copiosamente, +por livros não escolhidos (como entre nós) pela Autoridade civil, ainda +que (de si se entende) sujeitos á sua inspecção. Acostumam n-o ás +praticas do seu não facil ministerio. Estudam, provam, e contraprovam, a +aptidão e especial préstimo de cada um. Aproveitam só os que n'esse +crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram; e outra vez os escolhem á +mão, para os irem repartindo pelas Parochias do modo que mais +aproveitem; pois de ver está, que, differindo em indole e circumstancias +as povoações como os individuos, tal individuo, que em tal povoação +quadrará á justa, a afortunará afortunando-se; n'outra, que menos lhe +molde, valerá menos, trabalhando e padecendo mais. + + * * * * * + +O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor; porque, se lá os +Bispos são independentes, como em França, para o provimento de suas +egrejas, não é porque em mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o +Sceptro é Bago juntamente. + + * * * * * + +Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por ultimo a Gran +Bretanha. + +Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida se não +tolerada, não acarinhada se não temida pelo seu progressivo, cada vez +mais rapido, mais assombroso, engrandecimento, gosa se, não obstante, +por longa e pacifica posse, d'este seu não _privilegio_, se não +_direito_ essencial; e os seus Bispos são pelo menos tão independentes +no tocante á cura de almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas +os proprios Bispos protestantes. + + +XXVI + +Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo a +regeneração do Clero pelos seus principes (unicos legitimos em tudo que +ao seu ministerio se refere) cabe esperar que a optima parte das nossas +populações ruraes se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que +a minha gente de S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida até +por cortesãos, quando sahirem a folgar no campo algum estio. + +Para então é que este livrinho, semelhante aos frutos que amadurecem em +casa e ás escuras, ha-de ter para mais alguem o sabor que eu já lhe +tomo. + + * * * * * + +Se elle consegue, para além das raias da minha expectação, fazer com que +um só captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou que um unico +solitário aprenda a conhecer alguma parte da sua encoberta +bemaventurança, já não trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos +maiores triumphos literarios. + + +FIM DO PROLOGO + + + + + +Notas de Castilho a este Preambulo + + +NOTA I + +Fontes de estudo + + +Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela mente que +houvesse algum dia de bosquejar esta humilde Odyssêa dos sitios e gente +d'ella, nada trouxe apontado a tal respeito. Revolvendo as minhas +memorias não escritas, achei n'ellas consideraveis lacunas, mormente no +tocante á topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. +N'esta pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S. +Mamede da Castanheira, o Rev.^{do} Padre Antonio Jozé Rodrigues de +Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos imperfeito o meu +painel, em que faltará tudo, á excepção de verdade nas coisas, e nos +retratos parecença. + + +NOTA II + +Parochos + +Na generalidade que estabeleço, por muito convencido, caberá fazer +algumas gloriosas excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho, n'esta +freguesia de Santa Isabel[5], o Rev.^{do} Padre Jozé Jacintho Tavares, é +varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de sãos costumes, +sobredoirados de indole sociavel e amena, e incançavel na caridade. As +reparações e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que +elle serve, nada são comparados com os soccorros de pão, de letras, e de +instrucção christan e civil, que já começam a disfrutar os indigentes da +sua freguesia. Largos são ainda os seus projectos; ajude-o a +Providencia; deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade +filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá transformado, +pela educação, creancinhas ainda hontem desamparadas, e a pique de +perdimento. Não quiz perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o +clamor da gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto. + + +FIM DO PRIMEIRO VOLUME + + + + +Notas: + +[1] O Doutor de capello José Feliciano de Castilho Barreto falleceu na +Castanheira do Vouga a 6 de Março de 1827, e foi enterrado na capella +mór da egreja parochial. Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os +seus restos mortaes para o jasigo da sua familia no cemiterio dos +Praseres em Lisboa, onde se conservam. + + Os Editores + +[2] Existe ainda este cedro que tem alcançado descommunal corpulencia. +Chamam-lhe por lá _o cedro do poeta_, ou _do Castilho_. + + Os Editores. + +[3] Ovidio--_Os Fastos_--Liv. VI. + +[4] Allusão aos amargores da redacção da _Revista Universal Lisbonense_, +minuciosamente narrados _nas Memorias de Castilho_. + + Os Editores. + +[5] Castilho morava então na rua de S. Marçal. + + Os Editores. + + + + + + + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL + +Sociedade editora + +Livraria Moderna + +95--RUA AUGUSTA--LISBOA + + + + +Obras completas de A. F. de Castilho + +XX + +O Presbyterio da Montanha + +VOLUME II + +[Figura] + + +LISBOA +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL +95, Rua Augusta, 95 +1905 + + +OBRAS COMPLETAS + +DE + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO + +VOLUME 20.^o + + + + +VOLUMES PUBLICADOS: + + +I--Amor e melancolia. +II--A chave do enigma. +III--Cartas de Ecco e Narciso. +IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.) +V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.) +VI--A primavera (1.^o vol.) +VII--A primavera (2.^o vol.) +VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas. +IX--Vivos e mortos (2.^o vol.) +X--Vivos e mortos (3.^o vol.) +XI--Vivos e mortos (4.^o vol.) +XII--Vivos e mortos (5.^o vol.) +XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.) +XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.) +XV--Vivos e mortos (8.^o vol.) +XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.) +XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.) +XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.) +XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.) +XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.) + + +NO PRÉLO: + + +XXI--O Outono. + + + + + +OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos + +XX + +O PRESBYTERIO DA MONTANHA + +VOLUME II + +[Figura] + +LISBOA + +Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_ + + +LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA +Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47 + + +1905 + + + + +I + +A PRIMEIRA NOITE NA SERRA + + + + ... Ibi haec incondita solus montibus et silvis studio jactabat + inani. + + +¿Vélo? ¿Sonho? ¿Deliro?! ¿Em solitario monte, +que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte +nada avistou jamais, no amplissimo horizonte, +de mundo a tumultuar, de cidades a rir... + n'este ermo ignaro, frio, mudo... +aqui... (¿deliro? ¿ou sonho?) aqui meu lar, meu tudo! + ¡o meu presente e o meu porvir! + + Genio invisivel da montanha, + de astros, de sol, o ceo te banha; + o mar de longe te acompanha + no livre cantico sem fim. +Escada de Jacob da terra ao firmamento, + a mansão tua é monumento +da potencia, do amor, das glorias d'Eloïm. + +Emquanto, em derredor do solio teu sublime, +a baixa terra vil que a instavel sorte opprime, +se volve, se transforma, e sua angustia exprime +n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor, + a variedades sobranceiro +mantens-te qual surgiste, e do cahos primeiro, + e do diluvio assolador. + + Silencio e paz comtigo habita; + o ermo é como o eremita; + loucas vaidades não cogita; + ama o seu rustico trajar; +em apparente inercia ama que ferva occulto + de seus affectos o tumulto, +seus extasis, seus ais, seus gostos, seu orar. + +Sim, Genio da montanha, Archanjo de poesia: +eu creio em ti; eu creio em que alma ingenua, pia, +póde ouvir de tua harpa a casta melodia, +e abrazar-se de amor e endoidecer por ti; + sim; mas eu, frivolo, profano, +á solidão extranho, affeito ao mundo insano, + ¿que hei-de esperar? ¿que tenho aqui? + + Toda a minh'alma se entristece, + e se confrange, e se ennoitece, + ao ver que a sorte lhe destece + de um sopro os aureos sonhos seus. +Sonhava applausos, gloria... ¡em desterro desperto! + sonhava mundo... ¡acho um deserto! +sonhava inda illusões... ¡e escuto-lhes o adeus! + +Náufrago, perco a lyra em meio da viagem. +¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal paragem, +quem me resurgirá? Dos montes a linguagem... +oiço... escuto... medito... e em vão quero entender + é como uns sons de ignota fala; +qual ás penhas o mar, me inunda e me resvala, + sem me abalar, nem me embeber. + + ¡Oh! ¿á minh'alma taciturna + que importa, ó montanha soturna, + que de perfumes sejas urna + da terra erguida sobre o altar? +¿que o ceo te ria azul, mais amplo e mais de perto, + que o sol doirado, ao teu deserto +mais cedo suba, e á tarde o desça com pesar? + +Vir mais tardia a noite, a aurora vir mais cedo, +¿que me aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo, +só ouvindo os tufões e os corvos no arvoredo, +bramirei:--«¡Cresce o tempo! ¡oh! ¡supplicio cruel! + ¡são mais pesares, mais saudades, +mais estro a arder em vão, mais visões de cidades, + mais tentações a dar-me fel!...» + + ¡Ai! ¡mundo! ¡ai! ¡eccos seductores! + ¡Tanto vate a ceifar louvores!... + ¡Tanto moço a colher amores!... + ¡Tantos loireiros e rosaes!... +E eu n'esta solidão a torcer-me arraigado, + qual roble que geme indignado, +vendo ao longe no Oceano os lenhos triumphaes! + +Assim ruge, baldão de vingativo nume, +esse que a argilla outr'ora encheu de ethereo lume; +assim, nos gelos sua, agrilhoado ao cume +do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz. + Só o abutre de eterna fome, +que o grande coração algoz sem fim lhe come, + responde em ais á sua voz. + + Fenece o dia. ¡Hora jocunda, + que eu tanto amava! ¡hora fecunda + dos cantos meus! ¿por que me inunda + nova amargura o coração? +¿Sino crepuscular, tôas funéreo dobre? + a serra em luto se me encobre; +a nocturna mudez duplica a solidão. + +Nenhuma luz scintilla; humana voz não sôa. +De estrellas a accender-se o Empyrio se povôa; +tal a fada Coimbra, a senhoril Lisboa, +nest'hora a quem as olha, entram no escuro a abrir + de luzeiros um labyrinto. +¡Ceos! ¡Não oiço eu troar... seus coches!... O que sinto + é vento em selvas a rugir. + + Calae, fugi, ventos agrestes; + sumi-vos, lampadas celestes; + n'um seio a delirios já prestes + não susciteis mais tentações. +Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; ou antes... + vós, astros, cifras de diamantes, +o arcano me aclarae lá d'essas regiões. + +¡Oh! ¡se á minha razão, contradictoria, altiva, +que ás trevas sente horror, e á clara Fé se esquiva, +de vós, faroes do Ceo, baixasse a crença viva, +que aos moradores do ermo inspira a vossa luz!... + ¡se me volvesseis as ditosas +esp'ranças que hei perdido, alvas, ethereas rosas, + com que se enfeita e esconde a Cruz!... + + Tornar-se-me-hiam de improviso + a solidão, em paraizo; + a magua, em perenne sorriso; + em alto cantico, a mudez; +a mallograda lyra, o não colhido loiro, + em harpa augusta, em palmas d'oiro; +e o monte, solio então, veria o mundo aos pés. + +Delirios sempre vãos, fugi de um peito enfermo; +tu, só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr termo; +ermo para ambições, é inferno, e não ermo; +para a humilde piedade é que elle espelha o Ceo. + Gentis phantasmas de cidades, +vinde, escondei-me o ermo em vossas claridades, + como um esquife em aureo veo. + + ¡Vinde, cercae-me, endoidecei-me, + (embora em saudades me eu queime)! + O somno, as vigilias enchei-me + da vossa esplendida vizão. +¿Val o riso choroso as festas da loucura? + vinde, guiae-me á sepultura, +crente no amor, na gloria, e rindo á solidão. + +¡Eu blasphemo, eu desvairo! Aos encontrados votos, +nem ecco respondeu n'estes covões ignotos. +Não, cumes glaciaes, tão outros, tão remotos +dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer; + não, no silvestre seio vosso, +nem de amenas ficções apascentar-me posso, + nem menos as posso esquecer. + + ¡Valor! ¡valor! ¿Quem do futuro + sondou jamais o abysmo escuro? + ¡Apenas chego e já murmuro! + ¿O de que tremo acaso sei? +Esperemos: talvez que inglorios, mas doirados, + aqui me aguardem, recatados, +dias de estro e de paz, quaes nunca disfrutei. + +Se além, no presbyterio, humillima choupana, +(Vaticano, e Queluz da pobre grei serrana) +mais que fraterno amor sollícito se afana +em me afôfar o ninho, a vida em me inflorar; + se n'um retiro verde e mudo, +por elle tenho o leito, a mesa, o doce estudo, + sombras no estio, o inverno ao lar; + + se a solidão que me apavora, + sómente o fôr vista de fóra; + se em seus recôncavos demora + gente feliz, povo de irmãos; +se do antigo viver, das crenças de outra edade, + vestigios guarda a soledade; +se poesia se vive entre estes aldeãos; + +se a alegria, serena, isenta de pesares, +como a fresca saude, habita os puros ares; +se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e mares, +se Deus em toda a parte á Natureza ri... + coração meu, não desanimes, +gozos que não prevês, e cantos mais sublimes, + encontrarás talvez aqui. + + ¡Ah! sendo assim, ¡que importa a fama! + Tambem philoméla derrama + sua harmonia ás selvas que ama + longe de ouvintes e do sol. +Cantarei. ¿Meu cantar mais ambições teria + que a viva, a lustrosa poesia, +de perolas que a flux borbóta o rouxinol? + + + + Castanheira do Vouga + + Outubro de 1826. + + + + + +II + +O SEPULCRO OU HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO (POEMA) + + +INTRODUCÇÃO + +(QUE É MELHOR DORMIR, QUE LER) + + + (Ermo alpestre entre cabeços de rocha e pinheiros, na serra do + Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um arrieiro, ambos a + cavallo, transviados na montanha.) + + + +I + + +--Bem lh'o disse eu, perdemos o caminho; +a velha era por força alguma bruxa. +Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a touca! +--Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?) +tres vezes t'o ensinou. + --Nem trinta vezes +que eu passasse por elle, o aprenderia; +a não ser pelo rasto que deixasse +esmurrando o nariz por essas lapas. +Já levo sem ferrage ambas as mulas; +perdeu-se o norte; não descubro casa, +nem gente, nem caminho, e é quasi noite. +Patrão, por meia legua mais ou menos, +não se deixa uma estrada como aquella, +que costeava o monte á beira da agua. +A velha era uma bruxa, e nós dois asnos. +--Dize um que vale dois, mas dois não digas. +Se tomámos o atalho em vez da estrada, +toda a culpa foi tua; eu não queria, +porem teimaste; e eu não me opponho a teimas. +--Mas eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita, +com ar de santa, e palavrinhas manças, +nos rabiscou co'o pau no pó da estrada +tão claramente as idas, as venidas +d'esta serra sem fim, não lhe escapando +lomba, moiteira, torcicólo ou brenha, +que a mula mesma entenderia o mappa! +¿Quem não cahia em tal? cahiam todos. +E de mais ¿quem nos diz que aquelles riscos +não tinham diabrura ou nigromancia +capazes de encarchar um Santo em carne? +¿E quem me diz a mim que a grenha russa +não vai ao pé de nós? ¡talvez sentada +na anca da mula!... ¡_fúgite_, demonios! + Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa; +quem mais anda, mais sabe; e eu não sou tolo, +nem creancinha de honte. ¡Olha o diabo! +bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto; +caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a parta! +¿que havemos de fazer nestas alturas? +--Tornarmos para traz. + --¿Por este escuro? +¿quer dar cabo das mulas, e estoirar-me? +¡co'um milhão de diabos!!... + --Pois fiquemos. +--E as mulas comam terra, como os sapos, +e nós carqueja. + --As noites são bem curtas. +--Se ao menos se avistasse alguma venda... +--Em rompendo a manhan teremos tudo. +Por agora apeemo-nos. + +(_Apeiam-se._) + + * * * * * + + --No inferno +estoire entre um milhão de Satanazes +o que inventou primeiro andar de noite; +era o maior ladrão... ¿Que bulha é essa? +--Não é nada; uma pedra que rebola. +--¡Que rebola!? ¡e sem mão! será bonito, +mas nem por isso engraço. ¿E aquelle bruto +lá em cima no pinhal, que guincha tanto! +--Algum mocho. + --Más balas o atravessem, +e lhe acabem co'a casta antes de um'hora; +cuidei que era outra coisa. Eu na taverna +valho por cinco ou seis; mas cá perdido, +e então de noite, um pisco me põe medo. +--Pois dorme. + --¿O quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás barbas! +só se eu fôsse algum bêbado. Esta noite +nem pregar olho, nem largar das unhas +dois penedos; e ao pé já está reforço. +--Golgan, já que não foi por nossa escolha, +busquemos contentar-nos co'a poisada, +que inda não é tão má como o parece. +¡Quantos ha menos bem acomodados +por esse mundo agora! uns em cadeias, +outros entre ladrões, náufragos outros, +estes em luto, aquelles em doença. +Bastantes em colxões de plumas fôfas +revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro, +cuidados tristes, asperos remorsos. +¡Quantos até nas salas mais alegres, +entre as luzes, e as muzicas, e as danças, +mas em face de um sôffrego banqueiro, +padecem mais que um reo chegando á fôrca +Não ha mal sem peor; qualquer estado +se se compara, é bom; com cara alegre +suavisam-se os incommodos; um fardo +n'um hombro impaciente é fardo e meio. +Quem não soffre um descommodo pequeno +nos grandes morre; um leve desagrado +dá realce ao prazer quando nos volta. +Qualquer estado, e pessimo que seja, +tem seu lado risonho; e é da prudencia +d'entre os picos da silva achar a amora. +_Amen_.--Brava o latim; dá ceia e cama. +--A falta d'esta ceia é novo adubo +do almoço de amanhan; e emquanto á cama, +¿que outra melhor do que esta em mez de Junho? +Nem paredes nem tectos, que nos roubem +a viração da noite apoz a calma; +por entre essa quebrada dos penhascos +lá em baixo o mar co'os seus murmurios frescos; +sobre nós, e por baixo das estrellas, +pendendo como um lustre, este carvalho +cravejado de insectos que entre-luzem; +dois rouxinoes ao longe; as lageas, mornas. +Vê; que soberba camara!; que leitos +desde a origem dos seculos nos guarda +no seio d'esta brenha a Natureza! +--Ao menos não tem pulgas. ¡Xó, canalha! +¡leva rumor! é bom pregar de coices. +Não durma, Sôr Doutor. + --Não tarda muito +que eu não entre a sonhar ¡Que bellos sonhos +não devem ser os de uma noite d'estas! +--Tenha lá mão com isso; o que eu prometto, +para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada +de casos que eu passei na minha vida; +tão rara, que podia ir á _Gazeta_! + + + * * * * * + + +Uma vez ia eu só; era em Novembro; +chuviscava e fazia um tal escuro +que era metter os dedos pelos olhos. +(Lembrou-me esta a proposito da mula +escoicinhar sem causa.) E era bom tempo +aquelle; andava Christo pelo mundo; +tinha eu mais duros, que patacos hoje, +e andava o oiro aos pontapés da gente; +tambem... ¡já cá não torna! O grande caso +é que n'aquelle tempo era eu solteiro, +e rapaz bonitote; e havia muitas +que me fizessem fogo; eu cuido, e é certo, +que não pelos vintens; nem pela cara; +mas isto de casar co'um almocreve, +seja elle o diabo dos infernos, +parece a todas bem: é uma delicia +ter o seu homem só de vez em quando, +em logar do espião de um pegamaço +com residencia fixa em ar de abbade. +Mas... não é bom falar na vida alheia. + + + * * * * * + + +Como lhe ia contando, era almocreve; +chamavam-me o _Chupista_. ¡Oh! que bolaxa +que eu pespeguei na cara do coécas +que me inventou a alcunha em certa venda! +qualquer creança lhe moia os queixos; +já lá está onde o pague ¿Onde ia o ponto? +¡ah! sim; era almocreve e recoveiro; +e andava com dez machos todo o anno +a correr quanto valle e monte havia +para cobrar o fôro aos Frades Cruzios. +Que isto do fôro é bom, nem que pareça; +uns pagam-lhe borel, outros centeio, +queijos, presuntos, lan, cevada, vinho, +gallinhame por arte do diabo, +ovos, e até o musgo onde se empalham.[1] +Não ha n'um pardieiro um desgraçado +que não deva pagar alguma nica. +Já vê donde me vinha a minha alcunha; +mas sem rasão; é porque andava ás ordens. +Tambem já tenho ouvido alguns autores, +tal como o meu cunhado, e mais uns certos, +que é coisa bem mal feita a tal derriça; +Mas bem feito ou mal feito, eu não sou Papa. +Vamos cá co'o meu conto. + + + * * * * * + + + Era uma noite, +cuido que já lh'o disse, ali por Maio, +e fazia um luar... que era um consolo. + + Eu saio a meu avô; se é boa a estrada, +gósto de andar de noite havendo lua; +cá pelas brenhas não, que não sou lobo. +Vinha eu mui fresco em mangas de camisa, +em cima de uma carga de presuntos, +pela estrada real, co'os sete machos +a dormitar ao som da chocalhada. +Vinhamos caminhando em certo passo +de quem gosta da noite, ou vem sem pressa, +ou de quem traz comida a gente farta. + + + * * * * * + + +Que lhe digo, em abono da verdade, +que servir Santa-Cruz não dá desgosto: +pagam bem, fazem festa ao gallinheiro, +vendo os machos no pateo é uma alegria!... +¡aquillo até os olhos se lhes riem! +dão pinga, e de cear, e muitas vezes +vi eu estar vai não vai a dar-me um beijo +o Frade gordo que recebe o saque. +¡Bom tempo! ¡bom de lei! já cá não torna. +Não durma Sôr Doutor. + --Não durmo; acaba. +--¡Acabar! não acabo em toda a noite, +nem que estoire a barriga do diabo. +Inda eu não comecei. Lembra-me um Frade +que havia em Santarem; tinha um cachaço,... +por tal signal que até revia enxundia; +¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!... +¡Mas aquillo! a prégar era uma joia; +um sermãosinho d'elle atarantava +e punha tudo azul. Tinha a constancia +de arrumar prègações de duas horas. +N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito... +(e olhe, foi tanto, que eu, e muita gente, +já tinhamos dormido á regalada) +disse muito pausado: «Eu principio.» + + Assim faço eu tambem. Todos devemos +tirar das prègações algum proveito. +Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia; +porém tenha lá mão, que a levo errada. + + + * * * * * + + +Nesse dia á tardinha, na estalage +tinha entrado uma velha; era um diabo, +que isso... só visto! pequenina, magra, +muito preta; era um bilro de pau santo. +Tinha pela cabeça um lenço pardo +atado pela barba, um manteo ruço, +e uma mantinha exotica e de agoiro. +Tinha então uma cara não sei como; +nem parecia cara; era um nó cego +que fazia azoar a toda a gente; +mas muito experta; e uns olhos como um bixo. +¡Tambem aquella rez tinha no corpo +muita pipa de sangue de creanças! + + + * * * * * + + +Cheguei eu á estalage, e ia com fome; +vou-me á carga do fôro, agarro uns ovos, +mando os frigir com mel, que é papa fina; +e então para quem tem de andar de noite +dizem que é bom, que livra do catarro, +já se sabe com quatro pingarolas. +Ia se preparando o meu guizado, +e era um cheiro tão bom pela cosinha, +que isso não ha dizer. Já dois gallegos, +e mais, tinham ceado; andavam tolos +a cochichar, e ás voltas pela casa, +um olho em mim, outro olho na tigella, +e eu muito concho a rir, e a pescar tudo. +Basta dizer que me pediram ambos +que vendesse um quinhão; ¡e isto em gallegos! + + + * * * * * + + + Emfim, cheirava bem, e estava d'alma. +Mas o monstro da velha era uma estaca +ali muito direita ao pé dos ovos, +com cada olho aberto, ¡que te parto! +Era mesmo um olhar de inveja e zanga. +Logo eu tive má fé co'a tal menina +quando ella perguntou quem era o dono. +Porém quem mal não usa mal não cuida; +sentei-me á meza a codear nos ovos. +Ora agora o vereis: a minha amiga +amúa-se n'um canto, mais vermelha +que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella. +Ferra os olhos em mim com tal quezilia, +que a não ser por temer a Deus e a ella, +batia-lhe co'o prato pelas trombas. +Botava cada lagrima... ¡de punho! +dava cada suspiro, a excommungada, +¡que punha medo! accendo o meu cigarro, +pago, monto a cavallo, e sigo a estrada. + + Era já noite escura, e um vento frio +como o gran Satanaz. + + + * * * * * + + + ¿Que diabo é isso? +ressona?; ou já na costa anda algum moiro? +--Avante; são as ramas que sussurram. +--Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando +pela estrada real por ser já tarde, +e a assobiar sósinho o _tiroliro_. +Vai senão quando, estacam-se-me as bestas. +Á esquerda, como ahi, ficava um monte; +d'esta banda um pinhal muito fechado; +de sorte que o caminho (e então mui longe +de todo o povoado) era um soturno, +que nem Roldão o andava áquellas horas. +Entrei logo a suar e a arripiar-me; +e as mulas n'um inferno de pinotes +sem quê nem para quê; davam taes rinchos, +que se fundia o chão; pregavam coices, +que assoviavam no ar; ¡que contradança! +era uma groza de diabos doidos, +e eu mais doido, no meio, á bordoada.[2] +Aqui digo eu como dizia o Frade +n'outro sermão de um Santo; _não lh'o pinto +por não ter um pincel_. Mas faça ideia +que tal eu ficaria lobrigando +(¡eu te arrenego diabo!) uma luzerna +a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo, +lá longe no pinhal. Que era bruxedo +tive eu logo de fé; muitos que m'o ouvem +riem-se, e tal; deixal-os rir; ha bruxas; +que isso sei eu; ¡e então ali! ¡tão tarde! +Por força era algum sabbado lá d'ellas, +que as taes amigas juntam-se de noite +a fazer os seus sabbados, o mesmo +como nós no Natal á meia noite... +Ha muita comezana de creanças, +sarrabulhos de sangue, cambalhotas, +e umas rizadas..... que até Deus se admira. +No meio anda um pretinho muito gordo, +que é o proprio diabo em carne e osso. +Diz então muita coisa a todas ellas, +dá-lhe lá seus conselhos, toma contas +do que teem feito, e..... acaba a tal comedia. +Untam-se co'uma untura que lá sabem, +transformam-se em corujas e mosquitos, +o diabo e o lume sorvem-se na terra +dizendo boa noite até tal dia, +e ellas voltam-se a casa a armar já outras. +Isto sabia-o eu como os meus dedos. +Lembrou-me a tal gulosa da estalage, +e então é que dei tudo por perdido. +Deitei fóra o cigarro, e entro em voz baixa +(¡sempre isto do pavor faz muita asneira!) +entrei eu co'as mãos postas para as mulas +a pedir-lhes co'as lagrimas nos olhos, +pelas Almas Bemditas, que deixassem +todo aquelle motim, que me perdiam; +que fugissem d'ali, que andavam bruxas, +e que pé ante pé viessem vindo; +que eu promettia uma ração dobrada. +Partimos. De repente desembésta +d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto +direito para nós como uma xára. +Com seis milhões de grozas de diabos! +¿quem havia de ser, senão a velha? +Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte, +chega ao cimo, e de lá muito sizuda +entra a dizer-me adeus, e (¡t'arrenego!) +a fazer-me uma cara dos infernos... +--¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro? +--Certo é que lembrou bem; tambem agora +lá me faz confusão ter visto a cara. +¿Escuro? isso era escuro como um prego; +não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e vi-lh'a; +¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje +tão bem encasquetada no juizo, +que a podia pintar, e era pintura, +que urrariam os bois se lh'a mostrassem. +Quer escuro quer não, vi-a, e está dito. + + + * * * * * + + +Mas o bom não foi isso; o mais bonito +foi entrar de repente o gallinhaço +nas canastras da carga em cantarolas, +a romper, a fugir, e eu pila pila +para aqui, para ali, correndo ás cegas +sem as poder juntar. Foi se-me a noite +n'esta labutação; de cada canto +sentia um cacarejo, ia ás carreiras, +gallinha... por um oculo. Já rouco, +moido e desesp'rado, ao romper d'alva +vejo as minhas senhoras mui contentes +todas juntas n'um bando ao pé das mulas. + + + * * * * * + + +Mas alto; esta é peor. ¿Não vê? repare: +¡um clarão para ali!! d'esta nos trincam; +¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a morte!! +--Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta? +--Para nós ambos de Fieis defuntos. +--De San João. + --¡Ah! sim; pois é fogueira, +e não é outra coisa. ¡Ora o diabo! +sempre tive uma colica soffrível. +Mas vamos nós a andar, se lhe parece. +Dizia um Padre Mestre ali do Algarve, +n'umas rasões que teve com meu tio, +que era barbeiro então, e o Padre Mestre +era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio, +ia fazer-lhe a barba e mais ao preto, +que era um tição que só á bofetada; +¡mas muito presumido! ¡e então por moças +dava o grande magano um cavaquinho!!... +Com que emfim, tinha o Padre este ditado: +aonde ha lume ha fumo; e eu então digo +que por força onde ha lume ha-de haver gente; +e que onde ha gente ha casa; e toda a casa +tem a sua cosinha, e então ceâmos. +E é partir de repente em quanto ha lume. +......................................... +......................................... + + + +II + + +Eis aqui um dialogo de ensanchas +sem geito, sem sabor, sem fim, sem nexo-- +grita o leitor perdendo as estribeiras. +¿Onde foi isto? ¿ou quando? ¿quem são elles? +¿onde vão? ¿d'onde veem? + + + * * * * * + + + Leitor amigo, +ha duas horas que soubéras tudo, +se o cruel arrieiro o permittisse; +mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas. +Quanto a elle, presumo que o conheces; +o nome do outro autor dir-t'o-hei n'um verso +não peor que outros muitos portuguezes: +Antonio Feliciano de Castilho. +Venho do Minho de assistir a bodas; +recolho me outra vez á Castanheira[3] +a casa do Prior, a fazer versos, +beber-lhe o vinho verde, e dormir muito. +O theatro da scena é certo monte +de que me esquece o nome; o anno, e o dia, +Mil oitocentos e vinte e oito, á noite, +vespera de S. João. Se mais desejas, +é perguntar, que eu te respondo a tudo. + + + * * * * * + + +Mas o melhor (se queres um conselho) +é fazer-me um favor, ao qual protesto +ser toda a vida grato: anda comnosco; +a noite está bellissima; podemos +ir co'o nosso vagar pataratando, +e conduzindo as mulas pela redea. +Mas tens medo ao Golgan; pois boas noites; +fica-te em paz, regala te, que eu juro +que estando em teu logar fazia o mesmo. +Se queres, faze ás paginas seguintes +onde vai mais Golgan (porque já agora +hei-de contar a historia por miudo) +faze, digo, a taes paginas o mesmo +que eu, tu, e elle, e nós, e vós, e elles, +fazemos ás dos _Martyres_ do Padre, +que são apezar d'isso uma obra prima. +Passa-as em claro, e dize que já leste. +Quem fala assim não quer suor alheio. +E adeus; até mais ver que vou com pressa. +......................................... +......................................... + + + +III + + +--Olhe lá, Sôr Doutor; diz um livrito, +que a gente sem falar é como os burros; +e eu digo que diz bem. Quero contar-lhe, +para ver se se encurta este caminho, +o mais que se passou depois da historia. +Mas vá picando a mula; ¡olhe a fogueira! + + + * * * * * + + +Com que, como eu já disse, ao outro dia +vi as gallinhas ao redor das bestas; +torno-as a pôr na carga, e digo logo: +A Santa-Cruz não vão vocês de certo; +nem vocês, nem a carga dos presuntos, +nem nada que aqui vai, ¡com trinta infernos! +Servos de Deus tão bons, tão meus amigos, +¡haviam comer tal! ¡metter no corpo +talvez quanto bruxedo ha neste mundo! +Deus me livre do mais, que de encarrêgos +posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas +direito á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos, +com carga e tudo. + --¿As mulas! + --Pois as mulas +tinham tantos diabos na muchilla +como as gallinhas, os boreis, e os ovos. +Mas eu era rapaz; se fosse agora, +não digo que o fizesse. O divertido +foi andar eu trez annos para quatro +a correr Portugal e Hespanha toda +a buscar confessor; ¡tudo ignorante! +Padre douto, nem um que me absolvesse. +Por fim achei o filho de um cigano, +dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo. +Mas então penitencia não falemos; +se a quizesse rezar, ¡nem toda a vida! +Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro duro, +e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella; +mas disse-me que havia até ser velho +mortificar o corpo co'um vergalho, +e com muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato! +Sabe então o que fiz inda algum tempo? +era correr de chôto os meus pedaços, +e depois descançar. + + + * * * * * + + + Deixemos isto, +que não lhe importa muito, e a mim nem nada; +vim para a minha terra apenas pude, +muito pimpão, e cheio como um ovo. +Namorei, namoraram-me bastantes; +por encurtar rasões, casei com uma +que era filha do irmão de um primo ou tio +de um meu compadre Abreu, que era cunhado +da sogra d'esta mesma rapariga, +e enteado do irmão do Cura velho; +tudo gente limpinha, muito boa, +e temente ao Senhor, que é todo o caso. +Gastei para impôr Bulla os meus tanturrios, +¡e não foi lá tão pouco! ¡Veja agora: +¡para a gente casar largar dinheiro! +É como ir para a India ou para a fôrca, +e pagar inda em cima aos da sentença. +Perguntei ao Banqueiro a causa d'isto, +disse me elle que a causa era nós termos +quatro humores no corpo, e d'aqui vinha +haver os quatro grãos na parentela; +que ella era minha prima, e que entre primos +havia os quatro grãos todos inteiros. +Não se riu, nem me eu ri; paguei-lhe em peças +não só os quatro grãos que se não viam, +mas ainda mais cá certa brincadeira. + + + * * * * * + + +Deixar; fosse o que fosse; emfim, casei me. +Aquelle mez primeiro é uma delicia; +foi todo elle um _cantate_; muito amigos, +muito beijo, e comer; muita broega, +muita romage, e tudo muito e muito. +Nunca houve um par assim tão contentinho; +nanja na aldeia e na comarca em roda; +era até amizade escandalosa. +Tanto assim, que o Prior, mais era amigo +de fazer a vontade a toda a gente, +n'um dia santo á pratica da Missa +deu-me um foguete ¡caspite! Disse elle +que marido e mulher com tal namoro +era coisa mais vil que mil diabos. +Fizemos-lhe a vontade antes de muito; +ella entrou-me a azoar com trinta coisas, +e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas, +o asneirão do Juiz, que era vizinho, +tomou isto em trambolho, e ameaçou-me +de me encaixar no fundo dos infernos. + + + * * * * * + + +¿E então que lhe parece a entaladella? +Vivia em paz, ralha o Prior; dezanco-a, +vem o Juiz, promette-me a enxovia. +É como o conto de um palerma velho +que ia a pé co'um rapaz e mais um burro. +--Bem sei. + --Pois sim senhor. Com que, tivemos, +não digo bem; teve ella oito ou dez filhos; +e sempre a dois e dois; forte coelha! +Entrei a dar á bruta; acudiu povo, +ella fugiu, mas eu fugi sem ella. +E d'então para cá desandou tudo. +E hoje ando aqui por moço de arrieiro, +a perder noites, e a estrompar as ventas. +Aqui está por que eu digo que este mundo +é coisa muito celebre! uns ovitos +e uma pinga de mel fizeram tudo. +........................................ + + + * * * * * + + +¡Brava! ¿não ouve uns sinos que repicam? +¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o Vinagre! +¡e viva a ceia e a cama que estão perto! + + + +IV + + +Com effeito, assim era; a poucos passos +já se ouvia tambor, gaita de folles, +risadas, bombas. Apressando as mulas +na direcção dos sons e da fogueira, +descemos uma encosta, a cujas abas, +entre uns poucos de antigos castanheiros, +uns cinco ou seis pastores se occupavam +a abobadar de murta uma fontinha. +Interromperam logo o seu trabalho +para nos vir saudar; mostraram pena +de ouvir que nos perdêramos no monte, +off'recendo á porfia os seus albergues. +Não findara a benevola contenda, +se um d'elles agarrando o freio á mula +me não posesse a andar; agradecendo +os desejos dos mais que inda ficavam, +segui affoitamente o nosso guia. + + + * * * * * + + +Uma ponte de pau que atravessámos +coberta de chorões, nos poz á borda +de um trigo já maduro e sussurrante, +contiguo ao seu casal. ¡Quanto eu folgara +de descrever tudo isto! Uma casinha +plantada ahi como risonha ilhota +n'um vasto mar de tremulas searas, +e clara como a neve, ou como a lua +que a espreitava do ceo por entre as folhas +de um esquivo parreiral. Junto ás paredes, +de rosas e limeiras revestidas, +canapés de cortiça apresentavam +a imagem do descanço e a do convite. +Não era necessario entrar a porta, +para já conhecer o domicilio +da hospedage e da paz; que as proprias auras, +como que em tão poeticas folhagens +se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo o estranho!» + + + * * * * * + + + Não longe lhe ficava a sua aldeia +na c'roa de um oiteiro; pensarieis, +vendo-as tão perto, e um bosque a separal-as, +a aldeia tão brilhante de fogueiras +e esta casa tão só mas tão alegre, +pensarieis, como eu, ver n'uma festa +moça ausente e feliz, amante e amada, +que entre o prazer commum não quer nem deve +ir desfazer seus pensamentos doces. + + + * * * * * + + + Visinho seu mui proximo era o templo, +aos valles do arredor alardeando +na sua torre branca um Anjo de oiro, +e a um lado a Residencia, occulta em parte +n'um ramilhete de altas cerejeiras. + + + * * * * * + + + Nunca mão de pintor juntou n'um quadro +objectos mais simpathicos. Tal como +trépido arroio em tacita espessura +das copas bebe a sombra, e envia ás copas, +do sol reflexo voadores raios, +do casal a presença alegra o templo; +a presença do templo está lançando +sobre o casal o sério da virtude. +Tudo isto sob um ceo de fertil benção, +sobre um chão de abundancia, e no ar mais puro! +--¡Meu Pae,!--grita o pastor entrando á pressa-- +minhas irmans! ¡um hospede!-- + + + * * * * * + + + A tal nome, +como se fosse á voz de alguma fada, +com repentina luz nos apparecem +creanças folgasans, esbeltas moças, +um ancião, e uma velha. Imagináreis +ver Graças, ver Amores, ver Napêas, +trajados de aldeãos, e honrando os lares +de Baucis e Philémon, que o parecem +na edade e na virtude os meus dois velhos. + + + * * * * * + + +Não mora entre seáras a etiqueta; +mas sobre herdada meza de pinheiro +em troco adeja a cordeal franqueza, +o bom desejo adubo da abundancia, +e a amisade dos bons, filha do instincto, +que nasce qual relampago, mas dura. +Deu-se o primeiro instante ao comprimento, +logo o segundo aos commodos; o resto +á conversa, e ao bulicio de tal noite. + + + * * * * * + + +Vem-nos do forno, envolto co'as risadas, +vital perfume de mellifluos bolos, +que em molles virações traz a alegria. +Aquella vai e vem compondo a meza; +esta afervora a ceia, e a cada instante +corre á janella que descobre a aldeia. +Juntam-se á bulha os sinos da parochia, +que o sacristão na vespera do Orago +jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra. +O festivo repique exalta as mentes, +os meninos não param, correm, gritam, +repartem bombas, furtam-se valverdes, +e rindo ameaçam fogo á pipa velha. +A boa annosa mãe ralha do estrondo, +e o faz inda maior; o esposo enfia +uma sobre outra historias do seu tempo. +O avito candieiro de tres lumes +cobre da meza o centro, e chama á ceia; +a sôlta sociedade eis se lhe aggrega. +Não foi longo o festim, mas cada copo +lhe augmentava o praser. ¡Salve tres vezes, +ó dos tres lumes candieiro avito! +¡quanto amor, quanta paz, que bens, que festas +não tens visto florir em tua casa! +¡quantas mãos tão felizes como puras +te hão accendido em noite igual! ¡quem sabe +que de memorias para ti conservas! +¡Em premio da hospedage aqui te accendam +longas eras em noites semelhantes +dignos de seus avós contentes netos! + + + * * * * * + + +Iria a muda apostrophe adiante, +mas ouviu-se o zabumba.--¡Ahi veem! ¡são elles!-- +dizem todos, e todos saem pulando. +--Olhae; olhae; ¡nem uma luz na aldeia! +este anno veio tudo. ¡Que alegria +terá o nosso Parocho! + --Maria, +dá cá o meu chapéo. + --¡Corre, Pedrinho! +--¿Onde está meu irmão? + --¡Não se demorem! +--Vamos dançar. + --Perdi as alcaxofras. +--Vinde por cá; passemos-lhes adiante; +que rancho que lá vem!................ +.......................................... +.................... Golgan, que eu fosse, +não pintara a estrondosa miscellanea +que vôa do cazal ao Presbyterio. +Lavra nos proprios velhos o alvoroço; +vão co'os mais quasi a par; lavra em mim mesmo, +estranho á festa. O pateo illuminado +nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo. +--Viva o nosso Prior!... + --¡Viva!!!... + Mil vozes +restrugem o ecco apenas avistaram +rindo á janella o velho gordo e alegre. +--¡Viva o Senhor San João! ¡viva a alegria! + + + +V + + +Bate o zabumba; a muzica rebenta; +fogem foguetes pelos ares livres +estrepitando; o campanario ovante +de jubilo endoidece; repentina +por dez partes acceza alta fogueira +dentro de um vasto circulo purpureo +mostra o prazer brincando em cada rosto. +Bello é ver n'este lance as raparigas +compondo mais o lenço, alevantando +o chapeo, que o semblante lhes encobre, +dando, como a descuido, um toque leve, +mas gracioso, ás flores que lh'o adornam, +e á flor do seio, e ao laço do collete. +¡Quantos nós ata amor n'esses instantes! +¡quantos outros aperta! ¡em quantos outros +embebe o espinho de um sutil ciume! + +¡Chiton! temos o Parocho na frente; +e as cangalhas vêem mais do que parece. +A _alegria decente_, eis o estribilho +com que recheia as praticas. Se cantam, +co'a cabeça e co'o pé bate o compasso; +se pulam boa dança em honra ao Santo, +bota fora uma can. Por isso o baile +circula agora a estridula fogueira; +por isso o San João vai toda a noite +injuriado em canticos devotos. + + + +VI + + +Meia noite. Que som mysterioso! +interrupção no baile e nos descantes. + + + * * * * * + + +Fada das amorosas prophecias, +tu, tu passaste agora em concha aerea +tirada pelo zephyro; sentimos +todos nós tua magica presença. +¡Boa viagem, Fada, e boa noite! +¡Salve, hora duodecima; bateste, +e descerrou-se a porta do futuro. +Sua nevoa desfeita em orvalhadas +vai nas plantas eleitas, vai nas flores +mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes +benção, certeza, amor, felicidade. +Já se interrompem bailes e descantes. +Embebida em potentes nigromancias +toda esta multidão por modos varios +exerce escrupulosa altos mysterios. +Mas renasce o alvoroço; é porque os copos +dos bilhetes fatidicos chegaram +da ama nas mãos com riso de importancia. + +--Não falta aqui rapaz nem rapariga-- +diz ella;--o senhor Padre escreveu todos, +mesmo á vista do rol dos confessados. +Meia noite já deu; quem quer casar-se, +pode vir vindo. + + Ao grande reboliço +succedeu a attenção, que a cada sorte +outra vez se converte em gargalhadas. +Por cada par que amor approvaria, +veem disparates comicos ás duzias, +e dão rebate ás palmas e epigrammas. +O proprio bom do velho applaude a tudo, +e por primeira vez da sua vida +encontra em si chorrilhos de finuras. +Já pede a uma o bolo do noivado; +quer ser padrinho de outra; e ás mais bonitas +quer baptisar de graça os pequerruchos. + +Muito custa no mundo o ser discreto +sem descambar o pé! coisas escapam... +que é por Deus não haver o Santo Officio, +como esta ao nosso padre: + --Olhae, rapazes, +vai n'estas sortes o que vai no mundo: +o acaso e a Providencia, ao que parece, +ambos lêem pelo mesmo Breviario. + +Não foi dos mais christãos o epiphonema, +mas fez rir. O Golgan neste comenos +chega, furta uma sorte, e diz abrindo-a: +--Esta, seja quem fôr, é cá p'ra nostri. + +Pede que a leiam; lê-se-lhe:--O coveiro.-- +Mudo o povo se entre-olha; e de repente +co'as pragas do Golgan destampam risos, +como os que o padre Homero encaixa aos deuses; +¡inextinguiveis risos! Mas não cede +a chufas nem a agoiro o varão forte; +e com mão bem segura extrae sublime +do outro copo outra sorte:--Ambrosia Trécula. + +Então do pateo o riso clamoroso +deveu-se ouvir no Artabro e Guadiana, +e retumbou nos ceos: Trécula... Trécula. + +--¿Quem diabo é esta Ambrosia?--o heroe pergunta. +--Sou eu--responde a ama. + --¡Está brincando! +é talvez sua neta ou titrineta. +--Vá-se, tolo. + --Olhe cá, senhora tia, +não vai a arrenegar; não lhe pergunto +por cara, corpo e modos, que são lindos; +¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa? + +Com o desdem mais dramatico, a matrona +voltou costas; e o bêbado prosegue: +--Sô Reverendo, não lhe aceite os banhos, +que eu sou casado, e ponho impedimentos. + +Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem +tirar tambem; tirei; ¿quem tiraria? +uma das filhas do meu bom Philémon. +Recebi parabens de todo o povo; +deixei-o bem disposto a divertir-se, +e tornei co'o o meu _sogro_ ao nosso albergue. +Instou que me deitasse; respondi-lhe +que em noite de San-João ninguem se deita; +que alem d'isso a jornada fôra curta, +e sem nimia fadiga; ultimamente +que, pois que elle esperava a mais familia, +esperava eu tambem; não sendo airoso +faltar á noiva no primeiro dia. +--Cedo, mas só co'a clausula--disse elle-- +que inda amanhan sois nosso. + --Assigno. + --¡Bello! + + + * * * * * + + +Então toca a palrar até que venham. +Saiâmos, que faz calma; alem, na eira, +sobre a alta palha do centeio novo +tomaremos a fresca e as orvalhadas. + + + * * * * * + + +Disse, e fez se. ¡Que ceo! ¡que paz! ¡que noite! +na molle aragem das fagueiras horas +meu coração feliz desabroxado +me enchia de um perfume egual ao vosso, +nocturnas flores, que o gosais sosinhas. +¡Quem podesse apanhar, prender na vida +estes momentos lubricos, momentos +que só caem do ceo durante a noite, +e só na solidão! Temi perdel-os +co'a triste distracção de mutuas falas. +Lembrou-me haver notado no meu velho +um genio amigo de contar historias; +pedi-lhe uma qualquer, bem decidido +a deixal-o á vontade espanejar-se +sem lhe dar attenção; mas enganei-me, +Pondo o rosto na mão, nos céos os olhos, +entra a buscar pela memoria antiga +algum caso mais raro; e como desse +casualmente co'a vista em certo lume +n'um cabeço remoto, + + + * * * * * + + + --Ouvi--me disse;-- +por aquella luzinha lá ao longe +lembra-me um caso, e um caso que foi certo, +passado ali no Minho ha largos annos. +Inda eu conservo em casa uns Breviarios +de um Padre irmão da minha avó materna, +que poderão servir de documento. +Elle mesmo o escreveu nas folhas brancas +do principio e do fim dos quatro tomos. +E era um clerigo honrado, o que escrevia; +merece tanta fé como a Escritura. +Diz elle então ali (nem é só elle; +minha Avó sua irman dizia o mesmo): +que esta nossa familia inda descende +da Rosa de quem fala a dita historia. +A minha avó foi Rosa, e tinha o nome +de sua mãe; a minha mãe foi Rosa; +a vossa _noiva_ é Rosa; e n'esta casa, +querendo Deus, sempre ha-de haver o nome. + + + * * * * * + + +Depois d'este preambulo de Rosas, +veio a historia, e encantou-me; ou fossem causa +hora e sitio, ou a amavel singeleza +com que narrava o historiador das medas, +ou já disposição com que eu me achasse. +Creio que sim: do espirito do ouvinte +vem mais de meio o merito das obras. +Por exemplo: da Eneida o livro quarto +dias ha que me enfada; ha tambem dias +em que se atura o _Italico_ do Padre;[4] +e em que se entende um pouco a pálrea bruta +que aos brutos deu do amavel Lafontaine.[5] +Nada parece mal, trazido a tempo; +fora de tempo, tudo. A mesma coisa +entre obras e leitores acontece, +que entre os garfos e as arvores: se enxertam +quando o não pede o tronco e o veda a lua, +¡adeus ramo bastardo! e se ao contrario, +penetra a seiva toda, e pula o ramo. + +Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto, +que protestei contar-vol-o a meu modo; +e o poema seguinte é o desempenho. +Tivesse elle, o que em vão lhe hei procurado, +da prosa do meu sogro o tom singelo, +talvez, leitores meus, o relerieis. + +Inventar, descrever, compor os versos, +são os tres pés, da trípode de Apollo. +Já sabereis do Reverendo Kinsey +que eu não tenho invenção; que nada pinto +co'a verdadeira côr da Natureza; +que os versos meus são bons, mas que aborrecem; +o que não tira que um poéta eu seja +digno de ser notado entre os que vivem. +Ora, quanto á invenção d'este poema, +bem vedes que a não ha, ou se a ha que é d'outrem. +E quanto ás descripcões, fiz o possivel +para não metter mais que as do meu _sogro_. +Mas faltava o melhor, e o mais difficil: +versificar á moda. Atirei fora +o Virgilio, o Racine, e o Metastasio, +gebos todos monótonos, que enfiam +os versos bons e os optimos aos centos; +atirei-me ao Filinto e aos Filintistas; +estudei, fiz ensaios, compuz paginas +de embréxados velhissimos e esdruxulos, +e não foi sem proveito o estudo acerrimo. + + + * * * * * + + +Perdoae se este livro inda vai falho +d'esses donaires que travêssos fogem +de mal expertas mãos; soffrei-o em quanto +vou destilar sobre outro o _Elucidario_, +qual se espreme um limão sobre um guizote. + + +Abril de 1831. + +FIM DA INTRODUCÇÃO[6] + + + + +III + +EPISTOLA + +A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA + +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) + + + +Da paz de um ermo ao turbilhão da côrte +a Musa de Castilho á do seu Costa +saude e amor. Já outra primavera +se enflora, a seu pesar, desde que ausente +pede aos montes a irman, que a não suspira, +e dorme ao lado de um feliz ingrato. + + +Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios +em cantos cujo ecco além não passa +.................................... + + +1831--Abril, 21. + + + + +IV + +O PRESBYTÉRIO + + + +¡Salvè, principio e fim dos meus passeios! +¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha, +cobre ha perto de um lustro os meus autores, +meus castellos no ar, meus faceis versos! +¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas limas, +festivo ornato das paredes brancas; +co'o teu portão patente oppresso de heras; +e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro, +brasão futuro do obumbrado pateo! +¡Salvè outra vez, meu presbytério! ¡Salvè! + + + * * * * * + + +Hoje, que o caprichoso do meu estro +(bem sabes se elle o é) deixa inconstante +versos índa no chôco, outros que apenas +vão da casca a sahir, outros que breve +teem de fugir do ninho em vôos livres, +entrou, mal veio a aurora esclarecer-te, +a doidejar-te em roda, a namorar-te, +qual borboleta ociosa ou leve abelha. +Pois que elle o quer.... cantemos-te; e perdôa +se o canto falador, transpondo os cumes +das tuas cerejeiras, fôr mais longe +revelar tua humilde obscuridade. + + + * * * * * + + +A antiga mediania, a segurança, +a paz, o amor dos Ceos, o amor dos homens, +genios foram, que em bençãos presidiram +aos alicerces teus. De Pário monte +não foi mistér que entranhas te enviassem +chão, columnas, e abóbadas, e estatuas; +tuas portas sem chave não cresceram +lá nas florestas do hemisphério opposto. +Foi visinho pinhal teu sôlho e tecto; +deu-te paredes mais visinho oiteiro; +portões e meza um cedro bom da extrema. +Não custaste nem lagrimas a pobre, +que á força te cedesse a choça avita, +nem odioso suor; e não se dormem +somnos melhores em Belem nem Mafra. + + + * * * * * + + +¿Que importa que no centro d'estes ermos +vivas tão só, que apenas descortines +n'um dos altos d'em torno esquiva aldeia? +Tu e o templo co'as messes que vos cingem +bastais no quadro agreste; em vós affluem +(como em sua Queluz) nos festos dias +ondas e ondas de amaveis saudadores. +Os rebanhos ociosos não desdenham +tôjo em flor, que te doira o chão das mattas, +d'onde envôltos co' os trémulos balidos, +veem cantos de amorosas guardadoras +endoidecer teu ecco. + Os caminheiros +abençôam-te a sombra; aqui teem fonte, +que em tua relva, ao fresco das parreiras, +detém, dessedentando-as, caravanas +que vão ou veem no alpestre Caramulo. + + + * * * * * + + +O anjo das flores liberal te arqueia +de bordada verdura as rescendentes +claras janellas. + Um bulicio manso +de amigas vozes teu recinto alegra. +Na sua tépida choça os bois ruminam +ante o feno em montões; dorme no páteo +farto esquadrão lanigero; ao sol pôsto, +cão, dos lobos terror, te vela as noites; +teus gallos as demarcam vigilantes. +Co'a luz primeira arrulha-te alvejando +cypria nuvem plumosa; e apenas saltam +da dextra mão mesquinha os grãos doirados, +em torno da gentil madrugadeira +de toda a parte os hospedes revôam. +Bicam por entre as pombas á porfia +a gallinha de filhos rodeada, +o manso grasnador do aquoso tanque, +o vaidoso perú, que ri cantando, +e vós, e vós, mais vivos do que todos, +não chamados, mas sempre a nós bemvindos, +passarinhos do ceo, turba sem dono. + + * * * * * + +Singelo presbyterio, ¡oh! ¡como te amo, +co'o teu ar casaleiro! Amo o teu forno, +tão social á noite; a simples sala, +quasi sempre deserta; a livraria, +deserta rara vez; estas alcôvas, +que enche um só leito; e a adega, assoviada +do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia +da cheirosa vendima; e o teu celleiro, +alto, arejado, e tão patente aos pobres, +como as portas do templo convisinho. + + + * * * * * + + +¡Floresças para o Ceo e para a terra +nos inconstantes seculos! ¡floresças, +feliz, co'o feliz dono, edade longa! +E se, lá no futuro, algum amigo, +sócio dos dias bons, saudoso e triste, +torcendo a estrada, a te pedir viesse +novas do teu cantor,--«Amou me, e amei-o-- +lhe dirias mostrando-te; e--«Seus ossos-- +juntaria o teu velho--aqui descançam.» + + * * * * * + +Sim; apraz-me cuidar que inda os meus restos, +gratos aos bons d'este recanto obscuro, +onde escapei no seculo de sangue, +cá ficarão n'este ocio, inda alguns dias +do simples montanhez talvez chorados. + + * * * * * + +Oh santa perseguida Liberdade, +¡onde te achei!.... Onde não vivem homens; +n'um torrão bravo que não chama invejas. + + * * * * * + +Em quanto, ora que a noite o ceo regela +humida e turva, tantos ricos enchem +de bocejante enôjo as assemblêas, +e tantos, tantos miseros, sem lares, +sem consôlo, sem pão, sem voz de amigo, +só reos de patrio amor, dormem nas furnas, +pelas praias do Oceano, e pelas rochas +(sublimes troncos pelo pé cortados)... +tua clara fogueira nos aquece; +¡graças, graças a um Deus! + Assim vagava +sobre o universo undoso a arca do justo. + + * * * * * + +Nós, depois de annos tres, inda esperâmos. +Ainda do trovão eccos retumbam. +Ainda os escarceos assoladores +remugem lá por fóra. Ainda a pomba +co'o ramo de oliveira inda não volve. + + * * * * * + +¡Oh santa perseguida Liberdade! +¡Oh! ¡Se eu podesse, a trôco dos meus dias, +restituir-te á minha Patria!.... + + * * * * * + + Basta. +Esperemos ainda. Oremos sempre; +e talvez que não tarde a grata aurora, +em que, a adejar da serra pelos pincaros, +venha de longe a nuncia das venturas, +a pomba com o seu ramo de oliveira!... + +Castanheira de Vouga + + Maio de 1831. + + + + + +V + +A LYRA DO DESTERRADO + +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) + + + +Era a noite dos finados; +sombria noite de outono. +Entre sinos acordados +lá jaz Roma entregue ao sono; +seus luzeiros apagados. + +Do ceo pelo rôto manto +só brilham frouxas estrellas; +sai a custo o clarão santo +dos templos pelas janellas; +e Petrarcha vela emtanto. + +Véla Petrarcha, e suspira +no leito amoroso e ermo; +olhos na véla que expira; +saudades no peito enfermo; +nem gloria sonha, nem lyra. + +Qual raio sôlto de lua +por móveis aguas vibrada +n'um bosque inteiro flutúa, +tal adeja no passado +a saudosa mente sua. + +¿Quem dirá seus pensamentos? +a douta lingua está muda. +¡Que paixões, que sentimentos, +no rosto, que aspeitos muda, +veem transluzir por momentos! + +Ora é dor, ora é sorriso, +esperança, amor, transporte; +queixas, ternuras diviso; +desce aos abysmos da morte, +vôa aéreo ao Paraizo. + +¡Não falar o Vate agora +co'os labios que move apenas! +¡Que torrente abrazadora! +¡que amor! ¡que incendidas penas! +¡quão nova a paixão não fôra! + +Vai a noite adiantada; +humido vento assovia; +treme a luz quasi apagada. +Do grão Cantor que vigia +ferve a mente a sonhos dada. + +--«Eís o templo conhecido +que os meus destinos encerra. +A mãe terna, o pae querido, +cá m'os tem no seio a terra. +Cá vi Laura, e fui perdido... +............................... + +Castanheira do Vouga + 1830...(?) + + + + + +VI + +EPISTOLA + +(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho) + + + +A minha primavera emfim renasce. +Té n'este horror selvatico dos montes +roupas traja nupciaes a Natureza. +O ceo azul, o ar morno, as aguas puras, +tudo nos diz «amor»; dizem-n-o as aves +chalreando ao florir das alvoradas; +bala o rebanho alegre; armento o muge; +na folha nova zéphiro o cicia; +a camponeza em meio de mil flores, +que lh'o exhalam balsamico, o suspira, +e ao viçoso tapiz, á sombra vasta +macia e tentadora lança os olhos. + +Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso, +enleva a fonte e as arvores nocturnas, +cantando amor, da lua ao raio incerto, +lições que mais de um ente ao longe estuda +(e pratica talvez); em sons de lyra, +solitario eu tambem, lições de affectos +de cá te envio ao centro da cidade. +N'esse ruidoso vórtice de povo, +de vãos praseres, de negocios futeis, +a geral rotação te arrasta ás cegas; +é dever da amisade erguer-te aos olhos +luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas +pode não ver a táboa ás vezes perto; +pode a praia ignorar, e tel a em face. +Táboa amor te lançou da praia firme; +ledo e fausto Hymeneu te está chamando. +....................................... + + + + + +VII + +A ROMARIA + + + +Lá vem Maio rosado. Já floreja +nas planicies, verdeja pelos montes; +é o mez de Amor, é o mez de Philoméla. + +Aureo amanhece o dia suspirado +da romaria annual; léguas em roda +já tudo é festa, esp'rança, e regosijo. +As povoações, desertas. Por estradas, +por torcidos atalhos, por oiteiros, +correm de toda a parte ornados bandos. +Lá retrôa nos eccos aturdidos +a matinal girandola ruidosa; +acorda ao longe a torre com repiques; +um povo de cem povos misturado +enche a vozeada selva, a acceza ermida, +e de ondeado matiz cobre o terreno. +Arfa ao sol, no alto mastro volteando, +triumphante bandeira alvi-cerúlea. +Vai e vem, ora chega, ora se allonga, +não está em nenhum sitio, e assoma em todos, +a alma da festa, a gloria do Gallego, +a aguda gaita túmida e franjada, +que ao rufado tambor sócia, repete +a moda velha e alegre, amor dos campos. +Em vidrado alguidar reluzem n'agua +os doirados tremóços, que afadigam +com compradores a afrontada tia. +As navalhas e anéis, o apito, o espelho, +se assoalham mais além; na alva toalha, +alva e folhuda, estão chamando o exul. +Em cima de seus carros triumphantes +os laureados tonéis, reis da alegria, +dão n'um fogo perenne a vida a tudo. + +Aqui se ouve o descante ao desafio, +que a viola ora segue, ora acompanha. +Ali se apinham para ver as danças, +que a discorde rabecca entorta ás vezes. +Lá, se entorna o licor em puros vidros; +ao pé se adoça a fresca limonada. + +Aqui se comprimentam; além chamam; +um se perde, outro se acha, outro convida. +Este corre; esta pára a ataviar-se, +por mostrar o cordão e o lenço novo. +Estirados na relva os velhos palram; +grita o rapaz. O amante, recostado +ao páu, por onde um braço lhe serpeia, +faz longa côrte á tímida futura, +que em resposta de amor lhe dá tremóços. + +N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens. +Lá sai a procissão; lá foram todos. +¡Ah! depois do jantar comido ás sombras, +cada um levará, volvendo a casa, +gratas lembranças para o anno inteiro. + + + + + +VIII + +O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES + +OU + +A MATTA DE S. SEBASTIÃO + + + Versos na plantação de uns carvalhos junto á egreja de S. Mamede da + Castanheira do Vouga pelos rapazes solteiros da freguezia no + Domingo do Carnaval de 183... + + + +I + + +N'este dia, em que o povo tumultuando +nos casaes, nas aldeias, nas cidades, +troca a enxada, o tear, o livro, a agulha, +por copos, danças, máscaras, e risos +nas saturnaes christans; quando se espraia, +desde o seio de Roma aos fins da terra, +de um praser contagioso alta vertigem; +¿por que retreme ao golpe das enxadas +sob os meus pés a solitaria encosta? + + * * * * * + +¡Saude a vós, a vós louvor. Bemvindos, +montanhezes, fieis aos priscos usos! +O cântaro do estylo ahi está coroado, +risonho e prestes a inundar os copos; +o prémio á vista vos redobre as forças. + + + * * * * * + + +Rasgae co'o duro ferro a terra dura; +de vossos paes a matta veneranda +em torno de seu santo antigo dono +se accrescente por vós. Plantae, que é tempo, +no chão, sagrado de suor devoto, +ó presente annual, que o Ceo prospére. + + + * * * * * + + +Onde quer que elle jaz, abençoemos +as cinzas do homem bom, lá d'essas eras +que a pia usança introduziu primeiro. +¡Quanto a sua virtude era risonha! +--«Cada solteiro plantará n'este ermo +mais uma arvoresinha de anno em anno, +que lá em cima encontrará seu premio.» +¡Oh! estes rogos, sim, este pedido, +doce e desint'ressado, uncção respira; +manda mais do que as Leis; morrer não deve. + + + * * * * * + + +Produz, produz a miudo, ó Natureza, +por teu bem, por bem nosso, homens como esse. +Haja quem diga ao joven par, que ás aras +sobe apenas amante, e desce esposo: +--«Hoje, que são já fruto esp'ranças de hontem, +entrae sorrindo pelo chão da vida; +plantae, plantae um'arvore que o lembre.» + + + * * * * * + + +Quando a cabana festival se enrama, +se enflora a meza, e os aldeãos visinhos +veem festejar na casa um filho novo, +a mão paterna, de praser tremendo, +orne de um novo tronco o prédio avito. + + + * * * * * + + +¿Depois de suspirada e curta ausencia +volve um irmão das terras estrangeiras? +¿Convalesce um parente? ¿Em bem se acaba +suado, volumoso, eterno pleito, +que empobreceu o avô, o filho, e o neto? +¿Fizestes o adversario amigo vosso? +¿Sorriu-vos a ventura? ¿É farto o anno? +A sêrdes Reis, alçáreis monumentos; +¿que vale um monumento? O homem dos campos +melhores pode erguer a menos custo: +plante sobre o caminho arvores férteis. +Por elle o passageiro ardendo em calma +ache a sombra hospedeira que o recreie. +Por elle o pobre, que seu pão mendiga +de casal em casal, de monte em monte, +que não vê ceo, nem lar onde se aqueça, +nem feno onde descance, e em todo o mundo +só tem por património a caridade, +ache a fruta a pender em curvos ramos, +a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe. +Assim, do bem de um só germinariam +mil bens communs; e do praser de um homem +o publico praser, publicas bençãos. + + + +II + + +Se tendes de nascer, nascei mui breve, +sensiveis corações a quem Deus guarda, +a gloria de influir eguaes costumes. +Desde já nossas lagrimas de affecto +correm por vós; ao seio do futuro +nós vos lançamos desde cá louvores. + + + +III + + +Sentemo-nos, em quanto os vossos filhos +aqui se embebem na tarefa honrosa, +sentemo-nos á sombra, a vós bem grata, +do carvalhal que as vossas mãos plantaram, +homens das cans, antigas testemunhas +dos tempos que não são. + + + * * * * * + + + Vós, deputados +das mortas gerações aos vivos de hoje +como pregões propheticos; thesoiro +de saudades, de dor, de experiencia; +bons velhos, á vossa alma taciturna +aprazem mais que a festa os pensamentos. + + + * * * * * + + +Falae: ¿d'onde vos nasce essa tristeza +profunda a um tempo e vaga, amarga e doce? +¿Será de enfeitiçada sympathia +que nos attrai á terra, ao chão da vida, +chão sempre cubiçado e sempre ingrato? + + + * * * * * + + +O coração, zeloso da existencia, +compara os dias seus do tronco aos dias, +e a conta desegual o opprime e o fecha. +¡Annos a nós, e seculos aos bosques!... +Planta o pae, mas a sombra hospéda os filhos; +netos, que não verá, gosarão d'ella; +e indiff'rentes incógnitos vindoiros +rirão contentes ao folhudo abrigo. + + + * * * * * + + +Mas, velhos, mui ditoso o que em seu predio +dispõe arvore fértil de esperanças, +que irá legada aos filhos de seus filhos. +Prophecias de amor lhe expande o seio, +sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos. +Mas feliz egualmente o que em seu predio +possue vaidoso um tronco hereditario. + + + * * * * * + + +Na réga, e ao vir da flor, e ao dar do fruto, +¿como ha-de não pensar em seus maiores? +Um lh'o plantou, os outros lh'o trataram; +¿Como ha-de recusar-lhe uma saudade, +um suspiro, um suffragio, um elogio? +A gratidão medita á mesma sombra +onde já meditára o amor paterno. +Esta arvore mortal é o santo marco, +em que se juntam, se entrelaçam, crescem, +dos idos o interesse e o dos vindoiros; +nó de affeição, que os seculos reune. + + + * * * * * + + +¿Vedes vós essa mãe, que ha tantos annos +chora um filho alem-mar, em longes terras? +Mostrae-lhe um passageiro a dar á vella +para o porto feliz; ¡com que ternura +lhe não dará, chorando, um longo abraço, +que leve, que lh'o entregue, ao seu querido, +e todo o amor de mãe lhe exprima n'elle!... +¡E com quanto alvoroço o desterrado +não cingirá o amavel mensageiro!... +Eis o emblema da arvore, cruzando +viva e lembrada o Oceano das edades, +mensageira de int'resse aos paes e aos filhos. + + + +IV + + +¿Qual de vós, repoisando n'esta cama +de folhas mortas, qual de vós, no meio +d'esses troncos musgosos, seculares, +não viaja com o espirito espraiado +por esse mundo antigo e antigos homens? +Sim, vossa alma se apraz, phantasiando +de lhe restituir quanto houve d'elles: +uma vida, uma choça, herdade e patria. +Deslembram cans; rugosas faces riem; +reviveis n'um minuto annos de infancia +sob a affeição de um pae, de um pae nos lares; +sem cuidados, sem prole, e sem temores, +entrais folgando o limiar da vida. +¡Podesse n'este ponto o pensamento, +como ave em ramo flórido e viscoso, +deter-se a recordar, ficar pregado! +¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o sonho, +e a extincta geração recai nas campas. + + + * * * * * + + +¿Mas quê? ¿d'esses antigos plantadores +nada mais resta além de uns troncos mudos +n'este universo movediço e instavel? +¿nem uma só lembrança, um dito, um nome? +Tudo passou sem mínimo vestigio, +como os sons leves de um descante ao longe. +........................................... + + + +V + + +Bons aldeões, estas sombras regaladas +vos falam nos avós; porém comigo, +comigo, extranho, e novo em meio d'ellas, +conversam no aureo tempo a que assistiram; +recordam-me as edades do Universo, +e os varios povos, e os paizes varios, +contemporaneos do nascente mundo. + + + * * * * * + + +Intonsas, invioladas, venerandas, +outras selvas, como esta que nos fecha, +fecharam do homem a primeira origem. +Sob as verdes abóbadas immensas +as velhas tradições nol-os descrevem +pobres e alegres, nús e satisfeitos, +saboreando em ocio a glande e a fonte, +dormindo sobre a folha, e sem pedirem +outra casa, outro templo, outra cidade. + + + * * * * * + + +A pouco e pouco o numero crescia, +minguando a pouco e pouco a singeleza. +Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam; +a um Maio eterno as estações succedem; +o ar se gela e accende, alaga e silva; +já bravejam leões, já bramam tigres; +o homem se acoita ao seio das cavernas. + + + * * * * * + + +Vós, troncos, até ali seus companheiros, +acudís a servil-o; ¡e em quantos modos! +lá, crepitais em rútila fogueira; +aqui, das feras prohibís a entrada; +dais uma clava ao caçador valente; +na serviçal cortiça um berço aos filhos; +leitos a amor, assentos á velhice, +aos enxames um lar, um copo ás festas. + + + * * * * * + + +Das precisões ao grito, o engenho acorda; +lá surgem povoações, curraes, tugúrios, +e uma capella ás rusticas deidades. +Lá rompe o novo arado a terra dura; +lá geme, a transportar enormes pezos, +o carro, e sulca atónitos caminhos. +O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo; +a rudeza se pule; as artes crescem; +a especie racional das mais triumpha. + + + * * * * * + + +As gerações do ceo, do mar, da terra, +tudo é já seu; os campos lhe obedecem; +faltava o Oceano; affoita quilha o rasga. + + + * * * * * + + +Então foi, que estas arvores, tão uteis +no patrio continente, abriram vôo +sobre o liquido abysmo a novos climas. + + + * * * * * + + +¿E em que parte do globo, arvore excelsa, +te podes presentar, que não recordes +uma façanha, um culto, um grão successo? + + + * * * * * + + +¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta +que foste invicta clava em mão de Alcides; +vê-te, suspira, bate o chão raivando +de achar-se escravo, e de não ter-lhe as forças. +¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta +do arvoredo Dodónio as mil respostas, +o passado e o porvir patente a todos, +e o livro do destino aberto ao mundo. + + + * * * * * + + +¿Na Ausónia? Mas Cybelle amou teus ramos; +Roma os sagrou a Jove; e, fulminada, +eras tremendo agoiro a todo o Imperio. +¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica? + + + * * * * * + + + ¿Nos campos? +¿E Phílémon, o justo, o caro aos deuses? + + + * * * * * + + +¿Nas Gallias? em seus barbaros oiteiros +tu, só, eras o altar, o deus, e o templo. + + + * * * * * + + +¿Na Caledonia, em Morven, junto aos lagos, +sobre os cumes, á beira das torrentes? +Lá tu viste Tremnor, Fingal, e os bravos, +reunidos na vespera do sangue +em nocturno festim que allumiavas, +quando na harpa dos bardos reviviam +os feitos dos heroes do antigo tempo. + + + * * * * * + + +¡Salve, eleito Israel! Eis-nos em campos +de Sichem. Vejo os principes e os velhos, +os juizes, as tribus, apinhar-se +em torno ao tabernáculo de Sila. +Por cima d'este mar ondeado e vivo +reina de praia em praia alto silencio. +Sublime como o cedro do deserto, +se levanta Josué, braço do Eterno, +em nome do Senhor, que o manda e inspira; +os favores do Ceo recorda ao povo; +renasce a Fé; os idolos se arrazam; +--«¡Gloria ao Deus de Israel!--vozeia a turba-- +¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos! +--Erga-se um monumento,--exclama o chefe-- +que, se infieis um dia os esquecerdes, +vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.» +E a monumento põe no logar santo +enorme pedra á sombra de um carvalho, +que abrigava co'a copa o santuário.[7] +Despede o Povo, e em paz contente expira; +em paz, que já não vê perjúrios novos. + + + * * * * * + + +Escrava de Madian a plebe expia, +na miseria e no opprobrio, os males torpes +que fez ante o Senhor. Mas inda existe +um justo, a quem Deus fie o libertal-a: +é Gedeão, é o Josué segundo.[8] +Este, em quanto seu pae lança aos caminhos +medroso olhar á espera do inimigo +para fugir com elle, ajunta á pressa +o trigo que limpou. + Vê de repente +um Anjo, que debaixo do carvalho +se assenta, e lhe repete a lei do Eterno. +Esse mesmo carvalho é testemunha +da belleza do alado mensageiro, +da voz de salvação mandada ao Povo, +e do holocausto acceito e posto em cinzas, +e do altar, a quem _Paz_ foi dada em nome. + + + * * * * * + + +E este, que tão frondoso opáca os valles, +¿por que o rodeia um bando taciturno +dos fortes de Galaad? as suas armas +jazem quebradas; sua dor vai funda; +dos olhos tristes para o ceo voltados +pelo rosto amarello lhes escorre +grosso pranto, que alaga as f'ridas frescas. +Choram Saul, e a régia descendencia, +que mortos no combate aqui descançam. +Para o Monarcha agigantado e invicto +nenhuma estátua se erguerá na campa. +Sua columna e funebre palacio +preparou-lh'os com tempo a Natureza: +o tronco, rei da selva, o está cobrindo. + + + * * * * * + + +¡Mas quanto é mais tocante o que se eleva +nas faldas solitarias da montanha! +Ali Débora jaz; ali Rebecca +chora na morte a que a nutriu na infancia, +ama no coração, mãe nos extremos, +de seus primeiros e ultimos segredos +confidente fiel no lar paterno, +querida socia na feliz viagem, +e no lar conjugal seu doce allivio. +¿Arvore a tanto affecto consagrada +na affectuosa Biblia irá sem nome? +o _carvalho das lagrimas_ lhe chamam. + + + +VI + + +¡Que uso tão doce aos corações piedosos! +Reverdecei, costumes do bom tempo, +quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem, +tinham sob um ceo livre a sepultura. +A Morte, menos barbara do que hoje, +com avarenta mão não ferrolhava +sob um tecto pezado, entre altos muros, +as prezas, cá de fóra em vão pedidas. +Não era um templo um cárcere de mortos. +Dormiam mollemente em terra franca, +em jardins frescos, em copadas selvas. +Esta esp'rança adoçava um pouco o amargo +do ultimo trago aos labios moribundos. +Este bem, tão pequeno em mal tão grande, +¡quanto valor não tinha aos que ficavam! +O irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo, +podiam livremente, a toda a hora, +ir regar de seu pranto amadas cinzas, +fartar saudades, inflammar lembranças, +delirar doce a noite, e o dia inteiro, +e de praser a um peito onde palpitam +superstições de amor ou de amisade, +dizer: + «Este tapiz relvoso o cobre; +esta ave lhe gorgeia; esta aura sôlta +o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes; +a primavera m'o visita, e espalha +tambem por cima d'elle o seu regaço; +esta violeta é sua, hei-de colhel-a; +d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte, +nutre-se do seu pó, vive por elle, +é elle mesmo em parte; arvore amiga, +recebe o nome caro, hoje sem dono, +toma os abraços que não posso dar-lhe.» + + + * * * * * + + +Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas. +A arvore, Deus a fez como passagem +do mundo que respira ao mundo inerte; +commum co'os animaes, commum co'a terra, +vive e não sente; habita e ignora o mundo, +sympathisa co'a morte e co'a existencia, +é grata ás cinzas, á saude é grata. + + + * * * * * + + +¡Que férreos somos nós, que a um como vago +atiramos sem dó perdidos, mixtos, +o detestado, o amigo, o estranho, e o nosso! +Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros +arrojasse o que os seculos pouparam, +bronzes, escritos, marmores romanos, +ou, derrotando porticos, columnas, +theatros, colliseus, palacios, templos, +em serra inutil amontoasse as pedras, +¿quem não vertêra em lagrimas o sangue? +¡E ante a nossa affeição teem menos pezo +que as ruinas de Roma as que são nossas?!... +¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes, +espectaculos, jogos, aureas festas, +jardins, parques!... ¡e aos miseros que gemem, +e aos peitos melancólicos, viuvos, +ha-de negar se um canto onde pranteiem!?... +¿De tanto mundo que pertence aos vivos +nada dareis aos seus antigos donos? +¡nem um torrão perdido, e uns troncos nullos?!... + + + * * * * * + + +¿Quando virá um dia, em que estes bosques, +semeados de tumulos não altos, +de lugubres saudades se povôem? +Então, a propria Morte, hoje tão sêcca, +terá sua grinalda; a dor, seu gosto; +e visitas o pó, e cultos o ermo. + + + * * * * * + + +Pelas noites mui placidas do estio, +ao duvidoso alvor da lua incerta, +bello será, sentado n'este sitio, +ver vir, d'aqui, d'ali, frouxos, dispersos, +o do casal, o morador na aldeia, +entrar chorando, e procurar seus mortos. +Aqui duas irmans resam de joelhos +sobre o seio materno sepultado. +Aqui o velho attento as contas passa +pelos dedos convulsos, e se encosta, +sem o saber, na fallecida esposa. +O filho aos pés da mãe co'os mais soluça +o Padre-Nosso apenas aprendido. +Deitado ao lado do submerso amigo, +o amigo devaneia antigos annos. +Por toda a parte, as lagrimas e affectos, +memorias doces, orações e esp'ranças. + + + * * * * * + + +¿E a quem não conviria egual retiro? +N'elle a tristeza encontraria um pasto; +a sciencia, reflexões; o vicio, escolhos; +a leviandade, assento; a desventura, +consolação; o amor, silencio e pranto. +Ensaiára-se o infante para a vida; +o velho, para a morte; o moralista +viria achar uncção para a verdade; +o orador, persuasões, ternura, encantos. + + + * * * * * + + +Ó filhos da montanha, ¡oh! libertae-vos +de um preconceito vão; é toda a terra +a terra do Senhor; afora o vicio, +debaixo d'este ceo nada é profano. +A benção do Pastor consagraria +vosso asylo feliz; e a Cruz em meio +todo de um santo influxo enchêra o bosque. + + + +VII + + +Mas, em quanto esses dias vos não raiam, +bons velhos, vigiae que, de anno em anno, +aos juvenis futuros plantadores, +em vez de se afrouxar, se inflamme o zelo. +Cresça com seu favor por estas serras +a geração dos vegetaes gigantes. +Com todos vós conversam todos elles +sem cobrir campas; guardam-vos saudades, +são parentes de todas as aldeias, +e o brasão da montanha é o vosso parque. +Sobre tudo influi que a vossa raça +trema ao só nome do brutal machado +que ouse violar a veneranda herança. +O que só Deus medrou, só Deus derribe. + + + * * * * * + + +Crêde-me (eu já vi outras) vossa terra +é descrida, enteada á Natureza. +Cumpre a vós adoçar-lhe o aspecto agreste, +amiudar-lhe no oceano ermo dos ares +estas ilhas, virentes, graciosas, +que espalhem primavera pelos montes, +que attráiam as volantes caravanas +do rouxinol, da rôla, e da andorinha. + + + +VIII + + +Lá em baixo a casa humilde que branqeja, +entre os alegres plátanos e o templo, +quasi que pasma, e se entristece e encolhe, +de ver em torno a solidão tão vasta. +Como que está pedindo... ao menos bosques; +não tem outros jardins, outros passeios, +que offereça a seu dono, o Pastor vosso. +Preparae desde já para o futuro +sombras novas aos novos successores, +e refrigério estivo ás cans do velho. +Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio. +Mil vezes sua voz reconhecida +rogará paz ditosa aos vossos netos, +quando, serena a mente, e sôlta a vista +lá fôrem divagar, ora embebidos +nos psalmos, nos poeticos arrojos, +ora admirando o Autor e o Nó dos mundos, +no largo azul dos ceos, no alto dos troncos +e no zumbir e no voar do insecto. + + + * * * * * + + +¡Surgi! ¡surgi! Lá jazem as enxadas. + + Velhos, surgi! La voltam triumphantes, +findo o novo trabalho, os vossos filhos. +Agora espumem copos, sôem risos, +exulte a dança, alonguem-se os cantores. +Conquistastes o inculto á Natureza: +forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas. +Toda a vasta planicie, hontem tão erma, +¡que povoada vai já! ¡como promette +lembrar ao vosso gado, ás vossas filhas! + + +UM VELHO + +Sim, dará sombra e vai povoado o valle: +mas fosse eu rico, e lhe dobrára encantos. + + +SEGUNDO VELHO + +¿E como, irmão? + + +O PRIMEIRO + + No alto d'este oiteiro, +d'onde se avista o mar, o ceo, a terra, +poria uma capella, e um San-Mamede +co'o rosto de um menino, e o rir de um Anjo; +nas mãos o cajadito, o alforge ao lado, +e o seu rafeiro ao pé todo soberbo +co'a colleira escarlate, e todo amigo +a lamber o seu Santo. É bom que os altos +se c'rôem de capellas, que levantem +o pensamento aos Ceos, no campo espalhem +devoção e piedade, e aos peregrinos +ensinem o caminho e a vista alegrem. + + +UM PASTOR + +Sim, co'o santo pastor de guarda aos bosques, +¿que haviam de temer, nem cães nem gado? +Nos degraus da capella, á sombra inquieta, +longas séstas sonháramos de amores. + + +TERCEIRO VELHO + +Já lá vão o bom tempo e os bons costumes; +foi-se a abundancia e os corações piedosos. +Esses fundavam templos, como o nosso, +n'um árido deserto; e hoje.... se estala +no campanario um sino, em ocio eterno +fica mudo a pender dos braços podres. + + + +IX + + +Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria, +serei eu quem consagre o vosso oiteiro; +não a Mamede, não ao pastor martyr, +mas á contrita amavel Peccadora. +¿Não valem mais as lagrimas que o sangue? +¿Mais que heroico valor não nos commove +doce humildade e penitencia longa? +E de mais: se ás aspérrimas proezas +vos não destina o Ceo, todos nascestes +captivos frágeis de amorosas culpas. +Muita virgem no monte solitario +tentada pelo amor e pelo amante, +só com ver a capella ha-de livrar-se, +e pela salva flor dar lhe-ha mil flores. +E quando aqui errantes missionarios +vierem dar, e á sombra dos carvalhos, +as turbas apinhadas instruirem, +¡que persuasões, que lagrimas, que exemplos +hão-de tirar da veneranda Imagem!.... + + + * * * * * + + +¡Qual me ri já na mente o grão projecto! +Eu serei pois o fundador de um culto +que aos frutos da moral reuna flores. +Sim; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente? +........................................... + + + +X + + +Partiram. E eis-me só. Todos partiram. +O alvoroço do entrudo os chama aos lares. +¡Oh! ¡Bemdita a ignorancia d'estas serras! +O rustico inda ri na Patria em luto, +e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro. +¡Bem sabe elle que lagrimas aos mares +d'este horizonte em roda estão correndo! +¿Sabe elle que o atro dia é menos atro? +A paz, a confiança, as alegrias, +a abundancia, a união de antigos Lusos, +não deixaram, fugindo, um só vestigio. +No vaivem das facções, que se entrevencem, +tudo se perde e esquece, afora a raiva. +Os bons usos, as festas populares, +a romaria alegre, as patrias danças, +vão-se apagando... Aqui, mesmo na brenha, +a pastora, esquecendo os seus amores, +canta a questão dos Reis, o hymno da guerra, +sons novos, que o seu gado e o ecco extranham. + + + * * * * * + + +Ó Patria, bella Italia do Occidente, +tu que egual a Parthénope repoisas +debaixo da invejada laranjeira +e do mirto florido, ao deleitoso +ruido de aguas limpidas, no abri +de um ceo inspirador tão proprio ao genio, +ó bella Italia do Occidente, ó Patria, +¿era pois fado teu lidar sem fruto +para seres a inveja, a flor das gentes?.... +A guerra, sim, te coroou co'as palmas +das quatro partes do orbe, e as naus do mundo +trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros. +Mas as flores das artes, mas os frutos +das sciencias, no chão dos outros povos +com tanto custo e com suor medrados, +¿espontâneos no teu medraram nunca?... +¿Tiveste nunca os dons, que em paz florentes +ornam e absolvem da conquista os loiros? +¡Que imperios teem cahido! e tu, tu ousas, +hoje ainda, aspirar á eternidade!!... +Talvez bem perto os seculos se cheguem, +que hão-de ver cego arado andar lavrando +tuas cidades de esquecido nome, +e o rebanho indiff'rente apascentar-se +sobre os teus tribunaes, theatros, praças. + + + * * * * * + + +Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo, +Lusitania, que á borda do Oceano +brilhas qual deusa em majestade e em graça. +Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes +entre tropheos em pó, lavada em sangue. +Deshonrada Cleópatra, inda és bella, +mas já nas veias te circula a morte. +¡Ai de quem nutre as áspides no seio!... + + + * * * * * + + +¡Ó Patria, ó Patria, com que voz tão baixa, +com que pejo te expróbro! ¡Ah! se podéres, +perdôa meu furor, vê só meu pranto; +ó Patria, ó mãe, ó misera querida!... + + + * * * * * + + +¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que seria? +¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são homens +que nos matam irmãos... ¡Alerta!... oiçâmos... + +.............................................. + + + + + +IX + +O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO + + + Dia em que o Poeta plantou por suas mãos um cedro no pateo da + residencia parochial da Castanheira do Vouga + + +(FRAGMENTO) + + + +.......................................... + + Se, de teus annos na madura força, +a mão que te ora planta inda fôr viva, +essa mesma, já trémula e caduca, +no tronco te abrirá, com pio exforço, +graciosa capellinha, onde sorria +um San-João, o Santo alegre do ermo, +trajo de pelles, juvenil frescura, +olhos nos Ceos, aos pés cordeiro branco. + + + * * * * * + + +N'essa noite poetica e devota, +em que o praser, centuplicando aspectos, +povôa, anima, encanta o mundo inteiro, +agua e terra, ar e ceo, tudo é macio, +em que a velhice, a mocidade, a infancia, +sympathisam no vago da alegria; +quando n'alma insaciavel de delicias +se juntam, com mistura inexplicavel, +ao saudoso passado, aos bens presentes, +as mil visões do esplendido futuro; +quando em laço phantastico se aggregam +da vida e eternidade os pensamentos, +gosos, superstições, fraquezas, cultos, +qual ramalhete de cipreste e rosas +na caprichosa mão das feiticeiras; +n'essa noite, das noites invejada, +a ti concorrerão por toda a parte, +té das aldeias do horizonte extremo, +dançantes bandos que a viola guia. + + + * * * * * + + +Verás girar seus bailes clamorosos +em redor das estrídulas fogueiras; +ouvirás os seus cânticos em côro +devoto e ennamorado. A bomba foge, +zune fugindo, e sollapada estoira; +o buscapé no ar caracolando +morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos, +dispersa os grupos, gasta-se raivando, +e entre os risos rebenta atroando os ares; +ali circula em vórtice perenne +a roda leve espadanando incendios, +chovendo oiro luzente e estrellas alvas; +aqui floreia o fúlgido valverde, +vesuviosinho que arremette ás nuvens; +arranca o vôo e vai rugindo aos astros +o ignívomo foguete estrepitoso. + + + * * * * * + + +¡E a musica entretanto! ¡e as doces falas! +¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta! +¡e essa mão dada a furto e a furto acceita! +¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes +da meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada! +¡e as sortes que a fortuna extrai ás vezes, +e muitas mais a próvida malicia! +¡e a fonte que amanhece entre descantes, +e pasma rindo de se ver coroada +de festões verdes e entrançadas flores! +¡Que noites, que alegrias, que triumphos, +te aguardam no porvir, me estão na mente![9] +............................................ + + + + + +X + +O MOSTEIRO + + + +Vós, que sois do amavel sexo +ardentes adoradores, +que girais de bella em bella, +qual leve abelha entre as flores, + +que sabeis n'um só momento +a mil deusas incensar, +e pareceis de ternura +não poder-vos saciar, + +mancebos, o mundo é vosso; +mil bellas o mundo tem; +mas não choreis as que á sombra +repoisar das aras veem. + +Se um jardim, florído, immenso, +encontrais na sociedade, +¿que importa que poucas rosas +lhe furte a mão da piedade? + +poucas rosas, que dispostas +vão depois na solidão +lançar mais doces perfumes, +seguras de extranha mão. + +Vagae, vagae livremente +nos jardins da Idália Venus; +segui as Nymphas e as Graças +pelos seus bosques amenos; + +os prazeres vos rodeiem, +os jogos em torno vôem; +a mocidade vos ria; +espêssas rosas vos c'rôem; + +¿que falta aos desejos vossos? +¡ah! soffrei, sem murmurar, +ver d'entre os vergéis florídos +poucas pombas desertar, + +poucas pombas, que innocentes, +e temendo o caçador, +vão nos ermos solitarios +buscar um fado melhor. + +Do Libano opacos cedros, +de Sião bosque tranquillo, +vós, palmeiras de Idumêa, +prestae-lhes seguro asylo. + +Estranhas vistas não turbem +os seus piedosos segredos; +contentes á sombra vivam +dos sagrados arvoredos. + +Silencio, paz, e ternura, +alva estrella de innocencia, +e a vista de um ceo risonho, +lhes doirem toda a existencia. + +Murmúrio de castas fontes, +perfume de simples flores, +lhes paguem jardins que infestam +os abutres e os açores. + +Eu vos lamento e vos chóro, +insensiveis corações, +que de um mosteiro entre os muros +não vêdes senão prisões. + +Córae da vossa loucura. +Correi a ver de mais perto +o Eden recatado ao mundo +no seio d'este deserto. + +Modestas virgens o habitam, +que só não teem liberdade +de colher em frutos de oiro +as festas da sociedade. + +Segui-me, segui-me affoitos, +entremos. Abriu-se o templo. +Seus ermos, ao mundo ignotos, +inteiros d'aqui contemplo. + +¿Não vêdes sobre os altares +com graça engrupadas flores +lançar torrentes de aromas, +brilhar co'as mais vivas cores? + +N'esses prados invisiveis +tambem pois se eleva a aurora; +sol, e zephyros, e fontes, +lhes dão sorrisos de Flora. + +Essas pois, que vós julgaveis +desgraçadas prisioneiras, +teem praseres, teem delicias, +teem jardins, são jardineiras. + +Vêde ornar formosa Imagem +rico manto que fulgura, +de oiro e sedas matizado +com vistosa bordadura. + +Vêde a grinalda florida; +vêde o ramo; estes jasmins, +estes lirios, estas rosas, +não são já de seus jardins. + +Não devem sua existencia +nem á terra nem ao Ceo, +e nem zephyros nem fontes +serviram no augmento seu. + +Formou-as arte engenhosa; +poude mais que a Natureza; +deu mais vida ás suas flores; +prestou-lhes egual belleza. + +¿Sabeis, que mãos feiticeiras +obraram prodigios taes? +eis o trabalho e os recreios +d'essas piedosas Vestaes. + +Ellas no côro apparecem; +e, ao som dos orgãos divinos, +de sua alma aos Ceos se elevam +devotos brilhantes hymnos. + +Innocentes e macias, +d'estas vozes a mistura +sem perturbar os sentidos +infunde n'alma ternura. + +Em seus canticos não reina +terreno vulgar affecto; +é mais puro, é mais sublime +de seus amores o objecto. + +O pensamento que as ouve, +sai da térrea habitação, +deixa os ares, das esphéras +atravessa o turbilhão, + +vê do Empyrio as portas de oiro +abertas á humanidade, +rompe audaz, vai submergir-se +no fulgor da Divindade. + +Cessa a musica, e de novo +volve a mente ao patrio mundo; +mas dos virgineos desertos +primeiro se arroja ao fundo. + +Lá divisa, em liberdade, +nas livres tranquillas horas, +dadas a cantos diversos +estas formosas cantoras. + +Na sombra d'aquelles bosques, +n'aquelles molles passeios, +tambem pois das Musas entram +os aprasiveis recreios. + +Olhae por fim seus aspectos, +¿Não vedes vós a bondade, +a alegria da innocencia, +as virtudes da piedade? + +Eis os Genios que lhes tornam +encantadora a existencia: +as virtudes da piedade, +os praseres da innocencia. + +A amisade entre ellas reina; +¿os encantos da amisade +não prestarão, por ventura, +delicias á soledade? + +Mas basta, insensatos, basta; +á scena se corra o veo; +não profanem vossos olhos +mais tempo os átrios do Ceo. + +Ide no mundo esquecel-as, +em vez de as irdes chorar; +e o vosso mundo vos baste, +como lhes basta um altar. + +Mas esperae; respondei-me; +consultae vosso interior: +¿sois ditosos co'os sorrisos +de um falso inconstante amor? + +¿Sabeis vós o que amor seja? +¿Satisfaz-se o coração +com esses fogos incertos, +e essa eterna agitação? + +¿Não virá talvez um dia, +em que, mais sabios, queirais +unir os vossos destinos +á melhor d'entre as mortaes? + +¿Como a haveis de achar no mundo, +no mundo, cujos enganos +vós conheceis, ajudastes, +seguistes, por tantos annos? + +Tremereis de um laço eterno. +A vossa pena consiste +em pensardes que a virtude +que não tendes, não existe. + +Então aqui vos espero, +n'estes quietos retiros. +Estes muros que insultaveis, +ouvirão vossos suspiros. + +Entre estas virgens mimosas, +que severa educação +forma, longe dos humanos, +á sombra da solidão, + +viréis procurar o objecto, +cuja ternura innocente +vos deve tornar a vida +risonha, pura, e contente. + +Não detesteis um recinto, +onde Amor, onde Hymeneu, +onde um Genio, amigo vosso, +vosso thesoiro escondeu. + +Pensae, pensae que ali vive, +cresce em virtude e talentos, +e em graças, aquella que ha-de +doirar os vossos momentos. + +Qual arbusto delicado, +que a viçosa louçania +mostrar em seu proprio clima, +em seu proprio ceo, devia, + +mas foi por mão inimiga +trazido a estranhos logares, +onde murcho cederia +a influxos de infestos ares, + +se da estufa compassiva +lhe não fosse aberto o seio, +onde vegeta e floresce +de arbustos eguaes no meio; + +ali não receia as neves; +não treme da tempestade; +gosa o sol; vive no mundo, +vivendo na soledade; + +de extranhos somente é visto; +tem louvor; é cubiçado; +mas das flores, mas dos frutos, +não é jamais despojado. + +¡Mil vezes feliz, mil vezes, +quem ousa, á luz da verdade, +queimar a máscara d'oiro +ás larvas da sociedade! + +Medrae, sagrados mosteiros; +medrae, desprezando a inveja; +jamais fulminar-vos possa +calumnia que em vão troveja. + +Brilhae, como ilhas florídas, +no meio do mar profundo +de vicios, crimes, e horrores, +que alaga, que abrange o mundo. + +Sêde o asylo das virtudes, +do Eden a propria entrada, +o enlace dos Ceos co'a terra, +do Empyrio a sublime escada. + + +Coimbra--1826 (?) + + + + +XI + +SANTA MARIA EGYPCÍACA + +(Fragmento de um poema) + + + +......................................... +Prostrada aos pés da Cruz, ante a caveira, +jaz solitaria a Egypcia. Rios descem +de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam, + + + * * * * * + + +¿Tão nova, e isenta? ¡Oh! não; mudou de amores. +Dos primeiros só guarda a dor e as penas; +mas os novos, os ultimos, protesta +conserval-os em vida, e em morte havel-os. + + + * * * * * + + +Té aqui, pela alma escura só lhe ardiam +relampagos dispersos; derretido +raio dos Ceos lhe côa pelas veias. + + + * * * * * + + +Brilhou no mundo como a flor de um dia. +Os soes vivos, os ventos importunos, +lhe ameaçavam fim; ruins borboletas +captivas da belleza iam murchal-a. +Imprevisto invisivel jardineiro +a tempo a salva, e a transplantou no ermo. + + + * * * * * + + +No mundo, sobre o abysmo, hontem folgava +impróvida e leviana; hoje pranteia +na solidão, mas sob um Ceo que a espera. +As cidades, em que ídolo brilhára, +inda a chamam em vão, e em vão a aguardam. +De um lustro que a houveram, ¡quantos lustros +lhe volveram saudade! + + + * * * * * + + + Em viço de annos, +e mais bella que as flores todas juntas +das dezassete suas primaveras, +qual fugaz sonho de manhan de estio, +foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde. +Murcharam festas; esmorecem danças; +os banquetes, diffusos pela noite, +já não veem despertar ternura e risos. +Nas roseiras intactas se desfolham +os botões das grinaldas; o alaúde, +que falou tanto amor nas mãos da bella, +discorde jaz, e mudo... + + + * * * * * + + + Ella, entretanto, +co'os mimosos pés nús calcando areias, +desornado o cabello, envôlta em pelles, +timida, envergonhada, pesarosa, +vai caminho do Ceo co'a fronte baixa. +Mil vezes á avesinha se compára, +sem família, sem lar; corre erradia; +¿não ha-de ambas manter a paz que é de ambas? +Beija a caverna frígida que a hospéda, +e agradecendo este hórrido paraizo +ao Deus que lh'o depára, esquece o mundo, +ou sem saudade e com horror o aviva. + + + * * * * * + + +Ai coração tão amplo, onde estuava +mar de affectos sem conto, escoado agora, +¿quem o ha de encher? ¡em solidão tão funda! +¿quem o ha-de encher? Já o enche o que enche tudo, +o que brilha na luz, no sol, nos astros, +corre nos aquilões, anima os troncos. + + + * * * * * + + +Só conversa com Deus, e a Deus só ouve. +Este seio, estas tranças desatadas, +são brinco só do vento do deserto. +Esta mão, tão mimosa e tão querida, +só procura, excavando a terra ingrata, +a amorosa raiz, ou já se encurva +para dar agua aos labios sequiosos. +A aurora a vem saudar já de joelhos. +Não ha um sol, não ha na noite um astro, +que não saiba os seus ais e eternas preces. +Nem que passe o chacal, a hiena, a onça, +foge, ou quebra os devotos exercicios. +Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos; +e a Estrangeira não treme; ora, e descança. + + + * * * * * + + +Ao fresco desmaiar da extrema tarde, +quando os raios do sol já mal doiravam +da longinqua palmeira o incerto cume, +¡que vezes, assentada, e sustentando +na eburnea mão o pallido semblante, +atraz do astro fogoso e fugitivo, +mandava o coração, mandava os olhos! + + + * * * * * + + +--«Além--dizia--além, n'esse Occidente, +corre o santo Jordão delicias minhas, +que o Salvador banhou, que eu passei mesma. +Talvez aquella nevoa que lá brilha, +mudada em rosa, em purpuras, em oiro, +seja da santa veia alegre filha, +Além... Jerusalem, Sião, Judêa...» + + + * * * * * + + +E a taes nomes, enxames de memorias, +de saudades, de affectos, lhe adejavam +pela alma, alegre em parte, em parte escura. +Raro, mas inda ás vezes lhe assomavam +no involuntario somno ideias meigas. +Inda, uma vez ou outra, o amor banido +entrava de relance o antigo alvergue, +e apóz elle os passeios namorados, +os theatros esplendidos, as galas, +as mezas rindo, os bailes desenvôltos; +e as victorias, e as chusmas dos praseres, +como á sua rainha vão saudal-a. +Acordava sorrindo, a Cruz fitava; +e atirando se á terra, e sôlta em chóros, +pagava erros não seus com dor bem sua. + + + * * * * * + + +Taes se lhe vão no ermo deslizando +dias e annos, sem ver na areia impressos +mais vestigios que os seus. + + + * * * * * + + + De tempo em tempo, +só vê talvez, ou ver presume ao longe, +do horisonte nas sombras pavorosas, +o ténue pó da immensa caravana, +que vai de Alépo á Méka em certa estrada. +Por ella ora, e entre o orar lamenta +a devota fanática impiedade. + + + * * * * * + + +Tal vai manando a limpida existencia. +Egual ao ramalhete que desmaia, +e se esfólha no altar entre os perfumes, +tal, sem gosto e sem dor, e sem que o note, +perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia +encantos, já seu mal, e mal do mundo. +O juvenil das formas exteriores +concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas +se esconde um coração de amor não farto. + + + * * * * * + + +Quem a tivesse visto, e a visse agora, +sentiria o que sente o viajante, +quando, perto d'ali, vai dar co'os restos, +saudosos restos, da gentil Palmyra. +Uma e outra já gloria do Universo; +agora mudas, sós, e deslembradas, +e socias no deserto, e eguaes no exemplo. + + + * * * * * + + +Meio seculo a viu prantear sosinha +annos ligeiros da fugaz infancia. +Ao fim da gran carreira, o Ceo lhe envia +o solitario Zózimo, como ella +ancião virtuoso, e habitador das covas, +que lhe oiça a longa vida, a anime, e exforce; +lhe dê perdão e paz de um Deus em nome. + + + * * * * * + + +Pela primeira vez contente e alegre, +ousando olhar os Ceos, + --«¿Trareis,--lhe disse-- +á pobre peccadora o manjar de Anjos?» +--«Sim.» + E partiu. + Com vista prolongada +ella o segue; co'os olhos no deserto +o espera todo o dia; ¡e este é tão longo!... +¡tarda tanto o bom hóspede!... + + + * * * * * + + + Passou-se +um anno inteiro. É elle agora; é elle; +conheço o fraco andar que o zelo apressa, +e as cans, e a calva, e as faces penitentes... + + + * * * * * + + +Chega; clama; a caverna não responde; +grita, e só ouve a si. Olha em redondo, +vê-a jazer na areia, e a areia escrita +por mão trémula, errante, ao que parece: + + +Bom Zózimo, por santa caridade +enterra o corpo da infeliz Maria. +Aqui morri no dia em que te fôste. +Encommenda-me a Deus, e Deus t'o pague. + +............................................ + + + + + +XII + +EPISTOLA + +Ao meu amigo o Desembargador Manuel Venancio Deslandes + +(NO DIA DOS MEUS ANNOS) + +FRAGMENTO + + + +Em torno ao teu amigo estão fervendo, +Deslandes meu, na hora em que te escreve, +de uma festa caseira o reboliço. + + + * * * * * + + +Bem que alveje de neve o Caramulo, +e um frígido suão de lá nos venha, +ninguem hoje de frio aqui se queixa. +Não descança nem pé, nem mão, nem lingua; +o sumptuoso lar arde em tres fógos; +o forno se afogueia; a branca meza +vai-se de loiça e vidros alegrando. + + + * * * * * + + +Uma estuda em compôr as sobremezas; +outra enrama de loiro alta ferrugem +das vigas da cosinha; esta, sizuda, +de riscado avental e nus os braços, +com importancia e afan revira espêtos; +aquella, anda scismatica, e raivosa +de eu nascer em Janeiro, um mez agreste, +que além de um alecrim, de umas violetas, +nascidas por engano, além de rosas, +frágeis, sem cheiro, e languidas, não cria +com que se enflore a meza dos meus annos. + + + * * * * * + + +¿Porque é, quando a sorrir divagam todos, +quando só para mim se andam tecendo +estas pompas domesticas, agora +que a potente amisade em meu obsequio +para tudo fazer até fez estros; +agora, emfim, que aos raios da alegria +não ha um coração que se não abra... +¿por que se fecha o meu? ¿Dará (não creio) +da Natureza o luto um certo assombro +ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado +d'esta patria amargura, a filtre aos gostos, +qual vaso que azedado a tudo azéda?... +............................................. + +26 de Janeiro +de 1833. + + +FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA + + + + +NOTAS DOS EDITORES + +AO VOLUME I DO + +PRESBYTERIO DA MONTANHA + + +Da villa da Castanheira--No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de +Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o +sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam +da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella entra em +correição o seu Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja +parochial da invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da Feira, que +rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo tem uma freguezia +dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de Aguadão, que consta de 100 +visinhos. É curado annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu +Prior. Tem este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que +fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes de todo +genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes ordinarios, +Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão da Camara, Juiz dos +Orphãos com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da Ordenança. + +(_Chorographia portugueza_ pelo Padre Antonio Carvalho da Costa.--T. II, +pag. 176--1708.) + + +Castanheira do Vouga--Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de +Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem 803 visinhos. +Está situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S. Mamede. +Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros são do Santissimo, +de Nossa Senhora da Expectação, com sua irmandade, e outro de S. Jorge. +O Parocho é Prior, apresentação da casa do Infantado; tem de renda +400$000 reis. Tem tres ermidas, que são: a do Espirito Santo, a de Nossa +Senhora do Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra são +milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa um Juiz +ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios Aguedão, +Alfusqueiro, e Agueda. + +(_Diccionario geographico_ pelo Padre Luiz Cardoso. 1751.) + + + * * * * * + + +Castanheira do Vouga.--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago S. +Mamede; o Parocho é Prior da apresentação da Casa do Infantado; rende +480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 7; tem 58 fogos. + +Ágadão--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago Santa Maria +Magdalena; o Parocho é Cura da apresentação do Prior da Castanheira; +rende 40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem 102 +moradores + +(_Portugal sacro-profano_--por Paulo Dias de Niza; cryptonimo do Padre +Luiz Cardoso--Lisboa--1767--8.^o--2 vol) + + + * * * * * + + +Castanheira do Vouga.--Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do +Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140 +fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto +administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da +Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um monte proximo +á serra do Caramulo. A Casa do Infantado apresentava o Prior, que tinha +400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz algum vinho, e do mais +pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a 16 de Junho de 1514. Era +cabeça do concelho do seu nome e tinha Juiz ordinario, Camara, +Escrivães, e mais Justiças. Passam pela freguezia os rios Agueda, +Aguedão, e Alfusqueira. + +(_Portugal antigo e moderno_--por Augusto Soares de Azevedo Barbosa de +Pinho Leal--Lisboa, 1874). + + + * * * * * + + +Pag. 11 lin. ultima + +Dapibus mensas oneramus inemptis + + +Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto é, vivemos, sem +comprar, das nossas lavras proprias. + +Citação de Virgilio (_Georgicas_, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina +variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é: + + + _....Sero que revertens +nocte domum, dapibus mensas onerabat inemptis._ + + +Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que vamos ouvir +na traducção de Castilho: + + + ......Alembra-me que outr'ora, +lá por onde o Galeso arrasta a veia escura +por entre loiros chãos de cereal cultura, +junto á Ebália cidade, a de torreados muros, +conheci um corycio em annos já maduros, +dono de uma chanzinha ali desamparada. +O pobre do torrão de si não dava nada: +nem pasto para bois, nem para um fato hervinha. +Sumitico de pães, escasso para vinha, +era um sarçal fechado; e no sarçal, comtudo, +o bom velho, a poder de diligencia e estudo, +tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno +com seve de jardim para maior adorno, +alvos lirios, verbena, e papoilas de prato. +Não trocára co'os Reis seu parco haver tão grato. +Recolhia ao casal já noite; e, ¡que riqueza +de iguarias de graça a assoberbar-lhe a meza! + + + +Pag. 18 lin. 3 + +Passámos n'uma bateirinha, remada por uma velha moleira da margem, o +víçoso rio de Bolfiar. + + +Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O +caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos modernos, +deram cabo da antiga viagem tão pittoresca. + + +Pag. 36 lin. 20 + +Uma especie de zimborio de doze palmos de altura. + + +Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que +primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação do Reino. + + +Pag. 37 lin. 3 + +Uma desconforme loisa inteiriça horizontalmente aguentada nos ares por +esteios de pedra. + + +Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em muitas +partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da sciencia moderna. + + +Pag. 42 lin. 6 + +A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucídez. + + +O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho o +seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas _Excavações poeticas_ o +que elle diz do velho camponez Francisco Gomes, creado da casa, e «um +dos mais chapados classicos» que elle jamais encontrou. + + +Pag. 58 lin. 7 + +Lia, Rachel e Rebecca + + +Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel. Achando-se Rachel +ajustada para casar com Jacob, teve Labão astucia de lhe substituir Lia, +apesar de menos formosa. Foi mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá, Issachar, +Zabulon, e Dina. + +Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve +José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que ainda se +conserva e mostra o seu tumulo. + +Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de +Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob. + +Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan, +são encantadoras de singeleza e graça nas descripções que d'ellas nos +deixaram os Livros santos. + + +Pag. 72 lin. 15 + +Uma pobre mocinha ovelheira + + +Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era +Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta na +sua _Chave do enigma_. + + +Pag. 80, lin. 9 + +Filinto e o entrudo + + +Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom Francisco +Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da velha +Lisboa. + + +¡Viva o meu Portugal! ¡viva a laranja +que derruba o chapeo! + + +exclamava elle em París, ao lembrar-se das grosseiras costumagens dos +Portuguezes, felizmente meio polídas já hoje. + + +Pag. 82 linhas 6 e 8 + +Citações latinas + + +Essas duas são de Virgilio (_Eneida_, Livro I) + + +_Fronte sub adversa scopulis pendentibus antrum; +intus aquae dulces, vivoque sedilia saxo; +nympharum domus_. + + +Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um antro; e lá +dentro correm aguas doces, e apparecem assentos como que talhados na +rocha viva; verdadeira habitação de nymphas. + + +Pag. 87 lin. 21 + +As rogações de Maio + +Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado, +fallecido no anno 475. + + +Pagina 99 linha 23 + +O ubi campi! + + +Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II das _Georgicas_: + + +_Rura mihi et rigui placeant in vallibus amnes; +flumina amem silvasque inglorius. O ubi campi +Spercheosque, et virginibus bacchata Lacaems +Taygeta!......_ + + +Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles; +encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou. ¿Onde estais, +campinas? ¿onde estás, rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas +alegres virgens espartanas? + +Castilho traduziu assim este trecho: + + +Então amar só quero os rios e arvoredos, +de glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos! +ai ribeiras do Spérchio, oiteiros do Taygéto, +das virgens de Lacónia ás órgias predilecto, +¿onde, onde me estais vós?.... + + + +Pag. 102, lin. 10 + +Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in urbem + + +Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das _Tristezas_. +Dirigindo-se ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no +desterro, entre os gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno +livro; has-de entrar sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal. + + +Parte, ó meu pobre livro; irás sem mim, sosinho, +correr na gran Cidade incognito caminho + + +traduziu alguem + + +Pag. 107, lin. 17 + +Zimmermann + + +João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de Berne, a 8 de Dezembro +de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi abalisado sabio. Nomeou-o +medico da sua camara em 1768 el-Rei de Inglaterra; el Rei de Prussia +Frederico, o grande, foi tratado por elle na sua ultima doença, e deveu +allivios aos seus cuidados intelligentes. O Principe russo Orloff foi de +proposito com sua mulher consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se +a S. Petersburgo falou d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina, +que em 1784 procurou attrahir á sua côrte aquelle luminar da sciencia. +Elle pediu excusa, porque a vida mundana não condizia com os habitos que +tinha creado o seu espirito; não se ofendeu a eminente Princeza, e +conferiu-lhe a ordem de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu +morrer-lhe entre os braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho. +Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de outras +obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa, publicou em +1756 o seu _Tratado da Solidão_, onde todas as vantagens moraes do +isolamento são defendidas com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia +exagerada. + + +Pag. 108, lin. 6 + +O Passeio publico e o Marrare + + +Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico, +riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas +Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar +os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos Restauradores até +á extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No sitio exacto +do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande tanque redondo +(hoje no jardim da Graça). + +O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no Chiado. + + + + +ADDITAMENTO + + +Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu bom irmão, +pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres sermões que ainda restam +d'este. As suas obras ineditas mandou o proprio Doutor Augusto Frederico +de Castilho que lh'as queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as +seguintes: + + + I--O sermão de S. Pedro, ou da Fé; II--O sermão da esmola, ou da + Caridade; III--O sermão nas exequias do senhor D. Pedro IV; IV--A + pastoral dedicada ao seu rebanho episcopal de Beja; V--Uns versos + na _Primavera_ de Antonio Feliciano. + +-----File: 111.png---\-----------------[Blank Page] -----File: +112.png---\----------------- + + + + +SERMÃO + +DA + +ESMOLA OU DA CARIDADE + + + Prégado na 5.^a dominga da Quaresma de 1839 na Sé de Lisboa pelo + Conego Arcipreste da mesma Sé, o Doutor de capello em Canones + Augusto Frederico de Castilho + + + +_Jesus abscondit se, et exivit de templo._ +Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo. + + + +De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de +Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por escondido, +deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu serviço. Jesus vivo, e +na occasião de que trata o Evangelho, estava no mundo, e faltava no +templo. Jesus, hoje, por dois milagres de fé e amor, por duas +eucharistias, está no templo, e mais no mundo: no _templo_, encoberto no +Sacramento; no _mundo_, encoberto nos seus pobres. N'uma e n'outra parte +o devemos servir com egual zelo. + +Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer á fome e ao frio +os necessitados, não é de christão; é fé morta. Soccorrer aos infelizes, +sem crer (se tal é possivel) n'Aquelle que elles representam, é caridade +morta; tambem não é de christão. + +Vós pareceis christãos pela fé, pois que vindes á casa de Deus; vós o +pareceis, mas não o sois, porque essa fé é morta; cumpre que se +resuscite pela caridade. + +Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que é a caridade +pratica e activa; é o christianismo na sua parte mundana, o culto do +Verbo humanado aos olhos de todos, a religião de todas as religiões, a +philosophia de todas as philosophias, o axioma para todos os +entendimentos, o dogma até para o atheismo. O objecto é o mais +accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa faria á +vossa piedade, se vos exigisse a attenção. + + * * * * * + +Alma e coração, discurso e affectos, convencem e persuadem como dever a +esmola. Não creou a Natureza irmãos privilegiados, e morgados na familia +dos homens: para uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para +outros, encargos de miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou +malicias, estabeleceram essa desegualdade; e andou tambem ahi traça +recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se uns de outros +não carecessemos, não nos amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos, +não fôramos virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, +desentranhada de nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e +purissima fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos, pois, a +Natureza; a Providencia nos desegualou; e n'esta contradicção apparente, +é que Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus +conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça, quiz que tivessemos uma +norma de egualdade; na Providencia, isto é, na sua caridade, que +aprendessemos a restabelecer, quanto em nós coubesse, aquella egualdade +primitiva por mutuos soccorros. + +O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho mimoso da +Providencia, depositario e executor da Justiça de Deus, transumpto e +argumento de sua bondade e misericordia. + +O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o patrimonio dos +pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo injustiça e barbaridade, egual á +do depositario que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que +converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a +substancia do seu pupillo; é ainda mais: é declararmo-nos inimigos de +Deus, desacreditando, e dando, de certo modo, quebra áquella +Providencia, cujos éramos dispensadores e supplementos; áquella +Providencia, que não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes +pelo ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae Celeste. + +Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra bello, generoso, heroico, +brota (não duvidemos) da caridade. Deus, para tornar as virtudes caras, +e accessiveis até aos mais faltos de discurso, não creou a caridade, +senão que a tirou de suas proprias entranhas, e orvalhando-a sobre a +terra, lhe deu por benção que de todas as mais virtudes fosse ella +semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos +ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato, instinto (¿por +que o não diremos?), instinto moral. + +Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais profundo, mas tambem o mais +extenso de todos os affectos, para que, sobre encher-nos o coração de +virtude, ella nol o podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, +nol-a podesse tornar permanente. + +¡Oh! ¡que maravilhosa não é esta caridade, que em todas as edades, e em +todas as circumstancias da vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre +lhe renascem objectos, e infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, +como elle, toda a Natureza creada, passa dos homens aos animaes brutos, +d'estes aos proprios entes insensiveis, adivinha infortunios, inventa e +persuade soccorros, até para entes que os não sabem agradecer, que os +não requerem, que os não precisam! + +Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos; momentos em +que se não sabe conter, nem governar; suspiros, lagrimas, e desalentos; +enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas, como tudo lhe nasce do +amor e compaixão, tudo é terno, tudo é mavioso e consolador. Virtude de +virtudes, virtude unica onde não ha excessos. + +Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras +primas da creação. ¡Ah! ¡que se jamais se podessem tributar ao homem +cultos, que só á Divindade se devem, ninguem tanto os merecêra, como +esses que, possuindo os thesoiros dos bens terrestres, os derramam no +seio dos infelizes! + +Porém, meus irmãos, não é mistér uma brandura de animo requintada, para +nos movermos com os infortunios dos nossos semelhantes, e +procurarmos-lhes o remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um animalsinho, +morto de fome, transido de frio, desamparado ás inclemencias de uma +noite de inverno, e invocando a nossa piedade com aquelles gritos +lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes para dizerem as +suas dores, qual de nós se não sentiria profundamente condoído, não +correria a abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah! ¿e +deixariamos no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso +irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens possuimos, +cuja felicidade é tão travada com a nossa, e cuja desgraça tem sido +talvez effeito da nossa injustiça, da nossa barbaridade? + +¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o coração... ¿que +digo? que o trazeis defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores +mais doridos da Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se estão +sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis, ¿que uso mais +util farieis vós de vossos bens, do que seria o acudir-lhes? Na vossa +avidez insaciavel (semelhantes ao inferno, que, por mais victimas que lá +chovam, não cessa de clamar _affer_, _affer_, mais e mais), uns de vós, +ó ricos do mundo, se contentam com a visão beatifica dos seus cofres; a +sua alegria, a sua felicidade, o seu proximo, o seu mundo, a sua alma, o +seu Deus, tudo seu ali jaz; ali enterraram o coração, e o conservam mais +duro, mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que +amontoaram; em quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus +thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por +luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem, sem destino, sem uma só +utilidade real. Mais loucos ainda e mais infelizes, outros emfim, +parecendo arrenegar dos beneficios da Providencia, os cofres que ella +confiou nas suas mãos, elles os despedaçam e espalham, não só sem +vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de +si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios, +abysmaram a rasão, destruiram as forças, aniquilaram a saude, +anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus irmãos, ¡que de inquietações, de +violencias, de trabalhos e de dores, para comprar uma eternidade +desgraçada! ¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o +inferno! + +Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses dinheiros de +maldição, preço dos tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os +dias se renova nos seus pobres, que vós entregais e desamparais sem +piedade, com esses dinheiros de maldição, ides comprar um arrependimento +esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o odio dos homens, a +vingança de Deus, os tormentos eternos! + +¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara opulencia! Injustiça para +com os infelizes, cujos bens sonegamos, cujos lamentos não queremos +escutar, cuja morte mesmo antecipamos muitas vezes.--Injustiça para com +Deus, de quem recebemos esses bens, com a condição da caridade, e cuja +Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos beneficios e +esmolas, desde que entramos no mundo.--Injustiça para comnosco mesmos, a +quem fechamos as portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os +sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de toda a +felicidade.--Injustiça, emfim, para com todo o genero humano, de quem +nos afastamos, a quem não queremos pertencer, de quem até nos declaramos +inimigos. + +¿E para onde fugirão os nossos olhos, que lá não vá a miseria publica +perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos desgraçados, porque +nunca a nossa immoralidade foi tão barbara. Realisou-se sobre tantos +irmãos nossos parte grande das maldições, com que Deus, por bocca de +Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por todas as guaridas da +indigencia; visitae os tugurios e choupanas miseraveis das aldeias, das +maiores povoações, e até das cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e +variedade de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e +doentias, mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de +pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas; ¡quantas se não +chamam poisadas e casas, que antes são covas, masmorras, ou jazigo de +viventes! ¡de quantos não é cama a terra humida, e vestido o que nem +lhes encobre a nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos, +chorando e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais +infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na Natureza, além do sol +que os aquece, e do ar que respiram, e começam a conhecer tão cedo a +dureza dos homens, obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar +por si mesmos com que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas +tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas sem protecção, em quem, sobre o +desamparo e dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus bens +arrancados por crédores, e quantas vezes por ladrões, debaixo do nome de +crédores! ¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores ás suas +forças, ou á sua creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com o +suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está derretendo e +mirrando! ¡Tantos enfermos expirando á mingua, sem medico, sem +tratamento, sem remedios, sem enfermeiros, sem alma viva que os console, +que lhes suscite as ideias da Eternidade, e até sem um lençol que os +amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços, e do uso dos sentidos +mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados para a borda dos +caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol, as chuvas, os +frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros de outra +especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem lar, sem nada, nem um +amigo, sósinhos em meio de tanto mundo! + +¡Mas que me canço eu a enfeixar o que não tem conta! E quando de taes +miserias conseguisse fazer aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras +não ficariam de fóra, mais profundas, e mais miserias, porque ellas +mesmas refogem e se escondem! As ruas e as praças, com todos os seus +clamores e penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie +está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não sei que reflexo de +verniz e doirado, um não sei que ruido festivo, um perfume de opulencia +e sabores, um certo sorrir, um raio de sol, um aspecto de céo azul, uma +vida e uma esperança, que são disfarce, e mascara da existencia do povo, +real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida. Sahindo-se para a rua, +deixam-se á porta as lagrimas, e cuidados verdadeiros, e toma-se na +bocca e faces o contentamento postiço. Por fóra andam os corpos em toda +a sua gala; mas dentro, por todo esse immenso _dentro_, nas entranhas +d'esse infinito massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos +sem termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão chorando +milhares de corações, estão-se desesperando milhares de almas. + +Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira para se +recrear, por esses caminhos tão lageados de marmores, tão ataviados de +vidros de cores, de metaes brilhantes, de todas as espumas mais formosas +do luxo, se Deus permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos +por entre que duas montanhas de infortunio, vai caminhando! ¡oh! ¡como +de repente, semelhante a Pharaó, na estrada do Mar Vermelho, desabariam +de todas as partes a afogal-o ondas e mares de dor! + +Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da caridade, +¡quantos pobres envergonhados que abafam soluços e gemidos entre as +quatro paredes da sua casa! Nas horas da noite, quando das dansas, dos +jogos, dos espectaculos, e de peores logares, saem torrentes de +mundanos, em quem parece que o tempo, o dinheiro, a saude e a fama pesam +insoffrivelmente, ¡que de vezes se lhes não atravessam diante uns +phantasmas de penuria, em fórma já de mulheres, já de meninos, já de +anciãos, a quem a vergonha do sol não consentíra sahir dos seus +sepulcros! De um portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, +nos saem as suas vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de +que não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo a mão a +receber a esmola, e a abençoar a caridade; algum vos esconde um rosto, +que, em melhores dias, tinheis visto brilhar á luz da prosperidade. + +Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os +dias, e não temem o aspecto da noite, porque já não podem ser mais +infelizes, é Deus quem nol os envia ao encontro, menos por elles que por +nós, menos para alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem +algum affecto ao coração gasto, algum pensamento fundo e importante á +alma dissipada. ¡Felizes vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos +da desgraça, estas embaixadas solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que, +em vez de os repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade, +com a esperança ao queixume, e com a commiseração a quem não cuidava que +no mundo a houvesse! + +--Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que +me desatinam, que me desesperam (dizeis vós), ¿quem me abona a sua +pobreza? e concedendo-lh'a, ¿quem me affirma que não é ella castigo da +sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que vos importa? Se póde ser uma +coisa ou outra, dae; antes lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em +vaso cheio, ou em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a +quem do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe +recusasseis, padecêra n'um dia o que vós não padeceis n'um anno, ou, +para o não padecer, commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle +n'este mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós, que tão de +repente sentenciais o desgraçado que não conheceis, ¿por que vos não +sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a vós? + +_Póde não ser pobre o que vos pede._--Sim, e algumas vezes se tem +visto.--_Póde ter merecimentos para muito mais ainda do que +padece._--Sim, que é homem como vós, e com mais razão do que vós para +aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde ser; ¿mas +examinastes vós se era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a +esmola por tal motivo, ¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a +injuria? ¡Ah! em quanto sentenciais uma alma que não conheceis, e +condemnais o vosso semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais +razão não tem elle para condemnar a vossa alma, que vós mesmos lhe +descobristes inteira com uma só palavra! + +Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a concessão), que todos esses +andam expiando peccados seus; são até criminosos e facinorosos; que nem +um d'elles tem necessidade; são até abastados e opulentos; que todo o +mendigo é um salteador e um millionario. ¿Estais contentes com a +concessão, ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o não ha. +Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos apresentar pobres, de uma +pobreza processada e demonstrada, que vos não importunam nem se queixam, +dos quaes muitos, dos quaes inteiras classes, não mereceram, nem poderam +merecer, o seu estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito que o +sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas mães; ahi os +tendes, que a Misericordia mesma não basta a amamental-os e vestil-os, +e, de seus pobres bercinhos, caem em cardumes nas sepulturas, e vôam a +ir depôr na presença de Deus, contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes +dado a vida por um peccado, por um peccado ainda mais mortal (se é +licito dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a morte. + +¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem innocentes. +Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida, onde se queria educar e +felicitar um seculo novo, e que, por falta de caridade publica, +morreram, depois de tão bem nascidos e esperançosos. + +¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice, tambem e mais desvalida, +onde os soccorros nunca são sobejos, nem sufficientes; porque muitos +mais são sempre os que batem e choram áquellas portas de refugio, que os +que a estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro á meza do +convite de Deus. + +Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o Senhor chamando o +coração, e por toda a parte vos tem cercado do dever da esmola. + +¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias. + +¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos, a quem +falta pão, lar, vestido, mundo, que o não conhecem, nem elle os conhece; +militares que envelheceram nas armas e morrem á míngua; viuvas e orphãos +de servidores do Estado, a quem se não paga, nem com esperanças. + +¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos politicos +vencidos, em quem não é mister longo exame para se reconhecer a +desgraça, porque é corollario evidente de causas notorias. A terça parte +de uma edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais longe, tem +sido entre nós consumidos em dissenções e odios. Com successivos +terremotos políticos, teem desabado as mais altas torres de fortuna; +desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram arrancadas de +furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes esperanças; os +caminhos trilhados e sabidos subverteram-se; por onde se descia, +sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum +dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de oiro, e o ancião doirado, +que ainda hontem lhe houvera matado a fome, lhe alonga a mão, da margem +do caminho, clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o +presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado; entendo +os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e bens do +futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males extraordinarios, +que não são, para que assim digâmos, nem do homem, nem da Natureza, nem +de Deus, mas sim da mudança, da transformação da fortuna, da fortuna +cega, que, no trocar das mãos, quebra sem pejo, nem dó, nem consciencia, +o que depois todos choram e ninguem concerta. + +Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que não vemos, +pela peior de todas as cegueiras, que é o não querer ver. E quando +d'esta somnolencia, d'este lethargo, d'esta morte do coração, acordamos +algum momento a este som _Esmola a este vosso irmão pelas chagas de +Nosso Senhor Jesu-Christo_, já nos reputâmos muito generosos, se em vez +do silencio ou de uma injuria, lhe acudimos com um _Deus o favoreça_; e +tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos vãos ou +peccaminosos que traziamos; e lá deixámos para traz a Jesu-Christo morto +de fome, a Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o +seu estado de abjecção os não obrigasse á humildade ínfima, se o uso de +soffrer estas repulsas os não tornasse já meio insensiveis, se elles nos +podessem retorquir, «¡Quê! (nos responderiam) ¿Deus que nos favoreça? +Deus nos favoreceu com esses bens que indevidamente retendes; Deus nos +favoreceu com os thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes. +¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis acaso tental-o? ¿que elle obre em +nosso favor um milagre desnecessario? ¿que torne a chover o maná do céo, +não sobre um deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, +que por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas dádivas? Esse +maná vós o possuis, e encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará +que se corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos favoreça, deshumanos? Sim, +sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os merecimentos que +terieis na sua presença em serdes misericordiosos, elle os accumula +sobre a nossa resignação; com os infortunios que nos accrescentais, e os +prémios que rejeitais, se juntarão em nosso favor aos prémios de que a +sua misericordia nos achar dignos.» + +¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza fossemos capazes de +entender os gritos e lagrimas de tantos paes de familias, cujas familias +podem dizer que não teem pae, tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas +desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos +enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos pobres +envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a +significação das suas dôres e desalento, que uma reprehensão amarga da +nossa barbaridade para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão para +com Deus; acharíamos, sim, acharíamos até n'esses lamentos, a expressão +propria com que devêramos deplorar nós mesmos a dureza, antes +ferocidade, dos nossos corações. + +Não só, meus irmãos, as nossas liberalidades atalham todas estas +miserias, mas ainda vão precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre +rapariga, a cuja honra se preparam violentos ataques. O Céo a dotára das +qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou de algum modo desfazer a +obra do Céo, juntando-lhe a pobreza com a formosura. Do seio da +opulencia, um libertino já vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario +da virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e +todas as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que +exaltaram o seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os +seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque; +frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na repulsa, o +merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a seducção, de +mãos dadas com a indigencia... ¿não vencerão cedo ou tarde? Chegou emfim +esse dia; ¡venceu! e com um sorriso infernal applaudiu o seu triumpho, e +a desgraça que consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre +victima. Ali jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo; +ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que, depois de a +desgraçar, chegou mesmo a aborrecel a; ali jaz na mesma indigencia que +d'antes, porém mais infeliz agora; a sua honra fugindo abalou-lhe todas +as outras virtudes. Em odio a Deus e a si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um +refugio no mundo? nenhum, porque o traidor, declarando-se seu cruel +inimigo, foi divulgar o segredo, e exigir esses applausos infames, que +tanto mereceu. ¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, +seriais sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te houvesse a +tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e modesto, onde +vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos homens, ¿não se teria +afastado ainda o raio que reduziu a cinzas o desambicioso edificio da +tua felicidade? + +Além é um moço, que, cançado da dureza dos homens, começa a não conhecer +as leis na sua necessidade. Por toda a parte repellido, julgou direito +prover por si mesmo, e a todos os despeitos, á sua conservação.--«Todos +esses a quem recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não quero a sua +felicidade; mas tenho, como elles, direito de viver.»--Levado assim +pelos raciocinios errados do vicio, ou só por um instinto que lhe +bafejou a injustiça dos homens, começou por pequenos furtos; passou a +maiores; nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; +zombou de todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e +acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o affasta do +precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe tira deante dos +olhos dois futuros que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere +perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas +correspondentes, em si e na sua duração, a crimes de que nunca se +arrependeu, e damnos que nunca tiveram restituição. E quando elle passar +para o patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis: «Não +tenho coração para taes espectaculos;» ¡como se esse mesmo coração não +fosse o seu peor algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso! + +N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade, +mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas +esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os amigos que o +atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que se vê precipitado n'uma +desgraça a que não prevê termo na sua desesperação, insulta o Céo, +blasfema da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe se irá (como +tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender um +laço, por onde arranque uma existencia que o importuna! ¿E a caridade e +a ternura não poderão ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe +rebentar as lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o +coração? ¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e abençoar o pão com que +lhe sustentamos uma vida que lhe fizemos amar ainda? + +¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas não déstes vós ás almas +generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos alcançava uma côroa o +que salvava os dias do seu concidadão, ¡que honras não merece dos outros +homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma vida +infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que já suppunham surdo e injusto! +¡e que até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da +miseria que lhes arrancariam os meios de salvação! + +¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para reconhecermos como bem +real esta doce obrigação da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que +mais fortes motivos não tem o homem christão, para ser esmoler, segundo +as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os deveres da caridade não +são para nós simplices axiomas, ou preceitos da philosophia; não são o +resultado de um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas +vieram não só confirmar, mas dar ainda, se é possível, uma extensão +muito maior a tudo quanto n'esta parte a Religião natural nos havia +imposto. + +Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos modos, até +indirectos, nos não é persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós +todo o thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais +perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo qual +nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as Escrituras); não só nos +adornou de todas as graças que perdemos na desobediência de nossos paes, +mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem (mais +parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma +habitação commoda e feliz. Esse sol que nos allumia o theatro do mundo, +essas estações que lhe mudam as scenas, os frutos saborosos e delicados +que rompem da terra, os vestidos que nos cobrem, o ar que respiramos, o +somno que nos restaura as forças, os prazeres que nos lisonjeiam os +sentidos, os prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do +coração, são outras tantas esmolas, com que Deus proveu desde a +eternidade ao homem, sobre fraco e indigente, ingrato a tantos +beneficios. + +Na sábia disposição com que de mais o Eterno Padre arranjou todo o +grande systema da Natureza, ¿não nos deu Elle uma grande lição de +caridade, estabelecendo em todas as suas obras uma encadeacão successiva +e mutua de dependencias e soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares +liberalisam as suas aguas ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em +chuvas, a terra ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos +mares; e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo +se conserva, se reanima, se restaura. + +D'esta mesma sorte, não só as grandes porções da Natureza, mas ainda os +seus minimos individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e +os soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes á +existencia dos outros. É assim que, por toda a parte envolvidos pela +Natureza, do meio da qual nos elevamos, como obras as mais perfeitas, +não só nos não devemos resvalar a uma condição inferior á da propria +materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade, quanto +nos devemos considerar como entes, cuja conservação é mais importante +para a manifestação da gloria de Deus. + +O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia, +desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de +felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o seu sangue, +lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o Céo e a +terra. + +O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de santificação, e +nos accode com esmolas continuas, desde que abrimos os olhos, até que +deixamos o mundo; pelo baptismo assenta os nossos nomes no livro da +vida; confirma-nos e augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas +vezes quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos anjos; e +accode-nos até com remedios temporaes, á hora em que as portas do +carcere se vão abrir, e a alma sôlta reverter á sua origem. + +Mas não só pelo seu exemplo e meios tão indirectos nos persuadiu Deus a +esmola; não é uma simples recommendação, é um dos preceitos mais +rigorosos:--_Ego proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et +pauperi qui tecum versatur in terra_: Sou eu, é o teu proprio Deus, quem +te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e ao pobre, que lida +comtigo sobre a terra. Esta lei tão clara, tão precisa e absoluta na sua +letra, ¿terá acaso todos esses caractéres que devem sempre manifestar-se +em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e seja o proprio Deus quem nol-a +interprete. + +É _justa e necessaria_: necessaria muito mais ainda para o bem +espiritual dos bem-feitores, do que para o commodo temporal do +soccorrido. A esmola, segundo Jesu-Christo, é um acto de Religião, +conjuntamente com a oração e jejuns; é pois rigorosamente um meio +expiatorio; é um commercio que temos com Deus por meio do nosso proximo; +é uma agua copiosa (diz o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio +das nossas iniquidades; é uma santa usura, em que trocamos bens +superfluos e temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros +que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão sempre +clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas que nunca teem de se estragar +nem de esgotar-se, que nunca nos serão roubadas nem podem ser +consumidas; é um seguro para o dia da afflicção; é finalmente um arrimo +a que nos soccorremos para não cahir. + +Mais: é _util_, considerada mesmo temporalmente para quem a dá. O +Espirito-Santo o disse tambem nos Proverbios: _Aquelle que der ao pobre, +de nada carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas, cahirá tambem +na pobreza._--Eis aqui, meus irmãos, eis aqui patente o terrivel segredo +da vingança divina, quando aniquilla tantas fortunas que pareciam tão +solidamente estabelecidas: _Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil +inanes_. Sim, porque as maldições, ó ricos do mundo, que o pobre vos +lança em segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas +imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca d'elle arredará os +seus olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, +sereis ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos +thesoiros; _et sepultus est in inferno_. E se as vossas riquezas vos são +consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso inferno no +mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa quéda seja mais +espantosa, ou para que os vossos descendentes, que não são culpados nas +vossas iniquidades, não experimentem a punição da vossa dureza, e +recebam juntos esses bens a que irão dar um justo emprego. + +¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes vós, pelo contrario, que homem algum +se arruinasse jámais pelas suas larguezas com os pobres? ¿Não é antes +uma verdade, confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as +familias de mais caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o +Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os prophetas: +«Se derramares toda a tua misericordia sobre os necessitados, e encheres +de consolação almas que gemiam na afflicção, a tua casa se tornará como +um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será tão perenne como a +fonte que a todos offerece os seus licores, e por mais que a bebam nunca +se esgota, nem cessará de correr.» ¿E o Redemptor não disse ainda mais +expressamente: _Date et dabitur vobis_? ¿Não compara elle a retribuição +com que o Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades, com uma medida +avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os lados, que se nos +vasará para o regaço? ¡Oh! não duvidemos: os bens do misericordioso, +repartidos pelos infelizes, são o azeite e a farinha milagrosa da santa +viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a Escritura, comeu ella e a sua casa; +e desde aquelle dia nunca lhe faltou a farinha no pote, nunca o azeite +do vasinho se diminuia. + +Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de bençãos as Escrituras não veem +chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o +Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no mundo, o livre das mãos +dos seus inimigos, o allivie no leito da sua dôr. O que dispersar os +seus bens pelos pobres, viverá de seculo em seculo na memoria dos +homens, abençoado será o seu nome, e n'elle se despontarão as settas +envenenadas da calumnia. _Justitia ejus manet in saeculum saeculi. +Exaltabitur in gloria. Ab auditione mala non timebit._ ¿Que significam +tantas promessas, meus irmãos, tantos premios, tanta abundancia de +bençãos, as glorias do Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem +benefico? ¿Que sacrificio tão importante se vai exigir d'elle? ¿a que +lances heroicos o querem persuadir? ¿que perdas soffrerá que cumpra +contrabalançar por premios de tão alta valia? ¿Exige-se-lhe a +mendicidade e a miseria, em que viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um +exterminio de todas as paixões? ¿uma abnegação de todos os prazeres? ¿as +mortificacões da penitencia? ¿a constancia e morte gloriosa dos +martyres? Não, não. Pede-se-lhe só amor e provas de amor para com seu +irmão; pedem-se-lhe só lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe +intima que dê, com prejuizo seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas +empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e +patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para lhe pedir +só as migalhas superfluas da sua meza. + +¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a vossa! ¡Remunerardes +como sacrificio uma virtude, e acceitardes como virtude o que nada custa +ao coração! ¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres mais doces +da consciencia! ¡Considerardes em mais do que homem a quem só cumprìu +com deveres da humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que +trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já nol-o havieis dado com +essa condição! ¡Acceitardes, finalmente, esses bens frageis, temporaes e +caducos, esses bens que só devemos á vossa liberalidade, como moeda +correspondente em valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros +infinitos! + +Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos nos deveriamos abysmar, +vós me chamais, meus irmãos, vós me fazeis descer ás profundezas da +vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um segredo bem +importante. ¿E não adivinho eu quaes teem sido, desde que enunciei o +thema e objecto do meu discurso, os pensamentos de muitos de vós, da +maior parte, ou antes de quasi todos os que me escutais?--«Feliz +(exclama cada um de vós, no seu coração) feliz de mim, se eu podera +soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me veria de posse do Céo. +Porém Deus não me destinou a mim esses premios e bençãos; e se a esmola +fôra um meio indispensavel de salvação, eu me perderia sem remedio, não +por minha culpa, mas por culpa da fortuna. Todos os meus bens +escassamente chegam para a minha sustentação e da minha casa.»--Assim +pensais; assim buscamos pretextos para illudir todos os preceitos até os +mais terminantes e expressos da Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua +presença, dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa +propria crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu do +Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos, que ahi estão +comvosco. Folgais talvez com a sua confusão; e a doutrina da caridade, a +doutrina de tanto amor, só serve de despertar em vós a insolencia, o +desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa semente se +perca d'este modo; que só a acceite um pequeno torrão de terra, e que em +vez de produzir os bellos frutos do Senhor, a maior parte do seu campo, +ou quasi todo elle, continue a só desatar-se em cardos e espinhos. +Afugentemos as aves d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e +não consintâmos que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por +mais pequeno, da sua terra. + +Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem excepção, vos achais obrigados +a ella; e esta universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o +seu segundo caracter de lei. + +Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a +outra do coração. Tão longe vai, pois, a esmola como a caridade; e para +podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos possuir um coração. ¿Não +tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por tantos +famintos. ¿Escassamente vos chega o pão, mas tendes algumas roupas +superfluas? Cobri com ellas tantos nús. ¿Nada tendes hoje? Promettei +para ámanhan; enchei de esperanças o seio vazio de todas as consolações. +¿São a caso insignificantes os bens que vos restam para os frutos da +caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que deis só um copo de agua +fria a um dos mais pequenos do mundo, lembrando-vos de que elle é meu +discipulo (vos diz Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que não +ficará sem recompensa. ¿Nada tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes +que dar? Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a vossa +fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não mentis ao desgraçado, se na +verdade vos achais privado de todo o genero de haveres, ainda possuis +muitos bens em que não reparaveis. São os que existem dentro do vosso +coração. Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre +todas as feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com o +vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que os ricos sem elle, +afogados nos seus thesoiros. Consultae esse coração; ouvi como um +oraculo as suas respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus +impulsos. + +¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi á morada do rico. +Entrae affoitos. + +Pintae-lhe as miserias do seu semelhante. Mostrae que só os interesses +da humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os +vossos olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae +as eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos +corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com o pão e com +a carne, que vos deu essa Providencia, que assim soubestes interessar. + +¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o trabalho dos vossos +braços. Advogae perante o poderoso a causa do fraco. Desfazei os enredos +e calumnias, que ennegreceram vosso irmão, que lhe roubaram todas as +protecções. + +¡Não tendes que dar! Congraçae o homem com o homem, a familia com a +familia. + +¡Não tendes que dar! Visitae tantos desgraçados, que gemem por esses +carceres; persuadi-lhes a paciencia, e a resignação evangelica; +confortae-os com palavras doces, com esperanças consoladoras. +Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com mão carinhosa, os +remedios; animae-o com os vossos sorrisos, e fazei que troque os +suspiros da sua dôr e do seu desalento em suspiros de ternura, em +expressões de confôrto; que veja os Céos abertos, e que goze +antecipadamente de premios, que, se não fosseis vós, talvez não tivesse +de possuir. + +¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a tantos meninos, e +ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de vosso proximo na +presença, assim como na ausencia. Ajudae-o com as vossas orações. + +Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas. +São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca se esgota +para um christão. Tomae a vós uma parte do seu infortunio, e elles +ficarão menos oppressos. ¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do +oiro! ¡De quantos e quantos modos, não sabe reproduzir-se a +beneficencia! + +Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia, +porque elles alcançarão misericordia. + +Eis aqui as bençãos e os premios do Céo, recahindo sobre todos vós, sem +exclusão de um só. Ahi vos tendes tão ricos, aos olhos do Senhor, como +esses ricos, cuja dureza lamentaveis, a cujos bens vos promettieis dar +um melhor emprego, se os possuisseis. ¿Quem vos detem? ¿por que não +correis a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a +merecerdes essas bençãos e premios, que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê! +¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o zêlo, que murmura, que reprehende, +que insulta nos outros a infracção dos deveres, em quanto os julga +alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por +mais injusta contradicção, as fraquezas, que não perdoamos no mundo, +sendo em nós, já as sabemos desculpar; ¡e quantas vezes não passam de +desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão, se a +humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os interesses do mundo, +se as bençãos do tempo e da Eternidade, se todos os premios de Deus, +emfim, nada podem comvosco, possam-n-o, ao menos, as suas ameaças, +castigos e maldições, que vão constituir a sua lei perfeitamente +obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter. + +¿Recusais a misericordia de Deus? Já não tendes que escolher. Só lhe +ficaram as vinganças. Affastae-vos, ó santa familia de infelizes. +Pobresinhos do Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover +fogo e colera do Céo. Para além, para além, é o vosso refugio, á dextra +do Eterno Padre. _Venite ad me, omnes qui laboratis, etc._ ¿Não vos +tinha elle dito que os vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as +humiliações se lhes converteriam um dia em triumphos? Sim, sim, ó +famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos, ¡jubilae! +Vós nunca cessastes de ser os seus filhos muito amados. Eu vou reassumir +todos os thesoiros (vos diz elle) que a minha Providencia repartira +pelos vossos barbaros oppressores. Eu lhes havia dado mais altos meios +do que a vós mesmos de alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos +custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de os fazer +ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o vós, ó +meus pobres; frutos que eu vou recolher e guardar para sempre no meu +seio; elles foram arvores estereis, que, dominando toda a sementeira, a +açoitaram com os ramos, a damnaram com a sombra, a devoraram com as +raizes; infecundas e nocivas eu as arranquei em meu furor; eu vou +lançal-as ao fogo. Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no +incendio eterno, que foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu +tive fome, e vós me não déstes de comer; eu tive sêde, e vós me não +déstes de beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e não me +vestistes; enfermo e encarcerado, e não me visitastes. Todas as vezes +que despedistes, que calcastes os pequenos do mundo, a mim, a mim o +fizestes. + +¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença de maldição estampar-se hoje com +letras de fogo e indeleveis nos vossos corações. Este Jesus escondido +nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos templos, coberto de +remendos, macilento, prostrado debaixo do pêso de tantas cruzes, é um +rei de majestade, é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda +a sua cólera, e de cujas sentenças nunca poderêis mais appelar. ¡Oh! +compadecei-vos d'elle, soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e +humilhado, para o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador. +¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o coração me-diz que esta semente +não será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros e consolações. + +Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda é tempo. Aqui +promettemos soccorrer-vos com o que é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a +vós, cahido, a vós humilhado, para vos não experimentarmos depois +accusador, testemunha, vingador e inexoravel. Antes que nos-accendais +esses fogos de maldicção, já era nossos corações temos accezos outros, +que muito mais são vossos: os da caridade. + +Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em tôrno da meza do vosso +banquete celestial, aonde se assenta o opulento Salomão a par do Lazaro +mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador arrependido com +o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos sôbre o vosso seio; e n'um +abraço de eterno amor nos-apertae a todos sôbre o vosso coração +paternal, por todos os séculos dos séculos. + +Assim seja. + + + + +INDICE + + +I--A primeira noite na serra 5 + +II--O sepulchro, ou historia de uma noite +de S. João 11 + +III--Epistola a João Evangelista Pereira da +Costa 41 + +IV--O Presbyterio 43 + +V--A lyra do desterrado 49 + +VI--Epistola a 51 + +VII--A romaria 53 + +VIII--O Domingo gordo dos montanhezes 55 + +IX--O S. João nas faldas do Caramulo 77 + +X--O mosteiro 81 + +XI--Santa Maria Egypcíaca 91 + +XII--Epistola ao Desembargador Deslandes 97 + +Notas ao 1.^o volume 99 + +Additamento 107 + +Sermão da Esmola ou da Caridade 109 + + + + + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade editora + +[Figura] + +LIVRARIA MODERNA 95--RUA AUGUSTA--LISBOA + + + + +*Notas:* + +[1] Verbi gratia na quinta da Domanderes. + + + Nota do autor. + + +[2] Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos com o +gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz descarregar +uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos ladrões, pelas muitas +perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.--Nota do +secretario Augusto. + +[3] A Castanheira do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da Feira, a uma +legua de Agueda. + + + Nota do autor. + + +[4] A traducção de parte de Silio Italico pelo Padre Francisco Manoel do +Nascimento (Filinto Elysio.) + + + Nota do autor. + + +[5] Traducção da escolha das Fabulas de Lafontaine pelo mesmo. + + + Nota do autor. + + +[6] (O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.) + + + Nota dos Editores. + + +[7] Josué--cap. XXIV + +[8] Juizes--cap. VI. + +[9] Foi este fragmento publicado na _Revista Universal Lisbonense_ de 19 +de Junho de 1845--Tomo IV, pag. 582. + + + Os Editores. + + + +Lista de erros corrigidos + + +Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: + + + +----------+---------------------+----------------------+ + | | Original | Correcção | + +----------+---------------------+----------------------+ + | Volume I | | | + |#pág. 20| a ém | além | + |#pág. 33| «o salto)» | «o salto») | + |#pág. 36| opíma | optíma | + |#pág. 56| Ines | lhes | + |#pág. 69| fescenino,» | fescenino», | + |#pág. 94| acompapanhal-o | acompanhal-o | + | | | | + | Volume II| | | + |#pág. 45| dextra não | dextra mão | + |#pág. 113| tarrestres | terrestres | + +----------+---------------------+----------------------+ + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by +António Feliciano de Castilho + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + +***** This file should be named 28127-8.txt or 28127-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28127/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at http://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + http://www.gutenberg.net + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/old/20090219-28127-8.zip b/old/20090219-28127-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..d62d608 --- /dev/null +++ b/old/20090219-28127-8.zip diff --git a/old/20090219-28127-h.zip b/old/20090219-28127-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..e39d07e --- /dev/null +++ b/old/20090219-28127-h.zip diff --git a/old/28127-h/20090219-28127-h.htm b/old/28127-h/20090219-28127-h.htm new file mode 100644 index 0000000..8f97874 --- /dev/null +++ b/old/28127-h/20090219-28127-h.htm @@ -0,0 +1,18055 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <title>O presbyterio da montanha</title> + + + <meta name="AUTHOR" content="António Feliciano de Castilho" /> + + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=ISO-8859-1" /> + + <style type="text/css"> +body {width: 50%; margin-left:10%; text-align: justify;} +h1, h2, h3, h4, h5 { text-align: center;} +h1 {margin: 2em; text-align: center;} +h2, h4 {margin-top: 2em;} +.tiny {font-size: 75%; text-align: center;} +.tinys {font-size: 90%;} +.tinyl {font-size: 95%;} +.bbox {border: solid black 1px; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} +.fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 75%; margin-left: 10%; margin-right: 10%;} +.intro {font-size: 90%; font-style: italic; margin-left:7%;} +.intro1 {margin-left:20%;} +.signature { +margin-right: 5%; +text-align: right;} +.smallcaps {font-variant: small-caps;} +.quote {margin-left:7%; margin-right:7%;} +.quote1 {margin-left:30%;} +.quote2 {margin-left:45%;} +.quote3 {margin-left:10%; margin-right:7%;} +.right {text-align: right;} +.break { +width: 40%; +margin-left:30%;} +.sbreak { +width: 20%; +margin-left:40%;} +.breaks { +width: 10%; +margin-left:45%;} +.note {font-size: 75%;} +.dots {color: #fff; background-color: inherit; border: 3px dotted #555; border-style: none none dotted;} +.poetry {margin-left:25%;} +.poetry1 {margin-left:20%;} +.poetry2 {margin-left:50%;} +.poetry3 {margin-left:30%;} +.poetry4 {margin-left:40%;} +.poetry5 {margin-left:60%;} +.pagenum { position: absolute; right: 35%; +font-size: 75%; +text-align: right; +text-indent: 0em; +font-style: normal; +font-weight: normal; +color: silver; background-color: inherit; +font-variant: normal;} + </style> +</head> + + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by +António Feliciano de Castilho + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.net + + +Title: O presbyterio da montanha + +Author: António Feliciano de Castilho + +Release Date: February 19, 2009 [EBook #28127] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + +</pre> + + +<div> +<div> +<div class="fbox"> <b>Nota de editor:</b> +Devido à +existência de erros tipográficos neste texto, +foram tomadas várias decisões quanto à +versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi +mantida de acordo com o original. No final deste livro +encontrará a lista de erros corrigidos.<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita +Farinha (Fev. 2009) +</div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>O Presbyterio da Montanha:<br /> + +<br /> + +<a href="#Vol.I">Volume I</a><br /> + +<a href="#Vol.II">Volume II</a></h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4> + +<h4> +XIX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME I</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +95, Rua Augusta, 95<br /> + +1905</h4> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +OBRAS COMPLETAS<br /> + +DE<br /> + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4> + +<h4><br /> + +VOLUME 19.º</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">I</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor +e melancolia.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A +chave do enigma.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas +de Ecco e Narciso.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(1.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span>―Apreciações moraes, +litterarias, e artisticas.</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">X</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(3.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(4.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(5.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (6.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(7.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span> (8.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (1.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (2.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (3.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da +montanha</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<h3>NO PRÈLO:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 41px;">XX</td> + + <td style="width: 10px;">―</td> + + <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O +Presbyterio da montanha</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4><a name="Vol.I"></a>OBRAS COMPLETAS DE A. +F. DE CASTILHO<br /> + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4> + +<h4> +XIX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da<br /> + +Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME I</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br /> + +<em>Sociedade Editora</em><br /> + +</h4> + +<span style="font-weight: bold;"><br /> + +</span> +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td> + + <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td> + + <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <b>Rua +Augusta, 95</b></td> + + <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<h4>1905 +</h4> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>Advertencia dos Editores</h3> + +<br /> + +<br /> + +Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos +antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa +solidão de mais de sete annos de homisio na serra +do Caramulo. A esses manuscritos, que ia publicar com o titulo de <em>O +Presbyterio da montanha</em>, escreveu um prologo extenso, +descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos de +distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as +saudades de um irmão, o melhor dos irmãos, o +já então fallecido Abbade de S. Mamede da +Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo concluiu-se, +imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a +publicar-se.<br /> + +<br /> + +O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes +da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, +fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer +como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, +são hoje considerados espe +O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes +da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas, +fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer +como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, +são hoje considerados especies bibliographicas de primeira +raridade. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[6]</span> +Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional +de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, +bibliógrapho, e escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, +outro; a fallecida snr. <sup>a</sup> D. Maria Peregrina de +Sousa, poetisa +portuense, possuia outro, que parece ter levado caminho; Innocencio no +Tomo I do Supplemento do seu immortal <em>Diccionario</em>, +não declara se era dono de algum; menciona a obra, apenas.<br /> + +<br /> + +Quanto á parte poetica do livro projectado, essa, +não impressa, desappareceu em parte. Só algumas +poucas peças +encontrámos, umas inteiras outras incompletas; materiaes +truncados da collecção. Salvando esses versos, +cumprimos um dever moral, e outro literario.<br /> + +<br /> + +O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico +de um edificio ainda em +construcção, e já em ruinas; +é inquestionavelmente uma das obras mais curiosas e +instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a historia, a +lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o <em>folk-lore</em>, +d'aquella +região alpestre, tão portugueza, mas +tão desconhecida, tudo isso é tratado com amor, +com o cuidadoso amor de um archeologo-poeta.<br /> + +<br /> + +Appareceu tambem uma +<em>Introducção</em> em +verso sôlto a certo poema intitulado <em>O +Sepulcro, historia de uma noite de S. João</em>, +projectado pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito +phantastico, infelizmente por concluir. Entendemos não menos +intercalar essa curiosa Introducção, no seu logar +chronologico, por varios motivos: dá-nos +<span class="pagenum">[7]</span> +Castilho sob uma +feição poetica diversa da sua habitual, e +pinta-nos o estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia +soffregamente o ar, a vida, os usos populares da montanha. O <em>Sepulcro</em> +é +pois optimo contribuinte d'este truncado banquete literario, e +fôra imperdoavel, apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do +borrão original, que possuimos pela letra do amoravel +secretario Augusto Frederico, para esta licção +actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor ditadas em +1864.<br /> + +<br /> + +Além do <em>Sepulcro</em>, outras +peças, portuguezas e latinas, já impressas nas +<em>Excavações</em>, teriam logar +aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, pela sua indole; mas o autor +preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. Facil é ao leitor +intelligente o procural-as.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +Á MEMORIA<br /> + +<br /> + +DO<br /> + +<br /> + +EXEMPLAR DE IRMÃOS</h4> + +<h4><br /> + +AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO<br /> + +<br /> + +PRIOR DE<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">S. Mamede da Castanheira do Vouga</span> +</h4> + +<h4><br /> + +<em>Em testemunho publico e perenne</em><br /> + +<br /> + +<em>DE</em><br /> + +<br /> + +AFFECTO E GRATIDÃO</h4> + +<h4><br /> + +Offerece<br /> + +<br /> + +<em>Antonio Feliciano de Castilho</em></h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>PREAMBULO</h3> + +<h4> +I</h4> + +O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o +classifical-o podesse por alguma via valer a pena.<br /> + +<br /> + +Não é historico, nem ficticio; não +é didactico, philosophico, nem descriptivo; não +é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de +tudo isso, de tudo isso participa.<br /> + +<br /> + +Nem sequer é um livro; é uma congérie +de pequenas coisas, todas mais ou menos obscuras, e quasi todas +desconnexas, e de pensamentos não procurados, se +não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem +determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles +banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que +ha em casa,<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry"> <em><a name="n1"></a>...dapibus +mensas oneramus +inemptis,</em></div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[12]</span> +para hospedar a +cortesãos que lhe passaram pela porta. Não +procura enganal os: com mãos limpas e +coração lavado lhes +põe diante o que só para si tinha tratado na sua +horta, ceifado no seu chão, cevado no seu pateo, ou colhido +do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem; algumas +flores, já pode ser que as apresentará em vasos +de barro; mas como vos assoalha com bom rosto quanto possue, +não se vos alardeia de abastado, nem se compara com os +visinhos de casas altas e balcões envidraçados. +Como quer que vós d'elle o fiqueis, não +ficará elle descontente de si mesmo á despedida.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de +carreira, parte apenas esboçado ou apontado, ha hoje doze, +treze, quatorze, quinze, e dezasseis annos, sem pensar no Publico; para +mero desenfadamento de horas abhorrecidas; para ajudar a correr mais +depressa, em sitios tristes e ermos, uns tempos muito ermos, muito +tristes, e para mim, que nunca bem atinei com o futuro, muito +desconfortados de esperanças.<br /> + +<br /> + +Como todo o meu fim em fazer versos não era outro +senão o fazel-os, de todo o modo me nasciam bem. +Não tinham de apparecer entre gente; não os +educava; não os corrigia; não lhes punha galas e +arrebiques. Assim sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.<br /> + +<br /> + +Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que +não tornasse; achei-os +<span class="pagenum">[13]</span> +os mesmos que os tinha deixado: +sinceros, mas incultos e semi-silvestres, como nados e creados que eram +por entre troncos e penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por +fora o mesmo que por dentro faz a consciencia.<br /> + +<br /> + +Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram +filhos; contavam já annos: recordavam-me tempo de saudades; +eram me saudades elles proprios; reconheci-os; dei-lhes o +meu nome; com elle os apresento.<br /> + +<br /> + +<h4>II</h4> + +<br /> + +Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu +que <em>se +compõem</em> para o Publico; e, bem hajam elles!: +não levam á praça senão o +que teem averiguado que por lá se deseja e se procura; +põem de parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao +interesse ou gosto alheio.<br /> + +<br /> + +Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.<br /> + +<br /> + +Não sou eu que vou para os leitores; são os +leitores que teem de vir para mim, se as quizerem ler. +Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; as suas +occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela +minha rudeza; os seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da +sua vida, pelo recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte +desconhecida e pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só +vista de cima pelo ramo de tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela +andorinha cujo ventre branco +<span class="pagenum">[14]</span> +ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar +desde aqui (a fim de que não venham depois obrigar-me por +divida que eu não contraio), que a unica +deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar +alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no +interior da casa alheia, e nos segredos do visinho.<br /> + +<br /> + +É o que faz com que, por mais futeis que pareçam +as memorias, que alguns escrevem de suas vidas, e as correspondencias +epistolares, quando por acaso vão dar ao prelo sem terem +sido ordenadas para elle, commummente são lidas com +interesse.<br /> + +<br /> + +É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as +achadas de antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma +antiga vivenda particular ou casa rustica, onde os vasos e +utensís do viver quotidiano veem logo suscitar na phantasia +os costumes, o trato, e o ser intimo, da gente que ali houve.<br /> + +<br /> + +Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o +ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos +banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas +ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; +confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, +de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e +virações do ceo, do sussurro das plantas, dos +sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu, +deixando de si menos v +Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o +ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos +banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas +ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; +confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, +de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e +virações do ceo, do sussurro das plantas, dos +sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu, +deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e a +lampada que allumiou +<span class="pagenum">[15]</span> +calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.<br /> + +<br /> + +Os monumentos são artificiaes, e artificiosos; +são estudados, e emphaticos; a historia que elles resam +é fria. Mas cá, o romance que engenhamos, +ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado, +é todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +As <em>impressões de viagens</em> +estão sendo ao presente um genero de Literatura mixta mui +usado e mui querido.<br /> + +<br /> + +Não admira: para os autores é facil; para os +leitores, recreativo quando menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que +todos temos muito ou pouco; sem cançasso nem más +poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por aguas do mar; +sem desabrimento de estações; sem saudades do que +lá +fica para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que +é repetir algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a +pessoa a viajar em corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando +aonde ninguem a espera, nem festeja, nem conhece, e onde não +ouve pelas ruas palavra nem som da sua creação.<br /> + +<br /> + +A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos +atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam, +com a nossa casa e familia, sem até nos demovermos do nosso +quarto nem da nossa cama, se como Ovidio somos, que punha entre os +regalos da vida o de ler deitado.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[16]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o +gosto de conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são +extranhos, e não medir as distancias que nol os apartam, que +esse, pelo contrario, é o maior desconto do peregrinar, +¿por que se apeteceriam mais as viagens á +França, á +Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás +margens do Rheno, +á Russia, ao Egypto, á China, ou ainda +á Lua, do que a um qualquer monte da nossa terra, +só conhecido de seus moradores e visinhos?<br /> + +<br /> + +¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em +cujas faldas está assentado S. Mamede da Castanheira do +Vouga, como um neto no regaço de sua avó triste e +taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se abriu a arca +depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.<br /> + +<br /> + +Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar +montanhezes, agrestes porém bons; e tão bons, +que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal productivos, nos +seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e +pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, +entalados nos córregos, ou inclinados a scismar tristezas +sobre algum rio fundo e triste, nunca se lembraram de vos invejar a +vós outros as vossas cidades opulentas e festivas.<br /> + +<br /> + +Estes, com falarem portuguez, são para vós +estrangeiros, ou quasi. Como taes, não vos despraza +conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com quem por entre elles +demorou annos, e de boa-mente lá iria +<span class="pagenum">[17]</span> +agora enterrar os restos cançados +da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe lá +ficou em quieto desterro para todo sempre. <sup> <a href="#1">[1]</a></sup><br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>III</h4> + +<br /> + +A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região +o novo Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade +minha continuada e sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a +sua pequena familia, de que era eu parte inseparavel.<br /> + +<br /> + +Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais +florídos; Lisboa, a do nosso berço e da nossa +infancia. Uma e outra me chamariam pelos affectos em qualquer parte do +mundo em que eu estivesse; e não houvera eu +valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que +então cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos +elle e eu, por nos sentirmos um como o outro tão encantados +com o nosso futuro, já palpado e colhido ás +mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os +outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, +mais amenas ou mais vívidas, +<span class="pagenum">[18]</span> +por aquellas gentilezas +incultas e mais poeticas de uma natureza quasi primitiva.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<a name="n2"></a>Passámos n'uma +bateirinha remada por uma velha moleira da +margem, o viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje +corrupto, segundo a tradição, o <em>bom +fiar</em> de certa moça mui santa, que junto d'elle +vivia n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o +trabalho da sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros +lhe viesse o appellido, significando <em>pepinal</em>, ou +<em>rio das terras dos pepinos</em>; pacifico rio, que +então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas +altas e verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de +se deter enlevado na amenidade de tal painel.<br /> + +<br /> + +Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para +um e outro cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes, +só de longe a longe interruptas de um sovereiro torcido e +mal posto, ou de um rebanho; terreno boleado e ondeado como um lago, +que em meio de tempestades se houvesse petrificado por encanto. +São já fronteiras do Caramulo.<br /> + +<br /> + +<h4>IV</h4> + +<br /> + +A freguezia de S. Mamede não se vê em parte +alguma; é dispersa, e emboscada. A magreza da terra +não dá para grandes espessuras de +povoação.<br /> + +<br /> + +O aspecto do paiz, para quem só o atravessa +<span class="pagenum">[19]</span> +é de inhospedeiro. Mas que +se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea +e desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em +todos os +corações. É porque a +solidão é de si mais +affectuosa, e a pobreza mais liberal e larga, que o rico povoado.<br /> + +<br /> + +Esta differença e vantagem que os moradores levam +á sua terra, experimentámol-as nós +ainda antes de chegarmos á egreja e +residencia, sahindo a receber o seu Pastor novo não +só os maioraes, se não quasi todo +o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das cerejeiras +e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde +áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas +brancas.<br /> + +<br /> + +A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para +o seu adro muito verde, apresenta-se solitaria. Das +povoações em que a freguezia se divide, nenhuma +lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia +parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de +traz, como serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por +entre os plátanos, que o portal do seu pateo toucado e +semi-velado das mais espêssas, crespas, e lustrosas heras, +onde jámais se esconderam e cantaram melros.<br /> + +<br /> + +Ambos os edificios ficam no meio do +<em>passal</em>, antiga quinta «das +Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do +sinuoso deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, +que ali teem o seu foco espiritual.<br /> + +<br /> + +Um grande silencio rodeia largamente a +<span class="pagenum"> <a name="p20">[20]</a></span> +casa da oração. O presbyterio não lh'o +quebra.<br /> + +<br /> + +Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo +rustico mas espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da +sua frontaria principal unicamente para o ceo, e para umas formosas e +corpolentas laranjeiras, que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle +clausuradas, o modesto domicilio, proporcionado pelo que sempre +deverá ser o pastor de tal rebanho, não se +retrahiu para mais longe, por traz da sombra do santuario, porque +não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez mais +precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa +para <a href="#e1">além</a> a esconcear, +descer, e +afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e +espumifero rio de S. Mamede.<br /> + +<br /> + +Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a +grande altura, por cima das aguas escuras e raro alcançadas +do sol, communica esta com a ribanceira ulterior, não menos +carrancuda, fragosa, arripiada, e a pique.<br /> + +<br /> + +Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até +ao moirisco logar de Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da +penedia d'alem-rio, entremeia apenas distancia, que, pela calada das +noites, deixa ouvir de parte a parte os ladridos dos cães de +gado, as cantigas do serão, e os alertas dos gallos a +deshoras. E comtudo, aquelle +<em>quasi-nada</em> para os ouvidos e olhos, é +para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem +perigos.<br /> + +<br /> + +As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte, +giram enleadas e perplexas, +<span class="pagenum">[21]</span> +torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a esquerda, como +espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a +subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.<br /> + +<br /> + +Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, +são os unicos entes vivos, que por ali se affoitam a tomar +pé. Os seus frutos vermelhos, quando o vento lh'os despega +maduros, vão sumir-se entre as espumas arrebatadas.<br /> + +<br /> + +Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes +escarpas, com poucas braças de ceo por cima, e por baixo de +si o rugir de tantas aguas, dá as +sensações de um +bello horror.<br /> + +<br /> + +Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas +esquecidas para aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas +vezes ahi me veio por tardes de Junho, em quanto, calado e estendido +sobre as táboas, gastadas e rôtas da humidade, me +gosava da viração transpirada pela corrente. +¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma +inspiração de religiosa poesia no fundador, a que +fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço, +como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja? +¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão +escura, tão angustiada, tão clamorosa, e com +tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras +inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo +ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre, +tão aberta, o dia inteiro, ao generoso sol dos campos, +tão gorgeada a ambas suas portas +<span class="pagenum">[22]</span> +de passarinhos, tão garrida de +espadanas sobre as campas do pavimento, e nos seus cinco altares +tão ridente de flores silvestres, symbolo da alma refugida +das tormentas do mundo para o ineffavel asylo da Fé e das +Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e +transição dos dois extremos, a casinha do Pastor, +alva como a confiança, verdejante e florida como as +promessas, recatada como a esmola, inexhaurivel no seu celleiro como a +Providencia, tácita como a meditação, +com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas para a +torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores de +Deus para o firmamento.....<br /> + +<br /> + +O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a +torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou +Mamante, foi um humilde e obscuro pastor de gado na +Capadócia, e do qual toda a Egreja do Oriente +pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou +martyr, por volta do anno 274 da nossa era.<br /> + +<br /> + +O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o +vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres +e pacificos arredores, para o Menino, já moço na +valentia, ou para o moço, ainda menino na innocencia.<br /> + +<br /> + +Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos +concertou.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[23]</span> +<h4>V</h4> + +<br /> + +Era a residencia, quando a ella chegámos, +decrépita e caduca: apparencia de choça fabricada +de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior; por fora +negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de inuteis e +desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor a havia +em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado.<br /> + +<br /> + +A transformação foi rapida e completa. Os +alpendres desappareceram. Na casa remoçada entrou por +vidraças abundancia de luz. O pateo desafrontado foi +revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de cal bem candida, +logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro n'elle +plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que +n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já +não existe na terra, o outro declina para o occaso, elle, +medrando ainda, é já, como lh'o eu +augurára nos +meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu tronco cinco +palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura. <sup> <a href="#2">[2]</a></sup><br /> + +<br /> + +O novo Prior, o Rev. <sup>do</sup> snr. Padre Antonio +José Rodrigues +de Campos, a quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, +varão de virtude, e espirito cultivado +<span class="pagenum">[24]</span> +por Letras, filho d'aquellas boas +terras, e amigo nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do +nosso nome, conserva e zéla tudo aquillo com amor.<br /> + +<br /> + +É para mim delicia o considerar, que á sombra +grande d'aquelle cedro, que eu regava todos os dias, quando um menino +de tres annos o poderia ainda arrancar sem custo, lerá +talvez, depois do seu Breviario, este livrinho das minhas memorias, em +que deposíto o seu nome mollemente reclinado entre tantas +outras saudades minhas.<br /> + +<br /> + +<h4>VI</h4> + +<br /> + +Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me +escondeu sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de +1834, o ninho em que nasceram, sem pensarem em abrir o vôo +que hoje abrem para o mundo, estas poesias montesinhas.<br /> + +<br /> + +Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo +esboçado, peço-lhes ainda um pouco de +indulgencia, para lhes dar a conhecer, por alto, os arredores.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo +por traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno, +a escoar-se cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.<br /> + +<br /> + +Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e +erma de Falgozelhe, se boleiam +<span class="pagenum">[25]</span> +melancolica mas graciosamente as suas hortas, os seus pomares, a sua +fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras, que +até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois +de povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada +horizontal, por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, +até ir bater, lá ao longe, na +capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe servem de +limite.<br /> + +<br /> + +Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias +folgavam de avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades +protectoras da Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo +agricola como este, do que achar a casa do <span class="smallcaps">Creador</span>, +e a do seu +dispenseiro, no centro da abundancia das messes, e saudal +a com a invocação de um +Pastorinho santo?<br /> + +<br /> + +O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. +Sebastião, por entre duas grinaldas de oliveiras e vinha, o +meu passal até ao adro; costeia a egreja e a casa pela +direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai mergulhando +para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura sombria da fonte +sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja antiga, um altar +de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, assoberbada com +um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um troço +de lança enferrujado de musgo. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[26]</span> +<h4>VII</h4> + +<br /> + +Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé +d'este altar, onde já ninguem ajoelha, sobre sepulturas que +hoje são tremoços, e recordemos a obscura +historia d'este sitio.<br /> + +<br /> + +¿Por que razão só as grandes ruinas se +hão-de haver por merecedoras de +attenção? Todo o passado é poetico; +todo o evocar imagens humanas de sob a terra que pisamos, é +proveitoso para alguma coisa. Nas solidões, mormente como +esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, e que onde +hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de +ninho quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos +bons, e até festas.<br /> + +<br /> + +Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da +Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela +margem de cá ás aguas do S. João do +Monte, que logo a diante troca o nome no de S. Mamede, um +moço por nome Jorge, humilde de +geração como tudo quanto por ali nasce e se cria, +mas de coração alto e espiritos levantados.<br /> + +<br /> + +Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal +uma velha, que o ouvira em pequenina a seus paes, que o tinham recebido +não sabia de quem)... mas emfim, namorára-se, que +o sabia ella, de certa moça de alem-rio, guardadora de +cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro grau +de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da +<span class="pagenum">[27]</span> +sua vivenda entre penedos, levava, os dias +com os olhos sempre içados aos cabeços de +Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de +serguilha, ou do seu sombreiro preto; e ainda não de todo +malcontente, quando, por entre os penedos pardos e as urzes +côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do +precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que +obedeciam á sua voz melodiosa.<br /> + +<br /> + +A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a +esperdiçava cantando n'aquellas solidões, +parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a estava captando com +ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido entre as +nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a +interrompesse, porque não sabia de coisa mais de molde para +o seu coração.<br /> + +<br /> + +Vel-a á sua vontade, não a via se não +aos domingos na egreja; e nem então, que para esses dias +tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias muito alvas, e +tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe +que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a +fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das +aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que +prestem para communicar dois estados tão diversos.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é +poesia; e poesia não é vida. Ousou, e declarou-se +a medo á sua formosa; não foi repellido. +Affoitou-se a mais: +<span class="pagenum">[28]</span> +ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario em confissão. O +que +entre elles se passou, não se sabe; taboas de confessionario +não são carvalhos dodónios que +chocalhem tudo. O que se sabe, é que a moça +não tornou +a apascentar para aquella banda, e que elle, pouco depois, deixou a +terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos, sem +dizer nada a ninguem, e não levando senão o +fatinho que tinha no corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo +dizem, era grande, e o seu amor, que não era pequeno.<br /> + +<br /> + +Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el +Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus +para onde, e para quê.....<br /> + +<br /> + +No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento, +assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida, +apegou-se com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse +com tudo seu a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, +uma capella da sua invocação com duas Missas por +semana, defronte de Falgozelhe, onde vivia a noiva do seu +coração, por cima da Talhada, onde tinha os +irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o +baptisaram a elle, e onde a avistava todos os domingos.....<br /> + +<br /> + +Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria +muito em semelhante lance, em que as ondas formavam, por instantes +montanhas tão altas e escarpadas, porém mais +temerosas e feias que ess'outras, entre cujas quebradas, e por cujos +visos, elle variára a sua infancia. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[29]</span> +Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.<br /> + +<br /> + +Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em +Angeja, que em boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e +nunca mais tornou a aventurar-se sobre aguas do mar.<br /> + +<br /> + +Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que +ainda ali se divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi +demolido, para ir servir como materiaes na +edificação de parte da residencia, e da egreja +nova, que já sabeis lhe estão visinhas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +―¿Mas o fim de seus amores?―me perguntareis +vós.<br /> + +<br /> + +Memoria é essa que eu tambem procurei, porém +não consegui desencantal-a.<br /> + +<br /> + +O que só pude desenterrar da tradição, +foi: que este mesmo Jorge viera a casar-se na freguezia; que tivera um +filho nascido na póvoa da Talhada; que este se +ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e +arribára a +Cardeal; em memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada +da antiga, e mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito +amadas, uma Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com +braços em baixo e em cima, oleada de verde, doirada nas +pontas, e n'ella pintados tres cravos, duas chagas, e uma +corôa de espinhos.<br /> + +<br /> + +Vê se, venera-se, e +commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na parede do +<span class="pagenum">[30]</span> +arco cruzeiro da banda direita; e +affirma-se, que na capella de S. Jorge permanecêra com egual +honra em quanto ella durou.<br /> + +<br /> + +Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma +póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro +velho, e onde o que só fazia bulha no meu tempo era um +pequeno moinho, rôto por todos os lados aos ventos e chuvas, +foi, ou não, nascido do consorcio a que o Padre Vigario e +seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não +alcancei; e não quero +invental-o. Provavel me parece que sim, quando me lembro do que a minha +velha me contava d'aquelles amores, e o combino com a ideia que formei +da constancia no bem querer dos moradores da minha serra.<br /> + +<br /> + +A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a +Jorge, qualquer apostaria que o foi sempre. A fortuna +entulhára com riqueza o abysmo que os separava; e S. Jorge, +que não é Santo para meias victorias, havia +forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto. +<br /> + +<br /> + +Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de +pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome +ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os +recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e +beber á saúde da futura +geração algumas malgas de vinho verde na sua casa +da Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do +Monte.<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[31]</span> +<h4>VIII</h4> + +<br /> + +A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o +antigo oratorio dos Condes da Feira; e a residencia, já +depois duas vezes transformada, albergue do feitor que elles ahi tinham +para lhes receber os fóros, e lhes tratar d'aquella sua +quinta, chamada, como já tocámos, «das +Limeiras».<br /> + +<br /> + +Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto, +havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão, +do Bispado de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de +distancia da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para +Alcafaz, pertencente agora á freguezia de Agadão, +sitio ainda desfavoravel pelo estirado +e descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem +ermida, casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a +sustentação de Parochia sobre si.<br /> + +<br /> + +N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos +hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus +amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a +espessura das moitas então creava, segundo parece, como +ainda hoje cria lobos. Folga a phantasia comparando e contrapondo +aquelles tempos a estes, e reanimando o actual silencio com um reflexo +e ecco da vida estrepitosa de outra edade. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[32]</span> +<h4>IX</h4> + +<br /> + +Explorámos as convisinhanças do templo e +residencia. Estendâmos agora os olhos até +ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico +senhorio.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o +logar das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S. +João Baptista, e sua fonte muito fresca.<br /> + +<br /> + +Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da +Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa +com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do +Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que +desde as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no +alto do seu oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam, +de extrema a extrema do Reino, quantas noticias o revolvem, +sem que a boa da villa, nem outro algum dos logares que entram na sua +abençoada +confederação de rustica ignorancia, as adivinhem, +nem suspeitem, nem cubicem.<br /> + +<br /> + +A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a +humilde póvoa de Falgarinho, de não mais que oito +visinhos.<br /> + +<br /> + +Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se, +n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres +pessoas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum"> <a name="p33">[33]</a></span> +Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores, +e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e +agradavel quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de +Nossa Senhora do Livramento.<br /> + +<br /> + +Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S. +João do Monte, que a seus pés corre, +está em amphitheatro o Avelal-de-cima, +de vinte e quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da +egreja.<br /> + +<br /> + +Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis, +a meio quarto de legua está para o nordeste o +Avelal-de-baixo, logarejo de quarenta e sete almas, e uma capella de +Nossa Senhora da Conceição.<br /> + +<br /> + +Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo +bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de +observação.<br /> + +<br /> + +Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi +toda a costa dos Ferreiros, passa-se o rio de S. João do +Monte, junto ao seu confluente Alcafaz (nome arabe, que significa +<a href="#e2">«o salto»)</a> +nome +que para ali está, ha mais de +setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a +sua origem, nem se corromper.<br /> + +<br /> + +Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa +Talhada, de honrada memoria, berço de um Cardeal, de um +fundador de capellas, e de um namorado de lei; tres celebridades para +um ninho hoje de quatorze almas, coberto de loisas e colmo, e coroado +de sarças e medronheiros; dista-nos um quarto de legua para +nordeste. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[34]</span> +Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede +(que toma este nome na juncção dos dois +afluentes) se atravessa na ponte de pau que já sabeis, e +onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a apanhar +á fresca.<br /> + +<br /> + +Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas +rochas, toma-se a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda, +que em travessia da montanha, sobre a esquerda do rio, leva +até ao casal do Fontão, de onze almas, sito na +margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz, a quarto +e meio de legua para nós.<br /> + +<br /> + +Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a +encosta; e no cimo se encontra a povoação de +Falgozelhe, de setenta e uma almas, posta a um quarto de legua da +egreja, a les-sueste, quasi na extremidade occidental de um +ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração +é o que á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz. +<br /> + +<br /> + +Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por +outra ponte de pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo +está o pequeno e vistoso logar da Falgarosa, de trinta e +seis moradores, com uma sua ermida da Senhora da Boa-Morte, a tres +quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o delicioso de seus +pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de +sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo, +com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje +rege aquelle rebanho. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[35]</span> +Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de +se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S. +Mamede.<br /> + +<br /> + +Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda, +de cincoenta almas, com sua capella de S. Gonçalo, a quarto +e meio de legua a sudoeste da egreja. Redonda se chama, por estar +á borda de um leito semi-circular.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas +confrontações externas.<br /> + +<br /> + +Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do +Préstimo; pelo poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da +Aguada de cima, e Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão, +filial, ou annexa, que aínda +então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre +si; paiz ainda por ventura mais serrano e variado, mas que eu +não cheguei a descobrir.<br /> + +<br /> + +<h4>X</h4> + +<br /> + +O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um +corpulento ramo do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em +voz de Moiros quer dizer «abobada», ou montanha +boleada á feição d'ella.<br /> + +<br /> + +Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros +ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que +merece. Mas, sobre que nunca o visitei, apesar de tão +visinho, recearia apoucar-lhe a +<span class="pagenum"> <a name="p36">[36]</a></span> +veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas +noticias que d'elle tive.<br /> + +<br /> + +Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando +d'entre as nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa +em tempestades, em frutos magra, mas <a href="#e3">opíma</a> +em homens e +mulheres de antiga tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da +fome, e da nudez; é um paiz de selvagens +christãos, para o qual as rudes terras do meu S. Mamede +estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios +poderia estar a antiga Attica.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Dois monumentos accrescentam veneração ao +Caramulo, quanto o podem mesquinhas obras humanas ás +grandiosas moles naturaes.<br /> + +<br /> + +N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos +principios d'este seculo, <a name="n3"></a>uma +especie de zimborio de doze +palmos de altura, pouco mais ou menos, de pedra muito bem lavrada e +argamassada. Para quê, não dizem; mas dizem que +por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da +circumvisinhança, por occasião da guerra +peninsular, commetteram demolil-o; mas só lhe poderam fazer +pelo norte um pequeno estrago. Dura em pé, e só +é accessivel do +nascente por uma vereda estreita e tortuosa.<br /> + +<br /> + +O outro monumento não é menos enigmatico, e deve +estar farto de ver passar seculos e desfazer-se +gerações.<br /> + +<br /> + +N'uma arremeçada crista, a duzentos passos +<span class="pagenum">[37]</span> +da egreja do Espirito Santo de Arca, +se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de +Arca». É <a name="n4"></a>uma +desconforme loisa +inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por esteios de +pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo +sido um arrancado para as obras da visinha egreja.<br /> + +<br /> + +Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura +dezasseis; de grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte +quatorze, pelo poente onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam +de altura doze palmos, só da flor da terra para cima; de +largura, um que fica para o poente apresenta nove palmos, tendo de +grossura pelo poente palmo e meio, e pelo nascente um palmo. Um, que +diz para o sul, tem de largura, por baixo quatro palmos e meio, e por +cima tres, e de grossura um palmo de cada lado. O ultimo, que +está para o norte, tem de largura, por baixo cinco palmos e +polegada, e por cima quatro palmos e polegada.<br /> + +<br /> + +¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que +eras, e para que fim, se alevantou ali aquella, que á +phantasia se figura bruta meza de gigantes silvestres? +¿Sería obra de fortificação +n'um systema de guerra desconhecido? Quasi que nem possibilidades o +abonam. Uso agrícola, industrial, ou civil, nem a +imaginação mais inventiva lh'o rastreia. Memoria +de algum varão ou feito insigne, já a poderia +ser. Mas então, +¡a que rudes tempos a não havemos de referir, +visto como nem data, nem letra, nem escultura tôsca, nem +vestigio algum de arte +<span class="pagenum">[38]</span> +nem de +architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira!<br /> + +<br /> + +Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais, +quando se adverte na semelhança que tem com os altares +druidicos, ainda hoje conservados em varias partes do que +foram Gallias e Germania.<br /> + +<br /> + +Verdade é, que por estas nossas terras não rezam +as Historias, que se estendesse aquella abominavel seita de +sacrificadores de humanas victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que, +perseguidos, como o vieram a ser, pelos Imperadores romanos, alguns +druidas se refugiassem para este Occidente, e aqui, em retiros +montesinhos, menos accessiveis a pesquizas e +perseguições, professassem e mantivessem o seu +culto, do qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade +comparadas) não muito discreparia talvez a +religião do Endovélico lusitano.<br /> + +<br /> + +Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem, +se vale a pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro +dos meus affectos.<br /> + +<br /> + +<h4>XI</h4> + +<br /> + +Nada concita aos logares veneração, como a +antiguidade.<br /> + +<br /> + +Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além +de Moiros, Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure, +não rastejo noticia d'essas edades, com que fazer obra. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[39]</span> +Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve +memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas +terras, nem ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem +tradições o denunciam. O solo enguliu tudo; e +nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou letra para enigmas.<br /> + +<br /> + +Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra +da sua lavoira, na primeira valleira que se encontra á +direita do caminho indo para Agueda, se vê uma fiada de +umas como +torrinhas, que se estende por mil e quarenta palmos; das quaes +torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e algumas +porções deseguaes de muros esboroados a delir-se. +<br /> + +<br /> + +E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se +dá em uma furna chamada «a buraca da +cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva; a +qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de +largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é +geral fama que fôra aberta pelos Moiros.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou +se, dizem os netos, +que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S. +João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus +thesoiros por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.<br /> + +<br /> + +N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a +estancia, e que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[40]</span> +Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente +já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem +medo os rebanhos para a sua visinhança; cantam aos seus +hombraes trovas muito christans; e quem quer, lhe devassa (como eu fiz) +o seu palacio subterraneo.<br /> + +<br /> + +A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina +aberta, pelos Moiros sim, mas não para tirar oiro, que +é sempre a primeira conjectura, nem para serventia militar, +que é sempre a segunda, se não só, e +prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de +lá mana, muito fresca e saborosa, mas em pequena copia.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Sobre as fortificações engenha cada um a sua +hypóthese.<br /> + +<br /> + +Ha quem as supponha posteriores á +invenção da artilharia, por se lhe figurar que +só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros +as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por +ali outros vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares +demonstra, que elles por lá viveram. E se por lá +nasceram e se crearam, não podiam deixar de fortificar-se e +defender-se contra commettimentos de inimigos, que é esse um +instinto natural a todos os homens, mas nos homens das montanhas mais +energico.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto +que o seu nome, se +<span class="pagenum">[41]</span> +christão não é (como de certo +não é), tambem por arabe se não +reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga? +<br /> + +<br /> + +Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que +podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella +serrana região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi +deixaram menos rasto que em muitas das terras visinhas, seria porque a +bruteza do monte era já então como hoje, que +não dava meios nem licença para grandes obras. +Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito +faziam em tirar da terra pão com que se manterem; +¡quanto mais, erigirem castellos, pontes, ou mesquitas, de +que se podessem admirar fragmentos depois de sete seculos!<br /> + +<br /> + +Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo +de outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar +d'estes, se acalentaram creanças com versos do +Alcorão. Outras arvores, de que estas são remota +descendencia, viram passar á sombra das suas copas +esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda, +e turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje +é talvez poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e +ficariam confusos e immoveis se revivessem para ouvir as da nossa +lingua.<br /> + +<br /> + +Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos, +que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de +mim o são e serão sempre. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[42]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes, +manteem-se ainda antigos. As novidades das +civilisações são como +a escravidão, e os diluvios: tarde chegam a engulir as +serras.<br /> + +<br /> + +<a name="n5"></a>A Linguagem é ali, como +os ares, de uma admiravel pureza e +lucidez. Se os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se +perdessem, pela conversação corrente d'aquellas +aldeias e póvoas se poderia restaurar.<br /> + +<br /> + +Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos, +phraseado, e +construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um +palrar de sésta de segadores entre carvalheiras rusticas, ao +estridor das cigarras amadas de Anacreonte, do que entre o ranger dos +prelos e o resfolegar das balas, n'um anno inteiro da melhor +typographia de Lisboa.<br /> + +<br /> + +Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos, +como o +<em>nanja</em> o <em>bofé</em>, o +<em>canté</em>, o +<em>quiçá</em>, e mil +outros, sôam por lá sem extranheza em boccas de +mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de namoradas de dezoito +nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.<br /> + +<br /> + +Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós +aos netos a das crenças e praticas piedosas, e com esta a de +muitos seus erros e abusões. São os insectos e +musgos parasitas da arvore robustissima da Fé. +Abençoada +a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os ramos ou +cerceal-a pelo pé.<br /> + +<br /> + +O tempo vai fazendo a pouco e pouco o +<span class="pagenum">[43]</span> +seu officio. Não ha curas nem +reformações mais prudentes e certas do que as +suas, quando á força lh'as não ajudam +ou +contrariam.<br /> + +<br /> + +Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade +de apparições, phantasmas de almas do +outro-mundo, Moiras encantadas, thesoiros escondidos e lobis-homens; e +ainda hoje a mór parte dos moradores acredita nos +esconjuros, feitiços, bruxarias, +adivinhações, e virtudes de certas praticas e +fórmulas, para curar ou empecer.<br /> + +<br /> + +Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis, +dão comtudo sua côr poetica muito particular ao +Povo, cuja simplicidade primitiva no viver e trajar harmonisam com taes +simplezas da intelligencia.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto +vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos, +são por ora totalmente incognitos na serra. A moda +não exerce por lá as suas costumadas +devastações de cabedaes, bons costumes, e saude. +Os vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma +uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal +renova as suas folhas e flores.<br /> + +<br /> + +Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada +ás costas das suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e +tecida por suas mães, mulheres, e filhas, apizoada e tinta +(quando o é) sem sahir da freguesia. Trazem +<span class="pagenum">[44]</span> +grandes chapeos pretos desabados, +grande bordão ferrado, menos para defensa, que para arrimo +pelo resvaladio das ladeiras, e tamancos cravejados.<br /> + +<br /> + +As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra, +sáia de burel de meio pizão, côr de +pinhão ou preta, collete comprido justo, sem +apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de +burel mais apertado no tear, e sem pizão, que lhes serve de +capa, lançado ao desgarre por sobre os hombros. A +cabeça, cobrem-n-a, ou com o +mesmo mandil, ou com um chapeo como o dos homens. As suas tamancas +são menos grosseiras. O lenço de seda ao +pescoço é, como as arrecadas e o +cordão de oiro, o ultimo da magnificencia, e as flores da +urze ou da carqueja o mais galante enfeite dos seus sombreiros.<br /> + +<br /> + +São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou +romagens, quando calçam, com meias brancas, tamanquinhos de +pregaria doirada com sua meia palla de marroquim vermelho, vestem +roupinhas de pano burel fino, ou chita, põem gorjetes de +filó, ou +lenços de cassa bem pregados, e capoteiras de pontas +compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as mais ricas e senhoras +teem mantilhas e sapatos.<br /> + +<br /> + +<h4>XII</h4> + +<br /> + +A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita +como a cultura do solo ingrato, só põe mira no +essencial: em desenvolver os sentimentos naturaes e religiosos, o +afferro +<span class="pagenum">[45]</span> +á +justiça e á verdade, os differentes +amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o +respeito á velhice e ao infortunio.<br /> + +<br /> + +As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas. +Esses discursos de +cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora +deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam, +inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e +dizem-n-o como o pensam.<br /> + +<br /> + +Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para +ser bons lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas +mães, depois de terem sido bons filhos e boas filhas; e +n'isso limitam a sua ambição.<br /> + +<br /> + +Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para +folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras, +em saraus esplendidos.<br /> + +<br /> + +Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam +a nossa, que é melhor.<br /> + +<br /> + +Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um +só livro em toda a freguezia; mas os louvores da sua +moralidade dariam com que encher mais de um livro para nos envergonhar. +<br /> + +<br /> + +A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o +coração bem nascido dará gosto. A +<em>mercê</em> e o +<em>vós</em> de nossos maiores são +tratamentos para os raros casos em que não cabe o +<em>tu</em>.<br /> + +<br /> + +Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um +dos outros. O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou +á meza do mais rico; isto é, do que na sua tulha +<span class="pagenum">[46]</span> +tem centeio ou milho para +todo o anno; e o abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com +os seus bois a geirasinha do indigente que a não pode pagar; +e lhe leva pendurado na canga do arado o sacco da semente, para que +elle tenha tambem, lá para o verão, que ceifar +para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por instinto, que as +lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas para +quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as presenceia.<br /> + +<br /> + +É um povo agricola, que ainda não aprendeu a +envergonhar-se do seu parentesco chegado com a terra. Entre elles se +diz «lavrador», e +«trabalhador», como em Londres +«fabricante», ou «lord», em +Roma +«cardeal», ou «monsenhor», em +Paris +«sabio», ou «homem de Letras», +e em Lisboa «deputado», ou +«millionario».<br /> + +<br /> + +As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão, +com o seu paquife de pâmpanos e espigas, e a letra <em>Ut +operaretur terram, de qua sumptus</em>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡Que impressão, a principio de espanto, logo de +respeito, e a final de amor, me não fez o presenciar, como, +ao revéz da pragmatica das cidades, o trabalho das +mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior +vergonha!!<br /> + +<br /> + +Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido +o sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava +<span class="pagenum">[47]</span> +(como as andorinhas do seu beirado para +o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal roupido, carrear o +adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na +roça dos mattos entre os seus operarios. A estes, +¿que os poderia admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios, +e dos Camillos, se alguem lh'a lesse, a não ser a +admiração dos +historiadores? +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não +poderiam deixar de ser mais varonís do que os homens de +muitas outras terras, e de todas as deliciosas.<br /> + +<br /> + +Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha, +com o seu costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes, +que vão formando semelhante á precedente a +geração seguinte, só são +passatempos do serão, á luz da candeia, das +pinhas bravas, ou da fogueira, que allumia e alegra os penates +afumados. Madrugam como a aurora para os trabalhos fortes. Os bois +conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente jungir e guiar pelas suas +mãos. Na vindima, carregam á cabeça +cestos, que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as +mãos alvas e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas +ceifas, transportam á cabeça montanhas de +espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan sob +o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua grinalda +de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em +bemaventurança para dez familias. Nas renques +<span class="pagenum">[48]</span> +dos saxadores e dos +roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião +não mais leve, deixal-os muitas vezes para traz, e +envergonhal-os com seu riso de triumpho.<br /> + +<br /> + +Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O +exercicio, Anjo custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra +ao mesmo tempo no sangue a saude, que do sangue se côa ao +leite, e do leite aos filhos. Seriam as amasonas da paz, se +não tivessem ambos os peitos muito bem inteiros, e se os +homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as lidas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz, +que moralmente parece distar do nosso duas mil léguas, +é a +sujeição da mulher; facto que eu não +moraliso, mas só historio.<br /> + +<br /> + +As mais graves, tanto como as mais somenos, não +só á laia das Penélopes +e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio +até meia-perna; não só no +tráfego de porta a dentro, na cosinha para a familia e para +os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de +ministrar de pé, como servas, á meza de seus +maridos e filhos, nem em dias de festa ou bodo, quando a assistencia de +hospedes mais poderia assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as. +São sempre aquillo: sempre passivas, boas, e contentes. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[49]</span> +<h4>XIII</h4> + +<br /> + +Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão +já minuciosas e pueris estas noticias; mas hei-de +já agora continual-as, e seja com vénia sua. A +outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns +annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem +renteado as asperezas das serras, alguem festejará encontrar +estas antigualhas, nas folhas já por ventura rôtas +e descosidas d'este livro.<br /> + +<br /> + +Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao +commum da nossa gente; mas então hão-de ser +antigualhas fosseis, e portanto com veneração +duplicada venerandas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +A indole da gente é de si commedida e pacifica.<br /> + +<br /> + +De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre +ella achar amostras, que emfim, terra é, e não +paraiso; mas nem tantas proporcionalmente, nem tão feias e +monstruosas em geral, como em outras partes, e em quasi todas.<br /> + +<br /> + +Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com +todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico; +ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de +trabalhar contínuo, para se despender em vida de enredos, +corrupção e maleficios; nem tão +extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o +despeito, o despenhem de salto em +<span class="pagenum">[50]</span> +salto até ao fundo da +depravação. +É o <em>inter utrumque</em>, a <em>aurea +mediocritas</em>.<br /> + +<br /> + +Conservam inteira a Fé religiosa.<br /> + +<br /> + +Não lêem, nem conhecem, nem levariam á +paciencia, jornaes que desorientam, desencantam, e põem o +genero humano em guerra viva comsigo mesmo.<br /> + +<br /> + +E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura +toda novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e +venenosa, que por cá nos trabalha, e de cujos herpes adoecem +até as familias, que a maldizem, e a repulsam da sua porta.<br /> + +<br /> + +Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de +só provir da fragilidade, ou dos impulsos subitos da +natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na consciencia +remordimentos.<br /> + +<br /> + +Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a +julgam; quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida +como aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se +conchava.<br /> + +<br /> + +D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais, +resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e +innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em +graças exteriores, em tactica, em egoismo infernal e +assolador. Nos amores ponhâmos o exemplo:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e +persuade: tendem á união, de que se originam as +familias, e por onde a especie se mantém. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[51]</span> +Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior +arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além +do ocio lhes fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que +estimulam e irritam as phantasias, para o casamento se namoram, e +não por alardo; para goso do +coração, e não da vaidade. +Põem no merecer as diligencias que outros põem no +conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar no +repellir e despresar depois de saciados.<br /> + +<br /> + +Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de +seducções, de emboscadas, enganando-se e +sacrificando-se um ao outro.<br /> + +<br /> + +A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem +se ufana em desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um +theatro, ou no vão de uma janella de club, em noite de +baile, um copioso canhenho, meio historico meio fabuloso, dos seus +triumphos. Ali, ali é que as mulheres se podem gabar de ser +amadas, pois o são sem disfarces nem encarecimentos; +são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem +modistas, nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem +mestres, nem lisonjeiros, nem romances, as transformaram. +São-n-o pelo que são, e não pelo que +possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.<br /> + +<br /> + +Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão +lá supprir lindezas do corpo, +graças do animo, ou preciosidades do +coração.<br /> + +<br /> + +Não é entre prestigios deslumbradores, n'um +ambiente de calor artificial, estimuladas +<span class="pagenum">[52]</span> +ou vencidas do exemplo, da +occasião, do medo ao ridiculo, e da audacia emprehendedora, +não é ao abrigo do estrondo e confusão +de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras +declarações; é +ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de +suas mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva +com as parentas e amigas, em derredor da merenda, á sombra +das carvalheiras.<br /> + +<br /> + +São amores que se não escondem, porque +não teem de quê; amores que se exhalam debaixo do +ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada capella do festejo, ao +som folgasão da <em>Mirontella</em> roncada +pela gaita de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante +do arraial.<br /> + +<br /> + +No progresso de taes inclinações é +sabedora e consentidora toda a visinhanca; e esta mesma notoriedade +defende os nossos namorados, tanto de se deixarem arrastar de seus +mutuos desejos, como de se desvairarem e cahirem em infieis.<br /> + +<br /> + +Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações, +não menos obrigado a +lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia +commetteria galantear a conhecida por +<em>emprêgo</em> de outrem, certo em que nenhuns +lucros lhe surtiria o empenho, senão só motejos e +descredito.<br /> + +<br /> + +D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma +constancia verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o +bem-querer d'estes Jacobs e d'estas Rachéis.<br /> + +<br /> + +¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser +sinceras, hão de confessar que a escolha +<span class="pagenum">[53]</span> +que n'um baile fizeram... só +durou até que veio o baile seguinte! ¡Quantas, +quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que pelas duas orelhas +que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo +tempo) se poderia contar, perguntando á sua modista franceza +quantos vestidos novos lhes havia feito!<br /> + +<br /> + +Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno +passado, demorar-se mais a encher a malga para certo segador que para +todos os outros, e pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a +pôr á cabeça a gavella das +espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este +anno; continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua +mulher, os cuidados dos filhos e da casa a impidam de seguir, como +antes, por passos contados, o seu gosto.<br /> + +<br /> + +Observação tão curiosa como +verdadeira:<br /> + +<br /> + +Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós, +que a variedade dos serviços rusticos tão a miudo +lhes depara, rodeadas da Natureza por todas as partes, vendo livre o +amor nas aves e nos rebanhos, favorecidas pela solidão +selvática e pelo +silencio, e pelas moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois +crepusculos em cada dia, e em cada semana de inverno por tantas +tempestades improvisas, como aquella que rendeu e debellou a vidual +constancia de Dido e a piedade de Enêas, quando o hymeneu deu +com o relampago o signal de suas bôdas, e as nymphas pelos +altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de fragilidade +como a de Dido por phenómeno +<span class="pagenum">[54]</span> +se apontam; e annos e annos se devolvem, sem que +um só se realise.<br /> + +<br /> + +Quando porém se dá, e vem a lume filho +não de benção, o peccado de amor +não se carrega de crueldade. O innocente não se +faz victima expiatoria dos culpados, perdendo a vida entre as +mãos de quem lh'a deu; horror nefandíssimo, +inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; nem +tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas +da noite, á porta lá ao longe de um desconsolado +asylo, aberto pela misericordia em lagrimas ás lagrimas dos +filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor para se +crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, e se +finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias.<br /> + +<br /> + +Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo +infanticidio moral, mereceria qualquer das minhas serranas um falso +titulo, que ainda mais a faria corar, que a tácita +confissão da sua culpa. Sabe renunciar os louvores com que +d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu cadaver +do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa; +tudo... como lhe fique para consolação da sua +queda o encanto ineffavel de apertar nos braços o seu filho. +Se o mundo todo, se o proprio amante, a desamparasse, tudo tudo +esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se afortunada. De +não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a consciencia +de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o sublime +encargo, o natural sacerdocio da maternidade.<br /> + +<br /> + +Estas resignadas victimas, immoladas por +<span class="pagenum">[55]</span> +um amor, por outro amor ressuscitadas mais +interessantes, estas victimas, em quem a virtude, produzida pelo +arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi em lustre a +virgindade, são poucas; são rarissimas; +custar-nos-hia a encontrar uma. Quando porém a +desencantasseis, lembrando vos do que sabeis d'estas nossas grandes +terras, fio-vos que bastante commiseração e +respeito vos infundira.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Casas de perdição para a mocidade, como nos +povoados grandes se alinham em ruas e ruas, e até +já por villas e aldeias +vão surdindo, não se conhecem lá, nem +se poderão tão cedo conhecer.<br /> + +<br /> + +Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de +vergonha, a que se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em +que as sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso, +são victimas das victimas que ellas sacrificam.<br /> + +<br /> + +Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se +transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade +dos casaes.<br /> + +<br /> + +<h4>XIV</h4> + +<br /> + +Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve +de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Os casamentos não são nunca determinados por +considerações de haveres ou de jerarchia. +<span class="pagenum"> <a name="p56">[56]</a></span> +O cálculo rala pouco +os pensamentos d'estas gentes, acostumadas a viver com pouco, e a +confiar muito na Providencia. As palavras <em>dote</em> e +<em>escrituras</em> apenas seriam entendidas. +<br /> + +<br /> + +Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e +economia, a ajuntar para <em>uma cama de roupa</em>, +uma teia de estôpa, outra de linho, uma peça de +burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma panella e dois pratos, +uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires de milho, e +outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da fortuna, e trata +logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.<br /> + +<br /> + +O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo +commum, consta de um anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro +uma camisa para o dia grande.<br /> + +<br /> + +Mal que este desponta, vê já de pé os +dois afortunados, garridos e bizarros com o seu <em>aceio</em> +dos domingos: ella, sobretudo, +flammante como uma Imagem, com arrecadas, cordões, e +alfinetes sobre lenço de seda, mantilha lustrosa, ou chapeo +de feltro novo com enfeites.<br /> + +<br /> + +As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e +visinhas, que de boa-mente <a href="#e4">lhes</a> +acodem, cada uma com o seu +<em>melhorado</em>, convencidas como estão +(especialmente as solteiras) de que alguma coisa da +benção matrimonial poderá vir apegada +aos diches e galas que figuraram no apertar das mãos.<br /> + +<br /> + +Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se +preparam de vespera para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que +<span class="pagenum">[57]</span> +sendo florído tem +mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do +travesseiro +(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem +liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e +lan; no que, vai grande condão de conformidade de animos, +perfeição de ajuntamento, e dura do bem-querer; +com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, não +faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.<br /> + +<br /> + +O pretendente, com os seus apaniguados, espera já +á porta da noiva a sua sahida. Esta apparece emfim, como uma +aurora da serra, incendida de pejo, e orvalhada com as lagrimas da +mãe; e segue com o rancho, a pé, caminho da +egreja, levando ás costas as bençãos +do pae, em que ainda por lá se +crê, a turbação no seio, e nos ouvidos +os votos e resas de bom agoiro, recitadas com fé por alguma +velha mais sabida.<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +A egreja está já á sua espera aberta, +juncada de espadana, com o altar enflorado de fresco, e a alampada +atiçada.<br /> + +<br /> + +A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas +cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a +todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do +sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso +sobre os deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo +do templo não é interrompido com +pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de tropa, +brados de mendigos, assobios +<span class="pagenum">[58]</span> +de rapazes, martellar de artifices, zabumbas de arlequins.<br /> + +<br /> + +Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai +profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e +afugentar as evocadas memorias de <a name="n6"></a>Lia, +de Rachel, e de Rebecca.<br /> + +<br /> + +O que unicamente chega lá de fóra, é o +chilrar de algum passaro sobre alguma cerejeira do adro, o amoroso +carpir de alguma rôla na matta de S. Sebastião, ou +a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no +trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da +Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da +progénie de Adão.<br /> + +<br /> + +Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com +mais clara e muito mais formosa benção.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a +Deus não ser mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de +dois nomes um só nome, como de duas metades distinctas se +forma um todo inseparavel.<br /> + +<br /> + +É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra, +solemnissimo, e que, por isso mesmo, se deveria por todos os modos +pintar com indeléveis e suaves tintas na memoria, para que a +sua imagem no meio das tentações podesse acudir +como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.<br /> + +<br /> + +Quem se recordar de que proferiu o seu +<span class="pagenum">[59]</span> +voto, e escutou com jubilo outro egual, +onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de +obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde +com o sol entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e +fragrancias naturaes com as virações, quem, +repito, de tudo isto se recordar, ha-de-lhe parecer que Deus percebeu +melhor as suas palavras; ha-de alguma vez devanear em si (mas que o +não diga) que bem poderia ser que alguns Anjos estivessem +ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a +prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a +mulher...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos +alvoroçados, e por entre os parabens e vivas dos +assistentes, encontram, começando logo no adro, de praso a +praso, por toda a extensão do caminho até +á casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro, +ramos de pinheiro, oliveira, roble, canas verdes, e quantas hervas e +plantas bravas menos espinhosas ou mais floridas brota o monte.<br /> + +<br /> + +Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua +toalha, e ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa, +estão, postos de antemão pelos muchachinhos que +formam a primeira frente do préstito triumphal, um prato de +bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os quizer tomar; +outro vazio, para a gratificação voluntaria, que +ninguem deixa de lhe lançar.<br /> + +<br /> + +Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa, +<span class="pagenum">[60]</span> +e industria mais esmerada; foram esses +prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de seus +afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes +naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos +padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem +concertadas que podem, um á moça, outro ao +mancebo; os quaes, logo a diante, de ordinario entre si os trocam; e +junto á salva dos ramalhetes se vê um abundante +refresco de bebida e comida para todo o acompanhamento, sendo o acepipe +obrigado ás filhós de mel.<br /> + +<br /> + +Em cada uma d'estas +<em>estações</em> chove +de todas as partes a saraivada dos confeitos; bebe-se á +saúde dos «bem +empregados» e «de quem d'ahi a nove mezes ha-de +vir.»<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos +convivas quantos admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as +boas vontades prestes para quem se quizer apresentar.<br /> + +<br /> + +Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e +o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse +«o desposado» (contra a regra do nosso falar +galanteador), porque o logar da direita se lhe dá a elle. A +dignidade varonil em nenhum lance esquece entre aquellas gentes +primitivas.<br /> + +<br /> + +N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e +com um +<span class="pagenum">[61]</span> +só talher, e +bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer durar a +refeição +dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu +bonissimo sentido, que não podia ser outro senão +representar a communidade e harmonia intima, em que esperavam e +professavam de viver.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas, +rabecas, e ferrinhos, dando se a rôdo comer e beber aos +tangedores.<br /> + +<br /> + +Em quanto dançam, algumas moças donzellas se +furtam subtilmente á companhia, para irem enfeitar de flores +o leito nupcial, desfolhar entre os lençoes rosas de cheiro +(se a estação as dá), e guarnecer a +roca e fuzo symbolicos de amores perfeitos.<br /> + +<br /> + +Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita +da quinta que é meia-noite, ha já muito que os +obsequiadores bondosos teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas +de calmaria de certo suavissimas, apóz um dia todo por fora +e por dentro tão festejado e tão +revôlto.....<br /> + +<br /> + +<h4>XV</h4> + +<br /> + +O nascer de cada filho é uma festa.<br /> + +<br /> + +Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e +mostra a experiencia que se não enganam), crêem e +repetem, que filhos ainda em casa pobre são riqueza; que por +taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a lhes +acudir com mais larga mão; +<span class="pagenum">[62]</span> +e que a meza, por ter mais Anjinhos ao +pé de si, se não ha-de fazer mais +escaça, se não medrar á +proporção de +tão bons hóspedes.<br /> + +<br /> + +E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes +um onus, um sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se +ouvem mães e paes deploral-a como castigo e praga; +lá na serra, onde ha trabalho proporcionado a cada edade, +lá na serra, onde, como em enxame bem regido, todos os +consumidores são productores; lá, onde +só +são necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes +são os mestres, o exemplo +lição, a laboriosidade e sobriedade +herança; ninguem se atormenta sorteando na phantasia +empregos ou futuros novos para a sua progénie. Lá +os filhos são +rebentões, que alegram, remoçam, e +espécarão a seu tempo a velhice decadente de +quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres +experimentadas em taes lances, que supprem a falta de parteiras e +doutores, tem-se já prompta a canastra que lhe ha-de servir +de berço.<br /> + +<br /> + +Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é +escrupulosamente velada, para que não venham bruxas +malfazejas a chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol +candeia bem experta; e ao clarão d'ella, com os olhos fitos +no innocente, e quasi sempre em pé para que as +não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as +amigas da casa. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[63]</span> +Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão +entoando com a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do +pé embalam brandamente o bercinho. Algumas folhas de +oliveira ou palma, que figuraram no altar em Domingo de Ramos, +queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam muito +bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e janellas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de +romanas crenças a graça, a fragrancia poetica, o +saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu sinto.<br /> + +<br /> + +¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e +tão christan como ella é, praticam o mesmo que os +legionários romanos provavelmente ensinaram a nossas +avós ha mil annos, e mais, pelo terem visto fazer nas +aldeias da sua terra a suas mães e mulheres! +¡Cuidar que estamos vendo, com pequena +degeneração, o que o mais rico poeta da +Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente! +E se não, +oiçâmol-o, e julgareis:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Negreja ao réz do Tibre +annoso Helerno,</div> + +<div class="poetry1">santo bosque, onde levam sacrificios<br /> + +inda agora os Pontífices romanos.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Ali nasceu outr'ora, ali vivia</div> + +<div class="poetry1">a que nossos avós chamavam +Grane,<br /> + +casta Nympha, de excelsos pretensores</div> + +<span class="pagenum">[64]</span> +<div class="poetry1">pedida vezes mil e em vão +pedida.<br /> + +Era seu exercicio errar nos campos,<br /> + +as feras perseguir com dardo agudo,<br /> + +e as redes emboscar nos fundos valles.<br /> + +Inda que aljava ao lado +não trouxesse,<br /> + +criam-n-a irman de Phebo; o parentesco<br /> + +não poderia, ó Phebo, envergonhar-te.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Quando algum namorado a requestava,</div> + +<div class="poetry1">tinha prompta a +resposta.―«Aqui,―dizia―<br /> + +ha nímia luz, e a luz +dobra a vergonha...<br /> + +Se preferes entrar n'aquella gruta,<br /> + +sigo-te.»―Á gruta o crédulo voava;<br /> + +ella torcia o passo, ia á carreira<br /> + +das moitas na espessura +homisiar-se;<br /> + +d'ali desencantal-a era impossivel.</div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;</div> + +<div class="poetry1">combateu lhe o rigor +com brandos rogos,<br /> + +e a sólita resposta obteve em +prémio:<br /> + +que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe;<br /> + +segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge.<br /> + +O que +lhe fica apóz vê Jano. Ó louca,<br /> + +no +usado esconderijo em vão confias;<br /> + +olha como t'o observa, e +t'o devassa.<br /> + +Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus +braços;<br /> + +eil-o comtigo a sós na cava penha,<br /> + +onde havias buscado o teu +refugio.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Saciados os sôffregos +desejos,</div> + +<div class="poetry1">―«Em +paga d'este goso―exclama o Nume―<br /> + +dos quícios a tutella eu +te confio;<br /> + +pela honra perdida esta conserva.»<br /> + +Assim falando, +candida varinha<br /> + +lhe entrega, com que os tétricos asares<br /> + +das +protegidas portas afugente.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[65]</span> +<div class="poetry">Existem de brutal voracidade</div> + +<div class="poetry1">umas infames aves; +não já essas<br /> + +que de Phineu a meza espoliavam,<br /> + +mas +da mesma relé: cabeça grande,<br /> + +fito olhar, bico +audaz, grizalhas plumas,<br /> + +garra adunca; esvoaçam pela noite;<br /> + +onde encontram creança ao desamparo,<br /> + +que a ama deixou +só, prestes a empólgam,<br /> + +arrancam-n-a do +berço, e a dilaceram.<br /> + +Diz que as lactentes +vísceras co'os róstros<br /> + +lhes picam, lhes devoram; +teem as fauces<br /> + +sempre repletas de sorvido sangue.<br /> + +Do <em>estridor</em> +com que as trevas +alvorótam,<br /> + +lhes vem o nome: <em>estriges</em> +se +nomeiam.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Estas pois, quer de si nascessem aves,</div> + +<div class="poetry1">quer em aves, de +velhas que antes foram,<br /> + +fatal conjuro marso as encantasse,<br /> + +penetraram +de Proca no aposento.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Com cinco soes de edade, o innocentinho</div> + +<div class="poetry1">era ao bando ferino +egregio pasto.<br /> + +Já co'as gulosas linguas ferem, sugam<br /> + +o tenro +peito nu; sôam do infante<br /> + +os consternados trémulos +vagidos,<br /> + +com que, á falta de voz, auxilio pede.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Corre a ama assustada; acha nas faces</div> + +<div class="poetry1">do caro alumno seu +lavado em sangue<br /> + +das brutas garras os crueis vestigios.<br /> + +¿Que +fará? vê-lhe o rosto exangue, +murcho,<br /> + +que na côr arremeda as tardas folhas<br /> + +já do +rígido inverno bafejadas.</div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Corre a Grane; o successo lhe relata.</div> + +<div class="poetry1">―«Cobra +valor―a Nympha lhe responde;― +<span class="pagenum">[66] +</span><br /> + +viverá teu +alumno.»</div> + +<div class="poetry2"> +Entrada ao berço,</div> + +<div class="poetry1">acha a mãe, acha o pae, +sôltos em pranto.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">―«Eis-me; enxugae as +lágrimas―exclama;―</div> + +<div class="poetry1">vou tornar-vol-o +são.» Diz, e tres vezes<br /> + +de medronheiro com +frondosa vara<br /> + +fere da estancia as portas; outras tantas<br /> + +co'a mesma vara +o limiar sinála;<br /> + +rega o ádito; as aguas com que o +rega<br /> + +encerram salutifera mistura.<br /> + +Entranhas cruas de +bimestre porca<br /> + +toma nas mãos, e diz:</div> + +<div class="poetry2"> +―«Aves da noite,</div> + +<div class="poetry1">í-vos, deixae as +puerís entranhas.<br /> + +N'esta pequena victima tenrinha<br /> + +o tenro +pequenino aqui resgato;<br /> + +é coração por +coração; tomae-o;<br /> + +por visceras são +visceras; redima<br /> + +esta existencia immunda outra mais nobre.»</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Finda a sacra +oblação, corta o +deventre,</div> + +<div class="poetry1">e esmiunçado o vai +pôr aos ares livres,<br /> + +prohibindo do rito ás testemunhas<br /> + +olhal-a então +ninguem; por fim colloca<br /> + +a vara de oxiacanta, o don de Jano,<br /> + +na +janellinha que dá luz ao quarto.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Consta que desde então +não mais +volveram</div> + +<div class="poetry1">ao berço aves ruins; +saude, cores,<br /> + +tudo refloresceu +no innocentinho. <sup> <a href="#3">[3]</a></sup></div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[67]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois +côvados de baêta encarnada ou verde, vinho, +assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, conforme o dia em que acerta. A +madrinha dá um vestido, duas camisas, e uma touca. Cada um +dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu brio.<br /> + +<br /> + +Este dia é quasi tão festivo como o do casamento, +pois n'elle se cumpre a benção que no primeiro +dia se recebêra, e está salvo o interessante +pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que +as bruxas nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo +do peccado.<br /> + +<br /> + +<h4>XVI</h4> + +<br /> + +Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e +baptisado, cada povoação celébra a +sua, pública, no dia do Orago da sua capella. Tem fogo do ar +e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns aos +outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o +consentem, andam já desde a vespera á tarde pelo +adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o tambor, e despovôa-se +a visinhança com o chamariz do fogo de vistas nomeado de +<em>armação</em>, ou +<em>parreira</em>.<br /> + +<br /> + +Por esta occasião, nas casas principaes, isto é, +nas menos apertadas, saltam-se até a meia-noite as +danças, pela mór parte cantadas, do bom Portugal +velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle +vivente archivo +<span class="pagenum">[68]</span> +de antiguidades, nem +já, quasi, os nomes se conservam. São o <em>caracol</em>, +o <em>Senhor da serra</em>, o <em>lundú</em>, +ou +<em>landum</em>, o +<em>escalhabardo</em>, a <em>ribaldeira</em>, +o +<em>Francisco bandalho</em>, etc.<br /> + +<br /> + +A excitação do saltar, a virtude inspiradora do +vinho verde, e um poucochinho o natural desejo de brilhar diante das +raparigas e dos rapazes, fazem ás vezes com que ahi +appareçam, como nas romarias, como nos serões dos +lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de gosto, poetas e +poetisas que trovam de repente, e á porfia, por +espaço de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.<br /> + +<br /> + +Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem, +estão em pé, um diante do outro, no meio da roda +dos ouvintes. A toada de que se ambos servem, é sempre das +mais populares, e vai toda remançada, para que as ideias e +rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou +desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de +declamação accentuada.<br /> + +<br /> + +O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro +versos, correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou +consoantes; isto é: usam das quadras correntes em todo o +Reino.<br /> + +<br /> + +Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme +lhes convém.<br /> + +<br /> + +Principiam (é obrigado) por uma especie +<span class="pagenum"> <a name="p69">[69]</a></span> +de elogio, ou vénia, ao dono da casa, +se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se +é em terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou +dos seus proprios amores; e d'ahi, muitas vezes sem +transição, saltam para um genero entre elles +muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico +<a href="#e5">fescenino»,</a> +se, de envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como +entre os Antigos, os dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se +empulham e desempulham, como os dois pastores virgilianos, com +surriadas de impropérios sempre ao galarim, sem que o fogo +das palavras prenda nunca nos corações. Com a +mesma +feição com que dizem, com a mesma ouvem; e +tão avindos saem da contenda, como n'ella entraram.<br /> + +<br /> + +Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da +sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por +mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e +que tudo quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes +porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é: +que a primeira metade de cada quadra tem frequentemente um sentido +diverso, e desconnexo do sentido da segunda metade.<br /> + +<br /> + +Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma +verdade vulgar, uma +<span class="pagenum">[70]</span> +imagem campestre, +a exposição succinta de qualquer facto, mas sem +relação alguma com o assumpto que se versa, o +qual só nos dois versos ultimos apparece.<br /> + +<br /> + +Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em +pratica de amigos com meus leitores:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3">O loireiro bate bate,<br /> + +que eu bem o sinto bater.<br /> + +Para comigo cantares<br /> + +has-de tornar a nascer.<br /> + +<br /> + +Á couve se come a folha;<br /> + +come-se a raiz ao nabo.<br /> + +Só te espero ver casado<br /> + +sendo mulher o diabo.<br /> + +<br /> + +Navio d'el-Rei é grande,<br /> + +é grande e chega ao +Brazil.<br /> + +Se namorares alguma,<br /> + +não seja á luz do +candil.<br /> + +<br /> + +Sequidão cria o centeio,<br /> + +frescura cria os repolhos.<br /> + +¡Quem me estreára comtigo,<br /> + +menina, os +lençoes de folhos!</div> + +<br /> + +<br /> + +Já se vê, por estas amostras, que a +improvisação não é +tão difficil coisa, nem para tantos encarecimentos, como a +teem feito alguns viajantes, d'estes que só viajam no seu +quarto, embarcados na sua poltrona.<br /> + +<br /> + +É por cá o mesmo, que provavelmente +<span class="pagenum">[71]</span> +será por toda a parte, sem exceptuar a +Italia, com que tanta bulha se nos faz.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3"> <em>Al porto di Livorno<br /> + +è giunto un bastimento.<br /> + +Cara, morir mi sento!<br /> + +mi sento, o Dio, mancar!</em></div> + +<br /> + +<h4>XVII</h4> + +<br /> + +Muito, porém, se enganára, quem inferisse que +toda a poesia dos meus serranos é de egual teor; porque, +sobre conservarem muita xácara de bons tempos, com as suas +lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices +e aprasiveis como ellas (o que já não seria +pequeno cabedal), cantam, e ás vezes engenham com singular +felicidade, quadras repassadas de amoroso affecto e graça +natural, que um poeta de nome não enjeitaria.<br /> + +<br /> + +E ¿que muito? ¿Por que não haviam de +nascer estros por ali, onde ha tanta Natureza, tantos sitios +inspirativos, tão bons ocios na solidão, tantos +amores (¡e amores +tão bem empregados!), e tão largos horizontes +para a saudade!<br /> + +<br /> + +¿Por que não haviam elles de nascer, quando +até pelas nossas encruzilhadas mal cheirosas e escuras, +pelos nossos botequins fumosos e azoinados, pelas casas d'essas ruas +feias, onde olhos e ouvidos se perdem e afogam em prosidade vil, +rebentam, viçam, e não raro florejam, talentos de +estimação e de valia?<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[72]</span> +Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades, +muitas coisas lhes empecem (não falando no desamor que os +esfria, e nas parvoas invejas que os matam); aos montanhezes, +afóra a Natureza, que lhes abunda, tudo mais lhe +mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha +poesia, como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde +pastor, appareceram as Musas, não invocadas, para o +bemfadarem.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não +esperdiçam, e, por falta de um prodigio que os desencante, +fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +<a name="n7"></a>De uma pobre mocinha ovelheira +posso eu dizer; que por tardes de +verão muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado +nos degraus da capella de S. Sebastião; ella ali perto, +cantando e fiando em pé á sombra de um sobreiro, +no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como bem se pode crer, +¡enfeitiçados com a placidez de tão +livres horas em logares tão fugidos, tão +sobranceiros ao mundo todo!<br /> + +<br /> + +De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos +corados, não da memoria se não do espirito; e o +espirito d'ella, estava-se conhecendo que lhe residia no +coração, tão bem, +tão bem, tanto a seu grado, como em estufa bem quente uma +planta mimosa, que um ameaço de frio mataria. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[73]</span> +Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca +ouvira de obras de poesia senão as cantigas da sua terra, o +murmurinho dos seus rios; de madrugada a cotovia perdida pelos altos do +ceo; ao meio-dia as porfias das cigarras; ao descahir da tarde o +badalar longinquo das Ave-Marias; ao cerrar da noite o +regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus moradores, os seus +rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus +rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a +alma; de noite os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do +seu namorado.<br /> + +<br /> + +Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha +encarecer o que ella improvisava para as suas ovelhas, que a +não entendiam; para mim, que me occultava com mil cuidados +para não afugentar tão melodiosa ave; e para o +ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se +ao-pé da sua.<br /> + +<br /> + +Era a inspiração lyrica mais formosa, se +não a mais remontada. Eram os objectos do seu limitado +universo a mirarem-se na limpidez dos seus affectos, virginaes e +namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras destillando-se cada uma da +sua ideia com a propria côr, com a propria fragrancia que lhe +competia. Era o metro a correr, sem quebra nem extravasamento, a flux, +sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as rimas a vir poisar +espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da outra, como em dois +arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois passaros gorgeando. +Era tudo, emfim, quanto +<span class="pagenum">[74]</span> +a Arte requer, e só a Natureza pode dar aos seus mimosos<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!... +Até já as suas ovelhas se esqueceriam d'ella. +Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais +vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus +poemas. Se ainda canta... já não é a +terra +quem a ouve. Remontou o vôo muito mais alto que o da cotovia +sua mestra; engolfou-se por entre as scismadoras estrellas, que tantas +coisas em segredo lhe ensinavam; e virgem entre os Anjos, irman entre +seus irmãos, entretece a sua voz immortal no cantico sem +limite<br /> + +<br /> + +<div class="dots"></div> + +<br /> + +<h4>XVIII</h4> + +<br /> + +Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem +menção da sua Musica.<br /> + +<br /> + +É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos +dizer de muita; e conserva puro e extréme o primitivo sabor. +Condiz com a Linguagem, com o trajar, com os costumes; seria excellente +oráculo para consultarem os modernos compositores de operas +nacionaes. Assim se temperariam para os nossos ouvidos, os quaes, posto +que affeitos de annos para cá a peregrinas melodias de muito +mais altos quilates, ainda comtudo se ageitam e conchegam melhor com as +toadas sentidas e singelas da nossa creação.<br /> + +<br /> + +Nas boas horas fique a musica italiana, +<span class="pagenum">[75]</span> +pois que entrou, e nos cahiu, e o merece; +mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda, +não se diga que aposentámos +nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por +trazer vasquinha e falar chão.<br /> + +<br /> + +Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o +até (se já +não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a +granel por essas comedias e farças, em que fala gente do +nosso sangue e dos nossos nomes. Mas uma vez ou outra ( <em>al +de +menos por +cortezia</em>, como dizem os meus serranos), deixem-nos ouvir em +boccas patricias coisa que nos alembre das cantilenas de nossas amas, +cantilenas que, ainda depois de apagadas da memoria, lá se +ficam algures no +coração, com quanto basta de vida para +ressurgirem ao primeiro aceno.<br /> + +<br /> + +Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e +arbustos exóticos da mais admiravel louçania; +mostre-nos lá, emboscadinho na herva, o malmequer da nossa +primeira adolescencia, a papoila retinta, que nos ria d'entre o verde +da seára, quando meninos; a papoila e o malmequer muito mais +nos hão-de conversar com o +coração um só minuto, que todas +ess'outras flores mais soberbas em toda uma primavera.<br /> + +<br /> + +Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que +muita vez n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com +saudades os descantes da serra.<br /> + +<br /> + +Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de +difficuldades, a dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe +revolve aos pés, a sumir os seus píncaros +florídos +<span class="pagenum">[76]</span> +e trémulos pelas nuvens, admiro-a, applaudo-a, e +esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o +coração.<br /> + +<br /> + +Porém certas cantigas que eu sei... não as +applaudi, não as admirei quando as ouvi, mas senti-as +repassar-me até ás fibras intimas; +assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em +substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do +silencio.<br /> + +<br /> + +Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares, +da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter +encontrado.<br /> + +<br /> + +E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas +não são algumas, até para orelhas +forasteiras, quanto mais para as do seu molde!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de +condão! ¡Se, em vez de vos falar do que por +vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos +lá de subito, a beberdes com aquelles ares bonissimos +aquellas cantorias agrestes, sem cultura, sem enxerto, luxuriantes de +natureza, macias, avelludadas, rescendendo a amor e +contentamento!<br /> + +<br /> + +Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas +por mãos perítas, nos podiam abastar de muito +oiro, que a Arte, batendo-o e cunhando-o a seu modo, poria em facil +giro com geral proveito.<br /> + +<br /> + +O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas +solidões, edificaria como Amphião novas Thebas, +attrahindo e +<span class="pagenum">[77]</span> +congregando com a +sua lyra penedias e florestas.<br /> + +<br /> + +¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final. +Mas por ora, o thermómetro do patriotismo assignala graus +para baixo de zero.<br /> + +<br /> + +Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se +teem voltado; e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo, +querendo Deus; ¿mas quando? sabe-o Elle.<br /> + +<br /> + +Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer +levantar-se. Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que +se admiram em alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem +pequeno custo, bem farta corôa grangeára.<br /> + +<br /> + +¿Que digo «custo»? ¿Onde ha +ahi delicia como é o viajar caçador de Artes, por +toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com +agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto +dos thesoiros que se tomam?<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus +espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular +feição de melancolia mui suave, era a +extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes a +perder de fôlego. É donosa coisa; +mórmente pela noite, e ao longe...<br /> + +<br /> + +A explicação d'esta singular maneira deve ser, +segundo me parece, o costume de cantarem muitas vezes a sós +por lombas descampadas e cumes de oiteiros, d'onde a voz tem de correr, +e correr, primeiro que tope com ouvido em que se hospéde. +Outras vezes +<span class="pagenum">[78]</span> +é +ao-pé de estrépito de aguas, +que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em +paragens de eccos, nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si +mesma namorando.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro +por estirado valle, ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras +conversando por cantoria; e, graças a este methodo de irem +fiando cada syllaba... comprida... comprida... entendiam-se (podendo +apenas enxergar-se), como se estiveram assentadas mão por +mão, e muito manas, á +soalheira no seu aido.<br /> + +<br /> + +Sustentam-se estas entoadas conversações, em +prosa inteiramente desatada de rithmo, e não obstante +rimada, rimada por um modo tão insólito como +facil.<br /> + +<br /> + +Exemplo:<br /> + +<br /> + +¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">―Ó ia, eu te digo +ó Maria,<br /> + +Ó iga, que se tu +és minha amiga,<br /> + +Ó á, botes as cabras para +cá,<br /> + +Ó enda para me ajudares a comer a merenda,<br /> + +Ó eijo, que +tenho aqui brôa e queijo,<br /> + +Ó ôas, e umas +maçans muito bôas.</div> + +<br /> + +<br /> + +E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a +outra interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão +no colloquio por ter chegado a sua vez. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[79]</span> +<h4>XIX</h4> + +<br /> + +Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica. +Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos +as de cada familia e as de cada aldeia) são: o Anno-bom, o +Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e o Natal.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O Anno-bom não é ao presente senão um +rebate para comesaina rasgada, e se deitar uma can fora.<br /> + +<br /> + +As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado, +já lá vão.<br /> + +<br /> + +Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras +ao cabo se desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao +romper do primeiro sol do anno os cachopinhos de cada +povoação, todos em bando, o mais bem arreados que +podiam, com suas sacólas, ou alcôfas, +ás costas, a cantarem de porta em porta, e, percorrido o +logar, de aldeia em aldeia, até se lhes acabar o dia, umas +trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de campanudos louvores +á bizarria do pae ou mãe de familias, e +desfechando sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou +pão branco, para a ajuda do +<em>refestêllo</em>; +contribuição com força de Lei, mas de +que todos se desempenhavam á boa-mente. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[80]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O Carnaval, é como ainda nós por aqui o +conhecemos nos seus dias aureos, tríduo de folia desatada, +guerra porfiada e bem rida de todos contra cada um, e de cada um contra +todos.<br /> + +<br /> + +São as pulhas, as peças, os esguichos, os +pós, a laranja<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....que +derruba o chapeo,</div> + +<br /> + +<br /> + +de que o bom <a name="n8"></a>Filinto com tanta +saudade se lembrava lá em +París, o rabo-leva de tripas entufadas, a mão de +ferrugem da chaminé com azeite pelos fucinhos, as +estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho +com sal, as filhós com trapos, e todos os mais +adminiculos, que no +ritual classico se conteem.<br /> + +<br /> + +Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se +não veja povoa nem viva alma, duas coisas se +hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e apupar; +toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra +são descargas de espingardaria. Ninguem tem +caçadeira velha em termos de dar fogo, que não +saia com ella a salvar.<br /> + +<br /> + +N'esta occasião (não sei por quê) o rio +de S. Mamede parece marcar fronteira entre duas +nações inimigas; a metade +cíterior, e a metade ulterior da freguesia, formam dois +exercitos, que, disposto cada um na sua banda pelos altos mais patentes +e convisinhos aos seus adversarios, para lá lhe atira por +cima da torrente, sem folga nem misericordia, turbilhões de +chascos, de apupos, de rugidos +<span class="pagenum">[81]</span> +de buzinas, de buxas accezas, e fumarada. Estremece a terra sob +os pés; retumbam pelo ouco dos valles, pelas refolhadas e +sinuosas lapas das ribanceiras, os rolantes trovões +centuplicados...<br /> + +<br /> + +O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado +asninho, visitando as povoações, com barbas +brancas em faces avinhadas, e canna em punho para se abordoar, facil, +prasenteiro, com séquito de rapazía a abuzinar, e +de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem +poderá ser o próprio Sileno das bacchanaes, +metamorphoseado pelo tempo, constante parodiador das suas mesmas obras, +pois não é necessaria grande +perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se +conciliaram diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as +saturnaes; por embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e +quejandas (o numero era folgado).<br /> + +<br /> + +As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos +redís e apriscos, para se estarem regalando ao banquete da +familia, teem um Carnaval particular, um Carnaval nómada e +silvestre, cosinhado e comido ao ar livre, e a que ellas chamam +«o seu gôrdo».<br /> + +<br /> + +O <em>gôrdo</em>, para o qual de +tempos se andam aparelhando, é feito por varias d'ellas em +commum, convidadas e admittidas outras amigas, e algumas vezes tambem +alguns moços seus parentes.<br /> + +<br /> + +Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um +gôrdo; e ainda agora me está sabendo. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[82]</span> +Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso +de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um +vestíbulo de areia parda e fina, á borda da agua.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n9"></a>Nympharum +domus.....</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +não lhes faltando os competentes<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....vivo +sedilia saxo. +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os +comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria +folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de +leite recem-mugido.<br /> + +<br /> + +Terminaram com uma dança no areal, por não haver +melhor, e debandaram, cada uma atraz do seu gado, quando já +lá por cima branquejavam estrellas. A fogueira +serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na +corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as +levaria.<br /> + +<br /> + +Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos, +parecidas com o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas, +travada com ellas, uma usança ha ali, que só ali +ha, e que eu aponto, não só +porque me ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não +porque dará luz para se entender o poema que a diante vai, +com o titulo de <em>Domingo gordo dos montanhezes</em>.<br /> + +<br /> + +N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S. +Sebastião, que já sabeis +orla o passal pela banda do poente, todos os +<span class="pagenum">[83]</span> +moços solteiros da freguesia, a +plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o quê, +e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para +isso a Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para +suas terras a folgar.<br /> + +<br /> + +Nem o introductor, nem o tempo da introducção +d'esta pratica, são já hoje conhecidos. +É uma tradição piedosa, uma lei moral, +sem nenhum genero de comminação, mas +tão á risca obedecida, como se as tivera.<br /> + +<br /> + +É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um +bello exemplo de desinteresse; pois na plantação +quem só ganha +é a selva, que se dilata, e o Santo, a quem se engrossam os +rendimentos.<br /> + +<br /> + +Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a +capellinha, ou de algum outro Bemaventurado, com fama de +boa-mão para casamentos, ainda se aventaria um motivo +pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que +só da peste é advogado!...<br /> + +<br /> + +Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra, +¡e oxalá dure sempre! ¡e +oxalá por muitas partes o imitassem!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de +nós outros, bastam duas considerações: +a d'elles é festa +do espirito, e mais do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem +do espirito.<br /> + +<br /> + +Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva +lhes faz estar vendo ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie +humana; +<span class="pagenum">[84]</span> +e do corpo tambem, porque +o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas +succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e +bem jejuada quarentena.<br /> + +<br /> + +Move suavemente os corações acompanhar a +procissão, que da egreja sai depois da Missa cantada, com os +seus cirios accezos, cantando as aleluias, atravessa o amplo adro +alcatifado de bordada relva, sombreado das suas cerejeiras +já revestidas, atravessa o passal por entre as alas das +pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se +espairece ao longe, como uma piedosa exultação, +por entre os mattos rejuvenescentes.<br /> + +<br /> + +O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As +arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado +de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora +todas suas galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a +Natureza parece ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe +entôam canticos, como os homens, as mulheres, e as +creanças. A aleluia ressôa em toda a parte; +lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os +corações ferve o amor de Deus, o amor da +Natureza, e o amor mutuo.<br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os +arroubados requebros do Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh! +¡que permutar de boas-festas! Mal o presumem, os que todas as +cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um cartão +alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.<br /> + +<br /> + +Recolhida a procissão, tornam-se todos +<span class="pagenum">[85]</span> +correndo a suas casas, a acabar de as +pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se +de ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores +baixellas; crepíta o lume na cosinha revôlta; +idéia-se um simulacro de altar, ou se enroupa uma cama de +lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o senhor Prior, com a +sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar (quando mais +não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da +familia falta á porta para receber a aspersão de +agua benta, que elle ao entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras +rituaes da benção: «Paz +a esta casa, e a todos que n'ella moram.»<br /> + +<br /> + +Tal visitação, que (já se +vê) se não conclue no primeiro, nem muitas vezes, +no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda +de prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada +fogo; não pelos saccos de folares que se ajuntam; mas pelo +muito que assim de novo se apertam os vinculos mutuos do Pastor e do +rebanho.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +No 1.º de Maio põem, á entrada das +habitações, <em>maias</em>, que +são ramos de +sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com +seus fuzos, carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo +se fadam a terra e a casa: a terra, para que dê linho +comprido e sedoso; a casa, para que se guarde e mantenha +próspera.<br /> + +<br /> + +¿Quem não vê n'estas maias outra +degenerada herança dos nossos antigos senhoreadores? +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[86]</span> +No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo domestico dos seus <em>Lares</em>, +deuses protectores da poisada, e cujos idolos se tinham junto ao fogo +da cosinha, ou em nichos por de traz da porta principal. Revestiam-n-os +de pelle canina; e em monumentos antigos se vê ao +pé d'estes deuses representado o animal symbolo da +fidelidade, e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio +nos seus <em>Fastos</em> nol-o +descreve. Brindavam-n-os com libações de bom +comer e beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de +flores, e já de lan.<br /> + +<br /> + +Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois +acreditavam que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se +compraziam de habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde +vivia gente do seu sangue.<br /> + +<br /> + +Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do +mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas. +Vieram Lares +<em>viaes</em> (dos caminhos), <em>compitaes</em> +(das +encruzilhadas), <em>urbanos</em> (os padroeiros de cada +cidade), <em>publicos</em> (os mantenedores dos +publicos edificios), <em>rusticos</em> (os custodios do +campo), +<em>hostis</em> (os amparadores contra inimigos), +<em>marinhos</em> (os guardiães dos navios).<br /> + +<br /> + +É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem +Romanos, se haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de +suas religiosas praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre +estrangeiros; e bem boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle +cahos de poeticissimos desatinos e devassidões. +<span class="pagenum">[87]</span> +Fazia venerar e amar a +casa; com a casa, a familia; com a familia, os sãos costumes +da creação. Ainda por cima, fazia resplandecer +luzeiros de esperança na +cerração das adversidades; o que dá +coração e brios para as resistir.<br /> + +<br /> + +Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana +provincia Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que, +aliás, podem ser documentos, além de outros, o +nome de <em>lareira</em>, geralmente +conservado ao lastro da chaminé, e o proprio de +<em>lar</em>, com que em Traz-os-Montes se chama a corrente +de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a +fogueira.<br /> + +<br /> + +Já cada um inferirá que as +<em>maias</em> dos meus serranos, festejo que só +á casa se refere, +coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como quer que seja, +o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de +ter, aquella origem.<br /> + +<br /> + +Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito +christão, ainda mais poetico, chamado das +<a name="n10"></a>Rogações ou +Ladainhas de Maio.<br /> + +<br /> + +Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e +acompanhando em chusma as entoadas preces da Egreja, a +procissão, que lá se vai, humilde, atravez dos +campos desatados em flor. Imploram as bençãos do +Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos +não devorem a vinha ou seára; que +intempéries do ar e trovejados granizos não +derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[88]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado +de dia pelos oiteiros, de noite pelos serões.<br /> + +<br /> + +Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que +se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora, +não sem graça), que por ali em louvor do Baptista +se exhalaram outr'ora do seio de poetas desconhecidos.<br /> + +<br /> + +A medo me rendo á tentação urgente de +as mostrar; que, despojadas da sua melodia, desquitadas das vozes +tão frescas e juvenís das suas cantoras, e nuas +dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e sombras +em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão +parecer-se comsigo mesmas.<br /> + +<br /> + +Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja +differença na substancia, vai tanto, como de uma formosa +donzella podéra differir o seu cadaver.<br /> + +<br /> + +Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que +no fundo da alma se me estão ainda cantando, por entre +simulacros de figueiras, que entretecem sobreceo verde á +fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, não as +contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil +maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com +que umas rusticasinhas de roca á cinta tratam o Santo +Precursor. São amores velhos; não ha que lhes +dizer.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">―¿San-João das +barbas doiradas,<br /> + +onde foste +ter as orvalhadas?<br /> + +―Fui as ter áquellas hortas,<br /> + +recordar +aquellas cachopas.<br /> + +<span class="pagenum">[89]</span> +<br /> + +Recordae, recordae, perguiçosas,<br /> + +que da fonte +já veem as formosas,<br /> + +com as talhas cheias de cravos,<br /> + +que +lh'os deram os seus namorados,<br /> + +com as talhas cheias de flores,<br /> + +que +lh'as deram os seus amores.<br /> + +<br /> + +San-João, rico cavalleiro,<br /> + +companheiro de Nosso Senhor,<br /> + +acompanhae a minha alma<br /> + +quando d'este mundo fôr.<br /> + +<br /> + +―¿Por que tendes, San-João,<br /> + +esses sapatinhos +brancos?<br /> + +―Para passear ás moças<br /> + +domingos e dias +santos.<br /> + +<br /> + +―¿D'onde vindes, San-João,<br /> + +que assim cheirais +á macella?<br /> + +―Venho da serra da Estrella,<br /> + +de fazer uma +capella.<br /> + +<br /> + +―¿D'onde vindes, San-João,<br /> + +pela calma sem +chapeo?<br /> + +―Venho beber agua fresca,<br /> + +que faz calor lá no ceo.<br /> + +<table style="text-align: left; width: 305px; height: 31px;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os +aferidores e malsins da Literatura, que, se me tomam, com isto nas +mãos, dão comigo do avêsso.<br /> + +<br /> + +Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes. +Á noite accendem fogueiras, dançam, cantam, +namoram, e galhofeiam em de redor d'ellas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[90]</span> +Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao +sereno, que lhes ha-de n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu +futuro, e chamuscam as hervas e flores, que sabem de constancias e +inconstancias.<br /> + +<br /> + +Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes +virtudes e preservativos; mas especialmente o de S. João do +Monte, á conta do seu nome bento.<br /> + +<br /> + +Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta +colhem ramos orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram +de raio; trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os +partos, apertando-se nas mãos.<br /> + +<br /> + +A agua da fonte da manhan de S. João é como a +primeira que chove em Maio: torna o carão formoso.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo +descoberto, não correndo o tempo de invernia. São +rebordans a granel, entre grande larada de brazido, a estoirarem e a +acerejar-se, em quanto um farto lombo de cevado rechína e +fumega em vergante espeto de pau, a pingar n'uma telha ou frigideira.<br /> + +<br /> + +É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos +rapazitos, e pelos visinhos menos folgados, que todos então +se convidam.<br /> + +<br /> + +Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já +então arripiada. Mas... quanto +mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e para +a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os +animos dos convivas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[91]</span> +Á fé que lhes não falta por +quê. O dia que apóz vem, é o dos +finados; dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos, +para todos quantos, com Fé ou sem ella, possuem um +entendimento, e meditam.<br /> + +<br /> + +¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem +mais devaneador e recolhido, que homens acostumados a +solidão, curtidos nas duras realidades da vida, remotos do +cortesão bulicio, embotador pessimo de toda a sensibilidade! +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a +noite não quieta.<br /> + +<br /> + +Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe, +até se esvaecerem, os tons afflictos, que a nenhuma de +tantas poisadas deixam de dizer algum segredo de dor, e de encommendar +algum suffragio. ¡Oh! ¡se +não se elevarão elles, e bem ferventes, exhalados +pela voz do sangue, pelo amor, pela amisade, pela caridade!<br /> + +<br /> + +Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz +bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura +se descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis +côro de Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta, +pelo meio da povoação, a supplicar em nome dos +penados de alem mundo, que para si não podem requerer, +esmola de orações, refrigerio para os ardores que +lá padecem.<br /> + +<br /> + +Não ha seio tão escudado, que um santo horror o +não estremeça; egoismo tão +empedrenido, que sustenha as lagrimas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[92]</span> +...Até que o solemne pregão transpõe e +se esvai; e na calada se torna a perceber o dobre longinquo da egreja.<br /> + +<br /> + +Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o +interior.<br /> + +<br /> + +Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que +vão de aldeia em aldeia +<em>amentando</em> as almas, arrastavam d'antes +grilhões aos pés, o que ainda augmentava o pavor +do seu pregão.<br /> + +<br /> + +Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes +quem entre nós os soffreria? Por +lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, como +exactores que são de um +tributo da outra vida.<br /> + +<br /> + +Desde o romper d'alva não descança a egreja de +absorver povo. Todos os caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques, +todas as ladeiras, todos os valles, todos os oiteiros, o brotam e +expedem á porfia.<br /> + +<br /> + +Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o +moço em flor de annos; a donzella; os irmãos, +pequeninos e já orphãos, +pela mão de sua mãe; todos graves, cuidosos, +taciturnos; todos lá por dentro orando; todos anhelando +irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali +assistirem ao incruento Sacrificio.<br /> + +<br /> + +Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o +semi-festim da vespera é quasi geralmente descontado pelo +jejum mais rigoroso.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Emfim vem o Natal.<br /> + +<br /> + +Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas +christianissima +<span class="pagenum">[93]</span> +(quizera eu dizer) +do Christianismo, nenhures cabe tão em cheio, nem tanto com +os animos e corações se coaduna, de veras crida e +com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.<br /> + +<br /> + +Víreis o Presépio de Belem, não +já por caprichosas artes remedado, mas em tão +cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a adoral +o.<br /> + +<br /> + +Disséreis que ao soar da ave da meia-noite, +desferiu vôo d'entre as estrellas, de que se +corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos +pegureiros com o pregão de «Gloria e +Paz», com a nova de ser nascido o Desejado das gentes.<br /> + +<br /> + +¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de +toda a parte confluem pelo escuro em demanda do Menino!<br /> + +<br /> + +Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso +dentro n'alma.<br /> + +<br /> + +O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par +aberto, é a santa Gruta.<br /> + +<br /> + +Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o +Divino Infante.<br /> + +<br /> + +O adro vê dançar as rondas de camponezes +á roda de um monte de arvores accezas, ao som da +gaita e do tamboril.<br /> + +<br /> + +Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada.<br /> + +<br /> + +Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as +cantigas da benta noite. Cada um d'estes córos é +exclusivamente composto das moradoras de cada margem do rio que biparte +a freguesia. Vai entre ellas a mesma rivalidade, que já +descobrimos entre +<span class="pagenum"> <a name="p94">[94]</a></span> +os homens, +quando no Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um +estrepitoso arremêdo de combate.<br /> + +<br /> + +É a qual dos bandos trará mais formosas quadras +para entretecer com as antigas, mais argentinas falas e melhores +requebros para as gargantear. Cuida-se ouvir musica de Seraphins; +exulta o coração; e, sem vergonha, se +estão sentindo as faces humedecer-se.<br /> + +<br /> + +Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que +se estão vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em +braços do Parocho o Menino, a fazer colheita de beijos e +louvores, de supplicas e offertas. Então é que +surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e +á porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de +ordinario, a todos, os mui primorosos artefactos de pinhões +e frutos sêccos.<br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que +ali pendem ao collo de suas mães! vão-se-lhes os +olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz +lindezas tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se +destinam, com os seus olhos tão azues, a bocca +tão amorosa, as faces tão coradas como as +maçans que se lhe offerecem, é já a +Elle que só +cubiçam; e só choram, porque o não +deixam +<a href="#e6">acompanhal-o</a>.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente.<br /> + +<br /> + +¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem +a destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé? +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[95]</span> +É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na +resposta.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza, +nobres de humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores +de S. Mamede da Castanheira do Vouga.<br /> + +<br /> + +<h4>XX</h4> + +<br /> + +Que eu por lá versejasse, já a ninguem +ficará sendo maravilha; antes, sim, a podéra ser, +que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas as +rasões d'isso de si mesmas se confessam.<br /> + +<br /> + +Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me +foram totalmente desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri +possivel, que houvessemos jámais, eu nem coisa minha, de +reparecer no mundo.<br /> + +<br /> + +Assim, só por desabhorrimento é que poetava de +longe em longe; isto é: poetava por fóra, e no +papel, que no coração e no +animo estava eu comigo a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de +leve me acreditarão os que d'isto sabem) não foi +a que se escreveu, se não a que deslizou suave, entre +sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, suspira e +medita.<br /> + +<br /> + +Escrever só para si, não sei que ninguem escreva; +é trabalho supérfluo, e que, se +dá fruto, o dá ruim, que de pêco e +descorado nos desconsola. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[96]</span> +¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou +affecto, que no trabalho de se corporificar para sahir a lume e correr +por mãos e olhos, não perde muito do seu +primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou do seu +calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja que +era seu, e que era elle mesmo em grande parte?<br /> + +<br /> + +Isto dos livros não são senão uns +retratos mortos, umas toadas, reflexos, e sombras, de festas que se +fazem n'um interior, e de que os passageiros, por mais que se lhes +abram as janellas, e que elles appliquem os olhos e ouvidos, +só podem perceber a totalidade, e conjecturar as +circumstancias.<br /> + +<br /> + +O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros +de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda +para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder, +ás concepções e aos affectos.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que +peor é) do livrinho, está em que a maior e melhor +parte dos condões e feitiços da montanha, que ora +cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis, +então que eu os tratava e d'elles vivia colmado, me +não faziam os effeitos, que atravéz dos vidros da +saudade me produzem.<br /> + +<br /> + +Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o +perdido; que já por isso dizia Rousseau, que nunca +tão bem falaria da liberdade, como entre ferros da Bastilha. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[97]</span> +¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a +abrolhar? é no meio do outono a desvestir-se. ¿A +do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que +tirita e se encanece de geada.<br /> + +<br /> + +¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros, +não é paraiso, para onde todos, todos, nos +quizéramos tornar?<br /> + +<br /> + +¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo +extremo os camponezes, se acabassem de entender os bens que +logram!»<br /> + +<br /> + +Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar, +é este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a +instante m'o explica.<br /> + +<br /> + +Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e +collo descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando +importunas obrigações me veem ripar e consumir as +semanas a dia e dia, os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto. +<br /> + +<br /> + +Pela conversação pacifica das moitas e torrentes +me definho, quando, no mais fortuito, no mais leve, tratar com homens +me aguardam sempre desencantamentos, desconsolos, rasões +para os desprezar, ou para fugil-os.<br /> + +<br /> + +Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor. +Aqui, pelo contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.<br /> + +<br /> + +Lá, a benevolencia é semente de benevolencia, +para dar cento por um. Aqui, é grão que sempre +degenéra, ou não germina, ou brota villans +ingratidões, que envergonham até a quem as ouve. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[98]</span> +Lá, o folgar é franco, e as festas são +festas. Aqui, o folgar é escaço e fingido; as +festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de gladiadores, +que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns aos outros, e +aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.<br /> + +<br /> + +O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo +mais cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão +roda; e em vez de o esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como +o Iscariotes por sua mão, para escarmento a sevandijas e +lição a paes que estão creando feras +bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de +applaudil-o por medo, apertar lhe a +mão +dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, com sabel-o +expulso de muitas portas.<br /> + +<br /> + +Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para +o que Deus os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia, +para macío agazalho nas horas do somno ou da +doença, para gala candida dos altares, e a final para +curativo de feridas.<br /> + +<br /> + +Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao +alvorecer de Maio, a sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do +seu linho, a cabo de tão bons serviços, poderia +vir ainda a converter-se em papel para a nossa Imprensa, isto +é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e absurdo, a +ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de +descredito e odios, em disseminador de todos os principios de +dissolução, +já moral, e já politica?! +¡Pôr-lhe ella a +sua roca para benção! ella, a boa filha das +serras, +<span class="pagenum">[99]</span> +fêmea sincera e verdadeira, coração +lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe +ella encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre +companheira, a que tão santas maximas e tão +formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar á sementeira +o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que +vale o mesmo.<br /> + +<br /> + +<h4>XXI</h4> + +<br /> + +¡Que de vantagens para o ermo não são +todas estas!<br /> + +<br /> + +E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem +nascido!<br /> + +<br /> + +Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de +espaço e tempo, e pela +contraposição, que se conhecem. ¡E eu +malbaratei quasi tudo isso!...<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3 tinyl">........ munera nondum<br /> + +Intellecta deum!....</div> + +<br /> + +<br /> + +Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão +quebrantador martyrio da experiencia,<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry3 tinyl"><a name="n11"></a>..... +Oh ubi campi!</div> + +<br /> + +<br /> + +¡Como me não agarrára, com raizes mais +fundas e tenazes que o meu cedro, ao chão da vida facil, +innocente, e obscura! ¡Como não +borbotára em hymnos o meu jubilo! ¡Como +não saudára com lagrimas de +gratidão a aurora, tornando a encontral-a! ¡Que +não palrára com as torrentes! ¡Que +noites +<span class="pagenum">[100]</span> +desveladas sob o +pavilhão estrellado e vastissimo da montanha!<br /> + +<br /> + +Em vez de +rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar +este painel noticias de logares, e até de usos, tudo eu +mesmo visitára com devoção de +peregrino; tudo +revolvêra; com tudo me identificára.<br /> + +<br /> + +As saudades, que de lá para aqui me estão +salteando, d'aqui para lá já não +atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira +sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me +perdessem logo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +―O abdicar―dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro +e hortelão de Salona―o abdicar é o +começo do viver.<br /> + +<br /> + +¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso +da fortuna o rir, o dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na +primeira hora que empunhassem, com animo feito, uma rabiça +ou um foicinho!<br /> + +<br /> + +¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e +até imperios romanos, como elle, quando renunciar o pouco, o +quasi nada, que se tem de cidade.... só de o cuidar, tanto +namora a phantasia!<br /> + +<br /> + +¡Se jamais virá tempo de eu poisar em +torrão meu, debaixo de sombras minhas, a cabeça +encanecida e regalada!<br /> + +<br /> + +Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e +limas, como o presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda, +quanto o filhinho mais pequeno atravessasse correndo de um +fôlego. Mas isto em solidão bem +solidão, +<span class="pagenum">[101]</span> +onde só os +astros me enxergassem, +só as estações me visitassem, e da +banda do mundo nada me chegasse, senão o vento, +já expurgado e esquecido de humanas vozes.<br /> + +<br /> + +Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio +e reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.<br /> + +<br /> + +Ahi me reverdecêram o coração e mais o +espirito, que me elles por cá trazem tão +lastimosamente desfloridos e murchos.<br /> + +<br /> + +Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol +remoçador de quanto existe.<br /> + +<br /> + +A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa +eólia entre jasmineiros, pendente em hombral de gruta +ás virações da primavera.<br /> + +<br /> + +Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em +tarefas ephémeras e sem gloria, posto que não sem +consciencia e diligencia, se me desbarataram na galé da +Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) nas palhas d'essa +doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do Universo; +doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.<br /> + +<br /> + +Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me +enguliu, com os annos que me tomou, outros tantos da minha existencia +para diante; pois em cada tomo de periodico, sincera e honradamente +redigido, se podia escrever este epitaphio: <em>Aqui jaz um anno +de fadiga e dois de vida de.... Orae por elle</em>. <sup> <a href="#4">[4]</a></sup> +<span class="pagenum">[102]</span> +Vendem-se ainda primogenituras +por menos que prato de lentilhas.<br /> + +<br /> + +Vingára-me (¡oh! ¡se me +vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda +por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes, +appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os +seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n12"></a>Parve, +nec invideo, sine +me, liber, ibis in Urbem.<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +―¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus +gostos e desejos?―dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que +sabemos, que nunca faltam, escoimadores +<em>ex-officio</em> do alheio.<br /> + +<br /> + +―Senhor meu,―lhe respondo eu já:―pois é por +isso mesmo, de não passarem de fabula os meus gostos e +desejos, que se me ha-de relevar o dar-lhes eu largas no papel.<br /> + +<br /> + +Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal, +coroados de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar +do Empyrio a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o +tempo que n'estas palavras gasto aproveitara-o melhor, em correr para o +meu refugio, beijal-o, replantal-o, +aformosental-o. E em lá +vindo o florído Maio, ride-vos de pagão que +brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem +por longe se pareça com a de um +<span class="pagenum">[103]</span> +viver remançado, em casa sem +numero, nem espias, ao som da Natureza, á lei da propria +inclinação; sem ouvir horas que nos chamem, sem +encontrar com glosadores que nos aboquem no ar +acções e palavras, para nol-as tingirem de branco +em preto; nem cahir nas garras de ociosos, que vos +emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma noite +de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que +são a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de +abhorrimento; seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de +quem vos não vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido, +refulgente epigramma de esmalte contra meritos e virtudes; e de noite, +interrompido na meditação, ou cortado no melhor +do somno, pelo retroar de carroagens, que em fluxo e refluxo continuo +levam e trazem, sempre a correrem para nada, pygmeus, +histriões, da farça séria d'este +mundo?<br /> + +<br /> + +Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura, +ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis +mais depressa +coisa a ella parecida, do que não por estas +almotaçadas metrópoles, onde se blasona que ella +tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre são festas +acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao +mesmo tempo: este, o <em>Te Deum</em>; aquelle, o <em>De +profundis</em>; um, o +<em>Quomodo cecidit civitas plena populo</em>; outro, o +<em>Cantemus Domino</em>; qual, o <em>Miseremini +mei</em>; qual, o <em>Ecce sacerdos magnus</em>.<br /> + +<br /> + +Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade, +derrubaram-n-a do seu +<span class="pagenum">[104]</span> +pedestal +as aguas do diluvio de Noé, quando arrojavam cada coisa para +seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o pedestal razo, com o +formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha de ser ermo +pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. Aqui, +pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +E quando não, mettei bem por dentro a mão na +consciencia; e, deixado o palavrório que não +sôa muito senão por ser vazio +(como tambor de foliões), dizei-me, ou dizei-o a +vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem que +desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, e +não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem +alvoroto de praças, e reboliço de vizinhos, pois +diante de suas janellas o que só se meneia e conversa +são arvores, e por cima do seu tecto não moram +senão hervas, que mal ciciam, e só recebem de +visitas passarinhos ou borboletas?<br /> + +<br /> + +¿Quem mais livre?<br /> + +<br /> + +Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu, +sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o +cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos +convites. ¿Quem mais livre?<br /> + +<br /> + +Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as +occupações de todo o dia. ¿Quem mais +livre?<br /> + +<br /> + +Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons +somnos, pão, e para conduto um +<span class="pagenum">[105]</span> +apetite desenganado, entre o trabalhar, +repito, canta, ou traz o espirito a monte, a sabor de suas +chyméras (que tambem as tem como qualquer outro); e +é este o mais invejavel privilegio do trabalho corporal, +sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não +captivar senão os braços; cavando, +podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da obra, estar armando +doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir com os companheiros, +ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a alegria que se +esconde.<br /> + +<br /> + +Este <em>deus in nobis</em>, unica das +divindades campestres em que se pode crer, perguntae se não +será para muitas invejas aos taciturnos enxames que pejam +escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi +todos os que remam á consciencia o seu remo na +galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais +livre?<br /> + +<br /> + +Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o +meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço, +para folgar entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de +coser ao lume que o aquece. Não tem de ir fazer sala a +ninguem; respira a peito cheio; não ha que ciar se de mulher +e filhas, que +não dá a terra operas nem bailes; filhas e mulher +á roda lhe serôam, tão satisfeitas como +elle. Não se levanta ali jogo, que, por +tentação ou falso pondonor, o obrigue a +pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida. +Não o compellem a ajudar com desatinos seus os alvitristas +regedores do mundo em sêcco; nem mesmo a ouvir ler, n'uma +coisa mal-cheirosa chamada periodico (especie de cogumellos +<span class="pagenum">[106]</span> +da Imprensa, em que entre os +não maléficos tantos ha de sapo), o artigo +famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe levantam +falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do chylo. Quem +não tem com que incite invejas, seguro está de +vis praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre?<br /> + +<br /> + +Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas +destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não +creal-os o sitio, nada reluz na poisada que os attráia.<br /> + +<br /> + +Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os +pães para a tulha, o vinho para a adega, o azeite e os +frutos para a dispensa, a hortaliça para a panellinha de +barro, as filhas para o casamento, os rapazes para lhe pagarem na +velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o Ceo, onde +crêem de fé que os estão seus parentes +esperando.<br /> + +<br /> + +¿Então, será, ou não +será, este um viver dez vezes mais livre e afortunado que o +nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o +direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo, +que não deixei na matéria udo nem +miudo; ¡como se miudos houvera no que são +condições de boa +ventura!<br /> + +<br /> + +Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu +proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao +coração de alguns d'estes, que vivem na +Côrte por fadario, por vezo, ou por inercia, sempre +mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou podendo, se uma +hora olhassem +<span class="pagenum">[107]</span> +por si, adquirir, sem +nenhuma difficuldade, o que eu, e outros taes, tão +baldadamente supplicamos á fortuna: uma vivenda campestre, +uma existencia natural, serena, commoda, florescente, risonha para a +pessoa, dadivosa e exemplar para os visinhos, manancial de riqueza +privada e publica, abonadora de bons costumes, e de afortunada +descendencia; uma existencia, em summa, que, a de mais de retemperar +corpo, animo, e coração, para se n'ella +saborearem, +até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto, +quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o +medicinalissimo <em>Livro da Solidão</em> do +<a name="n13"></a>Doutor Zimmermann. Aprenderiam a +perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a +embellezarem-se n'ella, a serem e a fazerem venturosos, quanto +é dado havel-os n'este mundo tão instavel, +tão fugidio, tão calabreado de bens e males.<br /> + +<br /> + +O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra +servindo; na solidão é um homem. Na sociedade, +é uma +partícula irresistivelmente arrebatada n'um redemoinho; na +solidão um todo quieto.<br /> + +<br /> + +Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde +uma vez passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra +d'ella; porque o homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro +das humanas tirannias, se faz em algum modo semelhante á +creança; +<span class="pagenum">[108]</span> +readquire +o que quer que seja da sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus +gostos, dos seus brincos.<br /> + +<br /> + +¿Quem se lembraria de pôr um barco de +cortiça (ainda que de seu natural tivesse o ousal-o) n'um +tanque do <a name="n14"></a>Passeio publico, +cercado dos fumantes do Marrare, e dos +collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas que +fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa, +até só para si, faz d'isso; e mais se encanta em +o fazer, que um ricaço em torrear palacios.<br /> + +<br /> + +Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no +cêvo das armadilhas que lhes andou dispondo, edifica +á borda de um arroio uma azenha de dois palmos, com seu +rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear, +respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para +horas.<br /> + +<br /> + +Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam +com a familia de um coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva, +como Werther e Hugo se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e +reinos de animálculos, em que só o mancebinho +muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam enlevar.<br /> + +<br /> + +¡A solidão! ¡a solidão!... +provae-a, sequer, affligidos do mundo, e pregoareis d'ella o que eu me +não affoito a encarecer-vos.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Um só achaque hei-de eu impôr á boa da +solidão, á gentil namorada de Rousseau, de +Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos; +<span class="pagenum">[109]</span> +e vem a ser: que, pois nos descalleja o +coração, banhado nas suavidades da mãe +Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos +detrai, assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas, +quando não as podemos extirpar. No ermo ressôam +mais alto os gemidos, como na calada da noite se dão a ouvir +mais claras as vozes.<br /> + +<br /> + +Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita +colheita, o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos +enfermos, quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo +aquillo; e o coração, que não tem para +dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange todo, e +se espedaça.<br /> + +<br /> + +¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão +pouco! ¡sería tão +festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria! +¡deixaria, por corôa de beneficios, tão +sinceros, tão +duradoiros agradecimentos!<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que +d'aquellas alturas se não percebem; mas a que menos de todas +se percebêra é o coração +metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus +ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia +terrestre, e ferrolham-n-a a sete +chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, c +Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que +d'aquellas alturas se não percebem; mas a que menos de todas +se percebêra é o coração +metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus +ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia +terrestre, e ferrolham-n-a a sete +chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, conquistar a unica +invejavel gloria, emendando os erros +<span class="pagenum">[110]</span> +da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.<br /> + +<br /> + +Então sim, que haveria que se lhes invejar.<br /> + +<br /> + +Dôr d'alma é, na verdade, não poder +homem na solidão pagar por estes, e por si mesmo, dividas +grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá estende os +braços valedores até onde lhe é dado. +Onde +não chega a remediar com obras, ajuda com o bom conselho, +com as recommendacões poderosas, com as +esperanças, com a presença, com a +uncção da palavra amigavel, com o deixar correr +sobre a ferida o balsamico das lagrimas. Assim, se terá +sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo trabalhos, e no +seio coração.<br /> + +<br /> + +<h4>XXII</h4> + +<br /> + +Isto presenciei eu:<br /> + +<br /> + +O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural +pejo me veda transladar louvores, que por lá se +lêem em todos os peitos, contava entre as primeiras de suas +ditas a beneficencia, que não pára onde se lhe +exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo Bispo +Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem ainda +para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.<br /> + +<br /> + +Era para ver (se elle não poséra tanto em +recatal-a) a alacridade, a sôffrega alacridade, com que ia +levar aqui um pão, que se devorava como vida que em +realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos, +a +<span class="pagenum">[111]</span> +reconciliação; +ao ocioso, o convite para +trabalho; ao orphanado, a paciencia; ao errado, a luz para atinar +com a senda, e o bordão para a seguir; ao moribundo, o +conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, cunhada de uma banda com a +effigie do coração, da outra com a da Cruz +florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se +cambía; o affecto +fraternal.<br /> + +<br /> + +Ali, sim, que é o ser Parocho.<br /> + +<br /> + +¡Oh officio divinamente instituido, como te hão +degenerado annos frios de descrença e desamor! +¡Com que maravilhoso laço +não cifravas o que de mais nobre, o que de mais amavel, se +abrange nas ideias da eternidade e nas do mundo!<br /> + +<br /> + +O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso +de eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os +mysterios, os preceitos, os exemplos, as ameaças, os +anáthemas, +as absolvições, os confortos, e os jubilos. Todos +os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra +d'elle.<br /> + +<br /> + +Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de +Fé, á nossa espera diante da fonte da +Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos +purificar.<br /> + +<br /> + +Arribados á edade da rasão e dos delirios, +tornavamol-o a achar na piscina da penitencia para nos restituir, com +eloquencia affectiva de Apóstolo, a foragida paz do +interior.<br /> + +<br /> + +No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos +entregavam, com bençãos d'alma e sincera +prophecia, a mão tremente da futura mãe de nossos +filhos.<br /> + +<br /> + +Nas calamidades publicas, era a sua voz +<span class="pagenum">[112]</span> +supplice e crente, e afogada em lagrimas, a que levava, como guia +segura, o côro de todas as nossas á +presença do Senhor da Natureza.<br /> + +<br /> + +Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da +concordancia, que primeiro apparecia.<br /> + +<br /> + +Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos +alçava.<br /> + +<br /> + +Nas tribulações, elle o nosso mais previsto +conselheiro.<br /> + +<br /> + +Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado.<br /> + +<br /> + +Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e +aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças +para o caminho.<br /> + +<br /> + +Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros +medicos iam longe, e até nossos paes e nossos filhos nos +deixavam sós. Com preces fervorosas nos acompanhava, +até que a terra nos submergisse; e ainda então +nos não largava, senão para ir +instaurar novas preces por nós sobre os altares.<br /> + +<br /> + +Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com +quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da +sua pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e +pequenos, +só temido dos maus, ainda que tambem d'esses respeitado.<br /> + +<br /> + +Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa, +elle, que tão amenos quadros do casamento sabia apresentar +aos noivos ao recebel-os, contava por irmãos e filhos todos +os seus parochianos; tinha o seu thálamo de oiro +<span class="pagenum">[113]</span> +a aguardal-o no paraizo, +região que todos os dias entrevia atravéz das +folhas do seu breviário; e, se ainda no +coração lhe +podia alguma ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como +esposa; em quem se revía; que se recreava em ataviar, em +enriquecer, em lhe adquirir galas de roupas, de sedas, de joias, de +flores, de perfumes; em cujas festas se remoçava; em cujos +canticos se desvanecia de misturar a sua voz.<br /> + +<br /> + +No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava +tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um +representante da Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse +caracter augusto e sobrehumano.<br /> + +<br /> + +A hora em que elle expirava, hora de consternação +e alaridos para todo um povo, era a unica, talvez, em que pelos +espiritos fuzilavam alguns relampagos de duvidas sobre a +justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO; duvidas, que a +bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus olhos +fechados, já não podia fulminar, mas que a sua +presença, mal chegavam a beijar-lhe os pés como a +bemaventurado, promptamente desvanecìa. Bem se adivinhava, +ao olhal-o, que a sua morte não era mais que somno; e bem se +entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão +zeloso trabalhar, era rasão colher descanço e +premio, como só lá em cima os pode haver.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e +prospérrimas da Christandade. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[114]</span> +De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas +tão raro, que a dedo se apontam; e ainda se não +hão-de crer, se +não fôrem vistos bem por miudo, e contrasteados +bem de espaço.<br /> + +<br /> + +De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça.<br /> + +<br /> + +Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte +sempre algum achaque principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a +febre da superstição; está agora no +frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com +elle, até que do alto lhe venha o remedio.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma +de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca, +nem um phantasma.<br /> + +<br /> + +A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra, +pegou-se d'ella, pelo contacto, primeiro á superior, depois +á infima.<br /> + +<br /> + +Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta +entra na conta.<br /> + +<br /> + +A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada +já quer ir convalescendo; já convalesce em muitas +partes, se em nenhuma se acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu, +por isso mesmo, e por ser a mais rude e numerosa, labora no auge da +enfermidade, e ainda muito longe (segundo todos os symptômas) +de se restaurar.<br /> + +<br /> + +Hoje o materialismo é especialmente plebeu.<br /> + +<br /> + +Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo +<span class="pagenum">[115]</span> +a raio e raio, e descendo manso e +manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro +desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam +tudo.<br /> + +<br /> + +Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda +noite, nem se derrama da Imprensa, de que a mean classe é +representante.<br /> + +<br /> + +O Poder, fingindo <em>proteger</em>, apenas +<em>tolera</em> os escassos restos da crença. Se +alguma vez lhes dá consideração, +é +quando se lhe antólha que os poderá empregar, por +material, para obras politicas a seu modo.<br /> + +<br /> + +A Literatura, ou por especulação de popularidade, +ou por extravagancia de muito joven, ou porque o seculo XVIII do +«Paiz modelo» só poude chegar +cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem +á unica Religião civilisadora, tão +decepada e desgeitosa se avém, que, por entre as suas +expremidas lagrimas de compuncção, se lhe +está vendo voltear por dentro dos labios o seu lembrado +sorriso de septicismo.<br /> + +<br /> + +A sua religiosidade é um cálculo; +¡grande mal! é um cálculo transparente; +¡mal +ainda muito mais funesto!<br /> + +<br /> + +Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida, +não é da verdade real e absoluta que diz, mas da +utilidade (ou necessidade) de que seus ouvintes a acreditem. +<br /> + +<br /> + +Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e +aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e +ás escuras por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro +para a turba.<br /> + +<br /> + +Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o <em>Christo</em>» +(como lhe ella sempre chama), +<span class="pagenum">[116]</span> +que a sua cabeça ennastrada de loiros não +fique, mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada +de espinhos.<br /> + +<br /> + +¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras +aleluias da Fé e da Moral, este vaidoso e vanissimo +apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo do falso nome de +Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas, paginas +desconnexas, reformadas, e adulteradas?<br /> + +<br /> + +Quanto entre si concordavam as inspirações dos +quatro Evangelistas, tanto discrepam uns dos outros (e não +raro de si mesmos) os novos evangelhos d'estes missionarios sem +missão. Á prima-vista se averigua que lhes +fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a +unidade. ¿Quem se irá +apóz taes innovadores? Ninguem.<br /> + +<br /> + +Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só +valeriam para acabar de destruir, se podesse ser destruida a +Religião de Jesu-Christo.<br /> + +<br /> + +A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem +a força, nem o poder da terra tem a minima +jurisdicção para alterar.<br /> + +<br /> + +Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um +átomo de menos, sem um átomo de mais... ou +nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a +cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem +estupidamente n'uma cruz desbenzida, revirado com a cabeça +para a terra, e os calcanhares contra o Ceo. Em tal caso o +indifferentismo, e até o atheismo, seria menos descommodo e +mais logico dobradamente.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[117]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<br /> + +Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o +poderia fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo, +¿como é que a trata a autoridade mundana?<br /> + +<br /> + +Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe, +protectora desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a +cabeça despojada do diadema luminoso, diz-lhe que se apegue, +para não cahir, ao sceptro que a diante lhe caminha. +¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco roborava os +thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os +seus inimigos o ludibriem!<br /> + +<br /> + +A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da +arvore da vida, d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer +derramal-a sobre as multidões pelo crivo immenso da +Imprensa, e ficar impune; ou o seu castigo, se por erro lhe cahir o da +Lei, orçará apenas pelo dos crimes leves, e +indifferentes ao Estado.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Não é ainda tudo.<br /> + +<br /> + +Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como +filhos e herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra +já meio derretido, luz do mundo já +mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e +relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo +os nas temporalidades odiosas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[118]</span> +Repitâmol o: +não é isto culpa de ninguem, sendo de todos +desaventura. É uma calamidade providencial, que +lá se encaminha para fins certamente gloriosos, que +não podemos enxergar.<br /> + +<br /> + +Em Religião, como em Politica, somos nós, +enfatuada geração de hoje, +mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros +hão-de ceifar em vindo a quadra.<br /> + +<br /> + +Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em +que os direitos e os deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido +nome não seja, como pomba timida, empolgado por abutres +ferozes logo ao abrir o primeiro vôo; em que todas as causas +santas e uteis se conheçam e respeitem; em que nem a +régia tribu de Judá seja, como outr'ora, +apesinhada pela de Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje, +mercenária, captiva, e escrava da de Judá.<br /> + +<br /> + +Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e +frutear (como a vara do Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de +alimento, de forças, de esperança, e de +felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, então os +pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi mendigos, e +cuja fronte perdeu o sello da eleição, +tornarão a assentar ao-pé da arca +santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas +dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas +penetrem melhor até ao velho os gemidos do mais necessitado +que elle, e para que os olhos d'elle entrevejam as estrellas.<br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias +<span class="pagenum">[119]</span> +da Egreja acrisolada pelo fogo! +Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não +acredita em malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de +recommendar aqui, uma verdade, que a sua posição +d'elles lhes não deixou talvez ainda perceber; verdade +importante para applicações, verdade a cujo +escurecimento se pode imputar já muito e muito damno:<br /> + +<br /> + +O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades, +uma importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e +prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição +humana poderia confrontar a sua.<br /> + +<br /> + +Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano +é quasi um pastor sem rebanho; não conhece as +ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A ellas, falta-lhes o tempo e a +vontade para o rodearem; a elle, se para o officio entrou com zelo e +propositos magnanimos, tudo se lhe veio a acabar com a +esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez tambem +a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços +se haviam sempre de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua +voz, se lograsse vencer o estrépito circumfuso, +só serviria para lhe atrahir escárneos e motejos, +ou de fanatico, ou de tartufo.<br /> + +<br /> + +Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e +abscônditas sobre tudo, ainda +<span class="pagenum">[120]</span> +não é totalmente +assim. Á entidade +abstracta <em>Parocho</em> se conserva, no respeito e +benevolencia dos subdítos, um resto da sua antiga majestade, +da sua +benéfica influencia, das suas altissimas prerogativas.<br /> + +<br /> + +Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas, +uma especie de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos +Patriarchas, e os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um +magistrado sem appellação para as consciencias; +um censor, não em nome da Lei (como os de Roma), +porém em nome, e com delegação, +e por inspiração, do Espirito de Verdade, com +quem se crê ter commercio no fundo do santuario. Qualquer que +seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como +á principal.<br /> + +<br /> + +Tal é, repito, a entidade +<em>Parocho</em> em abstracto.<br /> + +<br /> + +<h4>XXIII</h4> + +<br /> + +Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se +não deverão empregar-se as mais incessantes, as +mais efficazes diligencias, para que o provimento das parochias (das +rusticas ao menos) recaia sempre em homens de cultivado e provado +entendimento, de sincera e illustrada Fé, humanos e +caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel trato.<br /> + +<br /> + +Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que, +segundo sua qualidade, teem de dessedentar e fertilisar, ou de +esterilisar e consumir, a terra que os rodeia.<br /> + +<br /> + +N'estes agros tempos de contínua +revolução +<span class="pagenum">[121]</span> +e peleja, ou +porque tão momentosa +ponderação não occorresse, ou porque a +vista, de dentro da cidade, não traspassa os muros d'ella, +ou porque conveniencias pessoaes e ephémeras, mas urgentes, +mas gravissimas, tenham feito postergar +considerações de maior utilidade, mas de effeito +mais tardío; as egrejas ruraes, como as urbanas, jazem, pelo +commum, peor que ao desamparo: entregues, não como egrejas, +a homens de oração e de esmola, mas, como torres +e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do +conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.<br /> + +<br /> + +¡Oh! que não sem rasão se collocou a +rixosa urna dos suffragios politicos na extranhada mansão +dos serenos suffragios religiosos. A um clero secularisado, competia um +templo secularisado tambem.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade; +é peccado, que todas ellas peccam; ou, para falar com mais +justiça, é +açoite que Deus mette na mão de cada uma, quando +lhe chega a sua hora de ephémero triumpho.<br /> + +<br /> + +Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até +ás mais illusas, como as devemos suppôr, +cordealmente empenhadas na civilisação e no +progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[122]</span> +O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso, +nem tudo permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas +suas pelejas, a Politica reconhecer limites, onde o Ceo e a +rasão os teem marcado?<br /> + +<br /> + +Combatam se os adversarios; mas não +se envenenem as aguas; e se a desavença é entre +consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para aquecer +o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que +já deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que +ainda podem liberalisar o mesmo a nossos netos.<br /> + +<br /> + +¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos +do Templo?<br /> + +<br /> + +Se é chyméra a Religião, se Jesus +não é em realidade senão «o +Christo», +vão fóra tartufías, que não +deshonram menos a uma nação que a um individuo; +acabe-se de uma vez com +<em>superstições</em> +importunas e dispendiosas.<br /> + +<br /> + +Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o +sol; se o sol é ainda agora a vida do genero humano; se a +Cruz é o unico pezo que faz crescer a quem a soffre; se na +terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda +a negação expira nos labios de quem chega a ouvir +como se amiudam os anhélitos do estertor, forcejae, forcejae +para restituir, ó vós que ainda o podeis, ao +santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle conhece, ao Povo +os unicos oráculos em que elle pode crer, ás +miserias o seu antigo e tão amado +refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já +tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[123]</span> +¿Não é assaz amplo o thesoiro que +entre as mãos tendes de destinos humanos?<br /> + +<br /> + +¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas +as magistraturas, todos os magisterios, todas as +exacções, todas as +administrações, não vos +dão de sobejo com que pagar ou empenhar amisades, zelos, e +serviços, sem ser mistér que o povo de Deus +venha, escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda, +carregar a pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?<br /> + +<br /> + +Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada +porque elles não existem para ella. Os moradores de +Sião não entôam os seus inspirados +canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de Babylonia. +Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os +seus moradores.<br /> + +<br /> + +A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha. +A Cidade santa restaurará as suas festas.<br /> + +<br /> + +Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e +despedindo-os das vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da +vossa parcialidade, qualquer que ella seja, se torne mais fraco.<br /> + +<br /> + +Pelo contrario: então é que a victoria, filha das +bençãos da terra e do Ceo, ha-de poisar para +sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso estandarte, +porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os +fortes, os que bastam per si para se defenderem. E +Pelo contrario: então é que a victoria, filha das +bençãos da terra e do Ceo, ha-de poisar para +sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso estandarte, +porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os +fortes, os que bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a +quem o Senhor outorgará dominação, +porque elles lhe hão +restituido os sacrificios.»<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[124]</span> +<h4>XXIV</h4> + +<br /> + +Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso +assumpto.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Logo que na legislação entrar mais +<em>bom-senso</em> que <em>politica</em>, mais +realidade que +ficção, mais pensamento de semear que de ceifar, +mais amor do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da +milicia sagrada devolver-se-hão inteiramente, francamente, +sem restricções mesquinhas e nocivas, das +mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros +naturaes: os Prelados.<br /> + +<br /> + +O Governo se gloriará de haver se desembaraçado +de uma tarefa, de pouca importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia +de incerteza, e de responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha +ainda mais, de haver facultado com a sua +restituição o incremento da religiosidade; por +ella o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas; +por tudo, o da prosperidade do Estado.<br /> + +<br /> + +Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei, +podér escolher por si mesmo, affeiçoar de +espaço, collocar por sua mão, os vigias de cada +um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem +duvída de que +então os desacertos nas ponderadas escolhas +hão-de ser tão raros, como os acertos o +são no actual systema, em que são as +casualidades, quando não as affeições +ou os interesses, que predominam?<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[125]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a +todos), as eleições do +poder temporal teem merecido a geral approvação; +teem recahido, pelo commum, em varões de mui notoria +sciencia e prudencia, equidistantes dos dois oppostos fanatismos, +concertados nos costumes, e zelosos discretamente.<br /> + +<br /> + +Graças, graças ao poder temporal, que +já deu o primeiro passo, passo de gigante, para a suspirada +reformação. Agora os restantes hão de +seguir-se, porque +são consequencia.<br /> + +<br /> + +Logo que soube, e quiz, prepôr ao +Episcopado varões taes, logo que manifestou ao mundo que +n'elles a todos os respeitos se fiava, tacitamente se obrigou a lhes +repôr... (estas suas usurpadas regalias, ia eu dizer, e era +um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua cruz, este +accrescimo de trabalhos e mortificações, este +para uma consciencia melindrosa martyrio das horas todas.<br /> + +<br /> + +Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os +hombros a tão duro redobramento de carga, se a caridade, +obrigada nos do seu officio, os não +forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com +exultação, e seguir via pelas asperezas do +Calvario para o Ceo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¿E que são em verdade os Parochos, ou antes: +¿que foram os Parochos desde os antigos seculos da sua +instituição, que foram, se não uns +coadjutores dos Prelados maiores, +<span class="pagenum">[126]</span> +para fazerem chegar até aos minimos e mais obscuros +recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e +os seus exemplos?<br /> + +<br /> + +Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um +só, e quasi sempre velho e cançado, +não podiam alcançar +tão longe como o seu espirito; medicos de populosos +hospitaes de almas (e de corpos tambem), não lhes chegando +as forças para estarem dia e noite a todas as cabeceiras, +contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, estudarem +todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em todos e com +todos, segundo a maravilhosa expressão do +Apóstolo das gentes; distribuiram em cada +enfermaría quem os supprisse, quem os fizesse sempre estar +presentes, quem em seu nome, e segundo a sua sciencia, receitasse e +administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse de subito acudir.<br /> + +<br /> + +¿Como póde portanto, quando militam as mesmas +rasões que presidiram á +creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em +que tudo vai falsificado?<br /> + +<br /> + +Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens +inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e +não ha-de ser sempre; e cabe nos esperar que nem +continuará a ser por muito tempo.<br /> + +<br /> + +O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o +indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os +presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres, +vão ser como essas torrinhas, que se branqueiam e se +perfumam de +<span class="pagenum">[127]</span> +incenso para morada de +pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão, +até ao possivel auge, em creanças innocentes e +instruidas, em adultos pios e laboriosos, em mulheres castas e amantes +do seu lar e dos seus deveres, em velhos pacientes, resignados e +conselheiros, em sólo bem cultivado e bem festivo; e o +Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que lhe +virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte. +<br /> + +<br /> + +<h4>XXV</h4> + +<br /> + +Não venha agora, no processo d'esta +santificação, intrometter se o <em>Cardeal-diabo</em> +do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a +máscara é de vidro, já d'aqui lh'a +havemos de quebrar nas mãos, batendo-lhe em cheio com tres +nomes todos presados: França, Italia, Inglaterra.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +¿Que nação mais ciosa das suas +immunidades, que a franceza? ¿Que +nação menos para consentir á Egreja o +que de jus estricto lhe não compita?<br /> + +<br /> + +Nenhuma.<br /> + +<br /> + +Ora em França, bem sabemos todos que são +unicamente os Prelados os que formam o seu Clero. Educam-n-o +longamente. Instruem-n o copiosamente, por livros não +escolhidos +(como entre nós) pela Autoridade civil, ainda que (de si se +entende) sujeitos á sua inspecção. +Acostumam n-o +ás praticas do seu não facil ministerio. Estudam, +provam, e contraprovam, a aptidão e especial +<span class="pagenum">[128]</span> +préstimo de cada um. Aproveitam +só os que n'esse crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram; +e outra vez os escolhem á mão, para os irem +repartindo pelas Parochias do modo que mais aproveitem; pois de ver +está, que, differindo em indole e circumstancias as +povoações como os individuos, tal individuo, que +em tal povoação +quadrará á justa, a afortunará +afortunando-se; n'outra, que menos lhe molde, valerá menos, +trabalhando e padecendo mais.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor; +porque, se lá os Bispos +são independentes, como em França, para o +provimento de suas egrejas, não é porque em +mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o Sceptro +é Bago juntamente.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por +ultimo a Gran Bretanha.<br /> + +<br /> + +Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida +se não tolerada, não acarinhada se não +temida pelo seu progressivo, cada vez mais rapido, mais assombroso, +engrandecimento, gosa se, não obstante, por longa e pacifica +posse, d'este seu não <em>privilegio</em>, se +não +<em>direito</em> essencial; e os seus Bispos são +pelo menos tão independentes no tocante á cura de +almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas os +proprios Bispos protestantes. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[129]</span> +<h4>XXVI</h4> + +<br /> + +Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo +a regeneração do Clero pelos seus principes +(unicos legitimos em tudo que ao seu ministerio se refere) cabe esperar +que a optima parte das nossas populações ruraes +se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que a minha gente de +S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida +até por cortesãos, quando sahirem a folgar no +campo algum estio.<br /> + +<br /> + +Para então é que este livrinho, semelhante aos +frutos que amadurecem em casa e ás escuras, ha-de ter para +mais alguem o sabor que eu já lhe tomo.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +Se elle consegue, para além das raias da minha +expectação, fazer com que um só +captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou +que um unico solitário aprenda a conhecer alguma parte da +sua encoberta bemaventurança, já não +trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos maiores triumphos +literarios.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>FIM DO PROLOGO</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>Notas de Castilho a este Preambulo</h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<h4>NOTA I</h4> + +<h3> +Fontes de estudo</h3> + +<br /> + +Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela +mente que houvesse algum dia de bosquejar esta humilde +Odyssêa dos sitios e gente d'ella, nada trouxe apontado a tal +respeito. Revolvendo as minhas memorias não escritas, achei +n'ellas consideraveis lacunas, mormente no tocante á +topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. N'esta +pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S. +Mamede da Castanheira, o Rev.<sup>do</sup> Padre Antonio +Jozé +Rodrigues de Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos +imperfeito o meu painel, em que faltará tudo, á +excepção de verdade nas +coisas, e nos retratos parecença.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>NOTA II</h4> + +<h3> +Parochos</h3> + +<br /> + +Na generalidade que estabeleço, por muito convencido, +caberá fazer algumas gloriosas +excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho, +<span class="pagenum">[132]</span> +n'esta freguesia de Santa +Isabel<sup><a href="#5">[5]</a></sup>, o +Rev.<sup>do</sup> Padre Jozé Jacintho Tavares, +é +varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de +sãos costumes, sobredoirados de indole sociavel e amena, e +incançavel na caridade. As reparações +e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que +elle serve, nada são comparados com os soccorros de +pão, de letras, e de +instrucção christan e civil, que já +começam a disfrutar os indigentes da sua freguesia. Largos +são ainda os seus projectos; ajude-o a Providencia; +deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade +filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá +transformado, pela educação, creancinhas ainda +hontem desamparadas, e a pique de perdimento. Não quiz +perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o clamor da +gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>FIM DO PRIMEIRO VOLUME</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<b>Notas:</b><br /> + +<br /> + +<a name="1"></a> <sup>[1]</sup> O +Doutor +de capello José Feliciano de Castilho +Barreto falleceu na Castanheira do Vouga a 6 de Março de +1827, e foi enterrado na capella mór da egreja parochial. +Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os seus restos mortaes para +o jasigo da sua familia no cemiterio dos Praseres em Lisboa, onde se +conservam.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os +Editores</span></div> + +</div> + +<br /> + +<a name="2"></a> <sup>[2]</sup> Existe +ainda este cedro que tem alcançado +descommunal corpulencia. Chamam-lhe por lá +<em>o cedro do poeta</em>, ou <em>do +Castilho</em>.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os +Editores</span>.</div> + +<br /> + +<a name="3"></a> <sup>[3]</sup> +Ovidio― <em>Os +Fastos</em>―Liv. +VI.<br /> + +<br /> + +<a name="4"></a> <sup>[4]</sup> +Allusão aos amargores da +redacção da <em>Revista Universal +Lisbonense</em>, minuciosamente narrados <em>nas Memorias +de Castilho</em>.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Os +Editores</span>.</div> + +<br /> + +<a name="5"></a> <sup>[5]</sup> +Castilho morava então na rua de S. +Marçal.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps"> +Os Editores</span>.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="break"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +Sociedade editora </h4> + +<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br /> + +95―RUA AUGUSTA―LISBOA</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4> + +<h4> +XX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME II</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +95, Rua Augusta, 95<br /> + +1905</h4> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4> +OBRAS COMPLETAS<br /> + +DE<br /> + +ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4> + +<h4><br /> + +VOLUME 20.º</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">I</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor +e melancolia.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A +chave do enigma.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas +de Ecco e Narciso.</span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td style="text-align: center; width: 12px;">―</td> + + <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade +pela agricultura</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(1.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">A primavera</span> +(2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span>―Apreciações moraes, +litterarias, e artisticas.</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (2.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">X</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(3.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(4.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(5.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos +e mortos</span> (6.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span> +(7.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Vivos e +mortos</span> (8.º +vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (1.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (2.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XVIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">Excavações +poeticas</span> (3.º vol.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XIX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da +montanha</span> +(1.º v.)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XX</td> + + <td>―</td> + + <td><span class="smallcaps">O +Presbyterio da montanha</span> +(2.º v.)</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<h3>NO PRÉLO:</h3> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 41px;">XXI</td> + + <td style="width: 10px;">―</td> + + <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O Outono.</span></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"> +<h4><a name="Vol.II"></a>OBRAS COMPLETAS DE A. +F. DE CASTILHO<br /> + +Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4> + +<h4> +XX</h4> + +<br /> + +<h1>O Presbyterio<br /> + +da<br /> + +Montanha<br /> + +</h1> + +<h3> +VOLUME II</h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br /> + +</div> + +<br /> + +<h4> +LISBOA<br /> + +<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br /> + +<em>Sociedade Editora</em><br /> + +</h4> + +<span style="font-weight: bold;"><br /> + +</span> +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td> + + <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td> + + <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <b>Rua +Augusta, 95</b></td> + + <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<h4>1905 +</h4> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c1"></a>I </h4> + +<h3><br /> + +A PRIMEIRA NOITE NA SERRA </h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry4 tinyl">... Ibi hæc +incondita solus<br /> + +montibus et silvis studio jactabat inani.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Vélo? +¿Sonho? ¿Deliro?! +¿Em solitario monte,<br /> + +que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte<br /> + +nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,<br /> + +de mundo a tumultuar, de cidades a rir...</div> + +<div class="poetry">n'este ermo ignaro, frio, mudo...</div> + +<div class="poetry1">aqui... (¿deliro? +¿ou sonho?) aqui meu lar, meu +tudo!</div> + +<div class="poetry">¡o meu presente e o meu +porvir! </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Genio invisivel da montanha,<br /> + +de astros, de sol, o ceo te banha;<br /> + +o mar de longe te acompanha<br /> + +no livre cantico sem fim.</div> + +<div class="poetry1">Escada de +Jacob da terra ao firmamento,</div> + +<div class="poetry">a +mansão tua é +monumento</div> + +<div class="poetry1">da potencia, do amor, das glorias +d'Eloïm. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Emquanto, em derredor do solio teu +sublime,<br /> + +a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,<br /> + +se volve, se transforma, e sua angustia exprime<br /> + +n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,</div> + +<div class="poetry">a variedades sobranceiro</div> + +<div class="poetry1">mantens-te qual surgiste, e do cahos +primeiro,</div> + +<div class="poetry">e do diluvio assolador.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[6]</span> +<div class="poetry">Silencio e paz comtigo habita;<br /> + +o ermo é como o eremita;<br /> + +loucas vaidades não cogita;<br /> + +ama o seu rustico trajar;</div> + +<div class="poetry1">em apparente inercia ama que ferva +occulto</div> + +<div class="poetry">de seus affectos o tumulto,</div> + +<div class="poetry1">seus extasis, seus ais, seus gostos, +seu orar.</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Sim, Genio da montanha, Archanjo de +poesia:<br /> + +eu creio em ti; eu creio em +que alma ingenua, pia,<br /> + +póde ouvir de tua harpa a casta +melodia,<br /> + +e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;</div> + +<div class="poetry">sim; mas eu, frivolo, profano,</div> + +<div class="poetry1">á solidão +extranho, affeito ao mundo insano,</div> + +<div class="poetry">¿que hei-de esperar? +¿que tenho aqui? </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Toda a minh'alma se entristece,<br /> + +e se confrange, e se ennoitece,<br /> + +ao ver que a sorte lhe destece<br /> + +de um sopro os aureos sonhos seus.</div> + +<div class="poetry1">Sonhava applausos, gloria... +¡em desterro desperto!</div> + +<div class="poetry">sonhava mundo... ¡acho um +deserto!</div> + +<div class="poetry1">sonhava inda illusões... +¡e escuto-lhes o adeus! </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Náufrago, perco a lyra em +meio da viagem.<br /> + +¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal +paragem,<br /> + +quem me resurgirá? Dos montes a linguagem...<br /> + +oiço... escuto... medito... e em vão quero +entender</div> + +<div class="poetry">é como +uns sons de ignota +fala;</div> + +<div class="poetry1">qual ás penhas o mar, me +inunda e me resvala,</div> + +<div class="poetry"> +sem me abalar, nem me embeber. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Oh! +¿á +minh'alma taciturna<br /> + +que importa, ó montanha soturna,<br /> + +que de perfumes sejas urna<br /> + +da terra erguida sobre o altar?</div> + +<span class="pagenum">[7]</span> +<div class="poetry1">¿que o ceo te ria azul, +mais amplo e mais de perto,</div> + +<div class="poetry">que o sol +doirado, ao teu deserto</div> + +<div class="poetry1">mais cedo suba, e á tarde +o +desça com pesar? </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Vir mais tardia a noite, a aurora vir +mais cedo,<br /> + +¿que me +aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,<br /> + +só ouvindo os +tufões e os corvos no arvoredo,<br /> + +bramirei:―«¡Cresce o tempo! ¡oh! +¡supplicio cruel!</div> + +<div class="poetry">¡são mais +pesares, +mais saudades,</div> + +<div class="poetry1">mais estro a arder em vão, +mais +visões de +cidades,</div> + +<div class="poetry">mais +tentações a +dar-me fel!...» </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Ai! ¡mundo! +¡ai! ¡eccos seductores!<br /> + +¡Tanto vate a ceifar +louvores!...<br /> + +¡Tanto +moço a +colher amores!...<br /> + +¡Tantos +loireiros e rosaes!...</div> + +<div class="poetry1">E eu n'esta solidão a +torcer-me arraigado,</div> + +<div class="poetry">qual roble que geme indignado,</div> + +<div class="poetry1">vendo ao +longe no Oceano os lenhos triumphaes! </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Assim ruge, baldão de +vingativo nume,<br /> + +esse que a argilla +outr'ora encheu de ethereo lume;<br /> + +assim, nos gelos sua, agrilhoado ao +cume<br /> + +do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz.</div> + +<div class="poetry">Só o abutre de eterna fome,</div> + +<div class="poetry1">que o grande +coração algoz sem fim lhe come, +</div> + +<div class="poetry">responde em ais á sua voz. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Fenece o dia. ¡Hora jocunda,<br /> + +que eu tanto amava! ¡hora +fecunda<br /> + +dos cantos meus! ¿por +que me +inunda<br /> + +nova amargura o +coração?</div> + +<div class="poetry1">¿Sino crepuscular, +tôas funéreo dobre?</div> + +<div class="poetry"> +a serra em luto se me encobre;</div> + +<div class="poetry1">a nocturna mudez duplica a +solidão.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[8]</span> +<div class="poetry1">Nenhuma luz scintilla; humana voz +não sôa.<br /> + +De +estrellas a accender-se o Empyrio se povôa;<br /> + +tal a fada +Coimbra, a senhoril Lisboa,<br /> + +nest'hora a quem as olha, entram no escuro +a abrir</div> + +<div class="poetry">de luzeiros um labyrinto.</div> + +<div class="poetry1">¡Ceos! +¡Não oiço eu troar... +seus coches!... O que sinto</div> + +<div class="poetry">é +vento em selvas a rugir. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Calae, fugi, ventos agrestes;<br /> + +sumi-vos, lampadas celestes;<br /> + +n'um seio a delirios já +prestes<br /> + +não susciteis mais +tentações.</div> + +<div class="poetry1">Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; +ou antes...</div> + +<div class="poetry">vós, astros, +cifras de +diamantes,</div> + +<div class="poetry1">o arcano me aclarae lá +d'essas +regiões. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Oh! ¡se +á minha razão, +contradictoria, altiva,<br /> + +que ás trevas sente horror, e +á clara +Fé se esquiva,<br /> + +de vós, faroes do Ceo, baixasse a +crença viva,<br /> + +que aos moradores do ermo inspira a vossa +luz!...</div> + +<div class="poetry">¡se me volvesseis as +ditosas</div> + +<div class="poetry1">esp'ranças que hei +perdido, alvas, ethereas rosas,</div> + +<div class="poetry">com que se enfeita e esconde a +Cruz!... </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Tornar-se-me-hiam de improviso<br /> + +a solidão, em paraizo;<br /> + +a magua, em perenne sorriso;<br /> + +em alto cantico, a mudez;</div> + +<div class="poetry1">a mallograda +lyra, o não colhido loiro,</div> + +<div class="poetry">em +harpa augusta, em palmas d'oiro;</div> + +<div class="poetry1">e o monte, solio então, +veria o mundo aos pés. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Delirios sempre vãos, fugi +de um peito enfermo;<br /> + +tu, +só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr +termo;<br /> + +ermo para ambições, é inferno, +e +não ermo;<br /> + +para a humilde piedade é que elle +espelha o Ceo.</div> + +<span class="pagenum">[9]</span> +<div class="poetry">Gentis phantasmas de cidades,</div> + +<div class="poetry1">vinde, escondei-me o ermo em vossas +claridades,</div> + +<div class="poetry">como um esquife em aureo veo. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Vinde, cercae-me, +endoidecei-me,<br /> + +(embora em saudades me eu +queime)!<br /> + +O somno, as vigilias enchei-me<br /> + +da vossa esplendida vizão.</div> + +<div class="poetry1">¿Val o riso choroso as +festas da loucura?</div> + +<div class="poetry">vinde, guiae-me á +sepultura,</div> + +<div class="poetry1">crente no amor, na gloria, e rindo +á solidão. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Eu blasphemo, eu desvairo! +Aos encontrados votos,<br /> + +nem ecco +respondeu n'estes covões ignotos.<br /> + +Não, cumes +glaciaes, tão outros, tão +remotos<br /> + +dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;</div> + +<div class="poetry">não, no silvestre seio +vosso,</div> + +<div class="poetry1">nem de amenas +ficções apascentar-me posso,</div> + +<div class="poetry">nem menos as posso esquecer. </div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +¡Valor! ¡valor! +¿Quem do futuro<br /> + +sondou jamais +o abysmo escuro?<br /> + +¡Apenas chego +e já +murmuro!<br /> + +¿O de que tremo +acaso sei?</div> + +<div class="poetry1">Esperemos: talvez que inglorios, mas +doirados,</div> + +<div class="poetry">aqui me aguardem, recatados,</div> + +<div class="poetry1">dias de +estro e de paz, quaes nunca disfrutei.</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Se além, no presbyterio, +humillima choupana,<br /> + +(Vaticano, e +Queluz da pobre grei serrana)<br /> + +mais que fraterno amor +sollícito se afana<br /> + +em me afôfar o ninho, a vida em +me inflorar;</div> + +<div class="poetry">se n'um retiro verde e +mudo,</div> + +<div class="poetry1">por elle tenho o leito, a mesa, o +doce estudo,</div> + +<div class="poetry">sombras no estio, o inverno ao lar;</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[10]</span> +<div class="poetry">se a solidão +que me +apavora,<br /> + +sómente o +fôr vista +de fóra;<br /> + +se em seus +recôncavos demora<br /> + +gente feliz, +povo de irmãos;</div> + +<div class="poetry1">se do antigo viver, das +crenças +de outra edade, </div> + +<div class="poetry">vestigios guarda a +soledade;</div> + +<div class="poetry1">se poesia se vive entre estes +aldeãos; </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">se a alegria, serena, isenta de +pesares,<br /> + +como a fresca saude, habita os +puros ares;<br /> + +se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e +mares,<br /> + +se Deus em toda a parte á Natureza ri...</div> + +<div class="poetry">coração meu, +não desanimes,</div> + +<div class="poetry1">gozos que não +prevês, e +cantos mais sublimes,</div> + +<div class="poetry">encontrarás talvez aqui. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">¡Ah! sendo assim, +¡que importa a fama!<br /> + +Tambem +philoméla derrama<br /> + +sua +harmonia ás selvas que +ama<br /> + +longe de ouvintes e do sol.</div> + +<div class="poetry1">Cantarei. ¿Meu cantar mais +ambições +teria</div> + +<div class="poetry">que a viva, a lustrosa poesia,</div> + +<div class="poetry1">de +perolas que a flux borbóta o rouxinol?<br /> + +<br /> + +<br /> + +</div> + +<div class="poetry">Castanheira do Vouga </div> + +<div class="poetry3">Outubro de 1826.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[11]</span> +<h4><a name="c2"></a>II</h4> + +<br /> + +<h3>O SEPULCRO<br /> + +OU<br /> + +HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO<br /> + +(POEMA) </h3> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<h4>INTRODUCÇÃO<br /> + +(QUE É MELHOR DORMIR, QUE +LER) </h4> + +<br /> + +<div class="intro">(Ermo alpestre entre cabeços +de rocha e pinheiros, na +serra +do Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um +arrieiro, ambos a cavallo, transviados na montanha.)</div> + +<br /> + +<h4>I </h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">―Bem lh'o disse eu, perdemos o +caminho;<br /> + +a velha era por +força alguma bruxa.<br /> + +Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a +touca!<br /> + +―Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?)<br /> + +tres vezes +t'o ensinou.</div> + +<div class="poetry2"> +―Nem trinta vezes</div> + +<div class="poetry1">que eu passasse por elle, o +aprenderia;<br /> + +a +não ser pelo rasto que deixasse<br /> + +esmurrando o nariz por essas +lapas.<br /> + +Já levo sem ferrage ambas as mulas;<br /> + +perdeu-se o +norte; não descubro casa,<br /> + +nem gente, nem caminho, e +é quasi noite. +</div> + +<span class="pagenum">[12]</span> +<div class="poetry1">Patrão, por meia legua +mais ou menos,<br /> + +não se +deixa uma estrada como aquella,<br /> + +que costeava o monte á beira +da agua.<br /> + +A velha era uma bruxa, e nós dois asnos.<br /> + +―Dize um +que vale dois, mas dois não digas.<br /> + +Se tomámos o +atalho em vez da estrada,<br /> + +toda a culpa foi tua; eu não +queria,<br /> + +porem teimaste; e eu não me opponho a teimas.<br /> + +―Mas +eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita,<br /> + +com ar de +santa, e palavrinhas manças,<br /> + +nos rabiscou co'o pau no +pó da estrada<br /> + +tão claramente as idas, as venidas<br /> + +d'esta serra sem fim, não lhe escapando<br /> + +lomba, moiteira, +torcicólo ou brenha,<br /> + +que a mula mesma entenderia o mappa!<br /> + +¿Quem não cahia em tal? cahiam todos.<br /> + +E de mais +¿quem nos diz que aquelles riscos<br /> + +não tinham +diabrura ou nigromancia<br /> + +capazes de encarchar um Santo em carne?<br /> + +¿E quem me diz a mim que a grenha russa<br /> + +não vai +ao pé de nós? +¡talvez sentada<br /> + +na anca da mula!... +¡<em>fúgite</em>, +demonios!</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;</div> + +<div class="poetry1">quem mais +anda, mais sabe; e eu não sou tolo,<br /> + +nem creancinha de honte. +¡Olha o diabo!<br /> + +bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;<br /> + +caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a +parta!<br /> + +¿que havemos de fazer nestas alturas?<br /> + +―Tornarmos +para traz.</div> + +<div class="poetry2"> +―¿Por este escuro?</div> + +<div class="poetry1">¿quer dar cabo das mulas, +e +estoirar-me?<br /> + +¡co'um milhão de diabos!!...</div> + +<div class="poetry2"> +―Pois fiquemos.</div> + +<div class="poetry1">―E as mulas comam terra, como os +sapos,<br /> + +e +nós carqueja.</div> + +<div class="poetry4"> +―As noites são bem curtas.</div> + +<span class="pagenum">[13]</span> +<div class="poetry1">―Se ao menos se avistasse alguma +venda...<br /> + +―Em rompendo a manhan teremos tudo.<br /> + +Por agora apeemo-nos. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">(<em>Apeiam-se.</em>)</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +―No inferno</div> + +<div class="poetry1">estoire entre um milhão de +Satanazes<br /> + +o que +inventou primeiro andar de noite;<br /> + +era o maior ladrão... +¿Que bulha é +essa?<br /> + +―Não é nada; uma pedra que rebola.<br /> + +―¡Que rebola!? ¡e sem mão! +será bonito,<br /> + +mas nem por isso engraço. +¿E aquelle bruto<br /> + +lá em cima no pinhal, que +guincha tanto!<br /> + +―Algum mocho.</div> + +<div class="poetry4"> +―Más balas o atravessem,</div> + +<div class="poetry1">e lhe acabem co'a casta antes de +um'hora;<br /> + +cuidei que era outra coisa. Eu na taverna<br /> + +valho por cinco ou +seis; mas cá perdido,<br /> + +e então de noite, um pisco +me põe medo.<br /> + +―Pois dorme.</div> + +<div class="poetry3">―¿O +quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás +barbas!</div> + +<div class="poetry1">só se eu fôsse +algum bêbado. +Esta noite<br /> + +nem pregar olho, nem largar das unhas<br /> + +dois penedos; e ao +pé já está +reforço.<br /> + +―Golgan, já que não foi por +nossa escolha,<br /> + +busquemos contentar-nos co'a poisada,<br /> + +que inda +não é tão má como +o parece.<br /> + +¡Quantos ha menos bem acomodados<br /> + +por esse mundo +agora! uns em cadeias,<br /> + +outros entre ladrões, +náufragos outros,<br /> + +estes em luto, aquelles em +doença.<br /> + +Bastantes em colxões de plumas +fôfas<br /> + +revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,<br /> + +cuidados +tristes, asperos remorsos.<br /> + +¡Quantos até nas salas +mais alegres,<br /> + +entre as luzes, e as muzicas, e as danças,<br /> + +mas +em face de um sôffrego banqueiro,</div> + +<span class="pagenum">[14]</span> +<div class="poetry1">padecem mais que um reo chegando +á fôrca<br /> + +Não ha mal sem peor; qualquer estado<br /> + +se se +compara, é bom; com cara alegre<br /> + +suavisam-se os incommodos; +um fardo<br /> + +n'um hombro impaciente é fardo e meio.<br /> + +Quem +não soffre um descommodo pequeno<br /> + +nos grandes morre; um leve +desagrado<br /> + +dá realce ao prazer quando nos volta.<br /> + +Qualquer +estado, e pessimo que seja,<br /> + +tem seu lado risonho; e é da +prudencia<br /> + +d'entre os picos da silva achar a amora.<span style="font-style: italic;"><br /> + +</span><em>Amen</em>.―Brava +o latim; dá +ceia e cama.<br /> + +―A falta d'esta ceia é novo adubo<br /> + +do +almoço de amanhan; e emquanto á cama,<br /> + +¿que outra melhor do que esta em mez de Junho?<br /> + +Nem paredes +nem tectos, que nos roubem<br /> + +a viração da noite +apoz a calma;<br /> + +por entre essa quebrada dos penhascos<br /> + +lá em +baixo o mar co'os seus murmurios frescos;<br /> + +sobre nós, e por +baixo das estrellas,<br /> + +pendendo como um lustre, este carvalho<br /> + +cravejado +de insectos que entre-luzem;<br /> + +dois rouxinoes ao longe; as lageas, +mornas.<br /> + +Vê; que soberba camara!; que leitos<br /> + +desde a origem +dos seculos nos guarda<br /> + +no seio d'esta brenha a Natureza!<br /> + +―Ao menos +não tem pulgas. ¡Xó, +canalha!<br /> + +¡leva rumor! é bom pregar de coices.<br /> + +Não durma, Sôr Doutor.</div> + +<div class="poetry2">―Não tarda muito</div> + +<div class="poetry1">que eu não entre a sonhar +¡Que bellos sonhos<br /> + +não devem ser os de uma noite +d'estas!<br /> + +―Tenha lá mão com isso; o que eu +prometto,<br /> + +para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada<br /> + +de casos +que eu passei na minha vida;<br /> + +tão rara, que podia ir +á +<em>Gazeta</em>!</div> + +<span class="pagenum">[15]</span> +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Uma vez ia eu só; era em +Novembro;<br /> + +chuviscava e fazia um +tal escuro<br /> + +que era metter os dedos pelos olhos.<br /> + +(Lembrou-me esta a +proposito da mula<br /> + +escoicinhar sem causa.) E era bom tempo<br /> + +aquelle; +andava Christo pelo mundo;<br /> + +tinha eu mais duros, que patacos hoje,<br /> + +e +andava o oiro aos pontapés da gente;<br /> + +tambem... +¡já cá não torna! +O grande caso<br /> + +é que n'aquelle tempo era eu solteiro,<br /> + +e rapaz +bonitote; e havia muitas<br /> + +que me fizessem fogo; eu cuido, e é +certo,<br /> + +que não pelos vintens; nem pela cara;<br /> + +mas isto de +casar co'um almocreve,<br /> + +seja elle o diabo dos infernos,<br /> + +parece a todas +bem: é uma delicia<br /> + +ter o seu homem só de vez em +quando,<br /> + +em logar do espião de um pegamaço<br /> + +com +residencia fixa em ar de abbade.<br /> + +Mas... não é bom +falar na vida alheia.</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Como lhe ia contando, era almocreve;<br /> + +chamavam-me o <em>Chupista</em>. +¡Oh! que bolaxa<br /> + +que eu pespeguei na cara do coécas<br /> + +que me inventou a alcunha em certa venda!<br /> + +qualquer creança +lhe moia os queixos;<br /> + +já lá está onde o +pague +¿Onde ia o ponto?<br /> + +¡ah! sim; era almocreve e +recoveiro;<br /> + +e andava com dez machos todo o anno<br /> + +a correr quanto valle e +monte havia<br /> + +para cobrar o fôro aos Frades Cruzios.<br /> + +Que isto +do fôro é bom, nem que pareça;</div> + +<span class="pagenum">[16]</span> +<div class="poetry1">uns pagam-lhe borel, outros centeio,<br /> + +queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,<br /> + +gallinhame por arte do diabo,<br /> + +ovos, e até o musgo onde se empalham.<sup><a href="#6">[1]</a></sup><br /> + +Não ha +n'um pardieiro um desgraçado<br /> + +que não deva pagar +alguma nica.<br /> + +Já vê donde me vinha a minha alcunha;<br /> + +mas sem rasão; é porque andava ás +ordens.<br /> + +Tambem já tenho ouvido alguns autores,<br /> + +tal como o +meu cunhado, e mais uns certos,<br /> + +que é coisa bem mal feita a +tal derriça;<br /> + +Mas bem feito ou mal feito, eu não +sou Papa.<br /> + +Vamos cá co'o meu conto.</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Era uma noite,</div> + +<div class="poetry1">cuido que já lh'o disse, +ali por Maio,<br /> + +e fazia um luar... que era um consolo.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Eu saio a meu +avô; se é boa a estrada,</div> + +<div class="poetry1">gósto de andar +de noite havendo lua;<br /> + +cá pelas brenhas não, que +não sou +lobo.<br /> + +Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,<br /> + +em cima de uma carga de +presuntos,<br /> + +pela estrada real, co'os sete machos<br /> + +a dormitar ao som da +chocalhada.<br /> + +Vinhamos caminhando em certo passo<br /> + +de quem gosta da noite, +ou vem sem pressa,<br /> + +ou de quem traz comida a gente farta.</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Que lhe digo, em abono da verdade,<br /> + +que servir Santa-Cruz +não dá desgosto:<br /> + +pagam bem, fazem festa ao +gallinheiro,</div> + +<span class="pagenum">[17]</span> +<div class="poetry1">vendo os machos no +pateo é uma alegria!...<br /> + +¡aquillo até os +olhos se lhes riem!<br /> + +dão pinga, e de cear, e muitas vezes<br /> + +vi +eu estar vai não vai a dar-me um beijo<br /> + +o Frade gordo que +recebe o saque.<br /> + +¡Bom tempo! ¡bom de lei! +já +cá não torna.<br /> + +Não durma Sôr +Doutor.</div> + +<div class="poetry2"> +―Não durmo; acaba.</div> + +<div class="poetry1">―¡Acabar! não +acabo em toda a noite,<br /> + +nem que estoire a barriga do diabo.<br /> + +Inda eu +não comecei. Lembra-me um Frade<br /> + +que havia em Santarem; tinha +um cachaço,...<br /> + +por tal signal que até revia +enxundia;<br /> + +¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!...<br /> + +¡Mas aquillo! a prégar era uma joia;<br /> + +um +sermãosinho d'elle atarantava<br /> + +e punha tudo azul. Tinha a +constancia<br /> + +de arrumar prègações de +duas horas.<br /> + +N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...<br /> + +(e olhe, foi +tanto, que eu, e muita gente,<br /> + +já tinhamos dormido +á regalada)<br /> + +disse muito pausado: «Eu +principio.»<br /> + +<br /> + +</div> + +<div class="poetry">Assim faço eu tambem. Todos +devemos</div> + +<div class="poetry1">tirar das +prègações algum +proveito.<br /> + +Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia;<br /> + +porém tenha lá mão, que a levo errada.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Nesse dia á tardinha, na +estalage<br /> + +tinha entrado uma +velha; era um diabo,<br /> + +que isso... só visto! pequenina, magra,<br /> + +muito preta; era um bilro de pau santo.<br /> + +Tinha pela cabeça um +lenço pardo<br /> + +atado pela barba, um manteo ruço,<br /> + +e +uma mantinha exotica e de agoiro.</div> + +<span class="pagenum">[18]</span> +<div class="poetry1">Tinha então uma cara +não sei como;<br /> + +nem parecia +cara; era um nó cego<br /> + +que fazia azoar a toda a gente;<br /> + +mas +muito experta; e uns olhos como um bixo.<br /> + +¡Tambem aquella rez +tinha no corpo<br /> + +muita pipa de sangue de creanças!</div> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Cheguei eu á estalage, e +ia com fome;<br /> + +vou-me á +carga do fôro, agarro uns ovos,<br /> + +mando +os frigir com mel, que é papa +fina;<br /> + +e então para quem tem de andar de noite<br /> + +dizem que +é bom, que livra do catarro,<br /> + +já se sabe com +quatro pingarolas.<br /> + +Ia se preparando o meu +guizado,<br /> + +e era um cheiro tão bom pela cosinha,<br /> + +que isso +não ha dizer. Já dois gallegos,<br /> + +e mais, tinham +ceado; andavam tolos<br /> + +a cochichar, e ás voltas pela casa,<br /> + +um +olho em mim, outro olho na tigella,<br /> + +e eu muito concho a rir, e a pescar +tudo.<br /> + +Basta dizer que me pediram ambos<br /> + +que vendesse um +quinhão; ¡e isto em gallegos!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.</div> + +<div class="poetry1">Mas o monstro da +velha era uma estaca<br /> + +ali muito direita ao pé dos ovos,<br /> + +com +cada olho aberto, ¡que te parto!<br /> + +Era mesmo um olhar de inveja +e zanga.<br /> + +Logo eu tive má fé co'a tal menina<br /> + +quando ella perguntou quem era o dono.<br /> + +Porém quem mal +não usa mal não cuida;<br /> + +sentei-me á +meza a codear nos ovos.</div> + +<span class="pagenum">[19]</span> +<div class="poetry1">Ora +agora o vereis: a minha amiga<br /> + +amúa-se n'um canto, mais +vermelha<br /> + +que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella.<br /> + +Ferra os olhos em mim com tal quezilia,<br /> + +que a não ser por +temer a Deus e a ella,<br /> + +batia-lhe co'o prato pelas trombas.<br /> + +Botava cada +lagrima... ¡de punho!<br /> + +dava cada suspiro, a excommungada,<br /> + +¡que punha medo! accendo o meu cigarro,<br /> + +pago, monto a +cavallo, e sigo a estrada.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Era já noite escura, e +um vento frio</div> + +<div class="poetry1">como o gran Satanaz.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +¿Que diabo é isso?</div> + +<div class="poetry1">ressona?; ou já na +costa anda algum moiro?<br /> + +―Avante; são as ramas que +sussurram.<br /> + +―Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando<br /> + +pela estrada +real por ser já tarde,<br /> + +e a assobiar sósinho o +<em>tiroliro</em>.<br /> + +Vai senão quando, +estacam-se-me as bestas.<br /> + +Á esquerda, como ahi, ficava um +monte;<br /> + +d'esta banda um pinhal muito fechado;<br /> + +de sorte que o caminho (e +então mui longe<br /> + +de todo o povoado) era um soturno,<br /> + +que nem +Roldão o andava áquellas horas.<br /> + +Entrei logo a +suar e a arripiar-me;<br /> + +e as mulas n'um inferno de pinotes<br /> + +sem +quê nem para quê; davam taes rinchos,<br /> + +que se fundia +o chão; pregavam coices,<br /> + +que assoviavam no ar; +¡que contradança!<br /> + +era uma groza de diabos doidos,<br /> + +e eu mais doido, no meio, á bordoada.<sup><a href="#7">[2]</a></sup></div> + +<span class="pagenum">[20]</span> +<div class="poetry1">Aqui +digo eu como dizia o Frade<br /> + +n'outro sermão de um Santo; +<em>não lh'o pinto<br /> + +por não ter um pincel</em>. +Mas faça +ideia<br /> + +que tal eu ficaria lobrigando<br /> + +(¡eu te arrenego diabo!) +uma luzerna<br /> + +a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo,<br /> + +lá longe no pinhal. Que era bruxedo<br /> + +tive eu logo de +fé; muitos que m'o ouvem<br /> + +riem-se, e tal; deixal-os rir; ha +bruxas;<br /> + +que isso sei eu; ¡e então ali! +¡tão tarde!<br /> + +Por força era algum sabbado +lá d'ellas,<br /> + +que as taes amigas juntam-se de noite<br /> + +a fazer os +seus sabbados, o mesmo<br /> + +como nós no Natal á meia +noite...<br /> + +Ha muita comezana de creanças,<br /> + +sarrabulhos de +sangue, cambalhotas,<br /> + +e umas rizadas..... que até Deus se +admira.<br /> + +No meio anda um pretinho muito gordo,<br /> + +que é o +proprio diabo em carne e osso.<br /> + +Diz então muita coisa a todas +ellas,<br /> + +dá-lhe lá seus conselhos, toma contas<br /> + +do +que teem feito, e..... acaba a tal comedia.<br /> + +Untam-se co'uma untura que +lá sabem,<br /> + +transformam-se em corujas e mosquitos,<br /> + +o diabo e o +lume sorvem-se na terra<br /> + +dizendo boa noite até tal dia,<br /> + +e +ellas voltam-se a casa a armar já outras.<br /> + +Isto sabia-o eu +como os meus dedos.<br /> + +Lembrou-me a tal gulosa da estalage,<br /> + +e +então é que dei tudo por perdido.<br /> + +Deitei +fóra o cigarro, e entro em voz baixa<br /> + +(¡sempre isto +do pavor faz muita asneira!)</div> + +<span class="pagenum">[21]</span> +<div class="poetry1">entrei eu +co'as mãos postas para as mulas<br /> + +a pedir-lhes co'as lagrimas +nos olhos,<br /> + +pelas Almas Bemditas, que deixassem<br /> + +todo aquelle motim, que +me perdiam;<br /> + +que fugissem d'ali, que andavam bruxas,<br /> + +e que pé +ante pé viessem vindo;<br /> + +que eu promettia uma +ração dobrada.<br /> + +Partimos. De repente +desembésta<br /> + +d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto<br /> + +direito para nós como uma xára.<br /> + +Com seis +milhões de grozas de diabos!<br /> + +¿quem havia de ser, +senão a velha?<br /> + +Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,<br /> + +chega ao cimo, e de lá muito sizuda<br /> + +entra a dizer-me adeus, +e (¡t'arrenego!)<br /> + +a fazer-me uma cara dos infernos...<br /> + +―¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?<br /> + +―Certo +é que lembrou bem; tambem agora<br /> + +lá me faz +confusão ter visto a cara.<br /> + +¿Escuro? isso era +escuro como um prego;<br /> + +não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e +vi-lh'a;<br /> + +¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje<br /> + +tão bem encasquetada no juizo,<br /> + +que a podia pintar, e era +pintura,<br /> + +que urrariam os bois se lh'a mostrassem.<br /> + +Quer escuro quer +não, vi-a, e está dito.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas o bom não foi isso; o +mais bonito<br /> + +foi entrar de +repente o gallinhaço<br /> + +nas canastras da carga em cantarolas,<br /> + +a +romper, a fugir, e eu pila pila<br /> + +para aqui, para ali, correndo +ás cegas<br /> + +sem as poder juntar. Foi +se-me a noite<br /> + +n'esta labutação; de cada canto</div> + +<span class="pagenum">[22]</span> +<div class="poetry1">sentia um cacarejo, ia +ás carreiras,<br /> + +gallinha... por um oculo. Já rouco,<br /> + +moido e desesp'rado, ao romper d'alva<br /> + +vejo as minhas senhoras mui +contentes<br /> + +todas juntas n'um bando ao pé das mulas.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas alto; esta é peor. +¿Não +vê? repare:<br /> + +¡um clarão para ali!! d'esta +nos trincam;<br /> + +¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a +morte!!<br /> + +―Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta?<br /> + +―Para nós ambos de Fieis defuntos.<br /> + +―De San +João.</div> + +<div class="poetry4"> +―¡Ah! sim; pois é fogueira,</div> + +<div class="poetry1">e não +é outra coisa. ¡Ora o diabo!<br /> + +sempre tive uma +colica soffrível.<br /> + +Mas vamos nós a andar, se lhe +parece.<br /> + +Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,<br /> + +n'umas rasões +que teve com meu tio,<br /> + +que era barbeiro então, e o Padre +Mestre<br /> + +era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,<br /> + +ia fazer-lhe a barba e +mais ao preto,<br /> + +que era um tição que só +á +bofetada;<br /> + +¡mas muito presumido! ¡e então +por +moças<br /> + +dava o grande magano um cavaquinho!!...<br /> + +Com que emfim, +tinha o Padre este ditado:<br /> + +aonde ha lume ha fumo; e eu então +digo<br /> + +que por força onde ha lume ha-de haver gente;<br /> + +e que +onde ha gente ha casa; e toda a casa<br /> + +tem a sua cosinha, e +então ceâmos.<br /> + +E é partir de repente em +quanto ha lume.<br /> + +...........................................................<br /> + +...........................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[23]</span> +<h4>II</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Eis aqui um dialogo de ensanchas<br /> + +sem +geito, sem sabor, sem fim, sem +nexo―<br /> + +grita o leitor perdendo as estribeiras.<br /> + +¿Onde foi +isto? ¿ou quando? ¿quem +são elles?<br /> + +¿onde vão? +¿d'onde veem?</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Leitor amigo,</div> + +<div class="poetry1">ha duas horas que soubéras +tudo,<br /> + +se o cruel +arrieiro o permittisse;<br /> + +mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.<br /> + +Quanto a elle, presumo que o conheces;<br /> + +o nome do outro autor +dir-t'o-hei n'um verso<br /> + +não peor que outros muitos +portuguezes:<br /> + +Antonio Feliciano de Castilho.<br /> + +Venho do Minho de assistir +a bodas;<br /> + +recolho me outra vez á +Castanheira <sup><a href="#8">[3]</a></sup><br /> + +a casa do Prior, a fazer versos,<br /> + +beber-lhe o vinho +verde, e dormir muito.<br /> + +O theatro da scena é certo monte<br /> + +de +que me esquece o nome; o anno, e o dia,<br /> + +Mil oitocentos e vinte e oito, +á noite,<br /> + +vespera de S. João. Se mais desejas,<br /> + +é perguntar, que eu te respondo a tudo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas o melhor (se queres um conselho)<br /> + +é fazer-me um favor, +ao qual protesto<br /> + +ser toda a vida grato: anda comnosco;</div> + +<span class="pagenum">[24]</span> +<div class="poetry1">a +noite está bellissima; podemos<br /> + +ir co'o nosso vagar +pataratando,<br /> + +e conduzindo as mulas pela redea.<br /> + +Mas tens medo ao Golgan; +pois boas noites;<br /> + +fica-te em paz, regala te, que eu juro<br /> + +que estando em +teu logar fazia o mesmo.<br /> + +Se queres, faze ás paginas +seguintes<br /> + +onde vai mais Golgan (porque já agora<br /> + +hei-de +contar a historia por miudo)<br /> + +faze, digo, a taes paginas o mesmo<br /> + +que eu, +tu, e elle, e nós, e vós, e elles,<br /> + +fazemos +ás dos <em>Martyres</em> +do Padre,<br /> + +que são apezar d'isso uma obra prima.<br /> + +Passa-as em +claro, e dize que já leste.<br /> + +Quem fala assim não +quer suor alheio.<br /> + +E adeus; até mais ver que vou com pressa.<br /> + +............................................................<br /> + +............................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>III</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">―Olhe lá, Sôr +Doutor; diz um livrito,<br /> + +que a +gente sem falar é como os burros;<br /> + +e eu digo que diz bem. +Quero contar-lhe, <br /> + +para ver se se encurta este caminho,<br /> + +o mais que se +passou depois da historia.<br /> + +Mas vá picando a +mula; ¡olhe a fogueira!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Com que, como eu já disse, +ao outro dia<br /> + +vi as gallinhas +ao redor das bestas;<br /> + +torno-as a pôr na carga, e digo logo:<br /> + +A +Santa-Cruz não vão vocês de certo;<br /> + +nem +vocês, nem a carga dos presuntos,<br /> + +nem nada que aqui vai, +¡com trinta infernos!</div> + +<span class="pagenum">[25]</span> +<div class="poetry1">Servos de Deus tão bons, +tão meus amigos,<br /> + +¡haviam comer tal! ¡metter no corpo<br /> + +talvez quanto +bruxedo ha neste mundo!<br /> + +Deus me livre do mais, que de +encarrêgos<br /> + +posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas<br /> + +direito +á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,<br /> + +com carga e tudo.</div> + +<div class="poetry4"> +―¿As mulas!</div> + +<div class="poetry2"> +―Pois as mulas</div> + +<div class="poetry1">tinham tantos diabos na muchilla<br /> + +como as gallinhas, os +boreis, e os ovos.<br /> + +Mas eu era rapaz; se fosse agora,<br /> + +não +digo que o fizesse. O divertido<br /> + +foi andar eu trez annos para quatro<br /> + +a +correr Portugal e Hespanha toda<br /> + +a buscar confessor; ¡tudo +ignorante!<br /> + +Padre douto, nem um que me absolvesse.<br /> + +Por fim achei o filho +de um cigano,<br /> + +dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.<br /> + +Mas +então penitencia não falemos;<br /> + +se a quizesse +rezar, ¡nem toda a vida!<br /> + +Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro +duro,<br /> + +e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;<br /> + +mas disse-me que havia +até ser velho<br /> + +mortificar o corpo co'um vergalho,<br /> + +e com +muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato!<br /> + +Sabe +então o que fiz inda algum tempo?<br /> + +era correr de +chôto os meus pedaços,<br /> + +e depois +descançar.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry2">Deixemos isto,</div> + +<div class="poetry1">que não lhe importa muito, +e a mim nem nada;<br /> + +vim para a minha terra apenas pude,<br /> + +muito pimpão, e cheio +como um ovo.</div> + +<span class="pagenum">[26]</span> +<div class="poetry1">Namorei, +namoraram-me bastantes;<br /> + +por encurtar rasões, casei com uma<br /> + +que era filha do irmão de um primo ou tio<br /> + +de um meu compadre +Abreu, que era cunhado<br /> + +da sogra d'esta mesma rapariga,<br /> + +e enteado do +irmão do Cura velho;<br /> + +tudo gente limpinha, muito boa,<br /> + +e +temente ao Senhor, que é todo o caso.<br /> + +Gastei para +impôr Bulla os meus tanturrios,<br /> + +¡e não +foi lá tão pouco! +¡Veja agora:<br /> + +¡para a gente casar largar dinheiro!<br /> + +É como ir para a India ou para a fôrca,<br /> + +e pagar +inda em cima aos da sentença.<br /> + +Perguntei ao Banqueiro a causa +d'isto,<br /> + +disse me elle que a causa era nós termos<br /> + +quatro +humores no corpo, e d'aqui vinha<br /> + +haver os quatro grãos na +parentela;<br /> + +que ella era minha prima, e que entre primos<br /> + +havia os quatro +grãos todos inteiros.<br /> + +Não se riu, nem me eu ri; +paguei-lhe em peças<br /> + +não só os quatro +grãos que se +não viam,<br /> + +mas ainda mais cá certa brincadeira.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Deixar; fosse o que fosse; emfim, +casei me.<br /> + +Aquelle mez primeiro é uma delicia;<br /> + +foi +todo elle um <em>cantate</em>; muito +amigos,<br /> + +muito beijo, e comer; muita broega,<br /> + +muita romage, e tudo muito +e muito.<br /> + +Nunca houve um par assim tão contentinho;<br /> + +nanja na +aldeia e na comarca em roda;<br /> + +era até amizade escandalosa.<br /> + +Tanto assim, que o Prior, mais era amigo<br /> + +de fazer a vontade a toda a +gente,<br /> + +n'um dia santo á pratica da Missa</div> + +<span class="pagenum">[27]</span> +<div class="poetry1">deu-me um foguete ¡caspite! +Disse +elle<br /> + +que marido e mulher com tal namoro<br /> + +era coisa mais vil que mil +diabos.<br /> + +Fizemos-lhe a vontade antes de muito;<br /> + +ella entrou-me a azoar +com trinta coisas,<br /> + +e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,<br /> + +o +asneirão do Juiz, que era vizinho,<br /> + +tomou isto em trambolho, +e ameaçou-me<br /> + +de me encaixar no fundo dos infernos.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿E então que +lhe parece a entaladella?<br /> + +Vivia +em paz, ralha o Prior; dezanco-a,<br /> + +vem o Juiz, promette-me a enxovia.<br /> + +É como o conto de um palerma velho<br /> + +que ia a pé +co'um rapaz e mais um burro.<br /> + +―Bem sei.</div> + +<div class="poetry3">―Pois sim senhor. Com que, tivemos,</div> + +<div class="poetry1">não digo bem; teve ella +oito ou dez filhos;<br /> + +e sempre a dois e dois; forte coelha!<br /> + +Entrei a dar +á bruta; acudiu povo,<br /> + +ella fugiu, mas eu fugi sem ella.<br /> + +E +d'então para cá desandou tudo.<br /> + +E hoje ando aqui +por moço de arrieiro,<br /> + +a perder noites, e a estrompar as +ventas.<br /> + +Aqui está por que eu digo que este mundo<br /> + +é coisa muito celebre! uns ovitos<br /> + +e uma pinga de mel fizeram +tudo.<br /> + +............................................................ </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Brava! +¿não ouve uns sinos que +repicam?<br /> + +¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o +Vinagre!<br /> + +¡e viva a ceia e a cama que estão perto!</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[28]</span> +<h4>IV</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Com effeito, assim era; a poucos +passos<br /> + +já se ouvia +tambor, gaita de folles,<br /> + +risadas, bombas. Apressando as mulas<br /> + +na +direcção dos sons e da fogueira,<br /> + +descemos uma +encosta, a cujas abas,<br /> + +entre uns poucos de antigos castanheiros,<br /> + +uns +cinco ou seis pastores se occupavam<br /> + +a abobadar de murta uma fontinha.<br /> + +Interromperam logo o seu trabalho<br /> + +para nos vir saudar; mostraram pena<br /> + +de ouvir que nos perdêramos no monte,<br /> + +off'recendo +á porfia os seus albergues.<br /> + +Não findara a +benevola contenda,<br /> + +se um d'elles agarrando o freio á mula<br /> + +me +não posesse a andar; agradecendo<br /> + +os desejos dos mais que +inda ficavam,<br /> + +segui affoitamente o nosso guia.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Uma ponte de pau que +atravessámos<br /> + +coberta de +chorões, nos poz á borda<br /> + +de um trigo +já maduro e sussurrante,<br /> + +contiguo ao seu casal. +¡Quanto eu folgara<br /> + +de descrever tudo isto! Uma casinha<br /> + +plantada ahi como risonha ilhota<br /> + +n'um vasto mar de tremulas searas,<br /> + +e +clara como a neve, ou como a lua<br /> + +que a espreitava do ceo por entre as +folhas<br /> + +de um esquivo parreiral. Junto ás paredes,<br /> + +de rosas e +limeiras revestidas,<br /> + +canapés de cortiça +apresentavam<br /> + +a imagem do descanço e a do convite.<br /> + +Não era necessario entrar a porta,</div> + +<span class="pagenum">[29]</span> +<div class="poetry1">para já conhecer o +domicilio<br /> + +da +hospedage e da paz; que as proprias auras,<br /> + +como que em tão +poeticas folhagens<br /> + +se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo +o +estranho!»</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry">Não longe lhe ficava a sua +aldeia</div> + +<div class="poetry1">na c'roa de +um oiteiro; pensarieis,<br /> + +vendo-as tão perto, e um bosque a +separal-as,<br /> + +a aldeia tão brilhante de fogueiras<br /> + +e esta casa +tão só mas tão alegre,<br /> + +pensarieis, +como eu, ver n'uma festa<br /> + +moça ausente e feliz, amante e +amada,<br /> + +que entre o prazer commum não quer nem deve<br /> + +ir +desfazer seus pensamentos doces.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry">Visinho seu mui proximo era o templo,</div> + +<div class="poetry1">aos valles do arredor +alardeando<br /> + +na sua torre branca um Anjo de oiro,<br /> + +e a um lado a +Residencia, occulta em parte<br /> + +n'um ramilhete de altas cerejeiras.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry">Nunca mão de pintor juntou +n'um quadro</div> + +<div class="poetry1">objectos mais simpathicos. Tal como<br /> + +trépido arroio em tacita +espessura<br /> + +das copas bebe a sombra, e envia ás copas,<br /> + +do sol +reflexo voadores raios,<br /> + +do casal a presença alegra o templo;<br /> + +a presença do templo está lançando<br /> + +sobre o casal o sério da virtude.<br /> + +Tudo isto sob um ceo de +fertil benção,</div> + +<span class="pagenum">[30]</span> +<div class="poetry1">sobre um chão de +abundancia, e no +ar mais puro!<br /> + +―¡Meu Pae,!―grita o pastor entrando +á pressa―<br /> + +minhas irmans! ¡um hospede!―</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2">A tal nome,</div> + +<div class="poetry1">como se fosse +á voz de alguma fada,<br /> + +com repentina luz nos apparecem<br /> + +creanças folgasans, esbeltas moças,<br /> + +um +ancião, e uma velha. Imagináreis<br /> + +ver +Graças, ver Amores, ver Napêas,<br /> + +trajados de +aldeãos, e honrando os lares<br /> + +de Baucis e +Philémon, que o parecem<br /> + +na edade e na virtude os meus dois +velhos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Não mora entre seáras a etiqueta;<br /> + +mas sobre +herdada meza de pinheiro<br /> + +em troco adeja a cordeal franqueza,<br /> + +o bom +desejo adubo da abundancia,<br /> + +e a amisade dos bons, filha do instincto,<br /> + +que nasce qual relampago, mas dura.<br /> + +Deu-se o primeiro instante ao +comprimento,<br /> + +logo o segundo aos commodos;<br /> + +o resto á +conversa, e ao bulicio de tal noite.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,<br /> + +vital perfume de mellifluos +bolos,<br /> + +que em molles virações traz a alegria.<br /> + +Aquella vai e vem compondo a meza;<br /> + +esta afervora a ceia, e a cada +instante<br /> + +corre á janella que descobre a aldeia.<br /> + +Juntam-se +á bulha os sinos da parochia,</div> + +<span class="pagenum">[31]</span> +<div class="poetry1">que o +sacristão na vespera do Orago<br /> + +jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra.<br /> + +O festivo repique +exalta as mentes,<br /> + +os meninos não param, correm, gritam,<br /> + +repartem bombas, furtam-se valverdes,<br /> + +e rindo ameaçam fogo +á pipa velha.<br /> + +A boa annosa mãe ralha do estrondo,<br /> + +e o faz inda maior; o esposo enfia<br /> + +uma sobre outra historias do seu +tempo.<br /> + +O avito candieiro de tres lumes<br /> + +cobre da meza o centro, e chama +á ceia;<br /> + +a sôlta sociedade eis se lhe aggrega.<br /> + +Não foi longo o festim, mas cada copo<br /> + +lhe augmentava o +praser. ¡Salve tres vezes,<br /> + +ó dos tres lumes +candieiro avito!<br /> + +¡quanto amor, quanta paz, que bens, que +festas<br /> + +não tens visto florir em tua casa!<br /> + +¡quantas +mãos tão felizes como puras<br /> + +te hão +accendido em noite igual! ¡quem sabe<br /> + +que de memorias para ti +conservas!<br /> + +¡Em premio da hospedage aqui te accendam<br /> + +longas +eras em noites semelhantes<br /> + +dignos de seus avós contentes +netos!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Iria a muda apostrophe adiante,<br /> + +mas ouviu-se o +zabumba.―¡Ahi veem! ¡são +elles!―<br /> + +dizem todos, e todos saem pulando.<br /> + +―Olhae; olhae; +¡nem uma luz na aldeia!<br /> + +este anno veio tudo. ¡Que +alegria<br /> + +terá o nosso Parocho!</div> + +<div class="poetry2"> +―Maria,</div> + +<div class="poetry1">dá cá o meu +chapéo.</div> + +<div class="poetry2"> +―¡Corre, Pedrinho!</div> + +<div class="poetry1">―¿Onde está +meu +irmão?</div> + +<span class="pagenum">[32]</span> +<div class="poetry2">―¡Não se +demorem!</div> + +<div class="poetry1">―Vamos dançar.</div> + +<div class="poetry4"> +―Perdi as alcaxofras.</div> + +<div class="poetry1">―Vinde por cá; +passemos-lhes +adiante;<br /> + +que rancho que lá vem!.....................<br /> + +..........................................................<br /> + +........................... Golgan, que eu fosse,<br /> + +não pintara a +estrondosa miscellanea<br /> + +que vôa do cazal ao Presbyterio.<br /> + +Lavra +nos proprios velhos o alvoroço;<br /> + +vão co'os mais +quasi a par; lavra em mim mesmo,<br /> + +estranho á festa. O pateo +illuminado<br /> + +nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.<br /> + +―Viva o nosso +Prior!...</div> + +<div class="poetry2"> +―¡Viva!!!...</div> + +<div class="poetry5"> +Mil vozes</div> + +<div class="poetry1">restrugem o ecco apenas avistaram<br /> + +rindo á janella +o velho gordo e alegre.<br /> + +―¡Viva o Senhor San João! +¡viva a +alegria!</div> + +<br /> + +<h4>V</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bate o zabumba; a muzica rebenta;<br /> + +fogem foguetes pelos ares livres<br /> + +estrepitando; o campanario ovante<br /> + +de jubilo endoidece; repentina<br /> + +por +dez partes acceza alta fogueira<br /> + +dentro de um vasto circulo purpureo<br /> + +mostra o prazer brincando em cada rosto.<br /> + +Bello é ver n'este +lance as raparigas<br /> + +compondo mais o lenço, alevantando<br /> + +o +chapeo, que o semblante lhes encobre,<br /> + +dando, como a descuido, um toque +leve,<br /> + +mas gracioso, ás flores que lh'o adornam,<br /> + +e +á flor do seio, e ao laço do collete.<br /> + +¡Quantos nós ata amor n'esses instantes!</div> + +<span class="pagenum">[33]</span> +<div class="poetry1">¡quantos outros aperta! +¡em quantos outros<br /> + +embebe o espinho de um sutil ciume! <br /> + +<br /> + +¡Chiton! temos o Parocho na frente;<br /> + +e as cangalhas +vêem mais do que parece.<br /> + +A <em>alegria decente</em>, eis o estribilho<br /> + +com que +recheia as praticas. Se cantam,<br /> + +co'a cabeça e co'o +pé bate o compasso;<br /> + +se pulam boa dança em honra +ao Santo,<br /> + +bota fora uma can. Por isso o baile<br /> + +circula agora a estridula +fogueira;<br /> + +por isso o San João vai toda a noite<br /> + +injuriado em +canticos devotos.</div> + +<br /> + +<h4>VI</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Meia noite. Que som mysterioso!<br /> + +interrupção no +baile e nos descantes.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Fada das amorosas prophecias,<br /> + +tu, tu passaste agora em concha aerea<br /> + +tirada pelo zephyro; sentimos<br /> + +todos nós tua magica +presença.<br /> + +¡Boa viagem, Fada, e boa noite!<br /> + +¡Salve, hora duodecima; bateste,<br /> + +e descerrou-se a porta do +futuro.<br /> + +Sua nevoa desfeita em orvalhadas<br /> + +vai nas plantas eleitas, vai +nas flores<br /> + +mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes<br /> + +benção, certeza, amor, felicidade.<br /> + +Já +se interrompem bailes e descantes.<br /> + +Embebida em potentes nigromancias</div> + +<span class="pagenum">[34]</span> +<div class="poetry1">toda esta multidão por +modos +varios<br /> + +exerce escrupulosa altos mysterios.<br /> + +Mas renasce o +alvoroço; é porque os copos<br /> + +dos bilhetes +fatidicos chegaram<br /> + +da ama nas mãos com riso de importancia. <br /> + +<br /> + +―Não falta aqui rapaz nem rapariga―<br /> + +diz ella;―o senhor +Padre escreveu todos,<br /> + +mesmo á vista do rol dos confessados.<br /> + +Meia noite já deu; quem quer casar-se,<br /> + +pode vir vindo.</div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Ao grande reboliço</div> + +<div class="poetry1">succedeu a +attenção, que a cada sorte<br /> + +outra vez se converte +em gargalhadas.<br /> + +Por cada par que amor approvaria,<br /> + +veem disparates +comicos ás duzias,<br /> + +e dão rebate ás +palmas e epigrammas.<br /> + +O proprio bom do velho applaude a tudo,<br /> + +e por +primeira vez da sua vida<br /> + +encontra em si chorrilhos de finuras.<br /> + +Já pede a uma o bolo do noivado;<br /> + +quer ser padrinho de outra; +e ás mais bonitas<br /> + +quer baptisar de graça os +pequerruchos. <br /> + +<br /> + +Muito custa no mundo o ser discreto<br /> + +sem descambar o pé! +coisas escapam...<br /> + +que é por Deus não haver o +Santo Officio,<br /> + +como esta ao nosso padre: </div> + +<div class="poetry2"> +―Olhae, rapazes,</div> + +<div class="poetry1">vai n'estas sortes o que vai no mundo:<br /> + +o acaso e a +Providencia, ao que parece,<br /> + +ambos lêem pelo mesmo Breviario. <br /> + +<br /> + +Não foi dos mais christãos o epiphonema,<br /> + +mas fez +rir. O Golgan neste comenos</div> + +<span class="pagenum">[35]</span> +<div class="poetry1">chega, +furta uma sorte, e diz abrindo-a:<br /> + +―Esta, seja quem fôr, +é cá p'ra +nostri. <br /> + +<br /> + +Pede que a leiam; lê-se-lhe:―<span class="smallcaps">O +coveiro</span>.―<br /> + +Mudo o povo se entre-olha; e de repente<br /> + +co'as +pragas do Golgan destampam risos,<br /> + +como os que o padre Homero encaixa +aos deuses;<br /> + +¡inextinguiveis risos! Mas não cede<br /> + +a +chufas nem a agoiro o varão forte;<br /> + +e com mão bem +segura extrae sublime<br /> + +do outro copo outra sorte:―<span class="smallcaps">Ambrosia +Trécula</span>. <br /> + +<br /> + +Então do pateo o riso clamoroso<br /> + +deveu-se ouvir no Artabro e +Guadiana<br /> + +retumbou nos ceos: <span class="smallcaps">Trécula... +Trécula</span>. <br /> + +<br /> + +―¿Quem diabo é esta Ambrosia?―o heroe pergunta.<br /> + +―Sou eu―responde a ama.</div> + +<div class="poetry2"> +―¡Está brincando!</div> + +<div class="poetry1">é talvez sua neta ou +titrineta. ―Vá-se, tolo.</div> + +<div class="poetry4"> +―Olhe cá, senhora tia,</div> + +<div class="poetry1">não vai a arrenegar; +não lhe pergunto<br /> + +por cara, corpo e modos, que são +lindos;<br /> + +¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa? <br /> + +<br /> + +Com o desdem mais dramatico, a matrona<br /> + +voltou costas; e o +bêbado prosegue:<br /> + +―Sô Reverendo, não lhe +aceite os banhos,<br /> + +que eu sou casado, e ponho impedimentos. <br /> + +<br /> + +Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem<br /> + +tirar tambem; tirei; +¿quem tiraria?<br /> + +uma das filhas do meu bom +Philémon.<br /> + +Recebi parabens de todo o povo;<br /> + +deixei-o bem +disposto a divertir-se,</div> + +<span class="pagenum">[36]</span> +<div class="poetry1">e tornei co'o o meu <em>sogro</em> +ao +nosso +albergue.<br /> + +Instou que me deitasse; respondi-lhe<br /> + +que em noite de +San-João ninguem se deita;<br /> + +que alem d'isso a jornada +fôra curta,<br /> + +e sem nimia fadiga; ultimamente<br /> + +que, pois que +elle esperava a mais familia,<br /> + +esperava eu tambem; não sendo +airoso<br /> + +faltar á noiva no primeiro dia.<br /> + +―Cedo, mas só co'a clausula―disse elle―<br /> + +que +inda amanhan sois nosso.</div> + +<div class="poetry2"> +―Assigno.</div> + +<div class="poetry5">―¡Bello!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Então toca a palrar até que venham.<br /> + +Saiâmos, que faz calma; alem, na eira,<br /> + +sobre a alta palha do +centeio novo<br /> + +tomaremos a fresca e as orvalhadas.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Disse, e fez se. ¡Que ceo! +¡que paz! +¡que +noite!<br /> + +na molle aragem das fagueiras horas<br /> + +meu +coração feliz desabroxado<br /> + +me enchia de um perfume +egual ao vosso,<br /> + +nocturnas flores, que o gosais sosinhas.<br /> + +¡Quem podesse apanhar, prender na vida<br /> + +estes momentos +lubricos, momentos<br /> + +que só caem do ceo durante a noite,<br /> + +e +só na solidão! Temi perdel-os<br /> + +co'a triste +distracção de mutuas falas.<br /> + +Lembrou-me haver +notado no meu velho<br /> + +um genio amigo de contar historias;<br /> + +pedi-lhe uma +qualquer, bem decidido<br /> + +a deixal-o á vontade espanejar-se<br /> + +sem +lhe dar attenção; mas enganei-me,<br /> + +Pondo o rosto +na mão, nos céos os olhos,</div> + +<span class="pagenum">[37]</span> +<div class="poetry1">entra a buscar pela memoria antiga<br /> + +algum caso mais raro; e como desse<br /> + +casualmente co'a vista em certo lume<br /> + +n'um cabeço remoto,</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +―Ouvi―me disse;―</div> + +<div class="poetry1">por aquella luzinha lá ao +longe<br /> + +lembra-me um caso, e um caso que foi certo,<br /> + +passado ali no Minho ha +largos annos.<br /> + +Inda eu conservo em casa uns Breviarios<br /> + +de um Padre +irmão da minha avó materna,<br /> + +que +poderão servir de documento.<br /> + +Elle mesmo o escreveu nas +folhas brancas<br /> + +do principio e do fim dos quatro tomos.<br /> + +E era um clerigo +honrado, o que escrevia;<br /> + +merece tanta fé como a Escritura.<br /> + +Diz elle então ali (nem é só elle;<br /> + +minha Avó sua irman dizia o mesmo):<br /> + +que esta nossa familia +inda descende<br /> + +da Rosa de quem fala a dita historia.<br /> + +A minha +avó foi Rosa, e tinha o nome<br /> + +de sua mãe; a minha +mãe foi Rosa;<br /> + +a vossa <em>noiva</em> +é Rosa; e +n'esta casa,<br /> + +querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Depois d'este preambulo de Rosas,<br /> + +veio a historia, e encantou-me; ou +fossem causa<br /> + +hora e sitio, ou a amavel singeleza<br /> + +com que narrava o +historiador das medas,<br /> + +ou já +disposição com que eu me +achasse.<br /> + +Creio que sim: do espirito do ouvinte<br /> + +vem mais de meio o +merito das obras.<br /> + +</div> + +<span class="pagenum">[38]</span> +<div class="poetry1">Por exemplo: da Eneida o livro quarto<br /> + +dias ha que me enfada; ha +tambem dias<br /> + +em que se atura o <em>Italico</em> do +Padre;<sup><a href="#9">[4]</a></sup><br /> + +e +em que se entende um pouco a pálrea bruta<br /> + +que +aos brutos deu do amavel Lafontaine.<sup><a href="#10">[5]</a></sup><br /> + +Nada parece mal, trazido a +tempo;<br /> + +fora de tempo, tudo. A mesma coisa<br /> + +entre obras e leitores +acontece,<br /> + +que entre os garfos e as arvores: se enxertam<br /> + +quando o +não pede o tronco e o veda a lua,<br /> + +¡adeus ramo +bastardo! e se ao contrario,<br /> + +penetra a seiva toda, e pula o ramo. <br /> + +<br /> + +Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,<br /> + +que protestei contar-vol-o a +meu modo;<br /> + +e o poema seguinte é o desempenho.<br /> + +Tivesse elle, o +que em vão lhe hei procurado,<br /> + +da prosa do meu sogro o tom +singelo,<br /> + +talvez, leitores meus, o relerieis. <br /> + +<br /> + +Inventar, descrever, compor os versos,<br /> + +são os tres +pés, da trípode de Apollo.<br /> + +Já sabereis do Reverendo Kinsey<br /> + +que eu não tenho +invenção; que nada +pinto<br /> + +co'a verdadeira côr da Natureza;<br /> + +que os versos meus +são bons, mas que aborrecem;<br /> + +o que não tira que +um poéta eu seja<br /> + +digno de ser notado entre os que vivem.</div> + +<span class="pagenum">[39]</span> +<div class="poetry1">Ora, quanto á +invenção d'este poema,<br /> + +bem vedes que a +não ha, ou se a ha que é +d'outrem.<br /> + +E quanto ás descripcões, fiz o possivel<br /> + +para não metter mais que as do meu +<em>sogro</em>.<br /> + +Mas faltava o melhor, e o mais difficil:<br /> + +versificar á moda. Atirei fora<br /> + +o Virgilio, o Racine, e o +Metastasio,<br /> + +gebos todos monótonos, que enfiam<br /> + +os versos bons +e os optimos aos centos;<br /> + +atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;<br /> + +estudei, fiz ensaios, compuz paginas<br /> + +de embréxados +velhissimos e esdruxulos,<br /> + +e não foi sem proveito o estudo +acerrimo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Perdoae se este livro inda vai falho<br /> + +d'esses donaires que +travêssos fogem<br /> + +de mal expertas mãos; soffrei-o em +quanto<br /> + +vou destilar sobre outro o +<em>Elucidario</em>,<br /> + +qual se espreme um limão +sobre um guizote.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Abril de 1831.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">FIM DA +INTRODUCÇÃO<sup><a href="#11">[6]</a></sup> +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c3"></a>III </h4> + +<br /> + +<h3> +EPISTOLA<br /> + +<br /> + +A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA </h3> + +<h4> +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Da paz de um ermo ao +turbilhão da côrte<br /> + +a Musa +de Castilho á do seu Costa<br /> + +saude e amor. Já outra +primavera<br /> + +se enflora, a seu pesar, desde que ausente<br /> + +pede aos montes a +irman, que a não suspira,<br /> + +e dorme ao lado de um feliz +ingrato. <br /> + +<br /> + +<br /> + +Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios<br /> + +em cantos cujo ecco +além não passa<br /> + +..........................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">1831―Abril, 21.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c4"></a>IV </h4> + +<br /> + +<h3> +O PRESBYTÉRIO </h3> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +¡Salvè, principio e fim dos meus passeios!<br /> + +¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha,<br /> + +cobre ha perto de um lustro os meus autores,<br /> + +meus castellos no ar, meus +faceis versos!<br /> + +¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas +limas,<br /> + +festivo ornato das paredes brancas;<br /> + +co'o teu portão +patente oppresso de heras;<br /> + +e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,<br /> + +brasão futuro do obumbrado pateo!<br /> + +¡Salvè outra vez, meu presbytério! +¡Salvè!</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Hoje, que o caprichoso do meu estro<br /> + +(bem sabes se elle o é) +deixa inconstante<br /> + +versos índa no chôco, outros que +apenas<br /> + +vão da casca a sahir, outros que breve<br /> + +teem de fugir +do ninho em vôos livres,<br /> + +entrou, mal veio a aurora +esclarecer-te,<br /> + +a doidejar-te em roda, a namorar-te,<br /> + +qual borboleta +ociosa ou leve abelha.<br /> + +Pois que elle o quer.... cantemos-te; e +perdôa<br /> + +se o canto falador, transpondo os cumes<br /> + +das tuas +cerejeiras, fôr mais longe<br /> + +revelar tua humilde obscuridade. +</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[44]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">A antiga mediania, a +segurança,<br /> + +a paz, o amor dos Ceos, o +amor dos homens,<br /> + +genios foram, que em bençãos +presidiram<br /> + +aos alicerces teus. De Pário monte<br /> + +não +foi mistér que entranhas te enviassem<br /> + +chão, +columnas, e abóbadas, e estatuas;<br /> + +tuas portas sem chave +não cresceram<br /> + +lá nas florestas do +hemisphério opposto.<br /> + +Foi visinho pinhal teu sôlho +e tecto;<br /> + +deu-te paredes mais visinho oiteiro;<br /> + +portões e meza +um cedro bom da extrema.<br /> + +Não custaste nem lagrimas a pobre,<br /> + +que á força te cedesse a choça avita,<br /> + +nem odioso suor; e não se dormem<br /> + +somnos melhores em Belem +nem Mafra.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +¿Que importa que no centro d'estes ermos<br /> + +vivas +tão só, que apenas descortines<br /> + +n'um dos altos +d'em torno esquiva aldeia?<br /> + +Tu e o templo co'as messes que vos cingem<br /> + +bastais no quadro agreste; em vós affluem<br /> + +(como em sua +Queluz) nos festos dias<br /> + +ondas e ondas de amaveis saudadores.<br /> + +Os +rebanhos ociosos não desdenham<br /> + +tôjo em flor, que +te doira o chão das mattas,<br /> + +d'onde envôltos co' os +trémulos balidos,<br /> + +veem cantos de amorosas guardadoras<br /> + +endoidecer teu ecco.</div> + +<br /> + +<div class="poetry4"> +Os caminheiros</div> + +<div class="poetry1">abençôam-te a +sombra; aqui teem +fonte,<br /> + +que em tua relva, ao fresco das parreiras,<br /> + +detém, +dessedentando-as, caravanas<br /> + +que vão ou veem no alpestre +Caramulo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum"><a name="p45">[45]</a></span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">O anjo das flores liberal te arqueia<br /> + +de bordada verdura as rescendentes<br /> + +claras janellas.</div> + +<div class="poetry4">Um bulicio manso</div> + +<div class="poetry1">de amigas vozes teu recinto alegra.<br /> + +Na sua +tépida choça os bois ruminam<br /> + +ante o feno em +montões; dorme no páteo<br /> + +farto +esquadrão lanigero; ao sol pôsto,<br /> + +cão, +dos lobos terror, te vela as noites;<br /> + +teus gallos as demarcam +vigilantes.<br /> + +Co'a luz primeira arrulha-te alvejando<br /> + +cypria nuvem +plumosa; e apenas saltam<br /> + +da <a href="#e7">dextra mão</a> +mesquinha os grãos doirados,<br /> + +em torno da gentil madrugadeira<br /> + +de toda a parte os hospedes revôam.<br /> + +Bicam por entre as pombas +á porfia<br /> + +a gallinha de filhos rodeada,<br /> + +o manso grasnador do +aquoso tanque,<br /> + +o vaidoso perú, que ri cantando,<br /> + +e +vós, e vós, mais vivos do que todos,<br /> + +não chamados, mas sempre a nós bemvindos,<br /> + +passarinhos do ceo, turba sem dono.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Singelo presbyterio, ¡oh! +¡como te amo,<br /> + +co'o teu ar +casaleiro! Amo o teu forno,<br /> + +tão social á noite; a +simples sala,<br /> + +quasi sempre deserta; a livraria,<br /> + +deserta rara vez; estas +alcôvas,<br /> + +que enche um só leito; e a adega, +assoviada<br /> + +do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia<br /> + +da +cheirosa vendima; e o teu celleiro,<br /> + +alto, arejado, e tão +patente aos pobres,<br /> + +como as portas do templo convisinho.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[46]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Floresças para +o Ceo e para a terra<br /> + +nos +inconstantes seculos! ¡floresças,<br /> + +feliz, co'o +feliz dono, edade longa!<br /> + +E se, lá no futuro, algum amigo,<br /> + +sócio dos dias bons, saudoso e triste,<br /> + +torcendo a estrada, a +te pedir viesse<br /> + +novas do teu cantor,―«Amou me, e amei-o―<br /> + +lhe dirias mostrando-te; e―«Seus ossos―<br /> + +juntaria o teu +velho―aqui descançam.» </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Sim; apraz-me cuidar que inda os meus +restos,<br /> + +gratos aos bons d'este +recanto obscuro,<br /> + +onde escapei no seculo de sangue,<br /> + +cá +ficarão n'este ocio, inda alguns dias<br /> + +do simples montanhez +talvez chorados. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Oh santa perseguida Liberdade,<br /> + +¡onde te achei!.... Onde +não vivem homens;<br /> + +n'um torrão bravo que +não chama invejas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Em quanto, ora que a noite o ceo regela<br /> + +humida e turva, tantos ricos +enchem<br /> + +de bocejante enôjo as assemblêas,<br /> + +e tantos, +tantos miseros, sem lares,<br /> + +sem consôlo, sem pão, +sem voz de amigo,<br /> + +só reos de patrio amor, dormem nas furnas,<br /> + +pelas praias do Oceano, e pelas rochas<br /> + +(sublimes troncos pelo +pé cortados)...</div> + +<span class="pagenum">[47]</span> +<div class="poetry1">tua clara fogueira nos aquece;<br /> + +¡graças, +graças a um Deus!</div> + +<div class="poetry5">Assim +vagava</div> + +<div class="poetry1">sobre o universo undoso a arca do +justo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Nós, depois de annos tres, +inda esperâmos.<br /> + +Ainda +do trovão eccos retumbam.<br /> + +Ainda os escarceos assoladores<br /> + +remugem lá por fóra. Ainda a pomba<br /> + +co'o ramo de +oliveira inda não volve.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Oh santa perseguida +Liberdade!<br /> + +¡Oh! ¡Se +eu podesse, a trôco dos meus +dias,<br /> + +restituir-te á minha Patria!....</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry5"> +Basta.</div> + +<div class="poetry1">Esperemos ainda. Oremos sempre;<br /> + +e +talvez que não tarde a grata aurora,<br /> + +em que, a adejar da +serra pelos pincaros,<br /> + +venha de longe a nuncia das venturas,<br /> + +a pomba com +o seu ramo de oliveira!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Castanheira de Vouga</div> + +<br /> + +<div class="poetry3">Maio de 1831.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c5"></a>V </h4> + +<br /> + +<h3>A LYRA DO DESTERRADO </h3> + +<h4> +(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Era a noite dos finados;<br /> + +sombria noite de outono.<br /> + +Entre sinos +acordados<br /> + +lá jaz Roma entregue ao sono;<br /> + +seus luzeiros +apagados. <br /> + +<br /> + +Do ceo pelo rôto manto<br /> + +só brilham frouxas +estrellas;<br /> + +sai a custo o clarão santo<br /> + +dos templos pelas +janellas;<br /> + +e Petrarcha vela emtanto. <br /> + +<br /> + +Véla Petrarcha, e suspira<br /> + +no leito amoroso e ermo;<br /> + +olhos na +véla que expira;<br /> + +saudades no peito enfermo;<br /> + +nem gloria +sonha, nem lyra. <br /> + +<br /> + +Qual raio sôlto de lua<br /> + +por móveis aguas vibrada<br /> + +n'um bosque inteiro flutúa,<br /> + +tal adeja no passado<br /> + +a saudosa +mente sua.<br /> + +<br /> + +¿Quem dirá seus pensamentos?<br /> + +a douta lingua +está muda.<br /> + +¡Que paixões, que +sentimentos,<br /> + +no rosto, que aspeitos muda,<br /> + +veem transluzir por momentos! +<br /> + +<br /> + +Ora é dor, ora é sorriso,<br /> + +esperança, +amor, transporte;<br /> + +queixas, ternuras diviso;<br /> + +desce aos abysmos da morte,<br /> + +vôa aéreo ao Paraizo. <br /> + +<br /> + +¡Não falar o Vate agora<br /> + +co'os labios que move +apenas!<br /> + +¡Que torrente abrazadora!<br /> + +¡que amor! +¡que incendidas penas!<br /> + +¡quão nova a +paixão não +fôra! <br /> + +<br /> + +Vai a noite adiantada;<br /> + +humido vento assovia;<br /> + +treme a luz quasi apagada.<br /> + +Do grão Cantor que vigia<br /> + +ferve a mente a sonhos dada. <br /> + +<br /> + +―«Eís o templo conhecido<br /> + +que os meus destinos +encerra.<br /> + +A mãe terna, o pae querido,<br /> + +cá m'os tem +no seio a terra.<br /> + +Cá vi Laura, e fui perdido...<br /> + +........................................ </div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">Castanheira do Vouga</div> + +<div class="poetry3">1830...(?)</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c6"></a>VI </h4> + +<br /> + +<h3>EPISTOLA </h3> + +<h4> +(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">A minha primavera emfim renasce.<br /> + +Té n'este horror +selvatico dos montes<br /> + +roupas traja nupciaes a Natureza.<br /> + +O ceo azul, o ar +morno, as aguas puras,<br /> + +tudo nos diz «amor»; +dizem-n-o as aves<br /> + +chalreando ao florir das alvoradas;<br /> + +bala o rebanho +alegre; armento o muge;<br /> + +na folha nova zéphiro o cicia;<br /> + +a +camponeza em meio de mil flores,<br /> + +que lh'o exhalam balsamico, o suspira,<br /> + +e ao viçoso tapiz, á sombra vasta<br /> + +macia e +tentadora lança os olhos. <br /> + +<br /> + +Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,<br /> + +enleva a fonte e as arvores +nocturnas,<br /> + +cantando amor, da lua ao raio incerto,<br /> + +lições que mais de um ente ao longe estuda<br /> + +(e +pratica talvez); em sons de lyra,<br /> + +solitario eu tambem, +lições de affectos<br /> + +de cá te envio ao +centro da cidade.</div> + +<span class="pagenum">[52]</span> +<div class="poetry1">N'esse ruidoso vórtice de +povo,<br /> + +de vãos praseres, +de negocios futeis,<br /> + +a geral rotação te arrasta +ás cegas;<br /> + +é dever da amisade erguer-te aos olhos<br /> + +luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas<br /> + +pode não +ver a táboa ás vezes perto;<br /> + +pode a praia ignorar, +e tel a em face.<br /> + +Táboa amor te lançou da praia +firme;<br /> + +ledo e fausto Hymeneu te está chamando.<br /> + +..........................................................<br /> + +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c7"></a>VII </h4> + +<br /> + +<h3>A ROMARIA </h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Lá vem Maio rosado. +Já floreja<br /> + +nas planicies, +verdeja pelos montes;<br /> + +é o mez de Amor, é o mez de +Philoméla. +<br /> + +<br /> + +Aureo amanhece o dia suspirado<br /> + +da romaria annual; léguas em +roda<br /> + +já tudo é festa, esp'rança, e +regosijo.<br /> + +As povoações, desertas. Por estradas,<br /> + +por torcidos atalhos, por oiteiros,<br /> + +correm de toda a parte ornados +bandos.<br /> + +Lá retrôa nos eccos aturdidos<br /> + +a matinal +girandola ruidosa;<br /> + +acorda ao longe a torre com repiques;<br /> + +um povo de cem +povos misturado<br /> + +enche a vozeada selva, a acceza ermida,<br /> + +e de ondeado +matiz cobre o terreno.<br /> + +Arfa ao sol, no alto mastro volteando,<br /> + +triumphante bandeira alvi-cerúlea.<br /> + +Vai e vem, ora chega, ora +se allonga,<br /> + +não está em nenhum sitio, e assoma em +todos,<br /> + +a alma da festa, a gloria do Gallego,<br /> + +a aguda gaita +túmida e franjada,<br /> + +que ao rufado tambor sócia, +repete<br /> + +a moda velha e alegre, amor dos campos.</div> + +<span class="pagenum">[54]</span> +<div class="poetry1">Em vidrado alguidar reluzem n'agua<br /> + +os doirados +tremóços, que afadigam<br /> + +com compradores a +afrontada tia.<br /> + +As navalhas e anéis, o apito, o espelho,<br /> + +se +assoalham mais além; na alva toalha,<br /> + +alva e folhuda, +estão chamando o exul.<br /> + +Em cima de seus carros triumphantes<br /> + +os laureados tonéis, reis da alegria,<br /> + +dão n'um +fogo perenne a vida a tudo. <br /> + +<br /> + +Aqui se ouve o descante ao desafio,<br /> + +que a viola ora segue, ora +acompanha.<br /> + +Ali se apinham para ver as danças,<br /> + +que a discorde +rabecca entorta ás vezes.<br /> + +Lá, se entorna o licor +em puros vidros;<br /> + +ao pé se adoça a fresca +limonada. <br /> + +<br /> + +Aqui se comprimentam; além chamam;<br /> + +um se perde, outro se +acha, outro convida.<br /> + +Este corre; esta pára a ataviar-se,<br /> + +por +mostrar o cordão e o lenço novo.<br /> + +Estirados na +relva os velhos palram;<br /> + +grita o rapaz. O amante, recostado<br /> + +ao +páu, por onde um braço lhe serpeia,<br /> + +faz longa +côrte á tímida futura,<br /> + +que em resposta +de amor lhe dá +tremóços. <br /> + +<br /> + +N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens.<br /> + +Lá sai a procissão; lá foram todos.<br /> + +¡Ah! depois do jantar comido ás sombras,<br /> + +cada um +levará, volvendo a casa,<br /> + +gratas lembranças para o +anno inteiro.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c8"></a>VIII </h4> + +<br /> + +<h3> +O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES<br /> + +<br /> + +OU<br /> + +<br /> + +A MATTA DE S. SEBASTIÃO </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Versos +na +plantação de uns carvalhos junto +á egreja de S. Mamede<br /> + +da Castanheira do Vouga pelos rapazes +solteiros da freguezia<br /> + +no Domingo do Carnaval de 183... <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>I </h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">N'este dia, em que o povo tumultuando<br /> + +nos casaes, nas aldeias, nas +cidades,<br /> + +troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,<br /> + +por copos, +danças, máscaras, e risos<br /> + +nas saturnaes +christans; quando se espraia,<br /> + +desde o seio de Roma aos fins da terra,<br /> + +de um praser contagioso alta vertigem;<br /> + +¿por que retreme ao +golpe das enxadas<br /> + +sob os meus pés a solitaria encosta? </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Saude a vós, a +vós louvor. Bemvindos,<br /> + +montanhezes, fieis aos priscos usos!<br /> + +O cântaro do estylo ahi +está coroado,<br /> + +risonho e prestes a inundar os copos;<br /> + +o +prémio á vista vos redobre as +forças.<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[56]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Rasgae co'o duro ferro a terra dura;<br /> + +de vossos paes a matta veneranda<br /> + +em torno de seu santo antigo dono<br /> + +se accrescente por vós. +Plantae, que é tempo,<br /> + +no chão, sagrado de suor +devoto,<br /> + +ó presente annual, que o Ceo prospére.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Onde quer que elle jaz, +abençoemos<br /> + +as cinzas do homem bom, +lá d'essas eras<br /> + +que a pia usança introduziu +primeiro.<br /> + +¡Quanto a sua virtude era risonha!<br /> + +―«Cada solteiro plantará n'este ermo<br /> + +mais uma +arvoresinha de anno em anno,<br /> + +que lá em cima +encontrará seu premio.»<br /> + +¡Oh! estes +rogos, sim, este pedido,<br /> + +doce e desint'ressado, +uncção respira;<br /> + +manda mais do que as Leis; morrer +não deve. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Produz, produz a miudo, ó +Natureza,<br /> + +por teu bem, por bem +nosso, homens como esse.<br /> + +Haja quem diga ao joven par, que ás +aras<br /> + +sobe apenas amante, e desce esposo:<br /> + +―«Hoje, que +são já fruto +esp'ranças de hontem,<br /> + +entrae sorrindo pelo chão +da vida;<br /> + +plantae, plantae um'arvore que o lembre.» </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Quando a cabana festival se enrama,<br /> + +se enflora a meza, e os +aldeãos visinhos</div> + +<span class="pagenum">[57]</span> +<div class="poetry1">veem +festejar na casa um filho novo,<br /> + +a mão paterna, de praser +tremendo,<br /> + +orne de um novo tronco o prédio avito. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Depois de suspirada e +curta ausencia<br /> + +volve um +irmão das terras estrangeiras?<br /> + +¿Convalesce um +parente? ¿Em bem se acaba<br /> + +suado, volumoso, eterno pleito,<br /> + +que empobreceu o avô, o filho, e o neto?<br /> + +¿Fizestes +o adversario amigo vosso?<br /> + +¿Sorriu-vos a ventura? +¿É farto o +anno?<br /> + +A sêrdes Reis, alçáreis +monumentos;<br /> + +¿que vale um monumento? O homem dos campos<br /> + +melhores pode erguer a menos custo:<br /> + +plante sobre o caminho arvores +férteis.<br /> + +Por elle o passageiro ardendo em calma<br /> + +ache a +sombra hospedeira que o recreie.<br /> + +Por elle o pobre, que seu +pão mendiga<br /> + +de casal em casal, de monte em monte, <br /> + +que +não vê ceo, nem lar onde se aqueça,<br /> + +nem feno onde descance, e em todo o mundo<br /> + +só tem por +património a caridade,<br /> + +ache a fruta a pender em curvos +ramos,<br /> + +a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.<br /> + +Assim, do bem de +um só germinariam <br /> + +mil bens communs; e do praser de um homem<br /> + +o publico praser, publicas bençãos. </div> + +<br /> + +<h4>II</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Se tendes de nascer, nascei mui breve,<br /> + +sensiveis +corações a quem Deus guarda,<br /> + +a gloria de influir +eguaes costumes.</div> + +<span class="pagenum">[58]</span> +<div class="poetry1">Desde +já nossas lagrimas de affecto<br /> + +correm por vós; ao +seio do futuro<br /> + +nós vos lançamos desde +cá louvores.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>III</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Sentemo-nos, em quanto os vossos +filhos<br /> + +aqui se embebem na tarefa +honrosa,<br /> + +sentemo-nos á sombra, a vós bem grata,<br /> + +do carvalhal que as vossas mãos plantaram,<br /> + +homens das cans, +antigas testemunhas<br /> + +dos tempos que não são. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Vós, deputados</div> + +<div class="poetry1">das mortas +gerações aos +vivos de hoje<br /> + +como pregões propheticos; thesoiro<br /> + +de +saudades, de dor, de experiencia;<br /> + +bons velhos, á vossa alma +taciturna<br /> + +aprazem mais que a festa os pensamentos.</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Falae: ¿d'onde vos nasce +essa tristeza<br /> + +profunda a um tempo e +vaga, amarga e doce?<br /> + +¿Será de +enfeitiçada sympathia<br /> + +que nos attrai á terra, ao +chão da vida,<br /> + +chão sempre cubiçado e +sempre ingrato?</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">O coração, +zeloso da existencia,<br /> + +compara os dias +seus do tronco aos dias,<br /> + +e a conta desegual o opprime e o fecha.<br /> + +¡Annos a nós, e seculos aos bosques!...<br /> + +Planta o +pae, mas a sombra hospéda os filhos;</div> + +<span class="pagenum">[59]</span> +<div class="poetry1">netos, que não +verá, +gosarão d'ella;<br /> + +e indiff'rentes incógnitos +vindoiros<br /> + +rirão contentes ao folhudo abrigo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas, velhos, mui ditoso o que em seu +predio<br /> + +dispõe arvore +fértil de esperanças,<br /> + +que irá legada +aos filhos de seus filhos.<br /> + +Prophecias de amor lhe expande o seio,<br /> + +sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos.<br /> + +Mas feliz egualmente o que em seu predio<br /> + +possue vaidoso um tronco +hereditario. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Na réga, e ao vir da flor, +e ao dar do fruto,<br /> + +¿como ha-de não pensar em seus maiores?<br /> + +Um lh'o +plantou, os outros lh'o trataram;<br /> + +¿Como ha-de recusar-lhe +uma saudade,<br /> + +um suspiro, um suffragio, um elogio?<br /> + +A gratidão +medita á mesma sombra<br /> + +onde já meditára +o amor paterno.<br /> + +Esta arvore mortal é o santo marco,<br /> + +em que +se juntam, se entrelaçam, crescem,<br /> + +dos idos o interesse e o +dos vindoiros;<br /> + +nó de affeição, que os +seculos reune. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Vedes vós essa +mãe, que ha tantos +annos<br /> + +chora um filho alem-mar, em longes terras?<br /> + +Mostrae-lhe um +passageiro a dar á vella<br /> + +para o porto feliz; ¡com +que ternura<br /> + +lhe não dará, chorando, um longo +abraço,<br /> + +que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,</div> + +<span class="pagenum">[59]</span> +<div class="poetry1">e todo o amor de mãe lhe +exprima n'elle!...<br /> + +¡E com quanto alvoroço o +desterrado<br /> + +não cingirá o amavel mensageiro!...<br /> + +Eis o emblema da arvore, cruzando<br /> + +viva e lembrada o Oceano das edades,<br /> + +mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.</div> + +<br /> + +<h4>IV</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Qual de vós, +repoisando n'esta cama<br /> + +de folhas +mortas, qual de vós, no meio<br /> + +d'esses troncos musgosos, +seculares,<br /> + +não viaja com o espirito espraiado<br /> + +por esse mundo +antigo e antigos homens?<br /> + +Sim, vossa alma se apraz, phantasiando<br /> + +de lhe +restituir quanto houve d'elles:<br /> + +uma vida, uma choça, herdade +e patria.<br /> + +Deslembram cans; rugosas faces riem;<br /> + +reviveis n'um minuto +annos de infancia<br /> + +sob a affeição de um pae, de um +pae nos lares;<br /> + +sem cuidados, sem prole, e sem temores,<br /> + +entrais folgando +o limiar da vida.<br /> + +¡Podesse n'este ponto o pensamento,<br /> + +como +ave em ramo flórido e viscoso,<br /> + +deter-se a recordar, ficar +pregado!<br /> + +¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o +sonho,<br /> + +e a extincta geração recai nas campas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Mas quê? +¿d'esses antigos plantadores<br /> + +nada mais resta além de uns troncos mudos<br /> + +n'este universo +movediço e instavel?<br /> + +¿nem uma só +lembrança, um dito, um +nome?<br /> + +Tudo passou sem mínimo vestigio,<br /> + +como os sons leves de +um descante ao longe.<br /> + +................................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[61]</span> +<h4>V</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bons aldeões, estas +sombras regaladas<br /> + +vos falam nos +avós; porém comigo,<br /> + +comigo, extranho, e novo em +meio d'ellas,<br /> + +conversam no aureo tempo a que assistiram;<br /> + +recordam-me as +edades do Universo,<br /> + +e os varios povos, e os paizes varios,<br /> + +contemporaneos do nascente mundo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Intonsas, invioladas, venerandas,<br /> + +outras selvas, como esta que nos +fecha,<br /> + +fecharam do homem a primeira origem.<br /> + +Sob as verdes +abóbadas immensas<br /> + +as velhas tradições +nol-os descrevem<br /> + +pobres e alegres, nús e satisfeitos,<br /> + +saboreando em ocio a glande e a fonte,<br /> + +dormindo sobre a folha, e sem +pedirem<br /> + +outra casa, outro templo, outra cidade. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">A pouco e pouco o numero crescia,<br /> + +minguando a pouco e pouco a +singeleza.<br /> + +Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam;<br /> + +a um +Maio eterno as estações succedem;<br /> + +o ar se gela e +accende, alaga e silva;<br /> + +já bravejam leões, +já bramam tigres;<br /> + +o homem se acoita ao seio das cavernas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Vós, troncos, +até ali seus companheiros,<br /> + +acudís a servil-o; ¡e em quantos modos!</div> + +<span class="pagenum">[62]</span> +<div class="poetry1">lá, crepitais em +rútila fogueira;<br /> + +aqui, das feras prohibís a +entrada;<br /> + +dais uma clava ao caçador valente;<br /> + +na +serviçal cortiça um berço aos +filhos;<br /> + +leitos a amor, assentos á velhice,<br /> + +aos enxames um +lar, um copo ás festas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Das precisões ao grito, o +engenho acorda;<br /> + +lá +surgem povoações, curraes, +tugúrios,<br /> + +e uma capella ás rusticas deidades.<br /> + +Lá rompe o novo arado a terra dura;<br /> + +lá geme, a +transportar enormes pezos,<br /> + +o carro, e sulca atónitos +caminhos.<br /> + +O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;<br /> + +a rudeza se +pule; as artes crescem;<br /> + +a especie racional das mais triumpha. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">As gerações do +ceo, do mar, da terra,<br /> + +tudo +é já seu; os campos lhe obedecem;<br /> + +faltava o +Oceano; affoita quilha o rasga. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Então foi, que estas +arvores, tão uteis<br /> + +no patrio +continente, abriram vôo<br /> + +sobre o liquido abysmo a novos +climas. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿E em que parte do globo, +arvore excelsa,<br /> + +te podes +presentar, que não recordes<br /> + +uma façanha, um +culto, um grão successo?</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[63]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Na Grecia? Mas o Grego +inda hoje conta<br /> + +que foste invicta +clava em mão de Alcides;<br /> + +vê-te, suspira, bate o +chão raivando<br /> + +de achar-se escravo, e de não +ter-lhe as forças.<br /> + +¿Na Grecia? Mas o Grego inda +hoje conta<br /> + +do arvoredo Dodónio as mil respostas,<br /> + +o passado e +o porvir patente a todos,<br /> + +e o livro do destino aberto ao mundo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Na Ausónia? +Mas Cybelle amou teus ramos;<br /> + +Roma os +sagrou a Jove; e, fulminada,<br /> + +eras tremendo agoiro a todo o Imperio.<br /> + +¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica? </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry5"> +¿Nos campos?</div> + +<div class="poetry1">¿E +Phílémon, o +justo, o caro aos +deuses? </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Nas Gallias? em seus +barbaros oiteiros<br /> + +tu, só, +eras o altar, o deus, e o templo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Na Caledonia, em Morven, +junto aos lagos,<br /> + +sobre os cumes, +á beira das torrentes?<br /> + +Lá tu viste Tremnor, +Fingal, e os bravos,<br /> + +reunidos na vespera do sangue<br /> + +em nocturno festim +que allumiavas,<br /> + +quando na harpa dos bardos reviviam<br /> + +os feitos dos +heroes do antigo tempo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[64]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Salve, eleito Israel! +Eis-nos em campos<br /> + +de Sichem. Vejo os +principes e os velhos,<br /> + +os juizes, as tribus, apinhar-se<br /> + +em torno ao +tabernáculo de Sila.<br /> + +Por cima d'este mar ondeado e vivo <br /> + +reina de praia em praia alto silencio.<br /> + +Sublime como o cedro do deserto,<br /> + +se levanta Josué, braço do Eterno,<br /> + +em nome do +Senhor, que o manda e inspira;<br /> + +os favores do Ceo recorda ao povo;<br /> + +renasce a Fé; os idolos se arrazam;<br /> + +―«¡Gloria ao Deus de Israel!―vozeia a turba―<br /> + +¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!<br /> + +―Erga-se um +monumento,―exclama o chefe―<br /> + +que, se infieis um dia os esquecerdes,<br /> + +vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.»<br /> + +E a monumento +põe no logar santo<br /> + +enorme pedra á sombra de um +carvalho,<br /> + +que abrigava co'a copa o santuário.<sup><a href="#12">[7]</a></sup><br /> + +Despede o +Povo, e em paz contente expira;<br /> + +em paz, que já +não vê +perjúrios novos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Escrava de Madian a plebe expia,<br /> + +na miseria e no opprobrio, os males +torpes<br /> + +que fez ante o Senhor. Mas inda existe<br /> + +um justo, a quem Deus fie +o libertal-a:<br /> + +é Gedeão, é o +Josué +segundo.<sup><a href="#13">[8]</a></sup><br /> + +Este, em quanto seu pae lança aos caminhos<br /> + +medroso olhar á espera do inimigo</div> + +<span class="pagenum">[65]</span> +<div class="poetry1">para fugir com elle, ajunta +á pressa<br /> + +o trigo que limpou.</div> + +<div class="poetry2">Vê de repente</div> + +<div class="poetry1">um Anjo, que debaixo do carvalho<br /> + +se assenta, e +lhe repete a lei do Eterno.<br /> + +Esse mesmo carvalho é testemunha<br /> + +da belleza do alado mensageiro,<br /> + +da voz de +salvação mandada ao Povo,<br /> + +e do holocausto acceito +e posto em cinzas,<br /> + +e do altar, a quem <em>Paz</em> foi +dada em +nome. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">E este, que tão frondoso +opáca os valles,<br /> + +¿por que o rodeia um bando taciturno<br /> + +dos fortes de Galaad? +as suas armas<br /> + +jazem quebradas; sua dor vai funda;<br /> + +dos olhos tristes +para o ceo voltados<br /> + +pelo rosto amarello lhes escorre<br /> + +grosso pranto, que +alaga as f'ridas frescas.<br /> + +Choram Saul, e a régia +descendencia,<br /> + +que mortos no combate aqui descançam.<br /> + +Para o +Monarcha agigantado e invicto<br /> + +nenhuma estátua se +erguerá na campa.<br /> + +Sua columna e funebre palacio<br /> + +preparou-lh'os com tempo a Natureza:<br /> + +o tronco, rei da selva, o +está cobrindo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Mas quanto é +mais tocante o que se eleva<br /> + +nas +faldas solitarias da montanha!<br /> + +Ali Débora jaz; ali Rebecca<br /> + +chora na morte a que a nutriu na infancia,<br /> + +ama no +coração, mãe nos extremos,<br /> + +de seus +primeiros e ultimos segredos</div> + +<span class="pagenum">[66]</span> +<div class="poetry1">confidente fiel no lar paterno,<br /> + +querida socia na feliz viagem,<br /> + +e no lar +conjugal seu doce allivio.<br /> + +¿Arvore a tanto affecto +consagrada<br /> + +na affectuosa Biblia irá sem nome?<br /> + +o <em>carvalho +das lagrimas</em> lhe chamam.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>VI</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Que uso tão +doce aos +corações piedosos!<br /> + +Reverdecei, costumes do bom +tempo,<br /> + +quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,<br /> + +tinham sob um ceo +livre a sepultura.<br /> + +A Morte, menos barbara do que hoje,<br /> + +com avarenta +mão não ferrolhava<br /> + +sob um tecto pezado, entre +altos muros,<br /> + +as prezas, cá de fóra em +vão pedidas.<br /> + +Não era um templo um +cárcere de mortos.<br /> + +Dormiam mollemente em terra franca,<br /> + +em +jardins frescos, em copadas selvas.<br /> + +Esta esp'rança +adoçava um pouco o amargo <br /> + +do ultimo trago aos labios +moribundos. <br /> + +Este bem, tão pequeno em mal tão +grande,<br /> + +¡quanto valor não tinha aos que ficavam!<br /> + +O +irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo,<br /> + +podiam livremente, +a toda a hora,<br /> + +ir regar de seu pranto amadas cinzas,<br /> + +fartar saudades, +inflammar lembranças,<br /> + +delirar doce a noite, e o dia inteiro,<br /> + +e de praser a um peito onde palpitam<br /> + +superstições +de amor ou de amisade,<br /> + +dizer:</div> + +<div class="poetry3">«Este tapiz relvoso o cobre;</div> + +<div class="poetry1">esta ave lhe gorgeia; esta aura +sôlta<br /> + +o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;<br /> + +a primavera +m'o visita, e espalha</div> + +<span class="pagenum">[67]</span> +<div class="poetry1">tambem +por cima d'elle o seu regaço;<br /> + +esta violeta é sua, +hei-de colhel-a;<br /> + +d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,<br /> + +nutre-se do +seu pó, vive por elle,<br /> + +é elle mesmo em parte; +arvore amiga,<br /> + +recebe o nome caro, hoje sem dono,<br /> + +toma os +abraços que não posso dar-lhe.» +</div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas.<br /> + +A +arvore, Deus a fez como passagem<br /> + +do mundo que respira ao mundo inerte;<br /> + +commum co'os animaes, commum co'a terra,<br /> + +vive e não sente; +habita e ignora o mundo,<br /> + +sympathisa co'a morte e co'a existencia,<br /> + +é grata ás cinzas, á saude +é grata. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Que férreos +somos nós, que a um como +vago<br /> + +atiramos sem dó perdidos, mixtos,<br /> + +o detestado, o amigo, +o estranho, e o nosso!<br /> + +Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros<br /> + +arrojasse o que os seculos pouparam,<br /> + +bronzes, escritos, marmores +romanos,<br /> + +ou, derrotando porticos, columnas,<br /> + +theatros, colliseus, +palacios, templos,<br /> + +em serra inutil amontoasse as pedras,<br /> + +¿quem não vertêra em lagrimas o sangue?<br /> + +¡E ante a nossa affeição teem menos +pezo<br /> + +que as +ruinas de Roma as que são nossas?!...<br /> + +¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes,<br /> + +espectaculos, jogos, aureas festas,<br /> + +jardins, parques!... ¡e +aos miseros que gemem,<br /> + +e aos peitos melancólicos, viuvos,</div> + +<span class="pagenum">[68]</span> +<div class="poetry1">ha-de negar se um canto onde +pranteiem!?...<br /> + +¿De tanto mundo que pertence aos vivos<br /> + +nada +dareis aos seus antigos donos?<br /> + +¡nem um torrão +perdido, e uns troncos nullos?!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Quando virá um +dia, em que estes bosques,<br /> + +semeados de tumulos não altos,<br /> + +de lugubres saudades se +povôem?<br /> + +Então, a propria Morte, hoje +tão sêcca,<br /> + +terá sua grinalda; a dor, seu gosto;<br /> + +e visitas o +pó, e cultos o ermo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Pelas noites mui placidas do estio,<br /> + +ao duvidoso alvor da lua incerta,<br /> + +bello será, sentado n'este sitio,<br /> + +ver vir, d'aqui, d'ali, +frouxos, dispersos,<br /> + +o do casal, o morador na aldeia,<br /> + +entrar chorando, e +procurar seus mortos.<br /> + +Aqui duas irmans resam de joelhos<br /> + +sobre o seio +materno sepultado.<br /> + +Aqui o velho attento as contas passa<br /> + +pelos dedos +convulsos, e se encosta,<br /> + +sem o saber, na fallecida esposa.<br /> + +O filho aos +pés da mãe co'os mais +soluça<br /> + +o Padre-Nosso apenas aprendido.<br /> + +Deitado ao lado do +submerso amigo,<br /> + +o amigo devaneia antigos annos. <br /> + +Por toda a parte, as +lagrimas e affectos, <br /> + +memorias doces, orações e +esp'ranças. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿E a quem não +conviria egual retiro? <br /> + +N'elle a +tristeza encontraria um pasto;</div> + +<span class="pagenum">[69]</span> +<div class="poetry1">a sciencia, reflexões; o +vicio, escolhos;<br /> + +a leviandade, +assento; a desventura,<br /> + +consolação; o amor, +silencio e pranto.<br /> + +Ensaiára-se o infante para a vida;<br /> + +o +velho, para a morte; o moralista<br /> + +viria achar +uncção para a verdade;<br /> + +o orador, +persuasões, ternura, encantos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ó filhos da montanha, +¡oh! libertae-vos<br /> + +de um +preconceito vão; é toda a terra<br /> + +a terra do +Senhor; afora o vicio,<br /> + +debaixo d'este ceo nada é profano.<br /> + +A +benção do Pastor consagraria<br /> + +vosso asylo feliz; e +a Cruz em meio<br /> + +todo de um santo influxo enchêra o bosque.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>VII</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Mas, em quanto esses dias vos +não raiam,<br /> + +bons velhos, +vigiae que, de anno em anno,<br /> + +aos juvenis futuros plantadores,<br /> + +em vez de +se afrouxar, se inflamme o zelo.<br /> + +Cresça com seu favor por +estas serras<br /> + +a geração dos vegetaes gigantes. <br /> + +Com +todos vós conversam todos elles<br /> + +sem cobrir campas; +guardam-vos saudades,<br /> + +são parentes de todas as aldeias,<br /> + +e o +brasão da montanha é o vosso parque.<br /> + +Sobre tudo +influi que a vossa raça<br /> + +trema ao só nome do +brutal machado <br /> + +que ouse violar a veneranda herança.<br /> + +O que +só Deus medrou, só Deus derribe.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[70]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br /> + +</div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Crêde-me (eu já +vi outras) vossa terra<br /> + +é descrida, enteada á Natureza.<br /> + +Cumpre a +vós adoçar-lhe o aspecto agreste,<br /> + +amiudar-lhe no +oceano ermo dos ares<br /> + +estas ilhas, virentes, graciosas,<br /> + +que espalhem +primavera pelos montes,<br /> + +que attráiam as volantes caravanas<br /> + +do rouxinol, da rôla, e da andorinha.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>VIII</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Lá em baixo a casa humilde +que branqeja,<br /> + +entre os alegres +plátanos e o templo,<br /> + +quasi que pasma, e se entristece e +encolhe,<br /> + +de ver em torno a solidão tão vasta.<br /> + +Como que está pedindo... ao menos bosques;<br /> + +não +tem outros jardins, outros passeios,<br /> + +que offereça a seu dono, o Pastor +vosso.<br /> + +Preparae desde já para o futuro<br /> + +sombras novas aos +novos successores,<br /> + +e refrigério estivo ás cans do +velho.<br /> + +Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.<br /> + +Mil vezes sua voz +reconhecida<br /> + +rogará paz ditosa aos vossos netos,<br /> + +quando, +serena a mente, e sôlta a vista<br /> + +lá fôrem +divagar, ora embebidos<br /> + +nos psalmos, nos poeticos arrojos,<br /> + +ora admirando +o Autor e o Nó dos mundos,<br /> + +no largo azul dos ceos, no alto +dos troncos<br /> + +e no zumbir e no voar do insecto. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Surgi! ¡surgi! +Lá jazem as enxadas.</div> + +<br /> + +<div class="poetry">Velhos, surgi! La voltam triumphantes,</div> + +<div class="poetry1">findo o novo trabalho, os vossos +filhos.</div> + +<span class="pagenum">[71]</span> +<div class="poetry1">Agora espumem copos, +sôem risos,<br /> + +exulte a dança, alonguem-se os +cantores.<br /> + +Conquistastes o inculto á Natureza:<br /> + +forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas.<br /> + +Toda +a vasta planicie, hontem tão erma,<br /> + +¡que povoada +vai já! ¡como promette<br /> + +lembrar ao vosso gado, +ás vossas filhas! </div> + +<br /> + +<h5>UM VELHO </h5> + +<div class="poetry1">Sim, dará sombra e vai +povoado o valle:<br /> + +mas fosse eu rico, e +lhe dobrára encantos. </div> + +<br /> + +<h5>SEGUNDO VELHO </h5> + +<div class="poetry1">¿E como, irmão? +</div> + +<br /> + +<h5>O PRIMEIRO </h5> + +<div class="poetry2"> +No alto d'este oiteiro,</div> + +<div class="poetry1">d'onde se avista o mar, o ceo, a +terra,<br /> + +poria +uma capella, e um San-Mamede<br /> + +co'o rosto de um menino, e o rir de um +Anjo;<br /> + +nas mãos o cajadito, o alforge ao lado,<br /> + +e o seu +rafeiro ao pé todo soberbo<br /> + +co'a colleira escarlate, e todo +amigo<br /> + +a lamber o seu Santo. É bom que os altos<br /> + +se +c'rôem de capellas, que levantem<br /> + +o pensamento aos Ceos, no +campo espalhem<br /> + +devoção e piedade, e aos +peregrinos<br /> + +ensinem o caminho e a vista alegrem. </div> + +<br /> + +<h5>UM PASTOR </h5> + +<div class="poetry1">Sim, co'o santo pastor de guarda aos +bosques,<br /> + +¿que haviam de +temer, nem cães nem gado?</div> + +<span class="pagenum">[72]</span> +<div class="poetry1">Nos degraus da capella, á +sombra inquieta,<br /> + +longas séstas sonháramos de +amores. </div> + +<br /> + +<h5>TERCEIRO VELHO </h5> + +<div class="poetry1">Já lá +vão o bom tempo e os bons +costumes;<br /> + +foi-se a abundancia e os corações +piedosos.<br /> + +Esses fundavam templos, como o nosso,<br /> + +n'um árido +deserto; e hoje.... se estala<br /> + +no campanario um sino, em ocio eterno<br /> + +fica mudo a pender dos braços podres.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>IX</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,<br /> + +serei eu quem consagre o +vosso oiteiro;<br /> + +não a Mamede, não ao pastor +martyr,<br /> + +mas á contrita amavel Peccadora.<br /> + +¿Não valem mais as lagrimas que o sangue?<br /> + +¿Mais que heroico valor não nos commove<br /> + +doce +humildade e penitencia longa?<br /> + +E de mais: se ás +aspérrimas proezas<br /> + +vos não destina o Ceo, todos +nascestes<br /> + +captivos frágeis de amorosas culpas.<br /> + +Muita virgem +no monte solitario<br /> + +tentada pelo amor e pelo amante,<br /> + +só com +ver a capella ha-de livrar-se,<br /> + +e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.<br /> + +E quando aqui errantes missionarios<br /> + +vierem dar, e á sombra +dos carvalhos,<br /> + +as turbas apinhadas instruirem,<br /> + +¡que +persuasões, que lagrimas, que exemplos<br /> + +hão-de +tirar da veneranda Imagem!....</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[73]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Qual me ri já +na mente o grão +projecto!<br /> + +Eu serei pois o fundador de um culto<br /> + +que aos frutos da moral +reuna flores. <br /> + +im; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente?<br /> + +............................................................. </div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>X</h4> + +<br /> + +<div class="poetry1">Partiram. E eis-me só. +Todos partiram.<br /> + +O +alvoroço do entrudo os chama aos lares.<br /> + +¡Oh! +¡Bemdita a ignorancia d'estas serras!<br /> + +O rustico inda ri na +Patria em luto,<br /> + +e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.<br /> + +¡Bem +sabe elle que lagrimas aos mares<br /> + +d'este horizonte em roda +estão correndo!<br /> + +¿Sabe elle que o atro dia +é menos atro?<br /> + +A paz, a confiança, as alegrias,<br /> + +a +abundancia, a união de antigos Lusos,<br /> + +não +deixaram, fugindo, um só vestigio.<br /> + +No vaivem das +facções, que se entrevencem,<br /> + +tudo se perde e +esquece, afora a raiva.<br /> + +Os bons usos, as festas populares,<br /> + +a romaria +alegre, as patrias danças,<br /> + +vão-se apagando... +Aqui, mesmo na brenha,<br /> + +a pastora, esquecendo os seus amores,<br /> + +canta a +questão dos Reis, o hymno da guerra,<br /> + +sons novos, que o seu +gado e o ecco extranham. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ó Patria, bella Italia do +Occidente,<br /> + +tu que egual a +Parthénope repoisas<br /> + +debaixo da invejada laranjeira<br /> + +e do +mirto florido, ao deleitoso<br /> + +ruido de aguas limpidas, no abri</div> + +<span class="pagenum">[74]</span> +<div class="poetry1">de um ceo inspirador +tão proprio ao genio,<br /> + +ó bella Italia do +Occidente, ó Patria,<br /> + +¿era pois fado teu lidar sem +fruto<br /> + +para seres a inveja, a flor das gentes?....<br /> + +A guerra, sim, te +coroou co'as palmas<br /> + +das quatro partes do orbe, e as naus do mundo<br /> + +trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros.<br /> + +Mas as flores das +artes, mas os frutos<br /> + +das sciencias, no chão dos outros povos<br /> + +com tanto custo e com suor medrados,<br /> + +¿espontâneos +no teu medraram nunca?...<br /> + +¿Tiveste nunca os dons, que em paz +florentes<br /> + +ornam e absolvem da conquista os loiros?<br /> + +¡Que +imperios teem cahido! e tu, tu ousas,<br /> + +hoje ainda, aspirar á +eternidade!!...<br /> + +Talvez bem perto os seculos se cheguem,<br /> + +que +hão-de ver cego arado andar lavrando<br /> + +tuas cidades de +esquecido nome,<br /> + +e o rebanho indiff'rente apascentar-se<br /> + +sobre os teus +tribunaes, theatros, praças. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo,<br /> + +Lusitania, que +á borda do Oceano<br /> + +brilhas qual deusa em majestade e em +graça.<br /> + +Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes<br /> + +entre tropheos em pó, lavada em sangue.<br /> + +Deshonrada +Cleópatra, inda és bella,<br /> + +mas já nas +veias te circula a morte.<br /> + +¡Ai de quem nutre as +áspides no seio!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Ó Patria, +ó Patria, com que voz +tão baixa,<br /> + +com que pejo te expróbro! +¡Ah! se +podéres,</div> + +<span class="pagenum">[75]</span> +<div class="poetry1">perdôa meu furor, +vê só meu pranto;<br /> + +ó Patria, ó mãe, ó misera +querida!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que +seria?<br /> + +¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são +homens<br /> + +que nos matam irmãos... ¡Alerta!... +oiçâmos...<br /> + +<br /> + +.................................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c9"></a>IX </h4> + +<h3> +O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Dia +em que o Poeta +plantou por suas mãos um cedro no pateo<br /> + +da residencia parochial da Castanheira do Vouga <br /> + +</div> + +<br /> + +<h4>(FRAGMENTO) </h4> + +<br /> + +<div class="poetry1"> +.......................................................... </div> + +<br /> + +<div class="poetry"> +Se, de teus +annos na madura força,</div> + +<div class="poetry1"> +a mão que te ora planta +inda fôr viva,<br /> + +essa mesma, já trémula e +caduca,<br /> + +no tronco te abrirá, com pio exforço,<br /> + +graciosa capellinha, onde sorria<br /> + +um San-João, o Santo alegre +do ermo,<br /> + +trajo de pelles, juvenil frescura,<br /> + +olhos nos Ceos, aos +pés cordeiro branco. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">N'essa noite poetica e devota,<br /> + +em que +o praser, centuplicando aspectos,<br /> + +povôa, anima, encanta o mundo inteiro,<br /> + +agua e terra, ar e +ceo, tudo é macio,<br /> + +em que a velhice, a mocidade, a infancia,<br /> + +sympathisam no vago da alegria;<br /> + +quando n'alma insaciavel de delicias<br /> + +se +juntam, com mistura inexplicavel,<br /> + +ao saudoso passado, aos bens +presentes,<br /> + +as mil visões do esplendido futuro;</div> + +<span class="pagenum">[78]</span> +<div class="poetry1">quando em laço phantastico +se +aggregam<br /> + +da vida e eternidade os pensamentos,<br /> + +gosos, +superstições, fraquezas, cultos,<br /> + +qual ramalhete +de cipreste e rosas<br /> + +na caprichosa mão das feiticeiras;<br /> + +n'essa noite, das noites invejada,<br /> + +a ti concorrerão por toda +a parte,<br /> + +té das aldeias do horizonte extremo,<br /> + +dançantes bandos que a viola guia. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Verás girar seus bailes +clamorosos<br /> + +em redor das +estrídulas fogueiras;<br /> + +ouvirás os seus +cânticos em côro<br /> + +devoto e ennamorado. A bomba foge,<br /> + +zune fugindo, e sollapada estoira;<br /> + +o buscapé no ar +caracolando<br /> + +morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,<br /> + +dispersa os grupos, gasta-se raivando,<br /> + +e entre os risos rebenta +atroando os ares;<br /> + +ali circula em vórtice perenne<br /> + +a roda leve +espadanando incendios,<br /> + +chovendo oiro luzente e estrellas alvas;<br /> + +aqui +floreia o fúlgido valverde,<br /> + +vesuviosinho que arremette +ás nuvens;<br /> + +arranca o vôo e vai rugindo aos astros<br /> + +o ignívomo foguete estrepitoso. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡E a musica entretanto! +¡e as doces falas!<br /> + +¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta!<br /> + +¡e essa mão dada a furto e a furto acceita!<br /> + +¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes<br /> + +da +meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada!</div> + +<span class="pagenum">[79]</span> +<div class="poetry1">¡e as sortes que a fortuna +extrai +ás vezes,<br /> + +e muitas mais a próvida malicia!<br /> + +¡e a fonte que amanhece entre descantes,<br /> + +e pasma rindo de se +ver coroada<br /> + +de festões verdes e entrançadas +flores!<br /> + +¡Que noites, que alegrias, que triumphos,<br /> + +te aguardam +no porvir, me estão na mente!<sup><a href="#14">[9]</a></sup> +<br /> + +...............................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c10"></a>X </h4> + +<h3> +O MOSTEIRO </h3> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Vós, que sois do amavel +sexo<br /> + +ardentes adoradores,<br /> + +que +girais de bella em bella,<br /> + +qual leve abelha entre as flores, <br /> + +<br /> + +que sabeis n'um só momento<br /> + +a mil deusas incensar,<br /> + +e pareceis +de ternura<br /> + +não poder-vos saciar, <br /> + +<br /> + +mancebos, o mundo é vosso;<br /> + +mil bellas o mundo tem;<br /> + +mas +não choreis as que á sombra<br /> + +repoisar das aras +veem. <br /> + +<br /> + +Se um jardim, florído, immenso,<br /> + +encontrais na sociedade,<br /> + +¿que importa que poucas rosas<br /> + +lhe furte a mão da +piedade? <br /> + +<br /> + +poucas rosas, que dispostas<br /> + +vão depois na solidão<br /> + +lançar mais doces perfumes,<br /> + +seguras de extranha +mão.</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[82]</span> +<div class="poetry1">Vagae, vagae livremente<br /> + +nos jardins da Idália Venus;<br /> + +segui as Nymphas e as Graças<br /> + +pelos seus bosques amenos; <br /> + +<br /> + +os prazeres vos rodeiem,<br /> + +os jogos em torno vôem;<br /> + +a mocidade +vos ria;<br /> + +espêssas rosas vos c'rôem; <br /> + +<br /> + +¿que falta aos desejos vossos?<br /> + +¡ah! soffrei, sem +murmurar,<br /> + +ver d'entre os vergéis florídos<br /> + +poucas +pombas desertar, <br /> + +<br /> + +poucas pombas, que innocentes,<br /> + +e temendo o caçador,<br /> + +vão nos ermos solitarios<br /> + +buscar um fado melhor. <br /> + +<br /> + +Do Libano opacos cedros,<br /> + +de Sião bosque tranquillo,<br /> + +vós, palmeiras de Idumêa,<br /> + +prestae-lhes seguro +asylo. <br /> + +<br /> + +Estranhas vistas não turbem<br /> + +os seus piedosos segredos;<br /> + +contentes á sombra vivam<br /> + +dos sagrados arvoredos. <br /> + +<br /> + +Silencio, paz, e ternura,<br /> + +alva estrella de innocencia,<br /> + +e a vista de um +ceo risonho,<br /> + +lhes doirem toda a existencia.</div> + +<span class="pagenum">[83]</span> +<div class="poetry1"><br /> + +Murmúrio de castas fontes,<br /> + +perfume de simples flores,<br /> + +lhes paguem jardins que infestam <br /> + +os abutres e os açores. <br /> + +<br /> + +Eu vos lamento e vos chóro,<br /> + +insensiveis +corações,<br /> + +que de um mosteiro entre os muros<br /> + +não vêdes senão prisões. <br /> + +<br /> + +Córae da vossa loucura.<br /> + +Correi a ver de mais perto<br /> + +o Eden +recatado ao mundo<br /> + +no seio d'este deserto. <br /> + +<br /> + +Modestas virgens o habitam,<br /> + +que só não teem +liberdade<br /> + +de colher em frutos de oiro<br /> + +as festas da sociedade. <br /> + +<br /> + +Segui-me, segui-me affoitos,<br /> + +entremos. Abriu-se o templo.<br /> + +Seus ermos, +ao mundo ignotos,<br /> + +inteiros d'aqui contemplo. <br /> + +<br /> + +¿Não vêdes sobre os altares<br /> + +com +graça engrupadas flores<br /> + +lançar torrentes de +aromas,<br /> + +brilhar co'as mais vivas cores? <br /> + +<br /> + +N'esses prados invisiveis<br /> + +tambem pois se eleva a aurora;<br /> + +sol, e +zephyros, e fontes,<br /> + +lhes dão sorrisos de Flora.</div> + +<span class="pagenum">[84]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Essas pois, que vós julgaveis<br /> + +desgraçadas +prisioneiras,<br /> + +teem praseres, teem delicias,<br /> + +teem jardins, +são jardineiras. <br /> + +<br /> + +Vêde ornar formosa Imagem<br /> + +rico manto que fulgura,<br /> + +de oiro e +sedas matizado<br /> + +com vistosa bordadura. <br /> + +<br /> + +Vêde a grinalda florida;<br /> + +vêde o ramo; estes +jasmins,<br /> + +estes lirios, estas rosas,<br /> + +não são +já de seus jardins. <br /> + +<br /> + +Não devem sua existencia<br /> + +nem á terra nem ao Ceo,<br /> + +e nem zephyros nem fontes<br /> + +serviram no augmento seu. <br /> + +<br /> + +Formou-as arte engenhosa;<br /> + +poude mais que a Natureza;<br /> + +deu mais vida +ás suas flores;<br /> + +prestou-lhes egual belleza. <br /> + +<br /> + +¿Sabeis, que mãos feiticeiras<br /> + +obraram prodigios +taes?<br /> + +eis o trabalho e os recreios<br /> + +d'essas piedosas Vestaes. <br /> + +<br /> + +Ellas no côro apparecem;<br /> + +e, ao som dos orgãos +divinos,<br /> + +de sua alma aos Ceos se elevam<br /> + +devotos brilhantes hymnos.</div> + +<span class="pagenum">[85]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Innocentes e macias,<br /> + +d'estas vozes a mistura<br /> + +sem perturbar os +sentidos<br /> + +infunde n'alma ternura. <br /> + +<br /> + +Em seus canticos não reina<br /> + +terreno vulgar affecto;<br /> + +é mais puro, é mais sublime<br /> + +de seus amores o +objecto. <br /> + +<br /> + +O pensamento que as ouve,<br /> + +sai da térrea +habitação,<br /> + +deixa os ares, das esphéras<br /> + +atravessa o turbilhão, <br /> + +<br /> + +vê do Empyrio as portas de oiro<br /> + +abertas á +humanidade,<br /> + +rompe audaz, vai submergir-se<br /> + +no fulgor da Divindade. <br /> + +<br /> + +Cessa a musica, e de novo<br /> + +volve a mente ao patrio mundo;<br /> + +mas dos +virgineos desertos<br /> + +primeiro se arroja ao fundo. <br /> + +<br /> + +Lá divisa, em liberdade,<br /> + +nas livres tranquillas horas,<br /> + +dadas +a cantos diversos<br /> + +estas formosas cantoras. <br /> + +<br /> + +Na sombra d'aquelles bosques,<br /> + +n'aquelles molles passeios,<br /> + +tambem pois +das Musas entram<br /> + +os aprasiveis recreios.</div> + +<span class="pagenum">[86]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Olhae por fim seus aspectos,<br /> + +¿Não vedes +vós a bondade,<br /> + +a alegria da innocencia,<br /> + +as virtudes da +piedade? <br /> + +<br /> + +Eis os Genios que lhes tornam<br /> + +encantadora a existencia:<br /> + +as virtudes da +piedade,<br /> + +os praseres da innocencia. <br /> + +<br /> + +A amisade entre ellas reina;<br /> + +¿os encantos da amisade<br /> + +não prestarão, por ventura,<br /> + +delicias á +soledade? <br /> + +<br /> + +Mas basta, insensatos, basta;<br /> + +á scena se corra o veo;<br /> + +não profanem vossos olhos<br /> + +mais tempo os átrios do +Ceo. <br /> + +<br /> + +Ide no mundo esquecel-as,<br /> + +em vez de as irdes chorar;<br /> + +e o vosso mundo +vos baste,<br /> + +como lhes basta um altar. <br /> + +<br /> + +Mas esperae; respondei-me;<br /> + +consultae vosso interior:<br /> + +¿sois +ditosos co'os sorrisos<br /> + +de um falso inconstante amor? <br /> + +<br /> + +¿Sabeis vós o que amor seja?<br /> + +¿Satisfaz-se o coração<br /> + +com esses fogos +incertos,<br /> + +e essa eterna agitação?</div> + +<span class="pagenum">[87]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +¿Não virá talvez um dia,<br /> + +em que, +mais sabios, queirais<br /> + +unir os vossos destinos<br /> + +á melhor +d'entre as mortaes? <br /> + +<br /> + +¿Como a haveis de achar no mundo,<br /> + +no mundo, cujos enganos<br /> + +vós conheceis, ajudastes,<br /> + +seguistes, por tantos annos? <br /> + +<br /> + +Tremereis de um laço eterno.<br /> + +A vossa pena consiste<br /> + +em +pensardes que a virtude<br /> + +que não tendes, não +existe. <br /> + +<br /> + +Então aqui vos espero,<br /> + +n'estes quietos retiros.<br /> + +Estes muros +que insultaveis,<br /> + +ouvirão vossos suspiros. <br /> + +<br /> + +Entre estas virgens mimosas,<br /> + +que severa educação<br /> + +forma, longe dos humanos,<br /> + +á sombra da solidão, <br /> + +<br /> + +viréis procurar o objecto,<br /> + +cuja ternura innocente<br /> + +vos deve +tornar a vida<br /> + +risonha, pura, e contente. <br /> + +<br /> + +Não detesteis um recinto,<br /> + +onde Amor, onde Hymeneu,<br /> + +onde um +Genio, amigo vosso,<br /> + +vosso thesoiro escondeu.</div> + +<span class="pagenum">[88]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Pensae, pensae que ali vive,<br /> + +cresce em virtude e talentos,<br /> + +e em +graças, aquella que ha-de<br /> + +doirar os vossos momentos. <br /> + +<br /> + +Qual arbusto delicado,<br /> + +que a viçosa louçania<br /> + +mostrar em seu proprio clima,<br /> + +em seu proprio ceo, devia, <br /> + +<br /> + +mas foi por mão inimiga<br /> + +trazido a estranhos logares,<br /> + +onde +murcho cederia<br /> + +a influxos de infestos ares, <br /> + +<br /> + +se da estufa compassiva<br /> + +lhe não fosse aberto o seio,<br /> + +onde +vegeta e floresce<br /> + +de arbustos eguaes no meio; <br /> + +<br /> + +ali não receia as neves;<br /> + +não treme da tempestade;<br /> + +gosa o sol; vive no mundo,<br /> + +vivendo na soledade; <br /> + +<br /> + +de extranhos somente é visto;<br /> + +tem louvor; é +cubiçado;<br /> + +mas das flores, mas dos frutos,<br /> + +não +é jamais despojado. <br /> + +<br /> + +¡Mil vezes feliz, mil vezes,<br /> + +quem ousa, á luz da +verdade,<br /> + +queimar a máscara d'oiro<br /> + +ás larvas da +sociedade!</div> + +<span class="pagenum">[89]</span><br /> + +<div class="poetry1"> +Medrae, sagrados mosteiros;<br /> + +medrae, desprezando a inveja;<br /> + +jamais +fulminar-vos possa<br /> + +calumnia que em vão troveja. <br /> + +<br /> + +Brilhae, como ilhas florídas,<br /> + +no meio do mar profundo<br /> + +de +vicios, crimes, e horrores,<br /> + +que alaga, que abrange o mundo. <br /> + +<br /> + +Sêde o asylo das virtudes,<br /> + +do Eden a propria entrada,<br /> + +o +enlace dos Ceos co'a terra,<br /> + +do Empyrio a sublime escada. </div> + +<br /> + +<div class="poetry">Coimbra―1826 (?)</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c11"></a>XI </h4> + +<br /> + +<h3> +SANTA MARIA EGYPCÍACA </h3> + +<h4> +(Fragmento de um poema) </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">...........................................................<br /> + +Prostrada aos +pés da Cruz, ante a caveira,<br /> + +jaz solitaria a Egypcia. Rios +descem<br /> + +de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam, </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Tão nova, e +isenta? ¡Oh! +não; mudou de amores.<br /> + +Dos primeiros só guarda a +dor e as penas;<br /> + +mas os novos, os ultimos, protesta<br /> + +conserval-os em +vida, e em morte havel-os. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Té aqui, pela alma escura +só lhe ardiam<br /> + +relampagos dispersos; derretido<br /> + +raio dos Ceos lhe côa pelas +veias. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Brilhou no mundo como a flor de um +dia.<br /> + +Os soes vivos, os ventos +importunos,<br /> + +lhe ameaçavam fim; ruins borboletas<br /> + +captivas da +belleza iam murchal-a.<br /> + +Imprevisto invisivel jardineiro<br /> + +a tempo a salva, +e a transplantou no ermo.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[92]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">No mundo, sobre o abysmo, hontem +folgava<br /> + +impróvida e +leviana; hoje pranteia<br /> + +na solidão, mas sob um Ceo que a +espera.<br /> + +As cidades, em que ídolo brilhára,<br /> + +inda a +chamam em vão, e em vão a aguardam.<br /> + +De um lustro +que a houveram, ¡quantos lustros<br /> + +lhe volveram saudade! </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Em viço de annos,</div> + +<div class="poetry1">e mais bella que as flores todas +juntas<br /> + +das dezassete suas primaveras,<br /> + +qual fugaz sonho de manhan de estio,<br /> + +foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde.<br /> + +Murcharam +festas; esmorecem danças;<br /> + +os banquetes, diffusos pela noite,<br /> + +já não veem despertar ternura e risos.<br /> + +Nas +roseiras intactas se desfolham<br /> + +os botões das grinaldas; o +alaúde,<br /> + +que falou tanto amor nas mãos da bella,<br /> + +discorde jaz, e mudo... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +Ella, entretanto,</div> + +<div class="poetry1">co'os mimosos pés +nús calcando +areias,<br /> + +desornado o cabello, envôlta em pelles,<br /> + +timida, +envergonhada, pesarosa,<br /> + +vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.<br /> + +Mil vezes +á avesinha se compára,<br /> + +sem família, +sem lar; corre erradia;<br /> + +¿não ha-de ambas manter a +paz que é de +ambas?<br /> + +Beija a caverna frígida que a hospéda,<br /> + +e +agradecendo este hórrido paraizo<br /> + +ao Deus que lh'o depára, +esquece o mundo,<br /> + +ou sem saudade e com horror o aviva.</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[93]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ai coração +tão amplo, onde estuava<br /> + +mar +de affectos sem conto, escoado agora,<br /> + +¿quem o ha de encher? +¡em solidão +tão funda!<br /> + +¿quem o ha-de encher? Já o +enche o que enche +tudo,<br /> + +o que brilha na luz, no sol, nos astros,<br /> + +corre nos +aquilões, anima os troncos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Só conversa com Deus, e a +Deus só ouve.<br /> + +Este +seio, estas tranças desatadas,<br /> + +são brinco +só do vento do deserto.<br /> + +Esta mão, tão +mimosa e tão querida,<br /> + +só procura, excavando a +terra ingrata,<br /> + +a amorosa raiz, ou já se encurva<br /> + +para dar +agua aos labios sequiosos.<br /> + +A aurora a vem saudar já de +joelhos.<br /> + +Não ha um sol, não ha na noite um astro,<br /> + +que não saiba os seus ais e eternas preces.<br /> + +Nem que passe o +chacal, a hiena, a onça,<br /> + +foge, ou quebra os devotos +exercicios.<br /> + +Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;<br /> + +e a Estrangeira +não treme; ora, e descança. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Ao fresco desmaiar da extrema tarde,<br /> + +quando os raios do sol +já mal doiravam<br /> + +da longinqua palmeira o incerto cume,<br /> + +¡que vezes, assentada, e sustentando<br /> + +na eburnea +mão o pallido semblante,<br /> + +atraz do astro fogoso e fugitivo,<br /> + +mandava o coração, mandava os olhos!</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[94]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">―«Além―dizia―além, +n'esse Occidente,<br /> + +corre o santo Jordão delicias minhas,<br /> + +que o Salvador banhou, +que eu passei mesma.<br /> + +Talvez aquella nevoa que lá brilha,<br /> + +mudada em rosa, em purpuras, em oiro,<br /> + +seja da santa veia alegre filha,<br /> + +Além... Jerusalem, Sião, +Judêa...» </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">E a taes nomes, enxames de memorias,<br /> + +de saudades, de affectos, lhe +adejavam<br /> + +pela alma, alegre em parte, em parte escura.<br /> + +Raro, mas inda +ás vezes lhe assomavam<br /> + +no involuntario somno ideias meigas.<br /> + +Inda, uma vez ou outra, o amor banido<br /> + +entrava de relance o antigo +alvergue,<br /> + +e apóz elle os passeios namorados,<br /> + +os theatros +esplendidos, as galas,<br /> + +as mezas rindo, os bailes desenvôltos;<br /> + +e as victorias, e as chusmas dos praseres,<br /> + +como á sua rainha +vão saudal-a.<br /> + +Acordava sorrindo, a Cruz fitava;<br /> + +e atirando +se á terra, e sôlta em +chóros,<br /> + +pagava erros não seus com dor bem sua. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Taes se lhe vão no ermo +deslizando<br /> + +dias e annos, sem ver na +areia impressos<br /> + +mais vestigios que os seus. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +De tempo em tempo,</div> + +<div class="poetry1">só vê talvez, ou +ver presume ao +longe,</div> + +<span class="pagenum">[95]</span> +<div class="poetry1">do horisonte nas +sombras pavorosas,<br /> + +o ténue pó da immensa +caravana,<br /> + +que vai de Alépo á Méka em +certa +estrada.<br /> + +Por ella ora, e entre o orar lamenta<br /> + +a devota +fanática impiedade. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Tal vai manando a limpida existencia.<br /> + +Egual ao ramalhete que desmaia,<br /> + +e +se esfólha no altar entre os perfumes,<br /> + +tal, sem gosto e sem +dor, e sem que o note,<br /> + +perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia<br /> + +encantos, já seu mal, e mal do mundo.<br /> + +O juvenil das formas +exteriores<br /> + +concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas<br /> + +se esconde um +coração de amor não +farto. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Quem a tivesse visto, e a visse agora,<br /> + +sentiria o que sente o viajante,<br /> + +quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,<br /> + +saudosos restos, da gentil +Palmyra.<br /> + +Uma e outra já gloria do Universo;<br /> + +agora mudas, +sós, e deslembradas,<br /> + +e socias no deserto, e eguaes no +exemplo. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Meio seculo a viu prantear sosinha<br /> + +annos ligeiros da fugaz infancia.<br /> + +Ao +fim da gran carreira, o Ceo lhe envia<br /> + +o solitario Zózimo, +como ella<br /> + +ancião virtuoso, e habitador das covas,<br /> + +que lhe +oiça a longa vida, a anime, e exforce;<br /> + +lhe dê +perdão e paz de um Deus em nome.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[96]</span> +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Pela primeira vez contente e alegre,<br /> + +ousando olhar os Ceos,</div> + +<div class="poetry2"> +―«¿Trareis,―lhe disse―</div> + +<div class="poetry1">á pobre +peccadora o manjar de Anjos?»<br /> + +―«Sim.»</div> + +<div class="poetry4">E partiu.</div> + +<div class="poetry2">Com vista prolongada</div> + +<div class="poetry1">ella o segue; co'os olhos no deserto<br /> + +o espera todo +o dia; ¡e este é tão +longo!...<br /> + +¡tarda tanto o bom hóspede!... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry5"> +Passou-se</div> + +<div class="poetry1">um anno inteiro. É elle +agora; é elle;<br /> + +conheço o fraco andar que o zelo apressa,<br /> + +e as cans, e a +calva, e as faces penitentes... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Chega; clama; a caverna +não responde;<br /> + +grita, e só +ouve a si. Olha em redondo,<br /> + +vê-a jazer na areia, e a areia +escrita<br /> + +por mão trémula, errante, ao que parece: </div> + +<br /> + +<div class="poetry tinyl">Bom Zózimo, por santa +caridade<br /> + +enterra o corpo da infeliz +Maria.<br /> + +Aqui morri no dia em que te fôste.<br /> + +Encommenda-me a +Deus, e Deus t'o pague. </div> + +<br /> + +<div class="poetry1">..................................................................</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4><a name="c12"></a>XII </h4> + +<br /> + +<h3> +EPISTOLA </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Ao +meu amigo o Desembargador +Manuel Venancio<br /> + +Deslandes +</div> + +<br /> + +<h4> +(NO DIA DOS MEUS ANNOS)<br /> + +<br /> + +FRAGMENTO </h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Em torno ao teu amigo +estão fervendo,<br /> + +Deslandes meu, na hora +em que te escreve,<br /> + +de uma festa caseira o reboliço. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Bem que alveje de neve o Caramulo,<br /> + +e um frígido +suão de lá nos venha,<br /> + +ninguem hoje de frio aqui +se queixa.<br /> + +Não descança nem pé, nem +mão, nem lingua;<br /> + +o sumptuoso lar arde em tres +fógos;<br /> + +o forno se afogueia; a branca meza<br /> + +vai-se de +loiça e vidros alegrando. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">Uma estuda em compôr as +sobremezas;<br /> + +outra enrama de loiro +alta ferrugem<br /> + +das vigas da cosinha; esta, sizuda,<br /> + +de riscado avental e +nus os braços,</div> + +<span class="pagenum">[98]</span> +<div class="poetry1">com importancia e afan revira +espêtos;<br /> + +aquella, anda +scismatica, e raivosa<br /> + +de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,<br /> + +que +além de um alecrim, de umas violetas,<br /> + +nascidas por engano, +além de rosas,<br /> + +frágeis, sem cheiro, e languidas, +não cria<br /> + +com que se enflore a meza dos meus annos. </div> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<div class="poetry1">¿Porque é, +quando a sorrir divagam todos,<br /> + +quando +só para mim se andam tecendo<br /> + +estas pompas domesticas, agora<br /> + +que a potente amisade em meu obsequio<br /> + +para tudo fazer até +fez estros;<br /> + +agora, emfim, que aos raios da alegria<br /> + +não ha um +coração que se +não abra...<br /> + +¿por que se fecha o meu? +¿Dará +(não creio)<br /> + +da Natureza o luto um certo assombro<br /> + +ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado<br /> + +d'esta +patria amargura, a filtre aos gostos,<br /> + +qual vaso que azedado a tudo +azéda?...<br /> + +.......................................................... </div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry">26 de Janeiro</div> + +<div class="poetry3">de 1833.</div> + +<br /> + +<br /> + +<h4>FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA</h4> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c13"></a>NOTAS DOS EDITORES<br /> + +<br /> + +AO VOLUME I DO<br /> + +<br /> + +PRESBYTERIO DA MONTANHA </h3> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Da villa da Castanheira―No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de +Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o +sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam +da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella +entra em correição o seu +Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja parochial da +invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da +Feira, que rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo +tem uma freguezia dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de +Aguadão, que consta de 100 visinhos. É curado +annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu Prior. Tem +este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que +fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes +de todo genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes +ordinarios, Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão +da Camara, Juiz dos Orphãos +com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da +Ordenança. <br /> + +<br /> + +(<em>Chorographia portugueza</em> pelo Padre +Antonio Carvalho da Costa.―T. II, pag. 176―1708.) +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[100]</span> +Castanheira do Vouga―Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de +Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem +803 visinhos. Está +situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S. +Mamede. Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros +são do Santissimo, de Nossa Senhora da +Expectação, com sua irmandade, e outro de S. +Jorge. O Parocho é Prior, apresentação +da +casa do Infantado; tem de renda 400$000 reis. Tem tres ermidas, que +são: a do Espirito Santo, a de Nossa Senhora do +Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra +são milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa +um Juiz ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios +Aguedão, Alfusqueiro, e Agueda. <br /> + +<br /> + +(<em>Diccionario geographico</em> pelo Padre +Luiz Cardoso. 1751.) <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +Castanheira do Vouga.―Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago +S. Mamede; o Parocho é Prior da +apresentação da Casa do +Infantado; rende 480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e +de Coimbra 7; tem 58 fogos. <br /> + +<br /> + +Ágadão―Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por +Orago Santa Maria Magdalena; o Parocho é Cura da +apresentação do Prior da Castanheira; rende +40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem +102 moradores <br /> + +<br /> + +(<em>Portugal sacro-profano</em>―por Paulo +Dias de Niza; cryptonimo do Padre Luiz +Cardoso―Lisboa―1767―8.º―2 +vol) <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +Castanheira do Vouga.―Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do +Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140 +fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto +administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da +Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um +monte proximo á serra do Caramulo. A Casa do Infantado +<span class="pagenum">[101]</span> +apresentava o Prior, que tinha +400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz +algum vinho, e do mais pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a +16 de Junho de 1514. Era cabeça do concelho do seu nome e +tinha Juiz ordinario, Camara, Escrivães, e mais +Justiças. Passam pela freguezia +os rios Agueda, Aguedão, e Alfusqueira.<br /> + +<br /> + +(<em>Portugal antigo e moderno</em>―por +Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal―Lisboa, 1874). <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div> + +<br /> + +<h4><a href="#n1"> +Pag. 11</a> lin. ultima +</h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Dapibus mensas oneramus +inemptis<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto +é, vivemos, sem comprar, das nossas lavras proprias. <br /> + +<br /> + +Citação de Virgilio +(<em>Georgicas</em>, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina +variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry2"> +<em>....Sero que revertens</em></div> + +<div class="poetry1"><em>nocte domum, dapibus mensas +onerabat +inemptis.</em></div> + +<br /> + +<br /> + +Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que +vamos ouvir +na traducção de Castilho: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry4">......Alembra-me +que +outr'ora,</div> + +<div class="poetry1">lá por onde o Galeso +arrasta a veia escura<br /> + +por +entre loiros chãos de cereal cultura,<br /> + +junto á +Ebália cidade, a de torreados muros,<br /> + +conheci um corycio em +annos já maduros,<br /> + +dono de uma chanzinha ali desamparada.<br /> + +O +pobre do torrão de si não dava nada:<br /> + +nem pasto +para bois, nem para um fato hervinha.<br /> + +Sumitico de pães, +escasso para vinha,<br /> + +era um sarçal fechado; e no +sarçal, comtudo,<br /> + +o bom velho, a poder de diligencia e +estudo,<br /> + +tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno<br /> + +com +seve de jardim para maior adorno,<br /> + +alvos lirios, verbena, e papoilas de +prato.<br /> + +Não trocára co'os Reis seu parco haver +tão grato. <br /> + +Recolhia ao casal já noite; e, +¡que riqueza<br /> + +de iguarias de graça a assoberbar-lhe +a meza!</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[102]</span> +<h4><a href="#n2">Pag. 18</a> lin. 3 </h4> + +<br /> + +<div class="quote">Passámos n'uma bateirinha, +remada por uma velha moleira da +margem, o +víçoso rio de Bolfiar. </div> + +<br /> + +<br /> + +Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O +caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos +modernos, deram cabo da antiga viagem tão pittoresca. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n3">Pag. 36</a> lin. 20 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Uma especie de zimborio +de doze palmos de altura. <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que +primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação +do Reino. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n4">Pag. 37</a> lin. 3 </h4> + +<br /> + +<div class="quote">Uma desconforme loisa +inteiriça horizontalmente aguentada +nos ares por esteios de pedra. </div> + +<br /> + +<br /> + +Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em +muitas partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da +sciencia moderna. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n5">Pag. 42</a> lin. 6 </h4> + +<br /> + +<div class="quote">A Linguagem é ali, como os +ares, de uma admiravel pureza e +lucídez. </div> + +<br /> + +<br /> + +O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho +o seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas <em>Excavações +poeticas</em> o que elle diz do velho camponez Francisco Gomes, +creado da casa, e «um dos mais chapados classicos» +que elle jamais encontrou. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n6">Pag. 58</a> lin. 7 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Lia, Rachel e Rebecca <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel. +Achando-se Rachel ajustada para casar com Jacob, teve Labão +astucia de lhe substituir Lia, apesar de menos formosa. Foi +mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá, +Issachar, Zabulon, e Dina. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[103]</span> +Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve +José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que +ainda se conserva e mostra o seu tumulo. <br /> + +<br /> + +Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de +Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob. <br /> + +<br /> + +Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan, +são encantadoras de singeleza e graça nas +descripções que d'ellas nos +deixaram os Livros santos. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n7">Pag. 72</a> lin. 15 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Uma pobre mocinha +ovelheira <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era +Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta +na sua <em>Chave do enigma</em>. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n8">Pag. 80</a>, lin. 9 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Filinto e o entrudo <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom +Francisco Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da +velha Lisboa. <br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">¡Viva o meu Portugal! +¡viva a laranja<br /> + +que +derruba o chapeo!</div> + +<br /> + +exclamava elle em París, ao lembrar-se das +grosseiras costumagens dos Portuguezes, felizmente meio +polídas já hoje. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n9">Pag. 82</a> linhas 6 e 8 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Citações +latinas <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Essas duas são de Virgilio +(<em>Eneida</em>, Livro I) <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1"><em>Fronte sub adversa scopulis +pendentibus antrum;<br /> + +intus +aquae dulces, vivoque sedilia saxo;<br /> + +nympharum domus</em>.</div> + +<br /> + +<br /> + +Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um +antro; e lá dentro correm aguas doces, e apparecem assentos +como que talhados na rocha viva; verdadeira +habitação de nymphas. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[104]</span> +<h4><a href="#n10">Pag. 87</a> lin. 21 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">As +rogações de Maio <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado, +fallecido no anno 475. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n11">Pagina 99</a> linha 23 </h4> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +O ubi campi! <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II +das <em>Georgicas</em>: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1"><em>Rura mihi et rigui placeant +in vallibus amnes;<br /> + +flumina +amem silvasque inglorius. O ubi campi<br /> + +Spercheosque, et virginibus +bacchata Lacaems<br /> + +Taygeta!......</em></div> + +<br /> + +<br /> + +Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles; +encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou. +¿Onde estais, campinas? ¿onde estás, +rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas alegres +virgens espartanas? <br /> + +<br /> + +Castilho traduziu assim este trecho: <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Então amar só +quero os rios e arvoredos,<br /> + +de +glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos!<br /> + +ai ribeiras +do Spérchio, oiteiros do Taygéto,<br /> + +das virgens de +Lacónia ás órgias +predilecto,<br /> + +¿onde, onde me estais vós?....</div> + +<br /> + +<h4><a href="#n12">Pag. 102</a>, lin. 10 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Parve, nec invideo, sine +me, liber, ibis in urbem <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das <em>Tristezas</em>. +Dirigindo-se +ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no desterro, entre os +gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno livro; has-de entrar +sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal. <br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="poetry1">Parte, ó meu pobre livro; +irás sem mim, +sosinho,<br /> + +correr na gran Cidade incognito caminho<br /> + +<br /> + +traduziu alguem</div> + +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[105]</span> +<h4><a href="#n13">Pag. 107</a>, lin. 17 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Zimmermann <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de +Berne, a 8 de Dezembro de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi +abalisado sabio. Nomeou-o medico da sua camara em 1768 el-Rei de +Inglaterra; el Rei de Prussia Frederico, o grande, foi tratado por elle +na sua ultima doença, e deveu allivios aos seus cuidados +intelligentes. O Principe russo Orloff foi de proposito com sua mulher +consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se a S. Petersburgo falou +d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina, que em 1784 +procurou attrahir á sua côrte aquelle +luminar da sciencia. Elle pediu excusa, porque a vida mundana +não condizia com os habitos que tinha creado o seu espirito; +não se ofendeu a eminente Princeza, e conferiu-lhe a ordem +de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu morrer-lhe entre os +braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho. +Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de +outras obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa, +publicou em 1756 o seu <em>Tratado da Solidão</em>, +onde todas as vantagens moraes do isolamento são defendidas +com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia +exagerada. <br /> + +<br /> + +<h4><a href="#n14">Pag. 108</a>, lin. 6 </h4> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">O Passeio publico e o +Marrare <br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico, +riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas +Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar +os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos +Restauradores até á +extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No +sitio exacto do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande +tanque redondo (hoje no jardim da Graça). <br /> + +<br /> + +O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no +Chiado.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c14"></a>ADDITAMENTO </h3> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu +bom irmão, pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres +sermões que ainda restam d'este. As suas obras ineditas +mandou o proprio Doutor Augusto Frederico de Castilho que lh'as +queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as seguintes:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">I</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">O sermão de S. +Pedro, ou da Fé;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">II</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">O +sermão da esmola, ou da Caridade;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">III</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">O sermão +nas exequias do senhor D. Pedro IV;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">IV</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">A pastoral dedicada ao seu +rebanho episcopal de Beja;</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 95px;">V</td> + + <td style="width: 0px;">―</td> + + <td style="width: 552px;">Uns versos na <em>Primavera</em> +de +Antonio Feliciano.</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c15"></a>SERMÃO<br /> + +<br /> + +DA<br /> + +<br /> + +ESMOLA OU DA CARIDADE </h3> + +<br /> + +<div style="text-align: center;" class="tinyl">Prégado +na 5.ª dominga da Quaresma de 1839<br /> + +na +Sé de Lisboa<br /> + +pelo Conego Arcipreste da mesma Sé,<br /> + +o Doutor de capello em Canones Augusto Frederico de Castilho</div> + +<br /> + +<br /> + +<div class="quote2"><em>Jesus abscondit se, et +exivit de +templo.</em><br /> + +Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.</div> + +<br /> + +<br /> + +De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de +Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por +escondido, deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu +serviço. Jesus vivo, e na occasião de que trata o +Evangelho, estava no mundo, e faltava no templo. Jesus, hoje, por dois +milagres de fé e amor, por duas eucharistias, +está no templo, e mais no mundo: no <em>templo</em>, +encoberto no +Sacramento; no <em>mundo</em>, encoberto nos seus pobres. +N'uma e n'outra parte o devemos servir com egual zelo. <br /> + +<br /> + +Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer +á fome e ao frio os necessitados, não +é de christão; é +fé morta. Soccorrer aos infelizes, sem crer (se tal +é possivel) +<span class="pagenum">[110]</span> +n'Aquelle que elles representam, é caridade morta; tambem +não é de christão. <br /> + +<br /> + +Vós pareceis christãos pela fé, pois +que vindes á casa de Deus; vós o pareceis, mas +não o sois, porque essa fé é morta; +cumpre que se resuscite pela caridade. <br /> + +<br /> + +Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que +é a caridade pratica e activa; é o christianismo +na sua parte mundana, o culto do Verbo humanado aos olhos de todos, a +religião de todas as religiões, a philosophia de +todas as philosophias, o axioma para todos os entendimentos, o dogma +até para o atheismo. O objecto é o mais +accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa +faria á vossa piedade, se vos exigisse a +attenção. <br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +Alma e coração, discurso e affectos, convencem e +persuadem como dever a esmola. Não creou a Natureza +irmãos privilegiados, e morgados na familia dos homens: para +uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para outros, encargos de +miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou malicias, estabeleceram +essa desegualdade; e andou tambem ahi traça +recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se +uns de outros não carecessemos, não nos +amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos, +não fôramos +virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, desentranhada de +nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e purissima +fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos, +<span class="pagenum">[111]</span> +pois, a Natureza; a Providencia nos +desegualou; e n'esta contradicção apparente, +é que +Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus +conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça, +quiz que tivessemos uma norma de egualdade; na Providencia, isto +é, na sua caridade, que aprendessemos a restabelecer, quanto +em nós coubesse, aquella egualdade primitiva por mutuos +soccorros. <br /> + +<br /> + +O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho +mimoso da Providencia, depositario e executor da Justiça de +Deus, transumpto e argumento de sua bondade e misericordia. <br /> + +<br /> + +O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o +patrimonio dos pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo +injustiça e barbaridade, egual á do depositario +que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que +converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a +substancia do seu pupillo; é ainda mais: é +declararmo-nos inimigos de Deus, desacreditando, e dando, de certo +modo, quebra áquella Providencia, cujos éramos +dispensadores e supplementos; áquella Providencia, que +não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes pelo +ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae +Celeste. <br /> + +<br /> + +Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra +bello, generoso, heroico, brota (não duvidemos) da caridade. +Deus, para tornar as virtudes caras, e accessiveis até aos +mais faltos de discurso, não creou a caridade, +senão que a tirou de suas proprias entranhas, +<span class="pagenum">[112]</span> +e orvalhando-a sobre a terra, lhe deu por +benção que de todas as mais virtudes fosse ella +semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos +ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato, +instinto (¿por que o não diremos?), instinto +moral. <br /> + +<br /> + +Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais +profundo, mas tambem o mais extenso de todos os affectos, para que, +sobre encher-nos o coração de virtude, ella nol o +podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, nol-a podesse tornar +permanente. <br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡que maravilhosa não é +esta caridade, que em todas as edades, e em todas as circumstancias da +vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre lhe renascem objectos, e +infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, como elle, toda a Natureza +creada, passa dos homens aos animaes brutos, d'estes aos proprios entes +insensiveis, adivinha infortunios, inventa e persuade soccorros, +até para entes que os não sabem agradecer, que os +não requerem, que os não precisam! <br /> + +<br /> + +Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos; +momentos em que se não sabe conter, nem governar; suspiros, +lagrimas, e desalentos; enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas, +como tudo lhe nasce do amor e compaixão, tudo é +terno, tudo +é mavioso e consolador. Virtude de virtudes, virtude unica +onde não ha excessos. <br /> + +<br /> + +Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras +primas da creação. ¡Ah! ¡que +se jamais +se podessem tributar ao homem cultos, que só á +Divindade +<span class="pagenum"><a name="p113">[113]</a></span> +se devem, ninguem tanto +os merecêra, como esses que, possuindo os thesoiros dos bens +<a href="#e8">terrestres</a>, os derramam no seio +dos infelizes! <br /> + +<br /> + +Porém, meus irmãos, não é +mistér uma brandura de animo requintada, para nos movermos +com os infortunios dos nossos semelhantes, e procurarmos-lhes o +remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um +animalsinho, morto de fome, transido de frio, desamparado ás +inclemencias de uma noite de inverno, e invocando a nossa piedade com +aquelles gritos lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes +para dizerem as suas dores, qual de nós se não +sentiria profundamente condoído, não correria a +abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah! +¿e deixariamos +no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso +irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens +possuimos, cuja felicidade é tão travada com a +nossa, e cuja desgraça tem sido talvez effeito da nossa +injustiça, da nossa barbaridade? <br /> + +<br /> + +¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o +coração... ¿que digo? que o trazeis +defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores mais doridos da +Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se +estão sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis, +¿que uso mais util farieis vós de vossos bens, do +que seria o acudir-lhes? Na vossa avidez insaciavel (semelhantes ao +inferno, que, por mais victimas que lá chovam, +não cessa de clamar +<em>affer</em>, +<em>affer</em>, mais e mais), uns de vós, +ó ricos do mundo, se contentam +com a visão beatifica dos seus cofres; +<span class="pagenum">[114]</span> +a sua alegria, a sua felicidade, o seu +proximo, o seu mundo, a sua alma, o seu Deus, tudo seu ali jaz; ali +enterraram o coração, e o conservam mais duro, +mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que amontoaram; em +quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus +thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por +luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem, +sem destino, sem uma só utilidade real. Mais loucos ainda e +mais infelizes, outros emfim, parecendo arrenegar dos beneficios da +Providencia, os cofres que ella confiou nas suas mãos, elles +os despedaçam e espalham, não só sem +vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de +si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios, +abysmaram a rasão, destruiram as forças, +aniquilaram a saude, anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus +irmãos, ¡que de +inquietações, de violencias, de trabalhos e de +dores, para comprar uma eternidade desgraçada! +¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o +inferno! <br /> + +<br /> + +Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses +dinheiros de maldição, preço dos +tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os dias se renova nos +seus pobres, que vós entregais e desamparais sem piedade, +com esses dinheiros de maldição, ides comprar um +arrependimento esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o +odio dos homens, a vingança de Deus, os tormentos eternos! +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[115]</span> +¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara +opulencia! Injustiça para com os infelizes, cujos bens +sonegamos, cujos lamentos não queremos escutar, cuja morte +mesmo antecipamos muitas vezes.―Injustiça para com Deus, de +quem recebemos esses bens, com a condição da +caridade, e cuja Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos +beneficios e esmolas, desde que entramos no +mundo.―Injustiça para comnosco mesmos, a quem fechamos as +portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os +sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de +toda a felicidade.―Injustiça, emfim, para com todo o genero +humano, de quem nos afastamos, a quem não queremos +pertencer, de quem até nos declaramos inimigos. <br /> + +<br /> + +¿E para onde fugirão os nossos olhos, que +lá não vá a miseria publica +perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos +desgraçados, +porque nunca a nossa immoralidade foi tão barbara. +Realisou-se sobre tantos irmãos nossos parte grande das +maldições, com que Deus, por bocca de +Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por +todas as guaridas da indigencia; visitae os tugurios e choupanas +miseraveis das aldeias, das maiores povoações, e +até das +cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e +variedade +de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e doentias, +mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de +pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas; +¡quantas se não chamam poisadas e casas, que antes +são covas, +<span class="pagenum">[116]</span> +masmorras, +ou jazigo de viventes! ¡de quantos não +é cama a terra humida, e vestido o que nem lhes encobre a +nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos, chorando +e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais +infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na +Natureza, +além do sol que os aquece, e do ar que respiram, e +começam a conhecer tão cedo a dureza dos homens, +obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar por si mesmos com +que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas +tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas +sem protecção, em quem, sobre o desamparo e +dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus +bens arrancados por crédores, e quantas vezes por +ladrões, debaixo do nome de crédores! +¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores +ás suas forças, ou á sua +creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com +o suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está +derretendo e mirrando! ¡Tantos enfermos expirando +á mingua, sem medico, sem tratamento, sem remedios, sem +enfermeiros, sem alma viva que os console, que lhes suscite as ideias +da Eternidade, e até sem um lençol que os +amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços, +e do uso dos sentidos mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados +para a borda dos caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol, +as chuvas, os frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros +de outra especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem +lar, sem nada, nem um amigo, sósinhos em meio de tanto +mundo! +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[117]</span> +¡Mas que me canço eu a enfeixar o que +não tem conta! E quando de taes miserias conseguisse fazer +aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras não +ficariam de fóra, +mais profundas, e mais miserias, porque ellas mesmas refogem e se +escondem! As ruas e as praças, com todos os seus clamores e +penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie +está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não +sei que reflexo de verniz e doirado, um não sei que ruido +festivo, um perfume de opulencia e sabores, um certo sorrir, um raio de +sol, um aspecto de céo azul, uma vida e uma +esperança, que são disfarce, e mascara da +existencia do povo, real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida. +Sahindo-se para a rua, deixam-se á porta as lagrimas, e +cuidados verdadeiros, e toma-se na bocca e faces o contentamento +postiço. Por fóra andam os corpos em toda a sua +gala; mas dentro, por todo esse immenso +<em>dentro</em>, nas entranhas d'esse infinito +massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos sem +termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão +chorando milhares de corações, +estão-se desesperando milhares de almas. <br /> + +<br /> + +Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira +para se recrear, por esses caminhos tão lageados de +marmores, tão ataviados de vidros de cores, de metaes +brilhantes, de todas as espumas mais formosas do luxo, se Deus +permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos por entre que +duas montanhas de infortunio, vai caminhando! +<span class="pagenum">[118]</span> +¡oh! +¡como de repente, semelhante a Pharaó, na estrada +do Mar Vermelho, desabariam de todas as partes a afogal-o ondas e mares +de dor! <br /> + +<br /> + +Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da +caridade, ¡quantos pobres envergonhados que abafam +soluços e gemidos entre as quatro paredes da sua casa! Nas +horas da noite, quando das dansas, dos jogos, dos espectaculos, e de +peores logares, saem torrentes de mundanos, em quem parece que o tempo, +o dinheiro, a saude e a fama pesam insoffrivelmente, ¡que de +vezes se lhes não atravessam diante uns phantasmas de +penuria, em fórma já de mulheres, já +de meninos, +já de anciãos, a quem a vergonha do sol +não consentíra sahir dos seus sepulcros! De um +portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, nos saem as suas +vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de que +não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo +a mão a receber a esmola, e a abençoar a +caridade; algum vos esconde um rosto, que, em melhores dias, tinheis +visto brilhar á luz da prosperidade. <br /> + +<br /> + +Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os +dias, e não temem o aspecto da noite, porque já +não podem ser mais infelizes, é Deus quem nol os +envia ao encontro, menos por elles que por nós, menos para +alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem algum affecto +ao coração gasto, algum pensamento fundo e +importante á alma dissipada. ¡Felizes +vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos da +<span class="pagenum">[119]</span> +desgraça, estas embaixadas +solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que, em vez de os +repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade, +com a esperança ao queixume, e com a +commiseração a quem não +cuidava que no mundo a houvesse! <br /> + +<br /> + +―Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que +me desatinam, que me desesperam (dizeis vós), +¿quem me abona a sua pobreza? e concedendo-lh'a, +¿quem me affirma que não é ella +castigo da sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que +vos importa? Se póde ser uma coisa ou outra, dae; antes +lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em vaso cheio, ou +em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a quem +do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe +recusasseis, padecêra n'um dia o que vós +não padeceis n'um anno, ou, para o não padecer, +commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle n'este +mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós, +que tão de repente sentenciais o desgraçado que +não conheceis, ¿por que +vos não sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a +vós? <br /> + +<br /> + +<em>Póde não ser pobre o que vos +pede.</em>―Sim, e algumas vezes se tem visto.―<em>Póde +ter merecimentos para muito mais ainda do que padece.</em>―Sim, +que é homem como +vós, e com mais razão do que vós para +aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde +ser; ¿mas examinastes vós se +era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a esmola por tal motivo, +¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a +injuria? +<span class="pagenum">[120]</span> +¡Ah! em quanto +sentenciais uma alma que não conheceis, e condemnais o vosso +semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais +razão não tem elle para condemnar a vossa alma, +que vós mesmos lhe descobristes inteira com uma +só palavra! <br /> + +<br /> + +Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a +concessão), que todos esses andam expiando peccados seus; +são até criminosos e facinorosos; que nem um +d'elles tem necessidade; são até abastados e +opulentos; que todo o mendigo é um salteador e um +millionario. ¿Estais contentes com a concessão, +ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o +não ha. Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos +apresentar pobres, de uma pobreza processada e demonstrada, que vos +não importunam nem se queixam, dos quaes muitos, dos quaes +inteiras classes, não mereceram, nem poderam merecer, o seu +estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito +que o sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas +mães; ahi os tendes, que a Misericordia mesma não +basta a amamental-os e vestil-os, e, de seus pobres bercinhos, caem em +cardumes nas sepulturas, e vôam a ir depôr na +presença de Deus, +contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes dado a vida por um peccado, +por um peccado ainda mais mortal (se é licito +dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a +morte. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem +innocentes. Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida, +onde se queria educar e felicitar um seculo novo, e que, por falta de +caridade publica, morreram, +<span class="pagenum">[121]</span> +depois de tão bem nascidos e esperançosos. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice, +tambem e mais desvalida, onde os soccorros nunca são +sobejos, nem sufficientes; porque muitos mais são sempre os +que batem e choram áquellas portas de refugio, que os que a +estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro +á meza do convite de Deus. <br /> + +<br /> + +Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o +Senhor chamando o +coração, e por toda a parte vos tem cercado do +dever da esmola. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias. +<br /> + +<br /> + +¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos, +a quem falta pão, lar, vestido, mundo, que o não +conhecem, nem elle os conhece; militares que envelheceram nas armas e +morrem á míngua; viuvas e orphãos de +servidores do Estado, a quem se não paga, nem com +esperanças. <br /> + +<br /> + +¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos +políticos vencidos, em quem não é +mister longo +exame para se reconhecer a desgraça, porque é +corollario evidente de causas notorias. A terça parte de uma +edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais +longe, tem sido entre nós consumidos em +dissenções e odios. Com successivos terremotos +politicos, teem desabado as mais altas torres de fortuna; +desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram +arrancadas de +furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes +esperanças; os caminhos trilhados e sabidos subverteram-se; +<span class="pagenum">[122]</span> +por onde se descia, +sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum +dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de +oiro, e o ancião doirado, que ainda hontem lhe houvera +matado a fome, lhe alonga a mão, da margem do caminho, +clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o +presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado; +entendo os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e +bens do futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males +extraordinarios, que não são, para que assim +digâmos, nem do +homem, nem da Natureza, nem de Deus, mas sim da mudança, da +transformação +da fortuna, da fortuna cega, que, no trocar das mãos, quebra +sem pejo, nem dó, nem consciencia, o que depois todos choram +e ninguem concerta. <br /> + +<br /> + +Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que +não vemos, pela peior de todas as cegueiras, que +é o não querer ver. E quando d'esta somnolencia, +d'este lethargo, d'esta morte do coração, +acordamos algum momento a este som <em>Esmola a este vosso +irmão pelas chagas de Nosso Senhor Jesu-Christo</em>, +já nos +reputâmos muito generosos, se em vez do silencio ou de uma +injuria, lhe acudimos com um <em>Deus o favoreça</em>; +e +tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos +vãos ou peccaminosos que traziamos; e lá +deixámos para traz a Jesu-Christo morto de fome, a +Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o +seu estado de abjecção +<span class="pagenum">[123]</span> +os não obrigasse á +humildade ínfima, +se o uso de soffrer estas repulsas os não tornasse +já meio insensiveis, se elles nos podessem retorquir, +«¡Quê! (nos responderiam) +¿Deus que nos favoreça? Deus nos favoreceu com +esses bens que indevidamente retendes; Deus nos favoreceu com os +thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes. +¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis +acaso tental-o? ¿que elle obre em nosso favor um milagre +desnecessario? ¿que torne a chover o maná do +céo, não sobre um +deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, que +por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas +dádivas? Esse maná vós o possuis, e +encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará que se +corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos +favoreça, +deshumanos? Sim, sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os +merecimentos que terieis na sua presença em serdes +misericordiosos, elle os accumula sobre a nossa +resignação; com os infortunios que nos +accrescentais, e os prémios que rejeitais, se +juntarão em nosso favor aos prémios de que a sua +misericordia nos achar dignos.» <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza +fossemos capazes de entender os gritos e lagrimas de tantos paes de +familias, cujas familias podem dizer que não teem pae, +tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas +desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos +enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos +pobres envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a +<span class="pagenum">[124]</span> +significação +das suas dôres e +desalento, que uma reprehensão amarga da nossa barbaridade +para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão +para com Deus; acharíamos, sim, acharíamos +até n'esses lamentos, a +expressão propria com que devêramos deplorar +nós mesmos a dureza, antes ferocidade, dos nossos +corações. <br /> + +<br /> + +Não só, meus irmãos, as nossas +liberalidades atalham todas estas miserias, mas ainda vão +precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre rapariga, a cuja +honra se preparam violentos ataques. O Céo a +dotára das qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou +de algum modo desfazer a obra do Céo, juntando-lhe a pobreza +com a formosura. Do seio da opulencia, um libertino já +vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario da +virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e todas +as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que exaltaram o +seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os +seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque; +frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na +repulsa, o merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a +seducção, de mãos dadas com a +indigencia... ¿não vencerão cedo +ou tarde? Chegou emfim esse dia; ¡venceu! e com um sorriso +infernal applaudiu o seu triumpho, e a desgraça que +consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre victima. Ali +jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo; +ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que, +<span class="pagenum">[125]</span> +depois de a desgraçar, chegou mesmo a +aborrecel a; ali jaz na mesma +indigencia que d'antes, porém mais infeliz agora; a sua +honra fugindo abalou-lhe todas as outras virtudes. Em odio a Deus e a +si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um refugio no mundo? nenhum, +porque o traidor, declarando-se seu cruel inimigo, foi divulgar o +segredo, e exigir esses applausos infames, que tanto mereceu. +¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, seriais +sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te +houvesse a tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e +modesto, onde vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos +homens, ¿não se teria afastado ainda o raio que +reduziu a cinzas o desambicioso edificio da tua felicidade? <br /> + +<br /> + +Além é um moço, que, +cançado da dureza dos homens, começa a +não conhecer as leis na sua necessidade. Por toda a parte +repellido, julgou direito prover por si mesmo, e a todos os despeitos, +á sua +conservação.―«Todos esses a quem +recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não +quero a sua felicidade; mas tenho, como elles, direito de +viver.»―Levado assim pelos raciocinios errados do vicio, ou +só por um instinto que lhe bafejou a injustiça +dos homens, começou por pequenos furtos; passou a maiores; +nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; zombou de +todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e +acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o +affasta do precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe +<span class="pagenum">[126]</span> +tira deante dos olhos dois futuros +que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere +perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas +correspondentes, em si e na sua duração, a crimes +de que nunca se arrependeu, e damnos que nunca tiveram +restituição. E quando elle passar para o +patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis: +«Não tenho +coração para taes espectaculos;» +¡como se esse mesmo coração +não fosse o seu peor +algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso! <br /> + +<br /> + +N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade, +mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas +esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os +amigos que o atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que +se vê precipitado n'uma desgraça a que +não prevê termo na sua +desesperação, insulta o Céo, blasfema +da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe +se irá +(como tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender +um laço, por onde arranque uma existencia que o importuna! +¿E a caridade e a ternura não poderão +ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe rebentar as +lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o +coração? +¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e +abençoar o pão com que lhe sustentamos uma vida +que lhe fizemos amar ainda? <br /> + +<br /> + +¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas +não déstes vós ás almas +generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos +alcançava uma côroa o que salvava os dias do seu +<span class="pagenum">[127]</span> +concidadão, +¡que honras não merece dos +outros homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma +vida infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que +já suppunham surdo e injusto! ¡e que +até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da +miseria que lhes arrancariam os meios de +salvação! <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para +reconhecermos como bem real esta doce obrigação +da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que mais +fortes motivos não tem o homem christão, para ser +esmoler, segundo as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os +deveres da caridade não são para nós +simplices axiomas, ou +preceitos da philosophia; não são o resultado de +um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas vieram +não só confirmar, mas dar ainda, se é +possível, uma +extensão muito maior a tudo quanto n'esta parte a +Religião natural nos havia imposto. <br /> + +<br /> + +Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos +modos, até indirectos, nos não é +persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós todo o +thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais +perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo +qual nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as +Escrituras); não só nos adornou de todas as +graças que perdemos na desobediência de nossos +paes, mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem +(mais parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma +habitação commoda e feliz. +<span class="pagenum">[128]</span> +Esse sol que nos allumia o theatro do +mundo, essas estações que lhe mudam as scenas, os +frutos saborosos e delicados que rompem da terra, os vestidos que nos +cobrem, o ar que respiramos, o somno que nos restaura as +forças, os prazeres que nos lisonjeiam os sentidos, os +prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do +coração, são outras tantas esmolas, +com que Deus proveu desde a eternidade ao homem, sobre fraco e +indigente, ingrato a tantos beneficios. <br /> + +<br /> + +Na sábia disposição com que de mais o +Eterno Padre arranjou todo o grande systema da Natureza, +¿não nos deu Elle uma grande +lição de caridade, estabelecendo em todas as suas +obras uma encadeacão successiva e mutua de dependencias e +soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares liberalisam as suas aguas +ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em chuvas, a terra +ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos mares; +e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo se +conserva, se reanima, se restaura. <br /> + +<br /> + +D'esta mesma sorte, não só as grandes +porções da Natureza, mas ainda os seus minimos +individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e os +soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes +á existencia dos outros. É assim que, por toda a +parte envolvidos pela Natureza, do meio da qual nos elevamos, como +obras as mais perfeitas, não só nos +não +devemos resvalar a uma condição inferior +á da +propria materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade, +quanto nos devemos +<span class="pagenum">[129]</span> +considerar +como entes, cuja conservação é mais +importante para a manifestação da gloria de Deus. +<br /> + +<br /> + +O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia, +desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de +felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o +seu sangue, lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o +Céo e a terra. <br /> + +<br /> + +O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de +santificação, e nos accode com esmolas continuas, +desde que abrimos os olhos, até que deixamos o mundo; pelo +baptismo assenta os nossos nomes no livro da vida; confirma-nos e +augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas vezes +quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos +anjos; e accode-nos até com remedios temporaes, á +hora em que as portas do carcere se vão abrir, e a alma +sôlta reverter á sua origem. <br /> + +<br /> + +Mas não só pelo seu exemplo e meios +tão indirectos nos persuadiu Deus a esmola; não +é uma simples recommendação, +é um dos preceitos mais rigorosos:―<em>Ego +proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et pauperi qui +tecum versatur in terra</em>: Sou eu, é o teu proprio +Deus, quem te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e +ao pobre, que lida comtigo sobre a terra. Esta lei tão +clara, tão precisa e absoluta na sua letra, +¿terá acaso todos esses caractéres que +devem sempre manifestar-se em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e +seja o proprio Deus quem nol-a interprete. +<br /> + +<br /> + +<span class="pagenum">[130]</span> +É <em>justa e necessaria</em>: +necessaria muito mais ainda para o bem espiritual dos bem-feitores, do +que para o commodo temporal do soccorrido. A esmola, segundo +Jesu-Christo, é um acto de Religião, +conjuntamente com a oração e jejuns; é +pois +rigorosamente um meio expiatorio; é um commercio que temos +com Deus por meio do nosso proximo; é uma agua copiosa (diz +o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio das nossas iniquidades; +é uma santa usura, em que trocamos bens superfluos e +temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros +que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão +sempre clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas +que nunca teem de se estragar nem de esgotar-se, que nunca nos +serão roubadas nem podem ser consumidas; é um +seguro para o dia da +afflicção; é finalmente um arrimo a +que nos soccorremos para não cahir. <br /> + +<br /> + +Mais: é <em>util</em>, considerada +mesmo temporalmente para quem a dá. O Espirito-Santo o disse +tambem nos Proverbios: <em>Aquelle que der ao pobre, de nada +carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas, +cahirá tambem na pobreza.</em>―Eis aqui, meus +irmãos, eis +aqui patente o terrivel segredo da vingança divina, quando +aniquilla tantas fortunas que pareciam tão solidamente +estabelecidas: <em>Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil +inanes</em>. Sim, porque as maldições, +ó ricos do mundo, que o pobre vos lança em +segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas +imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca +d'elle arredará os seus +<span class="pagenum">[131]</span> +olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, sereis +ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos +thesoiros; <em>et sepultus est in +inferno</em>. E se as vossas riquezas vos são +consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso +inferno no mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa +quéda seja mais espantosa, ou para que os vossos +descendentes, que +não são culpados nas vossas iniquidades, +não +experimentem a punição da vossa dureza, e recebam +juntos esses bens a que irão dar um justo emprego. <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes +vós, pelo contrario, que homem algum se arruinasse +jámais pelas suas larguezas com os pobres? +¿Não é antes uma verdade, +confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as familias de mais +caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o +Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os +prophetas: «Se derramares toda a tua misericordia sobre os +necessitados, e encheres de consolação almas que +gemiam na afflicção, a tua casa se +tornará +como um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será +tão perenne como a fonte que a todos offerece os seus +licores, e por mais que a bebam nunca se esgota, nem cessará +de correr.» ¿E o Redemptor não disse +ainda mais expressamente: <em>Date et dabitur +vobis</em>? ¿Não compara elle a +retribuição com que o +Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades, +com uma medida avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os +lados, que se nos vasará para o regaço? +¡Oh! não duvidemos: +<span class="pagenum">[132]</span> +os bens +do misericordioso, repartidos pelos infelizes, são o azeite +e a farinha milagrosa da santa viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a +Escritura, comeu ella e a sua casa; e desde aquelle dia nunca lhe +faltou a farinha no pote, nunca o azeite do vasinho se diminuia. <br /> + +<br /> + +Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de +bençãos as Escrituras não veem +chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o +Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no +mundo, o livre das mãos dos seus inimigos, o allivie no +leito da sua dôr. O que dispersar os seus bens pelos pobres, +viverá de seculo em seculo na memoria dos homens, +abençoado será o seu nome, e n'elle se +despontarão as settas envenenadas da calumnia. <em>Justitia +ejus manet in saeculum saeculi. Exaltabitur in +gloria. Ab auditione mala non timebit.</em> ¿Que +significam tantas promessas, meus irmãos, tantos premios, +tanta abundancia de bençãos, as glorias do +Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem benefico? +¿Que sacrificio tão importante se vai exigir +d'elle? ¿a que lances heroicos o querem persuadir? +¿que perdas soffrerá +que cumpra contrabalançar por premios de tão alta +valia? ¿Exige-se-lhe a mendicidade e a miseria, em que +viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um exterminio de todas +as paixões? ¿uma +abnegação de todos os prazeres? ¿as +mortificacões da penitencia? ¿a constancia e +morte gloriosa dos martyres? Não, não. +Pede-se-lhe só amor e provas +de amor para com seu irmão; pedem-se-lhe só +lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe +<span class="pagenum">[133]</span> +intima que dê, com prejuizo +seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas +empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e +patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para +lhe pedir só as migalhas superfluas da sua meza. <br /> + +<br /> + +¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a +vossa! ¡Remunerardes como sacrificio uma virtude, e +acceitardes como virtude o que nada custa ao +coração! +¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres +mais doces da consciencia! ¡Considerardes em mais do que +homem a quem só cumprìu com deveres da +humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que +trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já +nol-o havieis dado com essa +condição! ¡Acceitardes, finalmente, +esses bens frageis, temporaes e caducos, esses bens que só +devemos á vossa liberalidade, como moeda correspondente em +valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros infinitos! <br /> + +<br /> + +Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos +nos deveriamos abysmar, vós me chamais, meus +irmãos, vós me fazeis descer ás +profundezas da vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um +segredo bem importante. ¿E não adivinho eu quaes +teem sido, desde que enunciei o thema e objecto do meu discurso, os +pensamentos de muitos de vós, da maior parte, ou antes de +quasi todos os que me escutais?―«Feliz (exclama cada um de +vós, no seu coração) feliz de mim, se +eu podera soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me +veria de posse do Céo. Porém Deus não +me destinou +<span class="pagenum">[134]</span> +a mim esses premios e +bençãos; e se a esmola fôra um meio +indispensavel de salvação, +eu me perderia sem remedio, não por minha culpa, mas por +culpa da fortuna. Todos os meus bens escassamente chegam para a minha +sustentação e da minha +casa.»―Assim pensais; assim buscamos pretextos para illudir +todos os preceitos até os mais terminantes e expressos da +Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua presença, +dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa propria +crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu +do Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos, +que ahi estão comvosco. Folgais talvez com a sua +confusão; e a doutrina da caridade, a doutrina de tanto +amor, só serve de despertar em vós a insolencia, +o desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa +semente se perca d'este modo; que só a acceite um pequeno +torrão de terra, e que em vez de produzir os bellos frutos +do Senhor, a maior parte do seu campo, ou quasi todo elle, continue a +só desatar-se em cardos e espinhos. Afugentemos as aves +d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e não +consintâmos +que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por mais pequeno, da +sua terra. <br /> + +<br /> + +Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem +excepção, vos achais obrigados a ella; e esta +universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o seu segundo +caracter de lei. <br /> + +<br /> + +Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a +outra do coração. +<span class="pagenum">[135]</span> +Tão longe vai, pois, a esmola +como a caridade; e para podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos +possuir um coração. ¿Não +tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por +tantos famintos. ¿Escassamente vos chega o pão, +mas tendes algumas roupas superfluas? Cobri com ellas tantos +nús. +¿Nada tendes hoje? Promettei para ámanhan; enchei +de esperanças o seio vazio de todas as +consolações. +¿São a caso insignificantes os bens que vos +restam para os frutos da caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que +deis só um copo de agua fria a um dos mais pequenos do +mundo, lembrando-vos de que elle é meu discipulo (vos diz +Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que +não ficará sem recompensa. ¿Nada +tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes que dar? +Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a +vossa fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não +mentis ao +desgraçado, se na verdade vos achais privado de todo o +genero de haveres, ainda possuis muitos bens em que não +reparaveis. São os que existem dentro do vosso +coração. +Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre todas as +feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com +o vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que +os ricos sem elle, afogados nos seus thesoiros. Consultae esse +coração; ouvi como um oraculo as suas +respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus impulsos. <br /> + +<br /> + +¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi +á morada do rico. Entrae affoitos. <br /> + +<br /> + +Pintae-lhe as miserias do seu semelhante. +<span class="pagenum">[136]</span> +Mostrae que só os interesses da +humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os vossos +olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae as +eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos +corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com +o pão e com a carne, que vos deu essa Providencia, que assim +soubestes interessar. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o +trabalho dos vossos braços. Advogae perante o poderoso a +causa do fraco. Desfazei os enredos e calumnias, que ennegreceram vosso +irmão, que lhe roubaram todas as +protecções. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Congraçae o homem +com o homem, a familia com a familia. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Visitae tantos +desgraçados, que gemem por esses carceres; persuadi-lhes a +paciencia, e a resignação evangelica; +confortae-os com palavras doces, com esperanças +consoladoras. Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com +mão carinhosa, os remedios; animae-o com os vossos sorrisos, +e fazei que troque os suspiros da sua dôr e do seu desalento +em suspiros de ternura, em expressões de confôrto; +que veja os Céos abertos, e que goze antecipadamente de +premios, que, se não fosseis vós, talvez +não tivesse de possuir. <br /> + +<br /> + +¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a +tantos meninos, e ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de +vosso proximo na presença, assim como na ausencia. Ajudae-o +com as vossas orações. <br /> + +<br /> + +Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que +<span class="pagenum">[137]</span> +dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas. +São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca +se esgota para um christão. Tomae a vós uma parte +do seu infortunio, e elles ficarão menos oppressos. +¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do oiro! +¡De quantos e quantos modos, não sabe +reproduzir-se a beneficencia! <br /> + +<br /> + +Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia, +porque elles alcançarão misericordia. <br /> + +<br /> + +Eis aqui as bençãos e os premios do +Céo, recahindo sobre todos vós, sem +exclusão de um só. Ahi vos tendes tão +ricos, aos olhos do Senhor, como esses ricos, cuja dureza lamentaveis, +a cujos bens vos promettieis dar um melhor emprego, se os possuisseis. +¿Quem vos detem? ¿por que não correis +a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a +merecerdes essas bençãos e premios, +que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê! +¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o +zêlo, que murmura, que reprehende, que insulta nos outros a +infracção dos deveres, em quanto os julga +alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por +mais injusta contradicção, as fraquezas, que +não +perdoamos no mundo, sendo em nós, já as sabemos +desculpar; ¡e quantas vezes não passam de +desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão, +se a humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os +interesses do mundo, se as bençãos do tempo e da +Eternidade, se todos os premios de Deus, emfim, nada podem comvosco, +possam-n-o, ao menos, as suas ameaças, castigos e +maldições, +<span class="pagenum">[138]</span> +que vão constituir a sua +lei perfeitamente obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter. <br /> + +<br /> + +¿Recusais a misericordia de Deus? Já +não tendes que escolher. Só lhe ficaram as +vinganças. +Affastae-vos, ó santa familia de infelizes. Pobresinhos do +Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover fogo e colera do +Céo. Para além, para além, +é o vosso refugio, á dextra do Eterno Padre. <em>Venite +ad me, omnes qui laboratis, +etc.</em> ¿Não vos tinha elle dito que os +vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as +humiliações se lhes converteriam um dia em +triumphos? Sim, sim, ó +famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos, +¡jubilae! Vós nunca cessastes de ser os seus +filhos muito amados. Eu vou reassumir todos os thesoiros (vos diz elle) +que a minha Providencia repartira pelos vossos barbaros oppressores. Eu +lhes havia dado mais altos meios do que a vós mesmos de +alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos +custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de +os fazer ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o +vós, ó meus pobres; frutos que eu vou recolher e +guardar para sempre no meu seio; elles foram arvores estereis, que, +dominando toda a sementeira, a açoitaram com os ramos, a +damnaram com a sombra, a devoraram com as raizes; infecundas e nocivas +eu as arranquei em meu furor; eu vou lançal-as ao fogo. +Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no incendio eterno, que +foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu tive fome, e +vós me não déstes de comer; eu tive +<span class="pagenum">[139]</span> +sêde, e vós +me não déstes de +beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e +não me vestistes; enfermo e encarcerado, e não me +visitastes. Todas as vezes que despedistes, que calcastes os pequenos +do mundo, a mim, a mim o fizestes. <br /> + +<br /> + +¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença +de maldição estampar-se hoje com letras de fogo e +indeleveis nos vossos corações. Este Jesus +escondido nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos +templos, coberto de remendos, macilento, prostrado debaixo do +pêso de tantas cruzes, é um rei de majestade, +é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda a sua +cólera, e de cujas sentenças nunca +poderêis mais appelar. ¡Oh! compadecei-vos d'elle, +soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e humilhado, para +o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador. +¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o +coração me-diz que esta semente não +será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros +e consolações. <br /> + +<br /> + +Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda +é tempo. Aqui promettemos soccorrer-vos com o que +é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a +vós, cahido, a vós humilhado, para vos +não experimentarmos depois accusador, testemunha, vingador e +inexoravel. Antes que nos-accendais esses fogos de +maldicção, +já era nossos corações temos accezos +outros, que muito mais são vossos: os da caridade. <br /> + +<br /> + +Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em +tôrno da meza do vosso banquete celestial, aonde se assenta o +opulento Salomão +<span class="pagenum">[140]</span> +a par +do Lazaro mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador +arrependido com o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos +sôbre o vosso seio; e n'um abraço de eterno amor +nos-apertae a todos sôbre o vosso +coração paternal, por todos os +séculos dos séculos. <br /> + +<br /> + +Assim seja.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>INDICE </h3> + +<br /> + +<div class="breaks"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">I</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>A primeira noite na serra</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c1">5</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O sepulchro, ou historia de uma noite de S. +João</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c2">11</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Epistola a João Evangelista Pereira da +Costa</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c3">41</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O Presbyterio</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c4">43</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>A lyra do +desterrado</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c5">49</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Epistola a</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c6">51</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>A romaria</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c7">53</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VIII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O Domingo gordo dos +montanhezes</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c8">55</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IX</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O S. João nas faldas do +Caramulo</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c9">77</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">X</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>O mosteiro</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c10">81</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XI</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Santa Maria +Egypcíaca</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c11">91</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">XII</td> + + <td style="text-align: center;">―</td> + + <td>Epistola ao Desembargador +Deslandes</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c12">97</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td></td> + + <td></td> + + <td>Notas ao 1.º +volume</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c13">99</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td></td> + + <td></td> + + <td>Additamento</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c14">107</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"></td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + <td>Sermão da Esmola ou da +Caridade</td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c15">109</a></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h4>EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br /> + +Sociedade editora </h4> + +<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br /> + +<br /> + +<br /> + +<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br /> + +95―RUA AUGUSTA―LISBOA</h4> + +<br /> + +<br /> + +<b>Notas:</b><br /> + +<br /> + +<br /> + +<a name="6"></a><sup>[1]</sup> Verbi +gratia na quinta da Domanderes. +<br /> + +<div class="signature">Nota do autor.</div> + +<br /> + +<a name="7"></a><sup>[2]</sup> +Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos +com o gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz +descarregar uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos +ladrões, pelas +muitas perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.―<span class="smallcaps">Nota do secretario +Augusto</span>.<br /> + +<br /> + +<a name="8"></a><sup>[3]</sup> A +Castanheira +do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da +Feira, a uma legua de Agueda.<br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +do autor</span>.</div> + +<br /> + +<a name="9"></a><sup>[4]</sup> A +traducção de parte de Silio +Italico pelo Padre Francisco Manoel do Nascimento (Filinto Elysio.) <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +do autor</span>.</div> + +<br /> + +<a name="10"></a><sup>[5]</sup> +Traducção da escolha das Fabulas de +Lafontaine pelo mesmo. <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +do autor</span>.</div> + +<br /> + +<a name="11"></a><sup>[6]</sup> +(O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.) <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota +dos Editores.</span></div> + +<br /> + +<a name="12"></a><sup>[7]</sup> +Josué―cap. XXIV<br /> + +<br /> + +<a name="13"></a><sup>[8]</sup> +Juizes―cap. VI.<br /> + +<br /> + +<a name="14"></a><sup>[9]</sup> Foi este +fragmento publicado na <em>Revista +Universal Lisbonense</em> de 19 de Junho de 1845―Tomo IV, pag. +582. <br /> + +<br /> + +<div class="signature"><span class="smallcaps">Os +Editores</span>.</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="fbox"> +<h2>Lista de erros corrigidos</h2> + +<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se +listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div> + +<br /> + +<br /> + +<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4"> + + <tbody> + + <tr align="right"> + + <td style="width: 61px;"></td> + + <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;"></td> + + <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correcção</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: center;">Volume I</td> + + <td></td> + + <td></td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e1"></a> <a href="#p20">#pág. +20</a></td> + + <td style="text-align: center; width: 121px;">a +ém</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td> + + <td style="text-align: center; width: 135px;">além</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e2"></a> <a href="#p33">#pág. +33</a></td> + + <td style="text-align: center; width: 121px;">«o +salto)»</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td> + + <td style="text-align: center; width: 135px;">«o +salto»)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <a name="e3"></a> + <a href="#p36">#pág. 36</a></td> + + <td style="text-align: center;">opíma</td> + + <td>...</td> + + <td style="text-align: center;">optíma</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right; vertical-align: top;"> + <a name="e4"></a> <a href="#p56">#pág. +56</a></td> + + <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">Ines</td> + + <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">...</td> + + <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">lhes</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <a name="e5"></a> + <a href="#p69">#pág. 69</a></td> + + <td style="text-align: center;">fescenino,»</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">fescenino»,</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"> <a name="e6"></a> + <a href="#p94">#pág. 94</a></td> + + <td style="text-align: center;">acompapanhal-o</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">acompanhal-o</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: center;">Volume II</td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + <td style="text-align: center;"></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e7"></a> + <a href="#p45">#pág. 45</a></td> + + <td style="text-align: center;">dextra não</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">dextra mão</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e8"></a> + <a href="#p113">#pág. 113</a></td> + + <td style="text-align: center;">tarrestres</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">terrestres</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +</div> +</div> + +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by +António Feliciano de Castilho + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA *** + +***** This file should be named 28127-h.htm or 28127-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + http://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28127/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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