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+The Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O presbyterio da montanha
+
+Author: António Feliciano de Castilho
+
+Release Date: September 24, 2012 [EBook #28127]
+First Posted: February 19, 2009
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
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+
+
+ *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste
+ texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em
+ caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original.
+ No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.
+
+ Rita Farinha (Fev. 2009)
+
+
+
+Obras completas de A. F. de Castilho
+
+XIX
+
+O Presbyterio da Montanha
+
+VOLUME I
+
+[Figura]
+
+
+LISBOA
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
+95, Rua Augusta, 95
+1905
+
+
+
+
+
+OBRAS COMPLETAS
+
+DE
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
+
+VOLUME 19.^o
+
+
+
+
+VOLUMES PUBLICADOS:
+
+
+I--Amor e melancolia.
+II--A chave do enigma.
+III--Cartas de Ecco e Narciso.
+IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.)
+V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.)
+VI--A primavera (1.^o vol.)
+VII--A primavera (2.^o vol.)
+VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas.
+IX--Vivos e mortos (2.^o vol.)
+X--Vivos e mortos (3.^o vol.)
+XI--Vivos e mortos (4.^o vol.)
+XII--Vivos e mortos (5.^o vol.)
+XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.)
+XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.)
+XV--Vivos e mortos (8.^o vol.)
+XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.)
+XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.)
+XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.)
+XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.)
+
+
+NO PRÈLO:
+
+
+XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.)
+
+
+
+
+
+OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
+
+XIX
+
+O PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+VOLUME I
+
+[Figura]
+
+LISBOA
+
+Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_
+
+
+LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA
+Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47
+
+
+1905
+
+
+
+
+Advertencia dos Editores
+
+
+Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos
+antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa solidão de mais
+de sete annos de homisio na serra do Caramulo. A esses manuscritos, que
+ia publicar com o titulo de _O Presbyterio da montanha_, escreveu um
+prologo extenso, descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos
+de distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as saudades
+de um irmão, o melhor dos irmãos, o já então fallecido Abbade de S.
+Mamede da Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo
+concluiu-se, imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a
+publicar-se.
+
+O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
+da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
+fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer como;
+e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, são hoje
+considerados especies bibliographicas de primeira raridade.
+
+Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional
+de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, bibliógrapho, e
+escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, outro; a fallecida snr.^a D.
+Maria Peregrina de Sousa, poetisa portuense, possuia outro, que parece
+ter levado caminho; Innocencio no Tomo I do Supplemento do seu immortal
+_Diccionario_, não declara se era dono de algum; menciona a obra,
+apenas.
+
+Quanto á parte poetica do livro projectado, essa, não impressa,
+desappareceu em parte. Só algumas poucas peças encontrámos, umas
+inteiras outras incompletas; materiaes truncados da collecção. Salvando
+esses versos, cumprimos um dever moral, e outro literario.
+
+O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico de um edificio ainda em
+construcção, e já em ruinas; é inquestionavelmente uma das obras mais
+curiosas e instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a
+historia, a lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o
+_folk-lore_, d'aquella região alpestre, tão portugueza, mas tão
+desconhecida, tudo isso é tratado com amor, com o cuidadoso amor de um
+archeologo-poeta.
+
+Appareceu tambem uma _Introducção_ em verso sôlto a certo poema
+intitulado _O Sepulcro, historia de uma noite de S. João_, projectado
+pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito phantastico,
+infelizmente por concluir. Entendemos não menos intercalar essa curiosa
+Introducção, no seu logar chronologico, por varios motivos: dá-nos
+Castilho sob uma feição poetica diversa da sua habitual, e pinta-nos o
+estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia soffregamente o ar,
+a vida, os usos populares da montanha. O _Sepulcro_ é pois optimo
+contribuinte d'este truncado banquete literario, e fôra imperdoavel,
+apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do borrão original, que
+possuimos pela letra do amoravel secretario Augusto Frederico, para esta
+licção actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor
+ditadas em 1864.
+
+Além do _Sepulcro_, outras peças, portuguezas e latinas, já impressas
+nas _Excavações_, teriam logar aqui, pelo seu nascimento, pela sua data,
+pela sua indole; mas o autor preferiu collocal-as n'aquelle seu volume.
+Facil é ao leitor intelligente o procural-as.
+
+
+
+
+Á MEMORIA
+
+DO
+
+EXEMPLAR DE IRMÃOS
+
+AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO
+
+PRIOR DE
+
+S. Mamede da Castanheira do Vouga
+
+_Em testemunho publico e perenne_
+
+_DE_
+
+AFFECTO E GRATIDÃO
+
+Offerece
+
+_Antonio Feliciano de Castilho_
+
+
+
+
+PREAMBULO
+
+
+I
+
+O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o
+classifical-o podesse por alguma via valer a pena.
+
+Não é historico, nem ficticio; não é didactico, philosophico, nem
+descriptivo; não é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada
+de tudo isso, de tudo isso participa.
+
+Nem sequer é um livro; é uma congérie de pequenas coisas, todas mais ou
+menos obscuras, e quasi todas desconnexas, e de pensamentos não
+procurados, se não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem
+determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles
+banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que ha em casa,
+
+
+ _...dapibus mensas oneramus inemptis,_
+
+
+para hospedar a cortesãos que lhe passaram pela porta. Não procura
+enganal os]: com mãos limpas e coração lavado lhes põe diante o que só
+para si tinha tratado na sua horta, ceifado no seu chão, cevado no seu
+pateo, ou colhido do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem;
+algumas flores, já pode ser que as apresentará em vasos de barro; mas
+como vos assoalha com bom rosto quanto possue, não se vos alardeia de
+abastado, nem se compara com os visinhos de casas altas e balcões
+envidraçados. Como quer que vós d'elle o fiqueis, não ficará elle
+descontente de si mesmo á despedida.
+
+ * * * * *
+
+Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de carreira, parte apenas
+esboçado ou apontado, ha hoje doze, treze, quatorze, quinze, e dezasseis
+annos, sem pensar no Publico; para mero desenfadamento de horas
+abhorrecidas; para ajudar a correr mais depressa, em sitios tristes e
+ermos, uns tempos muito ermos, muito tristes, e para mim, que nunca bem
+atinei com o futuro, muito desconfortados de esperanças.
+
+Como todo o meu fim em fazer versos não era outro senão o fazel-os, de
+todo o modo me nasciam bem. Não tinham de apparecer entre gente; não os
+educava; não os corrigia; não lhes punha galas e arrebiques. Assim
+sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.
+
+Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que não tornasse;
+achei-os os mesmos que os tinha deixado: sinceros, mas incultos e
+semi-silvestres, como nados e creados que eram por entre troncos e
+penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por fora o mesmo que por
+dentro faz a consciencia.
+
+Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram filhos; contavam já
+annos: recordavam-me tempo de saudades; eram me saudades elles proprios;
+reconheci-os; dei-lhes o meu nome; com elle os apresento.
+
+
+II
+
+Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu que
+_se compõem_ para o Publico; e, bem hajam elles!: não levam á praça
+senão o que teem averiguado que por lá se deseja e se procura; põem de
+parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao interesse ou gosto
+alheio.
+
+Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.
+
+Não sou eu que vou para os leitores; são os leitores que teem de vir
+para mim, se as quizerem ler. Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo;
+as suas occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela minha rudeza; os
+seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da sua vida, pelo
+recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte desconhecida e
+pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só vista de cima pelo ramo de
+tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela andorinha cujo ventre branco
+ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar desde aqui
+(a fim de que não venham depois obrigar-me por divida que eu não
+contraio), que a unica deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar
+alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no interior da casa
+alheia, e nos segredos do visinho.
+
+É o que faz com que, por mais futeis que pareçam as memorias, que alguns
+escrevem de suas vidas, e as correspondencias epistolares, quando por
+acaso vão dar ao prelo sem terem sido ordenadas para elle, commummente
+são lidas com interesse.
+
+É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as achadas de
+antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma antiga vivenda
+particular ou casa rustica, onde os vasos e utensís do viver quotidiano
+veem logo suscitar na phantasia os costumes, o trato, e o ser intimo, da
+gente que ali houve.
+
+Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o ladrilho do
+forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos banquetes,
+dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas ressurgem tambem uns
+eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; confusos, mas a todos
+intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, de velhos e meninos, dos
+animaes caseiros, dos passarinhos e virações do ceo, do sussurro das
+plantas, dos sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e
+feneceu, deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e
+a lampada que allumiou calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.
+
+Os monumentos são artificiaes, e artificiosos; são estudados, e
+emphaticos; a historia que elles resam é fria. Mas cá, o romance que
+engenhamos, ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado, é
+todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.
+
+ * * * * *
+
+As _impressões de viagens_ estão sendo ao presente um genero de
+Literatura mixta mui usado e mui querido.
+
+Não admira: para os autores é facil; para os leitores, recreativo quando
+menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que todos temos muito ou pouco;
+sem cançasso nem más poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por
+aguas do mar; sem desabrimento de estações; sem saudades do que lá fica
+para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que é repetir
+algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a pessoa a viajar em
+corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando aonde ninguem a
+espera, nem festeja, nem conhece, e onde não ouve pelas ruas palavra nem
+som da sua creação.
+
+A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos
+atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam, com a nossa
+casa e familia, sem até nos demovermos do nosso quarto nem da nossa
+cama, se como Ovidio somos, que punha entre os regalos da vida o de ler
+deitado.
+
+ * * * * *
+
+Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o gosto de
+conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são extranhos, e não medir
+as distancias que nol os apartam, que esse, pelo contrario, é o maior
+desconto do peregrinar, ¿por que se apeteceriam mais as viagens á
+França, á Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás margens do Rheno, á Russia,
+ao Egypto, á China, ou ainda á Lua, do que a um qualquer monte da nossa
+terra, só conhecido de seus moradores e visinhos?
+
+¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em cujas faldas está
+assentado S. Mamede da Castanheira do Vouga, como um neto no regaço de
+sua avó triste e taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se
+abriu a arca depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.
+
+Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar montanhezes, agrestes porém
+bons; e tão bons, que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal
+productivos, nos seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e
+pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, entalados nos
+córregos, ou inclinados a scismar tristezas sobre algum rio fundo e
+triste, nunca se lembraram de vos invejar a vós outros as vossas cidades
+opulentas e festivas.
+
+Estes, com falarem portuguez, são para vós estrangeiros, ou quasi. Como
+taes, não vos despraza conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com
+quem por entre elles demorou annos, e de boa-mente lá iria agora
+enterrar os restos cançados da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe
+lá ficou em quieto desterro para todo sempre.[1]
+
+
+III
+
+A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região o novo
+Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade minha continuada e
+sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a sua pequena familia,
+de que era eu parte inseparavel.
+
+Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais florídos;
+Lisboa, a do nosso berço e da nossa infancia. Uma e outra me chamariam
+pelos affectos em qualquer parte do mundo em que eu estivesse; e não
+houvera eu valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que então
+cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos elle e eu, por nos
+sentirmos um como o outro tão encantados com o nosso futuro, já palpado
+e colhido ás mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os
+outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, mais
+amenas ou mais vívidas, por aquellas gentilezas incultas e mais poeticas
+de uma natureza quasi primitiva.
+
+ * * * * *
+
+Passámos n'uma bateirinha remada por uma velha moleira da margem, o
+viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje corrupto, segundo a
+tradição, o _bom fiar_ de certa moça mui santa, que junto d'elle vivia
+n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o trabalho da
+sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros lhe viesse o appellido,
+significando _pepinal_, ou _rio das terras dos pepinos_; pacifico rio,
+que então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas altas e
+verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de se deter
+enlevado na amenidade de tal painel.
+
+Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para um e outro
+cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes, só de longe a longe
+interruptas de um sovereiro torcido e mal posto, ou de um rebanho;
+terreno boleado e ondeado como um lago, que em meio de tempestades se
+houvesse petrificado por encanto. São já fronteiras do Caramulo.
+
+
+IV
+
+A freguezia de S. Mamede não se vê em parte alguma; é dispersa, e
+emboscada. A magreza da terra não dá para grandes espessuras de
+povoação.
+
+O aspecto do paiz, para quem só o atravessa é de inhospedeiro. Mas que
+se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea e
+desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em todos os
+corações. É porque a solidão é de si mais affectuosa, e a pobreza mais
+liberal e larga, que o rico povoado.
+
+Esta differença e vantagem que os moradores levam á sua terra,
+experimentámol-as nós ainda antes de chegarmos á egreja e residencia,
+sahindo a receber o seu Pastor novo não só os maioraes, se não quasi
+todo o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das
+cerejeiras e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde
+áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas brancas.
+
+A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para o seu adro
+muito verde, apresenta-se solitaria. Das povoações em que a freguezia se
+divide, nenhuma lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia
+parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de traz, como
+serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por entre os plátanos, que
+o portal do seu pateo toucado e semi-velado das mais espêssas, crespas,
+e lustrosas heras, onde jámais se esconderam e cantaram melros.
+
+Ambos os edificios ficam no meio do _passal_, antiga quinta «das
+Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do sinuoso
+deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, que ali
+teem o seu foco espiritual.
+
+Um grande silencio rodeia largamente a casa da oração. O presbyterio não
+lh'o quebra.
+
+Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo rustico mas
+espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da sua frontaria principal
+unicamente para o ceo, e para umas formosas e corpolentas laranjeiras,
+que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle clausuradas, o modesto
+domicilio, proporcionado pelo que sempre deverá ser o pastor de tal
+rebanho, não se retrahiu para mais longe, por traz da sombra do
+santuario, porque não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez
+mais precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa para além
+a esconcear, descer, e afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e
+espumifero rio de S. Mamede.
+
+Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a grande altura,
+por cima das aguas escuras e raro alcançadas do sol, communica esta com
+a ribanceira ulterior, não menos carrancuda, fragosa, arripiada, e a
+pique.
+
+Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até ao moirisco logar de
+Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da penedia d'alem-rio,
+entremeia apenas distancia, que, pela calada das noites, deixa ouvir de
+parte a parte os ladridos dos cães de gado, as cantigas do serão, e os
+alertas dos gallos a deshoras. E comtudo, aquelle _quasi-nada_ para os
+ouvidos e olhos, é para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem
+perigos.
+
+As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte, giram enleadas
+e perplexas, torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a
+esquerda, como espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a
+subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.
+
+Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, são os unicos
+entes vivos, que por ali se affoitam a tomar pé. Os seus frutos
+vermelhos, quando o vento lh'os despega maduros, vão sumir-se entre as
+espumas arrebatadas.
+
+Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes escarpas, com
+poucas braças de ceo por cima, e por baixo de si o rugir de tantas
+aguas, dá as sensações de um bello horror.
+
+Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas esquecidas para
+aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas vezes ahi me veio por
+tardes de Junho, em quanto, calado e estendido sobre as táboas, gastadas
+e rôtas da humidade, me gosava da viração transpirada pela corrente.
+¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma inspiração de religiosa
+poesia no fundador, a que fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço,
+como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja?
+¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão escura, tão angustiada,
+tão clamorosa, e com tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras
+inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo
+ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre, tão aberta, o
+dia inteiro, ao generoso sol dos campos, tão gorgeada a ambas suas
+portas de passarinhos, tão garrida de espadanas sobre as campas do
+pavimento, e nos seus cinco altares tão ridente de flores silvestres,
+symbolo da alma refugida das tormentas do mundo para o ineffavel asylo
+da Fé e das Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e
+transição dos dois extremos, a casinha do Pastor, alva como a confiança,
+verdejante e florida como as promessas, recatada como a esmola,
+inexhaurivel no seu celleiro como a Providencia, tácita como a
+meditação, com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas
+para a torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores
+de Deus para o firmamento.....
+
+O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a
+torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou Mamante, foi um
+humilde e obscuro pastor de gado na Capadócia, e do qual toda a Egreja
+do Oriente pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou
+martyr, por volta do anno 274 da nossa era.
+
+O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o
+vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres e pacificos
+arredores, para o Menino, já moço na valentia, ou para o moço, ainda
+menino na innocencia.
+
+Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos concertou.
+
+
+V
+
+Era a residencia, quando a ella chegámos, decrépita e caduca: apparencia
+de choça fabricada de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior;
+por fora negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de
+inuteis e desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor
+a havia em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado.
+
+A transformação foi rapida e completa. Os alpendres desappareceram. Na
+casa remoçada entrou por vidraças abundancia de luz. O pateo
+desafrontado foi revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de
+cal bem candida, logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro
+n'elle plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que
+n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já não existe na
+terra, o outro declina para o occaso, elle, medrando ainda, é já, como
+lh'o eu augurára nos meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu
+tronco cinco palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura.[2]
+
+O novo Prior, o Rev.^{do} snr. Padre Antonio José Rodrigues de Campos, a
+quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, varão de virtude, e
+espirito cultivado por Letras, filho d'aquellas boas terras, e amigo
+nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do nosso nome, conserva e zéla
+tudo aquillo com amor.
+
+É para mim delicia o considerar, que á sombra grande d'aquelle cedro,
+que eu regava todos os dias, quando um menino de tres annos o poderia
+ainda arrancar sem custo, lerá talvez, depois do seu Breviario, este
+livrinho das minhas memorias, em que deposíto o seu nome mollemente
+reclinado entre tantas outras saudades minhas.
+
+
+VI
+
+Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me escondeu
+sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de 1834, o ninho em que
+nasceram, sem pensarem em abrir o vôo que hoje abrem para o mundo, estas
+poesias montesinhas.
+
+Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo esboçado,
+peço-lhes ainda um pouco de indulgencia, para lhes dar a conhecer, por
+alto, os arredores.
+
+ * * * * *
+
+O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo por
+traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno, a escoar-se
+cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.
+
+Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e erma de
+Falgozelhe, se boleiam melancolica mas graciosamente as suas hortas, os
+seus pomares, a sua fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras,
+que até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois de
+povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada horizontal,
+por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, até ir
+bater, lá ao longe, na capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe
+servem de limite.
+
+Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias folgavam de
+avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades protectoras da
+Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo agricola como este, do que
+achar a casa do Creador, e a do seu dispenseiro, no centro da abundancia
+das messes, e saudal a com a invocação de um Pastorinho santo?
+
+O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. Sebastião, por entre
+duas grinaldas de oliveiras e vinha, o meu passal até ao adro; costeia a
+egreja e a casa pela direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai
+mergulhando para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura
+sombria da fonte sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja
+antiga, um altar de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas,
+assoberbada com um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um
+troço de lança enferrujado de musgo.
+
+
+VII
+
+Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé d'este altar, onde já
+ninguem ajoelha, sobre sepulturas que hoje são tremoços, e recordemos a
+obscura historia d'este sitio.
+
+¿Por que razão só as grandes ruinas se hão-de haver por merecedoras de
+attenção? Todo o passado é poetico; todo o evocar imagens humanas de sob
+a terra que pisamos, é proveitoso para alguma coisa. Nas solidões,
+mormente como esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha,
+e que onde hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de ninho
+quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos bons, e
+até festas.
+
+Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da
+Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela
+margem de cá ás aguas do S. João do Monte, que logo a diante troca o
+nome no de S. Mamede, um moço por nome Jorge, humilde de geração como
+tudo quanto por ali nasce e se cria, mas de coração alto e espiritos
+levantados.
+
+Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal uma velha, que o ouvira
+em pequenina a seus paes, que o tinham recebido não sabia de quem)...
+mas emfim, namorára-se, que o sabia ella, de certa moça de alem-rio,
+guardadora de cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro
+grau de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da sua vivenda entre
+penedos, levava, os dias com os olhos sempre içados aos cabeços de
+Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de serguilha, ou do seu
+sombreiro preto; e ainda não de todo malcontente, quando, por entre os
+penedos pardos e as urzes côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do
+precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que obedeciam á
+sua voz melodiosa.
+
+A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a esperdiçava
+cantando n'aquellas solidões, parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a
+estava captando com ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido
+entre as nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a interrompesse,
+porque não sabia de coisa mais de molde para o seu coração.
+
+Vel-a á sua vontade, não a via se não aos domingos na egreja; e nem
+então, que para esses dias tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias
+muito alvas, e tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe
+que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a
+fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das
+aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que prestem para
+communicar dois estados tão diversos.
+
+ * * * * *
+
+Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é poesia; e poesia
+não é vida. Ousou, e declarou-se a medo á sua formosa; não foi
+repellido. Affoitou-se a mais: ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario
+em confissão. O que entre elles se passou, não se sabe; taboas de
+confessionario não são carvalhos dodónios que chocalhem tudo. O que se
+sabe, é que a moça não tornou a apascentar para aquella banda, e que
+elle, pouco depois, deixou a terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos,
+sem dizer nada a ninguem, e não levando senão o fatinho que tinha no
+corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo dizem, era grande, e o
+seu amor, que não era pequeno.
+
+Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el
+Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus para onde, e
+para quê.....
+
+No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento,
+assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida, apegou-se
+com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse com tudo seu
+a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, uma capella
+da sua invocação com duas Missas por semana, defronte de Falgozelhe,
+onde vivia a noiva do seu coração, por cima da Talhada, onde tinha os
+irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o baptisaram a elle, e onde a
+avistava todos os domingos.....
+
+Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria muito em semelhante
+lance, em que as ondas formavam, por instantes montanhas tão altas e
+escarpadas, porém mais temerosas e feias que ess'outras, entre cujas
+quebradas, e por cujos visos, elle variára a sua infancia.
+
+Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.
+
+Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em Angeja, que em
+boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e nunca mais tornou a
+aventurar-se sobre aguas do mar.
+
+Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que ainda ali se
+divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi demolido, para ir servir
+como materiaes na edificação de parte da residencia, e da egreja nova,
+que já sabeis lhe estão visinhas.
+
+ * * * * *
+
+--¿Mas o fim de seus amores?--me perguntareis vós.
+
+Memoria é essa que eu tambem procurei, porém não consegui desencantal-a.
+
+O que só pude desenterrar da tradição, foi: que este mesmo Jorge viera a
+casar-se na freguezia; que tivera um filho nascido na póvoa da Talhada;
+que este se ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e arribára a Cardeal; em
+memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada da antiga, e
+mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito amadas, uma
+Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com braços em baixo e
+em cima, oleada de verde, doirada nas pontas, e n'ella pintados tres
+cravos, duas chagas, e uma corôa de espinhos.
+
+Vê se, venera-se, e commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na
+parede do arco cruzeiro da banda direita; e affirma-se, que na capella
+de S. Jorge permanecêra com egual honra em quanto ella durou.
+
+Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma
+póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro velho, e
+onde o que só fazia bulha no meu tempo era um pequeno moinho, rôto por
+todos os lados aos ventos e chuvas, foi, ou não, nascido do consorcio a
+que o Padre Vigario e seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não
+alcancei; e não quero invental-o. Provavel me parece que sim, quando me
+lembro do que a minha velha me contava d'aquelles amores, e o combino
+com a ideia que formei da constancia no bem querer dos moradores da
+minha serra.
+
+A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a Jorge, qualquer
+apostaria que o foi sempre. A fortuna entulhára com riqueza o abysmo que
+os separava; e S. Jorge, que não é Santo para meias victorias, havia
+forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto.
+
+Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de
+pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome
+ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os
+recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e beber
+á saúde da futura geração algumas malgas de vinho verde na sua casa da
+Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do Monte.
+
+
+VIII
+
+A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o antigo oratorio
+dos Condes da Feira; e a residencia, já depois duas vezes transformada,
+albergue do feitor que elles ahi tinham para lhes receber os fóros, e
+lhes tratar d'aquella sua quinta, chamada, como já tocámos, «das
+Limeiras».
+
+Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto,
+havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão, do Bispado
+de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de distancia
+da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para Alcafaz, pertencente
+agora á freguezia de Agadão, sitio ainda desfavoravel pelo estirado e
+descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem ermida,
+casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a sustentação de Parochia
+sobre si.
+
+N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos
+hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus
+amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a espessura das
+moitas então creava, segundo parece, como ainda hoje cria lobos. Folga a
+phantasia comparando e contrapondo aquelles tempos a estes, e reanimando
+o actual silencio com um reflexo e ecco da vida estrepitosa de outra
+edade.
+
+
+IX
+
+Explorámos as convisinhanças do templo e residencia. Estendâmos agora os
+olhos até ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico
+senhorio.
+
+ * * * * *
+
+D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o logar
+das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S. João Baptista, e sua
+fonte muito fresca.
+
+Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da
+Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa
+com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do
+Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que desde
+as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no alto do seu
+oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam, de extrema a
+extrema do Reino, quantas noticias o revolvem, sem que a boa da villa,
+nem outro algum dos logares que entram na sua abençoada confederação de
+rustica ignorancia, as adivinhem, nem suspeitem, nem cubicem.
+
+A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a humilde póvoa de
+Falgarinho, de não mais que oito visinhos.
+
+Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se,
+n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres
+pessoas.
+
+Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores,
+e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e agradavel
+quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de Nossa Senhora
+do Livramento.
+
+Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S. João do Monte,
+que a seus pés corre, está em amphitheatro o Avelal-de-cima, de vinte e
+quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da egreja.
+
+Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis, a
+meio quarto de legua está para o nordeste o Avelal-de-baixo, logarejo de
+quarenta e sete almas, e uma capella de Nossa Senhora da Conceição.
+
+Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo
+bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de observação.
+
+Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi toda a costa dos
+Ferreiros, passa-se o rio de S. João do Monte, junto ao seu confluente
+Alcafaz (nome arabe, que significa «o salto») nome que para ali está, ha
+mais de setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a sua
+origem, nem se corromper.
+
+Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa Talhada, de
+honrada memoria, berço de um Cardeal, de um fundador de capellas, e de
+um namorado de lei; tres celebridades para um ninho hoje de quatorze
+almas, coberto de loisas e colmo, e coroado de sarças e medronheiros;
+dista-nos um quarto de legua para nordeste.
+
+Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede (que
+toma este nome na juncção dos dois afluentes) se atravessa na ponte de
+pau que já sabeis, e onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a
+apanhar á fresca.
+
+Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas rochas, toma-se
+a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda, que em travessia
+da montanha, sobre a esquerda do rio, leva até ao casal do Fontão, de
+onze almas, sito na margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz,
+a quarto e meio de legua para nós.
+
+Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a encosta;
+e no cimo se encontra a povoação de Falgozelhe, de setenta e uma almas,
+posta a um quarto de legua da egreja, a les-sueste, quasi na extremidade
+occidental de um ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração é o que
+á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz.
+
+Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por outra ponte de
+pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo está o pequeno e vistoso logar
+da Falgarosa, de trinta e seis moradores, com uma sua ermida da Senhora
+da Boa-Morte, a tres quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o
+delicioso de seus pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de
+sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo,
+com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje rege aquelle
+rebanho.
+
+Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de
+se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S. Mamede.
+
+Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda, de cincoenta almas, com
+sua capella de S. Gonçalo, a quarto e meio de legua a sudoeste da
+egreja. Redonda se chama, por estar á borda de um leito semi-circular.
+
+ * * * * *
+
+Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas confrontações
+externas.
+
+Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do Préstimo; pelo
+poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da Aguada de cima, e
+Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão, filial, ou annexa, que aínda
+então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre si; paiz ainda por
+ventura mais serrano e variado, mas que eu não cheguei a descobrir.
+
+
+X
+
+O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um corpulento ramo
+do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em voz de Moiros quer
+dizer «abobada», ou montanha boleada á feição d'ella.
+
+Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros
+ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que merece. Mas,
+sobre que nunca o visitei, apesar de tão visinho, recearia apoucar-lhe a
+veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas
+noticias que d'elle tive.
+
+Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando d'entre as
+nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa em
+tempestades, em frutos magra, mas opíma em homens e mulheres de antiga
+tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da fome, e da nudez; é
+um paiz de selvagens christãos, para o qual as rudes terras do meu S.
+Mamede estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios
+poderia estar a antiga Attica.
+
+ * * * * *
+
+Dois monumentos accrescentam veneração ao Caramulo, quanto o podem
+mesquinhas obras humanas ás grandiosas moles naturaes.
+
+N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos principios d'este
+seculo, uma especie de zimborio de doze palmos de altura, pouco mais ou
+menos, de pedra muito bem lavrada e argamassada. Para quê, não dizem;
+mas dizem que por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da
+circumvisinhança, por occasião da guerra peninsular, commetteram
+demolil-o; mas só lhe poderam fazer pelo norte um pequeno estrago. Dura
+em pé, e só é accessivel do nascente por uma vereda estreita e tortuosa.
+
+O outro monumento não é menos enigmatico, e deve estar farto de ver
+passar seculos e desfazer-se gerações.
+
+N'uma arremeçada crista, a duzentos passos da egreja do Espirito Santo
+de Arca, se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de Arca». É
+uma desconforme loisa inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por
+esteios de pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo
+sido um arrancado para as obras da visinha egreja.
+
+Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura dezasseis; de
+grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte quatorze, pelo poente
+onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam de altura doze palmos,
+só da flor da terra para cima; de largura, um que fica para o poente
+apresenta nove palmos, tendo de grossura pelo poente palmo e meio, e
+pelo nascente um palmo. Um, que diz para o sul, tem de largura, por
+baixo quatro palmos e meio, e por cima tres, e de grossura um palmo de
+cada lado. O ultimo, que está para o norte, tem de largura, por baixo
+cinco palmos e polegada, e por cima quatro palmos e polegada.
+
+¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que eras, e para que fim,
+se alevantou ali aquella, que á phantasia se figura bruta meza de
+gigantes silvestres? ¿Sería obra de fortificação n'um systema de guerra
+desconhecido? Quasi que nem possibilidades o abonam. Uso agrícola,
+industrial, ou civil, nem a imaginação mais inventiva lh'o rastreia.
+Memoria de algum varão ou feito insigne, já a poderia ser. Mas então, ¡a
+que rudes tempos a não havemos de referir, visto como nem data, nem
+letra, nem escultura tôsca, nem vestigio algum de arte nem de
+architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira!
+
+Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais,
+quando se adverte na semelhança que tem com os altares druidicos, ainda
+hoje conservados em varias partes do que foram Gallias e Germania.
+
+Verdade é, que por estas nossas terras não rezam as Historias, que se
+estendesse aquella abominavel seita de sacrificadores de humanas
+victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que, perseguidos, como o vieram
+a ser, pelos Imperadores romanos, alguns druidas se refugiassem para
+este Occidente, e aqui, em retiros montesinhos, menos accessiveis a
+pesquizas e perseguições, professassem e mantivessem o seu culto, do
+qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade comparadas)
+não muito discreparia talvez a religião do Endovélico lusitano.
+
+Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem, se vale a
+pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro dos meus
+affectos.
+
+
+XI
+
+Nada concita aos logares veneração, como a antiguidade.
+
+Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além de Moiros,
+Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure, não rastejo noticia
+d'essas edades, com que fazer obra.
+
+Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve
+memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas terras, nem
+ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem tradições o denunciam.
+O solo enguliu tudo; e nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou
+letra para enigmas.
+
+Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra da sua lavoira, na primeira
+valleira que se encontra á direita do caminho indo para Agueda, se vê
+uma fiada de umas como torrinhas, que se estende por mil e quarenta
+palmos; das quaes torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e
+algumas porções deseguaes de muros esboroados a delir-se.
+
+E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se dá em uma
+furna chamada «a buraca da cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva;
+a qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de
+largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é geral fama
+que fôra aberta pelos Moiros.
+
+ * * * * *
+
+Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou se, dizem os
+netos, que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S.
+João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus thesoiros
+por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.
+
+N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a estancia, e
+que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro.
+
+Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente
+já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem medo os rebanhos para a
+sua visinhança; cantam aos seus hombraes trovas muito christans; e quem
+quer, lhe devassa (como eu fiz) o seu palacio subterraneo.
+
+A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina aberta, pelos Moiros
+sim, mas não para tirar oiro, que é sempre a primeira conjectura, nem
+para serventia militar, que é sempre a segunda, se não só, e
+prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de lá mana, muito fresca
+e saborosa, mas em pequena copia.
+
+ * * * * *
+
+Sobre as fortificações engenha cada um a sua hypóthese.
+
+Ha quem as supponha posteriores á invenção da artilharia, por se lhe
+figurar que só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros
+as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por ali outros
+vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares demonstra, que
+elles por lá viveram. E se por lá nasceram e se crearam, não podiam
+deixar de fortificar-se e defender-se contra commettimentos de inimigos,
+que é esse um instinto natural a todos os homens, mas nos homens das
+montanhas mais energico.
+
+ * * * * *
+
+Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto que o seu
+nome, se christão não é (como de certo não é), tambem por arabe se não
+reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga?
+
+Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que
+podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella serrana
+região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi deixaram menos rasto
+que em muitas das terras visinhas, seria porque a bruteza do monte era
+já então como hoje, que não dava meios nem licença para grandes obras.
+Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito faziam em
+tirar da terra pão com que se manterem; ¡quanto mais, erigirem
+castellos, pontes, ou mesquitas, de que se podessem admirar fragmentos
+depois de sete seculos!
+
+Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo de
+outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar
+d'estes, se acalentaram creanças com versos do Alcorão. Outras arvores,
+de que estas são remota descendencia, viram passar á sombra das suas
+copas esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda, e
+turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje é talvez
+poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e ficariam confusos e
+immoveis se revivessem para ouvir as da nossa lingua.
+
+Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos,
+que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de mim o são e
+serão sempre.
+
+ * * * * *
+
+Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes, manteem-se ainda
+antigos. As novidades das civilisações são como a escravidão, e os
+diluvios: tarde chegam a engulir as serras.
+
+A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucidez. Se
+os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se perdessem, pela
+conversação corrente d'aquellas aldeias e póvoas se poderia restaurar.
+
+Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos, phraseado, e
+construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um palrar de sésta de
+segadores entre carvalheiras rusticas, ao estridor das cigarras amadas
+de Anacreonte, do que entre o ranger dos prelos e o resfolegar das
+balas, n'um anno inteiro da melhor typographia de Lisboa.
+
+Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos, como
+o _nanja_ o _bofé_, o _canté_, o _quiçá_, e mil outros, sôam por lá sem
+extranheza em boccas de mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de
+namoradas de dezoito nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.
+
+Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós aos netos a das
+crenças e praticas piedosas, e com esta a de muitos seus erros e
+abusões. São os insectos e musgos parasitas da arvore robustissima da
+Fé. Abençoada a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os
+ramos ou cerceal-a pelo pé.
+
+O tempo vai fazendo a pouco e pouco o seu officio. Não ha curas nem
+reformações mais prudentes e certas do que as suas, quando á força lh'as
+não ajudam ou contrariam.
+
+Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade de
+apparições, phantasmas de almas do outro-mundo, Moiras encantadas,
+thesoiros escondidos e lobis-homens; e ainda hoje a mór parte dos
+moradores acredita nos esconjuros, feitiços, bruxarias, adivinhações, e
+virtudes de certas praticas e fórmulas, para curar ou empecer.
+
+Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis, dão comtudo
+sua côr poetica muito particular ao Povo, cuja simplicidade primitiva no
+viver e trajar harmonisam com taes simplezas da intelligencia.
+
+ * * * * *
+
+Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto
+vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos, são por
+ora totalmente incognitos na serra. A moda não exerce por lá as suas
+costumadas devastações de cabedaes, bons costumes, e saude. Os
+vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma
+uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal
+renova as suas folhas e flores.
+
+Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada ás costas das
+suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e tecida por suas mães,
+mulheres, e filhas, apizoada e tinta (quando o é) sem sahir da
+freguesia. Trazem grandes chapeos pretos desabados, grande bordão
+ferrado, menos para defensa, que para arrimo pelo resvaladio das
+ladeiras, e tamancos cravejados.
+
+As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra, sáia de
+burel de meio pizão, côr de pinhão ou preta, collete comprido justo, sem
+apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de burel mais apertado no
+tear, e sem pizão, que lhes serve de capa, lançado ao desgarre por sobre
+os hombros. A cabeça, cobrem-n-a, ou com o mesmo mandil, ou com um
+chapeo como o dos homens. As suas tamancas são menos grosseiras. O lenço
+de seda ao pescoço é, como as arrecadas e o cordão de oiro, o ultimo da
+magnificencia, e as flores da urze ou da carqueja o mais galante enfeite
+dos seus sombreiros.
+
+São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou romagens, quando
+calçam, com meias brancas, tamanquinhos de pregaria doirada com sua meia
+palla de marroquim vermelho, vestem roupinhas de pano burel fino, ou
+chita, põem gorjetes de filó, ou lenços de cassa bem pregados, e
+capoteiras de pontas compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as
+mais ricas e senhoras teem mantilhas e sapatos.
+
+
+XII
+
+A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita como a cultura do solo
+ingrato, só põe mira no essencial: em desenvolver os sentimentos
+naturaes e religiosos, o afferro á justiça e á verdade, os differentes
+amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o
+respeito á velhice e ao infortunio.
+
+As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas. Esses
+discursos de cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora
+deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam,
+inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e dizem-n-o como o
+pensam.
+
+Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para ser bons
+lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas mães, depois
+de terem sido bons filhos e boas filhas; e n'isso limitam a sua ambição.
+
+Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para
+folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras, em
+saraus esplendidos.
+
+Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam a nossa, que é melhor.
+
+Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um só livro em
+toda a freguezia; mas os louvores da sua moralidade dariam com que
+encher mais de um livro para nos envergonhar.
+
+A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o
+coração bem nascido dará gosto. A _mercê_ e o _vós_ de nossos maiores
+são tratamentos para os raros casos em que não cabe o _tu_.
+
+Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um dos outros.
+O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou á meza do mais rico;
+isto é, do que na sua tulha tem centeio ou milho para todo o anno; e o
+abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com os seus bois a
+geirasinha do indigente que a não pode pagar; e lhe leva pendurado na
+canga do arado o sacco da semente, para que elle tenha tambem, lá para o
+verão, que ceifar para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por
+instinto, que as lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas
+para quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as
+presenceia.
+
+É um povo agricola, que ainda não aprendeu a envergonhar-se do seu
+parentesco chegado com a terra. Entre elles se diz «lavrador», e
+«trabalhador», como em Londres «fabricante», ou «lord», em Roma
+«cardeal», ou «monsenhor», em Paris «sabio», ou «homem de Letras», e em
+Lisboa «deputado», ou «millionario».
+
+As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão, com o seu
+paquife de pâmpanos e espigas, e a letra _Ut operaretur terram, de qua
+sumptus_.
+
+ * * * * *
+
+¡Que impressão, a principio de espanto, logo de respeito, e a final de
+amor, me não fez o presenciar, como, ao revéz da pragmatica das cidades,
+o trabalho das mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior
+vergonha!!
+
+Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido o
+sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava (como as andorinhas
+do seu beirado para o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal
+roupido, carrear o adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na
+roça dos mattos entre os seus operarios. A estes, ¿que os poderia
+admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios, e dos Camillos, se alguem
+lh'a lesse, a não ser a admiração dos historiadores?
+
+ * * * * *
+
+As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não poderiam deixar de
+ser mais varonís do que os homens de muitas outras terras, e de todas as
+deliciosas.
+
+Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha, com o seu
+costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes, que vão
+formando semelhante á precedente a geração seguinte, só são passatempos
+do serão, á luz da candeia, das pinhas bravas, ou da fogueira, que
+allumia e alegra os penates afumados. Madrugam como a aurora para os
+trabalhos fortes. Os bois conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente
+jungir e guiar pelas suas mãos. Na vindima, carregam á cabeça cestos,
+que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as mãos alvas
+e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas ceifas, transportam á cabeça
+montanhas de espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan
+sob o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua
+grinalda de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em
+bemaventurança para dez familias. Nas renques dos saxadores e dos
+roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião não mais leve, deixal-os
+muitas vezes para traz, e envergonhal-os com seu riso de triumpho.
+
+Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O exercicio, Anjo
+custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra ao mesmo tempo
+no sangue a saude, que do sangue se côa ao leite, e do leite aos filhos.
+Seriam as amasonas da paz, se não tivessem ambos os peitos muito bem
+inteiros, e se os homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as
+lidas.
+
+ * * * * *
+
+Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz, que moralmente parece
+distar do nosso duas mil léguas, é a sujeição da mulher; facto que eu
+não moraliso, mas só historio.
+
+As mais graves, tanto como as mais somenos, não só á laia das Penélopes
+e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio
+até meia-perna; não só no tráfego de porta a dentro, na cosinha para a
+familia e para os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de
+ministrar de pé, como servas, á meza de seus maridos e filhos, nem em
+dias de festa ou bodo, quando a assistencia de hospedes mais poderia
+assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as. São sempre aquillo: sempre
+passivas, boas, e contentes.
+
+
+XIII
+
+Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão já minuciosas e pueris
+estas noticias; mas hei-de já agora continual-as, e seja com vénia sua.
+A outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns
+annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem renteado as asperezas
+das serras, alguem festejará encontrar estas antigualhas, nas folhas já
+por ventura rôtas e descosidas d'este livro.
+
+Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao commum da nossa
+gente; mas então hão-de ser antigualhas fosseis, e portanto com
+veneração duplicada venerandas.
+
+ * * * * *
+
+A indole da gente é de si commedida e pacifica.
+
+De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre ella achar
+amostras, que emfim, terra é, e não paraiso; mas nem tantas
+proporcionalmente, nem tão feias e monstruosas em geral, como em outras
+partes, e em quasi todas.
+
+Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com
+todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico;
+ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de trabalhar contínuo, para
+se despender em vida de enredos, corrupção e maleficios; nem tão
+extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o
+despeito, o despenhem de salto em salto até ao fundo da depravação. É o
+_inter utrumque_, a _aurea mediocritas_.
+
+Conservam inteira a Fé religiosa.
+
+Não lêem, nem conhecem, nem levariam á paciencia, jornaes que
+desorientam, desencantam, e põem o genero humano em guerra viva comsigo
+mesmo.
+
+E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura toda
+novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e venenosa, que por cá
+nos trabalha, e de cujos herpes adoecem até as familias, que a maldizem,
+e a repulsam da sua porta.
+
+Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de só provir da fragilidade, ou dos
+impulsos subitos da natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na
+consciencia remordimentos.
+
+Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a julgam;
+quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida como
+aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se
+conchava.
+
+D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais,
+resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e
+innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em graças
+exteriores, em tactica, em egoismo infernal e assolador. Nos amores
+ponhâmos o exemplo:
+
+ * * * * *
+
+Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e persuade:
+tendem á união, de que se originam as familias, e por onde a especie se
+mantém.
+
+Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior
+arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além do ocio lhes
+fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que estimulam e irritam as
+phantasias, para o casamento se namoram, e não por alardo; para goso do
+coração, e não da vaidade. Põem no merecer as diligencias que outros
+põem no conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar
+no repellir e despresar depois de saciados.
+
+Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de seducções, de emboscadas,
+enganando-se e sacrificando-se um ao outro.
+
+A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem se ufana em
+desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um theatro, ou
+no vão de uma janella de club, em noite de baile, um copioso canhenho,
+meio historico meio fabuloso, dos seus triumphos. Ali, ali é que as
+mulheres se podem gabar de ser amadas, pois o são sem disfarces nem
+encarecimentos; são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem modistas,
+nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem mestres, nem
+lisonjeiros, nem romances, as transformaram. São-n-o pelo que são, e não
+pelo que possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.
+
+Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão lá supprir lindezas do
+corpo, graças do animo, ou preciosidades do coração.
+
+Não é entre prestigios deslumbradores, n'um ambiente de calor
+artificial, estimuladas ou vencidas do exemplo, da occasião, do medo ao
+ridiculo, e da audacia emprehendedora, não é ao abrigo do estrondo e
+confusão de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras
+declarações; é ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de suas
+mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva com as parentas e
+amigas, em derredor da merenda, á sombra das carvalheiras.
+
+São amores que se não escondem, porque não teem de quê; amores que se
+exhalam debaixo do ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada
+capella do festejo, ao som folgasão da _Mirontella_ roncada pela gaita
+de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante do arraial.
+
+No progresso de taes inclinações é sabedora e consentidora toda a
+visinhanca; e esta mesma notoriedade defende os nossos namorados, tanto
+de se deixarem arrastar de seus mutuos desejos, como de se desvairarem e
+cahirem em infieis.
+
+Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações, não menos obrigado a
+lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia commetteria galantear
+a conhecida por _emprêgo_ de outrem, certo em que nenhuns lucros lhe
+surtiria o empenho, senão só motejos e descredito.
+
+D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma constancia
+verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o bem-querer d'estes
+Jacobs e d'estas Rachéis.
+
+¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser sinceras, hão de confessar
+que a escolha que n'um baile fizeram... só durou até que veio o baile
+seguinte! ¡Quantas, quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que
+pelas duas orelhas que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo tempo) se
+poderia contar, perguntando á sua modista franceza quantos vestidos
+novos lhes havia feito!
+
+Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno passado, demorar-se mais
+a encher a malga para certo segador que para todos os outros, e
+pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a pôr á cabeça a gavella das
+espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este anno;
+continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua mulher, os cuidados
+dos filhos e da casa a impidam de seguir, como antes, por passos
+contados, o seu gosto.
+
+Observação tão curiosa como verdadeira:
+
+Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós, que a
+variedade dos serviços rusticos tão a miudo lhes depara, rodeadas da
+Natureza por todas as partes, vendo livre o amor nas aves e nos
+rebanhos, favorecidas pela solidão selvática e pelo silencio, e pelas
+moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois crepusculos em cada dia, e
+em cada semana de inverno por tantas tempestades improvisas, como
+aquella que rendeu e debellou a vidual constancia de Dido e a piedade de
+Enêas, quando o hymeneu deu com o relampago o signal de suas bôdas, e as
+nymphas pelos altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de
+fragilidade como a de Dido por phenómeno se apontam; e annos e annos se
+devolvem, sem que um só se realise.
+
+Quando porém se dá, e vem a lume filho não de benção, o peccado de amor
+não se carrega de crueldade. O innocente não se faz victima expiatoria
+dos culpados, perdendo a vida entre as mãos de quem lh'a deu; horror
+nefandíssimo, inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro;
+nem tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas da noite, á porta
+lá ao longe de um desconsolado asylo, aberto pela misericordia em
+lagrimas ás lagrimas dos filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor
+para se crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes,
+e se finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias.
+
+Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo infanticidio moral,
+mereceria qualquer das minhas serranas um falso titulo, que ainda mais a
+faria corar, que a tácita confissão da sua culpa. Sabe renunciar os
+louvores com que d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu
+cadaver do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa;
+tudo... como lhe fique para consolação da sua queda o encanto ineffavel
+de apertar nos braços o seu filho. Se o mundo todo, se o proprio amante,
+a desamparasse, tudo tudo esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se
+afortunada. De não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a
+consciencia de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o
+sublime encargo, o natural sacerdocio da maternidade.
+
+Estas resignadas victimas, immoladas por um amor, por outro amor
+ressuscitadas mais interessantes, estas victimas, em quem a virtude,
+produzida pelo arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi
+em lustre a virgindade, são poucas; são rarissimas; custar-nos-hia a
+encontrar uma. Quando porém a desencantasseis, lembrando vos do que
+sabeis d'estas nossas grandes terras, fio-vos que bastante commiseração
+e respeito vos infundira.
+
+ * * * * *
+
+Casas de perdição para a mocidade, como nos povoados grandes se alinham
+em ruas e ruas, e até já por villas e aldeias vão surdindo, não se
+conhecem lá, nem se poderão tão cedo conhecer.
+
+Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de vergonha, a que
+se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em que as
+sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso, são victimas
+das victimas que ellas sacrificam.
+
+Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se
+transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade dos
+casaes.
+
+
+XIV
+
+Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve
+de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento.
+
+ * * * * *
+
+Os casamentos não são nunca determinados por considerações de haveres ou
+de jerarchia. O cálculo rala pouco os pensamentos d'estas gentes,
+acostumadas a viver com pouco, e a confiar muito na Providencia. As
+palavras _dote_ e _escrituras_ apenas seriam entendidas.
+
+Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e
+economia, a ajuntar para _uma cama de roupa_, uma teia de estôpa, outra
+de linho, uma peça de burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma
+panella e dois pratos, uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires
+de milho, e outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da
+fortuna, e trata logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.
+
+O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo commum, consta de um
+anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro uma camisa para o dia
+grande.
+
+Mal que este desponta, vê já de pé os dois afortunados, garridos e
+bizarros com o seu _aceio_ dos domingos: ella, sobretudo, flammante como
+uma Imagem, com arrecadas, cordões, e alfinetes sobre lenço de seda,
+mantilha lustrosa, ou chapeo de feltro novo com enfeites.
+
+As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e visinhas, que de
+boa-mente lhes acodem, cada uma com o seu _melhorado_, convencidas como
+estão (especialmente as solteiras) de que alguma coisa da benção
+matrimonial poderá vir apegada aos diches e galas que figuraram no
+apertar das mãos.
+
+Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se preparam de vespera
+para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que sendo florído tem
+mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do travesseiro
+(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem
+liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e lan; no que,
+vai grande condão de conformidade de animos, perfeição de ajuntamento, e
+dura do bem-querer; com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados,
+não faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.
+
+O pretendente, com os seus apaniguados, espera já á porta da noiva a sua
+sahida. Esta apparece emfim, como uma aurora da serra, incendida de
+pejo, e orvalhada com as lagrimas da mãe; e segue com o rancho, a pé,
+caminho da egreja, levando ás costas as bençãos do pae, em que ainda por
+lá se crê, a turbação no seio, e nos ouvidos os votos e resas de bom
+agoiro, recitadas com fé por alguma velha mais sabida.
+
+......................................................................
+
+A egreja está já á sua espera aberta, juncada de espadana, com o altar
+enflorado de fresco, e a alampada atiçada.
+
+A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas
+cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a
+todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do
+sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso sobre os
+deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo do templo
+não é interrompido com pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de
+tropa, brados de mendigos, assobios de rapazes, martellar de artifices,
+zabumbas de arlequins.
+
+Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai
+profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e
+afugentar as evocadas memorias de Lia, de Rachel, e de Rebecca.
+
+O que unicamente chega lá de fóra, é o chilrar de algum passaro sobre
+alguma cerejeira do adro, o amoroso carpir de alguma rôla na matta de S.
+Sebastião, ou a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no
+trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da
+Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da progénie de Adão.
+
+Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com mais clara e
+muito mais formosa benção.
+
+ * * * * *
+
+É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a Deus não ser
+mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de dois nomes um só nome,
+como de duas metades distinctas se forma um todo inseparavel.
+
+É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra, solemnissimo, e que, por
+isso mesmo, se deveria por todos os modos pintar com indeléveis e suaves
+tintas na memoria, para que a sua imagem no meio das tentações podesse
+acudir como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.
+
+Quem se recordar de que proferiu o seu voto, e escutou com jubilo outro
+egual, onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de
+obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde com o sol
+entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e fragrancias
+naturaes com as virações, quem, repito, de tudo isto se recordar,
+ha-de-lhe parecer que Deus percebeu melhor as suas palavras; ha-de
+alguma vez devanear em si (mas que o não diga) que bem poderia ser que
+alguns Anjos estivessem ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a
+prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a mulher...
+
+ * * * * *
+
+Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos alvoroçados,
+e por entre os parabens e vivas dos assistentes, encontram, começando
+logo no adro, de praso a praso, por toda a extensão do caminho até á
+casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro, ramos de pinheiro, oliveira,
+roble, canas verdes, e quantas hervas e plantas bravas menos espinhosas
+ou mais floridas brota o monte.
+
+Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua toalha, e
+ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa, estão, postos
+de antemão pelos muchachinhos que formam a primeira frente do préstito
+triumphal, um prato de bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os
+quizer tomar; outro vazio, para a gratificação voluntaria, que ninguem
+deixa de lhe lançar.
+
+Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa, e industria mais esmerada;
+foram esses prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de
+seus afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes
+naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos
+padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem
+concertadas que podem, um á moça, outro ao mancebo; os quaes, logo a
+diante, de ordinario entre si os trocam; e junto á salva dos ramalhetes
+se vê um abundante refresco de bebida e comida para todo o
+acompanhamento, sendo o acepipe obrigado ás filhós de mel.
+
+Em cada uma d'estas _estações_ chove de todas as partes a saraivada dos
+confeitos; bebe-se á saúde dos «bem empregados» e «de quem d'ahi a nove
+mezes ha-de vir.»
+
+ * * * * *
+
+O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos convivas quantos
+admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as boas vontades
+prestes para quem se quizer apresentar.
+
+Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e
+o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse «o
+desposado» (contra a regra do nosso falar galanteador), porque o logar
+da direita se lhe dá a elle. A dignidade varonil em nenhum lance esquece
+entre aquellas gentes primitivas.
+
+N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e
+com um só talher, e bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer
+durar a refeição dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu
+bonissimo sentido, que não podia ser outro senão representar a
+communidade e harmonia intima, em que esperavam e professavam de viver.
+
+ * * * * *
+
+Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas, rabecas, e ferrinhos,
+dando se a rôdo comer e beber aos tangedores.
+
+Em quanto dançam, algumas moças donzellas se furtam subtilmente á
+companhia, para irem enfeitar de flores o leito nupcial, desfolhar entre
+os lençoes rosas de cheiro (se a estação as dá), e guarnecer a roca e
+fuzo symbolicos de amores perfeitos.
+
+Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita
+da quinta que é meia-noite, ha já muito que os obsequiadores bondosos
+teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas de calmaria de certo
+suavissimas, apóz um dia todo por fora e por dentro tão festejado e tão
+revôlto.....
+
+
+XV
+
+O nascer de cada filho é uma festa.
+
+Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e mostra a experiencia que
+se não enganam), crêem e repetem, que filhos ainda em casa pobre são
+riqueza; que por taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a
+lhes acudir com mais larga mão; e que a meza, por ter mais Anjinhos ao
+pé de si, se não ha-de fazer mais escaça, se não medrar á proporção de
+tão bons hóspedes.
+
+E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes um onus, um
+sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se ouvem mães e paes
+deploral-a como castigo e praga; lá na serra, onde ha trabalho
+proporcionado a cada edade, lá na serra, onde, como em enxame bem
+regido, todos os consumidores são productores; lá, onde só são
+necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes são os mestres, o
+exemplo lição, a laboriosidade e sobriedade herança; ninguem se
+atormenta sorteando na phantasia empregos ou futuros novos para a sua
+progénie. Lá os filhos são rebentões, que alegram, remoçam, e espécarão
+a seu tempo a velhice decadente de quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.
+
+ * * * * *
+
+Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres experimentadas em taes
+lances, que supprem a falta de parteiras e doutores, tem-se já prompta a
+canastra que lhe ha-de servir de berço.
+
+Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é
+escrupulosamente velada, para que não venham bruxas malfazejas a
+chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol candeia bem experta; e
+ao clarão d'ella, com os olhos fitos no innocente, e quasi sempre em pé
+para que as não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as
+amigas da casa.
+
+Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão entoando com
+a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do pé embalam brandamente
+o bercinho. Algumas folhas de oliveira ou palma, que figuraram no altar
+em Domingo de Ramos, queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam
+muito bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e
+janellas.
+
+ * * * * *
+
+Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de romanas crenças a
+graça, a fragrancia poetica, o saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu
+sinto.
+
+¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e tão
+christan como ella é, praticam o mesmo que os legionários romanos
+provavelmente ensinaram a nossas avós ha mil annos, e mais, pelo terem
+visto fazer nas aldeias da sua terra a suas mães e mulheres! ¡Cuidar que
+estamos vendo, com pequena degeneração, o que o mais rico poeta da
+Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente! E se não,
+oiçâmol-o, e julgareis:
+
+
+ Negreja ao réz do Tibre annoso Helerno,
+santo bosque, onde levam sacrificios
+inda agora os Pontífices romanos.
+
+ Ali nasceu outr'ora, ali vivia
+a que nossos avós chamavam Grane,
+casta Nympha, de excelsos pretensores
+pedida vezes mil e em vão pedida.
+Era seu exercicio errar nos campos,
+as feras perseguir com dardo agudo,
+e as redes emboscar nos fundos valles.
+Inda que aljava ao lado não trouxesse,
+criam-n-a irman de Phebo; o parentesco
+não poderia, ó Phebo, envergonhar-te.
+
+ Quando algum namorado a requestava,
+tinha prompta a resposta.--«Aqui,--dizia--
+ha nímia luz, e a luz dobra a vergonha...
+Se preferes entrar n'aquella gruta,
+sigo-te.»--Á gruta o crédulo voava;
+ella torcia o passo, ia á carreira
+das moitas na espessura homisiar-se;
+d'ali desencantal-a era impossivel.
+
+ Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;
+combateu lhe o rigor com brandos rogos,
+e a sólita resposta obteve em prémio:
+que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe;
+segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge.
+O que lhe fica apóz vê Jano. Ó louca,
+no usado esconderijo em vão confias;
+olha como t'o observa, e t'o devassa.
+Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus braços;
+eil-o comtigo a sós na cava penha,
+onde havias buscado o teu refugio.
+
+ Saciados os sôffregos desejos,
+--«Em paga d'este goso--exclama o Nume--
+dos quícios a tutella eu te confio;
+pela honra perdida esta conserva.»
+Assim falando, candida varinha
+lhe entrega, com que os tétricos asares
+das protegidas portas afugente.
+
+ Existem de brutal voracidade
+umas infames aves; não já essas
+que de Phineu a meza espoliavam,
+mas da mesma relé: cabeça grande,
+fito olhar, bico audaz, grizalhas plumas,
+garra adunca; esvoaçam pela noite;
+onde encontram creança ao desamparo,
+que a ama deixou só, prestes a empólgam,
+arrancam-n-a do berço, e a dilaceram.
+Diz que as lactentes vísceras co'os róstros
+lhes picam, lhes devoram; teem as fauces
+sempre repletas de sorvido sangue.
+Do _estridor_ com que as trevas alvorótam,
+lhes vem o nome: _estriges_ se nomeiam.
+
+ Estas pois, quer de si nascessem aves,
+quer em aves, de velhas que antes foram,
+fatal conjuro marso as encantasse,
+penetraram de Proca no aposento.
+
+ Com cinco soes de edade, o innocentinho
+era ao bando ferino egregio pasto.
+Já co'as gulosas linguas ferem, sugam
+o tenro peito nu; sôam do infante
+os consternados trémulos vagidos,
+com que, á falta de voz, auxilio pede.
+
+ Corre a ama assustada; acha nas faces
+do caro alumno seu lavado em sangue
+das brutas garras os crueis vestigios.
+¿Que fará? vê-lhe o rosto exangue, murcho,
+que na côr arremeda as tardas folhas
+já do rígido inverno bafejadas.
+
+ Corre a Grane; o successo lhe relata.
+--«Cobra valor--a Nympha lhe responde;--
+viverá teu alumno.»
+ Entrada ao berço,
+acha a mãe, acha o pae, sôltos em pranto.
+
+ --«Eis-me; enxugae as lágrimas--exclama;--
+vou tornar-vol-o são.» Diz, e tres vezes
+de medronheiro com frondosa vara
+fere da estancia as portas; outras tantas
+co'a mesma vara o limiar sinála;
+rega o ádito; as aguas com que o rega
+encerram salutifera mistura.
+Entranhas cruas de bimestre porca
+toma nas mãos, e diz:
+ --«Aves da noite,
+í-vos, deixae as puerís entranhas.
+N'esta pequena victima tenrinha
+o tenro pequenino aqui resgato;
+é coração por coração; tomae-o;
+por visceras são visceras; redima
+esta existencia immunda outra mais nobre.»
+
+ Finda a sacra oblação, corta o deventre,
+e esmiunçado o vai pôr aos ares livres,
+prohibindo do rito ás testemunhas
+olhal-a então ninguem; por fim colloca
+a vara de oxiacanta, o don de Jano,
+na janellinha que dá luz ao quarto.
+
+ Consta que desde então não mais volveram
+ao berço aves ruins; saude, cores,
+tudo refloresceu no innocentinho.[3]
+
+
+ * * * * *
+
+O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois côvados de
+baêta encarnada ou verde, vinho, assucar, arroz, um cabrito, ou peixe,
+conforme o dia em que acerta. A madrinha dá um vestido, duas camisas, e
+uma touca. Cada um dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu
+brio.
+
+Este dia é quasi tão festivo como o do casamento, pois n'elle se cumpre
+a benção que no primeiro dia se recebêra, e está salvo o interessante
+pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que as bruxas
+nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo do peccado.
+
+
+XVI
+
+Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e baptisado,
+cada povoação celébra a sua, pública, no dia do Orago da sua capella.
+Tem fogo do ar e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns
+aos outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o consentem, andam
+já desde a vespera á tarde pelo adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o
+tambor, e despovôa-se a visinhança com o chamariz do fogo de vistas
+nomeado de _armação_, ou _parreira_.
+
+Por esta occasião, nas casas principaes, isto é, nas menos apertadas,
+saltam-se até a meia-noite as danças, pela mór parte cantadas, do bom
+Portugal velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle vivente archivo
+de antiguidades, nem já, quasi, os nomes se conservam. São o _caracol_,
+o _Senhor da serra_, o _lundú_, ou _landum_, o _escalhabardo_, a
+_ribaldeira_, o _Francisco bandalho_, etc.
+
+A excitação do saltar, a virtude inspiradora do vinho verde, e um
+poucochinho o natural desejo de brilhar diante das raparigas e dos
+rapazes, fazem ás vezes com que ahi appareçam, como nas romarias, como
+nos serões dos lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de
+gosto, poetas e poetisas que trovam de repente, e á porfia, por espaço
+de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.
+
+ * * * * *
+
+Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.
+
+Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem, estão em pé,
+um diante do outro, no meio da roda dos ouvintes. A toada de que se
+ambos servem, é sempre das mais populares, e vai toda remançada, para
+que as ideias e rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou
+desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de declamação
+accentuada.
+
+O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro versos,
+correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou consoantes; isto
+é: usam das quadras correntes em todo o Reino.
+
+Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme
+lhes convém.
+
+Principiam (é obrigado) por uma especie de elogio, ou vénia, ao dono da
+casa, se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se é em
+terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou dos seus proprios
+amores; e d'ahi, muitas vezes sem transição, saltam para um genero entre
+elles muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico fescenino», se, de
+envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como entre os Antigos, os
+dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se empulham e desempulham,
+como os dois pastores virgilianos, com surriadas de impropérios sempre
+ao galarim, sem que o fogo das palavras prenda nunca nos corações. Com a
+mesma feição com que dizem, com a mesma ouvem; e tão avindos saem da
+contenda, como n'ella entraram.
+
+Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da
+sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por
+mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e que tudo
+quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.
+
+ * * * * *
+
+Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes
+porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é: que a primeira metade
+de cada quadra tem frequentemente um sentido diverso, e desconnexo do
+sentido da segunda metade.
+
+Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma verdade vulgar,
+uma imagem campestre, a exposição succinta de qualquer facto, mas sem
+relação alguma com o assumpto que se versa, o qual só nos dois versos
+ultimos apparece.
+
+Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em pratica de amigos com
+meus leitores:
+
+
+O loireiro bate bate,
+que eu bem o sinto bater.
+Para comigo cantares
+has-de tornar a nascer.
+
+Á couve se come a folha;
+come-se a raiz ao nabo.
+Só te espero ver casado
+sendo mulher o diabo.
+
+Navio d'el-Rei é grande,
+é grande e chega ao Brazil.
+Se namorares alguma,
+não seja á luz do candil.
+
+Sequidão cria o centeio,
+frescura cria os repolhos.
+¡Quem me estreára comtigo,
+menina, os lençoes de folhos!
+
+
+Já se vê, por estas amostras, que a improvisação não é tão difficil
+coisa, nem para tantos encarecimentos, como a teem feito alguns
+viajantes, d'estes que só viajam no seu quarto, embarcados na sua
+poltrona.
+
+É por cá o mesmo, que provavelmente será por toda a parte, sem exceptuar
+a Italia, com que tanta bulha se nos faz.
+
+
+_Al porto di Livorno
+è giunto un bastimento.
+Cara, morir mi sento!
+mi sento, o Dio, mancar!_
+
+
+
+XVII
+
+Muito, porém, se enganára, quem inferisse que toda a poesia dos meus
+serranos é de egual teor; porque, sobre conservarem muita xácara de bons
+tempos, com as suas lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices e
+aprasiveis como ellas (o que já não seria pequeno cabedal), cantam, e ás
+vezes engenham com singular felicidade, quadras repassadas de amoroso
+affecto e graça natural, que um poeta de nome não enjeitaria.
+
+E ¿que muito? ¿Por que não haviam de nascer estros por ali, onde ha
+tanta Natureza, tantos sitios inspirativos, tão bons ocios na solidão,
+tantos amores (¡e amores tão bem empregados!), e tão largos horizontes
+para a saudade!
+
+¿Por que não haviam elles de nascer, quando até pelas nossas
+encruzilhadas mal cheirosas e escuras, pelos nossos botequins fumosos e
+azoinados, pelas casas d'essas ruas feias, onde olhos e ouvidos se
+perdem e afogam em prosidade vil, rebentam, viçam, e não raro florejam,
+talentos de estimação e de valia?
+
+Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades, muitas
+coisas lhes empecem (não falando no desamor que os esfria, e nas parvoas
+invejas que os matam); aos montanhezes, afóra a Natureza, que lhes
+abunda, tudo mais lhe mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha poesia,
+como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde pastor, appareceram as
+Musas, não invocadas, para o bemfadarem.
+
+ * * * * *
+
+¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não esperdiçam, e, por falta de um prodigio que
+os desencante, fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!
+
+......................................................................
+
+De uma pobre mocinha ovelheira posso eu dizer; que por tardes de verão
+muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado nos degraus da
+capella de S. Sebastião; ella ali perto, cantando e fiando em pé á
+sombra de um sobreiro, no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como
+bem se pode crer, ¡enfeitiçados com a placidez de tão livres horas em
+logares tão fugidos, tão sobranceiros ao mundo todo!
+
+De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos
+corados, não da memoria se não do espirito; e o espirito d'ella,
+estava-se conhecendo que lhe residia no coração, tão bem, tão bem, tanto
+a seu grado, como em estufa bem quente uma planta mimosa, que um ameaço
+de frio mataria.
+
+Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca ouvira de obras
+de poesia senão as cantigas da sua terra, o murmurinho dos seus rios; de
+madrugada a cotovia perdida pelos altos do ceo; ao meio-dia as porfias
+das cigarras; ao descahir da tarde o badalar longinquo das Ave-Marias;
+ao cerrar da noite o regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus
+moradores, os seus rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus
+rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a alma; de noite
+os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do seu namorado.
+
+Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha encarecer o que
+ella improvisava para as suas ovelhas, que a não entendiam; para mim,
+que me occultava com mil cuidados para não afugentar tão melodiosa ave;
+e para o ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se
+ao-pé da sua.
+
+Era a inspiração lyrica mais formosa, se não a mais remontada. Eram os
+objectos do seu limitado universo a mirarem-se na limpidez dos seus
+affectos, virginaes e namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras
+destillando-se cada uma da sua ideia com a propria côr, com a propria
+fragrancia que lhe competia. Era o metro a correr, sem quebra nem
+extravasamento, a flux, sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as
+rimas a vir poisar espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da
+outra, como em dois arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois
+passaros gorgeando. Era tudo, emfim, quanto a Arte requer, e só a
+Natureza pode dar aos seus mimosos
+
+......................................................................
+
+¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!... Até já as suas ovelhas se
+esqueceriam d'ella. Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais
+vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus poemas.
+Se ainda canta... já não é a terra quem a ouve. Remontou o vôo muito
+mais alto que o da cotovia sua mestra; engolfou-se por entre as
+scismadoras estrellas, que tantas coisas em segredo lhe ensinavam; e
+virgem entre os Anjos, irman entre seus irmãos, entretece a sua voz
+immortal no cantico sem limite
+
+......................................................................
+
+
+XVIII
+
+Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem menção da sua Musica.
+
+É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos dizer de muita; e
+conserva puro e extréme o primitivo sabor. Condiz com a Linguagem, com o
+trajar, com os costumes; seria excellente oráculo para consultarem os
+modernos compositores de operas nacionaes. Assim se temperariam para os
+nossos ouvidos, os quaes, posto que affeitos de annos para cá a
+peregrinas melodias de muito mais altos quilates, ainda comtudo se
+ageitam e conchegam melhor com as toadas sentidas e singelas da nossa
+creação.
+
+Nas boas horas fique a musica italiana, pois que entrou, e nos cahiu, e
+o merece; mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda, não se diga
+que aposentámos nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por trazer
+vasquinha e falar chão.
+
+Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o até (se já
+não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a granel por essas
+comedias e farças, em que fala gente do nosso sangue e dos nossos nomes.
+Mas uma vez ou outra (_al de menos por cortezia_, como dizem os meus
+serranos), deixem-nos ouvir em boccas patricias coisa que nos alembre
+das cantilenas de nossas amas, cantilenas que, ainda depois de apagadas
+da memoria, lá se ficam algures no coração, com quanto basta de vida
+para ressurgirem ao primeiro aceno.
+
+Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e
+arbustos exóticos da mais admiravel louçania; mostre-nos lá,
+emboscadinho na herva, o malmequer da nossa primeira adolescencia, a
+papoila retinta, que nos ria d'entre o verde da seára, quando meninos; a
+papoila e o malmequer muito mais nos hão-de conversar com o coração um
+só minuto, que todas ess'outras flores mais soberbas em toda uma
+primavera.
+
+Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que muita vez
+n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com saudades os descantes
+da serra.
+
+Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de difficuldades, a
+dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe revolve aos pés, a
+sumir os seus píncaros florídos e trémulos pelas nuvens, admiro-a,
+applaudo-a, e esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o coração.
+
+Porém certas cantigas que eu sei... não as applaudi, não as admirei
+quando as ouvi, mas senti-as repassar-me até ás fibras intimas;
+assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em
+substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do
+silencio.
+
+Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares,
+da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter
+encontrado.
+
+E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas não são algumas, até para
+orelhas forasteiras, quanto mais para as do seu molde!
+
+ * * * * *
+
+¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de condão! ¡Se, em vez de vos falar do que
+por vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos lá de subito, a
+beberdes com aquelles ares bonissimos aquellas cantorias agrestes, sem
+cultura, sem enxerto, luxuriantes de natureza, macias, avelludadas,
+rescendendo a amor e contentamento!
+
+Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas por mãos
+perítas, nos podiam abastar de muito oiro, que a Arte, batendo-o e
+cunhando-o a seu modo, poria em facil giro com geral proveito.
+
+O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas solidões,
+edificaria como Amphião novas Thebas, attrahindo e congregando com a sua
+lyra penedias e florestas.
+
+¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final. Mas por ora, o
+thermómetro do patriotismo assignala graus para baixo de zero.
+
+Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se teem voltado;
+e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo, querendo Deus; ¿mas
+quando? sabe-o Elle.
+
+Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer levantar-se.
+Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que se admiram em
+alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem pequeno custo, bem farta
+corôa grangeára.
+
+¿Que digo «custo»? ¿Onde ha ahi delicia como é o viajar caçador de
+Artes, por toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com
+agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto
+dos thesoiros que se tomam?
+
+ * * * * *
+
+Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus
+espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular feição de melancolia mui
+suave, era a extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes
+a perder de fôlego. É donosa coisa; mórmente pela noite, e ao longe...
+
+A explicação d'esta singular maneira deve ser, segundo me parece, o
+costume de cantarem muitas vezes a sós por lombas descampadas e cumes de
+oiteiros, d'onde a voz tem de correr, e correr, primeiro que tope com
+ouvido em que se hospéde. Outras vezes é ao-pé de estrépito de aguas,
+que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em paragens de eccos,
+nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si mesma namorando.
+
+ * * * * *
+
+De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro por estirado valle,
+ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras conversando por cantoria; e,
+graças a este methodo de irem fiando cada syllaba... comprida...
+comprida... entendiam-se (podendo apenas enxergar-se), como se estiveram
+assentadas mão por mão, e muito manas, á soalheira no seu aido.
+
+Sustentam-se estas entoadas conversações, em prosa inteiramente desatada
+de rithmo, e não obstante rimada, rimada por um modo tão insólito como
+facil.
+
+Exemplo:
+
+¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:
+
+
+--Ó ia, eu te digo ó Maria,
+Ó iga, que se tu és minha amiga,
+Ó á, botes as cabras para cá,
+Ó enda para me ajudares a comer a merenda,
+Ó eijo, que tenho aqui brôa e queijo,
+Ó ôas, e umas maçans muito bôas.
+
+
+E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a outra
+interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão no colloquio por
+ter chegado a sua vez.
+
+
+XIX
+
+Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica.
+Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.
+
+ * * * * *
+
+As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos as de cada familia e as
+de cada aldeia) são: o Anno-bom, o Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e
+o Natal.
+
+ * * * * *
+
+O Anno-bom não é ao presente senão um rebate para comesaina rasgada, e
+se deitar uma can fora.
+
+As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado, já lá
+vão.
+
+Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras ao cabo se
+desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao romper do primeiro sol do
+anno os cachopinhos de cada povoação, todos em bando, o mais bem
+arreados que podiam, com suas sacólas, ou alcôfas, ás costas, a cantarem
+de porta em porta, e, percorrido o logar, de aldeia em aldeia, até se
+lhes acabar o dia, umas trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de
+campanudos louvores á bizarria do pae ou mãe de familias, e desfechando
+sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou pão branco, para a
+ajuda do _refestêllo_; contribuição com força de Lei, mas de que todos
+se desempenhavam á boa-mente.
+
+ * * * * *
+
+O Carnaval, é como ainda nós por aqui o conhecemos nos seus dias aureos,
+tríduo de folia desatada, guerra porfiada e bem rida de todos contra
+cada um, e de cada um contra todos.
+
+São as pulhas, as peças, os esguichos, os pós, a laranja
+
+
+ .....que derruba o chapeo,
+
+
+de que o bom Filinto com tanta saudade se lembrava lá em París, o
+rabo-leva de tripas entufadas, a mão de ferrugem da chaminé com azeite
+pelos fucinhos, as estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho com
+sal, as filhós com trapos, e todos os mais adminiculos, que no ritual
+classico se conteem.
+
+Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se não veja povoa nem
+viva alma, duas coisas se hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e
+apupar; toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra são
+descargas de espingardaria. Ninguem tem caçadeira velha em termos de dar
+fogo, que não saia com ella a salvar.
+
+N'esta occasião (não sei por quê) o rio de S. Mamede parece marcar
+fronteira entre duas nações inimigas; a metade cíterior, e a metade
+ulterior da freguesia, formam dois exercitos, que, disposto cada um na
+sua banda pelos altos mais patentes e convisinhos aos seus adversarios,
+para lá lhe atira por cima da torrente, sem folga nem misericordia,
+turbilhões de chascos, de apupos, de rugidos de buzinas, de buxas
+accezas, e fumarada. Estremece a terra sob os pés; retumbam pelo ouco
+dos valles, pelas refolhadas e sinuosas lapas das ribanceiras, os
+rolantes trovões centuplicados...
+
+O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado asninho,
+visitando as povoações, com barbas brancas em faces avinhadas, e canna
+em punho para se abordoar, facil, prasenteiro, com séquito de rapazía a
+abuzinar, e de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem poderá
+ser o próprio Sileno das bacchanaes, metamorphoseado pelo tempo,
+constante parodiador das suas mesmas obras, pois não é necessaria grande
+perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se conciliaram
+diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as saturnaes; por
+embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e quejandas (o numero era
+folgado).
+
+As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos redís e
+apriscos, para se estarem regalando ao banquete da familia, teem um
+Carnaval particular, um Carnaval nómada e silvestre, cosinhado e comido
+ao ar livre, e a que ellas chamam «o seu gôrdo».
+
+O _gôrdo_, para o qual de tempos se andam aparelhando, é feito por
+varias d'ellas em commum, convidadas e admittidas outras amigas, e
+algumas vezes tambem alguns moços seus parentes.
+
+Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um gôrdo; e ainda
+agora me está sabendo.
+
+Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso
+de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um vestíbulo de
+areia parda e fina, á borda da agua.
+
+
+ Nympharum domus.....
+
+
+não lhes faltando os competentes
+
+
+ .....vivo sedilia saxo.
+
+
+O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os
+comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria
+folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de leite
+recem-mugido.
+
+Terminaram com uma dança no areal, por não haver melhor, e debandaram,
+cada uma atraz do seu gado, quando já lá por cima branquejavam
+estrellas. A fogueira serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na
+corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as
+levaria.
+
+Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos, parecidas com
+o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas, travada com ellas,
+uma usança ha ali, que só ali ha, e que eu aponto, não só porque me
+ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não porque dará luz para se
+entender o poema que a diante vai, com o titulo de _Domingo gordo dos
+montanhezes_.
+
+N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S. Sebastião, que já
+sabeis orla o passal pela banda do poente, todos os moços solteiros da
+freguesia, a plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o
+quê, e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para isso a
+Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para suas
+terras a folgar.
+
+Nem o introductor, nem o tempo da introducção d'esta pratica, são já
+hoje conhecidos. É uma tradição piedosa, uma lei moral, sem nenhum
+genero de comminação, mas tão á risca obedecida, como se as tivera.
+
+É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um bello exemplo
+de desinteresse; pois na plantação quem só ganha é a selva, que se
+dilata, e o Santo, a quem se engrossam os rendimentos.
+
+Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a capellinha, ou de algum outro
+Bemaventurado, com fama de boa-mão para casamentos, ainda se aventaria
+um motivo pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que só da peste é
+advogado!...
+
+Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra, ¡e oxalá dure sempre! ¡e
+oxalá por muitas partes o imitassem!
+
+ * * * * *
+
+Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de nós
+outros, bastam duas considerações: a d'elles é festa do espirito, e mais
+do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem do espirito.
+
+Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva lhes faz estar vendo
+ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie humana; e do corpo
+tambem, porque o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas
+succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e bem jejuada quarentena.
+
+Move suavemente os corações acompanhar a procissão, que da egreja sai
+depois da Missa cantada, com os seus cirios accezos, cantando as
+aleluias, atravessa o amplo adro alcatifado de bordada relva, sombreado
+das suas cerejeiras já revestidas, atravessa o passal por entre as alas
+das pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se espairece
+ao longe, como uma piedosa exultação, por entre os mattos
+rejuvenescentes.
+
+O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As
+arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado
+de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora todas suas
+galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a Natureza parece
+ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe entôam canticos, como
+os homens, as mulheres, e as creanças. A aleluia ressôa em toda a parte;
+lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os corações
+ferve o amor de Deus, o amor da Natureza, e o amor mutuo.
+
+¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os arroubados requebros do
+Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh! ¡que permutar de boas-festas! Mal
+o presumem, os que todas as cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um
+cartão alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.
+
+Recolhida a procissão, tornam-se todos correndo a suas casas, a acabar
+de as pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se de
+ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores baixellas;
+crepíta o lume na cosinha revôlta; idéia-se um simulacro de altar, ou se
+enroupa uma cama de lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o
+senhor Prior, com a sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar
+(quando mais não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da
+familia falta á porta para receber a aspersão de agua benta, que elle ao
+entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras rituaes da benção: «Paz
+a esta casa, e a todos que n'ella moram.»
+
+Tal visitação, que (já se vê) se não conclue no primeiro, nem muitas
+vezes, no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda de
+prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada fogo; não pelos
+saccos de folares que se ajuntam; mas pelo muito que assim de novo se
+apertam os vinculos mutuos do Pastor e do rebanho.
+
+ * * * * *
+
+No 1.^o de Maio põem, á entrada das habitações, _maias_, que são ramos
+de sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com seus fuzos,
+carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo se fadam a
+terra e a casa: a terra, para que dê linho comprido e sedoso; a casa,
+para que se guarde e mantenha próspera.
+
+¿Quem não vê n'estas maias outra degenerada herança dos nossos antigos
+senhoreadores? No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo
+domestico dos seus _Lares_, deuses protectores da poisada, e cujos
+idolos se tinham junto ao fogo da cosinha, ou em nichos por de traz da
+porta principal. Revestiam-n-os de pelle canina; e em monumentos antigos
+se vê ao pé d'estes deuses representado o animal symbolo da fidelidade,
+e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio nos seus
+_Fastos_ nol-o descreve. Brindavam-n-os com libações de bom comer e
+beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de flores, e já de lan.
+
+Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois acreditavam
+que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se compraziam de
+habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde vivia gente do
+seu sangue.
+
+Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do
+mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas.
+Vieram Lares _viaes_ (dos caminhos), _compitaes_ (das encruzilhadas),
+_urbanos_ (os padroeiros de cada cidade), _publicos_ (os mantenedores
+dos publicos edificios), _rusticos_ (os custodios do campo), _hostis_
+(os amparadores contra inimigos), _marinhos_ (os guardiães dos navios).
+
+É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem Romanos, se
+haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de suas religiosas
+praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre estrangeiros; e bem
+boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle cahos de poeticissimos
+desatinos e devassidões. Fazia venerar e amar a casa; com a casa, a
+familia; com a familia, os sãos costumes da creação. Ainda por cima,
+fazia resplandecer luzeiros de esperança na cerração das adversidades; o
+que dá coração e brios para as resistir.
+
+Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana provincia
+Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que, aliás, podem ser
+documentos, além de outros, o nome de _lareira_, geralmente conservado
+ao lastro da chaminé, e o proprio de _lar_, com que em Traz-os-Montes se
+chama a corrente de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a
+fogueira.
+
+Já cada um inferirá que as _maias_ dos meus serranos, festejo que só á
+casa se refere, coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como
+quer que seja, o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de
+ter, aquella origem.
+
+Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito
+christão, ainda mais poetico, chamado das Rogações ou Ladainhas de Maio.
+
+Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e acompanhando em
+chusma as entoadas preces da Egreja, a procissão, que lá se vai,
+humilde, atravez dos campos desatados em flor. Imploram as bençãos do
+Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos não devorem
+a vinha ou seára; que intempéries do ar e trovejados granizos não
+derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares.
+
+ * * * * *
+
+O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado de dia pelos
+oiteiros, de noite pelos serões.
+
+Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que
+se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora, não sem graça),
+que por ali em louvor do Baptista se exhalaram outr'ora do seio de
+poetas desconhecidos.
+
+A medo me rendo á tentação urgente de as mostrar; que, despojadas da sua
+melodia, desquitadas das vozes tão frescas e juvenís das suas cantoras,
+e nuas dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e
+sombras em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão parecer-se
+comsigo mesmas.
+
+Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja differença na
+substancia, vai tanto, como de uma formosa donzella podéra differir o
+seu cadaver.
+
+Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que no fundo da alma se me
+estão ainda cantando, por entre simulacros de figueiras, que entretecem
+sobreceo verde á fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros,
+não as contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil
+maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com que umas rusticasinhas
+de roca á cinta tratam o Santo Precursor. São amores velhos; não ha que
+lhes dizer.
+
+
+--¿San-João das barbas doiradas,
+onde foste ter as orvalhadas?
+--Fui as ter áquellas hortas,
+recordar aquellas cachopas.
+
+Recordae, recordae, perguiçosas,
+que da fonte já veem as formosas,
+com as talhas cheias de cravos,
+que lh'os deram os seus namorados,
+com as talhas cheias de flores,
+que lh'as deram os seus amores.
+
+San-João, rico cavalleiro,
+companheiro de Nosso Senhor,
+acompanhae a minha alma
+quando d'este mundo fôr.
+
+--¿Por que tendes, San-João,
+esses sapatinhos brancos?
+--Para passear ás moças
+domingos e dias santos.
+
+--¿D'onde vindes, San-João,
+que assim cheirais á macella?
+--Venho da serra da Estrella,
+de fazer uma capella.
+
+--¿D'onde vindes, San-João,
+pela calma sem chapeo?
+--Venho beber agua fresca,
+que faz calor lá no ceo.
+...................................
+
+
+Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os aferidores e malsins da
+Literatura, que, se me tomam, com isto nas mãos, dão comigo do avêsso.
+
+Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes. Á
+noite accendem fogueiras, dançam, cantam, namoram, e galhofeiam em de
+redor d'ellas.
+
+Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao sereno, que lhes ha-de
+n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu futuro, e chamuscam as
+hervas e flores, que sabem de constancias e inconstancias.
+
+Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes virtudes e
+preservativos; mas especialmente o de S. João do Monte, á conta do seu
+nome bento.
+
+Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta colhem ramos
+orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram de raio;
+trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os partos,
+apertando-se nas mãos.
+
+A agua da fonte da manhan de S. João é como a primeira que chove em
+Maio: torna o carão formoso.
+
+ * * * * *
+
+Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo
+descoberto, não correndo o tempo de invernia. São rebordans a granel,
+entre grande larada de brazido, a estoirarem e a acerejar-se, em quanto
+um farto lombo de cevado rechína e fumega em vergante espeto de pau, a
+pingar n'uma telha ou frigideira.
+
+É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos rapazitos, e pelos
+visinhos menos folgados, que todos então se convidam.
+
+Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já então arripiada. Mas...
+quanto mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e
+para a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os animos dos
+convivas.
+
+Á fé que lhes não falta por quê. O dia que apóz vem, é o dos finados;
+dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos, para todos
+quantos, com Fé ou sem ella, possuem um entendimento, e meditam.
+
+¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem mais devaneador e
+recolhido, que homens acostumados a solidão, curtidos nas duras
+realidades da vida, remotos do cortesão bulicio, embotador pessimo de
+toda a sensibilidade!
+
+ * * * * *
+
+Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a noite não
+quieta.
+
+Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe, até se esvaecerem,
+os tons afflictos, que a nenhuma de tantas poisadas deixam de dizer
+algum segredo de dor, e de encommendar algum suffragio. ¡Oh! ¡se não se
+elevarão elles, e bem ferventes, exhalados pela voz do sangue, pelo
+amor, pela amisade, pela caridade!
+
+Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz
+bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura se
+descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis côro de
+Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta, pelo meio da
+povoação, a supplicar em nome dos penados de alem mundo, que para si não
+podem requerer, esmola de orações, refrigerio para os ardores que lá
+padecem.
+
+Não ha seio tão escudado, que um santo horror o não estremeça; egoismo
+tão empedrenido, que sustenha as lagrimas.
+
+...Até que o solemne pregão transpõe e se esvai; e na calada se torna a
+perceber o dobre longinquo da egreja.
+
+Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o
+interior.
+
+Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que vão de aldeia em aldeia
+_amentando_ as almas, arrastavam d'antes grilhões aos pés, o que ainda
+augmentava o pavor do seu pregão.
+
+Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes quem entre nós os
+soffreria? Por lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se,
+como exactores que são de um tributo da outra vida.
+
+Desde o romper d'alva não descança a egreja de absorver povo. Todos os
+caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques, todas as ladeiras, todos
+os valles, todos os oiteiros, o brotam e expedem á porfia.
+
+Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o moço em flor de annos; a
+donzella; os irmãos, pequeninos e já orphãos, pela mão de sua mãe; todos
+graves, cuidosos, taciturnos; todos lá por dentro orando; todos
+anhelando irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali
+assistirem ao incruento Sacrificio.
+
+Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o semi-festim da
+vespera é quasi geralmente descontado pelo jejum mais rigoroso.
+
+ * * * * *
+
+Emfim vem o Natal.
+
+Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas
+christianissima (quizera eu dizer) do Christianismo, nenhures cabe tão
+em cheio, nem tanto com os animos e corações se coaduna, de veras crida
+e com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.
+
+Víreis o Presépio de Belem, não já por caprichosas artes remedado, mas
+em tão cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a
+adoral o.
+
+Disséreis que ao soar da ave da meia-noite, desferiu vôo d'entre as
+estrellas, de que se corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos
+pegureiros com o pregão de «Gloria e Paz», com a nova de ser nascido o
+Desejado das gentes.
+
+¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de toda a parte confluem
+pelo escuro em demanda do Menino!
+
+Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso dentro
+n'alma.
+
+O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par aberto,
+é a santa Gruta.
+
+Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o Divino Infante.
+
+O adro vê dançar as rondas de camponezes á roda de um monte de arvores
+accezas, ao som da gaita e do tamboril.
+
+Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada.
+
+Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as cantigas da
+benta noite. Cada um d'estes córos é exclusivamente composto das
+moradoras de cada margem do rio que biparte a freguesia. Vai entre ellas
+a mesma rivalidade, que já descobrimos entre os homens, quando no
+Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um estrepitoso
+arremêdo de combate.
+
+É a qual dos bandos trará mais formosas quadras para entretecer com as
+antigas, mais argentinas falas e melhores requebros para as gargantear.
+Cuida-se ouvir musica de Seraphins; exulta o coração; e, sem vergonha,
+se estão sentindo as faces humedecer-se.
+
+Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que se estão
+vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em braços do Parocho o Menino,
+a fazer colheita de beijos e louvores, de supplicas e offertas. Então é
+que surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e á
+porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de ordinario, a todos,
+os mui primorosos artefactos de pinhões e frutos sêccos.
+
+¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que ali pendem ao collo de suas
+mães! vão-se-lhes os olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz lindezas
+tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se destinam, com os seus
+olhos tão azues, a bocca tão amorosa, as faces tão coradas como as
+maçans que se lhe offerecem, é já a Elle que só cubiçam; e só choram,
+porque o não deixam acompanhal-o.
+
+ * * * * *
+
+Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente.
+
+¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem a
+destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé?
+
+É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na resposta.
+
+ * * * * *
+
+Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza, nobres de
+humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores de S. Mamede da
+Castanheira do Vouga.
+
+
+XX
+
+Que eu por lá versejasse, já a ninguem ficará sendo maravilha; antes,
+sim, a podéra ser, que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas
+as rasões d'isso de si mesmas se confessam.
+
+Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me foram totalmente
+desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri possivel, que houvessemos
+jámais, eu nem coisa minha, de reparecer no mundo.
+
+Assim, só por desabhorrimento é que poetava de longe em longe; isto é:
+poetava por fóra, e no papel, que no coração e no animo estava eu comigo
+a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de leve me acreditarão os
+que d'isto sabem) não foi a que se escreveu, se não a que deslizou
+suave, entre sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta,
+suspira e medita.
+
+Escrever só para si, não sei que ninguem escreva; é trabalho supérfluo,
+e que, se dá fruto, o dá ruim, que de pêco e descorado nos desconsola.
+
+¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou affecto, que no trabalho
+de se corporificar para sahir a lume e correr por mãos e olhos, não
+perde muito do seu primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou
+do seu calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja
+que era seu, e que era elle mesmo em grande parte?
+
+Isto dos livros não são senão uns retratos mortos, umas toadas,
+reflexos, e sombras, de festas que se fazem n'um interior, e de que os
+passageiros, por mais que se lhes abram as janellas, e que elles
+appliquem os olhos e ouvidos, só podem perceber a totalidade, e
+conjecturar as circumstancias.
+
+O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros
+de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda
+para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder,
+ás concepções e aos affectos.
+
+ * * * * *
+
+Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que peor é) do livrinho,
+está em que a maior e melhor parte dos condões e feitiços da montanha,
+que ora cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis, então que eu os
+tratava e d'elles vivia colmado, me não faziam os effeitos, que atravéz
+dos vidros da saudade me produzem.
+
+Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o perdido; que já
+por isso dizia Rousseau, que nunca tão bem falaria da liberdade, como
+entre ferros da Bastilha.
+
+¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a abrolhar? é no meio do outono
+a desvestir-se. ¿A do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que
+tirita e se encanece de geada.
+
+¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros, não é paraiso, para
+onde todos, todos, nos quizéramos tornar?
+
+¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo extremo os
+camponezes, se acabassem de entender os bens que logram!»
+
+Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar, é
+este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a instante m'o
+explica.
+
+Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e collo
+descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando
+importunas obrigações me veem ripar e consumir as semanas a dia e dia,
+os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto.
+
+Pela conversação pacifica das moitas e torrentes me definho, quando, no
+mais fortuito, no mais leve, tratar com homens me aguardam sempre
+desencantamentos, desconsolos, rasões para os desprezar, ou para
+fugil-os.
+
+Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor. Aqui, pelo
+contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.
+
+Lá, a benevolencia é semente de benevolencia, para dar cento por um.
+Aqui, é grão que sempre degenéra, ou não germina, ou brota villans
+ingratidões, que envergonham até a quem as ouve.
+
+Lá, o folgar é franco, e as festas são festas. Aqui, o folgar é escaço e
+fingido; as festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de
+gladiadores, que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns
+aos outros, e aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.
+
+O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo mais
+cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão roda; e em vez de o
+esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como o Iscariotes por sua
+mão, para escarmento a sevandijas e lição a paes que estão creando feras
+bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de applaudil-o por medo,
+apertar lhe a mão dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas,
+com sabel-o expulso de muitas portas.
+
+Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para o que Deus
+os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia, para macío
+agazalho nas horas do somno ou da doença, para gala candida dos altares,
+e a final para curativo de feridas.
+
+Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao alvorecer de Maio, a
+sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do seu linho, a cabo de
+tão bons serviços, poderia vir ainda a converter-se em papel para a
+nossa Imprensa, isto é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e
+absurdo, a ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de
+descredito e odios, em disseminador de todos os principios de
+dissolução, já moral, e já politica?! ¡Pôr-lhe ella a sua roca para
+benção! ella, a boa filha das serras, fêmea sincera e verdadeira,
+coração lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe ella
+encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre companheira, a que
+tão santas maximas e tão formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar
+á sementeira o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que
+vale o mesmo.
+
+
+XXI
+
+¡Que de vantagens para o ermo não são todas estas!
+
+E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem nascido!
+
+Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de espaço e tempo, e pela
+contraposição, que se conhecem. ¡E eu malbaratei quasi tudo isso!...
+
+
+ ........ munera nondum
+ Intellecta deum!....
+
+
+Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão quebrantador martyrio
+da experiencia,
+
+
+ ..... Oh ubi campi!
+
+
+¡Como me não agarrára, com raizes mais fundas e tenazes que o meu cedro,
+ao chão da vida facil, innocente, e obscura! ¡Como não borbotára em
+hymnos o meu jubilo! ¡Como não saudára com lagrimas de gratidão a
+aurora, tornando a encontral-a! ¡Que não palrára com as torrentes! ¡Que
+noites desveladas sob o pavilhão estrellado e vastissimo da montanha!
+
+Em vez de rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar este painel
+noticias de logares, e até de usos, tudo eu mesmo visitára com devoção
+de peregrino; tudo revolvêra; com tudo me identificára.
+
+As saudades, que de lá para aqui me estão salteando, d'aqui para lá já
+não atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira
+sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me perdessem
+logo.
+
+ * * * * *
+
+--O abdicar--dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro e
+hortelão de Salona--o abdicar é o começo do viver.
+
+¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso da fortuna o rir, o
+dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na primeira hora que
+empunhassem, com animo feito, uma rabiça ou um foicinho!
+
+¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e até imperios romanos, como
+elle, quando renunciar o pouco, o quasi nada, que se tem de cidade....
+só de o cuidar, tanto namora a phantasia!
+
+¡Se jamais virá tempo de eu poisar em torrão meu, debaixo de sombras
+minhas, a cabeça encanecida e regalada!
+
+Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e limas, como o
+presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda, quanto o filhinho mais
+pequeno atravessasse correndo de um fôlego. Mas isto em solidão bem
+solidão, onde só os astros me enxergassem, só as estações me visitassem,
+e da banda do mundo nada me chegasse, senão o vento, já expurgado e
+esquecido de humanas vozes.
+
+Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio e
+reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.
+
+Ahi me reverdecêram o coração e mais o espirito, que me elles por cá
+trazem tão lastimosamente desfloridos e murchos.
+
+Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol remoçador de quanto
+existe.
+
+A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa eólia entre
+jasmineiros, pendente em hombral de gruta ás virações da primavera.
+
+Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em tarefas ephémeras e
+sem gloria, posto que não sem consciencia e diligencia, se me
+desbarataram na galé da Imprensa periodica, ou (com mais propriedade)
+nas palhas d'essa doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do
+Universo; doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.
+
+Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me enguliu, com os annos
+que me tomou, outros tantos da minha existencia para diante; pois em
+cada tomo de periodico, sincera e honradamente redigido, se podia
+escrever este epitaphio: _Aqui jaz um anno de fadiga e dois de vida
+de.... Orae por elle_.[4] Vendem-se ainda primogenituras por menos que
+prato de lentilhas.
+
+Vingára-me (¡oh! ¡se me vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda
+por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes,
+appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os
+seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden.
+
+
+ Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in Urbem.
+
+
+ * * * * *
+
+--¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus gostos e
+desejos?--dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que sabemos, que nunca
+faltam, escoimadores _ex-officio_ do alheio.
+
+--Senhor meu,--lhe respondo eu já:--pois é por isso mesmo, de não
+passarem de fabula os meus gostos e desejos, que se me ha-de relevar o
+dar-lhes eu largas no papel.
+
+Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal, coroados
+de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar do Empyrio
+a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o tempo que n'estas palavras
+gasto aproveitara-o melhor, em correr para o meu refugio, beijal-o,
+replantal-o, aformosental-o. E em lá vindo o florído Maio, ride-vos de
+pagão que brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor.
+
+ * * * * *
+
+¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem por longe se pareça com
+a de um viver remançado, em casa sem numero, nem espias, ao som da
+Natureza, á lei da propria inclinação; sem ouvir horas que nos chamem,
+sem encontrar com glosadores que nos aboquem no ar acções e palavras,
+para nol-as tingirem de branco em preto; nem cahir nas garras de
+ociosos, que vos emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma
+noite de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que são
+a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de abhorrimento;
+seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de quem vos não
+vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido, refulgente epigramma de
+esmalte contra meritos e virtudes; e de noite, interrompido na
+meditação, ou cortado no melhor do somno, pelo retroar de carroagens,
+que em fluxo e refluxo continuo levam e trazem, sempre a correrem para
+nada, pygmeus, histriões, da farça séria d'este mundo?
+
+Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura,
+ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis mais depressa
+coisa a ella parecida, do que não por estas almotaçadas metrópoles, onde
+se blasona que ella tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre
+são festas acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao
+mesmo tempo: este, o _Te Deum_; aquelle, o _De profundis_; um, o
+_Quomodo cecidit civitas plena populo_; outro, o _Cantemus Domino_;
+qual, o _Miseremini mei_; qual, o _Ecce sacerdos magnus_.
+
+Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade,
+derrubaram-n-a do seu pedestal as aguas do diluvio de Noé, quando
+arrojavam cada coisa para seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o
+pedestal razo, com o formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha
+de ser ermo pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira.
+Aqui, pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo.
+
+ * * * * *
+
+E quando não, mettei bem por dentro a mão na consciencia; e, deixado o
+palavrório que não sôa muito senão por ser vazio (como tambor de
+foliões), dizei-me, ou dizei-o a vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem
+que desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado,
+e não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem alvoroto de
+praças, e reboliço de vizinhos, pois diante de suas janellas o que só se
+meneia e conversa são arvores, e por cima do seu tecto não moram senão
+hervas, que mal ciciam, e só recebem de visitas passarinhos ou
+borboletas?
+
+¿Quem mais livre?
+
+Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu,
+sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o
+cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos
+convites. ¿Quem mais livre?
+
+Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as
+occupações de todo o dia. ¿Quem mais livre?
+
+Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons somnos, pão, e
+para conduto um apetite desenganado, entre o trabalhar, repito, canta,
+ou traz o espirito a monte, a sabor de suas chyméras (que tambem as tem
+como qualquer outro); e é este o mais invejavel privilegio do trabalho
+corporal, sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não captivar
+senão os braços; cavando, podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da
+obra, estar armando doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir
+com os companheiros, ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a
+alegria que se esconde.
+
+Este _deus in nobis_, unica das divindades campestres em que se pode
+crer, perguntae se não será para muitas invejas aos taciturnos enxames
+que pejam escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi todos os que
+remam á consciencia o seu remo na galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais
+livre?
+
+Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o
+meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço, para folgar
+entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de coser ao lume
+que o aquece. Não tem de ir fazer sala a ninguem; respira a peito cheio;
+não ha que ciar se de mulher e filhas, que não dá a terra operas nem
+bailes; filhas e mulher á roda lhe serôam, tão satisfeitas como elle.
+Não se levanta ali jogo, que, por tentação ou falso pondonor, o obrigue
+a pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida. Não o compellem a
+ajudar com desatinos seus os alvitristas regedores do mundo em sêcco;
+nem mesmo a ouvir ler, n'uma coisa mal-cheirosa chamada periodico
+(especie de cogumellos da Imprensa, em que entre os não maléficos tantos
+ha de sapo), o artigo famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe
+levantam falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do
+chylo. Quem não tem com que incite invejas, seguro está de vis
+praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre?
+
+Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas
+destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não creal-os o sitio,
+nada reluz na poisada que os attráia.
+
+Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os pães para a tulha, o
+vinho para a adega, o azeite e os frutos para a dispensa, a hortaliça
+para a panellinha de barro, as filhas para o casamento, os rapazes para
+lhe pagarem na velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o
+Ceo, onde crêem de fé que os estão seus parentes esperando.
+
+¿Então, será, ou não será, este um viver dez vezes mais livre e
+afortunado que o nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o
+direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo, que não deixei
+na matéria udo nem miudo; ¡como se miudos houvera no que são condições
+de boa ventura!
+
+Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu
+proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao coração de
+alguns d'estes, que vivem na Côrte por fadario, por vezo, ou por
+inercia, sempre mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou
+podendo, se uma hora olhassem por si, adquirir, sem nenhuma
+difficuldade, o que eu, e outros taes, tão baldadamente supplicamos á
+fortuna: uma vivenda campestre, uma existencia natural, serena, commoda,
+florescente, risonha para a pessoa, dadivosa e exemplar para os
+visinhos, manancial de riqueza privada e publica, abonadora de bons
+costumes, e de afortunada descendencia; uma existencia, em summa, que, a
+de mais de retemperar corpo, animo, e coração, para se n'ella
+saborearem, até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto,
+quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.
+
+ * * * * *
+
+Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o
+medicinalissimo _Livro da Solidão_ do Doutor Zimmermann. Aprenderiam a
+perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a embellezarem-se n'ella, a serem e
+a fazerem venturosos, quanto é dado havel-os n'este mundo tão instavel,
+tão fugidio, tão calabreado de bens e males.
+
+O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra servindo;
+na solidão é um homem. Na sociedade, é uma partícula irresistivelmente
+arrebatada n'um redemoinho; na solidão um todo quieto.
+
+Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde uma vez
+passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra d'ella; porque o
+homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro das humanas tirannias, se
+faz em algum modo semelhante á creança; readquire o que quer que seja da
+sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus gostos, dos seus brincos.
+
+¿Quem se lembraria de pôr um barco de cortiça (ainda que de seu natural
+tivesse o ousal-o) n'um tanque do Passeio publico, cercado dos fumantes
+do Marrare, e dos collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas
+que fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa, até só
+para si, faz d'isso; e mais se encanta em o fazer, que um ricaço em
+torrear palacios.
+
+Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no cêvo das armadilhas
+que lhes andou dispondo, edifica á borda de um arroio uma azenha de dois
+palmos, com seu rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear,
+respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para horas.
+
+Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam com a familia de um
+coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva, como Werther e Hugo
+se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e reinos de animálculos, em
+que só o mancebinho muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam
+enlevar.
+
+¡A solidão! ¡a solidão!... provae-a, sequer, affligidos do mundo, e
+pregoareis d'ella o que eu me não affoito a encarecer-vos.
+
+ * * * * *
+
+Um só achaque hei-de eu impôr á boa da solidão, á gentil namorada de
+Rousseau, de Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos; e vem a ser:
+que, pois nos descalleja o coração, banhado nas suavidades da mãe
+Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos detrai,
+assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas, quando não as
+podemos extirpar. No ermo ressôam mais alto os gemidos, como na calada
+da noite se dão a ouvir mais claras as vozes.
+
+Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita colheita,
+o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos enfermos,
+quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo aquillo; e o coração,
+que não tem para dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange
+todo, e se espedaça.
+
+¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão pouco! ¡sería tão
+festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria! ¡deixaria, por corôa
+de beneficios, tão sinceros, tão duradoiros agradecimentos!
+
+ * * * * *
+
+Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que d'aquellas
+alturas se não percebem; mas a que menos de todas se percebêra é o
+coração metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos,
+os seus ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
+terrestre, e ferrolham-n-a a sete chaves. Podiam ser adorados como
+deuses propicios, conquistar a unica invejavel gloria, emendando os
+erros da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.
+
+Então sim, que haveria que se lhes invejar.
+
+Dôr d'alma é, na verdade, não poder homem na solidão pagar por estes, e
+por si mesmo, dividas grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá
+estende os braços valedores até onde lhe é dado. Onde não chega a
+remediar com obras, ajuda com o bom conselho, com as recommendacões
+poderosas, com as esperanças, com a presença, com a uncção da palavra
+amigavel, com o deixar correr sobre a ferida o balsamico das lagrimas.
+Assim, se terá sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo
+trabalhos, e no seio coração.
+
+
+XXII
+
+Isto presenciei eu:
+
+O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural
+pejo me veda transladar louvores, que por lá se lêem em todos os peitos,
+contava entre as primeiras de suas ditas a beneficencia, que não pára
+onde se lhe exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo
+Bispo Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem
+ainda para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.
+
+Era para ver (se elle não poséra tanto em recatal-a) a alacridade, a
+sôffrega alacridade, com que ia levar aqui um pão, que se devorava como
+vida que em realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos,
+a reconciliação; ao ocioso, o convite para trabalho; ao orphanado, a
+paciencia; ao errado, a luz para atinar com a senda, e o bordão para a
+seguir; ao moribundo, o conforto e a alegria; a todos a moeda aurea,
+cunhada de uma banda com a effigie do coração, da outra com a da Cruz
+florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se cambía; o affecto
+fraternal.
+
+Ali, sim, que é o ser Parocho.
+
+¡Oh officio divinamente instituido, como te hão degenerado annos frios
+de descrença e desamor! ¡Com que maravilhoso laço não cifravas o que de
+mais nobre, o que de mais amavel, se abrange nas ideias da eternidade e
+nas do mundo!
+
+O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso de
+eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os mysterios, os preceitos, os
+exemplos, as ameaças, os anáthemas, as absolvições, os confortos, e os
+jubilos. Todos os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra
+d'elle.
+
+Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de Fé, á nossa espera
+diante da fonte da Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos
+purificar.
+
+Arribados á edade da rasão e dos delirios, tornavamol-o a achar na
+piscina da penitencia para nos restituir, com eloquencia affectiva de
+Apóstolo, a foragida paz do interior.
+
+No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos entregavam, com
+bençãos d'alma e sincera prophecia, a mão tremente da futura mãe de
+nossos filhos.
+
+Nas calamidades publicas, era a sua voz supplice e crente, e afogada em
+lagrimas, a que levava, como guia segura, o côro de todas as nossas á
+presença do Senhor da Natureza.
+
+Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da concordancia, que
+primeiro apparecia.
+
+Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos alçava.
+
+Nas tribulações, elle o nosso mais previsto conselheiro.
+
+Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado.
+
+Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e
+aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças para o caminho.
+
+Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros medicos iam
+longe, e até nossos paes e nossos filhos nos deixavam sós. Com preces
+fervorosas nos acompanhava, até que a terra nos submergisse; e ainda
+então nos não largava, senão para ir instaurar novas preces por nós
+sobre os altares.
+
+Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com
+quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da sua
+pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e pequenos, só temido dos
+maus, ainda que tambem d'esses respeitado.
+
+Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa, elle, que tão amenos
+quadros do casamento sabia apresentar aos noivos ao recebel-os, contava
+por irmãos e filhos todos os seus parochianos; tinha o seu thálamo de
+oiro a aguardal-o no paraizo, região que todos os dias entrevia atravéz
+das folhas do seu breviário; e, se ainda no coração lhe podia alguma
+ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como esposa; em quem
+se revía; que se recreava em ataviar, em enriquecer, em lhe adquirir
+galas de roupas, de sedas, de joias, de flores, de perfumes; em cujas
+festas se remoçava; em cujos canticos se desvanecia de misturar a sua
+voz.
+
+No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava
+tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um representante da
+Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse caracter augusto e
+sobrehumano.
+
+A hora em que elle expirava, hora de consternação e alaridos para todo
+um povo, era a unica, talvez, em que pelos espiritos fuzilavam alguns
+relampagos de duvidas sobre a justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO;
+duvidas, que a bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus
+olhos fechados, já não podia fulminar, mas que a sua presença, mal
+chegavam a beijar-lhe os pés como a bemaventurado, promptamente
+desvanecìa. Bem se adivinhava, ao olhal-o, que a sua morte não era mais
+que somno; e bem se entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão zeloso
+trabalhar, era rasão colher descanço e premio, como só lá em cima os
+pode haver.
+
+ * * * * *
+
+Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e prospérrimas da
+Christandade.
+
+De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas tão raro,
+que a dedo se apontam; e ainda se não hão-de crer, se não fôrem vistos
+bem por miudo, e contrasteados bem de espaço.
+
+De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça.
+
+Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte sempre algum achaque
+principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a febre da superstição;
+está agora no frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com
+elle, até que do alto lhe venha o remedio.
+
+ * * * * *
+
+Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma
+de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca, nem um
+phantasma.
+
+A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra, pegou-se d'ella,
+pelo contacto, primeiro á superior, depois á infima.
+
+Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta entra na conta.
+
+A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada já
+quer ir convalescendo; já convalesce em muitas partes, se em nenhuma se
+acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu, por isso mesmo, e por ser a
+mais rude e numerosa, labora no auge da enfermidade, e ainda muito longe
+(segundo todos os symptômas) de se restaurar.
+
+Hoje o materialismo é especialmente plebeu.
+
+Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo a raio e raio, e
+descendo manso e manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro
+desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam tudo.
+
+Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda noite, nem se derrama da
+Imprensa, de que a mean classe é representante.
+
+O Poder, fingindo _proteger_, apenas _tolera_ os escassos restos da
+crença. Se alguma vez lhes dá consideração, é quando se lhe antólha que
+os poderá empregar, por material, para obras politicas a seu modo.
+
+A Literatura, ou por especulação de popularidade, ou por extravagancia
+de muito joven, ou porque o seculo XVIII do «Paiz modelo» só poude
+chegar cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem á
+unica Religião civilisadora, tão decepada e desgeitosa se avém, que, por
+entre as suas expremidas lagrimas de compuncção, se lhe está vendo
+voltear por dentro dos labios o seu lembrado sorriso de septicismo.
+
+A sua religiosidade é um cálculo; ¡grande mal! é um cálculo
+transparente; ¡mal ainda muito mais funesto!
+
+Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida, não é da verdade
+real e absoluta que diz, mas da utilidade (ou necessidade) de que seus
+ouvintes a acreditem.
+
+Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e
+aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e ás escuras
+por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro para a turba.
+
+Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o _Christo_» (como lhe
+ella sempre chama), que a sua cabeça ennastrada de loiros não fique,
+mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada de espinhos.
+
+¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras aleluias da Fé e da Moral,
+este vaidoso e vanissimo apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo
+do falso nome de Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas,
+paginas desconnexas, reformadas, e adulteradas?
+
+Quanto entre si concordavam as inspirações dos quatro Evangelistas,
+tanto discrepam uns dos outros (e não raro de si mesmos) os novos
+evangelhos d'estes missionarios sem missão. Á prima-vista se averigua
+que lhes fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a unidade. ¿Quem
+se irá apóz taes innovadores? Ninguem.
+
+Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só valeriam para
+acabar de destruir, se podesse ser destruida a Religião de Jesu-Christo.
+
+A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem a força, nem o poder da
+terra tem a minima jurisdicção para alterar.
+
+Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um átomo de menos, sem um
+átomo de mais... ou nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a
+cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem estupidamente n'uma cruz
+desbenzida, revirado com a cabeça para a terra, e os calcanhares contra
+o Ceo. Em tal caso o indifferentismo, e até o atheismo, seria menos
+descommodo e mais logico dobradamente.
+
+ * * * * *
+
+Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o poderia
+fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo, ¿como é que a
+trata a autoridade mundana?
+
+Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe, protectora
+desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a cabeça despojada do
+diadema luminoso, diz-lhe que se apegue, para não cahir, ao sceptro que
+a diante lhe caminha. ¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco
+roborava os thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os seus
+inimigos o ludibriem!
+
+A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da arvore da vida,
+d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer derramal-a sobre as
+multidões pelo crivo immenso da Imprensa, e ficar impune; ou o seu
+castigo, se por erro lhe cahir o da Lei, orçará apenas pelo dos crimes
+leves, e indifferentes ao Estado.
+
+ * * * * *
+
+Não é ainda tudo.
+
+Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como filhos e
+herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra já meio derretido, luz
+do mundo já mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e
+relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo os
+nas temporalidades odiosas.
+
+Repitâmol o: não é isto culpa de ninguem, sendo de todos desaventura. É
+uma calamidade providencial, que lá se encaminha para fins certamente
+gloriosos, que não podemos enxergar.
+
+Em Religião, como em Politica, somos nós, enfatuada geração de hoje,
+mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros hão-de ceifar em vindo a
+quadra.
+
+Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em que os direitos e os
+deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido nome não seja, como
+pomba timida, empolgado por abutres ferozes logo ao abrir o primeiro
+vôo; em que todas as causas santas e uteis se conheçam e respeitem; em
+que nem a régia tribu de Judá seja, como outr'ora, apesinhada pela de
+Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje, mercenária, captiva, e
+escrava da de Judá.
+
+Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e frutear (como a vara do
+Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de alimento, de forças, de
+esperança, e de felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos,
+então os pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi
+mendigos, e cuja fronte perdeu o sello da eleição, tornarão a assentar
+ao-pé da arca santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas
+dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas penetrem melhor
+até ao velho os gemidos do mais necessitado que elle, e para que os
+olhos d'elle entrevejam as estrellas.
+
+¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias da Egreja acrisolada pelo fogo!
+Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.
+
+ * * * * *
+
+O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não acredita em
+malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de recommendar aqui, uma
+verdade, que a sua posição d'elles lhes não deixou talvez ainda
+perceber; verdade importante para applicações, verdade a cujo
+escurecimento se pode imputar já muito e muito damno:
+
+O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades, uma
+importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e
+prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição humana poderia
+confrontar a sua.
+
+Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano é quasi um
+pastor sem rebanho; não conhece as ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A
+ellas, falta-lhes o tempo e a vontade para o rodearem; a elle, se para o
+officio entrou com zelo e propositos magnanimos, tudo se lhe veio a
+acabar com a esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez
+tambem a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços se haviam sempre
+de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua voz, se lograsse
+vencer o estrépito circumfuso, só serviria para lhe atrahir escárneos e
+motejos, ou de fanatico, ou de tartufo.
+
+Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e abscônditas
+sobre tudo, ainda não é totalmente assim. Á entidade abstracta _Parocho_
+se conserva, no respeito e benevolencia dos subdítos, um resto da sua
+antiga majestade, da sua benéfica influencia, das suas altissimas
+prerogativas.
+
+Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas, uma especie
+de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos Patriarchas, e
+os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um magistrado sem
+appellação para as consciencias; um censor, não em nome da Lei (como os
+de Roma), porém em nome, e com delegação, e por inspiração, do Espirito
+de Verdade, com quem se crê ter commercio no fundo do santuario.
+Qualquer que seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como á
+principal.
+
+Tal é, repito, a entidade _Parocho_ em abstracto.
+
+
+XXIII
+
+Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se não deverão
+empregar-se as mais incessantes, as mais efficazes diligencias, para que
+o provimento das parochias (das rusticas ao menos) recaia sempre em
+homens de cultivado e provado entendimento, de sincera e illustrada Fé,
+humanos e caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel
+trato.
+
+Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que, segundo sua qualidade,
+teem de dessedentar e fertilisar, ou de esterilisar e consumir, a terra
+que os rodeia.
+
+N'estes agros tempos de contínua revolução e peleja, ou porque tão
+momentosa ponderação não occorresse, ou porque a vista, de dentro da
+cidade, não traspassa os muros d'ella, ou porque conveniencias pessoaes
+e ephémeras, mas urgentes, mas gravissimas, tenham feito postergar
+considerações de maior utilidade, mas de effeito mais tardío; as egrejas
+ruraes, como as urbanas, jazem, pelo commum, peor que ao desamparo:
+entregues, não como egrejas, a homens de oração e de esmola, mas, como
+torres e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do
+conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.
+
+¡Oh! que não sem rasão se collocou a rixosa urna dos suffragios
+politicos na extranhada mansão dos serenos suffragios religiosos. A um
+clero secularisado, competia um templo secularisado tambem.
+
+ * * * * *
+
+E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade; é peccado, que todas
+ellas peccam; ou, para falar com mais justiça, é açoite que Deus mette
+na mão de cada uma, quando lhe chega a sua hora de ephémero triumpho.
+
+Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até ás mais
+illusas, como as devemos suppôr, cordealmente empenhadas na civilisação
+e no progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a revêzes
+a favor de todas e contra todas, vem a ser, a final, para todas e para
+cada uma, como se de feito não existira.
+
+O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso, nem tudo
+permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas suas pelejas, a Politica
+reconhecer limites, onde o Ceo e a rasão os teem marcado?
+
+Combatam se os adversarios; mas não se envenenem as aguas; e se a
+desavença é entre consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para
+aquecer o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que já
+deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que ainda podem liberalisar o
+mesmo a nossos netos.
+
+¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos do Templo?
+
+Se é chyméra a Religião, se Jesus não é em realidade senão «o Christo»,
+vão fóra tartufías, que não deshonram menos a uma nação que a um
+individuo; acabe-se de uma vez com _superstições_ importunas e
+dispendiosas.
+
+Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o sol; se o sol é ainda
+agora a vida do genero humano; se a Cruz é o unico pezo que faz crescer
+a quem a soffre; se na terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda
+a negação expira nos labios de quem chega a ouvir como se amiudam os
+anhélitos do estertor, forcejae, forcejae para restituir, ó vós que
+ainda o podeis, ao santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle
+conhece, ao Povo os unicos oráculos em que elle pode crer, ás miserias o
+seu antigo e tão amado refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já
+tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram.
+
+¿Não é assaz amplo o thesoiro que entre as mãos tendes de destinos
+humanos?
+
+¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas as
+magistraturas, todos os magisterios, todas as exacções, todas as
+administrações, não vos dão de sobejo com que pagar ou empenhar
+amisades, zelos, e serviços, sem ser mistér que o povo de Deus venha,
+escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda, carregar a
+pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?
+
+Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada porque elles
+não existem para ella. Os moradores de Sião não entôam os seus
+inspirados canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de
+Babylonia. Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os
+seus moradores.
+
+A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha.
+A Cidade santa restaurará as suas festas.
+
+Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e despedindo-os das
+vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da vossa parcialidade,
+qualquer que ella seja, se torne mais fraco.
+
+Pelo contrario: então é que a victoria, filha das bençãos da terra e do
+Ceo, ha-de poisar para sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso
+estandarte, porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os fortes, os que
+bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a quem o Senhor
+outorgará dominação, porque elles lhe hão restituido os sacrificios.»
+
+
+XXIV
+
+Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso assumpto.
+
+ * * * * *
+
+Logo que na legislação entrar mais _bom-senso_ que _politica_, mais
+realidade que ficção, mais pensamento de semear que de ceifar, mais amor
+do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da milicia sagrada
+devolver-se-hão inteiramente, francamente, sem restricções mesquinhas e
+nocivas, das mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros
+naturaes: os Prelados.
+
+O Governo se gloriará de haver se desembaraçado de uma tarefa, de pouca
+importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia de incerteza, e de
+responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha ainda mais, de haver
+facultado com a sua restituição o incremento da religiosidade; por ella
+o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas; por
+tudo, o da prosperidade do Estado.
+
+Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei,
+podér escolher por si mesmo, affeiçoar de espaço, collocar por sua mão,
+os vigias de cada um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem duvída de que
+então os desacertos nas ponderadas escolhas hão-de ser tão raros, como
+os acertos o são no actual systema, em que são as casualidades, quando
+não as affeições ou os interesses, que predominam?
+
+ * * * * *
+
+Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a todos), as
+eleições do poder temporal teem merecido a geral approvação; teem
+recahido, pelo commum, em varões de mui notoria sciencia e prudencia,
+equidistantes dos dois oppostos fanatismos, concertados nos costumes, e
+zelosos discretamente.
+
+Graças, graças ao poder temporal, que já deu o primeiro passo, passo de
+gigante, para a suspirada reformação. Agora os restantes hão de
+seguir-se, porque são consequencia.
+
+Logo que soube, e quiz, prepôr ao Episcopado varões taes, logo que
+manifestou ao mundo que n'elles a todos os respeitos se fiava,
+tacitamente se obrigou a lhes repôr... (estas suas usurpadas regalias,
+ia eu dizer, e era um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua
+cruz, este accrescimo de trabalhos e mortificações, este para uma
+consciencia melindrosa martyrio das horas todas.
+
+Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os hombros
+a tão duro redobramento de carga, se a caridade, obrigada nos do seu
+officio, os não forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com exultação,
+e seguir via pelas asperezas do Calvario para o Ceo.
+
+ * * * * *
+
+¿E que são em verdade os Parochos, ou antes: ¿que foram os Parochos
+desde os antigos seculos da sua instituição, que foram, se não uns
+coadjutores dos Prelados maiores, para fazerem chegar até aos minimos e
+mais obscuros recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e
+os seus exemplos?
+
+Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um só, e quasi
+sempre velho e cançado, não podiam alcançar tão longe como o seu
+espirito; medicos de populosos hospitaes de almas (e de corpos tambem),
+não lhes chegando as forças para estarem dia e noite a todas as
+cabeceiras, contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios,
+estudarem todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em
+todos e com todos, segundo a maravilhosa expressão do Apóstolo das
+gentes; distribuiram em cada enfermaría quem os supprisse, quem os
+fizesse sempre estar presentes, quem em seu nome, e segundo a sua
+sciencia, receitasse e administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse
+de subito acudir.
+
+¿Como póde portanto, quando militam as mesmas rasões que presidiram á
+creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em que tudo vai
+falsificado?
+
+Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens
+inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e não ha-de ser sempre;
+e cabe nos esperar que nem continuará a ser por muito tempo.
+
+O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o
+indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os
+presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres, vão ser como essas
+torrinhas, que se branqueiam e se perfumam de incenso para morada de
+pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão, até ao possivel auge,
+em creanças innocentes e instruidas, em adultos pios e laboriosos, em
+mulheres castas e amantes do seu lar e dos seus deveres, em velhos
+pacientes, resignados e conselheiros, em sólo bem cultivado e bem
+festivo; e o Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que
+lhe virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte.
+
+
+XXV
+
+Não venha agora, no processo d'esta santificação, intrometter se o
+_Cardeal-diabo_ do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a
+máscara é de vidro, já d'aqui lh'a havemos de quebrar nas mãos,
+batendo-lhe em cheio com tres nomes todos presados: França, Italia,
+Inglaterra.
+
+ * * * * *
+
+¿Que nação mais ciosa das suas immunidades, que a franceza? ¿Que nação
+menos para consentir á Egreja o que de jus estricto lhe não compita?
+
+Nenhuma.
+
+Ora em França, bem sabemos todos que são unicamente os Prelados os que
+formam o seu Clero. Educam-n-o longamente. Instruem-n o copiosamente,
+por livros não escolhidos (como entre nós) pela Autoridade civil, ainda
+que (de si se entende) sujeitos á sua inspecção. Acostumam n-o ás
+praticas do seu não facil ministerio. Estudam, provam, e contraprovam, a
+aptidão e especial préstimo de cada um. Aproveitam só os que n'esse
+crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram; e outra vez os escolhem á
+mão, para os irem repartindo pelas Parochias do modo que mais
+aproveitem; pois de ver está, que, differindo em indole e circumstancias
+as povoações como os individuos, tal individuo, que em tal povoação
+quadrará á justa, a afortunará afortunando-se; n'outra, que menos lhe
+molde, valerá menos, trabalhando e padecendo mais.
+
+ * * * * *
+
+O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor; porque, se lá os
+Bispos são independentes, como em França, para o provimento de suas
+egrejas, não é porque em mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o
+Sceptro é Bago juntamente.
+
+ * * * * *
+
+Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por ultimo a Gran
+Bretanha.
+
+Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida se não
+tolerada, não acarinhada se não temida pelo seu progressivo, cada vez
+mais rapido, mais assombroso, engrandecimento, gosa se, não obstante,
+por longa e pacifica posse, d'este seu não _privilegio_, se não
+_direito_ essencial; e os seus Bispos são pelo menos tão independentes
+no tocante á cura de almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas
+os proprios Bispos protestantes.
+
+
+XXVI
+
+Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo a
+regeneração do Clero pelos seus principes (unicos legitimos em tudo que
+ao seu ministerio se refere) cabe esperar que a optima parte das nossas
+populações ruraes se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que
+a minha gente de S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida até
+por cortesãos, quando sahirem a folgar no campo algum estio.
+
+Para então é que este livrinho, semelhante aos frutos que amadurecem em
+casa e ás escuras, ha-de ter para mais alguem o sabor que eu já lhe
+tomo.
+
+ * * * * *
+
+Se elle consegue, para além das raias da minha expectação, fazer com que
+um só captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou que um unico
+solitário aprenda a conhecer alguma parte da sua encoberta
+bemaventurança, já não trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos
+maiores triumphos literarios.
+
+
+FIM DO PROLOGO
+
+
+
+
+
+Notas de Castilho a este Preambulo
+
+
+NOTA I
+
+Fontes de estudo
+
+
+Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela mente que
+houvesse algum dia de bosquejar esta humilde Odyssêa dos sitios e gente
+d'ella, nada trouxe apontado a tal respeito. Revolvendo as minhas
+memorias não escritas, achei n'ellas consideraveis lacunas, mormente no
+tocante á topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar.
+N'esta pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S.
+Mamede da Castanheira, o Rev.^{do} Padre Antonio Jozé Rodrigues de
+Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos imperfeito o meu
+painel, em que faltará tudo, á excepção de verdade nas coisas, e nos
+retratos parecença.
+
+
+NOTA II
+
+Parochos
+
+Na generalidade que estabeleço, por muito convencido, caberá fazer
+algumas gloriosas excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho, n'esta
+freguesia de Santa Isabel[5], o Rev.^{do} Padre Jozé Jacintho Tavares, é
+varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de sãos costumes,
+sobredoirados de indole sociavel e amena, e incançavel na caridade. As
+reparações e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que
+elle serve, nada são comparados com os soccorros de pão, de letras, e de
+instrucção christan e civil, que já começam a disfrutar os indigentes da
+sua freguesia. Largos são ainda os seus projectos; ajude-o a
+Providencia; deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade
+filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá transformado,
+pela educação, creancinhas ainda hontem desamparadas, e a pique de
+perdimento. Não quiz perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o
+clamor da gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto.
+
+
+FIM DO PRIMEIRO VOLUME
+
+
+
+
+Notas:
+
+[1] O Doutor de capello José Feliciano de Castilho Barreto falleceu na
+Castanheira do Vouga a 6 de Março de 1827, e foi enterrado na capella
+mór da egreja parochial. Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os
+seus restos mortaes para o jasigo da sua familia no cemiterio dos
+Praseres em Lisboa, onde se conservam.
+
+ Os Editores
+
+[2] Existe ainda este cedro que tem alcançado descommunal corpulencia.
+Chamam-lhe por lá _o cedro do poeta_, ou _do Castilho_.
+
+ Os Editores.
+
+[3] Ovidio--_Os Fastos_--Liv. VI.
+
+[4] Allusão aos amargores da redacção da _Revista Universal Lisbonense_,
+minuciosamente narrados _nas Memorias de Castilho_.
+
+ Os Editores.
+
+[5] Castilho morava então na rua de S. Marçal.
+
+ Os Editores.
+
+
+
+
+
+
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
+
+Sociedade editora
+
+Livraria Moderna
+
+95--RUA AUGUSTA--LISBOA
+
+
+
+
+Obras completas de A. F. de Castilho
+
+XX
+
+O Presbyterio da Montanha
+
+VOLUME II
+
+[Figura]
+
+
+LISBOA
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
+95, Rua Augusta, 95
+1905
+
+
+OBRAS COMPLETAS
+
+DE
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
+
+VOLUME 20.^o
+
+
+
+
+VOLUMES PUBLICADOS:
+
+
+I--Amor e melancolia.
+II--A chave do enigma.
+III--Cartas de Ecco e Narciso.
+IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.)
+V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.)
+VI--A primavera (1.^o vol.)
+VII--A primavera (2.^o vol.)
+VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas.
+IX--Vivos e mortos (2.^o vol.)
+X--Vivos e mortos (3.^o vol.)
+XI--Vivos e mortos (4.^o vol.)
+XII--Vivos e mortos (5.^o vol.)
+XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.)
+XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.)
+XV--Vivos e mortos (8.^o vol.)
+XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.)
+XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.)
+XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.)
+XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.)
+XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.)
+
+
+NO PRÉLO:
+
+
+XXI--O Outono.
+
+
+
+
+
+OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
+
+XX
+
+O PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+VOLUME II
+
+[Figura]
+
+LISBOA
+
+Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_
+
+
+LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA
+Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47
+
+
+1905
+
+
+
+
+I
+
+A PRIMEIRA NOITE NA SERRA
+
+
+
+ ... Ibi haec incondita solus montibus et silvis studio jactabat
+ inani.
+
+
+¿Vélo? ¿Sonho? ¿Deliro?! ¿Em solitario monte,
+que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte
+nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,
+de mundo a tumultuar, de cidades a rir...
+ n'este ermo ignaro, frio, mudo...
+aqui... (¿deliro? ¿ou sonho?) aqui meu lar, meu tudo!
+ ¡o meu presente e o meu porvir!
+
+ Genio invisivel da montanha,
+ de astros, de sol, o ceo te banha;
+ o mar de longe te acompanha
+ no livre cantico sem fim.
+Escada de Jacob da terra ao firmamento,
+ a mansão tua é monumento
+da potencia, do amor, das glorias d'Eloïm.
+
+Emquanto, em derredor do solio teu sublime,
+a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,
+se volve, se transforma, e sua angustia exprime
+n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,
+ a variedades sobranceiro
+mantens-te qual surgiste, e do cahos primeiro,
+ e do diluvio assolador.
+
+ Silencio e paz comtigo habita;
+ o ermo é como o eremita;
+ loucas vaidades não cogita;
+ ama o seu rustico trajar;
+em apparente inercia ama que ferva occulto
+ de seus affectos o tumulto,
+seus extasis, seus ais, seus gostos, seu orar.
+
+Sim, Genio da montanha, Archanjo de poesia:
+eu creio em ti; eu creio em que alma ingenua, pia,
+póde ouvir de tua harpa a casta melodia,
+e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;
+ sim; mas eu, frivolo, profano,
+á solidão extranho, affeito ao mundo insano,
+ ¿que hei-de esperar? ¿que tenho aqui?
+
+ Toda a minh'alma se entristece,
+ e se confrange, e se ennoitece,
+ ao ver que a sorte lhe destece
+ de um sopro os aureos sonhos seus.
+Sonhava applausos, gloria... ¡em desterro desperto!
+ sonhava mundo... ¡acho um deserto!
+sonhava inda illusões... ¡e escuto-lhes o adeus!
+
+Náufrago, perco a lyra em meio da viagem.
+¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal paragem,
+quem me resurgirá? Dos montes a linguagem...
+oiço... escuto... medito... e em vão quero entender
+ é como uns sons de ignota fala;
+qual ás penhas o mar, me inunda e me resvala,
+ sem me abalar, nem me embeber.
+
+ ¡Oh! ¿á minh'alma taciturna
+ que importa, ó montanha soturna,
+ que de perfumes sejas urna
+ da terra erguida sobre o altar?
+¿que o ceo te ria azul, mais amplo e mais de perto,
+ que o sol doirado, ao teu deserto
+mais cedo suba, e á tarde o desça com pesar?
+
+Vir mais tardia a noite, a aurora vir mais cedo,
+¿que me aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,
+só ouvindo os tufões e os corvos no arvoredo,
+bramirei:--«¡Cresce o tempo! ¡oh! ¡supplicio cruel!
+ ¡são mais pesares, mais saudades,
+mais estro a arder em vão, mais visões de cidades,
+ mais tentações a dar-me fel!...»
+
+ ¡Ai! ¡mundo! ¡ai! ¡eccos seductores!
+ ¡Tanto vate a ceifar louvores!...
+ ¡Tanto moço a colher amores!...
+ ¡Tantos loireiros e rosaes!...
+E eu n'esta solidão a torcer-me arraigado,
+ qual roble que geme indignado,
+vendo ao longe no Oceano os lenhos triumphaes!
+
+Assim ruge, baldão de vingativo nume,
+esse que a argilla outr'ora encheu de ethereo lume;
+assim, nos gelos sua, agrilhoado ao cume
+do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz.
+ Só o abutre de eterna fome,
+que o grande coração algoz sem fim lhe come,
+ responde em ais á sua voz.
+
+ Fenece o dia. ¡Hora jocunda,
+ que eu tanto amava! ¡hora fecunda
+ dos cantos meus! ¿por que me inunda
+ nova amargura o coração?
+¿Sino crepuscular, tôas funéreo dobre?
+ a serra em luto se me encobre;
+a nocturna mudez duplica a solidão.
+
+Nenhuma luz scintilla; humana voz não sôa.
+De estrellas a accender-se o Empyrio se povôa;
+tal a fada Coimbra, a senhoril Lisboa,
+nest'hora a quem as olha, entram no escuro a abrir
+ de luzeiros um labyrinto.
+¡Ceos! ¡Não oiço eu troar... seus coches!... O que sinto
+ é vento em selvas a rugir.
+
+ Calae, fugi, ventos agrestes;
+ sumi-vos, lampadas celestes;
+ n'um seio a delirios já prestes
+ não susciteis mais tentações.
+Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; ou antes...
+ vós, astros, cifras de diamantes,
+o arcano me aclarae lá d'essas regiões.
+
+¡Oh! ¡se á minha razão, contradictoria, altiva,
+que ás trevas sente horror, e á clara Fé se esquiva,
+de vós, faroes do Ceo, baixasse a crença viva,
+que aos moradores do ermo inspira a vossa luz!...
+ ¡se me volvesseis as ditosas
+esp'ranças que hei perdido, alvas, ethereas rosas,
+ com que se enfeita e esconde a Cruz!...
+
+ Tornar-se-me-hiam de improviso
+ a solidão, em paraizo;
+ a magua, em perenne sorriso;
+ em alto cantico, a mudez;
+a mallograda lyra, o não colhido loiro,
+ em harpa augusta, em palmas d'oiro;
+e o monte, solio então, veria o mundo aos pés.
+
+Delirios sempre vãos, fugi de um peito enfermo;
+tu, só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr termo;
+ermo para ambições, é inferno, e não ermo;
+para a humilde piedade é que elle espelha o Ceo.
+ Gentis phantasmas de cidades,
+vinde, escondei-me o ermo em vossas claridades,
+ como um esquife em aureo veo.
+
+ ¡Vinde, cercae-me, endoidecei-me,
+ (embora em saudades me eu queime)!
+ O somno, as vigilias enchei-me
+ da vossa esplendida vizão.
+¿Val o riso choroso as festas da loucura?
+ vinde, guiae-me á sepultura,
+crente no amor, na gloria, e rindo á solidão.
+
+¡Eu blasphemo, eu desvairo! Aos encontrados votos,
+nem ecco respondeu n'estes covões ignotos.
+Não, cumes glaciaes, tão outros, tão remotos
+dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;
+ não, no silvestre seio vosso,
+nem de amenas ficções apascentar-me posso,
+ nem menos as posso esquecer.
+
+ ¡Valor! ¡valor! ¿Quem do futuro
+ sondou jamais o abysmo escuro?
+ ¡Apenas chego e já murmuro!
+ ¿O de que tremo acaso sei?
+Esperemos: talvez que inglorios, mas doirados,
+ aqui me aguardem, recatados,
+dias de estro e de paz, quaes nunca disfrutei.
+
+Se além, no presbyterio, humillima choupana,
+(Vaticano, e Queluz da pobre grei serrana)
+mais que fraterno amor sollícito se afana
+em me afôfar o ninho, a vida em me inflorar;
+ se n'um retiro verde e mudo,
+por elle tenho o leito, a mesa, o doce estudo,
+ sombras no estio, o inverno ao lar;
+
+ se a solidão que me apavora,
+ sómente o fôr vista de fóra;
+ se em seus recôncavos demora
+ gente feliz, povo de irmãos;
+se do antigo viver, das crenças de outra edade,
+ vestigios guarda a soledade;
+se poesia se vive entre estes aldeãos;
+
+se a alegria, serena, isenta de pesares,
+como a fresca saude, habita os puros ares;
+se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e mares,
+se Deus em toda a parte á Natureza ri...
+ coração meu, não desanimes,
+gozos que não prevês, e cantos mais sublimes,
+ encontrarás talvez aqui.
+
+ ¡Ah! sendo assim, ¡que importa a fama!
+ Tambem philoméla derrama
+ sua harmonia ás selvas que ama
+ longe de ouvintes e do sol.
+Cantarei. ¿Meu cantar mais ambições teria
+ que a viva, a lustrosa poesia,
+de perolas que a flux borbóta o rouxinol?
+
+
+
+ Castanheira do Vouga
+
+ Outubro de 1826.
+
+
+
+
+
+II
+
+O SEPULCRO OU HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO (POEMA)
+
+
+INTRODUCÇÃO
+
+(QUE É MELHOR DORMIR, QUE LER)
+
+
+ (Ermo alpestre entre cabeços de rocha e pinheiros, na serra do
+ Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um arrieiro, ambos a
+ cavallo, transviados na montanha.)
+
+
+
+I
+
+
+--Bem lh'o disse eu, perdemos o caminho;
+a velha era por força alguma bruxa.
+Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a touca!
+--Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?)
+tres vezes t'o ensinou.
+ --Nem trinta vezes
+que eu passasse por elle, o aprenderia;
+a não ser pelo rasto que deixasse
+esmurrando o nariz por essas lapas.
+Já levo sem ferrage ambas as mulas;
+perdeu-se o norte; não descubro casa,
+nem gente, nem caminho, e é quasi noite.
+Patrão, por meia legua mais ou menos,
+não se deixa uma estrada como aquella,
+que costeava o monte á beira da agua.
+A velha era uma bruxa, e nós dois asnos.
+--Dize um que vale dois, mas dois não digas.
+Se tomámos o atalho em vez da estrada,
+toda a culpa foi tua; eu não queria,
+porem teimaste; e eu não me opponho a teimas.
+--Mas eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita,
+com ar de santa, e palavrinhas manças,
+nos rabiscou co'o pau no pó da estrada
+tão claramente as idas, as venidas
+d'esta serra sem fim, não lhe escapando
+lomba, moiteira, torcicólo ou brenha,
+que a mula mesma entenderia o mappa!
+¿Quem não cahia em tal? cahiam todos.
+E de mais ¿quem nos diz que aquelles riscos
+não tinham diabrura ou nigromancia
+capazes de encarchar um Santo em carne?
+¿E quem me diz a mim que a grenha russa
+não vai ao pé de nós? ¡talvez sentada
+na anca da mula!... ¡_fúgite_, demonios!
+ Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;
+quem mais anda, mais sabe; e eu não sou tolo,
+nem creancinha de honte. ¡Olha o diabo!
+bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;
+caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a parta!
+¿que havemos de fazer nestas alturas?
+--Tornarmos para traz.
+ --¿Por este escuro?
+¿quer dar cabo das mulas, e estoirar-me?
+¡co'um milhão de diabos!!...
+ --Pois fiquemos.
+--E as mulas comam terra, como os sapos,
+e nós carqueja.
+ --As noites são bem curtas.
+--Se ao menos se avistasse alguma venda...
+--Em rompendo a manhan teremos tudo.
+Por agora apeemo-nos.
+
+(_Apeiam-se._)
+
+ * * * * *
+
+ --No inferno
+estoire entre um milhão de Satanazes
+o que inventou primeiro andar de noite;
+era o maior ladrão... ¿Que bulha é essa?
+--Não é nada; uma pedra que rebola.
+--¡Que rebola!? ¡e sem mão! será bonito,
+mas nem por isso engraço. ¿E aquelle bruto
+lá em cima no pinhal, que guincha tanto!
+--Algum mocho.
+ --Más balas o atravessem,
+e lhe acabem co'a casta antes de um'hora;
+cuidei que era outra coisa. Eu na taverna
+valho por cinco ou seis; mas cá perdido,
+e então de noite, um pisco me põe medo.
+--Pois dorme.
+ --¿O quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás barbas!
+só se eu fôsse algum bêbado. Esta noite
+nem pregar olho, nem largar das unhas
+dois penedos; e ao pé já está reforço.
+--Golgan, já que não foi por nossa escolha,
+busquemos contentar-nos co'a poisada,
+que inda não é tão má como o parece.
+¡Quantos ha menos bem acomodados
+por esse mundo agora! uns em cadeias,
+outros entre ladrões, náufragos outros,
+estes em luto, aquelles em doença.
+Bastantes em colxões de plumas fôfas
+revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,
+cuidados tristes, asperos remorsos.
+¡Quantos até nas salas mais alegres,
+entre as luzes, e as muzicas, e as danças,
+mas em face de um sôffrego banqueiro,
+padecem mais que um reo chegando á fôrca
+Não ha mal sem peor; qualquer estado
+se se compara, é bom; com cara alegre
+suavisam-se os incommodos; um fardo
+n'um hombro impaciente é fardo e meio.
+Quem não soffre um descommodo pequeno
+nos grandes morre; um leve desagrado
+dá realce ao prazer quando nos volta.
+Qualquer estado, e pessimo que seja,
+tem seu lado risonho; e é da prudencia
+d'entre os picos da silva achar a amora.
+_Amen_.--Brava o latim; dá ceia e cama.
+--A falta d'esta ceia é novo adubo
+do almoço de amanhan; e emquanto á cama,
+¿que outra melhor do que esta em mez de Junho?
+Nem paredes nem tectos, que nos roubem
+a viração da noite apoz a calma;
+por entre essa quebrada dos penhascos
+lá em baixo o mar co'os seus murmurios frescos;
+sobre nós, e por baixo das estrellas,
+pendendo como um lustre, este carvalho
+cravejado de insectos que entre-luzem;
+dois rouxinoes ao longe; as lageas, mornas.
+Vê; que soberba camara!; que leitos
+desde a origem dos seculos nos guarda
+no seio d'esta brenha a Natureza!
+--Ao menos não tem pulgas. ¡Xó, canalha!
+¡leva rumor! é bom pregar de coices.
+Não durma, Sôr Doutor.
+ --Não tarda muito
+que eu não entre a sonhar ¡Que bellos sonhos
+não devem ser os de uma noite d'estas!
+--Tenha lá mão com isso; o que eu prometto,
+para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada
+de casos que eu passei na minha vida;
+tão rara, que podia ir á _Gazeta_!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Uma vez ia eu só; era em Novembro;
+chuviscava e fazia um tal escuro
+que era metter os dedos pelos olhos.
+(Lembrou-me esta a proposito da mula
+escoicinhar sem causa.) E era bom tempo
+aquelle; andava Christo pelo mundo;
+tinha eu mais duros, que patacos hoje,
+e andava o oiro aos pontapés da gente;
+tambem... ¡já cá não torna! O grande caso
+é que n'aquelle tempo era eu solteiro,
+e rapaz bonitote; e havia muitas
+que me fizessem fogo; eu cuido, e é certo,
+que não pelos vintens; nem pela cara;
+mas isto de casar co'um almocreve,
+seja elle o diabo dos infernos,
+parece a todas bem: é uma delicia
+ter o seu homem só de vez em quando,
+em logar do espião de um pegamaço
+com residencia fixa em ar de abbade.
+Mas... não é bom falar na vida alheia.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Como lhe ia contando, era almocreve;
+chamavam-me o _Chupista_. ¡Oh! que bolaxa
+que eu pespeguei na cara do coécas
+que me inventou a alcunha em certa venda!
+qualquer creança lhe moia os queixos;
+já lá está onde o pague ¿Onde ia o ponto?
+¡ah! sim; era almocreve e recoveiro;
+e andava com dez machos todo o anno
+a correr quanto valle e monte havia
+para cobrar o fôro aos Frades Cruzios.
+Que isto do fôro é bom, nem que pareça;
+uns pagam-lhe borel, outros centeio,
+queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,
+gallinhame por arte do diabo,
+ovos, e até o musgo onde se empalham.[1]
+Não ha n'um pardieiro um desgraçado
+que não deva pagar alguma nica.
+Já vê donde me vinha a minha alcunha;
+mas sem rasão; é porque andava ás ordens.
+Tambem já tenho ouvido alguns autores,
+tal como o meu cunhado, e mais uns certos,
+que é coisa bem mal feita a tal derriça;
+Mas bem feito ou mal feito, eu não sou Papa.
+Vamos cá co'o meu conto.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Era uma noite,
+cuido que já lh'o disse, ali por Maio,
+e fazia um luar... que era um consolo.
+
+ Eu saio a meu avô; se é boa a estrada,
+gósto de andar de noite havendo lua;
+cá pelas brenhas não, que não sou lobo.
+Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,
+em cima de uma carga de presuntos,
+pela estrada real, co'os sete machos
+a dormitar ao som da chocalhada.
+Vinhamos caminhando em certo passo
+de quem gosta da noite, ou vem sem pressa,
+ou de quem traz comida a gente farta.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Que lhe digo, em abono da verdade,
+que servir Santa-Cruz não dá desgosto:
+pagam bem, fazem festa ao gallinheiro,
+vendo os machos no pateo é uma alegria!...
+¡aquillo até os olhos se lhes riem!
+dão pinga, e de cear, e muitas vezes
+vi eu estar vai não vai a dar-me um beijo
+o Frade gordo que recebe o saque.
+¡Bom tempo! ¡bom de lei! já cá não torna.
+Não durma Sôr Doutor.
+ --Não durmo; acaba.
+--¡Acabar! não acabo em toda a noite,
+nem que estoire a barriga do diabo.
+Inda eu não comecei. Lembra-me um Frade
+que havia em Santarem; tinha um cachaço,...
+por tal signal que até revia enxundia;
+¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!...
+¡Mas aquillo! a prégar era uma joia;
+um sermãosinho d'elle atarantava
+e punha tudo azul. Tinha a constancia
+de arrumar prègações de duas horas.
+N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...
+(e olhe, foi tanto, que eu, e muita gente,
+já tinhamos dormido á regalada)
+disse muito pausado: «Eu principio.»
+
+ Assim faço eu tambem. Todos devemos
+tirar das prègações algum proveito.
+Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia;
+porém tenha lá mão, que a levo errada.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Nesse dia á tardinha, na estalage
+tinha entrado uma velha; era um diabo,
+que isso... só visto! pequenina, magra,
+muito preta; era um bilro de pau santo.
+Tinha pela cabeça um lenço pardo
+atado pela barba, um manteo ruço,
+e uma mantinha exotica e de agoiro.
+Tinha então uma cara não sei como;
+nem parecia cara; era um nó cego
+que fazia azoar a toda a gente;
+mas muito experta; e uns olhos como um bixo.
+¡Tambem aquella rez tinha no corpo
+muita pipa de sangue de creanças!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Cheguei eu á estalage, e ia com fome;
+vou-me á carga do fôro, agarro uns ovos,
+mando os frigir com mel, que é papa fina;
+e então para quem tem de andar de noite
+dizem que é bom, que livra do catarro,
+já se sabe com quatro pingarolas.
+Ia se preparando o meu guizado,
+e era um cheiro tão bom pela cosinha,
+que isso não ha dizer. Já dois gallegos,
+e mais, tinham ceado; andavam tolos
+a cochichar, e ás voltas pela casa,
+um olho em mim, outro olho na tigella,
+e eu muito concho a rir, e a pescar tudo.
+Basta dizer que me pediram ambos
+que vendesse um quinhão; ¡e isto em gallegos!
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.
+Mas o monstro da velha era uma estaca
+ali muito direita ao pé dos ovos,
+com cada olho aberto, ¡que te parto!
+Era mesmo um olhar de inveja e zanga.
+Logo eu tive má fé co'a tal menina
+quando ella perguntou quem era o dono.
+Porém quem mal não usa mal não cuida;
+sentei-me á meza a codear nos ovos.
+Ora agora o vereis: a minha amiga
+amúa-se n'um canto, mais vermelha
+que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella.
+Ferra os olhos em mim com tal quezilia,
+que a não ser por temer a Deus e a ella,
+batia-lhe co'o prato pelas trombas.
+Botava cada lagrima... ¡de punho!
+dava cada suspiro, a excommungada,
+¡que punha medo! accendo o meu cigarro,
+pago, monto a cavallo, e sigo a estrada.
+
+ Era já noite escura, e um vento frio
+como o gran Satanaz.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ ¿Que diabo é isso?
+ressona?; ou já na costa anda algum moiro?
+--Avante; são as ramas que sussurram.
+--Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando
+pela estrada real por ser já tarde,
+e a assobiar sósinho o _tiroliro_.
+Vai senão quando, estacam-se-me as bestas.
+Á esquerda, como ahi, ficava um monte;
+d'esta banda um pinhal muito fechado;
+de sorte que o caminho (e então mui longe
+de todo o povoado) era um soturno,
+que nem Roldão o andava áquellas horas.
+Entrei logo a suar e a arripiar-me;
+e as mulas n'um inferno de pinotes
+sem quê nem para quê; davam taes rinchos,
+que se fundia o chão; pregavam coices,
+que assoviavam no ar; ¡que contradança!
+era uma groza de diabos doidos,
+e eu mais doido, no meio, á bordoada.[2]
+Aqui digo eu como dizia o Frade
+n'outro sermão de um Santo; _não lh'o pinto
+por não ter um pincel_. Mas faça ideia
+que tal eu ficaria lobrigando
+(¡eu te arrenego diabo!) uma luzerna
+a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo,
+lá longe no pinhal. Que era bruxedo
+tive eu logo de fé; muitos que m'o ouvem
+riem-se, e tal; deixal-os rir; ha bruxas;
+que isso sei eu; ¡e então ali! ¡tão tarde!
+Por força era algum sabbado lá d'ellas,
+que as taes amigas juntam-se de noite
+a fazer os seus sabbados, o mesmo
+como nós no Natal á meia noite...
+Ha muita comezana de creanças,
+sarrabulhos de sangue, cambalhotas,
+e umas rizadas..... que até Deus se admira.
+No meio anda um pretinho muito gordo,
+que é o proprio diabo em carne e osso.
+Diz então muita coisa a todas ellas,
+dá-lhe lá seus conselhos, toma contas
+do que teem feito, e..... acaba a tal comedia.
+Untam-se co'uma untura que lá sabem,
+transformam-se em corujas e mosquitos,
+o diabo e o lume sorvem-se na terra
+dizendo boa noite até tal dia,
+e ellas voltam-se a casa a armar já outras.
+Isto sabia-o eu como os meus dedos.
+Lembrou-me a tal gulosa da estalage,
+e então é que dei tudo por perdido.
+Deitei fóra o cigarro, e entro em voz baixa
+(¡sempre isto do pavor faz muita asneira!)
+entrei eu co'as mãos postas para as mulas
+a pedir-lhes co'as lagrimas nos olhos,
+pelas Almas Bemditas, que deixassem
+todo aquelle motim, que me perdiam;
+que fugissem d'ali, que andavam bruxas,
+e que pé ante pé viessem vindo;
+que eu promettia uma ração dobrada.
+Partimos. De repente desembésta
+d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto
+direito para nós como uma xára.
+Com seis milhões de grozas de diabos!
+¿quem havia de ser, senão a velha?
+Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,
+chega ao cimo, e de lá muito sizuda
+entra a dizer-me adeus, e (¡t'arrenego!)
+a fazer-me uma cara dos infernos...
+--¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?
+--Certo é que lembrou bem; tambem agora
+lá me faz confusão ter visto a cara.
+¿Escuro? isso era escuro como um prego;
+não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e vi-lh'a;
+¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje
+tão bem encasquetada no juizo,
+que a podia pintar, e era pintura,
+que urrariam os bois se lh'a mostrassem.
+Quer escuro quer não, vi-a, e está dito.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas o bom não foi isso; o mais bonito
+foi entrar de repente o gallinhaço
+nas canastras da carga em cantarolas,
+a romper, a fugir, e eu pila pila
+para aqui, para ali, correndo ás cegas
+sem as poder juntar. Foi se-me a noite
+n'esta labutação; de cada canto
+sentia um cacarejo, ia ás carreiras,
+gallinha... por um oculo. Já rouco,
+moido e desesp'rado, ao romper d'alva
+vejo as minhas senhoras mui contentes
+todas juntas n'um bando ao pé das mulas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas alto; esta é peor. ¿Não vê? repare:
+¡um clarão para ali!! d'esta nos trincam;
+¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a morte!!
+--Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta?
+--Para nós ambos de Fieis defuntos.
+--De San João.
+ --¡Ah! sim; pois é fogueira,
+e não é outra coisa. ¡Ora o diabo!
+sempre tive uma colica soffrível.
+Mas vamos nós a andar, se lhe parece.
+Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,
+n'umas rasões que teve com meu tio,
+que era barbeiro então, e o Padre Mestre
+era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,
+ia fazer-lhe a barba e mais ao preto,
+que era um tição que só á bofetada;
+¡mas muito presumido! ¡e então por moças
+dava o grande magano um cavaquinho!!...
+Com que emfim, tinha o Padre este ditado:
+aonde ha lume ha fumo; e eu então digo
+que por força onde ha lume ha-de haver gente;
+e que onde ha gente ha casa; e toda a casa
+tem a sua cosinha, e então ceâmos.
+E é partir de repente em quanto ha lume.
+.........................................
+.........................................
+
+
+
+II
+
+
+Eis aqui um dialogo de ensanchas
+sem geito, sem sabor, sem fim, sem nexo--
+grita o leitor perdendo as estribeiras.
+¿Onde foi isto? ¿ou quando? ¿quem são elles?
+¿onde vão? ¿d'onde veem?
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Leitor amigo,
+ha duas horas que soubéras tudo,
+se o cruel arrieiro o permittisse;
+mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.
+Quanto a elle, presumo que o conheces;
+o nome do outro autor dir-t'o-hei n'um verso
+não peor que outros muitos portuguezes:
+Antonio Feliciano de Castilho.
+Venho do Minho de assistir a bodas;
+recolho me outra vez á Castanheira[3]
+a casa do Prior, a fazer versos,
+beber-lhe o vinho verde, e dormir muito.
+O theatro da scena é certo monte
+de que me esquece o nome; o anno, e o dia,
+Mil oitocentos e vinte e oito, á noite,
+vespera de S. João. Se mais desejas,
+é perguntar, que eu te respondo a tudo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas o melhor (se queres um conselho)
+é fazer-me um favor, ao qual protesto
+ser toda a vida grato: anda comnosco;
+a noite está bellissima; podemos
+ir co'o nosso vagar pataratando,
+e conduzindo as mulas pela redea.
+Mas tens medo ao Golgan; pois boas noites;
+fica-te em paz, regala te, que eu juro
+que estando em teu logar fazia o mesmo.
+Se queres, faze ás paginas seguintes
+onde vai mais Golgan (porque já agora
+hei-de contar a historia por miudo)
+faze, digo, a taes paginas o mesmo
+que eu, tu, e elle, e nós, e vós, e elles,
+fazemos ás dos _Martyres_ do Padre,
+que são apezar d'isso uma obra prima.
+Passa-as em claro, e dize que já leste.
+Quem fala assim não quer suor alheio.
+E adeus; até mais ver que vou com pressa.
+.........................................
+.........................................
+
+
+
+III
+
+
+--Olhe lá, Sôr Doutor; diz um livrito,
+que a gente sem falar é como os burros;
+e eu digo que diz bem. Quero contar-lhe,
+para ver se se encurta este caminho,
+o mais que se passou depois da historia.
+Mas vá picando a mula; ¡olhe a fogueira!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Com que, como eu já disse, ao outro dia
+vi as gallinhas ao redor das bestas;
+torno-as a pôr na carga, e digo logo:
+A Santa-Cruz não vão vocês de certo;
+nem vocês, nem a carga dos presuntos,
+nem nada que aqui vai, ¡com trinta infernos!
+Servos de Deus tão bons, tão meus amigos,
+¡haviam comer tal! ¡metter no corpo
+talvez quanto bruxedo ha neste mundo!
+Deus me livre do mais, que de encarrêgos
+posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas
+direito á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,
+com carga e tudo.
+ --¿As mulas!
+ --Pois as mulas
+tinham tantos diabos na muchilla
+como as gallinhas, os boreis, e os ovos.
+Mas eu era rapaz; se fosse agora,
+não digo que o fizesse. O divertido
+foi andar eu trez annos para quatro
+a correr Portugal e Hespanha toda
+a buscar confessor; ¡tudo ignorante!
+Padre douto, nem um que me absolvesse.
+Por fim achei o filho de um cigano,
+dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.
+Mas então penitencia não falemos;
+se a quizesse rezar, ¡nem toda a vida!
+Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro duro,
+e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;
+mas disse-me que havia até ser velho
+mortificar o corpo co'um vergalho,
+e com muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato!
+Sabe então o que fiz inda algum tempo?
+era correr de chôto os meus pedaços,
+e depois descançar.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Deixemos isto,
+que não lhe importa muito, e a mim nem nada;
+vim para a minha terra apenas pude,
+muito pimpão, e cheio como um ovo.
+Namorei, namoraram-me bastantes;
+por encurtar rasões, casei com uma
+que era filha do irmão de um primo ou tio
+de um meu compadre Abreu, que era cunhado
+da sogra d'esta mesma rapariga,
+e enteado do irmão do Cura velho;
+tudo gente limpinha, muito boa,
+e temente ao Senhor, que é todo o caso.
+Gastei para impôr Bulla os meus tanturrios,
+¡e não foi lá tão pouco! ¡Veja agora:
+¡para a gente casar largar dinheiro!
+É como ir para a India ou para a fôrca,
+e pagar inda em cima aos da sentença.
+Perguntei ao Banqueiro a causa d'isto,
+disse me elle que a causa era nós termos
+quatro humores no corpo, e d'aqui vinha
+haver os quatro grãos na parentela;
+que ella era minha prima, e que entre primos
+havia os quatro grãos todos inteiros.
+Não se riu, nem me eu ri; paguei-lhe em peças
+não só os quatro grãos que se não viam,
+mas ainda mais cá certa brincadeira.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Deixar; fosse o que fosse; emfim, casei me.
+Aquelle mez primeiro é uma delicia;
+foi todo elle um _cantate_; muito amigos,
+muito beijo, e comer; muita broega,
+muita romage, e tudo muito e muito.
+Nunca houve um par assim tão contentinho;
+nanja na aldeia e na comarca em roda;
+era até amizade escandalosa.
+Tanto assim, que o Prior, mais era amigo
+de fazer a vontade a toda a gente,
+n'um dia santo á pratica da Missa
+deu-me um foguete ¡caspite! Disse elle
+que marido e mulher com tal namoro
+era coisa mais vil que mil diabos.
+Fizemos-lhe a vontade antes de muito;
+ella entrou-me a azoar com trinta coisas,
+e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,
+o asneirão do Juiz, que era vizinho,
+tomou isto em trambolho, e ameaçou-me
+de me encaixar no fundo dos infernos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿E então que lhe parece a entaladella?
+Vivia em paz, ralha o Prior; dezanco-a,
+vem o Juiz, promette-me a enxovia.
+É como o conto de um palerma velho
+que ia a pé co'um rapaz e mais um burro.
+--Bem sei.
+ --Pois sim senhor. Com que, tivemos,
+não digo bem; teve ella oito ou dez filhos;
+e sempre a dois e dois; forte coelha!
+Entrei a dar á bruta; acudiu povo,
+ella fugiu, mas eu fugi sem ella.
+E d'então para cá desandou tudo.
+E hoje ando aqui por moço de arrieiro,
+a perder noites, e a estrompar as ventas.
+Aqui está por que eu digo que este mundo
+é coisa muito celebre! uns ovitos
+e uma pinga de mel fizeram tudo.
+........................................
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Brava! ¿não ouve uns sinos que repicam?
+¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o Vinagre!
+¡e viva a ceia e a cama que estão perto!
+
+
+
+IV
+
+
+Com effeito, assim era; a poucos passos
+já se ouvia tambor, gaita de folles,
+risadas, bombas. Apressando as mulas
+na direcção dos sons e da fogueira,
+descemos uma encosta, a cujas abas,
+entre uns poucos de antigos castanheiros,
+uns cinco ou seis pastores se occupavam
+a abobadar de murta uma fontinha.
+Interromperam logo o seu trabalho
+para nos vir saudar; mostraram pena
+de ouvir que nos perdêramos no monte,
+off'recendo á porfia os seus albergues.
+Não findara a benevola contenda,
+se um d'elles agarrando o freio á mula
+me não posesse a andar; agradecendo
+os desejos dos mais que inda ficavam,
+segui affoitamente o nosso guia.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Uma ponte de pau que atravessámos
+coberta de chorões, nos poz á borda
+de um trigo já maduro e sussurrante,
+contiguo ao seu casal. ¡Quanto eu folgara
+de descrever tudo isto! Uma casinha
+plantada ahi como risonha ilhota
+n'um vasto mar de tremulas searas,
+e clara como a neve, ou como a lua
+que a espreitava do ceo por entre as folhas
+de um esquivo parreiral. Junto ás paredes,
+de rosas e limeiras revestidas,
+canapés de cortiça apresentavam
+a imagem do descanço e a do convite.
+Não era necessario entrar a porta,
+para já conhecer o domicilio
+da hospedage e da paz; que as proprias auras,
+como que em tão poeticas folhagens
+se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo o estranho!»
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Não longe lhe ficava a sua aldeia
+na c'roa de um oiteiro; pensarieis,
+vendo-as tão perto, e um bosque a separal-as,
+a aldeia tão brilhante de fogueiras
+e esta casa tão só mas tão alegre,
+pensarieis, como eu, ver n'uma festa
+moça ausente e feliz, amante e amada,
+que entre o prazer commum não quer nem deve
+ir desfazer seus pensamentos doces.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Visinho seu mui proximo era o templo,
+aos valles do arredor alardeando
+na sua torre branca um Anjo de oiro,
+e a um lado a Residencia, occulta em parte
+n'um ramilhete de altas cerejeiras.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Nunca mão de pintor juntou n'um quadro
+objectos mais simpathicos. Tal como
+trépido arroio em tacita espessura
+das copas bebe a sombra, e envia ás copas,
+do sol reflexo voadores raios,
+do casal a presença alegra o templo;
+a presença do templo está lançando
+sobre o casal o sério da virtude.
+Tudo isto sob um ceo de fertil benção,
+sobre um chão de abundancia, e no ar mais puro!
+--¡Meu Pae,!--grita o pastor entrando á pressa--
+minhas irmans! ¡um hospede!--
+
+
+ * * * * *
+
+
+ A tal nome,
+como se fosse á voz de alguma fada,
+com repentina luz nos apparecem
+creanças folgasans, esbeltas moças,
+um ancião, e uma velha. Imagináreis
+ver Graças, ver Amores, ver Napêas,
+trajados de aldeãos, e honrando os lares
+de Baucis e Philémon, que o parecem
+na edade e na virtude os meus dois velhos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Não mora entre seáras a etiqueta;
+mas sobre herdada meza de pinheiro
+em troco adeja a cordeal franqueza,
+o bom desejo adubo da abundancia,
+e a amisade dos bons, filha do instincto,
+que nasce qual relampago, mas dura.
+Deu-se o primeiro instante ao comprimento,
+logo o segundo aos commodos; o resto
+á conversa, e ao bulicio de tal noite.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,
+vital perfume de mellifluos bolos,
+que em molles virações traz a alegria.
+Aquella vai e vem compondo a meza;
+esta afervora a ceia, e a cada instante
+corre á janella que descobre a aldeia.
+Juntam-se á bulha os sinos da parochia,
+que o sacristão na vespera do Orago
+jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra.
+O festivo repique exalta as mentes,
+os meninos não param, correm, gritam,
+repartem bombas, furtam-se valverdes,
+e rindo ameaçam fogo á pipa velha.
+A boa annosa mãe ralha do estrondo,
+e o faz inda maior; o esposo enfia
+uma sobre outra historias do seu tempo.
+O avito candieiro de tres lumes
+cobre da meza o centro, e chama á ceia;
+a sôlta sociedade eis se lhe aggrega.
+Não foi longo o festim, mas cada copo
+lhe augmentava o praser. ¡Salve tres vezes,
+ó dos tres lumes candieiro avito!
+¡quanto amor, quanta paz, que bens, que festas
+não tens visto florir em tua casa!
+¡quantas mãos tão felizes como puras
+te hão accendido em noite igual! ¡quem sabe
+que de memorias para ti conservas!
+¡Em premio da hospedage aqui te accendam
+longas eras em noites semelhantes
+dignos de seus avós contentes netos!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Iria a muda apostrophe adiante,
+mas ouviu-se o zabumba.--¡Ahi veem! ¡são elles!--
+dizem todos, e todos saem pulando.
+--Olhae; olhae; ¡nem uma luz na aldeia!
+este anno veio tudo. ¡Que alegria
+terá o nosso Parocho!
+ --Maria,
+dá cá o meu chapéo.
+ --¡Corre, Pedrinho!
+--¿Onde está meu irmão?
+ --¡Não se demorem!
+--Vamos dançar.
+ --Perdi as alcaxofras.
+--Vinde por cá; passemos-lhes adiante;
+que rancho que lá vem!................
+..........................................
+.................... Golgan, que eu fosse,
+não pintara a estrondosa miscellanea
+que vôa do cazal ao Presbyterio.
+Lavra nos proprios velhos o alvoroço;
+vão co'os mais quasi a par; lavra em mim mesmo,
+estranho á festa. O pateo illuminado
+nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.
+--Viva o nosso Prior!...
+ --¡Viva!!!...
+ Mil vozes
+restrugem o ecco apenas avistaram
+rindo á janella o velho gordo e alegre.
+--¡Viva o Senhor San João! ¡viva a alegria!
+
+
+
+V
+
+
+Bate o zabumba; a muzica rebenta;
+fogem foguetes pelos ares livres
+estrepitando; o campanario ovante
+de jubilo endoidece; repentina
+por dez partes acceza alta fogueira
+dentro de um vasto circulo purpureo
+mostra o prazer brincando em cada rosto.
+Bello é ver n'este lance as raparigas
+compondo mais o lenço, alevantando
+o chapeo, que o semblante lhes encobre,
+dando, como a descuido, um toque leve,
+mas gracioso, ás flores que lh'o adornam,
+e á flor do seio, e ao laço do collete.
+¡Quantos nós ata amor n'esses instantes!
+¡quantos outros aperta! ¡em quantos outros
+embebe o espinho de um sutil ciume!
+
+¡Chiton! temos o Parocho na frente;
+e as cangalhas vêem mais do que parece.
+A _alegria decente_, eis o estribilho
+com que recheia as praticas. Se cantam,
+co'a cabeça e co'o pé bate o compasso;
+se pulam boa dança em honra ao Santo,
+bota fora uma can. Por isso o baile
+circula agora a estridula fogueira;
+por isso o San João vai toda a noite
+injuriado em canticos devotos.
+
+
+
+VI
+
+
+Meia noite. Que som mysterioso!
+interrupção no baile e nos descantes.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Fada das amorosas prophecias,
+tu, tu passaste agora em concha aerea
+tirada pelo zephyro; sentimos
+todos nós tua magica presença.
+¡Boa viagem, Fada, e boa noite!
+¡Salve, hora duodecima; bateste,
+e descerrou-se a porta do futuro.
+Sua nevoa desfeita em orvalhadas
+vai nas plantas eleitas, vai nas flores
+mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes
+benção, certeza, amor, felicidade.
+Já se interrompem bailes e descantes.
+Embebida em potentes nigromancias
+toda esta multidão por modos varios
+exerce escrupulosa altos mysterios.
+Mas renasce o alvoroço; é porque os copos
+dos bilhetes fatidicos chegaram
+da ama nas mãos com riso de importancia.
+
+--Não falta aqui rapaz nem rapariga--
+diz ella;--o senhor Padre escreveu todos,
+mesmo á vista do rol dos confessados.
+Meia noite já deu; quem quer casar-se,
+pode vir vindo.
+
+ Ao grande reboliço
+succedeu a attenção, que a cada sorte
+outra vez se converte em gargalhadas.
+Por cada par que amor approvaria,
+veem disparates comicos ás duzias,
+e dão rebate ás palmas e epigrammas.
+O proprio bom do velho applaude a tudo,
+e por primeira vez da sua vida
+encontra em si chorrilhos de finuras.
+Já pede a uma o bolo do noivado;
+quer ser padrinho de outra; e ás mais bonitas
+quer baptisar de graça os pequerruchos.
+
+Muito custa no mundo o ser discreto
+sem descambar o pé! coisas escapam...
+que é por Deus não haver o Santo Officio,
+como esta ao nosso padre:
+ --Olhae, rapazes,
+vai n'estas sortes o que vai no mundo:
+o acaso e a Providencia, ao que parece,
+ambos lêem pelo mesmo Breviario.
+
+Não foi dos mais christãos o epiphonema,
+mas fez rir. O Golgan neste comenos
+chega, furta uma sorte, e diz abrindo-a:
+--Esta, seja quem fôr, é cá p'ra nostri.
+
+Pede que a leiam; lê-se-lhe:--O coveiro.--
+Mudo o povo se entre-olha; e de repente
+co'as pragas do Golgan destampam risos,
+como os que o padre Homero encaixa aos deuses;
+¡inextinguiveis risos! Mas não cede
+a chufas nem a agoiro o varão forte;
+e com mão bem segura extrae sublime
+do outro copo outra sorte:--Ambrosia Trécula.
+
+Então do pateo o riso clamoroso
+deveu-se ouvir no Artabro e Guadiana,
+e retumbou nos ceos: Trécula... Trécula.
+
+--¿Quem diabo é esta Ambrosia?--o heroe pergunta.
+--Sou eu--responde a ama.
+ --¡Está brincando!
+é talvez sua neta ou titrineta.
+--Vá-se, tolo.
+ --Olhe cá, senhora tia,
+não vai a arrenegar; não lhe pergunto
+por cara, corpo e modos, que são lindos;
+¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa?
+
+Com o desdem mais dramatico, a matrona
+voltou costas; e o bêbado prosegue:
+--Sô Reverendo, não lhe aceite os banhos,
+que eu sou casado, e ponho impedimentos.
+
+Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem
+tirar tambem; tirei; ¿quem tiraria?
+uma das filhas do meu bom Philémon.
+Recebi parabens de todo o povo;
+deixei-o bem disposto a divertir-se,
+e tornei co'o o meu _sogro_ ao nosso albergue.
+Instou que me deitasse; respondi-lhe
+que em noite de San-João ninguem se deita;
+que alem d'isso a jornada fôra curta,
+e sem nimia fadiga; ultimamente
+que, pois que elle esperava a mais familia,
+esperava eu tambem; não sendo airoso
+faltar á noiva no primeiro dia.
+--Cedo, mas só co'a clausula--disse elle--
+que inda amanhan sois nosso.
+ --Assigno.
+ --¡Bello!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Então toca a palrar até que venham.
+Saiâmos, que faz calma; alem, na eira,
+sobre a alta palha do centeio novo
+tomaremos a fresca e as orvalhadas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Disse, e fez se. ¡Que ceo! ¡que paz! ¡que noite!
+na molle aragem das fagueiras horas
+meu coração feliz desabroxado
+me enchia de um perfume egual ao vosso,
+nocturnas flores, que o gosais sosinhas.
+¡Quem podesse apanhar, prender na vida
+estes momentos lubricos, momentos
+que só caem do ceo durante a noite,
+e só na solidão! Temi perdel-os
+co'a triste distracção de mutuas falas.
+Lembrou-me haver notado no meu velho
+um genio amigo de contar historias;
+pedi-lhe uma qualquer, bem decidido
+a deixal-o á vontade espanejar-se
+sem lhe dar attenção; mas enganei-me,
+Pondo o rosto na mão, nos céos os olhos,
+entra a buscar pela memoria antiga
+algum caso mais raro; e como desse
+casualmente co'a vista em certo lume
+n'um cabeço remoto,
+
+
+ * * * * *
+
+
+ --Ouvi--me disse;--
+por aquella luzinha lá ao longe
+lembra-me um caso, e um caso que foi certo,
+passado ali no Minho ha largos annos.
+Inda eu conservo em casa uns Breviarios
+de um Padre irmão da minha avó materna,
+que poderão servir de documento.
+Elle mesmo o escreveu nas folhas brancas
+do principio e do fim dos quatro tomos.
+E era um clerigo honrado, o que escrevia;
+merece tanta fé como a Escritura.
+Diz elle então ali (nem é só elle;
+minha Avó sua irman dizia o mesmo):
+que esta nossa familia inda descende
+da Rosa de quem fala a dita historia.
+A minha avó foi Rosa, e tinha o nome
+de sua mãe; a minha mãe foi Rosa;
+a vossa _noiva_ é Rosa; e n'esta casa,
+querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Depois d'este preambulo de Rosas,
+veio a historia, e encantou-me; ou fossem causa
+hora e sitio, ou a amavel singeleza
+com que narrava o historiador das medas,
+ou já disposição com que eu me achasse.
+Creio que sim: do espirito do ouvinte
+vem mais de meio o merito das obras.
+Por exemplo: da Eneida o livro quarto
+dias ha que me enfada; ha tambem dias
+em que se atura o _Italico_ do Padre;[4]
+e em que se entende um pouco a pálrea bruta
+que aos brutos deu do amavel Lafontaine.[5]
+Nada parece mal, trazido a tempo;
+fora de tempo, tudo. A mesma coisa
+entre obras e leitores acontece,
+que entre os garfos e as arvores: se enxertam
+quando o não pede o tronco e o veda a lua,
+¡adeus ramo bastardo! e se ao contrario,
+penetra a seiva toda, e pula o ramo.
+
+Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,
+que protestei contar-vol-o a meu modo;
+e o poema seguinte é o desempenho.
+Tivesse elle, o que em vão lhe hei procurado,
+da prosa do meu sogro o tom singelo,
+talvez, leitores meus, o relerieis.
+
+Inventar, descrever, compor os versos,
+são os tres pés, da trípode de Apollo.
+Já sabereis do Reverendo Kinsey
+que eu não tenho invenção; que nada pinto
+co'a verdadeira côr da Natureza;
+que os versos meus são bons, mas que aborrecem;
+o que não tira que um poéta eu seja
+digno de ser notado entre os que vivem.
+Ora, quanto á invenção d'este poema,
+bem vedes que a não ha, ou se a ha que é d'outrem.
+E quanto ás descripcões, fiz o possivel
+para não metter mais que as do meu _sogro_.
+Mas faltava o melhor, e o mais difficil:
+versificar á moda. Atirei fora
+o Virgilio, o Racine, e o Metastasio,
+gebos todos monótonos, que enfiam
+os versos bons e os optimos aos centos;
+atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;
+estudei, fiz ensaios, compuz paginas
+de embréxados velhissimos e esdruxulos,
+e não foi sem proveito o estudo acerrimo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Perdoae se este livro inda vai falho
+d'esses donaires que travêssos fogem
+de mal expertas mãos; soffrei-o em quanto
+vou destilar sobre outro o _Elucidario_,
+qual se espreme um limão sobre um guizote.
+
+
+Abril de 1831.
+
+FIM DA INTRODUCÇÃO[6]
+
+
+
+
+III
+
+EPISTOLA
+
+A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA
+
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho)
+
+
+
+Da paz de um ermo ao turbilhão da côrte
+a Musa de Castilho á do seu Costa
+saude e amor. Já outra primavera
+se enflora, a seu pesar, desde que ausente
+pede aos montes a irman, que a não suspira,
+e dorme ao lado de um feliz ingrato.
+
+
+Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios
+em cantos cujo ecco além não passa
+....................................
+
+
+1831--Abril, 21.
+
+
+
+
+IV
+
+O PRESBYTÉRIO
+
+
+
+¡Salvè, principio e fim dos meus passeios!
+¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha,
+cobre ha perto de um lustro os meus autores,
+meus castellos no ar, meus faceis versos!
+¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas limas,
+festivo ornato das paredes brancas;
+co'o teu portão patente oppresso de heras;
+e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,
+brasão futuro do obumbrado pateo!
+¡Salvè outra vez, meu presbytério! ¡Salvè!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Hoje, que o caprichoso do meu estro
+(bem sabes se elle o é) deixa inconstante
+versos índa no chôco, outros que apenas
+vão da casca a sahir, outros que breve
+teem de fugir do ninho em vôos livres,
+entrou, mal veio a aurora esclarecer-te,
+a doidejar-te em roda, a namorar-te,
+qual borboleta ociosa ou leve abelha.
+Pois que elle o quer.... cantemos-te; e perdôa
+se o canto falador, transpondo os cumes
+das tuas cerejeiras, fôr mais longe
+revelar tua humilde obscuridade.
+
+
+ * * * * *
+
+
+A antiga mediania, a segurança,
+a paz, o amor dos Ceos, o amor dos homens,
+genios foram, que em bençãos presidiram
+aos alicerces teus. De Pário monte
+não foi mistér que entranhas te enviassem
+chão, columnas, e abóbadas, e estatuas;
+tuas portas sem chave não cresceram
+lá nas florestas do hemisphério opposto.
+Foi visinho pinhal teu sôlho e tecto;
+deu-te paredes mais visinho oiteiro;
+portões e meza um cedro bom da extrema.
+Não custaste nem lagrimas a pobre,
+que á força te cedesse a choça avita,
+nem odioso suor; e não se dormem
+somnos melhores em Belem nem Mafra.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Que importa que no centro d'estes ermos
+vivas tão só, que apenas descortines
+n'um dos altos d'em torno esquiva aldeia?
+Tu e o templo co'as messes que vos cingem
+bastais no quadro agreste; em vós affluem
+(como em sua Queluz) nos festos dias
+ondas e ondas de amaveis saudadores.
+Os rebanhos ociosos não desdenham
+tôjo em flor, que te doira o chão das mattas,
+d'onde envôltos co' os trémulos balidos,
+veem cantos de amorosas guardadoras
+endoidecer teu ecco.
+ Os caminheiros
+abençôam-te a sombra; aqui teem fonte,
+que em tua relva, ao fresco das parreiras,
+detém, dessedentando-as, caravanas
+que vão ou veem no alpestre Caramulo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+O anjo das flores liberal te arqueia
+de bordada verdura as rescendentes
+claras janellas.
+ Um bulicio manso
+de amigas vozes teu recinto alegra.
+Na sua tépida choça os bois ruminam
+ante o feno em montões; dorme no páteo
+farto esquadrão lanigero; ao sol pôsto,
+cão, dos lobos terror, te vela as noites;
+teus gallos as demarcam vigilantes.
+Co'a luz primeira arrulha-te alvejando
+cypria nuvem plumosa; e apenas saltam
+da dextra mão mesquinha os grãos doirados,
+em torno da gentil madrugadeira
+de toda a parte os hospedes revôam.
+Bicam por entre as pombas á porfia
+a gallinha de filhos rodeada,
+o manso grasnador do aquoso tanque,
+o vaidoso perú, que ri cantando,
+e vós, e vós, mais vivos do que todos,
+não chamados, mas sempre a nós bemvindos,
+passarinhos do ceo, turba sem dono.
+
+ * * * * *
+
+Singelo presbyterio, ¡oh! ¡como te amo,
+co'o teu ar casaleiro! Amo o teu forno,
+tão social á noite; a simples sala,
+quasi sempre deserta; a livraria,
+deserta rara vez; estas alcôvas,
+que enche um só leito; e a adega, assoviada
+do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia
+da cheirosa vendima; e o teu celleiro,
+alto, arejado, e tão patente aos pobres,
+como as portas do templo convisinho.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Floresças para o Ceo e para a terra
+nos inconstantes seculos! ¡floresças,
+feliz, co'o feliz dono, edade longa!
+E se, lá no futuro, algum amigo,
+sócio dos dias bons, saudoso e triste,
+torcendo a estrada, a te pedir viesse
+novas do teu cantor,--«Amou me, e amei-o--
+lhe dirias mostrando-te; e--«Seus ossos--
+juntaria o teu velho--aqui descançam.»
+
+ * * * * *
+
+Sim; apraz-me cuidar que inda os meus restos,
+gratos aos bons d'este recanto obscuro,
+onde escapei no seculo de sangue,
+cá ficarão n'este ocio, inda alguns dias
+do simples montanhez talvez chorados.
+
+ * * * * *
+
+Oh santa perseguida Liberdade,
+¡onde te achei!.... Onde não vivem homens;
+n'um torrão bravo que não chama invejas.
+
+ * * * * *
+
+Em quanto, ora que a noite o ceo regela
+humida e turva, tantos ricos enchem
+de bocejante enôjo as assemblêas,
+e tantos, tantos miseros, sem lares,
+sem consôlo, sem pão, sem voz de amigo,
+só reos de patrio amor, dormem nas furnas,
+pelas praias do Oceano, e pelas rochas
+(sublimes troncos pelo pé cortados)...
+tua clara fogueira nos aquece;
+¡graças, graças a um Deus!
+ Assim vagava
+sobre o universo undoso a arca do justo.
+
+ * * * * *
+
+Nós, depois de annos tres, inda esperâmos.
+Ainda do trovão eccos retumbam.
+Ainda os escarceos assoladores
+remugem lá por fóra. Ainda a pomba
+co'o ramo de oliveira inda não volve.
+
+ * * * * *
+
+¡Oh santa perseguida Liberdade!
+¡Oh! ¡Se eu podesse, a trôco dos meus dias,
+restituir-te á minha Patria!....
+
+ * * * * *
+
+ Basta.
+Esperemos ainda. Oremos sempre;
+e talvez que não tarde a grata aurora,
+em que, a adejar da serra pelos pincaros,
+venha de longe a nuncia das venturas,
+a pomba com o seu ramo de oliveira!...
+
+Castanheira de Vouga
+
+ Maio de 1831.
+
+
+
+
+
+V
+
+A LYRA DO DESTERRADO
+
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho)
+
+
+
+Era a noite dos finados;
+sombria noite de outono.
+Entre sinos acordados
+lá jaz Roma entregue ao sono;
+seus luzeiros apagados.
+
+Do ceo pelo rôto manto
+só brilham frouxas estrellas;
+sai a custo o clarão santo
+dos templos pelas janellas;
+e Petrarcha vela emtanto.
+
+Véla Petrarcha, e suspira
+no leito amoroso e ermo;
+olhos na véla que expira;
+saudades no peito enfermo;
+nem gloria sonha, nem lyra.
+
+Qual raio sôlto de lua
+por móveis aguas vibrada
+n'um bosque inteiro flutúa,
+tal adeja no passado
+a saudosa mente sua.
+
+¿Quem dirá seus pensamentos?
+a douta lingua está muda.
+¡Que paixões, que sentimentos,
+no rosto, que aspeitos muda,
+veem transluzir por momentos!
+
+Ora é dor, ora é sorriso,
+esperança, amor, transporte;
+queixas, ternuras diviso;
+desce aos abysmos da morte,
+vôa aéreo ao Paraizo.
+
+¡Não falar o Vate agora
+co'os labios que move apenas!
+¡Que torrente abrazadora!
+¡que amor! ¡que incendidas penas!
+¡quão nova a paixão não fôra!
+
+Vai a noite adiantada;
+humido vento assovia;
+treme a luz quasi apagada.
+Do grão Cantor que vigia
+ferve a mente a sonhos dada.
+
+--«Eís o templo conhecido
+que os meus destinos encerra.
+A mãe terna, o pae querido,
+cá m'os tem no seio a terra.
+Cá vi Laura, e fui perdido...
+...............................
+
+Castanheira do Vouga
+ 1830...(?)
+
+
+
+
+
+VI
+
+EPISTOLA
+
+(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho)
+
+
+
+A minha primavera emfim renasce.
+Té n'este horror selvatico dos montes
+roupas traja nupciaes a Natureza.
+O ceo azul, o ar morno, as aguas puras,
+tudo nos diz «amor»; dizem-n-o as aves
+chalreando ao florir das alvoradas;
+bala o rebanho alegre; armento o muge;
+na folha nova zéphiro o cicia;
+a camponeza em meio de mil flores,
+que lh'o exhalam balsamico, o suspira,
+e ao viçoso tapiz, á sombra vasta
+macia e tentadora lança os olhos.
+
+Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,
+enleva a fonte e as arvores nocturnas,
+cantando amor, da lua ao raio incerto,
+lições que mais de um ente ao longe estuda
+(e pratica talvez); em sons de lyra,
+solitario eu tambem, lições de affectos
+de cá te envio ao centro da cidade.
+N'esse ruidoso vórtice de povo,
+de vãos praseres, de negocios futeis,
+a geral rotação te arrasta ás cegas;
+é dever da amisade erguer-te aos olhos
+luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas
+pode não ver a táboa ás vezes perto;
+pode a praia ignorar, e tel a em face.
+Táboa amor te lançou da praia firme;
+ledo e fausto Hymeneu te está chamando.
+.......................................
+
+
+
+
+
+VII
+
+A ROMARIA
+
+
+
+Lá vem Maio rosado. Já floreja
+nas planicies, verdeja pelos montes;
+é o mez de Amor, é o mez de Philoméla.
+
+Aureo amanhece o dia suspirado
+da romaria annual; léguas em roda
+já tudo é festa, esp'rança, e regosijo.
+As povoações, desertas. Por estradas,
+por torcidos atalhos, por oiteiros,
+correm de toda a parte ornados bandos.
+Lá retrôa nos eccos aturdidos
+a matinal girandola ruidosa;
+acorda ao longe a torre com repiques;
+um povo de cem povos misturado
+enche a vozeada selva, a acceza ermida,
+e de ondeado matiz cobre o terreno.
+Arfa ao sol, no alto mastro volteando,
+triumphante bandeira alvi-cerúlea.
+Vai e vem, ora chega, ora se allonga,
+não está em nenhum sitio, e assoma em todos,
+a alma da festa, a gloria do Gallego,
+a aguda gaita túmida e franjada,
+que ao rufado tambor sócia, repete
+a moda velha e alegre, amor dos campos.
+Em vidrado alguidar reluzem n'agua
+os doirados tremóços, que afadigam
+com compradores a afrontada tia.
+As navalhas e anéis, o apito, o espelho,
+se assoalham mais além; na alva toalha,
+alva e folhuda, estão chamando o exul.
+Em cima de seus carros triumphantes
+os laureados tonéis, reis da alegria,
+dão n'um fogo perenne a vida a tudo.
+
+Aqui se ouve o descante ao desafio,
+que a viola ora segue, ora acompanha.
+Ali se apinham para ver as danças,
+que a discorde rabecca entorta ás vezes.
+Lá, se entorna o licor em puros vidros;
+ao pé se adoça a fresca limonada.
+
+Aqui se comprimentam; além chamam;
+um se perde, outro se acha, outro convida.
+Este corre; esta pára a ataviar-se,
+por mostrar o cordão e o lenço novo.
+Estirados na relva os velhos palram;
+grita o rapaz. O amante, recostado
+ao páu, por onde um braço lhe serpeia,
+faz longa côrte á tímida futura,
+que em resposta de amor lhe dá tremóços.
+
+N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens.
+Lá sai a procissão; lá foram todos.
+¡Ah! depois do jantar comido ás sombras,
+cada um levará, volvendo a casa,
+gratas lembranças para o anno inteiro.
+
+
+
+
+
+VIII
+
+O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES
+
+OU
+
+A MATTA DE S. SEBASTIÃO
+
+
+ Versos na plantação de uns carvalhos junto á egreja de S. Mamede da
+ Castanheira do Vouga pelos rapazes solteiros da freguezia no
+ Domingo do Carnaval de 183...
+
+
+
+I
+
+
+N'este dia, em que o povo tumultuando
+nos casaes, nas aldeias, nas cidades,
+troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,
+por copos, danças, máscaras, e risos
+nas saturnaes christans; quando se espraia,
+desde o seio de Roma aos fins da terra,
+de um praser contagioso alta vertigem;
+¿por que retreme ao golpe das enxadas
+sob os meus pés a solitaria encosta?
+
+ * * * * *
+
+¡Saude a vós, a vós louvor. Bemvindos,
+montanhezes, fieis aos priscos usos!
+O cântaro do estylo ahi está coroado,
+risonho e prestes a inundar os copos;
+o prémio á vista vos redobre as forças.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Rasgae co'o duro ferro a terra dura;
+de vossos paes a matta veneranda
+em torno de seu santo antigo dono
+se accrescente por vós. Plantae, que é tempo,
+no chão, sagrado de suor devoto,
+ó presente annual, que o Ceo prospére.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Onde quer que elle jaz, abençoemos
+as cinzas do homem bom, lá d'essas eras
+que a pia usança introduziu primeiro.
+¡Quanto a sua virtude era risonha!
+--«Cada solteiro plantará n'este ermo
+mais uma arvoresinha de anno em anno,
+que lá em cima encontrará seu premio.»
+¡Oh! estes rogos, sim, este pedido,
+doce e desint'ressado, uncção respira;
+manda mais do que as Leis; morrer não deve.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Produz, produz a miudo, ó Natureza,
+por teu bem, por bem nosso, homens como esse.
+Haja quem diga ao joven par, que ás aras
+sobe apenas amante, e desce esposo:
+--«Hoje, que são já fruto esp'ranças de hontem,
+entrae sorrindo pelo chão da vida;
+plantae, plantae um'arvore que o lembre.»
+
+
+ * * * * *
+
+
+Quando a cabana festival se enrama,
+se enflora a meza, e os aldeãos visinhos
+veem festejar na casa um filho novo,
+a mão paterna, de praser tremendo,
+orne de um novo tronco o prédio avito.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Depois de suspirada e curta ausencia
+volve um irmão das terras estrangeiras?
+¿Convalesce um parente? ¿Em bem se acaba
+suado, volumoso, eterno pleito,
+que empobreceu o avô, o filho, e o neto?
+¿Fizestes o adversario amigo vosso?
+¿Sorriu-vos a ventura? ¿É farto o anno?
+A sêrdes Reis, alçáreis monumentos;
+¿que vale um monumento? O homem dos campos
+melhores pode erguer a menos custo:
+plante sobre o caminho arvores férteis.
+Por elle o passageiro ardendo em calma
+ache a sombra hospedeira que o recreie.
+Por elle o pobre, que seu pão mendiga
+de casal em casal, de monte em monte,
+que não vê ceo, nem lar onde se aqueça,
+nem feno onde descance, e em todo o mundo
+só tem por património a caridade,
+ache a fruta a pender em curvos ramos,
+a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.
+Assim, do bem de um só germinariam
+mil bens communs; e do praser de um homem
+o publico praser, publicas bençãos.
+
+
+
+II
+
+
+Se tendes de nascer, nascei mui breve,
+sensiveis corações a quem Deus guarda,
+a gloria de influir eguaes costumes.
+Desde já nossas lagrimas de affecto
+correm por vós; ao seio do futuro
+nós vos lançamos desde cá louvores.
+
+
+
+III
+
+
+Sentemo-nos, em quanto os vossos filhos
+aqui se embebem na tarefa honrosa,
+sentemo-nos á sombra, a vós bem grata,
+do carvalhal que as vossas mãos plantaram,
+homens das cans, antigas testemunhas
+dos tempos que não são.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Vós, deputados
+das mortas gerações aos vivos de hoje
+como pregões propheticos; thesoiro
+de saudades, de dor, de experiencia;
+bons velhos, á vossa alma taciturna
+aprazem mais que a festa os pensamentos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Falae: ¿d'onde vos nasce essa tristeza
+profunda a um tempo e vaga, amarga e doce?
+¿Será de enfeitiçada sympathia
+que nos attrai á terra, ao chão da vida,
+chão sempre cubiçado e sempre ingrato?
+
+
+ * * * * *
+
+
+O coração, zeloso da existencia,
+compara os dias seus do tronco aos dias,
+e a conta desegual o opprime e o fecha.
+¡Annos a nós, e seculos aos bosques!...
+Planta o pae, mas a sombra hospéda os filhos;
+netos, que não verá, gosarão d'ella;
+e indiff'rentes incógnitos vindoiros
+rirão contentes ao folhudo abrigo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas, velhos, mui ditoso o que em seu predio
+dispõe arvore fértil de esperanças,
+que irá legada aos filhos de seus filhos.
+Prophecias de amor lhe expande o seio,
+sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos.
+Mas feliz egualmente o que em seu predio
+possue vaidoso um tronco hereditario.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Na réga, e ao vir da flor, e ao dar do fruto,
+¿como ha-de não pensar em seus maiores?
+Um lh'o plantou, os outros lh'o trataram;
+¿Como ha-de recusar-lhe uma saudade,
+um suspiro, um suffragio, um elogio?
+A gratidão medita á mesma sombra
+onde já meditára o amor paterno.
+Esta arvore mortal é o santo marco,
+em que se juntam, se entrelaçam, crescem,
+dos idos o interesse e o dos vindoiros;
+nó de affeição, que os seculos reune.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Vedes vós essa mãe, que ha tantos annos
+chora um filho alem-mar, em longes terras?
+Mostrae-lhe um passageiro a dar á vella
+para o porto feliz; ¡com que ternura
+lhe não dará, chorando, um longo abraço,
+que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,
+e todo o amor de mãe lhe exprima n'elle!...
+¡E com quanto alvoroço o desterrado
+não cingirá o amavel mensageiro!...
+Eis o emblema da arvore, cruzando
+viva e lembrada o Oceano das edades,
+mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.
+
+
+
+IV
+
+
+¿Qual de vós, repoisando n'esta cama
+de folhas mortas, qual de vós, no meio
+d'esses troncos musgosos, seculares,
+não viaja com o espirito espraiado
+por esse mundo antigo e antigos homens?
+Sim, vossa alma se apraz, phantasiando
+de lhe restituir quanto houve d'elles:
+uma vida, uma choça, herdade e patria.
+Deslembram cans; rugosas faces riem;
+reviveis n'um minuto annos de infancia
+sob a affeição de um pae, de um pae nos lares;
+sem cuidados, sem prole, e sem temores,
+entrais folgando o limiar da vida.
+¡Podesse n'este ponto o pensamento,
+como ave em ramo flórido e viscoso,
+deter-se a recordar, ficar pregado!
+¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o sonho,
+e a extincta geração recai nas campas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Mas quê? ¿d'esses antigos plantadores
+nada mais resta além de uns troncos mudos
+n'este universo movediço e instavel?
+¿nem uma só lembrança, um dito, um nome?
+Tudo passou sem mínimo vestigio,
+como os sons leves de um descante ao longe.
+...........................................
+
+
+
+V
+
+
+Bons aldeões, estas sombras regaladas
+vos falam nos avós; porém comigo,
+comigo, extranho, e novo em meio d'ellas,
+conversam no aureo tempo a que assistiram;
+recordam-me as edades do Universo,
+e os varios povos, e os paizes varios,
+contemporaneos do nascente mundo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Intonsas, invioladas, venerandas,
+outras selvas, como esta que nos fecha,
+fecharam do homem a primeira origem.
+Sob as verdes abóbadas immensas
+as velhas tradições nol-os descrevem
+pobres e alegres, nús e satisfeitos,
+saboreando em ocio a glande e a fonte,
+dormindo sobre a folha, e sem pedirem
+outra casa, outro templo, outra cidade.
+
+
+ * * * * *
+
+
+A pouco e pouco o numero crescia,
+minguando a pouco e pouco a singeleza.
+Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam;
+a um Maio eterno as estações succedem;
+o ar se gela e accende, alaga e silva;
+já bravejam leões, já bramam tigres;
+o homem se acoita ao seio das cavernas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Vós, troncos, até ali seus companheiros,
+acudís a servil-o; ¡e em quantos modos!
+lá, crepitais em rútila fogueira;
+aqui, das feras prohibís a entrada;
+dais uma clava ao caçador valente;
+na serviçal cortiça um berço aos filhos;
+leitos a amor, assentos á velhice,
+aos enxames um lar, um copo ás festas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Das precisões ao grito, o engenho acorda;
+lá surgem povoações, curraes, tugúrios,
+e uma capella ás rusticas deidades.
+Lá rompe o novo arado a terra dura;
+lá geme, a transportar enormes pezos,
+o carro, e sulca atónitos caminhos.
+O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;
+a rudeza se pule; as artes crescem;
+a especie racional das mais triumpha.
+
+
+ * * * * *
+
+
+As gerações do ceo, do mar, da terra,
+tudo é já seu; os campos lhe obedecem;
+faltava o Oceano; affoita quilha o rasga.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Então foi, que estas arvores, tão uteis
+no patrio continente, abriram vôo
+sobre o liquido abysmo a novos climas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿E em que parte do globo, arvore excelsa,
+te podes presentar, que não recordes
+uma façanha, um culto, um grão successo?
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta
+que foste invicta clava em mão de Alcides;
+vê-te, suspira, bate o chão raivando
+de achar-se escravo, e de não ter-lhe as forças.
+¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta
+do arvoredo Dodónio as mil respostas,
+o passado e o porvir patente a todos,
+e o livro do destino aberto ao mundo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Na Ausónia? Mas Cybelle amou teus ramos;
+Roma os sagrou a Jove; e, fulminada,
+eras tremendo agoiro a todo o Imperio.
+¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica?
+
+
+ * * * * *
+
+
+ ¿Nos campos?
+¿E Phílémon, o justo, o caro aos deuses?
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Nas Gallias? em seus barbaros oiteiros
+tu, só, eras o altar, o deus, e o templo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Na Caledonia, em Morven, junto aos lagos,
+sobre os cumes, á beira das torrentes?
+Lá tu viste Tremnor, Fingal, e os bravos,
+reunidos na vespera do sangue
+em nocturno festim que allumiavas,
+quando na harpa dos bardos reviviam
+os feitos dos heroes do antigo tempo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Salve, eleito Israel! Eis-nos em campos
+de Sichem. Vejo os principes e os velhos,
+os juizes, as tribus, apinhar-se
+em torno ao tabernáculo de Sila.
+Por cima d'este mar ondeado e vivo
+reina de praia em praia alto silencio.
+Sublime como o cedro do deserto,
+se levanta Josué, braço do Eterno,
+em nome do Senhor, que o manda e inspira;
+os favores do Ceo recorda ao povo;
+renasce a Fé; os idolos se arrazam;
+--«¡Gloria ao Deus de Israel!--vozeia a turba--
+¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!
+--Erga-se um monumento,--exclama o chefe--
+que, se infieis um dia os esquecerdes,
+vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.»
+E a monumento põe no logar santo
+enorme pedra á sombra de um carvalho,
+que abrigava co'a copa o santuário.[7]
+Despede o Povo, e em paz contente expira;
+em paz, que já não vê perjúrios novos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Escrava de Madian a plebe expia,
+na miseria e no opprobrio, os males torpes
+que fez ante o Senhor. Mas inda existe
+um justo, a quem Deus fie o libertal-a:
+é Gedeão, é o Josué segundo.[8]
+Este, em quanto seu pae lança aos caminhos
+medroso olhar á espera do inimigo
+para fugir com elle, ajunta á pressa
+o trigo que limpou.
+ Vê de repente
+um Anjo, que debaixo do carvalho
+se assenta, e lhe repete a lei do Eterno.
+Esse mesmo carvalho é testemunha
+da belleza do alado mensageiro,
+da voz de salvação mandada ao Povo,
+e do holocausto acceito e posto em cinzas,
+e do altar, a quem _Paz_ foi dada em nome.
+
+
+ * * * * *
+
+
+E este, que tão frondoso opáca os valles,
+¿por que o rodeia um bando taciturno
+dos fortes de Galaad? as suas armas
+jazem quebradas; sua dor vai funda;
+dos olhos tristes para o ceo voltados
+pelo rosto amarello lhes escorre
+grosso pranto, que alaga as f'ridas frescas.
+Choram Saul, e a régia descendencia,
+que mortos no combate aqui descançam.
+Para o Monarcha agigantado e invicto
+nenhuma estátua se erguerá na campa.
+Sua columna e funebre palacio
+preparou-lh'os com tempo a Natureza:
+o tronco, rei da selva, o está cobrindo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Mas quanto é mais tocante o que se eleva
+nas faldas solitarias da montanha!
+Ali Débora jaz; ali Rebecca
+chora na morte a que a nutriu na infancia,
+ama no coração, mãe nos extremos,
+de seus primeiros e ultimos segredos
+confidente fiel no lar paterno,
+querida socia na feliz viagem,
+e no lar conjugal seu doce allivio.
+¿Arvore a tanto affecto consagrada
+na affectuosa Biblia irá sem nome?
+o _carvalho das lagrimas_ lhe chamam.
+
+
+
+VI
+
+
+¡Que uso tão doce aos corações piedosos!
+Reverdecei, costumes do bom tempo,
+quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,
+tinham sob um ceo livre a sepultura.
+A Morte, menos barbara do que hoje,
+com avarenta mão não ferrolhava
+sob um tecto pezado, entre altos muros,
+as prezas, cá de fóra em vão pedidas.
+Não era um templo um cárcere de mortos.
+Dormiam mollemente em terra franca,
+em jardins frescos, em copadas selvas.
+Esta esp'rança adoçava um pouco o amargo
+do ultimo trago aos labios moribundos.
+Este bem, tão pequeno em mal tão grande,
+¡quanto valor não tinha aos que ficavam!
+O irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo,
+podiam livremente, a toda a hora,
+ir regar de seu pranto amadas cinzas,
+fartar saudades, inflammar lembranças,
+delirar doce a noite, e o dia inteiro,
+e de praser a um peito onde palpitam
+superstições de amor ou de amisade,
+dizer:
+ «Este tapiz relvoso o cobre;
+esta ave lhe gorgeia; esta aura sôlta
+o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;
+a primavera m'o visita, e espalha
+tambem por cima d'elle o seu regaço;
+esta violeta é sua, hei-de colhel-a;
+d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,
+nutre-se do seu pó, vive por elle,
+é elle mesmo em parte; arvore amiga,
+recebe o nome caro, hoje sem dono,
+toma os abraços que não posso dar-lhe.»
+
+
+ * * * * *
+
+
+Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas.
+A arvore, Deus a fez como passagem
+do mundo que respira ao mundo inerte;
+commum co'os animaes, commum co'a terra,
+vive e não sente; habita e ignora o mundo,
+sympathisa co'a morte e co'a existencia,
+é grata ás cinzas, á saude é grata.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Que férreos somos nós, que a um como vago
+atiramos sem dó perdidos, mixtos,
+o detestado, o amigo, o estranho, e o nosso!
+Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros
+arrojasse o que os seculos pouparam,
+bronzes, escritos, marmores romanos,
+ou, derrotando porticos, columnas,
+theatros, colliseus, palacios, templos,
+em serra inutil amontoasse as pedras,
+¿quem não vertêra em lagrimas o sangue?
+¡E ante a nossa affeição teem menos pezo
+que as ruinas de Roma as que são nossas?!...
+¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes,
+espectaculos, jogos, aureas festas,
+jardins, parques!... ¡e aos miseros que gemem,
+e aos peitos melancólicos, viuvos,
+ha-de negar se um canto onde pranteiem!?...
+¿De tanto mundo que pertence aos vivos
+nada dareis aos seus antigos donos?
+¡nem um torrão perdido, e uns troncos nullos?!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Quando virá um dia, em que estes bosques,
+semeados de tumulos não altos,
+de lugubres saudades se povôem?
+Então, a propria Morte, hoje tão sêcca,
+terá sua grinalda; a dor, seu gosto;
+e visitas o pó, e cultos o ermo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Pelas noites mui placidas do estio,
+ao duvidoso alvor da lua incerta,
+bello será, sentado n'este sitio,
+ver vir, d'aqui, d'ali, frouxos, dispersos,
+o do casal, o morador na aldeia,
+entrar chorando, e procurar seus mortos.
+Aqui duas irmans resam de joelhos
+sobre o seio materno sepultado.
+Aqui o velho attento as contas passa
+pelos dedos convulsos, e se encosta,
+sem o saber, na fallecida esposa.
+O filho aos pés da mãe co'os mais soluça
+o Padre-Nosso apenas aprendido.
+Deitado ao lado do submerso amigo,
+o amigo devaneia antigos annos.
+Por toda a parte, as lagrimas e affectos,
+memorias doces, orações e esp'ranças.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿E a quem não conviria egual retiro?
+N'elle a tristeza encontraria um pasto;
+a sciencia, reflexões; o vicio, escolhos;
+a leviandade, assento; a desventura,
+consolação; o amor, silencio e pranto.
+Ensaiára-se o infante para a vida;
+o velho, para a morte; o moralista
+viria achar uncção para a verdade;
+o orador, persuasões, ternura, encantos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ó filhos da montanha, ¡oh! libertae-vos
+de um preconceito vão; é toda a terra
+a terra do Senhor; afora o vicio,
+debaixo d'este ceo nada é profano.
+A benção do Pastor consagraria
+vosso asylo feliz; e a Cruz em meio
+todo de um santo influxo enchêra o bosque.
+
+
+
+VII
+
+
+Mas, em quanto esses dias vos não raiam,
+bons velhos, vigiae que, de anno em anno,
+aos juvenis futuros plantadores,
+em vez de se afrouxar, se inflamme o zelo.
+Cresça com seu favor por estas serras
+a geração dos vegetaes gigantes.
+Com todos vós conversam todos elles
+sem cobrir campas; guardam-vos saudades,
+são parentes de todas as aldeias,
+e o brasão da montanha é o vosso parque.
+Sobre tudo influi que a vossa raça
+trema ao só nome do brutal machado
+que ouse violar a veneranda herança.
+O que só Deus medrou, só Deus derribe.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Crêde-me (eu já vi outras) vossa terra
+é descrida, enteada á Natureza.
+Cumpre a vós adoçar-lhe o aspecto agreste,
+amiudar-lhe no oceano ermo dos ares
+estas ilhas, virentes, graciosas,
+que espalhem primavera pelos montes,
+que attráiam as volantes caravanas
+do rouxinol, da rôla, e da andorinha.
+
+
+
+VIII
+
+
+Lá em baixo a casa humilde que branqeja,
+entre os alegres plátanos e o templo,
+quasi que pasma, e se entristece e encolhe,
+de ver em torno a solidão tão vasta.
+Como que está pedindo... ao menos bosques;
+não tem outros jardins, outros passeios,
+que offereça a seu dono, o Pastor vosso.
+Preparae desde já para o futuro
+sombras novas aos novos successores,
+e refrigério estivo ás cans do velho.
+Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.
+Mil vezes sua voz reconhecida
+rogará paz ditosa aos vossos netos,
+quando, serena a mente, e sôlta a vista
+lá fôrem divagar, ora embebidos
+nos psalmos, nos poeticos arrojos,
+ora admirando o Autor e o Nó dos mundos,
+no largo azul dos ceos, no alto dos troncos
+e no zumbir e no voar do insecto.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Surgi! ¡surgi! Lá jazem as enxadas.
+
+ Velhos, surgi! La voltam triumphantes,
+findo o novo trabalho, os vossos filhos.
+Agora espumem copos, sôem risos,
+exulte a dança, alonguem-se os cantores.
+Conquistastes o inculto á Natureza:
+forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas.
+Toda a vasta planicie, hontem tão erma,
+¡que povoada vai já! ¡como promette
+lembrar ao vosso gado, ás vossas filhas!
+
+
+UM VELHO
+
+Sim, dará sombra e vai povoado o valle:
+mas fosse eu rico, e lhe dobrára encantos.
+
+
+SEGUNDO VELHO
+
+¿E como, irmão?
+
+
+O PRIMEIRO
+
+ No alto d'este oiteiro,
+d'onde se avista o mar, o ceo, a terra,
+poria uma capella, e um San-Mamede
+co'o rosto de um menino, e o rir de um Anjo;
+nas mãos o cajadito, o alforge ao lado,
+e o seu rafeiro ao pé todo soberbo
+co'a colleira escarlate, e todo amigo
+a lamber o seu Santo. É bom que os altos
+se c'rôem de capellas, que levantem
+o pensamento aos Ceos, no campo espalhem
+devoção e piedade, e aos peregrinos
+ensinem o caminho e a vista alegrem.
+
+
+UM PASTOR
+
+Sim, co'o santo pastor de guarda aos bosques,
+¿que haviam de temer, nem cães nem gado?
+Nos degraus da capella, á sombra inquieta,
+longas séstas sonháramos de amores.
+
+
+TERCEIRO VELHO
+
+Já lá vão o bom tempo e os bons costumes;
+foi-se a abundancia e os corações piedosos.
+Esses fundavam templos, como o nosso,
+n'um árido deserto; e hoje.... se estala
+no campanario um sino, em ocio eterno
+fica mudo a pender dos braços podres.
+
+
+
+IX
+
+
+Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,
+serei eu quem consagre o vosso oiteiro;
+não a Mamede, não ao pastor martyr,
+mas á contrita amavel Peccadora.
+¿Não valem mais as lagrimas que o sangue?
+¿Mais que heroico valor não nos commove
+doce humildade e penitencia longa?
+E de mais: se ás aspérrimas proezas
+vos não destina o Ceo, todos nascestes
+captivos frágeis de amorosas culpas.
+Muita virgem no monte solitario
+tentada pelo amor e pelo amante,
+só com ver a capella ha-de livrar-se,
+e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.
+E quando aqui errantes missionarios
+vierem dar, e á sombra dos carvalhos,
+as turbas apinhadas instruirem,
+¡que persuasões, que lagrimas, que exemplos
+hão-de tirar da veneranda Imagem!....
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Qual me ri já na mente o grão projecto!
+Eu serei pois o fundador de um culto
+que aos frutos da moral reuna flores.
+Sim; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente?
+...........................................
+
+
+
+X
+
+
+Partiram. E eis-me só. Todos partiram.
+O alvoroço do entrudo os chama aos lares.
+¡Oh! ¡Bemdita a ignorancia d'estas serras!
+O rustico inda ri na Patria em luto,
+e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.
+¡Bem sabe elle que lagrimas aos mares
+d'este horizonte em roda estão correndo!
+¿Sabe elle que o atro dia é menos atro?
+A paz, a confiança, as alegrias,
+a abundancia, a união de antigos Lusos,
+não deixaram, fugindo, um só vestigio.
+No vaivem das facções, que se entrevencem,
+tudo se perde e esquece, afora a raiva.
+Os bons usos, as festas populares,
+a romaria alegre, as patrias danças,
+vão-se apagando... Aqui, mesmo na brenha,
+a pastora, esquecendo os seus amores,
+canta a questão dos Reis, o hymno da guerra,
+sons novos, que o seu gado e o ecco extranham.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ó Patria, bella Italia do Occidente,
+tu que egual a Parthénope repoisas
+debaixo da invejada laranjeira
+e do mirto florido, ao deleitoso
+ruido de aguas limpidas, no abri
+de um ceo inspirador tão proprio ao genio,
+ó bella Italia do Occidente, ó Patria,
+¿era pois fado teu lidar sem fruto
+para seres a inveja, a flor das gentes?....
+A guerra, sim, te coroou co'as palmas
+das quatro partes do orbe, e as naus do mundo
+trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros.
+Mas as flores das artes, mas os frutos
+das sciencias, no chão dos outros povos
+com tanto custo e com suor medrados,
+¿espontâneos no teu medraram nunca?...
+¿Tiveste nunca os dons, que em paz florentes
+ornam e absolvem da conquista os loiros?
+¡Que imperios teem cahido! e tu, tu ousas,
+hoje ainda, aspirar á eternidade!!...
+Talvez bem perto os seculos se cheguem,
+que hão-de ver cego arado andar lavrando
+tuas cidades de esquecido nome,
+e o rebanho indiff'rente apascentar-se
+sobre os teus tribunaes, theatros, praças.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo,
+Lusitania, que á borda do Oceano
+brilhas qual deusa em majestade e em graça.
+Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes
+entre tropheos em pó, lavada em sangue.
+Deshonrada Cleópatra, inda és bella,
+mas já nas veias te circula a morte.
+¡Ai de quem nutre as áspides no seio!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Ó Patria, ó Patria, com que voz tão baixa,
+com que pejo te expróbro! ¡Ah! se podéres,
+perdôa meu furor, vê só meu pranto;
+ó Patria, ó mãe, ó misera querida!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que seria?
+¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são homens
+que nos matam irmãos... ¡Alerta!... oiçâmos...
+
+..............................................
+
+
+
+
+
+IX
+
+O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO
+
+
+ Dia em que o Poeta plantou por suas mãos um cedro no pateo da
+ residencia parochial da Castanheira do Vouga
+
+
+(FRAGMENTO)
+
+
+
+..........................................
+
+ Se, de teus annos na madura força,
+a mão que te ora planta inda fôr viva,
+essa mesma, já trémula e caduca,
+no tronco te abrirá, com pio exforço,
+graciosa capellinha, onde sorria
+um San-João, o Santo alegre do ermo,
+trajo de pelles, juvenil frescura,
+olhos nos Ceos, aos pés cordeiro branco.
+
+
+ * * * * *
+
+
+N'essa noite poetica e devota,
+em que o praser, centuplicando aspectos,
+povôa, anima, encanta o mundo inteiro,
+agua e terra, ar e ceo, tudo é macio,
+em que a velhice, a mocidade, a infancia,
+sympathisam no vago da alegria;
+quando n'alma insaciavel de delicias
+se juntam, com mistura inexplicavel,
+ao saudoso passado, aos bens presentes,
+as mil visões do esplendido futuro;
+quando em laço phantastico se aggregam
+da vida e eternidade os pensamentos,
+gosos, superstições, fraquezas, cultos,
+qual ramalhete de cipreste e rosas
+na caprichosa mão das feiticeiras;
+n'essa noite, das noites invejada,
+a ti concorrerão por toda a parte,
+té das aldeias do horizonte extremo,
+dançantes bandos que a viola guia.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Verás girar seus bailes clamorosos
+em redor das estrídulas fogueiras;
+ouvirás os seus cânticos em côro
+devoto e ennamorado. A bomba foge,
+zune fugindo, e sollapada estoira;
+o buscapé no ar caracolando
+morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,
+dispersa os grupos, gasta-se raivando,
+e entre os risos rebenta atroando os ares;
+ali circula em vórtice perenne
+a roda leve espadanando incendios,
+chovendo oiro luzente e estrellas alvas;
+aqui floreia o fúlgido valverde,
+vesuviosinho que arremette ás nuvens;
+arranca o vôo e vai rugindo aos astros
+o ignívomo foguete estrepitoso.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡E a musica entretanto! ¡e as doces falas!
+¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta!
+¡e essa mão dada a furto e a furto acceita!
+¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes
+da meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada!
+¡e as sortes que a fortuna extrai ás vezes,
+e muitas mais a próvida malicia!
+¡e a fonte que amanhece entre descantes,
+e pasma rindo de se ver coroada
+de festões verdes e entrançadas flores!
+¡Que noites, que alegrias, que triumphos,
+te aguardam no porvir, me estão na mente![9]
+............................................
+
+
+
+
+
+X
+
+O MOSTEIRO
+
+
+
+Vós, que sois do amavel sexo
+ardentes adoradores,
+que girais de bella em bella,
+qual leve abelha entre as flores,
+
+que sabeis n'um só momento
+a mil deusas incensar,
+e pareceis de ternura
+não poder-vos saciar,
+
+mancebos, o mundo é vosso;
+mil bellas o mundo tem;
+mas não choreis as que á sombra
+repoisar das aras veem.
+
+Se um jardim, florído, immenso,
+encontrais na sociedade,
+¿que importa que poucas rosas
+lhe furte a mão da piedade?
+
+poucas rosas, que dispostas
+vão depois na solidão
+lançar mais doces perfumes,
+seguras de extranha mão.
+
+Vagae, vagae livremente
+nos jardins da Idália Venus;
+segui as Nymphas e as Graças
+pelos seus bosques amenos;
+
+os prazeres vos rodeiem,
+os jogos em torno vôem;
+a mocidade vos ria;
+espêssas rosas vos c'rôem;
+
+¿que falta aos desejos vossos?
+¡ah! soffrei, sem murmurar,
+ver d'entre os vergéis florídos
+poucas pombas desertar,
+
+poucas pombas, que innocentes,
+e temendo o caçador,
+vão nos ermos solitarios
+buscar um fado melhor.
+
+Do Libano opacos cedros,
+de Sião bosque tranquillo,
+vós, palmeiras de Idumêa,
+prestae-lhes seguro asylo.
+
+Estranhas vistas não turbem
+os seus piedosos segredos;
+contentes á sombra vivam
+dos sagrados arvoredos.
+
+Silencio, paz, e ternura,
+alva estrella de innocencia,
+e a vista de um ceo risonho,
+lhes doirem toda a existencia.
+
+Murmúrio de castas fontes,
+perfume de simples flores,
+lhes paguem jardins que infestam
+os abutres e os açores.
+
+Eu vos lamento e vos chóro,
+insensiveis corações,
+que de um mosteiro entre os muros
+não vêdes senão prisões.
+
+Córae da vossa loucura.
+Correi a ver de mais perto
+o Eden recatado ao mundo
+no seio d'este deserto.
+
+Modestas virgens o habitam,
+que só não teem liberdade
+de colher em frutos de oiro
+as festas da sociedade.
+
+Segui-me, segui-me affoitos,
+entremos. Abriu-se o templo.
+Seus ermos, ao mundo ignotos,
+inteiros d'aqui contemplo.
+
+¿Não vêdes sobre os altares
+com graça engrupadas flores
+lançar torrentes de aromas,
+brilhar co'as mais vivas cores?
+
+N'esses prados invisiveis
+tambem pois se eleva a aurora;
+sol, e zephyros, e fontes,
+lhes dão sorrisos de Flora.
+
+Essas pois, que vós julgaveis
+desgraçadas prisioneiras,
+teem praseres, teem delicias,
+teem jardins, são jardineiras.
+
+Vêde ornar formosa Imagem
+rico manto que fulgura,
+de oiro e sedas matizado
+com vistosa bordadura.
+
+Vêde a grinalda florida;
+vêde o ramo; estes jasmins,
+estes lirios, estas rosas,
+não são já de seus jardins.
+
+Não devem sua existencia
+nem á terra nem ao Ceo,
+e nem zephyros nem fontes
+serviram no augmento seu.
+
+Formou-as arte engenhosa;
+poude mais que a Natureza;
+deu mais vida ás suas flores;
+prestou-lhes egual belleza.
+
+¿Sabeis, que mãos feiticeiras
+obraram prodigios taes?
+eis o trabalho e os recreios
+d'essas piedosas Vestaes.
+
+Ellas no côro apparecem;
+e, ao som dos orgãos divinos,
+de sua alma aos Ceos se elevam
+devotos brilhantes hymnos.
+
+Innocentes e macias,
+d'estas vozes a mistura
+sem perturbar os sentidos
+infunde n'alma ternura.
+
+Em seus canticos não reina
+terreno vulgar affecto;
+é mais puro, é mais sublime
+de seus amores o objecto.
+
+O pensamento que as ouve,
+sai da térrea habitação,
+deixa os ares, das esphéras
+atravessa o turbilhão,
+
+vê do Empyrio as portas de oiro
+abertas á humanidade,
+rompe audaz, vai submergir-se
+no fulgor da Divindade.
+
+Cessa a musica, e de novo
+volve a mente ao patrio mundo;
+mas dos virgineos desertos
+primeiro se arroja ao fundo.
+
+Lá divisa, em liberdade,
+nas livres tranquillas horas,
+dadas a cantos diversos
+estas formosas cantoras.
+
+Na sombra d'aquelles bosques,
+n'aquelles molles passeios,
+tambem pois das Musas entram
+os aprasiveis recreios.
+
+Olhae por fim seus aspectos,
+¿Não vedes vós a bondade,
+a alegria da innocencia,
+as virtudes da piedade?
+
+Eis os Genios que lhes tornam
+encantadora a existencia:
+as virtudes da piedade,
+os praseres da innocencia.
+
+A amisade entre ellas reina;
+¿os encantos da amisade
+não prestarão, por ventura,
+delicias á soledade?
+
+Mas basta, insensatos, basta;
+á scena se corra o veo;
+não profanem vossos olhos
+mais tempo os átrios do Ceo.
+
+Ide no mundo esquecel-as,
+em vez de as irdes chorar;
+e o vosso mundo vos baste,
+como lhes basta um altar.
+
+Mas esperae; respondei-me;
+consultae vosso interior:
+¿sois ditosos co'os sorrisos
+de um falso inconstante amor?
+
+¿Sabeis vós o que amor seja?
+¿Satisfaz-se o coração
+com esses fogos incertos,
+e essa eterna agitação?
+
+¿Não virá talvez um dia,
+em que, mais sabios, queirais
+unir os vossos destinos
+á melhor d'entre as mortaes?
+
+¿Como a haveis de achar no mundo,
+no mundo, cujos enganos
+vós conheceis, ajudastes,
+seguistes, por tantos annos?
+
+Tremereis de um laço eterno.
+A vossa pena consiste
+em pensardes que a virtude
+que não tendes, não existe.
+
+Então aqui vos espero,
+n'estes quietos retiros.
+Estes muros que insultaveis,
+ouvirão vossos suspiros.
+
+Entre estas virgens mimosas,
+que severa educação
+forma, longe dos humanos,
+á sombra da solidão,
+
+viréis procurar o objecto,
+cuja ternura innocente
+vos deve tornar a vida
+risonha, pura, e contente.
+
+Não detesteis um recinto,
+onde Amor, onde Hymeneu,
+onde um Genio, amigo vosso,
+vosso thesoiro escondeu.
+
+Pensae, pensae que ali vive,
+cresce em virtude e talentos,
+e em graças, aquella que ha-de
+doirar os vossos momentos.
+
+Qual arbusto delicado,
+que a viçosa louçania
+mostrar em seu proprio clima,
+em seu proprio ceo, devia,
+
+mas foi por mão inimiga
+trazido a estranhos logares,
+onde murcho cederia
+a influxos de infestos ares,
+
+se da estufa compassiva
+lhe não fosse aberto o seio,
+onde vegeta e floresce
+de arbustos eguaes no meio;
+
+ali não receia as neves;
+não treme da tempestade;
+gosa o sol; vive no mundo,
+vivendo na soledade;
+
+de extranhos somente é visto;
+tem louvor; é cubiçado;
+mas das flores, mas dos frutos,
+não é jamais despojado.
+
+¡Mil vezes feliz, mil vezes,
+quem ousa, á luz da verdade,
+queimar a máscara d'oiro
+ás larvas da sociedade!
+
+Medrae, sagrados mosteiros;
+medrae, desprezando a inveja;
+jamais fulminar-vos possa
+calumnia que em vão troveja.
+
+Brilhae, como ilhas florídas,
+no meio do mar profundo
+de vicios, crimes, e horrores,
+que alaga, que abrange o mundo.
+
+Sêde o asylo das virtudes,
+do Eden a propria entrada,
+o enlace dos Ceos co'a terra,
+do Empyrio a sublime escada.
+
+
+Coimbra--1826 (?)
+
+
+
+
+XI
+
+SANTA MARIA EGYPCÍACA
+
+(Fragmento de um poema)
+
+
+
+.........................................
+Prostrada aos pés da Cruz, ante a caveira,
+jaz solitaria a Egypcia. Rios descem
+de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam,
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Tão nova, e isenta? ¡Oh! não; mudou de amores.
+Dos primeiros só guarda a dor e as penas;
+mas os novos, os ultimos, protesta
+conserval-os em vida, e em morte havel-os.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Té aqui, pela alma escura só lhe ardiam
+relampagos dispersos; derretido
+raio dos Ceos lhe côa pelas veias.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Brilhou no mundo como a flor de um dia.
+Os soes vivos, os ventos importunos,
+lhe ameaçavam fim; ruins borboletas
+captivas da belleza iam murchal-a.
+Imprevisto invisivel jardineiro
+a tempo a salva, e a transplantou no ermo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+No mundo, sobre o abysmo, hontem folgava
+impróvida e leviana; hoje pranteia
+na solidão, mas sob um Ceo que a espera.
+As cidades, em que ídolo brilhára,
+inda a chamam em vão, e em vão a aguardam.
+De um lustro que a houveram, ¡quantos lustros
+lhe volveram saudade!
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Em viço de annos,
+e mais bella que as flores todas juntas
+das dezassete suas primaveras,
+qual fugaz sonho de manhan de estio,
+foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde.
+Murcharam festas; esmorecem danças;
+os banquetes, diffusos pela noite,
+já não veem despertar ternura e risos.
+Nas roseiras intactas se desfolham
+os botões das grinaldas; o alaúde,
+que falou tanto amor nas mãos da bella,
+discorde jaz, e mudo...
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Ella, entretanto,
+co'os mimosos pés nús calcando areias,
+desornado o cabello, envôlta em pelles,
+timida, envergonhada, pesarosa,
+vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.
+Mil vezes á avesinha se compára,
+sem família, sem lar; corre erradia;
+¿não ha-de ambas manter a paz que é de ambas?
+Beija a caverna frígida que a hospéda,
+e agradecendo este hórrido paraizo
+ao Deus que lh'o depára, esquece o mundo,
+ou sem saudade e com horror o aviva.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ai coração tão amplo, onde estuava
+mar de affectos sem conto, escoado agora,
+¿quem o ha de encher? ¡em solidão tão funda!
+¿quem o ha-de encher? Já o enche o que enche tudo,
+o que brilha na luz, no sol, nos astros,
+corre nos aquilões, anima os troncos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Só conversa com Deus, e a Deus só ouve.
+Este seio, estas tranças desatadas,
+são brinco só do vento do deserto.
+Esta mão, tão mimosa e tão querida,
+só procura, excavando a terra ingrata,
+a amorosa raiz, ou já se encurva
+para dar agua aos labios sequiosos.
+A aurora a vem saudar já de joelhos.
+Não ha um sol, não ha na noite um astro,
+que não saiba os seus ais e eternas preces.
+Nem que passe o chacal, a hiena, a onça,
+foge, ou quebra os devotos exercicios.
+Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;
+e a Estrangeira não treme; ora, e descança.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ao fresco desmaiar da extrema tarde,
+quando os raios do sol já mal doiravam
+da longinqua palmeira o incerto cume,
+¡que vezes, assentada, e sustentando
+na eburnea mão o pallido semblante,
+atraz do astro fogoso e fugitivo,
+mandava o coração, mandava os olhos!
+
+
+ * * * * *
+
+
+--«Além--dizia--além, n'esse Occidente,
+corre o santo Jordão delicias minhas,
+que o Salvador banhou, que eu passei mesma.
+Talvez aquella nevoa que lá brilha,
+mudada em rosa, em purpuras, em oiro,
+seja da santa veia alegre filha,
+Além... Jerusalem, Sião, Judêa...»
+
+
+ * * * * *
+
+
+E a taes nomes, enxames de memorias,
+de saudades, de affectos, lhe adejavam
+pela alma, alegre em parte, em parte escura.
+Raro, mas inda ás vezes lhe assomavam
+no involuntario somno ideias meigas.
+Inda, uma vez ou outra, o amor banido
+entrava de relance o antigo alvergue,
+e apóz elle os passeios namorados,
+os theatros esplendidos, as galas,
+as mezas rindo, os bailes desenvôltos;
+e as victorias, e as chusmas dos praseres,
+como á sua rainha vão saudal-a.
+Acordava sorrindo, a Cruz fitava;
+e atirando se á terra, e sôlta em chóros,
+pagava erros não seus com dor bem sua.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Taes se lhe vão no ermo deslizando
+dias e annos, sem ver na areia impressos
+mais vestigios que os seus.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ De tempo em tempo,
+só vê talvez, ou ver presume ao longe,
+do horisonte nas sombras pavorosas,
+o ténue pó da immensa caravana,
+que vai de Alépo á Méka em certa estrada.
+Por ella ora, e entre o orar lamenta
+a devota fanática impiedade.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Tal vai manando a limpida existencia.
+Egual ao ramalhete que desmaia,
+e se esfólha no altar entre os perfumes,
+tal, sem gosto e sem dor, e sem que o note,
+perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia
+encantos, já seu mal, e mal do mundo.
+O juvenil das formas exteriores
+concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas
+se esconde um coração de amor não farto.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Quem a tivesse visto, e a visse agora,
+sentiria o que sente o viajante,
+quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,
+saudosos restos, da gentil Palmyra.
+Uma e outra já gloria do Universo;
+agora mudas, sós, e deslembradas,
+e socias no deserto, e eguaes no exemplo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Meio seculo a viu prantear sosinha
+annos ligeiros da fugaz infancia.
+Ao fim da gran carreira, o Ceo lhe envia
+o solitario Zózimo, como ella
+ancião virtuoso, e habitador das covas,
+que lhe oiça a longa vida, a anime, e exforce;
+lhe dê perdão e paz de um Deus em nome.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Pela primeira vez contente e alegre,
+ousando olhar os Ceos,
+ --«¿Trareis,--lhe disse--
+á pobre peccadora o manjar de Anjos?»
+--«Sim.»
+ E partiu.
+ Com vista prolongada
+ella o segue; co'os olhos no deserto
+o espera todo o dia; ¡e este é tão longo!...
+¡tarda tanto o bom hóspede!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Passou-se
+um anno inteiro. É elle agora; é elle;
+conheço o fraco andar que o zelo apressa,
+e as cans, e a calva, e as faces penitentes...
+
+
+ * * * * *
+
+
+Chega; clama; a caverna não responde;
+grita, e só ouve a si. Olha em redondo,
+vê-a jazer na areia, e a areia escrita
+por mão trémula, errante, ao que parece:
+
+
+Bom Zózimo, por santa caridade
+enterra o corpo da infeliz Maria.
+Aqui morri no dia em que te fôste.
+Encommenda-me a Deus, e Deus t'o pague.
+
+............................................
+
+
+
+
+
+XII
+
+EPISTOLA
+
+Ao meu amigo o Desembargador Manuel Venancio Deslandes
+
+(NO DIA DOS MEUS ANNOS)
+
+FRAGMENTO
+
+
+
+Em torno ao teu amigo estão fervendo,
+Deslandes meu, na hora em que te escreve,
+de uma festa caseira o reboliço.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Bem que alveje de neve o Caramulo,
+e um frígido suão de lá nos venha,
+ninguem hoje de frio aqui se queixa.
+Não descança nem pé, nem mão, nem lingua;
+o sumptuoso lar arde em tres fógos;
+o forno se afogueia; a branca meza
+vai-se de loiça e vidros alegrando.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Uma estuda em compôr as sobremezas;
+outra enrama de loiro alta ferrugem
+das vigas da cosinha; esta, sizuda,
+de riscado avental e nus os braços,
+com importancia e afan revira espêtos;
+aquella, anda scismatica, e raivosa
+de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,
+que além de um alecrim, de umas violetas,
+nascidas por engano, além de rosas,
+frágeis, sem cheiro, e languidas, não cria
+com que se enflore a meza dos meus annos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Porque é, quando a sorrir divagam todos,
+quando só para mim se andam tecendo
+estas pompas domesticas, agora
+que a potente amisade em meu obsequio
+para tudo fazer até fez estros;
+agora, emfim, que aos raios da alegria
+não ha um coração que se não abra...
+¿por que se fecha o meu? ¿Dará (não creio)
+da Natureza o luto um certo assombro
+ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado
+d'esta patria amargura, a filtre aos gostos,
+qual vaso que azedado a tudo azéda?...
+.............................................
+
+26 de Janeiro
+de 1833.
+
+
+FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+
+
+
+NOTAS DOS EDITORES
+
+AO VOLUME I DO
+
+PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+
+Da villa da Castanheira--No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de
+Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o
+sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam
+da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella entra em
+correição o seu Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja
+parochial da invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da Feira, que
+rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo tem uma freguezia
+dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de Aguadão, que consta de 100
+visinhos. É curado annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu
+Prior. Tem este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que
+fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes de todo
+genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes ordinarios,
+Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão da Camara, Juiz dos
+Orphãos com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da Ordenança.
+
+(_Chorographia portugueza_ pelo Padre Antonio Carvalho da Costa.--T. II,
+pag. 176--1708.)
+
+
+Castanheira do Vouga--Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de
+Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem 803 visinhos.
+Está situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S. Mamede.
+Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros são do Santissimo,
+de Nossa Senhora da Expectação, com sua irmandade, e outro de S. Jorge.
+O Parocho é Prior, apresentação da casa do Infantado; tem de renda
+400$000 reis. Tem tres ermidas, que são: a do Espirito Santo, a de Nossa
+Senhora do Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra são
+milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa um Juiz
+ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios Aguedão,
+Alfusqueiro, e Agueda.
+
+(_Diccionario geographico_ pelo Padre Luiz Cardoso. 1751.)
+
+
+ * * * * *
+
+
+Castanheira do Vouga.--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago S.
+Mamede; o Parocho é Prior da apresentação da Casa do Infantado; rende
+480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 7; tem 58 fogos.
+
+Ágadão--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago Santa Maria
+Magdalena; o Parocho é Cura da apresentação do Prior da Castanheira;
+rende 40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem 102
+moradores
+
+(_Portugal sacro-profano_--por Paulo Dias de Niza; cryptonimo do Padre
+Luiz Cardoso--Lisboa--1767--8.^o--2 vol)
+
+
+ * * * * *
+
+
+Castanheira do Vouga.--Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do
+Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140
+fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto
+administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da
+Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um monte proximo
+á serra do Caramulo. A Casa do Infantado apresentava o Prior, que tinha
+400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz algum vinho, e do mais
+pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a 16 de Junho de 1514. Era
+cabeça do concelho do seu nome e tinha Juiz ordinario, Camara,
+Escrivães, e mais Justiças. Passam pela freguezia os rios Agueda,
+Aguedão, e Alfusqueira.
+
+(_Portugal antigo e moderno_--por Augusto Soares de Azevedo Barbosa de
+Pinho Leal--Lisboa, 1874).
+
+
+ * * * * *
+
+
+Pag. 11 lin. ultima
+
+Dapibus mensas oneramus inemptis
+
+
+Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto é, vivemos, sem
+comprar, das nossas lavras proprias.
+
+Citação de Virgilio (_Georgicas_, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina
+variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é:
+
+
+ _....Sero que revertens
+nocte domum, dapibus mensas onerabat inemptis._
+
+
+Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que vamos ouvir
+na traducção de Castilho:
+
+
+ ......Alembra-me que outr'ora,
+lá por onde o Galeso arrasta a veia escura
+por entre loiros chãos de cereal cultura,
+junto á Ebália cidade, a de torreados muros,
+conheci um corycio em annos já maduros,
+dono de uma chanzinha ali desamparada.
+O pobre do torrão de si não dava nada:
+nem pasto para bois, nem para um fato hervinha.
+Sumitico de pães, escasso para vinha,
+era um sarçal fechado; e no sarçal, comtudo,
+o bom velho, a poder de diligencia e estudo,
+tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno
+com seve de jardim para maior adorno,
+alvos lirios, verbena, e papoilas de prato.
+Não trocára co'os Reis seu parco haver tão grato.
+Recolhia ao casal já noite; e, ¡que riqueza
+de iguarias de graça a assoberbar-lhe a meza!
+
+
+
+Pag. 18 lin. 3
+
+Passámos n'uma bateirinha, remada por uma velha moleira da margem, o
+víçoso rio de Bolfiar.
+
+
+Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O
+caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos modernos,
+deram cabo da antiga viagem tão pittoresca.
+
+
+Pag. 36 lin. 20
+
+Uma especie de zimborio de doze palmos de altura.
+
+
+Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que
+primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação do Reino.
+
+
+Pag. 37 lin. 3
+
+Uma desconforme loisa inteiriça horizontalmente aguentada nos ares por
+esteios de pedra.
+
+
+Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em muitas
+partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da sciencia moderna.
+
+
+Pag. 42 lin. 6
+
+A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucídez.
+
+
+O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho o
+seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas _Excavações poeticas_ o
+que elle diz do velho camponez Francisco Gomes, creado da casa, e «um
+dos mais chapados classicos» que elle jamais encontrou.
+
+
+Pag. 58 lin. 7
+
+Lia, Rachel e Rebecca
+
+
+Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel. Achando-se Rachel
+ajustada para casar com Jacob, teve Labão astucia de lhe substituir Lia,
+apesar de menos formosa. Foi mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá, Issachar,
+Zabulon, e Dina.
+
+Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve
+José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que ainda se
+conserva e mostra o seu tumulo.
+
+Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de
+Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob.
+
+Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan,
+são encantadoras de singeleza e graça nas descripções que d'ellas nos
+deixaram os Livros santos.
+
+
+Pag. 72 lin. 15
+
+Uma pobre mocinha ovelheira
+
+
+Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era
+Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta na
+sua _Chave do enigma_.
+
+
+Pag. 80, lin. 9
+
+Filinto e o entrudo
+
+
+Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom Francisco
+Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da velha
+Lisboa.
+
+
+¡Viva o meu Portugal! ¡viva a laranja
+que derruba o chapeo!
+
+
+exclamava elle em París, ao lembrar-se das grosseiras costumagens dos
+Portuguezes, felizmente meio polídas já hoje.
+
+
+Pag. 82 linhas 6 e 8
+
+Citações latinas
+
+
+Essas duas são de Virgilio (_Eneida_, Livro I)
+
+
+_Fronte sub adversa scopulis pendentibus antrum;
+intus aquae dulces, vivoque sedilia saxo;
+nympharum domus_.
+
+
+Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um antro; e lá
+dentro correm aguas doces, e apparecem assentos como que talhados na
+rocha viva; verdadeira habitação de nymphas.
+
+
+Pag. 87 lin. 21
+
+As rogações de Maio
+
+Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado,
+fallecido no anno 475.
+
+
+Pagina 99 linha 23
+
+O ubi campi!
+
+
+Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II das _Georgicas_:
+
+
+_Rura mihi et rigui placeant in vallibus amnes;
+flumina amem silvasque inglorius. O ubi campi
+Spercheosque, et virginibus bacchata Lacaems
+Taygeta!......_
+
+
+Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles;
+encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou. ¿Onde estais,
+campinas? ¿onde estás, rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas
+alegres virgens espartanas?
+
+Castilho traduziu assim este trecho:
+
+
+Então amar só quero os rios e arvoredos,
+de glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos!
+ai ribeiras do Spérchio, oiteiros do Taygéto,
+das virgens de Lacónia ás órgias predilecto,
+¿onde, onde me estais vós?....
+
+
+
+Pag. 102, lin. 10
+
+Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in urbem
+
+
+Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das _Tristezas_.
+Dirigindo-se ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no
+desterro, entre os gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno
+livro; has-de entrar sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal.
+
+
+Parte, ó meu pobre livro; irás sem mim, sosinho,
+correr na gran Cidade incognito caminho
+
+
+traduziu alguem
+
+
+Pag. 107, lin. 17
+
+Zimmermann
+
+
+João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de Berne, a 8 de Dezembro
+de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi abalisado sabio. Nomeou-o
+medico da sua camara em 1768 el-Rei de Inglaterra; el Rei de Prussia
+Frederico, o grande, foi tratado por elle na sua ultima doença, e deveu
+allivios aos seus cuidados intelligentes. O Principe russo Orloff foi de
+proposito com sua mulher consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se
+a S. Petersburgo falou d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina,
+que em 1784 procurou attrahir á sua côrte aquelle luminar da sciencia.
+Elle pediu excusa, porque a vida mundana não condizia com os habitos que
+tinha creado o seu espirito; não se ofendeu a eminente Princeza, e
+conferiu-lhe a ordem de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu
+morrer-lhe entre os braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho.
+Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de outras
+obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa, publicou em
+1756 o seu _Tratado da Solidão_, onde todas as vantagens moraes do
+isolamento são defendidas com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia
+exagerada.
+
+
+Pag. 108, lin. 6
+
+O Passeio publico e o Marrare
+
+
+Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico,
+riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas
+Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar
+os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos Restauradores até
+á extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No sitio exacto
+do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande tanque redondo
+(hoje no jardim da Graça).
+
+O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no Chiado.
+
+
+
+
+ADDITAMENTO
+
+
+Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu bom irmão,
+pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres sermões que ainda restam
+d'este. As suas obras ineditas mandou o proprio Doutor Augusto Frederico
+de Castilho que lh'as queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as
+seguintes:
+
+
+ I--O sermão de S. Pedro, ou da Fé; II--O sermão da esmola, ou da
+ Caridade; III--O sermão nas exequias do senhor D. Pedro IV; IV--A
+ pastoral dedicada ao seu rebanho episcopal de Beja; V--Uns versos
+ na _Primavera_ de Antonio Feliciano.
+
+-----File: 111.png---\-----------------[Blank Page] -----File:
+112.png---\-----------------
+
+
+
+
+SERMÃO
+
+DA
+
+ESMOLA OU DA CARIDADE
+
+
+ Prégado na 5.^a dominga da Quaresma de 1839 na Sé de Lisboa pelo
+ Conego Arcipreste da mesma Sé, o Doutor de capello em Canones
+ Augusto Frederico de Castilho
+
+
+
+_Jesus abscondit se, et exivit de templo._
+Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.
+
+
+
+De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de
+Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por escondido,
+deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu serviço. Jesus vivo, e
+na occasião de que trata o Evangelho, estava no mundo, e faltava no
+templo. Jesus, hoje, por dois milagres de fé e amor, por duas
+eucharistias, está no templo, e mais no mundo: no _templo_, encoberto no
+Sacramento; no _mundo_, encoberto nos seus pobres. N'uma e n'outra parte
+o devemos servir com egual zelo.
+
+Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer á fome e ao frio
+os necessitados, não é de christão; é fé morta. Soccorrer aos infelizes,
+sem crer (se tal é possivel) n'Aquelle que elles representam, é caridade
+morta; tambem não é de christão.
+
+Vós pareceis christãos pela fé, pois que vindes á casa de Deus; vós o
+pareceis, mas não o sois, porque essa fé é morta; cumpre que se
+resuscite pela caridade.
+
+Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que é a caridade
+pratica e activa; é o christianismo na sua parte mundana, o culto do
+Verbo humanado aos olhos de todos, a religião de todas as religiões, a
+philosophia de todas as philosophias, o axioma para todos os
+entendimentos, o dogma até para o atheismo. O objecto é o mais
+accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa faria á
+vossa piedade, se vos exigisse a attenção.
+
+ * * * * *
+
+Alma e coração, discurso e affectos, convencem e persuadem como dever a
+esmola. Não creou a Natureza irmãos privilegiados, e morgados na familia
+dos homens: para uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para
+outros, encargos de miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou
+malicias, estabeleceram essa desegualdade; e andou tambem ahi traça
+recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se uns de outros
+não carecessemos, não nos amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos,
+não fôramos virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes,
+desentranhada de nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e
+purissima fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos, pois, a
+Natureza; a Providencia nos desegualou; e n'esta contradicção apparente,
+é que Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus
+conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça, quiz que tivessemos uma
+norma de egualdade; na Providencia, isto é, na sua caridade, que
+aprendessemos a restabelecer, quanto em nós coubesse, aquella egualdade
+primitiva por mutuos soccorros.
+
+O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho mimoso da
+Providencia, depositario e executor da Justiça de Deus, transumpto e
+argumento de sua bondade e misericordia.
+
+O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o patrimonio dos
+pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo injustiça e barbaridade, egual á
+do depositario que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que
+converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a
+substancia do seu pupillo; é ainda mais: é declararmo-nos inimigos de
+Deus, desacreditando, e dando, de certo modo, quebra áquella
+Providencia, cujos éramos dispensadores e supplementos; áquella
+Providencia, que não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes
+pelo ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae Celeste.
+
+Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra bello, generoso, heroico,
+brota (não duvidemos) da caridade. Deus, para tornar as virtudes caras,
+e accessiveis até aos mais faltos de discurso, não creou a caridade,
+senão que a tirou de suas proprias entranhas, e orvalhando-a sobre a
+terra, lhe deu por benção que de todas as mais virtudes fosse ella
+semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos
+ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato, instinto (¿por
+que o não diremos?), instinto moral.
+
+Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais profundo, mas tambem o mais
+extenso de todos os affectos, para que, sobre encher-nos o coração de
+virtude, ella nol o podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade,
+nol-a podesse tornar permanente.
+
+¡Oh! ¡que maravilhosa não é esta caridade, que em todas as edades, e em
+todas as circumstancias da vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre
+lhe renascem objectos, e infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre,
+como elle, toda a Natureza creada, passa dos homens aos animaes brutos,
+d'estes aos proprios entes insensiveis, adivinha infortunios, inventa e
+persuade soccorros, até para entes que os não sabem agradecer, que os
+não requerem, que os não precisam!
+
+Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos; momentos em
+que se não sabe conter, nem governar; suspiros, lagrimas, e desalentos;
+enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas, como tudo lhe nasce do
+amor e compaixão, tudo é terno, tudo é mavioso e consolador. Virtude de
+virtudes, virtude unica onde não ha excessos.
+
+Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras
+primas da creação. ¡Ah! ¡que se jamais se podessem tributar ao homem
+cultos, que só á Divindade se devem, ninguem tanto os merecêra, como
+esses que, possuindo os thesoiros dos bens terrestres, os derramam no
+seio dos infelizes!
+
+Porém, meus irmãos, não é mistér uma brandura de animo requintada, para
+nos movermos com os infortunios dos nossos semelhantes, e
+procurarmos-lhes o remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um animalsinho,
+morto de fome, transido de frio, desamparado ás inclemencias de uma
+noite de inverno, e invocando a nossa piedade com aquelles gritos
+lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes para dizerem as
+suas dores, qual de nós se não sentiria profundamente condoído, não
+correria a abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah! ¿e
+deixariamos no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso
+irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens possuimos,
+cuja felicidade é tão travada com a nossa, e cuja desgraça tem sido
+talvez effeito da nossa injustiça, da nossa barbaridade?
+
+¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o coração... ¿que
+digo? que o trazeis defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores
+mais doridos da Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se estão
+sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis, ¿que uso mais
+util farieis vós de vossos bens, do que seria o acudir-lhes? Na vossa
+avidez insaciavel (semelhantes ao inferno, que, por mais victimas que lá
+chovam, não cessa de clamar _affer_, _affer_, mais e mais), uns de vós,
+ó ricos do mundo, se contentam com a visão beatifica dos seus cofres; a
+sua alegria, a sua felicidade, o seu proximo, o seu mundo, a sua alma, o
+seu Deus, tudo seu ali jaz; ali enterraram o coração, e o conservam mais
+duro, mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que
+amontoaram; em quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus
+thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por
+luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem, sem destino, sem uma só
+utilidade real. Mais loucos ainda e mais infelizes, outros emfim,
+parecendo arrenegar dos beneficios da Providencia, os cofres que ella
+confiou nas suas mãos, elles os despedaçam e espalham, não só sem
+vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de
+si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios,
+abysmaram a rasão, destruiram as forças, aniquilaram a saude,
+anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus irmãos, ¡que de inquietações, de
+violencias, de trabalhos e de dores, para comprar uma eternidade
+desgraçada! ¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o
+inferno!
+
+Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses dinheiros de
+maldição, preço dos tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os
+dias se renova nos seus pobres, que vós entregais e desamparais sem
+piedade, com esses dinheiros de maldição, ides comprar um arrependimento
+esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o odio dos homens, a
+vingança de Deus, os tormentos eternos!
+
+¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara opulencia! Injustiça para
+com os infelizes, cujos bens sonegamos, cujos lamentos não queremos
+escutar, cuja morte mesmo antecipamos muitas vezes.--Injustiça para com
+Deus, de quem recebemos esses bens, com a condição da caridade, e cuja
+Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos beneficios e
+esmolas, desde que entramos no mundo.--Injustiça para comnosco mesmos, a
+quem fechamos as portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os
+sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de toda a
+felicidade.--Injustiça, emfim, para com todo o genero humano, de quem
+nos afastamos, a quem não queremos pertencer, de quem até nos declaramos
+inimigos.
+
+¿E para onde fugirão os nossos olhos, que lá não vá a miseria publica
+perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos desgraçados, porque
+nunca a nossa immoralidade foi tão barbara. Realisou-se sobre tantos
+irmãos nossos parte grande das maldições, com que Deus, por bocca de
+Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por todas as guaridas da
+indigencia; visitae os tugurios e choupanas miseraveis das aldeias, das
+maiores povoações, e até das cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e
+variedade de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e
+doentias, mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de
+pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas; ¡quantas se não
+chamam poisadas e casas, que antes são covas, masmorras, ou jazigo de
+viventes! ¡de quantos não é cama a terra humida, e vestido o que nem
+lhes encobre a nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos,
+chorando e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais
+infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na Natureza, além do sol
+que os aquece, e do ar que respiram, e começam a conhecer tão cedo a
+dureza dos homens, obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar
+por si mesmos com que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas
+tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas sem protecção, em quem, sobre o
+desamparo e dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus bens
+arrancados por crédores, e quantas vezes por ladrões, debaixo do nome de
+crédores! ¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores ás suas
+forças, ou á sua creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com o
+suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está derretendo e
+mirrando! ¡Tantos enfermos expirando á mingua, sem medico, sem
+tratamento, sem remedios, sem enfermeiros, sem alma viva que os console,
+que lhes suscite as ideias da Eternidade, e até sem um lençol que os
+amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços, e do uso dos sentidos
+mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados para a borda dos
+caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol, as chuvas, os
+frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros de outra
+especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem lar, sem nada, nem um
+amigo, sósinhos em meio de tanto mundo!
+
+¡Mas que me canço eu a enfeixar o que não tem conta! E quando de taes
+miserias conseguisse fazer aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras
+não ficariam de fóra, mais profundas, e mais miserias, porque ellas
+mesmas refogem e se escondem! As ruas e as praças, com todos os seus
+clamores e penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie
+está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não sei que reflexo de
+verniz e doirado, um não sei que ruido festivo, um perfume de opulencia
+e sabores, um certo sorrir, um raio de sol, um aspecto de céo azul, uma
+vida e uma esperança, que são disfarce, e mascara da existencia do povo,
+real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida. Sahindo-se para a rua,
+deixam-se á porta as lagrimas, e cuidados verdadeiros, e toma-se na
+bocca e faces o contentamento postiço. Por fóra andam os corpos em toda
+a sua gala; mas dentro, por todo esse immenso _dentro_, nas entranhas
+d'esse infinito massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos
+sem termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão chorando
+milhares de corações, estão-se desesperando milhares de almas.
+
+Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira para se
+recrear, por esses caminhos tão lageados de marmores, tão ataviados de
+vidros de cores, de metaes brilhantes, de todas as espumas mais formosas
+do luxo, se Deus permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos
+por entre que duas montanhas de infortunio, vai caminhando! ¡oh! ¡como
+de repente, semelhante a Pharaó, na estrada do Mar Vermelho, desabariam
+de todas as partes a afogal-o ondas e mares de dor!
+
+Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da caridade,
+¡quantos pobres envergonhados que abafam soluços e gemidos entre as
+quatro paredes da sua casa! Nas horas da noite, quando das dansas, dos
+jogos, dos espectaculos, e de peores logares, saem torrentes de
+mundanos, em quem parece que o tempo, o dinheiro, a saude e a fama pesam
+insoffrivelmente, ¡que de vezes se lhes não atravessam diante uns
+phantasmas de penuria, em fórma já de mulheres, já de meninos, já de
+anciãos, a quem a vergonha do sol não consentíra sahir dos seus
+sepulcros! De um portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua,
+nos saem as suas vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de
+que não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo a mão a
+receber a esmola, e a abençoar a caridade; algum vos esconde um rosto,
+que, em melhores dias, tinheis visto brilhar á luz da prosperidade.
+
+Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os
+dias, e não temem o aspecto da noite, porque já não podem ser mais
+infelizes, é Deus quem nol os envia ao encontro, menos por elles que por
+nós, menos para alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem
+algum affecto ao coração gasto, algum pensamento fundo e importante á
+alma dissipada. ¡Felizes vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos
+da desgraça, estas embaixadas solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que,
+em vez de os repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade,
+com a esperança ao queixume, e com a commiseração a quem não cuidava que
+no mundo a houvesse!
+
+--Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que
+me desatinam, que me desesperam (dizeis vós), ¿quem me abona a sua
+pobreza? e concedendo-lh'a, ¿quem me affirma que não é ella castigo da
+sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que vos importa? Se póde ser uma
+coisa ou outra, dae; antes lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em
+vaso cheio, ou em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a
+quem do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe
+recusasseis, padecêra n'um dia o que vós não padeceis n'um anno, ou,
+para o não padecer, commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle
+n'este mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós, que tão de
+repente sentenciais o desgraçado que não conheceis, ¿por que vos não
+sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a vós?
+
+_Póde não ser pobre o que vos pede._--Sim, e algumas vezes se tem
+visto.--_Póde ter merecimentos para muito mais ainda do que
+padece._--Sim, que é homem como vós, e com mais razão do que vós para
+aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde ser; ¿mas
+examinastes vós se era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a
+esmola por tal motivo, ¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a
+injuria? ¡Ah! em quanto sentenciais uma alma que não conheceis, e
+condemnais o vosso semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais
+razão não tem elle para condemnar a vossa alma, que vós mesmos lhe
+descobristes inteira com uma só palavra!
+
+Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a concessão), que todos esses
+andam expiando peccados seus; são até criminosos e facinorosos; que nem
+um d'elles tem necessidade; são até abastados e opulentos; que todo o
+mendigo é um salteador e um millionario. ¿Estais contentes com a
+concessão, ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o não ha.
+Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos apresentar pobres, de uma
+pobreza processada e demonstrada, que vos não importunam nem se queixam,
+dos quaes muitos, dos quaes inteiras classes, não mereceram, nem poderam
+merecer, o seu estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito que o
+sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas mães; ahi os
+tendes, que a Misericordia mesma não basta a amamental-os e vestil-os,
+e, de seus pobres bercinhos, caem em cardumes nas sepulturas, e vôam a
+ir depôr na presença de Deus, contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes
+dado a vida por um peccado, por um peccado ainda mais mortal (se é
+licito dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a morte.
+
+¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem innocentes.
+Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida, onde se queria educar e
+felicitar um seculo novo, e que, por falta de caridade publica,
+morreram, depois de tão bem nascidos e esperançosos.
+
+¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice, tambem e mais desvalida,
+onde os soccorros nunca são sobejos, nem sufficientes; porque muitos
+mais são sempre os que batem e choram áquellas portas de refugio, que os
+que a estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro á meza do
+convite de Deus.
+
+Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o Senhor chamando o
+coração, e por toda a parte vos tem cercado do dever da esmola.
+
+¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias.
+
+¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos, a quem
+falta pão, lar, vestido, mundo, que o não conhecem, nem elle os conhece;
+militares que envelheceram nas armas e morrem á míngua; viuvas e orphãos
+de servidores do Estado, a quem se não paga, nem com esperanças.
+
+¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos politicos
+vencidos, em quem não é mister longo exame para se reconhecer a
+desgraça, porque é corollario evidente de causas notorias. A terça parte
+de uma edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais longe, tem
+sido entre nós consumidos em dissenções e odios. Com successivos
+terremotos políticos, teem desabado as mais altas torres de fortuna;
+desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram arrancadas de
+furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes esperanças; os
+caminhos trilhados e sabidos subverteram-se; por onde se descia,
+sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum
+dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de oiro, e o ancião doirado,
+que ainda hontem lhe houvera matado a fome, lhe alonga a mão, da margem
+do caminho, clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o
+presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado; entendo
+os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e bens do
+futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males extraordinarios,
+que não são, para que assim digâmos, nem do homem, nem da Natureza, nem
+de Deus, mas sim da mudança, da transformação da fortuna, da fortuna
+cega, que, no trocar das mãos, quebra sem pejo, nem dó, nem consciencia,
+o que depois todos choram e ninguem concerta.
+
+Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que não vemos,
+pela peior de todas as cegueiras, que é o não querer ver. E quando
+d'esta somnolencia, d'este lethargo, d'esta morte do coração, acordamos
+algum momento a este som _Esmola a este vosso irmão pelas chagas de
+Nosso Senhor Jesu-Christo_, já nos reputâmos muito generosos, se em vez
+do silencio ou de uma injuria, lhe acudimos com um _Deus o favoreça_; e
+tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos vãos ou
+peccaminosos que traziamos; e lá deixámos para traz a Jesu-Christo morto
+de fome, a Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o
+seu estado de abjecção os não obrigasse á humildade ínfima, se o uso de
+soffrer estas repulsas os não tornasse já meio insensiveis, se elles nos
+podessem retorquir, «¡Quê! (nos responderiam) ¿Deus que nos favoreça?
+Deus nos favoreceu com esses bens que indevidamente retendes; Deus nos
+favoreceu com os thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes.
+¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis acaso tental-o? ¿que elle obre em
+nosso favor um milagre desnecessario? ¿que torne a chover o maná do céo,
+não sobre um deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra,
+que por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas dádivas? Esse
+maná vós o possuis, e encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará
+que se corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos favoreça, deshumanos? Sim,
+sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os merecimentos que
+terieis na sua presença em serdes misericordiosos, elle os accumula
+sobre a nossa resignação; com os infortunios que nos accrescentais, e os
+prémios que rejeitais, se juntarão em nosso favor aos prémios de que a
+sua misericordia nos achar dignos.»
+
+¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza fossemos capazes de
+entender os gritos e lagrimas de tantos paes de familias, cujas familias
+podem dizer que não teem pae, tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas
+desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos
+enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos pobres
+envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a
+significação das suas dôres e desalento, que uma reprehensão amarga da
+nossa barbaridade para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão para
+com Deus; acharíamos, sim, acharíamos até n'esses lamentos, a expressão
+propria com que devêramos deplorar nós mesmos a dureza, antes
+ferocidade, dos nossos corações.
+
+Não só, meus irmãos, as nossas liberalidades atalham todas estas
+miserias, mas ainda vão precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre
+rapariga, a cuja honra se preparam violentos ataques. O Céo a dotára das
+qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou de algum modo desfazer a
+obra do Céo, juntando-lhe a pobreza com a formosura. Do seio da
+opulencia, um libertino já vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario
+da virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e
+todas as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que
+exaltaram o seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os
+seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque;
+frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na repulsa, o
+merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a seducção, de
+mãos dadas com a indigencia... ¿não vencerão cedo ou tarde? Chegou emfim
+esse dia; ¡venceu! e com um sorriso infernal applaudiu o seu triumpho, e
+a desgraça que consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre
+victima. Ali jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo;
+ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que, depois de a
+desgraçar, chegou mesmo a aborrecel a; ali jaz na mesma indigencia que
+d'antes, porém mais infeliz agora; a sua honra fugindo abalou-lhe todas
+as outras virtudes. Em odio a Deus e a si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um
+refugio no mundo? nenhum, porque o traidor, declarando-se seu cruel
+inimigo, foi divulgar o segredo, e exigir esses applausos infames, que
+tanto mereceu. ¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia,
+seriais sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te houvesse a
+tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e modesto, onde
+vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos homens, ¿não se teria
+afastado ainda o raio que reduziu a cinzas o desambicioso edificio da
+tua felicidade?
+
+Além é um moço, que, cançado da dureza dos homens, começa a não conhecer
+as leis na sua necessidade. Por toda a parte repellido, julgou direito
+prover por si mesmo, e a todos os despeitos, á sua conservação.--«Todos
+esses a quem recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não quero a sua
+felicidade; mas tenho, como elles, direito de viver.»--Levado assim
+pelos raciocinios errados do vicio, ou só por um instinto que lhe
+bafejou a injustiça dos homens, começou por pequenos furtos; passou a
+maiores; nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade;
+zombou de todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e
+acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o affasta do
+precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe tira deante dos
+olhos dois futuros que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere
+perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas
+correspondentes, em si e na sua duração, a crimes de que nunca se
+arrependeu, e damnos que nunca tiveram restituição. E quando elle passar
+para o patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis: «Não
+tenho coração para taes espectaculos;» ¡como se esse mesmo coração não
+fosse o seu peor algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso!
+
+N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade,
+mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas
+esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os amigos que o
+atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que se vê precipitado n'uma
+desgraça a que não prevê termo na sua desesperação, insulta o Céo,
+blasfema da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe se irá (como
+tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender um
+laço, por onde arranque uma existencia que o importuna! ¿E a caridade e
+a ternura não poderão ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe
+rebentar as lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o
+coração? ¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e abençoar o pão com que
+lhe sustentamos uma vida que lhe fizemos amar ainda?
+
+¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas não déstes vós ás almas
+generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos alcançava uma côroa o
+que salvava os dias do seu concidadão, ¡que honras não merece dos outros
+homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma vida
+infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que já suppunham surdo e injusto!
+¡e que até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da
+miseria que lhes arrancariam os meios de salvação!
+
+¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para reconhecermos como bem
+real esta doce obrigação da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que
+mais fortes motivos não tem o homem christão, para ser esmoler, segundo
+as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os deveres da caridade não
+são para nós simplices axiomas, ou preceitos da philosophia; não são o
+resultado de um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas
+vieram não só confirmar, mas dar ainda, se é possível, uma extensão
+muito maior a tudo quanto n'esta parte a Religião natural nos havia
+imposto.
+
+Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos modos, até
+indirectos, nos não é persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós
+todo o thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais
+perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo qual
+nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as Escrituras); não só nos
+adornou de todas as graças que perdemos na desobediência de nossos paes,
+mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem (mais
+parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma
+habitação commoda e feliz. Esse sol que nos allumia o theatro do mundo,
+essas estações que lhe mudam as scenas, os frutos saborosos e delicados
+que rompem da terra, os vestidos que nos cobrem, o ar que respiramos, o
+somno que nos restaura as forças, os prazeres que nos lisonjeiam os
+sentidos, os prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do
+coração, são outras tantas esmolas, com que Deus proveu desde a
+eternidade ao homem, sobre fraco e indigente, ingrato a tantos
+beneficios.
+
+Na sábia disposição com que de mais o Eterno Padre arranjou todo o
+grande systema da Natureza, ¿não nos deu Elle uma grande lição de
+caridade, estabelecendo em todas as suas obras uma encadeacão successiva
+e mutua de dependencias e soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares
+liberalisam as suas aguas ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em
+chuvas, a terra ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos
+mares; e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo
+se conserva, se reanima, se restaura.
+
+D'esta mesma sorte, não só as grandes porções da Natureza, mas ainda os
+seus minimos individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e
+os soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes á
+existencia dos outros. É assim que, por toda a parte envolvidos pela
+Natureza, do meio da qual nos elevamos, como obras as mais perfeitas,
+não só nos não devemos resvalar a uma condição inferior á da propria
+materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade, quanto
+nos devemos considerar como entes, cuja conservação é mais importante
+para a manifestação da gloria de Deus.
+
+O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia,
+desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de
+felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o seu sangue,
+lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o Céo e a
+terra.
+
+O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de santificação, e
+nos accode com esmolas continuas, desde que abrimos os olhos, até que
+deixamos o mundo; pelo baptismo assenta os nossos nomes no livro da
+vida; confirma-nos e augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas
+vezes quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos anjos; e
+accode-nos até com remedios temporaes, á hora em que as portas do
+carcere se vão abrir, e a alma sôlta reverter á sua origem.
+
+Mas não só pelo seu exemplo e meios tão indirectos nos persuadiu Deus a
+esmola; não é uma simples recommendação, é um dos preceitos mais
+rigorosos:--_Ego proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et
+pauperi qui tecum versatur in terra_: Sou eu, é o teu proprio Deus, quem
+te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e ao pobre, que lida
+comtigo sobre a terra. Esta lei tão clara, tão precisa e absoluta na sua
+letra, ¿terá acaso todos esses caractéres que devem sempre manifestar-se
+em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e seja o proprio Deus quem nol-a
+interprete.
+
+É _justa e necessaria_: necessaria muito mais ainda para o bem
+espiritual dos bem-feitores, do que para o commodo temporal do
+soccorrido. A esmola, segundo Jesu-Christo, é um acto de Religião,
+conjuntamente com a oração e jejuns; é pois rigorosamente um meio
+expiatorio; é um commercio que temos com Deus por meio do nosso proximo;
+é uma agua copiosa (diz o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio
+das nossas iniquidades; é uma santa usura, em que trocamos bens
+superfluos e temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros
+que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão sempre
+clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas que nunca teem de se estragar
+nem de esgotar-se, que nunca nos serão roubadas nem podem ser
+consumidas; é um seguro para o dia da afflicção; é finalmente um arrimo
+a que nos soccorremos para não cahir.
+
+Mais: é _util_, considerada mesmo temporalmente para quem a dá. O
+Espirito-Santo o disse tambem nos Proverbios: _Aquelle que der ao pobre,
+de nada carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas, cahirá tambem
+na pobreza._--Eis aqui, meus irmãos, eis aqui patente o terrivel segredo
+da vingança divina, quando aniquilla tantas fortunas que pareciam tão
+solidamente estabelecidas: _Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil
+inanes_. Sim, porque as maldições, ó ricos do mundo, que o pobre vos
+lança em segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas
+imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca d'elle arredará os
+seus olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho,
+sereis ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos
+thesoiros; _et sepultus est in inferno_. E se as vossas riquezas vos são
+consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso inferno no
+mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa quéda seja mais
+espantosa, ou para que os vossos descendentes, que não são culpados nas
+vossas iniquidades, não experimentem a punição da vossa dureza, e
+recebam juntos esses bens a que irão dar um justo emprego.
+
+¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes vós, pelo contrario, que homem algum
+se arruinasse jámais pelas suas larguezas com os pobres? ¿Não é antes
+uma verdade, confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as
+familias de mais caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o
+Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os prophetas:
+«Se derramares toda a tua misericordia sobre os necessitados, e encheres
+de consolação almas que gemiam na afflicção, a tua casa se tornará como
+um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será tão perenne como a
+fonte que a todos offerece os seus licores, e por mais que a bebam nunca
+se esgota, nem cessará de correr.» ¿E o Redemptor não disse ainda mais
+expressamente: _Date et dabitur vobis_? ¿Não compara elle a retribuição
+com que o Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades, com uma medida
+avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os lados, que se nos
+vasará para o regaço? ¡Oh! não duvidemos: os bens do misericordioso,
+repartidos pelos infelizes, são o azeite e a farinha milagrosa da santa
+viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a Escritura, comeu ella e a sua casa;
+e desde aquelle dia nunca lhe faltou a farinha no pote, nunca o azeite
+do vasinho se diminuia.
+
+Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de bençãos as Escrituras não veem
+chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o
+Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no mundo, o livre das mãos
+dos seus inimigos, o allivie no leito da sua dôr. O que dispersar os
+seus bens pelos pobres, viverá de seculo em seculo na memoria dos
+homens, abençoado será o seu nome, e n'elle se despontarão as settas
+envenenadas da calumnia. _Justitia ejus manet in saeculum saeculi.
+Exaltabitur in gloria. Ab auditione mala non timebit._ ¿Que significam
+tantas promessas, meus irmãos, tantos premios, tanta abundancia de
+bençãos, as glorias do Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem
+benefico? ¿Que sacrificio tão importante se vai exigir d'elle? ¿a que
+lances heroicos o querem persuadir? ¿que perdas soffrerá que cumpra
+contrabalançar por premios de tão alta valia? ¿Exige-se-lhe a
+mendicidade e a miseria, em que viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um
+exterminio de todas as paixões? ¿uma abnegação de todos os prazeres? ¿as
+mortificacões da penitencia? ¿a constancia e morte gloriosa dos
+martyres? Não, não. Pede-se-lhe só amor e provas de amor para com seu
+irmão; pedem-se-lhe só lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe
+intima que dê, com prejuizo seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas
+empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e
+patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para lhe pedir
+só as migalhas superfluas da sua meza.
+
+¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a vossa! ¡Remunerardes
+como sacrificio uma virtude, e acceitardes como virtude o que nada custa
+ao coração! ¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres mais doces
+da consciencia! ¡Considerardes em mais do que homem a quem só cumprìu
+com deveres da humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que
+trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já nol-o havieis dado com
+essa condição! ¡Acceitardes, finalmente, esses bens frageis, temporaes e
+caducos, esses bens que só devemos á vossa liberalidade, como moeda
+correspondente em valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros
+infinitos!
+
+Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos nos deveriamos abysmar,
+vós me chamais, meus irmãos, vós me fazeis descer ás profundezas da
+vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um segredo bem
+importante. ¿E não adivinho eu quaes teem sido, desde que enunciei o
+thema e objecto do meu discurso, os pensamentos de muitos de vós, da
+maior parte, ou antes de quasi todos os que me escutais?--«Feliz
+(exclama cada um de vós, no seu coração) feliz de mim, se eu podera
+soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me veria de posse do Céo.
+Porém Deus não me destinou a mim esses premios e bençãos; e se a esmola
+fôra um meio indispensavel de salvação, eu me perderia sem remedio, não
+por minha culpa, mas por culpa da fortuna. Todos os meus bens
+escassamente chegam para a minha sustentação e da minha casa.»--Assim
+pensais; assim buscamos pretextos para illudir todos os preceitos até os
+mais terminantes e expressos da Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua
+presença, dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa
+propria crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu do
+Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos, que ahi estão
+comvosco. Folgais talvez com a sua confusão; e a doutrina da caridade, a
+doutrina de tanto amor, só serve de despertar em vós a insolencia, o
+desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa semente se
+perca d'este modo; que só a acceite um pequeno torrão de terra, e que em
+vez de produzir os bellos frutos do Senhor, a maior parte do seu campo,
+ou quasi todo elle, continue a só desatar-se em cardos e espinhos.
+Afugentemos as aves d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e
+não consintâmos que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por
+mais pequeno, da sua terra.
+
+Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem excepção, vos achais obrigados
+a ella; e esta universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o
+seu segundo caracter de lei.
+
+Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a
+outra do coração. Tão longe vai, pois, a esmola como a caridade; e para
+podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos possuir um coração. ¿Não
+tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por tantos
+famintos. ¿Escassamente vos chega o pão, mas tendes algumas roupas
+superfluas? Cobri com ellas tantos nús. ¿Nada tendes hoje? Promettei
+para ámanhan; enchei de esperanças o seio vazio de todas as consolações.
+¿São a caso insignificantes os bens que vos restam para os frutos da
+caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que deis só um copo de agua
+fria a um dos mais pequenos do mundo, lembrando-vos de que elle é meu
+discipulo (vos diz Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que não
+ficará sem recompensa. ¿Nada tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes
+que dar? Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a vossa
+fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não mentis ao desgraçado, se na
+verdade vos achais privado de todo o genero de haveres, ainda possuis
+muitos bens em que não reparaveis. São os que existem dentro do vosso
+coração. Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre
+todas as feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com o
+vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que os ricos sem elle,
+afogados nos seus thesoiros. Consultae esse coração; ouvi como um
+oraculo as suas respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus
+impulsos.
+
+¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi á morada do rico.
+Entrae affoitos.
+
+Pintae-lhe as miserias do seu semelhante. Mostrae que só os interesses
+da humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os
+vossos olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae
+as eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos
+corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com o pão e com
+a carne, que vos deu essa Providencia, que assim soubestes interessar.
+
+¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o trabalho dos vossos
+braços. Advogae perante o poderoso a causa do fraco. Desfazei os enredos
+e calumnias, que ennegreceram vosso irmão, que lhe roubaram todas as
+protecções.
+
+¡Não tendes que dar! Congraçae o homem com o homem, a familia com a
+familia.
+
+¡Não tendes que dar! Visitae tantos desgraçados, que gemem por esses
+carceres; persuadi-lhes a paciencia, e a resignação evangelica;
+confortae-os com palavras doces, com esperanças consoladoras.
+Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com mão carinhosa, os
+remedios; animae-o com os vossos sorrisos, e fazei que troque os
+suspiros da sua dôr e do seu desalento em suspiros de ternura, em
+expressões de confôrto; que veja os Céos abertos, e que goze
+antecipadamente de premios, que, se não fosseis vós, talvez não tivesse
+de possuir.
+
+¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a tantos meninos, e
+ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de vosso proximo na
+presença, assim como na ausencia. Ajudae-o com as vossas orações.
+
+Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas.
+São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca se esgota
+para um christão. Tomae a vós uma parte do seu infortunio, e elles
+ficarão menos oppressos. ¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do
+oiro! ¡De quantos e quantos modos, não sabe reproduzir-se a
+beneficencia!
+
+Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia,
+porque elles alcançarão misericordia.
+
+Eis aqui as bençãos e os premios do Céo, recahindo sobre todos vós, sem
+exclusão de um só. Ahi vos tendes tão ricos, aos olhos do Senhor, como
+esses ricos, cuja dureza lamentaveis, a cujos bens vos promettieis dar
+um melhor emprego, se os possuisseis. ¿Quem vos detem? ¿por que não
+correis a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a
+merecerdes essas bençãos e premios, que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê!
+¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o zêlo, que murmura, que reprehende,
+que insulta nos outros a infracção dos deveres, em quanto os julga
+alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por
+mais injusta contradicção, as fraquezas, que não perdoamos no mundo,
+sendo em nós, já as sabemos desculpar; ¡e quantas vezes não passam de
+desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão, se a
+humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os interesses do mundo,
+se as bençãos do tempo e da Eternidade, se todos os premios de Deus,
+emfim, nada podem comvosco, possam-n-o, ao menos, as suas ameaças,
+castigos e maldições, que vão constituir a sua lei perfeitamente
+obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter.
+
+¿Recusais a misericordia de Deus? Já não tendes que escolher. Só lhe
+ficaram as vinganças. Affastae-vos, ó santa familia de infelizes.
+Pobresinhos do Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover
+fogo e colera do Céo. Para além, para além, é o vosso refugio, á dextra
+do Eterno Padre. _Venite ad me, omnes qui laboratis, etc._ ¿Não vos
+tinha elle dito que os vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as
+humiliações se lhes converteriam um dia em triumphos? Sim, sim, ó
+famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos, ¡jubilae!
+Vós nunca cessastes de ser os seus filhos muito amados. Eu vou reassumir
+todos os thesoiros (vos diz elle) que a minha Providencia repartira
+pelos vossos barbaros oppressores. Eu lhes havia dado mais altos meios
+do que a vós mesmos de alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos
+custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de os fazer
+ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o vós, ó
+meus pobres; frutos que eu vou recolher e guardar para sempre no meu
+seio; elles foram arvores estereis, que, dominando toda a sementeira, a
+açoitaram com os ramos, a damnaram com a sombra, a devoraram com as
+raizes; infecundas e nocivas eu as arranquei em meu furor; eu vou
+lançal-as ao fogo. Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no
+incendio eterno, que foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu
+tive fome, e vós me não déstes de comer; eu tive sêde, e vós me não
+déstes de beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e não me
+vestistes; enfermo e encarcerado, e não me visitastes. Todas as vezes
+que despedistes, que calcastes os pequenos do mundo, a mim, a mim o
+fizestes.
+
+¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença de maldição estampar-se hoje com
+letras de fogo e indeleveis nos vossos corações. Este Jesus escondido
+nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos templos, coberto de
+remendos, macilento, prostrado debaixo do pêso de tantas cruzes, é um
+rei de majestade, é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda
+a sua cólera, e de cujas sentenças nunca poderêis mais appelar. ¡Oh!
+compadecei-vos d'elle, soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e
+humilhado, para o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador.
+¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o coração me-diz que esta semente
+não será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros e consolações.
+
+Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda é tempo. Aqui
+promettemos soccorrer-vos com o que é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a
+vós, cahido, a vós humilhado, para vos não experimentarmos depois
+accusador, testemunha, vingador e inexoravel. Antes que nos-accendais
+esses fogos de maldicção, já era nossos corações temos accezos outros,
+que muito mais são vossos: os da caridade.
+
+Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em tôrno da meza do vosso
+banquete celestial, aonde se assenta o opulento Salomão a par do Lazaro
+mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador arrependido com
+o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos sôbre o vosso seio; e n'um
+abraço de eterno amor nos-apertae a todos sôbre o vosso coração
+paternal, por todos os séculos dos séculos.
+
+Assim seja.
+
+
+
+
+INDICE
+
+
+I--A primeira noite na serra 5
+
+II--O sepulchro, ou historia de uma noite
+de S. João 11
+
+III--Epistola a João Evangelista Pereira da
+Costa 41
+
+IV--O Presbyterio 43
+
+V--A lyra do desterrado 49
+
+VI--Epistola a 51
+
+VII--A romaria 53
+
+VIII--O Domingo gordo dos montanhezes 55
+
+IX--O S. João nas faldas do Caramulo 77
+
+X--O mosteiro 81
+
+XI--Santa Maria Egypcíaca 91
+
+XII--Epistola ao Desembargador Deslandes 97
+
+Notas ao 1.^o volume 99
+
+Additamento 107
+
+Sermão da Esmola ou da Caridade 109
+
+
+
+
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade editora
+
+[Figura]
+
+LIVRARIA MODERNA 95--RUA AUGUSTA--LISBOA
+
+
+
+
+*Notas:*
+
+[1] Verbi gratia na quinta da Domanderes.
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[2] Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos com o
+gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz descarregar
+uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos ladrões, pelas muitas
+perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.--Nota do
+secretario Augusto.
+
+[3] A Castanheira do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da Feira, a uma
+legua de Agueda.
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[4] A traducção de parte de Silio Italico pelo Padre Francisco Manoel do
+Nascimento (Filinto Elysio.)
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[5] Traducção da escolha das Fabulas de Lafontaine pelo mesmo.
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[6] (O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.)
+
+
+ Nota dos Editores.
+
+
+[7] Josué--cap. XXIV
+
+[8] Juizes--cap. VI.
+
+[9] Foi este fragmento publicado na _Revista Universal Lisbonense_ de 19
+de Junho de 1845--Tomo IV, pag. 582.
+
+
+ Os Editores.
+
+
+
+Lista de erros corrigidos
+
+
+Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:
+
+
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | | Original | Correcção |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | Volume I | | |
+ |#pág. 20| a ém | além |
+ |#pág. 33| «o salto)» | «o salto») |
+ |#pág. 56| lnes | lhes |
+ |#pág. 69| fescenino,» | fescenino», |
+ |#pág. 94| acompapanhal-o | acompanhal-o |
+ | | | |
+ | Volume II| | |
+ |#pág. 45| dextra não | dextra mão |
+ |#pág. 113| tarrestres | terrestres |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
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+Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
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+from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
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+and distributed to anyone in the United States without paying any fees
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+work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
+through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
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+
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+permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
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+work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
+
+1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
+electronic work, or any part of this electronic work, without
+prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
+active links or immediate access to the full terms of the Project
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+
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+compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
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+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
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+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
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+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
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+that
+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
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+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
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+ License. You must require such a user to return or
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+ and discontinue all use of and all access to other copies of
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+
+- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
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+electronic work or group of works on different terms than are set
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+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
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+DAMAGE.
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+is also defective, you may demand a refund in writing without further
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+
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+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER
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+WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
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+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
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+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
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+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation information page at www.gutenberg.org
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at 809
+North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email
+contact links and up to date contact information can be found at the
+Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit www.gutenberg.org/donate
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For forty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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Binary files differ
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+<pre>
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+The Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O presbyterio da montanha
+
+Author: António Feliciano de Castilho
+
+Release Date: September 24, 2012 [EBook #28127]
+First Posted: February 19, 2009
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<div>
+<div class="fbox"> <b>Nota de editor:</b>
+Devido &agrave;
+exist&ecirc;ncia de erros tipogr&aacute;ficos neste texto,
+foram tomadas v&aacute;rias decis&otilde;es quanto &agrave;
+vers&atilde;o final. Em caso de d&uacute;vida, a grafia foi
+mantida de acordo com o original. No final deste livro
+encontrar&aacute; a lista de erros corrigidos.<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita
+Farinha (Fev. 2009)
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>O Presbyterio da Montanha:<br />
+
+<br />
+
+<a href="#Vol.I">Volume I</a><br />
+
+<a href="#Vol.II">Volume II</a></h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4>
+
+<h4>
+XIX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME I</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+95, Rua Augusta, 95<br />
+
+1905</h4>
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+OBRAS COMPLETAS<br />
+
+DE<br />
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4>
+
+<h4><br />
+
+VOLUME 19.&ordm;</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">I</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor
+e melancolia.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A
+chave do enigma.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas
+de Ecco e Narciso.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(1.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span>&#8213;Aprecia&ccedil;&otilde;es moraes,
+litterarias, e artisticas.</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">X</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(3.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(4.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(5.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (6.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(7.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span> (8.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (1.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (2.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (3.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da
+montanha</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>NO PR&Egrave;LO:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 41px;">XX</td>
+
+ <td style="width: 10px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O
+Presbyterio da montanha</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4><a name="Vol.I" id="Vol.I"></a>OBRAS COMPLETAS DE A.
+F. DE CASTILHO<br />
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4>
+
+<h4>
+XIX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da<br />
+
+Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME I</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br />
+
+<em>Sociedade Editora</em><br />
+
+</h4>
+
+<span style="font-weight: bold;"><br />
+
+</span>
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td>
+
+ <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td>
+
+ <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <b>Rua
+Augusta, 95</b></td>
+
+ <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<h4>1905
+</h4>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>Advertencia dos Editores</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos
+antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa
+solid&atilde;o de mais de sete annos de homisio na serra
+do Caramulo. A esses manuscritos, que ia publicar com o titulo de <em>O
+Presbyterio da montanha</em>, escreveu um prologo extenso,
+descriptivo, altamente pittoresco, onde, a d&ocirc;ze annos de
+distancia, desafogou as lembran&ccedil;as d'aquelles logares, e as
+saudades de um irm&atilde;o, o melhor dos irm&atilde;os, o
+j&aacute; ent&atilde;o fallecido Abbade de S. Mamede da
+Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo concluiu-se,
+imprimiu-se na sua maxima parte, mas n&atilde;o chegou a
+publicar-se.<br />
+
+<br />
+
+O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
+da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
+fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer
+como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo,
+s&atilde;o hoje considerados espe
+O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
+da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
+fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer
+como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo,
+s&atilde;o hoje considerados especies bibliographicas de primeira
+raridade.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[6]</span>
+Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional
+de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador,
+bibli&oacute;grapho, e escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz,
+outro; a fallecida snr. <sup>a</sup> D. Maria Peregrina de
+Sousa, poetisa
+portuense, possuia outro, que parece ter levado caminho; Innocencio no
+Tomo I do Supplemento do seu immortal <em>Diccionario</em>,
+n&atilde;o declara se era dono de algum; menciona a obra, apenas.<br />
+
+<br />
+
+Quanto &aacute; parte poetica do livro projectado, essa,
+n&atilde;o impressa, desappareceu em parte. S&oacute; algumas
+poucas pe&ccedil;as
+encontr&aacute;mos, umas inteiras outras incompletas; materiaes
+truncados da collec&ccedil;&atilde;o. Salvando esses versos,
+cumprimos um dever moral, e outro literario.<br />
+
+<br />
+
+O prologo de Castilho &eacute; pois o brilhante p&oacute;rtico
+de um edificio ainda em
+construc&ccedil;&atilde;o, e j&aacute; em ruinas;
+&eacute; inquestionavelmente uma das obras mais curiosas e
+instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a historia, a
+lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o <em>folk-lore</em>,
+d'aquella
+regi&atilde;o alpestre, t&atilde;o portugueza, mas
+t&atilde;o desconhecida, tudo isso &eacute; tratado com amor,
+com o cuidadoso amor de um archeologo-poeta.<br />
+
+<br />
+
+Appareceu tambem uma
+<em>Introduc&ccedil;&atilde;o</em> em
+verso s&ocirc;lto a certo poema intitulado <em>O
+Sepulcro, historia de uma noite de S. Jo&atilde;o</em>,
+projectado pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito
+phantastico, infelizmente por concluir. Entendemos n&atilde;o menos
+intercalar essa curiosa Introduc&ccedil;&atilde;o, no seu logar
+chronologico, por varios motivos: d&aacute;-nos
+<span class="pagenum">[7]</span>
+Castilho sob uma
+fei&ccedil;&atilde;o poetica diversa da sua habitual, e
+pinta-nos o estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia
+soffregamente o ar, a vida, os usos populares da montanha. O <em>Sepulcro</em>
+&eacute;
+pois optimo contribuinte d'este truncado banquete literario, e
+f&ocirc;ra imperdoavel, apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do
+borr&atilde;o original, que possuimos pela letra do amoravel
+secretario Augusto Frederico, para esta lic&ccedil;&atilde;o
+actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor ditadas em
+1864.<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m do <em>Sepulcro</em>, outras
+pe&ccedil;as, portuguezas e latinas, j&aacute; impressas nas
+<em>Excava&ccedil;&otilde;es</em>, teriam logar
+aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, pela sua indole; mas o autor
+preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. Facil &eacute; ao leitor
+intelligente o procural-as.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+&Aacute; MEMORIA<br />
+
+<br />
+
+DO<br />
+
+<br />
+
+EXEMPLAR DE IRM&Atilde;OS</h4>
+
+<h4><br />
+
+AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO<br />
+
+<br />
+
+PRIOR DE<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">S. Mamede da Castanheira do Vouga</span>
+</h4>
+
+<h4><br />
+
+<em>Em testemunho publico e perenne</em><br />
+
+<br />
+
+<em>DE</em><br />
+
+<br />
+
+AFFECTO E GRATID&Atilde;O</h4>
+
+<h4><br />
+
+Offerece<br />
+
+<br />
+
+<em>Antonio Feliciano de Castilho</em></h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>PREAMBULO</h3>
+
+<h4>
+I</h4>
+
+O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o
+classifical-o podesse por alguma via valer a pena.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o &eacute; historico, nem ficticio; n&atilde;o
+&eacute; didactico, philosophico, nem descriptivo; n&atilde;o
+&eacute; prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de
+tudo isso, de tudo isso participa.<br />
+
+<br />
+
+Nem sequer &eacute; um livro; &eacute; uma cong&eacute;rie
+de pequenas coisas, todas mais ou menos obscuras, e quasi todas
+desconnexas, e de pensamentos n&atilde;o procurados, se
+n&atilde;o tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem
+determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles
+banquetes de alde&atilde;o, engenhados &aacute; pressa do que
+ha em casa,<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry"> <em><a name="n1" id="n1"></a>...dapibus
+mensas oneramus
+inemptis,</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[12]</span>
+para hospedar a
+cortes&atilde;os que lhe passaram pela porta. N&atilde;o
+procura enganal os: com m&atilde;os limpas e
+cora&ccedil;&atilde;o lavado lhes
+p&otilde;e diante o que s&oacute; para si tinha tratado na sua
+horta, ceifado no seu ch&atilde;o, cevado no seu pateo, ou colhido
+do seu pomar. Porcelanas e pratarias, n&atilde;o as tem; algumas
+flores, j&aacute; pode ser que as apresentar&aacute; em vasos
+de barro; mas como vos assoalha com bom rosto quanto possue,
+n&atilde;o se vos alardeia de abastado, nem se compara com os
+visinhos de casas altas e balc&otilde;es envidra&ccedil;ados.
+Como quer que v&oacute;s d'elle o fiqueis, n&atilde;o
+ficar&aacute; elle descontente de si mesmo &aacute; despedida.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Foi o geral d'esta collec&ccedil;&atilde;o, parte escrito de
+carreira, parte apenas esbo&ccedil;ado ou apontado, ha hoje doze,
+treze, quatorze, quinze, e dezasseis annos, sem pensar no Publico; para
+mero desenfadamento de horas abhorrecidas; para ajudar a correr mais
+depressa, em sitios tristes e ermos, uns tempos muito ermos, muito
+tristes, e para mim, que nunca bem atinei com o futuro, muito
+desconfortados de esperan&ccedil;as.<br />
+
+<br />
+
+Como todo o meu fim em fazer versos n&atilde;o era outro
+sen&atilde;o o fazel-os, de todo o modo me nasciam bem.
+N&atilde;o tinham de apparecer entre gente; n&atilde;o os
+educava; n&atilde;o os corrigia; n&atilde;o lhes punha galas e
+arrebiques. Assim sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.<br />
+
+<br />
+
+Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde j&aacute; cuidei que
+n&atilde;o tornasse; achei-os
+<span class="pagenum">[13]</span>
+os mesmos que os tinha deixado:
+sinceros, mas incultos e semi-silvestres, como nados e creados que eram
+por entre troncos e penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por
+fora o mesmo que por dentro faz a consciencia.<br />
+
+<br />
+
+Vieram-me tenta&ccedil;&otilde;es de os enjeitar; mas... eram
+filhos; contavam j&aacute; annos: recordavam-me tempo de saudades;
+eram me saudades elles proprios; reconheci-os; dei-lhes o
+meu nome; com elle os apresento.<br />
+
+<br />
+
+<h4>II</h4>
+
+<br />
+
+Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu
+que <em>se
+comp&otilde;em</em> para o Publico; e, bem hajam elles!:
+n&atilde;o levam &aacute; pra&ccedil;a sen&atilde;o o
+que teem averiguado que por l&aacute; se deseja e se procura;
+p&otilde;em de parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao
+interesse ou gosto alheio.<br />
+
+<br />
+
+Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o sou eu que vou para os leitores; s&atilde;o os
+leitores que teem de vir para mim, se as quizerem ler.
+H&atilde;o-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; as suas
+occupa&ccedil;&otilde;es, pelo meu ocio; a sua polidez, pela
+minha rudeza; os seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da
+sua vida, pelo recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte
+desconhecida e pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, s&oacute;
+vista de cima pelo ramo de tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela
+andorinha cujo ventre branco
+<span class="pagenum">[14]</span>
+ella retrata no seu v&ocirc;o. Pelo que, bem entendido deve ficar
+desde aqui (a fim de que n&atilde;o venham depois obrigar-me por
+divida que eu n&atilde;o contraio), que a unica
+deleita&ccedil;&atilde;o que esta leitura pode dar, se pode dar
+alguma, ser&aacute; a que naturalmente se tem, penetrando no
+interior da casa alheia, e nos segredos do visinho.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; o que faz com que, por mais futeis que pare&ccedil;am
+as memorias, que alguns escrevem de suas vidas, e as correspondencias
+epistolares, quando por acaso v&atilde;o dar ao prelo sem terem
+sido ordenadas para elle, commummente s&atilde;o lidas com
+interesse.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as
+achadas de antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma
+antiga vivenda particular ou casa rustica, onde os vasos e
+utens&iacute;s do viver quotidiano veem logo suscitar na phantasia
+os costumes, o trato, e o ser intimo, da gente que ali houve.<br />
+
+<br />
+
+Os monumentos s&oacute; dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o
+ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos
+banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas
+ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos;
+confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas,
+de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e
+vira&ccedil;&otilde;es do ceo, do sussurro das plantas, dos
+sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu,
+deixando de si menos v
+Os monumentos s&oacute; dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o
+ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos
+banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas
+ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos;
+confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas,
+de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e
+vira&ccedil;&otilde;es do ceo, do sussurro das plantas, dos
+sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu,
+deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e a
+lampada que allumiou
+<span class="pagenum">[15]</span>
+calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.<br />
+
+<br />
+
+Os monumentos s&atilde;o artificiaes, e artificiosos;
+s&atilde;o estudados, e emphaticos; a historia que elles resam
+&eacute; fria. Mas c&aacute;, o romance que engenhamos,
+ageitado &aacute;s memorias e saudades do nosso mesmo passado,
+&eacute; todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+As <em>impress&otilde;es de viagens</em>
+est&atilde;o sendo ao presente um genero de Literatura mixta mui
+usado e mui querido.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o admira: para os autores &eacute; facil; para os
+leitores, recreativo quando menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que
+todos temos muito ou pouco; sem can&ccedil;asso nem m&aacute;s
+poisadas por terra; sem enj&ocirc;o nem temporaes por aguas do mar;
+sem desabrimento de esta&ccedil;&otilde;es; sem saudades do que
+l&aacute;
+fica para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que
+&eacute; repetir algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a
+pessoa a viajar em corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando
+aonde ninguem a espera, nem festeja, nem conhece, e onde n&atilde;o
+ouve pelas ruas palavra nem som da sua crea&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos
+atmosphericos t&atilde;o suaves, que a todas as partes nos levam,
+com a nossa casa e familia, sem at&eacute; nos demovermos do nosso
+quarto nem da nossa cama, se como Ovidio somos, que punha entre os
+regalos da vida o de ler deitado.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[16]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens &eacute; o
+gosto de conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos s&atilde;o
+extranhos, e n&atilde;o medir as distancias que nol os apartam, que
+esse, pelo contrario, &eacute; o maior desconto do peregrinar,
+&iquest;por que se apeteceriam mais as viagens &aacute;
+Fran&ccedil;a, &aacute;
+Inglaterra, &aacute; Suissa, &aacute; Italia, &aacute;s
+margens do Rheno,
+&aacute; Russia, ao Egypto, &aacute; China, ou ainda
+&aacute; Lua, do que a um qualquer monte da nossa terra,
+s&oacute; conhecido de seus moradores e visinhos?<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que sabeis v&oacute;s mais da serra do Caramulo, em
+cujas faldas est&aacute; assentado S. Mamede da Castanheira do
+Vouga, como um neto no rega&ccedil;o de sua av&oacute; triste e
+taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se abriu a arca
+depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.<br />
+
+<br />
+
+Vir&eacute;is pois &aacute;s raizes do Caramulo conversar
+montanhezes, agrestes por&eacute;m bons; e t&atilde;o bons,
+que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal productivos, nos
+seus paup&eacute;rrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e
+pendurados &aacute; laia de ninhos pela escarpa dos precipicios,
+entalados nos c&oacute;rregos, ou inclinados a scismar tristezas
+sobre algum rio fundo e triste, nunca se lembraram de vos invejar a
+v&oacute;s outros as vossas cidades opulentas e festivas.<br />
+
+<br />
+
+Estes, com falarem portuguez, s&atilde;o para v&oacute;s
+estrangeiros, ou quasi. Como taes, n&atilde;o vos despraza
+conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com quem por entre elles
+demorou annos, e de boa-mente l&aacute; iria
+<span class="pagenum">[17]</span>
+agora enterrar os restos can&ccedil;ados
+da vida ao-p&eacute; do sepulcro de um Pae, que lhe l&aacute;
+ficou em quieto desterro para todo sempre. <sup> <a href="#nt1">[1]</a></sup><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>III</h4>
+
+<br />
+
+A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana regi&atilde;o
+o novo Prior, meu sempre e em tudo irm&atilde;o, e agora saudade
+minha continuada e sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a
+sua pequena familia, de que era eu parte inseparavel.<br />
+
+<br />
+
+Coimbra, d'onde iamos, f&ocirc;ra a terra dos nossos annos mais
+flor&iacute;dos; Lisboa, a do nosso ber&ccedil;o e da nossa
+infancia. Uma e outra me chamariam pelos affectos em qualquer parte do
+mundo em que eu estivesse; e n&atilde;o houvera eu
+val&iacute;do a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que
+ent&atilde;o cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos
+elle e eu, por nos sentirmos um como o outro t&atilde;o encantados
+com o nosso futuro, j&aacute; palpado e colhido &aacute;s
+m&atilde;os, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os
+outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias,
+mais amenas ou mais v&iacute;vidas,
+<span class="pagenum">[18]</span>
+por aquellas gentilezas
+incultas e mais poeticas de uma natureza quasi primitiva.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<a name="n2" id="n2"></a>Pass&aacute;mos n'uma
+bateirinha remada por uma velha moleira da
+margem, o vi&ccedil;oso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje
+corrupto, segundo a tradi&ccedil;&atilde;o, o <em>bom
+fiar</em> de certa mo&ccedil;a mui santa, que junto d'elle
+vivia n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o
+trabalho da sua roca; se n&atilde;o quizerdes antes que dos Moiros
+lhe viesse o appellido, significando <em>pepinal</em>, ou
+<em>rio das terras dos pepinos</em>; pacifico rio, que
+ent&atilde;o ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas
+altas e verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de
+se deter enlevado na amenidade de tal painel.<br />
+
+<br />
+
+Come&ccedil;am a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para
+um e outro cabo, arripiadas g&acirc;ndaras de carqueja e urzes,
+s&oacute; de longe a longe interruptas de um sovereiro torcido e
+mal posto, ou de um rebanho; terreno boleado e ondeado como um lago,
+que em meio de tempestades se houvesse petrificado por encanto.
+S&atilde;o j&aacute; fronteiras do Caramulo.<br />
+
+<br />
+
+<h4>IV</h4>
+
+<br />
+
+A freguezia de S. Mamede n&atilde;o se v&ecirc; em parte
+alguma; &eacute; dispersa, e emboscada. A magreza da terra
+n&atilde;o d&aacute; para grandes espessuras de
+povoa&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+O aspecto do paiz, para quem s&oacute; o atravessa
+<span class="pagenum">[19]</span>
+&eacute; de inhospedeiro. Mas que
+se detenham, e o tratem; achar&atilde;o a hospitalidade espontanea
+e desinteressada, em todas as falas, em todas as m&atilde;os, e em
+todos os
+cora&ccedil;&otilde;es. &Eacute; porque a
+solid&atilde;o &eacute; de si mais
+affectuosa, e a pobreza mais liberal e larga, que o rico povoado.<br />
+
+<br />
+
+Esta differen&ccedil;a e vantagem que os moradores levam
+&aacute; sua terra, experiment&aacute;mol-as n&oacute;s
+ainda antes de chegarmos &aacute; egreja e
+residencia, sahindo a receber o seu Pastor novo n&atilde;o
+s&oacute; os maioraes, se n&atilde;o quasi todo
+o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das cerejeiras
+e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde
+&aacute;quelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas
+brancas.<br />
+
+<br />
+
+A egreja, alva, com o seu largo port&atilde;o vermelho aberto para
+o seu adro muito verde, apresenta-se solitaria. Das
+povoa&ccedil;&otilde;es em que a freguezia se divide, nenhuma
+lhe &eacute; contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia
+parochial, &eacute; o unico edificio que a acompanha, mas por de
+traz, como serva humilde e boa, e n&atilde;o descobrindo mais, por
+entre os pl&aacute;tanos, que o portal do seu pateo toucado e
+semi-velado das mais esp&ecirc;ssas, crespas, e lustrosas heras,
+onde j&aacute;mais se esconderam e cantaram melros.<br />
+
+<br />
+
+Ambos os edificios ficam no meio do
+<em>passal</em>, antiga quinta &laquo;das
+Limeiras&raquo;, dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do
+sinuoso deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes,
+que ali teem o seu foco espiritual.<br />
+
+<br />
+
+Um grande silencio rodeia largamente a
+<span class="pagenum"> <a name="p20" id="p20">[20]</a></span>
+casa da ora&ccedil;&atilde;o. O presbyterio n&atilde;o lh'o
+quebra.<br />
+
+<br />
+
+Baixo, de um s&oacute; andar, e retirado para o fundo do seu pateo
+rustico mas espa&ccedil;oso, a olhar pelas quatro janellinhas da
+sua frontaria principal unicamente para o ceo, e para umas formosas e
+corpolentas laranjeiras, que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle
+clausuradas, o modesto domicilio, proporcionado pelo que sempre
+dever&aacute; ser o pastor de tal rebanho, n&atilde;o se
+retrahiu para mais longe, por traz da sombra do santuario, porque
+n&atilde;o poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez mais
+precipitosa descida, que desde os seus calcanhares come&ccedil;a
+para <a href="#e1">al&eacute;m</a> a esconcear,
+descer, e
+afundir-se, at&eacute; &aacute; borda do estreito, rumoroso, e
+espumifero rio de S. Mamede.<br />
+
+<br />
+
+Uma ponte de madeira, arremessada e tr&eacute;mula nos ares a
+grande altura, por cima das aguas escuras e raro alcan&ccedil;adas
+do sol, communica esta com a ribanceira ulterior, n&atilde;o menos
+carrancuda, fragosa, arripiada, e a pique.<br />
+
+<br />
+
+Da residencia, cor&ocirc;a de um dos dois alcantis, at&eacute;
+ao moirisco logar de Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da
+penedia d'alem-rio, entremeia apenas distancia, que, pela calada das
+noites, deixa ouvir de parte a parte os ladridos dos c&atilde;es de
+gado, as cantigas do ser&atilde;o, e os alertas dos gallos a
+deshoras. E comtudo, aquelle
+<em>quasi-nada</em> para os ouvidos e olhos, &eacute;
+para os p&eacute;s caminho dilatado, fadigoso, e n&atilde;o sem
+perigos.<br />
+
+<br />
+
+As duas veredas, que levam &aacute;s duas extremidades da ponte,
+giram enleadas e perplexas,
+<span class="pagenum">[21]</span>
+torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a esquerda, como
+espavoridas do abysmo l&aacute; em baixo; descendo, tornando a
+subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.<br />
+
+<br />
+
+Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres,
+s&atilde;o os unicos entes vivos, que por ali se affoitam a tomar
+p&eacute;. Os seus frutos vermelhos, quando o vento lh'os despega
+maduros, v&atilde;o sumir-se entre as espumas arrebatadas.<br />
+
+<br />
+
+Aquella ponte, vacillante sobre tal p&eacute;go e entre taes
+escarpas, com poucas bra&ccedil;as de ceo por cima, e por baixo de
+si o rugir de tantas aguas, d&aacute; as
+sensa&ccedil;&otilde;es de um
+bello horror.<br />
+
+<br />
+
+Muita vez me deleitei de as colher, debru&ccedil;ado horas
+esquecidas para aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas
+vezes ahi me veio por tardes de Junho, em quanto, calado e estendido
+sobre as t&aacute;boas, gastadas e r&ocirc;tas da humidade, me
+gosava da vira&ccedil;&atilde;o transpirada pela corrente.
+&iquest;Foi a simples providencia do acaso, ou uma
+inspira&ccedil;&atilde;o de religiosa poesia no fundador, a que
+fez reunir n'um ermo, e em t&atilde;o pequeno espa&ccedil;o,
+como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja?
+&iexcl;Esta corrente, emblema da vida terrestre, t&atilde;o
+escura, t&atilde;o angustiada, t&atilde;o clamorosa, e com
+t&atilde;o pouco de azul por cima das suas ribanceiras
+inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo
+ferir-lhe o seio! Aquella egreja, t&atilde;o serenamente alegre,
+t&atilde;o aberta, o dia inteiro, ao generoso sol dos campos,
+t&atilde;o gorgeada a ambas suas portas
+<span class="pagenum">[22]</span>
+de passarinhos, t&atilde;o garrida de
+espadanas sobre as campas do pavimento, e nos seus cinco altares
+t&atilde;o ridente de flores silvestres, symbolo da alma refugida
+das tormentas do mundo para o ineffavel asylo da F&eacute; e das
+Esperan&ccedil;as! E entre o santuario e o rio, como intermedio e
+transi&ccedil;&atilde;o dos dois extremos, a casinha do Pastor,
+alva como a confian&ccedil;a, verdejante e florida como as
+promessas, recatada como a esmola, inexhaurivel no seu celleiro como a
+Providencia, t&aacute;cita como a medita&ccedil;&atilde;o,
+com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas para a
+torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores de
+Deus para o firmamento.....<br />
+
+<br />
+
+O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a
+torrente, e o albergue, &eacute; uma nova harmonia. Mamede, ou
+Mamante, foi um humilde e obscuro pastor de gado na
+Capad&oacute;cia, e do qual toda a Egreja do Oriente
+preg&ocirc;a virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou
+martyr, por volta do anno 274 da nossa era.<br />
+
+<br />
+
+O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o
+vigilante e ben&eacute;fico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres
+e pacificos arredores, para o Menino, j&aacute; mo&ccedil;o na
+valentia, ou para o mo&ccedil;o, ainda menino na innocencia.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o poude ser o acaso, quem tantos ac&ecirc;rtos
+concertou.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[23]</span>
+<h4>V</h4>
+
+<br />
+
+Era a residencia, quando a ella cheg&aacute;mos,
+decr&eacute;pita e caduca: apparencia de cho&ccedil;a fabricada
+de pedra ens&ocirc;ssa, escura e descommoda no interior; por fora
+negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de inuteis e
+desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor a havia
+em parte feito, em parte deixado, chegar &aacute;quelle estado.<br />
+
+<br />
+
+A transforma&ccedil;&atilde;o foi rapida e completa. Os
+alpendres desappareceram. Na casa remo&ccedil;ada entrou por
+vidra&ccedil;as abundancia de luz. O pateo desafrontado foi
+revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de cal bem candida,
+logo de roseiras e limeiras bem vi&ccedil;osas. Um cedro n'elle
+plantado come&ccedil;ou de levantar-se animoso e gentil; e sei que
+n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um j&aacute;
+n&atilde;o existe na terra, o outro declina para o occaso, elle,
+medrando ainda, &eacute; j&aacute;, como lh'o eu
+augur&aacute;ra nos
+meus versos, bras&atilde;o do presbyterio; tem no seu tronco cinco
+palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura. <sup> <a href="#nt2">[2]</a></sup><br />
+
+<br />
+
+O novo Prior, o Rev. <sup>do</sup> snr. Padre Antonio
+Jos&eacute; Rodrigues
+de Campos, a quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho,
+var&atilde;o de virtude, e espirito cultivado
+<span class="pagenum">[24]</span>
+por Letras, filho d'aquellas boas
+terras, e amigo nosso que sempre foi, como ainda hoje o &eacute; do
+nosso nome, conserva e z&eacute;la tudo aquillo com amor.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; para mim delicia o considerar, que &aacute; sombra
+grande d'aquelle cedro, que eu regava todos os dias, quando um menino
+de tres annos o poderia ainda arrancar sem custo, ler&aacute;
+talvez, depois do seu Breviario, este livrinho das minhas memorias, em
+que depos&iacute;to o seu nome mollemente reclinado entre tantas
+outras saudades minhas.<br />
+
+<br />
+
+<h4>VI</h4>
+
+<br />
+
+J&aacute; os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me
+escondeu sete annos, desde Outubro de 1826 at&eacute; Fevereiro de
+1834, o ninho em que nasceram, sem pensarem em abrir o v&ocirc;o
+que hoje abrem para o mundo, estas poesias montesinhas.<br />
+
+<br />
+
+Mas, como todo o seu assumpto se n&atilde;o limita ao que deixo
+esbo&ccedil;ado, pe&ccedil;o-lhes ainda um pouco de
+indulgencia, para lhes dar a conhecer, por alto, os arredores.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo
+por traz d'ellas at&eacute; onde lh'o consente o pendor do terreno,
+a escoar-se cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.<br />
+
+<br />
+
+Por essas lombas inclinadas, fronteiras &aacute; encosta alta e
+erma de Falgozelhe, se boleiam
+<span class="pagenum">[25]</span>
+melancolica mas graciosamente as suas hortas, os seus pomares, a sua
+fonte, as suas parreiras, e as fraldas das se&aacute;ras, que
+at&eacute; ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois
+de povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada
+horizontal, por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar,
+at&eacute; ir bater, l&aacute; ao longe, na
+capellinha e matta de S. Sebasti&atilde;o, que lhe servem de
+limite.<br />
+
+<br />
+
+Se&aacute;ras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias
+folgavam de avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades
+protectoras da Agricultura. &iquest;Que mais proprio, para um povo
+agricola como este, do que achar a casa do <span class="smallcaps">Creador</span>,
+e a do seu
+dispenseiro, no centro da abundancia das messes, e saudal
+a com a invoca&ccedil;&atilde;o de um
+Pastorinho santo?<br />
+
+<br />
+
+O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S.
+Sebasti&atilde;o, por entre duas grinaldas de oliveiras e vinha, o
+meu passal at&eacute; ao adro; costeia a egreja e a casa pela
+direita, e, em demanda da serra alta, l&aacute; se vai mergulhando
+para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura sombria da fonte
+sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja antiga, um altar
+de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, assoberbada com
+um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um tro&ccedil;o
+de lan&ccedil;a enferrujado de musgo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[26]</span>
+<h4>VII</h4>
+
+<br />
+
+Detenh&acirc;mo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-p&eacute;
+d'este altar, onde j&aacute; ninguem ajoelha, sobre sepulturas que
+hoje s&atilde;o tremo&ccedil;os, e recordemos a obscura
+historia d'este sitio.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Por que raz&atilde;o s&oacute; as grandes ruinas se
+h&atilde;o-de haver por merecedoras de
+atten&ccedil;&atilde;o? Todo o passado &eacute; poetico;
+todo o evocar imagens humanas de sob a terra que pisamos, &eacute;
+proveitoso para alguma coisa. Nas solid&otilde;es, mormente como
+esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, e que onde
+hoje, por entre o rugir das folhas, s&oacute; algum pipilar de
+ninho quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos
+bons, e at&eacute; festas.<br />
+
+<br />
+
+Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da
+Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela
+margem de c&aacute; &aacute;s aguas do S. Jo&atilde;o do
+Monte, que logo a diante troca o nome no de S. Mamede, um
+mo&ccedil;o por nome Jorge, humilde de
+gera&ccedil;&atilde;o como tudo quanto por ali nasce e se cria,
+mas de cora&ccedil;&atilde;o alto e espiritos levantados.<br />
+
+<br />
+
+Namor&aacute;ra-se Jorge (me contou n'um ser&atilde;o do Natal
+uma velha, que o ouvira em pequenina a seus paes, que o tinham recebido
+n&atilde;o sabia de quem)... mas emfim, namor&aacute;ra-se, que
+o sabia ella, de certa mo&ccedil;a de alem-rio, guardadora de
+cabras, mas filha de um Capit&atilde;o, e sobrinha em primeiro grau
+de um snr. Vigario. L&aacute; de baixo, perto da
+<span class="pagenum">[27]</span>
+sua vivenda entre penedos, levava, os dias
+com os olhos sempre i&ccedil;ados aos cabe&ccedil;os de
+Falgozelhe, na outra banda, &aacute; ca&ccedil;a da sua saia de
+serguilha, ou do seu sombreiro preto; e ainda n&atilde;o de todo
+malcontente, quando, por entre os penedos pardos e as urzes
+c&ocirc;r de fogo, a enxergava, pendurada &aacute; borda do
+precipicio, e pascendo descan&ccedil;adamente uma das cabrinhas que
+obedeciam &aacute; sua voz melodiosa.<br />
+
+<br />
+
+A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a
+esperdi&ccedil;ava cantando n'aquellas solid&otilde;es,
+parecia-lhe a elle, que l&aacute; de baixo lh'a estava captando com
+ambas as m&atilde;os, escutar um Anjo de amor escondido entre as
+nuvens; e quereria mal at&eacute; ao rouxinol que lh'a
+interrompesse, porque n&atilde;o sabia de coisa mais de molde para
+o seu cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Vel-a &aacute; sua vontade, n&atilde;o a via se n&atilde;o
+aos domingos na egreja; e nem ent&atilde;o, que para esses dias
+tinha ella umas roupinhas muito s&eacute;cias, meias muito alvas, e
+tamancos de gal&atilde;o de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe
+que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a
+fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das
+aguas. Fazem-se pontes para os rios; n&atilde;o se fazem que
+prestem para communicar dois estados t&atilde;o diversos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas &eacute;
+poesia; e poesia n&atilde;o &eacute; vida. Ousou, e declarou-se
+a medo &aacute; sua formosa; n&atilde;o foi repellido.
+Affoitou-se a mais:
+<span class="pagenum">[28]</span>
+ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario em confiss&atilde;o. O
+que
+entre elles se passou, n&atilde;o se sabe; taboas de confessionario
+n&atilde;o s&atilde;o carvalhos dod&oacute;nios que
+chocalhem tudo. O que se sabe, &eacute; que a mo&ccedil;a
+n&atilde;o tornou
+a apascentar para aquella banda, e que elle, pouco depois, deixou a
+terra, onde tinha m&atilde;e e irm&atilde;os pequenos, sem
+dizer nada a ninguem, e n&atilde;o levando sen&atilde;o o
+fatinho que tinha no corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo
+dizem, era grande, e o seu amor, que n&atilde;o era pequeno.<br />
+
+<br />
+
+Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el
+Rei, e que se abal&aacute;ra por esses mares de Christo, sabe Deus
+para onde, e para qu&ecirc;.....<br />
+
+<br />
+
+No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento,
+assim a fazenda que and&aacute;ra moirejando, como a propria vida,
+apegou-se com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse
+com tudo seu a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria,
+uma capella da sua invoca&ccedil;&atilde;o com duas Missas por
+semana, defronte de Falgozelhe, onde vivia a noiva do seu
+cora&ccedil;&atilde;o, por cima da Talhada, onde tinha os
+irm&atilde;os e a m&atilde;e, e pegada com a egreja onde o
+baptisaram a elle, e onde a avistava todos os domingos.....<br />
+
+<br />
+
+Mas de crer &eacute; que n'essa imagem se n&atilde;o demoraria
+muito em semelhante lance, em que as ondas formavam, por instantes
+montanhas t&atilde;o altas e escarpadas, por&eacute;m mais
+temerosas e feias que ess'outras, entre cujas quebradas, e por cujos
+visos, elle vari&aacute;ra a sua infancia.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[29]</span>
+Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.<br />
+
+<br />
+
+Tornou &aacute; Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em
+Angeja, que em boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e
+nunca mais tornou a aventurar-se sobre aguas do mar.<br />
+
+<br />
+
+Reliquias s&atilde;o pois da sua obra a Imagem e as pedras que
+ainda ali se divisam. O de mais, j&aacute; desgastado do tempo, foi
+demolido, para ir servir como materiaes na
+edifica&ccedil;&atilde;o de parte da residencia, e da egreja
+nova, que j&aacute; sabeis lhe est&atilde;o visinhas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;Mas o fim de seus amores?&#8213;me perguntareis
+v&oacute;s.<br />
+
+<br />
+
+Memoria &eacute; essa que eu tambem procurei, por&eacute;m
+n&atilde;o consegui desencantal-a.<br />
+
+<br />
+
+O que s&oacute; pude desenterrar da tradi&ccedil;&atilde;o,
+foi: que este mesmo Jorge viera a casar-se na freguezia; que tivera um
+filho nascido na p&oacute;voa da Talhada; que este se
+orden&aacute;ra de Cl&eacute;rigo, f&ocirc;ra a Roma, e
+arrib&aacute;ra a
+Cardeal; em memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada
+da antiga, e mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito
+amadas, uma Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com
+bra&ccedil;os em baixo e em cima, oleada de verde, doirada nas
+pontas, e n'ella pintados tres cravos, duas chagas, e uma
+cor&ocirc;a de espinhos.<br />
+
+<br />
+
+V&ecirc; se, venera-se, e
+commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na parede do
+<span class="pagenum">[30]</span>
+arco cruzeiro da banda direita; e
+affirma-se, que na capella de S. Jorge permanec&ecirc;ra com egual
+honra em quanto ella durou.<br />
+
+<br />
+
+Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma
+p&oacute;voa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro
+velho, e onde o que s&oacute; fazia bulha no meu tempo era um
+pequeno moinho, r&ocirc;to por todos os lados aos ventos e chuvas,
+foi, ou n&atilde;o, nascido do consorcio a que o Padre Vigario e
+seu irm&atilde;o se tinham opposto, eis ahi o que eu n&atilde;o
+alcancei; e n&atilde;o quero
+invental-o. Provavel me parece que sim, quando me lembro do que a minha
+velha me contava d'aquelles amores, e o combino com a ideia que formei
+da constancia no bem querer dos moradores da minha serra.<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a
+Jorge, qualquer apostaria que o foi sempre. A fortuna
+entulh&aacute;ra com riqueza o abysmo que os separava; e S. Jorge,
+que n&atilde;o &eacute; Santo para meias victorias, havia
+for&ccedil;osamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto.
+<br />
+
+<br />
+
+Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de
+pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome
+ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os
+recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e
+beber &aacute; sa&uacute;de da futura
+gera&ccedil;&atilde;o algumas malgas de vinho verde na sua casa
+da Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. Jo&atilde;o do
+Monte.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[31]</span>
+<h4>VIII</h4>
+
+<br />
+
+A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, f&ocirc;ra o
+antigo oratorio dos Condes da Feira; e a residencia, j&aacute;
+depois duas vezes transformada, albergue do feitor que elles ahi tinham
+para lhes receber os f&oacute;ros, e lhes tratar d'aquella sua
+quinta, chamada, como j&aacute; toc&aacute;mos, &laquo;das
+Limeiras&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto,
+havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guard&atilde;o,
+do Bispado de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de
+distancia da que ao presente &eacute;, d'ali a haviam achegado para
+Alcafaz, pertencente agora &aacute; freguezia de Agad&atilde;o,
+sitio ainda desfavoravel pelo estirado
+e descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem
+ermida, casa, e quinta, com largas rendas e f&oacute;ros para a
+sustenta&ccedil;&atilde;o de Parochia sobre si.<br />
+
+<br />
+
+N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos
+hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus
+amigos algum tempo do anno na montaria dos javal&iacute;s, que a
+espessura das moitas ent&atilde;o creava, segundo parece, como
+ainda hoje cria lobos. Folga a phantasia comparando e contrapondo
+aquelles tempos a estes, e reanimando o actual silencio com um reflexo
+e ecco da vida estrepitosa de outra edade.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[32]</span>
+<h4>IX</h4>
+
+<br />
+
+Explor&aacute;mos as convisinhan&ccedil;as do templo e
+residencia. Estend&acirc;mos agora os olhos at&eacute;
+&aacute;s fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico
+senhorio.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o
+logar das Ma&ccedil;adas, com cincoenta almas, sua ermida de S.
+Jo&atilde;o Baptista, e sua fonte muito fresca.<br />
+
+<br />
+
+Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da
+Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa
+com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do
+Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que
+desde as ultimas guerras lhe ficou at&eacute; hoje a pantomimar no
+alto do seu oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam,
+de extrema a extrema do Reino, quantas noticias o revolvem,
+sem que a boa da villa, nem outro algum dos logares que entram na sua
+aben&ccedil;oada
+confedera&ccedil;&atilde;o de rustica ignorancia, as adivinhem,
+nem suspeitem, nem cubicem.<br />
+
+<br />
+
+A tres quartos de legua para nor-nordeste, d&aacute;-se com a
+humilde p&oacute;voa de Falgarinho, de n&atilde;o mais que oito
+visinhos.<br />
+
+<br />
+
+Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se,
+n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres
+pessoas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"> <a name="p33" id="p33">[33]</a></span>
+Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores,
+e a pequena distancia, se d&aacute; de improviso com a vistosa e
+agradavel quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de
+Nossa Senhora do Livramento.<br />
+
+<br />
+
+Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S.
+Jo&atilde;o do Monte, que a seus p&eacute;s corre,
+est&aacute; em amphitheatro o Avelal-de-cima,
+de vinte e quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da
+egreja.<br />
+
+<br />
+
+Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis,
+a meio quarto de legua est&aacute; para o nordeste o
+Avelal-de-baixo, logarejo de quarenta e sete almas, e uma capella de
+Nossa Senhora da Concei&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo
+bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de
+observa&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Para o nascente, descendo at&eacute; &aacute; Cruzinha, e d'ahi
+toda a costa dos Ferreiros, passa-se o rio de S. Jo&atilde;o do
+Monte, junto ao seu confluente Alcafaz (nome arabe, que significa
+<a href="#e2">&laquo;o salto&raquo;)</a>
+nome
+que para ali est&aacute;, ha mais de
+setecentos annos, soando em bocca de christ&atilde;os sem renegar a
+sua origem, nem se corromper.<br />
+
+<br />
+
+Para a esquerda do S. Jo&atilde;o do Monte, se descortina a nossa
+Talhada, de honrada memoria, ber&ccedil;o de um Cardeal, de um
+fundador de capellas, e de um namorado de lei; tres celebridades para
+um ninho hoje de quatorze almas, coberto de loisas e colmo, e coroado
+de sar&ccedil;as e medronheiros; dista-nos um quarto de legua para
+nordeste.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[34]</span>
+Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede
+(que toma este nome na junc&ccedil;&atilde;o dos dois
+afluentes) se atravessa na ponte de pau que j&aacute; sabeis, e
+onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tom&aacute;ra a apanhar
+&aacute; fresca.<br />
+
+<br />
+
+Subindo um pouco espa&ccedil;o a costa, atravez de alcantiladas
+rochas, toma-se a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda,
+que em travessia da montanha, sobre a esquerda do rio, leva
+at&eacute; ao casal do Font&atilde;o, de onze almas, sito na
+margem do Alcafaz, na raiz do cabe&ccedil;o de Santa-Cruz, a quarto
+e meio de legua para n&oacute;s.<br />
+
+<br />
+
+Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a
+encosta; e no cimo se encontra a povoa&ccedil;&atilde;o de
+Falgozelhe, de setenta e uma almas, posta a um quarto de legua da
+egreja, a les-sueste, quasi na extremidade occidental de um
+ramo do Caramulo. O nome da sua casa de ora&ccedil;&atilde;o
+&eacute; o que &aacute; sua altura melhor convinha: Santa-Cruz.
+<br />
+
+<br />
+
+Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agad&atilde;o por
+outra ponte de pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo
+est&aacute; o pequeno e vistoso logar da Falgarosa, de trinta e
+seis moradores, com uma sua ermida da Senhora da Boa-Morte, a tres
+quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o delicioso de seus
+pomares de caro&ccedil;o e de espinho, com a annosa matta de
+sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo,
+com ter dado &aacute; luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje
+rege aquelle rebanho.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[35]</span>
+Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de
+se terem abra&ccedil;ado os dois afluentes Agad&atilde;o e S.
+Mamede.<br />
+
+<br />
+
+Subindo-se at&eacute; ao vizo, est&aacute; o logar da Redonda,
+de cincoenta almas, com sua capella de S. Gon&ccedil;alo, a quarto
+e meio de legua a sudoeste da egreja. Redonda se chama, por estar
+&aacute; borda de um leito semi-circular.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas
+confronta&ccedil;&otilde;es externas.<br />
+
+<br />
+
+Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do
+Pr&eacute;stimo; pelo poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da
+Aguada de cima, e Balazaima; pelo nascente, com a de Agad&atilde;o,
+filial, ou annexa, que a&iacute;nda
+ent&atilde;o era, &aacute; de S. Mamede, e parochia hoje sobre
+si; paiz ainda por ventura mais serrano e variado, mas que eu
+n&atilde;o cheguei a descobrir.<br />
+
+<br />
+
+<h4>X</h4>
+
+<br />
+
+O territorio de S. Mamede &eacute; o extremo occidental de um
+corpulento ramo do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em
+voz de Moiros quer dizer &laquo;abobada&raquo;, ou montanha
+boleada &aacute; fei&ccedil;&atilde;o d'ella.<br />
+
+<br />
+
+Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros
+ramos, alguma coisa quizera eu dizer, &aacute; conta do muito que
+merece. Mas, sobre que nunca o visitei, apesar de t&atilde;o
+visinho, recearia apoucar-lhe a
+<span class="pagenum">[36]</span>
+veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas
+noticias que d'elle tive.<br />
+
+<br />
+
+Em summa: &eacute; uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando
+d'entre as nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa
+em tempestades, em frutos magra, mas op&iacute;ma
+em homens e
+mulheres de antiga tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da
+fome, e da nudez; &eacute; um paiz de selvagens
+christ&atilde;os, para o qual as rudes terras do meu S. Mamede
+est&atilde;o, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios
+poderia estar a antiga Attica.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Dois monumentos accrescentam venera&ccedil;&atilde;o ao
+Caramulo, quanto o podem mesquinhas obras humanas &aacute;s
+grandiosas moles naturaes.<br />
+
+<br />
+
+N'um dos seus cabe&ccedil;os mais alterosos foi erguido, nos
+principios d'este seculo, <a name="n3" id="n3"></a>uma
+especie de zimborio de doze
+palmos de altura, pouco mais ou menos, de pedra muito bem lavrada e
+argamassada. Para qu&ecirc;, n&atilde;o dizem; mas dizem que
+por um engenheiro francez; ras&atilde;o por que, os povos da
+circumvisinhan&ccedil;a, por occasi&atilde;o da guerra
+peninsular, commetteram demolil-o; mas s&oacute; lhe poderam fazer
+pelo norte um pequeno estrago. Dura em p&eacute;, e s&oacute;
+&eacute; accessivel do
+nascente por uma vereda estreita e tortuosa.<br />
+
+<br />
+
+O outro monumento n&atilde;o &eacute; menos enigmatico, e deve
+estar farto de ver passar seculos e desfazer-se
+gera&ccedil;&otilde;es.<br />
+
+<br />
+
+N'uma arreme&ccedil;ada crista, a duzentos passos
+<span class="pagenum">[37]</span>
+da egreja do Espirito Santo de Arca,
+se alevanta elle, com o titulo immemorial de &laquo;Pedra de
+Arca&raquo;. &Eacute; <a name="n4" id="n4"></a>uma
+desconforme loisa
+inteiri&ccedil;a, horizontalmente aguentada nos ares por esteios de
+pedra; quatro em numero a principio, hoje s&oacute; tres, havendo
+sido um arrancado para as obras da visinha egreja.<br />
+
+<br />
+
+Tem esta l&aacute;gea de comprido vinte palmos, e de largura
+dezasseis; de grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte
+quatorze, pelo poente onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam
+de altura doze palmos, s&oacute; da flor da terra para cima; de
+largura, um que fica para o poente apresenta nove palmos, tendo de
+grossura pelo poente palmo e meio, e pelo nascente um palmo. Um, que
+diz para o sul, tem de largura, por baixo quatro palmos e meio, e por
+cima tres, e de grossura um palmo de cada lado. O ultimo, que
+est&aacute; para o norte, tem de largura, por baixo cinco palmos e
+polegada, e por cima quatro palmos e polegada.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Com que possantes machinas, por que m&atilde;os, em que
+eras, e para que fim, se alevantou ali aquella, que &aacute;
+phantasia se figura bruta meza de gigantes silvestres?
+&iquest;Ser&iacute;a obra de fortifica&ccedil;&atilde;o
+n'um systema de guerra desconhecido? Quasi que nem possibilidades o
+abonam. Uso agr&iacute;cola, industrial, ou civil, nem a
+imagina&ccedil;&atilde;o mais inventiva lh'o rastreia. Memoria
+de algum var&atilde;o ou feito insigne, j&aacute; a poderia
+ser. Mas ent&atilde;o,
+&iexcl;a que rudes tempos a n&atilde;o havemos de referir,
+visto como nem data, nem letra, nem escultura t&ocirc;sca, nem
+vestigio algum de arte
+<span class="pagenum">[38]</span>
+nem de
+architectura, mas s&oacute; uma bruta mechanica, ali se admira!<br />
+
+<br />
+
+Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais,
+quando se adverte na semelhan&ccedil;a que tem com os altares
+druidicos, ainda hoje conservados em varias partes do que
+foram Gallias e Germania.<br />
+
+<br />
+
+Verdade &eacute;, que por estas nossas terras n&atilde;o rezam
+as Historias, que se estendesse aquella abominavel seita de
+sacrificadores de humanas victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que,
+perseguidos, como o vieram a ser, pelos Imperadores romanos, alguns
+druidas se refugiassem para este Occidente, e aqui, em retiros
+montesinhos, menos accessiveis a pesquizas e
+persegui&ccedil;&otilde;es, professassem e mantivessem o seu
+culto, do qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade
+comparadas) n&atilde;o muito discreparia talvez a
+religi&atilde;o do Endov&eacute;lico lusitano.<br />
+
+<br />
+
+Este ponto, por&eacute;m, outros mais sabedores que o investiguem,
+se vale a pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro
+dos meus affectos.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XI</h4>
+
+<br />
+
+Nada concita aos logares venera&ccedil;&atilde;o, como a
+antiguidade.<br />
+
+<br />
+
+Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para al&eacute;m
+de Moiros, Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure,
+n&atilde;o rastejo noticia d'essas edades, com que fazer obra.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[39]</span>
+Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve
+memoraveis edificios, se var&otilde;es insignes pisaram aquellas
+terras, nem ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem
+tradi&ccedil;&otilde;es o denunciam. O solo enguliu tudo; e
+nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou letra para enigmas.<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; ao sudoeste de Falgozelhe, j&aacute; f&oacute;ra
+da sua lavoira, na primeira valleira que se encontra &aacute;
+direita do caminho indo para Agueda, se v&ecirc; uma fiada de
+umas como
+torrinhas, que se estende por mil e quarenta palmos; das quaes
+torrinhas, s&oacute; duram hoje em dia os alicerces, e algumas
+por&ccedil;&otilde;es deseguaes de muros esboroados a delir-se.
+<br />
+
+<br />
+
+E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se
+d&aacute; em uma furna chamada &laquo;a buraca da
+cerejeirinha&raquo;, aberta a pic&atilde;o em rocha viva; a
+qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de
+largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna &eacute;
+geral fama que f&ocirc;ra aberta pelos Moiros.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Em tempos de mais abus&atilde;o do que estes nossos, acreditou
+se, dizem os netos,
+que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S.
+Jo&atilde;o, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus
+thesoiros por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.<br />
+
+<br />
+
+N'esses seculos, entendido est&aacute; que o terror lhe velava a
+estancia, e que ninguem se affoitou nunca a ir l&aacute; dentro.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[40]</span>
+Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente
+j&aacute; n&atilde;o ha novas d'ella. As pastoras levam sem
+medo os rebanhos para a sua visinhan&ccedil;a; cantam aos seus
+hombraes trovas muito christans; e quem quer, lhe devassa (como eu fiz)
+o seu palacio subterraneo.<br />
+
+<br />
+
+A opini&atilde;o dos modernos tem, que f&ocirc;ra aquella mina
+aberta, pelos Moiros sim, mas n&atilde;o para tirar oiro, que
+&eacute; sempre a primeira conjectura, nem para serventia militar,
+que &eacute; sempre a segunda, se n&atilde;o s&oacute;, e
+prosaicamente, &aacute; busca de agua, que em verdade de
+l&aacute; mana, muito fresca e saborosa, mas em pequena copia.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Sobre as fortifica&ccedil;&otilde;es engenha cada um a sua
+hyp&oacute;these.<br />
+
+<br />
+
+Ha quem as supponha posteriores &aacute;
+inven&ccedil;&atilde;o da artilharia, por se lhe figurar que
+s&oacute; a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros
+as attribua, fundado em que, posto n&atilde;o ficassem d'elles por
+ali outros vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares
+demonstra, que elles por l&aacute; viveram. E se por l&aacute;
+nasceram e se crearam, n&atilde;o podiam deixar de fortificar-se e
+defender-se contra commettimentos de inimigos, que &eacute; esse um
+instinto natural a todos os homens, mas nos homens das montanhas mais
+energico.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Falgozelhe, em verdade se cr&ecirc; ter sido d'elles povoada, posto
+que o seu nome, se
+<span class="pagenum">[41]</span>
+christ&atilde;o n&atilde;o &eacute; (como de certo
+n&atilde;o &eacute;), tambem por arabe se n&atilde;o
+reconhece. &iquest;Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga?
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que
+podemos ficar por mais que verosimil &eacute; que, por toda aquella
+serrana regi&atilde;o, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi
+deixaram menos rasto que em muitas das terras visinhas, seria porque a
+bruteza do monte era j&aacute; ent&atilde;o como hoje, que
+n&atilde;o dava meios nem licen&ccedil;a para grandes obras.
+Pequenas p&oacute;voas, que eram o mais a que podiam chegar, muito
+faziam em tirar da terra p&atilde;o com que se manterem;
+&iexcl;quanto mais, erigirem castellos, pontes, ou mesquitas, de
+que se podessem admirar fragmentos depois de sete seculos!<br />
+
+<br />
+
+Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo
+de outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar
+d'estes, se acalentaram crean&ccedil;as com versos do
+Alcor&atilde;o. Outras arvores, de que estas s&atilde;o remota
+descendencia, viram passar &aacute; sombra das suas copas
+esvoa&ccedil;adas da ventania albornozes de lan grosseira e parda,
+e turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje
+&eacute; talvez poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e
+ficariam confusos e immoveis se revivessem para ouvir as da nossa
+lingua.<br />
+
+<br />
+
+Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos,
+que eu desejaria fazer t&atilde;o amados de meus leitores, como de
+mim o s&atilde;o e ser&atilde;o sempre.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[42]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+N&atilde;o digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes,
+manteem-se ainda antigos. As novidades das
+civilisa&ccedil;&otilde;es s&atilde;o como
+a escravid&atilde;o, e os diluvios: tarde chegam a engulir as
+serras.<br />
+
+<br />
+
+<a name="n5" id="n5"></a>A Linguagem &eacute; ali, como
+os ares, de uma admiravel pureza e
+lucidez. Se os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se
+perdessem, pela conversa&ccedil;&atilde;o corrente d'aquellas
+aldeias e p&oacute;voas se poderia restaurar.<br />
+
+<br />
+
+Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de voc&aacute;bulos,
+phraseado, e
+construc&ccedil;&atilde;o, n'uma seroada de inverno, ou n'um
+palrar de s&eacute;sta de segadores entre carvalheiras rusticas, ao
+estridor das cigarras amadas de Anacreonte, do que entre o ranger dos
+prelos e o resfolegar das balas, n'um anno inteiro da melhor
+typographia de Lisboa.<br />
+
+<br />
+
+Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos,
+como o
+<em>nanja</em> o <em>bof&eacute;</em>, o
+<em>cant&eacute;</em>, o
+<em>qui&ccedil;&aacute;</em>, e mil
+outros, s&ocirc;am por l&aacute; sem extranheza em boccas de
+mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de namoradas de dezoito
+nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.<br />
+
+<br />
+
+Com a honesta heran&ccedil;a da Linguagem, veio dos av&oacute;s
+aos netos a das cren&ccedil;as e praticas piedosas, e com esta a de
+muitos seus erros e abus&otilde;es. S&atilde;o os insectos e
+musgos parasitas da arvore robustissima da F&eacute;.
+Aben&ccedil;oada
+a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os ramos ou
+cerceal-a pelo p&eacute;.<br />
+
+<br />
+
+O tempo vai fazendo a pouco e pouco o
+<span class="pagenum">[43]</span>
+seu officio. N&atilde;o ha curas nem
+reforma&ccedil;&otilde;es mais prudentes e certas do que as
+suas, quando &aacute; for&ccedil;a lh'as n&atilde;o ajudam
+ou
+contrariam.<br />
+
+<br />
+
+Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade
+de appari&ccedil;&otilde;es, phantasmas de almas do
+outro-mundo, Moiras encantadas, thesoiros escondidos e lobis-homens; e
+ainda hoje a m&oacute;r parte dos moradores acredita nos
+esconjuros, feiti&ccedil;os, bruxarias,
+adivinha&ccedil;&otilde;es, e virtudes de certas praticas e
+f&oacute;rmulas, para curar ou empecer.<br />
+
+<br />
+
+Estas abus&otilde;es, sem deixarem de ser males muilo innegaveis,
+d&atilde;o comtudo sua c&ocirc;r poetica muito particular ao
+Povo, cuja simplicidade primitiva no viver e trajar harmonisam com taes
+simplezas da intelligencia.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto
+vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos,
+s&atilde;o por ora totalmente incognitos na serra. A moda
+n&atilde;o exerce por l&aacute; as suas costumadas
+devasta&ccedil;&otilde;es de cabedaes, bons costumes, e saude.
+Os vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma
+uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal
+renova as suas folhas e flores.<br />
+
+<br />
+
+Os homens vestem de burel, ou sarago&ccedil;a caseira, creada
+&aacute;s costas das suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e
+tecida por suas m&atilde;es, mulheres, e filhas, apizoada e tinta
+(quando o &eacute;) sem sahir da freguesia. Trazem
+<span class="pagenum">[44]</span>
+grandes chapeos pretos desabados,
+grande bord&atilde;o ferrado, menos para defensa, que para arrimo
+pelo resvaladio das ladeiras, e tamancos cravejados.<br />
+
+<br />
+
+As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra,
+s&aacute;ia de burel de meio piz&atilde;o, c&ocirc;r de
+pinh&atilde;o ou preta, collete comprido justo, sem
+ap&ecirc;rto, e mandil; isto &eacute;, obra de vara e meia de
+burel mais apertado no tear, e sem piz&atilde;o, que lhes serve de
+capa, lan&ccedil;ado ao desgarre por sobre os hombros. A
+cabe&ccedil;a, cobrem-n-a, ou com o
+mesmo mandil, ou com um chapeo como o dos homens. As suas tamancas
+s&atilde;o menos grosseiras. O len&ccedil;o de seda ao
+pesco&ccedil;o &eacute;, como as arrecadas e o
+cord&atilde;o de oiro, o ultimo da magnificencia, e as flores da
+urze ou da carqueja o mais galante enfeite dos seus sombreiros.<br />
+
+<br />
+
+S&atilde;o luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou
+romagens, quando cal&ccedil;am, com meias brancas, tamanquinhos de
+pregaria doirada com sua meia palla de marroquim vermelho, vestem
+roupinhas de pano burel fino, ou chita, p&otilde;em gorjetes de
+fil&oacute;, ou
+len&ccedil;os de cassa bem pregados, e capoteiras de pontas
+compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as mais ricas e senhoras
+teem mantilhas e sapatos.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XII</h4>
+
+<br />
+
+A educa&ccedil;&atilde;o apenas desbasta. Parca e imperfeita
+como a cultura do solo ingrato, s&oacute; p&otilde;e mira no
+essencial: em desenvolver os sentimentos naturaes e religiosos, o
+afferro
+<span class="pagenum">[45]</span>
+&aacute;
+justi&ccedil;a e &aacute; verdade, os differentes
+amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o
+respeito &aacute; velhice e ao infortunio.<br />
+
+<br />
+
+As polidezes requintadas do trato s&atilde;o lhes desconhecidas.
+Esses discursos de
+cortez&atilde;os, mosaicos de phrases brilhantes, que ora
+deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam,
+inspirar-lhes-hiam compaix&atilde;o. Pensam o que dizem, e
+dizem-n-o como o pensam.<br />
+
+<br />
+
+Das artes de seduzir, n&atilde;o cultivam nenhuma. Aprendem para
+ser bons lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas
+m&atilde;es, depois de terem sido bons filhos e boas filhas; e
+n'isso limitam a sua ambi&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para
+folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras,
+em saraus esplendidos.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o falam extranhas Linguas, como n&oacute;s, mas falam
+a nossa, que &eacute; melhor.<br />
+
+<br />
+
+Fora da casa de algum Ecclesiastico, n&atilde;o se desencantaria um
+s&oacute; livro em toda a freguezia; mas os louvores da sua
+moralidade dariam com que encher mais de um livro para nos envergonhar.
+<br />
+
+<br />
+
+A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o
+cora&ccedil;&atilde;o bem nascido dar&aacute; gosto. A
+<em>merc&ecirc;</em> e o
+<em>v&oacute;s</em> de nossos maiores s&atilde;o
+tratamentos para os raros casos em que n&atilde;o cabe o
+<em>tu</em>.<br />
+
+<br />
+
+Os logarejos s&atilde;o todos amigos, e em grande parte parentes um
+dos outros. O mais pobre vai sentar-se festejado ao ser&atilde;o ou
+&aacute; meza do mais rico; isto &eacute;, do que na sua tulha
+<span class="pagenum">[46]</span>
+tem centeio ou milho para
+todo o anno; e o abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com
+os seus bois a geirasinha do indigente que a n&atilde;o pode pagar;
+e lhe leva pendurado na canga do arado o sacco da semente, para que
+elle tenha tambem, l&aacute; para o ver&atilde;o, que ceifar
+para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por instinto, que as
+lagrimas, no meio da alegria geral, s&atilde;o mais amargosas para
+quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as presenceia.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; um povo agricola, que ainda n&atilde;o aprendeu a
+envergonhar-se do seu parentesco chegado com a terra. Entre elles se
+diz &laquo;lavrador&raquo;, e
+&laquo;trabalhador&raquo;, como em Londres
+&laquo;fabricante&raquo;, ou &laquo;lord&raquo;, em
+Roma
+&laquo;cardeal&raquo;, ou &laquo;monsenhor&raquo;, em
+Paris
+&laquo;sabio&raquo;, ou &laquo;homem de Letras&raquo;,
+e em Lisboa &laquo;deputado&raquo;, ou
+&laquo;millionario&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o pod&atilde;o,
+com o seu paquife de p&acirc;mpanos e espigas, e a letra <em>Ut
+operaretur terram, de qua sumptus</em>.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Que impress&atilde;o, a principio de espanto, logo de
+respeito, e a final de amor, me n&atilde;o fez o presenciar, como,
+ao rev&eacute;z da pragmatica das cidades, o trabalho das
+m&atilde;os era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior
+vergonha!!<br />
+
+<br />
+
+Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido
+o sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava
+<span class="pagenum">[47]</span>
+(como as andorinhas do seu beirado para
+o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal roupido, carrear o
+adub&iacute;o para a sua fazenda, ou levar do enxad&atilde;o na
+ro&ccedil;a dos mattos entre os seus operarios. A estes,
+&iquest;que os poderia admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios,
+e dos Camillos, se alguem lh'a lesse, a n&atilde;o ser a
+admira&ccedil;&atilde;o dos
+historiadores?
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens n&atilde;o
+poderiam deixar de ser mais varon&iacute;s do que os homens de
+muitas outras terras, e de todas as deliciosas.<br />
+
+<br />
+
+Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lan&ccedil;adeira, e a agulha,
+com o seu costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes,
+que v&atilde;o formando semelhante &aacute; precedente a
+gera&ccedil;&atilde;o seguinte, s&oacute; s&atilde;o
+passatempos do ser&atilde;o, &aacute; luz da candeia, das
+pinhas bravas, ou da fogueira, que allumia e alegra os penates
+afumados. Madrugam como a aurora para os trabalhos fortes. Os bois
+conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente jungir e guiar pelas suas
+m&atilde;os. Na vindima, carregam &aacute; cabe&ccedil;a
+cestos, que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as
+m&atilde;os alvas e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas
+ceifas, transportam &aacute; cabe&ccedil;a montanhas de
+espigas, t&atilde;o leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan sob
+o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua grinalda
+de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em
+bemaventuran&ccedil;a para dez familias. Nas renques
+<span class="pagenum">[48]</span>
+dos saxadores e dos
+ro&ccedil;adores, vel-as-heis brandindo um alvi&atilde;o
+n&atilde;o mais leve, deixal-os muitas vezes para traz, e
+envergonhal-os com seu riso de triumpho.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O
+exercicio, Anjo custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra
+ao mesmo tempo no sangue a saude, que do sangue se c&ocirc;a ao
+leite, e do leite aos filhos. Seriam as amasonas da paz, se
+n&atilde;o tivessem ambos os peitos muito bem inteiros, e se os
+homens seus eguaes as n&atilde;o acompanhassem em todas as lidas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Uma usan&ccedil;a patriarchal, ou hom&eacute;rica, d'este paiz,
+que moralmente parece distar do nosso duas mil l&eacute;guas,
+&eacute; a
+sujei&ccedil;&atilde;o da mulher; facto que eu n&atilde;o
+moraliso, mas s&oacute; historio.<br />
+
+<br />
+
+As mais graves, tanto como as mais somenos, n&atilde;o
+s&oacute; &aacute; laia das Pen&eacute;lopes
+e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio
+at&eacute; meia-perna; n&atilde;o s&oacute; no
+tr&aacute;fego de porta a dentro, na cosinha para a familia e para
+os animaes domesticos; mas n&atilde;o se correm nem desdenham de
+ministrar de p&eacute;, como servas, &aacute; meza de seus
+maridos e filhos, nem em dias de festa ou bodo, quando a assistencia de
+hospedes mais poderia assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as.
+S&atilde;o sempre aquillo: sempre passivas, boas, e contentes.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[49]</span>
+<h4>XIII</h4>
+
+<br />
+
+Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecer&atilde;o
+j&aacute; minuciosas e pueris estas noticias; mas hei-de
+j&aacute; agora continual-as, e seja com v&eacute;nia sua. A
+outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns
+annos, quando o nivel da civilisa&ccedil;&atilde;o tiver tambem
+renteado as asperezas das serras, alguem festejar&aacute; encontrar
+estas antigualhas, nas folhas j&aacute; por ventura r&ocirc;tas
+e descosidas d'este livro.<br />
+
+<br />
+
+Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar j&aacute; hoje ao
+commum da nossa gente; mas ent&atilde;o h&atilde;o-de ser
+antigualhas fosseis, e portanto com venera&ccedil;&atilde;o
+duplicada venerandas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+A indole da gente &eacute; de si commedida e pacifica.<br />
+
+<br />
+
+De todo o genero de vicios e desconcertos se poder&atilde;o entre
+ella achar amostras, que emfim, terra &eacute;, e n&atilde;o
+paraiso; mas nem tantas proporcionalmente, nem t&atilde;o feias e
+monstruosas em geral, como em outras partes, e em quasi todas.<br />
+
+<br />
+
+Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com
+todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico;
+ninguem &eacute; t&atilde;o abastado, que possa eximir-se de
+trabalhar cont&iacute;nuo, para se despender em vida de enredos,
+corrup&ccedil;&atilde;o e maleficios; nem t&atilde;o
+extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o
+despeito, o despenhem de salto em
+<span class="pagenum">[50]</span>
+salto at&eacute; ao fundo da
+deprava&ccedil;&atilde;o.
+&Eacute; o <em>inter utrumque</em>, a <em>aurea
+mediocritas</em>.<br />
+
+<br />
+
+Conservam inteira a F&eacute; religiosa.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o l&ecirc;em, nem conhecem, nem levariam &aacute;
+paciencia, jornaes que desorientam, desencantam, e p&otilde;em o
+genero humano em guerra viva comsigo mesmo.<br />
+
+<br />
+
+E muito menos l&ecirc;em, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura
+toda novella, toda sophismadora de tudo, toda flor&iacute;da e
+venenosa, que por c&aacute; nos trabalha, e de cujos herpes adoecem
+at&eacute; as familias, que a maldizem, e a repulsam da sua porta.<br />
+
+<br />
+
+Por l&aacute;, n&atilde;o; o mal que se fizer, ha-de
+s&oacute; provir da fragilidade, ou dos impulsos subitos da
+natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na consciencia
+remordimentos.<br />
+
+<br />
+
+Uma apologia, uma deificac&atilde;o para cada crime, nem possivel a
+julgam; quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida
+como aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se
+conchava.<br />
+
+<br />
+
+D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais,
+resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e
+innocencia, quanta a que lhes n&oacute;s levamos em polidez, em
+gra&ccedil;as exteriores, em tactica, em egoismo infernal e
+assolador. Nos amores ponh&acirc;mos o exemplo:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e
+persuade: tendem &aacute; uni&atilde;o, de que se originam as
+familias, e por onde a especie se mant&eacute;m.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[51]</span>
+Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior
+arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e al&eacute;m
+do ocio lhes fallecem tambem sobejid&otilde;es de cabedaes, que
+estimulam e irritam as phantasias, para o casamento se namoram, e
+n&atilde;o por alardo; para goso do
+cora&ccedil;&atilde;o, e n&atilde;o da vaidade.
+P&otilde;em no merecer as diligencias que outros p&otilde;em no
+conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar no
+repellir e despresar depois de saciados.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o vivem os sexos n'uma guerra perp&eacute;tua de
+seduc&ccedil;&otilde;es, de emboscadas, enganando-se e
+sacrificando-se um ao outro.<br />
+
+<br />
+
+A mulher n&atilde;o lavra registo dos seus adoradores; nem o homem
+se ufana em desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um
+theatro, ou no v&atilde;o de uma janella de club, em noite de
+baile, um copioso canhenho, meio historico meio fabuloso, dos seus
+triumphos. Ali, ali &eacute; que as mulheres se podem gabar de ser
+amadas, pois o s&atilde;o sem disfarces nem encarecimentos;
+s&atilde;o-n-o pelas suas proprias gra&ccedil;as, pois nem
+modistas, nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem
+mestres, nem lisonjeiros, nem romances, as transformaram.
+S&atilde;o-n-o pelo que s&atilde;o, e n&atilde;o pelo que
+possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.<br />
+
+<br />
+
+Palacios, creadagem, diamantes, n&atilde;o lhes v&atilde;o
+l&aacute; supprir lindezas do corpo,
+gra&ccedil;as do animo, ou preciosidades do
+cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o &eacute; entre prestigios deslumbradores, n'um
+ambiente de calor artificial, estimuladas
+<span class="pagenum">[52]</span>
+ou vencidas do exemplo, da
+occasi&atilde;o, do medo ao ridiculo, e da audacia emprehendedora,
+n&atilde;o &eacute; ao abrigo do estrondo e confus&atilde;o
+de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras
+declara&ccedil;&otilde;es; &eacute;
+ao ser&atilde;o, com a sua roca na cinta, na presen&ccedil;a de
+suas m&atilde;es; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva
+com as parentas e amigas, em derredor da merenda, &aacute; sombra
+das carvalheiras.<br />
+
+<br />
+
+S&atilde;o amores que se n&atilde;o escondem, porque
+n&atilde;o teem de qu&ecirc;; amores que se exhalam debaixo do
+ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada capella do festejo, ao
+som folgas&atilde;o da <em>Mirontella</em> roncada
+pela gaita de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante
+do arraial.<br />
+
+<br />
+
+No progresso de taes inclina&ccedil;&otilde;es &eacute;
+sabedora e consentidora toda a visinhanca; e esta mesma notoriedade
+defende os nossos namorados, tanto de se deixarem arrastar de seus
+mutuos desejos, como de se desvairarem e cahirem em infieis.<br />
+
+<br />
+
+Ao consorcio da Egreja, antecede o dos cora&ccedil;&otilde;es,
+n&atilde;o menos obrigado a
+lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de v&eacute;stia
+commetteria galantear a conhecida por
+<em>empr&ecirc;go</em> de outrem, certo em que nenhuns
+lucros lhe surtiria o empenho, sen&atilde;o s&oacute; motejos e
+descredito.<br />
+
+<br />
+
+D'este modo se estende &aacute;s vezes por annos, com uma
+constancia verdadeiramente biblica, at&eacute; ao dia da posse, o
+bem-querer d'estes Jacobs e d'estas Rach&eacute;is.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Quantas Lisboetas de sar&aacute;us, se quizerem ser
+sinceras, h&atilde;o de confessar que a escolha
+<span class="pagenum">[53]</span>
+que n'um baile fizeram... s&oacute;
+durou at&eacute; que veio o baile seguinte! &iexcl;Quantas,
+quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que pelas duas orelhas
+que Deus lhes d&eacute;ra n&atilde;o ouviam dois ao mesmo
+tempo) se poderia contar, perguntando &aacute; sua modista franceza
+quantos vestidos novos lhes havia feito!<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o assim l&aacute;. A que foi vista, na ceifa do anno
+passado, demorar-se mais a encher a malga para certo segador que para
+todos os outros, e pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a
+p&ocirc;r &aacute; cabe&ccedil;a a gavella das
+espigas, essa continuar&aacute; a fazer o mesmo na colheita d'este
+anno; continual-o-ha na dos futuros, at&eacute; que, tornada sua
+mulher, os cuidados dos filhos e da casa a impidam de seguir, como
+antes, por passos contados, o seu gosto.<br />
+
+<br />
+
+Observa&ccedil;&atilde;o t&atilde;o curiosa como
+verdadeira:<br />
+
+<br />
+
+Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a s&oacute;s,
+que a variedade dos servi&ccedil;os rusticos t&atilde;o a miudo
+lhes depara, rodeadas da Natureza por todas as partes, vendo livre o
+amor nas aves e nos rebanhos, favorecidas pela solid&atilde;o
+selv&aacute;tica e pelo
+silencio, e pelas moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois
+crepusculos em cada dia, e em cada semana de inverno por tantas
+tempestades improvisas, como aquella que rendeu e debellou a vidual
+constancia de Dido e a piedade de En&ecirc;as, quando o hymeneu deu
+com o relampago o signal de suas b&ocirc;das, e as nymphas pelos
+altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de fragilidade
+como a de Dido por phen&oacute;meno
+<span class="pagenum">[54]</span>
+se apontam; e annos e annos se devolvem, sem que
+um s&oacute; se realise.<br />
+
+<br />
+
+Quando por&eacute;m se d&aacute;, e vem a lume filho
+n&atilde;o de ben&ccedil;&atilde;o, o peccado de amor
+n&atilde;o se carrega de crueldade. O innocente n&atilde;o se
+faz victima expiatoria dos culpados, perdendo a vida entre as
+m&atilde;os de quem lh'a deu; horror nefand&iacute;ssimo,
+inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; nem
+t&atilde;o pouco &eacute; enviado, como um roubo, pelas trevas
+da noite, &aacute; porta l&aacute; ao longe de um desconsolado
+asylo, aberto pela misericordia em lagrimas &aacute;s lagrimas dos
+filhinhos sem m&atilde;e, nascidos em signo de rigor para se
+crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, e se
+finarem sem heran&ccedil;as, nem lamentos, nem memorias.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o, n&atilde;o. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo
+infanticidio moral, mereceria qualquer das minhas serranas um falso
+titulo, que ainda mais a faria corar, que a t&aacute;cita
+confiss&atilde;o da sua culpa. Sabe renunciar os louvores com que
+d'antes a coroavam; ousa desherdar de antem&atilde;o o seu cadaver
+do palmito, symbolo p&oacute;sthumo do feminil triumpho; tudo ousa;
+tudo... como lhe fique para consola&ccedil;&atilde;o da sua
+queda o encanto ineffavel de apertar nos bra&ccedil;os o seu filho.
+Se o mundo todo, se o proprio amante, a desamparasse, tudo tudo
+esquec&ecirc;ra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se afortunada. De
+n&atilde;o ser donzella, nem esposa, harto a compensa a consciencia
+de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o sublime
+encargo, o natural sacerdocio da maternidade.<br />
+
+<br />
+
+Estas resignadas victimas, immoladas por
+<span class="pagenum">[55]</span>
+um amor, por outro amor ressuscitadas mais
+interessantes, estas victimas, em quem a virtude, produzida pelo
+arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi em lustre a
+virgindade, s&atilde;o poucas; s&atilde;o rarissimas;
+custar-nos-hia a encontrar uma. Quando por&eacute;m a
+desencantasseis, lembrando vos do que sabeis d'estas nossas grandes
+terras, fio-vos que bastante commisera&ccedil;&atilde;o e
+respeito vos infundira.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Casas de perdi&ccedil;&atilde;o para a mocidade, como nos
+povoados grandes se alinham em ruas e ruas, e at&eacute;
+j&aacute; por villas e aldeias
+v&atilde;o surdindo, n&atilde;o se conhecem l&aacute;, nem
+se poder&atilde;o t&atilde;o cedo conhecer.<br />
+
+<br />
+
+Como leprosa seria evitada, e pereceria &aacute; mingua, e de
+vergonha, a que se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em
+que as sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso,
+s&atilde;o victimas das victimas que ellas sacrificam.<br />
+
+<br />
+
+Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se
+transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade
+dos casaes.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XIV</h4>
+
+<br />
+
+Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve
+de sepulcro, mas n&atilde;o l&aacute;; falemos do casamento.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Os casamentos n&atilde;o s&atilde;o nunca determinados por
+considera&ccedil;&otilde;es de haveres ou de jerarchia.
+<span class="pagenum"> <a name="p56" id="p56">[56]</a></span>
+O c&aacute;lculo rala pouco
+os pensamentos d'estas gentes, acostumadas a viver com pouco, e a
+confiar muito na Providencia. As palavras <em>dote</em> e
+<em>escrituras</em> apenas seriam entendidas.
+<br />
+
+<br />
+
+Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e
+economia, a ajuntar para <em>uma cama de roupa</em>,
+uma teia de est&ocirc;pa, outra de linho, uma pe&ccedil;a de
+burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma panella e dois pratos,
+uma candeia de folha, um b&aacute;coro, seis alqueires de milho, e
+outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da fortuna, e trata
+logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.<br />
+
+<br />
+
+O noivo d&aacute; &aacute; sua futura um presente, o qual, pelo
+commum, consta de um anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro
+uma camisa para o dia grande.<br />
+
+<br />
+
+Mal que este desponta, v&ecirc; j&aacute; de p&eacute; os
+dois afortunados, garridos e bizarros com o seu <em>aceio</em>
+dos domingos: ella, sobretudo,
+flammante como uma Imagem, com arrecadas, cord&otilde;es, e
+alfinetes sobre len&ccedil;o de seda, mantilha lustrosa, ou chapeo
+de feltro novo com enfeites.<br />
+
+<br />
+
+As que para tanto n&atilde;o teem guarda-roupa, teem amigas e
+visinhas, que de boa-mente <a href="#e4">lhes</a>
+acodem, cada uma com o seu
+<em>melhorado</em>, convencidas como est&atilde;o
+(especialmente as solteiras) de que alguma coisa da
+ben&ccedil;&atilde;o matrimonial poder&aacute; vir apegada
+aos diches e galas que figuraram no apertar das m&atilde;os.<br />
+
+<br />
+
+Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas av&oacute;s, se
+preparam de vespera para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que
+<span class="pagenum">[57]</span>
+sendo flor&iacute;do tem
+mais effic&aacute;cia, e mettendo antes de adormecer debaixo do
+travesseiro
+(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem
+liados entre si, e recobertos com alguns arm&eacute;os de linho e
+lan; no que, vai grande cond&atilde;o de conformidade de animos,
+perfei&ccedil;&atilde;o de ajuntamento, e dura do bem-querer;
+com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, n&atilde;o
+faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.<br />
+
+<br />
+
+O pretendente, com os seus apaniguados, espera j&aacute;
+&aacute; porta da noiva a sua sahida. Esta apparece emfim, como uma
+aurora da serra, incendida de pejo, e orvalhada com as lagrimas da
+m&atilde;e; e segue com o rancho, a p&eacute;, caminho da
+egreja, levando &aacute;s costas as ben&ccedil;&atilde;os
+do pae, em que ainda por l&aacute; se
+cr&ecirc;, a turba&ccedil;&atilde;o no seio, e nos ouvidos
+os votos e resas de bom agoiro, recitadas com f&eacute; por alguma
+velha mais sabida.<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+A egreja est&aacute; j&aacute; &aacute; sua espera aberta,
+juncada de espadana, com o altar enflorado de fresco, e a alampada
+ati&ccedil;ada.<br />
+
+<br />
+
+A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas
+cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a
+todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do
+sacramento, ou improvisa ap&oacute;z ellas um affectuoso discurso
+sobre os deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo
+do templo n&atilde;o &eacute; interrompido com
+preg&otilde;es de vendedores, rodar de seges, marchas de tropa,
+brados de mendigos, assobios
+<span class="pagenum">[58]</span>
+de rapazes, martellar de artifices, zabumbas de arlequins.<br />
+
+<br />
+
+Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai
+profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e
+afugentar as evocadas memorias de <a name="n6" id="n6"></a>Lia,
+de Rachel, e de Rebecca.<br />
+
+<br />
+
+O que unicamente chega l&aacute; de f&oacute;ra, &eacute; o
+chilrar de algum passaro sobre alguma cerejeira do adro, o amoroso
+carpir de alguma r&ocirc;la na matta de S. Sebasti&atilde;o, ou
+a voz de algum lavrador estimulando os bois pergui&ccedil;osos no
+trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da
+Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da
+prog&eacute;nie de Ad&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com
+mais clara e muito mais formosa ben&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&Eacute; um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a
+Deus n&atilde;o ser mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de
+dois nomes um s&oacute; nome, como de duas metades distinctas se
+forma um todo inseparavel.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; um dia, sem duvida, para quem bem o pond&eacute;ra,
+solemnissimo, e que, por isso mesmo, se deveria por todos os modos
+pintar com indel&eacute;veis e suaves tintas na memoria, para que a
+sua imagem no meio das tenta&ccedil;&otilde;es podesse acudir
+como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.<br />
+
+<br />
+
+Quem se recordar de que proferiu o seu
+<span class="pagenum">[59]</span>
+voto, e escutou com jubilo outro egual,
+onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas cong&eacute;ries de
+obras humanas encobriam as maravilhas da M&atilde;o Divina, onde
+com o sol entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e
+fragrancias naturaes com as vira&ccedil;&otilde;es, quem,
+repito, de tudo isto se recordar, ha-de-lhe parecer que Deus percebeu
+melhor as suas palavras; ha-de alguma vez devanear em si (mas que o
+n&atilde;o diga) que bem poderia ser que alguns Anjos estivessem
+ali, em t&atilde;o donoso tabern&aacute;culo, a bafejar a
+pris&atilde;o de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a
+mulher...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos
+alvoro&ccedil;ados, e por entre os parabens e vivas dos
+assistentes, encontram, come&ccedil;ando logo no adro, de praso a
+praso, por toda a extens&atilde;o do caminho at&eacute;
+&aacute; casa, arcos, engenhados &aacute; pressa, de loiro,
+ramos de pinheiro, oliveira, roble, canas verdes, e quantas hervas e
+plantas bravas menos espinhosas ou mais floridas brota o monte.<br />
+
+<br />
+
+Ao-p&eacute; de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua
+toalha, e ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa,
+est&atilde;o, postos de antem&atilde;o pelos muchachinhos que
+formam a primeira frente do pr&eacute;stito triumphal, um prato de
+bolos, e frutos verdes ou s&ecirc;ccos para quem os quizer tomar;
+outro vazio, para a gratifica&ccedil;&atilde;o voluntaria, que
+ninguem deixa de lhe lan&ccedil;ar.<br />
+
+<br />
+
+Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa,
+<span class="pagenum">[60]</span>
+e industria mais esmerada; foram esses
+prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de seus
+afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes
+naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos
+padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem
+concertadas que podem, um &aacute; mo&ccedil;a, outro ao
+mancebo; os quaes, logo a diante, de ordinario entre si os trocam; e
+junto &aacute; salva dos ramalhetes se v&ecirc; um abundante
+refresco de bebida e comida para todo o acompanhamento, sendo o acepipe
+obrigado &aacute;s filh&oacute;s de mel.<br />
+
+<br />
+
+Em cada uma d'estas
+<em>esta&ccedil;&otilde;es</em> chove
+de todas as partes a saraivada dos confeitos; bebe-se &aacute;
+sa&uacute;de dos &laquo;bem
+empregados&raquo; e &laquo;de quem d'ahi a nove mezes ha-de
+vir.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O jantar d'este dia &eacute; copioso e demorado, com tantos
+convivas quantos admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as
+boas vontades prestes para quem se quizer apresentar.<br />
+
+<br />
+
+Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e
+o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse
+&laquo;o desposado&raquo; (contra a regra do nosso falar
+galanteador), porque o logar da direita se lhe d&aacute; a elle. A
+dignidade varonil em nenhum lance esquece entre aquellas gentes
+primitivas.<br />
+
+<br />
+
+N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e
+com um
+<span class="pagenum">[61]</span>
+s&oacute; talher, e
+bebiam pelo mesmo copo; o que, n&atilde;o obstante fazer durar a
+refei&ccedil;&atilde;o
+dobrado tempo, n&atilde;o deixava de ter gra&ccedil;a pelo seu
+bonissimo sentido, que n&atilde;o podia ser outro sen&atilde;o
+representar a communidade e harmonia intima, em que esperavam e
+professavam de viver.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&Aacute; noite ha sar&aacute;u rasgado, com concerto de violas,
+rabecas, e ferrinhos, dando se a r&ocirc;do comer e beber aos
+tangedores.<br />
+
+<br />
+
+Em quanto dan&ccedil;am, algumas mo&ccedil;as donzellas se
+furtam subtilmente &aacute; companhia, para irem enfeitar de flores
+o leito nupcial, desfolhar entre os len&ccedil;oes rosas de cheiro
+(se a esta&ccedil;&atilde;o as d&aacute;), e guarnecer a
+roca e fuzo symbolicos de amores perfeitos.<br />
+
+<br />
+
+Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita
+da quinta que &eacute; meia-noite, ha j&aacute; muito que os
+obsequiadores bondosos teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas
+de calmaria de certo suavissimas, ap&oacute;z um dia todo por fora
+e por dentro t&atilde;o festejado e t&atilde;o
+rev&ocirc;lto.....<br />
+
+<br />
+
+<h4>XV</h4>
+
+<br />
+
+O nascer de cada filho &eacute; uma festa.<br />
+
+<br />
+
+Como teem robusta f&eacute; na Providencia, cr&ecirc;em (e
+mostra a experiencia que se n&atilde;o enganam), cr&ecirc;em e
+repetem, que filhos ainda em casa pobre s&atilde;o riqueza; que por
+taes penhores se obriga Deus, que &eacute; o Pae commum, a lhes
+acudir com mais larga m&atilde;o;
+<span class="pagenum">[62]</span>
+e que a meza, por ter mais Anjinhos ao
+p&eacute; de si, se n&atilde;o ha-de fazer mais
+esca&ccedil;a, se n&atilde;o medrar &aacute;
+propor&ccedil;&atilde;o de
+t&atilde;o bons h&oacute;spedes.<br />
+
+<br />
+
+E em verdade: se a descendencia nas cidades &eacute; tantas vezes
+um onus, um sorvedoiro, e um terror; se t&atilde;o commummente se
+ouvem m&atilde;es e paes deploral-a como castigo e praga;
+l&aacute; na serra, onde ha trabalho proporcionado a cada edade,
+l&aacute; na serra, onde, como em enxame bem regido, todos os
+consumidores s&atilde;o productores; l&aacute;, onde
+s&oacute;
+s&atilde;o necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes
+s&atilde;o os mestres, o exemplo
+li&ccedil;&atilde;o, a laboriosidade e sobriedade
+heran&ccedil;a; ninguem se atormenta sorteando na phantasia
+empregos ou futuros novos para a sua prog&eacute;nie. L&aacute;
+os filhos s&atilde;o
+rebent&otilde;es, que alegram, remo&ccedil;am, e
+esp&eacute;car&atilde;o a seu tempo a velhice decadente de
+quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Vinda a lume a creanca, entre um c&ocirc;ro de mulheres
+experimentadas em taes lances, que supprem a falta de parteiras e
+doutores, tem-se j&aacute; prompta a canastra que lhe ha-de servir
+de ber&ccedil;o.<br />
+
+<br />
+
+Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, &eacute;
+escrupulosamente velada, para que n&atilde;o venham bruxas
+malfazejas a chuchal-a. Para esse fim se mant&eacute;m de sol a sol
+candeia bem experta; e ao clar&atilde;o d'ella, com os olhos fitos
+no innocente, e quasi sempre em p&eacute; para que as
+n&atilde;o tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as
+amigas da casa.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que v&atilde;o
+entoando com a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do
+p&eacute; embalam brandamente o bercinho. Algumas folhas de
+oliveira ou palma, que figuraram no altar em Domingo de Ramos,
+queimadas n'esta occasi&atilde;o, diz-se que tambem provam muito
+bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e janellas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+N&atilde;o sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de
+romanas cren&ccedil;as a gra&ccedil;a, a fragrancia poetica, o
+saudoso de innocente boa-f&eacute;, que lhes eu sinto.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e
+t&atilde;o christan como ella &eacute;, praticam o mesmo que os
+legion&aacute;rios romanos provavelmente ensinaram a nossas
+av&oacute;s ha mil annos, e mais, pelo terem visto fazer nas
+aldeias da sua terra a suas m&atilde;es e mulheres!
+&iexcl;Cuidar que estamos vendo, com pequena
+degenera&ccedil;&atilde;o, o que o mais rico poeta da
+Antiguidade se deliciou em cantar das cren&ccedil;as da sua gente!
+E se n&atilde;o,
+oi&ccedil;&acirc;mol-o, e julgareis:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Negreja ao r&eacute;z do Tibre
+annoso Helerno,</div>
+
+<div class="poetry1">santo bosque, onde levam sacrificios<br />
+
+inda agora os Pont&iacute;fices romanos.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Ali nasceu outr'ora, ali vivia</div>
+
+<div class="poetry1">a que nossos av&oacute;s chamavam
+Grane,<br />
+
+casta Nympha, de excelsos pretensores</div>
+
+<span class="pagenum">[64]</span>
+<div class="poetry1">pedida vezes mil e em v&atilde;o
+pedida.<br />
+
+Era seu exercicio errar nos campos,<br />
+
+as feras perseguir com dardo agudo,<br />
+
+e as redes emboscar nos fundos valles.<br />
+
+Inda que aljava ao lado
+n&atilde;o trouxesse,<br />
+
+criam-n-a irman de Phebo; o parentesco<br />
+
+n&atilde;o poderia, &oacute; Phebo, envergonhar-te.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Quando algum namorado a requestava,</div>
+
+<div class="poetry1">tinha prompta a
+resposta.&#8213;&laquo;Aqui,&#8213;dizia&#8213;<br />
+
+ha n&iacute;mia luz, e a luz
+dobra a vergonha...<br />
+
+Se preferes entrar n'aquella gruta,<br />
+
+sigo-te.&raquo;&#8213;&Aacute; gruta o cr&eacute;dulo voava;<br />
+
+ella torcia o passo, ia &aacute; carreira<br />
+
+das moitas na espessura
+homisiar-se;<br />
+
+d'ali desencantal-a era impossivel.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;</div>
+
+<div class="poetry1">combateu lhe o rigor
+com brandos rogos,<br />
+
+e a s&oacute;lita resposta obteve em
+pr&eacute;mio:<br />
+
+que entrasse al&eacute;m na gruta. Obedeceu-lhe;<br />
+
+segue-o a principio a Nympha... eis p&aacute;ra... eis foge.<br />
+
+O que
+lhe fica ap&oacute;z v&ecirc; Jano. &Oacute; louca,<br />
+
+no
+usado esconderijo em v&atilde;o confias;<br />
+
+olha como t'o observa, e
+t'o devassa.<br />
+
+N&atilde;o ha que resistir-lhe... eis-te em seus
+bra&ccedil;os;<br />
+
+eil-o comtigo a s&oacute;s na cava penha,<br />
+
+onde havias buscado o teu
+refugio.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Saciados os s&ocirc;ffregos
+desejos,</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&laquo;Em
+paga d'este goso&#8213;exclama o Nume&#8213;<br />
+
+dos qu&iacute;cios a tutella eu
+te confio;<br />
+
+pela honra perdida esta conserva.&raquo;<br />
+
+Assim falando,
+candida varinha<br />
+
+lhe entrega, com que os t&eacute;tricos asares<br />
+
+das
+protegidas portas afugente.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[65]</span>
+<div class="poetry">Existem de brutal voracidade</div>
+
+<div class="poetry1">umas infames aves;
+n&atilde;o j&aacute; essas<br />
+
+que de Phineu a meza espoliavam,<br />
+
+mas
+da mesma rel&eacute;: cabe&ccedil;a grande,<br />
+
+fito olhar, bico
+audaz, grizalhas plumas,<br />
+
+garra adunca; esvoa&ccedil;am pela noite;<br />
+
+onde encontram crean&ccedil;a ao desamparo,<br />
+
+que a ama deixou
+s&oacute;, prestes a emp&oacute;lgam,<br />
+
+arrancam-n-a do
+ber&ccedil;o, e a dilaceram.<br />
+
+Diz que as lactentes
+v&iacute;sceras co'os r&oacute;stros<br />
+
+lhes picam, lhes devoram;
+teem as fauces<br />
+
+sempre repletas de sorvido sangue.<br />
+
+Do <em>estridor</em>
+com que as trevas
+alvor&oacute;tam,<br />
+
+lhes vem o nome: <em>estriges</em>
+se
+nomeiam.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Estas pois, quer de si nascessem aves,</div>
+
+<div class="poetry1">quer em aves, de
+velhas que antes foram,<br />
+
+fatal conjuro marso as encantasse,<br />
+
+penetraram
+de Proca no aposento.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Com cinco soes de edade, o innocentinho</div>
+
+<div class="poetry1">era ao bando ferino
+egregio pasto.<br />
+
+J&aacute; co'as gulosas linguas ferem, sugam<br />
+
+o tenro
+peito nu; s&ocirc;am do infante<br />
+
+os consternados tr&eacute;mulos
+vagidos,<br />
+
+com que, &aacute; falta de voz, auxilio pede.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Corre a ama assustada; acha nas faces</div>
+
+<div class="poetry1">do caro alumno seu
+lavado em sangue<br />
+
+das brutas garras os crueis vestigios.<br />
+
+&iquest;Que
+far&aacute;? v&ecirc;-lhe o rosto exangue,
+murcho,<br />
+
+que na c&ocirc;r arremeda as tardas folhas<br />
+
+j&aacute; do
+r&iacute;gido inverno bafejadas.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Corre a Grane; o successo lhe relata.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&laquo;Cobra
+valor&#8213;a Nympha lhe responde;&#8213;
+<span class="pagenum">[66]
+</span><br />
+
+viver&aacute; teu
+alumno.&raquo;</div>
+
+<div class="poetry2">
+Entrada ao ber&ccedil;o,</div>
+
+<div class="poetry1">acha a m&atilde;e, acha o pae,
+s&ocirc;ltos em pranto.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&#8213;&laquo;Eis-me; enxugae as
+l&aacute;grimas&#8213;exclama;&#8213;</div>
+
+<div class="poetry1">vou tornar-vol-o
+s&atilde;o.&raquo; Diz, e tres vezes<br />
+
+de medronheiro com
+frondosa vara<br />
+
+fere da estancia as portas; outras tantas<br />
+
+co'a mesma vara
+o limiar sin&aacute;la;<br />
+
+rega o &aacute;dito; as aguas com que o
+rega<br />
+
+encerram salutifera mistura.<br />
+
+Entranhas cruas de
+bimestre porca<br />
+
+toma nas m&atilde;os, e diz:</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&laquo;Aves da noite,</div>
+
+<div class="poetry1">&iacute;-vos, deixae as
+puer&iacute;s entranhas.<br />
+
+N'esta pequena victima tenrinha<br />
+
+o tenro
+pequenino aqui resgato;<br />
+
+&eacute; cora&ccedil;&atilde;o por
+cora&ccedil;&atilde;o; tomae-o;<br />
+
+por visceras s&atilde;o
+visceras; redima<br />
+
+esta existencia immunda outra mais nobre.&raquo;</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Finda a sacra
+obla&ccedil;&atilde;o, corta o
+deventre,</div>
+
+<div class="poetry1">e esmiun&ccedil;ado o vai
+p&ocirc;r aos ares livres,<br />
+
+prohibindo do rito &aacute;s testemunhas<br />
+
+olhal-a ent&atilde;o
+ninguem; por fim colloca<br />
+
+a vara de oxiacanta, o don de Jano,<br />
+
+na
+janellinha que d&aacute; luz ao quarto.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Consta que desde ent&atilde;o
+n&atilde;o mais
+volveram</div>
+
+<div class="poetry1">ao ber&ccedil;o aves ruins;
+saude, cores,<br />
+
+tudo refloresceu
+no innocentinho. <sup> <a href="#nt3">[3]</a></sup></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[67]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois
+c&ocirc;vados de ba&ecirc;ta encarnada ou verde, vinho,
+assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, conforme o dia em que acerta. A
+madrinha d&aacute; um vestido, duas camisas, e uma touca. Cada um
+dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu brio.<br />
+
+<br />
+
+Este dia &eacute; quasi t&atilde;o festivo como o do casamento,
+pois n'elle se cumpre a ben&ccedil;&atilde;o que no primeiro
+dia se receb&ecirc;ra, e est&aacute; salvo o interessante
+pimp&ocirc;lho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que
+as bruxas nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo
+do peccado.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XVI</h4>
+
+<br />
+
+Al&eacute;m d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e
+baptisado, cada povoa&ccedil;&atilde;o cel&eacute;bra a
+sua, p&uacute;blica, no dia do Orago da sua capella. Tem fogo do ar
+e salva de morteiros &aacute; Missa cantada; banqueteiam-se uns aos
+outros; e, se o anno correu pr&oacute;spero, e as posses o
+consentem, andam j&aacute; desde a vespera &aacute; tarde pelo
+adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o tambor, e despov&ocirc;a-se
+a visinhan&ccedil;a com o chamariz do fogo de vistas nomeado de
+<em>arma&ccedil;&atilde;o</em>, ou
+<em>parreira</em>.<br />
+
+<br />
+
+Por esta occasi&atilde;o, nas casas principaes, isto &eacute;,
+nas menos apertadas, saltam-se at&eacute; a meia-noite as
+dan&ccedil;as, pela m&oacute;r parte cantadas, do bom Portugal
+velho; dan&ccedil;as, das quaes, para f&oacute;ra d'aquelle
+vivente archivo
+<span class="pagenum">[68]</span>
+de antiguidades, nem
+j&aacute;, quasi, os nomes se conservam. S&atilde;o o <em>caracol</em>,
+o <em>Senhor da serra</em>, o <em>lund&uacute;</em>,
+ou
+<em>landum</em>, o
+<em>escalhabardo</em>, a <em>ribaldeira</em>,
+o
+<em>Francisco bandalho</em>, etc.<br />
+
+<br />
+
+A excita&ccedil;&atilde;o do saltar, a virtude inspiradora do
+vinho verde, e um poucochinho o natural desejo de brilhar diante das
+raparigas e dos rapazes, fazem &aacute;s vezes com que ahi
+appare&ccedil;am, como nas romarias, como nos ser&otilde;es dos
+lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de gosto, poetas e
+poetisas que trovam de repente, e &aacute; porfia, por
+espa&ccedil;o de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.<br />
+
+<br />
+
+Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem,
+est&atilde;o em p&eacute;, um diante do outro, no meio da roda
+dos ouvintes. A toada de que se ambos servem, &eacute; sempre das
+mais populares, e vai toda reman&ccedil;ada, para que as ideias e
+rimas tenham lazer de acudir. &Aacute;s vezes, por desgarre ou
+desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de
+declama&ccedil;&atilde;o accentuada.<br />
+
+<br />
+
+O seu verso &eacute; o de sete syllabas; o seu periodo, quatro
+versos, correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou
+consoantes; isto &eacute;: usam das quadras correntes em todo o
+Reino.<br />
+
+<br />
+
+Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme
+lhes conv&eacute;m.<br />
+
+<br />
+
+Principiam (&eacute; obrigado) por uma especie
+<span class="pagenum"> <a name="p69" id="p69">[69]</a></span>
+de elogio, ou v&eacute;nia, ao dono da casa,
+se &eacute; em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se
+&eacute; em terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou
+dos seus proprios amores; e d'ahi, muitas vezes sem
+transi&ccedil;&atilde;o, saltam para um genero entre elles
+muito saboroso, que se poder&aacute; chamar o &laquo;rustico
+<a href="#e5">fescenino&raquo;,</a>
+se, de env&ocirc;lta com as chufas salgadas, fossem tambem como
+entre os Antigos, os dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se
+empulham e desempulham, como os dois pastores virgilianos, com
+surriadas de improp&eacute;rios sempre ao galarim, sem que o fogo
+das palavras prenda nunca nos cora&ccedil;&otilde;es. Com a
+mesma
+fei&ccedil;&atilde;o com que dizem, com a mesma ouvem; e
+t&atilde;o avindos saem da contenda, como n'ella entraram.<br />
+
+<br />
+
+Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da
+sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por
+mostrarem assim que n&atilde;o vinham aparelhados para o duello, e
+que tudo quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes
+porfias, e em geral a todo o cantar alde&atilde;o; e &eacute;:
+que a primeira metade de cada quadra tem frequentemente um sentido
+diverso, e desconnexo do sentido da segunda metade.<br />
+
+<br />
+
+Os primeiros dois versos conteem uma senten&ccedil;a geral, uma
+verdade vulgar, uma
+<span class="pagenum">[70]</span>
+imagem campestre,
+a exposi&ccedil;&atilde;o succinta de qualquer facto, mas sem
+rela&ccedil;&atilde;o alguma com o assumpto que se versa, o
+qual s&oacute; nos dois versos ultimos apparece.<br />
+
+<br />
+
+V&atilde;o exemplos, visto n&atilde;o estar em academia, mas em
+pratica de amigos com meus leitores:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3">O loireiro bate bate,<br />
+
+que eu bem o sinto bater.<br />
+
+Para comigo cantares<br />
+
+has-de tornar a nascer.<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; couve se come a folha;<br />
+
+come-se a raiz ao nabo.<br />
+
+S&oacute; te espero ver casado<br />
+
+sendo mulher o diabo.<br />
+
+<br />
+
+Navio d'el-Rei &eacute; grande,<br />
+
+&eacute; grande e chega ao
+Brazil.<br />
+
+Se namorares alguma,<br />
+
+n&atilde;o seja &aacute; luz do
+candil.<br />
+
+<br />
+
+Sequid&atilde;o cria o centeio,<br />
+
+frescura cria os repolhos.<br />
+
+&iexcl;Quem me estre&aacute;ra comtigo,<br />
+
+menina, os
+len&ccedil;oes de folhos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; se v&ecirc;, por estas amostras, que a
+improvisa&ccedil;&atilde;o n&atilde;o &eacute;
+t&atilde;o difficil coisa, nem para tantos encarecimentos, como a
+teem feito alguns viajantes, d'estes que s&oacute; viajam no seu
+quarto, embarcados na sua poltrona.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; por c&aacute; o mesmo, que provavelmente
+<span class="pagenum">[71]</span>
+ser&aacute; por toda a parte, sem exceptuar a
+Italia, com que tanta bulha se nos faz.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3"> <em>Al porto di Livorno<br />
+
+&egrave; giunto un bastimento.<br />
+
+Cara, morir mi sento!<br />
+
+mi sento, o Dio, mancar!</em></div>
+
+<br />
+
+<h4>XVII</h4>
+
+<br />
+
+Muito, por&eacute;m, se engan&aacute;ra, quem inferisse que
+toda a poesia dos meus serranos &eacute; de egual teor; porque,
+sobre conservarem muita x&aacute;cara de bons tempos, com as suas
+lacrimosas cantilenas t&atilde;o singelas, t&atilde;o simplices
+e aprasiveis como ellas (o que j&aacute; n&atilde;o seria
+pequeno cabedal), cantam, e &aacute;s vezes engenham com singular
+felicidade, quadras repassadas de amoroso affecto e gra&ccedil;a
+natural, que um poeta de nome n&atilde;o enjeitaria.<br />
+
+<br />
+
+E &iquest;que muito? &iquest;Por que n&atilde;o haviam de
+nascer estros por ali, onde ha tanta Natureza, tantos sitios
+inspirativos, t&atilde;o bons ocios na solid&atilde;o, tantos
+amores (&iexcl;e amores
+t&atilde;o bem empregados!), e t&atilde;o largos horizontes
+para a saudade!<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Por que n&atilde;o haviam elles de nascer, quando
+at&eacute; pelas nossas encruzilhadas mal cheirosas e escuras,
+pelos nossos botequins fumosos e azoinados, pelas casas d'essas ruas
+feias, onde olhos e ouvidos se perdem e afogam em prosidade vil,
+rebentam, vi&ccedil;am, e n&atilde;o raro florejam, talentos de
+estima&ccedil;&atilde;o e de valia?<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[72]</span>
+Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades,
+muitas coisas lhes empecem (n&atilde;o falando no desamor que os
+esfria, e nas parvoas invejas que os matam); aos montanhezes,
+af&oacute;ra a Natureza, que lhes abunda, tudo mais lhe
+ming&uacute;a. S&atilde;o poetas, sem adivinharem que ha
+poesia, como de Hes&iacute;odo se conta, a quem, sendo humilde
+pastor, appareceram as Musas, n&atilde;o invocadas, para o
+bemfadarem.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;Que de Hes&iacute;odos se n&atilde;o
+esperdi&ccedil;am, e, por falta de um prodigio que os desencante,
+fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+<a name="n7" id="n7"></a>De uma pobre mocinha ovelheira
+posso eu dizer; que por tardes de
+ver&atilde;o muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado
+nos degraus da capella de S. Sebasti&atilde;o; ella ali perto,
+cantando e fiando em p&eacute; &aacute; sombra de um sobreiro,
+no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como bem se pode crer,
+&iexcl;enfeiti&ccedil;ados com a placidez de t&atilde;o
+livres horas em logares t&atilde;o fugidos, t&atilde;o
+sobranceiros ao mundo todo!<br />
+
+<br />
+
+De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos
+corados, n&atilde;o da memoria se n&atilde;o do espirito; e o
+espirito d'ella, estava-se conhecendo que lhe residia no
+cora&ccedil;&atilde;o, t&atilde;o bem,
+t&atilde;o bem, tanto a seu grado, como em estufa bem quente uma
+planta mimosa, que um amea&ccedil;o de frio mataria.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[73]</span>
+N&atilde;o sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca
+ouvira de obras de poesia sen&atilde;o as cantigas da sua terra, o
+murmurinho dos seus rios; de madrugada a cotovia perdida pelos altos do
+ceo; ao meio-dia as porfias das cigarras; ao descahir da tarde o
+badalar longinquo das Ave-Marias; ao cerrar da noite o
+regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus moradores, os seus
+rebanhos, os seus carros, as suas crean&ccedil;as, os seus
+rafeiros, toda a sua orchestra t&atilde;o bem temperada para a
+alma; de noite os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do
+seu namorado.<br />
+
+<br />
+
+Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, n&atilde;o ha
+encarecer o que ella improvisava para as suas ovelhas, que a
+n&atilde;o entendiam; para mim, que me occultava com mil cuidados
+para n&atilde;o afugentar t&atilde;o melodiosa ave; e para o
+ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se
+ao-p&eacute; da sua.<br />
+
+<br />
+
+Era a inspira&ccedil;&atilde;o lyrica mais formosa, se
+n&atilde;o a mais remontada. Eram os objectos do seu limitado
+universo a mirarem-se na limpidez dos seus affectos, virginaes e
+namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras destillando-se cada uma da
+sua ideia com a propria c&ocirc;r, com a propria fragrancia que lhe
+competia. Era o metro a correr, sem quebra nem extravasamento, a flux,
+sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as rimas a vir poisar
+espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da outra, como em dois
+arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois passaros gorgeando.
+Era tudo, emfim, quanto
+<span class="pagenum">[74]</span>
+a Arte requer, e s&oacute; a Natureza pode dar aos seus mimosos<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Pobre mocinha! &iexcl;Dezasseis primaveras!...
+At&eacute; j&aacute; as suas ovelhas se esqueceriam d'ella.
+Dissipou-se como um sonho de poesia. N&atilde;o deixou mais
+vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus
+poemas. Se ainda canta... j&aacute; n&atilde;o &eacute; a
+terra
+quem a ouve. Remontou o v&ocirc;o muito mais alto que o da cotovia
+sua mestra; engolfou-se por entre as scismadoras estrellas, que tantas
+coisas em segredo lhe ensinavam; e virgem entre os Anjos, irman entre
+seus irm&atilde;os, entretece a sua voz immortal no cantico sem
+limite<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+<h4>XVIII</h4>
+
+<br />
+
+Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem
+men&ccedil;&atilde;o da sua Musica.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; esta quasi toda antiga; antiquissima pod&eacute;ramos
+dizer de muita; e conserva puro e extr&eacute;me o primitivo sabor.
+Condiz com a Linguagem, com o trajar, com os costumes; seria excellente
+or&aacute;culo para consultarem os modernos compositores de operas
+nacionaes. Assim se temperariam para os nossos ouvidos, os quaes, posto
+que affeitos de annos para c&aacute; a peregrinas melodias de muito
+mais altos quilates, ainda comtudo se ageitam e conchegam melhor com as
+toadas sentidas e singelas da nossa crea&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Nas boas horas fique a musica italiana,
+<span class="pagenum">[75]</span>
+pois que entrou, e nos cahiu, e o merece;
+mas, porque bizarros agazalhamos a digna h&oacute;speda,
+n&atilde;o se diga que aposent&aacute;mos
+nos s&oacute;t&atilde;os a parenta velha, bondosa, e amiga, por
+trazer vasquinha e falar ch&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; fa&ccedil;am-n-o
+at&eacute; (se j&aacute;
+n&atilde;o pode ser por menos), fa&ccedil;am-n-o a frouxo e a
+granel por essas comedias e far&ccedil;as, em que fala gente do
+nosso sangue e dos nossos nomes. Mas uma vez ou outra ( <em>al
+de
+menos por
+cortezia</em>, como dizem os meus serranos), deixem-nos ouvir em
+boccas patricias coisa que nos alembre das cantilenas de nossas amas,
+cantilenas que, ainda depois de apagadas da memoria, l&aacute; se
+ficam algures no
+cora&ccedil;&atilde;o, com quanto basta de vida para
+ressurgirem ao primeiro aceno.<br />
+
+<br />
+
+Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e
+arbustos ex&oacute;ticos da mais admiravel lou&ccedil;ania;
+mostre-nos l&aacute;, emboscadinho na herva, o malmequer da nossa
+primeira adolescencia, a papoila retinta, que nos ria d'entre o verde
+da se&aacute;ra, quando meninos; a papoila e o malmequer muito mais
+nos h&atilde;o-de conversar com o
+cora&ccedil;&atilde;o um s&oacute; minuto, que todas
+ess'outras flores mais soberbas em toda uma primavera.<br />
+
+<br />
+
+Se &eacute; vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que
+muita vez n'esses theatros, por ahi, me est&atilde;o lembrando com
+saudades os descantes da serra.<br />
+
+<br />
+
+Uma &aacute;ria opulenta, refeita de sciencia, espinhada de
+difficuldades, a dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe
+revolve aos p&eacute;s, a sumir os seus p&iacute;ncaros
+flor&iacute;dos
+<span class="pagenum">[76]</span>
+e tr&eacute;mulos pelas nuvens, admiro-a, applaudo-a, e
+esque&ccedil;o-a. Abalou-me tudo, a fora o
+cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Por&eacute;m certas cantigas que eu sei... n&atilde;o as
+applaudi, n&atilde;o as admirei quando as ouvi, mas senti-as
+repassar-me at&eacute; &aacute;s fibras intimas;
+assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em
+substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do
+silencio.<br />
+
+<br />
+
+Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares,
+da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter
+encontrado.<br />
+
+<br />
+
+E tambem, &iexcl;que melodiosas, que engra&ccedil;adas
+n&atilde;o s&atilde;o algumas, at&eacute; para orelhas
+forasteiras, quanto mais para as do seu molde!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;se a penna f&ocirc;ra varinha de
+cond&atilde;o! &iexcl;Se, em vez de vos falar do que por
+voc&aacute;bulos se n&atilde;o exprime, podesse apresentar-vos
+l&aacute; de subito, a beberdes com aquelles ares bonissimos
+aquellas cantorias agrestes, sem cultura, sem enxerto, luxuriantes de
+natureza, macias, avelludadas, rescendendo a amor e
+contentamento!<br />
+
+<br />
+
+Comigo fic&aacute;reis todos, que eram minas, as quaes, lavradas
+por m&atilde;os per&iacute;tas, nos podiam abastar de muito
+oiro, que a Arte, batendo-o e cunhando-o a seu modo, poria em facil
+giro com geral proveito.<br />
+
+<br />
+
+O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas
+solid&otilde;es, edificaria como Amphi&atilde;o novas Thebas,
+attrahindo e
+<span class="pagenum">[77]</span>
+congregando com a
+sua lyra penedias e florestas.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Mover-se-ha algum a tental-o? mover&aacute; a final.
+Mas por ora, o therm&oacute;metro do patriotismo assignala graus
+para baixo de zero.<br />
+
+<br />
+
+Para a Poesia nacional antiga e popular j&aacute; alguns olhos se
+teem voltado; e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo,
+querendo Deus; &iquest;mas quando? sabe-o Elle.<br />
+
+<br />
+
+Dos que por ahi a professam, nenhum d&aacute; visos de querer
+levantar-se. Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que
+se admiram em alguns d'elles. &iexcl;Oh que o fizera! e com bem
+pequeno custo, bem farta cor&ocirc;a grange&aacute;ra.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que digo &laquo;custo&raquo;? &iquest;Onde ha
+ahi delicia como &eacute; o viajar ca&ccedil;ador de Artes, por
+toda a parte bem vindo, banquetear-se &aacute; farta com
+agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto
+dos thesoiros que se tomam?<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus
+espa&ccedil;osos ermos, e que lhe dava uma particular
+fei&ccedil;&atilde;o de melancolia mui suave, era a
+extens&atilde;o das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes a
+perder de f&ocirc;lego. &Eacute; donosa coisa;
+m&oacute;rmente pela noite, e ao longe...<br />
+
+<br />
+
+A explica&ccedil;&atilde;o d'esta singular maneira deve ser,
+segundo me parece, o costume de cantarem muitas vezes a s&oacute;s
+por lombas descampadas e cumes de oiteiros, d'onde a voz tem de correr,
+e correr, primeiro que tope com ouvido em que se hosp&eacute;de.
+Outras vezes
+<span class="pagenum">[78]</span>
+&eacute;
+ao-p&eacute; de estr&eacute;pito de aguas,
+que a afogariam a lhe faltar perseveran&ccedil;a. Outras, em
+paragens de eccos, nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si
+mesma namorando.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+De cabe&ccedil;o para cabe&ccedil;o, bem arredados um do outro
+por estirado valle, ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras
+conversando por cantoria; e, gra&ccedil;as a este methodo de irem
+fiando cada syllaba... comprida... comprida... entendiam-se (podendo
+apenas enxergar-se), como se estiveram assentadas m&atilde;o por
+m&atilde;o, e muito manas, &aacute;
+soalheira no seu aido.<br />
+
+<br />
+
+Sustentam-se estas entoadas conversa&ccedil;&otilde;es, em
+prosa inteiramente desatada de rithmo, e n&atilde;o obstante
+rimada, rimada por um modo t&atilde;o ins&oacute;lito como
+facil.<br />
+
+<br />
+
+Exemplo:<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;&Oacute; ia, eu te digo
+&oacute; Maria,<br />
+
+&Oacute; iga, que se tu
+&eacute;s minha amiga,<br />
+
+&Oacute; &aacute;, botes as cabras para
+c&aacute;,<br />
+
+&Oacute; enda para me ajudares a comer a merenda,<br />
+
+&Oacute; eijo, que
+tenho aqui br&ocirc;a e queijo,<br />
+
+&Oacute; &ocirc;as, e umas
+ma&ccedil;ans muito b&ocirc;as.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a
+outra interlocutora fica advertida, de que pode tomar a m&atilde;o
+no colloquio por ter chegado a sua vez.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[79]</span>
+<h4>XIX</h4>
+
+<br />
+
+Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica.
+Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+As geraes mais notaveis (pois at&eacute; agora s&oacute; vimos
+as de cada familia e as de cada aldeia) s&atilde;o: o Anno-bom, o
+Carnaval, a Paschoa, Maio, S. Jo&atilde;o, e o Natal.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O Anno-bom n&atilde;o &eacute; ao presente sen&atilde;o um
+rebate para comesaina rasgada, e se deitar uma can fora.<br />
+
+<br />
+
+As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado,
+j&aacute; l&aacute; v&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Consistiam (archivemos, archivemos, pois que at&eacute; as serras
+ao cabo se desmemor&iacute;am) consistiam em sahirem, logo ao
+romper do primeiro sol do anno os cachopinhos de cada
+povoa&ccedil;&atilde;o, todos em bando, o mais bem arreados que
+podiam, com suas sac&oacute;las, ou alc&ocirc;fas,
+&aacute;s costas, a cantarem de porta em porta, e, percorrido o
+logar, de aldeia em aldeia, at&eacute; se lhes acabar o dia, umas
+trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de campanudos louvores
+&aacute; bizarria do pae ou m&atilde;e de familias, e
+desfechando sempre em requerer alguma chouri&ccedil;a, gallinha, ou
+p&atilde;o branco, para a ajuda do
+<em>refest&ecirc;llo</em>;
+contribui&ccedil;&atilde;o com for&ccedil;a de Lei, mas de
+que todos se desempenhavam &aacute; boa-mente.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[80]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O Carnaval, &eacute; como ainda n&oacute;s por aqui o
+conhecemos nos seus dias aureos, tr&iacute;duo de folia desatada,
+guerra porfiada e bem rida de todos contra cada um, e de cada um contra
+todos.<br />
+
+<br />
+
+S&atilde;o as pulhas, as pe&ccedil;as, os esguichos, os
+p&oacute;s, a laranja<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....que
+derruba o chapeo,</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+de que o bom <a name="n8" id="n8"></a>Filinto com tanta
+saudade se lembrava l&aacute; em
+Par&iacute;s, o rabo-leva de tripas entufadas, a m&atilde;o de
+ferrugem da chamin&eacute; com azeite pelos fucinhos, as
+est&ocirc;pas apegadas &aacute;s costas e incendidas, o vinho
+com sal, as filh&oacute;s com trapos, e todos os mais
+adminiculos, que no
+ritual classico se conteem.<br />
+
+<br />
+
+Por qualquer parte que ent&atilde;o se caminhe, ainda que se
+n&atilde;o veja povoa nem viva alma, duas coisas se
+h&atilde;o-de ouvir infallivelmente: uma &eacute; rir e apupar;
+toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra
+s&atilde;o descargas de espingardaria. Ninguem tem
+ca&ccedil;adeira velha em termos de dar fogo, que n&atilde;o
+saia com ella a salvar.<br />
+
+<br />
+
+N'esta occasi&atilde;o (n&atilde;o sei por qu&ecirc;) o rio
+de S. Mamede parece marcar fronteira entre duas
+na&ccedil;&otilde;es inimigas; a metade
+c&iacute;terior, e a metade ulterior da freguesia, formam dois
+exercitos, que, disposto cada um na sua banda pelos altos mais patentes
+e convisinhos aos seus adversarios, para l&aacute; lhe atira por
+cima da torrente, sem folga nem misericordia, turbilh&otilde;es de
+chascos, de apupos, de rugidos
+<span class="pagenum">[81]</span>
+de buzinas, de buxas accezas, e fumarada. Estremece a terra sob
+os p&eacute;s; retumbam pelo ouco dos valles, pelas refolhadas e
+sinuosas lapas das ribanceiras, os rolantes trov&otilde;es
+centuplicados...<br />
+
+<br />
+
+O Entrudo &eacute;brio, que vai, titubante cavalleiro em derreado
+asninho, visitando as povoa&ccedil;&otilde;es, com barbas
+brancas em faces avinhadas, e canna em punho para se abordoar, facil,
+prasenteiro, com s&eacute;quito de rapaz&iacute;a a abuzinar, e
+de mascarados salt&otilde;es, satyricos, e brutescos, bem
+poder&aacute; ser o pr&oacute;prio Sileno das bacchanaes,
+metamorphoseado pelo tempo, constante parodiador das suas mesmas obras,
+pois n&atilde;o &eacute; necessaria grande
+perspic&aacute;cia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se
+conciliaram diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as
+saturnaes; por embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e
+quejandas (o numero era folgado).<br />
+
+<br />
+
+As pastoras, que n&atilde;o podem deixar por tres dias o gado nos
+red&iacute;s e apriscos, para se estarem regalando ao banquete da
+familia, teem um Carnaval particular, um Carnaval n&oacute;mada e
+silvestre, cosinhado e comido ao ar livre, e a que ellas chamam
+&laquo;o seu g&ocirc;rdo&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+O <em>g&ocirc;rdo</em>, para o qual de
+tempos se andam aparelhando, &eacute; feito por varias d'ellas em
+commum, convidadas e admittidas outras amigas, e algumas vezes tambem
+alguns mo&ccedil;os seus parentes.<br />
+
+<br />
+
+Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um
+g&ocirc;rdo; e ainda agora me est&aacute; sabendo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[82]</span>
+Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso
+de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um
+vest&iacute;bulo de areia parda e fina, &aacute; borda da agua.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n9" id="n9"></a>Nympharum
+domus.....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+n&atilde;o lhes faltando os competentes<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....vivo
+sedilia saxo.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os
+comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria
+folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de
+leite recem-mugido.<br />
+
+<br />
+
+Terminaram com uma dan&ccedil;a no areal, por n&atilde;o haver
+melhor, e debandaram, cada uma atraz do seu gado, quando j&aacute;
+l&aacute; por cima branquejavam estrellas. A fogueira
+servi&ccedil;al l&aacute; ficou sosinha, remirando-se ainda na
+corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as
+levaria.<br />
+
+<br />
+
+Innocentes leviandades s&atilde;o todas estas, e, mais ou menos,
+parecidas com o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas,
+travada com ellas, uma usan&ccedil;a ha ali, que s&oacute; ali
+ha, e que eu aponto, n&atilde;o s&oacute;
+porque me ajuda no retrato d'aquella gente optima, se n&atilde;o
+porque dar&aacute; luz para se entender o poema que a diante vai,
+com o titulo de <em>Domingo gordo dos montanhezes</em>.<br />
+
+<br />
+
+N'este dia, pois, logo de manhan, acodem &aacute; matta de S.
+Sebasti&atilde;o, que j&aacute; sabeis
+orla o passal pela banda do poente, todos os
+<span class="pagenum">[83]</span>
+mo&ccedil;os solteiros da freguesia, a
+plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o qu&ecirc;,
+e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que j&aacute; para
+isso a Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para
+suas terras a folgar.<br />
+
+<br />
+
+Nem o introductor, nem o tempo da introduc&ccedil;&atilde;o
+d'esta pratica, s&atilde;o j&aacute; hoje conhecidos.
+&Eacute; uma tradi&ccedil;&atilde;o piedosa, uma lei moral,
+sem nenhum genero de commina&ccedil;&atilde;o, mas
+t&atilde;o &aacute; risca obedecida, como se as tivera.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute;, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um
+bello exemplo de desinteresse; pois na planta&ccedil;&atilde;o
+quem s&oacute; ganha
+&eacute; a selva, que se dilata, e o Santo, a quem se engrossam os
+rendimentos.<br />
+
+<br />
+
+Se de S. Gon&ccedil;alo ou Santo Antonio f&ocirc;ra a
+capellinha, ou de algum outro Bemaventurado, com fama de
+boa-m&atilde;o para casamentos, ainda se aventaria um motivo
+pessoal para o obsequio; &iexcl;mas S. Sebasti&atilde;o, que
+s&oacute; da peste &eacute; advogado!...<br />
+
+<br />
+
+Seja o que f&ocirc;r: o amavel instituto persev&eacute;ra,
+&iexcl;e oxal&aacute; dure sempre! &iexcl;e
+oxal&aacute; por muitas partes o imitassem!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de
+n&oacute;s outros, bastam duas considera&ccedil;&otilde;es:
+a d'elles &eacute; festa
+do espirito, e mais do corpo; a nossa nem do corpo o &eacute;, nem
+do espirito.<br />
+
+<br />
+
+Digo que &eacute; do espirito a sua, porque a F&eacute; viva
+lhes faz estar vendo ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie
+humana;
+<span class="pagenum">[84]</span>
+e do corpo tambem, porque
+o brodio paschal, op&iacute;paro, rescendente, de viandas
+succulentas e escolhidas, lhes d&aacute; mate &aacute; longa e
+bem jejuada quarentena.<br />
+
+<br />
+
+Move suavemente os cora&ccedil;&otilde;es acompanhar a
+prociss&atilde;o, que da egreja sai depois da Missa cantada, com os
+seus cirios accezos, cantando as aleluias, atravessa o amplo adro
+alcatifado de bordada relva, sombreado das suas cerejeiras
+j&aacute; revestidas, atravessa o passal por entre as alas das
+pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebasti&atilde;o, e se
+espairece ao longe, como uma piedosa exulta&ccedil;&atilde;o,
+por entre os mattos rejuvenescentes.<br />
+
+<br />
+
+O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As
+arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado
+de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha p&ocirc;z por fora
+todas suas galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a
+Natureza parece ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe
+ent&ocirc;am canticos, como os homens, as mulheres, e as
+crean&ccedil;as. A aleluia ress&ocirc;a em toda a parte;
+lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os
+cora&ccedil;&otilde;es ferve o amor de Deus, o amor da
+Natureza, e o amor mutuo.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;que bem que se chegam ali a entender os
+arroubados requebros do Esposo e da Esposa dos Cantares! &iexcl;Oh!
+&iexcl;que permutar de boas-festas! Mal o presumem, os que todas as
+cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um cart&atilde;o
+alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.<br />
+
+<br />
+
+Recolhida a prociss&atilde;o, tornam-se todos
+<span class="pagenum">[85]</span>
+correndo a suas casas, a acabar de as
+p&ocirc;r prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se
+de ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores
+baixellas; crep&iacute;ta o lume na cosinha rev&ocirc;lta;
+id&eacute;ia-se um simulacro de altar, ou se enroupa uma cama de
+lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o senhor Prior, com a
+sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar (quando mais
+n&atilde;o seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da
+familia falta &aacute; porta para receber a aspers&atilde;o de
+agua benta, que elle ao entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras
+rituaes da ben&ccedil;&atilde;o: &laquo;Paz
+a esta casa, e a todos que n'ella moram.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Tal visita&ccedil;&atilde;o, que (j&aacute; se
+v&ecirc;) se n&atilde;o conclue no primeiro, nem muitas vezes,
+no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; n&atilde;o pela moeda
+de prata, de meio tost&atilde;o ou seis vintens, recebida em cada
+fogo; n&atilde;o pelos saccos de folares que se ajuntam; mas pelo
+muito que assim de novo se apertam os vinculos mutuos do Pastor e do
+rebanho.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+No 1.&ordm; de Maio p&otilde;em, &aacute; entrada das
+habita&ccedil;&otilde;es, <em>maias</em>, que
+s&atilde;o ramos de
+sabugueiro e giestas flor&iacute;das; e nos linhares, rocas com
+seus fuzos, carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo
+se fadam a terra e a casa: a terra, para que d&ecirc; linho
+comprido e sedoso; a casa, para que se guarde e mantenha
+pr&oacute;spera.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem n&atilde;o v&ecirc; n'estas maias outra
+degenerada heran&ccedil;a dos nossos antigos senhoreadores?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[86]</span>
+No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo domestico dos seus <em>Lares</em>,
+deuses protectores da poisada, e cujos idolos se tinham junto ao fogo
+da cosinha, ou em nichos por de traz da porta principal. Revestiam-n-os
+de pelle canina; e em monumentos antigos se v&ecirc; ao
+p&eacute; d'estes deuses representado o animal symbolo da
+fidelidade, e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio
+nos seus <em>Fastos</em> nol-o
+descreve. Brindavam-n-os com liba&ccedil;&otilde;es de bom
+comer e beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, j&aacute; de
+flores, e j&aacute; de lan.<br />
+
+<br />
+
+Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois
+acreditavam que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se
+compraziam de habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde
+vivia gente do seu sangue.<br />
+
+<br />
+
+Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do
+mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas.
+Vieram Lares
+<em>viaes</em> (dos caminhos), <em>compitaes</em>
+(das
+encruzilhadas), <em>urbanos</em> (os padroeiros de cada
+cidade), <em>publicos</em> (os mantenedores dos
+publicos edificios), <em>rusticos</em> (os custodios do
+campo),
+<em>hostis</em> (os amparadores contra inimigos),
+<em>marinhos</em> (os guardi&atilde;es dos navios).<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem
+Romanos, se haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de
+suas religiosas praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre
+estrangeiros; e bem boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle
+cahos de poeticissimos desatinos e devassid&otilde;es.
+<span class="pagenum">[87]</span>
+Fazia venerar e amar a
+casa; com a casa, a familia; com a familia, os s&atilde;os costumes
+da crea&ccedil;&atilde;o. Ainda por cima, fazia resplandecer
+luzeiros de esperan&ccedil;a na
+cerra&ccedil;&atilde;o das adversidades; o que d&aacute;
+cora&ccedil;&atilde;o e brios para as resistir.<br />
+
+<br />
+
+Pressupponh&acirc;mos como verisimillimo, e certo, que na romana
+provincia Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que,
+ali&aacute;s, podem ser documentos, al&eacute;m de outros, o
+nome de <em>lareira</em>, geralmente
+conservado ao lastro da chamin&eacute;, e o proprio de
+<em>lar</em>, com que em Traz-os-Montes se chama a corrente
+de ferro, de que pende na cosinha o caldeir&atilde;o sobre a
+fogueira.<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; cada um inferir&aacute; que as
+<em>maias</em> dos meus serranos, festejo que s&oacute;
+&aacute; casa se refere,
+coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como quer que seja,
+o seu linhar (linho por lan), teem, e n&atilde;o podem deixar de
+ter, aquella origem.<br />
+
+<br />
+
+Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito
+christ&atilde;o, ainda mais poetico, chamado das
+<a name="n10" id="n10"></a>Roga&ccedil;&otilde;es ou
+Ladainhas de Maio.<br />
+
+<br />
+
+Os lavradores seguem, com as cabe&ccedil;as descobertas, e
+acompanhando em chusma as entoadas preces da Egreja, a
+prociss&atilde;o, que l&aacute; se vai, humilde, atravez dos
+campos desatados em flor. Imploram as ben&ccedil;&atilde;os do
+Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos
+n&atilde;o devorem a vinha ou se&aacute;ra; que
+intemp&eacute;ries do ar e trovejados granizos n&atilde;o
+derribem mortas as benevolas esperan&ccedil;as dos pomares.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[88]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O S. Jo&atilde;o por larga vespera de semanas se annuncia: cantado
+de dia pelos oiteiros, de noite pelos ser&otilde;es.<br />
+
+<br />
+
+Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que
+se v&atilde;o lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora,
+n&atilde;o sem gra&ccedil;a), que por ali em louvor do Baptista
+se exhalaram outr'ora do seio de poetas desconhecidos.<br />
+
+<br />
+
+A medo me rendo &aacute; tenta&ccedil;&atilde;o urgente de
+as mostrar; que, despojadas da sua melodia, desquitadas das vozes
+t&atilde;o frescas e juven&iacute;s das suas cantoras, e nuas
+dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e sombras
+em pino de ver&atilde;o, trovas taes aqui mal poder&atilde;o
+parecer-se comsigo mesmas.<br />
+
+<br />
+
+Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto n&atilde;o haja
+differen&ccedil;a na substancia, vai tanto, como de uma formosa
+donzella pod&eacute;ra differir o seu cadaver.<br />
+
+<br />
+
+Sem mais precau&ccedil;&otilde;es, eis aqui alguns trechos, que
+no fundo da alma se me est&atilde;o ainda cantando, por entre
+simulacros de figueiras, que entretecem sobreceo verde &aacute;
+fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, n&atilde;o as
+contem; basta que todos elles acertem na cantoria &aacute;s mil
+maravilhas. T&atilde;o pouco embiquem na confian&ccedil;a, com
+que umas rusticasinhas de roca &aacute; cinta tratam o Santo
+Precursor. S&atilde;o amores velhos; n&atilde;o ha que lhes
+dizer.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&#8213;&iquest;San-Jo&atilde;o das
+barbas doiradas,<br />
+
+onde foste
+ter as orvalhadas?<br />
+
+&#8213;Fui as ter &aacute;quellas hortas,<br />
+
+recordar
+aquellas cachopas.<br />
+
+<span class="pagenum">[89]</span>
+<br />
+
+Recordae, recordae, pergui&ccedil;osas,<br />
+
+que da fonte
+j&aacute; veem as formosas,<br />
+
+com as talhas cheias de cravos,<br />
+
+que
+lh'os deram os seus namorados,<br />
+
+com as talhas cheias de flores,<br />
+
+que
+lh'as deram os seus amores.<br />
+
+<br />
+
+San-Jo&atilde;o, rico cavalleiro,<br />
+
+companheiro de Nosso Senhor,<br />
+
+acompanhae a minha alma<br />
+
+quando d'este mundo f&ocirc;r.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;Por que tendes, San-Jo&atilde;o,<br />
+
+esses sapatinhos
+brancos?<br />
+
+&#8213;Para passear &aacute;s mo&ccedil;as<br />
+
+domingos e dias
+santos.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;D'onde vindes, San-Jo&atilde;o,<br />
+
+que assim cheirais
+&aacute; macella?<br />
+
+&#8213;Venho da serra da Estrella,<br />
+
+de fazer uma
+capella.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;D'onde vindes, San-Jo&atilde;o,<br />
+
+pela calma sem
+chapeo?<br />
+
+&#8213;Venho beber agua fresca,<br />
+
+que faz calor l&aacute; no ceo.<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 305px; height: 31px;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Basta, basta, que j&aacute; pressinto ali &aacute; esquina os
+aferidores e malsins da Literatura, que, se me tomam, com isto nas
+m&atilde;os, d&atilde;o comigo do av&ecirc;sso.<br />
+
+<br />
+
+Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes.
+&Aacute; noite accendem fogueiras, dan&ccedil;am, cantam,
+namoram, e galhofeiam em de redor d'ellas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[90]</span>
+&Aacute; meia noite, quebram ovos para os exp&ocirc;rem ao
+sereno, que lhes ha-de n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu
+futuro, e chamuscam as hervas e flores, que sabem de constancias e
+inconstancias.<br />
+
+<br />
+
+V&atilde;o nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes
+virtudes e preservativos; mas especialmente o de S. Jo&atilde;o do
+Monte, &aacute; conta do seu nome bento.<br />
+
+<br />
+
+Sobre a madrugada v&atilde;o lavar seus gados, e &aacute; volta
+colhem ramos orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram
+de raio; trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os
+partos, apertando-se nas m&atilde;os.<br />
+
+<br />
+
+A agua da fonte da manhan de S. Jo&atilde;o &eacute; como a
+primeira que chove em Maio: torna o car&atilde;o formoso.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo
+descoberto, n&atilde;o correndo o tempo de invernia. S&atilde;o
+rebordans a granel, entre grande larada de brazido, a estoirarem e a
+acerejar-se, em quanto um farto lombo de cevado rech&iacute;na e
+fumega em vergante espeto de pau, a pingar n'uma telha ou frigideira.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; dia j&aacute; de longe apetecido pelos velhos, pelos
+rapazitos, e pelos visinhos menos folgados, que todos ent&atilde;o
+se convidam.<br />
+
+<br />
+
+Bebe-se, como requer a quadra, que assaz &eacute; j&aacute;
+ent&atilde;o arripiada. Mas... quanto
+mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e para
+a noite, mais se v&atilde;o pendendo com scismadora tristeza os
+animos dos convivas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[91]</span>
+&Aacute; f&eacute; que lhes n&atilde;o falta por
+qu&ecirc;. O dia que ap&oacute;z vem, &eacute; o dos
+finados; dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos,
+para todos quantos, com F&eacute; ou sem ella, possuem um
+entendimento, e meditam.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;E que mais meditabundo que as montanhas! &iexcl;E quem
+mais devaneador e recolhido, que homens acostumados a
+solid&atilde;o, curtidos nas duras realidades da vida, remotos do
+cortes&atilde;o bulicio, embotador pessimo de toda a sensibilidade!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Mal soaram as Ave-Marias, come&ccedil;a dobre funebre, que toda a
+noite n&atilde;o quieta.<br />
+
+<br />
+
+Pela escurid&atilde;o pasmada se devolvem, a longe, a longe,
+at&eacute; se esvaecerem, os tons afflictos, que a nenhuma de
+tantas poisadas deixam de dizer algum segredo de dor, e de encommendar
+algum suffragio. &iexcl;Oh! &iexcl;se
+n&atilde;o se elevar&atilde;o elles, e bem ferventes, exhalados
+pela voz do sangue, pelo amor, pela amisade, pela caridade!<br />
+
+<br />
+
+Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz
+bruxuleia de nenhuma fresta, e j&aacute; nenhuns olhos por ventura
+se descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis
+c&ocirc;ro de Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta,
+pelo meio da povoa&ccedil;&atilde;o, a supplicar em nome dos
+penados de alem mundo, que para si n&atilde;o podem requerer,
+esmola de ora&ccedil;&otilde;es, refrigerio para os ardores que
+l&aacute; padecem.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o ha seio t&atilde;o escudado, que um santo horror o
+n&atilde;o estreme&ccedil;a; egoismo t&atilde;o
+empedrenido, que sustenha as lagrimas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span>
+...At&eacute; que o solemne preg&atilde;o transp&otilde;e e
+se esvai; e na calada se torna a perceber o dobre longinquo da egreja.<br />
+
+<br />
+
+Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o
+interior.<br />
+
+<br />
+
+Estes devotos cantores, que ninguem v&ecirc;, mas que
+v&atilde;o de aldeia em aldeia
+<em>amentando</em> as almas, arrastavam d'antes
+grilh&otilde;es aos p&eacute;s, o que ainda augmentava o pavor
+do seu preg&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Com grilh&otilde;es ou sem elles, &iquest;despertadores taes
+quem entre n&oacute;s os soffreria? Por
+l&aacute; querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, como
+exactores que s&atilde;o de um
+tributo da outra vida.<br />
+
+<br />
+
+Desde o romper d'alva n&atilde;o descan&ccedil;a a egreja de
+absorver povo. Todos os caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques,
+todas as ladeiras, todos os valles, todos os oiteiros, o brotam e
+expedem &aacute; porfia.<br />
+
+<br />
+
+Vem o anci&atilde;o alquebrado, atido ao bord&atilde;o; o
+mo&ccedil;o em flor de annos; a donzella; os irm&atilde;os,
+pequeninos e j&aacute; orph&atilde;os,
+pela m&atilde;o de sua m&atilde;e; todos graves, cuidosos,
+taciturnos; todos l&aacute; por dentro orando; todos anhelando
+irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali
+assistirem ao incruento Sacrificio.<br />
+
+<br />
+
+Todos os confessionarios n'este dia est&atilde;o apinhados, e o
+semi-festim da vespera &eacute; quasi geralmente descontado pelo
+jejum mais rigoroso.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Emfim vem o Natal.<br />
+
+<br />
+
+Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas
+christianissima
+<span class="pagenum">[93]</span>
+(quizera eu dizer)
+do Christianismo, nenhures cabe t&atilde;o em cheio, nem tanto com
+os animos e cora&ccedil;&otilde;es se coaduna, de veras crida e
+com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.<br />
+
+<br />
+
+V&iacute;reis o Pres&eacute;pio de Belem, n&atilde;o
+j&aacute; por caprichosas artes remedado, mas em t&atilde;o
+cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a adoral
+o.<br />
+
+<br />
+
+Diss&eacute;reis que ao soar da ave da meia-noite,
+desferiu v&ocirc;o d'entre as estrellas, de que se
+cor&ocirc;a a montanha, c&ocirc;ro de Anjos a dar rebate aos
+pegureiros com o preg&atilde;o de &laquo;Gloria e
+Paz&raquo;, com a nova de ser nascido o Desejado das gentes.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Tanto &eacute; o ruido de alegres passos e falas, que de
+toda a parte confluem pelo escuro em demanda do Menino!<br />
+
+<br />
+
+Cada qual lhe traz nas m&atilde;os o seu presente, e o mais valioso
+dentro n'alma.<br />
+
+<br />
+
+O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par
+aberto, &eacute; a santa Gruta.<br />
+
+<br />
+
+L&aacute; no t&ocirc;po, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o
+Divino Infante.<br />
+
+<br />
+
+O adro v&ecirc; dan&ccedil;ar as rondas de camponezes
+&aacute; roda de um monte de arvores accezas, ao som da
+gaita e do tamboril.<br />
+
+<br />
+
+Os sinos doidejam de alvoro&ccedil;o na torre illuminada.<br />
+
+<br />
+
+Sob o tecto religioso se alternam em dois c&oacute;ros feminis as
+cantigas da benta noite. Cada um d'estes c&oacute;ros &eacute;
+exclusivamente composto das moradoras de cada margem do rio que biparte
+a freguesia. Vai entre ellas a mesma rivalidade, que j&aacute;
+descobrimos entre
+<span class="pagenum"> <a name="p94" id="p94">[94]</a></span>
+os homens,
+quando no Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um
+estrepitoso arrem&ecirc;do de combate.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; a qual dos bandos trar&aacute; mais formosas quadras
+para entretecer com as antigas, mais argentinas falas e melhores
+requebros para as gargantear. Cuida-se ouvir musica de Seraphins;
+exulta o cora&ccedil;&atilde;o; e, sem vergonha, se
+est&atilde;o sentindo as faces humedecer-se.<br />
+
+<br />
+
+Por meio d'estes c&oacute;ros, cujos enthusiasmos devotos como que
+se est&atilde;o vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em
+bra&ccedil;os do Parocho o Menino, a fazer colheita de beijos e
+louvores, de supplicas e offertas. Ent&atilde;o &eacute; que
+surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e
+&aacute; porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de
+ordinario, a todos, os mui primorosos artefactos de pinh&otilde;es
+e frutos s&ecirc;ccos.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;que invejas para as crean&ccedil;as, que
+ali pendem ao collo de suas m&atilde;es! v&atilde;o-se-lhes os
+olhos, e os sorrisos, e as m&atilde;osinhas, ap&oacute;z
+lindezas t&atilde;o guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se
+destinam, com os seus olhos t&atilde;o azues, a bocca
+t&atilde;o amorosa, as faces t&atilde;o coradas como as
+ma&ccedil;ans que se lhe offerecem, &eacute; j&aacute; a
+Elle que s&oacute;
+cubi&ccedil;am; e s&oacute; choram, porque o n&atilde;o
+deixam
+<a href="#e6">acompanhal-o</a>.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Taes s&atilde;o as mais notaveis festas d'esta singela gente.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem
+a destruir-lh'as com lhe tirarem a F&eacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[95]</span>
+&Eacute; uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na
+resposta.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Assim cr&ecirc;em, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza,
+nobres de humildade, e pela rudez ainda s&atilde;os, os moradores
+de S. Mamede da Castanheira do Vouga.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XX</h4>
+
+<br />
+
+Que eu por l&aacute; versejasse, j&aacute; a ninguem
+ficar&aacute; sendo maravilha; antes, sim, a pod&eacute;ra ser,
+que de tal assumpto s&oacute; tal volume se estillasse; mas as
+ras&otilde;es d'isso de si mesmas se confessam.<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; eu disse, que os annos que por l&aacute; sumi, me
+foram totalmente desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri
+possivel, que houvessemos j&aacute;mais, eu nem coisa minha, de
+reparecer no mundo.<br />
+
+<br />
+
+Assim, s&oacute; por desabhorrimento &eacute; que poetava de
+longe em longe; isto &eacute;: poetava por f&oacute;ra, e no
+papel, que no cora&ccedil;&atilde;o e no
+animo estava eu comigo a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de
+leve me acreditar&atilde;o os que d'isto sabem) n&atilde;o foi
+a que se escreveu, se n&atilde;o a que deslizou suave, entre
+sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, suspira e
+medita.<br />
+
+<br />
+
+Escrever s&oacute; para si, n&atilde;o sei que ninguem escreva;
+&eacute; trabalho sup&eacute;rfluo, e que, se
+d&aacute; fruto, o d&aacute; ruim, que de p&ecirc;co e
+descorado nos desconsola.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[96]</span>
+&iquest;Pois qual &eacute;, em boa verdade, o pensamento, ou
+affecto, que no trabalho de se corporificar para sahir a lume e correr
+por m&atilde;os e olhos, n&atilde;o perde muito do seu
+primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua gra&ccedil;a, ou do seu
+calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja que
+era seu, e que era elle mesmo em grande parte?<br />
+
+<br />
+
+Isto dos livros n&atilde;o s&atilde;o sen&atilde;o uns
+retratos mortos, umas toadas, reflexos, e sombras, de festas que se
+fazem n'um interior, e de que os passageiros, por mais que se lhes
+abram as janellas, e que elles appliquem os olhos e ouvidos,
+s&oacute; podem perceber a totalidade, e conjecturar as
+circumstancias.<br />
+
+<br />
+
+O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros
+de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda
+para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder,
+&aacute;s concep&ccedil;&otilde;es e aos affectos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Outra explica&ccedil;&atilde;o da exiguidade, e tenuidade (que
+peor &eacute;) do livrinho, est&aacute; em que a maior e melhor
+parte dos cond&otilde;es e feiti&ccedil;os da montanha, que ora
+c&aacute; ao longe me apparecem t&atilde;o inteiros e gentis,
+ent&atilde;o que eu os tratava e d'elles vivia colmado, me
+n&atilde;o faziam os effeitos, que atrav&eacute;z dos vidros da
+saudade me produzem.<br />
+
+<br />
+
+Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mist&eacute;r havel-o
+perdido; que j&aacute; por isso dizia Rousseau, que nunca
+t&atilde;o bem falaria da liberdade, como entre ferros da Bastilha.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[97]</span>
+&iquest;Onde &eacute; que nos ri a imagem da primavera a
+abrolhar? &eacute; no meio do outono a desvestir-se. &iquest;A
+do ver&atilde;o, que tress&uacute;a afogueado? no inverno, que
+tirita e se encanece de geada.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros,
+n&atilde;o &eacute; paraiso, para onde todos, todos, nos
+quiz&eacute;ramos tornar?<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Que bem que o Poeta cantava: &laquo;Aventurados em summo
+extremo os camponezes, se acabassem de entender os bens que
+logram!&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar,
+&eacute; este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a
+instante m'o explica.<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e
+collo descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando
+importunas obriga&ccedil;&otilde;es me veem ripar e consumir as
+semanas a dia e dia, os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto.
+<br />
+
+<br />
+
+Pela conversa&ccedil;&atilde;o pacifica das moitas e torrentes
+me definho, quando, no mais fortuito, no mais leve, tratar com homens
+me aguardam sempre desencantamentos, desconsolos, ras&otilde;es
+para os desprezar, ou para fugil-os.<br />
+
+<br />
+
+L&aacute;, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor.
+Aqui, pelo contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.<br />
+
+<br />
+
+L&aacute;, a benevolencia &eacute; semente de benevolencia,
+para dar cento por um. Aqui, &eacute; gr&atilde;o que sempre
+degen&eacute;ra, ou n&atilde;o germina, ou brota villans
+ingratid&otilde;es, que envergonham at&eacute; a quem as ouve.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[98]</span>
+L&aacute;, o folgar &eacute; franco, e as festas s&atilde;o
+festas. Aqui, o folgar &eacute; esca&ccedil;o e fingido; as
+festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de gladiadores,
+que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns aos outros, e
+aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.<br />
+
+<br />
+
+O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavonear&aacute; pelo
+mais cortes&atilde;o e de maior donaire; far-lhe-h&atilde;o
+roda; e em vez de o esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como
+o Iscariotes por sua m&atilde;o, para escarmento a sevandijas e
+li&ccedil;&atilde;o a paes que est&atilde;o creando feras
+bravas para andarem s&ocirc;ltas no povoado, h&atilde;o-de
+applaudil-o por medo, apertar lhe a
+m&atilde;o
+dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, com sabel-o
+expulso de muitas portas.<br />
+
+<br />
+
+Acobertam-se l&aacute; e ufanam-se as terras com os linhares, para
+o que Deus os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia,
+para mac&iacute;o agazalho nas horas do somno ou da
+doen&ccedil;a, para gala candida dos altares, e a final para
+curativo de feridas.<br />
+
+<br />
+
+Ora, &iquest;que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao
+alvorecer de Maio, a sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do
+seu linho, a cabo de t&atilde;o bons servi&ccedil;os, poderia
+vir ainda a converter-se em papel para a nossa Imprensa, isto
+&eacute;, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e absurdo, a
+ignorancia ou maldade pod&eacute;rem delirar, em ventilador de
+descredito e odios, em disseminador de todos os principios de
+dissolu&ccedil;&atilde;o,
+j&aacute; moral, e j&aacute; politica?!
+&iexcl;P&ocirc;r-lhe ella a
+sua roca para ben&ccedil;&atilde;o! ella, a boa filha das
+serras,
+<span class="pagenum">[99]</span>
+f&ecirc;mea sincera e verdadeira, cora&ccedil;&atilde;o
+lavado, animo propenso em tudo para o bem! &iexcl;P&ocirc;r-lhe
+ella encamisada e flor&iacute;da a sua roca, a sua casta e alegre
+companheira, a que t&atilde;o santas maximas e t&atilde;o
+formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar &aacute; sementeira
+o fogo, ou amaldi&ccedil;oal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que
+vale o mesmo.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXI</h4>
+
+<br />
+
+&iexcl;Que de vantagens para o ermo n&atilde;o s&atilde;o
+todas estas!<br />
+
+<br />
+
+E no gosal-as, &iexcl;que assumpto inexhaurivel para um engenho bem
+nascido!<br />
+
+<br />
+
+Sim; mas, torno a dizel-o, &eacute; em distancia de
+espa&ccedil;o e tempo, e pela
+contraposi&ccedil;&atilde;o, que se conhecem. &iexcl;E eu
+malbaratei quasi tudo isso!...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3 tinyl">........ munera nondum<br />
+
+Intellecta deum!....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Havia de ser agora, depois de t&atilde;o prolixo, de t&atilde;o
+quebrantador martyrio da experiencia,<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3 tinyl"><a name="n11" id="n11"></a>.....
+Oh ubi campi!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Como me n&atilde;o agarr&aacute;ra, com raizes mais
+fundas e tenazes que o meu cedro, ao ch&atilde;o da vida facil,
+innocente, e obscura! &iexcl;Como n&atilde;o
+borbot&aacute;ra em hymnos o meu jubilo! &iexcl;Como
+n&atilde;o saud&aacute;ra com lagrimas de
+gratid&atilde;o a aurora, tornando a encontral-a! &iexcl;Que
+n&atilde;o palr&aacute;ra com as torrentes! &iexcl;Que
+noites
+<span class="pagenum">[100]</span>
+desveladas sob o
+pavilh&atilde;o estrellado e vastissimo da montanha!<br />
+
+<br />
+
+Em vez de
+rebuscar (como agora me foi for&ccedil;ado) para esbo&ccedil;ar
+este painel noticias de logares, e at&eacute; de usos, tudo eu
+mesmo visit&aacute;ra com devo&ccedil;&atilde;o de
+peregrino; tudo
+revolv&ecirc;ra; com tudo me identific&aacute;ra.<br />
+
+<br />
+
+As saudades, que de l&aacute; para aqui me est&atilde;o
+salteando, d'aqui para l&aacute; j&aacute; n&atilde;o
+atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira
+sar&ccedil;a onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me
+perdessem logo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&#8213;O abdicar&#8213;dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro
+e hortel&atilde;o de Salona&#8213;o abdicar &eacute; o
+come&ccedil;o do viver.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Quantos dos que desaprenderam no rega&ccedil;o espinhoso
+da fortuna o rir, o dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na
+primeira hora que empunhassem, com animo feito, uma rabi&ccedil;a
+ou um foicinho!<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Se n&atilde;o ha-de ser inefavel o abdicar muito, e
+at&eacute; imperios romanos, como elle, quando renunciar o pouco, o
+quasi nada, que se tem de cidade.... s&oacute; de o cuidar, tanto
+namora a phantasia!<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Se jamais vir&aacute; tempo de eu poisar em
+torr&atilde;o meu, debaixo de sombras minhas, a cabe&ccedil;a
+encanecida e regalada!<br />
+
+<br />
+
+Uma barraca de poucas bra&ccedil;as, mas revestida de rosas e
+limas, como o presbyterio. &Aacute; roda d'ella, tanto de fazenda,
+quanto o filhinho mais pequeno atravessasse correndo de um
+f&ocirc;lego. Mas isto em solid&atilde;o bem
+solid&atilde;o,
+<span class="pagenum">[101]</span>
+onde s&oacute; os
+astros me enxergassem,
+s&oacute; as esta&ccedil;&otilde;es me visitassem, e da
+banda do mundo nada me chegasse, sen&atilde;o o vento,
+j&aacute; expurgado e esquecido de humanas vozes.<br />
+
+<br />
+
+Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio
+e reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.<br />
+
+<br />
+
+Ahi me reverdec&ecirc;ram o cora&ccedil;&atilde;o e mais o
+espirito, que me elles por c&aacute; trazem t&atilde;o
+lastimosamente desfloridos e murchos.<br />
+
+<br />
+
+Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol
+remo&ccedil;ador de quanto existe.<br />
+
+<br />
+
+A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa
+e&oacute;lia entre jasmineiros, pendente em hombral de gruta
+&aacute;s vira&ccedil;&otilde;es da primavera.<br />
+
+<br />
+
+Ainda &aacute; farta me ving&aacute;ra dos tantos annos, que em
+tarefas eph&eacute;meras e sem gloria, posto que n&atilde;o sem
+consciencia e diligencia, se me desbarataram na gal&eacute; da
+Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) nas palhas d'essa
+doidinha, que a si mesma se ven&eacute;ra por soberana do Universo;
+doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; me n&atilde;o rira d'ella, quando me lembrasse que me
+enguliu, com os annos que me tomou, outros tantos da minha existencia
+para diante; pois em cada tomo de periodico, sincera e honradamente
+redigido, se podia escrever este epitaphio: <em>Aqui jaz um anno
+de fadiga e dois de vida de.... Orae por elle</em>. <sup> <a href="#nt4">[4]</a></sup>
+<span class="pagenum">[102]</span>
+Vendem-se ainda primogenituras
+por menos que prato de lentilhas.<br />
+
+<br />
+
+Ving&aacute;ra-me (&iexcl;oh! &iexcl;se me
+ving&aacute;ra!) de t&atilde;o bons dias mallogrados; e ainda
+por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes,
+appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os
+seus do desterro, aviar&iacute;a eu os meus do meu eden.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n12" id="n12"></a>Parve,
+nec invideo, sine
+me, liber, ibis in Urbem.<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus
+gostos e desejos?&#8213;dir&aacute; (e ha-de dizer) algum d'estes que
+sabemos, que nunca faltam, escoimadores
+<em>ex-officio</em> do alheio.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor meu,&#8213;lhe respondo eu j&aacute;:&#8213;pois &eacute; por
+isso mesmo, de n&atilde;o passarem de fabula os meus gostos e
+desejos, que se me ha-de relevar o dar-lhes eu largas no papel.<br />
+
+<br />
+
+Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal,
+coroados de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar
+do Empyrio a sua Jerusalem abra&ccedil;ada de muros de oiro, o
+tempo que n'estas palavras gasto aproveitara-o melhor, em correr para o
+meu refugio, beijal-o, replantal-o,
+aformosental-o. E em l&aacute;
+vindo o flor&iacute;do Maio, ride-vos de pag&atilde;o que
+brindasse os seus lares com mais f&eacute; ou egual amor.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;A liberdade!... &iquest;Onde ha hi liberdade, que nem
+por longe se pare&ccedil;a com a de um
+<span class="pagenum">[103]</span>
+viver reman&ccedil;ado, em casa sem
+numero, nem espias, ao som da Natureza, &aacute; lei da propria
+inclina&ccedil;&atilde;o; sem ouvir horas que nos chamem, sem
+encontrar com glosadores que nos aboquem no ar
+ac&ccedil;&otilde;es e palavras, para nol-as tingirem de branco
+em preto; nem cahir nas garras de ociosos, que vos
+emprazar&atilde;o para toda uma tarde de Junho, ou toda uma noite
+de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que
+s&atilde;o a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de
+abhorrimento; seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de
+quem vos n&atilde;o vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido,
+refulgente epigramma de esmalte contra meritos e virtudes; e de noite,
+interrompido na medita&ccedil;&atilde;o, ou cortado no melhor
+do somno, pelo retroar de carroagens, que em fluxo e refluxo continuo
+levam e trazem, sempre a correrem para nada, pygmeus,
+histri&otilde;es, da far&ccedil;a s&eacute;ria d'este
+mundo?<br />
+
+<br />
+
+Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura,
+ennobrece, e concil&iacute;a os homens, na montanha encontrareis
+mais depressa
+coisa a ella parecida, do que n&atilde;o por estas
+almota&ccedil;adas metr&oacute;poles, onde se blasona que ella
+tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre s&atilde;o festas
+acompanhadas de vinte org&atilde;os, a entoarem solfas diversas ao
+mesmo tempo: este, o <em>Te Deum</em>; aquelle, o <em>De
+profundis</em>; um, o
+<em>Quomodo cecidit civitas plena populo</em>; outro, o
+<em>Cantemus Domino</em>; qual, o <em>Miseremini
+mei</em>; qual, o <em>Ecce sacerdos magnus</em>.<br />
+
+<br />
+
+Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade,
+derrubaram-n-a do seu
+<span class="pagenum">[104]</span>
+pedestal
+as aguas do diluvio de No&eacute;, quando arrojavam cada coisa para
+seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o pedestal razo, com o
+formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha de ser ermo
+pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. Aqui,
+preg&ocirc;am-n-a; l&aacute; a disfrutam. Assim vai tudo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+E quando n&atilde;o, mettei bem por dentro a m&atilde;o na
+consciencia; e, deixado o palavr&oacute;rio que n&atilde;o
+s&ocirc;a muito sen&atilde;o por ser vazio
+(como tambor de foli&otilde;es), dizei-me, ou dizei-o a
+v&oacute;s mesmos: &iquest;Quem mais livre, que homem que
+desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, e
+n&atilde;o porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem
+alvoroto de pra&ccedil;as, e reboli&ccedil;o de vizinhos, pois
+diante de suas janellas o que s&oacute; se meneia e conversa
+s&atilde;o arvores, e por cima do seu tecto n&atilde;o moram
+sen&atilde;o hervas, que mal ciciam, e s&oacute; recebem de
+visitas passarinhos ou borboletas?<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem mais livre?<br />
+
+<br />
+
+Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu,
+sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o
+cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos
+convites. &iquest;Quem mais livre?<br />
+
+<br />
+
+Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as
+occupa&ccedil;&otilde;es de todo o dia. &iquest;Quem mais
+livre?<br />
+
+<br />
+
+Entre o trabalhar, que lhe grangeia for&ccedil;as, saude, bons
+somnos, p&atilde;o, e para conduto um
+<span class="pagenum">[105]</span>
+apetite desenganado, entre o trabalhar,
+repito, canta, ou traz o espirito a monte, a sabor de suas
+chym&eacute;ras (que tambem as tem como qualquer outro); e
+&eacute; este o mais invejavel privilegio do trabalho corporal,
+sobre tudo do que tem por materia prima a terra: n&atilde;o
+captivar sen&atilde;o os bra&ccedil;os; cavando,
+podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da obra, estar armando
+doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir com os companheiros,
+ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a alegria que se
+esconde.<br />
+
+<br />
+
+Este <em>deus in nobis</em>, unica das
+divindades campestres em que se pode crer, perguntae se n&atilde;o
+ser&aacute; para muitas invejas aos taciturnos enxames que pejam
+escrit&oacute;rios e secretar&iacute;as; perguntae-o a quasi
+todos os que remam &aacute; consciencia o seu remo na
+gal&eacute; baloi&ccedil;osa do Estado. &iquest;Quem mais
+livre?<br />
+
+<br />
+
+Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o
+meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pesco&ccedil;o,
+para folgar entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de
+coser ao lume que o aquece. N&atilde;o tem de ir fazer sala a
+ninguem; respira a peito cheio; n&atilde;o ha que ciar se de mulher
+e filhas, que
+n&atilde;o d&aacute; a terra operas nem bailes; filhas e mulher
+&aacute; roda lhe ser&ocirc;am, t&atilde;o satisfeitas como
+elle. N&atilde;o se levanta ali jogo, que, por
+tenta&ccedil;&atilde;o ou falso pondonor, o obrigue a
+p&ocirc;r n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida.
+N&atilde;o o compellem a ajudar com desatinos seus os alvitristas
+regedores do mundo em s&ecirc;cco; nem mesmo a ouvir ler, n'uma
+coisa mal-cheirosa chamada periodico (especie de cogumellos
+<span class="pagenum">[106]</span>
+da Imprensa, em que entre os
+n&atilde;o mal&eacute;ficos tantos ha de sapo), o artigo
+famoso, no qual, sem qu&ecirc; nem para qu&ecirc;, lhe levantam
+falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do chylo. Quem
+n&atilde;o tem com que incite invejas, seguro est&aacute; de
+vis praguentos. &iquest;Quem, finalmente, mais livre?<br />
+
+<br />
+
+Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas
+destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre n&atilde;o
+creal-os o sitio, nada reluz na poisada que os attr&aacute;ia.<br />
+
+<br />
+
+Entretanto lhe v&atilde;o caladamente amadurecendo os
+p&atilde;es para a tulha, o vinho para a adega, o azeite e os
+frutos para a dispensa, a hortali&ccedil;a para a panellinha de
+barro, as filhas para o casamento, os rapazes para lhe pagarem na
+velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o Ceo, onde
+cr&ecirc;em de f&eacute; que os est&atilde;o seus parentes
+esperando.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Ent&atilde;o, ser&aacute;, ou n&atilde;o
+ser&aacute;, este um viver dez vezes mais livre e afortunado que o
+nosso? Pois n&atilde;o disse eu d'elle tudo que poderia, nem o
+direi, ainda que j&aacute; talvez me hajam de arguir de prolixo,
+que n&atilde;o deixei na mat&eacute;ria udo nem
+miudo; &iexcl;como se miudos houvera no que s&atilde;o
+condi&ccedil;&otilde;es de boa
+ventura!<br />
+
+<br />
+
+Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu
+proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao
+cora&ccedil;&atilde;o de alguns d'estes, que vivem na
+C&ocirc;rte por fadario, por vezo, ou por inercia, sempre
+mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou podendo, se uma
+hora olhassem
+<span class="pagenum">[107]</span>
+por si, adquirir, sem
+nenhuma difficuldade, o que eu, e outros taes, t&atilde;o
+baldadamente supplicamos &aacute; fortuna: uma vivenda campestre,
+uma existencia natural, serena, commoda, florescente, risonha para a
+pessoa, dadivosa e exemplar para os visinhos, manancial de riqueza
+privada e publica, abonadora de bons costumes, e de afortunada
+descendencia; uma existencia, em summa, que, a de mais de retemperar
+corpo, animo, e cora&ccedil;&atilde;o, para se n'ella
+saborearem,
+at&eacute; aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto,
+quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o
+medicinalissimo <em>Livro da Solid&atilde;o</em> do
+<a name="n13" id="n13"></a>Doutor Zimmermann. Aprenderiam a
+perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a
+embellezarem-se n'ella, a serem e a fazerem venturosos, quanto
+&eacute; dado havel-os n'este mundo t&atilde;o instavel,
+t&atilde;o fugidio, t&atilde;o calabreado de bens e males.<br />
+
+<br />
+
+O homem na sociedade &eacute; um instrumento, que se gasta e quebra
+servindo; na solid&atilde;o &eacute; um homem. Na sociedade,
+&eacute; uma
+part&iacute;cula irresistivelmente arrebatada n'um redemoinho; na
+solid&atilde;o um todo quieto.<br />
+
+<br />
+
+Puericia, edade de oiro da vida, n&atilde;o torna jamais por onde
+uma vez passou; mas na solid&atilde;o se esconde ainda uma sombra
+d'ella; porque o homem, redimido dos cepos do mundo, e f&ocirc;rro
+das humanas tirannias, se faz em algum modo semelhante &aacute;
+crean&ccedil;a;
+<span class="pagenum">[108]</span>
+readquire
+o que quer que seja da sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus
+gostos, dos seus brincos.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem se lembraria de p&ocirc;r um barco de
+corti&ccedil;a (ainda que de seu natural tivesse o ousal-o) n'um
+tanque do <a name="n14" id="n14"></a>Passeio publico,
+cercado dos fumantes do Marrare, e dos
+collaboradores dos periodicos? &iquest;quem o ousaria, mas que
+fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa,
+at&eacute; s&oacute; para si, faz d'isso; e mais se encanta em
+o fazer, que um rica&ccedil;o em torrear palacios.<br />
+
+<br />
+
+Em quanto d&aacute; tempo aos passaros para irem picar no
+c&ecirc;vo das armadilhas que lhes andou dispondo, edifica
+&aacute; borda de um arroio uma azenha de dois palmos, com seu
+rodizio de canna a espadanar. S&oacute; no v&ecirc;l-o voltear,
+respingando alj&ocirc;fares pelos ares, tem entretenimento para
+horas.<br />
+
+<br />
+
+Alevanta ao p&eacute; uns pa&ccedil;os nobres, que se encheriam
+com a familia de um coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva,
+como Werther e Hugo se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e
+reinos de anim&aacute;lculos, em que s&oacute; o mancebinho
+muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam enlevar.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;A solid&atilde;o! &iexcl;a solid&atilde;o!...
+provae-a, sequer, affligidos do mundo, e pregoareis d'ella o que eu me
+n&atilde;o affoito a encarecer-vos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Um s&oacute; achaque hei-de eu imp&ocirc;r &aacute; boa da
+solid&atilde;o, &aacute; gentil namorada de Rousseau, de
+Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos;
+<span class="pagenum">[109]</span>
+e vem a ser: que, pois nos descalleja o
+cora&ccedil;&atilde;o, banhado nas suavidades da m&atilde;e
+Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos
+detrai, assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas,
+quando n&atilde;o as podemos extirpar. No ermo ress&ocirc;am
+mais alto os gemidos, como na calada da noite se d&atilde;o a ouvir
+mais claras as vozes.<br />
+
+<br />
+
+Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita
+colheita, o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos
+enfermos, quizera-se ter m&atilde;os de Midas para acudir a tudo
+aquillo; e o cora&ccedil;&atilde;o, que n&atilde;o tem para
+dar sen&atilde;o suspiros, no fundo do peito se confrange todo, e
+se espeda&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Cada uma d'aquellas curas dependeria de t&atilde;o
+pouco! &iexcl;ser&iacute;a t&atilde;o
+festejada! &iexcl;tantos effeitos afortunados produziria!
+&iexcl;deixaria, por cor&ocirc;a de beneficios, t&atilde;o
+sinceros, t&atilde;o
+duradoiros agradecimentos!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Numerosas, numerosissimas, s&atilde;o as coisas das cidades, que
+d'aquellas alturas se n&atilde;o percebem; mas a que menos de todas
+se perceb&ecirc;ra &eacute; o cora&ccedil;&atilde;o
+metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus
+ouvidos que s&oacute; vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
+terrestre, e ferrolham-n-a a sete
+chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, c
+Numerosas, numerosissimas, s&atilde;o as coisas das cidades, que
+d'aquellas alturas se n&atilde;o percebem; mas a que menos de todas
+se perceb&ecirc;ra &eacute; o cora&ccedil;&atilde;o
+metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus
+ouvidos que s&oacute; vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
+terrestre, e ferrolham-n-a a sete
+chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, conquistar a unica
+invejavel gloria, emendando os erros
+<span class="pagenum">[110]</span>
+da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o sim, que haveria que se lhes invejar.<br />
+
+<br />
+
+D&ocirc;r d'alma &eacute;, na verdade, n&atilde;o poder
+homem na solid&atilde;o pagar por estes, e por si mesmo, dividas
+grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, l&aacute; estende os
+bra&ccedil;os valedores at&eacute; onde lhe &eacute; dado.
+Onde
+n&atilde;o chega a remediar com obras, ajuda com o bom conselho,
+com as recommendac&otilde;es poderosas, com as
+esperan&ccedil;as, com a presen&ccedil;a, com a
+unc&ccedil;&atilde;o da palavra amigavel, com o deixar correr
+sobre a ferida o balsamico das lagrimas. Assim, se ter&aacute;
+sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo trabalhos, e no
+seio cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXII</h4>
+
+<br />
+
+Isto presenciei eu:<br />
+
+<br />
+
+O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural
+pejo me veda transladar louvores, que por l&aacute; se
+l&ecirc;em em todos os peitos, contava entre as primeiras de suas
+ditas a beneficencia, que n&atilde;o p&aacute;ra onde se lhe
+exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo Bispo
+Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem ainda
+para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.<br />
+
+<br />
+
+Era para ver (se elle n&atilde;o pos&eacute;ra tanto em
+recatal-a) a alacridade, a s&ocirc;ffrega alacridade, com que ia
+levar aqui um p&atilde;o, que se devorava como vida que em
+realidade era, ali o remedio para a doen&ccedil;a; aos mal avindos,
+a
+<span class="pagenum">[111]</span>
+reconcilia&ccedil;&atilde;o;
+ao ocioso, o convite para
+trabalho; ao orphanado, a paciencia; ao errado, a luz para atinar
+com a senda, e o bord&atilde;o para a seguir; ao moribundo, o
+conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, cunhada de uma banda com a
+effigie do cora&ccedil;&atilde;o, da outra com a da Cruz
+florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se
+camb&iacute;a; o affecto
+fraternal.<br />
+
+<br />
+
+Ali, sim, que &eacute; o ser Parocho.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh officio divinamente instituido, como te h&atilde;o
+degenerado annos frios de descren&ccedil;a e desamor!
+&iexcl;Com que maravilhoso la&ccedil;o
+n&atilde;o cifravas o que de mais nobre, o que de mais amavel, se
+abrange nas ideias da eternidade e nas do mundo!<br />
+
+<br />
+
+O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso
+de elei&ccedil;&atilde;o, elle diffundia ao povo ajoelhado os
+mysterios, os preceitos, os exemplos, as amea&ccedil;as, os
+an&aacute;themas,
+as absolvi&ccedil;&otilde;es, os confortos, e os jubilos. Todos
+os destinos terrestres se formavam, ou passavam, &aacute; sombra
+d'elle.<br />
+
+<br />
+
+Entrados &aacute; vida, encontravamol-o, resplandecente de
+F&eacute;, &aacute; nossa espera diante da fonte da
+Gra&ccedil;a, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos
+purificar.<br />
+
+<br />
+
+Arribados &aacute; edade da ras&atilde;o e dos delirios,
+tornavamol-o a achar na piscina da penitencia para nos restituir, com
+eloquencia affectiva de Ap&oacute;stolo, a foragida paz do
+interior.<br />
+
+<br />
+
+No consorcio, eram as suas m&atilde;os castas as que nos
+entregavam, com ben&ccedil;&atilde;os d'alma e sincera
+prophecia, a m&atilde;o tremente da futura m&atilde;e de nossos
+filhos.<br />
+
+<br />
+
+Nas calamidades publicas, era a sua voz
+<span class="pagenum">[112]</span>
+supplice e crente, e afogada em lagrimas, a que levava, como guia
+segura, o c&ocirc;ro de todas as nossas &aacute;
+presen&ccedil;a do Senhor da Natureza.<br />
+
+<br />
+
+Em nossas dissens&otilde;es domesticas, elle o Anjo da
+concordancia, que primeiro apparecia.<br />
+
+<br />
+
+Nas nossas qu&eacute;das, elle o primeiro bra&ccedil;o que nos
+al&ccedil;ava.<br />
+
+<br />
+
+Nas tribula&ccedil;&otilde;es, elle o nosso mais previsto
+conselheiro.<br />
+
+<br />
+
+Na enfermidade, elle o medico gratuito e n&atilde;o chamado.<br />
+
+<br />
+
+Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e
+aterrada o p&atilde;o, o oleo, e o fardel das esperan&ccedil;as
+para o caminho.<br />
+
+<br />
+
+Elle o que ainda nos seguia, depois que j&aacute; todos os outros
+medicos iam longe, e at&eacute; nossos paes e nossos filhos nos
+deixavam s&oacute;s. Com preces fervorosas nos acompanhava,
+at&eacute; que a terra nos submergisse; e ainda ent&atilde;o
+nos n&atilde;o largava, sen&atilde;o para ir
+instaurar novas preces por n&oacute;s sobre os altares.<br />
+
+<br />
+
+Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com
+quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da
+sua pobreza, sempre paschoas-flor&iacute;das para grandes e
+pequenos,
+s&oacute; temido dos maus, ainda que tambem d'esses respeitado.<br />
+
+<br />
+
+Se carecia de prog&eacute;nie, se n&atilde;o tinha uma esposa,
+elle, que t&atilde;o amenos quadros do casamento sabia apresentar
+aos noivos ao recebel-os, contava por irm&atilde;os e filhos todos
+os seus parochianos; tinha o seu th&aacute;lamo de oiro
+<span class="pagenum">[113]</span>
+a aguardal-o no paraizo,
+regi&atilde;o que todos os dias entrevia atrav&eacute;z das
+folhas do seu brevi&aacute;rio; e, se ainda no
+cora&ccedil;&atilde;o lhe
+podia alguma ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como
+esposa; em quem se rev&iacute;a; que se recreava em ataviar, em
+enriquecer, em lhe adquirir galas de roupas, de sedas, de joias, de
+flores, de perfumes; em cujas festas se remo&ccedil;ava; em cujos
+canticos se desvanecia de misturar a sua voz.<br />
+
+<br />
+
+No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava
+tambem. Se, perante a ara santa a F&eacute; via n'elle um
+representante da Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse
+caracter augusto e sobrehumano.<br />
+
+<br />
+
+A hora em que elle expirava, hora de consterna&ccedil;&atilde;o
+e alaridos para todo um povo, era a unica, talvez, em que pelos
+espiritos fuzilavam alguns relampagos de duvidas sobre a
+justi&ccedil;a e a misericordia do ENTE SUPREMO; duvidas, que a
+bocca do velho emmudecida, que a reprehens&atilde;o dos seus olhos
+fechados, j&aacute; n&atilde;o podia fulminar, mas que a sua
+presen&ccedil;a, mal chegavam a beijar-lhe os p&eacute;s como a
+bemaventurado, promptamente desvanec&igrave;a. Bem se adivinhava,
+ao olhal-o, que a sua morte n&atilde;o era mais que somno; e bem se
+entendia como, ao cabo de t&atilde;o prolixo, de t&atilde;o
+zeloso trabalhar, era ras&atilde;o colher descan&ccedil;o e
+premio, como s&oacute; l&aacute; em cima os pode haver.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e
+prosp&eacute;rrimas da Christandade.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[114]</span>
+De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas
+t&atilde;o raro, que a dedo se apontam; e ainda se n&atilde;o
+h&atilde;o-de crer, se
+n&atilde;o f&ocirc;rem vistos bem por miudo, e contrasteados
+bem de espa&ccedil;o.<br />
+
+<br />
+
+De ninguem &eacute; a culpa, sendo de todos a desgra&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o; de ninguem &eacute; a culpa. O genero humano curte
+sempre algum achaque principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a
+febre da supersti&ccedil;&atilde;o; est&aacute; agora no
+frio da incredulidade &iquest;Que lhe ha-de fazer? jazer-se com
+elle, at&eacute; que do alto lhe venha o remedio.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma
+de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de F&eacute; intrinzeca,
+nem um phantasma.<br />
+
+<br />
+
+A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafec&ecirc;ra,
+pegou-se d'ella, pelo contacto, primeiro &aacute; superior, depois
+&aacute; infima.<br />
+
+<br />
+
+Ha doen&ccedil;as que teem os seus periodos determinados; esta
+entra na conta.<br />
+
+<br />
+
+A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada
+j&aacute; quer ir convalescendo; j&aacute; convalesce em muitas
+partes, se em nenhuma se acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu,
+por isso mesmo, e por ser a mais rude e numerosa, labora no auge da
+enfermidade, e ainda muito longe (segundo todos os sympt&ocirc;mas)
+de se restaurar.<br />
+
+<br />
+
+Hoje o materialismo &eacute; especialmente plebeu.<br />
+
+<br />
+
+Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo
+<span class="pagenum">[115]</span>
+a raio e raio, e descendo manso e
+manso, a luz, que adelga&ccedil;asse, que por derradeiro
+desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam
+tudo.<br />
+
+<br />
+
+Mas nem de l&aacute; baixa, porque por l&aacute; faz ainda
+noite, nem se derrama da Imprensa, de que a mean classe &eacute;
+representante.<br />
+
+<br />
+
+O Poder, fingindo <em>proteger</em>, apenas
+<em>tolera</em> os escassos restos da cren&ccedil;a. Se
+alguma vez lhes d&aacute; considera&ccedil;&atilde;o,
+&eacute;
+quando se lhe ant&oacute;lha que os poder&aacute; empregar, por
+material, para obras politicas a seu modo.<br />
+
+<br />
+
+A Literatura, ou por especula&ccedil;&atilde;o de popularidade,
+ou por extravagancia de muito joven, ou porque o seculo XVIII do
+&laquo;Paiz modelo&raquo; s&oacute; poude chegar
+c&aacute; no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem
+&aacute; unica Religi&atilde;o civilisadora, t&atilde;o
+decepada e desgeitosa se av&eacute;m, que, por entre as suas
+expremidas lagrimas de compunc&ccedil;&atilde;o, se lhe
+est&aacute; vendo voltear por dentro dos labios o seu lembrado
+sorriso de septicismo.<br />
+
+<br />
+
+A sua religiosidade &eacute; um c&aacute;lculo;
+&iexcl;grande mal! &eacute; um c&aacute;lculo transparente;
+&iexcl;mal
+ainda muito mais funesto!<br />
+
+<br />
+
+Reconhece-se que, se de alguma coisa est&aacute; convencida,
+n&atilde;o &eacute; da verdade real e absoluta que diz, mas da
+utilidade (ou necessidade) de que seus ouvintes a acreditem.
+<br />
+
+<br />
+
+Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e
+aque&ccedil;a; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e
+&aacute;s escuras por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro
+para a turba.<br />
+
+<br />
+
+Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante &laquo;o <em>Christo</em>&raquo;
+(como lhe ella sempre chama),
+<span class="pagenum">[116]</span>
+que a sua cabe&ccedil;a ennastrada de loiros n&atilde;o
+fique, mais ou menos, sobre-sahindo &aacute; pendida fronte coroada
+de espinhos.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que poder&aacute; jamais conseguir para verdadeiras
+aleluias da F&eacute; e da Moral, este vaidoso e vanissimo
+apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo do falso nome de
+Christianismo preg&ocirc;a d'elle uma, ou outra, ou muitas, paginas
+desconnexas, reformadas, e adulteradas?<br />
+
+<br />
+
+Quanto entre si concordavam as inspira&ccedil;&otilde;es dos
+quatro Evangelistas, tanto discrepam uns dos outros (e n&atilde;o
+raro de si mesmos) os novos evangelhos d'estes missionarios sem
+miss&atilde;o. &Aacute; prima-vista se averigua que lhes
+fallece a convic&ccedil;&atilde;o, a coherencia, a logica, e a
+unidade. &iquest;Quem se ir&aacute;
+ap&oacute;z taes innovadores? Ninguem.<br />
+
+<br />
+
+Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar s&oacute;
+valeriam para acabar de destruir, se podesse ser destruida a
+Religi&atilde;o de Jesu-Christo.<br />
+
+<br />
+
+A F&eacute; &eacute; uma obra celeste, que nem a sciencia, nem
+a for&ccedil;a, nem o poder da terra tem a minima
+jurisdic&ccedil;&atilde;o para alterar.<br />
+
+<br />
+
+Ou a F&eacute; toda completa, cabal, absoluta, sem um
+&aacute;tomo de menos, sem um &aacute;tomo de mais... ou
+nenhuma F&eacute;. Fraccional-a, decomp&ocirc;l-a, temperal-a
+cada um para o seu paladar, &eacute; pregar-se o homem
+estupidamente n'uma cruz desbenzida, revirado com a cabe&ccedil;a
+para a terra, e os calcanhares contra o Ceo. Em tal caso o
+indifferentismo, e at&eacute; o atheismo, seria menos descommodo e
+mais logico dobradamente.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[117]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto a Literatura assim acode &aacute; obra de Christo, como o
+poderia fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo,
+&iquest;como &eacute; que a trata a autoridade mundana?<br />
+
+<br />
+
+Como se f&ocirc;ra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe,
+protectora desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a
+cabe&ccedil;a despojada do diadema luminoso, diz-lhe que se apegue,
+para n&atilde;o cahir, ao sceptro que a diante lhe caminha.
+&iexcl;Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco roborava os
+thronos com a sua ben&ccedil;&atilde;o, permitte, quasi, que os
+seus inimigos o ludibriem!<br />
+
+<br />
+
+A blasphemia, que vai picar, verme pe&ccedil;onhento, a raiz da
+arvore da vida, d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer
+derramal-a sobre as multid&otilde;es pelo crivo immenso da
+Imprensa, e ficar impune; ou o seu castigo, se por erro lhe cahir o da
+Lei, or&ccedil;ar&aacute; apenas pelo dos crimes leves, e
+indifferentes ao Estado.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+N&atilde;o &eacute; ainda tudo.<br />
+
+<br />
+
+Aos ministros do culto, j&aacute; de si por ventura tibios, como
+filhos e herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra
+j&aacute; meio derretido, luz do mundo j&aacute;
+morti&ccedil;a, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e
+relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo
+os nas temporalidades odiosas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[118]</span>
+Repit&acirc;mol o:
+n&atilde;o &eacute; isto culpa de ninguem, sendo de todos
+desaventura. &Eacute; uma calamidade providencial, que
+l&aacute; se encaminha para fins certamente gloriosos, que
+n&atilde;o podemos enxergar.<br />
+
+<br />
+
+Em Religi&atilde;o, como em Politica, somos n&oacute;s,
+enfatuada gera&ccedil;&atilde;o de hoje,
+mesquinho adub&iacute;o n'um ch&atilde;o semeado, que outros
+h&atilde;o-de ceifar em vindo a quadra.<br />
+
+<br />
+
+Chegar&atilde;o tempos (dil-o o instincto da ras&atilde;o) em
+que os direitos e os deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido
+nome n&atilde;o seja, como pomba timida, empolgado por abutres
+ferozes logo ao abrir o primeiro v&ocirc;o; em que todas as causas
+santas e uteis se conhe&ccedil;am e respeitem; em que nem a
+r&eacute;gia tribu de Jud&aacute; seja, como outr'ora,
+apesinhada pela de Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje,
+mercen&aacute;ria, captiva, e escrava da de Jud&aacute;.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o quando o lenho s&ecirc;cco da Cruz, reflorir, e
+frutear (como a vara do Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de
+alimento, de for&ccedil;as, de esperan&ccedil;a, e de
+felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, ent&atilde;o os
+pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi mendigos, e
+cuja fronte perdeu o sello da elei&ccedil;&atilde;o,
+tornar&atilde;o a assentar ao-p&eacute; da arca
+santa a sua tenda humilde e venerada, n&atilde;o opulenta mas
+dadivosa, tenda pobre e r&ocirc;ta, para que pelas aberturas
+penetrem melhor at&eacute; ao velho os gemidos do mais necessitado
+que elle, e para que os olhos d'elle entrevejam as estrellas.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;como volver&atilde;o a ser bellos os dias
+<span class="pagenum">[119]</span>
+da Egreja acrisolada pelo fogo!
+Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, n&atilde;o
+acredita em malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de
+recommendar aqui, uma verdade, que a sua posi&ccedil;&atilde;o
+d'elles lhes n&atilde;o deixou talvez ainda perceber; verdade
+importante para applica&ccedil;&otilde;es, verdade a cujo
+escurecimento se pode imputar j&aacute; muito e muito damno:<br />
+
+<br />
+
+O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades,
+uma importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e
+prosperidade do Estado, a que nenhuma institui&ccedil;&atilde;o
+humana poderia confrontar a sua.<br />
+
+<br />
+
+Nas cidades &eacute; talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano
+&eacute; quasi um pastor sem rebanho; n&atilde;o conhece as
+ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A ellas, falta-lhes o tempo e a
+vontade para o rodearem; a elle, se para o officio entrou com zelo e
+propositos magnanimos, tudo se lhe veio a acabar com a
+esperan&ccedil;a, e logo a caridade tambem; e a final talvez tambem
+a f&eacute;, mal se inteirou de que todos seus esfor&ccedil;os
+se haviam sempre de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua
+voz, se lograsse vencer o estr&eacute;pito circumfuso,
+s&oacute; serviria para lhe atrahir esc&aacute;rneos e motejos,
+ou de fanatico, ou de tartufo.<br />
+
+<br />
+
+Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e
+absc&ocirc;nditas sobre tudo, ainda
+<span class="pagenum">[120]</span>
+n&atilde;o &eacute; totalmente
+assim. &Aacute; entidade
+abstracta <em>Parocho</em> se conserva, no respeito e
+benevolencia dos subd&iacute;tos, um resto da sua antiga majestade,
+da sua
+ben&eacute;fica influencia, das suas altissimas prerogativas.<br />
+
+<br />
+
+Ainda &eacute; um parente proximo e autorisado de todas as casas,
+uma especie de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos
+Patriarchas, e os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um
+magistrado sem appella&ccedil;&atilde;o para as consciencias;
+um censor, n&atilde;o em nome da Lei (como os de Roma),
+por&eacute;m em nome, e com delega&ccedil;&atilde;o,
+e por inspira&ccedil;&atilde;o, do Espirito de Verdade, com
+quem se cr&ecirc; ter commercio no fundo do santuario. Qualquer que
+seja a sua sciencia, &eacute; a ella que se recorre como
+&aacute; principal.<br />
+
+<br />
+
+Tal &eacute;, repito, a entidade
+<em>Parocho</em> em abstracto.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXIII</h4>
+
+<br />
+
+Isto posto, e acceito por certo, como &eacute;, pergunto: se
+n&atilde;o dever&atilde;o empregar-se as mais incessantes, as
+mais efficazes diligencias, para que o provimento das parochias (das
+rusticas ao menos) recaia sempre em homens de cultivado e provado
+entendimento, de sincera e illustrada F&eacute;, humanos e
+caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel trato.<br />
+
+<br />
+
+Ninguem o negar&aacute;, pois s&atilde;o elles as fontes, que,
+segundo sua qualidade, teem de dessedentar e fertilisar, ou de
+esterilisar e consumir, a terra que os rodeia.<br />
+
+<br />
+
+N'estes agros tempos de cont&iacute;nua
+revolu&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[121]</span>
+e peleja, ou
+porque t&atilde;o momentosa
+pondera&ccedil;&atilde;o n&atilde;o occorresse, ou porque a
+vista, de dentro da cidade, n&atilde;o traspassa os muros d'ella,
+ou porque conveniencias pessoaes e eph&eacute;meras, mas urgentes,
+mas gravissimas, tenham feito postergar
+considera&ccedil;&otilde;es de maior utilidade, mas de effeito
+mais tard&iacute;o; as egrejas ruraes, como as urbanas, jazem, pelo
+commum, peor que ao desamparo: entregues, n&atilde;o como egrejas,
+a homens de ora&ccedil;&atilde;o e de esmola, mas, como torres
+e castellos, a alcaides e capit&atilde;es eleitoraes, que no dia do
+conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! que n&atilde;o sem ras&atilde;o se collocou a
+rixosa urna dos suffragios politicos na extranhada mans&atilde;o
+dos serenos suffragios religiosos. A um clero secularisado, competia um
+templo secularisado tambem.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+E n&atilde;o ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade;
+&eacute; peccado, que todas ellas peccam; ou, para falar com mais
+justi&ccedil;a, &eacute;
+a&ccedil;oite que Deus mette na m&atilde;o de cada uma, quando
+lhe chega a sua hora de eph&eacute;mero triumpho.<br />
+
+<br />
+
+Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, at&eacute;
+&aacute;s mais illusas, como as devemos supp&ocirc;r,
+cordealmente empenhadas na civilisa&ccedil;&atilde;o e no
+progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[122]</span>
+O direito mesmo da Guerra, com ser t&atilde;o largo e licencioso,
+nem tudo permitte. &iquest;Porque n&atilde;o ha-de logo, nas
+suas pelejas, a Politica reconhecer limites, onde o Ceo e a
+ras&atilde;o os teem marcado?<br />
+
+<br />
+
+Combatam se os adversarios; mas n&atilde;o
+se envenenem as aguas; e se a desaven&ccedil;a &eacute; entre
+consanguineos, e em solo commum, n&atilde;o cortemos, para aquecer
+o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que
+j&aacute; deram oleo, sombra, e paz a nossos av&oacute;s, e que
+ainda podem liberalisar o mesmo a nossos netos.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Por que &eacute; trazer aos festins profanos os vasos
+do Templo?<br />
+
+<br />
+
+Se &eacute; chym&eacute;ra a Religi&atilde;o, se Jesus
+n&atilde;o &eacute; em realidade sen&atilde;o &laquo;o
+Christo&raquo;,
+v&atilde;o f&oacute;ra tartuf&iacute;as, que n&atilde;o
+deshonram menos a uma na&ccedil;&atilde;o que a um individuo;
+acabe-se de uma vez com
+<em>supersti&ccedil;&otilde;es</em>
+importunas e dispendiosas.<br />
+
+<br />
+
+Mas se &laquo;o Christo&raquo; foi o Verbo; se o Verbo foi o
+sol; se o sol &eacute; ainda agora a vida do genero humano; se a
+Cruz &eacute; o unico pezo que faz crescer a quem a soffre; se na
+terra n&atilde;o ha luz sen&atilde;o a que vem de cima; se toda
+a nega&ccedil;&atilde;o expira nos labios de quem chega a ouvir
+como se amiudam os anh&eacute;litos do estertor, forcejae, forcejae
+para restituir, &oacute; v&oacute;s que ainda o podeis, ao
+santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle conhece, ao Povo
+os unicos or&aacute;culos em que elle pode crer, &aacute;s
+miserias o seu antigo e t&atilde;o amado
+refugio, aos vic&iacute;os e aos crimes o dique onde j&aacute;
+tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[123]</span>
+&iquest;N&atilde;o &eacute; assaz amplo o thesoiro que
+entre as m&atilde;os tendes de destinos humanos?<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas
+as magistraturas, todos os magisterios, todas as
+exac&ccedil;&otilde;es, todas as
+administra&ccedil;&otilde;es, n&atilde;o vos
+d&atilde;o de sobejo com que pagar ou empenhar amisades, zelos, e
+servi&ccedil;os, sem ser mist&eacute;r que o povo de Deus
+venha, escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda,
+carregar a pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?<br />
+
+<br />
+
+Rachel chorosa chora os seus filhos, e n&atilde;o quer consolada
+porque elles n&atilde;o existem para ella. Os moradores de
+Si&atilde;o n&atilde;o ent&ocirc;am os seus inspirados
+canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de Babylonia.
+Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Si&atilde;o os
+seus moradores.<br />
+
+<br />
+
+A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha.
+A Cidade santa restaurar&aacute; as suas festas.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o vos arreceeis de que, feriando os levitas, e
+despedindo-os das vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da
+vossa parcialidade, qualquer que ella seja, se torne mais fraco.<br />
+
+<br />
+
+Pelo contrario: ent&atilde;o &eacute; que a victoria, filha das
+ben&ccedil;&atilde;os da terra e do Ceo, ha-de poisar para
+sempre, como uma aur&eacute;ola, sobre a hasta do vosso estandarte,
+porque se dir&aacute; de toda a parte: &laquo;Eis ali os
+fortes, os que bastam per si para se defenderem. E
+Pelo contrario: ent&atilde;o &eacute; que a victoria, filha das
+ben&ccedil;&atilde;os da terra e do Ceo, ha-de poisar para
+sempre, como uma aur&eacute;ola, sobre a hasta do vosso estandarte,
+porque se dir&aacute; de toda a parte: &laquo;Eis ali os
+fortes, os que bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a
+quem o Senhor outorgar&aacute; domina&ccedil;&atilde;o,
+porque elles lhe h&atilde;o
+restituido os sacrificios.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[124]</span>
+<h4>XXIV</h4>
+
+<br />
+
+Mas redescend&acirc;mos o estylo &aacute; lhaneza do nosso
+assumpto.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Logo que na legisla&ccedil;&atilde;o entrar mais
+<em>bom-senso</em> que <em>politica</em>, mais
+realidade que
+fic&ccedil;&atilde;o, mais pensamento de semear que de ceifar,
+mais amor do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da
+milicia sagrada devolver-se-h&atilde;o inteiramente, francamente,
+sem restric&ccedil;&otilde;es mesquinhas e nocivas, das
+m&atilde;os profanas para as dos seus superiores e arbitros
+naturaes: os Prelados.<br />
+
+<br />
+
+O Governo se gloriar&aacute; de haver se desembara&ccedil;ado
+de uma tarefa, de pouca importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia
+de incerteza, e de responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha
+ainda mais, de haver facultado com a sua
+restitui&ccedil;&atilde;o o incremento da religiosidade; por
+ella o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas;
+por tudo, o da prosperidade do Estado.<br />
+
+<br />
+
+Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei,
+pod&eacute;r escolher por si mesmo, affei&ccedil;oar de
+espa&ccedil;o, collocar por sua m&atilde;o, os vigias de cada
+um dos seus rebanhos parciaes, &iquest;quem
+duv&iacute;da de que
+ent&atilde;o os desacertos nas ponderadas escolhas
+h&atilde;o-de ser t&atilde;o raros, como os acertos o
+s&atilde;o no actual systema, em que s&atilde;o as
+casualidades, quando n&atilde;o as affei&ccedil;&otilde;es
+ou os interesses, que predominam?<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[125]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justi&ccedil;a a
+todos), as elei&ccedil;&otilde;es do
+poder temporal teem merecido a geral approva&ccedil;&atilde;o;
+teem recahido, pelo commum, em var&otilde;es de mui notoria
+sciencia e prudencia, equidistantes dos dois oppostos fanatismos,
+concertados nos costumes, e zelosos discretamente.<br />
+
+<br />
+
+Gra&ccedil;as, gra&ccedil;as ao poder temporal, que
+j&aacute; deu o primeiro passo, passo de gigante, para a suspirada
+reforma&ccedil;&atilde;o. Agora os restantes h&atilde;o de
+seguir-se, porque
+s&atilde;o consequencia.<br />
+
+<br />
+
+Logo que soube, e quiz, prep&ocirc;r ao
+Episcopado var&otilde;es taes, logo que manifestou ao mundo que
+n'elles a todos os respeitos se fiava, tacitamente se obrigou a lhes
+rep&ocirc;r... (estas suas usurpadas regalias, ia eu dizer, e era
+um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua cruz, este
+accrescimo de trabalhos e mortifica&ccedil;&otilde;es, este
+para uma consciencia melindrosa martyrio das horas todas.<br />
+
+<br />
+
+Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os
+hombros a t&atilde;o duro redobramento de carga, se a caridade,
+obrigada nos do seu officio, os n&atilde;o
+for&ccedil;&aacute;ra a beijal-a com lagrimas, tomal-a com
+exulta&ccedil;&atilde;o, e seguir via pelas asperezas do
+Calvario para o Ceo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iquest;E que s&atilde;o em verdade os Parochos, ou antes:
+&iquest;que foram os Parochos desde os antigos seculos da sua
+institui&ccedil;&atilde;o, que foram, se n&atilde;o uns
+coadjutores dos Prelados maiores,
+<span class="pagenum">[126]</span>
+para fazerem chegar at&eacute; aos minimos e mais obscuros
+recantinhos das Dioc&eacute;ses a sua doutrina, a sua caridade, e
+os seus exemplos?<br />
+
+<br />
+
+Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as m&atilde;os, de um
+s&oacute;, e quasi sempre velho e can&ccedil;ado,
+n&atilde;o podiam alcan&ccedil;ar
+t&atilde;o longe como o seu espirito; medicos de populosos
+hospitaes de almas (e de corpos tambem), n&atilde;o lhes chegando
+as for&ccedil;as para estarem dia e noite a todas as cabeceiras,
+contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, estudarem
+todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em todos e com
+todos, segundo a maravilhosa express&atilde;o do
+Ap&oacute;stolo das gentes; distribuiram em cada
+enfermar&iacute;a quem os supprisse, quem os fizesse sempre estar
+presentes, quem em seu nome, e segundo a sua sciencia, receitasse e
+administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse de subito acudir.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Como p&oacute;de portanto, quando militam as mesmas
+ras&otilde;es que presidiram &aacute;
+crea&ccedil;&atilde;o dos Parochos, consentir-se uma praxe, em
+que tudo vai falsificado?<br />
+
+<br />
+
+Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens
+inexpertos e ignaros da sua arte, n&atilde;o pode ser; e
+n&atilde;o ha-de ser sempre; e cabe nos esperar que nem
+continuar&aacute; a ser por muito tempo.<br />
+
+<br />
+
+O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o
+indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os
+presbyt&eacute;rios civis, hoje de tantos corvos e abutres,
+v&atilde;o ser como essas torrinhas, que se branqueiam e se
+perfumam de
+<span class="pagenum">[127]</span>
+incenso para morada de
+pombas. As parochias reverdecer&atilde;o: e florescer&atilde;o,
+at&eacute; ao possivel auge, em crean&ccedil;as innocentes e
+instruidas, em adultos pios e laboriosos, em mulheres castas e amantes
+do seu lar e dos seus deveres, em velhos pacientes, resignados e
+conselheiros, em s&oacute;lo bem cultivado e bem festivo; e o
+Throno se alegrar&aacute; com os novos reflexos de ventura, que lhe
+vir&atilde;o de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte.
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXV</h4>
+
+<br />
+
+N&atilde;o venha agora, no processo d'esta
+santifica&ccedil;&atilde;o, intrometter se o <em>Cardeal-diabo</em>
+do ciume, com m&aacute;scara de amor da Liberdade. Ainda que a
+m&aacute;scara &eacute; de vidro, j&aacute; d'aqui lh'a
+havemos de quebrar nas m&atilde;os, batendo-lhe em cheio com tres
+nomes todos presados: Fran&ccedil;a, Italia, Inglaterra.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iquest;Que na&ccedil;&atilde;o mais ciosa das suas
+immunidades, que a franceza? &iquest;Que
+na&ccedil;&atilde;o menos para consentir &aacute; Egreja o
+que de jus estricto lhe n&atilde;o compita?<br />
+
+<br />
+
+Nenhuma.<br />
+
+<br />
+
+Ora em Fran&ccedil;a, bem sabemos todos que s&atilde;o
+unicamente os Prelados os que formam o seu Clero. Educam-n-o
+longamente. Instruem-n o copiosamente, por livros n&atilde;o
+escolhidos
+(como entre n&oacute;s) pela Autoridade civil, ainda que (de si se
+entende) sujeitos &aacute; sua inspec&ccedil;&atilde;o.
+Acostumam n-o
+&aacute;s praticas do seu n&atilde;o facil ministerio. Estudam,
+provam, e contraprovam, a aptid&atilde;o e especial
+<span class="pagenum">[128]</span>
+pr&eacute;stimo de cada um. Aproveitam
+s&oacute; os que n'esse crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram;
+e outra vez os escolhem &aacute; m&atilde;o, para os irem
+repartindo pelas Parochias do modo que mais aproveitem; pois de ver
+est&aacute;, que, differindo em indole e circumstancias as
+povoa&ccedil;&otilde;es como os individuos, tal individuo, que
+em tal povoa&ccedil;&atilde;o
+quadrar&aacute; &aacute; justa, a afortunar&aacute;
+afortunando-se; n'outra, que menos lhe molde, valer&aacute; menos,
+trabalhando e padecendo mais.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O exemplo da Italia, tenho eu que ainda ap&eacute;rta melhor;
+porque, se l&aacute; os Bispos
+s&atilde;o independentes, como em Fran&ccedil;a, para o
+provimento de suas egrejas, n&atilde;o &eacute; porque em
+m&atilde;os leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o Sceptro
+&eacute; Bago juntamente.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Documento, por&eacute;m, sobre todos frisante nos offerece por
+ultimo a Gran Bretanha.<br />
+
+<br />
+
+Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, n&atilde;o protegida
+se n&atilde;o tolerada, n&atilde;o acarinhada se n&atilde;o
+temida pelo seu progressivo, cada vez mais rapido, mais assombroso,
+engrandecimento, gosa se, n&atilde;o obstante, por longa e pacifica
+posse, d'este seu n&atilde;o <em>privilegio</em>, se
+n&atilde;o
+<em>direito</em> essencial; e os seus Bispos s&atilde;o
+pelo menos t&atilde;o independentes no tocante &aacute; cura de
+almas dentro de suas Dioc&eacute;ses, como dentro nas suas os
+proprios Bispos protestantes.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[129]</span>
+<h4>XXVI</h4>
+
+<br />
+
+Ora pois: logo que entre n&oacute;s se houver perfeito d'este modo
+a regenera&ccedil;&atilde;o do Clero pelos seus principes
+(unicos legitimos em tudo que ao seu ministerio se refere) cabe esperar
+que a optima parte das nossas popula&ccedil;&otilde;es ruraes
+se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que a minha gente de
+S. Mamede do Monte ser&aacute; querida, e comprehendida
+at&eacute; por cortes&atilde;os, quando sahirem a folgar no
+campo algum estio.<br />
+
+<br />
+
+Para ent&atilde;o &eacute; que este livrinho, semelhante aos
+frutos que amadurecem em casa e &aacute;s escuras, ha-de ter para
+mais alguem o sabor que eu j&aacute; lhe tomo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Se elle consegue, para al&eacute;m das raias da minha
+expecta&ccedil;&atilde;o, fazer com que um s&oacute;
+captivo da Cidade cobre amor &aacute; vida solit&aacute;ria, ou
+que um unico solit&aacute;rio aprenda a conhecer alguma parte da
+sua encoberta bemaventuran&ccedil;a, j&aacute; n&atilde;o
+trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos maiores triumphos
+literarios.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM DO PROLOGO</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>Notas de Castilho a este Preambulo</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<h4>NOTA I</h4>
+
+<h3>
+Fontes de estudo</h3>
+
+<br />
+
+Como, durante a minha estada na serra, me n&atilde;o passava pela
+mente que houvesse algum dia de bosquejar esta humilde
+Odyss&ecirc;a dos sitios e gente d'ella, nada trouxe apontado a tal
+respeito. Revolvendo as minhas memorias n&atilde;o escritas, achei
+n'ellas consideraveis lacunas, mormente no tocante &aacute;
+topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. N'esta
+pressa me soccorri &aacute; officiosa amisade do actual Prior de S.
+Mamede da Castanheira, o Rev.<sup>do</sup> Padre Antonio
+Joz&eacute;
+Rodrigues de Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos
+imperfeito o meu painel, em que faltar&aacute; tudo, &aacute;
+excep&ccedil;&atilde;o de verdade nas
+coisas, e nos retratos parecen&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>NOTA II</h4>
+
+<h3>
+Parochos</h3>
+
+<br />
+
+Na generalidade que estabele&ccedil;o, por muito convencido,
+caber&aacute; fazer algumas gloriosas
+excep&ccedil;&otilde;es; e, sem ir mais longe, o meu Parocho,
+<span class="pagenum">[132]</span>
+n'esta freguesia de Santa
+Isabel<sup><a href="#nt5">[5]</a></sup>, o
+Rev.<sup>do</sup> Padre Joz&eacute; Jacintho Tavares,
+&eacute;
+var&atilde;o de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de
+s&atilde;os costumes, sobredoirados de indole sociavel e amena, e
+incan&ccedil;avel na caridade. As repara&ccedil;&otilde;es
+e embellezamentos, com que se tem remo&ccedil;ado o templo em que
+elle serve, nada s&atilde;o comparados com os soccorros de
+p&atilde;o, de letras, e de
+instruc&ccedil;&atilde;o christan e civil, que j&aacute;
+come&ccedil;am a disfrutar os indigentes da sua freguesia. Largos
+s&atilde;o ainda os seus projectos; ajude-o a Providencia;
+deixar&aacute; formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade
+filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haver&aacute;
+transformado, pela educa&ccedil;&atilde;o, creancinhas ainda
+hontem desamparadas, e a pique de perdimento. N&atilde;o quiz
+perder este lan&ccedil;o de ajudar com um pequeno brado o clamor da
+gratid&atilde;o popular, que algum dia ha-de ser alto.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM DO PRIMEIRO VOLUME</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<b>Notas:</b><br />
+
+<br />
+
+<a name="nt1" id="nt1"></a> <sup>[1]</sup> O
+Doutor
+de capello Jos&eacute; Feliciano de Castilho
+Barreto falleceu na Castanheira do Vouga a 6 de Mar&ccedil;o de
+1827, e foi enterrado na capella m&oacute;r da egreja parochial.
+Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os seus restos mortaes para
+o jasigo da sua familia no cemiterio dos Praseres em Lisboa, onde se
+conservam.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os
+Editores</span></div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt2" id="nt2"></a> <sup>[2]</sup> Existe
+ainda este cedro que tem alcan&ccedil;ado
+descommunal corpulencia. Chamam-lhe por l&aacute;
+<em>o cedro do poeta</em>, ou <em>do
+Castilho</em>.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os
+Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt3" id="nt3"></a> <sup>[3]</sup>
+Ovidio&#8213; <em>Os
+Fastos</em>&#8213;Liv.
+VI.<br />
+
+<br />
+
+<a name="nt4" id="nt4"></a> <sup>[4]</sup>
+Allus&atilde;o aos amargores da
+redac&ccedil;&atilde;o da <em>Revista Universal
+Lisbonense</em>, minuciosamente narrados <em>nas Memorias
+de Castilho</em>.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Os
+Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt5" id="nt5"></a> <sup>[5]</sup>
+Castilho morava ent&atilde;o na rua de S.
+Mar&ccedil;al.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">
+Os Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+Sociedade editora </h4>
+
+<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br />
+
+95&#8213;RUA AUGUSTA&#8213;LISBOA</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4>
+
+<h4>
+XX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME II</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+95, Rua Augusta, 95<br />
+
+1905</h4>
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+OBRAS COMPLETAS<br />
+
+DE<br />
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4>
+
+<h4><br />
+
+VOLUME 20.&ordm;</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">I</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor
+e melancolia.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A
+chave do enigma.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas
+de Ecco e Narciso.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(1.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span>&#8213;Aprecia&ccedil;&otilde;es moraes,
+litterarias, e artisticas.</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">X</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(3.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(4.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(5.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (6.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(7.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span> (8.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (1.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (2.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (3.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da
+montanha</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XX</td>
+
+ <td>&#8213;</td>
+
+ <td><span class="smallcaps">O
+Presbyterio da montanha</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>NO PR&Eacute;LO:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 41px;">XXI</td>
+
+ <td style="width: 10px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O Outono.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4><a name="Vol.II" id="Vol.II"></a>OBRAS COMPLETAS DE A.
+F. DE CASTILHO<br />
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4>
+
+<h4>
+XX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da<br />
+
+Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME II</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br />
+
+<em>Sociedade Editora</em><br />
+
+</h4>
+
+<span style="font-weight: bold;"><br />
+
+</span>
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td>
+
+ <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td>
+
+ <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <b>Rua
+Augusta, 95</b></td>
+
+ <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<h4>1905
+</h4>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c1" id="c1"></a>I </h4>
+
+<h3><br />
+
+A PRIMEIRA NOITE NA SERRA </h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry4 tinyl">... Ibi h&aelig;c
+incondita solus<br />
+
+montibus et silvis studio jactabat inani.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;V&eacute;lo?
+&iquest;Sonho? &iquest;Deliro?!
+&iquest;Em solitario monte,<br />
+
+que se espanta de ver-me, e cuja aust&eacute;ra fronte<br />
+
+nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,<br />
+
+de mundo a tumultuar, de cidades a rir...</div>
+
+<div class="poetry">n'este ermo ignaro, frio, mudo...</div>
+
+<div class="poetry1">aqui... (&iquest;deliro?
+&iquest;ou sonho?) aqui meu lar, meu
+tudo!</div>
+
+<div class="poetry">&iexcl;o meu presente e o meu
+porvir! </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Genio invisivel da montanha,<br />
+
+de astros, de sol, o ceo te banha;<br />
+
+o mar de longe te acompanha<br />
+
+no livre cantico sem fim.</div>
+
+<div class="poetry1">Escada de
+Jacob da terra ao firmamento,</div>
+
+<div class="poetry">a
+mans&atilde;o tua &eacute;
+monumento</div>
+
+<div class="poetry1">da potencia, do amor, das glorias
+d'Elo&iuml;m. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Emquanto, em derredor do solio teu
+sublime,<br />
+
+a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,<br />
+
+se volve, se transforma, e sua angustia exprime<br />
+
+n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,</div>
+
+<div class="poetry">a variedades sobranceiro</div>
+
+<div class="poetry1">mantens-te qual surgiste, e do cahos
+primeiro,</div>
+
+<div class="poetry">e do diluvio assolador.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[6]</span>
+<div class="poetry">Silencio e paz comtigo habita;<br />
+
+o ermo &eacute; como o eremita;<br />
+
+loucas vaidades n&atilde;o cogita;<br />
+
+ama o seu rustico trajar;</div>
+
+<div class="poetry1">em apparente inercia ama que ferva
+occulto</div>
+
+<div class="poetry">de seus affectos o tumulto,</div>
+
+<div class="poetry1">seus extasis, seus ais, seus gostos,
+seu orar.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Sim, Genio da montanha, Archanjo de
+poesia:<br />
+
+eu creio em ti; eu creio em
+que alma ingenua, pia,<br />
+
+p&oacute;de ouvir de tua harpa a casta
+melodia,<br />
+
+e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;</div>
+
+<div class="poetry">sim; mas eu, frivolo, profano,</div>
+
+<div class="poetry1">&aacute; solid&atilde;o
+extranho, affeito ao mundo insano,</div>
+
+<div class="poetry">&iquest;que hei-de esperar?
+&iquest;que tenho aqui? </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Toda a minh'alma se entristece,<br />
+
+e se confrange, e se ennoitece,<br />
+
+ao ver que a sorte lhe destece<br />
+
+de um sopro os aureos sonhos seus.</div>
+
+<div class="poetry1">Sonhava applausos, gloria...
+&iexcl;em desterro desperto!</div>
+
+<div class="poetry">sonhava mundo... &iexcl;acho um
+deserto!</div>
+
+<div class="poetry1">sonhava inda illus&otilde;es...
+&iexcl;e escuto-lhes o adeus! </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N&aacute;ufrago, perco a lyra em
+meio da viagem.<br />
+
+&iexcl;Des&ccedil;o vivo ao sepulcro! &iexcl;Em ti, fatal
+paragem,<br />
+
+quem me resurgir&aacute;? Dos montes a linguagem...<br />
+
+oi&ccedil;o... escuto... medito... e em v&atilde;o quero
+entender</div>
+
+<div class="poetry">&eacute; como
+uns sons de ignota
+fala;</div>
+
+<div class="poetry1">qual &aacute;s penhas o mar, me
+inunda e me resvala,</div>
+
+<div class="poetry">
+sem me abalar, nem me embeber. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Oh!
+&iquest;&aacute;
+minh'alma taciturna<br />
+
+que importa, &oacute; montanha soturna,<br />
+
+que de perfumes sejas urna<br />
+
+da terra erguida sobre o altar?</div>
+
+<span class="pagenum">[7]</span>
+<div class="poetry1">&iquest;que o ceo te ria azul,
+mais amplo e mais de perto,</div>
+
+<div class="poetry">que o sol
+doirado, ao teu deserto</div>
+
+<div class="poetry1">mais cedo suba, e &aacute; tarde
+o
+des&ccedil;a com pesar? </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Vir mais tardia a noite, a aurora vir
+mais cedo,<br />
+
+&iquest;que me
+aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,<br />
+
+s&oacute; ouvindo os
+tuf&otilde;es e os corvos no arvoredo,<br />
+
+bramirei:&#8213;&laquo;&iexcl;Cresce o tempo! &iexcl;oh!
+&iexcl;supplicio cruel!</div>
+
+<div class="poetry">&iexcl;s&atilde;o mais
+pesares,
+mais saudades,</div>
+
+<div class="poetry1">mais estro a arder em v&atilde;o,
+mais
+vis&otilde;es de
+cidades,</div>
+
+<div class="poetry">mais
+tenta&ccedil;&otilde;es a
+dar-me fel!...&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Ai! &iexcl;mundo!
+&iexcl;ai! &iexcl;eccos seductores!<br />
+
+&iexcl;Tanto vate a ceifar
+louvores!...<br />
+
+&iexcl;Tanto
+mo&ccedil;o a
+colher amores!...<br />
+
+&iexcl;Tantos
+loireiros e rosaes!...</div>
+
+<div class="poetry1">E eu n'esta solid&atilde;o a
+torcer-me arraigado,</div>
+
+<div class="poetry">qual roble que geme indignado,</div>
+
+<div class="poetry1">vendo ao
+longe no Oceano os lenhos triumphaes! </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Assim ruge, bald&atilde;o de
+vingativo nume,<br />
+
+esse que a argilla
+outr'ora encheu de ethereo lume;<br />
+
+assim, nos gelos sua, agrilhoado ao
+cume<br />
+
+do cauc&aacute;seo alcantil, seu cadafalso atroz.</div>
+
+<div class="poetry">S&oacute; o abutre de eterna fome,</div>
+
+<div class="poetry1">que o grande
+cora&ccedil;&atilde;o algoz sem fim lhe come,
+</div>
+
+<div class="poetry">responde em ais &aacute; sua voz. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Fenece o dia. &iexcl;Hora jocunda,<br />
+
+que eu tanto amava! &iexcl;hora
+fecunda<br />
+
+dos cantos meus! &iquest;por
+que me
+inunda<br />
+
+nova amargura o
+cora&ccedil;&atilde;o?</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;Sino crepuscular,
+t&ocirc;as fun&eacute;reo dobre?</div>
+
+<div class="poetry">
+a serra em luto se me encobre;</div>
+
+<div class="poetry1">a nocturna mudez duplica a
+solid&atilde;o.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[8]</span>
+<div class="poetry1">Nenhuma luz scintilla; humana voz
+n&atilde;o s&ocirc;a.<br />
+
+De
+estrellas a accender-se o Empyrio se pov&ocirc;a;<br />
+
+tal a fada
+Coimbra, a senhoril Lisboa,<br />
+
+nest'hora a quem as olha, entram no escuro
+a abrir</div>
+
+<div class="poetry">de luzeiros um labyrinto.</div>
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Ceos!
+&iexcl;N&atilde;o oi&ccedil;o eu troar...
+seus coches!... O que sinto</div>
+
+<div class="poetry">&eacute;
+vento em selvas a rugir. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Calae, fugi, ventos agrestes;<br />
+
+sumi-vos, lampadas celestes;<br />
+
+n'um seio a delirios j&aacute;
+prestes<br />
+
+n&atilde;o susciteis mais
+tenta&ccedil;&otilde;es.</div>
+
+<div class="poetry1">Ou antes... aturdi-me, Euros bravos;
+ou antes...</div>
+
+<div class="poetry">v&oacute;s, astros,
+cifras de
+diamantes,</div>
+
+<div class="poetry1">o arcano me aclarae l&aacute;
+d'essas
+regi&otilde;es. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Oh! &iexcl;se
+&aacute; minha raz&atilde;o,
+contradictoria, altiva,<br />
+
+que &aacute;s trevas sente horror, e
+&aacute; clara
+F&eacute; se esquiva,<br />
+
+de v&oacute;s, faroes do Ceo, baixasse a
+cren&ccedil;a viva,<br />
+
+que aos moradores do ermo inspira a vossa
+luz!...</div>
+
+<div class="poetry">&iexcl;se me volvesseis as
+ditosas</div>
+
+<div class="poetry1">esp'ran&ccedil;as que hei
+perdido, alvas, ethereas rosas,</div>
+
+<div class="poetry">com que se enfeita e esconde a
+Cruz!... </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Tornar-se-me-hiam de improviso<br />
+
+a solid&atilde;o, em paraizo;<br />
+
+a magua, em perenne sorriso;<br />
+
+em alto cantico, a mudez;</div>
+
+<div class="poetry1">a mallograda
+lyra, o n&atilde;o colhido loiro,</div>
+
+<div class="poetry">em
+harpa augusta, em palmas d'oiro;</div>
+
+<div class="poetry1">e o monte, solio ent&atilde;o,
+veria o mundo aos p&eacute;s. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Delirios sempre v&atilde;os, fugi
+de um peito enfermo;<br />
+
+tu,
+s&oacute; tu, negra morte, has-de ao meu mal p&ocirc;r
+termo;<br />
+
+ermo para ambi&ccedil;&otilde;es, &eacute; inferno,
+e
+n&atilde;o ermo;<br />
+
+para a humilde piedade &eacute; que elle
+espelha o Ceo.</div>
+
+<span class="pagenum">[9]</span>
+<div class="poetry">Gentis phantasmas de cidades,</div>
+
+<div class="poetry1">vinde, escondei-me o ermo em vossas
+claridades,</div>
+
+<div class="poetry">como um esquife em aureo veo. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Vinde, cercae-me,
+endoidecei-me,<br />
+
+(embora em saudades me eu
+queime)!<br />
+
+O somno, as vigilias enchei-me<br />
+
+da vossa esplendida viz&atilde;o.</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;Val o riso choroso as
+festas da loucura?</div>
+
+<div class="poetry">vinde, guiae-me &aacute;
+sepultura,</div>
+
+<div class="poetry1">crente no amor, na gloria, e rindo
+&aacute; solid&atilde;o. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Eu blasphemo, eu desvairo!
+Aos encontrados votos,<br />
+
+nem ecco
+respondeu n'estes cov&otilde;es ignotos.<br />
+
+N&atilde;o, cumes
+glaciaes, t&atilde;o outros, t&atilde;o
+remotos<br />
+
+dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;</div>
+
+<div class="poetry">n&atilde;o, no silvestre seio
+vosso,</div>
+
+<div class="poetry1">nem de amenas
+fic&ccedil;&otilde;es apascentar-me posso,</div>
+
+<div class="poetry">nem menos as posso esquecer. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+&iexcl;Valor! &iexcl;valor!
+&iquest;Quem do futuro<br />
+
+sondou jamais
+o abysmo escuro?<br />
+
+&iexcl;Apenas chego
+e j&aacute;
+murmuro!<br />
+
+&iquest;O de que tremo
+acaso sei?</div>
+
+<div class="poetry1">Esperemos: talvez que inglorios, mas
+doirados,</div>
+
+<div class="poetry">aqui me aguardem, recatados,</div>
+
+<div class="poetry1">dias de
+estro e de paz, quaes nunca disfrutei.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Se al&eacute;m, no presbyterio,
+humillima choupana,<br />
+
+(Vaticano, e
+Queluz da pobre grei serrana)<br />
+
+mais que fraterno amor
+soll&iacute;cito se afana<br />
+
+em me af&ocirc;far o ninho, a vida em
+me inflorar;</div>
+
+<div class="poetry">se n'um retiro verde e
+mudo,</div>
+
+<div class="poetry1">por elle tenho o leito, a mesa, o
+doce estudo,</div>
+
+<div class="poetry">sombras no estio, o inverno ao lar;</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[10]</span>
+<div class="poetry">se a solid&atilde;o
+que me
+apavora,<br />
+
+s&oacute;mente o
+f&ocirc;r vista
+de f&oacute;ra;<br />
+
+se em seus
+rec&ocirc;ncavos demora<br />
+
+gente feliz,
+povo de irm&atilde;os;</div>
+
+<div class="poetry1">se do antigo viver, das
+cren&ccedil;as
+de outra edade, </div>
+
+<div class="poetry">vestigios guarda a
+soledade;</div>
+
+<div class="poetry1">se poesia se vive entre estes
+alde&atilde;os; </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">se a alegria, serena, isenta de
+pesares,<br />
+
+como a fresca saude, habita os
+puros ares;<br />
+
+se em toda a parte ha Deus, em c&eacute;os, em terra, e
+mares,<br />
+
+se Deus em toda a parte &aacute; Natureza ri...</div>
+
+<div class="poetry">cora&ccedil;&atilde;o meu,
+n&atilde;o desanimes,</div>
+
+<div class="poetry1">gozos que n&atilde;o
+prev&ecirc;s, e
+cantos mais sublimes,</div>
+
+<div class="poetry">encontrar&aacute;s talvez aqui. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Ah! sendo assim,
+&iexcl;que importa a fama!<br />
+
+Tambem
+philom&eacute;la derrama<br />
+
+sua
+harmonia &aacute;s selvas que
+ama<br />
+
+longe de ouvintes e do sol.</div>
+
+<div class="poetry1">Cantarei. &iquest;Meu cantar mais
+ambi&ccedil;&otilde;es
+teria</div>
+
+<div class="poetry">que a viva, a lustrosa poesia,</div>
+
+<div class="poetry1">de
+perolas que a flux borb&oacute;ta o rouxinol?<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div class="poetry">Castanheira do Vouga </div>
+
+<div class="poetry3">Outubro de 1826.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[11]</span>
+<h4><a name="c2" id="c2"></a>II</h4>
+
+<br />
+
+<h3>O SEPULCRO<br />
+
+OU<br />
+
+HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JO&Atilde;O<br />
+
+(POEMA) </h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<h4>INTRODUC&Ccedil;&Atilde;O<br />
+
+(QUE &Eacute; MELHOR DORMIR, QUE
+LER) </h4>
+
+<br />
+
+<div class="intro">(Ermo alpestre entre cabe&ccedil;os
+de rocha e pinheiros, na
+serra
+do Caramulo. &Eacute; noite escura como breu. O autor e um
+arrieiro, ambos a cavallo, transviados na montanha.)</div>
+
+<br />
+
+<h4>I </h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;Bem lh'o disse eu, perdemos o
+caminho;<br />
+
+a velha era por
+for&ccedil;a alguma bruxa.<br />
+
+Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a
+touca!<br />
+
+&#8213;Bom; a pobre mulher (&iquest;que mais querias?)<br />
+
+tres vezes
+t'o ensinou.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Nem trinta vezes</div>
+
+<div class="poetry1">que eu passasse por elle, o
+aprenderia;<br />
+
+a
+n&atilde;o ser pelo rasto que deixasse<br />
+
+esmurrando o nariz por essas
+lapas.<br />
+
+J&aacute; levo sem ferrage ambas as mulas;<br />
+
+perdeu-se o
+norte; n&atilde;o descubro casa,<br />
+
+nem gente, nem caminho, e
+&eacute; quasi noite.
+</div>
+
+<span class="pagenum">[12]</span>
+<div class="poetry1">Patr&atilde;o, por meia legua
+mais ou menos,<br />
+
+n&atilde;o se
+deixa uma estrada como aquella,<br />
+
+que costeava o monte &aacute; beira
+da agua.<br />
+
+A velha era uma bruxa, e n&oacute;s dois asnos.<br />
+
+&#8213;Dize um
+que vale dois, mas dois n&atilde;o digas.<br />
+
+Se tom&aacute;mos o
+atalho em vez da estrada,<br />
+
+toda a culpa foi tua; eu n&atilde;o
+queria,<br />
+
+porem teimaste; e eu n&atilde;o me opponho a teimas.<br />
+
+&#8213;Mas
+eu &iquest;por que teimei? &iexcl;pois se a maldita,<br />
+
+com ar de
+santa, e palavrinhas man&ccedil;as,<br />
+
+nos rabiscou co'o pau no
+p&oacute; da estrada<br />
+
+t&atilde;o claramente as idas, as venidas<br />
+
+d'esta serra sem fim, n&atilde;o lhe escapando<br />
+
+lomba, moiteira,
+torcic&oacute;lo ou brenha,<br />
+
+que a mula mesma entenderia o mappa!<br />
+
+&iquest;Quem n&atilde;o cahia em tal? cahiam todos.<br />
+
+E de mais
+&iquest;quem nos diz que aquelles riscos<br />
+
+n&atilde;o tinham
+diabrura ou nigromancia<br />
+
+capazes de encarchar um Santo em carne?<br />
+
+&iquest;E quem me diz a mim que a grenha russa<br />
+
+n&atilde;o vai
+ao p&eacute; de n&oacute;s?
+&iexcl;talvez sentada<br />
+
+na anca da mula!...
+&iexcl;<em>f&uacute;gite</em>,
+demonios!</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;</div>
+
+<div class="poetry1">quem mais
+anda, mais sabe; e eu n&atilde;o sou tolo,<br />
+
+nem creancinha de honte.
+&iexcl;Olha o diabo!<br />
+
+bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;<br />
+
+caminho... &iexcl;era uma vez! &iexcl;M&aacute; raio a
+parta!<br />
+
+&iquest;que havemos de fazer nestas alturas?<br />
+
+&#8213;Tornarmos
+para traz.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iquest;Por este escuro?</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;quer dar cabo das mulas,
+e
+estoirar-me?<br />
+
+&iexcl;co'um milh&atilde;o de diabos!!...</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Pois fiquemos.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;E as mulas comam terra, como os
+sapos,<br />
+
+e
+n&oacute;s carqueja.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;As noites s&atilde;o bem curtas.</div>
+
+<span class="pagenum">[13]</span>
+<div class="poetry1">&#8213;Se ao menos se avistasse alguma
+venda...<br />
+
+&#8213;Em rompendo a manhan teremos tudo.<br />
+
+Por agora apeemo-nos. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">(<em>Apeiam-se.</em>)</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;No inferno</div>
+
+<div class="poetry1">estoire entre um milh&atilde;o de
+Satanazes<br />
+
+o que
+inventou primeiro andar de noite;<br />
+
+era o maior ladr&atilde;o...
+&iquest;Que bulha &eacute;
+essa?<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute; nada; uma pedra que rebola.<br />
+
+&#8213;&iexcl;Que rebola!? &iexcl;e sem m&atilde;o!
+ser&aacute; bonito,<br />
+
+mas nem por isso engra&ccedil;o.
+&iquest;E aquelle bruto<br />
+
+l&aacute; em cima no pinhal, que
+guincha tanto!<br />
+
+&#8213;Algum mocho.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;M&aacute;s balas o atravessem,</div>
+
+<div class="poetry1">e lhe acabem co'a casta antes de
+um'hora;<br />
+
+cuidei que era outra coisa. Eu na taverna<br />
+
+valho por cinco ou
+seis; mas c&aacute; perdido,<br />
+
+e ent&atilde;o de noite, um pisco
+me p&otilde;e medo.<br />
+
+&#8213;Pois dorme.</div>
+
+<div class="poetry3">&#8213;&iquest;O
+qu&ecirc;? &iexcl;dormir! &iexcl;co'a bruxa &aacute;s
+barbas!</div>
+
+<div class="poetry1">s&oacute; se eu f&ocirc;sse
+algum b&ecirc;bado.
+Esta noite<br />
+
+nem pregar olho, nem largar das unhas<br />
+
+dois penedos; e ao
+p&eacute; j&aacute; est&aacute;
+refor&ccedil;o.<br />
+
+&#8213;Golgan, j&aacute; que n&atilde;o foi por
+nossa escolha,<br />
+
+busquemos contentar-nos co'a poisada,<br />
+
+que inda
+n&atilde;o &eacute; t&atilde;o m&aacute; como
+o parece.<br />
+
+&iexcl;Quantos ha menos bem acomodados<br />
+
+por esse mundo
+agora! uns em cadeias,<br />
+
+outros entre ladr&otilde;es,
+n&aacute;ufragos outros,<br />
+
+estes em luto, aquelles em
+doen&ccedil;a.<br />
+
+Bastantes em colx&otilde;es de plumas
+f&ocirc;fas<br />
+
+revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,<br />
+
+cuidados
+tristes, asperos remorsos.<br />
+
+&iexcl;Quantos at&eacute; nas salas
+mais alegres,<br />
+
+entre as luzes, e as muzicas, e as dan&ccedil;as,<br />
+
+mas
+em face de um s&ocirc;ffrego banqueiro,</div>
+
+<span class="pagenum">[14]</span>
+<div class="poetry1">padecem mais que um reo chegando
+&aacute; f&ocirc;rca<br />
+
+N&atilde;o ha mal sem peor; qualquer estado<br />
+
+se se
+compara, &eacute; bom; com cara alegre<br />
+
+suavisam-se os incommodos;
+um fardo<br />
+
+n'um hombro impaciente &eacute; fardo e meio.<br />
+
+Quem
+n&atilde;o soffre um descommodo pequeno<br />
+
+nos grandes morre; um leve
+desagrado<br />
+
+d&aacute; realce ao prazer quando nos volta.<br />
+
+Qualquer
+estado, e pessimo que seja,<br />
+
+tem seu lado risonho; e &eacute; da
+prudencia<br />
+
+d'entre os picos da silva achar a amora.<span style="font-style: italic;"><br />
+
+</span><em>Amen</em>.&#8213;Brava
+o latim; d&aacute;
+ceia e cama.<br />
+
+&#8213;A falta d'esta ceia &eacute; novo adubo<br />
+
+do
+almo&ccedil;o de amanhan; e emquanto &aacute; cama,<br />
+
+&iquest;que outra melhor do que esta em mez de Junho?<br />
+
+Nem paredes
+nem tectos, que nos roubem<br />
+
+a vira&ccedil;&atilde;o da noite
+apoz a calma;<br />
+
+por entre essa quebrada dos penhascos<br />
+
+l&aacute; em
+baixo o mar co'os seus murmurios frescos;<br />
+
+sobre n&oacute;s, e por
+baixo das estrellas,<br />
+
+pendendo como um lustre, este carvalho<br />
+
+cravejado
+de insectos que entre-luzem;<br />
+
+dois rouxinoes ao longe; as lageas,
+mornas.<br />
+
+V&ecirc;; que soberba camara!; que leitos<br />
+
+desde a origem
+dos seculos nos guarda<br />
+
+no seio d'esta brenha a Natureza!<br />
+
+&#8213;Ao menos
+n&atilde;o tem pulgas. &iexcl;X&oacute;,
+canalha!<br />
+
+&iexcl;leva rumor! &eacute; bom pregar de coices.<br />
+
+N&atilde;o durma, S&ocirc;r Doutor.</div>
+
+<div class="poetry2">&#8213;N&atilde;o tarda muito</div>
+
+<div class="poetry1">que eu n&atilde;o entre a sonhar
+&iexcl;Que bellos sonhos<br />
+
+n&atilde;o devem ser os de uma noite
+d'estas!<br />
+
+&#8213;Tenha l&aacute; m&atilde;o com isso; o que eu
+prometto,<br />
+
+para espalhar-lhe o somno, &eacute; uma enfiada<br />
+
+de casos
+que eu passei na minha vida;<br />
+
+t&atilde;o rara, que podia ir
+&aacute;
+<em>Gazeta</em>!</div>
+
+<span class="pagenum">[15]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Uma vez ia eu s&oacute;; era em
+Novembro;<br />
+
+chuviscava e fazia um
+tal escuro<br />
+
+que era metter os dedos pelos olhos.<br />
+
+(Lembrou-me esta a
+proposito da mula<br />
+
+escoicinhar sem causa.) E era bom tempo<br />
+
+aquelle;
+andava Christo pelo mundo;<br />
+
+tinha eu mais duros, que patacos hoje,<br />
+
+e
+andava o oiro aos pontap&eacute;s da gente;<br />
+
+tambem...
+&iexcl;j&aacute; c&aacute; n&atilde;o torna!
+O grande caso<br />
+
+&eacute; que n'aquelle tempo era eu solteiro,<br />
+
+e rapaz
+bonitote; e havia muitas<br />
+
+que me fizessem fogo; eu cuido, e &eacute;
+certo,<br />
+
+que n&atilde;o pelos vintens; nem pela cara;<br />
+
+mas isto de
+casar co'um almocreve,<br />
+
+seja elle o diabo dos infernos,<br />
+
+parece a todas
+bem: &eacute; uma delicia<br />
+
+ter o seu homem s&oacute; de vez em
+quando,<br />
+
+em logar do espi&atilde;o de um pegama&ccedil;o<br />
+
+com
+residencia fixa em ar de abbade.<br />
+
+Mas... n&atilde;o &eacute; bom
+falar na vida alheia.</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Como lhe ia contando, era almocreve;<br />
+
+chamavam-me o <em>Chupista</em>.
+&iexcl;Oh! que bolaxa<br />
+
+que eu pespeguei na cara do co&eacute;cas<br />
+
+que me inventou a alcunha em certa venda!<br />
+
+qualquer crean&ccedil;a
+lhe moia os queixos;<br />
+
+j&aacute; l&aacute; est&aacute; onde o
+pague
+&iquest;Onde ia o ponto?<br />
+
+&iexcl;ah! sim; era almocreve e
+recoveiro;<br />
+
+e andava com dez machos todo o anno<br />
+
+a correr quanto valle e
+monte havia<br />
+
+para cobrar o f&ocirc;ro aos Frades Cruzios.<br />
+
+Que isto
+do f&ocirc;ro &eacute; bom, nem que pare&ccedil;a;</div>
+
+<span class="pagenum">[16]</span>
+<div class="poetry1">uns pagam-lhe borel, outros centeio,<br />
+
+queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,<br />
+
+gallinhame por arte do diabo,<br />
+
+ovos, e at&eacute; o musgo onde se empalham.<sup><a href="#nt6">[1]</a></sup><br />
+
+N&atilde;o ha
+n'um pardieiro um desgra&ccedil;ado<br />
+
+que n&atilde;o deva pagar
+alguma nica.<br />
+
+J&aacute; v&ecirc; donde me vinha a minha alcunha;<br />
+
+mas sem ras&atilde;o; &eacute; porque andava &aacute;s
+ordens.<br />
+
+Tambem j&aacute; tenho ouvido alguns autores,<br />
+
+tal como o
+meu cunhado, e mais uns certos,<br />
+
+que &eacute; coisa bem mal feita a
+tal derri&ccedil;a;<br />
+
+Mas bem feito ou mal feito, eu n&atilde;o
+sou Papa.<br />
+
+Vamos c&aacute; co'o meu conto.</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Era uma noite,</div>
+
+<div class="poetry1">cuido que j&aacute; lh'o disse,
+ali por Maio,<br />
+
+e fazia um luar... que era um consolo.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Eu saio a meu
+av&ocirc;; se &eacute; boa a estrada,</div>
+
+<div class="poetry1">g&oacute;sto de andar
+de noite havendo lua;<br />
+
+c&aacute; pelas brenhas n&atilde;o, que
+n&atilde;o sou
+lobo.<br />
+
+Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,<br />
+
+em cima de uma carga de
+presuntos,<br />
+
+pela estrada real, co'os sete machos<br />
+
+a dormitar ao som da
+chocalhada.<br />
+
+Vinhamos caminhando em certo passo<br />
+
+de quem gosta da noite,
+ou vem sem pressa,<br />
+
+ou de quem traz comida a gente farta.</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Que lhe digo, em abono da verdade,<br />
+
+que servir Santa-Cruz
+n&atilde;o d&aacute; desgosto:<br />
+
+pagam bem, fazem festa ao
+gallinheiro,</div>
+
+<span class="pagenum">[17]</span>
+<div class="poetry1">vendo os machos no
+pateo &eacute; uma alegria!...<br />
+
+&iexcl;aquillo at&eacute; os
+olhos se lhes riem!<br />
+
+d&atilde;o pinga, e de cear, e muitas vezes<br />
+
+vi
+eu estar vai n&atilde;o vai a dar-me um beijo<br />
+
+o Frade gordo que
+recebe o saque.<br />
+
+&iexcl;Bom tempo! &iexcl;bom de lei!
+j&aacute;
+c&aacute; n&atilde;o torna.<br />
+
+N&atilde;o durma S&ocirc;r
+Doutor.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;N&atilde;o durmo; acaba.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&iexcl;Acabar! n&atilde;o
+acabo em toda a noite,<br />
+
+nem que estoire a barriga do diabo.<br />
+
+Inda eu
+n&atilde;o comecei. Lembra-me um Frade<br />
+
+que havia em Santarem; tinha
+um cacha&ccedil;o,...<br />
+
+por tal signal que at&eacute; revia
+enxundia;<br />
+
+&iexcl;e era um demo, o maldito, a beber vinho!...<br />
+
+&iexcl;Mas aquillo! a pr&eacute;gar era uma joia;<br />
+
+um
+serm&atilde;osinho d'elle atarantava<br />
+
+e punha tudo azul. Tinha a
+constancia<br />
+
+de arrumar pr&egrave;ga&ccedil;&otilde;es de
+duas horas.<br />
+
+N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...<br />
+
+(e olhe, foi
+tanto, que eu, e muita gente,<br />
+
+j&aacute; tinhamos dormido
+&aacute; regalada)<br />
+
+disse muito pausado: &laquo;Eu
+principio.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div class="poetry">Assim fa&ccedil;o eu tambem. Todos
+devemos</div>
+
+<div class="poetry1">tirar das
+pr&egrave;ga&ccedil;&otilde;es algum
+proveito.<br />
+
+Ora pois, n&atilde;o me durma, e ahi vai a historia;<br />
+
+por&eacute;m tenha l&aacute; m&atilde;o, que a levo errada.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Nesse dia &aacute; tardinha, na
+estalage<br />
+
+tinha entrado uma
+velha; era um diabo,<br />
+
+que isso... s&oacute; visto! pequenina, magra,<br />
+
+muito preta; era um bilro de pau santo.<br />
+
+Tinha pela cabe&ccedil;a um
+len&ccedil;o pardo<br />
+
+atado pela barba, um manteo ru&ccedil;o,<br />
+
+e
+uma mantinha exotica e de agoiro.</div>
+
+<span class="pagenum">[18]</span>
+<div class="poetry1">Tinha ent&atilde;o uma cara
+n&atilde;o sei como;<br />
+
+nem parecia
+cara; era um n&oacute; cego<br />
+
+que fazia azoar a toda a gente;<br />
+
+mas
+muito experta; e uns olhos como um bixo.<br />
+
+&iexcl;Tambem aquella rez
+tinha no corpo<br />
+
+muita pipa de sangue de crean&ccedil;as!</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Cheguei eu &aacute; estalage, e
+ia com fome;<br />
+
+vou-me &aacute;
+carga do f&ocirc;ro, agarro uns ovos,<br />
+
+mando
+os frigir com mel, que &eacute; papa
+fina;<br />
+
+e ent&atilde;o para quem tem de andar de noite<br />
+
+dizem que
+&eacute; bom, que livra do catarro,<br />
+
+j&aacute; se sabe com
+quatro pingarolas.<br />
+
+Ia se preparando o meu
+guizado,<br />
+
+e era um cheiro t&atilde;o bom pela cosinha,<br />
+
+que isso
+n&atilde;o ha dizer. J&aacute; dois gallegos,<br />
+
+e mais, tinham
+ceado; andavam tolos<br />
+
+a cochichar, e &aacute;s voltas pela casa,<br />
+
+um
+olho em mim, outro olho na tigella,<br />
+
+e eu muito concho a rir, e a pescar
+tudo.<br />
+
+Basta dizer que me pediram ambos<br />
+
+que vendesse um
+quinh&atilde;o; &iexcl;e isto em gallegos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.</div>
+
+<div class="poetry1">Mas o monstro da
+velha era uma estaca<br />
+
+ali muito direita ao p&eacute; dos ovos,<br />
+
+com
+cada olho aberto, &iexcl;que te parto!<br />
+
+Era mesmo um olhar de inveja
+e zanga.<br />
+
+Logo eu tive m&aacute; f&eacute; co'a tal menina<br />
+
+quando ella perguntou quem era o dono.<br />
+
+Por&eacute;m quem mal
+n&atilde;o usa mal n&atilde;o cuida;<br />
+
+sentei-me &aacute;
+meza a codear nos ovos.</div>
+
+<span class="pagenum">[19]</span>
+<div class="poetry1">Ora
+agora o vereis: a minha amiga<br />
+
+am&uacute;a-se n'um canto, mais
+vermelha<br />
+
+que um piment&atilde;o, e eu sempre a observar n'ella.<br />
+
+Ferra os olhos em mim com tal quezilia,<br />
+
+que a n&atilde;o ser por
+temer a Deus e a ella,<br />
+
+batia-lhe co'o prato pelas trombas.<br />
+
+Botava cada
+lagrima... &iexcl;de punho!<br />
+
+dava cada suspiro, a excommungada,<br />
+
+&iexcl;que punha medo! accendo o meu cigarro,<br />
+
+pago, monto a
+cavallo, e sigo a estrada.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Era j&aacute; noite escura, e
+um vento frio</div>
+
+<div class="poetry1">como o gran Satanaz.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+&iquest;Que diabo &eacute; isso?</div>
+
+<div class="poetry1">ressona?; ou j&aacute; na
+costa anda algum moiro?<br />
+
+&#8213;Avante; s&atilde;o as ramas que
+sussurram.<br />
+
+&#8213;Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando<br />
+
+pela estrada
+real por ser j&aacute; tarde,<br />
+
+e a assobiar s&oacute;sinho o
+<em>tiroliro</em>.<br />
+
+Vai sen&atilde;o quando,
+estacam-se-me as bestas.<br />
+
+&Aacute; esquerda, como ahi, ficava um
+monte;<br />
+
+d'esta banda um pinhal muito fechado;<br />
+
+de sorte que o caminho (e
+ent&atilde;o mui longe<br />
+
+de todo o povoado) era um soturno,<br />
+
+que nem
+Rold&atilde;o o andava &aacute;quellas horas.<br />
+
+Entrei logo a
+suar e a arripiar-me;<br />
+
+e as mulas n'um inferno de pinotes<br />
+
+sem
+qu&ecirc; nem para qu&ecirc;; davam taes rinchos,<br />
+
+que se fundia
+o ch&atilde;o; pregavam coices,<br />
+
+que assoviavam no ar;
+&iexcl;que contradan&ccedil;a!<br />
+
+era uma groza de diabos doidos,<br />
+
+e eu mais doido, no meio, &aacute; bordoada.<sup><a href="#nt7">[2]</a></sup></div>
+
+<span class="pagenum">[20]</span>
+<div class="poetry1">Aqui
+digo eu como dizia o Frade<br />
+
+n'outro serm&atilde;o de um Santo;
+<em>n&atilde;o lh'o pinto<br />
+
+por n&atilde;o ter um pincel</em>.
+Mas fa&ccedil;a
+ideia<br />
+
+que tal eu ficaria lobrigando<br />
+
+(&iexcl;eu te arrenego diabo!)
+uma luzerna<br />
+
+a ir e a vir, &aacute; roda, e acima e abaixo,<br />
+
+l&aacute; longe no pinhal. Que era bruxedo<br />
+
+tive eu logo de
+f&eacute;; muitos que m'o ouvem<br />
+
+riem-se, e tal; deixal-os rir; ha
+bruxas;<br />
+
+que isso sei eu; &iexcl;e ent&atilde;o ali!
+&iexcl;t&atilde;o tarde!<br />
+
+Por for&ccedil;a era algum sabbado
+l&aacute; d'ellas,<br />
+
+que as taes amigas juntam-se de noite<br />
+
+a fazer os
+seus sabbados, o mesmo<br />
+
+como n&oacute;s no Natal &aacute; meia
+noite...<br />
+
+Ha muita comezana de crean&ccedil;as,<br />
+
+sarrabulhos de
+sangue, cambalhotas,<br />
+
+e umas rizadas..... que at&eacute; Deus se
+admira.<br />
+
+No meio anda um pretinho muito gordo,<br />
+
+que &eacute; o
+proprio diabo em carne e osso.<br />
+
+Diz ent&atilde;o muita coisa a todas
+ellas,<br />
+
+d&aacute;-lhe l&aacute; seus conselhos, toma contas<br />
+
+do
+que teem feito, e..... acaba a tal comedia.<br />
+
+Untam-se co'uma untura que
+l&aacute; sabem,<br />
+
+transformam-se em corujas e mosquitos,<br />
+
+o diabo e o
+lume sorvem-se na terra<br />
+
+dizendo boa noite at&eacute; tal dia,<br />
+
+e
+ellas voltam-se a casa a armar j&aacute; outras.<br />
+
+Isto sabia-o eu
+como os meus dedos.<br />
+
+Lembrou-me a tal gulosa da estalage,<br />
+
+e
+ent&atilde;o &eacute; que dei tudo por perdido.<br />
+
+Deitei
+f&oacute;ra o cigarro, e entro em voz baixa<br />
+
+(&iexcl;sempre isto
+do pavor faz muita asneira!)</div>
+
+<span class="pagenum">[21]</span>
+<div class="poetry1">entrei eu
+co'as m&atilde;os postas para as mulas<br />
+
+a pedir-lhes co'as lagrimas
+nos olhos,<br />
+
+pelas Almas Bemditas, que deixassem<br />
+
+todo aquelle motim, que
+me perdiam;<br />
+
+que fugissem d'ali, que andavam bruxas,<br />
+
+e que p&eacute;
+ante p&eacute; viessem vindo;<br />
+
+que eu promettia uma
+ra&ccedil;&atilde;o dobrada.<br />
+
+Partimos. De repente
+desemb&eacute;sta<br />
+
+d'ao-p&eacute; da tal luzerna um certo vulto<br />
+
+direito para n&oacute;s como uma x&aacute;ra.<br />
+
+Com seis
+milh&otilde;es de grozas de diabos!<br />
+
+&iquest;quem havia de ser,
+sen&atilde;o a velha?<br />
+
+Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,<br />
+
+chega ao cimo, e de l&aacute; muito sizuda<br />
+
+entra a dizer-me adeus,
+e (&iexcl;t'arrenego!)<br />
+
+a fazer-me uma cara dos infernos...<br />
+
+&#8213;&iquest;E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?<br />
+
+&#8213;Certo
+&eacute; que lembrou bem; tambem agora<br />
+
+l&aacute; me faz
+confus&atilde;o ter visto a cara.<br />
+
+&iquest;Escuro? isso era
+escuro como um prego;<br />
+
+n&atilde;o sei como isso foi, mas vi-lh'a, e
+vi-lh'a;<br />
+
+&iexcl;assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje<br />
+
+t&atilde;o bem encasquetada no juizo,<br />
+
+que a podia pintar, e era
+pintura,<br />
+
+que urrariam os bois se lh'a mostrassem.<br />
+
+Quer escuro quer
+n&atilde;o, vi-a, e est&aacute; dito.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas o bom n&atilde;o foi isso; o
+mais bonito<br />
+
+foi entrar de
+repente o gallinha&ccedil;o<br />
+
+nas canastras da carga em cantarolas,<br />
+
+a
+romper, a fugir, e eu pila pila<br />
+
+para aqui, para ali, correndo
+&aacute;s cegas<br />
+
+sem as poder juntar. Foi
+se-me a noite<br />
+
+n'esta labuta&ccedil;&atilde;o; de cada canto</div>
+
+<span class="pagenum">[22]</span>
+<div class="poetry1">sentia um cacarejo, ia
+&aacute;s carreiras,<br />
+
+gallinha... por um oculo. J&aacute; rouco,<br />
+
+moido e desesp'rado, ao romper d'alva<br />
+
+vejo as minhas senhoras mui
+contentes<br />
+
+todas juntas n'um bando ao p&eacute; das mulas.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas alto; esta &eacute; peor.
+&iquest;N&atilde;o
+v&ecirc;? repare:<br />
+
+&iexcl;um clar&atilde;o para ali!! d'esta
+nos trincam;<br />
+
+&iexcl;meu Deus! &iexcl;onde diabo eu tinha a
+morte!!<br />
+
+&#8213;Alegra-te, Golgan; &iquest;que noite &eacute; esta?<br />
+
+&#8213;Para n&oacute;s ambos de Fieis defuntos.<br />
+
+&#8213;De San
+Jo&atilde;o.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;&iexcl;Ah! sim; pois &eacute; fogueira,</div>
+
+<div class="poetry1">e n&atilde;o
+&eacute; outra coisa. &iexcl;Ora o diabo!<br />
+
+sempre tive uma
+colica soffr&iacute;vel.<br />
+
+Mas vamos n&oacute;s a andar, se lhe
+parece.<br />
+
+Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,<br />
+
+n'umas ras&otilde;es
+que teve com meu tio,<br />
+
+que era barbeiro ent&atilde;o, e o Padre
+Mestre<br />
+
+era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,<br />
+
+ia fazer-lhe a barba e
+mais ao preto,<br />
+
+que era um ti&ccedil;&atilde;o que s&oacute;
+&aacute;
+bofetada;<br />
+
+&iexcl;mas muito presumido! &iexcl;e ent&atilde;o
+por
+mo&ccedil;as<br />
+
+dava o grande magano um cavaquinho!!...<br />
+
+Com que emfim,
+tinha o Padre este ditado:<br />
+
+aonde ha lume ha fumo; e eu ent&atilde;o
+digo<br />
+
+que por for&ccedil;a onde ha lume ha-de haver gente;<br />
+
+e que
+onde ha gente ha casa; e toda a casa<br />
+
+tem a sua cosinha, e
+ent&atilde;o ce&acirc;mos.<br />
+
+E &eacute; partir de repente em
+quanto ha lume.<br />
+
+...........................................................<br />
+
+...........................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[23]</span>
+<h4>II</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Eis aqui um dialogo de ensanchas<br />
+
+sem
+geito, sem sabor, sem fim, sem
+nexo&#8213;<br />
+
+grita o leitor perdendo as estribeiras.<br />
+
+&iquest;Onde foi
+isto? &iquest;ou quando? &iquest;quem
+s&atilde;o elles?<br />
+
+&iquest;onde v&atilde;o?
+&iquest;d'onde veem?</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Leitor amigo,</div>
+
+<div class="poetry1">ha duas horas que soub&eacute;ras
+tudo,<br />
+
+se o cruel
+arrieiro o permittisse;<br />
+
+mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.<br />
+
+Quanto a elle, presumo que o conheces;<br />
+
+o nome do outro autor
+dir-t'o-hei n'um verso<br />
+
+n&atilde;o peor que outros muitos
+portuguezes:<br />
+
+Antonio Feliciano de Castilho.<br />
+
+Venho do Minho de assistir
+a bodas;<br />
+
+recolho me outra vez &aacute;
+Castanheira <sup><a href="#nt8">[3]</a></sup><br />
+
+a casa do Prior, a fazer versos,<br />
+
+beber-lhe o vinho
+verde, e dormir muito.<br />
+
+O theatro da scena &eacute; certo monte<br />
+
+de
+que me esquece o nome; o anno, e o dia,<br />
+
+Mil oitocentos e vinte e oito,
+&aacute; noite,<br />
+
+vespera de S. Jo&atilde;o. Se mais desejas,<br />
+
+&eacute; perguntar, que eu te respondo a tudo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas o melhor (se queres um conselho)<br />
+
+&eacute; fazer-me um favor,
+ao qual protesto<br />
+
+ser toda a vida grato: anda comnosco;</div>
+
+<span class="pagenum">[24]</span>
+<div class="poetry1">a
+noite est&aacute; bellissima; podemos<br />
+
+ir co'o nosso vagar
+pataratando,<br />
+
+e conduzindo as mulas pela redea.<br />
+
+Mas tens medo ao Golgan;
+pois boas noites;<br />
+
+fica-te em paz, regala te, que eu juro<br />
+
+que estando em
+teu logar fazia o mesmo.<br />
+
+Se queres, faze &aacute;s paginas
+seguintes<br />
+
+onde vai mais Golgan (porque j&aacute; agora<br />
+
+hei-de
+contar a historia por miudo)<br />
+
+faze, digo, a taes paginas o mesmo<br />
+
+que eu,
+tu, e elle, e n&oacute;s, e v&oacute;s, e elles,<br />
+
+fazemos
+&aacute;s dos <em>Martyres</em>
+do Padre,<br />
+
+que s&atilde;o apezar d'isso uma obra prima.<br />
+
+Passa-as em
+claro, e dize que j&aacute; leste.<br />
+
+Quem fala assim n&atilde;o
+quer suor alheio.<br />
+
+E adeus; at&eacute; mais ver que vou com pressa.<br />
+
+............................................................<br />
+
+............................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>III</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;Olhe l&aacute;, S&ocirc;r
+Doutor; diz um livrito,<br />
+
+que a
+gente sem falar &eacute; como os burros;<br />
+
+e eu digo que diz bem.
+Quero contar-lhe, <br />
+
+para ver se se encurta este caminho,<br />
+
+o mais que se
+passou depois da historia.<br />
+
+Mas v&aacute; picando a
+mula; &iexcl;olhe a fogueira!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Com que, como eu j&aacute; disse,
+ao outro dia<br />
+
+vi as gallinhas
+ao redor das bestas;<br />
+
+torno-as a p&ocirc;r na carga, e digo logo:<br />
+
+A
+Santa-Cruz n&atilde;o v&atilde;o voc&ecirc;s de certo;<br />
+
+nem
+voc&ecirc;s, nem a carga dos presuntos,<br />
+
+nem nada que aqui vai,
+&iexcl;com trinta infernos!</div>
+
+<span class="pagenum">[25]</span>
+<div class="poetry1">Servos de Deus t&atilde;o bons,
+t&atilde;o meus amigos,<br />
+
+&iexcl;haviam comer tal! &iexcl;metter no corpo<br />
+
+talvez quanto
+bruxedo ha neste mundo!<br />
+
+Deus me livre do mais, que de
+encarr&ecirc;gos<br />
+
+posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas<br />
+
+direito
+&aacute; Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,<br />
+
+com carga e tudo.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;&iquest;As mulas!</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Pois as mulas</div>
+
+<div class="poetry1">tinham tantos diabos na muchilla<br />
+
+como as gallinhas, os
+boreis, e os ovos.<br />
+
+Mas eu era rapaz; se fosse agora,<br />
+
+n&atilde;o
+digo que o fizesse. O divertido<br />
+
+foi andar eu trez annos para quatro<br />
+
+a
+correr Portugal e Hespanha toda<br />
+
+a buscar confessor; &iexcl;tudo
+ignorante!<br />
+
+Padre douto, nem um que me absolvesse.<br />
+
+Por fim achei o filho
+de um cigano,<br />
+
+dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.<br />
+
+Mas
+ent&atilde;o penitencia n&atilde;o falemos;<br />
+
+se a quizesse
+rezar, &iexcl;nem toda a vida!<br />
+
+Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro
+duro,<br />
+
+e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;<br />
+
+mas disse-me que havia
+at&eacute; ser velho<br />
+
+mortificar o corpo co'um vergalho,<br />
+
+e com
+muitos jejuns. &iexcl;Se eu f&ocirc;ra pato!<br />
+
+Sabe
+ent&atilde;o o que fiz inda algum tempo?<br />
+
+era correr de
+ch&ocirc;to os meus peda&ccedil;os,<br />
+
+e depois
+descan&ccedil;ar.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">Deixemos isto,</div>
+
+<div class="poetry1">que n&atilde;o lhe importa muito,
+e a mim nem nada;<br />
+
+vim para a minha terra apenas pude,<br />
+
+muito pimp&atilde;o, e cheio
+como um ovo.</div>
+
+<span class="pagenum">[26]</span>
+<div class="poetry1">Namorei,
+namoraram-me bastantes;<br />
+
+por encurtar ras&otilde;es, casei com uma<br />
+
+que era filha do irm&atilde;o de um primo ou tio<br />
+
+de um meu compadre
+Abreu, que era cunhado<br />
+
+da sogra d'esta mesma rapariga,<br />
+
+e enteado do
+irm&atilde;o do Cura velho;<br />
+
+tudo gente limpinha, muito boa,<br />
+
+e
+temente ao Senhor, que &eacute; todo o caso.<br />
+
+Gastei para
+imp&ocirc;r Bulla os meus tanturrios,<br />
+
+&iexcl;e n&atilde;o
+foi l&aacute; t&atilde;o pouco!
+&iexcl;Veja agora:<br />
+
+&iexcl;para a gente casar largar dinheiro!<br />
+
+&Eacute; como ir para a India ou para a f&ocirc;rca,<br />
+
+e pagar
+inda em cima aos da senten&ccedil;a.<br />
+
+Perguntei ao Banqueiro a causa
+d'isto,<br />
+
+disse me elle que a causa era n&oacute;s termos<br />
+
+quatro
+humores no corpo, e d'aqui vinha<br />
+
+haver os quatro gr&atilde;os na
+parentela;<br />
+
+que ella era minha prima, e que entre primos<br />
+
+havia os quatro
+gr&atilde;os todos inteiros.<br />
+
+N&atilde;o se riu, nem me eu ri;
+paguei-lhe em pe&ccedil;as<br />
+
+n&atilde;o s&oacute; os quatro
+gr&atilde;os que se
+n&atilde;o viam,<br />
+
+mas ainda mais c&aacute; certa brincadeira.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Deixar; fosse o que fosse; emfim,
+casei me.<br />
+
+Aquelle mez primeiro &eacute; uma delicia;<br />
+
+foi
+todo elle um <em>cantate</em>; muito
+amigos,<br />
+
+muito beijo, e comer; muita broega,<br />
+
+muita romage, e tudo muito
+e muito.<br />
+
+Nunca houve um par assim t&atilde;o contentinho;<br />
+
+nanja na
+aldeia e na comarca em roda;<br />
+
+era at&eacute; amizade escandalosa.<br />
+
+Tanto assim, que o Prior, mais era amigo<br />
+
+de fazer a vontade a toda a
+gente,<br />
+
+n'um dia santo &aacute; pratica da Missa</div>
+
+<span class="pagenum">[27]</span>
+<div class="poetry1">deu-me um foguete &iexcl;caspite!
+Disse
+elle<br />
+
+que marido e mulher com tal namoro<br />
+
+era coisa mais vil que mil
+diabos.<br />
+
+Fizemos-lhe a vontade antes de muito;<br />
+
+ella entrou-me a azoar
+com trinta coisas,<br />
+
+e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,<br />
+
+o
+asneir&atilde;o do Juiz, que era vizinho,<br />
+
+tomou isto em trambolho,
+e amea&ccedil;ou-me<br />
+
+de me encaixar no fundo dos infernos.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;E ent&atilde;o que
+lhe parece a entaladella?<br />
+
+Vivia
+em paz, ralha o Prior; dezanco-a,<br />
+
+vem o Juiz, promette-me a enxovia.<br />
+
+&Eacute; como o conto de um palerma velho<br />
+
+que ia a p&eacute;
+co'um rapaz e mais um burro.<br />
+
+&#8213;Bem sei.</div>
+
+<div class="poetry3">&#8213;Pois sim senhor. Com que, tivemos,</div>
+
+<div class="poetry1">n&atilde;o digo bem; teve ella
+oito ou dez filhos;<br />
+
+e sempre a dois e dois; forte coelha!<br />
+
+Entrei a dar
+&aacute; bruta; acudiu povo,<br />
+
+ella fugiu, mas eu fugi sem ella.<br />
+
+E
+d'ent&atilde;o para c&aacute; desandou tudo.<br />
+
+E hoje ando aqui
+por mo&ccedil;o de arrieiro,<br />
+
+a perder noites, e a estrompar as
+ventas.<br />
+
+Aqui est&aacute; por que eu digo que este mundo<br />
+
+&eacute; coisa muito celebre! uns ovitos<br />
+
+e uma pinga de mel fizeram
+tudo.<br />
+
+............................................................ </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Brava!
+&iquest;n&atilde;o ouve uns sinos que
+repicam?<br />
+
+&iexcl;olhe um foguete! &iexcl;truz! &iexcl;Viva o
+Vinagre!<br />
+
+&iexcl;e viva a ceia e a cama que est&atilde;o perto!</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[28]</span>
+<h4>IV</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Com effeito, assim era; a poucos
+passos<br />
+
+j&aacute; se ouvia
+tambor, gaita de folles,<br />
+
+risadas, bombas. Apressando as mulas<br />
+
+na
+direc&ccedil;&atilde;o dos sons e da fogueira,<br />
+
+descemos uma
+encosta, a cujas abas,<br />
+
+entre uns poucos de antigos castanheiros,<br />
+
+uns
+cinco ou seis pastores se occupavam<br />
+
+a abobadar de murta uma fontinha.<br />
+
+Interromperam logo o seu trabalho<br />
+
+para nos vir saudar; mostraram pena<br />
+
+de ouvir que nos perd&ecirc;ramos no monte,<br />
+
+off'recendo
+&aacute; porfia os seus albergues.<br />
+
+N&atilde;o findara a
+benevola contenda,<br />
+
+se um d'elles agarrando o freio &aacute; mula<br />
+
+me
+n&atilde;o posesse a andar; agradecendo<br />
+
+os desejos dos mais que
+inda ficavam,<br />
+
+segui affoitamente o nosso guia.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Uma ponte de pau que
+atravess&aacute;mos<br />
+
+coberta de
+chor&otilde;es, nos poz &aacute; borda<br />
+
+de um trigo
+j&aacute; maduro e sussurrante,<br />
+
+contiguo ao seu casal.
+&iexcl;Quanto eu folgara<br />
+
+de descrever tudo isto! Uma casinha<br />
+
+plantada ahi como risonha ilhota<br />
+
+n'um vasto mar de tremulas searas,<br />
+
+e
+clara como a neve, ou como a lua<br />
+
+que a espreitava do ceo por entre as
+folhas<br />
+
+de um esquivo parreiral. Junto &aacute;s paredes,<br />
+
+de rosas e
+limeiras revestidas,<br />
+
+canap&eacute;s de corti&ccedil;a
+apresentavam<br />
+
+a imagem do descan&ccedil;o e a do convite.<br />
+
+N&atilde;o era necessario entrar a porta,</div>
+
+<span class="pagenum">[29]</span>
+<div class="poetry1">para j&aacute; conhecer o
+domicilio<br />
+
+da
+hospedage e da paz; que as proprias auras,<br />
+
+como que em t&atilde;o
+poeticas folhagens<br />
+
+se ouviam sussurrar: &iexcl;&laquo;Bemvindo
+o
+estranho!&raquo;</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">N&atilde;o longe lhe ficava a sua
+aldeia</div>
+
+<div class="poetry1">na c'roa de
+um oiteiro; pensarieis,<br />
+
+vendo-as t&atilde;o perto, e um bosque a
+separal-as,<br />
+
+a aldeia t&atilde;o brilhante de fogueiras<br />
+
+e esta casa
+t&atilde;o s&oacute; mas t&atilde;o alegre,<br />
+
+pensarieis,
+como eu, ver n'uma festa<br />
+
+mo&ccedil;a ausente e feliz, amante e
+amada,<br />
+
+que entre o prazer commum n&atilde;o quer nem deve<br />
+
+ir
+desfazer seus pensamentos doces.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Visinho seu mui proximo era o templo,</div>
+
+<div class="poetry1">aos valles do arredor
+alardeando<br />
+
+na sua torre branca um Anjo de oiro,<br />
+
+e a um lado a
+Residencia, occulta em parte<br />
+
+n'um ramilhete de altas cerejeiras.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Nunca m&atilde;o de pintor juntou
+n'um quadro</div>
+
+<div class="poetry1">objectos mais simpathicos. Tal como<br />
+
+tr&eacute;pido arroio em tacita
+espessura<br />
+
+das copas bebe a sombra, e envia &aacute;s copas,<br />
+
+do sol
+reflexo voadores raios,<br />
+
+do casal a presen&ccedil;a alegra o templo;<br />
+
+a presen&ccedil;a do templo est&aacute; lan&ccedil;ando<br />
+
+sobre o casal o s&eacute;rio da virtude.<br />
+
+Tudo isto sob um ceo de
+fertil ben&ccedil;&atilde;o,</div>
+
+<span class="pagenum">[30]</span>
+<div class="poetry1">sobre um ch&atilde;o de
+abundancia, e no
+ar mais puro!<br />
+
+&#8213;&iexcl;Meu Pae,!&#8213;grita o pastor entrando
+&aacute; pressa&#8213;<br />
+
+minhas irmans! &iexcl;um hospede!&#8213;</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">A tal nome,</div>
+
+<div class="poetry1">como se fosse
+&aacute; voz de alguma fada,<br />
+
+com repentina luz nos apparecem<br />
+
+crean&ccedil;as folgasans, esbeltas mo&ccedil;as,<br />
+
+um
+anci&atilde;o, e uma velha. Imagin&aacute;reis<br />
+
+ver
+Gra&ccedil;as, ver Amores, ver Nap&ecirc;as,<br />
+
+trajados de
+alde&atilde;os, e honrando os lares<br />
+
+de Baucis e
+Phil&eacute;mon, que o parecem<br />
+
+na edade e na virtude os meus dois
+velhos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+N&atilde;o mora entre se&aacute;ras a etiqueta;<br />
+
+mas sobre
+herdada meza de pinheiro<br />
+
+em troco adeja a cordeal franqueza,<br />
+
+o bom
+desejo adubo da abundancia,<br />
+
+e a amisade dos bons, filha do instincto,<br />
+
+que nasce qual relampago, mas dura.<br />
+
+Deu-se o primeiro instante ao
+comprimento,<br />
+
+logo o segundo aos commodos;<br />
+
+o resto &aacute;
+conversa, e ao bulicio de tal noite.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,<br />
+
+vital perfume de mellifluos
+bolos,<br />
+
+que em molles vira&ccedil;&otilde;es traz a alegria.<br />
+
+Aquella vai e vem compondo a meza;<br />
+
+esta afervora a ceia, e a cada
+instante<br />
+
+corre &aacute; janella que descobre a aldeia.<br />
+
+Juntam-se
+&aacute; bulha os sinos da parochia,</div>
+
+<span class="pagenum">[31]</span>
+<div class="poetry1">que o
+sacrist&atilde;o na vespera do Orago<br />
+
+jurou provar seu zelo aos Ceos e &aacute; terra.<br />
+
+O festivo repique
+exalta as mentes,<br />
+
+os meninos n&atilde;o param, correm, gritam,<br />
+
+repartem bombas, furtam-se valverdes,<br />
+
+e rindo amea&ccedil;am fogo
+&aacute; pipa velha.<br />
+
+A boa annosa m&atilde;e ralha do estrondo,<br />
+
+e o faz inda maior; o esposo enfia<br />
+
+uma sobre outra historias do seu
+tempo.<br />
+
+O avito candieiro de tres lumes<br />
+
+cobre da meza o centro, e chama
+&aacute; ceia;<br />
+
+a s&ocirc;lta sociedade eis se lhe aggrega.<br />
+
+N&atilde;o foi longo o festim, mas cada copo<br />
+
+lhe augmentava o
+praser. &iexcl;Salve tres vezes,<br />
+
+&oacute; dos tres lumes
+candieiro avito!<br />
+
+&iexcl;quanto amor, quanta paz, que bens, que
+festas<br />
+
+n&atilde;o tens visto florir em tua casa!<br />
+
+&iexcl;quantas
+m&atilde;os t&atilde;o felizes como puras<br />
+
+te h&atilde;o
+accendido em noite igual! &iexcl;quem sabe<br />
+
+que de memorias para ti
+conservas!<br />
+
+&iexcl;Em premio da hospedage aqui te accendam<br />
+
+longas
+eras em noites semelhantes<br />
+
+dignos de seus av&oacute;s contentes
+netos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Iria a muda apostrophe adiante,<br />
+
+mas ouviu-se o
+zabumba.&#8213;&iexcl;Ahi veem! &iexcl;s&atilde;o
+elles!&#8213;<br />
+
+dizem todos, e todos saem pulando.<br />
+
+&#8213;Olhae; olhae;
+&iexcl;nem uma luz na aldeia!<br />
+
+este anno veio tudo. &iexcl;Que
+alegria<br />
+
+ter&aacute; o nosso Parocho!</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Maria,</div>
+
+<div class="poetry1">d&aacute; c&aacute; o meu
+chap&eacute;o.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iexcl;Corre, Pedrinho!</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&iquest;Onde est&aacute;
+meu
+irm&atilde;o?</div>
+
+<span class="pagenum">[32]</span>
+<div class="poetry2">&#8213;&iexcl;N&atilde;o se
+demorem!</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;Vamos dan&ccedil;ar.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;Perdi as alcaxofras.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;Vinde por c&aacute;;
+passemos-lhes
+adiante;<br />
+
+que rancho que l&aacute; vem!.....................<br />
+
+..........................................................<br />
+
+........................... Golgan, que eu fosse,<br />
+
+n&atilde;o pintara a
+estrondosa miscellanea<br />
+
+que v&ocirc;a do cazal ao Presbyterio.<br />
+
+Lavra
+nos proprios velhos o alvoro&ccedil;o;<br />
+
+v&atilde;o co'os mais
+quasi a par; lavra em mim mesmo,<br />
+
+estranho &aacute; festa. O pateo
+illuminado<br />
+
+nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.<br />
+
+&#8213;Viva o nosso
+Prior!...</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iexcl;Viva!!!...</div>
+
+<div class="poetry5">
+Mil vozes</div>
+
+<div class="poetry1">restrugem o ecco apenas avistaram<br />
+
+rindo &aacute; janella
+o velho gordo e alegre.<br />
+
+&#8213;&iexcl;Viva o Senhor San Jo&atilde;o!
+&iexcl;viva a
+alegria!</div>
+
+<br />
+
+<h4>V</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bate o zabumba; a muzica rebenta;<br />
+
+fogem foguetes pelos ares livres<br />
+
+estrepitando; o campanario ovante<br />
+
+de jubilo endoidece; repentina<br />
+
+por
+dez partes acceza alta fogueira<br />
+
+dentro de um vasto circulo purpureo<br />
+
+mostra o prazer brincando em cada rosto.<br />
+
+Bello &eacute; ver n'este
+lance as raparigas<br />
+
+compondo mais o len&ccedil;o, alevantando<br />
+
+o
+chapeo, que o semblante lhes encobre,<br />
+
+dando, como a descuido, um toque
+leve,<br />
+
+mas gracioso, &aacute;s flores que lh'o adornam,<br />
+
+e
+&aacute; flor do seio, e ao la&ccedil;o do collete.<br />
+
+&iexcl;Quantos n&oacute;s ata amor n'esses instantes!</div>
+
+<span class="pagenum">[33]</span>
+<div class="poetry1">&iexcl;quantos outros aperta!
+&iexcl;em quantos outros<br />
+
+embebe o espinho de um sutil ciume! <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Chiton! temos o Parocho na frente;<br />
+
+e as cangalhas
+v&ecirc;em mais do que parece.<br />
+
+A <em>alegria decente</em>, eis o estribilho<br />
+
+com que
+recheia as praticas. Se cantam,<br />
+
+co'a cabe&ccedil;a e co'o
+p&eacute; bate o compasso;<br />
+
+se pulam boa dan&ccedil;a em honra
+ao Santo,<br />
+
+bota fora uma can. Por isso o baile<br />
+
+circula agora a estridula
+fogueira;<br />
+
+por isso o San Jo&atilde;o vai toda a noite<br />
+
+injuriado em
+canticos devotos.</div>
+
+<br />
+
+<h4>VI</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Meia noite. Que som mysterioso!<br />
+
+interrup&ccedil;&atilde;o no
+baile e nos descantes.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Fada das amorosas prophecias,<br />
+
+tu, tu passaste agora em concha aerea<br />
+
+tirada pelo zephyro; sentimos<br />
+
+todos n&oacute;s tua magica
+presen&ccedil;a.<br />
+
+&iexcl;Boa viagem, Fada, e boa noite!<br />
+
+&iexcl;Salve, hora duodecima; bateste,<br />
+
+e descerrou-se a porta do
+futuro.<br />
+
+Sua nevoa desfeita em orvalhadas<br />
+
+vai nas plantas eleitas, vai
+nas flores<br />
+
+mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes<br />
+
+ben&ccedil;&atilde;o, certeza, amor, felicidade.<br />
+
+J&aacute;
+se interrompem bailes e descantes.<br />
+
+Embebida em potentes nigromancias</div>
+
+<span class="pagenum">[34]</span>
+<div class="poetry1">toda esta multid&atilde;o por
+modos
+varios<br />
+
+exerce escrupulosa altos mysterios.<br />
+
+Mas renasce o
+alvoro&ccedil;o; &eacute; porque os copos<br />
+
+dos bilhetes
+fatidicos chegaram<br />
+
+da ama nas m&atilde;os com riso de importancia. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o falta aqui rapaz nem rapariga&#8213;<br />
+
+diz ella;&#8213;o senhor
+Padre escreveu todos,<br />
+
+mesmo &aacute; vista do rol dos confessados.<br />
+
+Meia noite j&aacute; deu; quem quer casar-se,<br />
+
+pode vir vindo.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Ao grande reboli&ccedil;o</div>
+
+<div class="poetry1">succedeu a
+atten&ccedil;&atilde;o, que a cada sorte<br />
+
+outra vez se converte
+em gargalhadas.<br />
+
+Por cada par que amor approvaria,<br />
+
+veem disparates
+comicos &aacute;s duzias,<br />
+
+e d&atilde;o rebate &aacute;s
+palmas e epigrammas.<br />
+
+O proprio bom do velho applaude a tudo,<br />
+
+e por
+primeira vez da sua vida<br />
+
+encontra em si chorrilhos de finuras.<br />
+
+J&aacute; pede a uma o bolo do noivado;<br />
+
+quer ser padrinho de outra;
+e &aacute;s mais bonitas<br />
+
+quer baptisar de gra&ccedil;a os
+pequerruchos. <br />
+
+<br />
+
+Muito custa no mundo o ser discreto<br />
+
+sem descambar o p&eacute;!
+coisas escapam...<br />
+
+que &eacute; por Deus n&atilde;o haver o
+Santo Officio,<br />
+
+como esta ao nosso padre: </div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Olhae, rapazes,</div>
+
+<div class="poetry1">vai n'estas sortes o que vai no mundo:<br />
+
+o acaso e a
+Providencia, ao que parece,<br />
+
+ambos l&ecirc;em pelo mesmo Breviario. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o foi dos mais christ&atilde;os o epiphonema,<br />
+
+mas fez
+rir. O Golgan neste comenos</div>
+
+<span class="pagenum">[35]</span>
+<div class="poetry1">chega,
+furta uma sorte, e diz abrindo-a:<br />
+
+&#8213;Esta, seja quem f&ocirc;r,
+&eacute; c&aacute; p'ra
+nostri. <br />
+
+<br />
+
+Pede que a leiam; l&ecirc;-se-lhe:&#8213;<span class="smallcaps">O
+coveiro</span>.&#8213;<br />
+
+Mudo o povo se entre-olha; e de repente<br />
+
+co'as
+pragas do Golgan destampam risos,<br />
+
+como os que o padre Homero encaixa
+aos deuses;<br />
+
+&iexcl;inextinguiveis risos! Mas n&atilde;o cede<br />
+
+a
+chufas nem a agoiro o var&atilde;o forte;<br />
+
+e com m&atilde;o bem
+segura extrae sublime<br />
+
+do outro copo outra sorte:&#8213;<span class="smallcaps">Ambrosia
+Tr&eacute;cula</span>. <br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o do pateo o riso clamoroso<br />
+
+deveu-se ouvir no Artabro e
+Guadiana<br />
+
+retumbou nos ceos: <span class="smallcaps">Tr&eacute;cula...
+Tr&eacute;cula</span>. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;Quem diabo &eacute; esta Ambrosia?&#8213;o heroe pergunta.<br />
+
+&#8213;Sou eu&#8213;responde a ama.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iexcl;Est&aacute; brincando!</div>
+
+<div class="poetry1">&eacute; talvez sua neta ou
+titrineta. &#8213;V&aacute;-se, tolo.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;Olhe c&aacute;, senhora tia,</div>
+
+<div class="poetry1">n&atilde;o vai a arrenegar;
+n&atilde;o lhe pergunto<br />
+
+por cara, corpo e modos, que s&atilde;o
+lindos;<br />
+
+&iquest;mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa? <br />
+
+<br />
+
+Com o desdem mais dramatico, a matrona<br />
+
+voltou costas; e o
+b&ecirc;bado prosegue:<br />
+
+&#8213;S&ocirc; Reverendo, n&atilde;o lhe
+aceite os banhos,<br />
+
+que eu sou casado, e ponho impedimentos. <br />
+
+<br />
+
+Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem<br />
+
+tirar tambem; tirei;
+&iquest;quem tiraria?<br />
+
+uma das filhas do meu bom
+Phil&eacute;mon.<br />
+
+Recebi parabens de todo o povo;<br />
+
+deixei-o bem
+disposto a divertir-se,</div>
+
+<span class="pagenum">[36]</span>
+<div class="poetry1">e tornei co'o o meu <em>sogro</em>
+ao
+nosso
+albergue.<br />
+
+Instou que me deitasse; respondi-lhe<br />
+
+que em noite de
+San-Jo&atilde;o ninguem se deita;<br />
+
+que alem d'isso a jornada
+f&ocirc;ra curta,<br />
+
+e sem nimia fadiga; ultimamente<br />
+
+que, pois que
+elle esperava a mais familia,<br />
+
+esperava eu tambem; n&atilde;o sendo
+airoso<br />
+
+faltar &aacute; noiva no primeiro dia.<br />
+
+&#8213;Cedo, mas s&oacute; co'a clausula&#8213;disse elle&#8213;<br />
+
+que
+inda amanhan sois nosso.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Assigno.</div>
+
+<div class="poetry5">&#8213;&iexcl;Bello!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ent&atilde;o toca a palrar at&eacute; que venham.<br />
+
+Sai&acirc;mos, que faz calma; alem, na eira,<br />
+
+sobre a alta palha do
+centeio novo<br />
+
+tomaremos a fresca e as orvalhadas.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Disse, e fez se. &iexcl;Que ceo!
+&iexcl;que paz!
+&iexcl;que
+noite!<br />
+
+na molle aragem das fagueiras horas<br />
+
+meu
+cora&ccedil;&atilde;o feliz desabroxado<br />
+
+me enchia de um perfume
+egual ao vosso,<br />
+
+nocturnas flores, que o gosais sosinhas.<br />
+
+&iexcl;Quem podesse apanhar, prender na vida<br />
+
+estes momentos
+lubricos, momentos<br />
+
+que s&oacute; caem do ceo durante a noite,<br />
+
+e
+s&oacute; na solid&atilde;o! Temi perdel-os<br />
+
+co'a triste
+distrac&ccedil;&atilde;o de mutuas falas.<br />
+
+Lembrou-me haver
+notado no meu velho<br />
+
+um genio amigo de contar historias;<br />
+
+pedi-lhe uma
+qualquer, bem decidido<br />
+
+a deixal-o &aacute; vontade espanejar-se<br />
+
+sem
+lhe dar atten&ccedil;&atilde;o; mas enganei-me,<br />
+
+Pondo o rosto
+na m&atilde;o, nos c&eacute;os os olhos,</div>
+
+<span class="pagenum">[37]</span>
+<div class="poetry1">entra a buscar pela memoria antiga<br />
+
+algum caso mais raro; e como desse<br />
+
+casualmente co'a vista em certo lume<br />
+
+n'um cabe&ccedil;o remoto,</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Ouvi&#8213;me disse;&#8213;</div>
+
+<div class="poetry1">por aquella luzinha l&aacute; ao
+longe<br />
+
+lembra-me um caso, e um caso que foi certo,<br />
+
+passado ali no Minho ha
+largos annos.<br />
+
+Inda eu conservo em casa uns Breviarios<br />
+
+de um Padre
+irm&atilde;o da minha av&oacute; materna,<br />
+
+que
+poder&atilde;o servir de documento.<br />
+
+Elle mesmo o escreveu nas
+folhas brancas<br />
+
+do principio e do fim dos quatro tomos.<br />
+
+E era um clerigo
+honrado, o que escrevia;<br />
+
+merece tanta f&eacute; como a Escritura.<br />
+
+Diz elle ent&atilde;o ali (nem &eacute; s&oacute; elle;<br />
+
+minha Av&oacute; sua irman dizia o mesmo):<br />
+
+que esta nossa familia
+inda descende<br />
+
+da Rosa de quem fala a dita historia.<br />
+
+A minha
+av&oacute; foi Rosa, e tinha o nome<br />
+
+de sua m&atilde;e; a minha
+m&atilde;e foi Rosa;<br />
+
+a vossa <em>noiva</em>
+&eacute; Rosa; e
+n'esta casa,<br />
+
+querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Depois d'este preambulo de Rosas,<br />
+
+veio a historia, e encantou-me; ou
+fossem causa<br />
+
+hora e sitio, ou a amavel singeleza<br />
+
+com que narrava o
+historiador das medas,<br />
+
+ou j&aacute;
+disposi&ccedil;&atilde;o com que eu me
+achasse.<br />
+
+Creio que sim: do espirito do ouvinte<br />
+
+vem mais de meio o
+merito das obras.<br />
+
+</div>
+
+<span class="pagenum">[38]</span>
+<div class="poetry1">Por exemplo: da Eneida o livro quarto<br />
+
+dias ha que me enfada; ha
+tambem dias<br />
+
+em que se atura o <em>Italico</em> do
+Padre;<sup><a href="#nt9">[4]</a></sup><br />
+
+e
+em que se entende um pouco a p&aacute;lrea bruta<br />
+
+que
+aos brutos deu do amavel Lafontaine.<sup><a href="#nt10">[5]</a></sup><br />
+
+Nada parece mal, trazido a
+tempo;<br />
+
+fora de tempo, tudo. A mesma coisa<br />
+
+entre obras e leitores
+acontece,<br />
+
+que entre os garfos e as arvores: se enxertam<br />
+
+quando o
+n&atilde;o pede o tronco e o veda a lua,<br />
+
+&iexcl;adeus ramo
+bastardo! e se ao contrario,<br />
+
+penetra a seiva toda, e pula o ramo. <br />
+
+<br />
+
+Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,<br />
+
+que protestei contar-vol-o a
+meu modo;<br />
+
+e o poema seguinte &eacute; o desempenho.<br />
+
+Tivesse elle, o
+que em v&atilde;o lhe hei procurado,<br />
+
+da prosa do meu sogro o tom
+singelo,<br />
+
+talvez, leitores meus, o relerieis. <br />
+
+<br />
+
+Inventar, descrever, compor os versos,<br />
+
+s&atilde;o os tres
+p&eacute;s, da tr&iacute;pode de Apollo.<br />
+
+J&aacute; sabereis do Reverendo Kinsey<br />
+
+que eu n&atilde;o tenho
+inven&ccedil;&atilde;o; que nada
+pinto<br />
+
+co'a verdadeira c&ocirc;r da Natureza;<br />
+
+que os versos meus
+s&atilde;o bons, mas que aborrecem;<br />
+
+o que n&atilde;o tira que
+um po&eacute;ta eu seja<br />
+
+digno de ser notado entre os que vivem.</div>
+
+<span class="pagenum">[39]</span>
+<div class="poetry1">Ora, quanto &aacute;
+inven&ccedil;&atilde;o d'este poema,<br />
+
+bem vedes que a
+n&atilde;o ha, ou se a ha que &eacute;
+d'outrem.<br />
+
+E quanto &aacute;s descripc&otilde;es, fiz o possivel<br />
+
+para n&atilde;o metter mais que as do meu
+<em>sogro</em>.<br />
+
+Mas faltava o melhor, e o mais difficil:<br />
+
+versificar &aacute; moda. Atirei fora<br />
+
+o Virgilio, o Racine, e o
+Metastasio,<br />
+
+gebos todos mon&oacute;tonos, que enfiam<br />
+
+os versos bons
+e os optimos aos centos;<br />
+
+atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;<br />
+
+estudei, fiz ensaios, compuz paginas<br />
+
+de embr&eacute;xados
+velhissimos e esdruxulos,<br />
+
+e n&atilde;o foi sem proveito o estudo
+acerrimo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Perdoae se este livro inda vai falho<br />
+
+d'esses donaires que
+trav&ecirc;ssos fogem<br />
+
+de mal expertas m&atilde;os; soffrei-o em
+quanto<br />
+
+vou destilar sobre outro o
+<em>Elucidario</em>,<br />
+
+qual se espreme um lim&atilde;o
+sobre um guizote.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Abril de 1831.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">FIM DA
+INTRODUC&Ccedil;&Atilde;O<sup><a href="#nt11">[6]</a></sup>
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c3" id="c3"></a>III </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+EPISTOLA<br />
+
+<br />
+
+A JO&Atilde;O EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Da paz de um ermo ao
+turbilh&atilde;o da c&ocirc;rte<br />
+
+a Musa
+de Castilho &aacute; do seu Costa<br />
+
+saude e amor. J&aacute; outra
+primavera<br />
+
+se enflora, a seu pesar, desde que ausente<br />
+
+pede aos montes a
+irman, que a n&atilde;o suspira,<br />
+
+e dorme ao lado de um feliz
+ingrato. <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios<br />
+
+em cantos cujo ecco
+al&eacute;m n&atilde;o passa<br />
+
+..........................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">1831&#8213;Abril, 21.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c4" id="c4"></a>IV </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+O PRESBYT&Eacute;RIO </h3>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&iexcl;Salv&egrave;, principio e fim dos meus passeios!<br />
+
+&iexcl;Salv&egrave;, &oacute; tu, cujo tecto, alva casinha,<br />
+
+cobre ha perto de um lustro os meus autores,<br />
+
+meus castellos no ar, meus
+faceis versos!<br />
+
+&iexcl;Salv&egrave;, co'o teu rosal; co'as tuas
+limas,<br />
+
+festivo ornato das paredes brancas;<br />
+
+co'o teu port&atilde;o
+patente oppresso de heras;<br />
+
+e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,<br />
+
+bras&atilde;o futuro do obumbrado pateo!<br />
+
+&iexcl;Salv&egrave; outra vez, meu presbyt&eacute;rio!
+&iexcl;Salv&egrave;!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Hoje, que o caprichoso do meu estro<br />
+
+(bem sabes se elle o &eacute;)
+deixa inconstante<br />
+
+versos &iacute;nda no ch&ocirc;co, outros que
+apenas<br />
+
+v&atilde;o da casca a sahir, outros que breve<br />
+
+teem de fugir
+do ninho em v&ocirc;os livres,<br />
+
+entrou, mal veio a aurora
+esclarecer-te,<br />
+
+a doidejar-te em roda, a namorar-te,<br />
+
+qual borboleta
+ociosa ou leve abelha.<br />
+
+Pois que elle o quer.... cantemos-te; e
+perd&ocirc;a<br />
+
+se o canto falador, transpondo os cumes<br />
+
+das tuas
+cerejeiras, f&ocirc;r mais longe<br />
+
+revelar tua humilde obscuridade.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[44]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">A antiga mediania, a
+seguran&ccedil;a,<br />
+
+a paz, o amor dos Ceos, o
+amor dos homens,<br />
+
+genios foram, que em ben&ccedil;&atilde;os
+presidiram<br />
+
+aos alicerces teus. De P&aacute;rio monte<br />
+
+n&atilde;o
+foi mist&eacute;r que entranhas te enviassem<br />
+
+ch&atilde;o,
+columnas, e ab&oacute;badas, e estatuas;<br />
+
+tuas portas sem chave
+n&atilde;o cresceram<br />
+
+l&aacute; nas florestas do
+hemisph&eacute;rio opposto.<br />
+
+Foi visinho pinhal teu s&ocirc;lho
+e tecto;<br />
+
+deu-te paredes mais visinho oiteiro;<br />
+
+port&otilde;es e meza
+um cedro bom da extrema.<br />
+
+N&atilde;o custaste nem lagrimas a pobre,<br />
+
+que &aacute; for&ccedil;a te cedesse a cho&ccedil;a avita,<br />
+
+nem odioso suor; e n&atilde;o se dormem<br />
+
+somnos melhores em Belem
+nem Mafra.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&iquest;Que importa que no centro d'estes ermos<br />
+
+vivas
+t&atilde;o s&oacute;, que apenas descortines<br />
+
+n'um dos altos
+d'em torno esquiva aldeia?<br />
+
+Tu e o templo co'as messes que vos cingem<br />
+
+bastais no quadro agreste; em v&oacute;s affluem<br />
+
+(como em sua
+Queluz) nos festos dias<br />
+
+ondas e ondas de amaveis saudadores.<br />
+
+Os
+rebanhos ociosos n&atilde;o desdenham<br />
+
+t&ocirc;jo em flor, que
+te doira o ch&atilde;o das mattas,<br />
+
+d'onde env&ocirc;ltos co' os
+tr&eacute;mulos balidos,<br />
+
+veem cantos de amorosas guardadoras<br />
+
+endoidecer teu ecco.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry4">
+Os caminheiros</div>
+
+<div class="poetry1">aben&ccedil;&ocirc;am-te a
+sombra; aqui teem
+fonte,<br />
+
+que em tua relva, ao fresco das parreiras,<br />
+
+det&eacute;m,
+dessedentando-as, caravanas<br />
+
+que v&atilde;o ou veem no alpestre
+Caramulo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"><a name="p45" id="p45">[45]</a></span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">O anjo das flores liberal te arqueia<br />
+
+de bordada verdura as rescendentes<br />
+
+claras janellas.</div>
+
+<div class="poetry4">Um bulicio manso</div>
+
+<div class="poetry1">de amigas vozes teu recinto alegra.<br />
+
+Na sua
+t&eacute;pida cho&ccedil;a os bois ruminam<br />
+
+ante o feno em
+mont&otilde;es; dorme no p&aacute;teo<br />
+
+farto
+esquadr&atilde;o lanigero; ao sol p&ocirc;sto,<br />
+
+c&atilde;o,
+dos lobos terror, te vela as noites;<br />
+
+teus gallos as demarcam
+vigilantes.<br />
+
+Co'a luz primeira arrulha-te alvejando<br />
+
+cypria nuvem
+plumosa; e apenas saltam<br />
+
+da <a href="#e6">dextra m&atilde;o</a>
+mesquinha os gr&atilde;os doirados,<br />
+
+em torno da gentil madrugadeira<br />
+
+de toda a parte os hospedes rev&ocirc;am.<br />
+
+Bicam por entre as pombas
+&aacute; porfia<br />
+
+a gallinha de filhos rodeada,<br />
+
+o manso grasnador do
+aquoso tanque,<br />
+
+o vaidoso per&uacute;, que ri cantando,<br />
+
+e
+v&oacute;s, e v&oacute;s, mais vivos do que todos,<br />
+
+n&atilde;o chamados, mas sempre a n&oacute;s bemvindos,<br />
+
+passarinhos do ceo, turba sem dono.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Singelo presbyterio, &iexcl;oh!
+&iexcl;como te amo,<br />
+
+co'o teu ar
+casaleiro! Amo o teu forno,<br />
+
+t&atilde;o social &aacute; noite; a
+simples sala,<br />
+
+quasi sempre deserta; a livraria,<br />
+
+deserta rara vez; estas
+alc&ocirc;vas,<br />
+
+que enche um s&oacute; leito; e a adega,
+assoviada<br />
+
+do alvo s&ocirc;pro do Norte; e o fuso, e a pia<br />
+
+da
+cheirosa vendima; e o teu celleiro,<br />
+
+alto, arejado, e t&atilde;o
+patente aos pobres,<br />
+
+como as portas do templo convisinho.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[46]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Flores&ccedil;as para
+o Ceo e para a terra<br />
+
+nos
+inconstantes seculos! &iexcl;flores&ccedil;as,<br />
+
+feliz, co'o
+feliz dono, edade longa!<br />
+
+E se, l&aacute; no futuro, algum amigo,<br />
+
+s&oacute;cio dos dias bons, saudoso e triste,<br />
+
+torcendo a estrada, a
+te pedir viesse<br />
+
+novas do teu cantor,&#8213;&laquo;Amou me, e amei-o&#8213;<br />
+
+lhe dirias mostrando-te; e&#8213;&laquo;Seus ossos&#8213;<br />
+
+juntaria o teu
+velho&#8213;aqui descan&ccedil;am.&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Sim; apraz-me cuidar que inda os meus
+restos,<br />
+
+gratos aos bons d'este
+recanto obscuro,<br />
+
+onde escapei no seculo de sangue,<br />
+
+c&aacute;
+ficar&atilde;o n'este ocio, inda alguns dias<br />
+
+do simples montanhez
+talvez chorados. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Oh santa perseguida Liberdade,<br />
+
+&iexcl;onde te achei!.... Onde
+n&atilde;o vivem homens;<br />
+
+n'um torr&atilde;o bravo que
+n&atilde;o chama invejas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Em quanto, ora que a noite o ceo regela<br />
+
+humida e turva, tantos ricos
+enchem<br />
+
+de bocejante en&ocirc;jo as assembl&ecirc;as,<br />
+
+e tantos,
+tantos miseros, sem lares,<br />
+
+sem cons&ocirc;lo, sem p&atilde;o,
+sem voz de amigo,<br />
+
+s&oacute; reos de patrio amor, dormem nas furnas,<br />
+
+pelas praias do Oceano, e pelas rochas<br />
+
+(sublimes troncos pelo
+p&eacute; cortados)...</div>
+
+<span class="pagenum">[47]</span>
+<div class="poetry1">tua clara fogueira nos aquece;<br />
+
+&iexcl;gra&ccedil;as,
+gra&ccedil;as a um Deus!</div>
+
+<div class="poetry5">Assim
+vagava</div>
+
+<div class="poetry1">sobre o universo undoso a arca do
+justo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N&oacute;s, depois de annos tres,
+inda esper&acirc;mos.<br />
+
+Ainda
+do trov&atilde;o eccos retumbam.<br />
+
+Ainda os escarceos assoladores<br />
+
+remugem l&aacute; por f&oacute;ra. Ainda a pomba<br />
+
+co'o ramo de
+oliveira inda n&atilde;o volve.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Oh santa perseguida
+Liberdade!<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;Se
+eu podesse, a tr&ocirc;co dos meus
+dias,<br />
+
+restituir-te &aacute; minha Patria!....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry5">
+Basta.</div>
+
+<div class="poetry1">Esperemos ainda. Oremos sempre;<br />
+
+e
+talvez que n&atilde;o tarde a grata aurora,<br />
+
+em que, a adejar da
+serra pelos pincaros,<br />
+
+venha de longe a nuncia das venturas,<br />
+
+a pomba com
+o seu ramo de oliveira!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Castanheira de Vouga</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry3">Maio de 1831.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c5" id="c5"></a>V </h4>
+
+<br />
+
+<h3>A LYRA DO DESTERRADO </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Era a noite dos finados;<br />
+
+sombria noite de outono.<br />
+
+Entre sinos
+acordados<br />
+
+l&aacute; jaz Roma entregue ao sono;<br />
+
+seus luzeiros
+apagados. <br />
+
+<br />
+
+Do ceo pelo r&ocirc;to manto<br />
+
+s&oacute; brilham frouxas
+estrellas;<br />
+
+sai a custo o clar&atilde;o santo<br />
+
+dos templos pelas
+janellas;<br />
+
+e Petrarcha vela emtanto. <br />
+
+<br />
+
+V&eacute;la Petrarcha, e suspira<br />
+
+no leito amoroso e ermo;<br />
+
+olhos na
+v&eacute;la que expira;<br />
+
+saudades no peito enfermo;<br />
+
+nem gloria
+sonha, nem lyra. <br />
+
+<br />
+
+Qual raio s&ocirc;lto de lua<br />
+
+por m&oacute;veis aguas vibrada<br />
+
+n'um bosque inteiro flut&uacute;a,<br />
+
+tal adeja no passado<br />
+
+a saudosa
+mente sua.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem dir&aacute; seus pensamentos?<br />
+
+a douta lingua
+est&aacute; muda.<br />
+
+&iexcl;Que paix&otilde;es, que
+sentimentos,<br />
+
+no rosto, que aspeitos muda,<br />
+
+veem transluzir por momentos!
+<br />
+
+<br />
+
+Ora &eacute; dor, ora &eacute; sorriso,<br />
+
+esperan&ccedil;a,
+amor, transporte;<br />
+
+queixas, ternuras diviso;<br />
+
+desce aos abysmos da morte,<br />
+
+v&ocirc;a a&eacute;reo ao Paraizo. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o falar o Vate agora<br />
+
+co'os labios que move
+apenas!<br />
+
+&iexcl;Que torrente abrazadora!<br />
+
+&iexcl;que amor!
+&iexcl;que incendidas penas!<br />
+
+&iexcl;qu&atilde;o nova a
+paix&atilde;o n&atilde;o
+f&ocirc;ra! <br />
+
+<br />
+
+Vai a noite adiantada;<br />
+
+humido vento assovia;<br />
+
+treme a luz quasi apagada.<br />
+
+Do gr&atilde;o Cantor que vigia<br />
+
+ferve a mente a sonhos dada. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;&laquo;E&iacute;s o templo conhecido<br />
+
+que os meus destinos
+encerra.<br />
+
+A m&atilde;e terna, o pae querido,<br />
+
+c&aacute; m'os tem
+no seio a terra.<br />
+
+C&aacute; vi Laura, e fui perdido...<br />
+
+........................................ </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Castanheira do Vouga</div>
+
+<div class="poetry3">1830...(?)</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c6" id="c6"></a>VI </h4>
+
+<br />
+
+<h3>EPISTOLA </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">A minha primavera emfim renasce.<br />
+
+T&eacute; n'este horror
+selvatico dos montes<br />
+
+roupas traja nupciaes a Natureza.<br />
+
+O ceo azul, o ar
+morno, as aguas puras,<br />
+
+tudo nos diz &laquo;amor&raquo;;
+dizem-n-o as aves<br />
+
+chalreando ao florir das alvoradas;<br />
+
+bala o rebanho
+alegre; armento o muge;<br />
+
+na folha nova z&eacute;phiro o cicia;<br />
+
+a
+camponeza em meio de mil flores,<br />
+
+que lh'o exhalam balsamico, o suspira,<br />
+
+e ao vi&ccedil;oso tapiz, &aacute; sombra vasta<br />
+
+macia e
+tentadora lan&ccedil;a os olhos. <br />
+
+<br />
+
+Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,<br />
+
+enleva a fonte e as arvores
+nocturnas,<br />
+
+cantando amor, da lua ao raio incerto,<br />
+
+li&ccedil;&otilde;es que mais de um ente ao longe estuda<br />
+
+(e
+pratica talvez); em sons de lyra,<br />
+
+solitario eu tambem,
+li&ccedil;&otilde;es de affectos<br />
+
+de c&aacute; te envio ao
+centro da cidade.</div>
+
+<span class="pagenum">[52]</span>
+<div class="poetry1">N'esse ruidoso v&oacute;rtice de
+povo,<br />
+
+de v&atilde;os praseres,
+de negocios futeis,<br />
+
+a geral rota&ccedil;&atilde;o te arrasta
+&aacute;s cegas;<br />
+
+&eacute; dever da amisade erguer-te aos olhos<br />
+
+luz, salvadora luz. N&aacute;ufrago entre ondas<br />
+
+pode n&atilde;o
+ver a t&aacute;boa &aacute;s vezes perto;<br />
+
+pode a praia ignorar,
+e tel a em face.<br />
+
+T&aacute;boa amor te lan&ccedil;ou da praia
+firme;<br />
+
+ledo e fausto Hymeneu te est&aacute; chamando.<br />
+
+..........................................................<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c7" id="c7"></a>VII </h4>
+
+<br />
+
+<h3>A ROMARIA </h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">L&aacute; vem Maio rosado.
+J&aacute; floreja<br />
+
+nas planicies,
+verdeja pelos montes;<br />
+
+&eacute; o mez de Amor, &eacute; o mez de
+Philom&eacute;la.
+<br />
+
+<br />
+
+Aureo amanhece o dia suspirado<br />
+
+da romaria annual; l&eacute;guas em
+roda<br />
+
+j&aacute; tudo &eacute; festa, esp'ran&ccedil;a, e
+regosijo.<br />
+
+As povoa&ccedil;&otilde;es, desertas. Por estradas,<br />
+
+por torcidos atalhos, por oiteiros,<br />
+
+correm de toda a parte ornados
+bandos.<br />
+
+L&aacute; retr&ocirc;a nos eccos aturdidos<br />
+
+a matinal
+girandola ruidosa;<br />
+
+acorda ao longe a torre com repiques;<br />
+
+um povo de cem
+povos misturado<br />
+
+enche a vozeada selva, a acceza ermida,<br />
+
+e de ondeado
+matiz cobre o terreno.<br />
+
+Arfa ao sol, no alto mastro volteando,<br />
+
+triumphante bandeira alvi-cer&uacute;lea.<br />
+
+Vai e vem, ora chega, ora
+se allonga,<br />
+
+n&atilde;o est&aacute; em nenhum sitio, e assoma em
+todos,<br />
+
+a alma da festa, a gloria do Gallego,<br />
+
+a aguda gaita
+t&uacute;mida e franjada,<br />
+
+que ao rufado tambor s&oacute;cia,
+repete<br />
+
+a moda velha e alegre, amor dos campos.</div>
+
+<span class="pagenum">[54]</span>
+<div class="poetry1">Em vidrado alguidar reluzem n'agua<br />
+
+os doirados
+trem&oacute;&ccedil;os, que afadigam<br />
+
+com compradores a
+afrontada tia.<br />
+
+As navalhas e an&eacute;is, o apito, o espelho,<br />
+
+se
+assoalham mais al&eacute;m; na alva toalha,<br />
+
+alva e folhuda,
+est&atilde;o chamando o exul.<br />
+
+Em cima de seus carros triumphantes<br />
+
+os laureados ton&eacute;is, reis da alegria,<br />
+
+d&atilde;o n'um
+fogo perenne a vida a tudo. <br />
+
+<br />
+
+Aqui se ouve o descante ao desafio,<br />
+
+que a viola ora segue, ora
+acompanha.<br />
+
+Ali se apinham para ver as dan&ccedil;as,<br />
+
+que a discorde
+rabecca entorta &aacute;s vezes.<br />
+
+L&aacute;, se entorna o licor
+em puros vidros;<br />
+
+ao p&eacute; se ado&ccedil;a a fresca
+limonada. <br />
+
+<br />
+
+Aqui se comprimentam; al&eacute;m chamam;<br />
+
+um se perde, outro se
+acha, outro convida.<br />
+
+Este corre; esta p&aacute;ra a ataviar-se,<br />
+
+por
+mostrar o cord&atilde;o e o len&ccedil;o novo.<br />
+
+Estirados na
+relva os velhos palram;<br />
+
+grita o rapaz. O amante, recostado<br />
+
+ao
+p&aacute;u, por onde um bra&ccedil;o lhe serpeia,<br />
+
+faz longa
+c&ocirc;rte &aacute; t&iacute;mida futura,<br />
+
+que em resposta
+de amor lhe d&aacute;
+trem&oacute;&ccedil;os. <br />
+
+<br />
+
+N'isto v&ocirc;a o foguete, e atr&ocirc;a as nuvens.<br />
+
+L&aacute; sai a prociss&atilde;o; l&aacute; foram todos.<br />
+
+&iexcl;Ah! depois do jantar comido &aacute;s sombras,<br />
+
+cada um
+levar&aacute;, volvendo a casa,<br />
+
+gratas lembran&ccedil;as para o
+anno inteiro.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c8" id="c8"></a>VIII </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES<br />
+
+<br />
+
+OU<br />
+
+<br />
+
+A MATTA DE S. SEBASTI&Atilde;O </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Versos
+na
+planta&ccedil;&atilde;o de uns carvalhos junto
+&aacute; egreja de S. Mamede<br />
+
+da Castanheira do Vouga pelos rapazes
+solteiros da freguezia<br />
+
+no Domingo do Carnaval de 183... <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>I </h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N'este dia, em que o povo tumultuando<br />
+
+nos casaes, nas aldeias, nas
+cidades,<br />
+
+troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,<br />
+
+por copos,
+dan&ccedil;as, m&aacute;scaras, e risos<br />
+
+nas saturnaes
+christans; quando se espraia,<br />
+
+desde o seio de Roma aos fins da terra,<br />
+
+de um praser contagioso alta vertigem;<br />
+
+&iquest;por que retreme ao
+golpe das enxadas<br />
+
+sob os meus p&eacute;s a solitaria encosta? </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Saude a v&oacute;s, a
+v&oacute;s louvor. Bemvindos,<br />
+
+montanhezes, fieis aos priscos usos!<br />
+
+O c&acirc;ntaro do estylo ahi
+est&aacute; coroado,<br />
+
+risonho e prestes a inundar os copos;<br />
+
+o
+pr&eacute;mio &aacute; vista vos redobre as
+for&ccedil;as.<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[56]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Rasgae co'o duro ferro a terra dura;<br />
+
+de vossos paes a matta veneranda<br />
+
+em torno de seu santo antigo dono<br />
+
+se accrescente por v&oacute;s.
+Plantae, que &eacute; tempo,<br />
+
+no ch&atilde;o, sagrado de suor
+devoto,<br />
+
+&oacute; presente annual, que o Ceo prosp&eacute;re.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Onde quer que elle jaz,
+aben&ccedil;oemos<br />
+
+as cinzas do homem bom,
+l&aacute; d'essas eras<br />
+
+que a pia usan&ccedil;a introduziu
+primeiro.<br />
+
+&iexcl;Quanto a sua virtude era risonha!<br />
+
+&#8213;&laquo;Cada solteiro plantar&aacute; n'este ermo<br />
+
+mais uma
+arvoresinha de anno em anno,<br />
+
+que l&aacute; em cima
+encontrar&aacute; seu premio.&raquo;<br />
+
+&iexcl;Oh! estes
+rogos, sim, este pedido,<br />
+
+doce e desint'ressado,
+unc&ccedil;&atilde;o respira;<br />
+
+manda mais do que as Leis; morrer
+n&atilde;o deve. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Produz, produz a miudo, &oacute;
+Natureza,<br />
+
+por teu bem, por bem
+nosso, homens como esse.<br />
+
+Haja quem diga ao joven par, que &aacute;s
+aras<br />
+
+sobe apenas amante, e desce esposo:<br />
+
+&#8213;&laquo;Hoje, que
+s&atilde;o j&aacute; fruto
+esp'ran&ccedil;as de hontem,<br />
+
+entrae sorrindo pelo ch&atilde;o
+da vida;<br />
+
+plantae, plantae um'arvore que o lembre.&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Quando a cabana festival se enrama,<br />
+
+se enflora a meza, e os
+alde&atilde;os visinhos</div>
+
+<span class="pagenum">[57]</span>
+<div class="poetry1">veem
+festejar na casa um filho novo,<br />
+
+a m&atilde;o paterna, de praser
+tremendo,<br />
+
+orne de um novo tronco o pr&eacute;dio avito. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Depois de suspirada e
+curta ausencia<br />
+
+volve um
+irm&atilde;o das terras estrangeiras?<br />
+
+&iquest;Convalesce um
+parente? &iquest;Em bem se acaba<br />
+
+suado, volumoso, eterno pleito,<br />
+
+que empobreceu o av&ocirc;, o filho, e o neto?<br />
+
+&iquest;Fizestes
+o adversario amigo vosso?<br />
+
+&iquest;Sorriu-vos a ventura?
+&iquest;&Eacute; farto o
+anno?<br />
+
+A s&ecirc;rdes Reis, al&ccedil;&aacute;reis
+monumentos;<br />
+
+&iquest;que vale um monumento? O homem dos campos<br />
+
+melhores pode erguer a menos custo:<br />
+
+plante sobre o caminho arvores
+f&eacute;rteis.<br />
+
+Por elle o passageiro ardendo em calma<br />
+
+ache a
+sombra hospedeira que o recreie.<br />
+
+Por elle o pobre, que seu
+p&atilde;o mendiga<br />
+
+de casal em casal, de monte em monte, <br />
+
+que
+n&atilde;o v&ecirc; ceo, nem lar onde se aque&ccedil;a,<br />
+
+nem feno onde descance, e em todo o mundo<br />
+
+s&oacute; tem por
+patrim&oacute;nio a caridade,<br />
+
+ache a fruta a pender em curvos
+ramos,<br />
+
+a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.<br />
+
+Assim, do bem de
+um s&oacute; germinariam <br />
+
+mil bens communs; e do praser de um homem<br />
+
+o publico praser, publicas ben&ccedil;&atilde;os. </div>
+
+<br />
+
+<h4>II</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Se tendes de nascer, nascei mui breve,<br />
+
+sensiveis
+cora&ccedil;&otilde;es a quem Deus guarda,<br />
+
+a gloria de influir
+eguaes costumes.</div>
+
+<span class="pagenum">[58]</span>
+<div class="poetry1">Desde
+j&aacute; nossas lagrimas de affecto<br />
+
+correm por v&oacute;s; ao
+seio do futuro<br />
+
+n&oacute;s vos lan&ccedil;amos desde
+c&aacute; louvores.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>III</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Sentemo-nos, em quanto os vossos
+filhos<br />
+
+aqui se embebem na tarefa
+honrosa,<br />
+
+sentemo-nos &aacute; sombra, a v&oacute;s bem grata,<br />
+
+do carvalhal que as vossas m&atilde;os plantaram,<br />
+
+homens das cans,
+antigas testemunhas<br />
+
+dos tempos que n&atilde;o s&atilde;o. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+V&oacute;s, deputados</div>
+
+<div class="poetry1">das mortas
+gera&ccedil;&otilde;es aos
+vivos de hoje<br />
+
+como preg&otilde;es propheticos; thesoiro<br />
+
+de
+saudades, de dor, de experiencia;<br />
+
+bons velhos, &aacute; vossa alma
+taciturna<br />
+
+aprazem mais que a festa os pensamentos.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Falae: &iquest;d'onde vos nasce
+essa tristeza<br />
+
+profunda a um tempo e
+vaga, amarga e doce?<br />
+
+&iquest;Ser&aacute; de
+enfeiti&ccedil;ada sympathia<br />
+
+que nos attrai &aacute; terra, ao
+ch&atilde;o da vida,<br />
+
+ch&atilde;o sempre cubi&ccedil;ado e
+sempre ingrato?</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">O cora&ccedil;&atilde;o,
+zeloso da existencia,<br />
+
+compara os dias
+seus do tronco aos dias,<br />
+
+e a conta desegual o opprime e o fecha.<br />
+
+&iexcl;Annos a n&oacute;s, e seculos aos bosques!...<br />
+
+Planta o
+pae, mas a sombra hosp&eacute;da os filhos;</div>
+
+<span class="pagenum">[59]</span>
+<div class="poetry1">netos, que n&atilde;o
+ver&aacute;,
+gosar&atilde;o d'ella;<br />
+
+e indiff'rentes inc&oacute;gnitos
+vindoiros<br />
+
+rir&atilde;o contentes ao folhudo abrigo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas, velhos, mui ditoso o que em seu
+predio<br />
+
+disp&otilde;e arvore
+f&eacute;rtil de esperan&ccedil;as,<br />
+
+que ir&aacute; legada
+aos filhos de seus filhos.<br />
+
+Prophecias de amor lhe expande o seio,<br />
+
+sorri, e ama o que &eacute; seu, na esp'ran&ccedil;a ao menos.<br />
+
+Mas feliz egualmente o que em seu predio<br />
+
+possue vaidoso um tronco
+hereditario. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Na r&eacute;ga, e ao vir da flor,
+e ao dar do fruto,<br />
+
+&iquest;como ha-de n&atilde;o pensar em seus maiores?<br />
+
+Um lh'o
+plantou, os outros lh'o trataram;<br />
+
+&iquest;Como ha-de recusar-lhe
+uma saudade,<br />
+
+um suspiro, um suffragio, um elogio?<br />
+
+A gratid&atilde;o
+medita &aacute; mesma sombra<br />
+
+onde j&aacute; medit&aacute;ra
+o amor paterno.<br />
+
+Esta arvore mortal &eacute; o santo marco,<br />
+
+em que
+se juntam, se entrela&ccedil;am, crescem,<br />
+
+dos idos o interesse e o
+dos vindoiros;<br />
+
+n&oacute; de affei&ccedil;&atilde;o, que os
+seculos reune. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Vedes v&oacute;s essa
+m&atilde;e, que ha tantos
+annos<br />
+
+chora um filho alem-mar, em longes terras?<br />
+
+Mostrae-lhe um
+passageiro a dar &aacute; vella<br />
+
+para o porto feliz; &iexcl;com
+que ternura<br />
+
+lhe n&atilde;o dar&aacute;, chorando, um longo
+abra&ccedil;o,<br />
+
+que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,</div>
+
+<span class="pagenum">[59]</span>
+<div class="poetry1">e todo o amor de m&atilde;e lhe
+exprima n'elle!...<br />
+
+&iexcl;E com quanto alvoro&ccedil;o o
+desterrado<br />
+
+n&atilde;o cingir&aacute; o amavel mensageiro!...<br />
+
+Eis o emblema da arvore, cruzando<br />
+
+viva e lembrada o Oceano das edades,<br />
+
+mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.</div>
+
+<br />
+
+<h4>IV</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Qual de v&oacute;s,
+repoisando n'esta cama<br />
+
+de folhas
+mortas, qual de v&oacute;s, no meio<br />
+
+d'esses troncos musgosos,
+seculares,<br />
+
+n&atilde;o viaja com o espirito espraiado<br />
+
+por esse mundo
+antigo e antigos homens?<br />
+
+Sim, vossa alma se apraz, phantasiando<br />
+
+de lhe
+restituir quanto houve d'elles:<br />
+
+uma vida, uma cho&ccedil;a, herdade
+e patria.<br />
+
+Deslembram cans; rugosas faces riem;<br />
+
+reviveis n'um minuto
+annos de infancia<br />
+
+sob a affei&ccedil;&atilde;o de um pae, de um
+pae nos lares;<br />
+
+sem cuidados, sem prole, e sem temores,<br />
+
+entrais folgando
+o limiar da vida.<br />
+
+&iexcl;Podesse n'este ponto o pensamento,<br />
+
+como
+ave em ramo fl&oacute;rido e viscoso,<br />
+
+deter-se a recordar, ficar
+pregado!<br />
+
+&iquest;V&oacute;s suspirais?!... desfaz-se-vos o
+sonho,<br />
+
+e a extincta gera&ccedil;&atilde;o recai nas campas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Mas qu&ecirc;?
+&iquest;d'esses antigos plantadores<br />
+
+nada mais resta al&eacute;m de uns troncos mudos<br />
+
+n'este universo
+movedi&ccedil;o e instavel?<br />
+
+&iquest;nem uma s&oacute;
+lembran&ccedil;a, um dito, um
+nome?<br />
+
+Tudo passou sem m&iacute;nimo vestigio,<br />
+
+como os sons leves de
+um descante ao longe.<br />
+
+................................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[61]</span>
+<h4>V</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bons alde&otilde;es, estas
+sombras regaladas<br />
+
+vos falam nos
+av&oacute;s; por&eacute;m comigo,<br />
+
+comigo, extranho, e novo em
+meio d'ellas,<br />
+
+conversam no aureo tempo a que assistiram;<br />
+
+recordam-me as
+edades do Universo,<br />
+
+e os varios povos, e os paizes varios,<br />
+
+contemporaneos do nascente mundo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Intonsas, invioladas, venerandas,<br />
+
+outras selvas, como esta que nos
+fecha,<br />
+
+fecharam do homem a primeira origem.<br />
+
+Sob as verdes
+ab&oacute;badas immensas<br />
+
+as velhas tradi&ccedil;&otilde;es
+nol-os descrevem<br />
+
+pobres e alegres, n&uacute;s e satisfeitos,<br />
+
+saboreando em ocio a glande e a fonte,<br />
+
+dormindo sobre a folha, e sem
+pedirem<br />
+
+outra casa, outro templo, outra cidade. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">A pouco e pouco o numero crescia,<br />
+
+minguando a pouco e pouco a
+singeleza.<br />
+
+Infecta o vicio &aacute; terra; os ceos se mudam;<br />
+
+a um
+Maio eterno as esta&ccedil;&otilde;es succedem;<br />
+
+o ar se gela e
+accende, alaga e silva;<br />
+
+j&aacute; bravejam le&otilde;es,
+j&aacute; bramam tigres;<br />
+
+o homem se acoita ao seio das cavernas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">V&oacute;s, troncos,
+at&eacute; ali seus companheiros,<br />
+
+acud&iacute;s a servil-o; &iexcl;e em quantos modos!</div>
+
+<span class="pagenum">[62]</span>
+<div class="poetry1">l&aacute;, crepitais em
+r&uacute;tila fogueira;<br />
+
+aqui, das feras prohib&iacute;s a
+entrada;<br />
+
+dais uma clava ao ca&ccedil;ador valente;<br />
+
+na
+servi&ccedil;al corti&ccedil;a um ber&ccedil;o aos
+filhos;<br />
+
+leitos a amor, assentos &aacute; velhice,<br />
+
+aos enxames um
+lar, um copo &aacute;s festas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Das precis&otilde;es ao grito, o
+engenho acorda;<br />
+
+l&aacute;
+surgem povoa&ccedil;&otilde;es, curraes,
+tug&uacute;rios,<br />
+
+e uma capella &aacute;s rusticas deidades.<br />
+
+L&aacute; rompe o novo arado a terra dura;<br />
+
+l&aacute; geme, a
+transportar enormes pezos,<br />
+
+o carro, e sulca at&oacute;nitos
+caminhos.<br />
+
+O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;<br />
+
+a rudeza se
+pule; as artes crescem;<br />
+
+a especie racional das mais triumpha. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">As gera&ccedil;&otilde;es do
+ceo, do mar, da terra,<br />
+
+tudo
+&eacute; j&aacute; seu; os campos lhe obedecem;<br />
+
+faltava o
+Oceano; affoita quilha o rasga. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ent&atilde;o foi, que estas
+arvores, t&atilde;o uteis<br />
+
+no patrio
+continente, abriram v&ocirc;o<br />
+
+sobre o liquido abysmo a novos
+climas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;E em que parte do globo,
+arvore excelsa,<br />
+
+te podes
+presentar, que n&atilde;o recordes<br />
+
+uma fa&ccedil;anha, um
+culto, um gr&atilde;o successo?</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Na Grecia? Mas o Grego
+inda hoje conta<br />
+
+que foste invicta
+clava em m&atilde;o de Alcides;<br />
+
+v&ecirc;-te, suspira, bate o
+ch&atilde;o raivando<br />
+
+de achar-se escravo, e de n&atilde;o
+ter-lhe as for&ccedil;as.<br />
+
+&iquest;Na Grecia? Mas o Grego inda
+hoje conta<br />
+
+do arvoredo Dod&oacute;nio as mil respostas,<br />
+
+o passado e
+o porvir patente a todos,<br />
+
+e o livro do destino aberto ao mundo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Na Aus&oacute;nia?
+Mas Cybelle amou teus ramos;<br />
+
+Roma os
+sagrou a Jove; e, fulminada,<br />
+
+eras tremendo agoiro a todo o Imperio.<br />
+
+&iquest;Em Roma? &iquest;E a c'r&ocirc;a civica? </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry5">
+&iquest;Nos campos?</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;E
+Ph&iacute;l&eacute;mon, o
+justo, o caro aos
+deuses? </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Nas Gallias? em seus
+barbaros oiteiros<br />
+
+tu, s&oacute;,
+eras o altar, o deus, e o templo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Na Caledonia, em Morven,
+junto aos lagos,<br />
+
+sobre os cumes,
+&aacute; beira das torrentes?<br />
+
+L&aacute; tu viste Tremnor,
+Fingal, e os bravos,<br />
+
+reunidos na vespera do sangue<br />
+
+em nocturno festim
+que allumiavas,<br />
+
+quando na harpa dos bardos reviviam<br />
+
+os feitos dos
+heroes do antigo tempo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[64]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Salve, eleito Israel!
+Eis-nos em campos<br />
+
+de Sichem. Vejo os
+principes e os velhos,<br />
+
+os juizes, as tribus, apinhar-se<br />
+
+em torno ao
+tabern&aacute;culo de Sila.<br />
+
+Por cima d'este mar ondeado e vivo <br />
+
+reina de praia em praia alto silencio.<br />
+
+Sublime como o cedro do deserto,<br />
+
+se levanta Josu&eacute;, bra&ccedil;o do Eterno,<br />
+
+em nome do
+Senhor, que o manda e inspira;<br />
+
+os favores do Ceo recorda ao povo;<br />
+
+renasce a F&eacute;; os idolos se arrazam;<br />
+
+&#8213;&laquo;&iexcl;Gloria ao Deus de Israel!&#8213;vozeia a turba&#8213;<br />
+
+&iexcl;ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!<br />
+
+&#8213;Erga-se um
+monumento,&#8213;exclama o chefe&#8213;<br />
+
+que, se infieis um dia os esquecerdes,<br />
+
+vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.&raquo;<br />
+
+E a monumento
+p&otilde;e no logar santo<br />
+
+enorme pedra &aacute; sombra de um
+carvalho,<br />
+
+que abrigava co'a copa o santu&aacute;rio.<sup><a href="#nt12">[7]</a></sup><br />
+
+Despede o
+Povo, e em paz contente expira;<br />
+
+em paz, que j&aacute;
+n&atilde;o v&ecirc;
+perj&uacute;rios novos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Escrava de Madian a plebe expia,<br />
+
+na miseria e no opprobrio, os males
+torpes<br />
+
+que fez ante o Senhor. Mas inda existe<br />
+
+um justo, a quem Deus fie
+o libertal-a:<br />
+
+&eacute; Gede&atilde;o, &eacute; o
+Josu&eacute;
+segundo.<sup><a href="#nt13">[8]</a></sup><br />
+
+Este, em quanto seu pae lan&ccedil;a aos caminhos<br />
+
+medroso olhar &aacute; espera do inimigo</div>
+
+<span class="pagenum">[65]</span>
+<div class="poetry1">para fugir com elle, ajunta
+&aacute; pressa<br />
+
+o trigo que limpou.</div>
+
+<div class="poetry2">V&ecirc; de repente</div>
+
+<div class="poetry1">um Anjo, que debaixo do carvalho<br />
+
+se assenta, e
+lhe repete a lei do Eterno.<br />
+
+Esse mesmo carvalho &eacute; testemunha<br />
+
+da belleza do alado mensageiro,<br />
+
+da voz de
+salva&ccedil;&atilde;o mandada ao Povo,<br />
+
+e do holocausto acceito
+e posto em cinzas,<br />
+
+e do altar, a quem <em>Paz</em> foi
+dada em
+nome. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">E este, que t&atilde;o frondoso
+op&aacute;ca os valles,<br />
+
+&iquest;por que o rodeia um bando taciturno<br />
+
+dos fortes de Galaad?
+as suas armas<br />
+
+jazem quebradas; sua dor vai funda;<br />
+
+dos olhos tristes
+para o ceo voltados<br />
+
+pelo rosto amarello lhes escorre<br />
+
+grosso pranto, que
+alaga as f'ridas frescas.<br />
+
+Choram Saul, e a r&eacute;gia
+descendencia,<br />
+
+que mortos no combate aqui descan&ccedil;am.<br />
+
+Para o
+Monarcha agigantado e invicto<br />
+
+nenhuma est&aacute;tua se
+erguer&aacute; na campa.<br />
+
+Sua columna e funebre palacio<br />
+
+preparou-lh'os com tempo a Natureza:<br />
+
+o tronco, rei da selva, o
+est&aacute; cobrindo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Mas quanto &eacute;
+mais tocante o que se eleva<br />
+
+nas
+faldas solitarias da montanha!<br />
+
+Ali D&eacute;bora jaz; ali Rebecca<br />
+
+chora na morte a que a nutriu na infancia,<br />
+
+ama no
+cora&ccedil;&atilde;o, m&atilde;e nos extremos,<br />
+
+de seus
+primeiros e ultimos segredos</div>
+
+<span class="pagenum">[66]</span>
+<div class="poetry1">confidente fiel no lar paterno,<br />
+
+querida socia na feliz viagem,<br />
+
+e no lar
+conjugal seu doce allivio.<br />
+
+&iquest;Arvore a tanto affecto
+consagrada<br />
+
+na affectuosa Biblia ir&aacute; sem nome?<br />
+
+o <em>carvalho
+das lagrimas</em> lhe chamam.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>VI</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Que uso t&atilde;o
+doce aos
+cora&ccedil;&otilde;es piedosos!<br />
+
+Reverdecei, costumes do bom
+tempo,<br />
+
+quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,<br />
+
+tinham sob um ceo
+livre a sepultura.<br />
+
+A Morte, menos barbara do que hoje,<br />
+
+com avarenta
+m&atilde;o n&atilde;o ferrolhava<br />
+
+sob um tecto pezado, entre
+altos muros,<br />
+
+as prezas, c&aacute; de f&oacute;ra em
+v&atilde;o pedidas.<br />
+
+N&atilde;o era um templo um
+c&aacute;rcere de mortos.<br />
+
+Dormiam mollemente em terra franca,<br />
+
+em
+jardins frescos, em copadas selvas.<br />
+
+Esta esp'ran&ccedil;a
+ado&ccedil;ava um pouco o amargo <br />
+
+do ultimo trago aos labios
+moribundos. <br />
+
+Este bem, t&atilde;o pequeno em mal t&atilde;o
+grande,<br />
+
+&iexcl;quanto valor n&atilde;o tinha aos que ficavam!<br />
+
+O
+irm&atilde;o, o pae, o filho, o amigo, o esposo,<br />
+
+podiam livremente,
+a toda a hora,<br />
+
+ir regar de seu pranto amadas cinzas,<br />
+
+fartar saudades,
+inflammar lembran&ccedil;as,<br />
+
+delirar doce a noite, e o dia inteiro,<br />
+
+e de praser a um peito onde palpitam<br />
+
+supersti&ccedil;&otilde;es
+de amor ou de amisade,<br />
+
+dizer:</div>
+
+<div class="poetry3">&laquo;Este tapiz relvoso o cobre;</div>
+
+<div class="poetry1">esta ave lhe gorgeia; esta aura
+s&ocirc;lta<br />
+
+o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;<br />
+
+a primavera
+m'o visita, e espalha</div>
+
+<span class="pagenum">[67]</span>
+<div class="poetry1">tambem
+por cima d'elle o seu rega&ccedil;o;<br />
+
+esta violeta &eacute; sua,
+hei-de colhel-a;<br />
+
+d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,<br />
+
+nutre-se do
+seu p&oacute;, vive por elle,<br />
+
+&eacute; elle mesmo em parte;
+arvore amiga,<br />
+
+recebe o nome caro, hoje sem dono,<br />
+
+toma os
+abra&ccedil;os que n&atilde;o posso dar-lhe.&raquo;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Sim, sim, conv&eacute;m um bosque &aacute;s sepulturas.<br />
+
+A
+arvore, Deus a fez como passagem<br />
+
+do mundo que respira ao mundo inerte;<br />
+
+commum co'os animaes, commum co'a terra,<br />
+
+vive e n&atilde;o sente;
+habita e ignora o mundo,<br />
+
+sympathisa co'a morte e co'a existencia,<br />
+
+&eacute; grata &aacute;s cinzas, &aacute; saude
+&eacute; grata. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Que f&eacute;rreos
+somos n&oacute;s, que a um como
+vago<br />
+
+atiramos sem d&oacute; perdidos, mixtos,<br />
+
+o detestado, o amigo,
+o estranho, e o nosso!<br />
+
+Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros<br />
+
+arrojasse o que os seculos pouparam,<br />
+
+bronzes, escritos, marmores
+romanos,<br />
+
+ou, derrotando porticos, columnas,<br />
+
+theatros, colliseus,
+palacios, templos,<br />
+
+em serra inutil amontoasse as pedras,<br />
+
+&iquest;quem n&atilde;o vert&ecirc;ra em lagrimas o sangue?<br />
+
+&iexcl;E ante a nossa affei&ccedil;&atilde;o teem menos
+pezo<br />
+
+que as
+ruinas de Roma as que s&atilde;o nossas?!...<br />
+
+&iexcl;D&aacute;-se tanto aos ditosos, aos contentes,<br />
+
+espectaculos, jogos, aureas festas,<br />
+
+jardins, parques!... &iexcl;e
+aos miseros que gemem,<br />
+
+e aos peitos melanc&oacute;licos, viuvos,</div>
+
+<span class="pagenum">[68]</span>
+<div class="poetry1">ha-de negar se um canto onde
+pranteiem!?...<br />
+
+&iquest;De tanto mundo que pertence aos vivos<br />
+
+nada
+dareis aos seus antigos donos?<br />
+
+&iexcl;nem um torr&atilde;o
+perdido, e uns troncos nullos?!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Quando vir&aacute; um
+dia, em que estes bosques,<br />
+
+semeados de tumulos n&atilde;o altos,<br />
+
+de lugubres saudades se
+pov&ocirc;em?<br />
+
+Ent&atilde;o, a propria Morte, hoje
+t&atilde;o s&ecirc;cca,<br />
+
+ter&aacute; sua grinalda; a dor, seu gosto;<br />
+
+e visitas o
+p&oacute;, e cultos o ermo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Pelas noites mui placidas do estio,<br />
+
+ao duvidoso alvor da lua incerta,<br />
+
+bello ser&aacute;, sentado n'este sitio,<br />
+
+ver vir, d'aqui, d'ali,
+frouxos, dispersos,<br />
+
+o do casal, o morador na aldeia,<br />
+
+entrar chorando, e
+procurar seus mortos.<br />
+
+Aqui duas irmans resam de joelhos<br />
+
+sobre o seio
+materno sepultado.<br />
+
+Aqui o velho attento as contas passa<br />
+
+pelos dedos
+convulsos, e se encosta,<br />
+
+sem o saber, na fallecida esposa.<br />
+
+O filho aos
+p&eacute;s da m&atilde;e co'os mais
+solu&ccedil;a<br />
+
+o Padre-Nosso apenas aprendido.<br />
+
+Deitado ao lado do
+submerso amigo,<br />
+
+o amigo devaneia antigos annos. <br />
+
+Por toda a parte, as
+lagrimas e affectos, <br />
+
+memorias doces, ora&ccedil;&otilde;es e
+esp'ran&ccedil;as. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;E a quem n&atilde;o
+conviria egual retiro? <br />
+
+N'elle a
+tristeza encontraria um pasto;</div>
+
+<span class="pagenum">[69]</span>
+<div class="poetry1">a sciencia, reflex&otilde;es; o
+vicio, escolhos;<br />
+
+a leviandade,
+assento; a desventura,<br />
+
+consola&ccedil;&atilde;o; o amor,
+silencio e pranto.<br />
+
+Ensai&aacute;ra-se o infante para a vida;<br />
+
+o
+velho, para a morte; o moralista<br />
+
+viria achar
+unc&ccedil;&atilde;o para a verdade;<br />
+
+o orador,
+persuas&otilde;es, ternura, encantos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&Oacute; filhos da montanha,
+&iexcl;oh! libertae-vos<br />
+
+de um
+preconceito v&atilde;o; &eacute; toda a terra<br />
+
+a terra do
+Senhor; afora o vicio,<br />
+
+debaixo d'este ceo nada &eacute; profano.<br />
+
+A
+ben&ccedil;&atilde;o do Pastor consagraria<br />
+
+vosso asylo feliz; e
+a Cruz em meio<br />
+
+todo de um santo influxo ench&ecirc;ra o bosque.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>VII</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas, em quanto esses dias vos
+n&atilde;o raiam,<br />
+
+bons velhos,
+vigiae que, de anno em anno,<br />
+
+aos juvenis futuros plantadores,<br />
+
+em vez de
+se afrouxar, se inflamme o zelo.<br />
+
+Cres&ccedil;a com seu favor por
+estas serras<br />
+
+a gera&ccedil;&atilde;o dos vegetaes gigantes. <br />
+
+Com
+todos v&oacute;s conversam todos elles<br />
+
+sem cobrir campas;
+guardam-vos saudades,<br />
+
+s&atilde;o parentes de todas as aldeias,<br />
+
+e o
+bras&atilde;o da montanha &eacute; o vosso parque.<br />
+
+Sobre tudo
+influi que a vossa ra&ccedil;a<br />
+
+trema ao s&oacute; nome do
+brutal machado <br />
+
+que ouse violar a veneranda heran&ccedil;a.<br />
+
+O que
+s&oacute; Deus medrou, s&oacute; Deus derribe.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[70]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Cr&ecirc;de-me (eu j&aacute;
+vi outras) vossa terra<br />
+
+&eacute; descrida, enteada &aacute; Natureza.<br />
+
+Cumpre a
+v&oacute;s ado&ccedil;ar-lhe o aspecto agreste,<br />
+
+amiudar-lhe no
+oceano ermo dos ares<br />
+
+estas ilhas, virentes, graciosas,<br />
+
+que espalhem
+primavera pelos montes,<br />
+
+que attr&aacute;iam as volantes caravanas<br />
+
+do rouxinol, da r&ocirc;la, e da andorinha.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>VIII</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">L&aacute; em baixo a casa humilde
+que branqeja,<br />
+
+entre os alegres
+pl&aacute;tanos e o templo,<br />
+
+quasi que pasma, e se entristece e
+encolhe,<br />
+
+de ver em torno a solid&atilde;o t&atilde;o vasta.<br />
+
+Como que est&aacute; pedindo... ao menos bosques;<br />
+
+n&atilde;o
+tem outros jardins, outros passeios,<br />
+
+que offere&ccedil;a a seu dono, o Pastor
+vosso.<br />
+
+Preparae desde j&aacute; para o futuro<br />
+
+sombras novas aos
+novos successores,<br />
+
+e refrig&eacute;rio estivo &aacute;s cans do
+velho.<br />
+
+Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.<br />
+
+Mil vezes sua voz
+reconhecida<br />
+
+rogar&aacute; paz ditosa aos vossos netos,<br />
+
+quando,
+serena a mente, e s&ocirc;lta a vista<br />
+
+l&aacute; f&ocirc;rem
+divagar, ora embebidos<br />
+
+nos psalmos, nos poeticos arrojos,<br />
+
+ora admirando
+o Autor e o N&oacute; dos mundos,<br />
+
+no largo azul dos ceos, no alto
+dos troncos<br />
+
+e no zumbir e no voar do insecto. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Surgi! &iexcl;surgi!
+L&aacute; jazem as enxadas.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Velhos, surgi! La voltam triumphantes,</div>
+
+<div class="poetry1">findo o novo trabalho, os vossos
+filhos.</div>
+
+<span class="pagenum">[71]</span>
+<div class="poetry1">Agora espumem copos,
+s&ocirc;em risos,<br />
+
+exulte a dan&ccedil;a, alonguem-se os
+cantores.<br />
+
+Conquistastes o inculto &aacute; Natureza:<br />
+
+for&ccedil;&aacute;stel-a a sorrir, a ornar-se em festas.<br />
+
+Toda
+a vasta planicie, hontem t&atilde;o erma,<br />
+
+&iexcl;que povoada
+vai j&aacute;! &iexcl;como promette<br />
+
+lembrar ao vosso gado,
+&aacute;s vossas filhas! </div>
+
+<br />
+
+<h5>UM VELHO </h5>
+
+<div class="poetry1">Sim, dar&aacute; sombra e vai
+povoado o valle:<br />
+
+mas fosse eu rico, e
+lhe dobr&aacute;ra encantos. </div>
+
+<br />
+
+<h5>SEGUNDO VELHO </h5>
+
+<div class="poetry1">&iquest;E como, irm&atilde;o?
+</div>
+
+<br />
+
+<h5>O PRIMEIRO </h5>
+
+<div class="poetry2">
+No alto d'este oiteiro,</div>
+
+<div class="poetry1">d'onde se avista o mar, o ceo, a
+terra,<br />
+
+poria
+uma capella, e um San-Mamede<br />
+
+co'o rosto de um menino, e o rir de um
+Anjo;<br />
+
+nas m&atilde;os o cajadito, o alforge ao lado,<br />
+
+e o seu
+rafeiro ao p&eacute; todo soberbo<br />
+
+co'a colleira escarlate, e todo
+amigo<br />
+
+a lamber o seu Santo. &Eacute; bom que os altos<br />
+
+se
+c'r&ocirc;em de capellas, que levantem<br />
+
+o pensamento aos Ceos, no
+campo espalhem<br />
+
+devo&ccedil;&atilde;o e piedade, e aos
+peregrinos<br />
+
+ensinem o caminho e a vista alegrem. </div>
+
+<br />
+
+<h5>UM PASTOR </h5>
+
+<div class="poetry1">Sim, co'o santo pastor de guarda aos
+bosques,<br />
+
+&iquest;que haviam de
+temer, nem c&atilde;es nem gado?</div>
+
+<span class="pagenum">[72]</span>
+<div class="poetry1">Nos degraus da capella, &aacute;
+sombra inquieta,<br />
+
+longas s&eacute;stas sonh&aacute;ramos de
+amores. </div>
+
+<br />
+
+<h5>TERCEIRO VELHO </h5>
+
+<div class="poetry1">J&aacute; l&aacute;
+v&atilde;o o bom tempo e os bons
+costumes;<br />
+
+foi-se a abundancia e os cora&ccedil;&otilde;es
+piedosos.<br />
+
+Esses fundavam templos, como o nosso,<br />
+
+n'um &aacute;rido
+deserto; e hoje.... se estala<br />
+
+no campanario um sino, em ocio eterno<br />
+
+fica mudo a pender dos bra&ccedil;os podres.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>IX</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,<br />
+
+serei eu quem consagre o
+vosso oiteiro;<br />
+
+n&atilde;o a Mamede, n&atilde;o ao pastor
+martyr,<br />
+
+mas &aacute; contrita amavel Peccadora.<br />
+
+&iquest;N&atilde;o valem mais as lagrimas que o sangue?<br />
+
+&iquest;Mais que heroico valor n&atilde;o nos commove<br />
+
+doce
+humildade e penitencia longa?<br />
+
+E de mais: se &aacute;s
+asp&eacute;rrimas proezas<br />
+
+vos n&atilde;o destina o Ceo, todos
+nascestes<br />
+
+captivos fr&aacute;geis de amorosas culpas.<br />
+
+Muita virgem
+no monte solitario<br />
+
+tentada pelo amor e pelo amante,<br />
+
+s&oacute; com
+ver a capella ha-de livrar-se,<br />
+
+e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.<br />
+
+E quando aqui errantes missionarios<br />
+
+vierem dar, e &aacute; sombra
+dos carvalhos,<br />
+
+as turbas apinhadas instruirem,<br />
+
+&iexcl;que
+persuas&otilde;es, que lagrimas, que exemplos<br />
+
+h&atilde;o-de
+tirar da veneranda Imagem!....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[73]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Qual me ri j&aacute;
+na mente o gr&atilde;o
+projecto!<br />
+
+Eu serei pois o fundador de um culto<br />
+
+que aos frutos da moral
+reuna flores. <br />
+
+im; &iquest;quem tolhe o prazer puro e innocente?<br />
+
+............................................................. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>X</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Partiram. E eis-me s&oacute;.
+Todos partiram.<br />
+
+O
+alvoro&ccedil;o do entrudo os chama aos lares.<br />
+
+&iexcl;Oh!
+&iexcl;Bemdita a ignorancia d'estas serras!<br />
+
+O rustico inda ri na
+Patria em luto,<br />
+
+e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.<br />
+
+&iexcl;Bem
+sabe elle que lagrimas aos mares<br />
+
+d'este horizonte em roda
+est&atilde;o correndo!<br />
+
+&iquest;Sabe elle que o atro dia
+&eacute; menos atro?<br />
+
+A paz, a confian&ccedil;a, as alegrias,<br />
+
+a
+abundancia, a uni&atilde;o de antigos Lusos,<br />
+
+n&atilde;o
+deixaram, fugindo, um s&oacute; vestigio.<br />
+
+No vaivem das
+fac&ccedil;&otilde;es, que se entrevencem,<br />
+
+tudo se perde e
+esquece, afora a raiva.<br />
+
+Os bons usos, as festas populares,<br />
+
+a romaria
+alegre, as patrias dan&ccedil;as,<br />
+
+v&atilde;o-se apagando...
+Aqui, mesmo na brenha,<br />
+
+a pastora, esquecendo os seus amores,<br />
+
+canta a
+quest&atilde;o dos Reis, o hymno da guerra,<br />
+
+sons novos, que o seu
+gado e o ecco extranham. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&Oacute; Patria, bella Italia do
+Occidente,<br />
+
+tu que egual a
+Parth&eacute;nope repoisas<br />
+
+debaixo da invejada laranjeira<br />
+
+e do
+mirto florido, ao deleitoso<br />
+
+ruido de aguas limpidas, no abri</div>
+
+<span class="pagenum">[74]</span>
+<div class="poetry1">de um ceo inspirador
+t&atilde;o proprio ao genio,<br />
+
+&oacute; bella Italia do
+Occidente, &oacute; Patria,<br />
+
+&iquest;era pois fado teu lidar sem
+fruto<br />
+
+para seres a inveja, a flor das gentes?....<br />
+
+A guerra, sim, te
+coroou co'as palmas<br />
+
+das quatro partes do orbe, e as naus do mundo<br />
+
+trouxeram a teus p&eacute;s thesoiros, sceptros.<br />
+
+Mas as flores das
+artes, mas os frutos<br />
+
+das sciencias, no ch&atilde;o dos outros povos<br />
+
+com tanto custo e com suor medrados,<br />
+
+&iquest;espont&acirc;neos
+no teu medraram nunca?...<br />
+
+&iquest;Tiveste nunca os dons, que em paz
+florentes<br />
+
+ornam e absolvem da conquista os loiros?<br />
+
+&iexcl;Que
+imperios teem cahido! e tu, tu ousas,<br />
+
+hoje ainda, aspirar &aacute;
+eternidade!!...<br />
+
+Talvez bem perto os seculos se cheguem,<br />
+
+que
+h&atilde;o-de ver cego arado andar lavrando<br />
+
+tuas cidades de
+esquecido nome,<br />
+
+e o rebanho indiff'rente apascentar-se<br />
+
+sobre os teus
+tribunaes, theatros, pra&ccedil;as. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+V&ecirc;-te o sol com praser; deixa-te a custo,<br />
+
+Lusitania, que
+&aacute; borda do Oceano<br />
+
+brilhas qual deusa em majestade e em
+gra&ccedil;a.<br />
+
+Deusa, e immortal, te cr&ecirc;ram; mas tu jazes<br />
+
+entre tropheos em p&oacute;, lavada em sangue.<br />
+
+Deshonrada
+Cle&oacute;patra, inda &eacute;s bella,<br />
+
+mas j&aacute; nas
+veias te circula a morte.<br />
+
+&iexcl;Ai de quem nutre as
+&aacute;spides no seio!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;&Oacute; Patria,
+&oacute; Patria, com que voz
+t&atilde;o baixa,<br />
+
+com que pejo te expr&oacute;bro!
+&iexcl;Ah! se
+pod&eacute;res,</div>
+
+<span class="pagenum">[75]</span>
+<div class="poetry1">perd&ocirc;a meu furor,
+v&ecirc; s&oacute; meu pranto;<br />
+
+&oacute; Patria, &oacute; m&atilde;e, &oacute; misera
+querida!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&iquest;Que ouvi? &iexcl;longinquo estrondo! &iquest;que
+seria?<br />
+
+&iexcl;Som de espingardas!... Sim, talvez... s&atilde;o
+homens<br />
+
+que nos matam irm&atilde;os... &iexcl;Alerta!...
+oi&ccedil;&acirc;mos...<br />
+
+<br />
+
+.................................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c9" id="c9"></a>IX </h4>
+
+<h3>
+O SAN JO&Atilde;O NAS FALDAS DO CARAMULO </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Dia
+em que o Poeta
+plantou por suas m&atilde;os um cedro no pateo<br />
+
+da residencia parochial da Castanheira do Vouga <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>(FRAGMENTO) </h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+.......................................................... </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Se, de teus
+annos na madura for&ccedil;a,</div>
+
+<div class="poetry1">
+a m&atilde;o que te ora planta
+inda f&ocirc;r viva,<br />
+
+essa mesma, j&aacute; tr&eacute;mula e
+caduca,<br />
+
+no tronco te abrir&aacute;, com pio exfor&ccedil;o,<br />
+
+graciosa capellinha, onde sorria<br />
+
+um San-Jo&atilde;o, o Santo alegre
+do ermo,<br />
+
+trajo de pelles, juvenil frescura,<br />
+
+olhos nos Ceos, aos
+p&eacute;s cordeiro branco. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N'essa noite poetica e devota,<br />
+
+em que
+o praser, centuplicando aspectos,<br />
+
+pov&ocirc;a, anima, encanta o mundo inteiro,<br />
+
+agua e terra, ar e
+ceo, tudo &eacute; macio,<br />
+
+em que a velhice, a mocidade, a infancia,<br />
+
+sympathisam no vago da alegria;<br />
+
+quando n'alma insaciavel de delicias<br />
+
+se
+juntam, com mistura inexplicavel,<br />
+
+ao saudoso passado, aos bens
+presentes,<br />
+
+as mil vis&otilde;es do esplendido futuro;</div>
+
+<span class="pagenum">[78]</span>
+<div class="poetry1">quando em la&ccedil;o phantastico
+se
+aggregam<br />
+
+da vida e eternidade os pensamentos,<br />
+
+gosos,
+supersti&ccedil;&otilde;es, fraquezas, cultos,<br />
+
+qual ramalhete
+de cipreste e rosas<br />
+
+na caprichosa m&atilde;o das feiticeiras;<br />
+
+n'essa noite, das noites invejada,<br />
+
+a ti concorrer&atilde;o por toda
+a parte,<br />
+
+t&eacute; das aldeias do horizonte extremo,<br />
+
+dan&ccedil;antes bandos que a viola guia. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ver&aacute;s girar seus bailes
+clamorosos<br />
+
+em redor das
+estr&iacute;dulas fogueiras;<br />
+
+ouvir&aacute;s os seus
+c&acirc;nticos em c&ocirc;ro<br />
+
+devoto e ennamorado. A bomba foge,<br />
+
+zune fugindo, e sollapada estoira;<br />
+
+o buscap&eacute; no ar
+caracolando<br />
+
+morde n'um, morde n'outro, amea&ccedil;a a todos,<br />
+
+dispersa os grupos, gasta-se raivando,<br />
+
+e entre os risos rebenta
+atroando os ares;<br />
+
+ali circula em v&oacute;rtice perenne<br />
+
+a roda leve
+espadanando incendios,<br />
+
+chovendo oiro luzente e estrellas alvas;<br />
+
+aqui
+floreia o f&uacute;lgido valverde,<br />
+
+vesuviosinho que arremette
+&aacute;s nuvens;<br />
+
+arranca o v&ocirc;o e vai rugindo aos astros<br />
+
+o ign&iacute;vomo foguete estrepitoso. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;E a musica entretanto!
+&iexcl;e as doces falas!<br />
+
+&iexcl;e os protestos de amor! &iexcl;e a prece occulta!<br />
+
+&iexcl;e essa m&atilde;o dada a furto e a furto acceita!<br />
+
+&iexcl;e esse olhar falador! &iexcl;e essas virtudes<br />
+
+da
+meia-noite em ponto! &iexcl;e a flor crestada!</div>
+
+<span class="pagenum">[79]</span>
+<div class="poetry1">&iexcl;e as sortes que a fortuna
+extrai
+&aacute;s vezes,<br />
+
+e muitas mais a pr&oacute;vida malicia!<br />
+
+&iexcl;e a fonte que amanhece entre descantes,<br />
+
+e pasma rindo de se
+ver coroada<br />
+
+de fest&otilde;es verdes e entran&ccedil;adas
+flores!<br />
+
+&iexcl;Que noites, que alegrias, que triumphos,<br />
+
+te aguardam
+no porvir, me est&atilde;o na mente!<sup><a href="#nt14">[9]</a></sup>
+<br />
+
+...............................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c10" id="c10"></a>X </h4>
+
+<h3>
+O MOSTEIRO </h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">V&oacute;s, que sois do amavel
+sexo<br />
+
+ardentes adoradores,<br />
+
+que
+girais de bella em bella,<br />
+
+qual leve abelha entre as flores, <br />
+
+<br />
+
+que sabeis n'um s&oacute; momento<br />
+
+a mil deusas incensar,<br />
+
+e pareceis
+de ternura<br />
+
+n&atilde;o poder-vos saciar, <br />
+
+<br />
+
+mancebos, o mundo &eacute; vosso;<br />
+
+mil bellas o mundo tem;<br />
+
+mas
+n&atilde;o choreis as que &aacute; sombra<br />
+
+repoisar das aras
+veem. <br />
+
+<br />
+
+Se um jardim, flor&iacute;do, immenso,<br />
+
+encontrais na sociedade,<br />
+
+&iquest;que importa que poucas rosas<br />
+
+lhe furte a m&atilde;o da
+piedade? <br />
+
+<br />
+
+poucas rosas, que dispostas<br />
+
+v&atilde;o depois na solid&atilde;o<br />
+
+lan&ccedil;ar mais doces perfumes,<br />
+
+seguras de extranha
+m&atilde;o.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[82]</span>
+<div class="poetry1">Vagae, vagae livremente<br />
+
+nos jardins da Id&aacute;lia Venus;<br />
+
+segui as Nymphas e as Gra&ccedil;as<br />
+
+pelos seus bosques amenos; <br />
+
+<br />
+
+os prazeres vos rodeiem,<br />
+
+os jogos em torno v&ocirc;em;<br />
+
+a mocidade
+vos ria;<br />
+
+esp&ecirc;ssas rosas vos c'r&ocirc;em; <br />
+
+<br />
+
+&iquest;que falta aos desejos vossos?<br />
+
+&iexcl;ah! soffrei, sem
+murmurar,<br />
+
+ver d'entre os verg&eacute;is flor&iacute;dos<br />
+
+poucas
+pombas desertar, <br />
+
+<br />
+
+poucas pombas, que innocentes,<br />
+
+e temendo o ca&ccedil;ador,<br />
+
+v&atilde;o nos ermos solitarios<br />
+
+buscar um fado melhor. <br />
+
+<br />
+
+Do Libano opacos cedros,<br />
+
+de Si&atilde;o bosque tranquillo,<br />
+
+v&oacute;s, palmeiras de Idum&ecirc;a,<br />
+
+prestae-lhes seguro
+asylo. <br />
+
+<br />
+
+Estranhas vistas n&atilde;o turbem<br />
+
+os seus piedosos segredos;<br />
+
+contentes &aacute; sombra vivam<br />
+
+dos sagrados arvoredos. <br />
+
+<br />
+
+Silencio, paz, e ternura,<br />
+
+alva estrella de innocencia,<br />
+
+e a vista de um
+ceo risonho,<br />
+
+lhes doirem toda a existencia.</div>
+
+<span class="pagenum">[83]</span>
+<div class="poetry1"><br />
+
+Murm&uacute;rio de castas fontes,<br />
+
+perfume de simples flores,<br />
+
+lhes paguem jardins que infestam <br />
+
+os abutres e os a&ccedil;ores. <br />
+
+<br />
+
+Eu vos lamento e vos ch&oacute;ro,<br />
+
+insensiveis
+cora&ccedil;&otilde;es,<br />
+
+que de um mosteiro entre os muros<br />
+
+n&atilde;o v&ecirc;des sen&atilde;o pris&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+C&oacute;rae da vossa loucura.<br />
+
+Correi a ver de mais perto<br />
+
+o Eden
+recatado ao mundo<br />
+
+no seio d'este deserto. <br />
+
+<br />
+
+Modestas virgens o habitam,<br />
+
+que s&oacute; n&atilde;o teem
+liberdade<br />
+
+de colher em frutos de oiro<br />
+
+as festas da sociedade. <br />
+
+<br />
+
+Segui-me, segui-me affoitos,<br />
+
+entremos. Abriu-se o templo.<br />
+
+Seus ermos,
+ao mundo ignotos,<br />
+
+inteiros d'aqui contemplo. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;N&atilde;o v&ecirc;des sobre os altares<br />
+
+com
+gra&ccedil;a engrupadas flores<br />
+
+lan&ccedil;ar torrentes de
+aromas,<br />
+
+brilhar co'as mais vivas cores? <br />
+
+<br />
+
+N'esses prados invisiveis<br />
+
+tambem pois se eleva a aurora;<br />
+
+sol, e
+zephyros, e fontes,<br />
+
+lhes d&atilde;o sorrisos de Flora.</div>
+
+<span class="pagenum">[84]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Essas pois, que v&oacute;s julgaveis<br />
+
+desgra&ccedil;adas
+prisioneiras,<br />
+
+teem praseres, teem delicias,<br />
+
+teem jardins,
+s&atilde;o jardineiras. <br />
+
+<br />
+
+V&ecirc;de ornar formosa Imagem<br />
+
+rico manto que fulgura,<br />
+
+de oiro e
+sedas matizado<br />
+
+com vistosa bordadura. <br />
+
+<br />
+
+V&ecirc;de a grinalda florida;<br />
+
+v&ecirc;de o ramo; estes
+jasmins,<br />
+
+estes lirios, estas rosas,<br />
+
+n&atilde;o s&atilde;o
+j&aacute; de seus jardins. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o devem sua existencia<br />
+
+nem &aacute; terra nem ao Ceo,<br />
+
+e nem zephyros nem fontes<br />
+
+serviram no augmento seu. <br />
+
+<br />
+
+Formou-as arte engenhosa;<br />
+
+poude mais que a Natureza;<br />
+
+deu mais vida
+&aacute;s suas flores;<br />
+
+prestou-lhes egual belleza. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Sabeis, que m&atilde;os feiticeiras<br />
+
+obraram prodigios
+taes?<br />
+
+eis o trabalho e os recreios<br />
+
+d'essas piedosas Vestaes. <br />
+
+<br />
+
+Ellas no c&ocirc;ro apparecem;<br />
+
+e, ao som dos org&atilde;os
+divinos,<br />
+
+de sua alma aos Ceos se elevam<br />
+
+devotos brilhantes hymnos.</div>
+
+<span class="pagenum">[85]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Innocentes e macias,<br />
+
+d'estas vozes a mistura<br />
+
+sem perturbar os
+sentidos<br />
+
+infunde n'alma ternura. <br />
+
+<br />
+
+Em seus canticos n&atilde;o reina<br />
+
+terreno vulgar affecto;<br />
+
+&eacute; mais puro, &eacute; mais sublime<br />
+
+de seus amores o
+objecto. <br />
+
+<br />
+
+O pensamento que as ouve,<br />
+
+sai da t&eacute;rrea
+habita&ccedil;&atilde;o,<br />
+
+deixa os ares, das esph&eacute;ras<br />
+
+atravessa o turbilh&atilde;o, <br />
+
+<br />
+
+v&ecirc; do Empyrio as portas de oiro<br />
+
+abertas &aacute;
+humanidade,<br />
+
+rompe audaz, vai submergir-se<br />
+
+no fulgor da Divindade. <br />
+
+<br />
+
+Cessa a musica, e de novo<br />
+
+volve a mente ao patrio mundo;<br />
+
+mas dos
+virgineos desertos<br />
+
+primeiro se arroja ao fundo. <br />
+
+<br />
+
+L&aacute; divisa, em liberdade,<br />
+
+nas livres tranquillas horas,<br />
+
+dadas
+a cantos diversos<br />
+
+estas formosas cantoras. <br />
+
+<br />
+
+Na sombra d'aquelles bosques,<br />
+
+n'aquelles molles passeios,<br />
+
+tambem pois
+das Musas entram<br />
+
+os aprasiveis recreios.</div>
+
+<span class="pagenum">[86]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Olhae por fim seus aspectos,<br />
+
+&iquest;N&atilde;o vedes
+v&oacute;s a bondade,<br />
+
+a alegria da innocencia,<br />
+
+as virtudes da
+piedade? <br />
+
+<br />
+
+Eis os Genios que lhes tornam<br />
+
+encantadora a existencia:<br />
+
+as virtudes da
+piedade,<br />
+
+os praseres da innocencia. <br />
+
+<br />
+
+A amisade entre ellas reina;<br />
+
+&iquest;os encantos da amisade<br />
+
+n&atilde;o prestar&atilde;o, por ventura,<br />
+
+delicias &aacute;
+soledade? <br />
+
+<br />
+
+Mas basta, insensatos, basta;<br />
+
+&aacute; scena se corra o veo;<br />
+
+n&atilde;o profanem vossos olhos<br />
+
+mais tempo os &aacute;trios do
+Ceo. <br />
+
+<br />
+
+Ide no mundo esquecel-as,<br />
+
+em vez de as irdes chorar;<br />
+
+e o vosso mundo
+vos baste,<br />
+
+como lhes basta um altar. <br />
+
+<br />
+
+Mas esperae; respondei-me;<br />
+
+consultae vosso interior:<br />
+
+&iquest;sois
+ditosos co'os sorrisos<br />
+
+de um falso inconstante amor? <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Sabeis v&oacute;s o que amor seja?<br />
+
+&iquest;Satisfaz-se o cora&ccedil;&atilde;o<br />
+
+com esses fogos
+incertos,<br />
+
+e essa eterna agita&ccedil;&atilde;o?</div>
+
+<span class="pagenum">[87]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+&iquest;N&atilde;o vir&aacute; talvez um dia,<br />
+
+em que,
+mais sabios, queirais<br />
+
+unir os vossos destinos<br />
+
+&aacute; melhor
+d'entre as mortaes? <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Como a haveis de achar no mundo,<br />
+
+no mundo, cujos enganos<br />
+
+v&oacute;s conheceis, ajudastes,<br />
+
+seguistes, por tantos annos? <br />
+
+<br />
+
+Tremereis de um la&ccedil;o eterno.<br />
+
+A vossa pena consiste<br />
+
+em
+pensardes que a virtude<br />
+
+que n&atilde;o tendes, n&atilde;o
+existe. <br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o aqui vos espero,<br />
+
+n'estes quietos retiros.<br />
+
+Estes muros
+que insultaveis,<br />
+
+ouvir&atilde;o vossos suspiros. <br />
+
+<br />
+
+Entre estas virgens mimosas,<br />
+
+que severa educa&ccedil;&atilde;o<br />
+
+forma, longe dos humanos,<br />
+
+&aacute; sombra da solid&atilde;o, <br />
+
+<br />
+
+vir&eacute;is procurar o objecto,<br />
+
+cuja ternura innocente<br />
+
+vos deve
+tornar a vida<br />
+
+risonha, pura, e contente. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o detesteis um recinto,<br />
+
+onde Amor, onde Hymeneu,<br />
+
+onde um
+Genio, amigo vosso,<br />
+
+vosso thesoiro escondeu.</div>
+
+<span class="pagenum">[88]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Pensae, pensae que ali vive,<br />
+
+cresce em virtude e talentos,<br />
+
+e em
+gra&ccedil;as, aquella que ha-de<br />
+
+doirar os vossos momentos. <br />
+
+<br />
+
+Qual arbusto delicado,<br />
+
+que a vi&ccedil;osa lou&ccedil;ania<br />
+
+mostrar em seu proprio clima,<br />
+
+em seu proprio ceo, devia, <br />
+
+<br />
+
+mas foi por m&atilde;o inimiga<br />
+
+trazido a estranhos logares,<br />
+
+onde
+murcho cederia<br />
+
+a influxos de infestos ares, <br />
+
+<br />
+
+se da estufa compassiva<br />
+
+lhe n&atilde;o fosse aberto o seio,<br />
+
+onde
+vegeta e floresce<br />
+
+de arbustos eguaes no meio; <br />
+
+<br />
+
+ali n&atilde;o receia as neves;<br />
+
+n&atilde;o treme da tempestade;<br />
+
+gosa o sol; vive no mundo,<br />
+
+vivendo na soledade; <br />
+
+<br />
+
+de extranhos somente &eacute; visto;<br />
+
+tem louvor; &eacute;
+cubi&ccedil;ado;<br />
+
+mas das flores, mas dos frutos,<br />
+
+n&atilde;o
+&eacute; jamais despojado. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Mil vezes feliz, mil vezes,<br />
+
+quem ousa, &aacute; luz da
+verdade,<br />
+
+queimar a m&aacute;scara d'oiro<br />
+
+&aacute;s larvas da
+sociedade!</div>
+
+<span class="pagenum">[89]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Medrae, sagrados mosteiros;<br />
+
+medrae, desprezando a inveja;<br />
+
+jamais
+fulminar-vos possa<br />
+
+calumnia que em v&atilde;o troveja. <br />
+
+<br />
+
+Brilhae, como ilhas flor&iacute;das,<br />
+
+no meio do mar profundo<br />
+
+de
+vicios, crimes, e horrores,<br />
+
+que alaga, que abrange o mundo. <br />
+
+<br />
+
+S&ecirc;de o asylo das virtudes,<br />
+
+do Eden a propria entrada,<br />
+
+o
+enlace dos Ceos co'a terra,<br />
+
+do Empyrio a sublime escada. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Coimbra&#8213;1826 (?)</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c11" id="c11"></a>XI </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+SANTA MARIA EGYPC&Iacute;ACA </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento de um poema) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">...........................................................<br />
+
+Prostrada aos
+p&eacute;s da Cruz, ante a caveira,<br />
+
+jaz solitaria a Egypcia. Rios
+descem<br />
+
+de olhos lindos, que os ceos fitar n&atilde;o ousam, </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;T&atilde;o nova, e
+isenta? &iexcl;Oh!
+n&atilde;o; mudou de amores.<br />
+
+Dos primeiros s&oacute; guarda a
+dor e as penas;<br />
+
+mas os novos, os ultimos, protesta<br />
+
+conserval-os em
+vida, e em morte havel-os. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">T&eacute; aqui, pela alma escura
+s&oacute; lhe ardiam<br />
+
+relampagos dispersos; derretido<br />
+
+raio dos Ceos lhe c&ocirc;a pelas
+veias. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Brilhou no mundo como a flor de um
+dia.<br />
+
+Os soes vivos, os ventos
+importunos,<br />
+
+lhe amea&ccedil;avam fim; ruins borboletas<br />
+
+captivas da
+belleza iam murchal-a.<br />
+
+Imprevisto invisivel jardineiro<br />
+
+a tempo a salva,
+e a transplantou no ermo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">No mundo, sobre o abysmo, hontem
+folgava<br />
+
+impr&oacute;vida e
+leviana; hoje pranteia<br />
+
+na solid&atilde;o, mas sob um Ceo que a
+espera.<br />
+
+As cidades, em que &iacute;dolo brilh&aacute;ra,<br />
+
+inda a
+chamam em v&atilde;o, e em v&atilde;o a aguardam.<br />
+
+De um lustro
+que a houveram, &iexcl;quantos lustros<br />
+
+lhe volveram saudade! </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Em vi&ccedil;o de annos,</div>
+
+<div class="poetry1">e mais bella que as flores todas
+juntas<br />
+
+das dezassete suas primaveras,<br />
+
+qual fugaz sonho de manhan de estio,<br />
+
+foi-se, e n&atilde;o voltou mais, Deus sabe aonde.<br />
+
+Murcharam
+festas; esmorecem dan&ccedil;as;<br />
+
+os banquetes, diffusos pela noite,<br />
+
+j&aacute; n&atilde;o veem despertar ternura e risos.<br />
+
+Nas
+roseiras intactas se desfolham<br />
+
+os bot&otilde;es das grinaldas; o
+ala&uacute;de,<br />
+
+que falou tanto amor nas m&atilde;os da bella,<br />
+
+discorde jaz, e mudo... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Ella, entretanto,</div>
+
+<div class="poetry1">co'os mimosos p&eacute;s
+n&uacute;s calcando
+areias,<br />
+
+desornado o cabello, env&ocirc;lta em pelles,<br />
+
+timida,
+envergonhada, pesarosa,<br />
+
+vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.<br />
+
+Mil vezes
+&aacute; avesinha se comp&aacute;ra,<br />
+
+sem fam&iacute;lia,
+sem lar; corre erradia;<br />
+
+&iquest;n&atilde;o ha-de ambas manter a
+paz que &eacute; de
+ambas?<br />
+
+Beija a caverna fr&iacute;gida que a hosp&eacute;da,<br />
+
+e
+agradecendo este h&oacute;rrido paraizo<br />
+
+ao Deus que lh'o dep&aacute;ra,
+esquece o mundo,<br />
+
+ou sem saudade e com horror o aviva.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[93]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ai cora&ccedil;&atilde;o
+t&atilde;o amplo, onde estuava<br />
+
+mar
+de affectos sem conto, escoado agora,<br />
+
+&iquest;quem o ha de encher?
+&iexcl;em solid&atilde;o
+t&atilde;o funda!<br />
+
+&iquest;quem o ha-de encher? J&aacute; o
+enche o que enche
+tudo,<br />
+
+o que brilha na luz, no sol, nos astros,<br />
+
+corre nos
+aquil&otilde;es, anima os troncos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">S&oacute; conversa com Deus, e a
+Deus s&oacute; ouve.<br />
+
+Este
+seio, estas tran&ccedil;as desatadas,<br />
+
+s&atilde;o brinco
+s&oacute; do vento do deserto.<br />
+
+Esta m&atilde;o, t&atilde;o
+mimosa e t&atilde;o querida,<br />
+
+s&oacute; procura, excavando a
+terra ingrata,<br />
+
+a amorosa raiz, ou j&aacute; se encurva<br />
+
+para dar
+agua aos labios sequiosos.<br />
+
+A aurora a vem saudar j&aacute; de
+joelhos.<br />
+
+N&atilde;o ha um sol, n&atilde;o ha na noite um astro,<br />
+
+que n&atilde;o saiba os seus ais e eternas preces.<br />
+
+Nem que passe o
+chacal, a hiena, a on&ccedil;a,<br />
+
+foge, ou quebra os devotos
+exercicios.<br />
+
+Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;<br />
+
+e a Estrangeira
+n&atilde;o treme; ora, e descan&ccedil;a. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ao fresco desmaiar da extrema tarde,<br />
+
+quando os raios do sol
+j&aacute; mal doiravam<br />
+
+da longinqua palmeira o incerto cume,<br />
+
+&iexcl;que vezes, assentada, e sustentando<br />
+
+na eburnea
+m&atilde;o o pallido semblante,<br />
+
+atraz do astro fogoso e fugitivo,<br />
+
+mandava o cora&ccedil;&atilde;o, mandava os olhos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[94]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;&laquo;Al&eacute;m&#8213;dizia&#8213;al&eacute;m,
+n'esse Occidente,<br />
+
+corre o santo Jord&atilde;o delicias minhas,<br />
+
+que o Salvador banhou,
+que eu passei mesma.<br />
+
+Talvez aquella nevoa que l&aacute; brilha,<br />
+
+mudada em rosa, em purpuras, em oiro,<br />
+
+seja da santa veia alegre filha,<br />
+
+Al&eacute;m... Jerusalem, Si&atilde;o,
+Jud&ecirc;a...&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">E a taes nomes, enxames de memorias,<br />
+
+de saudades, de affectos, lhe
+adejavam<br />
+
+pela alma, alegre em parte, em parte escura.<br />
+
+Raro, mas inda
+&aacute;s vezes lhe assomavam<br />
+
+no involuntario somno ideias meigas.<br />
+
+Inda, uma vez ou outra, o amor banido<br />
+
+entrava de relance o antigo
+alvergue,<br />
+
+e ap&oacute;z elle os passeios namorados,<br />
+
+os theatros
+esplendidos, as galas,<br />
+
+as mezas rindo, os bailes desenv&ocirc;ltos;<br />
+
+e as victorias, e as chusmas dos praseres,<br />
+
+como &aacute; sua rainha
+v&atilde;o saudal-a.<br />
+
+Acordava sorrindo, a Cruz fitava;<br />
+
+e atirando
+se &aacute; terra, e s&ocirc;lta em
+ch&oacute;ros,<br />
+
+pagava erros n&atilde;o seus com dor bem sua. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Taes se lhe v&atilde;o no ermo
+deslizando<br />
+
+dias e annos, sem ver na
+areia impressos<br />
+
+mais vestigios que os seus. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+De tempo em tempo,</div>
+
+<div class="poetry1">s&oacute; v&ecirc; talvez, ou
+ver presume ao
+longe,</div>
+
+<span class="pagenum">[95]</span>
+<div class="poetry1">do horisonte nas
+sombras pavorosas,<br />
+
+o t&eacute;nue p&oacute; da immensa
+caravana,<br />
+
+que vai de Al&eacute;po &aacute; M&eacute;ka em
+certa
+estrada.<br />
+
+Por ella ora, e entre o orar lamenta<br />
+
+a devota
+fan&aacute;tica impiedade. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Tal vai manando a limpida existencia.<br />
+
+Egual ao ramalhete que desmaia,<br />
+
+e
+se esf&oacute;lha no altar entre os perfumes,<br />
+
+tal, sem gosto e sem
+dor, e sem que o note,<br />
+
+perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia<br />
+
+encantos, j&aacute; seu mal, e mal do mundo.<br />
+
+O juvenil das formas
+exteriores<br />
+
+concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas<br />
+
+se esconde um
+cora&ccedil;&atilde;o de amor n&atilde;o
+farto. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Quem a tivesse visto, e a visse agora,<br />
+
+sentiria o que sente o viajante,<br />
+
+quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,<br />
+
+saudosos restos, da gentil
+Palmyra.<br />
+
+Uma e outra j&aacute; gloria do Universo;<br />
+
+agora mudas,
+s&oacute;s, e deslembradas,<br />
+
+e socias no deserto, e eguaes no
+exemplo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Meio seculo a viu prantear sosinha<br />
+
+annos ligeiros da fugaz infancia.<br />
+
+Ao
+fim da gran carreira, o Ceo lhe envia<br />
+
+o solitario Z&oacute;zimo,
+como ella<br />
+
+anci&atilde;o virtuoso, e habitador das covas,<br />
+
+que lhe
+oi&ccedil;a a longa vida, a anime, e exforce;<br />
+
+lhe d&ecirc;
+perd&atilde;o e paz de um Deus em nome.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[96]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Pela primeira vez contente e alegre,<br />
+
+ousando olhar os Ceos,</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&laquo;&iquest;Trareis,&#8213;lhe disse&#8213;</div>
+
+<div class="poetry1">&aacute; pobre
+peccadora o manjar de Anjos?&raquo;<br />
+
+&#8213;&laquo;Sim.&raquo;</div>
+
+<div class="poetry4">E partiu.</div>
+
+<div class="poetry2">Com vista prolongada</div>
+
+<div class="poetry1">ella o segue; co'os olhos no deserto<br />
+
+o espera todo
+o dia; &iexcl;e este &eacute; t&atilde;o
+longo!...<br />
+
+&iexcl;tarda tanto o bom h&oacute;spede!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry5">
+Passou-se</div>
+
+<div class="poetry1">um anno inteiro. &Eacute; elle
+agora; &eacute; elle;<br />
+
+conhe&ccedil;o o fraco andar que o zelo apressa,<br />
+
+e as cans, e a
+calva, e as faces penitentes... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Chega; clama; a caverna
+n&atilde;o responde;<br />
+
+grita, e s&oacute;
+ouve a si. Olha em redondo,<br />
+
+v&ecirc;-a jazer na areia, e a areia
+escrita<br />
+
+por m&atilde;o tr&eacute;mula, errante, ao que parece: </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry tinyl">Bom Z&oacute;zimo, por santa
+caridade<br />
+
+enterra o corpo da infeliz
+Maria.<br />
+
+Aqui morri no dia em que te f&ocirc;ste.<br />
+
+Encommenda-me a
+Deus, e Deus t'o pague. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">..................................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c12" id="c12"></a>XII </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+EPISTOLA </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Ao
+meu amigo o Desembargador
+Manuel Venancio<br />
+
+Deslandes
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+(NO DIA DOS MEUS ANNOS)<br />
+
+<br />
+
+FRAGMENTO </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Em torno ao teu amigo
+est&atilde;o fervendo,<br />
+
+Deslandes meu, na hora
+em que te escreve,<br />
+
+de uma festa caseira o reboli&ccedil;o. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bem que alveje de neve o Caramulo,<br />
+
+e um fr&iacute;gido
+su&atilde;o de l&aacute; nos venha,<br />
+
+ninguem hoje de frio aqui
+se queixa.<br />
+
+N&atilde;o descan&ccedil;a nem p&eacute;, nem
+m&atilde;o, nem lingua;<br />
+
+o sumptuoso lar arde em tres
+f&oacute;gos;<br />
+
+o forno se afogueia; a branca meza<br />
+
+vai-se de
+loi&ccedil;a e vidros alegrando. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Uma estuda em comp&ocirc;r as
+sobremezas;<br />
+
+outra enrama de loiro
+alta ferrugem<br />
+
+das vigas da cosinha; esta, sizuda,<br />
+
+de riscado avental e
+nus os bra&ccedil;os,</div>
+
+<span class="pagenum">[98]</span>
+<div class="poetry1">com importancia e afan revira
+esp&ecirc;tos;<br />
+
+aquella, anda
+scismatica, e raivosa<br />
+
+de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,<br />
+
+que
+al&eacute;m de um alecrim, de umas violetas,<br />
+
+nascidas por engano,
+al&eacute;m de rosas,<br />
+
+fr&aacute;geis, sem cheiro, e languidas,
+n&atilde;o cria<br />
+
+com que se enflore a meza dos meus annos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Porque &eacute;,
+quando a sorrir divagam todos,<br />
+
+quando
+s&oacute; para mim se andam tecendo<br />
+
+estas pompas domesticas, agora<br />
+
+que a potente amisade em meu obsequio<br />
+
+para tudo fazer at&eacute;
+fez estros;<br />
+
+agora, emfim, que aos raios da alegria<br />
+
+n&atilde;o ha um
+cora&ccedil;&atilde;o que se
+n&atilde;o abra...<br />
+
+&iquest;por que se fecha o meu?
+&iquest;Dar&aacute;
+(n&atilde;o creio)<br />
+
+da Natureza o luto um certo assombro<br />
+
+&aacute;s festas do homem? &iquest;Pensas que enfartado<br />
+
+d'esta
+patria amargura, a filtre aos gostos,<br />
+
+qual vaso que azedado a tudo
+az&eacute;da?...<br />
+
+.......................................................... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">26 de Janeiro</div>
+
+<div class="poetry3">de 1833.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c13" id="c13"></a>NOTAS DOS EDITORES<br />
+
+<br />
+
+AO VOLUME I DO<br />
+
+<br />
+
+PRESBYTERIO DA MONTANHA </h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Da villa da Castanheira&#8213;No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de
+Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o
+sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam
+da Beira, a qual &eacute; tambem dos Condes da Feira, e n'ella
+entra em correi&ccedil;&atilde;o o seu
+Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja parochial da
+invoca&ccedil;&atilde;o de S. Mamede, Priorado do Conde da
+Feira, que rende 600$000 r&eacute;is, e tres ermidas. O seu termo
+tem uma freguezia dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de
+Aguad&atilde;o, que consta de 100 visinhos. &Eacute; curado
+annexo &aacute; egreja de S. Mamede, que apresenta o seu Prior. Tem
+este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que
+fertilisam seus campos de p&atilde;o e vinho, e os fazem abundantes
+de todo genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes
+ordinarios, Vereadores, um procurador do Concelho, Escriv&atilde;o
+da Camara, Juiz dos Orph&atilde;os
+com seu Escriv&atilde;o, 1 Alcaide, e 1 Companhia da
+Ordenan&ccedil;a. <br />
+
+<br />
+
+(<em>Chorographia portugueza</em> pelo Padre
+Antonio Carvalho da Costa.&#8213;T. II, pag. 176&#8213;1708.)
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[100]</span>
+Castanheira do Vouga&#8213;Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de
+Coimbra, Comarca de Esgueira. &Eacute; da Casa do Infantado; tem
+803 visinhos. Est&aacute;
+situada em monte junto da serra do Caramulo. &Eacute; seu orago S.
+Mamede. Tem quatro altares; e o maior &eacute; do orago; os outros
+s&atilde;o do Santissimo, de Nossa Senhora da
+Expecta&ccedil;&atilde;o, com sua irmandade, e outro de S.
+Jorge. O Parocho &eacute; Prior, apresenta&ccedil;&atilde;o
+da
+casa do Infantado; tem de renda 400$000 reis. Tem tres ermidas, que
+s&atilde;o: a do Espirito Santo, a de Nossa Senhora do
+Bom-despacho, e a de S. Sebasti&atilde;o. Os frutos d'esta terra
+s&atilde;o milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa
+um Juiz ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios
+Agued&atilde;o, Alfusqueiro, e Agueda. <br />
+
+<br />
+
+(<em>Diccionario geographico</em> pelo Padre
+Luiz Cardoso. 1751.) <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+Castanheira do Vouga.&#8213;Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago
+S. Mamede; o Parocho &eacute; Prior da
+apresenta&ccedil;&atilde;o da Casa do
+Infantado; rende 480$000 r&eacute;is; dista de Lisboa 40 leguas, e
+de Coimbra 7; tem 58 fogos. <br />
+
+<br />
+
+&Aacute;gad&atilde;o&#8213;Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por
+Orago Santa Maria Magdalena; o Parocho &eacute; Cura da
+apresenta&ccedil;&atilde;o do Prior da Castanheira; rende
+40$000 r&eacute;is; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem
+102 moradores <br />
+
+<br />
+
+(<em>Portugal sacro-profano</em>&#8213;por Paulo
+Dias de Niza; cryptonimo do Padre Luiz
+Cardoso&#8213;Lisboa&#8213;1767&#8213;8.&ordm;&#8213;2
+vol) <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+Castanheira do Vouga.&#8213;Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do
+Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140
+fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto
+administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da
+Comarca de Esgueira. &Eacute; da Casa do Infantado. Situada em um
+monte proximo &aacute; serra do Caramulo. A Casa do Infantado
+<span class="pagenum">[101]</span>
+apresentava o Prior, que tinha
+400$000 r&eacute;is. &Eacute; fertil em milho e centeio; produz
+algum vinho, e do mais pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a
+16 de Junho de 1514. Era cabe&ccedil;a do concelho do seu nome e
+tinha Juiz ordinario, Camara, Escriv&atilde;es, e mais
+Justi&ccedil;as. Passam pela freguezia
+os rios Agueda, Agued&atilde;o, e Alfusqueira.<br />
+
+<br />
+
+(<em>Portugal antigo e moderno</em>&#8213;por
+Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal&#8213;Lisboa, 1874). <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n1">
+Pag. 11</a> lin. ultima
+</h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Dapibus mensas oneramus
+inemptis<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Oneramos as mezas com iguarias n&atilde;o compradas; isto
+&eacute;, vivemos, sem comprar, das nossas lavras proprias. <br />
+
+<br />
+
+Cita&ccedil;&atilde;o de Virgilio
+(<em>Georgicas</em>, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina
+variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto &eacute;: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+<em>....Sero que revertens</em></div>
+
+<div class="poetry1"><em>nocte domum, dapibus mensas
+onerabat
+inemptis.</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Isso faz parte de uma historieta que Virg&iacute;lio conta, e que
+vamos ouvir
+na traduc&ccedil;&atilde;o de Castilho: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry4">......Alembra-me
+que
+outr'ora,</div>
+
+<div class="poetry1">l&aacute; por onde o Galeso
+arrasta a veia escura<br />
+
+por
+entre loiros ch&atilde;os de cereal cultura,<br />
+
+junto &aacute;
+Eb&aacute;lia cidade, a de torreados muros,<br />
+
+conheci um corycio em
+annos j&aacute; maduros,<br />
+
+dono de uma chanzinha ali desamparada.<br />
+
+O
+pobre do torr&atilde;o de si n&atilde;o dava nada:<br />
+
+nem pasto
+para bois, nem para um fato hervinha.<br />
+
+Sumitico de p&atilde;es,
+escasso para vinha,<br />
+
+era um sar&ccedil;al fechado; e no
+sar&ccedil;al, comtudo,<br />
+
+o bom velho, a poder de diligencia e
+estudo,<br />
+
+tinha hortali&ccedil;a rara, e emmoldurada em torno<br />
+
+com
+seve de jardim para maior adorno,<br />
+
+alvos lirios, verbena, e papoilas de
+prato.<br />
+
+N&atilde;o troc&aacute;ra co'os Reis seu parco haver
+t&atilde;o grato. <br />
+
+Recolhia ao casal j&aacute; noite; e,
+&iexcl;que riqueza<br />
+
+de iguarias de gra&ccedil;a a assoberbar-lhe
+a meza!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[102]</span>
+<h4><a href="#n2">Pag. 18</a> lin. 3 </h4>
+
+<br />
+
+<div class="quote">Pass&aacute;mos n'uma bateirinha,
+remada por uma velha moleira da
+margem, o
+v&iacute;&ccedil;oso rio de Bolfiar. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O
+caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfei&ccedil;oamentos
+modernos, deram cabo da antiga viagem t&atilde;o pittoresca. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n3">Pag. 36</a> lin. 20 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Uma especie de zimborio
+de doze palmos de altura. <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que
+primeiro se dedicaram ao estudo da triangula&ccedil;&atilde;o
+do Reino. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n4">Pag. 37</a> lin. 3 </h4>
+
+<br />
+
+<div class="quote">Uma desconforme loisa
+inteiri&ccedil;a horizontalmente aguentada
+nos ares por esteios de pedra. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em
+muitas partes das Hespanhas, e acham-se estudados &aacute; luz da
+sciencia moderna. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n5">Pag. 42</a> lin. 6 </h4>
+
+<br />
+
+<div class="quote">A Linguagem &eacute; ali, como os
+ares, de uma admiravel pureza e
+luc&iacute;dez. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho
+o seu constante amor &aacute; vernaculidade. Veja-se nas <em>Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</em> o que elle diz do velho camponez Francisco Gomes,
+creado da casa, e &laquo;um dos mais chapados classicos&raquo;
+que elle jamais encontrou. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n6">Pag. 58</a> lin. 7 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Lia, Rachel e Rebecca <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Lia era filha primogenita de Lab&atilde;o, e irman de Rachel.
+Achando-se Rachel ajustada para casar com Jacob, teve Lab&atilde;o
+astucia de lhe substituir Lia, apesar de menos formosa. Foi
+m&atilde;e de Ruben, Sime&atilde;o, Levi, Jud&aacute;,
+Issachar, Zabulon, e Dina.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[103]</span>
+Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve
+Jos&eacute;, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que
+ainda se conserva e mostra o seu tumulo. <br />
+
+<br />
+
+Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de
+Abrah&atilde;o, e teve por filhos Eza&uacute; e Jacob. <br />
+
+<br />
+
+Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan,
+s&atilde;o encantadoras de singeleza e gra&ccedil;a nas
+descrip&ccedil;&otilde;es que d'ellas nos
+deixaram os Livros santos. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n7">Pag. 72</a> lin. 15 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Uma pobre mocinha
+ovelheira <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era
+Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta
+na sua <em>Chave do enigma</em>. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n8">Pag. 80</a>, lin. 9 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Filinto e o entrudo <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom
+Francisco Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da
+velha Lisboa. <br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Viva o meu Portugal!
+&iexcl;viva a laranja<br />
+
+que
+derruba o chapeo!</div>
+
+<br />
+
+exclamava elle em Par&iacute;s, ao lembrar-se das
+grosseiras costumagens dos Portuguezes, felizmente meio
+pol&iacute;das j&aacute; hoje. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n9">Pag. 82</a> linhas 6 e 8 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Cita&ccedil;&otilde;es
+latinas <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Essas duas s&atilde;o de Virgilio
+(<em>Eneida</em>, Livro I) <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1"><em>Fronte sub adversa scopulis
+pendentibus antrum;<br />
+
+intus
+aquae dulces, vivoque sedilia saxo;<br />
+
+nympharum domus</em>.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Isto &eacute;: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um
+antro; e l&aacute; dentro correm aguas doces, e apparecem assentos
+como que talhados na rocha viva; verdadeira
+habita&ccedil;&atilde;o de nymphas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[104]</span>
+<h4><a href="#n10">Pag. 87</a> lin. 21 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">As
+roga&ccedil;&otilde;es de Maio <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado,
+fallecido no anno 475. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n11">Pagina 99</a> linha 23 </h4>
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+O ubi campi! <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Recorda&ccedil;&atilde;o de palavras de Virgilio ao Livro II
+das <em>Georgicas</em>: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1"><em>Rura mihi et rigui placeant
+in vallibus amnes;<br />
+
+flumina
+amem silvasque inglorius. O ubi campi<br />
+
+Spercheosque, et virginibus
+bacchata Lacaems<br />
+
+Taygeta!......</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles;
+encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou.
+&iquest;Onde estais, campinas? &iquest;onde est&aacute;s,
+rio Sperchio, e tu, monte Tayg&eacute;te, habitado pelas alegres
+virgens espartanas? <br />
+
+<br />
+
+Castilho traduziu assim este trecho: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ent&atilde;o amar s&oacute;
+quero os rios e arvoredos,<br />
+
+de
+glorias desquitado. Ai, campos meus t&atilde;o quedos!<br />
+
+ai ribeiras
+do Sp&eacute;rchio, oiteiros do Tayg&eacute;to,<br />
+
+das virgens de
+Lac&oacute;nia &aacute;s &oacute;rgias
+predilecto,<br />
+
+&iquest;onde, onde me estais v&oacute;s?....</div>
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n12">Pag. 102</a>, lin. 10 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Parve, nec invideo, sine
+me, liber, ibis in urbem <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Verso de Ovidio, logo no come&ccedil;o da elegia I do Livro I das <em>Tristezas</em>.
+Dirigindo-se
+ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no desterro, entre os
+gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno livro; has-de entrar
+sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal. <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Parte, &oacute; meu pobre livro;
+ir&aacute;s sem mim,
+sosinho,<br />
+
+correr na gran Cidade incognito caminho<br />
+
+<br />
+
+traduziu alguem</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[105]</span>
+<h4><a href="#n13">Pag. 107</a>, lin. 17 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Zimmermann <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cant&atilde;o de
+Berne, a 8 de Dezembro de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi
+abalisado sabio. Nomeou-o medico da sua camara em 1768 el-Rei de
+Inglaterra; el Rei de Prussia Frederico, o grande, foi tratado por elle
+na sua ultima doen&ccedil;a, e deveu allivios aos seus cuidados
+intelligentes. O Principe russo Orloff foi de proposito com sua mulher
+consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se a S. Petersburgo falou
+d'elle com enthusiasmo &aacute; Imperatriz Catherina, que em 1784
+procurou attrahir &aacute; sua c&ocirc;rte aquelle
+luminar da sciencia. Elle pediu excusa, porque a vida mundana
+n&atilde;o condizia com os habitos que tinha creado o seu espirito;
+n&atilde;o se ofendeu a eminente Princeza, e conferiu-lhe a ordem
+de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu morrer-lhe entre os
+bra&ccedil;os uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho.
+Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Al&eacute;m de
+outras obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa,
+publicou em 1756 o seu <em>Tratado da Solid&atilde;o</em>,
+onde todas as vantagens moraes do isolamento s&atilde;o defendidas
+com eloquencia e convic&ccedil;&atilde;o, e sem mysanthropia
+exagerada. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n14">Pag. 108</a>, lin. 6 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">O Passeio publico e o
+Marrare <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico,
+riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas
+Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar
+os habitantes da Capital. Ia desde a actual pra&ccedil;a dos
+Restauradores at&eacute; &aacute;
+extinta pra&ccedil;a da Alegria, na altura da rua das Pretas. No
+sitio exacto do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande
+tanque redondo (hoje no jardim da Gra&ccedil;a). <br />
+
+<br />
+
+O caf&eacute; Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no
+Chiado.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c14" id="c14"></a>ADDITAMENTO </h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Visto ser esta obra de Castilho dedicada &aacute; memoria de seu
+bom irm&atilde;o, pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres
+serm&otilde;es que ainda restam d'este. As suas obras ineditas
+mandou o proprio Doutor Augusto Frederico de Castilho que lh'as
+queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as seguintes:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">I</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">O serm&atilde;o de S.
+Pedro, ou da F&eacute;;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">II</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">O
+serm&atilde;o da esmola, ou da Caridade;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">III</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">O serm&atilde;o
+nas exequias do senhor D. Pedro IV;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">IV</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">A pastoral dedicada ao seu
+rebanho episcopal de Beja;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">V</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">Uns versos na <em>Primavera</em>
+de
+Antonio Feliciano.</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c15" id="c15"></a>SERM&Atilde;O<br />
+
+<br />
+
+DA<br />
+
+<br />
+
+ESMOLA OU DA CARIDADE </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Pr&eacute;gado
+na 5.&ordf; dominga da Quaresma de 1839<br />
+
+na
+S&eacute; de Lisboa<br />
+
+pelo Conego Arcipreste da mesma S&eacute;,<br />
+
+o Doutor de capello em Canones Augusto Frederico de Castilho</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2"><em>Jesus abscondit se, et
+exivit de
+templo.</em><br />
+
+Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de
+Jesus f&oacute;ra do templo; e nem por sahido do templo, nem por
+escondido, deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu
+servi&ccedil;o. Jesus vivo, e na occasi&atilde;o de que trata o
+Evangelho, estava no mundo, e faltava no templo. Jesus, hoje, por dois
+milagres de f&eacute; e amor, por duas eucharistias,
+est&aacute; no templo, e mais no mundo: no <em>templo</em>,
+encoberto no
+Sacramento; no <em>mundo</em>, encoberto nos seus pobres.
+N'uma e n'outra parte o devemos servir com egual zelo. <br />
+
+<br />
+
+Orar todo o dia na egreja, e deixar f&oacute;ra d'ella morrer
+&aacute; fome e ao frio os necessitados, n&atilde;o
+&eacute; de christ&atilde;o; &eacute;
+f&eacute; morta. Soccorrer aos infelizes, sem crer (se tal
+&eacute; possivel)
+<span class="pagenum">[110]</span>
+n'Aquelle que elles representam, &eacute; caridade morta; tambem
+n&atilde;o &eacute; de christ&atilde;o. <br />
+
+<br />
+
+V&oacute;s pareceis christ&atilde;os pela f&eacute;, pois
+que vindes &aacute; casa de Deus; v&oacute;s o pareceis, mas
+n&atilde;o o sois, porque essa f&eacute; &eacute; morta;
+cumpre que se resuscite pela caridade. <br />
+
+<br />
+
+Da caridade pr&eacute;garei portanto hoje, ou antes da esmola, que
+&eacute; a caridade pratica e activa; &eacute; o christianismo
+na sua parte mundana, o culto do Verbo humanado aos olhos de todos, a
+religi&atilde;o de todas as religi&otilde;es, a philosophia de
+todas as philosophias, o axioma para todos os entendimentos, o dogma
+at&eacute; para o atheismo. O objecto &eacute; o mais
+accommodado &aacute;s necessidades do tempo em que vivemos; offensa
+faria &aacute; vossa piedade, se vos exigisse a
+atten&ccedil;&atilde;o. <br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Alma e cora&ccedil;&atilde;o, discurso e affectos, convencem e
+persuadem como dever a esmola. N&atilde;o creou a Natureza
+irm&atilde;os privilegiados, e morgados na familia dos homens: para
+uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para outros, encargos de
+miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou malicias, estabeleceram
+essa desegualdade; e andou tambem ahi tra&ccedil;a
+rec&ocirc;ndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se
+uns de outros n&atilde;o carecessemos, n&atilde;o nos
+am&aacute;ramos; se tudo a n&oacute;s mesmos referissemos,
+n&atilde;o f&ocirc;ramos
+virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, desentranhada de
+n&oacute;s a beneficencia, origem de toda a sociedade, e purissima
+fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos,
+<span class="pagenum">[111]</span>
+pois, a Natureza; a Providencia nos
+desegualou; e n'esta contradic&ccedil;&atilde;o apparente,
+&eacute; que
+Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus
+conselhos. Na Natureza, isto &eacute;, na sua Justi&ccedil;a,
+quiz que tivessemos uma norma de egualdade; na Providencia, isto
+&eacute;, na sua caridade, que aprendessemos a restabelecer, quanto
+em n&oacute;s coubesse, aquella egualdade primitiva por mutuos
+soccorros. <br />
+
+<br />
+
+O homem caritativo &eacute; portanto o homem da Natureza, e o filho
+mimoso da Providencia, depositario e executor da Justi&ccedil;a de
+Deus, transumpto e argumento de sua bondade e misericordia. <br />
+
+<br />
+
+O sup&eacute;rfluo de nossos bens constitue rigorosamente o
+patrimonio dos pobres, e negar-lh'o &eacute; ao mesmo tempo
+injusti&ccedil;a e barbaridade, egual &aacute; do depositario
+que consome os bens sagrados do deposito, do ec&oacute;nomo que
+converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a
+substancia do seu pupillo; &eacute; ainda mais: &eacute;
+declararmo-nos inimigos de Deus, desacreditando, e dando, de certo
+modo, quebra &aacute;quella Providencia, cujos &eacute;ramos
+dispensadores e supplementos; &aacute;quella Providencia, que
+n&atilde;o consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes pelo
+ar, caiam mortas em terra, sem ordena&ccedil;&atilde;o do Pae
+Celeste. <br />
+
+<br />
+
+Tudo quanto de n&oacute;s emana, ou em n&oacute;s ressumbra
+bello, generoso, heroico, brota (n&atilde;o duvidemos) da caridade.
+Deus, para tornar as virtudes caras, e accessiveis at&eacute; aos
+mais faltos de discurso, n&atilde;o creou a caridade,
+sen&atilde;o que a tirou de suas proprias entranhas,
+<span class="pagenum">[112]</span>
+e orvalhando-a sobre a terra, lhe deu por
+ben&ccedil;&atilde;o que de todas as mais virtudes fosse ella
+semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos
+ficou independente de qualquer reflex&atilde;o, affecto innato,
+instinto (&iquest;por que o n&atilde;o diremos?), instinto
+moral. <br />
+
+<br />
+
+Ainda mais, senhores: n&atilde;o s&oacute; a tornou o mais
+profundo, mas tambem o mais extenso de todos os affectos, para que,
+sobre encher-nos o cora&ccedil;&atilde;o de virtude, ella nol o
+podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, nol-a podesse tornar
+permanente. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;que maravilhosa n&atilde;o &eacute;
+esta caridade, que em todas as edades, e em todas as circumstancias da
+vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre lhe renascem objectos, e
+infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, como elle, toda a Natureza
+creada, passa dos homens aos animaes brutos, d'estes aos proprios entes
+insensiveis, adivinha infortunios, inventa e persuade soccorros,
+at&eacute; para entes que os n&atilde;o sabem agradecer, que os
+n&atilde;o requerem, que os n&atilde;o precisam! <br />
+
+<br />
+
+Tem a caridade, como as demais paix&otilde;es, os seus excessos;
+momentos em que se n&atilde;o sabe conter, nem governar; suspiros,
+lagrimas, e desalentos; enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas,
+como tudo lhe nasce do amor e compaix&atilde;o, tudo &eacute;
+terno, tudo
+&eacute; mavioso e consolador. Virtude de virtudes, virtude unica
+onde n&atilde;o ha excessos. <br />
+
+<br />
+
+Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras
+primas da crea&ccedil;&atilde;o. &iexcl;Ah! &iexcl;que
+se jamais
+se podessem tributar ao homem cultos, que s&oacute; &aacute;
+Divindade
+<span class="pagenum"><a name="p113" id="p113">[113]</a></span>
+se devem, ninguem tanto
+os merec&ecirc;ra, como esses que, possuindo os thesoiros dos bens
+<a href="#e7">terrestres</a>, os derramam no seio
+dos infelizes! <br />
+
+<br />
+
+Por&eacute;m, meus irm&atilde;os, n&atilde;o &eacute;
+mist&eacute;r uma brandura de animo requintada, para nos movermos
+com os infortunios dos nossos semelhantes, e procurarmos-lhes o
+remedio. &iquest;Qual de n&oacute;s, vendo padecer um
+animalsinho, morto de fome, transido de frio, desamparado &aacute;s
+inclemencias de uma noite de inverno, e invocando a nossa piedade com
+aquelles gritos lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes
+para dizerem as suas dores, qual de n&oacute;s se n&atilde;o
+sentiria profundamente condo&iacute;do, n&atilde;o correria a
+abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? &iexcl;Ah!
+&iquest;e deixariamos
+no infortunio o homem? &iquest;o homem, semelhante nosso, nosso
+irm&atilde;o, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens
+possuimos, cuja felicidade &eacute; t&atilde;o travada com a
+nossa, e cuja desgra&ccedil;a tem sido talvez effeito da nossa
+injusti&ccedil;a, da nossa barbaridade? <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o
+cora&ccedil;&atilde;o... &iquest;que digo? que o trazeis
+defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores mais doridos da
+Natureza, &iexcl;ah! emquanto, ao redor de v&oacute;s, se
+est&atilde;o sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis,
+&iquest;que uso mais util farieis v&oacute;s de vossos bens, do
+que seria o acudir-lhes? Na vossa avidez insaciavel (semelhantes ao
+inferno, que, por mais victimas que l&aacute; chovam,
+n&atilde;o cessa de clamar
+<em>affer</em>,
+<em>affer</em>, mais e mais), uns de v&oacute;s,
+&oacute; ricos do mundo, se contentam
+com a vis&atilde;o beatifica dos seus cofres;
+<span class="pagenum">[114]</span>
+a sua alegria, a sua felicidade, o seu
+proximo, o seu mundo, a sua alma, o seu Deus, tudo seu ali jaz; ali
+enterraram o cora&ccedil;&atilde;o, e o conservam mais duro,
+mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que amontoaram; em
+quanto outros, pr&oacute;digos em excesso, como se os seus
+thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por
+luxos, por vaidades, sem modera&ccedil;&atilde;o, sem ordem,
+sem destino, sem uma s&oacute; utilidade real. Mais loucos ainda e
+mais infelizes, outros emfim, parecendo arrenegar dos beneficios da
+Providencia, os cofres que ella confiou nas suas m&atilde;os, elles
+os despeda&ccedil;am e espalham, n&atilde;o s&oacute; sem
+vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de
+si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios,
+abysmaram a ras&atilde;o, destruiram as for&ccedil;as,
+aniquilaram a saude, anteciparam a morte, e.... &iexcl;ah! meus
+irm&atilde;os, &iexcl;que de
+inquieta&ccedil;&otilde;es, de violencias, de trabalhos e de
+dores, para comprar uma eternidade desgra&ccedil;ada!
+&iexcl;Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o
+inferno! <br />
+
+<br />
+
+Maus ricos, v&oacute;s sois como o discipulo traidor; com esses
+dinheiros de maldi&ccedil;&atilde;o, pre&ccedil;o dos
+tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os dias se renova nos
+seus pobres, que v&oacute;s entregais e desamparais sem piedade,
+com esses dinheiros de maldi&ccedil;&atilde;o, ides comprar um
+arrependimento esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o
+odio dos homens, a vingan&ccedil;a de Deus, os tormentos eternos!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[115]</span>
+&iexcl;Quantas injusti&ccedil;as accumuladas n'esta barbara
+opulencia! Injusti&ccedil;a para com os infelizes, cujos bens
+sonegamos, cujos lamentos n&atilde;o queremos escutar, cuja morte
+mesmo antecipamos muitas vezes.&#8213;Injusti&ccedil;a para com Deus, de
+quem recebemos esses bens, com a condi&ccedil;&atilde;o da
+caridade, e cuja Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos
+beneficios e esmolas, desde que entramos no
+mundo.&#8213;Injusti&ccedil;a para comnosco mesmos, a quem fechamos as
+portas de um c&eacute;o de deleites, em quem apagamos todos os
+sentimentos de virtude, a quem j&aacute; n'este mundo excluimos de
+toda a felicidade.&#8213;Injusti&ccedil;a, emfim, para com todo o genero
+humano, de quem nos afastamos, a quem n&atilde;o queremos
+pertencer, de quem at&eacute; nos declaramos inimigos. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;E para onde fugir&atilde;o os nossos olhos, que
+l&aacute; n&atilde;o v&aacute; a miseria publica
+perseguil-os? Nunca soaram t&atilde;o alto os gemidos dos
+desgra&ccedil;ados,
+porque nunca a nossa immoralidade foi t&atilde;o barbara.
+Realisou-se sobre tantos irm&atilde;os nossos parte grande das
+maldi&ccedil;&otilde;es, com que Deus, por bocca de
+Moys&eacute;s, amea&ccedil;ava os seus inimigos. Explorae por
+todas as guaridas da indigencia; visitae os tugurios e choupanas
+miseraveis das aldeias, das maiores povoa&ccedil;&otilde;es, e
+at&eacute; das
+cidades... &iexcl;Grande Deus! &iexcl;que multid&atilde;o e
+variedade
+de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e doentias,
+mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de
+p&atilde;o negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas;
+&iexcl;quantas se n&atilde;o chamam poisadas e casas, que antes
+s&atilde;o covas,
+<span class="pagenum">[116]</span>
+masmorras,
+ou jazigo de viventes! &iexcl;de quantos n&atilde;o
+&eacute; cama a terra humida, e vestido o que nem lhes encobre a
+nudez! &iexcl;Tantos paes cercados de um bando de meninos, chorando
+e pedindo-lhes p&atilde;o! Tantos outros meninos, ainda mais
+infelizes, orph&atilde;os de pae e m&atilde;e, que nada teem na
+Natureza,
+al&eacute;m do sol que os aquece, e do ar que respiram, e
+come&ccedil;am a conhecer t&atilde;o cedo a dureza dos homens,
+obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar por si mesmos com
+que supram as necessidades, ainda t&atilde;o mesquinhas, mas
+t&atilde;o pesadas para n&oacute;s! &iexcl;Tantas viuvas
+sem protec&ccedil;&atilde;o, em quem, sobre o desamparo e
+d&ocirc;r perp&eacute;tua da viuvez, accresceu verem os seus
+bens arrancados por cr&eacute;dores, e quantas vezes por
+ladr&otilde;es, debaixo do nome de cr&eacute;dores!
+&iexcl;Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores
+&aacute;s suas for&ccedil;as, ou &aacute; sua
+crea&ccedil;&atilde;o, ou aos seus annos, para sustentarem, com
+o suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes est&aacute;
+derretendo e mirrando! &iexcl;Tantos enfermos expirando
+&aacute; mingua, sem medico, sem tratamento, sem remedios, sem
+enfermeiros, sem alma viva que os console, que lhes suscite as ideias
+da Eternidade, e at&eacute; sem um len&ccedil;ol que os
+amortalhe! &iexcl;Tantos privados dos olhos, dos bra&ccedil;os,
+e do uso dos sentidos mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados
+para a borda dos caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol,
+as chuvas, os frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros
+de outra especie pelos homens! &iexcl;Tantos mendigos, emfim, sem
+lar, sem nada, nem um amigo, s&oacute;sinhos em meio de tanto
+mundo!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[117]</span>
+&iexcl;Mas que me can&ccedil;o eu a enfeixar o que
+n&atilde;o tem conta! E quando de taes miserias conseguisse fazer
+aqui um piedoso inventario, &iexcl;quantas outras n&atilde;o
+ficariam de f&oacute;ra,
+mais profundas, e mais miserias, porque ellas mesmas refogem e se
+escondem! As ruas e as pra&ccedil;as, com todos os seus clamores e
+penurias, n&atilde;o confessam ainda assim quanto a nossa especie
+est&aacute; padecendo. Ha, em todo este exterior, um n&atilde;o
+sei que reflexo de verniz e doirado, um n&atilde;o sei que ruido
+festivo, um perfume de opulencia e sabores, um certo sorrir, um raio de
+sol, um aspecto de c&eacute;o azul, uma vida e uma
+esperan&ccedil;a, que s&atilde;o disfarce, e mascara da
+existencia do povo, real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida.
+Sahindo-se para a rua, deixam-se &aacute; porta as lagrimas, e
+cuidados verdadeiros, e toma-se na bocca e faces o contentamento
+posti&ccedil;o. Por f&oacute;ra andam os corpos em toda a sua
+gala; mas dentro, por todo esse immenso
+<em>dentro</em>, nas entranhas d'esse infinito
+massi&ccedil;o de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos sem
+termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, est&atilde;o
+chorando milhares de cora&ccedil;&otilde;es,
+est&atilde;o-se desesperando milhares de almas. <br />
+
+<br />
+
+Oh! &iexcl;se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira
+para se recrear, por esses caminhos t&atilde;o lageados de
+marmores, t&atilde;o ataviados de vidros de cores, de metaes
+brilhantes, de todas as espumas mais formosas do luxo, se Deus
+permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos por entre que
+duas montanhas de infortunio, vai caminhando!
+<span class="pagenum">[118]</span>
+&iexcl;oh!
+&iexcl;como de repente, semelhante a Phara&oacute;, na estrada
+do Mar Vermelho, desabariam de todas as partes a afogal-o ondas e mares
+de dor! <br />
+
+<br />
+
+Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da
+caridade, &iexcl;quantos pobres envergonhados que abafam
+solu&ccedil;os e gemidos entre as quatro paredes da sua casa! Nas
+horas da noite, quando das dansas, dos jogos, dos espectaculos, e de
+peores logares, saem torrentes de mundanos, em quem parece que o tempo,
+o dinheiro, a saude e a fama pesam insoffrivelmente, &iexcl;que de
+vezes se lhes n&atilde;o atravessam diante uns phantasmas de
+penuria, em f&oacute;rma j&aacute; de mulheres, j&aacute;
+de meninos,
+j&aacute; de anci&atilde;os, a quem a vergonha do sol
+n&atilde;o consent&iacute;ra sahir dos seus sepulcros! De um
+portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, nos saem as suas
+vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de que
+n&atilde;o soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo
+a m&atilde;o a receber a esmola, e a aben&ccedil;oar a
+caridade; algum vos esconde um rosto, que, em melhores dias, tinheis
+visto brilhar &aacute; luz da prosperidade. <br />
+
+<br />
+
+Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os
+dias, e n&atilde;o temem o aspecto da noite, porque j&aacute;
+n&atilde;o podem ser mais infelizes, &eacute; Deus quem nol os
+envia ao encontro, menos por elles que por n&oacute;s, menos para
+alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem algum affecto
+ao cora&ccedil;&atilde;o gasto, algum pensamento fundo e
+importante &aacute; alma dissipada. &iexcl;Felizes
+v&oacute;s, os que entendeis estes avisos mysteriosos da
+<span class="pagenum">[119]</span>
+desgra&ccedil;a, estas embaixadas
+solemnes do outro mundo! &iexcl;Felizes os que, em vez de os
+repellir com dureza, accudis com o dinheiro &aacute; necessidade,
+com a esperan&ccedil;a ao queixume, e com a
+commisera&ccedil;&atilde;o a quem n&atilde;o
+cuidava que no mundo a houvesse! <br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que
+me desatinam, que me desesperam (dizeis v&oacute;s),
+&iquest;quem me abona a sua pobreza? e concedendo-lh'a,
+&iquest;quem me affirma que n&atilde;o &eacute; ella
+castigo da sua pergui&ccedil;a, ou mau proceder?... &iquest;Que
+vos importa? Se p&oacute;de ser uma coisa ou outra, dae; antes
+lan&ccedil;ar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em vaso cheio, ou
+em vaso indigno, do que deixar de accudir uma s&oacute; vez a quem
+do vosso superfluo far&aacute; o seu necessario, e talvez, se lhe
+recusasseis, padec&ecirc;ra n'um dia o que v&oacute;s
+n&atilde;o padeceis n'um anno, ou, para o n&atilde;o padecer,
+comm&ecirc;ttera crimes, que, depois de o perderem a elle n'este
+mundo, vos percam a v&oacute;s no outro. E demais: v&oacute;s,
+que t&atilde;o de repente sentenciais o desgra&ccedil;ado que
+n&atilde;o conheceis, &iquest;por que
+vos n&atilde;o sentenciar&aacute; Deus, por esse mesmo facto, a
+v&oacute;s? <br />
+
+<br />
+
+<em>P&oacute;de n&atilde;o ser pobre o que vos
+pede.</em>&#8213;Sim, e algumas vezes se tem visto.&#8213;<em>P&oacute;de
+ter merecimentos para muito mais ainda do que padece.</em>&#8213;Sim,
+que &eacute; homem como
+v&oacute;s, e com mais raz&atilde;o do que v&oacute;s para
+aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso p&oacute;de
+ser; &iquest;mas examinastes v&oacute;s se
+era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a esmola por tal motivo,
+&iquest;n&atilde;o tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a
+injuria?
+<span class="pagenum">[120]</span>
+&iexcl;Ah! em quanto
+sentenciais uma alma que n&atilde;o conheceis, e condemnais o vosso
+semelhante para o deixar ir despojado, &iexcl;quanto mais
+raz&atilde;o n&atilde;o tem elle para condemnar a vossa alma,
+que v&oacute;s mesmos lhe descobristes inteira com uma
+s&oacute; palavra! <br />
+
+<br />
+
+Mas ainda vos concedo (perd&ocirc;e-me Deus a
+concess&atilde;o), que todos esses andam expiando peccados seus;
+s&atilde;o at&eacute; criminosos e facinorosos; que nem um
+d'elles tem necessidade; s&atilde;o at&eacute; abastados e
+opulentos; que todo o mendigo &eacute; um salteador e um
+millionario. &iquest;Estais contentes com a concess&atilde;o,
+ou quereis mais? N&atilde;o podeis querer mais, porque o
+n&atilde;o ha. Pois bem: &iquest;mas que direis, quando eu vos
+apresentar pobres, de uma pobreza processada e demonstrada, que vos
+n&atilde;o importunam nem se queixam, dos quaes muitos, dos quaes
+inteiras classes, n&atilde;o mereceram, nem poderam merecer, o seu
+estado? Ahi tendes os enjeitados, que n&atilde;o &eacute; muito
+que o sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas
+m&atilde;es; ahi os tendes, que a Misericordia mesma n&atilde;o
+basta a amamental-os e vestil-os, e, de seus pobres bercinhos, caem em
+cardumes nas sepulturas, e v&ocirc;am a ir dep&ocirc;r na
+presen&ccedil;a de Deus,
+contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes dado a vida por um peccado,
+por um peccado ainda mais mortal (se &eacute; licito
+diz&ecirc;l-o) o da avareza, lhes concorr&ecirc;ram para a
+morte. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem
+innocentes. Ahi est&atilde;o tantos asylos da infancia desvalida,
+onde se queria educar e felicitar um seculo novo, e que, por falta de
+caridade publica, morreram,
+<span class="pagenum">[121]</span>
+depois de t&atilde;o bem nascidos e esperan&ccedil;osos. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? ahi est&atilde;o os asylos da velhice,
+tambem e mais desvalida, onde os soccorros nunca s&atilde;o
+sobejos, nem sufficientes; porque muitos mais s&atilde;o sempre os
+que batem e choram &aacute;quellas portas de refugio, que os que a
+estreiteza das posses consentem sentar-se l&aacute; dentro
+&aacute; meza do convite de Deus. <br />
+
+<br />
+
+Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos est&aacute; o
+Senhor chamando o
+cora&ccedil;&atilde;o, e por toda a parte vos tem cercado do
+dever da esmola. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias.
+<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos,
+a quem falta p&atilde;o, lar, vestido, mundo, que o n&atilde;o
+conhecem, nem elle os conhece; militares que envelheceram nas armas e
+morrem &aacute; m&iacute;ngua; viuvas e orph&atilde;os de
+servidores do Estado, a quem se n&atilde;o paga, nem com
+esperan&ccedil;as. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos
+pol&iacute;ticos vencidos, em quem n&atilde;o &eacute;
+mister longo
+exame para se reconhecer a desgra&ccedil;a, porque &eacute;
+corollario evidente de causas notorias. A ter&ccedil;a parte de uma
+edade do homem, dezanove annos, para n&atilde;o datar de mais
+longe, tem sido entre n&oacute;s consumidos em
+dissen&ccedil;&otilde;es e odios. Com successivos terremotos
+politicos, teem desabado as mais altas torres de fortuna;
+desappareceram abundancias afogadas entre ru&iacute;nas; voaram
+arrancadas de
+furac&otilde;es contrarios e imprevistos, as mais florescentes
+esperan&ccedil;as; os caminhos trilhados e sabidos subverteram-se;
+<span class="pagenum">[122]</span>
+por onde se descia,
+sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum
+dos filhos do pobre v&ocirc;a dormitando em c&ocirc;che de
+oiro, e o anci&atilde;o doirado, que ainda hontem lhe houvera
+matado a fome, lhe alonga a m&atilde;o, da margem do caminho,
+clamando esmola. N&atilde;o se cuide, senhores, que eu condemno o
+presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado;
+entendo os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e
+bens do futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males
+extraordinarios, que n&atilde;o s&atilde;o, para que assim
+dig&acirc;mos, nem do
+homem, nem da Natureza, nem de Deus, mas sim da mudan&ccedil;a, da
+transforma&ccedil;&atilde;o
+da fortuna, da fortuna cega, que, no trocar das m&atilde;os, quebra
+sem pejo, nem d&oacute;, nem consciencia, o que depois todos choram
+e ninguem concerta. <br />
+
+<br />
+
+Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de d&ocirc;res, que
+n&atilde;o vemos, pela peior de todas as cegueiras, que
+&eacute; o n&atilde;o querer ver. E quando d'esta somnolencia,
+d'este lethargo, d'esta morte do cora&ccedil;&atilde;o,
+acordamos algum momento a este som <em>Esmola a este vosso
+irm&atilde;o pelas chagas de Nosso Senhor Jesu-Christo</em>,
+j&aacute; nos
+reput&acirc;mos muito generosos, se em vez do silencio ou de uma
+injuria, lhe acudimos com um <em>Deus o favore&ccedil;a</em>;
+e
+torn&acirc;mos a atar muito depressa o fio dos pensamentos
+v&atilde;os ou peccaminosos que traziamos; e l&aacute;
+deix&aacute;mos para traz a Jesu-Christo morto de fome, a
+Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. &iexcl;Ah! que se o
+seu estado de abjec&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[123]</span>
+os n&atilde;o obrigasse &aacute;
+humildade &iacute;nfima,
+se o uso de soffrer estas repulsas os n&atilde;o tornasse
+j&aacute; meio insensiveis, se elles nos podessem retorquir,
+&laquo;&iexcl;Qu&ecirc;! (nos responderiam)
+&iquest;Deus que nos favore&ccedil;a? Deus nos favoreceu com
+esses bens que indevidamente retendes; Deus nos favoreceu com os
+thesoiros da sua Providencia, que v&oacute;s nos roubastes.
+&iquest;Que o Senhor nos favore&ccedil;a? &iquest;Quereis
+acaso tental-o? &iquest;que elle obre em nosso favor um milagre
+desnecessario? &iquest;que torne a chover o man&aacute; do
+c&eacute;o, n&atilde;o sobre um
+deserto &aacute;rido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, que
+por toda a parte est&aacute; cheia dos seus frutos e das suas
+d&aacute;divas? Esse man&aacute; v&oacute;s o possuis, e
+encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus far&aacute; que se
+corrompa e apodre&ccedil;a. &iquest;Que Deus nos
+favore&ccedil;a,
+deshumanos? Sim, sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os
+merecimentos que terieis na sua presen&ccedil;a em serdes
+misericordiosos, elle os accumula sobre a nossa
+resigna&ccedil;&atilde;o; com os infortunios que nos
+accrescentais, e os pr&eacute;mios que rejeitais, se
+juntar&atilde;o em nosso favor aos pr&eacute;mios de que a sua
+misericordia nos achar dignos.&raquo; <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus queridos irm&atilde;os, que se em nossa dureza
+fossemos capazes de entender os gritos e lagrimas de tantos paes de
+familias, cujas familias podem dizer que n&atilde;o teem pae,
+tantos orph&atilde;os de pae e m&atilde;e, tantas viuvas
+desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos
+enfermos, tantos c&eacute;gos e aleijados, tantos mendigos, tantos
+pobres envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a
+<span class="pagenum">[124]</span>
+significa&ccedil;&atilde;o
+das suas d&ocirc;res e
+desalento, que uma reprehens&atilde;o amarga da nossa barbaridade
+para com os nossos irm&atilde;os, da nossa ingratid&atilde;o
+para com Deus; achar&iacute;amos, sim, achar&iacute;amos
+at&eacute; n'esses lamentos, a
+express&atilde;o propria com que dev&ecirc;ramos deplorar
+n&oacute;s mesmos a dureza, antes ferocidade, dos nossos
+cora&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o s&oacute;, meus irm&atilde;os, as nossas
+liberalidades atalham todas estas miserias, mas ainda v&atilde;o
+precaver muitas desordens. Aqui &eacute; uma pobre rapariga, a cuja
+honra se preparam violentos ataques. O C&eacute;o a
+dot&aacute;ra das qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou
+de algum modo desfazer a obra do C&eacute;o, juntando-lhe a pobreza
+com a formosura. Do seio da opulencia, um libertino j&aacute;
+vibrou olhos t&ocirc;rpes e &aacute;vidos para o santuario da
+virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e todas
+as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que exaltaram o
+seu triumpho, por mais arriscado e difficil. J&aacute; abriu os
+seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque;
+frustrou-se. N&atilde;o importa; os desejos augmentaram-se na
+repulsa, o merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a
+seduc&ccedil;&atilde;o, de m&atilde;os dadas com a
+indigencia... &iquest;n&atilde;o vencer&atilde;o cedo
+ou tarde? Chegou emfim esse dia; &iexcl;venceu! e com um sorriso
+infernal applaudiu o seu triumpho, e a desgra&ccedil;a que
+consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre victima. Ali
+jaz, n'um arrependimento j&aacute; tardio e inutil para o mundo;
+ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que,
+<span class="pagenum">[125]</span>
+depois de a desgra&ccedil;ar, chegou mesmo a
+aborrecel a; ali jaz na mesma
+indigencia que d'antes, por&eacute;m mais infeliz agora; a sua
+honra fugindo abalou-lhe todas as outras virtudes. Em odio a Deus e a
+si mesma, &iquest;ficou-lhe ao menos um refugio no mundo? nenhum,
+porque o traidor, declarando-se seu cruel inimigo, foi divulgar o
+segredo, e exigir esses applausos infames, que tanto mereceu.
+&iexcl;Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, seriais
+sempre um anjo t&atilde;o bello de virtude. Se a caridade te
+houvesse a tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e
+modesto, onde vivias t&atilde;o innocente e bemquista de Deus e dos
+homens, &iquest;n&atilde;o se teria afastado ainda o raio que
+reduziu a cinzas o desambicioso edificio da tua felicidade? <br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m &eacute; um mo&ccedil;o, que,
+can&ccedil;ado da dureza dos homens, come&ccedil;a a
+n&atilde;o conhecer as leis na sua necessidade. Por toda a parte
+repellido, julgou direito prover por si mesmo, e a todos os despeitos,
+&aacute; sua
+conserva&ccedil;&atilde;o.&#8213;&laquo;Todos esses a quem
+recorri (diz comsigo mesmo) s&atilde;o felizes; eu n&atilde;o
+quero a sua felicidade; mas tenho, como elles, direito de
+viver.&raquo;&#8213;Levado assim pelos raciocinios errados do vicio, ou
+s&oacute; por um instinto que lhe bafejou a injusti&ccedil;a
+dos homens, come&ccedil;ou por pequenos furtos; passou a maiores;
+nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; zombou de
+todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e
+acabar&aacute; em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o
+affasta do precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe
+<span class="pagenum">[126]</span>
+tira deante dos olhos dois futuros
+que o ter&atilde;o muitas vezes feito estremecer: um carcere
+perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas
+correspondentes, em si e na sua dura&ccedil;&atilde;o, a crimes
+de que nunca se arrependeu, e damnos que nunca tiveram
+restitui&ccedil;&atilde;o. E quando elle passar para o
+patibulo, v&oacute;s fechareis talvez as vossas janellas, e direis:
+&laquo;N&atilde;o tenho
+cora&ccedil;&atilde;o para taes espectaculos;&raquo;
+&iexcl;como se esse mesmo cora&ccedil;&atilde;o
+n&atilde;o fosse o seu peor
+algoz, o que o conduziu &aacute;quelle passo affrontoso! <br />
+
+<br />
+
+N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade,
+mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas
+esperan&ccedil;as, que contou, para segurar a subsistencia, com os
+amigos que o atrai&ccedil;oaram, com a fortuna que lhe fugiu, que
+se v&ecirc; precipitado n'uma desgra&ccedil;a a que
+n&atilde;o prev&ecirc; termo na sua
+desespera&ccedil;&atilde;o, insulta o C&eacute;o, blasfema
+da Providencia, e, se lhe n&atilde;o accudis, &iexcl;quem sabe
+se ir&aacute;
+(como tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender
+um la&ccedil;o, por onde arranque uma existencia que o importuna!
+&iquest;E a caridade e a ternura n&atilde;o poder&atilde;o
+ainda aqui obrar um novo milagre? &iquest;fazer-lhe rebentar as
+lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? &iquest;abrandar-lhe o
+cora&ccedil;&atilde;o?
+&iquest;obrig&aacute;l o a bemdizer a Providencia, e
+aben&ccedil;oar o p&atilde;o com que lhe sustentamos uma vida
+que lhe fizemos amar ainda? <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;meu Deus! &iexcl;que doces prerogativas
+n&atilde;o d&eacute;stes v&oacute;s &aacute;s almas
+generosas e humanas! Se entre os pr&oacute;prios pag&atilde;os
+alcan&ccedil;ava uma c&ocirc;roa o que salvava os dias do seu
+<span class="pagenum">[127]</span>
+concidad&atilde;o,
+&iexcl;que honras n&atilde;o merece dos
+outros homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma
+vida infeliz! &iexcl;que os reconcilia com o C&eacute;o que
+j&aacute; suppunham surdo e injusto! &iexcl;e que
+at&eacute; previne com os seus soccorros a desordem e excessos da
+miseria que lhes arrancariam os meios de
+salva&ccedil;&atilde;o! <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus irm&atilde;os, se nos basta ser homens, para
+reconhecermos como bem real esta doce obriga&ccedil;&atilde;o
+da esmola, segundo a raz&atilde;o e humanidade, &iexcl;que mais
+fortes motivos n&atilde;o tem o homem christ&atilde;o, para ser
+esmoler, segundo as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os
+deveres da caridade n&atilde;o s&atilde;o para n&oacute;s
+simplices axiomas, ou
+preceitos da philosophia; n&atilde;o s&atilde;o o resultado de
+um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas vieram
+n&atilde;o s&oacute; confirmar, mas dar ainda, se &eacute;
+poss&iacute;vel, uma
+extens&atilde;o muito maior a tudo quanto n'esta parte a
+Religi&atilde;o natural nos havia imposto. <br />
+
+<br />
+
+Segundo o systema religioso do Christianismo, &iexcl;por quantos
+modos, at&eacute; indirectos, nos n&atilde;o &eacute;
+persuadida a caridade! O Padre derramou sobre n&oacute;s todo o
+thesoiro das misericordias do C&eacute;o; creou nos entes os mais
+perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo
+qual nos formou (pelas suas proprias m&atilde;os, dizem as
+Escrituras); n&atilde;o s&oacute; nos adornou de todas as
+gra&ccedil;as que perdemos na desobedi&ecirc;ncia de nossos
+paes, mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem
+(mais parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma
+habita&ccedil;&atilde;o commoda e feliz.
+<span class="pagenum">[128]</span>
+Esse sol que nos allumia o theatro do
+mundo, essas esta&ccedil;&otilde;es que lhe mudam as scenas, os
+frutos saborosos e delicados que rompem da terra, os vestidos que nos
+cobrem, o ar que respiramos, o somno que nos restaura as
+for&ccedil;as, os prazeres que nos lisonjeiam os sentidos, os
+prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do
+cora&ccedil;&atilde;o, s&atilde;o outras tantas esmolas,
+com que Deus proveu desde a eternidade ao homem, sobre fraco e
+indigente, ingrato a tantos beneficios. <br />
+
+<br />
+
+Na s&aacute;bia disposi&ccedil;&atilde;o com que de mais o
+Eterno Padre arranjou todo o grande systema da Natureza,
+&iquest;n&atilde;o nos deu Elle uma grande
+li&ccedil;&atilde;o de caridade, estabelecendo em todas as suas
+obras uma encadeac&atilde;o successiva e mutua de dependencias e
+soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares liberalisam as suas aguas
+ao ar em nuvens, o ar as suas &aacute; terra em chuvas, a terra
+&aacute;s fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos mares;
+e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo se
+conserva, se reanima, se restaura. <br />
+
+<br />
+
+D'esta mesma sorte, n&atilde;o s&oacute; as grandes
+por&ccedil;&otilde;es da Natureza, mas ainda os seus minimos
+individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e os
+soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes
+&aacute; existencia dos outros. &Eacute; assim que, por toda a
+parte envolvidos pela Natureza, do meio da qual nos elevamos, como
+obras as mais perfeitas, n&atilde;o s&oacute; nos
+n&atilde;o
+devemos resvalar a uma condi&ccedil;&atilde;o inferior
+&aacute; da
+propria materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade,
+quanto nos devemos
+<span class="pagenum">[129]</span>
+considerar
+como entes, cuja conserva&ccedil;&atilde;o &eacute; mais
+importante para a manifesta&ccedil;&atilde;o da gloria de Deus.
+<br />
+
+<br />
+
+O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia,
+desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de
+felicidade nas suas doutrinas, d&aacute;-lhes a esmola de todo o
+seu sangue, lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o
+C&eacute;o e a terra. <br />
+
+<br />
+
+O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de
+santifica&ccedil;&atilde;o, e nos accode com esmolas continuas,
+desde que abrimos os olhos, at&eacute; que deixamos o mundo; pelo
+baptismo assenta os nossos nomes no livro da vida; confirma-nos e
+augmenta-nos depois esse perd&atilde;o; repete-o tantas vezes
+quantas offendemos o C&eacute;o; sustenta-nos com o manjar dos
+anjos; e accode-nos at&eacute; com remedios temporaes, &aacute;
+hora em que as portas do carcere se v&atilde;o abrir, e a alma
+s&ocirc;lta reverter &aacute; sua origem. <br />
+
+<br />
+
+Mas n&atilde;o s&oacute; pelo seu exemplo e meios
+t&atilde;o indirectos nos persuadiu Deus a esmola; n&atilde;o
+&eacute; uma simples recommenda&ccedil;&atilde;o,
+&eacute; um dos preceitos mais rigorosos:&#8213;<em>Ego
+proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et pauperi qui
+tecum versatur in terra</em>: Sou eu, &eacute; o teu proprio
+Deus, quem te ordena, que abras a tua m&atilde;o ao necessitado e
+ao pobre, que lida comtigo sobre a terra. Esta lei t&atilde;o
+clara, t&atilde;o precisa e absoluta na sua letra,
+&iquest;ter&aacute; acaso todos esses caract&eacute;res que
+devem sempre manifestar-se em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e
+seja o proprio Deus quem nol-a interprete.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[130]</span>
+&Eacute; <em>justa e necessaria</em>:
+necessaria muito mais ainda para o bem espiritual dos bem-feitores, do
+que para o commodo temporal do soccorrido. A esmola, segundo
+Jesu-Christo, &eacute; um acto de Religi&atilde;o,
+conjuntamente com a ora&ccedil;&atilde;o e jejuns; &eacute;
+pois
+rigorosamente um meio expiatorio; &eacute; um commercio que temos
+com Deus por meio do nosso proximo; &eacute; uma agua copiosa (diz
+o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio das nossas iniquidades;
+&eacute; uma santa usura, em que trocamos bens superfluos e
+temporaes por bens inapreciaveis e eternos; s&atilde;o thesoiros
+que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali est&atilde;o
+sempre clamando ao C&eacute;o em nosso favor; s&atilde;o bolsas
+que nunca teem de se estragar nem de esgotar-se, que nunca nos
+ser&atilde;o roubadas nem podem ser consumidas; &eacute; um
+seguro para o dia da
+afflic&ccedil;&atilde;o; &eacute; finalmente um arrimo a
+que nos soccorremos para n&atilde;o cahir. <br />
+
+<br />
+
+Mais: &eacute; <em>util</em>, considerada
+mesmo temporalmente para quem a d&aacute;. O Espirito-Santo o disse
+tambem nos Proverbios: <em>Aquelle que der ao pobre, de nada
+carecer&aacute;; aquelle que desprezar as suas supplicas,
+cahir&aacute; tambem na pobreza.</em>&#8213;Eis aqui, meus
+irm&atilde;os, eis
+aqui patente o terrivel segredo da vingan&ccedil;a divina, quando
+aniquilla tantas fortunas que pareciam t&atilde;o solidamente
+estabelecidas: <em>Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil
+inanes</em>. Sim, porque as maldi&ccedil;&otilde;es,
+&oacute; ricos do mundo, que o pobre vos lan&ccedil;a em
+segredo, na amargura da sua alma, s&atilde;o ouvidas com todas suas
+impreca&ccedil;&otilde;es, por Aquelle que o creou, e que nunca
+d'elle arredar&aacute; os seus
+<span class="pagenum">[131]</span>
+olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, sereis
+&aacute;manhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos
+thesoiros; <em>et sepultus est in
+inferno</em>. E se as vossas riquezas vos s&atilde;o
+consentidas, muitas vezes &eacute; para que principiem o vosso
+inferno no mundo. Se pareceis prosperar, &eacute; para que a vossa
+qu&eacute;da seja mais espantosa, ou para que os vossos
+descendentes, que
+n&atilde;o s&atilde;o culpados nas vossas iniquidades,
+n&atilde;o
+experimentem a puni&ccedil;&atilde;o da vossa dureza, e recebam
+juntos esses bens a que ir&atilde;o dar um justo emprego. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus irm&atilde;os, dizei me: &iquest;vistes
+v&oacute;s, pelo contrario, que homem algum se arruinasse
+j&aacute;mais pelas suas larguezas com os pobres?
+&iquest;N&atilde;o &eacute; antes uma verdade,
+confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as familias de mais
+caridade s&atilde;o as que mais teem prosperado? Sim, sim, o
+Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os
+prophetas: &laquo;Se derramares toda a tua misericordia sobre os
+necessitados, e encheres de consola&ccedil;&atilde;o almas que
+gemiam na afflic&ccedil;&atilde;o, a tua casa se
+tornar&aacute;
+como um jardim sempre regado, e a tua prosperidade ser&aacute;
+t&atilde;o perenne como a fonte que a todos offerece os seus
+licores, e por mais que a bebam nunca se esgota, nem cessar&aacute;
+de correr.&raquo; &iquest;E o Redemptor n&atilde;o disse
+ainda mais expressamente: <em>Date et dabitur
+vobis</em>? &iquest;N&atilde;o compara elle a
+retribui&ccedil;&atilde;o com que o
+C&eacute;o ha-de corresponder &aacute;s nossas liberalidades,
+com uma medida avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os
+lados, que se nos vasar&aacute; para o rega&ccedil;o?
+&iexcl;Oh! n&atilde;o duvidemos:
+<span class="pagenum">[132]</span>
+os bens
+do misericordioso, repartidos pelos infelizes, s&atilde;o o azeite
+e a farinha milagrosa da santa viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a
+Escritura, comeu ella e a sua casa; e desde aquelle dia nunca lhe
+faltou a farinha no pote, nunca o azeite do vasinho se diminuia. <br />
+
+<br />
+
+V&ecirc;de, depois d'isto, &iexcl;que multid&atilde;o de
+ben&ccedil;&atilde;os as Escrituras n&atilde;o veem
+chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o
+Senhor lhe d&ecirc; uma longa vida, o fa&ccedil;a feliz no
+mundo, o livre das m&atilde;os dos seus inimigos, o allivie no
+leito da sua d&ocirc;r. O que dispersar os seus bens pelos pobres,
+viver&aacute; de seculo em seculo na memoria dos homens,
+aben&ccedil;oado ser&aacute; o seu nome, e n'elle se
+despontar&atilde;o as settas envenenadas da calumnia. <em>Justitia
+ejus manet in saeculum saeculi. Exaltabitur in
+gloria. Ab auditione mala non timebit.</em> &iquest;Que
+significam tantas promessas, meus irm&atilde;os, tantos premios,
+tanta abundancia de ben&ccedil;&atilde;os, as glorias do
+C&eacute;o e da terra, tudo cumulado sobre o homem benefico?
+&iquest;Que sacrificio t&atilde;o importante se vai exigir
+d'elle? &iquest;a que lances heroicos o querem persuadir?
+&iquest;que perdas soffrer&aacute;
+que cumpra contrabalan&ccedil;ar por premios de t&atilde;o alta
+valia? &iquest;Exige-se-lhe a mendicidade e a miseria, em que
+viveram os Apostolos e o Redemptor? &iquest;um exterminio de todas
+as paix&otilde;es? &iquest;uma
+abnega&ccedil;&atilde;o de todos os prazeres? &iquest;as
+mortificac&otilde;es da penitencia? &iquest;a constancia e
+morte gloriosa dos martyres? N&atilde;o, n&atilde;o.
+Pede-se-lhe s&oacute; amor e provas
+de amor para com seu irm&atilde;o; pedem-se-lhe s&oacute;
+lagrimas e p&atilde;o para os infelizes. N&atilde;o se lhe
+<span class="pagenum">[133]</span>
+intima que d&ecirc;, com prejuizo
+seu, at&eacute; o ultimo boccado d'esse p&atilde;o, mas
+empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e
+patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Gra&ccedil;a, para
+lhe pedir s&oacute; as migalhas superfluas da sua meza. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Grande Deus! &iexcl;que generosidade incomprehensivel a
+vossa! &iexcl;Remunerardes como sacrificio uma virtude, e
+acceitardes como virtude o que nada custa ao
+cora&ccedil;&atilde;o!
+&iexcl;Accumulardes os vossos pr&eacute;mios sobre os prazeres
+mais doces da consciencia! &iexcl;Considerardes em mais do que
+homem a quem s&oacute; cumpr&igrave;u com deveres da
+humanidade! &iexcl;Avaliardes em tanto um superfluo, que
+trasbordamos para o seio do desgra&ccedil;ado, quando j&aacute;
+nol-o havieis dado com essa
+condi&ccedil;&atilde;o! &iexcl;Acceitardes, finalmente,
+esses bens frageis, temporaes e caducos, esses bens que s&oacute;
+devemos &aacute; vossa liberalidade, como moeda correspondente em
+valor ao pre&ccedil;o inestimavel dos vossos thesoiros infinitos! <br />
+
+<br />
+
+Mas d'estas elevadas contempla&ccedil;&otilde;es, em que todos
+nos deveriamos abysmar, v&oacute;s me chamais, meus
+irm&atilde;os, v&oacute;s me fazeis descer &aacute;s
+profundezas da vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um
+segredo bem importante. &iquest;E n&atilde;o adivinho eu quaes
+teem sido, desde que enunciei o thema e objecto do meu discurso, os
+pensamentos de muitos de v&oacute;s, da maior parte, ou antes de
+quasi todos os que me escutais?&#8213;&laquo;Feliz (exclama cada um de
+v&oacute;s, no seu cora&ccedil;&atilde;o) feliz de mim, se
+eu podera soccorrer o meu proximo, que a t&atilde;o bom barato me
+veria de posse do C&eacute;o. Por&eacute;m Deus n&atilde;o
+me destinou
+<span class="pagenum">[134]</span>
+a mim esses premios e
+ben&ccedil;&atilde;os; e se a esmola f&ocirc;ra um meio
+indispensavel de salva&ccedil;&atilde;o,
+eu me perderia sem remedio, n&atilde;o por minha culpa, mas por
+culpa da fortuna. Todos os meus bens escassamente chegam para a minha
+sustenta&ccedil;&atilde;o e da minha
+casa.&raquo;&#8213;Assim pensais; assim buscamos pretextos para illudir
+todos os preceitos at&eacute; os mais terminantes e expressos da
+Religi&atilde;o. Mentis a Deus, aqui, na sua presen&ccedil;a,
+dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa propria
+crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hyp&oacute;crita do phariseu
+do Evangelho, e lan&ccedil;ais de travez os olhos para os ricos,
+que ahi est&atilde;o comvosco. Folgais talvez com a sua
+confus&atilde;o; e a doutrina da caridade, a doutrina de tanto
+amor, s&oacute; serve de despertar em v&oacute;s a insolencia,
+o desprezo, e o odio. N&atilde;o permitia Deus que a sua preciosa
+semente se perca d'este modo; que s&oacute; a acceite um pequeno
+torr&atilde;o de terra, e que em vez de produzir os bellos frutos
+do Senhor, a maior parte do seu campo, ou quasi todo elle, continue a
+s&oacute; desatar-se em cardos e espinhos. Afugentemos as aves
+d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e n&atilde;o
+consint&acirc;mos
+que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por mais pequeno, da
+sua terra. <br />
+
+<br />
+
+Todos v&oacute;s podeis dar a esmola, todos, sem
+excep&ccedil;&atilde;o, vos achais obrigados a ella; e esta
+universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o seu segundo
+caracter de lei. <br />
+
+<br />
+
+Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a
+outra do cora&ccedil;&atilde;o.
+<span class="pagenum">[135]</span>
+T&atilde;o longe vai, pois, a esmola
+como a caridade; e para podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos
+possuir um cora&ccedil;&atilde;o. &iquest;N&atilde;o
+tendes dinheiro, mas tendes p&atilde;o com fartura? Reparti-o por
+tantos famintos. &iquest;Escassamente vos chega o p&atilde;o,
+mas tendes algumas roupas superfluas? Cobri com ellas tantos
+n&uacute;s.
+&iquest;Nada tendes hoje? Promettei para &aacute;manhan; enchei
+de esperan&ccedil;as o seio vazio de todas as
+consola&ccedil;&otilde;es.
+&iquest;S&atilde;o a caso insignificantes os bens que vos
+restam para os frutos da caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que
+deis s&oacute; um copo de agua fria a um dos mais pequenos do
+mundo, lembrando-vos de que elle &eacute; meu discipulo (vos diz
+Jesu Christo); este s&oacute; copo eu vos affirmo que
+n&atilde;o ficar&aacute; sem recompensa. &iquest;Nada
+tendes que dar? Reparae bem: &iquest;Nada tendes que dar?
+Lan&ccedil;ae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a
+vossa fortuna. &iquest;Nada tendes que dar? Se n&atilde;o
+mentis ao
+desgra&ccedil;ado, se na verdade vos achais privado de todo o
+genero de haveres, ainda possuis muitos bens em que n&atilde;o
+reparaveis. S&atilde;o os que existem dentro do vosso
+cora&ccedil;&atilde;o.
+Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre todas as
+feridas dos vossos tristes irm&atilde;os. Sois ainda mais rico com
+o vosso cora&ccedil;&atilde;o, no meio mesmo da miseria, do que
+os ricos sem elle, afogados nos seus thesoiros. Consultae esse
+cora&ccedil;&atilde;o; ouvi como um oraculo as suas
+respostas. &iquest;Que vos demorais? Segui todos os seus impulsos. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;N&atilde;o tendes com que soccorrer o indigente? Correi
+&aacute; morada do rico. Entrae affoitos. <br />
+
+<br />
+
+Pintae-lhe as miserias do seu semelhante.
+<span class="pagenum">[136]</span>
+Mostrae que s&oacute; os interesses da
+humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os vossos
+olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae as
+eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos
+corvos de Elias, voae &aacute; choupaninha faminta do deserto, com
+o p&atilde;o e com a carne, que vos deu essa Providencia, que assim
+soubestes interessar. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o
+trabalho dos vossos bra&ccedil;os. Advogae perante o poderoso a
+causa do fraco. Desfazei os enredos e calumnias, que ennegreceram vosso
+irm&atilde;o, que lhe roubaram todas as
+protec&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Congra&ccedil;ae o homem
+com o homem, a familia com a familia. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Visitae tantos
+desgra&ccedil;ados, que gemem por esses carceres; persuadi-lhes a
+paciencia, e a resigna&ccedil;&atilde;o evangelica;
+confortae-os com palavras doces, com esperan&ccedil;as
+consoladoras. Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com
+m&atilde;o carinhosa, os remedios; animae-o com os vossos sorrisos,
+e fazei que troque os suspiros da sua d&ocirc;r e do seu desalento
+em suspiros de ternura, em express&otilde;es de conf&ocirc;rto;
+que veja os C&eacute;os abertos, e que goze antecipadamente de
+premios, que, se n&atilde;o fosseis v&oacute;s, talvez
+n&atilde;o tivesse de possuir. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a
+tantos meninos, e ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de
+vosso proximo na presen&ccedil;a, assim como na ausencia. Ajudae-o
+com as vossas ora&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+Nada tendes que dar! &iexcl;Nada tendes que
+<span class="pagenum">[137]</span>
+dar! &iexcl;Ah! ainda tendes lagrimas.
+S&atilde;o as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca
+se esgota para um christ&atilde;o. Tomae a v&oacute;s uma parte
+do seu infortunio, e elles ficar&atilde;o menos oppressos.
+&iexcl;Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do oiro!
+&iexcl;De quantos e quantos modos, n&atilde;o sabe
+reproduzir-se a beneficencia! <br />
+
+<br />
+
+Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia,
+porque elles alcan&ccedil;ar&atilde;o misericordia. <br />
+
+<br />
+
+Eis aqui as ben&ccedil;&atilde;os e os premios do
+C&eacute;o, recahindo sobre todos v&oacute;s, sem
+exclus&atilde;o de um s&oacute;. Ahi vos tendes t&atilde;o
+ricos, aos olhos do Senhor, como esses ricos, cuja dureza lamentaveis,
+a cujos bens vos promettieis dar um melhor emprego, se os possuisseis.
+&iquest;Quem vos detem? &iquest;por que n&atilde;o correis
+a praticar essas obras de misericordia, que podeis? &iquest;a
+merecerdes essas ben&ccedil;&atilde;os e premios,
+que ha pouco ambicionaveis? &iexcl;Qu&ecirc;!
+&iexcl;J&aacute; se vos affrouxa o z&ecirc;lo! Sim, o
+z&ecirc;lo, que murmura, que reprehende, que insulta nos outros a
+infrac&ccedil;&atilde;o dos deveres, em quanto os julga
+alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por
+mais injusta contradic&ccedil;&atilde;o, as fraquezas, que
+n&atilde;o
+perdoamos no mundo, sendo em n&oacute;s, j&aacute; as sabemos
+desculpar; &iexcl;e quantas vezes n&atilde;o passam de
+desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a raz&atilde;o,
+se a humanidade, se a justi&ccedil;a, se a consciencia, se os
+interesses do mundo, se as ben&ccedil;&atilde;os do tempo e da
+Eternidade, se todos os premios de Deus, emfim, nada podem comvosco,
+possam-n-o, ao menos, as suas amea&ccedil;as, castigos e
+maldi&ccedil;&otilde;es,
+<span class="pagenum">[138]</span>
+que v&atilde;o constituir a sua
+lei perfeitamente obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Recusais a misericordia de Deus? J&aacute;
+n&atilde;o tendes que escolher. S&oacute; lhe ficaram as
+vingan&ccedil;as.
+Affastae-vos, &oacute; santa familia de infelizes. Pobresinhos do
+Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover fogo e colera do
+C&eacute;o. Para al&eacute;m, para al&eacute;m,
+&eacute; o vosso refugio, &aacute; dextra do Eterno Padre. <em>Venite
+ad me, omnes qui laboratis,
+etc.</em> &iquest;N&atilde;o vos tinha elle dito que os
+vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as
+humilia&ccedil;&otilde;es se lhes converteriam um dia em
+triumphos? Sim, sim, &oacute;
+famintos, &oacute; sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos,
+&iexcl;jubilae! V&oacute;s nunca cessastes de ser os seus
+filhos muito amados. Eu vou reassumir todos os thesoiros (vos diz elle)
+que a minha Providencia repartira pelos vossos barbaros oppressores. Eu
+lhes havia dado mais altos meios do que a v&oacute;s mesmos de
+alcan&ccedil;arem a minha gloria, de alcan&ccedil;arem a menos
+custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, s&oacute; serviram de
+os fazer ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o
+v&oacute;s, &oacute; meus pobres; frutos que eu vou recolher e
+guardar para sempre no meu seio; elles foram arvores estereis, que,
+dominando toda a sementeira, a a&ccedil;oitaram com os ramos, a
+damnaram com a sombra, a devoraram com as raizes; infecundas e nocivas
+eu as arranquei em meu furor; eu vou lan&ccedil;al-as ao fogo.
+Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no incendio eterno, que
+foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu tive fome, e
+v&oacute;s me n&atilde;o d&eacute;stes de comer; eu tive
+<span class="pagenum">[139]</span>
+s&ecirc;de, e v&oacute;s
+me n&atilde;o d&eacute;stes de
+beber; fui peregrino, e n&atilde;o me recolhestes; nu, e
+n&atilde;o me vestistes; enfermo e encarcerado, e n&atilde;o me
+visitastes. Todas as vezes que despedistes, que calcastes os pequenos
+do mundo, a mim, a mim o fizestes. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus irm&atilde;os, possa esta senten&ccedil;a
+de maldi&ccedil;&atilde;o estampar-se hoje com letras de fogo e
+indeleveis nos vossos cora&ccedil;&otilde;es. Este Jesus
+escondido nos pobres, este Jesus que por ahi vaga f&oacute;ra dos
+templos, coberto de remendos, macilento, prostrado debaixo do
+p&ecirc;so de tantas cruzes, &eacute; um rei de majestade,
+&eacute; um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda a sua
+c&oacute;lera, e de cujas senten&ccedil;as nunca
+poder&ecirc;is mais appelar. &iexcl;Oh! compadecei-vos d'elle,
+soccorrei-o emquanto o-v&ecirc;des pobre, cahido e humilhado, para
+o n&atilde;o experimentardes depois, senhor altivo e vingador.
+&iexcl;Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o
+cora&ccedil;&atilde;o me-diz que esta semente n&atilde;o
+ser&aacute; perdida, e que ter&ecirc;is hoje ao menos soccorros
+e consola&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+Pois bem, Senhor. A V&oacute;s, recorremos hoje, que ainda
+&eacute; tempo. Aqui promettemos soccorrer-vos com o que
+&eacute; vosso, a V&oacute;s, &oacute; meu Jesus pobre; a
+v&oacute;s, cahido, a v&oacute;s humilhado, para vos
+n&atilde;o experimentarmos depois accusador, testemunha, vingador e
+inexoravel. Antes que nos-accendais esses fogos de
+maldic&ccedil;&atilde;o,
+j&aacute; era nossos cora&ccedil;&otilde;es temos accezos
+outros, que muito mais s&atilde;o vossos: os da caridade. <br />
+
+<br />
+
+&Oacute; mod&ecirc;lo do bom pae de familias, ajuntae-nos em
+t&ocirc;rno da meza do vosso banquete celestial, aonde se assenta o
+opulento Salom&atilde;o
+<span class="pagenum">[140]</span>
+a par
+do Lazaro mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador
+arrependido com o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos
+s&ocirc;bre o vosso seio; e n'um abra&ccedil;o de eterno amor
+nos-apertae a todos s&ocirc;bre o vosso
+cora&ccedil;&atilde;o paternal, por todos os
+s&eacute;culos dos s&eacute;culos. <br />
+
+<br />
+
+Assim seja.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>INDICE </h3>
+
+<br />
+
+<div class="breaks">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">I</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>A primeira noite na serra</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c1">5</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O sepulchro, ou historia de uma noite de S.
+Jo&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c2">11</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Epistola a Jo&atilde;o Evangelista Pereira da
+Costa</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c3">41</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O Presbyterio</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c4">43</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>A lyra do
+desterrado</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c5">49</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Epistola a</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c6">51</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>A romaria</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c7">53</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O Domingo gordo dos
+montanhezes</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c8">55</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O S. Jo&atilde;o nas faldas do
+Caramulo</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c9">77</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">X</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O mosteiro</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c10">81</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Santa Maria
+Egypc&iacute;aca</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c11">91</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Epistola ao Desembargador
+Deslandes</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c12">97</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td>Notas ao 1.&ordm;
+volume</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c13">99</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td>Additamento</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c14">107</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"></td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ <td>Serm&atilde;o da Esmola ou da
+Caridade</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c15">109</a></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+Sociedade editora </h4>
+
+<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br />
+
+95&#8213;RUA AUGUSTA&#8213;LISBOA</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<b>Notas:</b><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="nt6" id="nt6"></a><sup>[1]</sup> Verbi
+gratia na quinta da Domanderes.
+<br />
+
+<div class="signature">Nota do autor.</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt7" id="nt7"></a><sup>[2]</sup>
+Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos
+com o gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz
+descarregar uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos
+ladr&otilde;es, pelas
+muitas perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.&#8213;<span class="smallcaps">Nota do secretario
+Augusto</span>.<br />
+
+<br />
+
+<a name="nt8" id="nt8"></a><sup>[3]</sup> A
+Castanheira
+do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da
+Feira, a uma legua de Agueda.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+do autor</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt9" id="nt9"></a><sup>[4]</sup> A
+traduc&ccedil;&atilde;o de parte de Silio
+Italico pelo Padre Francisco Manoel do Nascimento (Filinto Elysio.) <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+do autor</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt10" id="nt10"></a><sup>[5]</sup>
+Traduc&ccedil;&atilde;o da escolha das Fabulas de
+Lafontaine pelo mesmo. <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+do autor</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="nt11" id="nt11"></a><sup>[6]</sup>
+(O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.) <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+dos Editores.</span></div>
+
+<br />
+
+<a name="nt12" id="nt12"></a><sup>[7]</sup>
+Josu&eacute;&#8213;cap. XXIV<br />
+
+<br />
+
+<a name="nt13" id="nt13"></a><sup>[8]</sup>
+Juizes&#8213;cap. VI.<br />
+
+<br />
+
+<a name="nt14" id="nt14"></a><sup>[9]</sup> Foi este
+fragmento publicado na <em>Revista
+Universal Lisbonense</em> de 19 de Junho de 1845&#8213;Tomo IV, pag.
+582. <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Os
+Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="fbox">
+<h2>Lista de erros corrigidos</h2>
+
+<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se
+listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="right">
+
+ <td style="width: 61px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correc&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: center;">Volume I</td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e1" id="e1"></a> <a href="#p20">#p&aacute;g.
+20</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">a
+&eacute;m</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">al&eacute;m</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e2" id="e2"></a> <a href="#p33">#p&aacute;g.
+33</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">&laquo;o
+salto)&raquo;</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">&laquo;o
+salto&raquo;)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: top;">
+ <a name="e3" id="e3"></a> <a href="#p56">#p&aacute;g.
+56</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">lnes</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">lhes</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <a name="e4" id="e4"></a>
+ <a href="#p69">#p&aacute;g. 69</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">fescenino,&raquo;</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">fescenino&raquo;,</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <a name="e5" id="e5"></a>
+ <a href="#p94">#p&aacute;g. 94</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">acompapanhal-o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">acompanhal-o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: center;">Volume II</td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a>
+ <a href="#p45">#p&aacute;g. 45</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">dextra n&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">dextra m&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a>
+ <a href="#p113">#p&aacute;g. 113</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">tarrestres</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">terrestres</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+</div>
+</div>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
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+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
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+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
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+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
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+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation information page at www.gutenberg.org
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at 809
+North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email
+contact links and up to date contact information can be found at the
+Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit www.gutenberg.org/donate
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including checks, online payments and credit card donations.
+To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For forty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
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+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
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+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
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+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
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+The Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.net
+
+
+Title: O presbyterio da montanha
+
+Author: António Feliciano de Castilho
+
+Release Date: February 19, 2009 [EBook #28127]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
+
+
+
+
+
+ *Nota de editor:* Devido à existência de erros tipográficos neste
+ texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em
+ caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original.
+ No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.
+
+ Rita Farinha (Fev. 2009)
+
+
+
+Obras completas de A. F. de Castilho
+
+XIX
+
+O Presbyterio da Montanha
+
+VOLUME I
+
+[Figura]
+
+
+LISBOA
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
+95, Rua Augusta, 95
+1905
+
+
+
+
+
+OBRAS COMPLETAS
+
+DE
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
+
+VOLUME 19.^o
+
+
+
+
+VOLUMES PUBLICADOS:
+
+
+I--Amor e melancolia.
+II--A chave do enigma.
+III--Cartas de Ecco e Narciso.
+IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.)
+V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.)
+VI--A primavera (1.^o vol.)
+VII--A primavera (2.^o vol.)
+VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas.
+IX--Vivos e mortos (2.^o vol.)
+X--Vivos e mortos (3.^o vol.)
+XI--Vivos e mortos (4.^o vol.)
+XII--Vivos e mortos (5.^o vol.)
+XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.)
+XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.)
+XV--Vivos e mortos (8.^o vol.)
+XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.)
+XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.)
+XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.)
+XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.)
+
+
+NO PRÈLO:
+
+
+XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.)
+
+
+
+
+
+OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
+
+XIX
+
+O PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+VOLUME I
+
+[Figura]
+
+LISBOA
+
+Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_
+
+
+LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA
+Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47
+
+
+1905
+
+
+
+
+Advertencia dos Editores
+
+
+Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos
+antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa solidão de mais
+de sete annos de homisio na serra do Caramulo. A esses manuscritos, que
+ia publicar com o titulo de _O Presbyterio da montanha_, escreveu um
+prologo extenso, descriptivo, altamente pittoresco, onde, a dôze annos
+de distancia, desafogou as lembranças d'aquelles logares, e as saudades
+de um irmão, o melhor dos irmãos, o já então fallecido Abbade de S.
+Mamede da Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo
+concluiu-se, imprimiu-se na sua maxima parte, mas não chegou a
+publicar-se.
+
+O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
+da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
+fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer como;
+e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo, são hoje
+considerados especies bibliographicas de primeira raridade.
+
+Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional
+de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador, bibliógrapho, e
+escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz, outro; a fallecida snr.^a D.
+Maria Peregrina de Sousa, poetisa portuense, possuia outro, que parece
+ter levado caminho; Innocencio no Tomo I do Supplemento do seu immortal
+_Diccionario_, não declara se era dono de algum; menciona a obra,
+apenas.
+
+Quanto á parte poetica do livro projectado, essa, não impressa,
+desappareceu em parte. Só algumas poucas peças encontrámos, umas
+inteiras outras incompletas; materiaes truncados da collecção. Salvando
+esses versos, cumprimos um dever moral, e outro literario.
+
+O prologo de Castilho é pois o brilhante pórtico de um edificio ainda em
+construcção, e já em ruinas; é inquestionavelmente uma das obras mais
+curiosas e instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a
+historia, a lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o
+_folk-lore_, d'aquella região alpestre, tão portugueza, mas tão
+desconhecida, tudo isso é tratado com amor, com o cuidadoso amor de um
+archeologo-poeta.
+
+Appareceu tambem uma _Introducção_ em verso sôlto a certo poema
+intitulado _O Sepulcro, historia de uma noite de S. João_, projectado
+pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito phantastico,
+infelizmente por concluir. Entendemos não menos intercalar essa curiosa
+Introducção, no seu logar chronologico, por varios motivos: dá-nos
+Castilho sob uma feição poetica diversa da sua habitual, e pinta-nos o
+estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia soffregamente o ar,
+a vida, os usos populares da montanha. O _Sepulcro_ é pois optimo
+contribuinte d'este truncado banquete literario, e fôra imperdoavel,
+apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do borrão original, que
+possuimos pela letra do amoravel secretario Augusto Frederico, para esta
+licção actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor
+ditadas em 1864.
+
+Além do _Sepulcro_, outras peças, portuguezas e latinas, já impressas
+nas _Excavações_, teriam logar aqui, pelo seu nascimento, pela sua data,
+pela sua indole; mas o autor preferiu collocal-as n'aquelle seu volume.
+Facil é ao leitor intelligente o procural-as.
+
+
+
+
+Á MEMORIA
+
+DO
+
+EXEMPLAR DE IRMÃOS
+
+AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO
+
+PRIOR DE
+
+S. Mamede da Castanheira do Vouga
+
+_Em testemunho publico e perenne_
+
+_DE_
+
+AFFECTO E GRATIDÃO
+
+Offerece
+
+_Antonio Feliciano de Castilho_
+
+
+
+
+PREAMBULO
+
+
+I
+
+O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o
+classifical-o podesse por alguma via valer a pena.
+
+Não é historico, nem ficticio; não é didactico, philosophico, nem
+descriptivo; não é prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada
+de tudo isso, de tudo isso participa.
+
+Nem sequer é um livro; é uma congérie de pequenas coisas, todas mais ou
+menos obscuras, e quasi todas desconnexas, e de pensamentos não
+procurados, se não tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem
+determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles
+banquetes de aldeão, engenhados á pressa do que ha em casa,
+
+
+ _...dapibus mensas oneramus inemptis,_
+
+
+para hospedar a cortesãos que lhe passaram pela porta. Não procura
+enganal os]: com mãos limpas e coração lavado lhes põe diante o que só
+para si tinha tratado na sua horta, ceifado no seu chão, cevado no seu
+pateo, ou colhido do seu pomar. Porcelanas e pratarias, não as tem;
+algumas flores, já pode ser que as apresentará em vasos de barro; mas
+como vos assoalha com bom rosto quanto possue, não se vos alardeia de
+abastado, nem se compara com os visinhos de casas altas e balcões
+envidraçados. Como quer que vós d'elle o fiqueis, não ficará elle
+descontente de si mesmo á despedida.
+
+ * * * * *
+
+Foi o geral d'esta collecção, parte escrito de carreira, parte apenas
+esboçado ou apontado, ha hoje doze, treze, quatorze, quinze, e dezasseis
+annos, sem pensar no Publico; para mero desenfadamento de horas
+abhorrecidas; para ajudar a correr mais depressa, em sitios tristes e
+ermos, uns tempos muito ermos, muito tristes, e para mim, que nunca bem
+atinei com o futuro, muito desconfortados de esperanças.
+
+Como todo o meu fim em fazer versos não era outro senão o fazel-os, de
+todo o modo me nasciam bem. Não tinham de apparecer entre gente; não os
+educava; não os corrigia; não lhes punha galas e arrebiques. Assim
+sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.
+
+Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde já cuidei que não tornasse;
+achei-os os mesmos que os tinha deixado: sinceros, mas incultos e
+semi-silvestres, como nados e creados que eram por entre troncos e
+penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por fora o mesmo que por
+dentro faz a consciencia.
+
+Vieram-me tentações de os enjeitar; mas... eram filhos; contavam já
+annos: recordavam-me tempo de saudades; eram me saudades elles proprios;
+reconheci-os; dei-lhes o meu nome; com elle os apresento.
+
+
+II
+
+Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu que
+_se compõem_ para o Publico; e, bem hajam elles!: não levam á praça
+senão o que teem averiguado que por lá se deseja e se procura; põem de
+parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao interesse ou gosto
+alheio.
+
+Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.
+
+Não sou eu que vou para os leitores; são os leitores que teem de vir
+para mim, se as quizerem ler. Hão-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo;
+as suas occupações, pelo meu ocio; a sua polidez, pela minha rudeza; os
+seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da sua vida, pelo
+recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte desconhecida e
+pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, só vista de cima pelo ramo de
+tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela andorinha cujo ventre branco
+ella retrata no seu vôo. Pelo que, bem entendido deve ficar desde aqui
+(a fim de que não venham depois obrigar-me por divida que eu não
+contraio), que a unica deleitação que esta leitura pode dar, se pode dar
+alguma, será a que naturalmente se tem, penetrando no interior da casa
+alheia, e nos segredos do visinho.
+
+É o que faz com que, por mais futeis que pareçam as memorias, que alguns
+escrevem de suas vidas, e as correspondencias epistolares, quando por
+acaso vão dar ao prelo sem terem sido ordenadas para elle, commummente
+são lidas com interesse.
+
+É o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as achadas de
+antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma antiga vivenda
+particular ou casa rustica, onde os vasos e utensís do viver quotidiano
+veem logo suscitar na phantasia os costumes, o trato, e o ser intimo, da
+gente que ali houve.
+
+Os monumentos só dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o ladrilho do
+forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos banquetes,
+dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas ressurgem tambem uns
+eccos de vozes enterradas ha muitos seculos; confusos, mas a todos
+intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas, de velhos e meninos, dos
+animaes caseiros, dos passarinhos e virações do ceo, do sussurro das
+plantas, dos sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e
+feneceu, deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e
+a lampada que allumiou calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.
+
+Os monumentos são artificiaes, e artificiosos; são estudados, e
+emphaticos; a historia que elles resam é fria. Mas cá, o romance que
+engenhamos, ageitado ás memorias e saudades do nosso mesmo passado, é
+todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.
+
+ * * * * *
+
+As _impressões de viagens_ estão sendo ao presente um genero de
+Literatura mixta mui usado e mui querido.
+
+Não admira: para os autores é facil; para os leitores, recreativo quando
+menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que todos temos muito ou pouco;
+sem cançasso nem más poisadas por terra; sem enjôo nem temporaes por
+aguas do mar; sem desabrimento de estações; sem saudades do que lá fica
+para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que é repetir
+algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a pessoa a viajar em
+corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando aonde ninguem a
+espera, nem festeja, nem conhece, e onde não ouve pelas ruas palavra nem
+som da sua creação.
+
+A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos
+atmosphericos tão suaves, que a todas as partes nos levam, com a nossa
+casa e familia, sem até nos demovermos do nosso quarto nem da nossa
+cama, se como Ovidio somos, que punha entre os regalos da vida o de ler
+deitado.
+
+ * * * * *
+
+Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens é o gosto de
+conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos são extranhos, e não medir
+as distancias que nol os apartam, que esse, pelo contrario, é o maior
+desconto do peregrinar, ¿por que se apeteceriam mais as viagens á
+França, á Inglaterra, á Suissa, á Italia, ás margens do Rheno, á Russia,
+ao Egypto, á China, ou ainda á Lua, do que a um qualquer monte da nossa
+terra, só conhecido de seus moradores e visinhos?
+
+¿Que sabeis vós mais da serra do Caramulo, em cujas faldas está
+assentado S. Mamede da Castanheira do Vouga, como um neto no regaço de
+sua avó triste e taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se
+abriu a arca depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.
+
+Viréis pois ás raizes do Caramulo conversar montanhezes, agrestes porém
+bons; e tão bons, que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal
+productivos, nos seus paupérrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e
+pendurados á laia de ninhos pela escarpa dos precipicios, entalados nos
+córregos, ou inclinados a scismar tristezas sobre algum rio fundo e
+triste, nunca se lembraram de vos invejar a vós outros as vossas cidades
+opulentas e festivas.
+
+Estes, com falarem portuguez, são para vós estrangeiros, ou quasi. Como
+taes, não vos despraza conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com
+quem por entre elles demorou annos, e de boa-mente lá iria agora
+enterrar os restos cançados da vida ao-pé do sepulcro de um Pae, que lhe
+lá ficou em quieto desterro para todo sempre.[1]
+
+
+III
+
+A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana região o novo
+Prior, meu sempre e em tudo irmão, e agora saudade minha continuada e
+sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a sua pequena familia,
+de que era eu parte inseparavel.
+
+Coimbra, d'onde iamos, fôra a terra dos nossos annos mais florídos;
+Lisboa, a do nosso berço e da nossa infancia. Uma e outra me chamariam
+pelos affectos em qualquer parte do mundo em que eu estivesse; e não
+houvera eu valído a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que então
+cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos elle e eu, por nos
+sentirmos um como o outro tão encantados com o nosso futuro, já palpado
+e colhido ás mãos, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os
+outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias, mais
+amenas ou mais vívidas, por aquellas gentilezas incultas e mais poeticas
+de uma natureza quasi primitiva.
+
+ * * * * *
+
+Passámos n'uma bateirinha remada por uma velha moleira da margem, o
+viçoso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje corrupto, segundo a
+tradição, o _bom fiar_ de certa moça mui santa, que junto d'elle vivia
+n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o trabalho da
+sua roca; se não quizerdes antes que dos Moiros lhe viesse o appellido,
+significando _pepinal_, ou _rio das terras dos pepinos_; pacifico rio,
+que então ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas altas e
+verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de se deter
+enlevado na amenidade de tal painel.
+
+Começam a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para um e outro
+cabo, arripiadas gândaras de carqueja e urzes, só de longe a longe
+interruptas de um sovereiro torcido e mal posto, ou de um rebanho;
+terreno boleado e ondeado como um lago, que em meio de tempestades se
+houvesse petrificado por encanto. São já fronteiras do Caramulo.
+
+
+IV
+
+A freguezia de S. Mamede não se vê em parte alguma; é dispersa, e
+emboscada. A magreza da terra não dá para grandes espessuras de
+povoação.
+
+O aspecto do paiz, para quem só o atravessa é de inhospedeiro. Mas que
+se detenham, e o tratem; acharão a hospitalidade espontanea e
+desinteressada, em todas as falas, em todas as mãos, e em todos os
+corações. É porque a solidão é de si mais affectuosa, e a pobreza mais
+liberal e larga, que o rico povoado.
+
+Esta differença e vantagem que os moradores levam á sua terra,
+experimentámol-as nós ainda antes de chegarmos á egreja e residencia,
+sahindo a receber o seu Pastor novo não só os maioraes, se não quasi
+todo o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das
+cerejeiras e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde
+áquelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas brancas.
+
+A egreja, alva, com o seu largo portão vermelho aberto para o seu adro
+muito verde, apresenta-se solitaria. Das povoações em que a freguezia se
+divide, nenhuma lhe é contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia
+parochial, é o unico edificio que a acompanha, mas por de traz, como
+serva humilde e boa, e não descobrindo mais, por entre os plátanos, que
+o portal do seu pateo toucado e semi-velado das mais espêssas, crespas,
+e lustrosas heras, onde jámais se esconderam e cantaram melros.
+
+Ambos os edificios ficam no meio do _passal_, antiga quinta «das
+Limeiras», dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do sinuoso
+deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes, que ali
+teem o seu foco espiritual.
+
+Um grande silencio rodeia largamente a casa da oração. O presbyterio não
+lh'o quebra.
+
+Baixo, de um só andar, e retirado para o fundo do seu pateo rustico mas
+espaçoso, a olhar pelas quatro janellinhas da sua frontaria principal
+unicamente para o ceo, e para umas formosas e corpolentas laranjeiras,
+que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle clausuradas, o modesto
+domicilio, proporcionado pelo que sempre deverá ser o pastor de tal
+rebanho, não se retrahiu para mais longe, por traz da sombra do
+santuario, porque não poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez
+mais precipitosa descida, que desde os seus calcanhares começa para além
+a esconcear, descer, e afundir-se, até á borda do estreito, rumoroso, e
+espumifero rio de S. Mamede.
+
+Uma ponte de madeira, arremessada e trémula nos ares a grande altura,
+por cima das aguas escuras e raro alcançadas do sol, communica esta com
+a ribanceira ulterior, não menos carrancuda, fragosa, arripiada, e a
+pique.
+
+Da residencia, corôa de um dos dois alcantis, até ao moirisco logar de
+Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da penedia d'alem-rio,
+entremeia apenas distancia, que, pela calada das noites, deixa ouvir de
+parte a parte os ladridos dos cães de gado, as cantigas do serão, e os
+alertas dos gallos a deshoras. E comtudo, aquelle _quasi-nada_ para os
+ouvidos e olhos, é para os pés caminho dilatado, fadigoso, e não sem
+perigos.
+
+As duas veredas, que levam ás duas extremidades da ponte, giram enleadas
+e perplexas, torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a
+esquerda, como espavoridas do abysmo lá em baixo; descendo, tornando a
+subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.
+
+Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres, são os unicos
+entes vivos, que por ali se affoitam a tomar pé. Os seus frutos
+vermelhos, quando o vento lh'os despega maduros, vão sumir-se entre as
+espumas arrebatadas.
+
+Aquella ponte, vacillante sobre tal pégo e entre taes escarpas, com
+poucas braças de ceo por cima, e por baixo de si o rugir de tantas
+aguas, dá as sensações de um bello horror.
+
+Muita vez me deleitei de as colher, debruçado horas esquecidas para
+aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas vezes ahi me veio por
+tardes de Junho, em quanto, calado e estendido sobre as táboas, gastadas
+e rôtas da humidade, me gosava da viração transpirada pela corrente.
+¿Foi a simples providencia do acaso, ou uma inspiração de religiosa
+poesia no fundador, a que fez reunir n'um ermo, e em tão pequeno espaço,
+como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja?
+¡Esta corrente, emblema da vida terrestre, tão escura, tão angustiada,
+tão clamorosa, e com tão pouco de azul por cima das suas ribanceiras
+inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo
+ferir-lhe o seio! Aquella egreja, tão serenamente alegre, tão aberta, o
+dia inteiro, ao generoso sol dos campos, tão gorgeada a ambas suas
+portas de passarinhos, tão garrida de espadanas sobre as campas do
+pavimento, e nos seus cinco altares tão ridente de flores silvestres,
+symbolo da alma refugida das tormentas do mundo para o ineffavel asylo
+da Fé e das Esperanças! E entre o santuario e o rio, como intermedio e
+transição dos dois extremos, a casinha do Pastor, alva como a confiança,
+verdejante e florida como as promessas, recatada como a esmola,
+inexhaurivel no seu celleiro como a Providencia, tácita como a
+meditação, com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas
+para a torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores
+de Deus para o firmamento.....
+
+O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a
+torrente, e o albergue, é uma nova harmonia. Mamede, ou Mamante, foi um
+humilde e obscuro pastor de gado na Capadócia, e do qual toda a Egreja
+do Oriente pregôa virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou
+martyr, por volta do anno 274 da nossa era.
+
+O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o
+vigilante e benéfico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres e pacificos
+arredores, para o Menino, já moço na valentia, ou para o moço, ainda
+menino na innocencia.
+
+Não poude ser o acaso, quem tantos acêrtos concertou.
+
+
+V
+
+Era a residencia, quando a ella chegámos, decrépita e caduca: apparencia
+de choça fabricada de pedra ensôssa, escura e descommoda no interior;
+por fora negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de
+inuteis e desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor
+a havia em parte feito, em parte deixado, chegar áquelle estado.
+
+A transformação foi rapida e completa. Os alpendres desappareceram. Na
+casa remoçada entrou por vidraças abundancia de luz. O pateo
+desafrontado foi revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de
+cal bem candida, logo de roseiras e limeiras bem viçosas. Um cedro
+n'elle plantado começou de levantar-se animoso e gentil; e sei que
+n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um já não existe na
+terra, o outro declina para o occaso, elle, medrando ainda, é já, como
+lh'o eu augurára nos meus versos, brasão do presbyterio; tem no seu
+tronco cinco palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura.[2]
+
+O novo Prior, o Rev.^{do} snr. Padre Antonio José Rodrigues de Campos, a
+quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho, varão de virtude, e
+espirito cultivado por Letras, filho d'aquellas boas terras, e amigo
+nosso que sempre foi, como ainda hoje o é do nosso nome, conserva e zéla
+tudo aquillo com amor.
+
+É para mim delicia o considerar, que á sombra grande d'aquelle cedro,
+que eu regava todos os dias, quando um menino de tres annos o poderia
+ainda arrancar sem custo, lerá talvez, depois do seu Breviario, este
+livrinho das minhas memorias, em que deposíto o seu nome mollemente
+reclinado entre tantas outras saudades minhas.
+
+
+VI
+
+Já os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me escondeu
+sete annos, desde Outubro de 1826 até Fevereiro de 1834, o ninho em que
+nasceram, sem pensarem em abrir o vôo que hoje abrem para o mundo, estas
+poesias montesinhas.
+
+Mas, como todo o seu assumpto se não limita ao que deixo esboçado,
+peço-lhes ainda um pouco de indulgencia, para lhes dar a conhecer, por
+alto, os arredores.
+
+ * * * * *
+
+O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo por
+traz d'ellas até onde lh'o consente o pendor do terreno, a escoar-se
+cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.
+
+Por essas lombas inclinadas, fronteiras á encosta alta e erma de
+Falgozelhe, se boleiam melancolica mas graciosamente as suas hortas, os
+seus pomares, a sua fonte, as suas parreiras, e as fraldas das seáras,
+que até ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois de
+povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada horizontal,
+por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar, até ir
+bater, lá ao longe, na capellinha e matta de S. Sebastião, que lhe
+servem de limite.
+
+Seáras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias folgavam de
+avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades protectoras da
+Agricultura. ¿Que mais proprio, para um povo agricola como este, do que
+achar a casa do Creador, e a do seu dispenseiro, no centro da abundancia
+das messes, e saudal a com a invocação de um Pastorinho santo?
+
+O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S. Sebastião, por entre
+duas grinaldas de oliveiras e vinha, o meu passal até ao adro; costeia a
+egreja e a casa pela direita, e, em demanda da serra alta, lá se vai
+mergulhando para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura
+sombria da fonte sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja
+antiga, um altar de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas,
+assoberbada com um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um
+troço de lança enferrujado de musgo.
+
+
+VII
+
+Detenhâmo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-pé d'este altar, onde já
+ninguem ajoelha, sobre sepulturas que hoje são tremoços, e recordemos a
+obscura historia d'este sitio.
+
+¿Por que razão só as grandes ruinas se hão-de haver por merecedoras de
+attenção? Todo o passado é poetico; todo o evocar imagens humanas de sob
+a terra que pisamos, é proveitoso para alguma coisa. Nas solidões,
+mormente como esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha,
+e que onde hoje, por entre o rugir das folhas, só algum pipilar de ninho
+quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos bons, e
+até festas.
+
+Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da
+Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela
+margem de cá ás aguas do S. João do Monte, que logo a diante troca o
+nome no de S. Mamede, um moço por nome Jorge, humilde de geração como
+tudo quanto por ali nasce e se cria, mas de coração alto e espiritos
+levantados.
+
+Namorára-se Jorge (me contou n'um serão do Natal uma velha, que o ouvira
+em pequenina a seus paes, que o tinham recebido não sabia de quem)...
+mas emfim, namorára-se, que o sabia ella, de certa moça de alem-rio,
+guardadora de cabras, mas filha de um Capitão, e sobrinha em primeiro
+grau de um snr. Vigario. Lá de baixo, perto da sua vivenda entre
+penedos, levava, os dias com os olhos sempre içados aos cabeços de
+Falgozelhe, na outra banda, á caça da sua saia de serguilha, ou do seu
+sombreiro preto; e ainda não de todo malcontente, quando, por entre os
+penedos pardos e as urzes côr de fogo, a enxergava, pendurada á borda do
+precipicio, e pascendo descançadamente uma das cabrinhas que obedeciam á
+sua voz melodiosa.
+
+A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a esperdiçava
+cantando n'aquellas solidões, parecia-lhe a elle, que lá de baixo lh'a
+estava captando com ambas as mãos, escutar um Anjo de amor escondido
+entre as nuvens; e quereria mal até ao rouxinol que lh'a interrompesse,
+porque não sabia de coisa mais de molde para o seu coração.
+
+Vel-a á sua vontade, não a via se não aos domingos na egreja; e nem
+então, que para esses dias tinha ella umas roupinhas muito sécias, meias
+muito alvas, e tamancos de galão de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe
+que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a
+fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das
+aguas. Fazem-se pontes para os rios; não se fazem que prestem para
+communicar dois estados tão diversos.
+
+ * * * * *
+
+Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas é poesia; e poesia
+não é vida. Ousou, e declarou-se a medo á sua formosa; não foi
+repellido. Affoitou-se a mais: ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario
+em confissão. O que entre elles se passou, não se sabe; taboas de
+confessionario não são carvalhos dodónios que chocalhem tudo. O que se
+sabe, é que a moça não tornou a apascentar para aquella banda, e que
+elle, pouco depois, deixou a terra, onde tinha mãe e irmãos pequenos,
+sem dizer nada a ninguem, e não levando senão o fatinho que tinha no
+corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo dizem, era grande, e o
+seu amor, que não era pequeno.
+
+Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el
+Rei, e que se abalára por esses mares de Christo, sabe Deus para onde, e
+para quê.....
+
+No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento,
+assim a fazenda que andára moirejando, como a propria vida, apegou-se
+com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse com tudo seu
+a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria, uma capella
+da sua invocação com duas Missas por semana, defronte de Falgozelhe,
+onde vivia a noiva do seu coração, por cima da Talhada, onde tinha os
+irmãos e a mãe, e pegada com a egreja onde o baptisaram a elle, e onde a
+avistava todos os domingos.....
+
+Mas de crer é que n'essa imagem se não demoraria muito em semelhante
+lance, em que as ondas formavam, por instantes montanhas tão altas e
+escarpadas, porém mais temerosas e feias que ess'outras, entre cujas
+quebradas, e por cujos visos, elle variára a sua infancia.
+
+Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.
+
+Tornou á Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em Angeja, que em
+boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e nunca mais tornou a
+aventurar-se sobre aguas do mar.
+
+Reliquias são pois da sua obra a Imagem e as pedras que ainda ali se
+divisam. O de mais, já desgastado do tempo, foi demolido, para ir servir
+como materiaes na edificação de parte da residencia, e da egreja nova,
+que já sabeis lhe estão visinhas.
+
+ * * * * *
+
+--¿Mas o fim de seus amores?--me perguntareis vós.
+
+Memoria é essa que eu tambem procurei, porém não consegui desencantal-a.
+
+O que só pude desenterrar da tradição, foi: que este mesmo Jorge viera a
+casar-se na freguezia; que tivera um filho nascido na póvoa da Talhada;
+que este se ordenára de Clérigo, fôra a Roma, e arribára a Cardeal; em
+memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada da antiga, e
+mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito amadas, uma
+Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com braços em baixo e
+em cima, oleada de verde, doirada nas pontas, e n'ella pintados tres
+cravos, duas chagas, e uma corôa de espinhos.
+
+Vê se, venera-se, e commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na
+parede do arco cruzeiro da banda direita; e affirma-se, que na capella
+de S. Jorge permanecêra com egual honra em quanto ella durou.
+
+Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma
+póvoa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro velho, e
+onde o que só fazia bulha no meu tempo era um pequeno moinho, rôto por
+todos os lados aos ventos e chuvas, foi, ou não, nascido do consorcio a
+que o Padre Vigario e seu irmão se tinham opposto, eis ahi o que eu não
+alcancei; e não quero invental-o. Provavel me parece que sim, quando me
+lembro do que a minha velha me contava d'aquelles amores, e o combino
+com a ideia que formei da constancia no bem querer dos moradores da
+minha serra.
+
+A moça deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a Jorge, qualquer
+apostaria que o foi sempre. A fortuna entulhára com riqueza o abysmo que
+os separava; e S. Jorge, que não é Santo para meias victorias, havia
+forçosamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto.
+
+Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de
+pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome
+ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os
+recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e beber
+á saúde da futura geração algumas malgas de vinho verde na sua casa da
+Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. João do Monte.
+
+
+VIII
+
+A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, fôra o antigo oratorio
+dos Condes da Feira; e a residencia, já depois duas vezes transformada,
+albergue do feitor que elles ahi tinham para lhes receber os fóros, e
+lhes tratar d'aquella sua quinta, chamada, como já tocámos, «das
+Limeiras».
+
+Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto,
+havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guardão, do Bispado
+de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de distancia
+da que ao presente é, d'ali a haviam achegado para Alcafaz, pertencente
+agora á freguezia de Agadão, sitio ainda desfavoravel pelo estirado e
+descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem ermida,
+casa, e quinta, com largas rendas e fóros para a sustentação de Parochia
+sobre si.
+
+N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos
+hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus
+amigos algum tempo do anno na montaria dos javalís, que a espessura das
+moitas então creava, segundo parece, como ainda hoje cria lobos. Folga a
+phantasia comparando e contrapondo aquelles tempos a estes, e reanimando
+o actual silencio com um reflexo e ecco da vida estrepitosa de outra
+edade.
+
+
+IX
+
+Explorámos as convisinhanças do templo e residencia. Estendâmos agora os
+olhos até ás fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico
+senhorio.
+
+ * * * * *
+
+D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o logar
+das Maçadas, com cincoenta almas, sua ermida de S. João Baptista, e sua
+fonte muito fresca.
+
+Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da
+Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa
+com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do
+Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que desde
+as ultimas guerras lhe ficou até hoje a pantomimar no alto do seu
+oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam, de extrema a
+extrema do Reino, quantas noticias o revolvem, sem que a boa da villa,
+nem outro algum dos logares que entram na sua abençoada confederação de
+rustica ignorancia, as adivinhem, nem suspeitem, nem cubicem.
+
+A tres quartos de legua para nor-nordeste, dá-se com a humilde póvoa de
+Falgarinho, de não mais que oito visinhos.
+
+Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se,
+n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres
+pessoas.
+
+Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores,
+e a pequena distancia, se dá de improviso com a vistosa e agradavel
+quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de Nossa Senhora
+do Livramento.
+
+Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S. João do Monte,
+que a seus pés corre, está em amphitheatro o Avelal-de-cima, de vinte e
+quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da egreja.
+
+Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis, a
+meio quarto de legua está para o nordeste o Avelal-de-baixo, logarejo de
+quarenta e sete almas, e uma capella de Nossa Senhora da Conceição.
+
+Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo
+bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de observação.
+
+Para o nascente, descendo até á Cruzinha, e d'ahi toda a costa dos
+Ferreiros, passa-se o rio de S. João do Monte, junto ao seu confluente
+Alcafaz (nome arabe, que significa «o salto») nome que para ali está, ha
+mais de setecentos annos, soando em bocca de christãos sem renegar a sua
+origem, nem se corromper.
+
+Para a esquerda do S. João do Monte, se descortina a nossa Talhada, de
+honrada memoria, berço de um Cardeal, de um fundador de capellas, e de
+um namorado de lei; tres celebridades para um ninho hoje de quatorze
+almas, coberto de loisas e colmo, e coroado de sarças e medronheiros;
+dista-nos um quarto de legua para nordeste.
+
+Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede (que
+toma este nome na juncção dos dois afluentes) se atravessa na ponte de
+pau que já sabeis, e onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tomára a
+apanhar á fresca.
+
+Subindo um pouco espaço a costa, atravez de alcantiladas rochas, toma-se
+a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda, que em travessia
+da montanha, sobre a esquerda do rio, leva até ao casal do Fontão, de
+onze almas, sito na margem do Alcafaz, na raiz do cabeço de Santa-Cruz,
+a quarto e meio de legua para nós.
+
+Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a encosta;
+e no cimo se encontra a povoação de Falgozelhe, de setenta e uma almas,
+posta a um quarto de legua da egreja, a les-sueste, quasi na extremidade
+occidental de um ramo do Caramulo. O nome da sua casa de oração é o que
+á sua altura melhor convinha: Santa-Cruz.
+
+Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agadão por outra ponte de
+pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo está o pequeno e vistoso logar
+da Falgarosa, de trinta e seis moradores, com uma sua ermida da Senhora
+da Boa-Morte, a tres quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o
+delicioso de seus pomares de caroço e de espinho, com a annosa matta de
+sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo,
+com ter dado á luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje rege aquelle
+rebanho.
+
+Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de
+se terem abraçado os dois afluentes Agadão e S. Mamede.
+
+Subindo-se até ao vizo, está o logar da Redonda, de cincoenta almas, com
+sua capella de S. Gonçalo, a quarto e meio de legua a sudoeste da
+egreja. Redonda se chama, por estar á borda de um leito semi-circular.
+
+ * * * * *
+
+Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas confrontações
+externas.
+
+Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do Préstimo; pelo
+poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da Aguada de cima, e
+Balazaima; pelo nascente, com a de Agadão, filial, ou annexa, que aínda
+então era, á de S. Mamede, e parochia hoje sobre si; paiz ainda por
+ventura mais serrano e variado, mas que eu não cheguei a descobrir.
+
+
+X
+
+O territorio de S. Mamede é o extremo occidental de um corpulento ramo
+do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em voz de Moiros quer
+dizer «abobada», ou montanha boleada á feição d'ella.
+
+Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros
+ramos, alguma coisa quizera eu dizer, á conta do muito que merece. Mas,
+sobre que nunca o visitei, apesar de tão visinho, recearia apoucar-lhe a
+veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas
+noticias que d'elle tive.
+
+Em summa: é uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando d'entre as
+nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa em
+tempestades, em frutos magra, mas optíma em homens e mulheres de antiga
+tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da fome, e da nudez; é
+um paiz de selvagens christãos, para o qual as rudes terras do meu S.
+Mamede estão, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios
+poderia estar a antiga Attica.
+
+ * * * * *
+
+Dois monumentos accrescentam veneração ao Caramulo, quanto o podem
+mesquinhas obras humanas ás grandiosas moles naturaes.
+
+N'um dos seus cabeços mais alterosos foi erguido, nos principios d'este
+seculo, uma especie de zimborio de doze palmos de altura, pouco mais ou
+menos, de pedra muito bem lavrada e argamassada. Para quê, não dizem;
+mas dizem que por um engenheiro francez; rasão por que, os povos da
+circumvisinhança, por occasião da guerra peninsular, commetteram
+demolil-o; mas só lhe poderam fazer pelo norte um pequeno estrago. Dura
+em pé, e só é accessivel do nascente por uma vereda estreita e tortuosa.
+
+O outro monumento não é menos enigmatico, e deve estar farto de ver
+passar seculos e desfazer-se gerações.
+
+N'uma arremeçada crista, a duzentos passos da egreja do Espirito Santo
+de Arca, se alevanta elle, com o titulo immemorial de «Pedra de Arca». É
+uma desconforme loisa inteiriça, horizontalmente aguentada nos ares por
+esteios de pedra; quatro em numero a principio, hoje só tres, havendo
+sido um arrancado para as obras da visinha egreja.
+
+Tem esta lágea de comprido vinte palmos, e de largura dezasseis; de
+grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte quatorze, pelo poente
+onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam de altura doze palmos,
+só da flor da terra para cima; de largura, um que fica para o poente
+apresenta nove palmos, tendo de grossura pelo poente palmo e meio, e
+pelo nascente um palmo. Um, que diz para o sul, tem de largura, por
+baixo quatro palmos e meio, e por cima tres, e de grossura um palmo de
+cada lado. O ultimo, que está para o norte, tem de largura, por baixo
+cinco palmos e polegada, e por cima quatro palmos e polegada.
+
+¿Com que possantes machinas, por que mãos, em que eras, e para que fim,
+se alevantou ali aquella, que á phantasia se figura bruta meza de
+gigantes silvestres? ¿Sería obra de fortificação n'um systema de guerra
+desconhecido? Quasi que nem possibilidades o abonam. Uso agrícola,
+industrial, ou civil, nem a imaginação mais inventiva lh'o rastreia.
+Memoria de algum varão ou feito insigne, já a poderia ser. Mas então, ¡a
+que rudes tempos a não havemos de referir, visto como nem data, nem
+letra, nem escultura tôsca, nem vestigio algum de arte nem de
+architectura, mas só uma bruta mechanica, ali se admira!
+
+Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais,
+quando se adverte na semelhança que tem com os altares druidicos, ainda
+hoje conservados em varias partes do que foram Gallias e Germania.
+
+Verdade é, que por estas nossas terras não rezam as Historias, que se
+estendesse aquella abominavel seita de sacrificadores de humanas
+victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que, perseguidos, como o vieram
+a ser, pelos Imperadores romanos, alguns druidas se refugiassem para
+este Occidente, e aqui, em retiros montesinhos, menos accessiveis a
+pesquizas e perseguições, professassem e mantivessem o seu culto, do
+qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade comparadas)
+não muito discreparia talvez a religião do Endovélico lusitano.
+
+Este ponto, porém, outros mais sabedores que o investiguem, se vale a
+pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro dos meus
+affectos.
+
+
+XI
+
+Nada concita aos logares veneração, como a antiguidade.
+
+Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para além de Moiros,
+Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure, não rastejo noticia
+d'essas edades, com que fazer obra.
+
+Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve
+memoraveis edificios, se varões insignes pisaram aquellas terras, nem
+ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem tradições o denunciam.
+O solo enguliu tudo; e nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou
+letra para enigmas.
+
+Só ao sudoeste de Falgozelhe, já fóra da sua lavoira, na primeira
+valleira que se encontra á direita do caminho indo para Agueda, se vê
+uma fiada de umas como torrinhas, que se estende por mil e quarenta
+palmos; das quaes torrinhas, só duram hoje em dia os alicerces, e
+algumas porções deseguaes de muros esboroados a delir-se.
+
+E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se dá em uma
+furna chamada «a buraca da cerejeirinha», aberta a picão em rocha viva;
+a qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de
+largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna é geral fama
+que fôra aberta pelos Moiros.
+
+ * * * * *
+
+Em tempos de mais abusão do que estes nossos, acreditou se, dizem os
+netos, que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S.
+João, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus thesoiros
+por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.
+
+N'esses seculos, entendido está que o terror lhe velava a estancia, e
+que ninguem se affoitou nunca a ir lá dentro.
+
+Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente
+já não ha novas d'ella. As pastoras levam sem medo os rebanhos para a
+sua visinhança; cantam aos seus hombraes trovas muito christans; e quem
+quer, lhe devassa (como eu fiz) o seu palacio subterraneo.
+
+A opinião dos modernos tem, que fôra aquella mina aberta, pelos Moiros
+sim, mas não para tirar oiro, que é sempre a primeira conjectura, nem
+para serventia militar, que é sempre a segunda, se não só, e
+prosaicamente, á busca de agua, que em verdade de lá mana, muito fresca
+e saborosa, mas em pequena copia.
+
+ * * * * *
+
+Sobre as fortificações engenha cada um a sua hypóthese.
+
+Ha quem as supponha posteriores á invenção da artilharia, por se lhe
+figurar que só a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros
+as attribua, fundado em que, posto não ficassem d'elles por ali outros
+vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares demonstra, que
+elles por lá viveram. E se por lá nasceram e se crearam, não podiam
+deixar de fortificar-se e defender-se contra commettimentos de inimigos,
+que é esse um instinto natural a todos os homens, mas nos homens das
+montanhas mais energico.
+
+ * * * * *
+
+Falgozelhe, em verdade se crê ter sido d'elles povoada, posto que o seu
+nome, se christão não é (como de certo não é), tambem por arabe se não
+reconhece. ¿Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga?
+
+Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que
+podemos ficar por mais que verosimil é que, por toda aquella serrana
+região, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi deixaram menos rasto
+que em muitas das terras visinhas, seria porque a bruteza do monte era
+já então como hoje, que não dava meios nem licença para grandes obras.
+Pequenas póvoas, que eram o mais a que podiam chegar, muito faziam em
+tirar da terra pão com que se manterem; ¡quanto mais, erigirem
+castellos, pontes, ou mesquitas, de que se podessem admirar fragmentos
+depois de sete seculos!
+
+Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo de
+outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar
+d'estes, se acalentaram creanças com versos do Alcorão. Outras arvores,
+de que estas são remota descendencia, viram passar á sombra das suas
+copas esvoaçadas da ventania albornozes de lan grosseira e parda, e
+turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje é talvez
+poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e ficariam confusos e
+immoveis se revivessem para ouvir as da nossa lingua.
+
+Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos,
+que eu desejaria fazer tão amados de meus leitores, como de mim o são e
+serão sempre.
+
+ * * * * *
+
+Não digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes, manteem-se ainda
+antigos. As novidades das civilisações são como a escravidão, e os
+diluvios: tarde chegam a engulir as serras.
+
+A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucidez. Se
+os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se perdessem, pela
+conversação corrente d'aquellas aldeias e póvoas se poderia restaurar.
+
+Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de vocábulos, phraseado, e
+construcção, n'uma seroada de inverno, ou n'um palrar de sésta de
+segadores entre carvalheiras rusticas, ao estridor das cigarras amadas
+de Anacreonte, do que entre o ranger dos prelos e o resfolegar das
+balas, n'um anno inteiro da melhor typographia de Lisboa.
+
+Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos, como
+o _nanja_ o _bofé_, o _canté_, o _quiçá_, e mil outros, sôam por lá sem
+extranheza em boccas de mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de
+namoradas de dezoito nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.
+
+Com a honesta herança da Linguagem, veio dos avós aos netos a das
+crenças e praticas piedosas, e com esta a de muitos seus erros e
+abusões. São os insectos e musgos parasitas da arvore robustissima da
+Fé. Abençoada a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os
+ramos ou cerceal-a pelo pé.
+
+O tempo vai fazendo a pouco e pouco o seu officio. Não ha curas nem
+reformações mais prudentes e certas do que as suas, quando á força lh'as
+não ajudam ou contrariam.
+
+Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade de
+apparições, phantasmas de almas do outro-mundo, Moiras encantadas,
+thesoiros escondidos e lobis-homens; e ainda hoje a mór parte dos
+moradores acredita nos esconjuros, feitiços, bruxarias, adivinhações, e
+virtudes de certas praticas e fórmulas, para curar ou empecer.
+
+Estas abusões, sem deixarem de ser males muilo innegaveis, dão comtudo
+sua côr poetica muito particular ao Povo, cuja simplicidade primitiva no
+viver e trajar harmonisam com taes simplezas da intelligencia.
+
+ * * * * *
+
+Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto
+vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos, são por
+ora totalmente incognitos na serra. A moda não exerce por lá as suas
+costumadas devastações de cabedaes, bons costumes, e saude. Os
+vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma
+uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal
+renova as suas folhas e flores.
+
+Os homens vestem de burel, ou saragoça caseira, creada ás costas das
+suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e tecida por suas mães,
+mulheres, e filhas, apizoada e tinta (quando o é) sem sahir da
+freguesia. Trazem grandes chapeos pretos desabados, grande bordão
+ferrado, menos para defensa, que para arrimo pelo resvaladio das
+ladeiras, e tamancos cravejados.
+
+As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra, sáia de
+burel de meio pizão, côr de pinhão ou preta, collete comprido justo, sem
+apêrto, e mandil; isto é, obra de vara e meia de burel mais apertado no
+tear, e sem pizão, que lhes serve de capa, lançado ao desgarre por sobre
+os hombros. A cabeça, cobrem-n-a, ou com o mesmo mandil, ou com um
+chapeo como o dos homens. As suas tamancas são menos grosseiras. O lenço
+de seda ao pescoço é, como as arrecadas e o cordão de oiro, o ultimo da
+magnificencia, e as flores da urze ou da carqueja o mais galante enfeite
+dos seus sombreiros.
+
+São luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou romagens, quando
+calçam, com meias brancas, tamanquinhos de pregaria doirada com sua meia
+palla de marroquim vermelho, vestem roupinhas de pano burel fino, ou
+chita, põem gorjetes de filó, ou lenços de cassa bem pregados, e
+capoteiras de pontas compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as
+mais ricas e senhoras teem mantilhas e sapatos.
+
+
+XII
+
+A educação apenas desbasta. Parca e imperfeita como a cultura do solo
+ingrato, só põe mira no essencial: em desenvolver os sentimentos
+naturaes e religiosos, o afferro á justiça e á verdade, os differentes
+amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o
+respeito á velhice e ao infortunio.
+
+As polidezes requintadas do trato são lhes desconhecidas. Esses
+discursos de cortezãos, mosaicos de phrases brilhantes, que ora
+deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam,
+inspirar-lhes-hiam compaixão. Pensam o que dizem, e dizem-n-o como o
+pensam.
+
+Das artes de seduzir, não cultivam nenhuma. Aprendem para ser bons
+lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas mães, depois
+de terem sido bons filhos e boas filhas; e n'isso limitam a sua ambição.
+
+Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para
+folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras, em
+saraus esplendidos.
+
+Não falam extranhas Linguas, como nós, mas falam a nossa, que é melhor.
+
+Fora da casa de algum Ecclesiastico, não se desencantaria um só livro em
+toda a freguezia; mas os louvores da sua moralidade dariam com que
+encher mais de um livro para nos envergonhar.
+
+A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o
+coração bem nascido dará gosto. A _mercê_ e o _vós_ de nossos maiores
+são tratamentos para os raros casos em que não cabe o _tu_.
+
+Os logarejos são todos amigos, e em grande parte parentes um dos outros.
+O mais pobre vai sentar-se festejado ao serão ou á meza do mais rico;
+isto é, do que na sua tulha tem centeio ou milho para todo o anno; e o
+abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com os seus bois a
+geirasinha do indigente que a não pode pagar; e lhe leva pendurado na
+canga do arado o sacco da semente, para que elle tenha tambem, lá para o
+verão, que ceifar para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por
+instinto, que as lagrimas, no meio da alegria geral, são mais amargosas
+para quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as
+presenceia.
+
+É um povo agricola, que ainda não aprendeu a envergonhar-se do seu
+parentesco chegado com a terra. Entre elles se diz «lavrador», e
+«trabalhador», como em Londres «fabricante», ou «lord», em Roma
+«cardeal», ou «monsenhor», em Paris «sabio», ou «homem de Letras», e em
+Lisboa «deputado», ou «millionario».
+
+As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o podão, com o seu
+paquife de pâmpanos e espigas, e a letra _Ut operaretur terram, de qua
+sumptus_.
+
+ * * * * *
+
+¡Que impressão, a principio de espanto, logo de respeito, e a final de
+amor, me não fez o presenciar, como, ao revéz da pragmatica das cidades,
+o trabalho das mãos era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior
+vergonha!!
+
+Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido o
+sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava (como as andorinhas
+do seu beirado para o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal
+roupido, carrear o adubío para a sua fazenda, ou levar do enxadão na
+roça dos mattos entre os seus operarios. A estes, ¿que os poderia
+admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios, e dos Camillos, se alguem
+lh'a lesse, a não ser a admiração dos historiadores?
+
+ * * * * *
+
+As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens não poderiam deixar de
+ser mais varonís do que os homens de muitas outras terras, e de todas as
+deliciosas.
+
+Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lançadeira, e a agulha, com o seu
+costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes, que vão
+formando semelhante á precedente a geração seguinte, só são passatempos
+do serão, á luz da candeia, das pinhas bravas, ou da fogueira, que
+allumia e alegra os penates afumados. Madrugam como a aurora para os
+trabalhos fortes. Os bois conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente
+jungir e guiar pelas suas mãos. Na vindima, carregam á cabeça cestos,
+que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as mãos alvas
+e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas ceifas, transportam á cabeça
+montanhas de espigas, tão leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan
+sob o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua
+grinalda de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em
+bemaventurança para dez familias. Nas renques dos saxadores e dos
+roçadores, vel-as-heis brandindo um alvião não mais leve, deixal-os
+muitas vezes para traz, e envergonhal-os com seu riso de triumpho.
+
+Não ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O exercicio, Anjo
+custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra ao mesmo tempo
+no sangue a saude, que do sangue se côa ao leite, e do leite aos filhos.
+Seriam as amasonas da paz, se não tivessem ambos os peitos muito bem
+inteiros, e se os homens seus eguaes as não acompanhassem em todas as
+lidas.
+
+ * * * * *
+
+Uma usança patriarchal, ou homérica, d'este paiz, que moralmente parece
+distar do nosso duas mil léguas, é a sujeição da mulher; facto que eu
+não moraliso, mas só historio.
+
+As mais graves, tanto como as mais somenos, não só á laia das Penélopes
+e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio
+até meia-perna; não só no tráfego de porta a dentro, na cosinha para a
+familia e para os animaes domesticos; mas não se correm nem desdenham de
+ministrar de pé, como servas, á meza de seus maridos e filhos, nem em
+dias de festa ou bodo, quando a assistencia de hospedes mais poderia
+assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as. São sempre aquillo: sempre
+passivas, boas, e contentes.
+
+
+XIII
+
+Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecerão já minuciosas e pueris
+estas noticias; mas hei-de já agora continual-as, e seja com vénia sua.
+A outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns
+annos, quando o nivel da civilisação tiver tambem renteado as asperezas
+das serras, alguem festejará encontrar estas antigualhas, nas folhas já
+por ventura rôtas e descosidas d'este livro.
+
+Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar já hoje ao commum da nossa
+gente; mas então hão-de ser antigualhas fosseis, e portanto com
+veneração duplicada venerandas.
+
+ * * * * *
+
+A indole da gente é de si commedida e pacifica.
+
+De todo o genero de vicios e desconcertos se poderão entre ella achar
+amostras, que emfim, terra é, e não paraiso; mas nem tantas
+proporcionalmente, nem tão feias e monstruosas em geral, como em outras
+partes, e em quasi todas.
+
+Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com
+todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico;
+ninguem é tão abastado, que possa eximir-se de trabalhar contínuo, para
+se despender em vida de enredos, corrupção e maleficios; nem tão
+extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o
+despeito, o despenhem de salto em salto até ao fundo da depravação. É o
+_inter utrumque_, a _aurea mediocritas_.
+
+Conservam inteira a Fé religiosa.
+
+Não lêem, nem conhecem, nem levariam á paciencia, jornaes que
+desorientam, desencantam, e põem o genero humano em guerra viva comsigo
+mesmo.
+
+E muito menos lêem, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura toda
+novella, toda sophismadora de tudo, toda florída e venenosa, que por cá
+nos trabalha, e de cujos herpes adoecem até as familias, que a maldizem,
+e a repulsam da sua porta.
+
+Por lá, não; o mal que se fizer, ha-de só provir da fragilidade, ou dos
+impulsos subitos da natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na
+consciencia remordimentos.
+
+Uma apologia, uma deificacão para cada crime, nem possivel a julgam;
+quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida como
+aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se
+conchava.
+
+D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais,
+resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e
+innocencia, quanta a que lhes nós levamos em polidez, em graças
+exteriores, em tactica, em egoismo infernal e assolador. Nos amores
+ponhâmos o exemplo:
+
+ * * * * *
+
+Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e persuade:
+tendem á união, de que se originam as familias, e por onde a especie se
+mantém.
+
+Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior
+arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e além do ocio lhes
+fallecem tambem sobejidões de cabedaes, que estimulam e irritam as
+phantasias, para o casamento se namoram, e não por alardo; para goso do
+coração, e não da vaidade. Põem no merecer as diligencias que outros
+põem no conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar
+no repellir e despresar depois de saciados.
+
+Não vivem os sexos n'uma guerra perpétua de seducções, de emboscadas,
+enganando-se e sacrificando-se um ao outro.
+
+A mulher não lavra registo dos seus adoradores; nem o homem se ufana em
+desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um theatro, ou
+no vão de uma janella de club, em noite de baile, um copioso canhenho,
+meio historico meio fabuloso, dos seus triumphos. Ali, ali é que as
+mulheres se podem gabar de ser amadas, pois o são sem disfarces nem
+encarecimentos; são-n-o pelas suas proprias graças, pois nem modistas,
+nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem mestres, nem
+lisonjeiros, nem romances, as transformaram. São-n-o pelo que são, e não
+pelo que possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.
+
+Palacios, creadagem, diamantes, não lhes vão lá supprir lindezas do
+corpo, graças do animo, ou preciosidades do coração.
+
+Não é entre prestigios deslumbradores, n'um ambiente de calor
+artificial, estimuladas ou vencidas do exemplo, da occasião, do medo ao
+ridiculo, e da audacia emprehendedora, não é ao abrigo do estrondo e
+confusão de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras
+declarações; é ao serão, com a sua roca na cinta, na presença de suas
+mães; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva com as parentas e
+amigas, em derredor da merenda, á sombra das carvalheiras.
+
+São amores que se não escondem, porque não teem de quê; amores que se
+exhalam debaixo do ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada
+capella do festejo, ao som folgasão da _Mirontella_ roncada pela gaita
+de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante do arraial.
+
+No progresso de taes inclinações é sabedora e consentidora toda a
+visinhanca; e esta mesma notoriedade defende os nossos namorados, tanto
+de se deixarem arrastar de seus mutuos desejos, como de se desvairarem e
+cahirem em infieis.
+
+Ao consorcio da Egreja, antecede o dos corações, não menos obrigado a
+lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de véstia commetteria galantear
+a conhecida por _emprêgo_ de outrem, certo em que nenhuns lucros lhe
+surtiria o empenho, senão só motejos e descredito.
+
+D'este modo se estende ás vezes por annos, com uma constancia
+verdadeiramente biblica, até ao dia da posse, o bem-querer d'estes
+Jacobs e d'estas Rachéis.
+
+¡Quantas Lisboetas de saráus, se quizerem ser sinceras, hão de confessar
+que a escolha que n'um baile fizeram... só durou até que veio o baile
+seguinte! ¡Quantas, quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que
+pelas duas orelhas que Deus lhes déra não ouviam dois ao mesmo tempo) se
+poderia contar, perguntando á sua modista franceza quantos vestidos
+novos lhes havia feito!
+
+Não assim lá. A que foi vista, na ceifa do anno passado, demorar-se mais
+a encher a malga para certo segador que para todos os outros, e
+pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a pôr á cabeça a gavella das
+espigas, essa continuará a fazer o mesmo na colheita d'este anno;
+continual-o-ha na dos futuros, até que, tornada sua mulher, os cuidados
+dos filhos e da casa a impidam de seguir, como antes, por passos
+contados, o seu gosto.
+
+Observação tão curiosa como verdadeira:
+
+Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a sós, que a
+variedade dos serviços rusticos tão a miudo lhes depara, rodeadas da
+Natureza por todas as partes, vendo livre o amor nas aves e nos
+rebanhos, favorecidas pela solidão selvática e pelo silencio, e pelas
+moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois crepusculos em cada dia, e
+em cada semana de inverno por tantas tempestades improvisas, como
+aquella que rendeu e debellou a vidual constancia de Dido e a piedade de
+Enêas, quando o hymeneu deu com o relampago o signal de suas bôdas, e as
+nymphas pelos altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de
+fragilidade como a de Dido por phenómeno se apontam; e annos e annos se
+devolvem, sem que um só se realise.
+
+Quando porém se dá, e vem a lume filho não de benção, o peccado de amor
+não se carrega de crueldade. O innocente não se faz victima expiatoria
+dos culpados, perdendo a vida entre as mãos de quem lh'a deu; horror
+nefandíssimo, inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro;
+nem tão pouco é enviado, como um roubo, pelas trevas da noite, á porta
+lá ao longe de um desconsolado asylo, aberto pela misericordia em
+lagrimas ás lagrimas dos filhinhos sem mãe, nascidos em signo de rigor
+para se crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes,
+e se finarem sem heranças, nem lamentos, nem memorias.
+
+Não, não. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo infanticidio moral,
+mereceria qualquer das minhas serranas um falso titulo, que ainda mais a
+faria corar, que a tácita confissão da sua culpa. Sabe renunciar os
+louvores com que d'antes a coroavam; ousa desherdar de antemão o seu
+cadaver do palmito, symbolo pósthumo do feminil triumpho; tudo ousa;
+tudo... como lhe fique para consolação da sua queda o encanto ineffavel
+de apertar nos braços o seu filho. Se o mundo todo, se o proprio amante,
+a desamparasse, tudo tudo esquecêra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se
+afortunada. De não ser donzella, nem esposa, harto a compensa a
+consciencia de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o
+sublime encargo, o natural sacerdocio da maternidade.
+
+Estas resignadas victimas, immoladas por um amor, por outro amor
+ressuscitadas mais interessantes, estas victimas, em quem a virtude,
+produzida pelo arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi
+em lustre a virgindade, são poucas; são rarissimas; custar-nos-hia a
+encontrar uma. Quando porém a desencantasseis, lembrando vos do que
+sabeis d'estas nossas grandes terras, fio-vos que bastante commiseração
+e respeito vos infundira.
+
+ * * * * *
+
+Casas de perdição para a mocidade, como nos povoados grandes se alinham
+em ruas e ruas, e até já por villas e aldeias vão surdindo, não se
+conhecem lá, nem se poderão tão cedo conhecer.
+
+Como leprosa seria evitada, e pereceria á mingua, e de vergonha, a que
+se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em que as
+sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso, são victimas
+das victimas que ellas sacrificam.
+
+Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se
+transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade dos
+casaes.
+
+
+XIV
+
+Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve
+de sepulcro, mas não lá; falemos do casamento.
+
+ * * * * *
+
+Os casamentos não são nunca determinados por considerações de haveres ou
+de jerarchia. O cálculo rala pouco os pensamentos d'estas gentes,
+acostumadas a viver com pouco, e a confiar muito na Providencia. As
+palavras _dote_ e _escrituras_ apenas seriam entendidas.
+
+Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e
+economia, a ajuntar para _uma cama de roupa_, uma teia de estôpa, outra
+de linho, uma peça de burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma
+panella e dois pratos, uma candeia de folha, um bácoro, seis alqueires
+de milho, e outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da
+fortuna, e trata logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.
+
+O noivo dá á sua futura um presente, o qual, pelo commum, consta de um
+anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro uma camisa para o dia
+grande.
+
+Mal que este desponta, vê já de pé os dois afortunados, garridos e
+bizarros com o seu _aceio_ dos domingos: ella, sobretudo, flammante como
+uma Imagem, com arrecadas, cordões, e alfinetes sobre lenço de seda,
+mantilha lustrosa, ou chapeo de feltro novo com enfeites.
+
+As que para tanto não teem guarda-roupa, teem amigas e visinhas, que de
+boa-mente lhes acodem, cada uma com o seu _melhorado_, convencidas como
+estão (especialmente as solteiras) de que alguma coisa da benção
+matrimonial poderá vir apegada aos diches e galas que figuraram no
+apertar das mãos.
+
+Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas avós, se preparam de vespera
+para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que sendo florído tem
+mais efficácia, e mettendo antes de adormecer debaixo do travesseiro
+(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem
+liados entre si, e recobertos com alguns arméos de linho e lan; no que,
+vai grande condão de conformidade de animos, perfeição de ajuntamento, e
+dura do bem-querer; com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados,
+não faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.
+
+O pretendente, com os seus apaniguados, espera já á porta da noiva a sua
+sahida. Esta apparece emfim, como uma aurora da serra, incendida de
+pejo, e orvalhada com as lagrimas da mãe; e segue com o rancho, a pé,
+caminho da egreja, levando ás costas as bençãos do pae, em que ainda por
+lá se crê, a turbação no seio, e nos ouvidos os votos e resas de bom
+agoiro, recitadas com fé por alguma velha mais sabida.
+
+......................................................................
+
+A egreja está já á sua espera aberta, juncada de espadana, com o altar
+enflorado de fresco, e a alampada atiçada.
+
+A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas
+cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a
+todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do
+sacramento, ou improvisa apóz ellas um affectuoso discurso sobre os
+deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo do templo
+não é interrompido com pregões de vendedores, rodar de seges, marchas de
+tropa, brados de mendigos, assobios de rapazes, martellar de artifices,
+zabumbas de arlequins.
+
+Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai
+profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e
+afugentar as evocadas memorias de Lia, de Rachel, e de Rebecca.
+
+O que unicamente chega lá de fóra, é o chilrar de algum passaro sobre
+alguma cerejeira do adro, o amoroso carpir de alguma rôla na matta de S.
+Sebastião, ou a voz de algum lavrador estimulando os bois perguiçosos no
+trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da
+Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da progénie de Adão.
+
+Não sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com mais clara e
+muito mais formosa benção.
+
+ * * * * *
+
+É um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a Deus não ser
+mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de dois nomes um só nome,
+como de duas metades distinctas se forma um todo inseparavel.
+
+É um dia, sem duvida, para quem bem o pondéra, solemnissimo, e que, por
+isso mesmo, se deveria por todos os modos pintar com indeléveis e suaves
+tintas na memoria, para que a sua imagem no meio das tentações podesse
+acudir como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.
+
+Quem se recordar de que proferiu o seu voto, e escutou com jubilo outro
+egual, onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas congéries de
+obras humanas encobriam as maravilhas da Mão Divina, onde com o sol
+entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e fragrancias
+naturaes com as virações, quem, repito, de tudo isto se recordar,
+ha-de-lhe parecer que Deus percebeu melhor as suas palavras; ha-de
+alguma vez devanear em si (mas que o não diga) que bem poderia ser que
+alguns Anjos estivessem ali, em tão donoso tabernáculo, a bafejar a
+prisão de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a mulher...
+
+ * * * * *
+
+Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos alvoroçados,
+e por entre os parabens e vivas dos assistentes, encontram, começando
+logo no adro, de praso a praso, por toda a extensão do caminho até á
+casa, arcos, engenhados á pressa, de loiro, ramos de pinheiro, oliveira,
+roble, canas verdes, e quantas hervas e plantas bravas menos espinhosas
+ou mais floridas brota o monte.
+
+Ao-pé de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua toalha, e
+ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa, estão, postos
+de antemão pelos muchachinhos que formam a primeira frente do préstito
+triumphal, um prato de bolos, e frutos verdes ou sêccos para quem os
+quizer tomar; outro vazio, para a gratificação voluntaria, que ninguem
+deixa de lhe lançar.
+
+Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa, e industria mais esmerada;
+foram esses prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de
+seus afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes
+naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos
+padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem
+concertadas que podem, um á moça, outro ao mancebo; os quaes, logo a
+diante, de ordinario entre si os trocam; e junto á salva dos ramalhetes
+se vê um abundante refresco de bebida e comida para todo o
+acompanhamento, sendo o acepipe obrigado ás filhós de mel.
+
+Em cada uma d'estas _estações_ chove de todas as partes a saraivada dos
+confeitos; bebe-se á saúde dos «bem empregados» e «de quem d'ahi a nove
+mezes ha-de vir.»
+
+ * * * * *
+
+O jantar d'este dia é copioso e demorado, com tantos convivas quantos
+admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as boas vontades
+prestes para quem se quizer apresentar.
+
+Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e
+o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse «o
+desposado» (contra a regra do nosso falar galanteador), porque o logar
+da direita se lhe dá a elle. A dignidade varonil em nenhum lance esquece
+entre aquellas gentes primitivas.
+
+N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e
+com um só talher, e bebiam pelo mesmo copo; o que, não obstante fazer
+durar a refeição dobrado tempo, não deixava de ter graça pelo seu
+bonissimo sentido, que não podia ser outro senão representar a
+communidade e harmonia intima, em que esperavam e professavam de viver.
+
+ * * * * *
+
+Á noite ha saráu rasgado, com concerto de violas, rabecas, e ferrinhos,
+dando se a rôdo comer e beber aos tangedores.
+
+Em quanto dançam, algumas moças donzellas se furtam subtilmente á
+companhia, para irem enfeitar de flores o leito nupcial, desfolhar entre
+os lençoes rosas de cheiro (se a estação as dá), e guarnecer a roca e
+fuzo symbolicos de amores perfeitos.
+
+Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita
+da quinta que é meia-noite, ha já muito que os obsequiadores bondosos
+teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas de calmaria de certo
+suavissimas, apóz um dia todo por fora e por dentro tão festejado e tão
+revôlto.....
+
+
+XV
+
+O nascer de cada filho é uma festa.
+
+Como teem robusta fé na Providencia, crêem (e mostra a experiencia que
+se não enganam), crêem e repetem, que filhos ainda em casa pobre são
+riqueza; que por taes penhores se obriga Deus, que é o Pae commum, a
+lhes acudir com mais larga mão; e que a meza, por ter mais Anjinhos ao
+pé de si, se não ha-de fazer mais escaça, se não medrar á proporção de
+tão bons hóspedes.
+
+E em verdade: se a descendencia nas cidades é tantas vezes um onus, um
+sorvedoiro, e um terror; se tão commummente se ouvem mães e paes
+deploral-a como castigo e praga; lá na serra, onde ha trabalho
+proporcionado a cada edade, lá na serra, onde, como em enxame bem
+regido, todos os consumidores são productores; lá, onde só são
+necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes são os mestres, o
+exemplo lição, a laboriosidade e sobriedade herança; ninguem se
+atormenta sorteando na phantasia empregos ou futuros novos para a sua
+progénie. Lá os filhos são rebentões, que alegram, remoçam, e espécarão
+a seu tempo a velhice decadente de quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.
+
+ * * * * *
+
+Vinda a lume a creanca, entre um côro de mulheres experimentadas em taes
+lances, que supprem a falta de parteiras e doutores, tem-se já prompta a
+canastra que lhe ha-de servir de berço.
+
+Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, é
+escrupulosamente velada, para que não venham bruxas malfazejas a
+chuchal-a. Para esse fim se mantém de sol a sol candeia bem experta; e
+ao clarão d'ella, com os olhos fitos no innocente, e quasi sempre em pé
+para que as não tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as
+amigas da casa.
+
+Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que vão entoando com
+a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do pé embalam brandamente
+o bercinho. Algumas folhas de oliveira ou palma, que figuraram no altar
+em Domingo de Ramos, queimadas n'esta occasião, diz-se que tambem provam
+muito bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e
+janellas.
+
+ * * * * *
+
+Não sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de romanas crenças a
+graça, a fragrancia poetica, o saudoso de innocente boa-fé, que lhes eu
+sinto.
+
+¡Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e tão
+christan como ella é, praticam o mesmo que os legionários romanos
+provavelmente ensinaram a nossas avós ha mil annos, e mais, pelo terem
+visto fazer nas aldeias da sua terra a suas mães e mulheres! ¡Cuidar que
+estamos vendo, com pequena degeneração, o que o mais rico poeta da
+Antiguidade se deliciou em cantar das crenças da sua gente! E se não,
+oiçâmol-o, e julgareis:
+
+
+ Negreja ao réz do Tibre annoso Helerno,
+santo bosque, onde levam sacrificios
+inda agora os Pontífices romanos.
+
+ Ali nasceu outr'ora, ali vivia
+a que nossos avós chamavam Grane,
+casta Nympha, de excelsos pretensores
+pedida vezes mil e em vão pedida.
+Era seu exercicio errar nos campos,
+as feras perseguir com dardo agudo,
+e as redes emboscar nos fundos valles.
+Inda que aljava ao lado não trouxesse,
+criam-n-a irman de Phebo; o parentesco
+não poderia, ó Phebo, envergonhar-te.
+
+ Quando algum namorado a requestava,
+tinha prompta a resposta.--«Aqui,--dizia--
+ha nímia luz, e a luz dobra a vergonha...
+Se preferes entrar n'aquella gruta,
+sigo-te.»--Á gruta o crédulo voava;
+ella torcia o passo, ia á carreira
+das moitas na espessura homisiar-se;
+d'ali desencantal-a era impossivel.
+
+ Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;
+combateu lhe o rigor com brandos rogos,
+e a sólita resposta obteve em prémio:
+que entrasse além na gruta. Obedeceu-lhe;
+segue-o a principio a Nympha... eis pára... eis foge.
+O que lhe fica apóz vê Jano. Ó louca,
+no usado esconderijo em vão confias;
+olha como t'o observa, e t'o devassa.
+Não ha que resistir-lhe... eis-te em seus braços;
+eil-o comtigo a sós na cava penha,
+onde havias buscado o teu refugio.
+
+ Saciados os sôffregos desejos,
+--«Em paga d'este goso--exclama o Nume--
+dos quícios a tutella eu te confio;
+pela honra perdida esta conserva.»
+Assim falando, candida varinha
+lhe entrega, com que os tétricos asares
+das protegidas portas afugente.
+
+ Existem de brutal voracidade
+umas infames aves; não já essas
+que de Phineu a meza espoliavam,
+mas da mesma relé: cabeça grande,
+fito olhar, bico audaz, grizalhas plumas,
+garra adunca; esvoaçam pela noite;
+onde encontram creança ao desamparo,
+que a ama deixou só, prestes a empólgam,
+arrancam-n-a do berço, e a dilaceram.
+Diz que as lactentes vísceras co'os róstros
+lhes picam, lhes devoram; teem as fauces
+sempre repletas de sorvido sangue.
+Do _estridor_ com que as trevas alvorótam,
+lhes vem o nome: _estriges_ se nomeiam.
+
+ Estas pois, quer de si nascessem aves,
+quer em aves, de velhas que antes foram,
+fatal conjuro marso as encantasse,
+penetraram de Proca no aposento.
+
+ Com cinco soes de edade, o innocentinho
+era ao bando ferino egregio pasto.
+Já co'as gulosas linguas ferem, sugam
+o tenro peito nu; sôam do infante
+os consternados trémulos vagidos,
+com que, á falta de voz, auxilio pede.
+
+ Corre a ama assustada; acha nas faces
+do caro alumno seu lavado em sangue
+das brutas garras os crueis vestigios.
+¿Que fará? vê-lhe o rosto exangue, murcho,
+que na côr arremeda as tardas folhas
+já do rígido inverno bafejadas.
+
+ Corre a Grane; o successo lhe relata.
+--«Cobra valor--a Nympha lhe responde;--
+viverá teu alumno.»
+ Entrada ao berço,
+acha a mãe, acha o pae, sôltos em pranto.
+
+ --«Eis-me; enxugae as lágrimas--exclama;--
+vou tornar-vol-o são.» Diz, e tres vezes
+de medronheiro com frondosa vara
+fere da estancia as portas; outras tantas
+co'a mesma vara o limiar sinála;
+rega o ádito; as aguas com que o rega
+encerram salutifera mistura.
+Entranhas cruas de bimestre porca
+toma nas mãos, e diz:
+ --«Aves da noite,
+í-vos, deixae as puerís entranhas.
+N'esta pequena victima tenrinha
+o tenro pequenino aqui resgato;
+é coração por coração; tomae-o;
+por visceras são visceras; redima
+esta existencia immunda outra mais nobre.»
+
+ Finda a sacra oblação, corta o deventre,
+e esmiunçado o vai pôr aos ares livres,
+prohibindo do rito ás testemunhas
+olhal-a então ninguem; por fim colloca
+a vara de oxiacanta, o don de Jano,
+na janellinha que dá luz ao quarto.
+
+ Consta que desde então não mais volveram
+ao berço aves ruins; saude, cores,
+tudo refloresceu no innocentinho.[3]
+
+
+ * * * * *
+
+O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois côvados de
+baêta encarnada ou verde, vinho, assucar, arroz, um cabrito, ou peixe,
+conforme o dia em que acerta. A madrinha dá um vestido, duas camisas, e
+uma touca. Cada um dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu
+brio.
+
+Este dia é quasi tão festivo como o do casamento, pois n'elle se cumpre
+a benção que no primeiro dia se recebêra, e está salvo o interessante
+pimpôlho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que as bruxas
+nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo do peccado.
+
+
+XVI
+
+Além d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e baptisado,
+cada povoação celébra a sua, pública, no dia do Orago da sua capella.
+Tem fogo do ar e salva de morteiros á Missa cantada; banqueteiam-se uns
+aos outros; e, se o anno correu próspero, e as posses o consentem, andam
+já desde a vespera á tarde pelo adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o
+tambor, e despovôa-se a visinhança com o chamariz do fogo de vistas
+nomeado de _armação_, ou _parreira_.
+
+Por esta occasião, nas casas principaes, isto é, nas menos apertadas,
+saltam-se até a meia-noite as danças, pela mór parte cantadas, do bom
+Portugal velho; danças, das quaes, para fóra d'aquelle vivente archivo
+de antiguidades, nem já, quasi, os nomes se conservam. São o _caracol_,
+o _Senhor da serra_, o _lundú_, ou _landum_, o _escalhabardo_, a
+_ribaldeira_, o _Francisco bandalho_, etc.
+
+A excitação do saltar, a virtude inspiradora do vinho verde, e um
+poucochinho o natural desejo de brilhar diante das raparigas e dos
+rapazes, fazem ás vezes com que ahi appareçam, como nas romarias, como
+nos serões dos lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de
+gosto, poetas e poetisas que trovam de repente, e á porfia, por espaço
+de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.
+
+ * * * * *
+
+Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.
+
+Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem, estão em pé,
+um diante do outro, no meio da roda dos ouvintes. A toada de que se
+ambos servem, é sempre das mais populares, e vai toda remançada, para
+que as ideias e rimas tenham lazer de acudir. Ás vezes, por desgarre ou
+desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de declamação
+accentuada.
+
+O seu verso é o de sete syllabas; o seu periodo, quatro versos,
+correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou consoantes; isto
+é: usam das quadras correntes em todo o Reino.
+
+Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme
+lhes convém.
+
+Principiam (é obrigado) por uma especie de elogio, ou vénia, ao dono da
+casa, se é em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se é em
+terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou dos seus proprios
+amores; e d'ahi, muitas vezes sem transição, saltam para um genero entre
+elles muito saboroso, que se poderá chamar o «rustico fescenino», se, de
+envôlta com as chufas salgadas, fossem tambem como entre os Antigos, os
+dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se empulham e desempulham,
+como os dois pastores virgilianos, com surriadas de impropérios sempre
+ao galarim, sem que o fogo das palavras prenda nunca nos corações. Com a
+mesma feição com que dizem, com a mesma ouvem; e tão avindos saem da
+contenda, como n'ella entraram.
+
+Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da
+sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por
+mostrarem assim que não vinham aparelhados para o duello, e que tudo
+quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.
+
+ * * * * *
+
+Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes
+porfias, e em geral a todo o cantar aldeão; e é: que a primeira metade
+de cada quadra tem frequentemente um sentido diverso, e desconnexo do
+sentido da segunda metade.
+
+Os primeiros dois versos conteem uma sentença geral, uma verdade vulgar,
+uma imagem campestre, a exposição succinta de qualquer facto, mas sem
+relação alguma com o assumpto que se versa, o qual só nos dois versos
+ultimos apparece.
+
+Vão exemplos, visto não estar em academia, mas em pratica de amigos com
+meus leitores:
+
+
+O loireiro bate bate,
+que eu bem o sinto bater.
+Para comigo cantares
+has-de tornar a nascer.
+
+Á couve se come a folha;
+come-se a raiz ao nabo.
+Só te espero ver casado
+sendo mulher o diabo.
+
+Navio d'el-Rei é grande,
+é grande e chega ao Brazil.
+Se namorares alguma,
+não seja á luz do candil.
+
+Sequidão cria o centeio,
+frescura cria os repolhos.
+¡Quem me estreára comtigo,
+menina, os lençoes de folhos!
+
+
+Já se vê, por estas amostras, que a improvisação não é tão difficil
+coisa, nem para tantos encarecimentos, como a teem feito alguns
+viajantes, d'estes que só viajam no seu quarto, embarcados na sua
+poltrona.
+
+É por cá o mesmo, que provavelmente será por toda a parte, sem exceptuar
+a Italia, com que tanta bulha se nos faz.
+
+
+_Al porto di Livorno
+è giunto un bastimento.
+Cara, morir mi sento!
+mi sento, o Dio, mancar!_
+
+
+
+XVII
+
+Muito, porém, se enganára, quem inferisse que toda a poesia dos meus
+serranos é de egual teor; porque, sobre conservarem muita xácara de bons
+tempos, com as suas lacrimosas cantilenas tão singelas, tão simplices e
+aprasiveis como ellas (o que já não seria pequeno cabedal), cantam, e ás
+vezes engenham com singular felicidade, quadras repassadas de amoroso
+affecto e graça natural, que um poeta de nome não enjeitaria.
+
+E ¿que muito? ¿Por que não haviam de nascer estros por ali, onde ha
+tanta Natureza, tantos sitios inspirativos, tão bons ocios na solidão,
+tantos amores (¡e amores tão bem empregados!), e tão largos horizontes
+para a saudade!
+
+¿Por que não haviam elles de nascer, quando até pelas nossas
+encruzilhadas mal cheirosas e escuras, pelos nossos botequins fumosos e
+azoinados, pelas casas d'essas ruas feias, onde olhos e ouvidos se
+perdem e afogam em prosidade vil, rebentam, viçam, e não raro florejam,
+talentos de estimação e de valia?
+
+Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades, muitas
+coisas lhes empecem (não falando no desamor que os esfria, e nas parvoas
+invejas que os matam); aos montanhezes, afóra a Natureza, que lhes
+abunda, tudo mais lhe mingúa. São poetas, sem adivinharem que ha poesia,
+como de Hesíodo se conta, a quem, sendo humilde pastor, appareceram as
+Musas, não invocadas, para o bemfadarem.
+
+ * * * * *
+
+¡Oh! ¡Que de Hesíodos se não esperdiçam, e, por falta de um prodigio que
+os desencante, fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!
+
+......................................................................
+
+De uma pobre mocinha ovelheira posso eu dizer; que por tardes de verão
+muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado nos degraus da
+capella de S. Sebastião; ella ali perto, cantando e fiando em pé á
+sombra de um sobreiro, no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como
+bem se pode crer, ¡enfeitiçados com a placidez de tão livres horas em
+logares tão fugidos, tão sobranceiros ao mundo todo!
+
+De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos
+corados, não da memoria se não do espirito; e o espirito d'ella,
+estava-se conhecendo que lhe residia no coração, tão bem, tão bem, tanto
+a seu grado, como em estufa bem quente uma planta mimosa, que um ameaço
+de frio mataria.
+
+Não sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca ouvira de obras
+de poesia senão as cantigas da sua terra, o murmurinho dos seus rios; de
+madrugada a cotovia perdida pelos altos do ceo; ao meio-dia as porfias
+das cigarras; ao descahir da tarde o badalar longinquo das Ave-Marias;
+ao cerrar da noite o regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus
+moradores, os seus rebanhos, os seus carros, as suas creanças, os seus
+rafeiros, toda a sua orchestra tão bem temperada para a alma; de noite
+os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do seu namorado.
+
+Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, não ha encarecer o que
+ella improvisava para as suas ovelhas, que a não entendiam; para mim,
+que me occultava com mil cuidados para não afugentar tão melodiosa ave;
+e para o ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se
+ao-pé da sua.
+
+Era a inspiração lyrica mais formosa, se não a mais remontada. Eram os
+objectos do seu limitado universo a mirarem-se na limpidez dos seus
+affectos, virginaes e namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras
+destillando-se cada uma da sua ideia com a propria côr, com a propria
+fragrancia que lhe competia. Era o metro a correr, sem quebra nem
+extravasamento, a flux, sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as
+rimas a vir poisar espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da
+outra, como em dois arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois
+passaros gorgeando. Era tudo, emfim, quanto a Arte requer, e só a
+Natureza pode dar aos seus mimosos
+
+......................................................................
+
+¡Pobre mocinha! ¡Dezasseis primaveras!... Até já as suas ovelhas se
+esqueceriam d'ella. Dissipou-se como um sonho de poesia. Não deixou mais
+vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus poemas.
+Se ainda canta... já não é a terra quem a ouve. Remontou o vôo muito
+mais alto que o da cotovia sua mestra; engolfou-se por entre as
+scismadoras estrellas, que tantas coisas em segredo lhe ensinavam; e
+virgem entre os Anjos, irman entre seus irmãos, entretece a sua voz
+immortal no cantico sem limite
+
+......................................................................
+
+
+XVIII
+
+Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem menção da sua Musica.
+
+É esta quasi toda antiga; antiquissima podéramos dizer de muita; e
+conserva puro e extréme o primitivo sabor. Condiz com a Linguagem, com o
+trajar, com os costumes; seria excellente oráculo para consultarem os
+modernos compositores de operas nacionaes. Assim se temperariam para os
+nossos ouvidos, os quaes, posto que affeitos de annos para cá a
+peregrinas melodias de muito mais altos quilates, ainda comtudo se
+ageitam e conchegam melhor com as toadas sentidas e singelas da nossa
+creação.
+
+Nas boas horas fique a musica italiana, pois que entrou, e nos cahiu, e
+o merece; mas, porque bizarros agazalhamos a digna hóspeda, não se diga
+que aposentámos nos sótãos a parenta velha, bondosa, e amiga, por trazer
+vasquinha e falar chão.
+
+Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; façam-n-o até (se já
+não pode ser por menos), façam-n-o a frouxo e a granel por essas
+comedias e farças, em que fala gente do nosso sangue e dos nossos nomes.
+Mas uma vez ou outra (_al de menos por cortezia_, como dizem os meus
+serranos), deixem-nos ouvir em boccas patricias coisa que nos alembre
+das cantilenas de nossas amas, cantilenas que, ainda depois de apagadas
+da memoria, lá se ficam algures no coração, com quanto basta de vida
+para ressurgirem ao primeiro aceno.
+
+Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e
+arbustos exóticos da mais admiravel louçania; mostre-nos lá,
+emboscadinho na herva, o malmequer da nossa primeira adolescencia, a
+papoila retinta, que nos ria d'entre o verde da seára, quando meninos; a
+papoila e o malmequer muito mais nos hão-de conversar com o coração um
+só minuto, que todas ess'outras flores mais soberbas em toda uma
+primavera.
+
+Se é vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que muita vez
+n'esses theatros, por ahi, me estão lembrando com saudades os descantes
+da serra.
+
+Uma ária opulenta, refeita de sciencia, espinhada de difficuldades, a
+dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe revolve aos pés, a
+sumir os seus píncaros florídos e trémulos pelas nuvens, admiro-a,
+applaudo-a, e esqueço-a. Abalou-me tudo, a fora o coração.
+
+Porém certas cantigas que eu sei... não as applaudi, não as admirei
+quando as ouvi, mas senti-as repassar-me até ás fibras intimas;
+assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em
+substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do
+silencio.
+
+Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares,
+da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter
+encontrado.
+
+E tambem, ¡que melodiosas, que engraçadas não são algumas, até para
+orelhas forasteiras, quanto mais para as do seu molde!
+
+ * * * * *
+
+¡Oh! ¡se a penna fôra varinha de condão! ¡Se, em vez de vos falar do que
+por vocábulos se não exprime, podesse apresentar-vos lá de subito, a
+beberdes com aquelles ares bonissimos aquellas cantorias agrestes, sem
+cultura, sem enxerto, luxuriantes de natureza, macias, avelludadas,
+rescendendo a amor e contentamento!
+
+Comigo ficáreis todos, que eram minas, as quaes, lavradas por mãos
+perítas, nos podiam abastar de muito oiro, que a Arte, batendo-o e
+cunhando-o a seu modo, poria em facil giro com geral proveito.
+
+O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas solidões,
+edificaria como Amphião novas Thebas, attrahindo e congregando com a sua
+lyra penedias e florestas.
+
+¿Mover-se-ha algum a tental-o? moverá a final. Mas por ora, o
+thermómetro do patriotismo assignala graus para baixo de zero.
+
+Para a Poesia nacional antiga e popular já alguns olhos se teem voltado;
+e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo, querendo Deus; ¿mas
+quando? sabe-o Elle.
+
+Dos que por ahi a professam, nenhum dá visos de querer levantar-se.
+Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que se admiram em
+alguns d'elles. ¡Oh que o fizera! e com bem pequeno custo, bem farta
+corôa grangeára.
+
+¿Que digo «custo»? ¿Onde ha ahi delicia como é o viajar caçador de
+Artes, por toda a parte bem vindo, banquetear-se á farta com
+agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto
+dos thesoiros que se tomam?
+
+ * * * * *
+
+Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus
+espaçosos ermos, e que lhe dava uma particular feição de melancolia mui
+suave, era a extensão das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes
+a perder de fôlego. É donosa coisa; mórmente pela noite, e ao longe...
+
+A explicação d'esta singular maneira deve ser, segundo me parece, o
+costume de cantarem muitas vezes a sós por lombas descampadas e cumes de
+oiteiros, d'onde a voz tem de correr, e correr, primeiro que tope com
+ouvido em que se hospéde. Outras vezes é ao-pé de estrépito de aguas,
+que a afogariam a lhe faltar perseverança. Outras, em paragens de eccos,
+nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si mesma namorando.
+
+ * * * * *
+
+De cabeço para cabeço, bem arredados um do outro por estirado valle,
+ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras conversando por cantoria; e,
+graças a este methodo de irem fiando cada syllaba... comprida...
+comprida... entendiam-se (podendo apenas enxergar-se), como se estiveram
+assentadas mão por mão, e muito manas, á soalheira no seu aido.
+
+Sustentam-se estas entoadas conversações, em prosa inteiramente desatada
+de rithmo, e não obstante rimada, rimada por um modo tão insólito como
+facil.
+
+Exemplo:
+
+¿Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:
+
+
+--Ó ia, eu te digo ó Maria,
+Ó iga, que se tu és minha amiga,
+Ó á, botes as cabras para cá,
+Ó enda para me ajudares a comer a merenda,
+Ó eijo, que tenho aqui brôa e queijo,
+Ó ôas, e umas maçans muito bôas.
+
+
+E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a outra
+interlocutora fica advertida, de que pode tomar a mão no colloquio por
+ter chegado a sua vez.
+
+
+XIX
+
+Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica.
+Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.
+
+ * * * * *
+
+As geraes mais notaveis (pois até agora só vimos as de cada familia e as
+de cada aldeia) são: o Anno-bom, o Carnaval, a Paschoa, Maio, S. João, e
+o Natal.
+
+ * * * * *
+
+O Anno-bom não é ao presente senão um rebate para comesaina rasgada, e
+se deitar uma can fora.
+
+As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado, já lá
+vão.
+
+Consistiam (archivemos, archivemos, pois que até as serras ao cabo se
+desmemoríam) consistiam em sahirem, logo ao romper do primeiro sol do
+anno os cachopinhos de cada povoação, todos em bando, o mais bem
+arreados que podiam, com suas sacólas, ou alcôfas, ás costas, a cantarem
+de porta em porta, e, percorrido o logar, de aldeia em aldeia, até se
+lhes acabar o dia, umas trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de
+campanudos louvores á bizarria do pae ou mãe de familias, e desfechando
+sempre em requerer alguma chouriça, gallinha, ou pão branco, para a
+ajuda do _refestêllo_; contribuição com força de Lei, mas de que todos
+se desempenhavam á boa-mente.
+
+ * * * * *
+
+O Carnaval, é como ainda nós por aqui o conhecemos nos seus dias aureos,
+tríduo de folia desatada, guerra porfiada e bem rida de todos contra
+cada um, e de cada um contra todos.
+
+São as pulhas, as peças, os esguichos, os pós, a laranja
+
+
+ .....que derruba o chapeo,
+
+
+de que o bom Filinto com tanta saudade se lembrava lá em París, o
+rabo-leva de tripas entufadas, a mão de ferrugem da chaminé com azeite
+pelos fucinhos, as estôpas apegadas ás costas e incendidas, o vinho com
+sal, as filhós com trapos, e todos os mais adminiculos, que no ritual
+classico se conteem.
+
+Por qualquer parte que então se caminhe, ainda que se não veja povoa nem
+viva alma, duas coisas se hão-de ouvir infallivelmente: uma é rir e
+apupar; toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra são
+descargas de espingardaria. Ninguem tem caçadeira velha em termos de dar
+fogo, que não saia com ella a salvar.
+
+N'esta occasião (não sei por quê) o rio de S. Mamede parece marcar
+fronteira entre duas nações inimigas; a metade cíterior, e a metade
+ulterior da freguesia, formam dois exercitos, que, disposto cada um na
+sua banda pelos altos mais patentes e convisinhos aos seus adversarios,
+para lá lhe atira por cima da torrente, sem folga nem misericordia,
+turbilhões de chascos, de apupos, de rugidos de buzinas, de buxas
+accezas, e fumarada. Estremece a terra sob os pés; retumbam pelo ouco
+dos valles, pelas refolhadas e sinuosas lapas das ribanceiras, os
+rolantes trovões centuplicados...
+
+O Entrudo ébrio, que vai, titubante cavalleiro em derreado asninho,
+visitando as povoações, com barbas brancas em faces avinhadas, e canna
+em punho para se abordoar, facil, prasenteiro, com séquito de rapazía a
+abuzinar, e de mascarados saltões, satyricos, e brutescos, bem poderá
+ser o próprio Sileno das bacchanaes, metamorphoseado pelo tempo,
+constante parodiador das suas mesmas obras, pois não é necessaria grande
+perspicácia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se conciliaram
+diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as saturnaes; por
+embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e quejandas (o numero era
+folgado).
+
+As pastoras, que não podem deixar por tres dias o gado nos redís e
+apriscos, para se estarem regalando ao banquete da familia, teem um
+Carnaval particular, um Carnaval nómada e silvestre, cosinhado e comido
+ao ar livre, e a que ellas chamam «o seu gôrdo».
+
+O _gôrdo_, para o qual de tempos se andam aparelhando, é feito por
+varias d'ellas em commum, convidadas e admittidas outras amigas, e
+algumas vezes tambem alguns moços seus parentes.
+
+Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um gôrdo; e ainda
+agora me está sabendo.
+
+Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso
+de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um vestíbulo de
+areia parda e fina, á borda da agua.
+
+
+ Nympharum domus.....
+
+
+não lhes faltando os competentes
+
+
+ .....vivo sedilia saxo.
+
+
+O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os
+comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria
+folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de leite
+recem-mugido.
+
+Terminaram com uma dança no areal, por não haver melhor, e debandaram,
+cada uma atraz do seu gado, quando já lá por cima branquejavam
+estrellas. A fogueira serviçal lá ficou sosinha, remirando-se ainda na
+corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as
+levaria.
+
+Innocentes leviandades são todas estas, e, mais ou menos, parecidas com
+o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas, travada com ellas,
+uma usança ha ali, que só ali ha, e que eu aponto, não só porque me
+ajuda no retrato d'aquella gente optima, se não porque dará luz para se
+entender o poema que a diante vai, com o titulo de _Domingo gordo dos
+montanhezes_.
+
+N'este dia, pois, logo de manhan, acodem á matta de S. Sebastião, que já
+sabeis orla o passal pela banda do poente, todos os moços solteiros da
+freguesia, a plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o
+quê, e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que já para isso a
+Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para suas
+terras a folgar.
+
+Nem o introductor, nem o tempo da introducção d'esta pratica, são já
+hoje conhecidos. É uma tradição piedosa, uma lei moral, sem nenhum
+genero de comminação, mas tão á risca obedecida, como se as tivera.
+
+É, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um bello exemplo
+de desinteresse; pois na plantação quem só ganha é a selva, que se
+dilata, e o Santo, a quem se engrossam os rendimentos.
+
+Se de S. Gonçalo ou Santo Antonio fôra a capellinha, ou de algum outro
+Bemaventurado, com fama de boa-mão para casamentos, ainda se aventaria
+um motivo pessoal para o obsequio; ¡mas S. Sebastião, que só da peste é
+advogado!...
+
+Seja o que fôr: o amavel instituto persevéra, ¡e oxalá dure sempre! ¡e
+oxalá por muitas partes o imitassem!
+
+ * * * * *
+
+Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de nós
+outros, bastam duas considerações: a d'elles é festa do espirito, e mais
+do corpo; a nossa nem do corpo o é, nem do espirito.
+
+Digo que é do espirito a sua, porque a Fé viva lhes faz estar vendo
+ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie humana; e do corpo
+tambem, porque o brodio paschal, opíparo, rescendente, de viandas
+succulentas e escolhidas, lhes dá mate á longa e bem jejuada quarentena.
+
+Move suavemente os corações acompanhar a procissão, que da egreja sai
+depois da Missa cantada, com os seus cirios accezos, cantando as
+aleluias, atravessa o amplo adro alcatifado de bordada relva, sombreado
+das suas cerejeiras já revestidas, atravessa o passal por entre as alas
+das pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebastião, e se espairece
+ao longe, como uma piedosa exultação, por entre os mattos
+rejuvenescentes.
+
+O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As
+arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado
+de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha pôz por fora todas suas
+galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a Natureza parece
+ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe entôam canticos, como
+os homens, as mulheres, e as creanças. A aleluia ressôa em toda a parte;
+lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os corações
+ferve o amor de Deus, o amor da Natureza, e o amor mutuo.
+
+¡Oh! ¡que bem que se chegam ali a entender os arroubados requebros do
+Esposo e da Esposa dos Cantares! ¡Oh! ¡que permutar de boas-festas! Mal
+o presumem, os que todas as cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um
+cartão alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.
+
+Recolhida a procissão, tornam-se todos correndo a suas casas, a acabar
+de as pôr prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se de
+ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores baixellas;
+crepíta o lume na cosinha revôlta; idéia-se um simulacro de altar, ou se
+enroupa uma cama de lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o
+senhor Prior, com a sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar
+(quando mais não seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da
+familia falta á porta para receber a aspersão de agua benta, que elle ao
+entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras rituaes da benção: «Paz
+a esta casa, e a todos que n'ella moram.»
+
+Tal visitação, que (já se vê) se não conclue no primeiro, nem muitas
+vezes, no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; não pela moeda de
+prata, de meio tostão ou seis vintens, recebida em cada fogo; não pelos
+saccos de folares que se ajuntam; mas pelo muito que assim de novo se
+apertam os vinculos mutuos do Pastor e do rebanho.
+
+ * * * * *
+
+No 1.^o de Maio põem, á entrada das habitações, _maias_, que são ramos
+de sabugueiro e giestas florídas; e nos linhares, rocas com seus fuzos,
+carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo se fadam a
+terra e a casa: a terra, para que dê linho comprido e sedoso; a casa,
+para que se guarde e mantenha próspera.
+
+¿Quem não vê n'estas maias outra degenerada herança dos nossos antigos
+senhoreadores? No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo
+domestico dos seus _Lares_, deuses protectores da poisada, e cujos
+idolos se tinham junto ao fogo da cosinha, ou em nichos por de traz da
+porta principal. Revestiam-n-os de pelle canina; e em monumentos antigos
+se vê ao pé d'estes deuses representado o animal symbolo da fidelidade,
+e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio nos seus
+_Fastos_ nol-o descreve. Brindavam-n-os com libações de bom comer e
+beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, já de flores, e já de lan.
+
+Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois acreditavam
+que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se compraziam de
+habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde vivia gente do
+seu sangue.
+
+Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do
+mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas.
+Vieram Lares _viaes_ (dos caminhos), _compitaes_ (das encruzilhadas),
+_urbanos_ (os padroeiros de cada cidade), _publicos_ (os mantenedores
+dos publicos edificios), _rusticos_ (os custodios do campo), _hostis_
+(os amparadores contra inimigos), _marinhos_ (os guardiães dos navios).
+
+É portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem Romanos, se
+haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de suas religiosas
+praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre estrangeiros; e bem
+boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle cahos de poeticissimos
+desatinos e devassidões. Fazia venerar e amar a casa; com a casa, a
+familia; com a familia, os sãos costumes da creação. Ainda por cima,
+fazia resplandecer luzeiros de esperança na cerração das adversidades; o
+que dá coração e brios para as resistir.
+
+Pressupponhâmos como verisimillimo, e certo, que na romana provincia
+Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que, aliás, podem ser
+documentos, além de outros, o nome de _lareira_, geralmente conservado
+ao lastro da chaminé, e o proprio de _lar_, com que em Traz-os-Montes se
+chama a corrente de ferro, de que pende na cosinha o caldeirão sobre a
+fogueira.
+
+Já cada um inferirá que as _maias_ dos meus serranos, festejo que só á
+casa se refere, coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como
+quer que seja, o seu linhar (linho por lan), teem, e não podem deixar de
+ter, aquella origem.
+
+Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito
+christão, ainda mais poetico, chamado das Rogações ou Ladainhas de Maio.
+
+Os lavradores seguem, com as cabeças descobertas, e acompanhando em
+chusma as entoadas preces da Egreja, a procissão, que lá se vai,
+humilde, atravez dos campos desatados em flor. Imploram as bençãos do
+Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos não devorem
+a vinha ou seára; que intempéries do ar e trovejados granizos não
+derribem mortas as benevolas esperanças dos pomares.
+
+ * * * * *
+
+O S. João por larga vespera de semanas se annuncia: cantado de dia pelos
+oiteiros, de noite pelos serões.
+
+Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que
+se vão lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora, não sem graça),
+que por ali em louvor do Baptista se exhalaram outr'ora do seio de
+poetas desconhecidos.
+
+A medo me rendo á tentação urgente de as mostrar; que, despojadas da sua
+melodia, desquitadas das vozes tão frescas e juvenís das suas cantoras,
+e nuas dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e
+sombras em pino de verão, trovas taes aqui mal poderão parecer-se
+comsigo mesmas.
+
+Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto não haja differença na
+substancia, vai tanto, como de uma formosa donzella podéra differir o
+seu cadaver.
+
+Sem mais precauções, eis aqui alguns trechos, que no fundo da alma se me
+estão ainda cantando, por entre simulacros de figueiras, que entretecem
+sobreceo verde á fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros,
+não as contem; basta que todos elles acertem na cantoria ás mil
+maravilhas. Tão pouco embiquem na confiança, com que umas rusticasinhas
+de roca á cinta tratam o Santo Precursor. São amores velhos; não ha que
+lhes dizer.
+
+
+--¿San-João das barbas doiradas,
+onde foste ter as orvalhadas?
+--Fui as ter áquellas hortas,
+recordar aquellas cachopas.
+
+Recordae, recordae, perguiçosas,
+que da fonte já veem as formosas,
+com as talhas cheias de cravos,
+que lh'os deram os seus namorados,
+com as talhas cheias de flores,
+que lh'as deram os seus amores.
+
+San-João, rico cavalleiro,
+companheiro de Nosso Senhor,
+acompanhae a minha alma
+quando d'este mundo fôr.
+
+--¿Por que tendes, San-João,
+esses sapatinhos brancos?
+--Para passear ás moças
+domingos e dias santos.
+
+--¿D'onde vindes, San-João,
+que assim cheirais á macella?
+--Venho da serra da Estrella,
+de fazer uma capella.
+
+--¿D'onde vindes, San-João,
+pela calma sem chapeo?
+--Venho beber agua fresca,
+que faz calor lá no ceo.
+...................................
+
+
+Basta, basta, que já pressinto ali á esquina os aferidores e malsins da
+Literatura, que, se me tomam, com isto nas mãos, dão comigo do avêsso.
+
+Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes. Á
+noite accendem fogueiras, dançam, cantam, namoram, e galhofeiam em de
+redor d'ellas.
+
+Á meia noite, quebram ovos para os expôrem ao sereno, que lhes ha-de
+n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu futuro, e chamuscam as
+hervas e flores, que sabem de constancias e inconstancias.
+
+Vão nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes virtudes e
+preservativos; mas especialmente o de S. João do Monte, á conta do seu
+nome bento.
+
+Sobre a madrugada vão lavar seus gados, e á volta colhem ramos
+orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram de raio;
+trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os partos,
+apertando-se nas mãos.
+
+A agua da fonte da manhan de S. João é como a primeira que chove em
+Maio: torna o carão formoso.
+
+ * * * * *
+
+Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo
+descoberto, não correndo o tempo de invernia. São rebordans a granel,
+entre grande larada de brazido, a estoirarem e a acerejar-se, em quanto
+um farto lombo de cevado rechína e fumega em vergante espeto de pau, a
+pingar n'uma telha ou frigideira.
+
+É dia já de longe apetecido pelos velhos, pelos rapazitos, e pelos
+visinhos menos folgados, que todos então se convidam.
+
+Bebe-se, como requer a quadra, que assaz é já então arripiada. Mas...
+quanto mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e
+para a noite, mais se vão pendendo com scismadora tristeza os animos dos
+convivas.
+
+Á fé que lhes não falta por quê. O dia que apóz vem, é o dos finados;
+dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos, para todos
+quantos, com Fé ou sem ella, possuem um entendimento, e meditam.
+
+¡E que mais meditabundo que as montanhas! ¡E quem mais devaneador e
+recolhido, que homens acostumados a solidão, curtidos nas duras
+realidades da vida, remotos do cortesão bulicio, embotador pessimo de
+toda a sensibilidade!
+
+ * * * * *
+
+Mal soaram as Ave-Marias, começa dobre funebre, que toda a noite não
+quieta.
+
+Pela escuridão pasmada se devolvem, a longe, a longe, até se esvaecerem,
+os tons afflictos, que a nenhuma de tantas poisadas deixam de dizer
+algum segredo de dor, e de encommendar algum suffragio. ¡Oh! ¡se não se
+elevarão elles, e bem ferventes, exhalados pela voz do sangue, pelo
+amor, pela amisade, pela caridade!
+
+Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz
+bruxuleia de nenhuma fresta, e já nenhuns olhos por ventura se
+descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis côro de
+Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta, pelo meio da
+povoação, a supplicar em nome dos penados de alem mundo, que para si não
+podem requerer, esmola de orações, refrigerio para os ardores que lá
+padecem.
+
+Não ha seio tão escudado, que um santo horror o não estremeça; egoismo
+tão empedrenido, que sustenha as lagrimas.
+
+...Até que o solemne pregão transpõe e se esvai; e na calada se torna a
+perceber o dobre longinquo da egreja.
+
+Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o
+interior.
+
+Estes devotos cantores, que ninguem vê, mas que vão de aldeia em aldeia
+_amentando_ as almas, arrastavam d'antes grilhões aos pés, o que ainda
+augmentava o pavor do seu pregão.
+
+Com grilhões ou sem elles, ¿despertadores taes quem entre nós os
+soffreria? Por lá querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se,
+como exactores que são de um tributo da outra vida.
+
+Desde o romper d'alva não descança a egreja de absorver povo. Todos os
+caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques, todas as ladeiras, todos
+os valles, todos os oiteiros, o brotam e expedem á porfia.
+
+Vem o ancião alquebrado, atido ao bordão; o moço em flor de annos; a
+donzella; os irmãos, pequeninos e já orphãos, pela mão de sua mãe; todos
+graves, cuidosos, taciturnos; todos lá por dentro orando; todos
+anhelando irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali
+assistirem ao incruento Sacrificio.
+
+Todos os confessionarios n'este dia estão apinhados, e o semi-festim da
+vespera é quasi geralmente descontado pelo jejum mais rigoroso.
+
+ * * * * *
+
+Emfim vem o Natal.
+
+Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas
+christianissima (quizera eu dizer) do Christianismo, nenhures cabe tão
+em cheio, nem tanto com os animos e corações se coaduna, de veras crida
+e com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.
+
+Víreis o Presépio de Belem, não já por caprichosas artes remedado, mas
+em tão cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a
+adoral o.
+
+Disséreis que ao soar da ave da meia-noite, desferiu vôo d'entre as
+estrellas, de que se corôa a montanha, côro de Anjos a dar rebate aos
+pegureiros com o pregão de «Gloria e Paz», com a nova de ser nascido o
+Desejado das gentes.
+
+¡Tanto é o ruido de alegres passos e falas, que de toda a parte confluem
+pelo escuro em demanda do Menino!
+
+Cada qual lhe traz nas mãos o seu presente, e o mais valioso dentro
+n'alma.
+
+O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par aberto,
+é a santa Gruta.
+
+Lá no tôpo, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o Divino Infante.
+
+O adro vê dançar as rondas de camponezes á roda de um monte de arvores
+accezas, ao som da gaita e do tamboril.
+
+Os sinos doidejam de alvoroço na torre illuminada.
+
+Sob o tecto religioso se alternam em dois córos feminis as cantigas da
+benta noite. Cada um d'estes córos é exclusivamente composto das
+moradoras de cada margem do rio que biparte a freguesia. Vai entre ellas
+a mesma rivalidade, que já descobrimos entre os homens, quando no
+Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um estrepitoso
+arremêdo de combate.
+
+É a qual dos bandos trará mais formosas quadras para entretecer com as
+antigas, mais argentinas falas e melhores requebros para as gargantear.
+Cuida-se ouvir musica de Seraphins; exulta o coração; e, sem vergonha,
+se estão sentindo as faces humedecer-se.
+
+Por meio d'estes córos, cujos enthusiasmos devotos como que se estão
+vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em braços do Parocho o Menino,
+a fazer colheita de beijos e louvores, de supplicas e offertas. Então é
+que surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e á
+porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de ordinario, a todos,
+os mui primorosos artefactos de pinhões e frutos sêccos.
+
+¡Oh! ¡que invejas para as creanças, que ali pendem ao collo de suas
+mães! vão-se-lhes os olhos, e os sorrisos, e as mãosinhas, apóz lindezas
+tão guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se destinam, com os seus
+olhos tão azues, a bocca tão amorosa, as faces tão coradas como as
+maçans que se lhe offerecem, é já a Elle que só cubiçam; e só choram,
+porque o não deixam acompanhal-o.
+
+ * * * * *
+
+Taes são as mais notaveis festas d'esta singela gente.
+
+¿Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem a
+destruir-lh'as com lhe tirarem a Fé?
+
+É uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na resposta.
+
+ * * * * *
+
+Assim crêem, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza, nobres de
+humildade, e pela rudez ainda sãos, os moradores de S. Mamede da
+Castanheira do Vouga.
+
+
+XX
+
+Que eu por lá versejasse, já a ninguem ficará sendo maravilha; antes,
+sim, a podéra ser, que de tal assumpto só tal volume se estillasse; mas
+as rasões d'isso de si mesmas se confessam.
+
+Já eu disse, que os annos que por lá sumi, me foram totalmente
+desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri possivel, que houvessemos
+jámais, eu nem coisa minha, de reparecer no mundo.
+
+Assim, só por desabhorrimento é que poetava de longe em longe; isto é:
+poetava por fóra, e no papel, que no coração e no animo estava eu comigo
+a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de leve me acreditarão os
+que d'isto sabem) não foi a que se escreveu, se não a que deslizou
+suave, entre sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta,
+suspira e medita.
+
+Escrever só para si, não sei que ninguem escreva; é trabalho supérfluo,
+e que, se dá fruto, o dá ruim, que de pêco e descorado nos desconsola.
+
+¿Pois qual é, em boa verdade, o pensamento, ou affecto, que no trabalho
+de se corporificar para sahir a lume e correr por mãos e olhos, não
+perde muito do seu primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua graça, ou
+do seu calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja
+que era seu, e que era elle mesmo em grande parte?
+
+Isto dos livros não são senão uns retratos mortos, umas toadas,
+reflexos, e sombras, de festas que se fazem n'um interior, e de que os
+passageiros, por mais que se lhes abram as janellas, e que elles
+appliquem os olhos e ouvidos, só podem perceber a totalidade, e
+conjecturar as circumstancias.
+
+O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros
+de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda
+para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder,
+ás concepções e aos affectos.
+
+ * * * * *
+
+Outra explicação da exiguidade, e tenuidade (que peor é) do livrinho,
+está em que a maior e melhor parte dos condões e feitiços da montanha,
+que ora cá ao longe me apparecem tão inteiros e gentis, então que eu os
+tratava e d'elles vivia colmado, me não faziam os effeitos, que atravéz
+dos vidros da saudade me produzem.
+
+Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mistér havel-o perdido; que já
+por isso dizia Rousseau, que nunca tão bem falaria da liberdade, como
+entre ferros da Bastilha.
+
+¿Onde é que nos ri a imagem da primavera a abrolhar? é no meio do outono
+a desvestir-se. ¿A do verão, que tressúa afogueado? no inverno, que
+tirita e se encanece de geada.
+
+¿A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros, não é paraiso, para
+onde todos, todos, nos quizéramos tornar?
+
+¡Que bem que o Poeta cantava: «Aventurados em summo extremo os
+camponezes, se acabassem de entender os bens que logram!»
+
+Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar, é
+este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a instante m'o
+explica.
+
+Á saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e collo
+descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando
+importunas obrigações me veem ripar e consumir as semanas a dia e dia,
+os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto.
+
+Pela conversação pacifica das moitas e torrentes me definho, quando, no
+mais fortuito, no mais leve, tratar com homens me aguardam sempre
+desencantamentos, desconsolos, rasões para os desprezar, ou para
+fugil-os.
+
+Lá, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor. Aqui, pelo
+contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.
+
+Lá, a benevolencia é semente de benevolencia, para dar cento por um.
+Aqui, é grão que sempre degenéra, ou não germina, ou brota villans
+ingratidões, que envergonham até a quem as ouve.
+
+Lá, o folgar é franco, e as festas são festas. Aqui, o folgar é escaço e
+fingido; as festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de
+gladiadores, que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns
+aos outros, e aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.
+
+O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavoneará pelo mais
+cortesão e de maior donaire; far-lhe-hão roda; e em vez de o
+esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como o Iscariotes por sua
+mão, para escarmento a sevandijas e lição a paes que estão creando feras
+bravas para andarem sôltas no povoado, hão-de applaudil-o por medo,
+apertar lhe a mão dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas,
+com sabel-o expulso de muitas portas.
+
+Acobertam-se lá e ufanam-se as terras com os linhares, para o que Deus
+os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia, para macío
+agazalho nas horas do somno ou da doença, para gala candida dos altares,
+e a final para curativo de feridas.
+
+Ora, ¿que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao alvorecer de Maio, a
+sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do seu linho, a cabo de
+tão bons serviços, poderia vir ainda a converter-se em papel para a
+nossa Imprensa, isto é, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e
+absurdo, a ignorancia ou maldade podérem delirar, em ventilador de
+descredito e odios, em disseminador de todos os principios de
+dissolução, já moral, e já politica?! ¡Pôr-lhe ella a sua roca para
+benção! ella, a boa filha das serras, fêmea sincera e verdadeira,
+coração lavado, animo propenso em tudo para o bem! ¡Pôr-lhe ella
+encamisada e florída a sua roca, a sua casta e alegre companheira, a que
+tão santas maximas e tão formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar
+á sementeira o fogo, ou amaldiçoal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que
+vale o mesmo.
+
+
+XXI
+
+¡Que de vantagens para o ermo não são todas estas!
+
+E no gosal-as, ¡que assumpto inexhaurivel para um engenho bem nascido!
+
+Sim; mas, torno a dizel-o, é em distancia de espaço e tempo, e pela
+contraposição, que se conhecem. ¡E eu malbaratei quasi tudo isso!...
+
+
+ ........ munera nondum
+ Intellecta deum!....
+
+
+Havia de ser agora, depois de tão prolixo, de tão quebrantador martyrio
+da experiencia,
+
+
+ ..... Oh ubi campi!
+
+
+¡Como me não agarrára, com raizes mais fundas e tenazes que o meu cedro,
+ao chão da vida facil, innocente, e obscura! ¡Como não borbotára em
+hymnos o meu jubilo! ¡Como não saudára com lagrimas de gratidão a
+aurora, tornando a encontral-a! ¡Que não palrára com as torrentes! ¡Que
+noites desveladas sob o pavilhão estrellado e vastissimo da montanha!
+
+Em vez de rebuscar (como agora me foi forçado) para esboçar este painel
+noticias de logares, e até de usos, tudo eu mesmo visitára com devoção
+de peregrino; tudo revolvêra; com tudo me identificára.
+
+As saudades, que de lá para aqui me estão salteando, d'aqui para lá já
+não atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira
+sarça onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me perdessem
+logo.
+
+ * * * * *
+
+--O abdicar--dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro e
+hortelão de Salona--o abdicar é o começo do viver.
+
+¡Quantos dos que desaprenderam no regaço espinhoso da fortuna o rir, o
+dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na primeira hora que
+empunhassem, com animo feito, uma rabiça ou um foicinho!
+
+¡Se não ha-de ser inefavel o abdicar muito, e até imperios romanos, como
+elle, quando renunciar o pouco, o quasi nada, que se tem de cidade....
+só de o cuidar, tanto namora a phantasia!
+
+¡Se jamais virá tempo de eu poisar em torrão meu, debaixo de sombras
+minhas, a cabeça encanecida e regalada!
+
+Uma barraca de poucas braças, mas revestida de rosas e limas, como o
+presbyterio. Á roda d'ella, tanto de fazenda, quanto o filhinho mais
+pequeno atravessasse correndo de um fôlego. Mas isto em solidão bem
+solidão, onde só os astros me enxergassem, só as estações me visitassem,
+e da banda do mundo nada me chegasse, senão o vento, já expurgado e
+esquecido de humanas vozes.
+
+Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio e
+reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.
+
+Ahi me reverdecêram o coração e mais o espirito, que me elles por cá
+trazem tão lastimosamente desfloridos e murchos.
+
+Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol remoçador de quanto
+existe.
+
+A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa eólia entre
+jasmineiros, pendente em hombral de gruta ás virações da primavera.
+
+Ainda á farta me vingára dos tantos annos, que em tarefas ephémeras e
+sem gloria, posto que não sem consciencia e diligencia, se me
+desbarataram na galé da Imprensa periodica, ou (com mais propriedade)
+nas palhas d'essa doidinha, que a si mesma se venéra por soberana do
+Universo; doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.
+
+Só me não rira d'ella, quando me lembrasse que me enguliu, com os annos
+que me tomou, outros tantos da minha existencia para diante; pois em
+cada tomo de periodico, sincera e honradamente redigido, se podia
+escrever este epitaphio: _Aqui jaz um anno de fadiga e dois de vida
+de.... Orae por elle_.[4] Vendem-se ainda primogenituras por menos que
+prato de lentilhas.
+
+Vingára-me (¡oh! ¡se me vingára!) de tão bons dias mallogrados; e ainda
+por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes,
+appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os
+seus do desterro, aviaría eu os meus do meu eden.
+
+
+ Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in Urbem.
+
+
+ * * * * *
+
+--¿A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus gostos e
+desejos?--dirá (e ha-de dizer) algum d'estes que sabemos, que nunca
+faltam, escoimadores _ex-officio_ do alheio.
+
+--Senhor meu,--lhe respondo eu já:--pois é por isso mesmo, de não
+passarem de fabula os meus gostos e desejos, que se me ha-de relevar o
+dar-lhes eu largas no papel.
+
+Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal, coroados
+de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar do Empyrio
+a sua Jerusalem abraçada de muros de oiro, o tempo que n'estas palavras
+gasto aproveitara-o melhor, em correr para o meu refugio, beijal-o,
+replantal-o, aformosental-o. E em lá vindo o florído Maio, ride-vos de
+pagão que brindasse os seus lares com mais fé ou egual amor.
+
+ * * * * *
+
+¡A liberdade!... ¿Onde ha hi liberdade, que nem por longe se pareça com
+a de um viver remançado, em casa sem numero, nem espias, ao som da
+Natureza, á lei da propria inclinação; sem ouvir horas que nos chamem,
+sem encontrar com glosadores que nos aboquem no ar acções e palavras,
+para nol-as tingirem de branco em preto; nem cahir nas garras de
+ociosos, que vos emprazarão para toda uma tarde de Junho, ou toda uma
+noite de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que são
+a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de abhorrimento;
+seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de quem vos não
+vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido, refulgente epigramma de
+esmalte contra meritos e virtudes; e de noite, interrompido na
+meditação, ou cortado no melhor do somno, pelo retroar de carroagens,
+que em fluxo e refluxo continuo levam e trazem, sempre a correrem para
+nada, pygmeus, histriões, da farça séria d'este mundo?
+
+Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura,
+ennobrece, e concilía os homens, na montanha encontrareis mais depressa
+coisa a ella parecida, do que não por estas almotaçadas metrópoles, onde
+se blasona que ella tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre
+são festas acompanhadas de vinte orgãos, a entoarem solfas diversas ao
+mesmo tempo: este, o _Te Deum_; aquelle, o _De profundis_; um, o
+_Quomodo cecidit civitas plena populo_; outro, o _Cantemus Domino_;
+qual, o _Miseremini mei_; qual, o _Ecce sacerdos magnus_.
+
+Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade,
+derrubaram-n-a do seu pedestal as aguas do diluvio de Noé, quando
+arrojavam cada coisa para seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o
+pedestal razo, com o formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha
+de ser ermo pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira.
+Aqui, pregôam-n-a; lá a disfrutam. Assim vai tudo.
+
+ * * * * *
+
+E quando não, mettei bem por dentro a mão na consciencia; e, deixado o
+palavrório que não sôa muito senão por ser vazio (como tambor de
+foliões), dizei-me, ou dizei-o a vós mesmos: ¿Quem mais livre, que homem
+que desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado,
+e não porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem alvoroto de
+praças, e reboliço de vizinhos, pois diante de suas janellas o que só se
+meneia e conversa são arvores, e por cima do seu tecto não moram senão
+hervas, que mal ciciam, e só recebem de visitas passarinhos ou
+borboletas?
+
+¿Quem mais livre?
+
+Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu,
+sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o
+cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos
+convites. ¿Quem mais livre?
+
+Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as
+occupações de todo o dia. ¿Quem mais livre?
+
+Entre o trabalhar, que lhe grangeia forças, saude, bons somnos, pão, e
+para conduto um apetite desenganado, entre o trabalhar, repito, canta,
+ou traz o espirito a monte, a sabor de suas chyméras (que tambem as tem
+como qualquer outro); e é este o mais invejavel privilegio do trabalho
+corporal, sobre tudo do que tem por materia prima a terra: não captivar
+senão os braços; cavando, podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da
+obra, estar armando doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir
+com os companheiros, ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a
+alegria que se esconde.
+
+Este _deus in nobis_, unica das divindades campestres em que se pode
+crer, perguntae se não será para muitas invejas aos taciturnos enxames
+que pejam escritórios e secretarías; perguntae-o a quasi todos os que
+remam á consciencia o seu remo na galé baloiçosa do Estado. ¿Quem mais
+livre?
+
+Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o
+meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pescoço, para folgar
+entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de coser ao lume
+que o aquece. Não tem de ir fazer sala a ninguem; respira a peito cheio;
+não ha que ciar se de mulher e filhas, que não dá a terra operas nem
+bailes; filhas e mulher á roda lhe serôam, tão satisfeitas como elle.
+Não se levanta ali jogo, que, por tentação ou falso pondonor, o obrigue
+a pôr n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida. Não o compellem a
+ajudar com desatinos seus os alvitristas regedores do mundo em sêcco;
+nem mesmo a ouvir ler, n'uma coisa mal-cheirosa chamada periodico
+(especie de cogumellos da Imprensa, em que entre os não maléficos tantos
+ha de sapo), o artigo famoso, no qual, sem quê nem para quê, lhe
+levantam falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do
+chylo. Quem não tem com que incite invejas, seguro está de vis
+praguentos. ¿Quem, finalmente, mais livre?
+
+Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas
+destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre não creal-os o sitio,
+nada reluz na poisada que os attráia.
+
+Entretanto lhe vão caladamente amadurecendo os pães para a tulha, o
+vinho para a adega, o azeite e os frutos para a dispensa, a hortaliça
+para a panellinha de barro, as filhas para o casamento, os rapazes para
+lhe pagarem na velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o
+Ceo, onde crêem de fé que os estão seus parentes esperando.
+
+¿Então, será, ou não será, este um viver dez vezes mais livre e
+afortunado que o nosso? Pois não disse eu d'elle tudo que poderia, nem o
+direi, ainda que já talvez me hajam de arguir de prolixo, que não deixei
+na matéria udo nem miudo; ¡como se miudos houvera no que são condições
+de boa ventura!
+
+Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu
+proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao coração de
+alguns d'estes, que vivem na Côrte por fadario, por vezo, ou por
+inercia, sempre mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou
+podendo, se uma hora olhassem por si, adquirir, sem nenhuma
+difficuldade, o que eu, e outros taes, tão baldadamente supplicamos á
+fortuna: uma vivenda campestre, uma existencia natural, serena, commoda,
+florescente, risonha para a pessoa, dadivosa e exemplar para os
+visinhos, manancial de riqueza privada e publica, abonadora de bons
+costumes, e de afortunada descendencia; uma existencia, em summa, que, a
+de mais de retemperar corpo, animo, e coração, para se n'ella
+saborearem, até aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto,
+quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.
+
+ * * * * *
+
+Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o
+medicinalissimo _Livro da Solidão_ do Doutor Zimmermann. Aprenderiam a
+perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a embellezarem-se n'ella, a serem e
+a fazerem venturosos, quanto é dado havel-os n'este mundo tão instavel,
+tão fugidio, tão calabreado de bens e males.
+
+O homem na sociedade é um instrumento, que se gasta e quebra servindo;
+na solidão é um homem. Na sociedade, é uma partícula irresistivelmente
+arrebatada n'um redemoinho; na solidão um todo quieto.
+
+Puericia, edade de oiro da vida, não torna jamais por onde uma vez
+passou; mas na solidão se esconde ainda uma sombra d'ella; porque o
+homem, redimido dos cepos do mundo, e fôrro das humanas tirannias, se
+faz em algum modo semelhante á creança; readquire o que quer que seja da
+sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus gostos, dos seus brincos.
+
+¿Quem se lembraria de pôr um barco de cortiça (ainda que de seu natural
+tivesse o ousal-o) n'um tanque do Passeio publico, cercado dos fumantes
+do Marrare, e dos collaboradores dos periodicos? ¿quem o ousaria, mas
+que fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa, até só
+para si, faz d'isso; e mais se encanta em o fazer, que um ricaço em
+torrear palacios.
+
+Em quanto dá tempo aos passaros para irem picar no cêvo das armadilhas
+que lhes andou dispondo, edifica á borda de um arroio uma azenha de dois
+palmos, com seu rodizio de canna a espadanar. Só no vêl-o voltear,
+respingando aljôfares pelos ares, tem entretenimento para horas.
+
+Alevanta ao pé uns paços nobres, que se encheriam com a familia de um
+coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva, como Werther e Hugo
+se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e reinos de animálculos, em
+que só o mancebinho muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam
+enlevar.
+
+¡A solidão! ¡a solidão!... provae-a, sequer, affligidos do mundo, e
+pregoareis d'ella o que eu me não affoito a encarecer-vos.
+
+ * * * * *
+
+Um só achaque hei-de eu impôr á boa da solidão, á gentil namorada de
+Rousseau, de Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos; e vem a ser:
+que, pois nos descalleja o coração, banhado nas suavidades da mãe
+Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos detrai,
+assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas, quando não as
+podemos extirpar. No ermo ressôam mais alto os gemidos, como na calada
+da noite se dão a ouvir mais claras as vozes.
+
+Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita colheita,
+o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos enfermos,
+quizera-se ter mãos de Midas para acudir a tudo aquillo; e o coração,
+que não tem para dar senão suspiros, no fundo do peito se confrange
+todo, e se espedaça.
+
+¡Cada uma d'aquellas curas dependeria de tão pouco! ¡sería tão
+festejada! ¡tantos effeitos afortunados produziria! ¡deixaria, por corôa
+de beneficios, tão sinceros, tão duradoiros agradecimentos!
+
+ * * * * *
+
+Numerosas, numerosissimas, são as coisas das cidades, que d'aquellas
+alturas se não percebem; mas a que menos de todas se percebêra é o
+coração metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos,
+os seus ouvidos que só vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
+terrestre, e ferrolham-n-a a sete chaves. Podiam ser adorados como
+deuses propicios, conquistar a unica invejavel gloria, emendando os
+erros da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.
+
+Então sim, que haveria que se lhes invejar.
+
+Dôr d'alma é, na verdade, não poder homem na solidão pagar por estes, e
+por si mesmo, dividas grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, lá
+estende os braços valedores até onde lhe é dado. Onde não chega a
+remediar com obras, ajuda com o bom conselho, com as recommendacões
+poderosas, com as esperanças, com a presença, com a uncção da palavra
+amigavel, com o deixar correr sobre a ferida o balsamico das lagrimas.
+Assim, se terá sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo
+trabalhos, e no seio coração.
+
+
+XXII
+
+Isto presenciei eu:
+
+O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural
+pejo me veda transladar louvores, que por lá se lêem em todos os peitos,
+contava entre as primeiras de suas ditas a beneficencia, que não pára
+onde se lhe exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo
+Bispo Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem
+ainda para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.
+
+Era para ver (se elle não poséra tanto em recatal-a) a alacridade, a
+sôffrega alacridade, com que ia levar aqui um pão, que se devorava como
+vida que em realidade era, ali o remedio para a doença; aos mal avindos,
+a reconciliação; ao ocioso, o convite para trabalho; ao orphanado, a
+paciencia; ao errado, a luz para atinar com a senda, e o bordão para a
+seguir; ao moribundo, o conforto e a alegria; a todos a moeda aurea,
+cunhada de uma banda com a effigie do coração, da outra com a da Cruz
+florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se cambía; o affecto
+fraternal.
+
+Ali, sim, que é o ser Parocho.
+
+¡Oh officio divinamente instituido, como te hão degenerado annos frios
+de descrença e desamor! ¡Com que maravilhoso laço não cifravas o que de
+mais nobre, o que de mais amavel, se abrange nas ideias da eternidade e
+nas do mundo!
+
+O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso de
+eleição, elle diffundia ao povo ajoelhado os mysterios, os preceitos, os
+exemplos, as ameaças, os anáthemas, as absolvições, os confortos, e os
+jubilos. Todos os destinos terrestres se formavam, ou passavam, á sombra
+d'elle.
+
+Entrados á vida, encontravamol-o, resplandecente de Fé, á nossa espera
+diante da fonte da Graça, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos
+purificar.
+
+Arribados á edade da rasão e dos delirios, tornavamol-o a achar na
+piscina da penitencia para nos restituir, com eloquencia affectiva de
+Apóstolo, a foragida paz do interior.
+
+No consorcio, eram as suas mãos castas as que nos entregavam, com
+bençãos d'alma e sincera prophecia, a mão tremente da futura mãe de
+nossos filhos.
+
+Nas calamidades publicas, era a sua voz supplice e crente, e afogada em
+lagrimas, a que levava, como guia segura, o côro de todas as nossas á
+presença do Senhor da Natureza.
+
+Em nossas dissensões domesticas, elle o Anjo da concordancia, que
+primeiro apparecia.
+
+Nas nossas quédas, elle o primeiro braço que nos alçava.
+
+Nas tribulações, elle o nosso mais previsto conselheiro.
+
+Na enfermidade, elle o medico gratuito e não chamado.
+
+Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e
+aterrada o pão, o oleo, e o fardel das esperanças para o caminho.
+
+Elle o que ainda nos seguia, depois que já todos os outros medicos iam
+longe, e até nossos paes e nossos filhos nos deixavam sós. Com preces
+fervorosas nos acompanhava, até que a terra nos submergisse; e ainda
+então nos não largava, senão para ir instaurar novas preces por nós
+sobre os altares.
+
+Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com
+quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da sua
+pobreza, sempre paschoas-florídas para grandes e pequenos, só temido dos
+maus, ainda que tambem d'esses respeitado.
+
+Se carecia de progénie, se não tinha uma esposa, elle, que tão amenos
+quadros do casamento sabia apresentar aos noivos ao recebel-os, contava
+por irmãos e filhos todos os seus parochianos; tinha o seu thálamo de
+oiro a aguardal-o no paraizo, região que todos os dias entrevia atravéz
+das folhas do seu breviário; e, se ainda no coração lhe podia alguma
+ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como esposa; em quem
+se revía; que se recreava em ataviar, em enriquecer, em lhe adquirir
+galas de roupas, de sedas, de joias, de flores, de perfumes; em cujas
+festas se remoçava; em cujos canticos se desvanecia de misturar a sua
+voz.
+
+No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava
+tambem. Se, perante a ara santa a Fé via n'elle um representante da
+Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse caracter augusto e
+sobrehumano.
+
+A hora em que elle expirava, hora de consternação e alaridos para todo
+um povo, era a unica, talvez, em que pelos espiritos fuzilavam alguns
+relampagos de duvidas sobre a justiça e a misericordia do ENTE SUPREMO;
+duvidas, que a bocca do velho emmudecida, que a reprehensão dos seus
+olhos fechados, já não podia fulminar, mas que a sua presença, mal
+chegavam a beijar-lhe os pés como a bemaventurado, promptamente
+desvanecìa. Bem se adivinhava, ao olhal-o, que a sua morte não era mais
+que somno; e bem se entendia como, ao cabo de tão prolixo, de tão zeloso
+trabalhar, era rasão colher descanço e premio, como só lá em cima os
+pode haver.
+
+ * * * * *
+
+Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e prospérrimas da
+Christandade.
+
+De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas tão raro,
+que a dedo se apontam; e ainda se não hão-de crer, se não fôrem vistos
+bem por miudo, e contrasteados bem de espaço.
+
+De ninguem é a culpa, sendo de todos a desgraça.
+
+Não; de ninguem é a culpa. O genero humano curte sempre algum achaque
+principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a febre da superstição;
+está agora no frio da incredulidade ¿Que lhe ha-de fazer? jazer-se com
+elle, até que do alto lhe venha o remedio.
+
+ * * * * *
+
+Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma
+de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de Fé intrinzeca, nem um
+phantasma.
+
+A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafecêra, pegou-se d'ella,
+pelo contacto, primeiro á superior, depois á infima.
+
+Ha doenças que teem os seus periodos determinados; esta entra na conta.
+
+A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada já
+quer ir convalescendo; já convalesce em muitas partes, se em nenhuma se
+acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu, por isso mesmo, e por ser a
+mais rude e numerosa, labora no auge da enfermidade, e ainda muito longe
+(segundo todos os symptômas) de se restaurar.
+
+Hoje o materialismo é especialmente plebeu.
+
+Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo a raio e raio, e
+descendo manso e manso, a luz, que adelgaçasse, que por derradeiro
+desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam tudo.
+
+Mas nem de lá baixa, porque por lá faz ainda noite, nem se derrama da
+Imprensa, de que a mean classe é representante.
+
+O Poder, fingindo _proteger_, apenas _tolera_ os escassos restos da
+crença. Se alguma vez lhes dá consideração, é quando se lhe antólha que
+os poderá empregar, por material, para obras politicas a seu modo.
+
+A Literatura, ou por especulação de popularidade, ou por extravagancia
+de muito joven, ou porque o seculo XVIII do «Paiz modelo» só poude
+chegar cá no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem á
+unica Religião civilisadora, tão decepada e desgeitosa se avém, que, por
+entre as suas expremidas lagrimas de compuncção, se lhe está vendo
+voltear por dentro dos labios o seu lembrado sorriso de septicismo.
+
+A sua religiosidade é um cálculo; ¡grande mal! é um cálculo
+transparente; ¡mal ainda muito mais funesto!
+
+Reconhece-se que, se de alguma coisa está convencida, não é da verdade
+real e absoluta que diz, mas da utilidade (ou necessidade) de que seus
+ouvintes a acreditem.
+
+Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e
+aqueça; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e ás escuras
+por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro para a turba.
+
+Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante «o _Christo_» (como lhe
+ella sempre chama), que a sua cabeça ennastrada de loiros não fique,
+mais ou menos, sobre-sahindo á pendida fronte coroada de espinhos.
+
+¿Que poderá jamais conseguir para verdadeiras aleluias da Fé e da Moral,
+este vaidoso e vanissimo apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo
+do falso nome de Christianismo pregôa d'elle uma, ou outra, ou muitas,
+paginas desconnexas, reformadas, e adulteradas?
+
+Quanto entre si concordavam as inspirações dos quatro Evangelistas,
+tanto discrepam uns dos outros (e não raro de si mesmos) os novos
+evangelhos d'estes missionarios sem missão. Á prima-vista se averigua
+que lhes fallece a convicção, a coherencia, a logica, e a unidade. ¿Quem
+se irá apóz taes innovadores? Ninguem.
+
+Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar só valeriam para
+acabar de destruir, se podesse ser destruida a Religião de Jesu-Christo.
+
+A Fé é uma obra celeste, que nem a sciencia, nem a força, nem o poder da
+terra tem a minima jurisdicção para alterar.
+
+Ou a Fé toda completa, cabal, absoluta, sem um átomo de menos, sem um
+átomo de mais... ou nenhuma Fé. Fraccional-a, decompôl-a, temperal-a
+cada um para o seu paladar, é pregar-se o homem estupidamente n'uma cruz
+desbenzida, revirado com a cabeça para a terra, e os calcanhares contra
+o Ceo. Em tal caso o indifferentismo, e até o atheismo, seria menos
+descommodo e mais logico dobradamente.
+
+ * * * * *
+
+Em quanto a Literatura assim acode á obra de Christo, como o poderia
+fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo, ¿como é que a
+trata a autoridade mundana?
+
+Como se fôra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe, protectora
+desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a cabeça despojada do
+diadema luminoso, diz-lhe que se apegue, para não cahir, ao sceptro que
+a diante lhe caminha. ¡Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco
+roborava os thronos com a sua benção, permitte, quasi, que os seus
+inimigos o ludibriem!
+
+A blasphemia, que vai picar, verme peçonhento, a raiz da arvore da vida,
+d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer derramal-a sobre as
+multidões pelo crivo immenso da Imprensa, e ficar impune; ou o seu
+castigo, se por erro lhe cahir o da Lei, orçará apenas pelo dos crimes
+leves, e indifferentes ao Estado.
+
+ * * * * *
+
+Não é ainda tudo.
+
+Aos ministros do culto, já de si por ventura tibios, como filhos e
+herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra já meio derretido, luz
+do mundo já mortiça, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e
+relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo os
+nas temporalidades odiosas.
+
+Repitâmol o: não é isto culpa de ninguem, sendo de todos desaventura. É
+uma calamidade providencial, que lá se encaminha para fins certamente
+gloriosos, que não podemos enxergar.
+
+Em Religião, como em Politica, somos nós, enfatuada geração de hoje,
+mesquinho adubío n'um chão semeado, que outros hão-de ceifar em vindo a
+quadra.
+
+Chegarão tempos (dil-o o instincto da rasão) em que os direitos e os
+deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido nome não seja, como
+pomba timida, empolgado por abutres ferozes logo ao abrir o primeiro
+vôo; em que todas as causas santas e uteis se conheçam e respeitem; em
+que nem a régia tribu de Judá seja, como outr'ora, apesinhada pela de
+Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje, mercenária, captiva, e
+escrava da de Judá.
+
+Então quando o lenho sêcco da Cruz, reflorir, e frutear (como a vara do
+Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de alimento, de forças, de
+esperança, e de felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos,
+então os pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi
+mendigos, e cuja fronte perdeu o sello da eleição, tornarão a assentar
+ao-pé da arca santa a sua tenda humilde e venerada, não opulenta mas
+dadivosa, tenda pobre e rôta, para que pelas aberturas penetrem melhor
+até ao velho os gemidos do mais necessitado que elle, e para que os
+olhos d'elle entrevejam as estrellas.
+
+¡Oh! ¡como volverão a ser bellos os dias da Egreja acrisolada pelo fogo!
+Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.
+
+ * * * * *
+
+O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, não acredita em
+malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de recommendar aqui, uma
+verdade, que a sua posição d'elles lhes não deixou talvez ainda
+perceber; verdade importante para applicações, verdade a cujo
+escurecimento se pode imputar já muito e muito damno:
+
+O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades, uma
+importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e
+prosperidade do Estado, a que nenhuma instituição humana poderia
+confrontar a sua.
+
+Nas cidades é talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano é quasi um
+pastor sem rebanho; não conhece as ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A
+ellas, falta-lhes o tempo e a vontade para o rodearem; a elle, se para o
+officio entrou com zelo e propositos magnanimos, tudo se lhe veio a
+acabar com a esperança, e logo a caridade tambem; e a final talvez
+tambem a fé, mal se inteirou de que todos seus esforços se haviam sempre
+de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua voz, se lograsse
+vencer o estrépito circumfuso, só serviria para lhe atrahir escárneos e
+motejos, ou de fanatico, ou de tartufo.
+
+Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e abscônditas
+sobre tudo, ainda não é totalmente assim. Á entidade abstracta _Parocho_
+se conserva, no respeito e benevolencia dos subdítos, um resto da sua
+antiga majestade, da sua benéfica influencia, das suas altissimas
+prerogativas.
+
+Ainda é um parente proximo e autorisado de todas as casas, uma especie
+de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos Patriarchas, e
+os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um magistrado sem
+appellação para as consciencias; um censor, não em nome da Lei (como os
+de Roma), porém em nome, e com delegação, e por inspiração, do Espirito
+de Verdade, com quem se crê ter commercio no fundo do santuario.
+Qualquer que seja a sua sciencia, é a ella que se recorre como á
+principal.
+
+Tal é, repito, a entidade _Parocho_ em abstracto.
+
+
+XXIII
+
+Isto posto, e acceito por certo, como é, pergunto: se não deverão
+empregar-se as mais incessantes, as mais efficazes diligencias, para que
+o provimento das parochias (das rusticas ao menos) recaia sempre em
+homens de cultivado e provado entendimento, de sincera e illustrada Fé,
+humanos e caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel
+trato.
+
+Ninguem o negará, pois são elles as fontes, que, segundo sua qualidade,
+teem de dessedentar e fertilisar, ou de esterilisar e consumir, a terra
+que os rodeia.
+
+N'estes agros tempos de contínua revolução e peleja, ou porque tão
+momentosa ponderação não occorresse, ou porque a vista, de dentro da
+cidade, não traspassa os muros d'ella, ou porque conveniencias pessoaes
+e ephémeras, mas urgentes, mas gravissimas, tenham feito postergar
+considerações de maior utilidade, mas de effeito mais tardío; as egrejas
+ruraes, como as urbanas, jazem, pelo commum, peor que ao desamparo:
+entregues, não como egrejas, a homens de oração e de esmola, mas, como
+torres e castellos, a alcaides e capitães eleitoraes, que no dia do
+conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.
+
+¡Oh! que não sem rasão se collocou a rixosa urna dos suffragios
+politicos na extranhada mansão dos serenos suffragios religiosos. A um
+clero secularisado, competia um templo secularisado tambem.
+
+ * * * * *
+
+E não ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade; é peccado, que todas
+ellas peccam; ou, para falar com mais justiça, é açoite que Deus mette
+na mão de cada uma, quando lhe chega a sua hora de ephémero triumpho.
+
+Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, até ás mais
+illusas, como as devemos suppôr, cordealmente empenhadas na civilisação
+e no progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a revêzes
+a favor de todas e contra todas, vem a ser, a final, para todas e para
+cada uma, como se de feito não existira.
+
+O direito mesmo da Guerra, com ser tão largo e licencioso, nem tudo
+permitte. ¿Porque não ha-de logo, nas suas pelejas, a Politica
+reconhecer limites, onde o Ceo e a rasão os teem marcado?
+
+Combatam se os adversarios; mas não se envenenem as aguas; e se a
+desavença é entre consanguineos, e em solo commum, não cortemos, para
+aquecer o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que já
+deram oleo, sombra, e paz a nossos avós, e que ainda podem liberalisar o
+mesmo a nossos netos.
+
+¿Por que é trazer aos festins profanos os vasos do Templo?
+
+Se é chyméra a Religião, se Jesus não é em realidade senão «o Christo»,
+vão fóra tartufías, que não deshonram menos a uma nação que a um
+individuo; acabe-se de uma vez com _superstições_ importunas e
+dispendiosas.
+
+Mas se «o Christo» foi o Verbo; se o Verbo foi o sol; se o sol é ainda
+agora a vida do genero humano; se a Cruz é o unico pezo que faz crescer
+a quem a soffre; se na terra não ha luz senão a que vem de cima; se toda
+a negação expira nos labios de quem chega a ouvir como se amiudam os
+anhélitos do estertor, forcejae, forcejae para restituir, ó vós que
+ainda o podeis, ao santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle
+conhece, ao Povo os unicos oráculos em que elle pode crer, ás miserias o
+seu antigo e tão amado refugio, aos vicíos e aos crimes o dique onde já
+tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram.
+
+¿Não é assaz amplo o thesoiro que entre as mãos tendes de destinos
+humanos?
+
+¿Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas as
+magistraturas, todos os magisterios, todas as exacções, todas as
+administrações, não vos dão de sobejo com que pagar ou empenhar
+amisades, zelos, e serviços, sem ser mistér que o povo de Deus venha,
+escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda, carregar a
+pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?
+
+Rachel chorosa chora os seus filhos, e não quer consolada porque elles
+não existem para ella. Os moradores de Sião não entôam os seus
+inspirados canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de
+Babylonia. Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Sião os
+seus moradores.
+
+A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha.
+A Cidade santa restaurará as suas festas.
+
+Não vos arreceeis de que, feriando os levitas, e despedindo-os das
+vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da vossa parcialidade,
+qualquer que ella seja, se torne mais fraco.
+
+Pelo contrario: então é que a victoria, filha das bençãos da terra e do
+Ceo, ha-de poisar para sempre, como uma auréola, sobre a hasta do vosso
+estandarte, porque se dirá de toda a parte: «Eis ali os fortes, os que
+bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a quem o Senhor
+outorgará dominação, porque elles lhe hão restituido os sacrificios.»
+
+
+XXIV
+
+Mas redescendâmos o estylo á lhaneza do nosso assumpto.
+
+ * * * * *
+
+Logo que na legislação entrar mais _bom-senso_ que _politica_, mais
+realidade que ficção, mais pensamento de semear que de ceifar, mais amor
+do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da milicia sagrada
+devolver-se-hão inteiramente, francamente, sem restricções mesquinhas e
+nocivas, das mãos profanas para as dos seus superiores e arbitros
+naturaes: os Prelados.
+
+O Governo se gloriará de haver se desembaraçado de uma tarefa, de pouca
+importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia de incerteza, e de
+responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha ainda mais, de haver
+facultado com a sua restituição o incremento da religiosidade; por ella
+o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas; por
+tudo, o da prosperidade do Estado.
+
+Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei,
+podér escolher por si mesmo, affeiçoar de espaço, collocar por sua mão,
+os vigias de cada um dos seus rebanhos parciaes, ¿quem duvída de que
+então os desacertos nas ponderadas escolhas hão-de ser tão raros, como
+os acertos o são no actual systema, em que são as casualidades, quando
+não as affeições ou os interesses, que predominam?
+
+ * * * * *
+
+Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justiça a todos), as
+eleições do poder temporal teem merecido a geral approvação; teem
+recahido, pelo commum, em varões de mui notoria sciencia e prudencia,
+equidistantes dos dois oppostos fanatismos, concertados nos costumes, e
+zelosos discretamente.
+
+Graças, graças ao poder temporal, que já deu o primeiro passo, passo de
+gigante, para a suspirada reformação. Agora os restantes hão de
+seguir-se, porque são consequencia.
+
+Logo que soube, e quiz, prepôr ao Episcopado varões taes, logo que
+manifestou ao mundo que n'elles a todos os respeitos se fiava,
+tacitamente se obrigou a lhes repôr... (estas suas usurpadas regalias,
+ia eu dizer, e era um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua
+cruz, este accrescimo de trabalhos e mortificações, este para uma
+consciencia melindrosa martyrio das horas todas.
+
+Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os hombros
+a tão duro redobramento de carga, se a caridade, obrigada nos do seu
+officio, os não forçára a beijal-a com lagrimas, tomal-a com exultação,
+e seguir via pelas asperezas do Calvario para o Ceo.
+
+ * * * * *
+
+¿E que são em verdade os Parochos, ou antes: ¿que foram os Parochos
+desde os antigos seculos da sua instituição, que foram, se não uns
+coadjutores dos Prelados maiores, para fazerem chegar até aos minimos e
+mais obscuros recantinhos das Diocéses a sua doutrina, a sua caridade, e
+os seus exemplos?
+
+Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as mãos, de um só, e quasi
+sempre velho e cançado, não podiam alcançar tão longe como o seu
+espirito; medicos de populosos hospitaes de almas (e de corpos tambem),
+não lhes chegando as forças para estarem dia e noite a todas as
+cabeceiras, contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios,
+estudarem todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em
+todos e com todos, segundo a maravilhosa expressão do Apóstolo das
+gentes; distribuiram em cada enfermaría quem os supprisse, quem os
+fizesse sempre estar presentes, quem em seu nome, e segundo a sua
+sciencia, receitasse e administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse
+de subito acudir.
+
+¿Como póde portanto, quando militam as mesmas rasões que presidiram á
+creação dos Parochos, consentir-se uma praxe, em que tudo vai
+falsificado?
+
+Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens
+inexpertos e ignaros da sua arte, não pode ser; e não ha-de ser sempre;
+e cabe nos esperar que nem continuará a ser por muito tempo.
+
+O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o
+indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os
+presbytérios civis, hoje de tantos corvos e abutres, vão ser como essas
+torrinhas, que se branqueiam e se perfumam de incenso para morada de
+pombas. As parochias reverdecerão: e florescerão, até ao possivel auge,
+em creanças innocentes e instruidas, em adultos pios e laboriosos, em
+mulheres castas e amantes do seu lar e dos seus deveres, em velhos
+pacientes, resignados e conselheiros, em sólo bem cultivado e bem
+festivo; e o Throno se alegrará com os novos reflexos de ventura, que
+lhe virão de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte.
+
+
+XXV
+
+Não venha agora, no processo d'esta santificação, intrometter se o
+_Cardeal-diabo_ do ciume, com máscara de amor da Liberdade. Ainda que a
+máscara é de vidro, já d'aqui lh'a havemos de quebrar nas mãos,
+batendo-lhe em cheio com tres nomes todos presados: França, Italia,
+Inglaterra.
+
+ * * * * *
+
+¿Que nação mais ciosa das suas immunidades, que a franceza? ¿Que nação
+menos para consentir á Egreja o que de jus estricto lhe não compita?
+
+Nenhuma.
+
+Ora em França, bem sabemos todos que são unicamente os Prelados os que
+formam o seu Clero. Educam-n-o longamente. Instruem-n o copiosamente,
+por livros não escolhidos (como entre nós) pela Autoridade civil, ainda
+que (de si se entende) sujeitos á sua inspecção. Acostumam n-o ás
+praticas do seu não facil ministerio. Estudam, provam, e contraprovam, a
+aptidão e especial préstimo de cada um. Aproveitam só os que n'esse
+crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram; e outra vez os escolhem á
+mão, para os irem repartindo pelas Parochias do modo que mais
+aproveitem; pois de ver está, que, differindo em indole e circumstancias
+as povoações como os individuos, tal individuo, que em tal povoação
+quadrará á justa, a afortunará afortunando-se; n'outra, que menos lhe
+molde, valerá menos, trabalhando e padecendo mais.
+
+ * * * * *
+
+O exemplo da Italia, tenho eu que ainda apérta melhor; porque, se lá os
+Bispos são independentes, como em França, para o provimento de suas
+egrejas, não é porque em mãos leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o
+Sceptro é Bago juntamente.
+
+ * * * * *
+
+Documento, porém, sobre todos frisante nos offerece por ultimo a Gran
+Bretanha.
+
+Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, não protegida se não
+tolerada, não acarinhada se não temida pelo seu progressivo, cada vez
+mais rapido, mais assombroso, engrandecimento, gosa se, não obstante,
+por longa e pacifica posse, d'este seu não _privilegio_, se não
+_direito_ essencial; e os seus Bispos são pelo menos tão independentes
+no tocante á cura de almas dentro de suas Diocéses, como dentro nas suas
+os proprios Bispos protestantes.
+
+
+XXVI
+
+Ora pois: logo que entre nós se houver perfeito d'este modo a
+regeneração do Clero pelos seus principes (unicos legitimos em tudo que
+ao seu ministerio se refere) cabe esperar que a optima parte das nossas
+populações ruraes se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que
+a minha gente de S. Mamede do Monte será querida, e comprehendida até
+por cortesãos, quando sahirem a folgar no campo algum estio.
+
+Para então é que este livrinho, semelhante aos frutos que amadurecem em
+casa e ás escuras, ha-de ter para mais alguem o sabor que eu já lhe
+tomo.
+
+ * * * * *
+
+Se elle consegue, para além das raias da minha expectação, fazer com que
+um só captivo da Cidade cobre amor á vida solitária, ou que um unico
+solitário aprenda a conhecer alguma parte da sua encoberta
+bemaventurança, já não trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos
+maiores triumphos literarios.
+
+
+FIM DO PROLOGO
+
+
+
+
+
+Notas de Castilho a este Preambulo
+
+
+NOTA I
+
+Fontes de estudo
+
+
+Como, durante a minha estada na serra, me não passava pela mente que
+houvesse algum dia de bosquejar esta humilde Odyssêa dos sitios e gente
+d'ella, nada trouxe apontado a tal respeito. Revolvendo as minhas
+memorias não escritas, achei n'ellas consideraveis lacunas, mormente no
+tocante á topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar.
+N'esta pressa me soccorri á officiosa amisade do actual Prior de S.
+Mamede da Castanheira, o Rev.^{do} Padre Antonio Jozé Rodrigues de
+Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos imperfeito o meu
+painel, em que faltará tudo, á excepção de verdade nas coisas, e nos
+retratos parecença.
+
+
+NOTA II
+
+Parochos
+
+Na generalidade que estabeleço, por muito convencido, caberá fazer
+algumas gloriosas excepções; e, sem ir mais longe, o meu Parocho, n'esta
+freguesia de Santa Isabel[5], o Rev.^{do} Padre Jozé Jacintho Tavares, é
+varão de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de sãos costumes,
+sobredoirados de indole sociavel e amena, e incançavel na caridade. As
+reparações e embellezamentos, com que se tem remoçado o templo em que
+elle serve, nada são comparados com os soccorros de pão, de letras, e de
+instrucção christan e civil, que já começam a disfrutar os indigentes da
+sua freguesia. Largos são ainda os seus projectos; ajude-o a
+Providencia; deixará formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade
+filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haverá transformado,
+pela educação, creancinhas ainda hontem desamparadas, e a pique de
+perdimento. Não quiz perder este lanço de ajudar com um pequeno brado o
+clamor da gratidão popular, que algum dia ha-de ser alto.
+
+
+FIM DO PRIMEIRO VOLUME
+
+
+
+
+Notas:
+
+[1] O Doutor de capello José Feliciano de Castilho Barreto falleceu na
+Castanheira do Vouga a 6 de Março de 1827, e foi enterrado na capella
+mór da egreja parochial. Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os
+seus restos mortaes para o jasigo da sua familia no cemiterio dos
+Praseres em Lisboa, onde se conservam.
+
+ Os Editores
+
+[2] Existe ainda este cedro que tem alcançado descommunal corpulencia.
+Chamam-lhe por lá _o cedro do poeta_, ou _do Castilho_.
+
+ Os Editores.
+
+[3] Ovidio--_Os Fastos_--Liv. VI.
+
+[4] Allusão aos amargores da redacção da _Revista Universal Lisbonense_,
+minuciosamente narrados _nas Memorias de Castilho_.
+
+ Os Editores.
+
+[5] Castilho morava então na rua de S. Marçal.
+
+ Os Editores.
+
+
+
+
+
+
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
+
+Sociedade editora
+
+Livraria Moderna
+
+95--RUA AUGUSTA--LISBOA
+
+
+
+
+Obras completas de A. F. de Castilho
+
+XX
+
+O Presbyterio da Montanha
+
+VOLUME II
+
+[Figura]
+
+
+LISBOA
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
+95, Rua Augusta, 95
+1905
+
+
+OBRAS COMPLETAS
+
+DE
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
+
+VOLUME 20.^o
+
+
+
+
+VOLUMES PUBLICADOS:
+
+
+I--Amor e melancolia.
+II--A chave do enigma.
+III--Cartas de Ecco e Narciso.
+IV--Felicidade pela agricultura (1.^o v.)
+V--Felicidade pela agricultura (2.^o v.)
+VI--A primavera (1.^o vol.)
+VII--A primavera (2.^o vol.)
+VIII--Vivos e mortos--Apreciações moraes, litterarias, e artisticas.
+IX--Vivos e mortos (2.^o vol.)
+X--Vivos e mortos (3.^o vol.)
+XI--Vivos e mortos (4.^o vol.)
+XII--Vivos e mortos (5.^o vol.)
+XIII--Vivos e mortos (6.^o vol.)
+XIV--Vivos e mortos (7.^o vol.)
+XV--Vivos e mortos (8.^o vol.)
+XVI---Excavações poeticas (1.^o vol.)
+XVII--Excavações poeticas (2.^o vol.)
+XVIII--Excavações poeticas (3.^o vol.)
+XIX--O Presbyterio da montanha (1.^o v.)
+XX--O Presbyterio da montanha (2.^o v.)
+
+
+NO PRÉLO:
+
+
+XXI--O Outono.
+
+
+
+
+
+OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos
+
+XX
+
+O PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+VOLUME II
+
+[Figura]
+
+LISBOA
+
+Empreza da Historia de Portugal _Sociedade Editora_
+
+
+LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA
+Rua Augusta, 95 || 45, Rua Ivens, 47
+
+
+1905
+
+
+
+
+I
+
+A PRIMEIRA NOITE NA SERRA
+
+
+
+ ... Ibi haec incondita solus montibus et silvis studio jactabat
+ inani.
+
+
+¿Vélo? ¿Sonho? ¿Deliro?! ¿Em solitario monte,
+que se espanta de ver-me, e cuja austéra fronte
+nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,
+de mundo a tumultuar, de cidades a rir...
+ n'este ermo ignaro, frio, mudo...
+aqui... (¿deliro? ¿ou sonho?) aqui meu lar, meu tudo!
+ ¡o meu presente e o meu porvir!
+
+ Genio invisivel da montanha,
+ de astros, de sol, o ceo te banha;
+ o mar de longe te acompanha
+ no livre cantico sem fim.
+Escada de Jacob da terra ao firmamento,
+ a mansão tua é monumento
+da potencia, do amor, das glorias d'Eloïm.
+
+Emquanto, em derredor do solio teu sublime,
+a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,
+se volve, se transforma, e sua angustia exprime
+n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,
+ a variedades sobranceiro
+mantens-te qual surgiste, e do cahos primeiro,
+ e do diluvio assolador.
+
+ Silencio e paz comtigo habita;
+ o ermo é como o eremita;
+ loucas vaidades não cogita;
+ ama o seu rustico trajar;
+em apparente inercia ama que ferva occulto
+ de seus affectos o tumulto,
+seus extasis, seus ais, seus gostos, seu orar.
+
+Sim, Genio da montanha, Archanjo de poesia:
+eu creio em ti; eu creio em que alma ingenua, pia,
+póde ouvir de tua harpa a casta melodia,
+e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;
+ sim; mas eu, frivolo, profano,
+á solidão extranho, affeito ao mundo insano,
+ ¿que hei-de esperar? ¿que tenho aqui?
+
+ Toda a minh'alma se entristece,
+ e se confrange, e se ennoitece,
+ ao ver que a sorte lhe destece
+ de um sopro os aureos sonhos seus.
+Sonhava applausos, gloria... ¡em desterro desperto!
+ sonhava mundo... ¡acho um deserto!
+sonhava inda illusões... ¡e escuto-lhes o adeus!
+
+Náufrago, perco a lyra em meio da viagem.
+¡Desço vivo ao sepulcro! ¡Em ti, fatal paragem,
+quem me resurgirá? Dos montes a linguagem...
+oiço... escuto... medito... e em vão quero entender
+ é como uns sons de ignota fala;
+qual ás penhas o mar, me inunda e me resvala,
+ sem me abalar, nem me embeber.
+
+ ¡Oh! ¿á minh'alma taciturna
+ que importa, ó montanha soturna,
+ que de perfumes sejas urna
+ da terra erguida sobre o altar?
+¿que o ceo te ria azul, mais amplo e mais de perto,
+ que o sol doirado, ao teu deserto
+mais cedo suba, e á tarde o desça com pesar?
+
+Vir mais tardia a noite, a aurora vir mais cedo,
+¿que me aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,
+só ouvindo os tufões e os corvos no arvoredo,
+bramirei:--«¡Cresce o tempo! ¡oh! ¡supplicio cruel!
+ ¡são mais pesares, mais saudades,
+mais estro a arder em vão, mais visões de cidades,
+ mais tentações a dar-me fel!...»
+
+ ¡Ai! ¡mundo! ¡ai! ¡eccos seductores!
+ ¡Tanto vate a ceifar louvores!...
+ ¡Tanto moço a colher amores!...
+ ¡Tantos loireiros e rosaes!...
+E eu n'esta solidão a torcer-me arraigado,
+ qual roble que geme indignado,
+vendo ao longe no Oceano os lenhos triumphaes!
+
+Assim ruge, baldão de vingativo nume,
+esse que a argilla outr'ora encheu de ethereo lume;
+assim, nos gelos sua, agrilhoado ao cume
+do caucáseo alcantil, seu cadafalso atroz.
+ Só o abutre de eterna fome,
+que o grande coração algoz sem fim lhe come,
+ responde em ais á sua voz.
+
+ Fenece o dia. ¡Hora jocunda,
+ que eu tanto amava! ¡hora fecunda
+ dos cantos meus! ¿por que me inunda
+ nova amargura o coração?
+¿Sino crepuscular, tôas funéreo dobre?
+ a serra em luto se me encobre;
+a nocturna mudez duplica a solidão.
+
+Nenhuma luz scintilla; humana voz não sôa.
+De estrellas a accender-se o Empyrio se povôa;
+tal a fada Coimbra, a senhoril Lisboa,
+nest'hora a quem as olha, entram no escuro a abrir
+ de luzeiros um labyrinto.
+¡Ceos! ¡Não oiço eu troar... seus coches!... O que sinto
+ é vento em selvas a rugir.
+
+ Calae, fugi, ventos agrestes;
+ sumi-vos, lampadas celestes;
+ n'um seio a delirios já prestes
+ não susciteis mais tentações.
+Ou antes... aturdi-me, Euros bravos; ou antes...
+ vós, astros, cifras de diamantes,
+o arcano me aclarae lá d'essas regiões.
+
+¡Oh! ¡se á minha razão, contradictoria, altiva,
+que ás trevas sente horror, e á clara Fé se esquiva,
+de vós, faroes do Ceo, baixasse a crença viva,
+que aos moradores do ermo inspira a vossa luz!...
+ ¡se me volvesseis as ditosas
+esp'ranças que hei perdido, alvas, ethereas rosas,
+ com que se enfeita e esconde a Cruz!...
+
+ Tornar-se-me-hiam de improviso
+ a solidão, em paraizo;
+ a magua, em perenne sorriso;
+ em alto cantico, a mudez;
+a mallograda lyra, o não colhido loiro,
+ em harpa augusta, em palmas d'oiro;
+e o monte, solio então, veria o mundo aos pés.
+
+Delirios sempre vãos, fugi de um peito enfermo;
+tu, só tu, negra morte, has-de ao meu mal pôr termo;
+ermo para ambições, é inferno, e não ermo;
+para a humilde piedade é que elle espelha o Ceo.
+ Gentis phantasmas de cidades,
+vinde, escondei-me o ermo em vossas claridades,
+ como um esquife em aureo veo.
+
+ ¡Vinde, cercae-me, endoidecei-me,
+ (embora em saudades me eu queime)!
+ O somno, as vigilias enchei-me
+ da vossa esplendida vizão.
+¿Val o riso choroso as festas da loucura?
+ vinde, guiae-me á sepultura,
+crente no amor, na gloria, e rindo á solidão.
+
+¡Eu blasphemo, eu desvairo! Aos encontrados votos,
+nem ecco respondeu n'estes covões ignotos.
+Não, cumes glaciaes, tão outros, tão remotos
+dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;
+ não, no silvestre seio vosso,
+nem de amenas ficções apascentar-me posso,
+ nem menos as posso esquecer.
+
+ ¡Valor! ¡valor! ¿Quem do futuro
+ sondou jamais o abysmo escuro?
+ ¡Apenas chego e já murmuro!
+ ¿O de que tremo acaso sei?
+Esperemos: talvez que inglorios, mas doirados,
+ aqui me aguardem, recatados,
+dias de estro e de paz, quaes nunca disfrutei.
+
+Se além, no presbyterio, humillima choupana,
+(Vaticano, e Queluz da pobre grei serrana)
+mais que fraterno amor sollícito se afana
+em me afôfar o ninho, a vida em me inflorar;
+ se n'um retiro verde e mudo,
+por elle tenho o leito, a mesa, o doce estudo,
+ sombras no estio, o inverno ao lar;
+
+ se a solidão que me apavora,
+ sómente o fôr vista de fóra;
+ se em seus recôncavos demora
+ gente feliz, povo de irmãos;
+se do antigo viver, das crenças de outra edade,
+ vestigios guarda a soledade;
+se poesia se vive entre estes aldeãos;
+
+se a alegria, serena, isenta de pesares,
+como a fresca saude, habita os puros ares;
+se em toda a parte ha Deus, em céos, em terra, e mares,
+se Deus em toda a parte á Natureza ri...
+ coração meu, não desanimes,
+gozos que não prevês, e cantos mais sublimes,
+ encontrarás talvez aqui.
+
+ ¡Ah! sendo assim, ¡que importa a fama!
+ Tambem philoméla derrama
+ sua harmonia ás selvas que ama
+ longe de ouvintes e do sol.
+Cantarei. ¿Meu cantar mais ambições teria
+ que a viva, a lustrosa poesia,
+de perolas que a flux borbóta o rouxinol?
+
+
+
+ Castanheira do Vouga
+
+ Outubro de 1826.
+
+
+
+
+
+II
+
+O SEPULCRO OU HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JOÃO (POEMA)
+
+
+INTRODUCÇÃO
+
+(QUE É MELHOR DORMIR, QUE LER)
+
+
+ (Ermo alpestre entre cabeços de rocha e pinheiros, na serra do
+ Caramulo. É noite escura como breu. O autor e um arrieiro, ambos a
+ cavallo, transviados na montanha.)
+
+
+
+I
+
+
+--Bem lh'o disse eu, perdemos o caminho;
+a velha era por força alguma bruxa.
+Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a touca!
+--Bom; a pobre mulher (¿que mais querias?)
+tres vezes t'o ensinou.
+ --Nem trinta vezes
+que eu passasse por elle, o aprenderia;
+a não ser pelo rasto que deixasse
+esmurrando o nariz por essas lapas.
+Já levo sem ferrage ambas as mulas;
+perdeu-se o norte; não descubro casa,
+nem gente, nem caminho, e é quasi noite.
+Patrão, por meia legua mais ou menos,
+não se deixa uma estrada como aquella,
+que costeava o monte á beira da agua.
+A velha era uma bruxa, e nós dois asnos.
+--Dize um que vale dois, mas dois não digas.
+Se tomámos o atalho em vez da estrada,
+toda a culpa foi tua; eu não queria,
+porem teimaste; e eu não me opponho a teimas.
+--Mas eu ¿por que teimei? ¡pois se a maldita,
+com ar de santa, e palavrinhas manças,
+nos rabiscou co'o pau no pó da estrada
+tão claramente as idas, as venidas
+d'esta serra sem fim, não lhe escapando
+lomba, moiteira, torcicólo ou brenha,
+que a mula mesma entenderia o mappa!
+¿Quem não cahia em tal? cahiam todos.
+E de mais ¿quem nos diz que aquelles riscos
+não tinham diabrura ou nigromancia
+capazes de encarchar um Santo em carne?
+¿E quem me diz a mim que a grenha russa
+não vai ao pé de nós? ¡talvez sentada
+na anca da mula!... ¡_fúgite_, demonios!
+ Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;
+quem mais anda, mais sabe; e eu não sou tolo,
+nem creancinha de honte. ¡Olha o diabo!
+bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;
+caminho... ¡era uma vez! ¡Má raio a parta!
+¿que havemos de fazer nestas alturas?
+--Tornarmos para traz.
+ --¿Por este escuro?
+¿quer dar cabo das mulas, e estoirar-me?
+¡co'um milhão de diabos!!...
+ --Pois fiquemos.
+--E as mulas comam terra, como os sapos,
+e nós carqueja.
+ --As noites são bem curtas.
+--Se ao menos se avistasse alguma venda...
+--Em rompendo a manhan teremos tudo.
+Por agora apeemo-nos.
+
+(_Apeiam-se._)
+
+ * * * * *
+
+ --No inferno
+estoire entre um milhão de Satanazes
+o que inventou primeiro andar de noite;
+era o maior ladrão... ¿Que bulha é essa?
+--Não é nada; uma pedra que rebola.
+--¡Que rebola!? ¡e sem mão! será bonito,
+mas nem por isso engraço. ¿E aquelle bruto
+lá em cima no pinhal, que guincha tanto!
+--Algum mocho.
+ --Más balas o atravessem,
+e lhe acabem co'a casta antes de um'hora;
+cuidei que era outra coisa. Eu na taverna
+valho por cinco ou seis; mas cá perdido,
+e então de noite, um pisco me põe medo.
+--Pois dorme.
+ --¿O quê? ¡dormir! ¡co'a bruxa ás barbas!
+só se eu fôsse algum bêbado. Esta noite
+nem pregar olho, nem largar das unhas
+dois penedos; e ao pé já está reforço.
+--Golgan, já que não foi por nossa escolha,
+busquemos contentar-nos co'a poisada,
+que inda não é tão má como o parece.
+¡Quantos ha menos bem acomodados
+por esse mundo agora! uns em cadeias,
+outros entre ladrões, náufragos outros,
+estes em luto, aquelles em doença.
+Bastantes em colxões de plumas fôfas
+revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,
+cuidados tristes, asperos remorsos.
+¡Quantos até nas salas mais alegres,
+entre as luzes, e as muzicas, e as danças,
+mas em face de um sôffrego banqueiro,
+padecem mais que um reo chegando á fôrca
+Não ha mal sem peor; qualquer estado
+se se compara, é bom; com cara alegre
+suavisam-se os incommodos; um fardo
+n'um hombro impaciente é fardo e meio.
+Quem não soffre um descommodo pequeno
+nos grandes morre; um leve desagrado
+dá realce ao prazer quando nos volta.
+Qualquer estado, e pessimo que seja,
+tem seu lado risonho; e é da prudencia
+d'entre os picos da silva achar a amora.
+_Amen_.--Brava o latim; dá ceia e cama.
+--A falta d'esta ceia é novo adubo
+do almoço de amanhan; e emquanto á cama,
+¿que outra melhor do que esta em mez de Junho?
+Nem paredes nem tectos, que nos roubem
+a viração da noite apoz a calma;
+por entre essa quebrada dos penhascos
+lá em baixo o mar co'os seus murmurios frescos;
+sobre nós, e por baixo das estrellas,
+pendendo como um lustre, este carvalho
+cravejado de insectos que entre-luzem;
+dois rouxinoes ao longe; as lageas, mornas.
+Vê; que soberba camara!; que leitos
+desde a origem dos seculos nos guarda
+no seio d'esta brenha a Natureza!
+--Ao menos não tem pulgas. ¡Xó, canalha!
+¡leva rumor! é bom pregar de coices.
+Não durma, Sôr Doutor.
+ --Não tarda muito
+que eu não entre a sonhar ¡Que bellos sonhos
+não devem ser os de uma noite d'estas!
+--Tenha lá mão com isso; o que eu prometto,
+para espalhar-lhe o somno, é uma enfiada
+de casos que eu passei na minha vida;
+tão rara, que podia ir á _Gazeta_!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Uma vez ia eu só; era em Novembro;
+chuviscava e fazia um tal escuro
+que era metter os dedos pelos olhos.
+(Lembrou-me esta a proposito da mula
+escoicinhar sem causa.) E era bom tempo
+aquelle; andava Christo pelo mundo;
+tinha eu mais duros, que patacos hoje,
+e andava o oiro aos pontapés da gente;
+tambem... ¡já cá não torna! O grande caso
+é que n'aquelle tempo era eu solteiro,
+e rapaz bonitote; e havia muitas
+que me fizessem fogo; eu cuido, e é certo,
+que não pelos vintens; nem pela cara;
+mas isto de casar co'um almocreve,
+seja elle o diabo dos infernos,
+parece a todas bem: é uma delicia
+ter o seu homem só de vez em quando,
+em logar do espião de um pegamaço
+com residencia fixa em ar de abbade.
+Mas... não é bom falar na vida alheia.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Como lhe ia contando, era almocreve;
+chamavam-me o _Chupista_. ¡Oh! que bolaxa
+que eu pespeguei na cara do coécas
+que me inventou a alcunha em certa venda!
+qualquer creança lhe moia os queixos;
+já lá está onde o pague ¿Onde ia o ponto?
+¡ah! sim; era almocreve e recoveiro;
+e andava com dez machos todo o anno
+a correr quanto valle e monte havia
+para cobrar o fôro aos Frades Cruzios.
+Que isto do fôro é bom, nem que pareça;
+uns pagam-lhe borel, outros centeio,
+queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,
+gallinhame por arte do diabo,
+ovos, e até o musgo onde se empalham.[1]
+Não ha n'um pardieiro um desgraçado
+que não deva pagar alguma nica.
+Já vê donde me vinha a minha alcunha;
+mas sem rasão; é porque andava ás ordens.
+Tambem já tenho ouvido alguns autores,
+tal como o meu cunhado, e mais uns certos,
+que é coisa bem mal feita a tal derriça;
+Mas bem feito ou mal feito, eu não sou Papa.
+Vamos cá co'o meu conto.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Era uma noite,
+cuido que já lh'o disse, ali por Maio,
+e fazia um luar... que era um consolo.
+
+ Eu saio a meu avô; se é boa a estrada,
+gósto de andar de noite havendo lua;
+cá pelas brenhas não, que não sou lobo.
+Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,
+em cima de uma carga de presuntos,
+pela estrada real, co'os sete machos
+a dormitar ao som da chocalhada.
+Vinhamos caminhando em certo passo
+de quem gosta da noite, ou vem sem pressa,
+ou de quem traz comida a gente farta.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Que lhe digo, em abono da verdade,
+que servir Santa-Cruz não dá desgosto:
+pagam bem, fazem festa ao gallinheiro,
+vendo os machos no pateo é uma alegria!...
+¡aquillo até os olhos se lhes riem!
+dão pinga, e de cear, e muitas vezes
+vi eu estar vai não vai a dar-me um beijo
+o Frade gordo que recebe o saque.
+¡Bom tempo! ¡bom de lei! já cá não torna.
+Não durma Sôr Doutor.
+ --Não durmo; acaba.
+--¡Acabar! não acabo em toda a noite,
+nem que estoire a barriga do diabo.
+Inda eu não comecei. Lembra-me um Frade
+que havia em Santarem; tinha um cachaço,...
+por tal signal que até revia enxundia;
+¡e era um demo, o maldito, a beber vinho!...
+¡Mas aquillo! a prégar era uma joia;
+um sermãosinho d'elle atarantava
+e punha tudo azul. Tinha a constancia
+de arrumar prègações de duas horas.
+N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...
+(e olhe, foi tanto, que eu, e muita gente,
+já tinhamos dormido á regalada)
+disse muito pausado: «Eu principio.»
+
+ Assim faço eu tambem. Todos devemos
+tirar das prègações algum proveito.
+Ora pois, não me durma, e ahi vai a historia;
+porém tenha lá mão, que a levo errada.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Nesse dia á tardinha, na estalage
+tinha entrado uma velha; era um diabo,
+que isso... só visto! pequenina, magra,
+muito preta; era um bilro de pau santo.
+Tinha pela cabeça um lenço pardo
+atado pela barba, um manteo ruço,
+e uma mantinha exotica e de agoiro.
+Tinha então uma cara não sei como;
+nem parecia cara; era um nó cego
+que fazia azoar a toda a gente;
+mas muito experta; e uns olhos como um bixo.
+¡Tambem aquella rez tinha no corpo
+muita pipa de sangue de creanças!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Cheguei eu á estalage, e ia com fome;
+vou-me á carga do fôro, agarro uns ovos,
+mando os frigir com mel, que é papa fina;
+e então para quem tem de andar de noite
+dizem que é bom, que livra do catarro,
+já se sabe com quatro pingarolas.
+Ia se preparando o meu guizado,
+e era um cheiro tão bom pela cosinha,
+que isso não ha dizer. Já dois gallegos,
+e mais, tinham ceado; andavam tolos
+a cochichar, e ás voltas pela casa,
+um olho em mim, outro olho na tigella,
+e eu muito concho a rir, e a pescar tudo.
+Basta dizer que me pediram ambos
+que vendesse um quinhão; ¡e isto em gallegos!
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.
+Mas o monstro da velha era uma estaca
+ali muito direita ao pé dos ovos,
+com cada olho aberto, ¡que te parto!
+Era mesmo um olhar de inveja e zanga.
+Logo eu tive má fé co'a tal menina
+quando ella perguntou quem era o dono.
+Porém quem mal não usa mal não cuida;
+sentei-me á meza a codear nos ovos.
+Ora agora o vereis: a minha amiga
+amúa-se n'um canto, mais vermelha
+que um pimentão, e eu sempre a observar n'ella.
+Ferra os olhos em mim com tal quezilia,
+que a não ser por temer a Deus e a ella,
+batia-lhe co'o prato pelas trombas.
+Botava cada lagrima... ¡de punho!
+dava cada suspiro, a excommungada,
+¡que punha medo! accendo o meu cigarro,
+pago, monto a cavallo, e sigo a estrada.
+
+ Era já noite escura, e um vento frio
+como o gran Satanaz.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ ¿Que diabo é isso?
+ressona?; ou já na costa anda algum moiro?
+--Avante; são as ramas que sussurram.
+--Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando
+pela estrada real por ser já tarde,
+e a assobiar sósinho o _tiroliro_.
+Vai senão quando, estacam-se-me as bestas.
+Á esquerda, como ahi, ficava um monte;
+d'esta banda um pinhal muito fechado;
+de sorte que o caminho (e então mui longe
+de todo o povoado) era um soturno,
+que nem Roldão o andava áquellas horas.
+Entrei logo a suar e a arripiar-me;
+e as mulas n'um inferno de pinotes
+sem quê nem para quê; davam taes rinchos,
+que se fundia o chão; pregavam coices,
+que assoviavam no ar; ¡que contradança!
+era uma groza de diabos doidos,
+e eu mais doido, no meio, á bordoada.[2]
+Aqui digo eu como dizia o Frade
+n'outro sermão de um Santo; _não lh'o pinto
+por não ter um pincel_. Mas faça ideia
+que tal eu ficaria lobrigando
+(¡eu te arrenego diabo!) uma luzerna
+a ir e a vir, á roda, e acima e abaixo,
+lá longe no pinhal. Que era bruxedo
+tive eu logo de fé; muitos que m'o ouvem
+riem-se, e tal; deixal-os rir; ha bruxas;
+que isso sei eu; ¡e então ali! ¡tão tarde!
+Por força era algum sabbado lá d'ellas,
+que as taes amigas juntam-se de noite
+a fazer os seus sabbados, o mesmo
+como nós no Natal á meia noite...
+Ha muita comezana de creanças,
+sarrabulhos de sangue, cambalhotas,
+e umas rizadas..... que até Deus se admira.
+No meio anda um pretinho muito gordo,
+que é o proprio diabo em carne e osso.
+Diz então muita coisa a todas ellas,
+dá-lhe lá seus conselhos, toma contas
+do que teem feito, e..... acaba a tal comedia.
+Untam-se co'uma untura que lá sabem,
+transformam-se em corujas e mosquitos,
+o diabo e o lume sorvem-se na terra
+dizendo boa noite até tal dia,
+e ellas voltam-se a casa a armar já outras.
+Isto sabia-o eu como os meus dedos.
+Lembrou-me a tal gulosa da estalage,
+e então é que dei tudo por perdido.
+Deitei fóra o cigarro, e entro em voz baixa
+(¡sempre isto do pavor faz muita asneira!)
+entrei eu co'as mãos postas para as mulas
+a pedir-lhes co'as lagrimas nos olhos,
+pelas Almas Bemditas, que deixassem
+todo aquelle motim, que me perdiam;
+que fugissem d'ali, que andavam bruxas,
+e que pé ante pé viessem vindo;
+que eu promettia uma ração dobrada.
+Partimos. De repente desembésta
+d'ao-pé da tal luzerna um certo vulto
+direito para nós como uma xára.
+Com seis milhões de grozas de diabos!
+¿quem havia de ser, senão a velha?
+Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,
+chega ao cimo, e de lá muito sizuda
+entra a dizer-me adeus, e (¡t'arrenego!)
+a fazer-me uma cara dos infernos...
+--¿E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?
+--Certo é que lembrou bem; tambem agora
+lá me faz confusão ter visto a cara.
+¿Escuro? isso era escuro como um prego;
+não sei como isso foi, mas vi-lh'a, e vi-lh'a;
+¡assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje
+tão bem encasquetada no juizo,
+que a podia pintar, e era pintura,
+que urrariam os bois se lh'a mostrassem.
+Quer escuro quer não, vi-a, e está dito.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas o bom não foi isso; o mais bonito
+foi entrar de repente o gallinhaço
+nas canastras da carga em cantarolas,
+a romper, a fugir, e eu pila pila
+para aqui, para ali, correndo ás cegas
+sem as poder juntar. Foi se-me a noite
+n'esta labutação; de cada canto
+sentia um cacarejo, ia ás carreiras,
+gallinha... por um oculo. Já rouco,
+moido e desesp'rado, ao romper d'alva
+vejo as minhas senhoras mui contentes
+todas juntas n'um bando ao pé das mulas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas alto; esta é peor. ¿Não vê? repare:
+¡um clarão para ali!! d'esta nos trincam;
+¡meu Deus! ¡onde diabo eu tinha a morte!!
+--Alegra-te, Golgan; ¿que noite é esta?
+--Para nós ambos de Fieis defuntos.
+--De San João.
+ --¡Ah! sim; pois é fogueira,
+e não é outra coisa. ¡Ora o diabo!
+sempre tive uma colica soffrível.
+Mas vamos nós a andar, se lhe parece.
+Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,
+n'umas rasões que teve com meu tio,
+que era barbeiro então, e o Padre Mestre
+era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,
+ia fazer-lhe a barba e mais ao preto,
+que era um tição que só á bofetada;
+¡mas muito presumido! ¡e então por moças
+dava o grande magano um cavaquinho!!...
+Com que emfim, tinha o Padre este ditado:
+aonde ha lume ha fumo; e eu então digo
+que por força onde ha lume ha-de haver gente;
+e que onde ha gente ha casa; e toda a casa
+tem a sua cosinha, e então ceâmos.
+E é partir de repente em quanto ha lume.
+.........................................
+.........................................
+
+
+
+II
+
+
+Eis aqui um dialogo de ensanchas
+sem geito, sem sabor, sem fim, sem nexo--
+grita o leitor perdendo as estribeiras.
+¿Onde foi isto? ¿ou quando? ¿quem são elles?
+¿onde vão? ¿d'onde veem?
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Leitor amigo,
+ha duas horas que soubéras tudo,
+se o cruel arrieiro o permittisse;
+mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.
+Quanto a elle, presumo que o conheces;
+o nome do outro autor dir-t'o-hei n'um verso
+não peor que outros muitos portuguezes:
+Antonio Feliciano de Castilho.
+Venho do Minho de assistir a bodas;
+recolho me outra vez á Castanheira[3]
+a casa do Prior, a fazer versos,
+beber-lhe o vinho verde, e dormir muito.
+O theatro da scena é certo monte
+de que me esquece o nome; o anno, e o dia,
+Mil oitocentos e vinte e oito, á noite,
+vespera de S. João. Se mais desejas,
+é perguntar, que eu te respondo a tudo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas o melhor (se queres um conselho)
+é fazer-me um favor, ao qual protesto
+ser toda a vida grato: anda comnosco;
+a noite está bellissima; podemos
+ir co'o nosso vagar pataratando,
+e conduzindo as mulas pela redea.
+Mas tens medo ao Golgan; pois boas noites;
+fica-te em paz, regala te, que eu juro
+que estando em teu logar fazia o mesmo.
+Se queres, faze ás paginas seguintes
+onde vai mais Golgan (porque já agora
+hei-de contar a historia por miudo)
+faze, digo, a taes paginas o mesmo
+que eu, tu, e elle, e nós, e vós, e elles,
+fazemos ás dos _Martyres_ do Padre,
+que são apezar d'isso uma obra prima.
+Passa-as em claro, e dize que já leste.
+Quem fala assim não quer suor alheio.
+E adeus; até mais ver que vou com pressa.
+.........................................
+.........................................
+
+
+
+III
+
+
+--Olhe lá, Sôr Doutor; diz um livrito,
+que a gente sem falar é como os burros;
+e eu digo que diz bem. Quero contar-lhe,
+para ver se se encurta este caminho,
+o mais que se passou depois da historia.
+Mas vá picando a mula; ¡olhe a fogueira!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Com que, como eu já disse, ao outro dia
+vi as gallinhas ao redor das bestas;
+torno-as a pôr na carga, e digo logo:
+A Santa-Cruz não vão vocês de certo;
+nem vocês, nem a carga dos presuntos,
+nem nada que aqui vai, ¡com trinta infernos!
+Servos de Deus tão bons, tão meus amigos,
+¡haviam comer tal! ¡metter no corpo
+talvez quanto bruxedo ha neste mundo!
+Deus me livre do mais, que de encarrêgos
+posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas
+direito á Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,
+com carga e tudo.
+ --¿As mulas!
+ --Pois as mulas
+tinham tantos diabos na muchilla
+como as gallinhas, os boreis, e os ovos.
+Mas eu era rapaz; se fosse agora,
+não digo que o fizesse. O divertido
+foi andar eu trez annos para quatro
+a correr Portugal e Hespanha toda
+a buscar confessor; ¡tudo ignorante!
+Padre douto, nem um que me absolvesse.
+Por fim achei o filho de um cigano,
+dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.
+Mas então penitencia não falemos;
+se a quizesse rezar, ¡nem toda a vida!
+Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro duro,
+e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;
+mas disse-me que havia até ser velho
+mortificar o corpo co'um vergalho,
+e com muitos jejuns. ¡Se eu fôra pato!
+Sabe então o que fiz inda algum tempo?
+era correr de chôto os meus pedaços,
+e depois descançar.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Deixemos isto,
+que não lhe importa muito, e a mim nem nada;
+vim para a minha terra apenas pude,
+muito pimpão, e cheio como um ovo.
+Namorei, namoraram-me bastantes;
+por encurtar rasões, casei com uma
+que era filha do irmão de um primo ou tio
+de um meu compadre Abreu, que era cunhado
+da sogra d'esta mesma rapariga,
+e enteado do irmão do Cura velho;
+tudo gente limpinha, muito boa,
+e temente ao Senhor, que é todo o caso.
+Gastei para impôr Bulla os meus tanturrios,
+¡e não foi lá tão pouco! ¡Veja agora:
+¡para a gente casar largar dinheiro!
+É como ir para a India ou para a fôrca,
+e pagar inda em cima aos da sentença.
+Perguntei ao Banqueiro a causa d'isto,
+disse me elle que a causa era nós termos
+quatro humores no corpo, e d'aqui vinha
+haver os quatro grãos na parentela;
+que ella era minha prima, e que entre primos
+havia os quatro grãos todos inteiros.
+Não se riu, nem me eu ri; paguei-lhe em peças
+não só os quatro grãos que se não viam,
+mas ainda mais cá certa brincadeira.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Deixar; fosse o que fosse; emfim, casei me.
+Aquelle mez primeiro é uma delicia;
+foi todo elle um _cantate_; muito amigos,
+muito beijo, e comer; muita broega,
+muita romage, e tudo muito e muito.
+Nunca houve um par assim tão contentinho;
+nanja na aldeia e na comarca em roda;
+era até amizade escandalosa.
+Tanto assim, que o Prior, mais era amigo
+de fazer a vontade a toda a gente,
+n'um dia santo á pratica da Missa
+deu-me um foguete ¡caspite! Disse elle
+que marido e mulher com tal namoro
+era coisa mais vil que mil diabos.
+Fizemos-lhe a vontade antes de muito;
+ella entrou-me a azoar com trinta coisas,
+e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,
+o asneirão do Juiz, que era vizinho,
+tomou isto em trambolho, e ameaçou-me
+de me encaixar no fundo dos infernos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿E então que lhe parece a entaladella?
+Vivia em paz, ralha o Prior; dezanco-a,
+vem o Juiz, promette-me a enxovia.
+É como o conto de um palerma velho
+que ia a pé co'um rapaz e mais um burro.
+--Bem sei.
+ --Pois sim senhor. Com que, tivemos,
+não digo bem; teve ella oito ou dez filhos;
+e sempre a dois e dois; forte coelha!
+Entrei a dar á bruta; acudiu povo,
+ella fugiu, mas eu fugi sem ella.
+E d'então para cá desandou tudo.
+E hoje ando aqui por moço de arrieiro,
+a perder noites, e a estrompar as ventas.
+Aqui está por que eu digo que este mundo
+é coisa muito celebre! uns ovitos
+e uma pinga de mel fizeram tudo.
+........................................
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Brava! ¿não ouve uns sinos que repicam?
+¡olhe um foguete! ¡truz! ¡Viva o Vinagre!
+¡e viva a ceia e a cama que estão perto!
+
+
+
+IV
+
+
+Com effeito, assim era; a poucos passos
+já se ouvia tambor, gaita de folles,
+risadas, bombas. Apressando as mulas
+na direcção dos sons e da fogueira,
+descemos uma encosta, a cujas abas,
+entre uns poucos de antigos castanheiros,
+uns cinco ou seis pastores se occupavam
+a abobadar de murta uma fontinha.
+Interromperam logo o seu trabalho
+para nos vir saudar; mostraram pena
+de ouvir que nos perdêramos no monte,
+off'recendo á porfia os seus albergues.
+Não findara a benevola contenda,
+se um d'elles agarrando o freio á mula
+me não posesse a andar; agradecendo
+os desejos dos mais que inda ficavam,
+segui affoitamente o nosso guia.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Uma ponte de pau que atravessámos
+coberta de chorões, nos poz á borda
+de um trigo já maduro e sussurrante,
+contiguo ao seu casal. ¡Quanto eu folgara
+de descrever tudo isto! Uma casinha
+plantada ahi como risonha ilhota
+n'um vasto mar de tremulas searas,
+e clara como a neve, ou como a lua
+que a espreitava do ceo por entre as folhas
+de um esquivo parreiral. Junto ás paredes,
+de rosas e limeiras revestidas,
+canapés de cortiça apresentavam
+a imagem do descanço e a do convite.
+Não era necessario entrar a porta,
+para já conhecer o domicilio
+da hospedage e da paz; que as proprias auras,
+como que em tão poeticas folhagens
+se ouviam sussurrar: ¡«Bemvindo o estranho!»
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Não longe lhe ficava a sua aldeia
+na c'roa de um oiteiro; pensarieis,
+vendo-as tão perto, e um bosque a separal-as,
+a aldeia tão brilhante de fogueiras
+e esta casa tão só mas tão alegre,
+pensarieis, como eu, ver n'uma festa
+moça ausente e feliz, amante e amada,
+que entre o prazer commum não quer nem deve
+ir desfazer seus pensamentos doces.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Visinho seu mui proximo era o templo,
+aos valles do arredor alardeando
+na sua torre branca um Anjo de oiro,
+e a um lado a Residencia, occulta em parte
+n'um ramilhete de altas cerejeiras.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Nunca mão de pintor juntou n'um quadro
+objectos mais simpathicos. Tal como
+trépido arroio em tacita espessura
+das copas bebe a sombra, e envia ás copas,
+do sol reflexo voadores raios,
+do casal a presença alegra o templo;
+a presença do templo está lançando
+sobre o casal o sério da virtude.
+Tudo isto sob um ceo de fertil benção,
+sobre um chão de abundancia, e no ar mais puro!
+--¡Meu Pae,!--grita o pastor entrando á pressa--
+minhas irmans! ¡um hospede!--
+
+
+ * * * * *
+
+
+ A tal nome,
+como se fosse á voz de alguma fada,
+com repentina luz nos apparecem
+creanças folgasans, esbeltas moças,
+um ancião, e uma velha. Imagináreis
+ver Graças, ver Amores, ver Napêas,
+trajados de aldeãos, e honrando os lares
+de Baucis e Philémon, que o parecem
+na edade e na virtude os meus dois velhos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Não mora entre seáras a etiqueta;
+mas sobre herdada meza de pinheiro
+em troco adeja a cordeal franqueza,
+o bom desejo adubo da abundancia,
+e a amisade dos bons, filha do instincto,
+que nasce qual relampago, mas dura.
+Deu-se o primeiro instante ao comprimento,
+logo o segundo aos commodos; o resto
+á conversa, e ao bulicio de tal noite.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,
+vital perfume de mellifluos bolos,
+que em molles virações traz a alegria.
+Aquella vai e vem compondo a meza;
+esta afervora a ceia, e a cada instante
+corre á janella que descobre a aldeia.
+Juntam-se á bulha os sinos da parochia,
+que o sacristão na vespera do Orago
+jurou provar seu zelo aos Ceos e á terra.
+O festivo repique exalta as mentes,
+os meninos não param, correm, gritam,
+repartem bombas, furtam-se valverdes,
+e rindo ameaçam fogo á pipa velha.
+A boa annosa mãe ralha do estrondo,
+e o faz inda maior; o esposo enfia
+uma sobre outra historias do seu tempo.
+O avito candieiro de tres lumes
+cobre da meza o centro, e chama á ceia;
+a sôlta sociedade eis se lhe aggrega.
+Não foi longo o festim, mas cada copo
+lhe augmentava o praser. ¡Salve tres vezes,
+ó dos tres lumes candieiro avito!
+¡quanto amor, quanta paz, que bens, que festas
+não tens visto florir em tua casa!
+¡quantas mãos tão felizes como puras
+te hão accendido em noite igual! ¡quem sabe
+que de memorias para ti conservas!
+¡Em premio da hospedage aqui te accendam
+longas eras em noites semelhantes
+dignos de seus avós contentes netos!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Iria a muda apostrophe adiante,
+mas ouviu-se o zabumba.--¡Ahi veem! ¡são elles!--
+dizem todos, e todos saem pulando.
+--Olhae; olhae; ¡nem uma luz na aldeia!
+este anno veio tudo. ¡Que alegria
+terá o nosso Parocho!
+ --Maria,
+dá cá o meu chapéo.
+ --¡Corre, Pedrinho!
+--¿Onde está meu irmão?
+ --¡Não se demorem!
+--Vamos dançar.
+ --Perdi as alcaxofras.
+--Vinde por cá; passemos-lhes adiante;
+que rancho que lá vem!................
+..........................................
+.................... Golgan, que eu fosse,
+não pintara a estrondosa miscellanea
+que vôa do cazal ao Presbyterio.
+Lavra nos proprios velhos o alvoroço;
+vão co'os mais quasi a par; lavra em mim mesmo,
+estranho á festa. O pateo illuminado
+nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.
+--Viva o nosso Prior!...
+ --¡Viva!!!...
+ Mil vozes
+restrugem o ecco apenas avistaram
+rindo á janella o velho gordo e alegre.
+--¡Viva o Senhor San João! ¡viva a alegria!
+
+
+
+V
+
+
+Bate o zabumba; a muzica rebenta;
+fogem foguetes pelos ares livres
+estrepitando; o campanario ovante
+de jubilo endoidece; repentina
+por dez partes acceza alta fogueira
+dentro de um vasto circulo purpureo
+mostra o prazer brincando em cada rosto.
+Bello é ver n'este lance as raparigas
+compondo mais o lenço, alevantando
+o chapeo, que o semblante lhes encobre,
+dando, como a descuido, um toque leve,
+mas gracioso, ás flores que lh'o adornam,
+e á flor do seio, e ao laço do collete.
+¡Quantos nós ata amor n'esses instantes!
+¡quantos outros aperta! ¡em quantos outros
+embebe o espinho de um sutil ciume!
+
+¡Chiton! temos o Parocho na frente;
+e as cangalhas vêem mais do que parece.
+A _alegria decente_, eis o estribilho
+com que recheia as praticas. Se cantam,
+co'a cabeça e co'o pé bate o compasso;
+se pulam boa dança em honra ao Santo,
+bota fora uma can. Por isso o baile
+circula agora a estridula fogueira;
+por isso o San João vai toda a noite
+injuriado em canticos devotos.
+
+
+
+VI
+
+
+Meia noite. Que som mysterioso!
+interrupção no baile e nos descantes.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Fada das amorosas prophecias,
+tu, tu passaste agora em concha aerea
+tirada pelo zephyro; sentimos
+todos nós tua magica presença.
+¡Boa viagem, Fada, e boa noite!
+¡Salve, hora duodecima; bateste,
+e descerrou-se a porta do futuro.
+Sua nevoa desfeita em orvalhadas
+vai nas plantas eleitas, vai nas flores
+mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes
+benção, certeza, amor, felicidade.
+Já se interrompem bailes e descantes.
+Embebida em potentes nigromancias
+toda esta multidão por modos varios
+exerce escrupulosa altos mysterios.
+Mas renasce o alvoroço; é porque os copos
+dos bilhetes fatidicos chegaram
+da ama nas mãos com riso de importancia.
+
+--Não falta aqui rapaz nem rapariga--
+diz ella;--o senhor Padre escreveu todos,
+mesmo á vista do rol dos confessados.
+Meia noite já deu; quem quer casar-se,
+pode vir vindo.
+
+ Ao grande reboliço
+succedeu a attenção, que a cada sorte
+outra vez se converte em gargalhadas.
+Por cada par que amor approvaria,
+veem disparates comicos ás duzias,
+e dão rebate ás palmas e epigrammas.
+O proprio bom do velho applaude a tudo,
+e por primeira vez da sua vida
+encontra em si chorrilhos de finuras.
+Já pede a uma o bolo do noivado;
+quer ser padrinho de outra; e ás mais bonitas
+quer baptisar de graça os pequerruchos.
+
+Muito custa no mundo o ser discreto
+sem descambar o pé! coisas escapam...
+que é por Deus não haver o Santo Officio,
+como esta ao nosso padre:
+ --Olhae, rapazes,
+vai n'estas sortes o que vai no mundo:
+o acaso e a Providencia, ao que parece,
+ambos lêem pelo mesmo Breviario.
+
+Não foi dos mais christãos o epiphonema,
+mas fez rir. O Golgan neste comenos
+chega, furta uma sorte, e diz abrindo-a:
+--Esta, seja quem fôr, é cá p'ra nostri.
+
+Pede que a leiam; lê-se-lhe:--O coveiro.--
+Mudo o povo se entre-olha; e de repente
+co'as pragas do Golgan destampam risos,
+como os que o padre Homero encaixa aos deuses;
+¡inextinguiveis risos! Mas não cede
+a chufas nem a agoiro o varão forte;
+e com mão bem segura extrae sublime
+do outro copo outra sorte:--Ambrosia Trécula.
+
+Então do pateo o riso clamoroso
+deveu-se ouvir no Artabro e Guadiana,
+e retumbou nos ceos: Trécula... Trécula.
+
+--¿Quem diabo é esta Ambrosia?--o heroe pergunta.
+--Sou eu--responde a ama.
+ --¡Está brincando!
+é talvez sua neta ou titrineta.
+--Vá-se, tolo.
+ --Olhe cá, senhora tia,
+não vai a arrenegar; não lhe pergunto
+por cara, corpo e modos, que são lindos;
+¿mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa?
+
+Com o desdem mais dramatico, a matrona
+voltou costas; e o bêbado prosegue:
+--Sô Reverendo, não lhe aceite os banhos,
+que eu sou casado, e ponho impedimentos.
+
+Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem
+tirar tambem; tirei; ¿quem tiraria?
+uma das filhas do meu bom Philémon.
+Recebi parabens de todo o povo;
+deixei-o bem disposto a divertir-se,
+e tornei co'o o meu _sogro_ ao nosso albergue.
+Instou que me deitasse; respondi-lhe
+que em noite de San-João ninguem se deita;
+que alem d'isso a jornada fôra curta,
+e sem nimia fadiga; ultimamente
+que, pois que elle esperava a mais familia,
+esperava eu tambem; não sendo airoso
+faltar á noiva no primeiro dia.
+--Cedo, mas só co'a clausula--disse elle--
+que inda amanhan sois nosso.
+ --Assigno.
+ --¡Bello!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Então toca a palrar até que venham.
+Saiâmos, que faz calma; alem, na eira,
+sobre a alta palha do centeio novo
+tomaremos a fresca e as orvalhadas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Disse, e fez se. ¡Que ceo! ¡que paz! ¡que noite!
+na molle aragem das fagueiras horas
+meu coração feliz desabroxado
+me enchia de um perfume egual ao vosso,
+nocturnas flores, que o gosais sosinhas.
+¡Quem podesse apanhar, prender na vida
+estes momentos lubricos, momentos
+que só caem do ceo durante a noite,
+e só na solidão! Temi perdel-os
+co'a triste distracção de mutuas falas.
+Lembrou-me haver notado no meu velho
+um genio amigo de contar historias;
+pedi-lhe uma qualquer, bem decidido
+a deixal-o á vontade espanejar-se
+sem lhe dar attenção; mas enganei-me,
+Pondo o rosto na mão, nos céos os olhos,
+entra a buscar pela memoria antiga
+algum caso mais raro; e como desse
+casualmente co'a vista em certo lume
+n'um cabeço remoto,
+
+
+ * * * * *
+
+
+ --Ouvi--me disse;--
+por aquella luzinha lá ao longe
+lembra-me um caso, e um caso que foi certo,
+passado ali no Minho ha largos annos.
+Inda eu conservo em casa uns Breviarios
+de um Padre irmão da minha avó materna,
+que poderão servir de documento.
+Elle mesmo o escreveu nas folhas brancas
+do principio e do fim dos quatro tomos.
+E era um clerigo honrado, o que escrevia;
+merece tanta fé como a Escritura.
+Diz elle então ali (nem é só elle;
+minha Avó sua irman dizia o mesmo):
+que esta nossa familia inda descende
+da Rosa de quem fala a dita historia.
+A minha avó foi Rosa, e tinha o nome
+de sua mãe; a minha mãe foi Rosa;
+a vossa _noiva_ é Rosa; e n'esta casa,
+querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Depois d'este preambulo de Rosas,
+veio a historia, e encantou-me; ou fossem causa
+hora e sitio, ou a amavel singeleza
+com que narrava o historiador das medas,
+ou já disposição com que eu me achasse.
+Creio que sim: do espirito do ouvinte
+vem mais de meio o merito das obras.
+Por exemplo: da Eneida o livro quarto
+dias ha que me enfada; ha tambem dias
+em que se atura o _Italico_ do Padre;[4]
+e em que se entende um pouco a pálrea bruta
+que aos brutos deu do amavel Lafontaine.[5]
+Nada parece mal, trazido a tempo;
+fora de tempo, tudo. A mesma coisa
+entre obras e leitores acontece,
+que entre os garfos e as arvores: se enxertam
+quando o não pede o tronco e o veda a lua,
+¡adeus ramo bastardo! e se ao contrario,
+penetra a seiva toda, e pula o ramo.
+
+Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,
+que protestei contar-vol-o a meu modo;
+e o poema seguinte é o desempenho.
+Tivesse elle, o que em vão lhe hei procurado,
+da prosa do meu sogro o tom singelo,
+talvez, leitores meus, o relerieis.
+
+Inventar, descrever, compor os versos,
+são os tres pés, da trípode de Apollo.
+Já sabereis do Reverendo Kinsey
+que eu não tenho invenção; que nada pinto
+co'a verdadeira côr da Natureza;
+que os versos meus são bons, mas que aborrecem;
+o que não tira que um poéta eu seja
+digno de ser notado entre os que vivem.
+Ora, quanto á invenção d'este poema,
+bem vedes que a não ha, ou se a ha que é d'outrem.
+E quanto ás descripcões, fiz o possivel
+para não metter mais que as do meu _sogro_.
+Mas faltava o melhor, e o mais difficil:
+versificar á moda. Atirei fora
+o Virgilio, o Racine, e o Metastasio,
+gebos todos monótonos, que enfiam
+os versos bons e os optimos aos centos;
+atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;
+estudei, fiz ensaios, compuz paginas
+de embréxados velhissimos e esdruxulos,
+e não foi sem proveito o estudo acerrimo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Perdoae se este livro inda vai falho
+d'esses donaires que travêssos fogem
+de mal expertas mãos; soffrei-o em quanto
+vou destilar sobre outro o _Elucidario_,
+qual se espreme um limão sobre um guizote.
+
+
+Abril de 1831.
+
+FIM DA INTRODUCÇÃO[6]
+
+
+
+
+III
+
+EPISTOLA
+
+A JOÃO EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA
+
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho)
+
+
+
+Da paz de um ermo ao turbilhão da côrte
+a Musa de Castilho á do seu Costa
+saude e amor. Já outra primavera
+se enflora, a seu pesar, desde que ausente
+pede aos montes a irman, que a não suspira,
+e dorme ao lado de um feliz ingrato.
+
+
+Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios
+em cantos cujo ecco além não passa
+....................................
+
+
+1831--Abril, 21.
+
+
+
+
+IV
+
+O PRESBYTÉRIO
+
+
+
+¡Salvè, principio e fim dos meus passeios!
+¡Salvè, ó tu, cujo tecto, alva casinha,
+cobre ha perto de um lustro os meus autores,
+meus castellos no ar, meus faceis versos!
+¡Salvè, co'o teu rosal; co'as tuas limas,
+festivo ornato das paredes brancas;
+co'o teu portão patente oppresso de heras;
+e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,
+brasão futuro do obumbrado pateo!
+¡Salvè outra vez, meu presbytério! ¡Salvè!
+
+
+ * * * * *
+
+
+Hoje, que o caprichoso do meu estro
+(bem sabes se elle o é) deixa inconstante
+versos índa no chôco, outros que apenas
+vão da casca a sahir, outros que breve
+teem de fugir do ninho em vôos livres,
+entrou, mal veio a aurora esclarecer-te,
+a doidejar-te em roda, a namorar-te,
+qual borboleta ociosa ou leve abelha.
+Pois que elle o quer.... cantemos-te; e perdôa
+se o canto falador, transpondo os cumes
+das tuas cerejeiras, fôr mais longe
+revelar tua humilde obscuridade.
+
+
+ * * * * *
+
+
+A antiga mediania, a segurança,
+a paz, o amor dos Ceos, o amor dos homens,
+genios foram, que em bençãos presidiram
+aos alicerces teus. De Pário monte
+não foi mistér que entranhas te enviassem
+chão, columnas, e abóbadas, e estatuas;
+tuas portas sem chave não cresceram
+lá nas florestas do hemisphério opposto.
+Foi visinho pinhal teu sôlho e tecto;
+deu-te paredes mais visinho oiteiro;
+portões e meza um cedro bom da extrema.
+Não custaste nem lagrimas a pobre,
+que á força te cedesse a choça avita,
+nem odioso suor; e não se dormem
+somnos melhores em Belem nem Mafra.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Que importa que no centro d'estes ermos
+vivas tão só, que apenas descortines
+n'um dos altos d'em torno esquiva aldeia?
+Tu e o templo co'as messes que vos cingem
+bastais no quadro agreste; em vós affluem
+(como em sua Queluz) nos festos dias
+ondas e ondas de amaveis saudadores.
+Os rebanhos ociosos não desdenham
+tôjo em flor, que te doira o chão das mattas,
+d'onde envôltos co' os trémulos balidos,
+veem cantos de amorosas guardadoras
+endoidecer teu ecco.
+ Os caminheiros
+abençôam-te a sombra; aqui teem fonte,
+que em tua relva, ao fresco das parreiras,
+detém, dessedentando-as, caravanas
+que vão ou veem no alpestre Caramulo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+O anjo das flores liberal te arqueia
+de bordada verdura as rescendentes
+claras janellas.
+ Um bulicio manso
+de amigas vozes teu recinto alegra.
+Na sua tépida choça os bois ruminam
+ante o feno em montões; dorme no páteo
+farto esquadrão lanigero; ao sol pôsto,
+cão, dos lobos terror, te vela as noites;
+teus gallos as demarcam vigilantes.
+Co'a luz primeira arrulha-te alvejando
+cypria nuvem plumosa; e apenas saltam
+da dextra mão mesquinha os grãos doirados,
+em torno da gentil madrugadeira
+de toda a parte os hospedes revôam.
+Bicam por entre as pombas á porfia
+a gallinha de filhos rodeada,
+o manso grasnador do aquoso tanque,
+o vaidoso perú, que ri cantando,
+e vós, e vós, mais vivos do que todos,
+não chamados, mas sempre a nós bemvindos,
+passarinhos do ceo, turba sem dono.
+
+ * * * * *
+
+Singelo presbyterio, ¡oh! ¡como te amo,
+co'o teu ar casaleiro! Amo o teu forno,
+tão social á noite; a simples sala,
+quasi sempre deserta; a livraria,
+deserta rara vez; estas alcôvas,
+que enche um só leito; e a adega, assoviada
+do alvo sôpro do Norte; e o fuso, e a pia
+da cheirosa vendima; e o teu celleiro,
+alto, arejado, e tão patente aos pobres,
+como as portas do templo convisinho.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Floresças para o Ceo e para a terra
+nos inconstantes seculos! ¡floresças,
+feliz, co'o feliz dono, edade longa!
+E se, lá no futuro, algum amigo,
+sócio dos dias bons, saudoso e triste,
+torcendo a estrada, a te pedir viesse
+novas do teu cantor,--«Amou me, e amei-o--
+lhe dirias mostrando-te; e--«Seus ossos--
+juntaria o teu velho--aqui descançam.»
+
+ * * * * *
+
+Sim; apraz-me cuidar que inda os meus restos,
+gratos aos bons d'este recanto obscuro,
+onde escapei no seculo de sangue,
+cá ficarão n'este ocio, inda alguns dias
+do simples montanhez talvez chorados.
+
+ * * * * *
+
+Oh santa perseguida Liberdade,
+¡onde te achei!.... Onde não vivem homens;
+n'um torrão bravo que não chama invejas.
+
+ * * * * *
+
+Em quanto, ora que a noite o ceo regela
+humida e turva, tantos ricos enchem
+de bocejante enôjo as assemblêas,
+e tantos, tantos miseros, sem lares,
+sem consôlo, sem pão, sem voz de amigo,
+só reos de patrio amor, dormem nas furnas,
+pelas praias do Oceano, e pelas rochas
+(sublimes troncos pelo pé cortados)...
+tua clara fogueira nos aquece;
+¡graças, graças a um Deus!
+ Assim vagava
+sobre o universo undoso a arca do justo.
+
+ * * * * *
+
+Nós, depois de annos tres, inda esperâmos.
+Ainda do trovão eccos retumbam.
+Ainda os escarceos assoladores
+remugem lá por fóra. Ainda a pomba
+co'o ramo de oliveira inda não volve.
+
+ * * * * *
+
+¡Oh santa perseguida Liberdade!
+¡Oh! ¡Se eu podesse, a trôco dos meus dias,
+restituir-te á minha Patria!....
+
+ * * * * *
+
+ Basta.
+Esperemos ainda. Oremos sempre;
+e talvez que não tarde a grata aurora,
+em que, a adejar da serra pelos pincaros,
+venha de longe a nuncia das venturas,
+a pomba com o seu ramo de oliveira!...
+
+Castanheira de Vouga
+
+ Maio de 1831.
+
+
+
+
+
+V
+
+A LYRA DO DESTERRADO
+
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho)
+
+
+
+Era a noite dos finados;
+sombria noite de outono.
+Entre sinos acordados
+lá jaz Roma entregue ao sono;
+seus luzeiros apagados.
+
+Do ceo pelo rôto manto
+só brilham frouxas estrellas;
+sai a custo o clarão santo
+dos templos pelas janellas;
+e Petrarcha vela emtanto.
+
+Véla Petrarcha, e suspira
+no leito amoroso e ermo;
+olhos na véla que expira;
+saudades no peito enfermo;
+nem gloria sonha, nem lyra.
+
+Qual raio sôlto de lua
+por móveis aguas vibrada
+n'um bosque inteiro flutúa,
+tal adeja no passado
+a saudosa mente sua.
+
+¿Quem dirá seus pensamentos?
+a douta lingua está muda.
+¡Que paixões, que sentimentos,
+no rosto, que aspeitos muda,
+veem transluzir por momentos!
+
+Ora é dor, ora é sorriso,
+esperança, amor, transporte;
+queixas, ternuras diviso;
+desce aos abysmos da morte,
+vôa aéreo ao Paraizo.
+
+¡Não falar o Vate agora
+co'os labios que move apenas!
+¡Que torrente abrazadora!
+¡que amor! ¡que incendidas penas!
+¡quão nova a paixão não fôra!
+
+Vai a noite adiantada;
+humido vento assovia;
+treme a luz quasi apagada.
+Do grão Cantor que vigia
+ferve a mente a sonhos dada.
+
+--«Eís o templo conhecido
+que os meus destinos encerra.
+A mãe terna, o pae querido,
+cá m'os tem no seio a terra.
+Cá vi Laura, e fui perdido...
+...............................
+
+Castanheira do Vouga
+ 1830...(?)
+
+
+
+
+
+VI
+
+EPISTOLA
+
+(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho)
+
+
+
+A minha primavera emfim renasce.
+Té n'este horror selvatico dos montes
+roupas traja nupciaes a Natureza.
+O ceo azul, o ar morno, as aguas puras,
+tudo nos diz «amor»; dizem-n-o as aves
+chalreando ao florir das alvoradas;
+bala o rebanho alegre; armento o muge;
+na folha nova zéphiro o cicia;
+a camponeza em meio de mil flores,
+que lh'o exhalam balsamico, o suspira,
+e ao viçoso tapiz, á sombra vasta
+macia e tentadora lança os olhos.
+
+Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,
+enleva a fonte e as arvores nocturnas,
+cantando amor, da lua ao raio incerto,
+lições que mais de um ente ao longe estuda
+(e pratica talvez); em sons de lyra,
+solitario eu tambem, lições de affectos
+de cá te envio ao centro da cidade.
+N'esse ruidoso vórtice de povo,
+de vãos praseres, de negocios futeis,
+a geral rotação te arrasta ás cegas;
+é dever da amisade erguer-te aos olhos
+luz, salvadora luz. Náufrago entre ondas
+pode não ver a táboa ás vezes perto;
+pode a praia ignorar, e tel a em face.
+Táboa amor te lançou da praia firme;
+ledo e fausto Hymeneu te está chamando.
+.......................................
+
+
+
+
+
+VII
+
+A ROMARIA
+
+
+
+Lá vem Maio rosado. Já floreja
+nas planicies, verdeja pelos montes;
+é o mez de Amor, é o mez de Philoméla.
+
+Aureo amanhece o dia suspirado
+da romaria annual; léguas em roda
+já tudo é festa, esp'rança, e regosijo.
+As povoações, desertas. Por estradas,
+por torcidos atalhos, por oiteiros,
+correm de toda a parte ornados bandos.
+Lá retrôa nos eccos aturdidos
+a matinal girandola ruidosa;
+acorda ao longe a torre com repiques;
+um povo de cem povos misturado
+enche a vozeada selva, a acceza ermida,
+e de ondeado matiz cobre o terreno.
+Arfa ao sol, no alto mastro volteando,
+triumphante bandeira alvi-cerúlea.
+Vai e vem, ora chega, ora se allonga,
+não está em nenhum sitio, e assoma em todos,
+a alma da festa, a gloria do Gallego,
+a aguda gaita túmida e franjada,
+que ao rufado tambor sócia, repete
+a moda velha e alegre, amor dos campos.
+Em vidrado alguidar reluzem n'agua
+os doirados tremóços, que afadigam
+com compradores a afrontada tia.
+As navalhas e anéis, o apito, o espelho,
+se assoalham mais além; na alva toalha,
+alva e folhuda, estão chamando o exul.
+Em cima de seus carros triumphantes
+os laureados tonéis, reis da alegria,
+dão n'um fogo perenne a vida a tudo.
+
+Aqui se ouve o descante ao desafio,
+que a viola ora segue, ora acompanha.
+Ali se apinham para ver as danças,
+que a discorde rabecca entorta ás vezes.
+Lá, se entorna o licor em puros vidros;
+ao pé se adoça a fresca limonada.
+
+Aqui se comprimentam; além chamam;
+um se perde, outro se acha, outro convida.
+Este corre; esta pára a ataviar-se,
+por mostrar o cordão e o lenço novo.
+Estirados na relva os velhos palram;
+grita o rapaz. O amante, recostado
+ao páu, por onde um braço lhe serpeia,
+faz longa côrte á tímida futura,
+que em resposta de amor lhe dá tremóços.
+
+N'isto vôa o foguete, e atrôa as nuvens.
+Lá sai a procissão; lá foram todos.
+¡Ah! depois do jantar comido ás sombras,
+cada um levará, volvendo a casa,
+gratas lembranças para o anno inteiro.
+
+
+
+
+
+VIII
+
+O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES
+
+OU
+
+A MATTA DE S. SEBASTIÃO
+
+
+ Versos na plantação de uns carvalhos junto á egreja de S. Mamede da
+ Castanheira do Vouga pelos rapazes solteiros da freguezia no
+ Domingo do Carnaval de 183...
+
+
+
+I
+
+
+N'este dia, em que o povo tumultuando
+nos casaes, nas aldeias, nas cidades,
+troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,
+por copos, danças, máscaras, e risos
+nas saturnaes christans; quando se espraia,
+desde o seio de Roma aos fins da terra,
+de um praser contagioso alta vertigem;
+¿por que retreme ao golpe das enxadas
+sob os meus pés a solitaria encosta?
+
+ * * * * *
+
+¡Saude a vós, a vós louvor. Bemvindos,
+montanhezes, fieis aos priscos usos!
+O cântaro do estylo ahi está coroado,
+risonho e prestes a inundar os copos;
+o prémio á vista vos redobre as forças.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Rasgae co'o duro ferro a terra dura;
+de vossos paes a matta veneranda
+em torno de seu santo antigo dono
+se accrescente por vós. Plantae, que é tempo,
+no chão, sagrado de suor devoto,
+ó presente annual, que o Ceo prospére.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Onde quer que elle jaz, abençoemos
+as cinzas do homem bom, lá d'essas eras
+que a pia usança introduziu primeiro.
+¡Quanto a sua virtude era risonha!
+--«Cada solteiro plantará n'este ermo
+mais uma arvoresinha de anno em anno,
+que lá em cima encontrará seu premio.»
+¡Oh! estes rogos, sim, este pedido,
+doce e desint'ressado, uncção respira;
+manda mais do que as Leis; morrer não deve.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Produz, produz a miudo, ó Natureza,
+por teu bem, por bem nosso, homens como esse.
+Haja quem diga ao joven par, que ás aras
+sobe apenas amante, e desce esposo:
+--«Hoje, que são já fruto esp'ranças de hontem,
+entrae sorrindo pelo chão da vida;
+plantae, plantae um'arvore que o lembre.»
+
+
+ * * * * *
+
+
+Quando a cabana festival se enrama,
+se enflora a meza, e os aldeãos visinhos
+veem festejar na casa um filho novo,
+a mão paterna, de praser tremendo,
+orne de um novo tronco o prédio avito.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Depois de suspirada e curta ausencia
+volve um irmão das terras estrangeiras?
+¿Convalesce um parente? ¿Em bem se acaba
+suado, volumoso, eterno pleito,
+que empobreceu o avô, o filho, e o neto?
+¿Fizestes o adversario amigo vosso?
+¿Sorriu-vos a ventura? ¿É farto o anno?
+A sêrdes Reis, alçáreis monumentos;
+¿que vale um monumento? O homem dos campos
+melhores pode erguer a menos custo:
+plante sobre o caminho arvores férteis.
+Por elle o passageiro ardendo em calma
+ache a sombra hospedeira que o recreie.
+Por elle o pobre, que seu pão mendiga
+de casal em casal, de monte em monte,
+que não vê ceo, nem lar onde se aqueça,
+nem feno onde descance, e em todo o mundo
+só tem por património a caridade,
+ache a fruta a pender em curvos ramos,
+a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.
+Assim, do bem de um só germinariam
+mil bens communs; e do praser de um homem
+o publico praser, publicas bençãos.
+
+
+
+II
+
+
+Se tendes de nascer, nascei mui breve,
+sensiveis corações a quem Deus guarda,
+a gloria de influir eguaes costumes.
+Desde já nossas lagrimas de affecto
+correm por vós; ao seio do futuro
+nós vos lançamos desde cá louvores.
+
+
+
+III
+
+
+Sentemo-nos, em quanto os vossos filhos
+aqui se embebem na tarefa honrosa,
+sentemo-nos á sombra, a vós bem grata,
+do carvalhal que as vossas mãos plantaram,
+homens das cans, antigas testemunhas
+dos tempos que não são.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Vós, deputados
+das mortas gerações aos vivos de hoje
+como pregões propheticos; thesoiro
+de saudades, de dor, de experiencia;
+bons velhos, á vossa alma taciturna
+aprazem mais que a festa os pensamentos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Falae: ¿d'onde vos nasce essa tristeza
+profunda a um tempo e vaga, amarga e doce?
+¿Será de enfeitiçada sympathia
+que nos attrai á terra, ao chão da vida,
+chão sempre cubiçado e sempre ingrato?
+
+
+ * * * * *
+
+
+O coração, zeloso da existencia,
+compara os dias seus do tronco aos dias,
+e a conta desegual o opprime e o fecha.
+¡Annos a nós, e seculos aos bosques!...
+Planta o pae, mas a sombra hospéda os filhos;
+netos, que não verá, gosarão d'ella;
+e indiff'rentes incógnitos vindoiros
+rirão contentes ao folhudo abrigo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Mas, velhos, mui ditoso o que em seu predio
+dispõe arvore fértil de esperanças,
+que irá legada aos filhos de seus filhos.
+Prophecias de amor lhe expande o seio,
+sorri, e ama o que é seu, na esp'rança ao menos.
+Mas feliz egualmente o que em seu predio
+possue vaidoso um tronco hereditario.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Na réga, e ao vir da flor, e ao dar do fruto,
+¿como ha-de não pensar em seus maiores?
+Um lh'o plantou, os outros lh'o trataram;
+¿Como ha-de recusar-lhe uma saudade,
+um suspiro, um suffragio, um elogio?
+A gratidão medita á mesma sombra
+onde já meditára o amor paterno.
+Esta arvore mortal é o santo marco,
+em que se juntam, se entrelaçam, crescem,
+dos idos o interesse e o dos vindoiros;
+nó de affeição, que os seculos reune.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Vedes vós essa mãe, que ha tantos annos
+chora um filho alem-mar, em longes terras?
+Mostrae-lhe um passageiro a dar á vella
+para o porto feliz; ¡com que ternura
+lhe não dará, chorando, um longo abraço,
+que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,
+e todo o amor de mãe lhe exprima n'elle!...
+¡E com quanto alvoroço o desterrado
+não cingirá o amavel mensageiro!...
+Eis o emblema da arvore, cruzando
+viva e lembrada o Oceano das edades,
+mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.
+
+
+
+IV
+
+
+¿Qual de vós, repoisando n'esta cama
+de folhas mortas, qual de vós, no meio
+d'esses troncos musgosos, seculares,
+não viaja com o espirito espraiado
+por esse mundo antigo e antigos homens?
+Sim, vossa alma se apraz, phantasiando
+de lhe restituir quanto houve d'elles:
+uma vida, uma choça, herdade e patria.
+Deslembram cans; rugosas faces riem;
+reviveis n'um minuto annos de infancia
+sob a affeição de um pae, de um pae nos lares;
+sem cuidados, sem prole, e sem temores,
+entrais folgando o limiar da vida.
+¡Podesse n'este ponto o pensamento,
+como ave em ramo flórido e viscoso,
+deter-se a recordar, ficar pregado!
+¿Vós suspirais?!... desfaz-se-vos o sonho,
+e a extincta geração recai nas campas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Mas quê? ¿d'esses antigos plantadores
+nada mais resta além de uns troncos mudos
+n'este universo movediço e instavel?
+¿nem uma só lembrança, um dito, um nome?
+Tudo passou sem mínimo vestigio,
+como os sons leves de um descante ao longe.
+...........................................
+
+
+
+V
+
+
+Bons aldeões, estas sombras regaladas
+vos falam nos avós; porém comigo,
+comigo, extranho, e novo em meio d'ellas,
+conversam no aureo tempo a que assistiram;
+recordam-me as edades do Universo,
+e os varios povos, e os paizes varios,
+contemporaneos do nascente mundo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Intonsas, invioladas, venerandas,
+outras selvas, como esta que nos fecha,
+fecharam do homem a primeira origem.
+Sob as verdes abóbadas immensas
+as velhas tradições nol-os descrevem
+pobres e alegres, nús e satisfeitos,
+saboreando em ocio a glande e a fonte,
+dormindo sobre a folha, e sem pedirem
+outra casa, outro templo, outra cidade.
+
+
+ * * * * *
+
+
+A pouco e pouco o numero crescia,
+minguando a pouco e pouco a singeleza.
+Infecta o vicio á terra; os ceos se mudam;
+a um Maio eterno as estações succedem;
+o ar se gela e accende, alaga e silva;
+já bravejam leões, já bramam tigres;
+o homem se acoita ao seio das cavernas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Vós, troncos, até ali seus companheiros,
+acudís a servil-o; ¡e em quantos modos!
+lá, crepitais em rútila fogueira;
+aqui, das feras prohibís a entrada;
+dais uma clava ao caçador valente;
+na serviçal cortiça um berço aos filhos;
+leitos a amor, assentos á velhice,
+aos enxames um lar, um copo ás festas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Das precisões ao grito, o engenho acorda;
+lá surgem povoações, curraes, tugúrios,
+e uma capella ás rusticas deidades.
+Lá rompe o novo arado a terra dura;
+lá geme, a transportar enormes pezos,
+o carro, e sulca atónitos caminhos.
+O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;
+a rudeza se pule; as artes crescem;
+a especie racional das mais triumpha.
+
+
+ * * * * *
+
+
+As gerações do ceo, do mar, da terra,
+tudo é já seu; os campos lhe obedecem;
+faltava o Oceano; affoita quilha o rasga.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Então foi, que estas arvores, tão uteis
+no patrio continente, abriram vôo
+sobre o liquido abysmo a novos climas.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿E em que parte do globo, arvore excelsa,
+te podes presentar, que não recordes
+uma façanha, um culto, um grão successo?
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta
+que foste invicta clava em mão de Alcides;
+vê-te, suspira, bate o chão raivando
+de achar-se escravo, e de não ter-lhe as forças.
+¿Na Grecia? Mas o Grego inda hoje conta
+do arvoredo Dodónio as mil respostas,
+o passado e o porvir patente a todos,
+e o livro do destino aberto ao mundo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Na Ausónia? Mas Cybelle amou teus ramos;
+Roma os sagrou a Jove; e, fulminada,
+eras tremendo agoiro a todo o Imperio.
+¿Em Roma? ¿E a c'rôa civica?
+
+
+ * * * * *
+
+
+ ¿Nos campos?
+¿E Phílémon, o justo, o caro aos deuses?
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Nas Gallias? em seus barbaros oiteiros
+tu, só, eras o altar, o deus, e o templo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Na Caledonia, em Morven, junto aos lagos,
+sobre os cumes, á beira das torrentes?
+Lá tu viste Tremnor, Fingal, e os bravos,
+reunidos na vespera do sangue
+em nocturno festim que allumiavas,
+quando na harpa dos bardos reviviam
+os feitos dos heroes do antigo tempo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Salve, eleito Israel! Eis-nos em campos
+de Sichem. Vejo os principes e os velhos,
+os juizes, as tribus, apinhar-se
+em torno ao tabernáculo de Sila.
+Por cima d'este mar ondeado e vivo
+reina de praia em praia alto silencio.
+Sublime como o cedro do deserto,
+se levanta Josué, braço do Eterno,
+em nome do Senhor, que o manda e inspira;
+os favores do Ceo recorda ao povo;
+renasce a Fé; os idolos se arrazam;
+--«¡Gloria ao Deus de Israel!--vozeia a turba--
+¡ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!
+--Erga-se um monumento,--exclama o chefe--
+que, se infieis um dia os esquecerdes,
+vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.»
+E a monumento põe no logar santo
+enorme pedra á sombra de um carvalho,
+que abrigava co'a copa o santuário.[7]
+Despede o Povo, e em paz contente expira;
+em paz, que já não vê perjúrios novos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Escrava de Madian a plebe expia,
+na miseria e no opprobrio, os males torpes
+que fez ante o Senhor. Mas inda existe
+um justo, a quem Deus fie o libertal-a:
+é Gedeão, é o Josué segundo.[8]
+Este, em quanto seu pae lança aos caminhos
+medroso olhar á espera do inimigo
+para fugir com elle, ajunta á pressa
+o trigo que limpou.
+ Vê de repente
+um Anjo, que debaixo do carvalho
+se assenta, e lhe repete a lei do Eterno.
+Esse mesmo carvalho é testemunha
+da belleza do alado mensageiro,
+da voz de salvação mandada ao Povo,
+e do holocausto acceito e posto em cinzas,
+e do altar, a quem _Paz_ foi dada em nome.
+
+
+ * * * * *
+
+
+E este, que tão frondoso opáca os valles,
+¿por que o rodeia um bando taciturno
+dos fortes de Galaad? as suas armas
+jazem quebradas; sua dor vai funda;
+dos olhos tristes para o ceo voltados
+pelo rosto amarello lhes escorre
+grosso pranto, que alaga as f'ridas frescas.
+Choram Saul, e a régia descendencia,
+que mortos no combate aqui descançam.
+Para o Monarcha agigantado e invicto
+nenhuma estátua se erguerá na campa.
+Sua columna e funebre palacio
+preparou-lh'os com tempo a Natureza:
+o tronco, rei da selva, o está cobrindo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Mas quanto é mais tocante o que se eleva
+nas faldas solitarias da montanha!
+Ali Débora jaz; ali Rebecca
+chora na morte a que a nutriu na infancia,
+ama no coração, mãe nos extremos,
+de seus primeiros e ultimos segredos
+confidente fiel no lar paterno,
+querida socia na feliz viagem,
+e no lar conjugal seu doce allivio.
+¿Arvore a tanto affecto consagrada
+na affectuosa Biblia irá sem nome?
+o _carvalho das lagrimas_ lhe chamam.
+
+
+
+VI
+
+
+¡Que uso tão doce aos corações piedosos!
+Reverdecei, costumes do bom tempo,
+quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,
+tinham sob um ceo livre a sepultura.
+A Morte, menos barbara do que hoje,
+com avarenta mão não ferrolhava
+sob um tecto pezado, entre altos muros,
+as prezas, cá de fóra em vão pedidas.
+Não era um templo um cárcere de mortos.
+Dormiam mollemente em terra franca,
+em jardins frescos, em copadas selvas.
+Esta esp'rança adoçava um pouco o amargo
+do ultimo trago aos labios moribundos.
+Este bem, tão pequeno em mal tão grande,
+¡quanto valor não tinha aos que ficavam!
+O irmão, o pae, o filho, o amigo, o esposo,
+podiam livremente, a toda a hora,
+ir regar de seu pranto amadas cinzas,
+fartar saudades, inflammar lembranças,
+delirar doce a noite, e o dia inteiro,
+e de praser a um peito onde palpitam
+superstições de amor ou de amisade,
+dizer:
+ «Este tapiz relvoso o cobre;
+esta ave lhe gorgeia; esta aura sôlta
+o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;
+a primavera m'o visita, e espalha
+tambem por cima d'elle o seu regaço;
+esta violeta é sua, hei-de colhel-a;
+d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,
+nutre-se do seu pó, vive por elle,
+é elle mesmo em parte; arvore amiga,
+recebe o nome caro, hoje sem dono,
+toma os abraços que não posso dar-lhe.»
+
+
+ * * * * *
+
+
+Sim, sim, convém um bosque ás sepulturas.
+A arvore, Deus a fez como passagem
+do mundo que respira ao mundo inerte;
+commum co'os animaes, commum co'a terra,
+vive e não sente; habita e ignora o mundo,
+sympathisa co'a morte e co'a existencia,
+é grata ás cinzas, á saude é grata.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Que férreos somos nós, que a um como vago
+atiramos sem dó perdidos, mixtos,
+o detestado, o amigo, o estranho, e o nosso!
+Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros
+arrojasse o que os seculos pouparam,
+bronzes, escritos, marmores romanos,
+ou, derrotando porticos, columnas,
+theatros, colliseus, palacios, templos,
+em serra inutil amontoasse as pedras,
+¿quem não vertêra em lagrimas o sangue?
+¡E ante a nossa affeição teem menos pezo
+que as ruinas de Roma as que são nossas?!...
+¡Dá-se tanto aos ditosos, aos contentes,
+espectaculos, jogos, aureas festas,
+jardins, parques!... ¡e aos miseros que gemem,
+e aos peitos melancólicos, viuvos,
+ha-de negar se um canto onde pranteiem!?...
+¿De tanto mundo que pertence aos vivos
+nada dareis aos seus antigos donos?
+¡nem um torrão perdido, e uns troncos nullos?!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Quando virá um dia, em que estes bosques,
+semeados de tumulos não altos,
+de lugubres saudades se povôem?
+Então, a propria Morte, hoje tão sêcca,
+terá sua grinalda; a dor, seu gosto;
+e visitas o pó, e cultos o ermo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Pelas noites mui placidas do estio,
+ao duvidoso alvor da lua incerta,
+bello será, sentado n'este sitio,
+ver vir, d'aqui, d'ali, frouxos, dispersos,
+o do casal, o morador na aldeia,
+entrar chorando, e procurar seus mortos.
+Aqui duas irmans resam de joelhos
+sobre o seio materno sepultado.
+Aqui o velho attento as contas passa
+pelos dedos convulsos, e se encosta,
+sem o saber, na fallecida esposa.
+O filho aos pés da mãe co'os mais soluça
+o Padre-Nosso apenas aprendido.
+Deitado ao lado do submerso amigo,
+o amigo devaneia antigos annos.
+Por toda a parte, as lagrimas e affectos,
+memorias doces, orações e esp'ranças.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿E a quem não conviria egual retiro?
+N'elle a tristeza encontraria um pasto;
+a sciencia, reflexões; o vicio, escolhos;
+a leviandade, assento; a desventura,
+consolação; o amor, silencio e pranto.
+Ensaiára-se o infante para a vida;
+o velho, para a morte; o moralista
+viria achar uncção para a verdade;
+o orador, persuasões, ternura, encantos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ó filhos da montanha, ¡oh! libertae-vos
+de um preconceito vão; é toda a terra
+a terra do Senhor; afora o vicio,
+debaixo d'este ceo nada é profano.
+A benção do Pastor consagraria
+vosso asylo feliz; e a Cruz em meio
+todo de um santo influxo enchêra o bosque.
+
+
+
+VII
+
+
+Mas, em quanto esses dias vos não raiam,
+bons velhos, vigiae que, de anno em anno,
+aos juvenis futuros plantadores,
+em vez de se afrouxar, se inflamme o zelo.
+Cresça com seu favor por estas serras
+a geração dos vegetaes gigantes.
+Com todos vós conversam todos elles
+sem cobrir campas; guardam-vos saudades,
+são parentes de todas as aldeias,
+e o brasão da montanha é o vosso parque.
+Sobre tudo influi que a vossa raça
+trema ao só nome do brutal machado
+que ouse violar a veneranda herança.
+O que só Deus medrou, só Deus derribe.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Crêde-me (eu já vi outras) vossa terra
+é descrida, enteada á Natureza.
+Cumpre a vós adoçar-lhe o aspecto agreste,
+amiudar-lhe no oceano ermo dos ares
+estas ilhas, virentes, graciosas,
+que espalhem primavera pelos montes,
+que attráiam as volantes caravanas
+do rouxinol, da rôla, e da andorinha.
+
+
+
+VIII
+
+
+Lá em baixo a casa humilde que branqeja,
+entre os alegres plátanos e o templo,
+quasi que pasma, e se entristece e encolhe,
+de ver em torno a solidão tão vasta.
+Como que está pedindo... ao menos bosques;
+não tem outros jardins, outros passeios,
+que offereça a seu dono, o Pastor vosso.
+Preparae desde já para o futuro
+sombras novas aos novos successores,
+e refrigério estivo ás cans do velho.
+Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.
+Mil vezes sua voz reconhecida
+rogará paz ditosa aos vossos netos,
+quando, serena a mente, e sôlta a vista
+lá fôrem divagar, ora embebidos
+nos psalmos, nos poeticos arrojos,
+ora admirando o Autor e o Nó dos mundos,
+no largo azul dos ceos, no alto dos troncos
+e no zumbir e no voar do insecto.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Surgi! ¡surgi! Lá jazem as enxadas.
+
+ Velhos, surgi! La voltam triumphantes,
+findo o novo trabalho, os vossos filhos.
+Agora espumem copos, sôem risos,
+exulte a dança, alonguem-se os cantores.
+Conquistastes o inculto á Natureza:
+forçástel-a a sorrir, a ornar-se em festas.
+Toda a vasta planicie, hontem tão erma,
+¡que povoada vai já! ¡como promette
+lembrar ao vosso gado, ás vossas filhas!
+
+
+UM VELHO
+
+Sim, dará sombra e vai povoado o valle:
+mas fosse eu rico, e lhe dobrára encantos.
+
+
+SEGUNDO VELHO
+
+¿E como, irmão?
+
+
+O PRIMEIRO
+
+ No alto d'este oiteiro,
+d'onde se avista o mar, o ceo, a terra,
+poria uma capella, e um San-Mamede
+co'o rosto de um menino, e o rir de um Anjo;
+nas mãos o cajadito, o alforge ao lado,
+e o seu rafeiro ao pé todo soberbo
+co'a colleira escarlate, e todo amigo
+a lamber o seu Santo. É bom que os altos
+se c'rôem de capellas, que levantem
+o pensamento aos Ceos, no campo espalhem
+devoção e piedade, e aos peregrinos
+ensinem o caminho e a vista alegrem.
+
+
+UM PASTOR
+
+Sim, co'o santo pastor de guarda aos bosques,
+¿que haviam de temer, nem cães nem gado?
+Nos degraus da capella, á sombra inquieta,
+longas séstas sonháramos de amores.
+
+
+TERCEIRO VELHO
+
+Já lá vão o bom tempo e os bons costumes;
+foi-se a abundancia e os corações piedosos.
+Esses fundavam templos, como o nosso,
+n'um árido deserto; e hoje.... se estala
+no campanario um sino, em ocio eterno
+fica mudo a pender dos braços podres.
+
+
+
+IX
+
+
+Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,
+serei eu quem consagre o vosso oiteiro;
+não a Mamede, não ao pastor martyr,
+mas á contrita amavel Peccadora.
+¿Não valem mais as lagrimas que o sangue?
+¿Mais que heroico valor não nos commove
+doce humildade e penitencia longa?
+E de mais: se ás aspérrimas proezas
+vos não destina o Ceo, todos nascestes
+captivos frágeis de amorosas culpas.
+Muita virgem no monte solitario
+tentada pelo amor e pelo amante,
+só com ver a capella ha-de livrar-se,
+e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.
+E quando aqui errantes missionarios
+vierem dar, e á sombra dos carvalhos,
+as turbas apinhadas instruirem,
+¡que persuasões, que lagrimas, que exemplos
+hão-de tirar da veneranda Imagem!....
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Qual me ri já na mente o grão projecto!
+Eu serei pois o fundador de um culto
+que aos frutos da moral reuna flores.
+Sim; ¿quem tolhe o prazer puro e innocente?
+...........................................
+
+
+
+X
+
+
+Partiram. E eis-me só. Todos partiram.
+O alvoroço do entrudo os chama aos lares.
+¡Oh! ¡Bemdita a ignorancia d'estas serras!
+O rustico inda ri na Patria em luto,
+e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.
+¡Bem sabe elle que lagrimas aos mares
+d'este horizonte em roda estão correndo!
+¿Sabe elle que o atro dia é menos atro?
+A paz, a confiança, as alegrias,
+a abundancia, a união de antigos Lusos,
+não deixaram, fugindo, um só vestigio.
+No vaivem das facções, que se entrevencem,
+tudo se perde e esquece, afora a raiva.
+Os bons usos, as festas populares,
+a romaria alegre, as patrias danças,
+vão-se apagando... Aqui, mesmo na brenha,
+a pastora, esquecendo os seus amores,
+canta a questão dos Reis, o hymno da guerra,
+sons novos, que o seu gado e o ecco extranham.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ó Patria, bella Italia do Occidente,
+tu que egual a Parthénope repoisas
+debaixo da invejada laranjeira
+e do mirto florido, ao deleitoso
+ruido de aguas limpidas, no abri
+de um ceo inspirador tão proprio ao genio,
+ó bella Italia do Occidente, ó Patria,
+¿era pois fado teu lidar sem fruto
+para seres a inveja, a flor das gentes?....
+A guerra, sim, te coroou co'as palmas
+das quatro partes do orbe, e as naus do mundo
+trouxeram a teus pés thesoiros, sceptros.
+Mas as flores das artes, mas os frutos
+das sciencias, no chão dos outros povos
+com tanto custo e com suor medrados,
+¿espontâneos no teu medraram nunca?...
+¿Tiveste nunca os dons, que em paz florentes
+ornam e absolvem da conquista os loiros?
+¡Que imperios teem cahido! e tu, tu ousas,
+hoje ainda, aspirar á eternidade!!...
+Talvez bem perto os seculos se cheguem,
+que hão-de ver cego arado andar lavrando
+tuas cidades de esquecido nome,
+e o rebanho indiff'rente apascentar-se
+sobre os teus tribunaes, theatros, praças.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Vê-te o sol com praser; deixa-te a custo,
+Lusitania, que á borda do Oceano
+brilhas qual deusa em majestade e em graça.
+Deusa, e immortal, te crêram; mas tu jazes
+entre tropheos em pó, lavada em sangue.
+Deshonrada Cleópatra, inda és bella,
+mas já nas veias te circula a morte.
+¡Ai de quem nutre as áspides no seio!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡Ó Patria, ó Patria, com que voz tão baixa,
+com que pejo te expróbro! ¡Ah! se podéres,
+perdôa meu furor, vê só meu pranto;
+ó Patria, ó mãe, ó misera querida!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Que ouvi? ¡longinquo estrondo! ¿que seria?
+¡Som de espingardas!... Sim, talvez... são homens
+que nos matam irmãos... ¡Alerta!... oiçâmos...
+
+..............................................
+
+
+
+
+
+IX
+
+O SAN JOÃO NAS FALDAS DO CARAMULO
+
+
+ Dia em que o Poeta plantou por suas mãos um cedro no pateo da
+ residencia parochial da Castanheira do Vouga
+
+
+(FRAGMENTO)
+
+
+
+..........................................
+
+ Se, de teus annos na madura força,
+a mão que te ora planta inda fôr viva,
+essa mesma, já trémula e caduca,
+no tronco te abrirá, com pio exforço,
+graciosa capellinha, onde sorria
+um San-João, o Santo alegre do ermo,
+trajo de pelles, juvenil frescura,
+olhos nos Ceos, aos pés cordeiro branco.
+
+
+ * * * * *
+
+
+N'essa noite poetica e devota,
+em que o praser, centuplicando aspectos,
+povôa, anima, encanta o mundo inteiro,
+agua e terra, ar e ceo, tudo é macio,
+em que a velhice, a mocidade, a infancia,
+sympathisam no vago da alegria;
+quando n'alma insaciavel de delicias
+se juntam, com mistura inexplicavel,
+ao saudoso passado, aos bens presentes,
+as mil visões do esplendido futuro;
+quando em laço phantastico se aggregam
+da vida e eternidade os pensamentos,
+gosos, superstições, fraquezas, cultos,
+qual ramalhete de cipreste e rosas
+na caprichosa mão das feiticeiras;
+n'essa noite, das noites invejada,
+a ti concorrerão por toda a parte,
+té das aldeias do horizonte extremo,
+dançantes bandos que a viola guia.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Verás girar seus bailes clamorosos
+em redor das estrídulas fogueiras;
+ouvirás os seus cânticos em côro
+devoto e ennamorado. A bomba foge,
+zune fugindo, e sollapada estoira;
+o buscapé no ar caracolando
+morde n'um, morde n'outro, ameaça a todos,
+dispersa os grupos, gasta-se raivando,
+e entre os risos rebenta atroando os ares;
+ali circula em vórtice perenne
+a roda leve espadanando incendios,
+chovendo oiro luzente e estrellas alvas;
+aqui floreia o fúlgido valverde,
+vesuviosinho que arremette ás nuvens;
+arranca o vôo e vai rugindo aos astros
+o ignívomo foguete estrepitoso.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¡E a musica entretanto! ¡e as doces falas!
+¡e os protestos de amor! ¡e a prece occulta!
+¡e essa mão dada a furto e a furto acceita!
+¡e esse olhar falador! ¡e essas virtudes
+da meia-noite em ponto! ¡e a flor crestada!
+¡e as sortes que a fortuna extrai ás vezes,
+e muitas mais a próvida malicia!
+¡e a fonte que amanhece entre descantes,
+e pasma rindo de se ver coroada
+de festões verdes e entrançadas flores!
+¡Que noites, que alegrias, que triumphos,
+te aguardam no porvir, me estão na mente![9]
+............................................
+
+
+
+
+
+X
+
+O MOSTEIRO
+
+
+
+Vós, que sois do amavel sexo
+ardentes adoradores,
+que girais de bella em bella,
+qual leve abelha entre as flores,
+
+que sabeis n'um só momento
+a mil deusas incensar,
+e pareceis de ternura
+não poder-vos saciar,
+
+mancebos, o mundo é vosso;
+mil bellas o mundo tem;
+mas não choreis as que á sombra
+repoisar das aras veem.
+
+Se um jardim, florído, immenso,
+encontrais na sociedade,
+¿que importa que poucas rosas
+lhe furte a mão da piedade?
+
+poucas rosas, que dispostas
+vão depois na solidão
+lançar mais doces perfumes,
+seguras de extranha mão.
+
+Vagae, vagae livremente
+nos jardins da Idália Venus;
+segui as Nymphas e as Graças
+pelos seus bosques amenos;
+
+os prazeres vos rodeiem,
+os jogos em torno vôem;
+a mocidade vos ria;
+espêssas rosas vos c'rôem;
+
+¿que falta aos desejos vossos?
+¡ah! soffrei, sem murmurar,
+ver d'entre os vergéis florídos
+poucas pombas desertar,
+
+poucas pombas, que innocentes,
+e temendo o caçador,
+vão nos ermos solitarios
+buscar um fado melhor.
+
+Do Libano opacos cedros,
+de Sião bosque tranquillo,
+vós, palmeiras de Idumêa,
+prestae-lhes seguro asylo.
+
+Estranhas vistas não turbem
+os seus piedosos segredos;
+contentes á sombra vivam
+dos sagrados arvoredos.
+
+Silencio, paz, e ternura,
+alva estrella de innocencia,
+e a vista de um ceo risonho,
+lhes doirem toda a existencia.
+
+Murmúrio de castas fontes,
+perfume de simples flores,
+lhes paguem jardins que infestam
+os abutres e os açores.
+
+Eu vos lamento e vos chóro,
+insensiveis corações,
+que de um mosteiro entre os muros
+não vêdes senão prisões.
+
+Córae da vossa loucura.
+Correi a ver de mais perto
+o Eden recatado ao mundo
+no seio d'este deserto.
+
+Modestas virgens o habitam,
+que só não teem liberdade
+de colher em frutos de oiro
+as festas da sociedade.
+
+Segui-me, segui-me affoitos,
+entremos. Abriu-se o templo.
+Seus ermos, ao mundo ignotos,
+inteiros d'aqui contemplo.
+
+¿Não vêdes sobre os altares
+com graça engrupadas flores
+lançar torrentes de aromas,
+brilhar co'as mais vivas cores?
+
+N'esses prados invisiveis
+tambem pois se eleva a aurora;
+sol, e zephyros, e fontes,
+lhes dão sorrisos de Flora.
+
+Essas pois, que vós julgaveis
+desgraçadas prisioneiras,
+teem praseres, teem delicias,
+teem jardins, são jardineiras.
+
+Vêde ornar formosa Imagem
+rico manto que fulgura,
+de oiro e sedas matizado
+com vistosa bordadura.
+
+Vêde a grinalda florida;
+vêde o ramo; estes jasmins,
+estes lirios, estas rosas,
+não são já de seus jardins.
+
+Não devem sua existencia
+nem á terra nem ao Ceo,
+e nem zephyros nem fontes
+serviram no augmento seu.
+
+Formou-as arte engenhosa;
+poude mais que a Natureza;
+deu mais vida ás suas flores;
+prestou-lhes egual belleza.
+
+¿Sabeis, que mãos feiticeiras
+obraram prodigios taes?
+eis o trabalho e os recreios
+d'essas piedosas Vestaes.
+
+Ellas no côro apparecem;
+e, ao som dos orgãos divinos,
+de sua alma aos Ceos se elevam
+devotos brilhantes hymnos.
+
+Innocentes e macias,
+d'estas vozes a mistura
+sem perturbar os sentidos
+infunde n'alma ternura.
+
+Em seus canticos não reina
+terreno vulgar affecto;
+é mais puro, é mais sublime
+de seus amores o objecto.
+
+O pensamento que as ouve,
+sai da térrea habitação,
+deixa os ares, das esphéras
+atravessa o turbilhão,
+
+vê do Empyrio as portas de oiro
+abertas á humanidade,
+rompe audaz, vai submergir-se
+no fulgor da Divindade.
+
+Cessa a musica, e de novo
+volve a mente ao patrio mundo;
+mas dos virgineos desertos
+primeiro se arroja ao fundo.
+
+Lá divisa, em liberdade,
+nas livres tranquillas horas,
+dadas a cantos diversos
+estas formosas cantoras.
+
+Na sombra d'aquelles bosques,
+n'aquelles molles passeios,
+tambem pois das Musas entram
+os aprasiveis recreios.
+
+Olhae por fim seus aspectos,
+¿Não vedes vós a bondade,
+a alegria da innocencia,
+as virtudes da piedade?
+
+Eis os Genios que lhes tornam
+encantadora a existencia:
+as virtudes da piedade,
+os praseres da innocencia.
+
+A amisade entre ellas reina;
+¿os encantos da amisade
+não prestarão, por ventura,
+delicias á soledade?
+
+Mas basta, insensatos, basta;
+á scena se corra o veo;
+não profanem vossos olhos
+mais tempo os átrios do Ceo.
+
+Ide no mundo esquecel-as,
+em vez de as irdes chorar;
+e o vosso mundo vos baste,
+como lhes basta um altar.
+
+Mas esperae; respondei-me;
+consultae vosso interior:
+¿sois ditosos co'os sorrisos
+de um falso inconstante amor?
+
+¿Sabeis vós o que amor seja?
+¿Satisfaz-se o coração
+com esses fogos incertos,
+e essa eterna agitação?
+
+¿Não virá talvez um dia,
+em que, mais sabios, queirais
+unir os vossos destinos
+á melhor d'entre as mortaes?
+
+¿Como a haveis de achar no mundo,
+no mundo, cujos enganos
+vós conheceis, ajudastes,
+seguistes, por tantos annos?
+
+Tremereis de um laço eterno.
+A vossa pena consiste
+em pensardes que a virtude
+que não tendes, não existe.
+
+Então aqui vos espero,
+n'estes quietos retiros.
+Estes muros que insultaveis,
+ouvirão vossos suspiros.
+
+Entre estas virgens mimosas,
+que severa educação
+forma, longe dos humanos,
+á sombra da solidão,
+
+viréis procurar o objecto,
+cuja ternura innocente
+vos deve tornar a vida
+risonha, pura, e contente.
+
+Não detesteis um recinto,
+onde Amor, onde Hymeneu,
+onde um Genio, amigo vosso,
+vosso thesoiro escondeu.
+
+Pensae, pensae que ali vive,
+cresce em virtude e talentos,
+e em graças, aquella que ha-de
+doirar os vossos momentos.
+
+Qual arbusto delicado,
+que a viçosa louçania
+mostrar em seu proprio clima,
+em seu proprio ceo, devia,
+
+mas foi por mão inimiga
+trazido a estranhos logares,
+onde murcho cederia
+a influxos de infestos ares,
+
+se da estufa compassiva
+lhe não fosse aberto o seio,
+onde vegeta e floresce
+de arbustos eguaes no meio;
+
+ali não receia as neves;
+não treme da tempestade;
+gosa o sol; vive no mundo,
+vivendo na soledade;
+
+de extranhos somente é visto;
+tem louvor; é cubiçado;
+mas das flores, mas dos frutos,
+não é jamais despojado.
+
+¡Mil vezes feliz, mil vezes,
+quem ousa, á luz da verdade,
+queimar a máscara d'oiro
+ás larvas da sociedade!
+
+Medrae, sagrados mosteiros;
+medrae, desprezando a inveja;
+jamais fulminar-vos possa
+calumnia que em vão troveja.
+
+Brilhae, como ilhas florídas,
+no meio do mar profundo
+de vicios, crimes, e horrores,
+que alaga, que abrange o mundo.
+
+Sêde o asylo das virtudes,
+do Eden a propria entrada,
+o enlace dos Ceos co'a terra,
+do Empyrio a sublime escada.
+
+
+Coimbra--1826 (?)
+
+
+
+
+XI
+
+SANTA MARIA EGYPCÍACA
+
+(Fragmento de um poema)
+
+
+
+.........................................
+Prostrada aos pés da Cruz, ante a caveira,
+jaz solitaria a Egypcia. Rios descem
+de olhos lindos, que os ceos fitar não ousam,
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Tão nova, e isenta? ¡Oh! não; mudou de amores.
+Dos primeiros só guarda a dor e as penas;
+mas os novos, os ultimos, protesta
+conserval-os em vida, e em morte havel-os.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Té aqui, pela alma escura só lhe ardiam
+relampagos dispersos; derretido
+raio dos Ceos lhe côa pelas veias.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Brilhou no mundo como a flor de um dia.
+Os soes vivos, os ventos importunos,
+lhe ameaçavam fim; ruins borboletas
+captivas da belleza iam murchal-a.
+Imprevisto invisivel jardineiro
+a tempo a salva, e a transplantou no ermo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+No mundo, sobre o abysmo, hontem folgava
+impróvida e leviana; hoje pranteia
+na solidão, mas sob um Ceo que a espera.
+As cidades, em que ídolo brilhára,
+inda a chamam em vão, e em vão a aguardam.
+De um lustro que a houveram, ¡quantos lustros
+lhe volveram saudade!
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Em viço de annos,
+e mais bella que as flores todas juntas
+das dezassete suas primaveras,
+qual fugaz sonho de manhan de estio,
+foi-se, e não voltou mais, Deus sabe aonde.
+Murcharam festas; esmorecem danças;
+os banquetes, diffusos pela noite,
+já não veem despertar ternura e risos.
+Nas roseiras intactas se desfolham
+os botões das grinaldas; o alaúde,
+que falou tanto amor nas mãos da bella,
+discorde jaz, e mudo...
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Ella, entretanto,
+co'os mimosos pés nús calcando areias,
+desornado o cabello, envôlta em pelles,
+timida, envergonhada, pesarosa,
+vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.
+Mil vezes á avesinha se compára,
+sem família, sem lar; corre erradia;
+¿não ha-de ambas manter a paz que é de ambas?
+Beija a caverna frígida que a hospéda,
+e agradecendo este hórrido paraizo
+ao Deus que lh'o depára, esquece o mundo,
+ou sem saudade e com horror o aviva.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ai coração tão amplo, onde estuava
+mar de affectos sem conto, escoado agora,
+¿quem o ha de encher? ¡em solidão tão funda!
+¿quem o ha-de encher? Já o enche o que enche tudo,
+o que brilha na luz, no sol, nos astros,
+corre nos aquilões, anima os troncos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Só conversa com Deus, e a Deus só ouve.
+Este seio, estas tranças desatadas,
+são brinco só do vento do deserto.
+Esta mão, tão mimosa e tão querida,
+só procura, excavando a terra ingrata,
+a amorosa raiz, ou já se encurva
+para dar agua aos labios sequiosos.
+A aurora a vem saudar já de joelhos.
+Não ha um sol, não ha na noite um astro,
+que não saiba os seus ais e eternas preces.
+Nem que passe o chacal, a hiena, a onça,
+foge, ou quebra os devotos exercicios.
+Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;
+e a Estrangeira não treme; ora, e descança.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Ao fresco desmaiar da extrema tarde,
+quando os raios do sol já mal doiravam
+da longinqua palmeira o incerto cume,
+¡que vezes, assentada, e sustentando
+na eburnea mão o pallido semblante,
+atraz do astro fogoso e fugitivo,
+mandava o coração, mandava os olhos!
+
+
+ * * * * *
+
+
+--«Além--dizia--além, n'esse Occidente,
+corre o santo Jordão delicias minhas,
+que o Salvador banhou, que eu passei mesma.
+Talvez aquella nevoa que lá brilha,
+mudada em rosa, em purpuras, em oiro,
+seja da santa veia alegre filha,
+Além... Jerusalem, Sião, Judêa...»
+
+
+ * * * * *
+
+
+E a taes nomes, enxames de memorias,
+de saudades, de affectos, lhe adejavam
+pela alma, alegre em parte, em parte escura.
+Raro, mas inda ás vezes lhe assomavam
+no involuntario somno ideias meigas.
+Inda, uma vez ou outra, o amor banido
+entrava de relance o antigo alvergue,
+e apóz elle os passeios namorados,
+os theatros esplendidos, as galas,
+as mezas rindo, os bailes desenvôltos;
+e as victorias, e as chusmas dos praseres,
+como á sua rainha vão saudal-a.
+Acordava sorrindo, a Cruz fitava;
+e atirando se á terra, e sôlta em chóros,
+pagava erros não seus com dor bem sua.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Taes se lhe vão no ermo deslizando
+dias e annos, sem ver na areia impressos
+mais vestigios que os seus.
+
+
+ * * * * *
+
+
+ De tempo em tempo,
+só vê talvez, ou ver presume ao longe,
+do horisonte nas sombras pavorosas,
+o ténue pó da immensa caravana,
+que vai de Alépo á Méka em certa estrada.
+Por ella ora, e entre o orar lamenta
+a devota fanática impiedade.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Tal vai manando a limpida existencia.
+Egual ao ramalhete que desmaia,
+e se esfólha no altar entre os perfumes,
+tal, sem gosto e sem dor, e sem que o note,
+perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia
+encantos, já seu mal, e mal do mundo.
+O juvenil das formas exteriores
+concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas
+se esconde um coração de amor não farto.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Quem a tivesse visto, e a visse agora,
+sentiria o que sente o viajante,
+quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,
+saudosos restos, da gentil Palmyra.
+Uma e outra já gloria do Universo;
+agora mudas, sós, e deslembradas,
+e socias no deserto, e eguaes no exemplo.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Meio seculo a viu prantear sosinha
+annos ligeiros da fugaz infancia.
+Ao fim da gran carreira, o Ceo lhe envia
+o solitario Zózimo, como ella
+ancião virtuoso, e habitador das covas,
+que lhe oiça a longa vida, a anime, e exforce;
+lhe dê perdão e paz de um Deus em nome.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Pela primeira vez contente e alegre,
+ousando olhar os Ceos,
+ --«¿Trareis,--lhe disse--
+á pobre peccadora o manjar de Anjos?»
+--«Sim.»
+ E partiu.
+ Com vista prolongada
+ella o segue; co'os olhos no deserto
+o espera todo o dia; ¡e este é tão longo!...
+¡tarda tanto o bom hóspede!...
+
+
+ * * * * *
+
+
+ Passou-se
+um anno inteiro. É elle agora; é elle;
+conheço o fraco andar que o zelo apressa,
+e as cans, e a calva, e as faces penitentes...
+
+
+ * * * * *
+
+
+Chega; clama; a caverna não responde;
+grita, e só ouve a si. Olha em redondo,
+vê-a jazer na areia, e a areia escrita
+por mão trémula, errante, ao que parece:
+
+
+Bom Zózimo, por santa caridade
+enterra o corpo da infeliz Maria.
+Aqui morri no dia em que te fôste.
+Encommenda-me a Deus, e Deus t'o pague.
+
+............................................
+
+
+
+
+
+XII
+
+EPISTOLA
+
+Ao meu amigo o Desembargador Manuel Venancio Deslandes
+
+(NO DIA DOS MEUS ANNOS)
+
+FRAGMENTO
+
+
+
+Em torno ao teu amigo estão fervendo,
+Deslandes meu, na hora em que te escreve,
+de uma festa caseira o reboliço.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Bem que alveje de neve o Caramulo,
+e um frígido suão de lá nos venha,
+ninguem hoje de frio aqui se queixa.
+Não descança nem pé, nem mão, nem lingua;
+o sumptuoso lar arde em tres fógos;
+o forno se afogueia; a branca meza
+vai-se de loiça e vidros alegrando.
+
+
+ * * * * *
+
+
+Uma estuda em compôr as sobremezas;
+outra enrama de loiro alta ferrugem
+das vigas da cosinha; esta, sizuda,
+de riscado avental e nus os braços,
+com importancia e afan revira espêtos;
+aquella, anda scismatica, e raivosa
+de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,
+que além de um alecrim, de umas violetas,
+nascidas por engano, além de rosas,
+frágeis, sem cheiro, e languidas, não cria
+com que se enflore a meza dos meus annos.
+
+
+ * * * * *
+
+
+¿Porque é, quando a sorrir divagam todos,
+quando só para mim se andam tecendo
+estas pompas domesticas, agora
+que a potente amisade em meu obsequio
+para tudo fazer até fez estros;
+agora, emfim, que aos raios da alegria
+não ha um coração que se não abra...
+¿por que se fecha o meu? ¿Dará (não creio)
+da Natureza o luto um certo assombro
+ás festas do homem? ¿Pensas que enfartado
+d'esta patria amargura, a filtre aos gostos,
+qual vaso que azedado a tudo azéda?...
+.............................................
+
+26 de Janeiro
+de 1833.
+
+
+FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+
+
+
+NOTAS DOS EDITORES
+
+AO VOLUME I DO
+
+PRESBYTERIO DA MONTANHA
+
+
+Da villa da Castanheira--No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de
+Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o
+sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam
+da Beira, a qual é tambem dos Condes da Feira, e n'ella entra em
+correição o seu Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja
+parochial da invocação de S. Mamede, Priorado do Conde da Feira, que
+rende 600$000 réis, e tres ermidas. O seu termo tem uma freguezia
+dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de Aguadão, que consta de 100
+visinhos. É curado annexo á egreja de S. Mamede, que apresenta o seu
+Prior. Tem este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que
+fertilisam seus campos de pão e vinho, e os fazem abundantes de todo
+genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes ordinarios,
+Vereadores, um procurador do Concelho, Escrivão da Camara, Juiz dos
+Orphãos com seu Escrivão, 1 Alcaide, e 1 Companhia da Ordenança.
+
+(_Chorographia portugueza_ pelo Padre Antonio Carvalho da Costa.--T. II,
+pag. 176--1708.)
+
+
+Castanheira do Vouga--Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de
+Coimbra, Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado; tem 803 visinhos.
+Está situada em monte junto da serra do Caramulo. É seu orago S. Mamede.
+Tem quatro altares; e o maior é do orago; os outros são do Santissimo,
+de Nossa Senhora da Expectação, com sua irmandade, e outro de S. Jorge.
+O Parocho é Prior, apresentação da casa do Infantado; tem de renda
+400$000 reis. Tem tres ermidas, que são: a do Espirito Santo, a de Nossa
+Senhora do Bom-despacho, e a de S. Sebastião. Os frutos d'esta terra são
+milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa um Juiz
+ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios Aguedão,
+Alfusqueiro, e Agueda.
+
+(_Diccionario geographico_ pelo Padre Luiz Cardoso. 1751.)
+
+
+ * * * * *
+
+
+Castanheira do Vouga.--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago S.
+Mamede; o Parocho é Prior da apresentação da Casa do Infantado; rende
+480$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 7; tem 58 fogos.
+
+Ágadão--Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago Santa Maria
+Magdalena; o Parocho é Cura da apresentação do Prior da Castanheira;
+rende 40$000 réis; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem 102
+moradores
+
+(_Portugal sacro-profano_--por Paulo Dias de Niza; cryptonimo do Padre
+Luiz Cardoso--Lisboa--1767--8.^o--2 vol)
+
+
+ * * * * *
+
+
+Castanheira do Vouga.--Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do
+Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140
+fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto
+administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da
+Comarca de Esgueira. É da Casa do Infantado. Situada em um monte proximo
+á serra do Caramulo. A Casa do Infantado apresentava o Prior, que tinha
+400$000 réis. É fertil em milho e centeio; produz algum vinho, e do mais
+pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a 16 de Junho de 1514. Era
+cabeça do concelho do seu nome e tinha Juiz ordinario, Camara,
+Escrivães, e mais Justiças. Passam pela freguezia os rios Agueda,
+Aguedão, e Alfusqueira.
+
+(_Portugal antigo e moderno_--por Augusto Soares de Azevedo Barbosa de
+Pinho Leal--Lisboa, 1874).
+
+
+ * * * * *
+
+
+Pag. 11 lin. ultima
+
+Dapibus mensas oneramus inemptis
+
+
+Oneramos as mezas com iguarias não compradas; isto é, vivemos, sem
+comprar, das nossas lavras proprias.
+
+Citação de Virgilio (_Georgicas_, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina
+variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto é:
+
+
+ _....Sero que revertens
+nocte domum, dapibus mensas onerabat inemptis._
+
+
+Isso faz parte de uma historieta que Virgílio conta, e que vamos ouvir
+na traducção de Castilho:
+
+
+ ......Alembra-me que outr'ora,
+lá por onde o Galeso arrasta a veia escura
+por entre loiros chãos de cereal cultura,
+junto á Ebália cidade, a de torreados muros,
+conheci um corycio em annos já maduros,
+dono de uma chanzinha ali desamparada.
+O pobre do torrão de si não dava nada:
+nem pasto para bois, nem para um fato hervinha.
+Sumitico de pães, escasso para vinha,
+era um sarçal fechado; e no sarçal, comtudo,
+o bom velho, a poder de diligencia e estudo,
+tinha hortaliça rara, e emmoldurada em torno
+com seve de jardim para maior adorno,
+alvos lirios, verbena, e papoilas de prato.
+Não trocára co'os Reis seu parco haver tão grato.
+Recolhia ao casal já noite; e, ¡que riqueza
+de iguarias de graça a assoberbar-lhe a meza!
+
+
+
+Pag. 18 lin. 3
+
+Passámos n'uma bateirinha, remada por uma velha moleira da margem, o
+víçoso rio de Bolfiar.
+
+
+Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O
+caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfeiçoamentos modernos,
+deram cabo da antiga viagem tão pittoresca.
+
+
+Pag. 36 lin. 20
+
+Uma especie de zimborio de doze palmos de altura.
+
+
+Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que
+primeiro se dedicaram ao estudo da triangulação do Reino.
+
+
+Pag. 37 lin. 3
+
+Uma desconforme loisa inteiriça horizontalmente aguentada nos ares por
+esteios de pedra.
+
+
+Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em muitas
+partes das Hespanhas, e acham-se estudados á luz da sciencia moderna.
+
+
+Pag. 42 lin. 6
+
+A Linguagem é ali, como os ares, de uma admiravel pureza e lucídez.
+
+
+O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho o
+seu constante amor á vernaculidade. Veja-se nas _Excavações poeticas_ o
+que elle diz do velho camponez Francisco Gomes, creado da casa, e «um
+dos mais chapados classicos» que elle jamais encontrou.
+
+
+Pag. 58 lin. 7
+
+Lia, Rachel e Rebecca
+
+
+Lia era filha primogenita de Labão, e irman de Rachel. Achando-se Rachel
+ajustada para casar com Jacob, teve Labão astucia de lhe substituir Lia,
+apesar de menos formosa. Foi mãe de Ruben, Simeão, Levi, Judá, Issachar,
+Zabulon, e Dina.
+
+Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve
+José, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que ainda se
+conserva e mostra o seu tumulo.
+
+Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de
+Abrahão, e teve por filhos Ezaú e Jacob.
+
+Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan,
+são encantadoras de singeleza e graça nas descripções que d'ellas nos
+deixaram os Livros santos.
+
+
+Pag. 72 lin. 15
+
+Uma pobre mocinha ovelheira
+
+
+Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era
+Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta na
+sua _Chave do enigma_.
+
+
+Pag. 80, lin. 9
+
+Filinto e o entrudo
+
+
+Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom Francisco
+Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da velha
+Lisboa.
+
+
+¡Viva o meu Portugal! ¡viva a laranja
+que derruba o chapeo!
+
+
+exclamava elle em París, ao lembrar-se das grosseiras costumagens dos
+Portuguezes, felizmente meio polídas já hoje.
+
+
+Pag. 82 linhas 6 e 8
+
+Citações latinas
+
+
+Essas duas são de Virgilio (_Eneida_, Livro I)
+
+
+_Fronte sub adversa scopulis pendentibus antrum;
+intus aquae dulces, vivoque sedilia saxo;
+nympharum domus_.
+
+
+Isto é: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um antro; e lá
+dentro correm aguas doces, e apparecem assentos como que talhados na
+rocha viva; verdadeira habitação de nymphas.
+
+
+Pag. 87 lin. 21
+
+As rogações de Maio
+
+Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado,
+fallecido no anno 475.
+
+
+Pagina 99 linha 23
+
+O ubi campi!
+
+
+Recordação de palavras de Virgilio ao Livro II das _Georgicas_:
+
+
+_Rura mihi et rigui placeant in vallibus amnes;
+flumina amem silvasque inglorius. O ubi campi
+Spercheosque, et virginibus bacchata Lacaems
+Taygeta!......_
+
+
+Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles;
+encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou. ¿Onde estais,
+campinas? ¿onde estás, rio Sperchio, e tu, monte Taygéte, habitado pelas
+alegres virgens espartanas?
+
+Castilho traduziu assim este trecho:
+
+
+Então amar só quero os rios e arvoredos,
+de glorias desquitado. Ai, campos meus tão quedos!
+ai ribeiras do Spérchio, oiteiros do Taygéto,
+das virgens de Lacónia ás órgias predilecto,
+¿onde, onde me estais vós?....
+
+
+
+Pag. 102, lin. 10
+
+Parve, nec invideo, sine me, liber, ibis in urbem
+
+
+Verso de Ovidio, logo no começo da elegia I do Livro I das _Tristezas_.
+Dirigindo-se ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no
+desterro, entre os gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno
+livro; has-de entrar sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal.
+
+
+Parte, ó meu pobre livro; irás sem mim, sosinho,
+correr na gran Cidade incognito caminho
+
+
+traduziu alguem
+
+
+Pag. 107, lin. 17
+
+Zimmermann
+
+
+João Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cantão de Berne, a 8 de Dezembro
+de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi abalisado sabio. Nomeou-o
+medico da sua camara em 1768 el-Rei de Inglaterra; el Rei de Prussia
+Frederico, o grande, foi tratado por elle na sua ultima doença, e deveu
+allivios aos seus cuidados intelligentes. O Principe russo Orloff foi de
+proposito com sua mulher consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se
+a S. Petersburgo falou d'elle com enthusiasmo á Imperatriz Catherina,
+que em 1784 procurou attrahir á sua côrte aquelle luminar da sciencia.
+Elle pediu excusa, porque a vida mundana não condizia com os habitos que
+tinha creado o seu espirito; não se ofendeu a eminente Princeza, e
+conferiu-lhe a ordem de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu
+morrer-lhe entre os braços uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho.
+Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Além de outras
+obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa, publicou em
+1756 o seu _Tratado da Solidão_, onde todas as vantagens moraes do
+isolamento são defendidas com eloquencia e convicção, e sem mysanthropia
+exagerada.
+
+
+Pag. 108, lin. 6
+
+O Passeio publico e o Marrare
+
+
+Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico,
+riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas
+Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar
+os habitantes da Capital. Ia desde a actual praça dos Restauradores até
+á extinta praça da Alegria, na altura da rua das Pretas. No sitio exacto
+do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande tanque redondo
+(hoje no jardim da Graça).
+
+O café Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no Chiado.
+
+
+
+
+ADDITAMENTO
+
+
+Visto ser esta obra de Castilho dedicada á memoria de seu bom irmão,
+pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres sermões que ainda restam
+d'este. As suas obras ineditas mandou o proprio Doutor Augusto Frederico
+de Castilho que lh'as queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as
+seguintes:
+
+
+ I--O sermão de S. Pedro, ou da Fé; II--O sermão da esmola, ou da
+ Caridade; III--O sermão nas exequias do senhor D. Pedro IV; IV--A
+ pastoral dedicada ao seu rebanho episcopal de Beja; V--Uns versos
+ na _Primavera_ de Antonio Feliciano.
+
+-----File: 111.png---\-----------------[Blank Page] -----File:
+112.png---\-----------------
+
+
+
+
+SERMÃO
+
+DA
+
+ESMOLA OU DA CARIDADE
+
+
+ Prégado na 5.^a dominga da Quaresma de 1839 na Sé de Lisboa pelo
+ Conego Arcipreste da mesma Sé, o Doutor de capello em Canones
+ Augusto Frederico de Castilho
+
+
+
+_Jesus abscondit se, et exivit de templo._
+Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.
+
+
+
+De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de
+Jesus fóra do templo; e nem por sahido do templo, nem por escondido,
+deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu serviço. Jesus vivo, e
+na occasião de que trata o Evangelho, estava no mundo, e faltava no
+templo. Jesus, hoje, por dois milagres de fé e amor, por duas
+eucharistias, está no templo, e mais no mundo: no _templo_, encoberto no
+Sacramento; no _mundo_, encoberto nos seus pobres. N'uma e n'outra parte
+o devemos servir com egual zelo.
+
+Orar todo o dia na egreja, e deixar fóra d'ella morrer á fome e ao frio
+os necessitados, não é de christão; é fé morta. Soccorrer aos infelizes,
+sem crer (se tal é possivel) n'Aquelle que elles representam, é caridade
+morta; tambem não é de christão.
+
+Vós pareceis christãos pela fé, pois que vindes á casa de Deus; vós o
+pareceis, mas não o sois, porque essa fé é morta; cumpre que se
+resuscite pela caridade.
+
+Da caridade prégarei portanto hoje, ou antes da esmola, que é a caridade
+pratica e activa; é o christianismo na sua parte mundana, o culto do
+Verbo humanado aos olhos de todos, a religião de todas as religiões, a
+philosophia de todas as philosophias, o axioma para todos os
+entendimentos, o dogma até para o atheismo. O objecto é o mais
+accommodado ás necessidades do tempo em que vivemos; offensa faria á
+vossa piedade, se vos exigisse a attenção.
+
+ * * * * *
+
+Alma e coração, discurso e affectos, convencem e persuadem como dever a
+esmola. Não creou a Natureza irmãos privilegiados, e morgados na familia
+dos homens: para uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para
+outros, encargos de miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou
+malicias, estabeleceram essa desegualdade; e andou tambem ahi traça
+recôndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se uns de outros
+não carecessemos, não nos amáramos; se tudo a nós mesmos referissemos,
+não fôramos virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes,
+desentranhada de nós a beneficencia, origem de toda a sociedade, e
+purissima fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos, pois, a
+Natureza; a Providencia nos desegualou; e n'esta contradicção apparente,
+é que Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus
+conselhos. Na Natureza, isto é, na sua Justiça, quiz que tivessemos uma
+norma de egualdade; na Providencia, isto é, na sua caridade, que
+aprendessemos a restabelecer, quanto em nós coubesse, aquella egualdade
+primitiva por mutuos soccorros.
+
+O homem caritativo é portanto o homem da Natureza, e o filho mimoso da
+Providencia, depositario e executor da Justiça de Deus, transumpto e
+argumento de sua bondade e misericordia.
+
+O supérfluo de nossos bens constitue rigorosamente o patrimonio dos
+pobres, e negar-lh'o é ao mesmo tempo injustiça e barbaridade, egual á
+do depositario que consome os bens sagrados do deposito, do ecónomo que
+converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a
+substancia do seu pupillo; é ainda mais: é declararmo-nos inimigos de
+Deus, desacreditando, e dando, de certo modo, quebra áquella
+Providencia, cujos éramos dispensadores e supplementos; áquella
+Providencia, que não consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes
+pelo ar, caiam mortas em terra, sem ordenação do Pae Celeste.
+
+Tudo quanto de nós emana, ou em nós ressumbra bello, generoso, heroico,
+brota (não duvidemos) da caridade. Deus, para tornar as virtudes caras,
+e accessiveis até aos mais faltos de discurso, não creou a caridade,
+senão que a tirou de suas proprias entranhas, e orvalhando-a sobre a
+terra, lhe deu por benção que de todas as mais virtudes fosse ella
+semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos
+ficou independente de qualquer reflexão, affecto innato, instinto (¿por
+que o não diremos?), instinto moral.
+
+Ainda mais, senhores: não só a tornou o mais profundo, mas tambem o mais
+extenso de todos os affectos, para que, sobre encher-nos o coração de
+virtude, ella nol o podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade,
+nol-a podesse tornar permanente.
+
+¡Oh! ¡que maravilhosa não é esta caridade, que em todas as edades, e em
+todas as circumstancias da vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre
+lhe renascem objectos, e infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre,
+como elle, toda a Natureza creada, passa dos homens aos animaes brutos,
+d'estes aos proprios entes insensiveis, adivinha infortunios, inventa e
+persuade soccorros, até para entes que os não sabem agradecer, que os
+não requerem, que os não precisam!
+
+Tem a caridade, como as demais paixões, os seus excessos; momentos em
+que se não sabe conter, nem governar; suspiros, lagrimas, e desalentos;
+enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas, como tudo lhe nasce do
+amor e compaixão, tudo é terno, tudo é mavioso e consolador. Virtude de
+virtudes, virtude unica onde não ha excessos.
+
+Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras
+primas da creação. ¡Ah! ¡que se jamais se podessem tributar ao homem
+cultos, que só á Divindade se devem, ninguem tanto os merecêra, como
+esses que, possuindo os thesoiros dos bens terrestres, os derramam no
+seio dos infelizes!
+
+Porém, meus irmãos, não é mistér uma brandura de animo requintada, para
+nos movermos com os infortunios dos nossos semelhantes, e
+procurarmos-lhes o remedio. ¿Qual de nós, vendo padecer um animalsinho,
+morto de fome, transido de frio, desamparado ás inclemencias de uma
+noite de inverno, e invocando a nossa piedade com aquelles gritos
+lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes para dizerem as
+suas dores, qual de nós se não sentiria profundamente condoído, não
+correria a abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? ¡Ah! ¿e
+deixariamos no infortunio o homem? ¿o homem, semelhante nosso, nosso
+irmão, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens possuimos,
+cuja felicidade é tão travada com a nossa, e cuja desgraça tem sido
+talvez effeito da nossa injustiça, da nossa barbaridade?
+
+¡Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o coração... ¿que
+digo? que o trazeis defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores
+mais doridos da Natureza, ¡ah! emquanto, ao redor de vós, se estão
+sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis, ¿que uso mais
+util farieis vós de vossos bens, do que seria o acudir-lhes? Na vossa
+avidez insaciavel (semelhantes ao inferno, que, por mais victimas que lá
+chovam, não cessa de clamar _affer_, _affer_, mais e mais), uns de vós,
+ó ricos do mundo, se contentam com a visão beatifica dos seus cofres; a
+sua alegria, a sua felicidade, o seu proximo, o seu mundo, a sua alma, o
+seu Deus, tudo seu ali jaz; ali enterraram o coração, e o conservam mais
+duro, mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que
+amontoaram; em quanto outros, pródigos em excesso, como se os seus
+thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por
+luxos, por vaidades, sem moderação, sem ordem, sem destino, sem uma só
+utilidade real. Mais loucos ainda e mais infelizes, outros emfim,
+parecendo arrenegar dos beneficios da Providencia, os cofres que ella
+confiou nas suas mãos, elles os despedaçam e espalham, não só sem
+vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de
+si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios,
+abysmaram a rasão, destruiram as forças, aniquilaram a saude,
+anteciparam a morte, e.... ¡ah! meus irmãos, ¡que de inquietações, de
+violencias, de trabalhos e de dores, para comprar uma eternidade
+desgraçada! ¡Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o
+inferno!
+
+Maus ricos, vós sois como o discipulo traidor; com esses dinheiros de
+maldição, preço dos tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os
+dias se renova nos seus pobres, que vós entregais e desamparais sem
+piedade, com esses dinheiros de maldição, ides comprar um arrependimento
+esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o odio dos homens, a
+vingança de Deus, os tormentos eternos!
+
+¡Quantas injustiças accumuladas n'esta barbara opulencia! Injustiça para
+com os infelizes, cujos bens sonegamos, cujos lamentos não queremos
+escutar, cuja morte mesmo antecipamos muitas vezes.--Injustiça para com
+Deus, de quem recebemos esses bens, com a condição da caridade, e cuja
+Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos beneficios e
+esmolas, desde que entramos no mundo.--Injustiça para comnosco mesmos, a
+quem fechamos as portas de um céo de deleites, em quem apagamos todos os
+sentimentos de virtude, a quem já n'este mundo excluimos de toda a
+felicidade.--Injustiça, emfim, para com todo o genero humano, de quem
+nos afastamos, a quem não queremos pertencer, de quem até nos declaramos
+inimigos.
+
+¿E para onde fugirão os nossos olhos, que lá não vá a miseria publica
+perseguil-os? Nunca soaram tão alto os gemidos dos desgraçados, porque
+nunca a nossa immoralidade foi tão barbara. Realisou-se sobre tantos
+irmãos nossos parte grande das maldições, com que Deus, por bocca de
+Moysés, ameaçava os seus inimigos. Explorae por todas as guaridas da
+indigencia; visitae os tugurios e choupanas miseraveis das aldeias, das
+maiores povoações, e até das cidades... ¡Grande Deus! ¡que multidão e
+variedade de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e
+doentias, mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de
+pão negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas; ¡quantas se não
+chamam poisadas e casas, que antes são covas, masmorras, ou jazigo de
+viventes! ¡de quantos não é cama a terra humida, e vestido o que nem
+lhes encobre a nudez! ¡Tantos paes cercados de um bando de meninos,
+chorando e pedindo-lhes pão! Tantos outros meninos, ainda mais
+infelizes, orphãos de pae e mãe, que nada teem na Natureza, além do sol
+que os aquece, e do ar que respiram, e começam a conhecer tão cedo a
+dureza dos homens, obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar
+por si mesmos com que supram as necessidades, ainda tão mesquinhas, mas
+tão pesadas para nós! ¡Tantas viuvas sem protecção, em quem, sobre o
+desamparo e dôr perpétua da viuvez, accresceu verem os seus bens
+arrancados por crédores, e quantas vezes por ladrões, debaixo do nome de
+crédores! ¡Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores ás suas
+forças, ou á sua creação, ou aos seus annos, para sustentarem, com o
+suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes está derretendo e
+mirrando! ¡Tantos enfermos expirando á mingua, sem medico, sem
+tratamento, sem remedios, sem enfermeiros, sem alma viva que os console,
+que lhes suscite as ideias da Eternidade, e até sem um lençol que os
+amortalhe! ¡Tantos privados dos olhos, dos braços, e do uso dos sentidos
+mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados para a borda dos
+caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol, as chuvas, os
+frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros de outra
+especie pelos homens! ¡Tantos mendigos, emfim, sem lar, sem nada, nem um
+amigo, sósinhos em meio de tanto mundo!
+
+¡Mas que me canço eu a enfeixar o que não tem conta! E quando de taes
+miserias conseguisse fazer aqui um piedoso inventario, ¡quantas outras
+não ficariam de fóra, mais profundas, e mais miserias, porque ellas
+mesmas refogem e se escondem! As ruas e as praças, com todos os seus
+clamores e penurias, não confessam ainda assim quanto a nossa especie
+está padecendo. Ha, em todo este exterior, um não sei que reflexo de
+verniz e doirado, um não sei que ruido festivo, um perfume de opulencia
+e sabores, um certo sorrir, um raio de sol, um aspecto de céo azul, uma
+vida e uma esperança, que são disfarce, e mascara da existencia do povo,
+real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida. Sahindo-se para a rua,
+deixam-se á porta as lagrimas, e cuidados verdadeiros, e toma-se na
+bocca e faces o contentamento postiço. Por fóra andam os corpos em toda
+a sua gala; mas dentro, por todo esse immenso _dentro_, nas entranhas
+d'esse infinito massiço de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos
+sem termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, estão chorando
+milhares de corações, estão-se desesperando milhares de almas.
+
+Oh! ¡se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira para se
+recrear, por esses caminhos tão lageados de marmores, tão ataviados de
+vidros de cores, de metaes brilhantes, de todas as espumas mais formosas
+do luxo, se Deus permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos
+por entre que duas montanhas de infortunio, vai caminhando! ¡oh! ¡como
+de repente, semelhante a Pharaó, na estrada do Mar Vermelho, desabariam
+de todas as partes a afogal-o ondas e mares de dor!
+
+Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da caridade,
+¡quantos pobres envergonhados que abafam soluços e gemidos entre as
+quatro paredes da sua casa! Nas horas da noite, quando das dansas, dos
+jogos, dos espectaculos, e de peores logares, saem torrentes de
+mundanos, em quem parece que o tempo, o dinheiro, a saude e a fama pesam
+insoffrivelmente, ¡que de vezes se lhes não atravessam diante uns
+phantasmas de penuria, em fórma já de mulheres, já de meninos, já de
+anciãos, a quem a vergonha do sol não consentíra sahir dos seus
+sepulcros! De um portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua,
+nos saem as suas vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de
+que não soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo a mão a
+receber a esmola, e a abençoar a caridade; algum vos esconde um rosto,
+que, em melhores dias, tinheis visto brilhar á luz da prosperidade.
+
+Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os
+dias, e não temem o aspecto da noite, porque já não podem ser mais
+infelizes, é Deus quem nol os envia ao encontro, menos por elles que por
+nós, menos para alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem
+algum affecto ao coração gasto, algum pensamento fundo e importante á
+alma dissipada. ¡Felizes vós, os que entendeis estes avisos mysteriosos
+da desgraça, estas embaixadas solemnes do outro mundo! ¡Felizes os que,
+em vez de os repellir com dureza, accudis com o dinheiro á necessidade,
+com a esperança ao queixume, e com a commiseração a quem não cuidava que
+no mundo a houvesse!
+
+--Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que
+me desatinam, que me desesperam (dizeis vós), ¿quem me abona a sua
+pobreza? e concedendo-lh'a, ¿quem me affirma que não é ella castigo da
+sua perguiça, ou mau proceder?... ¿Que vos importa? Se póde ser uma
+coisa ou outra, dae; antes lançar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em
+vaso cheio, ou em vaso indigno, do que deixar de accudir uma só vez a
+quem do vosso superfluo fará o seu necessario, e talvez, se lhe
+recusasseis, padecêra n'um dia o que vós não padeceis n'um anno, ou,
+para o não padecer, commêttera crimes, que, depois de o perderem a elle
+n'este mundo, vos percam a vós no outro. E demais: vós, que tão de
+repente sentenciais o desgraçado que não conheceis, ¿por que vos não
+sentenciará Deus, por esse mesmo facto, a vós?
+
+_Póde não ser pobre o que vos pede._--Sim, e algumas vezes se tem
+visto.--_Póde ter merecimentos para muito mais ainda do que
+padece._--Sim, que é homem como vós, e com mais razão do que vós para
+aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso póde ser; ¿mas
+examinastes vós se era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a
+esmola por tal motivo, ¿não tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a
+injuria? ¡Ah! em quanto sentenciais uma alma que não conheceis, e
+condemnais o vosso semelhante para o deixar ir despojado, ¡quanto mais
+razão não tem elle para condemnar a vossa alma, que vós mesmos lhe
+descobristes inteira com uma só palavra!
+
+Mas ainda vos concedo (perdôe-me Deus a concessão), que todos esses
+andam expiando peccados seus; são até criminosos e facinorosos; que nem
+um d'elles tem necessidade; são até abastados e opulentos; que todo o
+mendigo é um salteador e um millionario. ¿Estais contentes com a
+concessão, ou quereis mais? Não podeis querer mais, porque o não ha.
+Pois bem: ¿mas que direis, quando eu vos apresentar pobres, de uma
+pobreza processada e demonstrada, que vos não importunam nem se queixam,
+dos quaes muitos, dos quaes inteiras classes, não mereceram, nem poderam
+merecer, o seu estado? Ahi tendes os enjeitados, que não é muito que o
+sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas mães; ahi os
+tendes, que a Misericordia mesma não basta a amamental-os e vestil-os,
+e, de seus pobres bercinhos, caem em cardumes nas sepulturas, e vôam a
+ir depôr na presença de Deus, contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes
+dado a vida por um peccado, por um peccado ainda mais mortal (se é
+licito dizêl-o) o da avareza, lhes concorrêram para a morte.
+
+¿Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem innocentes.
+Ahi estão tantos asylos da infancia desvalida, onde se queria educar e
+felicitar um seculo novo, e que, por falta de caridade publica,
+morreram, depois de tão bem nascidos e esperançosos.
+
+¿Quereis mais? ahi estão os asylos da velhice, tambem e mais desvalida,
+onde os soccorros nunca são sobejos, nem sufficientes; porque muitos
+mais são sempre os que batem e choram áquellas portas de refugio, que os
+que a estreiteza das posses consentem sentar-se lá dentro á meza do
+convite de Deus.
+
+Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos está o Senhor chamando o
+coração, e por toda a parte vos tem cercado do dever da esmola.
+
+¿Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias.
+
+¿Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos, a quem
+falta pão, lar, vestido, mundo, que o não conhecem, nem elle os conhece;
+militares que envelheceram nas armas e morrem á míngua; viuvas e orphãos
+de servidores do Estado, a quem se não paga, nem com esperanças.
+
+¿Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos politicos
+vencidos, em quem não é mister longo exame para se reconhecer a
+desgraça, porque é corollario evidente de causas notorias. A terça parte
+de uma edade do homem, dezanove annos, para não datar de mais longe, tem
+sido entre nós consumidos em dissenções e odios. Com successivos
+terremotos políticos, teem desabado as mais altas torres de fortuna;
+desappareceram abundancias afogadas entre ruínas; voaram arrancadas de
+furacões contrarios e imprevistos, as mais florescentes esperanças; os
+caminhos trilhados e sabidos subverteram-se; por onde se descia,
+sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum
+dos filhos do pobre vôa dormitando em côche de oiro, e o ancião doirado,
+que ainda hontem lhe houvera matado a fome, lhe alonga a mão, da margem
+do caminho, clamando esmola. Não se cuide, senhores, que eu condemno o
+presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado; entendo
+os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e bens do
+futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males extraordinarios,
+que não são, para que assim digâmos, nem do homem, nem da Natureza, nem
+de Deus, mas sim da mudança, da transformação da fortuna, da fortuna
+cega, que, no trocar das mãos, quebra sem pejo, nem dó, nem consciencia,
+o que depois todos choram e ninguem concerta.
+
+Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de dôres, que não vemos,
+pela peior de todas as cegueiras, que é o não querer ver. E quando
+d'esta somnolencia, d'este lethargo, d'esta morte do coração, acordamos
+algum momento a este som _Esmola a este vosso irmão pelas chagas de
+Nosso Senhor Jesu-Christo_, já nos reputâmos muito generosos, se em vez
+do silencio ou de uma injuria, lhe acudimos com um _Deus o favoreça_; e
+tornâmos a atar muito depressa o fio dos pensamentos vãos ou
+peccaminosos que traziamos; e lá deixámos para traz a Jesu-Christo morto
+de fome, a Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. ¡Ah! que se o
+seu estado de abjecção os não obrigasse á humildade ínfima, se o uso de
+soffrer estas repulsas os não tornasse já meio insensiveis, se elles nos
+podessem retorquir, «¡Quê! (nos responderiam) ¿Deus que nos favoreça?
+Deus nos favoreceu com esses bens que indevidamente retendes; Deus nos
+favoreceu com os thesoiros da sua Providencia, que vós nos roubastes.
+¿Que o Senhor nos favoreça? ¿Quereis acaso tental-o? ¿que elle obre em
+nosso favor um milagre desnecessario? ¿que torne a chover o maná do céo,
+não sobre um deserto árido como aos nossos paes, mas sobre uma terra,
+que por toda a parte está cheia dos seus frutos e das suas dádivas? Esse
+maná vós o possuis, e encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus fará
+que se corrompa e apodreça. ¿Que Deus nos favoreça, deshumanos? Sim,
+sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os merecimentos que
+terieis na sua presença em serdes misericordiosos, elle os accumula
+sobre a nossa resignação; com os infortunios que nos accrescentais, e os
+prémios que rejeitais, se juntarão em nosso favor aos prémios de que a
+sua misericordia nos achar dignos.»
+
+¡Ah! meus queridos irmãos, que se em nossa dureza fossemos capazes de
+entender os gritos e lagrimas de tantos paes de familias, cujas familias
+podem dizer que não teem pae, tantos orphãos de pae e mãe, tantas viuvas
+desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos
+enfermos, tantos cégos e aleijados, tantos mendigos, tantos pobres
+envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a
+significação das suas dôres e desalento, que uma reprehensão amarga da
+nossa barbaridade para com os nossos irmãos, da nossa ingratidão para
+com Deus; acharíamos, sim, acharíamos até n'esses lamentos, a expressão
+propria com que devêramos deplorar nós mesmos a dureza, antes
+ferocidade, dos nossos corações.
+
+Não só, meus irmãos, as nossas liberalidades atalham todas estas
+miserias, mas ainda vão precaver muitas desordens. Aqui é uma pobre
+rapariga, a cuja honra se preparam violentos ataques. O Céo a dotára das
+qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou de algum modo desfazer a
+obra do Céo, juntando-lhe a pobreza com a formosura. Do seio da
+opulencia, um libertino já vibrou olhos tôrpes e ávidos para o santuario
+da virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e
+todas as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que
+exaltaram o seu triumpho, por mais arriscado e difficil. Já abriu os
+seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque;
+frustrou-se. Não importa; os desejos augmentaram-se na repulsa, o
+merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a seducção, de
+mãos dadas com a indigencia... ¿não vencerão cedo ou tarde? Chegou emfim
+esse dia; ¡venceu! e com um sorriso infernal applaudiu o seu triumpho, e
+a desgraça que consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre
+victima. Ali jaz, n'um arrependimento já tardio e inutil para o mundo;
+ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que, depois de a
+desgraçar, chegou mesmo a aborrecel a; ali jaz na mesma indigencia que
+d'antes, porém mais infeliz agora; a sua honra fugindo abalou-lhe todas
+as outras virtudes. Em odio a Deus e a si mesma, ¿ficou-lhe ao menos um
+refugio no mundo? nenhum, porque o traidor, declarando-se seu cruel
+inimigo, foi divulgar o segredo, e exigir esses applausos infames, que
+tanto mereceu. ¡Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia,
+seriais sempre um anjo tão bello de virtude. Se a caridade te houvesse a
+tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e modesto, onde
+vivias tão innocente e bemquista de Deus e dos homens, ¿não se teria
+afastado ainda o raio que reduziu a cinzas o desambicioso edificio da
+tua felicidade?
+
+Além é um moço, que, cançado da dureza dos homens, começa a não conhecer
+as leis na sua necessidade. Por toda a parte repellido, julgou direito
+prover por si mesmo, e a todos os despeitos, á sua conservação.--«Todos
+esses a quem recorri (diz comsigo mesmo) são felizes; eu não quero a sua
+felicidade; mas tenho, como elles, direito de viver.»--Levado assim
+pelos raciocinios errados do vicio, ou só por um instinto que lhe
+bafejou a injustiça dos homens, começou por pequenos furtos; passou a
+maiores; nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade;
+zombou de todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e
+acabará em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o affasta do
+precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe tira deante dos
+olhos dois futuros que o terão muitas vezes feito estremecer: um carcere
+perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas
+correspondentes, em si e na sua duração, a crimes de que nunca se
+arrependeu, e damnos que nunca tiveram restituição. E quando elle passar
+para o patibulo, vós fechareis talvez as vossas janellas, e direis: «Não
+tenho coração para taes espectaculos;» ¡como se esse mesmo coração não
+fosse o seu peor algoz, o que o conduziu áquelle passo affrontoso!
+
+N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade,
+mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas
+esperanças, que contou, para segurar a subsistencia, com os amigos que o
+atraiçoaram, com a fortuna que lhe fugiu, que se vê precipitado n'uma
+desgraça a que não prevê termo na sua desesperação, insulta o Céo,
+blasfema da Providencia, e, se lhe não accudis, ¡quem sabe se irá (como
+tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender um
+laço, por onde arranque uma existencia que o importuna! ¿E a caridade e
+a ternura não poderão ainda aqui obrar um novo milagre? ¿fazer-lhe
+rebentar as lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? ¿abrandar-lhe o
+coração? ¿obrigál o a bemdizer a Providencia, e abençoar o pão com que
+lhe sustentamos uma vida que lhe fizemos amar ainda?
+
+¡Oh! ¡meu Deus! ¡que doces prerogativas não déstes vós ás almas
+generosas e humanas! Se entre os próprios pagãos alcançava uma côroa o
+que salvava os dias do seu concidadão, ¡que honras não merece dos outros
+homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma vida
+infeliz! ¡que os reconcilia com o Céo que já suppunham surdo e injusto!
+¡e que até previne com os seus soccorros a desordem e excessos da
+miseria que lhes arrancariam os meios de salvação!
+
+¡Ah! meus irmãos, se nos basta ser homens, para reconhecermos como bem
+real esta doce obrigação da esmola, segundo a razão e humanidade, ¡que
+mais fortes motivos não tem o homem christão, para ser esmoler, segundo
+as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os deveres da caridade não
+são para nós simplices axiomas, ou preceitos da philosophia; não são o
+resultado de um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas
+vieram não só confirmar, mas dar ainda, se é possível, uma extensão
+muito maior a tudo quanto n'esta parte a Religião natural nos havia
+imposto.
+
+Segundo o systema religioso do Christianismo, ¡por quantos modos, até
+indirectos, nos não é persuadida a caridade! O Padre derramou sobre nós
+todo o thesoiro das misericordias do Céo; creou nos entes os mais
+perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo qual
+nos formou (pelas suas proprias mãos, dizem as Escrituras); não só nos
+adornou de todas as graças que perdemos na desobediência de nossos paes,
+mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem (mais
+parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma
+habitação commoda e feliz. Esse sol que nos allumia o theatro do mundo,
+essas estações que lhe mudam as scenas, os frutos saborosos e delicados
+que rompem da terra, os vestidos que nos cobrem, o ar que respiramos, o
+somno que nos restaura as forças, os prazeres que nos lisonjeiam os
+sentidos, os prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do
+coração, são outras tantas esmolas, com que Deus proveu desde a
+eternidade ao homem, sobre fraco e indigente, ingrato a tantos
+beneficios.
+
+Na sábia disposição com que de mais o Eterno Padre arranjou todo o
+grande systema da Natureza, ¿não nos deu Elle uma grande lição de
+caridade, estabelecendo em todas as suas obras uma encadeacão successiva
+e mutua de dependencias e soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares
+liberalisam as suas aguas ao ar em nuvens, o ar as suas á terra em
+chuvas, a terra ás fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos
+mares; e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo
+se conserva, se reanima, se restaura.
+
+D'esta mesma sorte, não só as grandes porções da Natureza, mas ainda os
+seus minimos individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e
+os soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes á
+existencia dos outros. É assim que, por toda a parte envolvidos pela
+Natureza, do meio da qual nos elevamos, como obras as mais perfeitas,
+não só nos não devemos resvalar a uma condição inferior á da propria
+materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade, quanto
+nos devemos considerar como entes, cuja conservação é mais importante
+para a manifestação da gloria de Deus.
+
+O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia,
+desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de
+felicidade nas suas doutrinas, dá-lhes a esmola de todo o seu sangue,
+lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o Céo e a
+terra.
+
+O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de santificação, e
+nos accode com esmolas continuas, desde que abrimos os olhos, até que
+deixamos o mundo; pelo baptismo assenta os nossos nomes no livro da
+vida; confirma-nos e augmenta-nos depois esse perdão; repete-o tantas
+vezes quantas offendemos o Céo; sustenta-nos com o manjar dos anjos; e
+accode-nos até com remedios temporaes, á hora em que as portas do
+carcere se vão abrir, e a alma sôlta reverter á sua origem.
+
+Mas não só pelo seu exemplo e meios tão indirectos nos persuadiu Deus a
+esmola; não é uma simples recommendação, é um dos preceitos mais
+rigorosos:--_Ego proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et
+pauperi qui tecum versatur in terra_: Sou eu, é o teu proprio Deus, quem
+te ordena, que abras a tua mão ao necessitado e ao pobre, que lida
+comtigo sobre a terra. Esta lei tão clara, tão precisa e absoluta na sua
+letra, ¿terá acaso todos esses caractéres que devem sempre manifestar-se
+em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e seja o proprio Deus quem nol-a
+interprete.
+
+É _justa e necessaria_: necessaria muito mais ainda para o bem
+espiritual dos bem-feitores, do que para o commodo temporal do
+soccorrido. A esmola, segundo Jesu-Christo, é um acto de Religião,
+conjuntamente com a oração e jejuns; é pois rigorosamente um meio
+expiatorio; é um commercio que temos com Deus por meio do nosso proximo;
+é uma agua copiosa (diz o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio
+das nossas iniquidades; é uma santa usura, em que trocamos bens
+superfluos e temporaes por bens inapreciaveis e eternos; são thesoiros
+que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali estão sempre
+clamando ao Céo em nosso favor; são bolsas que nunca teem de se estragar
+nem de esgotar-se, que nunca nos serão roubadas nem podem ser
+consumidas; é um seguro para o dia da afflicção; é finalmente um arrimo
+a que nos soccorremos para não cahir.
+
+Mais: é _util_, considerada mesmo temporalmente para quem a dá. O
+Espirito-Santo o disse tambem nos Proverbios: _Aquelle que der ao pobre,
+de nada carecerá; aquelle que desprezar as suas supplicas, cahirá tambem
+na pobreza._--Eis aqui, meus irmãos, eis aqui patente o terrivel segredo
+da vingança divina, quando aniquilla tantas fortunas que pareciam tão
+solidamente estabelecidas: _Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil
+inanes_. Sim, porque as maldições, ó ricos do mundo, que o pobre vos
+lança em segredo, na amargura da sua alma, são ouvidas com todas suas
+imprecações, por Aquelle que o creou, e que nunca d'elle arredará os
+seus olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho,
+sereis ámanhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos
+thesoiros; _et sepultus est in inferno_. E se as vossas riquezas vos são
+consentidas, muitas vezes é para que principiem o vosso inferno no
+mundo. Se pareceis prosperar, é para que a vossa quéda seja mais
+espantosa, ou para que os vossos descendentes, que não são culpados nas
+vossas iniquidades, não experimentem a punição da vossa dureza, e
+recebam juntos esses bens a que irão dar um justo emprego.
+
+¡Ah! meus irmãos, dizei me: ¿vistes vós, pelo contrario, que homem algum
+se arruinasse jámais pelas suas larguezas com os pobres? ¿Não é antes
+uma verdade, confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as
+familias de mais caridade são as que mais teem prosperado? Sim, sim, o
+Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os prophetas:
+«Se derramares toda a tua misericordia sobre os necessitados, e encheres
+de consolação almas que gemiam na afflicção, a tua casa se tornará como
+um jardim sempre regado, e a tua prosperidade será tão perenne como a
+fonte que a todos offerece os seus licores, e por mais que a bebam nunca
+se esgota, nem cessará de correr.» ¿E o Redemptor não disse ainda mais
+expressamente: _Date et dabitur vobis_? ¿Não compara elle a retribuição
+com que o Céo ha-de corresponder ás nossas liberalidades, com uma medida
+avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os lados, que se nos
+vasará para o regaço? ¡Oh! não duvidemos: os bens do misericordioso,
+repartidos pelos infelizes, são o azeite e a farinha milagrosa da santa
+viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a Escritura, comeu ella e a sua casa;
+e desde aquelle dia nunca lhe faltou a farinha no pote, nunca o azeite
+do vasinho se diminuia.
+
+Vêde, depois d'isto, ¡que multidão de bençãos as Escrituras não veem
+chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o
+Senhor lhe dê uma longa vida, o faça feliz no mundo, o livre das mãos
+dos seus inimigos, o allivie no leito da sua dôr. O que dispersar os
+seus bens pelos pobres, viverá de seculo em seculo na memoria dos
+homens, abençoado será o seu nome, e n'elle se despontarão as settas
+envenenadas da calumnia. _Justitia ejus manet in saeculum saeculi.
+Exaltabitur in gloria. Ab auditione mala non timebit._ ¿Que significam
+tantas promessas, meus irmãos, tantos premios, tanta abundancia de
+bençãos, as glorias do Céo e da terra, tudo cumulado sobre o homem
+benefico? ¿Que sacrificio tão importante se vai exigir d'elle? ¿a que
+lances heroicos o querem persuadir? ¿que perdas soffrerá que cumpra
+contrabalançar por premios de tão alta valia? ¿Exige-se-lhe a
+mendicidade e a miseria, em que viveram os Apostolos e o Redemptor? ¿um
+exterminio de todas as paixões? ¿uma abnegação de todos os prazeres? ¿as
+mortificacões da penitencia? ¿a constancia e morte gloriosa dos
+martyres? Não, não. Pede-se-lhe só amor e provas de amor para com seu
+irmão; pedem-se-lhe só lagrimas e pão para os infelizes. Não se lhe
+intima que dê, com prejuizo seu, até o ultimo boccado d'esse pão, mas
+empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e
+patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Graça, para lhe pedir
+só as migalhas superfluas da sua meza.
+
+¡Grande Deus! ¡que generosidade incomprehensivel a vossa! ¡Remunerardes
+como sacrificio uma virtude, e acceitardes como virtude o que nada custa
+ao coração! ¡Accumulardes os vossos prémios sobre os prazeres mais doces
+da consciencia! ¡Considerardes em mais do que homem a quem só cumprìu
+com deveres da humanidade! ¡Avaliardes em tanto um superfluo, que
+trasbordamos para o seio do desgraçado, quando já nol-o havieis dado com
+essa condição! ¡Acceitardes, finalmente, esses bens frageis, temporaes e
+caducos, esses bens que só devemos á vossa liberalidade, como moeda
+correspondente em valor ao preço inestimavel dos vossos thesoiros
+infinitos!
+
+Mas d'estas elevadas contemplações, em que todos nos deveriamos abysmar,
+vós me chamais, meus irmãos, vós me fazeis descer ás profundezas da
+vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um segredo bem
+importante. ¿E não adivinho eu quaes teem sido, desde que enunciei o
+thema e objecto do meu discurso, os pensamentos de muitos de vós, da
+maior parte, ou antes de quasi todos os que me escutais?--«Feliz
+(exclama cada um de vós, no seu coração) feliz de mim, se eu podera
+soccorrer o meu proximo, que a tão bom barato me veria de posse do Céo.
+Porém Deus não me destinou a mim esses premios e bençãos; e se a esmola
+fôra um meio indispensavel de salvação, eu me perderia sem remedio, não
+por minha culpa, mas por culpa da fortuna. Todos os meus bens
+escassamente chegam para a minha sustentação e da minha casa.»--Assim
+pensais; assim buscamos pretextos para illudir todos os preceitos até os
+mais terminantes e expressos da Religião. Mentis a Deus, aqui, na sua
+presença, dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa
+propria crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hypócrita do phariseu do
+Evangelho, e lançais de travez os olhos para os ricos, que ahi estão
+comvosco. Folgais talvez com a sua confusão; e a doutrina da caridade, a
+doutrina de tanto amor, só serve de despertar em vós a insolencia, o
+desprezo, e o odio. Não permitia Deus que a sua preciosa semente se
+perca d'este modo; que só a acceite um pequeno torrão de terra, e que em
+vez de produzir os bellos frutos do Senhor, a maior parte do seu campo,
+ou quasi todo elle, continue a só desatar-se em cardos e espinhos.
+Afugentemos as aves d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e
+não consintâmos que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por
+mais pequeno, da sua terra.
+
+Todos vós podeis dar a esmola, todos, sem excepção, vos achais obrigados
+a ella; e esta universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o
+seu segundo caracter de lei.
+
+Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a
+outra do coração. Tão longe vai, pois, a esmola como a caridade; e para
+podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos possuir um coração. ¿Não
+tendes dinheiro, mas tendes pão com fartura? Reparti-o por tantos
+famintos. ¿Escassamente vos chega o pão, mas tendes algumas roupas
+superfluas? Cobri com ellas tantos nús. ¿Nada tendes hoje? Promettei
+para ámanhan; enchei de esperanças o seio vazio de todas as consolações.
+¿São a caso insignificantes os bens que vos restam para os frutos da
+caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que deis só um copo de agua
+fria a um dos mais pequenos do mundo, lembrando-vos de que elle é meu
+discipulo (vos diz Jesu Christo); este só copo eu vos affirmo que não
+ficará sem recompensa. ¿Nada tendes que dar? Reparae bem: ¿Nada tendes
+que dar? Lançae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a vossa
+fortuna. ¿Nada tendes que dar? Se não mentis ao desgraçado, se na
+verdade vos achais privado de todo o genero de haveres, ainda possuis
+muitos bens em que não reparaveis. São os que existem dentro do vosso
+coração. Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre
+todas as feridas dos vossos tristes irmãos. Sois ainda mais rico com o
+vosso coração, no meio mesmo da miseria, do que os ricos sem elle,
+afogados nos seus thesoiros. Consultae esse coração; ouvi como um
+oraculo as suas respostas. ¿Que vos demorais? Segui todos os seus
+impulsos.
+
+¿Não tendes com que soccorrer o indigente? Correi á morada do rico.
+Entrae affoitos.
+
+Pintae-lhe as miserias do seu semelhante. Mostrae que só os interesses
+da humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os
+vossos olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae
+as eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos
+corvos de Elias, voae á choupaninha faminta do deserto, com o pão e com
+a carne, que vos deu essa Providencia, que assim soubestes interessar.
+
+¡Não tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o trabalho dos vossos
+braços. Advogae perante o poderoso a causa do fraco. Desfazei os enredos
+e calumnias, que ennegreceram vosso irmão, que lhe roubaram todas as
+protecções.
+
+¡Não tendes que dar! Congraçae o homem com o homem, a familia com a
+familia.
+
+¡Não tendes que dar! Visitae tantos desgraçados, que gemem por esses
+carceres; persuadi-lhes a paciencia, e a resignação evangelica;
+confortae-os com palavras doces, com esperanças consoladoras.
+Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com mão carinhosa, os
+remedios; animae-o com os vossos sorrisos, e fazei que troque os
+suspiros da sua dôr e do seu desalento em suspiros de ternura, em
+expressões de confôrto; que veja os Céos abertos, e que goze
+antecipadamente de premios, que, se não fosseis vós, talvez não tivesse
+de possuir.
+
+¡Não tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a tantos meninos, e
+ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de vosso proximo na
+presença, assim como na ausencia. Ajudae-o com as vossas orações.
+
+Nada tendes que dar! ¡Nada tendes que dar! ¡Ah! ainda tendes lagrimas.
+São as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca se esgota
+para um christão. Tomae a vós uma parte do seu infortunio, e elles
+ficarão menos oppressos. ¡Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do
+oiro! ¡De quantos e quantos modos, não sabe reproduzir-se a
+beneficencia!
+
+Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia,
+porque elles alcançarão misericordia.
+
+Eis aqui as bençãos e os premios do Céo, recahindo sobre todos vós, sem
+exclusão de um só. Ahi vos tendes tão ricos, aos olhos do Senhor, como
+esses ricos, cuja dureza lamentaveis, a cujos bens vos promettieis dar
+um melhor emprego, se os possuisseis. ¿Quem vos detem? ¿por que não
+correis a praticar essas obras de misericordia, que podeis? ¿a
+merecerdes essas bençãos e premios, que ha pouco ambicionaveis? ¡Quê!
+¡Já se vos affrouxa o zêlo! Sim, o zêlo, que murmura, que reprehende,
+que insulta nos outros a infracção dos deveres, em quanto os julga
+alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por
+mais injusta contradicção, as fraquezas, que não perdoamos no mundo,
+sendo em nós, já as sabemos desculpar; ¡e quantas vezes não passam de
+desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a razão, se a
+humanidade, se a justiça, se a consciencia, se os interesses do mundo,
+se as bençãos do tempo e da Eternidade, se todos os premios de Deus,
+emfim, nada podem comvosco, possam-n-o, ao menos, as suas ameaças,
+castigos e maldições, que vão constituir a sua lei perfeitamente
+obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter.
+
+¿Recusais a misericordia de Deus? Já não tendes que escolher. Só lhe
+ficaram as vinganças. Affastae-vos, ó santa familia de infelizes.
+Pobresinhos do Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover
+fogo e colera do Céo. Para além, para além, é o vosso refugio, á dextra
+do Eterno Padre. _Venite ad me, omnes qui laboratis, etc._ ¿Não vos
+tinha elle dito que os vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as
+humiliações se lhes converteriam um dia em triumphos? Sim, sim, ó
+famintos, ó sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos, ¡jubilae!
+Vós nunca cessastes de ser os seus filhos muito amados. Eu vou reassumir
+todos os thesoiros (vos diz elle) que a minha Providencia repartira
+pelos vossos barbaros oppressores. Eu lhes havia dado mais altos meios
+do que a vós mesmos de alcançarem a minha gloria, de alcançarem a menos
+custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, só serviram de os fazer
+ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o vós, ó
+meus pobres; frutos que eu vou recolher e guardar para sempre no meu
+seio; elles foram arvores estereis, que, dominando toda a sementeira, a
+açoitaram com os ramos, a damnaram com a sombra, a devoraram com as
+raizes; infecundas e nocivas eu as arranquei em meu furor; eu vou
+lançal-as ao fogo. Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no
+incendio eterno, que foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu
+tive fome, e vós me não déstes de comer; eu tive sêde, e vós me não
+déstes de beber; fui peregrino, e não me recolhestes; nu, e não me
+vestistes; enfermo e encarcerado, e não me visitastes. Todas as vezes
+que despedistes, que calcastes os pequenos do mundo, a mim, a mim o
+fizestes.
+
+¡Ah! meus irmãos, possa esta sentença de maldição estampar-se hoje com
+letras de fogo e indeleveis nos vossos corações. Este Jesus escondido
+nos pobres, este Jesus que por ahi vaga fóra dos templos, coberto de
+remendos, macilento, prostrado debaixo do pêso de tantas cruzes, é um
+rei de majestade, é um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda
+a sua cólera, e de cujas sentenças nunca poderêis mais appelar. ¡Oh!
+compadecei-vos d'elle, soccorrei-o emquanto o-vêdes pobre, cahido e
+humilhado, para o não experimentardes depois, senhor altivo e vingador.
+¡Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o coração me-diz que esta semente
+não será perdida, e que terêis hoje ao menos soccorros e consolações.
+
+Pois bem, Senhor. A Vós, recorremos hoje, que ainda é tempo. Aqui
+promettemos soccorrer-vos com o que é vosso, a Vós, ó meu Jesus pobre; a
+vós, cahido, a vós humilhado, para vos não experimentarmos depois
+accusador, testemunha, vingador e inexoravel. Antes que nos-accendais
+esses fogos de maldicção, já era nossos corações temos accezos outros,
+que muito mais são vossos: os da caridade.
+
+Ó modêlo do bom pae de familias, ajuntae-nos em tôrno da meza do vosso
+banquete celestial, aonde se assenta o opulento Salomão a par do Lazaro
+mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador arrependido com
+o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos sôbre o vosso seio; e n'um
+abraço de eterno amor nos-apertae a todos sôbre o vosso coração
+paternal, por todos os séculos dos séculos.
+
+Assim seja.
+
+
+
+
+INDICE
+
+
+I--A primeira noite na serra 5
+
+II--O sepulchro, ou historia de uma noite
+de S. João 11
+
+III--Epistola a João Evangelista Pereira da
+Costa 41
+
+IV--O Presbyterio 43
+
+V--A lyra do desterrado 49
+
+VI--Epistola a 51
+
+VII--A romaria 53
+
+VIII--O Domingo gordo dos montanhezes 55
+
+IX--O S. João nas faldas do Caramulo 77
+
+X--O mosteiro 81
+
+XI--Santa Maria Egypcíaca 91
+
+XII--Epistola ao Desembargador Deslandes 97
+
+Notas ao 1.^o volume 99
+
+Additamento 107
+
+Sermão da Esmola ou da Caridade 109
+
+
+
+
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL Sociedade editora
+
+[Figura]
+
+LIVRARIA MODERNA 95--RUA AUGUSTA--LISBOA
+
+
+
+
+*Notas:*
+
+[1] Verbi gratia na quinta da Domanderes.
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[2] Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos com o
+gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz descarregar
+uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos ladrões, pelas muitas
+perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.--Nota do
+secretario Augusto.
+
+[3] A Castanheira do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da Feira, a uma
+legua de Agueda.
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[4] A traducção de parte de Silio Italico pelo Padre Francisco Manoel do
+Nascimento (Filinto Elysio.)
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[5] Traducção da escolha das Fabulas de Lafontaine pelo mesmo.
+
+
+ Nota do autor.
+
+
+[6] (O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.)
+
+
+ Nota dos Editores.
+
+
+[7] Josué--cap. XXIV
+
+[8] Juizes--cap. VI.
+
+[9] Foi este fragmento publicado na _Revista Universal Lisbonense_ de 19
+de Junho de 1845--Tomo IV, pag. 582.
+
+
+ Os Editores.
+
+
+
+Lista de erros corrigidos
+
+
+Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:
+
+
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | | Original | Correcção |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | Volume I | | |
+ |#pág. 20| a ém | além |
+ |#pág. 33| «o salto)» | «o salto») |
+ |#pág. 36| opíma | optíma |
+ |#pág. 56| Ines | lhes |
+ |#pág. 69| fescenino,» | fescenino», |
+ |#pág. 94| acompapanhal-o | acompanhal-o |
+ | | | |
+ | Volume II| | |
+ |#pág. 45| dextra não | dextra mão |
+ |#pág. 113| tarrestres | terrestres |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
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+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
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+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+
+
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+Foundation
+
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+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
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+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
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+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
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+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
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+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
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+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
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+works.
+
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+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
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+
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+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
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+ <title>O presbyterio da montanha</title>
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+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.net
+
+
+Title: O presbyterio da montanha
+
+Author: António Feliciano de Castilho
+
+Release Date: February 19, 2009 [EBook #28127]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<div>
+<div class="fbox"> <b>Nota de editor:</b>
+Devido &agrave;
+exist&ecirc;ncia de erros tipogr&aacute;ficos neste texto,
+foram tomadas v&aacute;rias decis&otilde;es quanto &agrave;
+vers&atilde;o final. Em caso de d&uacute;vida, a grafia foi
+mantida de acordo com o original. No final deste livro
+encontrar&aacute; a lista de erros corrigidos.<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita
+Farinha (Fev. 2009)
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>O Presbyterio da Montanha:<br />
+
+<br />
+
+<a href="#Vol.I">Volume I</a><br />
+
+<a href="#Vol.II">Volume II</a></h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4>
+
+<h4>
+XIX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME I</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+95, Rua Augusta, 95<br />
+
+1905</h4>
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+OBRAS COMPLETAS<br />
+
+DE<br />
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4>
+
+<h4><br />
+
+VOLUME 19.&ordm;</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">I</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor
+e melancolia.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A
+chave do enigma.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas
+de Ecco e Narciso.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(1.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span>&#8213;Aprecia&ccedil;&otilde;es moraes,
+litterarias, e artisticas.</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">X</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(3.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(4.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(5.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (6.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(7.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span> (8.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (1.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (2.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (3.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da
+montanha</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>NO PR&Egrave;LO:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 41px;">XX</td>
+
+ <td style="width: 10px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O
+Presbyterio da montanha</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4><a name="Vol.I"></a>OBRAS COMPLETAS DE A.
+F. DE CASTILHO<br />
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4>
+
+<h4>
+XIX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da<br />
+
+Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME I</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br />
+
+<em>Sociedade Editora</em><br />
+
+</h4>
+
+<span style="font-weight: bold;"><br />
+
+</span>
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td>
+
+ <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td>
+
+ <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <b>Rua
+Augusta, 95</b></td>
+
+ <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<h4>1905
+</h4>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>Advertencia dos Editores</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em 1846 principiou Castilho a colligir, entre os seus manuscritos
+antigos, alguns dos que lhe tinham nascido na estudiosa
+solid&atilde;o de mais de sete annos de homisio na serra
+do Caramulo. A esses manuscritos, que ia publicar com o titulo de <em>O
+Presbyterio da montanha</em>, escreveu um prologo extenso,
+descriptivo, altamente pittoresco, onde, a d&ocirc;ze annos de
+distancia, desafogou as lembran&ccedil;as d'aquelles logares, e as
+saudades de um irm&atilde;o, o melhor dos irm&atilde;os, o
+j&aacute; ent&atilde;o fallecido Abbade de S. Mamede da
+Castanheira do Vouga, no Bispado de Aveiro. O prologo concluiu-se,
+imprimiu-se na sua maxima parte, mas n&atilde;o chegou a
+publicar-se.<br />
+
+<br />
+
+O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
+da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
+fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer
+como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo,
+s&atilde;o hoje considerados espe
+O natural desleixo do Poeta a respeito do que era seu, as vicissitudes
+da sua atormentada vida, a sahida para S. Miguel, e outras causas,
+fizeram com que as folhas impressas se sumissem, nem sabemos dizer
+como; e os pouquissimos exemplares que existem, e se apontam a dedo,
+s&atilde;o hoje considerados especies bibliographicas de primeira
+raridade.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[6]</span>
+Castilho possuia um, que vimos, e desappareceu; a Bibliotheca Nacional
+de Lisboa possue outro; o distinto colleccionador,
+bibli&oacute;grapho, e escritor, o snr. Annibal Fernandes-Thomaz,
+outro; a fallecida snr. <sup>a</sup> D. Maria Peregrina de
+Sousa, poetisa
+portuense, possuia outro, que parece ter levado caminho; Innocencio no
+Tomo I do Supplemento do seu immortal <em>Diccionario</em>,
+n&atilde;o declara se era dono de algum; menciona a obra, apenas.<br />
+
+<br />
+
+Quanto &aacute; parte poetica do livro projectado, essa,
+n&atilde;o impressa, desappareceu em parte. S&oacute; algumas
+poucas pe&ccedil;as
+encontr&aacute;mos, umas inteiras outras incompletas; materiaes
+truncados da collec&ccedil;&atilde;o. Salvando esses versos,
+cumprimos um dever moral, e outro literario.<br />
+
+<br />
+
+O prologo de Castilho &eacute; pois o brilhante p&oacute;rtico
+de um edificio ainda em
+construc&ccedil;&atilde;o, e j&aacute; em ruinas;
+&eacute; inquestionavelmente uma das obras mais curiosas e
+instructivas que elle deixou. A chorographia, a fauna, a historia, a
+lenda, os costumes, a paizagem, as antigualhas, o <em>folk-lore</em>,
+d'aquella
+regi&atilde;o alpestre, t&atilde;o portugueza, mas
+t&atilde;o desconhecida, tudo isso &eacute; tratado com amor,
+com o cuidadoso amor de um archeologo-poeta.<br />
+
+<br />
+
+Appareceu tambem uma
+<em>Introduc&ccedil;&atilde;o</em> em
+verso s&ocirc;lto a certo poema intitulado <em>O
+Sepulcro, historia de uma noite de S. Jo&atilde;o</em>,
+projectado pelo nosso autor; poema original, muito vivido, muito
+phantastico, infelizmente por concluir. Entendemos n&atilde;o menos
+intercalar essa curiosa Introduc&ccedil;&atilde;o, no seu logar
+chronologico, por varios motivos: d&aacute;-nos
+<span class="pagenum">[7]</span>
+Castilho sob uma
+fei&ccedil;&atilde;o poetica diversa da sua habitual, e
+pinta-nos o estado da sua alma aos trinta annos, quando absorvia
+soffregamente o ar, a vida, os usos populares da montanha. O <em>Sepulcro</em>
+&eacute;
+pois optimo contribuinte d'este truncado banquete literario, e
+f&ocirc;ra imperdoavel, apesar de incompleto, despresal-o aqui. Do
+borr&atilde;o original, que possuimos pela letra do amoravel
+secretario Augusto Frederico, para esta lic&ccedil;&atilde;o
+actual, ha leves divergencias, que foram pelo proprio autor ditadas em
+1864.<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m do <em>Sepulcro</em>, outras
+pe&ccedil;as, portuguezas e latinas, j&aacute; impressas nas
+<em>Excava&ccedil;&otilde;es</em>, teriam logar
+aqui, pelo seu nascimento, pela sua data, pela sua indole; mas o autor
+preferiu collocal-as n'aquelle seu volume. Facil &eacute; ao leitor
+intelligente o procural-as.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+&Aacute; MEMORIA<br />
+
+<br />
+
+DO<br />
+
+<br />
+
+EXEMPLAR DE IRM&Atilde;OS</h4>
+
+<h4><br />
+
+AUGUSTO FREDERICO DE CASTILHO<br />
+
+<br />
+
+PRIOR DE<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">S. Mamede da Castanheira do Vouga</span>
+</h4>
+
+<h4><br />
+
+<em>Em testemunho publico e perenne</em><br />
+
+<br />
+
+<em>DE</em><br />
+
+<br />
+
+AFFECTO E GRATID&Atilde;O</h4>
+
+<h4><br />
+
+Offerece<br />
+
+<br />
+
+<em>Antonio Feliciano de Castilho</em></h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>PREAMBULO</h3>
+
+<h4>
+I</h4>
+
+O livro que apresento, havia de ser difficil de classificar, se o
+classifical-o podesse por alguma via valer a pena.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o &eacute; historico, nem ficticio; n&atilde;o
+&eacute; didactico, philosophico, nem descriptivo; n&atilde;o
+&eacute; prosa, nem poema, nem ainda poemas; e, sem ser nada de
+tudo isso, de tudo isso participa.<br />
+
+<br />
+
+Nem sequer &eacute; um livro; &eacute; uma cong&eacute;rie
+de pequenas coisas, todas mais ou menos obscuras, e quasi todas
+desconnexas, e de pensamentos n&atilde;o procurados, se
+n&atilde;o tomados como elles quizeram vir, sem nenhum bem
+determinado fim moral, social, ou literario; em summa: um d'aquelles
+banquetes de alde&atilde;o, engenhados &aacute; pressa do que
+ha em casa,<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry"> <em><a name="n1"></a>...dapibus
+mensas oneramus
+inemptis,</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[12]</span>
+para hospedar a
+cortes&atilde;os que lhe passaram pela porta. N&atilde;o
+procura enganal os: com m&atilde;os limpas e
+cora&ccedil;&atilde;o lavado lhes
+p&otilde;e diante o que s&oacute; para si tinha tratado na sua
+horta, ceifado no seu ch&atilde;o, cevado no seu pateo, ou colhido
+do seu pomar. Porcelanas e pratarias, n&atilde;o as tem; algumas
+flores, j&aacute; pode ser que as apresentar&aacute; em vasos
+de barro; mas como vos assoalha com bom rosto quanto possue,
+n&atilde;o se vos alardeia de abastado, nem se compara com os
+visinhos de casas altas e balc&otilde;es envidra&ccedil;ados.
+Como quer que v&oacute;s d'elle o fiqueis, n&atilde;o
+ficar&aacute; elle descontente de si mesmo &aacute; despedida.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Foi o geral d'esta collec&ccedil;&atilde;o, parte escrito de
+carreira, parte apenas esbo&ccedil;ado ou apontado, ha hoje doze,
+treze, quatorze, quinze, e dezasseis annos, sem pensar no Publico; para
+mero desenfadamento de horas abhorrecidas; para ajudar a correr mais
+depressa, em sitios tristes e ermos, uns tempos muito ermos, muito
+tristes, e para mim, que nunca bem atinei com o futuro, muito
+desconfortados de esperan&ccedil;as.<br />
+
+<br />
+
+Como todo o meu fim em fazer versos n&atilde;o era outro
+sen&atilde;o o fazel-os, de todo o modo me nasciam bem.
+N&atilde;o tinham de apparecer entre gente; n&atilde;o os
+educava; n&atilde;o os corrigia; n&atilde;o lhes punha galas e
+arrebiques. Assim sahiram, assim ficaram, e assim os esqueci.<br />
+
+<br />
+
+Revi-os depois de tornado ao mundo, aonde j&aacute; cuidei que
+n&atilde;o tornasse; achei-os
+<span class="pagenum">[13]</span>
+os mesmos que os tinha deixado:
+sinceros, mas incultos e semi-silvestres, como nados e creados que eram
+por entre troncos e penedos, longe de olhos e de ouvidos, que fazem por
+fora o mesmo que por dentro faz a consciencia.<br />
+
+<br />
+
+Vieram-me tenta&ccedil;&otilde;es de os enjeitar; mas... eram
+filhos; contavam j&aacute; annos: recordavam-me tempo de saudades;
+eram me saudades elles proprios; reconheci-os; dei-lhes o
+meu nome; com elle os apresento.<br />
+
+<br />
+
+<h4>II</h4>
+
+<br />
+
+Todos os autores, ainda os que mais intimos se nos figuram, cuido eu
+que <em>se
+comp&otilde;em</em> para o Publico; e, bem hajam elles!:
+n&atilde;o levam &aacute; pra&ccedil;a sen&atilde;o o
+que teem averiguado que por l&aacute; se deseja e se procura;
+p&otilde;em de parte, quanto podem, a sua pessoa, para servirem ao
+interesse ou gosto alheio.<br />
+
+<br />
+
+Nada d'isso tenho eu n'estas paginas.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o sou eu que vou para os leitores; s&atilde;o os
+leitores que teem de vir para mim, se as quizerem ler.
+H&atilde;o-de deixar a sua cidade, pelo meu ermo; as suas
+occupa&ccedil;&otilde;es, pelo meu ocio; a sua polidez, pela
+minha rudeza; os seus, pelos meus costumes; a historia ou o romance da
+sua vida, pelo recantinho domestico onde a minha correu, como uma fonte
+desconhecida e pura, que mana gotta a gotta n'uma cova, s&oacute;
+vista de cima pelo ramo de tojo que a sombreia, ou pela nuvem, ou pela
+andorinha cujo ventre branco
+<span class="pagenum">[14]</span>
+ella retrata no seu v&ocirc;o. Pelo que, bem entendido deve ficar
+desde aqui (a fim de que n&atilde;o venham depois obrigar-me por
+divida que eu n&atilde;o contraio), que a unica
+deleita&ccedil;&atilde;o que esta leitura pode dar, se pode dar
+alguma, ser&aacute; a que naturalmente se tem, penetrando no
+interior da casa alheia, e nos segredos do visinho.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; o que faz com que, por mais futeis que pare&ccedil;am
+as memorias, que alguns escrevem de suas vidas, e as correspondencias
+epistolares, quando por acaso v&atilde;o dar ao prelo sem terem
+sido ordenadas para elle, commummente s&atilde;o lidas com
+interesse.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; o que faz, tambem, ser muitas vezes mais aprasivel que as
+achadas de antigos monumentos publicos, o desenterro fortuito de uma
+antiga vivenda particular ou casa rustica, onde os vasos e
+utens&iacute;s do viver quotidiano veem logo suscitar na phantasia
+os costumes, o trato, e o ser intimo, da gente que ali houve.<br />
+
+<br />
+
+Os monumentos s&oacute; dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o
+ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos
+banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas
+ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos;
+confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas,
+de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e
+vira&ccedil;&otilde;es do ceo, do sussurro das plantas, dos
+sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu,
+deixando de si menos v
+Os monumentos s&oacute; dizem do povo; mas a pedra da lareira, ou o
+ladrilho do forno, o gancho da candeia, ou a aza da amphora vinaria dos
+banquetes, dizem da familia. Em de redor de cada coisa d'estas
+ressurgem tambem uns eccos de vozes enterradas ha muitos seculos;
+confusos, mas a todos intelligiveis e suaves, de donas, de donzellas,
+de velhos e meninos, dos animaes caseiros, dos passarinhos e
+vira&ccedil;&otilde;es do ceo, do sussurro das plantas, dos
+sons, em summa, de tudo que n'esses tempos apartados foi, e feneceu,
+deixando de si menos vestigio, que a humilde talha do vinho, e a
+lampada que allumiou
+<span class="pagenum">[15]</span>
+calada os prazeres ou os somnos de seus senhores.<br />
+
+<br />
+
+Os monumentos s&atilde;o artificiaes, e artificiosos;
+s&atilde;o estudados, e emphaticos; a historia que elles resam
+&eacute; fria. Mas c&aacute;, o romance que engenhamos,
+ageitado &aacute;s memorias e saudades do nosso mesmo passado,
+&eacute; todo perfumado de Natureza; a mentir nos diz verdades.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+As <em>impress&otilde;es de viagens</em>
+est&atilde;o sendo ao presente um genero de Literatura mixta mui
+usado e mui querido.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o admira: para os autores &eacute; facil; para os
+leitores, recreativo quando menos. Satisfaz-se o humor cosmopolita, que
+todos temos muito ou pouco; sem can&ccedil;asso nem m&aacute;s
+poisadas por terra; sem enj&ocirc;o nem temporaes por aguas do mar;
+sem desabrimento de esta&ccedil;&otilde;es; sem saudades do que
+l&aacute;
+fica para traz; ou, havendo-as, com bom remedio para desandar, que
+&eacute; repetir algumas paginas; e emfim, sem o aborrimento, que a
+pessoa a viajar em corpo e alma tantas vezes deve de sentir em chegando
+aonde ninguem a espera, nem festeja, nem conhece, e onde n&atilde;o
+ouve pelas ruas palavra nem som da sua crea&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+A viagem escrita, sem custo de nenhuma especie se faz por uns caminhos
+atmosphericos t&atilde;o suaves, que a todas as partes nos levam,
+com a nossa casa e familia, sem at&eacute; nos demovermos do nosso
+quarto nem da nossa cama, se como Ovidio somos, que punha entre os
+regalos da vida o de ler deitado.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[16]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Ora digo eu: se o attractivo commum de taes viagens &eacute; o
+gosto de conhecer sitios, gentes, e costumes, que nos s&atilde;o
+extranhos, e n&atilde;o medir as distancias que nol os apartam, que
+esse, pelo contrario, &eacute; o maior desconto do peregrinar,
+&iquest;por que se apeteceriam mais as viagens &aacute;
+Fran&ccedil;a, &aacute;
+Inglaterra, &aacute; Suissa, &aacute; Italia, &aacute;s
+margens do Rheno,
+&aacute; Russia, ao Egypto, &aacute; China, ou ainda
+&aacute; Lua, do que a um qualquer monte da nossa terra,
+s&oacute; conhecido de seus moradores e visinhos?<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que sabeis v&oacute;s mais da serra do Caramulo, em
+cujas faldas est&aacute; assentado S. Mamede da Castanheira do
+Vouga, como um neto no rega&ccedil;o de sua av&oacute; triste e
+taciturna, que do monte Ararat, em cujo cume parou e se abriu a arca
+depois do diluvio? Nem mais, nem por ventura tanto.<br />
+
+<br />
+
+Vir&eacute;is pois &aacute;s raizes do Caramulo conversar
+montanhezes, agrestes por&eacute;m bons; e t&atilde;o bons,
+que, d'entre os seus oiteiros mal sombreados e mal productivos, nos
+seus paup&eacute;rrimos tugurios cobertos de loisa ou colmo, e
+pendurados &aacute; laia de ninhos pela escarpa dos precipicios,
+entalados nos c&oacute;rregos, ou inclinados a scismar tristezas
+sobre algum rio fundo e triste, nunca se lembraram de vos invejar a
+v&oacute;s outros as vossas cidades opulentas e festivas.<br />
+
+<br />
+
+Estes, com falarem portuguez, s&atilde;o para v&oacute;s
+estrangeiros, ou quasi. Como taes, n&atilde;o vos despraza
+conhecel-os, despendendo algumas poucas horas com quem por entre elles
+demorou annos, e de boa-mente l&aacute; iria
+<span class="pagenum">[17]</span>
+agora enterrar os restos can&ccedil;ados
+da vida ao-p&eacute; do sepulcro de um Pae, que lhe l&aacute;
+ficou em quieto desterro para todo sempre. <sup> <a href="#1">[1]</a></sup><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>III</h4>
+
+<br />
+
+A 23 de Outubro de 1826, entrava por aquella serrana regi&atilde;o
+o novo Prior, meu sempre e em tudo irm&atilde;o, e agora saudade
+minha continuada e sem remedio, Augusto Frederico de Castilho, com a
+sua pequena familia, de que era eu parte inseparavel.<br />
+
+<br />
+
+Coimbra, d'onde iamos, f&ocirc;ra a terra dos nossos annos mais
+flor&iacute;dos; Lisboa, a do nosso ber&ccedil;o e da nossa
+infancia. Uma e outra me chamariam pelos affectos em qualquer parte do
+mundo em que eu estivesse; e n&atilde;o houvera eu
+val&iacute;do a resistir-lhes. Mas para aquelle ermo, que
+ent&atilde;o cuidavamos nos durasse a vida toda, entranhavamo-nos
+elle e eu, por nos sentirmos um como o outro t&atilde;o encantados
+com o nosso futuro, j&aacute; palpado e colhido &aacute;s
+m&atilde;os, que alegres, sobre resignados, esqueciamos todos os
+outros sitios por aquelle, renunciavamos quaesquer outras delicias,
+mais amenas ou mais v&iacute;vidas,
+<span class="pagenum">[18]</span>
+por aquellas gentilezas
+incultas e mais poeticas de uma natureza quasi primitiva.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<a name="n2"></a>Pass&aacute;mos n'uma
+bateirinha remada por uma velha moleira da
+margem, o vi&ccedil;oso rio de Bolfiar, a que deu nome, hoje
+corrupto, segundo a tradi&ccedil;&atilde;o, o <em>bom
+fiar</em> de certa mo&ccedil;a mui santa, que junto d'elle
+vivia n'uma choupaninha pobre, e esmolando a todos os pobres com o
+trabalho da sua roca; se n&atilde;o quizerdes antes que dos Moiros
+lhe viesse o appellido, significando <em>pepinal</em>, ou
+<em>rio das terras dos pepinos</em>; pacifico rio, que
+ent&atilde;o ia grosso e desmandado por entre as suas duas ribas
+altas e verdejantes, em cujos cimos nenhum passageiro deixou nunca de
+se deter enlevado na amenidade de tal painel.<br />
+
+<br />
+
+Come&ccedil;am a estender-se-nos diante, profusas e desmedidas para
+um e outro cabo, arripiadas g&acirc;ndaras de carqueja e urzes,
+s&oacute; de longe a longe interruptas de um sovereiro torcido e
+mal posto, ou de um rebanho; terreno boleado e ondeado como um lago,
+que em meio de tempestades se houvesse petrificado por encanto.
+S&atilde;o j&aacute; fronteiras do Caramulo.<br />
+
+<br />
+
+<h4>IV</h4>
+
+<br />
+
+A freguezia de S. Mamede n&atilde;o se v&ecirc; em parte
+alguma; &eacute; dispersa, e emboscada. A magreza da terra
+n&atilde;o d&aacute; para grandes espessuras de
+povoa&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+O aspecto do paiz, para quem s&oacute; o atravessa
+<span class="pagenum">[19]</span>
+&eacute; de inhospedeiro. Mas que
+se detenham, e o tratem; achar&atilde;o a hospitalidade espontanea
+e desinteressada, em todas as falas, em todas as m&atilde;os, e em
+todos os
+cora&ccedil;&otilde;es. &Eacute; porque a
+solid&atilde;o &eacute; de si mais
+affectuosa, e a pobreza mais liberal e larga, que o rico povoado.<br />
+
+<br />
+
+Esta differen&ccedil;a e vantagem que os moradores levam
+&aacute; sua terra, experiment&aacute;mol-as n&oacute;s
+ainda antes de chegarmos &aacute; egreja e
+residencia, sahindo a receber o seu Pastor novo n&atilde;o
+s&oacute; os maioraes, se n&atilde;o quasi todo
+o Povo com os seus trajos de festa, e repicando por cima das cerejeiras
+e nogueiras do adro os tres sinos do campanario, d'onde
+&aacute;quelle som se dispartiu pelos ares uma nuvem de pombas
+brancas.<br />
+
+<br />
+
+A egreja, alva, com o seu largo port&atilde;o vermelho aberto para
+o seu adro muito verde, apresenta-se solitaria. Das
+povoa&ccedil;&otilde;es em que a freguezia se divide, nenhuma
+lhe &eacute; contigua nem visinha. O presbyterio, ou residencia
+parochial, &eacute; o unico edificio que a acompanha, mas por de
+traz, como serva humilde e boa, e n&atilde;o descobrindo mais, por
+entre os pl&aacute;tanos, que o portal do seu pateo toucado e
+semi-velado das mais esp&ecirc;ssas, crespas, e lustrosas heras,
+onde j&aacute;mais se esconderam e cantaram melros.<br />
+
+<br />
+
+Ambos os edificios ficam no meio do
+<em>passal</em>, antiga quinta &laquo;das
+Limeiras&raquo;, dos Condes da Feira, como o passal fica no meio do
+sinuoso deserto, por onde se disseminam as aldeias, povoas, e casaes,
+que ali teem o seu foco espiritual.<br />
+
+<br />
+
+Um grande silencio rodeia largamente a
+<span class="pagenum"> <a name="p20">[20]</a></span>
+casa da ora&ccedil;&atilde;o. O presbyterio n&atilde;o lh'o
+quebra.<br />
+
+<br />
+
+Baixo, de um s&oacute; andar, e retirado para o fundo do seu pateo
+rustico mas espa&ccedil;oso, a olhar pelas quatro janellinhas da
+sua frontaria principal unicamente para o ceo, e para umas formosas e
+corpolentas laranjeiras, que dentro do mesmo recinto vegetam, como elle
+clausuradas, o modesto domicilio, proporcionado pelo que sempre
+dever&aacute; ser o pastor de tal rebanho, n&atilde;o se
+retrahiu para mais longe, por traz da sombra do santuario, porque
+n&atilde;o poude: porque lh'o embargou a longa e cada vez mais
+precipitosa descida, que desde os seus calcanhares come&ccedil;a
+para <a href="#e1">al&eacute;m</a> a esconcear,
+descer, e
+afundir-se, at&eacute; &aacute; borda do estreito, rumoroso, e
+espumifero rio de S. Mamede.<br />
+
+<br />
+
+Uma ponte de madeira, arremessada e tr&eacute;mula nos ares a
+grande altura, por cima das aguas escuras e raro alcan&ccedil;adas
+do sol, communica esta com a ribanceira ulterior, n&atilde;o menos
+carrancuda, fragosa, arripiada, e a pique.<br />
+
+<br />
+
+Da residencia, cor&ocirc;a de um dos dois alcantis, at&eacute;
+ao moirisco logar de Falgozelhe, seu visinho na fronteira crista da
+penedia d'alem-rio, entremeia apenas distancia, que, pela calada das
+noites, deixa ouvir de parte a parte os ladridos dos c&atilde;es de
+gado, as cantigas do ser&atilde;o, e os alertas dos gallos a
+deshoras. E comtudo, aquelle
+<em>quasi-nada</em> para os ouvidos e olhos, &eacute;
+para os p&eacute;s caminho dilatado, fadigoso, e n&atilde;o sem
+perigos.<br />
+
+<br />
+
+As duas veredas, que levam &aacute;s duas extremidades da ponte,
+giram enleadas e perplexas,
+<span class="pagenum">[21]</span>
+torcendo-se e refugindo, ora para a direita ora para a esquerda, como
+espavoridas do abysmo l&aacute; em baixo; descendo, tornando a
+subir, e redescendendo de novo por entre brutescos de penedia negra.<br />
+
+<br />
+
+Pouco matto ressequido, e alguns medronheiros silvestres,
+s&atilde;o os unicos entes vivos, que por ali se affoitam a tomar
+p&eacute;. Os seus frutos vermelhos, quando o vento lh'os despega
+maduros, v&atilde;o sumir-se entre as espumas arrebatadas.<br />
+
+<br />
+
+Aquella ponte, vacillante sobre tal p&eacute;go e entre taes
+escarpas, com poucas bra&ccedil;as de ceo por cima, e por baixo de
+si o rugir de tantas aguas, d&aacute; as
+sensa&ccedil;&otilde;es de um
+bello horror.<br />
+
+<br />
+
+Muita vez me deleitei de as colher, debru&ccedil;ado horas
+esquecidas para aquelle inferno liquido; e este pensamento algumas
+vezes ahi me veio por tardes de Junho, em quanto, calado e estendido
+sobre as t&aacute;boas, gastadas e r&ocirc;tas da humidade, me
+gosava da vira&ccedil;&atilde;o transpirada pela corrente.
+&iquest;Foi a simples providencia do acaso, ou uma
+inspira&ccedil;&atilde;o de religiosa poesia no fundador, a que
+fez reunir n'um ermo, e em t&atilde;o pequeno espa&ccedil;o,
+como tres cantos de um poema, esta corrente, esta casa, e esta egreja?
+&iexcl;Esta corrente, emblema da vida terrestre, t&atilde;o
+escura, t&atilde;o angustiada, t&atilde;o clamorosa, e com
+t&atilde;o pouco de azul por cima das suas ribanceiras
+inaccessiveis, d'onde insperado vem, cada dia, algum novo penedo
+ferir-lhe o seio! Aquella egreja, t&atilde;o serenamente alegre,
+t&atilde;o aberta, o dia inteiro, ao generoso sol dos campos,
+t&atilde;o gorgeada a ambas suas portas
+<span class="pagenum">[22]</span>
+de passarinhos, t&atilde;o garrida de
+espadanas sobre as campas do pavimento, e nos seus cinco altares
+t&atilde;o ridente de flores silvestres, symbolo da alma refugida
+das tormentas do mundo para o ineffavel asylo da F&eacute; e das
+Esperan&ccedil;as! E entre o santuario e o rio, como intermedio e
+transi&ccedil;&atilde;o dos dois extremos, a casinha do Pastor,
+alva como a confian&ccedil;a, verdejante e florida como as
+promessas, recatada como a esmola, inexhaurivel no seu celleiro como a
+Providencia, t&aacute;cita como a medita&ccedil;&atilde;o,
+com as suas portadas bem abertas como a paz, com as costas para a
+torrente, o rosto para a arca santa, os olhos atravez das arvores de
+Deus para o firmamento.....<br />
+
+<br />
+
+O mesmo nome de S. Mamede, com que se appellidam o santuario, a
+torrente, e o albergue, &eacute; uma nova harmonia. Mamede, ou
+Mamante, foi um humilde e obscuro pastor de gado na
+Capad&oacute;cia, e do qual toda a Egreja do Oriente
+preg&ocirc;a virtudes e milagres. Sendo ainda mancebinho, acabou
+martyr, por volta do anno 274 da nossa era.<br />
+
+<br />
+
+O logar santo, para o Santo; o medonho e vertiginoso, para o Martyr; o
+vigilante e ben&eacute;fico, para o Pastor; o tudo, e os silvestres
+e pacificos arredores, para o Menino, j&aacute; mo&ccedil;o na
+valentia, ou para o mo&ccedil;o, ainda menino na innocencia.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o poude ser o acaso, quem tantos ac&ecirc;rtos
+concertou.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[23]</span>
+<h4>V</h4>
+
+<br />
+
+Era a residencia, quando a ella cheg&aacute;mos,
+decr&eacute;pita e caduca: apparencia de cho&ccedil;a fabricada
+de pedra ens&ocirc;ssa, escura e descommoda no interior; por fora
+negra, com alpendres a aluir-se para o pateo apoquentado de inuteis e
+desgraciosos compartimentos. A velhice do derradeiro possuidor a havia
+em parte feito, em parte deixado, chegar &aacute;quelle estado.<br />
+
+<br />
+
+A transforma&ccedil;&atilde;o foi rapida e completa. Os
+alpendres desappareceram. Na casa remo&ccedil;ada entrou por
+vidra&ccedil;as abundancia de luz. O pateo desafrontado foi
+revestido, como a frontaria do edificio, primeiro de cal bem candida,
+logo de roseiras e limeiras bem vi&ccedil;osas. Um cedro n'elle
+plantado come&ccedil;ou de levantar-se animoso e gentil; e sei que
+n'esta hora, em quanto de seus dois plantadores um j&aacute;
+n&atilde;o existe na terra, o outro declina para o occaso, elle,
+medrando ainda, &eacute; j&aacute;, como lh'o eu
+augur&aacute;ra nos
+meus versos, bras&atilde;o do presbyterio; tem no seu tronco cinco
+palmos de circumferencia, e perto de quarenta de altura. <sup> <a href="#2">[2]</a></sup><br />
+
+<br />
+
+O novo Prior, o Rev. <sup>do</sup> snr. Padre Antonio
+Jos&eacute; Rodrigues
+de Campos, a quem Deus dilate a vida para felicidade do rebanho,
+var&atilde;o de virtude, e espirito cultivado
+<span class="pagenum">[24]</span>
+por Letras, filho d'aquellas boas
+terras, e amigo nosso que sempre foi, como ainda hoje o &eacute; do
+nosso nome, conserva e z&eacute;la tudo aquillo com amor.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; para mim delicia o considerar, que &aacute; sombra
+grande d'aquelle cedro, que eu regava todos os dias, quando um menino
+de tres annos o poderia ainda arrancar sem custo, ler&aacute;
+talvez, depois do seu Breviario, este livrinho das minhas memorias, em
+que depos&iacute;to o seu nome mollemente reclinado entre tantas
+outras saudades minhas.<br />
+
+<br />
+
+<h4>VI</h4>
+
+<br />
+
+J&aacute; os leitores conhecem, como quer que seja, o asylo que me
+escondeu sete annos, desde Outubro de 1826 at&eacute; Fevereiro de
+1834, o ninho em que nasceram, sem pensarem em abrir o v&ocirc;o
+que hoje abrem para o mundo, estas poesias montesinhas.<br />
+
+<br />
+
+Mas, como todo o seu assumpto se n&atilde;o limita ao que deixo
+esbo&ccedil;ado, pe&ccedil;o-lhes ainda um pouco de
+indulgencia, para lhes dar a conhecer, por alto, os arredores.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O passal rodeia por todos os lados a egreja e a residencia, correndo
+por traz d'ellas at&eacute; onde lh'o consente o pendor do terreno,
+a escoar-se cada vez mais rapido para o rio de S. Mamede.<br />
+
+<br />
+
+Por essas lombas inclinadas, fronteiras &aacute; encosta alta e
+erma de Falgozelhe, se boleiam
+<span class="pagenum">[25]</span>
+melancolica mas graciosamente as suas hortas, os seus pomares, a sua
+fonte, as suas parreiras, e as fraldas das se&aacute;ras, que
+at&eacute; ali chegam descendo pela direita e pela esquerda, depois
+de povoarem toda, com o seu oiro sussurrante, a larga esplanada
+horizontal, por onde, ao sahir da egreja, folga a vista de se espraiar,
+at&eacute; ir bater, l&aacute; ao longe, na
+capellinha e matta de S. Sebasti&atilde;o, que lhe servem de
+limite.<br />
+
+<br />
+
+Se&aacute;ras eram os atrios, que os Romanos pelas suas aldeias
+folgavam de avisinhar aos templos de Ceres, e mais divindades
+protectoras da Agricultura. &iquest;Que mais proprio, para um povo
+agricola como este, do que achar a casa do <span class="smallcaps">Creador</span>,
+e a do seu
+dispenseiro, no centro da abundancia das messes, e saudal
+a com a invoca&ccedil;&atilde;o de um
+Pastorinho santo?<br />
+
+<br />
+
+O caminho publico atravessa desde o sobreiral de S.
+Sebasti&atilde;o, por entre duas grinaldas de oliveiras e vinha, o
+meu passal at&eacute; ao adro; costeia a egreja e a casa pela
+direita, e, em demanda da serra alta, l&aacute; se vai mergulhando
+para a ponte, deixando n'uma de suas orlas a frescura sombria da fonte
+sobre as hortas, na outra os remanescentes da egreja antiga, um altar
+de pedra n'uma capella, meia de pedra meia de silvas, assoberbada com
+um S. Jorge de marmore, a cavallo, a brandir ainda um tro&ccedil;o
+de lan&ccedil;a enferrujado de musgo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[26]</span>
+<h4>VII</h4>
+
+<br />
+
+Detenh&acirc;mo-nos poucos minutos, se vos apraz, ao-p&eacute;
+d'este altar, onde j&aacute; ninguem ajoelha, sobre sepulturas que
+hoje s&atilde;o tremo&ccedil;os, e recordemos a obscura
+historia d'este sitio.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Por que raz&atilde;o s&oacute; as grandes ruinas se
+h&atilde;o-de haver por merecedoras de
+atten&ccedil;&atilde;o? Todo o passado &eacute; poetico;
+todo o evocar imagens humanas de sob a terra que pisamos, &eacute;
+proveitoso para alguma coisa. Nas solid&otilde;es, mormente como
+esta, consola o saber que nem sempre a brenha foi brenha, e que onde
+hoje, por entre o rugir das folhas, s&oacute; algum pipilar de
+ninho quebra a mudez da Natureza, houve outr'ora actividade, affectos
+bons, e at&eacute; festas.<br />
+
+<br />
+
+Cabe pois saber, que, em tempos mui afastados, viveu na povoasinha da
+Talhada, logar emboscado, de pouco sol, pouca terra, e achegado pela
+margem de c&aacute; &aacute;s aguas do S. Jo&atilde;o do
+Monte, que logo a diante troca o nome no de S. Mamede, um
+mo&ccedil;o por nome Jorge, humilde de
+gera&ccedil;&atilde;o como tudo quanto por ali nasce e se cria,
+mas de cora&ccedil;&atilde;o alto e espiritos levantados.<br />
+
+<br />
+
+Namor&aacute;ra-se Jorge (me contou n'um ser&atilde;o do Natal
+uma velha, que o ouvira em pequenina a seus paes, que o tinham recebido
+n&atilde;o sabia de quem)... mas emfim, namor&aacute;ra-se, que
+o sabia ella, de certa mo&ccedil;a de alem-rio, guardadora de
+cabras, mas filha de um Capit&atilde;o, e sobrinha em primeiro grau
+de um snr. Vigario. L&aacute; de baixo, perto da
+<span class="pagenum">[27]</span>
+sua vivenda entre penedos, levava, os dias
+com os olhos sempre i&ccedil;ados aos cabe&ccedil;os de
+Falgozelhe, na outra banda, &aacute; ca&ccedil;a da sua saia de
+serguilha, ou do seu sombreiro preto; e ainda n&atilde;o de todo
+malcontente, quando, por entre os penedos pardos e as urzes
+c&ocirc;r de fogo, a enxergava, pendurada &aacute; borda do
+precipicio, e pascendo descan&ccedil;adamente uma das cabrinhas que
+obedeciam &aacute; sua voz melodiosa.<br />
+
+<br />
+
+A voz da serrana era em verdade um dos seus dotes. Quando a
+esperdi&ccedil;ava cantando n'aquellas solid&otilde;es,
+parecia-lhe a elle, que l&aacute; de baixo lh'a estava captando com
+ambas as m&atilde;os, escutar um Anjo de amor escondido entre as
+nuvens; e quereria mal at&eacute; ao rouxinol que lh'a
+interrompesse, porque n&atilde;o sabia de coisa mais de molde para
+o seu cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Vel-a &aacute; sua vontade, n&atilde;o a via se n&atilde;o
+aos domingos na egreja; e nem ent&atilde;o, que para esses dias
+tinha ella umas roupinhas muito s&eacute;cias, meias muito alvas, e
+tamancos de gal&atilde;o de oiro, que o aterravam, mostrando-lhe
+que maiores obstaculos ainda haviam posto entre os seus affectos a
+fortuna e o nascimento, do que entre as suas vivendas a corrente das
+aguas. Fazem-se pontes para os rios; n&atilde;o se fazem que
+prestem para communicar dois estados t&atilde;o diversos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Amor verdadeiro pode ser platonico algum tempo; mas &eacute;
+poesia; e poesia n&atilde;o &eacute; vida. Ousou, e declarou-se
+a medo &aacute; sua formosa; n&atilde;o foi repellido.
+Affoitou-se a mais:
+<span class="pagenum">[28]</span>
+ao impossivel. Abriu-se com o tio Vigario em confiss&atilde;o. O
+que
+entre elles se passou, n&atilde;o se sabe; taboas de confessionario
+n&atilde;o s&atilde;o carvalhos dod&oacute;nios que
+chocalhem tudo. O que se sabe, &eacute; que a mo&ccedil;a
+n&atilde;o tornou
+a apascentar para aquella banda, e que elle, pouco depois, deixou a
+terra, onde tinha m&atilde;e e irm&atilde;os pequenos, sem
+dizer nada a ninguem, e n&atilde;o levando sen&atilde;o o
+fatinho que tinha no corpo, o seu cajado, o seu espirito, que segundo
+dizem, era grande, e o seu amor, que n&atilde;o era pequeno.<br />
+
+<br />
+
+Constou, ao cabo de annos, que se tinha ido embarcar em um navio d'el
+Rei, e que se abal&aacute;ra por esses mares de Christo, sabe Deus
+para onde, e para qu&ecirc;.....<br />
+
+<br />
+
+No meio de uma furiosa tormenta, correndo grande perigo de perdimento,
+assim a fazenda que and&aacute;ra moirejando, como a propria vida,
+apegou-se com o Santo do seu nome, e lhe prometteu que, se o levasse
+com tudo seu a terra de salvamento, lhe mandaria fundar, e lhe dotaria,
+uma capella da sua invoca&ccedil;&atilde;o com duas Missas por
+semana, defronte de Falgozelhe, onde vivia a noiva do seu
+cora&ccedil;&atilde;o, por cima da Talhada, onde tinha os
+irm&atilde;os e a m&atilde;e, e pegada com a egreja onde o
+baptisaram a elle, e onde a avistava todos os domingos.....<br />
+
+<br />
+
+Mas de crer &eacute; que n'essa imagem se n&atilde;o demoraria
+muito em semelhante lance, em que as ondas formavam, por instantes
+montanhas t&atilde;o altas e escarpadas, por&eacute;m mais
+temerosas e feias que ess'outras, entre cujas quebradas, e por cujos
+visos, elle vari&aacute;ra a sua infancia.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[29]</span>
+Acudiu-lhe o Santo; e Jorge cumpriu o promettido.<br />
+
+<br />
+
+Tornou &aacute; Talhada, erigiu a capella, comprou fazendas em
+Angeja, que em boa e devida forma lhe adscreveu para o seu culto, e
+nunca mais tornou a aventurar-se sobre aguas do mar.<br />
+
+<br />
+
+Reliquias s&atilde;o pois da sua obra a Imagem e as pedras que
+ainda ali se divisam. O de mais, j&aacute; desgastado do tempo, foi
+demolido, para ir servir como materiaes na
+edifica&ccedil;&atilde;o de parte da residencia, e da egreja
+nova, que j&aacute; sabeis lhe est&atilde;o visinhas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;Mas o fim de seus amores?&#8213;me perguntareis
+v&oacute;s.<br />
+
+<br />
+
+Memoria &eacute; essa que eu tambem procurei, por&eacute;m
+n&atilde;o consegui desencantal-a.<br />
+
+<br />
+
+O que s&oacute; pude desenterrar da tradi&ccedil;&atilde;o,
+foi: que este mesmo Jorge viera a casar-se na freguezia; que tivera um
+filho nascido na p&oacute;voa da Talhada; que este se
+orden&aacute;ra de Cl&eacute;rigo, f&ocirc;ra a Roma, e
+arrib&aacute;ra a
+Cardeal; em memoria do que, ainda na actual egreja se conserva, herdada
+da antiga, e mandada por elle de Roma para aquellas suas brenhas muito
+amadas, uma Cruz de quatro palmos de altura e um de largura, com
+bra&ccedil;os em baixo e em cima, oleada de verde, doirada nas
+pontas, e n'ella pintados tres cravos, duas chagas, e uma
+cor&ocirc;a de espinhos.<br />
+
+<br />
+
+V&ecirc; se, venera-se, e
+commenta-se, como o acabamos de dizer, pendente na parede do
+<span class="pagenum">[30]</span>
+arco cruzeiro da banda direita; e
+affirma-se, que na capella de S. Jorge permanec&ecirc;ra com egual
+honra em quanto ella durou.<br />
+
+<br />
+
+Agora, se este em Roma purpurado, filho da rustica humildade de uma
+p&oacute;voa, em que o maior personagem que descobri foi um fuzeiro
+velho, e onde o que s&oacute; fazia bulha no meu tempo era um
+pequeno moinho, r&ocirc;to por todos os lados aos ventos e chuvas,
+foi, ou n&atilde;o, nascido do consorcio a que o Padre Vigario e
+seu irm&atilde;o se tinham opposto, eis ahi o que eu n&atilde;o
+alcancei; e n&atilde;o quero
+invental-o. Provavel me parece que sim, quando me lembro do que a minha
+velha me contava d'aquelles amores, e o combino com a ideia que formei
+da constancia no bem querer dos moradores da minha serra.<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a deveu de conservar-se donzella, e fiel. Quanto a
+Jorge, qualquer apostaria que o foi sempre. A fortuna
+entulh&aacute;ra com riqueza o abysmo que os separava; e S. Jorge,
+que n&atilde;o &eacute; Santo para meias victorias, havia
+for&ccedil;osamente de pagar com bizarria o obsequio do seu devoto.
+<br />
+
+<br />
+
+Piamente podemos portanto acreditar, em que, diante d'aquella Imagem de
+pedra, muitas vezes o marinheiro e a sua formosa de esquecido nome
+ouviriam juntos a Missa; e talvez diante d'aquelle mesmo altar os
+recebesse o proprio Padre Vigario, indo depois jantar com elles, e
+beber &aacute; sa&uacute;de da futura
+gera&ccedil;&atilde;o algumas malgas de vinho verde na sua casa
+da Talhada, ao rouco murmurinho das aguas de S. Jo&atilde;o do
+Monte.<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[31]</span>
+<h4>VIII</h4>
+
+<br />
+
+A egreja velha, de que foi parte esta capellinha, f&ocirc;ra o
+antigo oratorio dos Condes da Feira; e a residencia, j&aacute;
+depois duas vezes transformada, albergue do feitor que elles ahi tinham
+para lhes receber os f&oacute;ros, e lhes tratar d'aquella sua
+quinta, chamada, como j&aacute; toc&aacute;mos, &laquo;das
+Limeiras&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+Cederam tudo elles mesmos, concitados de sua piedade; por quanto,
+havendo sido a primeira freguesia d'estes povos no Guard&atilde;o,
+do Bispado de Viseu, por de traz da serra da Alcoba, e a tres leguas de
+distancia da que ao presente &eacute;, d'ali a haviam achegado para
+Alcafaz, pertencente agora &aacute; freguezia de Agad&atilde;o,
+sitio ainda desfavoravel pelo estirado
+e descommodo dos caminhos; o que moveu os ditos fidalgos a darem
+ermida, casa, e quinta, com largas rendas e f&oacute;ros para a
+sustenta&ccedil;&atilde;o de Parochia sobre si.<br />
+
+<br />
+
+N'esta sua quinta, pois, senhorilmente cercada de cedros, de que poucos
+hoje permanecem para memoria, costumavam elles vir passar com seus
+amigos algum tempo do anno na montaria dos javal&iacute;s, que a
+espessura das moitas ent&atilde;o creava, segundo parece, como
+ainda hoje cria lobos. Folga a phantasia comparando e contrapondo
+aquelles tempos a estes, e reanimando o actual silencio com um reflexo
+e ecco da vida estrepitosa de outra edade.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[32]</span>
+<h4>IX</h4>
+
+<br />
+
+Explor&aacute;mos as convisinhan&ccedil;as do templo e
+residencia. Estend&acirc;mos agora os olhos at&eacute;
+&aacute;s fronteiras da terra por onde se dilata o seu pacifico
+senhorio.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+D'este centro, a meio quarto de legua a nor-noroeste, esconde-se o
+logar das Ma&ccedil;adas, com cincoenta almas, sua ermida de S.
+Jo&atilde;o Baptista, e sua fonte muito fresca.<br />
+
+<br />
+
+Para o norte, a outro meio quarto de legua, a antiga villa da
+Castanheira, com as suas entradas, cobertas de parreiral, vangloriosa
+com os seus cento e oitenta e sete moradores, e com a sua capella do
+Espirito Santo, mas dando-se-lhe pouquissimo com o telegrapho, que
+desde as ultimas guerras lhe ficou at&eacute; hoje a pantomimar no
+alto do seu oiteiro. Pelos gestos d'aquelle activo surdo-mudo passam,
+de extrema a extrema do Reino, quantas noticias o revolvem,
+sem que a boa da villa, nem outro algum dos logares que entram na sua
+aben&ccedil;oada
+confedera&ccedil;&atilde;o de rustica ignorancia, as adivinhem,
+nem suspeitem, nem cubicem.<br />
+
+<br />
+
+A tres quartos de legua para nor-nordeste, d&aacute;-se com a
+humilde p&oacute;voa de Falgarinho, de n&atilde;o mais que oito
+visinhos.<br />
+
+<br />
+
+Subindo d'ali mais um quarto de legua contra o nordeste, encontra-se,
+n'uma quebrada da mesma crista, a Serra-de-cima, com vinte e tres
+pessoas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"> <a name="p33">[33]</a></span>
+Descendo para o sul pelo seu ameno valle bordado de frutiferas arvores,
+e a pequena distancia, se d&aacute; de improviso com a vistosa e
+agradavel quinta da Serra-de-baixo, de sete almas, e sua capella de
+Nossa Senhora do Livramento.<br />
+
+<br />
+
+Nas faldas d'estas fragosas montanhas, junto ao rio de S.
+Jo&atilde;o do Monte, que a seus p&eacute;s corre,
+est&aacute; em amphitheatro o Avelal-de-cima,
+de vinte e quatro almas, a tres quartos de legua a les-nordeste da
+egreja.<br />
+
+<br />
+
+Voltando pela direita ao tortuoso rio por caminhos pouco transitaveis,
+a meio quarto de legua est&aacute; para o nordeste o
+Avelal-de-baixo, logarejo de quarenta e sete almas, e uma capella de
+Nossa Senhora da Concei&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Deixando a margem do rio, atravessando um desfiladeiro, e subindo
+bojudas lombas, reverte-se ao nosso ponto fixo de
+observa&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Para o nascente, descendo at&eacute; &aacute; Cruzinha, e d'ahi
+toda a costa dos Ferreiros, passa-se o rio de S. Jo&atilde;o do
+Monte, junto ao seu confluente Alcafaz (nome arabe, que significa
+<a href="#e2">&laquo;o salto&raquo;)</a>
+nome
+que para ali est&aacute;, ha mais de
+setecentos annos, soando em bocca de christ&atilde;os sem renegar a
+sua origem, nem se corromper.<br />
+
+<br />
+
+Para a esquerda do S. Jo&atilde;o do Monte, se descortina a nossa
+Talhada, de honrada memoria, ber&ccedil;o de um Cardeal, de um
+fundador de capellas, e de um namorado de lei; tres celebridades para
+um ninho hoje de quatorze almas, coberto de loisas e colmo, e coroado
+de sar&ccedil;as e medronheiros; dista-nos um quarto de legua para
+nordeste.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[34]</span>
+Vadeando segunda vez o rio, e a pouca distancia d'elle, o S. Mamede
+(que toma este nome na junc&ccedil;&atilde;o dos dois
+afluentes) se atravessa na ponte de pau que j&aacute; sabeis, e
+onde eu agora, 30 de Julho ao meio dia, me tom&aacute;ra a apanhar
+&aacute; fresca.<br />
+
+<br />
+
+Subindo um pouco espa&ccedil;o a costa, atravez de alcantiladas
+rochas, toma-se a les-nordeste, seguindo tortuosa e mal aberta senda,
+que em travessia da montanha, sobre a esquerda do rio, leva
+at&eacute; ao casal do Font&atilde;o, de onze almas, sito na
+margem do Alcafaz, na raiz do cabe&ccedil;o de Santa-Cruz, a quarto
+e meio de legua para n&oacute;s.<br />
+
+<br />
+
+Revertendo-se onde se largou o caminho, se continua serpeando a
+encosta; e no cimo se encontra a povoa&ccedil;&atilde;o de
+Falgozelhe, de setenta e uma almas, posta a um quarto de legua da
+egreja, a les-sueste, quasi na extremidade occidental de um
+ramo do Caramulo. O nome da sua casa de ora&ccedil;&atilde;o
+&eacute; o que &aacute; sua altura melhor convinha: Santa-Cruz.
+<br />
+
+<br />
+
+Tomando-se o rumo do sul, e atravessando o rio Agad&atilde;o por
+outra ponte de pau, e serpeando ingreme ladeira, no cimo
+est&aacute; o pequeno e vistoso logar da Falgarosa, de trinta e
+seis moradores, com uma sua ermida da Senhora da Boa-Morte, a tres
+quartos de legua ao sul; terra que se ufana com o delicioso de seus
+pomares de caro&ccedil;o e de espinho, com a annosa matta de
+sobreiros que a abriga pelo nascente, norte, e noroeste; e sobre tudo,
+com ter dado &aacute; luz o instruido e virtuoso Pastor, que hoje
+rege aquelle rebanho.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[35]</span>
+Voltando para o rio, passa-se n'uma bateira um pouco a baixo, depois de
+se terem abra&ccedil;ado os dois afluentes Agad&atilde;o e S.
+Mamede.<br />
+
+<br />
+
+Subindo-se at&eacute; ao vizo, est&aacute; o logar da Redonda,
+de cincoenta almas, com sua capella de S. Gon&ccedil;alo, a quarto
+e meio de legua a sudoeste da egreja. Redonda se chama, por estar
+&aacute; borda de um leito semi-circular.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Fechemos a topographia do nosso pequeno reino, com as suas
+confronta&ccedil;&otilde;es externas.<br />
+
+<br />
+
+Parte a freguezia de S. Mamede: pelo norte, com a do
+Pr&eacute;stimo; pelo poente, com a de Agueda; pelo sul, com as da
+Aguada de cima, e Balazaima; pelo nascente, com a de Agad&atilde;o,
+filial, ou annexa, que a&iacute;nda
+ent&atilde;o era, &aacute; de S. Mamede, e parochia hoje sobre
+si; paiz ainda por ventura mais serrano e variado, mas que eu
+n&atilde;o cheguei a descobrir.<br />
+
+<br />
+
+<h4>X</h4>
+
+<br />
+
+O territorio de S. Mamede &eacute; o extremo occidental de um
+corpulento ramo do Caramulo, ramo appellidado serra de Alcoba, que em
+voz de Moiros quer dizer &laquo;abobada&raquo;, ou montanha
+boleada &aacute; fei&ccedil;&atilde;o d'ella.<br />
+
+<br />
+
+Do Caramulo, como tronco d'onde bracejam dispartidos este e outros
+ramos, alguma coisa quizera eu dizer, &aacute; conta do muito que
+merece. Mas, sobre que nunca o visitei, apesar de t&atilde;o
+visinho, recearia apoucar-lhe a
+<span class="pagenum"> <a name="p36">[36]</a></span>
+veneranda majestade, apertando n'um ou dois paragraphos as vagas
+noticias que d'elle tive.<br />
+
+<br />
+
+Em summa: &eacute; uma bizarra montanha rude e silvestre, dominando
+d'entre as nuvens meio Portugal, larga em fontes e penedias, poderosa
+em tempestades, em frutos magra, mas <a href="#e3">op&iacute;ma</a>
+em homens e
+mulheres de antiga tempera: activos, pacientes da penuria, do frio, da
+fome, e da nudez; &eacute; um paiz de selvagens
+christ&atilde;os, para o qual as rudes terras do meu S. Mamede
+est&atilde;o, em polidez e florescencia, como para os Lacedemonios
+poderia estar a antiga Attica.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Dois monumentos accrescentam venera&ccedil;&atilde;o ao
+Caramulo, quanto o podem mesquinhas obras humanas &aacute;s
+grandiosas moles naturaes.<br />
+
+<br />
+
+N'um dos seus cabe&ccedil;os mais alterosos foi erguido, nos
+principios d'este seculo, <a name="n3"></a>uma
+especie de zimborio de doze
+palmos de altura, pouco mais ou menos, de pedra muito bem lavrada e
+argamassada. Para qu&ecirc;, n&atilde;o dizem; mas dizem que
+por um engenheiro francez; ras&atilde;o por que, os povos da
+circumvisinhan&ccedil;a, por occasi&atilde;o da guerra
+peninsular, commetteram demolil-o; mas s&oacute; lhe poderam fazer
+pelo norte um pequeno estrago. Dura em p&eacute;, e s&oacute;
+&eacute; accessivel do
+nascente por uma vereda estreita e tortuosa.<br />
+
+<br />
+
+O outro monumento n&atilde;o &eacute; menos enigmatico, e deve
+estar farto de ver passar seculos e desfazer-se
+gera&ccedil;&otilde;es.<br />
+
+<br />
+
+N'uma arreme&ccedil;ada crista, a duzentos passos
+<span class="pagenum">[37]</span>
+da egreja do Espirito Santo de Arca,
+se alevanta elle, com o titulo immemorial de &laquo;Pedra de
+Arca&raquo;. &Eacute; <a name="n4"></a>uma
+desconforme loisa
+inteiri&ccedil;a, horizontalmente aguentada nos ares por esteios de
+pedra; quatro em numero a principio, hoje s&oacute; tres, havendo
+sido um arrancado para as obras da visinha egreja.<br />
+
+<br />
+
+Tem esta l&aacute;gea de comprido vinte palmos, e de largura
+dezasseis; de grossura, pelo nascente tres polegadas, pelo norte
+quatorze, pelo poente onze, e outras onze pelo sul. Os pilares contam
+de altura doze palmos, s&oacute; da flor da terra para cima; de
+largura, um que fica para o poente apresenta nove palmos, tendo de
+grossura pelo poente palmo e meio, e pelo nascente um palmo. Um, que
+diz para o sul, tem de largura, por baixo quatro palmos e meio, e por
+cima tres, e de grossura um palmo de cada lado. O ultimo, que
+est&aacute; para o norte, tem de largura, por baixo cinco palmos e
+polegada, e por cima quatro palmos e polegada.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Com que possantes machinas, por que m&atilde;os, em que
+eras, e para que fim, se alevantou ali aquella, que &aacute;
+phantasia se figura bruta meza de gigantes silvestres?
+&iquest;Ser&iacute;a obra de fortifica&ccedil;&atilde;o
+n'um systema de guerra desconhecido? Quasi que nem possibilidades o
+abonam. Uso agr&iacute;cola, industrial, ou civil, nem a
+imagina&ccedil;&atilde;o mais inventiva lh'o rastreia. Memoria
+de algum var&atilde;o ou feito insigne, j&aacute; a poderia
+ser. Mas ent&atilde;o,
+&iexcl;a que rudes tempos a n&atilde;o havemos de referir,
+visto como nem data, nem letra, nem escultura t&ocirc;sca, nem
+vestigio algum de arte
+<span class="pagenum">[38]</span>
+nem de
+architectura, mas s&oacute; uma bruta mechanica, ali se admira!<br />
+
+<br />
+
+Religiosa fabrica de alguma gentilidade parece logo aquella; e mais,
+quando se adverte na semelhan&ccedil;a que tem com os altares
+druidicos, ainda hoje conservados em varias partes do que
+foram Gallias e Germania.<br />
+
+<br />
+
+Verdade &eacute;, que por estas nossas terras n&atilde;o rezam
+as Historias, que se estendesse aquella abominavel seita de
+sacrificadores de humanas victimas; mas nenhuma repugnancia ha, em que,
+perseguidos, como o vieram a ser, pelos Imperadores romanos, alguns
+druidas se refugiassem para este Occidente, e aqui, em retiros
+montesinhos, menos accessiveis a pesquizas e
+persegui&ccedil;&otilde;es, professassem e mantivessem o seu
+culto, do qual (se duas coisas mal conhecidas podem ser sem temeridade
+comparadas) n&atilde;o muito discreparia talvez a
+religi&atilde;o do Endov&eacute;lico lusitano.<br />
+
+<br />
+
+Este ponto, por&eacute;m, outros mais sabedores que o investiguem,
+se vale a pena, como cuido; que eu me torno do Caramulo para o centro
+dos meus affectos.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XI</h4>
+
+<br />
+
+Nada concita aos logares venera&ccedil;&atilde;o, como a
+antiguidade.<br />
+
+<br />
+
+Bem quizera eu poder historiar d'estes meus sitios para al&eacute;m
+de Moiros, Normandos, e Romanos; mas, por mais que a procure,
+n&atilde;o rastejo noticia d'essas edades, com que fazer obra.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[39]</span>
+Se por ahi passaram em algum tempo successos grandes, se houve
+memoraveis edificios, se var&otilde;es insignes pisaram aquellas
+terras, nem ruinas o attestam, nem documentos o declaram, nem
+tradi&ccedil;&otilde;es o denunciam. O solo enguliu tudo; e
+nenhum acaso lhe fez ainda restituir uma pedra ou letra para enigmas.<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; ao sudoeste de Falgozelhe, j&aacute; f&oacute;ra
+da sua lavoira, na primeira valleira que se encontra &aacute;
+direita do caminho indo para Agueda, se v&ecirc; uma fiada de
+umas como
+torrinhas, que se estende por mil e quarenta palmos; das quaes
+torrinhas, s&oacute; duram hoje em dia os alicerces, e algumas
+por&ccedil;&otilde;es deseguaes de muros esboroados a delir-se.
+<br />
+
+<br />
+
+E descendo esta valleira duzentos e vinte e cincos palmos, se
+d&aacute; em uma furna chamada &laquo;a buraca da
+cerejeirinha&raquo;, aberta a pic&atilde;o em rocha viva; a
+qual tem na bocca oito palmos e meio de altura, quatro e meio de
+largura, e cento e vinte e cinco de comprimento. Da furna &eacute;
+geral fama que f&ocirc;ra aberta pelos Moiros.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Em tempos de mais abus&atilde;o do que estes nossos, acreditou
+se, dizem os netos,
+que morava ali Moira encantada, que, todas as madrugadas de S.
+Jo&atilde;o, sahia muito pontual e ritualmente, a assoalhar os seus
+thesoiros por cima dos penedos, entre os mattos orvalhados.<br />
+
+<br />
+
+N'esses seculos, entendido est&aacute; que o terror lhe velava a
+estancia, e que ninguem se affoitou nunca a ir l&aacute; dentro.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[40]</span>
+Algum Principe afortunado deveu de desencantar a Moira, que actualmente
+j&aacute; n&atilde;o ha novas d'ella. As pastoras levam sem
+medo os rebanhos para a sua visinhan&ccedil;a; cantam aos seus
+hombraes trovas muito christans; e quem quer, lhe devassa (como eu fiz)
+o seu palacio subterraneo.<br />
+
+<br />
+
+A opini&atilde;o dos modernos tem, que f&ocirc;ra aquella mina
+aberta, pelos Moiros sim, mas n&atilde;o para tirar oiro, que
+&eacute; sempre a primeira conjectura, nem para serventia militar,
+que &eacute; sempre a segunda, se n&atilde;o s&oacute;, e
+prosaicamente, &aacute; busca de agua, que em verdade de
+l&aacute; mana, muito fresca e saborosa, mas em pequena copia.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Sobre as fortifica&ccedil;&otilde;es engenha cada um a sua
+hyp&oacute;these.<br />
+
+<br />
+
+Ha quem as supponha posteriores &aacute;
+inven&ccedil;&atilde;o da artilharia, por se lhe figurar que
+s&oacute; a taes armas podiam ser apropriadas; e ha quem aos Moiros
+as attribua, fundado em que, posto n&atilde;o ficassem d'elles por
+ali outros vestigios, o arabigo de alguns e muitos nomes de logares
+demonstra, que elles por l&aacute; viveram. E se por l&aacute;
+nasceram e se crearam, n&atilde;o podiam deixar de fortificar-se e
+defender-se contra commettimentos de inimigos, que &eacute; esse um
+instinto natural a todos os homens, mas nos homens das montanhas mais
+energico.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Falgozelhe, em verdade se cr&ecirc; ter sido d'elles povoada, posto
+que o seu nome, se
+<span class="pagenum">[41]</span>
+christ&atilde;o n&atilde;o &eacute; (como de certo
+n&atilde;o &eacute;), tambem por arabe se n&atilde;o
+reconhece. &iquest;Ser-lhe-hia imposto por gente ainda mais antiga?
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, sem nos extraviarmos para essas novas brenhas de fabulas, o em que
+podemos ficar por mais que verosimil &eacute; que, por toda aquella
+serrana regi&atilde;o, estanciaram Moiros em seu tempo; e, se ahi
+deixaram menos rasto que em muitas das terras visinhas, seria porque a
+bruteza do monte era j&aacute; ent&atilde;o como hoje, que
+n&atilde;o dava meios nem licen&ccedil;a para grandes obras.
+Pequenas p&oacute;voas, que eram o mais a que podiam chegar, muito
+faziam em tirar da terra p&atilde;o com que se manterem;
+&iexcl;quanto mais, erigirem castellos, pontes, ou mesquitas, de
+que se podessem admirar fragmentos depois de sete seculos!<br />
+
+<br />
+
+Rebanhos moiriscos pasceram portanto por aquellas encostas. Por baixo
+de outros tectos rusticos semelhantes a estes, e por ventura no logar
+d'estes, se acalentaram crean&ccedil;as com versos do
+Alcor&atilde;o. Outras arvores, de que estas s&atilde;o remota
+descendencia, viram passar &aacute; sombra das suas copas
+esvoa&ccedil;adas da ventania albornozes de lan grosseira e parda,
+e turbantes retintos; e bois, que sulcaram com o arado o que hoje
+&eacute; talvez poisio, entendiam as vozes do lavrador arabe, e
+ficariam confusos e immoveis se revivessem para ouvir as da nossa
+lingua.<br />
+
+<br />
+
+Eis aqui o unico perfume antigo que podemos dar a estes povoados ermos,
+que eu desejaria fazer t&atilde;o amados de meus leitores, como de
+mim o s&atilde;o e ser&atilde;o sempre.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[42]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+N&atilde;o digo bem. O falar, e os pensamentos, e os costumes,
+manteem-se ainda antigos. As novidades das
+civilisa&ccedil;&otilde;es s&atilde;o como
+a escravid&atilde;o, e os diluvios: tarde chegam a engulir as
+serras.<br />
+
+<br />
+
+<a name="n5"></a>A Linguagem &eacute; ali, como
+os ares, de uma admiravel pureza e
+lucidez. Se os diccionarios e livros mestres da nossa Lingua se
+perdessem, pela conversa&ccedil;&atilde;o corrente d'aquellas
+aldeias e p&oacute;voas se poderia restaurar.<br />
+
+<br />
+
+Troca-se mais portuguez de lei, mais riqueza de voc&aacute;bulos,
+phraseado, e
+construc&ccedil;&atilde;o, n'uma seroada de inverno, ou n'um
+palrar de s&eacute;sta de segadores entre carvalheiras rusticas, ao
+estridor das cigarras amadas de Anacreonte, do que entre o ranger dos
+prelos e o resfolegar das balas, n'um anno inteiro da melhor
+typographia de Lisboa.<br />
+
+<br />
+
+Muitos dizeres classicos, de que por ahi chacoteiam por affonsinos,
+como o
+<em>nanja</em> o <em>bof&eacute;</em>, o
+<em>cant&eacute;</em>, o
+<em>qui&ccedil;&aacute;</em>, e mil
+outros, s&ocirc;am por l&aacute; sem extranheza em boccas de
+mocinhos de doze annos nos seus folguedos, ou de namoradas de dezoito
+nos seus desabafos mutuos em vespera de romaria.<br />
+
+<br />
+
+Com a honesta heran&ccedil;a da Linguagem, veio dos av&oacute;s
+aos netos a das cren&ccedil;as e praticas piedosas, e com esta a de
+muitos seus erros e abus&otilde;es. S&atilde;o os insectos e
+musgos parasitas da arvore robustissima da F&eacute;.
+Aben&ccedil;oada
+a Philosophia quando acode a limpal-a sem lhe esgalhar os ramos ou
+cerceal-a pelo p&eacute;.<br />
+
+<br />
+
+O tempo vai fazendo a pouco e pouco o
+<span class="pagenum">[43]</span>
+seu officio. N&atilde;o ha curas nem
+reforma&ccedil;&otilde;es mais prudentes e certas do que as
+suas, quando &aacute; for&ccedil;a lh'as n&atilde;o ajudam
+ou
+contrariam.<br />
+
+<br />
+
+Era por essas terras, poucos annos ha, geral e profunda a credulidade
+de appari&ccedil;&otilde;es, phantasmas de almas do
+outro-mundo, Moiras encantadas, thesoiros escondidos e lobis-homens; e
+ainda hoje a m&oacute;r parte dos moradores acredita nos
+esconjuros, feiti&ccedil;os, bruxarias,
+adivinha&ccedil;&otilde;es, e virtudes de certas praticas e
+f&oacute;rmulas, para curar ou empecer.<br />
+
+<br />
+
+Estas abus&otilde;es, sem deixarem de ser males muilo innegaveis,
+d&atilde;o comtudo sua c&ocirc;r poetica muito particular ao
+Povo, cuja simplicidade primitiva no viver e trajar harmonisam com taes
+simplezas da intelligencia.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Os figurins parisienses, esses idolosinhos multiformes, a cujo culto
+vivem adstrictas as gentes das cidades, e muitissima dos campos,
+s&atilde;o por ora totalmente incognitos na serra. A moda
+n&atilde;o exerce por l&aacute; as suas costumadas
+devasta&ccedil;&otilde;es de cabedaes, bons costumes, e saude.
+Os vestuarios e galas de ambos os sexos reproduzem-se com a mesma
+uniformidade, com que nas suas moitas e arvoredos cada especie vegetal
+renova as suas folhas e flores.<br />
+
+<br />
+
+Os homens vestem de burel, ou sarago&ccedil;a caseira, creada
+&aacute;s costas das suas ovelhas, tosquiada por elles, fiada e
+tecida por suas m&atilde;es, mulheres, e filhas, apizoada e tinta
+(quando o &eacute;) sem sahir da freguesia. Trazem
+<span class="pagenum">[44]</span>
+grandes chapeos pretos desabados,
+grande bord&atilde;o ferrado, menos para defensa, que para arrimo
+pelo resvaladio das ladeiras, e tamancos cravejados.<br />
+
+<br />
+
+As mulheres trajam, sobre camisa de linho ou estopa da terra,
+s&aacute;ia de burel de meio piz&atilde;o, c&ocirc;r de
+pinh&atilde;o ou preta, collete comprido justo, sem
+ap&ecirc;rto, e mandil; isto &eacute;, obra de vara e meia de
+burel mais apertado no tear, e sem piz&atilde;o, que lhes serve de
+capa, lan&ccedil;ado ao desgarre por sobre os hombros. A
+cabe&ccedil;a, cobrem-n-a, ou com o
+mesmo mandil, ou com um chapeo como o dos homens. As suas tamancas
+s&atilde;o menos grosseiras. O len&ccedil;o de seda ao
+pesco&ccedil;o &eacute;, como as arrecadas e o
+cord&atilde;o de oiro, o ultimo da magnificencia, e as flores da
+urze ou da carqueja o mais galante enfeite dos seus sombreiros.<br />
+
+<br />
+
+S&atilde;o luxos de toucador para dias de festa, feiras, ou
+romagens, quando cal&ccedil;am, com meias brancas, tamanquinhos de
+pregaria doirada com sua meia palla de marroquim vermelho, vestem
+roupinhas de pano burel fino, ou chita, p&otilde;em gorjetes de
+fil&oacute;, ou
+len&ccedil;os de cassa bem pregados, e capoteiras de pontas
+compridas debruadas de fitas. Para a egreja, as mais ricas e senhoras
+teem mantilhas e sapatos.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XII</h4>
+
+<br />
+
+A educa&ccedil;&atilde;o apenas desbasta. Parca e imperfeita
+como a cultura do solo ingrato, s&oacute; p&otilde;e mira no
+essencial: em desenvolver os sentimentos naturaes e religiosos, o
+afferro
+<span class="pagenum">[45]</span>
+&aacute;
+justi&ccedil;a e &aacute; verdade, os differentes
+amores de que se tece a paz das familias e a harmonia dos visinhos, o
+respeito &aacute; velhice e ao infortunio.<br />
+
+<br />
+
+As polidezes requintadas do trato s&atilde;o lhes desconhecidas.
+Esses discursos de
+cortez&atilde;os, mosaicos de phrases brilhantes, que ora
+deslumbram, ora entreteem, ainda quando nada representam,
+inspirar-lhes-hiam compaix&atilde;o. Pensam o que dizem, e
+dizem-n-o como o pensam.<br />
+
+<br />
+
+Das artes de seduzir, n&atilde;o cultivam nenhuma. Aprendem para
+ser bons lavradores, boas pastoras e tecedeiras, e bons paes, e boas
+m&atilde;es, depois de terem sido bons filhos e boas filhas; e
+n'isso limitam a sua ambi&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Se ha festas, cantam e dansam como sabem; e sabem quanto basta para
+folgarem, mais de veras que damas e cavalheiros ao som de orchestras,
+em saraus esplendidos.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o falam extranhas Linguas, como n&oacute;s, mas falam
+a nossa, que &eacute; melhor.<br />
+
+<br />
+
+Fora da casa de algum Ecclesiastico, n&atilde;o se desencantaria um
+s&oacute; livro em toda a freguezia; mas os louvores da sua
+moralidade dariam com que encher mais de um livro para nos envergonhar.
+<br />
+
+<br />
+
+A egualdade quasi fraternal por ali reina, por um modo, que a todo o
+cora&ccedil;&atilde;o bem nascido dar&aacute; gosto. A
+<em>merc&ecirc;</em> e o
+<em>v&oacute;s</em> de nossos maiores s&atilde;o
+tratamentos para os raros casos em que n&atilde;o cabe o
+<em>tu</em>.<br />
+
+<br />
+
+Os logarejos s&atilde;o todos amigos, e em grande parte parentes um
+dos outros. O mais pobre vai sentar-se festejado ao ser&atilde;o ou
+&aacute; meza do mais rico; isto &eacute;, do que na sua tulha
+<span class="pagenum">[46]</span>
+tem centeio ou milho para
+todo o anno; e o abastado interrompe a sua lavoira, para ir fazer com
+os seus bois a geirasinha do indigente que a n&atilde;o pode pagar;
+e lhe leva pendurado na canga do arado o sacco da semente, para que
+elle tenha tambem, l&aacute; para o ver&atilde;o, que ceifar
+para seus filhos; porque toda esta boa gente sabe, por instinto, que as
+lagrimas, no meio da alegria geral, s&atilde;o mais amargosas para
+quem as verte, e auspiciam mal o contentamento a quem as presenceia.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; um povo agricola, que ainda n&atilde;o aprendeu a
+envergonhar-se do seu parentesco chegado com a terra. Entre elles se
+diz &laquo;lavrador&raquo;, e
+&laquo;trabalhador&raquo;, como em Londres
+&laquo;fabricante&raquo;, ou &laquo;lord&raquo;, em
+Roma
+&laquo;cardeal&raquo;, ou &laquo;monsenhor&raquo;, em
+Paris
+&laquo;sabio&raquo;, ou &laquo;homem de Letras&raquo;,
+e em Lisboa &laquo;deputado&raquo;, ou
+&laquo;millionario&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+As Armas da sua nobreza poderiam ser a charrua e o pod&atilde;o,
+com o seu paquife de p&acirc;mpanos e espigas, e a letra <em>Ut
+operaretur terram, de qua sumptus</em>.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Que impress&atilde;o, a principio de espanto, logo de
+respeito, e a final de amor, me n&atilde;o fez o presenciar, como,
+ao rev&eacute;z da pragmatica das cidades, o trabalho das
+m&atilde;os era ali ennobrecimento, e a ociosidade a maior
+vergonha!!<br />
+
+<br />
+
+Conheci, entre estes montanhezes, quem, havendo em outro tempo vertido
+o sangue pela Patria, e cingido uma banda, madrugava
+<span class="pagenum">[47]</span>
+(como as andorinhas do seu beirado para
+o trabalho do ninho), para se ir, em pernas e mal roupido, carrear o
+adub&iacute;o para a sua fazenda, ou levar do enxad&atilde;o na
+ro&ccedil;a dos mattos entre os seus operarios. A estes,
+&iquest;que os poderia admirar na vida dos Cincinatos, dos Curios,
+e dos Camillos, se alguem lh'a lesse, a n&atilde;o ser a
+admira&ccedil;&atilde;o dos
+historiadores?
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+As irmans, as esposas, e as filhas de taes homens n&atilde;o
+poderiam deixar de ser mais varon&iacute;s do que os homens de
+muitas outras terras, e de todas as deliciosas.<br />
+
+<br />
+
+Para a maioria d'ellas, o fuzo, a lan&ccedil;adeira, e a agulha,
+com o seu costumado cortejo de cantigas, rezas, e contos tradicionaes,
+que v&atilde;o formando semelhante &aacute; precedente a
+gera&ccedil;&atilde;o seguinte, s&oacute; s&atilde;o
+passatempos do ser&atilde;o, &aacute; luz da candeia, das
+pinhas bravas, ou da fogueira, que allumia e alegra os penates
+afumados. Madrugam como a aurora para os trabalhos fortes. Os bois
+conhecem a sua voz, e se deixam pacificamente jungir e guiar pelas suas
+m&atilde;os. Na vindima, carregam &aacute; cabe&ccedil;a
+cestos, que seriam inamoviveis (como as pyramides do Egypto) para as
+m&atilde;os alvas e beijadas de uma duzia de senhoritas. Nas
+ceifas, transportam &aacute; cabe&ccedil;a montanhas de
+espigas, t&atilde;o leves e ufanas sob o pezo como uma cortesan sob
+o seu chapeo de flores de seda chegado de Paris, ou sob a sua grinalda
+de brilhantes, cada polegada da qual se poderia resolver em
+bemaventuran&ccedil;a para dez familias. Nas renques
+<span class="pagenum">[48]</span>
+dos saxadores e dos
+ro&ccedil;adores, vel-as-heis brandindo um alvi&atilde;o
+n&atilde;o mais leve, deixal-os muitas vezes para traz, e
+envergonhal-os com seu riso de triumpho.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o ha fadiga, nem sol, nem vento, que as quebrante. O
+exercicio, Anjo custodio da innocencia e virtude feminil, lhes infiltra
+ao mesmo tempo no sangue a saude, que do sangue se c&ocirc;a ao
+leite, e do leite aos filhos. Seriam as amasonas da paz, se
+n&atilde;o tivessem ambos os peitos muito bem inteiros, e se os
+homens seus eguaes as n&atilde;o acompanhassem em todas as lidas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Uma usan&ccedil;a patriarchal, ou hom&eacute;rica, d'este paiz,
+que moralmente parece distar do nosso duas mil l&eacute;guas,
+&eacute; a
+sujei&ccedil;&atilde;o da mulher; facto que eu n&atilde;o
+moraliso, mas s&oacute; historio.<br />
+
+<br />
+
+As mais graves, tanto como as mais somenos, n&atilde;o
+s&oacute; &aacute; laia das Pen&eacute;lopes
+e Nausicaas, intendem no tear e na lavagem das roupas, mettidas no rio
+at&eacute; meia-perna; n&atilde;o s&oacute; no
+tr&aacute;fego de porta a dentro, na cosinha para a familia e para
+os animaes domesticos; mas n&atilde;o se correm nem desdenham de
+ministrar de p&eacute;, como servas, &aacute; meza de seus
+maridos e filhos, nem em dias de festa ou bodo, quando a assistencia de
+hospedes mais poderia assoprar-lhes o recacho, e empavezal-as.
+S&atilde;o sempre aquillo: sempre passivas, boas, e contentes.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[49]</span>
+<h4>XIII</h4>
+
+<br />
+
+Bem estou eu pressentindo, que a muitos parecer&atilde;o
+j&aacute; minuciosas e pueris estas noticias; mas hei-de
+j&aacute; agora continual-as, e seja com v&eacute;nia sua. A
+outros, sei que prazem; a mim, regalam-me; e para d'aqui a alguns
+annos, quando o nivel da civilisa&ccedil;&atilde;o tiver tambem
+renteado as asperezas das serras, alguem festejar&aacute; encontrar
+estas antigualhas, nas folhas j&aacute; por ventura r&ocirc;tas
+e descosidas d'este livro.<br />
+
+<br />
+
+Por antigualhas vivas poderiam ellas agradar j&aacute; hoje ao
+commum da nossa gente; mas ent&atilde;o h&atilde;o-de ser
+antigualhas fosseis, e portanto com venera&ccedil;&atilde;o
+duplicada venerandas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+A indole da gente &eacute; de si commedida e pacifica.<br />
+
+<br />
+
+De todo o genero de vicios e desconcertos se poder&atilde;o entre
+ella achar amostras, que emfim, terra &eacute;, e n&atilde;o
+paraiso; mas nem tantas proporcionalmente, nem t&atilde;o feias e
+monstruosas em geral, como em outras partes, e em quasi todas.<br />
+
+<br />
+
+Para isso conspiram diversas causas: todos conhecem a todos; todos com
+todos se encontram cada dia. Cada um vive, por assim dizer em publico;
+ninguem &eacute; t&atilde;o abastado, que possa eximir-se de
+trabalhar cont&iacute;nuo, para se despender em vida de enredos,
+corrup&ccedil;&atilde;o e maleficios; nem t&atilde;o
+extremadamente destituido da fortuna, que a miseria, a inveja, o
+despeito, o despenhem de salto em
+<span class="pagenum">[50]</span>
+salto at&eacute; ao fundo da
+deprava&ccedil;&atilde;o.
+&Eacute; o <em>inter utrumque</em>, a <em>aurea
+mediocritas</em>.<br />
+
+<br />
+
+Conservam inteira a F&eacute; religiosa.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o l&ecirc;em, nem conhecem, nem levariam &aacute;
+paciencia, jornaes que desorientam, desencantam, e p&otilde;em o
+genero humano em guerra viva comsigo mesmo.<br />
+
+<br />
+
+E muito menos l&ecirc;em, conhecem, ou soffreriam, esta Literatura
+toda novella, toda sophismadora de tudo, toda flor&iacute;da e
+venenosa, que por c&aacute; nos trabalha, e de cujos herpes adoecem
+at&eacute; as familias, que a maldizem, e a repulsam da sua porta.<br />
+
+<br />
+
+Por l&aacute;, n&atilde;o; o mal que se fizer, ha-de
+s&oacute; provir da fragilidade, ou dos impulsos subitos da
+natureza; e, depois de consumado, ha-de deixar na consciencia
+remordimentos.<br />
+
+<br />
+
+Uma apologia, uma deificac&atilde;o para cada crime, nem possivel a
+julgam; quanto mais, feita, impressa, corrente, elogiada, e seguida
+como aphorismo, onde e quando com algum nosso pressuposto interesse se
+conchava.<br />
+
+<br />
+
+D'estas varias causas, negativas e positivas, e talvez de outras mais,
+resulta que tanta vantagem nos levam elles em bondade pratica e
+innocencia, quanta a que lhes n&oacute;s levamos em polidez, em
+gra&ccedil;as exteriores, em tactica, em egoismo infernal e
+assolador. Nos amores ponh&acirc;mos o exemplo:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Os seus amores se limitam no que a Natureza concita, requer, e
+persuade: tendem &aacute; uni&atilde;o, de que se originam as
+familias, e por onde a especie se mant&eacute;m.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[51]</span>
+Como lhes falta o ocio, pelo qual muito bem disse Ovidio ser a maior
+arte do amor, e o culpado nos seus peores desatinos, e al&eacute;m
+do ocio lhes fallecem tambem sobejid&otilde;es de cabedaes, que
+estimulam e irritam as phantasias, para o casamento se namoram, e
+n&atilde;o por alardo; para goso do
+cora&ccedil;&atilde;o, e n&atilde;o da vaidade.
+P&otilde;em no merecer as diligencias que outros p&otilde;em no
+conseguir; no reter, a felicidade que outros imaginam encontrar no
+repellir e despresar depois de saciados.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o vivem os sexos n'uma guerra perp&eacute;tua de
+seduc&ccedil;&otilde;es, de emboscadas, enganando-se e
+sacrificando-se um ao outro.<br />
+
+<br />
+
+A mulher n&atilde;o lavra registo dos seus adoradores; nem o homem
+se ufana em desenrolar diante dos seus conhecidos, nos corredores de um
+theatro, ou no v&atilde;o de uma janella de club, em noite de
+baile, um copioso canhenho, meio historico meio fabuloso, dos seus
+triumphos. Ali, ali &eacute; que as mulheres se podem gabar de ser
+amadas, pois o s&atilde;o sem disfarces nem encarecimentos;
+s&atilde;o-n-o pelas suas proprias gra&ccedil;as, pois nem
+modistas, nem cabelleireiros, nem cosmeticos, nem perfumadores, nem
+mestres, nem lisonjeiros, nem romances, as transformaram.
+S&atilde;o-n-o pelo que s&atilde;o, e n&atilde;o pelo que
+possuem ou representam, pois nem representam nem possuem nada.<br />
+
+<br />
+
+Palacios, creadagem, diamantes, n&atilde;o lhes v&atilde;o
+l&aacute; supprir lindezas do corpo,
+gra&ccedil;as do animo, ou preciosidades do
+cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o &eacute; entre prestigios deslumbradores, n'um
+ambiente de calor artificial, estimuladas
+<span class="pagenum">[52]</span>
+ou vencidas do exemplo, da
+occasi&atilde;o, do medo ao ridiculo, e da audacia emprehendedora,
+n&atilde;o &eacute; ao abrigo do estrondo e confus&atilde;o
+de um baile, que ellas recebem e fazem as suas primeiras
+declara&ccedil;&otilde;es; &eacute;
+ao ser&atilde;o, com a sua roca na cinta, na presen&ccedil;a de
+suas m&atilde;es; ou, quando muito, na romaria, sentadas na relva
+com as parentas e amigas, em derredor da merenda, &aacute; sombra
+das carvalheiras.<br />
+
+<br />
+
+S&atilde;o amores que se n&atilde;o escondem, porque
+n&atilde;o teem de qu&ecirc;; amores que se exhalam debaixo do
+ceo azul; que se juram pelo Santo da illuminada capella do festejo, ao
+som folgas&atilde;o da <em>Mirontella</em> roncada
+pela gaita de folle, rainha, alma, e feiticeira ambulante
+do arraial.<br />
+
+<br />
+
+No progresso de taes inclina&ccedil;&otilde;es &eacute;
+sabedora e consentidora toda a visinhanca; e esta mesma notoriedade
+defende os nossos namorados, tanto de se deixarem arrastar de seus
+mutuos desejos, como de se desvairarem e cahirem em infieis.<br />
+
+<br />
+
+Ao consorcio da Egreja, antecede o dos cora&ccedil;&otilde;es,
+n&atilde;o menos obrigado a
+lealdade e observancia. Nenhum Lovelace de v&eacute;stia
+commetteria galantear a conhecida por
+<em>empr&ecirc;go</em> de outrem, certo em que nenhuns
+lucros lhe surtiria o empenho, sen&atilde;o s&oacute; motejos e
+descredito.<br />
+
+<br />
+
+D'este modo se estende &aacute;s vezes por annos, com uma
+constancia verdadeiramente biblica, at&eacute; ao dia da posse, o
+bem-querer d'estes Jacobs e d'estas Rach&eacute;is.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Quantas Lisboetas de sar&aacute;us, se quizerem ser
+sinceras, h&atilde;o de confessar que a escolha
+<span class="pagenum">[53]</span>
+que n'um baile fizeram... s&oacute;
+durou at&eacute; que veio o baile seguinte! &iexcl;Quantas,
+quantas, cujo numero de arrojados (concedendo que pelas duas orelhas
+que Deus lhes d&eacute;ra n&atilde;o ouviam dois ao mesmo
+tempo) se poderia contar, perguntando &aacute; sua modista franceza
+quantos vestidos novos lhes havia feito!<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o assim l&aacute;. A que foi vista, na ceifa do anno
+passado, demorar-se mais a encher a malga para certo segador que para
+todos os outros, e pedir-lhe sempre a elle que lhe ajudasse a
+p&ocirc;r &aacute; cabe&ccedil;a a gavella das
+espigas, essa continuar&aacute; a fazer o mesmo na colheita d'este
+anno; continual-o-ha na dos futuros, at&eacute; que, tornada sua
+mulher, os cuidados dos filhos e da casa a impidam de seguir, como
+antes, por passos contados, o seu gosto.<br />
+
+<br />
+
+Observa&ccedil;&atilde;o t&atilde;o curiosa como
+verdadeira:<br />
+
+<br />
+
+Com toda esta liberdade, com os frequentes encontros a s&oacute;s,
+que a variedade dos servi&ccedil;os rusticos t&atilde;o a miudo
+lhes depara, rodeadas da Natureza por todas as partes, vendo livre o
+amor nas aves e nos rebanhos, favorecidas pela solid&atilde;o
+selv&aacute;tica e pelo
+silencio, e pelas moitas, e pelas quebradas do solo, e por dois
+crepusculos em cada dia, e em cada semana de inverno por tantas
+tempestades improvisas, como aquella que rendeu e debellou a vidual
+constancia de Dido e a piedade de En&ecirc;as, quando o hymeneu deu
+com o relampago o signal de suas b&ocirc;das, e as nymphas pelos
+altos dos montes ulularam; com tudo isto, os exemplos de fragilidade
+como a de Dido por phen&oacute;meno
+<span class="pagenum">[54]</span>
+se apontam; e annos e annos se devolvem, sem que
+um s&oacute; se realise.<br />
+
+<br />
+
+Quando por&eacute;m se d&aacute;, e vem a lume filho
+n&atilde;o de ben&ccedil;&atilde;o, o peccado de amor
+n&atilde;o se carrega de crueldade. O innocente n&atilde;o se
+faz victima expiatoria dos culpados, perdendo a vida entre as
+m&atilde;os de quem lh'a deu; horror nefand&iacute;ssimo,
+inteiramente desconhecido d'aquelle horizonte para dentro; nem
+t&atilde;o pouco &eacute; enviado, como um roubo, pelas trevas
+da noite, &aacute; porta l&aacute; ao longe de um desconsolado
+asylo, aberto pela misericordia em lagrimas &aacute;s lagrimas dos
+filhinhos sem m&atilde;e, nascidos em signo de rigor para se
+crearem sem beijos nem carinhos, viverem sem nome nem parentes, e se
+finarem sem heran&ccedil;as, nem lamentos, nem memorias.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o, n&atilde;o. Nem pelo infanticidio physico, nem pelo
+infanticidio moral, mereceria qualquer das minhas serranas um falso
+titulo, que ainda mais a faria corar, que a t&aacute;cita
+confiss&atilde;o da sua culpa. Sabe renunciar os louvores com que
+d'antes a coroavam; ousa desherdar de antem&atilde;o o seu cadaver
+do palmito, symbolo p&oacute;sthumo do feminil triumpho; tudo ousa;
+tudo... como lhe fique para consola&ccedil;&atilde;o da sua
+queda o encanto ineffavel de apertar nos bra&ccedil;os o seu filho.
+Se o mundo todo, se o proprio amante, a desamparasse, tudo tudo
+esquec&ecirc;ra vendo-o rir; sorrira, e sentira-se afortunada. De
+n&atilde;o ser donzella, nem esposa, harto a compensa a consciencia
+de preencher inteiro, a espinho e espinho, a flor e flor, o sublime
+encargo, o natural sacerdocio da maternidade.<br />
+
+<br />
+
+Estas resignadas victimas, immoladas por
+<span class="pagenum">[55]</span>
+um amor, por outro amor ressuscitadas mais
+interessantes, estas victimas, em quem a virtude, produzida pelo
+arrependimento, excede talvez em quilates, e eguala quasi em lustre a
+virgindade, s&atilde;o poucas; s&atilde;o rarissimas;
+custar-nos-hia a encontrar uma. Quando por&eacute;m a
+desencantasseis, lembrando vos do que sabeis d'estas nossas grandes
+terras, fio-vos que bastante commisera&ccedil;&atilde;o e
+respeito vos infundira.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Casas de perdi&ccedil;&atilde;o para a mocidade, como nos
+povoados grandes se alinham em ruas e ruas, e at&eacute;
+j&aacute; por villas e aldeias
+v&atilde;o surdindo, n&atilde;o se conhecem l&aacute;, nem
+se poder&atilde;o t&atilde;o cedo conhecer.<br />
+
+<br />
+
+Como leprosa seria evitada, e pereceria &aacute; mingua, e de
+vergonha, a que se proposesse esse culto venal de praseres falsos, em
+que as sacerdotisas, coroadas de flores e mascaradas de sorriso,
+s&atilde;o victimas das victimas que ellas sacrificam.<br />
+
+<br />
+
+Por isso tambem, a saude, o vigor, e a energia, se manteem, e se
+transmittem de paes a filhos, juntamente com a harmonia e serenidade
+dos casaes.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XIV</h4>
+
+<br />
+
+Dos amores vinhamos falando; falemos do que em outros sitios lhes serve
+de sepulcro, mas n&atilde;o l&aacute;; falemos do casamento.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Os casamentos n&atilde;o s&atilde;o nunca determinados por
+considera&ccedil;&otilde;es de haveres ou de jerarchia.
+<span class="pagenum"> <a name="p56">[56]</a></span>
+O c&aacute;lculo rala pouco
+os pensamentos d'estas gentes, acostumadas a viver com pouco, e a
+confiar muito na Providencia. As palavras <em>dote</em> e
+<em>escrituras</em> apenas seriam entendidas.
+<br />
+
+<br />
+
+Como um dos dois namorados chega, a poder de fortuna, ou de trabalho e
+economia, a ajuntar para <em>uma cama de roupa</em>,
+uma teia de est&ocirc;pa, outra de linho, uma pe&ccedil;a de
+burel, dois escabellos e uma banca de pinho, uma panella e dois pratos,
+uma candeia de folha, um b&aacute;coro, seis alqueires de milho, e
+outros tantos de centeio, tem agarrado as melenas da fortuna, e trata
+logo de a jungir com o hymeneu ao carro do Amor.<br />
+
+<br />
+
+O noivo d&aacute; &aacute; sua futura um presente, o qual, pelo
+commum, consta de um anel, meias, e sapatos; e a noiva ao seu futuro
+uma camisa para o dia grande.<br />
+
+<br />
+
+Mal que este desponta, v&ecirc; j&aacute; de p&eacute; os
+dois afortunados, garridos e bizarros com o seu <em>aceio</em>
+dos domingos: ella, sobretudo,
+flammante como uma Imagem, com arrecadas, cord&otilde;es, e
+alfinetes sobre len&ccedil;o de seda, mantilha lustrosa, ou chapeo
+de feltro novo com enfeites.<br />
+
+<br />
+
+As que para tanto n&atilde;o teem guarda-roupa, teem amigas e
+visinhas, que de boa-mente <a href="#e4">lhes</a>
+acodem, cada uma com o seu
+<em>melhorado</em>, convencidas como est&atilde;o
+(especialmente as solteiras) de que alguma coisa da
+ben&ccedil;&atilde;o matrimonial poder&aacute; vir apegada
+aos diches e galas que figuraram no apertar das m&atilde;os.<br />
+
+<br />
+
+Muitas noivas, crentes na sabedoria de suas av&oacute;s, se
+preparam de vespera para este acto, banhando-se em agua de alecrim, que
+<span class="pagenum">[57]</span>
+sendo flor&iacute;do tem
+mais effic&aacute;cia, e mettendo antes de adormecer debaixo do
+travesseiro
+(suppondo que em tal noite se possa adormecer) uma roca e um fuzo bem
+liados entre si, e recobertos com alguns arm&eacute;os de linho e
+lan; no que, vai grande cond&atilde;o de conformidade de animos,
+perfei&ccedil;&atilde;o de ajuntamento, e dura do bem-querer;
+com tanto que o mesmo fuzo e roca, assim maridados, n&atilde;o
+faltem debaixo do mesmo travesseiro na primeira noite do consorcio.<br />
+
+<br />
+
+O pretendente, com os seus apaniguados, espera j&aacute;
+&aacute; porta da noiva a sua sahida. Esta apparece emfim, como uma
+aurora da serra, incendida de pejo, e orvalhada com as lagrimas da
+m&atilde;e; e segue com o rancho, a p&eacute;, caminho da
+egreja, levando &aacute;s costas as ben&ccedil;&atilde;os
+do pae, em que ainda por l&aacute; se
+cr&ecirc;, a turba&ccedil;&atilde;o no seio, e nos ouvidos
+os votos e resas de bom agoiro, recitadas com f&eacute; por alguma
+velha mais sabida.<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+A egreja est&aacute; j&aacute; &aacute; sua espera aberta,
+juncada de espadana, com o altar enflorado de fresco, e a alampada
+ati&ccedil;ada.<br />
+
+<br />
+
+A ceremonia tem ali o que quer que seja de tocante, de mais bom que nas
+cidades. Em quanto o Pastor, a quem todas suas ovelhas amam, e que a
+todas as sauda por seus nomes, profere as palavras rituaes do
+sacramento, ou improvisa ap&oacute;z ellas um affectuoso discurso
+sobre os deveres mutuos e a felicidade dos casados, o silencio profundo
+do templo n&atilde;o &eacute; interrompido com
+preg&otilde;es de vendedores, rodar de seges, marchas de tropa,
+brados de mendigos, assobios
+<span class="pagenum">[58]</span>
+de rapazes, martellar de artifices, zabumbas de arlequins.<br />
+
+<br />
+
+Nenhum d'esses disparatados sons, discorde symphonia das cidades, vai
+profanar a mystica poesia d'aquellas reminiscencias patriarchaes, e
+afugentar as evocadas memorias de <a name="n6"></a>Lia,
+de Rachel, e de Rebecca.<br />
+
+<br />
+
+O que unicamente chega l&aacute; de f&oacute;ra, &eacute; o
+chilrar de algum passaro sobre alguma cerejeira do adro, o amoroso
+carpir de alguma r&ocirc;la na matta de S. Sebasti&atilde;o, ou
+a voz de algum lavrador estimulando os bois pergui&ccedil;osos no
+trabalho do passal; tudo fragmentos e despertadores das alegrias da
+Natureza, ou dos innocentes e primitivos exercicios da
+prog&eacute;nie de Ad&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o sei como isto diga: mas parece-me que assim se casa com
+mais clara e muito mais formosa ben&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&Eacute; um dia solemne da vida aquelle, em que duas almas votam a
+Deus n&atilde;o ser mais que uma, fazer de duas vidas uma vida, de
+dois nomes um s&oacute; nome, como de duas metades distinctas se
+forma um todo inseparavel.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; um dia, sem duvida, para quem bem o pond&eacute;ra,
+solemnissimo, e que, por isso mesmo, se deveria por todos os modos
+pintar com indel&eacute;veis e suaves tintas na memoria, para que a
+sua imagem no meio das tenta&ccedil;&otilde;es podesse acudir
+como Santelmo resplandecente no meio das tempestades.<br />
+
+<br />
+
+Quem se recordar de que proferiu o seu
+<span class="pagenum">[59]</span>
+voto, e escutou com jubilo outro egual,
+onde tudo era pacifico e risonho, onde nenhumas cong&eacute;ries de
+obras humanas encobriam as maravilhas da M&atilde;o Divina, onde
+com o sol entravam sombras de arvores, e descantes de aves livres, e
+fragrancias naturaes com as vira&ccedil;&otilde;es, quem,
+repito, de tudo isto se recordar, ha-de-lhe parecer que Deus percebeu
+melhor as suas palavras; ha-de alguma vez devanear em si (mas que o
+n&atilde;o diga) que bem poderia ser que alguns Anjos estivessem
+ali, em t&atilde;o donoso tabern&aacute;culo, a bafejar a
+pris&atilde;o de seda e oiro, que para sempre unia o homem e a
+mulher...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Desde que saem da egreja, por baixo de um repique de sinos
+alvoro&ccedil;ados, e por entre os parabens e vivas dos
+assistentes, encontram, come&ccedil;ando logo no adro, de praso a
+praso, por toda a extens&atilde;o do caminho at&eacute;
+&aacute; casa, arcos, engenhados &aacute; pressa, de loiro,
+ramos de pinheiro, oliveira, roble, canas verdes, e quantas hervas e
+plantas bravas menos espinhosas ou mais floridas brota o monte.<br />
+
+<br />
+
+Ao-p&eacute; de cada arco, sobre um tamborete coberto com a sua
+toalha, e ladeado de duas cadeiras para a heroina e heroe da festa,
+est&atilde;o, postos de antem&atilde;o pelos muchachinhos que
+formam a primeira frente do pr&eacute;stito triumphal, um prato de
+bolos, e frutos verdes ou s&ecirc;ccos para quem os quizer tomar;
+outro vazio, para a gratifica&ccedil;&atilde;o voluntaria, que
+ninguem deixa de lhe lan&ccedil;ar.<br />
+
+<br />
+
+Entre estes arcos alguns ha, de maior pompa,
+<span class="pagenum">[60]</span>
+e industria mais esmerada; foram esses
+prevenidos pelos padrinhos, ou pelas proprias familias de seus
+afilhados. Nos primeiros rescendem sobre urna meza dois ramalhetes
+naturaes, que enchem uma salva ou prato grande, e que os mesmos
+padrinhos offerecem, com palavras de sincero affecto o mais bem
+concertadas que podem, um &aacute; mo&ccedil;a, outro ao
+mancebo; os quaes, logo a diante, de ordinario entre si os trocam; e
+junto &aacute; salva dos ramalhetes se v&ecirc; um abundante
+refresco de bebida e comida para todo o acompanhamento, sendo o acepipe
+obrigado &aacute;s filh&oacute;s de mel.<br />
+
+<br />
+
+Em cada uma d'estas
+<em>esta&ccedil;&otilde;es</em> chove
+de todas as partes a saraivada dos confeitos; bebe-se &aacute;
+sa&uacute;de dos &laquo;bem
+empregados&raquo; e &laquo;de quem d'ahi a nove mezes ha-de
+vir.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O jantar d'este dia &eacute; copioso e demorado, com tantos
+convivas quantos admitte a sala; e as portas abertas; e os copos e as
+boas vontades prestes para quem se quizer apresentar.<br />
+
+<br />
+
+Entre a madrinha e o padrinho ficam assentados, na cabeceira da meza, e
+o mais proximo que se pode, o desposado e a desposada. Primeiro disse
+&laquo;o desposado&raquo; (contra a regra do nosso falar
+galanteador), porque o logar da direita se lhe d&aacute; a elle. A
+dignidade varonil em nenhum lance esquece entre aquellas gentes
+primitivas.<br />
+
+<br />
+
+N'um d'estes banquetes, a que assisti, comiam ambos no mesmo prato, e
+com um
+<span class="pagenum">[61]</span>
+s&oacute; talher, e
+bebiam pelo mesmo copo; o que, n&atilde;o obstante fazer durar a
+refei&ccedil;&atilde;o
+dobrado tempo, n&atilde;o deixava de ter gra&ccedil;a pelo seu
+bonissimo sentido, que n&atilde;o podia ser outro sen&atilde;o
+representar a communidade e harmonia intima, em que esperavam e
+professavam de viver.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&Aacute; noite ha sar&aacute;u rasgado, com concerto de violas,
+rabecas, e ferrinhos, dando se a r&ocirc;do comer e beber aos
+tangedores.<br />
+
+<br />
+
+Em quanto dan&ccedil;am, algumas mo&ccedil;as donzellas se
+furtam subtilmente &aacute; companhia, para irem enfeitar de flores
+o leito nupcial, desfolhar entre os len&ccedil;oes rosas de cheiro
+(se a esta&ccedil;&atilde;o as d&aacute;), e guarnecer a
+roca e fuzo symbolicos de amores perfeitos.<br />
+
+<br />
+
+Tudo isto vai ligeiro; e quando o gallo, unico relogio da terra, grita
+da quinta que &eacute; meia-noite, ha j&aacute; muito que os
+obsequiadores bondosos teem deixado a casa em socego e liberdade. Horas
+de calmaria de certo suavissimas, ap&oacute;z um dia todo por fora
+e por dentro t&atilde;o festejado e t&atilde;o
+rev&ocirc;lto.....<br />
+
+<br />
+
+<h4>XV</h4>
+
+<br />
+
+O nascer de cada filho &eacute; uma festa.<br />
+
+<br />
+
+Como teem robusta f&eacute; na Providencia, cr&ecirc;em (e
+mostra a experiencia que se n&atilde;o enganam), cr&ecirc;em e
+repetem, que filhos ainda em casa pobre s&atilde;o riqueza; que por
+taes penhores se obriga Deus, que &eacute; o Pae commum, a lhes
+acudir com mais larga m&atilde;o;
+<span class="pagenum">[62]</span>
+e que a meza, por ter mais Anjinhos ao
+p&eacute; de si, se n&atilde;o ha-de fazer mais
+esca&ccedil;a, se n&atilde;o medrar &aacute;
+propor&ccedil;&atilde;o de
+t&atilde;o bons h&oacute;spedes.<br />
+
+<br />
+
+E em verdade: se a descendencia nas cidades &eacute; tantas vezes
+um onus, um sorvedoiro, e um terror; se t&atilde;o commummente se
+ouvem m&atilde;es e paes deploral-a como castigo e praga;
+l&aacute; na serra, onde ha trabalho proporcionado a cada edade,
+l&aacute; na serra, onde, como em enxame bem regido, todos os
+consumidores s&atilde;o productores; l&aacute;, onde
+s&oacute;
+s&atilde;o necessidades as necessidades, e onde, em fim, os paes
+s&atilde;o os mestres, o exemplo
+li&ccedil;&atilde;o, a laboriosidade e sobriedade
+heran&ccedil;a; ninguem se atormenta sorteando na phantasia
+empregos ou futuros novos para a sua prog&eacute;nie. L&aacute;
+os filhos s&atilde;o
+rebent&otilde;es, que alegram, remo&ccedil;am, e
+esp&eacute;car&atilde;o a seu tempo a velhice decadente de
+quem lhes deu o ser, seiba, e sombra.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Vinda a lume a creanca, entre um c&ocirc;ro de mulheres
+experimentadas em taes lances, que supprem a falta de parteiras e
+doutores, tem-se j&aacute; prompta a canastra que lhe ha-de servir
+de ber&ccedil;o.<br />
+
+<br />
+
+Por todos os oito dias e noites que precedem ao Baptismo, &eacute;
+escrupulosamente velada, para que n&atilde;o venham bruxas
+malfazejas a chuchal-a. Para esse fim se mant&eacute;m de sol a sol
+candeia bem experta; e ao clar&atilde;o d'ella, com os olhos fitos
+no innocente, e quasi sempre em p&eacute; para que as
+n&atilde;o tome o somno, se revezam a uma e uma, fiando na roca, as
+amigas da casa.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+Algumas sabem versos muitos bons contra maleficios, que v&atilde;o
+entoando com a sua cantilena propria, em quanto com a ponta do
+p&eacute; embalam brandamente o bercinho. Algumas folhas de
+oliveira ou palma, que figuraram no altar em Domingo de Ramos,
+queimadas n'esta occasi&atilde;o, diz-se que tambem provam muito
+bem, assim como seus borrifos de agua benta pelas portas e janellas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+N&atilde;o sei eu, se todos acham n'estas reliquias vivas de
+romanas cren&ccedil;as a gra&ccedil;a, a fragrancia poetica, o
+saudoso de innocente boa-f&eacute;, que lhes eu sinto.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Cuidar que ainda agora as mulherinhas de uma serra nossa, e
+t&atilde;o christan como ella &eacute;, praticam o mesmo que os
+legion&aacute;rios romanos provavelmente ensinaram a nossas
+av&oacute;s ha mil annos, e mais, pelo terem visto fazer nas
+aldeias da sua terra a suas m&atilde;es e mulheres!
+&iexcl;Cuidar que estamos vendo, com pequena
+degenera&ccedil;&atilde;o, o que o mais rico poeta da
+Antiguidade se deliciou em cantar das cren&ccedil;as da sua gente!
+E se n&atilde;o,
+oi&ccedil;&acirc;mol-o, e julgareis:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Negreja ao r&eacute;z do Tibre
+annoso Helerno,</div>
+
+<div class="poetry1">santo bosque, onde levam sacrificios<br />
+
+inda agora os Pont&iacute;fices romanos.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Ali nasceu outr'ora, ali vivia</div>
+
+<div class="poetry1">a que nossos av&oacute;s chamavam
+Grane,<br />
+
+casta Nympha, de excelsos pretensores</div>
+
+<span class="pagenum">[64]</span>
+<div class="poetry1">pedida vezes mil e em v&atilde;o
+pedida.<br />
+
+Era seu exercicio errar nos campos,<br />
+
+as feras perseguir com dardo agudo,<br />
+
+e as redes emboscar nos fundos valles.<br />
+
+Inda que aljava ao lado
+n&atilde;o trouxesse,<br />
+
+criam-n-a irman de Phebo; o parentesco<br />
+
+n&atilde;o poderia, &oacute; Phebo, envergonhar-te.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Quando algum namorado a requestava,</div>
+
+<div class="poetry1">tinha prompta a
+resposta.&#8213;&laquo;Aqui,&#8213;dizia&#8213;<br />
+
+ha n&iacute;mia luz, e a luz
+dobra a vergonha...<br />
+
+Se preferes entrar n'aquella gruta,<br />
+
+sigo-te.&raquo;&#8213;&Aacute; gruta o cr&eacute;dulo voava;<br />
+
+ella torcia o passo, ia &aacute; carreira<br />
+
+das moitas na espessura
+homisiar-se;<br />
+
+d'ali desencantal-a era impossivel.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Viu-a Jano, e de a ver ficou perdido;</div>
+
+<div class="poetry1">combateu lhe o rigor
+com brandos rogos,<br />
+
+e a s&oacute;lita resposta obteve em
+pr&eacute;mio:<br />
+
+que entrasse al&eacute;m na gruta. Obedeceu-lhe;<br />
+
+segue-o a principio a Nympha... eis p&aacute;ra... eis foge.<br />
+
+O que
+lhe fica ap&oacute;z v&ecirc; Jano. &Oacute; louca,<br />
+
+no
+usado esconderijo em v&atilde;o confias;<br />
+
+olha como t'o observa, e
+t'o devassa.<br />
+
+N&atilde;o ha que resistir-lhe... eis-te em seus
+bra&ccedil;os;<br />
+
+eil-o comtigo a s&oacute;s na cava penha,<br />
+
+onde havias buscado o teu
+refugio.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Saciados os s&ocirc;ffregos
+desejos,</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&laquo;Em
+paga d'este goso&#8213;exclama o Nume&#8213;<br />
+
+dos qu&iacute;cios a tutella eu
+te confio;<br />
+
+pela honra perdida esta conserva.&raquo;<br />
+
+Assim falando,
+candida varinha<br />
+
+lhe entrega, com que os t&eacute;tricos asares<br />
+
+das
+protegidas portas afugente.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[65]</span>
+<div class="poetry">Existem de brutal voracidade</div>
+
+<div class="poetry1">umas infames aves;
+n&atilde;o j&aacute; essas<br />
+
+que de Phineu a meza espoliavam,<br />
+
+mas
+da mesma rel&eacute;: cabe&ccedil;a grande,<br />
+
+fito olhar, bico
+audaz, grizalhas plumas,<br />
+
+garra adunca; esvoa&ccedil;am pela noite;<br />
+
+onde encontram crean&ccedil;a ao desamparo,<br />
+
+que a ama deixou
+s&oacute;, prestes a emp&oacute;lgam,<br />
+
+arrancam-n-a do
+ber&ccedil;o, e a dilaceram.<br />
+
+Diz que as lactentes
+v&iacute;sceras co'os r&oacute;stros<br />
+
+lhes picam, lhes devoram;
+teem as fauces<br />
+
+sempre repletas de sorvido sangue.<br />
+
+Do <em>estridor</em>
+com que as trevas
+alvor&oacute;tam,<br />
+
+lhes vem o nome: <em>estriges</em>
+se
+nomeiam.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Estas pois, quer de si nascessem aves,</div>
+
+<div class="poetry1">quer em aves, de
+velhas que antes foram,<br />
+
+fatal conjuro marso as encantasse,<br />
+
+penetraram
+de Proca no aposento.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Com cinco soes de edade, o innocentinho</div>
+
+<div class="poetry1">era ao bando ferino
+egregio pasto.<br />
+
+J&aacute; co'as gulosas linguas ferem, sugam<br />
+
+o tenro
+peito nu; s&ocirc;am do infante<br />
+
+os consternados tr&eacute;mulos
+vagidos,<br />
+
+com que, &aacute; falta de voz, auxilio pede.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Corre a ama assustada; acha nas faces</div>
+
+<div class="poetry1">do caro alumno seu
+lavado em sangue<br />
+
+das brutas garras os crueis vestigios.<br />
+
+&iquest;Que
+far&aacute;? v&ecirc;-lhe o rosto exangue,
+murcho,<br />
+
+que na c&ocirc;r arremeda as tardas folhas<br />
+
+j&aacute; do
+r&iacute;gido inverno bafejadas.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Corre a Grane; o successo lhe relata.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&laquo;Cobra
+valor&#8213;a Nympha lhe responde;&#8213;
+<span class="pagenum">[66]
+</span><br />
+
+viver&aacute; teu
+alumno.&raquo;</div>
+
+<div class="poetry2">
+Entrada ao ber&ccedil;o,</div>
+
+<div class="poetry1">acha a m&atilde;e, acha o pae,
+s&ocirc;ltos em pranto.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&#8213;&laquo;Eis-me; enxugae as
+l&aacute;grimas&#8213;exclama;&#8213;</div>
+
+<div class="poetry1">vou tornar-vol-o
+s&atilde;o.&raquo; Diz, e tres vezes<br />
+
+de medronheiro com
+frondosa vara<br />
+
+fere da estancia as portas; outras tantas<br />
+
+co'a mesma vara
+o limiar sin&aacute;la;<br />
+
+rega o &aacute;dito; as aguas com que o
+rega<br />
+
+encerram salutifera mistura.<br />
+
+Entranhas cruas de
+bimestre porca<br />
+
+toma nas m&atilde;os, e diz:</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&laquo;Aves da noite,</div>
+
+<div class="poetry1">&iacute;-vos, deixae as
+puer&iacute;s entranhas.<br />
+
+N'esta pequena victima tenrinha<br />
+
+o tenro
+pequenino aqui resgato;<br />
+
+&eacute; cora&ccedil;&atilde;o por
+cora&ccedil;&atilde;o; tomae-o;<br />
+
+por visceras s&atilde;o
+visceras; redima<br />
+
+esta existencia immunda outra mais nobre.&raquo;</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Finda a sacra
+obla&ccedil;&atilde;o, corta o
+deventre,</div>
+
+<div class="poetry1">e esmiun&ccedil;ado o vai
+p&ocirc;r aos ares livres,<br />
+
+prohibindo do rito &aacute;s testemunhas<br />
+
+olhal-a ent&atilde;o
+ninguem; por fim colloca<br />
+
+a vara de oxiacanta, o don de Jano,<br />
+
+na
+janellinha que d&aacute; luz ao quarto.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Consta que desde ent&atilde;o
+n&atilde;o mais
+volveram</div>
+
+<div class="poetry1">ao ber&ccedil;o aves ruins;
+saude, cores,<br />
+
+tudo refloresceu
+no innocentinho. <sup> <a href="#3">[3]</a></sup></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[67]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O padrinho presenteia a comadre no dia do Baptisado com dois
+c&ocirc;vados de ba&ecirc;ta encarnada ou verde, vinho,
+assucar, arroz, um cabrito, ou peixe, conforme o dia em que acerta. A
+madrinha d&aacute; um vestido, duas camisas, e uma touca. Cada um
+dos convidados, um pichel de vinho, segundo o seu brio.<br />
+
+<br />
+
+Este dia &eacute; quasi t&atilde;o festivo como o do casamento,
+pois n'elle se cumpre a ben&ccedil;&atilde;o que no primeiro
+dia se receb&ecirc;ra, e est&aacute; salvo o interessante
+pimp&ocirc;lho para a outra e para esta vida; sendo averiguado, que
+as bruxas nada querem com sangue a que a agua e o sal tiraram o saibo
+do peccado.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XVI</h4>
+
+<br />
+
+Al&eacute;m d'estas duas festas, domesticas e privadas, casamento e
+baptisado, cada povoa&ccedil;&atilde;o cel&eacute;bra a
+sua, p&uacute;blica, no dia do Orago da sua capella. Tem fogo do ar
+e salva de morteiros &aacute; Missa cantada; banqueteiam-se uns aos
+outros; e, se o anno correu pr&oacute;spero, e as posses o
+consentem, andam j&aacute; desde a vespera &aacute; tarde pelo
+adro, viellas, e azinhagas, a gaita e o tambor, e despov&ocirc;a-se
+a visinhan&ccedil;a com o chamariz do fogo de vistas nomeado de
+<em>arma&ccedil;&atilde;o</em>, ou
+<em>parreira</em>.<br />
+
+<br />
+
+Por esta occasi&atilde;o, nas casas principaes, isto &eacute;,
+nas menos apertadas, saltam-se at&eacute; a meia-noite as
+dan&ccedil;as, pela m&oacute;r parte cantadas, do bom Portugal
+velho; dan&ccedil;as, das quaes, para f&oacute;ra d'aquelle
+vivente archivo
+<span class="pagenum">[68]</span>
+de antiguidades, nem
+j&aacute;, quasi, os nomes se conservam. S&atilde;o o <em>caracol</em>,
+o <em>Senhor da serra</em>, o <em>lund&uacute;</em>,
+ou
+<em>landum</em>, o
+<em>escalhabardo</em>, a <em>ribaldeira</em>,
+o
+<em>Francisco bandalho</em>, etc.<br />
+
+<br />
+
+A excita&ccedil;&atilde;o do saltar, a virtude inspiradora do
+vinho verde, e um poucochinho o natural desejo de brilhar diante das
+raparigas e dos rapazes, fazem &aacute;s vezes com que ahi
+appare&ccedil;am, como nas romarias, como nos ser&otilde;es dos
+lagares, escamisadas de milho, e outros ajuntamentos de gosto, poetas e
+poetisas que trovam de repente, e &aacute; porfia, por
+espa&ccedil;o de horas, ao som da flauta de canna, ou da viola.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Por de mais seria querer dar ideia de taes improvisos.<br />
+
+<br />
+
+Os cantores, quer sejam homem e mulher, quer homem e homem,
+est&atilde;o em p&eacute;, um diante do outro, no meio da roda
+dos ouvintes. A toada de que se ambos servem, &eacute; sempre das
+mais populares, e vai toda reman&ccedil;ada, para que as ideias e
+rimas tenham lazer de acudir. &Aacute;s vezes, por desgarre ou
+desfastio, se deixa degenerar de cantoria n'uma especie de
+declama&ccedil;&atilde;o accentuada.<br />
+
+<br />
+
+O seu verso &eacute; o de sete syllabas; o seu periodo, quatro
+versos, correspondendo-se o segundo e o quarto com toantes ou
+consoantes; isto &eacute;: usam das quadras correntes em todo o
+Reino.<br />
+
+<br />
+
+Alternam-se de quadra em quadra, ou de duas em duas quadras, conforme
+lhes conv&eacute;m.<br />
+
+<br />
+
+Principiam (&eacute; obrigado) por uma especie
+<span class="pagenum"> <a name="p69">[69]</a></span>
+de elogio, ou v&eacute;nia, ao dono da casa,
+se &eacute; em casa que se tem o descante, ou aos assistentes, se
+&eacute; em terreiro. Passam logo a tratar do objecto da festa, ou
+dos seus proprios amores; e d'ahi, muitas vezes sem
+transi&ccedil;&atilde;o, saltam para um genero entre elles
+muito saboroso, que se poder&aacute; chamar o &laquo;rustico
+<a href="#e5">fescenino&raquo;,</a>
+se, de env&ocirc;lta com as chufas salgadas, fossem tambem como
+entre os Antigos, os dizeres e entenderes licenciosos. Um ao outro se
+empulham e desempulham, como os dois pastores virgilianos, com
+surriadas de improp&eacute;rios sempre ao galarim, sem que o fogo
+das palavras prenda nunca nos cora&ccedil;&otilde;es. Com a
+mesma
+fei&ccedil;&atilde;o com que dizem, com a mesma ouvem; e
+t&atilde;o avindos saem da contenda, como n'ella entraram.<br />
+
+<br />
+
+Um primor d'este chancear consiste em tomar cada um, para urdimento da
+sua trova, o verso, phrase, ou palavra final, da do seu adversario, por
+mostrarem assim que n&atilde;o vinham aparelhados para o duello, e
+que tudo quanto esgrimem lhes acudiu, extemporaneo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Uma coisa faz extranheza a quem assiste pela primeira vez a taes
+porfias, e em geral a todo o cantar alde&atilde;o; e &eacute;:
+que a primeira metade de cada quadra tem frequentemente um sentido
+diverso, e desconnexo do sentido da segunda metade.<br />
+
+<br />
+
+Os primeiros dois versos conteem uma senten&ccedil;a geral, uma
+verdade vulgar, uma
+<span class="pagenum">[70]</span>
+imagem campestre,
+a exposi&ccedil;&atilde;o succinta de qualquer facto, mas sem
+rela&ccedil;&atilde;o alguma com o assumpto que se versa, o
+qual s&oacute; nos dois versos ultimos apparece.<br />
+
+<br />
+
+V&atilde;o exemplos, visto n&atilde;o estar em academia, mas em
+pratica de amigos com meus leitores:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3">O loireiro bate bate,<br />
+
+que eu bem o sinto bater.<br />
+
+Para comigo cantares<br />
+
+has-de tornar a nascer.<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; couve se come a folha;<br />
+
+come-se a raiz ao nabo.<br />
+
+S&oacute; te espero ver casado<br />
+
+sendo mulher o diabo.<br />
+
+<br />
+
+Navio d'el-Rei &eacute; grande,<br />
+
+&eacute; grande e chega ao
+Brazil.<br />
+
+Se namorares alguma,<br />
+
+n&atilde;o seja &aacute; luz do
+candil.<br />
+
+<br />
+
+Sequid&atilde;o cria o centeio,<br />
+
+frescura cria os repolhos.<br />
+
+&iexcl;Quem me estre&aacute;ra comtigo,<br />
+
+menina, os
+len&ccedil;oes de folhos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; se v&ecirc;, por estas amostras, que a
+improvisa&ccedil;&atilde;o n&atilde;o &eacute;
+t&atilde;o difficil coisa, nem para tantos encarecimentos, como a
+teem feito alguns viajantes, d'estes que s&oacute; viajam no seu
+quarto, embarcados na sua poltrona.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; por c&aacute; o mesmo, que provavelmente
+<span class="pagenum">[71]</span>
+ser&aacute; por toda a parte, sem exceptuar a
+Italia, com que tanta bulha se nos faz.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3"> <em>Al porto di Livorno<br />
+
+&egrave; giunto un bastimento.<br />
+
+Cara, morir mi sento!<br />
+
+mi sento, o Dio, mancar!</em></div>
+
+<br />
+
+<h4>XVII</h4>
+
+<br />
+
+Muito, por&eacute;m, se engan&aacute;ra, quem inferisse que
+toda a poesia dos meus serranos &eacute; de egual teor; porque,
+sobre conservarem muita x&aacute;cara de bons tempos, com as suas
+lacrimosas cantilenas t&atilde;o singelas, t&atilde;o simplices
+e aprasiveis como ellas (o que j&aacute; n&atilde;o seria
+pequeno cabedal), cantam, e &aacute;s vezes engenham com singular
+felicidade, quadras repassadas de amoroso affecto e gra&ccedil;a
+natural, que um poeta de nome n&atilde;o enjeitaria.<br />
+
+<br />
+
+E &iquest;que muito? &iquest;Por que n&atilde;o haviam de
+nascer estros por ali, onde ha tanta Natureza, tantos sitios
+inspirativos, t&atilde;o bons ocios na solid&atilde;o, tantos
+amores (&iexcl;e amores
+t&atilde;o bem empregados!), e t&atilde;o largos horizontes
+para a saudade!<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Por que n&atilde;o haviam elles de nascer, quando
+at&eacute; pelas nossas encruzilhadas mal cheirosas e escuras,
+pelos nossos botequins fumosos e azoinados, pelas casas d'essas ruas
+feias, onde olhos e ouvidos se perdem e afogam em prosidade vil,
+rebentam, vi&ccedil;am, e n&atilde;o raro florejam, talentos de
+estima&ccedil;&atilde;o e de valia?<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[72]</span>
+Mas a cada qual a sua boa dita, e o seu fadario: aos das cidades,
+muitas coisas lhes empecem (n&atilde;o falando no desamor que os
+esfria, e nas parvoas invejas que os matam); aos montanhezes,
+af&oacute;ra a Natureza, que lhes abunda, tudo mais lhe
+ming&uacute;a. S&atilde;o poetas, sem adivinharem que ha
+poesia, como de Hes&iacute;odo se conta, a quem, sendo humilde
+pastor, appareceram as Musas, n&atilde;o invocadas, para o
+bemfadarem.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;Que de Hes&iacute;odos se n&atilde;o
+esperdi&ccedil;am, e, por falta de um prodigio que os desencante,
+fenecem desconhecidos ao mundo, e a si mesmos!<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+<a name="n7"></a>De uma pobre mocinha ovelheira
+posso eu dizer; que por tardes de
+ver&atilde;o muita vez a ouvi sem que me ella visse; eu reclinado
+nos degraus da capella de S. Sebasti&atilde;o; ella ali perto,
+cantando e fiando em p&eacute; &aacute; sombra de um sobreiro,
+no meio dos balidos do seu fato; ella e eu, como bem se pode crer,
+&iexcl;enfeiti&ccedil;ados com a placidez de t&atilde;o
+livres horas em logares t&atilde;o fugidos, t&atilde;o
+sobranceiros ao mundo todo!<br />
+
+<br />
+
+De amores eram os seus versos, e amorosa a sua fala. Brotavam-lhe todos
+corados, n&atilde;o da memoria se n&atilde;o do espirito; e o
+espirito d'ella, estava-se conhecendo que lhe residia no
+cora&ccedil;&atilde;o, t&atilde;o bem,
+t&atilde;o bem, tanto a seu grado, como em estufa bem quente uma
+planta mimosa, que um amea&ccedil;o de frio mataria.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[73]</span>
+N&atilde;o sabia ler; raro teria visto a quem o soubesse. Nunca
+ouvira de obras de poesia sen&atilde;o as cantigas da sua terra, o
+murmurinho dos seus rios; de madrugada a cotovia perdida pelos altos do
+ceo; ao meio-dia as porfias das cigarras; ao descahir da tarde o
+badalar longinquo das Ave-Marias; ao cerrar da noite o
+regosijo da aldeia, que torna a ajuntar os seus moradores, os seus
+rebanhos, os seus carros, as suas crean&ccedil;as, os seus
+rafeiros, toda a sua orchestra t&atilde;o bem temperada para a
+alma; de noite os grilos e o rouxinol; e em sonhos... a fala talvez do
+seu namorado.<br />
+
+<br />
+
+Por aqui se resumia a sua bibliotheca; e comtudo, n&atilde;o ha
+encarecer o que ella improvisava para as suas ovelhas, que a
+n&atilde;o entendiam; para mim, que me occultava com mil cuidados
+para n&atilde;o afugentar t&atilde;o melodiosa ave; e para o
+ecco, para o ecco sobretudo, unica voz que podia levantar-se
+ao-p&eacute; da sua.<br />
+
+<br />
+
+Era a inspira&ccedil;&atilde;o lyrica mais formosa, se
+n&atilde;o a mais remontada. Eram os objectos do seu limitado
+universo a mirarem-se na limpidez dos seus affectos, virginaes e
+namorados ao mesmo tempo. Eram as palavras destillando-se cada uma da
+sua ideia com a propria c&ocirc;r, com a propria fragrancia que lhe
+competia. Era o metro a correr, sem quebra nem extravasamento, a flux,
+sereno, sonoroso como a fonte do passal. Eram as rimas a vir poisar
+espontaneas, faceis, afinadas, uma de fronte da outra, como em dois
+arbustos diversos no mesmo valle se respondem dois passaros gorgeando.
+Era tudo, emfim, quanto
+<span class="pagenum">[74]</span>
+a Arte requer, e s&oacute; a Natureza pode dar aos seus mimosos<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Pobre mocinha! &iexcl;Dezasseis primaveras!...
+At&eacute; j&aacute; as suas ovelhas se esqueceriam d'ella.
+Dissipou-se como um sonho de poesia. N&atilde;o deixou mais
+vestigios sobre a terra, do que aos eccos haviam deixado os seus
+poemas. Se ainda canta... j&aacute; n&atilde;o &eacute; a
+terra
+quem a ouve. Remontou o v&ocirc;o muito mais alto que o da cotovia
+sua mestra; engolfou-se por entre as scismadoras estrellas, que tantas
+coisas em segredo lhe ensinavam; e virgem entre os Anjos, irman entre
+seus irm&atilde;os, entretece a sua voz immortal no cantico sem
+limite<br />
+
+<br />
+
+<div class="dots"></div>
+
+<br />
+
+<h4>XVIII</h4>
+
+<br />
+
+Com a Poesia da montanha, releva fazer tambem
+men&ccedil;&atilde;o da sua Musica.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; esta quasi toda antiga; antiquissima pod&eacute;ramos
+dizer de muita; e conserva puro e extr&eacute;me o primitivo sabor.
+Condiz com a Linguagem, com o trajar, com os costumes; seria excellente
+or&aacute;culo para consultarem os modernos compositores de operas
+nacionaes. Assim se temperariam para os nossos ouvidos, os quaes, posto
+que affeitos de annos para c&aacute; a peregrinas melodias de muito
+mais altos quilates, ainda comtudo se ageitam e conchegam melhor com as
+toadas sentidas e singelas da nossa crea&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Nas boas horas fique a musica italiana,
+<span class="pagenum">[75]</span>
+pois que entrou, e nos cahiu, e o merece;
+mas, porque bizarros agazalhamos a digna h&oacute;speda,
+n&atilde;o se diga que aposent&aacute;mos
+nos s&oacute;t&atilde;os a parenta velha, bondosa, e amiga, por
+trazer vasquinha e falar ch&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Rossinem, Bellinem, e Donizettem quanto quizerem; fa&ccedil;am-n-o
+at&eacute; (se j&aacute;
+n&atilde;o pode ser por menos), fa&ccedil;am-n-o a frouxo e a
+granel por essas comedias e far&ccedil;as, em que fala gente do
+nosso sangue e dos nossos nomes. Mas uma vez ou outra ( <em>al
+de
+menos por
+cortezia</em>, como dizem os meus serranos), deixem-nos ouvir em
+boccas patricias coisa que nos alembre das cantilenas de nossas amas,
+cantilenas que, ainda depois de apagadas da memoria, l&aacute; se
+ficam algures no
+cora&ccedil;&atilde;o, com quanto basta de vida para
+ressurgirem ao primeiro aceno.<br />
+
+<br />
+
+Ponha-nos alguem degradados em terra extranha, entre mil arvores e
+arbustos ex&oacute;ticos da mais admiravel lou&ccedil;ania;
+mostre-nos l&aacute;, emboscadinho na herva, o malmequer da nossa
+primeira adolescencia, a papoila retinta, que nos ria d'entre o verde
+da se&aacute;ra, quando meninos; a papoila e o malmequer muito mais
+nos h&atilde;o-de conversar com o
+cora&ccedil;&atilde;o um s&oacute; minuto, que todas
+ess'outras flores mais soberbas em toda uma primavera.<br />
+
+<br />
+
+Se &eacute; vergonha... seja; curtil-a-hei; mas sempre digo que
+muita vez n'esses theatros, por ahi, me est&atilde;o lembrando com
+saudades os descantes da serra.<br />
+
+<br />
+
+Uma &aacute;ria opulenta, refeita de sciencia, espinhada de
+difficuldades, a dominar o temporal desfeito da orchestra que se lhe
+revolve aos p&eacute;s, a sumir os seus p&iacute;ncaros
+flor&iacute;dos
+<span class="pagenum">[76]</span>
+e tr&eacute;mulos pelas nuvens, admiro-a, applaudo-a, e
+esque&ccedil;o-a. Abalou-me tudo, a fora o
+cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Por&eacute;m certas cantigas que eu sei... n&atilde;o as
+applaudi, n&atilde;o as admirei quando as ouvi, mas senti-as
+repassar-me at&eacute; &aacute;s fibras intimas;
+assimilaram-se-me com os humores; converteram-se-me para logo em
+substancia propria; ficaram-se-me cantando per si, sem voz, no meio do
+silencio.<br />
+
+<br />
+
+Eram faceis e pobres; seriam; mas eram do meu Portugal, dos meus ares,
+da minha terra. Conheciam-me, e conhecia-as eu, ainda antes de as ter
+encontrado.<br />
+
+<br />
+
+E tambem, &iexcl;que melodiosas, que engra&ccedil;adas
+n&atilde;o s&atilde;o algumas, at&eacute; para orelhas
+forasteiras, quanto mais para as do seu molde!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;se a penna f&ocirc;ra varinha de
+cond&atilde;o! &iexcl;Se, em vez de vos falar do que por
+voc&aacute;bulos se n&atilde;o exprime, podesse apresentar-vos
+l&aacute; de subito, a beberdes com aquelles ares bonissimos
+aquellas cantorias agrestes, sem cultura, sem enxerto, luxuriantes de
+natureza, macias, avelludadas, rescendendo a amor e
+contentamento!<br />
+
+<br />
+
+Comigo fic&aacute;reis todos, que eram minas, as quaes, lavradas
+por m&atilde;os per&iacute;tas, nos podiam abastar de muito
+oiro, que a Arte, batendo-o e cunhando-o a seu modo, poria em facil
+giro com geral proveito.<br />
+
+<br />
+
+O Musico portuguez de alma, que se fosse vagabundo por essas
+solid&otilde;es, edificaria como Amphi&atilde;o novas Thebas,
+attrahindo e
+<span class="pagenum">[77]</span>
+congregando com a
+sua lyra penedias e florestas.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Mover-se-ha algum a tental-o? mover&aacute; a final.
+Mas por ora, o therm&oacute;metro do patriotismo assignala graus
+para baixo de zero.<br />
+
+<br />
+
+Para a Poesia nacional antiga e popular j&aacute; alguns olhos se
+teem voltado; e viu-se o proveito. Na Musica ha de ser o mesmo,
+querendo Deus; &iquest;mas quando? sabe-o Elle.<br />
+
+<br />
+
+Dos que por ahi a professam, nenhum d&aacute; visos de querer
+levantar-se. Fizera-o eu, se tivera a sciencia, o engenho, o fogo, que
+se admiram em alguns d'elles. &iexcl;Oh que o fizera! e com bem
+pequeno custo, bem farta cor&ocirc;a grange&aacute;ra.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que digo &laquo;custo&raquo;? &iquest;Onde ha
+ahi delicia como &eacute; o viajar ca&ccedil;ador de Artes, por
+toda a parte bem vindo, banquetear-se &aacute; farta com
+agradecimento dos que o regalam, e deixar saudades e fama em desconto
+dos thesoiros que se tomam?<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Uma qualidade que eu notei muito notada no cantar frequente pelos meus
+espa&ccedil;osos ermos, e que lhe dava uma particular
+fei&ccedil;&atilde;o de melancolia mui suave, era a
+extens&atilde;o das notas, o prolongamento, sobretudo, das finaes a
+perder de f&ocirc;lego. &Eacute; donosa coisa;
+m&oacute;rmente pela noite, e ao longe...<br />
+
+<br />
+
+A explica&ccedil;&atilde;o d'esta singular maneira deve ser,
+segundo me parece, o costume de cantarem muitas vezes a s&oacute;s
+por lombas descampadas e cumes de oiteiros, d'onde a voz tem de correr,
+e correr, primeiro que tope com ouvido em que se hosp&eacute;de.
+Outras vezes
+<span class="pagenum">[78]</span>
+&eacute;
+ao-p&eacute; de estr&eacute;pito de aguas,
+que a afogariam a lhe faltar perseveran&ccedil;a. Outras, em
+paragens de eccos, nas quaes uma fala aprasivel folga de se estar a si
+mesma namorando.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+De cabe&ccedil;o para cabe&ccedil;o, bem arredados um do outro
+por estirado valle, ouvi eu muita vez estarem duas guardadoras
+conversando por cantoria; e, gra&ccedil;as a este methodo de irem
+fiando cada syllaba... comprida... comprida... entendiam-se (podendo
+apenas enxergar-se), como se estiveram assentadas m&atilde;o por
+m&atilde;o, e muito manas, &aacute;
+soalheira no seu aido.<br />
+
+<br />
+
+Sustentam-se estas entoadas conversa&ccedil;&otilde;es, em
+prosa inteiramente desatada de rithmo, e n&atilde;o obstante
+rimada, rimada por um modo t&atilde;o ins&oacute;lito como
+facil.<br />
+
+<br />
+
+Exemplo:<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quer uma convidar a outra? dir-lhe-ha:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;&Oacute; ia, eu te digo
+&oacute; Maria,<br />
+
+&Oacute; iga, que se tu
+&eacute;s minha amiga,<br />
+
+&Oacute; &aacute;, botes as cabras para
+c&aacute;,<br />
+
+&Oacute; enda para me ajudares a comer a merenda,<br />
+
+&Oacute; eijo, que
+tenho aqui br&ocirc;a e queijo,<br />
+
+&Oacute; &ocirc;as, e umas
+ma&ccedil;ans muito b&ocirc;as.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E remata-se com um repenicado, que serve de ponto final, com que a
+outra interlocutora fica advertida, de que pode tomar a m&atilde;o
+no colloquio por ter chegado a sua vez.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[79]</span>
+<h4>XIX</h4>
+
+<br />
+
+Mas assaz e de sobejo nos temos demorado sobre a Poesia e Musica.
+Retomemos o fio que traziamos, que eram as festas.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+As geraes mais notaveis (pois at&eacute; agora s&oacute; vimos
+as de cada familia e as de cada aldeia) s&atilde;o: o Anno-bom, o
+Carnaval, a Paschoa, Maio, S. Jo&atilde;o, e o Natal.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O Anno-bom n&atilde;o &eacute; ao presente sen&atilde;o um
+rebate para comesaina rasgada, e se deitar uma can fora.<br />
+
+<br />
+
+As pagans Janeiras, que ainda alguns se lembram de ter cantado,
+j&aacute; l&aacute; v&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Consistiam (archivemos, archivemos, pois que at&eacute; as serras
+ao cabo se desmemor&iacute;am) consistiam em sahirem, logo ao
+romper do primeiro sol do anno os cachopinhos de cada
+povoa&ccedil;&atilde;o, todos em bando, o mais bem arreados que
+podiam, com suas sac&oacute;las, ou alc&ocirc;fas,
+&aacute;s costas, a cantarem de porta em porta, e, percorrido o
+logar, de aldeia em aldeia, at&eacute; se lhes acabar o dia, umas
+trovas de parabens e boa estreia, atuchadas de campanudos louvores
+&aacute; bizarria do pae ou m&atilde;e de familias, e
+desfechando sempre em requerer alguma chouri&ccedil;a, gallinha, ou
+p&atilde;o branco, para a ajuda do
+<em>refest&ecirc;llo</em>;
+contribui&ccedil;&atilde;o com for&ccedil;a de Lei, mas de
+que todos se desempenhavam &aacute; boa-mente.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[80]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O Carnaval, &eacute; como ainda n&oacute;s por aqui o
+conhecemos nos seus dias aureos, tr&iacute;duo de folia desatada,
+guerra porfiada e bem rida de todos contra cada um, e de cada um contra
+todos.<br />
+
+<br />
+
+S&atilde;o as pulhas, as pe&ccedil;as, os esguichos, os
+p&oacute;s, a laranja<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....que
+derruba o chapeo,</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+de que o bom <a name="n8"></a>Filinto com tanta
+saudade se lembrava l&aacute; em
+Par&iacute;s, o rabo-leva de tripas entufadas, a m&atilde;o de
+ferrugem da chamin&eacute; com azeite pelos fucinhos, as
+est&ocirc;pas apegadas &aacute;s costas e incendidas, o vinho
+com sal, as filh&oacute;s com trapos, e todos os mais
+adminiculos, que no
+ritual classico se conteem.<br />
+
+<br />
+
+Por qualquer parte que ent&atilde;o se caminhe, ainda que se
+n&atilde;o veja povoa nem viva alma, duas coisas se
+h&atilde;o-de ouvir infallivelmente: uma &eacute; rir e apupar;
+toda a serra parece estar florejando gargalhadas; a outra
+s&atilde;o descargas de espingardaria. Ninguem tem
+ca&ccedil;adeira velha em termos de dar fogo, que n&atilde;o
+saia com ella a salvar.<br />
+
+<br />
+
+N'esta occasi&atilde;o (n&atilde;o sei por qu&ecirc;) o rio
+de S. Mamede parece marcar fronteira entre duas
+na&ccedil;&otilde;es inimigas; a metade
+c&iacute;terior, e a metade ulterior da freguesia, formam dois
+exercitos, que, disposto cada um na sua banda pelos altos mais patentes
+e convisinhos aos seus adversarios, para l&aacute; lhe atira por
+cima da torrente, sem folga nem misericordia, turbilh&otilde;es de
+chascos, de apupos, de rugidos
+<span class="pagenum">[81]</span>
+de buzinas, de buxas accezas, e fumarada. Estremece a terra sob
+os p&eacute;s; retumbam pelo ouco dos valles, pelas refolhadas e
+sinuosas lapas das ribanceiras, os rolantes trov&otilde;es
+centuplicados...<br />
+
+<br />
+
+O Entrudo &eacute;brio, que vai, titubante cavalleiro em derreado
+asninho, visitando as povoa&ccedil;&otilde;es, com barbas
+brancas em faces avinhadas, e canna em punho para se abordoar, facil,
+prasenteiro, com s&eacute;quito de rapaz&iacute;a a abuzinar, e
+de mascarados salt&otilde;es, satyricos, e brutescos, bem
+poder&aacute; ser o pr&oacute;prio Sileno das bacchanaes,
+metamorphoseado pelo tempo, constante parodiador das suas mesmas obras,
+pois n&atilde;o &eacute; necessaria grande
+perspic&aacute;cia para reconhecer como, n'uma boa entrudada, se
+conciliaram diversas reliquias herdadas do paganismo: por fundo, as
+saturnaes; por embutidos e matiz, as bacchanaes, as floraes, e
+quejandas (o numero era folgado).<br />
+
+<br />
+
+As pastoras, que n&atilde;o podem deixar por tres dias o gado nos
+red&iacute;s e apriscos, para se estarem regalando ao banquete da
+familia, teem um Carnaval particular, um Carnaval n&oacute;mada e
+silvestre, cosinhado e comido ao ar livre, e a que ellas chamam
+&laquo;o seu g&ocirc;rdo&raquo;.<br />
+
+<br />
+
+O <em>g&ocirc;rdo</em>, para o qual de
+tempos se andam aparelhando, &eacute; feito por varias d'ellas em
+commum, convidadas e admittidas outras amigas, e algumas vezes tambem
+alguns mo&ccedil;os seus parentes.<br />
+
+<br />
+
+Sem o ser de nenhuma d'ellas, consegui eu assistir a um
+g&ocirc;rdo; e ainda agora me est&aacute; sabendo.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[82]</span>
+Estava um dia Real. A sala do festim era n'uma gruta, ou amplo recesso
+de penedia, com uma alpendrada de arbustos silvestres, e um
+vest&iacute;bulo de areia parda e fina, &aacute; borda da agua.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n9"></a>Nympharum
+domus.....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+n&atilde;o lhes faltando os competentes<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">.....vivo
+sedilia saxo.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+O matto deu a lenha para a cosinha; o rio deu a agua; os vasos e os
+comestiveis, traziam-n-os ellas, e por mustarda e salsas a sua alegria
+folgasan, a lida, e as cantigas. Nada faltou; nem o arroz doce, de
+leite recem-mugido.<br />
+
+<br />
+
+Terminaram com uma dan&ccedil;a no areal, por n&atilde;o haver
+melhor, e debandaram, cada uma atraz do seu gado, quando j&aacute;
+l&aacute; por cima branquejavam estrellas. A fogueira
+servi&ccedil;al l&aacute; ficou sosinha, remirando-se ainda na
+corrente soturna, e olhando com saudades a quem d'ella egualmente as
+levaria.<br />
+
+<br />
+
+Innocentes leviandades s&atilde;o todas estas, e, mais ou menos,
+parecidas com o que por toda a parte vai n'esse praso do anno. Mas,
+travada com ellas, uma usan&ccedil;a ha ali, que s&oacute; ali
+ha, e que eu aponto, n&atilde;o s&oacute;
+porque me ajuda no retrato d'aquella gente optima, se n&atilde;o
+porque dar&aacute; luz para se entender o poema que a diante vai,
+com o titulo de <em>Domingo gordo dos montanhezes</em>.<br />
+
+<br />
+
+N'este dia, pois, logo de manhan, acodem &aacute; matta de S.
+Sebasti&atilde;o, que j&aacute; sabeis
+orla o passal pela banda do poente, todos os
+<span class="pagenum">[83]</span>
+mo&ccedil;os solteiros da freguesia, a
+plantar cada um um sovereiro, ou carvalho novo; findo o qu&ecirc;,
+e bebida sua malga de uma talha de vinho verde, que j&aacute; para
+isso a Confraria do mesmo Santo ali lhes tem prevenida, se tornam para
+suas terras a folgar.<br />
+
+<br />
+
+Nem o introductor, nem o tempo da introduc&ccedil;&atilde;o
+d'esta pratica, s&atilde;o j&aacute; hoje conhecidos.
+&Eacute; uma tradi&ccedil;&atilde;o piedosa, uma lei moral,
+sem nenhum genero de commina&ccedil;&atilde;o, mas
+t&atilde;o &aacute; risca obedecida, como se as tivera.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute;, mormente em tal dia, e para gente em flor de annos, um
+bello exemplo de desinteresse; pois na planta&ccedil;&atilde;o
+quem s&oacute; ganha
+&eacute; a selva, que se dilata, e o Santo, a quem se engrossam os
+rendimentos.<br />
+
+<br />
+
+Se de S. Gon&ccedil;alo ou Santo Antonio f&ocirc;ra a
+capellinha, ou de algum outro Bemaventurado, com fama de
+boa-m&atilde;o para casamentos, ainda se aventaria um motivo
+pessoal para o obsequio; &iexcl;mas S. Sebasti&atilde;o, que
+s&oacute; da peste &eacute; advogado!...<br />
+
+<br />
+
+Seja o que f&ocirc;r: o amavel instituto persev&eacute;ra,
+&iexcl;e oxal&aacute; dure sempre! &iexcl;e
+oxal&aacute; por muitas partes o imitassem!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Para que a Paschoa dos montanhezes deixe a perder de vista a de
+n&oacute;s outros, bastam duas considera&ccedil;&otilde;es:
+a d'elles &eacute; festa
+do espirito, e mais do corpo; a nossa nem do corpo o &eacute;, nem
+do espirito.<br />
+
+<br />
+
+Digo que &eacute; do espirito a sua, porque a F&eacute; viva
+lhes faz estar vendo ressurgido do sepulcro o Divino Amigo da especie
+humana;
+<span class="pagenum">[84]</span>
+e do corpo tambem, porque
+o brodio paschal, op&iacute;paro, rescendente, de viandas
+succulentas e escolhidas, lhes d&aacute; mate &aacute; longa e
+bem jejuada quarentena.<br />
+
+<br />
+
+Move suavemente os cora&ccedil;&otilde;es acompanhar a
+prociss&atilde;o, que da egreja sai depois da Missa cantada, com os
+seus cirios accezos, cantando as aleluias, atravessa o amplo adro
+alcatifado de bordada relva, sombreado das suas cerejeiras
+j&aacute; revestidas, atravessa o passal por entre as alas das
+pacificas oliveiras, vai pela matta de S. Sebasti&atilde;o, e se
+espairece ao longe, como uma piedosa exulta&ccedil;&atilde;o,
+por entre os mattos rejuvenescentes.<br />
+
+<br />
+
+O aroma do incenso ama casar-se com a fragrancia agreste das moitas. As
+arvores figuram ensoberbecer-se de estender o seu pallio verde recamado
+de sol por cima do Filho de David. Cada hervinha p&ocirc;z por fora
+todas suas galas para ver passar o seu Creador. Como elle, toda a
+Natureza parece ressuscitada, vivaz, e gloriosa. Os passaros lhe
+ent&ocirc;am canticos, como os homens, as mulheres, e as
+crean&ccedil;as. A aleluia ress&ocirc;a em toda a parte;
+lagrimas involuntarias aljofram todos os rostos; em todos os
+cora&ccedil;&otilde;es ferve o amor de Deus, o amor da
+Natureza, e o amor mutuo.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;que bem que se chegam ali a entender os
+arroubados requebros do Esposo e da Esposa dos Cantares! &iexcl;Oh!
+&iexcl;que permutar de boas-festas! Mal o presumem, os que todas as
+cifram em cinco ou seis letras gothicas n'um cart&atilde;o
+alvibrunido, com uma das quatro pontas bem dobrada.<br />
+
+<br />
+
+Recolhida a prociss&atilde;o, tornam-se todos
+<span class="pagenum">[85]</span>
+correndo a suas casas, a acabar de as
+p&ocirc;r prestes para a proxima visita do seu Parocho. Atapetam-se
+de ramos os pavimentos; guarnecem-se as mezas com as melhores
+baixellas; crep&iacute;ta o lume na cosinha rev&ocirc;lta;
+id&eacute;ia-se um simulacro de altar, ou se enroupa uma cama de
+lavado para aposentar o Santo Christo, emquanto o senhor Prior, com a
+sua pequena comitiva, lhes der o gosto de provar (quando mais
+n&atilde;o seja) dos seus guizados e do seu vinho. Ninguem da
+familia falta &aacute; porta para receber a aspers&atilde;o de
+agua benta, que elle ao entrar lhes liberalisa risonho, com as palavras
+rituaes da ben&ccedil;&atilde;o: &laquo;Paz
+a esta casa, e a todos que n'ella moram.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Tal visita&ccedil;&atilde;o, que (j&aacute; se
+v&ecirc;) se n&atilde;o conclue no primeiro, nem muitas vezes,
+no segundo dia, paga bem o seu pequeno custo; n&atilde;o pela moeda
+de prata, de meio tost&atilde;o ou seis vintens, recebida em cada
+fogo; n&atilde;o pelos saccos de folares que se ajuntam; mas pelo
+muito que assim de novo se apertam os vinculos mutuos do Pastor e do
+rebanho.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+No 1.&ordm; de Maio p&otilde;em, &aacute; entrada das
+habita&ccedil;&otilde;es, <em>maias</em>, que
+s&atilde;o ramos de
+sabugueiro e giestas flor&iacute;das; e nos linhares, rocas com
+seus fuzos, carregadas de linho e enramalhetadas de flores. Com aquillo
+se fadam a terra e a casa: a terra, para que d&ecirc; linho
+comprido e sedoso; a casa, para que se guarde e mantenha
+pr&oacute;spera.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem n&atilde;o v&ecirc; n'estas maias outra
+degenerada heran&ccedil;a dos nossos antigos senhoreadores?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[86]</span>
+No principio de Maio, faziam os Romanos o festejo domestico dos seus <em>Lares</em>,
+deuses protectores da poisada, e cujos idolos se tinham junto ao fogo
+da cosinha, ou em nichos por de traz da porta principal. Revestiam-n-os
+de pelle canina; e em monumentos antigos se v&ecirc; ao
+p&eacute; d'estes deuses representado o animal symbolo da
+fidelidade, e guarda nocturno do domicilio, pelo mesmo modo como Ovidio
+nos seus <em>Fastos</em> nol-o
+descreve. Brindavam-n-os com liba&ccedil;&otilde;es de bom
+comer e beber, e tambem com ramilhetes e grinaldas, j&aacute; de
+flores, e j&aacute; de lan.<br />
+
+<br />
+
+Deveu ser entre elles o culto dos Lares o mais querido, pois
+acreditavam que eram os espiritos dos bons mortos da familia, que se
+compraziam de habitar e proteger os logares onde foram vivos, e onde
+vivia gente do seu sangue.<br />
+
+<br />
+
+Por isso tambem a pouco e pouco chegaram a dar zeladores divinos do
+mesmo nome a todas quantas coisas lhes requeriam, e mereciam amparadas.
+Vieram Lares
+<em>viaes</em> (dos caminhos), <em>compitaes</em>
+(das
+encruzilhadas), <em>urbanos</em> (os padroeiros de cada
+cidade), <em>publicos</em> (os mantenedores dos
+publicos edificios), <em>rusticos</em> (os custodios do
+campo),
+<em>hostis</em> (os amparadores contra inimigos),
+<em>marinhos</em> (os guardi&atilde;es dos navios).<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; portanto evidente, que, onde quer que se estabelecesem
+Romanos, se haviam os Lares de estabelecer; e tenho, que nenhuma de
+suas religiosas praticas pegaria melhor, nem mais depressa, entre
+estrangeiros; e bem boa, bem moral que ella era, no meio d'aquelle
+cahos de poeticissimos desatinos e devassid&otilde;es.
+<span class="pagenum">[87]</span>
+Fazia venerar e amar a
+casa; com a casa, a familia; com a familia, os s&atilde;os costumes
+da crea&ccedil;&atilde;o. Ainda por cima, fazia resplandecer
+luzeiros de esperan&ccedil;a na
+cerra&ccedil;&atilde;o das adversidades; o que d&aacute;
+cora&ccedil;&atilde;o e brios para as resistir.<br />
+
+<br />
+
+Pressupponh&acirc;mos como verisimillimo, e certo, que na romana
+provincia Lusitania se veneravam os Lares como na Italia; do que,
+ali&aacute;s, podem ser documentos, al&eacute;m de outros, o
+nome de <em>lareira</em>, geralmente
+conservado ao lastro da chamin&eacute;, e o proprio de
+<em>lar</em>, com que em Traz-os-Montes se chama a corrente
+de ferro, de que pende na cosinha o caldeir&atilde;o sobre a
+fogueira.<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; cada um inferir&aacute; que as
+<em>maias</em> dos meus serranos, festejo que s&oacute;
+&aacute; casa se refere,
+coroando-lhes de flores a porta, e lustrando-lhes, como quer que seja,
+o seu linhar (linho por lan), teem, e n&atilde;o podem deixar de
+ter, aquella origem.<br />
+
+<br />
+
+Na cola d'esta semi-gentilidade, garrida e innocente, vem o rito
+christ&atilde;o, ainda mais poetico, chamado das
+<a name="n10"></a>Roga&ccedil;&otilde;es ou
+Ladainhas de Maio.<br />
+
+<br />
+
+Os lavradores seguem, com as cabe&ccedil;as descobertas, e
+acompanhando em chusma as entoadas preces da Egreja, a
+prociss&atilde;o, que l&aacute; se vai, humilde, atravez dos
+campos desatados em flor. Imploram as ben&ccedil;&atilde;os do
+Ceo para os trabalhos da agricultura; que insectos damninhos
+n&atilde;o devorem a vinha ou se&aacute;ra; que
+intemp&eacute;ries do ar e trovejados granizos n&atilde;o
+derribem mortas as benevolas esperan&ccedil;as dos pomares.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[88]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O S. Jo&atilde;o por larga vespera de semanas se annuncia: cantado
+de dia pelos oiteiros, de noite pelos ser&otilde;es.<br />
+
+<br />
+
+Nada ha mais affectivo, que a toada, entre melancolica e leda, com que
+se v&atilde;o lentamente deduzindo as trovas (sem arte, embora,
+n&atilde;o sem gra&ccedil;a), que por ali em louvor do Baptista
+se exhalaram outr'ora do seio de poetas desconhecidos.<br />
+
+<br />
+
+A medo me rendo &aacute; tenta&ccedil;&atilde;o urgente de
+as mostrar; que, despojadas da sua melodia, desquitadas das vozes
+t&atilde;o frescas e juven&iacute;s das suas cantoras, e nuas
+dos seus accessorios de silencio e ruido selvatico, de calma e sombras
+em pino de ver&atilde;o, trovas taes aqui mal poder&atilde;o
+parecer-se comsigo mesmas.<br />
+
+<br />
+
+Do que ides ler, ao que eu ouvi, posto n&atilde;o haja
+differen&ccedil;a na substancia, vai tanto, como de uma formosa
+donzella pod&eacute;ra differir o seu cadaver.<br />
+
+<br />
+
+Sem mais precau&ccedil;&otilde;es, eis aqui alguns trechos, que
+no fundo da alma se me est&atilde;o ainda cantando, por entre
+simulacros de figueiras, que entretecem sobreceo verde &aacute;
+fonte crystallina do passal. As syllabas dos metros, n&atilde;o as
+contem; basta que todos elles acertem na cantoria &aacute;s mil
+maravilhas. T&atilde;o pouco embiquem na confian&ccedil;a, com
+que umas rusticasinhas de roca &aacute; cinta tratam o Santo
+Precursor. S&atilde;o amores velhos; n&atilde;o ha que lhes
+dizer.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&#8213;&iquest;San-Jo&atilde;o das
+barbas doiradas,<br />
+
+onde foste
+ter as orvalhadas?<br />
+
+&#8213;Fui as ter &aacute;quellas hortas,<br />
+
+recordar
+aquellas cachopas.<br />
+
+<span class="pagenum">[89]</span>
+<br />
+
+Recordae, recordae, pergui&ccedil;osas,<br />
+
+que da fonte
+j&aacute; veem as formosas,<br />
+
+com as talhas cheias de cravos,<br />
+
+que
+lh'os deram os seus namorados,<br />
+
+com as talhas cheias de flores,<br />
+
+que
+lh'as deram os seus amores.<br />
+
+<br />
+
+San-Jo&atilde;o, rico cavalleiro,<br />
+
+companheiro de Nosso Senhor,<br />
+
+acompanhae a minha alma<br />
+
+quando d'este mundo f&ocirc;r.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;Por que tendes, San-Jo&atilde;o,<br />
+
+esses sapatinhos
+brancos?<br />
+
+&#8213;Para passear &aacute;s mo&ccedil;as<br />
+
+domingos e dias
+santos.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;D'onde vindes, San-Jo&atilde;o,<br />
+
+que assim cheirais
+&aacute; macella?<br />
+
+&#8213;Venho da serra da Estrella,<br />
+
+de fazer uma
+capella.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;D'onde vindes, San-Jo&atilde;o,<br />
+
+pela calma sem
+chapeo?<br />
+
+&#8213;Venho beber agua fresca,<br />
+
+que faz calor l&aacute; no ceo.<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 305px; height: 31px;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Basta, basta, que j&aacute; pressinto ali &aacute; esquina os
+aferidores e malsins da Literatura, que, se me tomam, com isto nas
+m&atilde;os, d&atilde;o comigo do av&ecirc;sso.<br />
+
+<br />
+
+Na vespera do Santo, pela tarde, hasteiam bandeirolas nas fontes.
+&Aacute; noite accendem fogueiras, dan&ccedil;am, cantam,
+namoram, e galhofeiam em de redor d'ellas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[90]</span>
+&Aacute; meia noite, quebram ovos para os exp&ocirc;rem ao
+sereno, que lhes ha-de n'elles estampar a jerogliphica prophecia do seu
+futuro, e chamuscam as hervas e flores, que sabem de constancias e
+inconstancias.<br />
+
+<br />
+
+V&atilde;o nadar nos rios, que todos n'esta noite encerram grandes
+virtudes e preservativos; mas especialmente o de S. Jo&atilde;o do
+Monte, &aacute; conta do seu nome bento.<br />
+
+<br />
+
+Sobre a madrugada v&atilde;o lavar seus gados, e &aacute; volta
+colhem ramos orvalhados, os quaes, se nas trovoadas os queimam, livram
+de raio; trazidos no seio, defendem de mau olhado; e facilitam os
+partos, apertando-se nas m&atilde;os.<br />
+
+<br />
+
+A agua da fonte da manhan de S. Jo&atilde;o &eacute; como a
+primeira que chove em Maio: torna o car&atilde;o formoso.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Nos Santos, fazem o seu magusto de tarde, no aido ou em campo
+descoberto, n&atilde;o correndo o tempo de invernia. S&atilde;o
+rebordans a granel, entre grande larada de brazido, a estoirarem e a
+acerejar-se, em quanto um farto lombo de cevado rech&iacute;na e
+fumega em vergante espeto de pau, a pingar n'uma telha ou frigideira.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; dia j&aacute; de longe apetecido pelos velhos, pelos
+rapazitos, e pelos visinhos menos folgados, que todos ent&atilde;o
+se convidam.<br />
+
+<br />
+
+Bebe-se, como requer a quadra, que assaz &eacute; j&aacute;
+ent&atilde;o arripiada. Mas... quanto
+mais se vai o repasto allongando dia em fora para o crepusculo, e para
+a noite, mais se v&atilde;o pendendo com scismadora tristeza os
+animos dos convivas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[91]</span>
+&Aacute; f&eacute; que lhes n&atilde;o falta por
+qu&ecirc;. O dia que ap&oacute;z vem, &eacute; o dos
+finados; dia de saudades e receios, de desconforto e arrependimentos,
+para todos quantos, com F&eacute; ou sem ella, possuem um
+entendimento, e meditam.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;E que mais meditabundo que as montanhas! &iexcl;E quem
+mais devaneador e recolhido, que homens acostumados a
+solid&atilde;o, curtidos nas duras realidades da vida, remotos do
+cortes&atilde;o bulicio, embotador pessimo de toda a sensibilidade!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Mal soaram as Ave-Marias, come&ccedil;a dobre funebre, que toda a
+noite n&atilde;o quieta.<br />
+
+<br />
+
+Pela escurid&atilde;o pasmada se devolvem, a longe, a longe,
+at&eacute; se esvaecerem, os tons afflictos, que a nenhuma de
+tantas poisadas deixam de dizer algum segredo de dor, e de encommendar
+algum suffragio. &iexcl;Oh! &iexcl;se
+n&atilde;o se elevar&atilde;o elles, e bem ferventes, exhalados
+pela voz do sangue, pelo amor, pela amisade, pela caridade!<br />
+
+<br />
+
+Quando tudo jaz, a deshoras, no silencio mais fundo, nenhuma luz
+bruxuleia de nenhuma fresta, e j&aacute; nenhuns olhos por ventura
+se descerram, acorda a subitas uma sepulcral melodia, que dissereis
+c&ocirc;ro de Anjos desterrados e saudosos. Vagarosa se adianta,
+pelo meio da povoa&ccedil;&atilde;o, a supplicar em nome dos
+penados de alem mundo, que para si n&atilde;o podem requerer,
+esmola de ora&ccedil;&otilde;es, refrigerio para os ardores que
+l&aacute; padecem.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o ha seio t&atilde;o escudado, que um santo horror o
+n&atilde;o estreme&ccedil;a; egoismo t&atilde;o
+empedrenido, que sustenha as lagrimas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span>
+...At&eacute; que o solemne preg&atilde;o transp&otilde;e e
+se esvai; e na calada se torna a perceber o dobre longinquo da egreja.<br />
+
+<br />
+
+Quanto a mim, confesso que nunca ouvi coisa, que assim me abalasse o
+interior.<br />
+
+<br />
+
+Estes devotos cantores, que ninguem v&ecirc;, mas que
+v&atilde;o de aldeia em aldeia
+<em>amentando</em> as almas, arrastavam d'antes
+grilh&otilde;es aos p&eacute;s, o que ainda augmentava o pavor
+do seu preg&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+Com grilh&otilde;es ou sem elles, &iquest;despertadores taes
+quem entre n&oacute;s os soffreria? Por
+l&aacute; querem-se, quer-se-lhes, escutam se, e obedecem-se, como
+exactores que s&atilde;o de um
+tributo da outra vida.<br />
+
+<br />
+
+Desde o romper d'alva n&atilde;o descan&ccedil;a a egreja de
+absorver povo. Todos os caminhos, todas as asinhagas, todos os bosques,
+todas as ladeiras, todos os valles, todos os oiteiros, o brotam e
+expedem &aacute; porfia.<br />
+
+<br />
+
+Vem o anci&atilde;o alquebrado, atido ao bord&atilde;o; o
+mo&ccedil;o em flor de annos; a donzella; os irm&atilde;os,
+pequeninos e j&aacute; orph&atilde;os,
+pela m&atilde;o de sua m&atilde;e; todos graves, cuidosos,
+taciturnos; todos l&aacute; por dentro orando; todos anhelando
+irem-se ajoelhar sobre uma sepultura bem estremada, para d'ali
+assistirem ao incruento Sacrificio.<br />
+
+<br />
+
+Todos os confessionarios n'este dia est&atilde;o apinhados, e o
+semi-festim da vespera &eacute; quasi geralmente descontado pelo
+jejum mais rigoroso.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Emfim vem o Natal.<br />
+
+<br />
+
+Essa festa, a fundamental, a maxima, a ridentissima, a de todas
+christianissima
+<span class="pagenum">[93]</span>
+(quizera eu dizer)
+do Christianismo, nenhures cabe t&atilde;o em cheio, nem tanto com
+os animos e cora&ccedil;&otilde;es se coaduna, de veras crida e
+com veras amada, como nos descampados bravos e alpestres.<br />
+
+<br />
+
+V&iacute;reis o Pres&eacute;pio de Belem, n&atilde;o
+j&aacute; por caprichosas artes remedado, mas em t&atilde;o
+cabal transumpto, que pelo proprio e verdadeiro vos invidaria a adoral
+o.<br />
+
+<br />
+
+Diss&eacute;reis que ao soar da ave da meia-noite,
+desferiu v&ocirc;o d'entre as estrellas, de que se
+cor&ocirc;a a montanha, c&ocirc;ro de Anjos a dar rebate aos
+pegureiros com o preg&atilde;o de &laquo;Gloria e
+Paz&raquo;, com a nova de ser nascido o Desejado das gentes.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Tanto &eacute; o ruido de alegres passos e falas, que de
+toda a parte confluem pelo escuro em demanda do Menino!<br />
+
+<br />
+
+Cada qual lhe traz nas m&atilde;os o seu presente, e o mais valioso
+dentro n'alma.<br />
+
+<br />
+
+O templo enramalhetado, oloroso, esplendido de luzes, par em par
+aberto, &eacute; a santa Gruta.<br />
+
+<br />
+
+L&aacute; no t&ocirc;po, sobre a pedra bemdita, jaz a rir o
+Divino Infante.<br />
+
+<br />
+
+O adro v&ecirc; dan&ccedil;ar as rondas de camponezes
+&aacute; roda de um monte de arvores accezas, ao som da
+gaita e do tamboril.<br />
+
+<br />
+
+Os sinos doidejam de alvoro&ccedil;o na torre illuminada.<br />
+
+<br />
+
+Sob o tecto religioso se alternam em dois c&oacute;ros feminis as
+cantigas da benta noite. Cada um d'estes c&oacute;ros &eacute;
+exclusivamente composto das moradoras de cada margem do rio que biparte
+a freguesia. Vai entre ellas a mesma rivalidade, que j&aacute;
+descobrimos entre
+<span class="pagenum"> <a name="p94">[94]</a></span>
+os homens,
+quando no Carnaval travam com as suas espingardas innocentes um
+estrepitoso arrem&ecirc;do de combate.<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; a qual dos bandos trar&aacute; mais formosas quadras
+para entretecer com as antigas, mais argentinas falas e melhores
+requebros para as gargantear. Cuida-se ouvir musica de Seraphins;
+exulta o cora&ccedil;&atilde;o; e, sem vergonha, se
+est&atilde;o sentindo as faces humedecer-se.<br />
+
+<br />
+
+Por meio d'estes c&oacute;ros, cujos enthusiasmos devotos como que
+se est&atilde;o vendo lutar nos ares estrugidos, passeia em
+bra&ccedil;os do Parocho o Menino, a fazer colheita de beijos e
+louvores, de supplicas e offertas. Ent&atilde;o &eacute; que
+surdem vangloriosos de baixo de cada capa os mimos, que de longe e
+&aacute; porfia se lhe andaram apercebendo; sobre-sahindo de
+ordinario, a todos, os mui primorosos artefactos de pinh&otilde;es
+e frutos s&ecirc;ccos.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;que invejas para as crean&ccedil;as, que
+ali pendem ao collo de suas m&atilde;es! v&atilde;o-se-lhes os
+olhos, e os sorrisos, e as m&atilde;osinhas, ap&oacute;z
+lindezas t&atilde;o guapas; mas, vendo chegar o Menino a quem se
+destinam, com os seus olhos t&atilde;o azues, a bocca
+t&atilde;o amorosa, as faces t&atilde;o coradas como as
+ma&ccedil;ans que se lhe offerecem, &eacute; j&aacute; a
+Elle que s&oacute;
+cubi&ccedil;am; e s&oacute; choram, porque o n&atilde;o
+deixam
+<a href="#e6">acompanhal-o</a>.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Taes s&atilde;o as mais notaveis festas d'esta singela gente.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que inventariam philosophos para lhe dar, quando chegassem
+a destruir-lh'as com lhe tirarem a F&eacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[95]</span>
+&Eacute; uma pergunta simples, mas vale a pena pensar longo na
+resposta.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Assim cr&ecirc;em, assim folgam, assim vivem, ricos de desavareza,
+nobres de humildade, e pela rudez ainda s&atilde;os, os moradores
+de S. Mamede da Castanheira do Vouga.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XX</h4>
+
+<br />
+
+Que eu por l&aacute; versejasse, j&aacute; a ninguem
+ficar&aacute; sendo maravilha; antes, sim, a pod&eacute;ra ser,
+que de tal assumpto s&oacute; tal volume se estillasse; mas as
+ras&otilde;es d'isso de si mesmas se confessam.<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; eu disse, que os annos que por l&aacute; sumi, me
+foram totalmente desprophetisados; e que nunca esperei, nem cri
+possivel, que houvessemos j&aacute;mais, eu nem coisa minha, de
+reparecer no mundo.<br />
+
+<br />
+
+Assim, s&oacute; por desabhorrimento &eacute; que poetava de
+longe em longe; isto &eacute;: poetava por f&oacute;ra, e no
+papel, que no cora&ccedil;&atilde;o e no
+animo estava eu comigo a fazel-o a toda a hora; e a melhor poesia (de
+leve me acreditar&atilde;o os que d'isto sabem) n&atilde;o foi
+a que se escreveu, se n&atilde;o a que deslizou suave, entre
+sonhada e sentida, na profundez dos ermos, onde tudo canta, suspira e
+medita.<br />
+
+<br />
+
+Escrever s&oacute; para si, n&atilde;o sei que ninguem escreva;
+&eacute; trabalho sup&eacute;rfluo, e que, se
+d&aacute; fruto, o d&aacute; ruim, que de p&ecirc;co e
+descorado nos desconsola.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[96]</span>
+&iquest;Pois qual &eacute;, em boa verdade, o pensamento, ou
+affecto, que no trabalho de se corporificar para sahir a lume e correr
+por m&atilde;os e olhos, n&atilde;o perde muito do seu
+primitivo ser, ou da sua energia, ou da sua gra&ccedil;a, ou do seu
+calor, ou do seu brilho, ou do seu aroma, ou do que quer que seja que
+era seu, e que era elle mesmo em grande parte?<br />
+
+<br />
+
+Isto dos livros n&atilde;o s&atilde;o sen&atilde;o uns
+retratos mortos, umas toadas, reflexos, e sombras, de festas que se
+fazem n'um interior, e de que os passageiros, por mais que se lhes
+abram as janellas, e que elles appliquem os olhos e ouvidos,
+s&oacute; podem perceber a totalidade, e conjecturar as
+circumstancias.<br />
+
+<br />
+
+O escrever, o material, sujo, e ronceiro escrever, cede tanto em foros
+de expressivo ao falar precipitado e caudaloso, como a palavra (ainda
+para os maiores mestres e senhores d'ella) cede, e ha de sempre ceder,
+&aacute;s concep&ccedil;&otilde;es e aos affectos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Outra explica&ccedil;&atilde;o da exiguidade, e tenuidade (que
+peor &eacute;) do livrinho, est&aacute; em que a maior e melhor
+parte dos cond&otilde;es e feiti&ccedil;os da montanha, que ora
+c&aacute; ao longe me apparecem t&atilde;o inteiros e gentis,
+ent&atilde;o que eu os tratava e d'elles vivia colmado, me
+n&atilde;o faziam os effeitos, que atrav&eacute;z dos vidros da
+saudade me produzem.<br />
+
+<br />
+
+Para bem apreciar aquillo (como tudo) foi mist&eacute;r havel-o
+perdido; que j&aacute; por isso dizia Rousseau, que nunca
+t&atilde;o bem falaria da liberdade, como entre ferros da Bastilha.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[97]</span>
+&iquest;Onde &eacute; que nos ri a imagem da primavera a
+abrolhar? &eacute; no meio do outono a desvestir-se. &iquest;A
+do ver&atilde;o, que tress&uacute;a afogueado? no inverno, que
+tirita e se encanece de geada.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;A meninez, com todas suas lagrimas e captiveiros,
+n&atilde;o &eacute; paraiso, para onde todos, todos, nos
+quiz&eacute;ramos tornar?<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Que bem que o Poeta cantava: &laquo;Aventurados em summo
+extremo os camponezes, se acabassem de entender os bens que
+logram!&raquo;<br />
+
+<br />
+
+Quanta poesia eu aspirei, e para mim vivi, sem me sentir nem o cuidar,
+&eacute; este prosaico e glacial viver, quem agora de instante a
+instante m'o explica.<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; saudade me acodem as delicias de jazer sobre feno, peito e
+collo descobertos, ao phantasioso ramalhar da nogueira velha, quando
+importunas obriga&ccedil;&otilde;es me veem ripar e consumir as
+semanas a dia e dia, os dias a hora e hora, as horas a minuto e minuto.
+<br />
+
+<br />
+
+Pela conversa&ccedil;&atilde;o pacifica das moitas e torrentes
+me definho, quando, no mais fortuito, no mais leve, tratar com homens
+me aguardam sempre desencantamentos, desconsolos, ras&otilde;es
+para os desprezar, ou para fugil-os.<br />
+
+<br />
+
+L&aacute;, volta-se sempre para a poisada mais alegre, ou melhor.
+Aqui, pelo contrario, ou sempre peor, ou sempre mais triste.<br />
+
+<br />
+
+L&aacute;, a benevolencia &eacute; semente de benevolencia,
+para dar cento por um. Aqui, &eacute; gr&atilde;o que sempre
+degen&eacute;ra, ou n&atilde;o germina, ou brota villans
+ingratid&otilde;es, que envergonham at&eacute; a quem as ouve.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[98]</span>
+L&aacute;, o folgar &eacute; franco, e as festas s&atilde;o
+festas. Aqui, o folgar &eacute; esca&ccedil;o e fingido; as
+festas, tumulto, ou, mais de pressa, encoberto circo de gladiadores,
+que armados com a verdade e com a mentira se acutilam uns aos outros, e
+aos ausentes, e aos amigos, e aos finados.<br />
+
+<br />
+
+O mais dextro no pungir e envenenar, esse se pavonear&aacute; pelo
+mais cortes&atilde;o e de maior donaire; far-lhe-h&atilde;o
+roda; e em vez de o esbofetearem, e de o compellirem a se enforcar como
+o Iscariotes por sua m&atilde;o, para escarmento a sevandijas e
+li&ccedil;&atilde;o a paes que est&atilde;o creando feras
+bravas para andarem s&ocirc;ltas no povoado, h&atilde;o-de
+applaudil-o por medo, apertar lhe a
+m&atilde;o
+dissimulando o nojo, e recebel-o muitos em suas salas, com sabel-o
+expulso de muitas portas.<br />
+
+<br />
+
+Acobertam-se l&aacute; e ufanam-se as terras com os linhares, para
+o que Deus os fez: para vestido das familias, para faixas da infancia,
+para mac&iacute;o agazalho nas horas do somno ou da
+doen&ccedil;a, para gala candida dos altares, e a final para
+curativo de feridas.<br />
+
+<br />
+
+Ora, &iquest;que mulher de montanhez poria n'um linhar, ao
+alvorecer de Maio, a sua roca enfeitada, se adivinhasse que o pobre do
+seu linho, a cabo de t&atilde;o bons servi&ccedil;os, poderia
+vir ainda a converter-se em papel para a nossa Imprensa, isto
+&eacute;, em pregoeiro e depositario de quanto erro, e absurdo, a
+ignorancia ou maldade pod&eacute;rem delirar, em ventilador de
+descredito e odios, em disseminador de todos os principios de
+dissolu&ccedil;&atilde;o,
+j&aacute; moral, e j&aacute; politica?!
+&iexcl;P&ocirc;r-lhe ella a
+sua roca para ben&ccedil;&atilde;o! ella, a boa filha das
+serras,
+<span class="pagenum">[99]</span>
+f&ecirc;mea sincera e verdadeira, cora&ccedil;&atilde;o
+lavado, animo propenso em tudo para o bem! &iexcl;P&ocirc;r-lhe
+ella encamisada e flor&iacute;da a sua roca, a sua casta e alegre
+companheira, a que t&atilde;o santas maximas e t&atilde;o
+formosos exemplos ouviu sempre!... Antes deitar &aacute; sementeira
+o fogo, ou amaldi&ccedil;oal-a n'uma sexta feira ao meio dia, que
+vale o mesmo.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXI</h4>
+
+<br />
+
+&iexcl;Que de vantagens para o ermo n&atilde;o s&atilde;o
+todas estas!<br />
+
+<br />
+
+E no gosal-as, &iexcl;que assumpto inexhaurivel para um engenho bem
+nascido!<br />
+
+<br />
+
+Sim; mas, torno a dizel-o, &eacute; em distancia de
+espa&ccedil;o e tempo, e pela
+contraposi&ccedil;&atilde;o, que se conhecem. &iexcl;E eu
+malbaratei quasi tudo isso!...<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3 tinyl">........ munera nondum<br />
+
+Intellecta deum!....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Havia de ser agora, depois de t&atilde;o prolixo, de t&atilde;o
+quebrantador martyrio da experiencia,<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry3 tinyl"><a name="n11"></a>.....
+Oh ubi campi!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Como me n&atilde;o agarr&aacute;ra, com raizes mais
+fundas e tenazes que o meu cedro, ao ch&atilde;o da vida facil,
+innocente, e obscura! &iexcl;Como n&atilde;o
+borbot&aacute;ra em hymnos o meu jubilo! &iexcl;Como
+n&atilde;o saud&aacute;ra com lagrimas de
+gratid&atilde;o a aurora, tornando a encontral-a! &iexcl;Que
+n&atilde;o palr&aacute;ra com as torrentes! &iexcl;Que
+noites
+<span class="pagenum">[100]</span>
+desveladas sob o
+pavilh&atilde;o estrellado e vastissimo da montanha!<br />
+
+<br />
+
+Em vez de
+rebuscar (como agora me foi for&ccedil;ado) para esbo&ccedil;ar
+este painel noticias de logares, e at&eacute; de usos, tudo eu
+mesmo visit&aacute;ra com devo&ccedil;&atilde;o de
+peregrino; tudo
+revolv&ecirc;ra; com tudo me identific&aacute;ra.<br />
+
+<br />
+
+As saudades, que de l&aacute; para aqui me est&atilde;o
+salteando, d'aqui para l&aacute; j&aacute; n&atilde;o
+atinariam seu caminho; e se o atinassem alguma vez, na primeira
+sar&ccedil;a onde papeasse um ninho eu me soubera esconder, que me
+perdessem logo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&#8213;O abdicar&#8213;dizia o Imperador Diocleciano tornado Diocles, fazendeiro
+e hortel&atilde;o de Salona&#8213;o abdicar &eacute; o
+come&ccedil;o do viver.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Quantos dos que desaprenderam no rega&ccedil;o espinhoso
+da fortuna o rir, o dormir, e o comer, tudo isso recobrariam na
+primeira hora que empunhassem, com animo feito, uma rabi&ccedil;a
+ou um foicinho!<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Se n&atilde;o ha-de ser inefavel o abdicar muito, e
+at&eacute; imperios romanos, como elle, quando renunciar o pouco, o
+quasi nada, que se tem de cidade.... s&oacute; de o cuidar, tanto
+namora a phantasia!<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Se jamais vir&aacute; tempo de eu poisar em
+torr&atilde;o meu, debaixo de sombras minhas, a cabe&ccedil;a
+encanecida e regalada!<br />
+
+<br />
+
+Uma barraca de poucas bra&ccedil;as, mas revestida de rosas e
+limas, como o presbyterio. &Aacute; roda d'ella, tanto de fazenda,
+quanto o filhinho mais pequeno atravessasse correndo de um
+f&ocirc;lego. Mas isto em solid&atilde;o bem
+solid&atilde;o,
+<span class="pagenum">[101]</span>
+onde s&oacute; os
+astros me enxergassem,
+s&oacute; as esta&ccedil;&otilde;es me visitassem, e da
+banda do mundo nada me chegasse, sen&atilde;o o vento,
+j&aacute; expurgado e esquecido de humanas vozes.<br />
+
+<br />
+
+Tal casa, e tal quinta, ser-me-hiam mais que morgado, mais que palacio
+e reino: paraizo terreal, digno vestibulo de outro melhor.<br />
+
+<br />
+
+Ahi me reverdec&ecirc;ram o cora&ccedil;&atilde;o e mais o
+espirito, que me elles por c&aacute; trazem t&atilde;o
+lastimosamente desfloridos e murchos.<br />
+
+<br />
+
+Por si se retingiriam os cabellos, com o franco sol
+remo&ccedil;ador de quanto existe.<br />
+
+<br />
+
+A lyra interior volveria a cantar espontanea, como harpa
+e&oacute;lia entre jasmineiros, pendente em hombral de gruta
+&aacute;s vira&ccedil;&otilde;es da primavera.<br />
+
+<br />
+
+Ainda &aacute; farta me ving&aacute;ra dos tantos annos, que em
+tarefas eph&eacute;meras e sem gloria, posto que n&atilde;o sem
+consciencia e diligencia, se me desbarataram na gal&eacute; da
+Imprensa periodica, ou (com mais propriedade) nas palhas d'essa
+doidinha, que a si mesma se ven&eacute;ra por soberana do Universo;
+doidinha com diadema de papel e sceptro de lapis.<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; me n&atilde;o rira d'ella, quando me lembrasse que me
+enguliu, com os annos que me tomou, outros tantos da minha existencia
+para diante; pois em cada tomo de periodico, sincera e honradamente
+redigido, se podia escrever este epitaphio: <em>Aqui jaz um anno
+de fadiga e dois de vida de.... Orae por elle</em>. <sup> <a href="#4">[4]</a></sup>
+<span class="pagenum">[102]</span>
+Vendem-se ainda primogenituras
+por menos que prato de lentilhas.<br />
+
+<br />
+
+Ving&aacute;ra-me (&iexcl;oh! &iexcl;se me
+ving&aacute;ra!) de t&atilde;o bons dias mallogrados; e ainda
+por ventura alguns livrinhos, menos maus que todos os meus precedentes,
+appareceriam de novo, mas sem mim, no povoado. Como Ovidio aviava os
+seus do desterro, aviar&iacute;a eu os meus do meu eden.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl"><a name="n12"></a>Parve,
+nec invideo, sine
+me, liber, ibis in Urbem.<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;A que vem tomar-nos tempo com a fabula pueril dos teus
+gostos e desejos?&#8213;dir&aacute; (e ha-de dizer) algum d'estes que
+sabemos, que nunca faltam, escoimadores
+<em>ex-officio</em> do alheio.<br />
+
+<br />
+
+&#8213;Senhor meu,&#8213;lhe respondo eu j&aacute;:&#8213;pois &eacute; por
+isso mesmo, de n&atilde;o passarem de fabula os meus gostos e
+desejos, que se me ha-de relevar o dar-lhes eu largas no papel.<br />
+
+<br />
+
+Se eu vira agora cahir-me do ceo o meu tugurio e o meu quintal,
+coroados de ermo, como o Evangelista nas praias de Pathmos viu baixar
+do Empyrio a sua Jerusalem abra&ccedil;ada de muros de oiro, o
+tempo que n'estas palavras gasto aproveitara-o melhor, em correr para o
+meu refugio, beijal-o, replantal-o,
+aformosental-o. E em l&aacute;
+vindo o flor&iacute;do Maio, ride-vos de pag&atilde;o que
+brindasse os seus lares com mais f&eacute; ou egual amor.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iexcl;A liberdade!... &iquest;Onde ha hi liberdade, que nem
+por longe se pare&ccedil;a com a de um
+<span class="pagenum">[103]</span>
+viver reman&ccedil;ado, em casa sem
+numero, nem espias, ao som da Natureza, &aacute; lei da propria
+inclina&ccedil;&atilde;o; sem ouvir horas que nos chamem, sem
+encontrar com glosadores que nos aboquem no ar
+ac&ccedil;&otilde;es e palavras, para nol-as tingirem de branco
+em preto; nem cahir nas garras de ociosos, que vos
+emprazar&atilde;o para toda uma tarde de Junho, ou toda uma noite
+de Dezembro; isento da praga de utopistas e reformadores, que
+s&atilde;o a peor salada que o diabo temperou e mecheu em hora de
+abhorrimento; seguro, emfim, de ser pisado nas ruas por soberbias de
+quem vos n&atilde;o vale, tremulando-lhe, na botoeira do vestido,
+refulgente epigramma de esmalte contra meritos e virtudes; e de noite,
+interrompido na medita&ccedil;&atilde;o, ou cortado no melhor
+do somno, pelo retroar de carroagens, que em fluxo e refluxo continuo
+levam e trazem, sempre a correrem para nada, pygmeus,
+histri&otilde;es, da far&ccedil;a s&eacute;ria d'este
+mundo?<br />
+
+<br />
+
+Se algures ficou sobre a terra a liberdade, que irmana, segura,
+ennobrece, e concil&iacute;a os homens, na montanha encontrareis
+mais depressa
+coisa a ella parecida, do que n&atilde;o por estas
+almota&ccedil;adas metr&oacute;poles, onde se blasona que ella
+tem o seu templo, e n'elle as suas festas. Sempre s&atilde;o festas
+acompanhadas de vinte org&atilde;os, a entoarem solfas diversas ao
+mesmo tempo: este, o <em>Te Deum</em>; aquelle, o <em>De
+profundis</em>; um, o
+<em>Quomodo cecidit civitas plena populo</em>; outro, o
+<em>Cantemus Domino</em>; qual, o <em>Miseremini
+mei</em>; qual, o <em>Ecce sacerdos magnus</em>.<br />
+
+<br />
+
+Se alguma vez se incensou presente n'este orbe a Liberdade,
+derrubaram-n-a do seu
+<span class="pagenum">[104]</span>
+pedestal
+as aguas do diluvio de No&eacute;, quando arrojavam cada coisa para
+seu cabo. Ao que havia de ser cidades, ficou o pedestal razo, com o
+formoso nome d'ella em letras de oiro. Ao que tinha de ser ermo
+pertenceu, mas sem nome nem titulo, a figura quasi inteira. Aqui,
+preg&ocirc;am-n-a; l&aacute; a disfrutam. Assim vai tudo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+E quando n&atilde;o, mettei bem por dentro a m&atilde;o na
+consciencia; e, deixado o palavr&oacute;rio que n&atilde;o
+s&ocirc;a muito sen&atilde;o por ser vazio
+(como tambor de foli&otilde;es), dizei-me, ou dizei-o a
+v&oacute;s mesmos: &iquest;Quem mais livre, que homem que
+desperta recobrado ao romper d'alva, por se lhe ter o somno acabado, e
+n&atilde;o porque ruins pesares lhe repiquem, ou o estremunhem
+alvoroto de pra&ccedil;as, e reboli&ccedil;o de vizinhos, pois
+diante de suas janellas o que s&oacute; se meneia e conversa
+s&atilde;o arvores, e por cima do seu tecto n&atilde;o moram
+sen&atilde;o hervas, que mal ciciam, e s&oacute; recebem de
+visitas passarinhos ou borboletas?<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem mais livre?<br />
+
+<br />
+
+Acordado, encommenda a Deus o dia novo, veste o que na vespera despiu,
+sem ter de consultar a ventoinha do figurino, o camareiro, o
+cabelleireiro, o espelho, o gosto da namorada, o rol das visitas e dos
+convites. &iquest;Quem mais livre?<br />
+
+<br />
+
+Talha para si, para sua mulher, para cada um de seus filhos, as
+occupa&ccedil;&otilde;es de todo o dia. &iquest;Quem mais
+livre?<br />
+
+<br />
+
+Entre o trabalhar, que lhe grangeia for&ccedil;as, saude, bons
+somnos, p&atilde;o, e para conduto um
+<span class="pagenum">[105]</span>
+apetite desenganado, entre o trabalhar,
+repito, canta, ou traz o espirito a monte, a sabor de suas
+chym&eacute;ras (que tambem as tem como qualquer outro); e
+&eacute; este o mais invejavel privilegio do trabalho corporal,
+sobre tudo do que tem por materia prima a terra: n&atilde;o
+captivar sen&atilde;o os bra&ccedil;os; cavando,
+podando, ceifando, se podem, sem prejuiso da obra, estar armando
+doiradas torres no ar, ou conversar rasgado e rir com os companheiros,
+ou cevar em silencio a tristeza que se ama, ou a alegria que se
+esconde.<br />
+
+<br />
+
+Este <em>deus in nobis</em>, unica das
+divindades campestres em que se pode crer, perguntae se n&atilde;o
+ser&aacute; para muitas invejas aos taciturnos enxames que pejam
+escrit&oacute;rios e secretar&iacute;as; perguntae-o a quasi
+todos os que remam &aacute; consciencia o seu remo na
+gal&eacute; baloi&ccedil;osa do Estado. &iquest;Quem mais
+livre?<br />
+
+<br />
+
+Posto o sol, pregoadas as treguas das lidas pelo sino das Ave-Marias, o
+meu rustico se recolhe, sem golilhas de seda no pesco&ccedil;o,
+para folgar entre eguaes, em quanto a ceia bem mercada se lhe acaba de
+coser ao lume que o aquece. N&atilde;o tem de ir fazer sala a
+ninguem; respira a peito cheio; n&atilde;o ha que ciar se de mulher
+e filhas, que
+n&atilde;o d&aacute; a terra operas nem bailes; filhas e mulher
+&aacute; roda lhe ser&ocirc;am, t&atilde;o satisfeitas como
+elle. N&atilde;o se levanta ali jogo, que, por
+tenta&ccedil;&atilde;o ou falso pondonor, o obrigue a
+p&ocirc;r n'uma carta o casal, a vergonha, e mais a vida.
+N&atilde;o o compellem a ajudar com desatinos seus os alvitristas
+regedores do mundo em s&ecirc;cco; nem mesmo a ouvir ler, n'uma
+coisa mal-cheirosa chamada periodico (especie de cogumellos
+<span class="pagenum">[106]</span>
+da Imprensa, em que entre os
+n&atilde;o mal&eacute;ficos tantos ha de sapo), o artigo
+famoso, no qual, sem qu&ecirc; nem para qu&ecirc;, lhe levantam
+falsos testemunhos para entretenimento de vadios na hora do chylo. Quem
+n&atilde;o tem com que incite invejas, seguro est&aacute; de
+vis praguentos. &iquest;Quem, finalmente, mais livre?<br />
+
+<br />
+
+Deita-se em cama barata, mas de bons sonhos, com as janellas e portas
+destrancadas, sem medo a malfeitores, que, sobre n&atilde;o
+creal-os o sitio, nada reluz na poisada que os attr&aacute;ia.<br />
+
+<br />
+
+Entretanto lhe v&atilde;o caladamente amadurecendo os
+p&atilde;es para a tulha, o vinho para a adega, o azeite e os
+frutos para a dispensa, a hortali&ccedil;a para a panellinha de
+barro, as filhas para o casamento, os rapazes para lhe pagarem na
+velhice a divida da infancia, e elle e sua mulher para o Ceo, onde
+cr&ecirc;em de f&eacute; que os est&atilde;o seus parentes
+esperando.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Ent&atilde;o, ser&aacute;, ou n&atilde;o
+ser&aacute;, este um viver dez vezes mais livre e afortunado que o
+nosso? Pois n&atilde;o disse eu d'elle tudo que poderia, nem o
+direi, ainda que j&aacute; talvez me hajam de arguir de prolixo,
+que n&atilde;o deixei na mat&eacute;ria udo nem
+miudo; &iexcl;como se miudos houvera no que s&atilde;o
+condi&ccedil;&otilde;es de boa
+ventura!<br />
+
+<br />
+
+Se n'isto me dilatei (e confesso que sim) um tanto fora do meu
+proposito, foi por ver se dava uma aldrabada de mansinho ao
+cora&ccedil;&atilde;o de alguns d'estes, que vivem na
+C&ocirc;rte por fadario, por vezo, ou por inercia, sempre
+mal-contentes, pesarosos, abetumados; possuindo, ou podendo, se uma
+hora olhassem
+<span class="pagenum">[107]</span>
+por si, adquirir, sem
+nenhuma difficuldade, o que eu, e outros taes, t&atilde;o
+baldadamente supplicamos &aacute; fortuna: uma vivenda campestre,
+uma existencia natural, serena, commoda, florescente, risonha para a
+pessoa, dadivosa e exemplar para os visinhos, manancial de riqueza
+privada e publica, abonadora de bons costumes, e de afortunada
+descendencia; uma existencia, em summa, que, a de mais de retemperar
+corpo, animo, e cora&ccedil;&atilde;o, para se n'ella
+saborearem,
+at&eacute; aos renunciados praseres da Cidade refina o gosto,
+quando por acaso, de longe a longe, e de passagem, se volve a elles.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Toda a gente, e os abhorridos mais que todos, deveriam ler e meditar o
+medicinalissimo <em>Livro da Solid&atilde;o</em> do
+<a name="n13"></a>Doutor Zimmermann. Aprenderiam a
+perder-lhe o medo e ganhar-lhe amor, a
+embellezarem-se n'ella, a serem e a fazerem venturosos, quanto
+&eacute; dado havel-os n'este mundo t&atilde;o instavel,
+t&atilde;o fugidio, t&atilde;o calabreado de bens e males.<br />
+
+<br />
+
+O homem na sociedade &eacute; um instrumento, que se gasta e quebra
+servindo; na solid&atilde;o &eacute; um homem. Na sociedade,
+&eacute; uma
+part&iacute;cula irresistivelmente arrebatada n'um redemoinho; na
+solid&atilde;o um todo quieto.<br />
+
+<br />
+
+Puericia, edade de oiro da vida, n&atilde;o torna jamais por onde
+uma vez passou; mas na solid&atilde;o se esconde ainda uma sombra
+d'ella; porque o homem, redimido dos cepos do mundo, e f&ocirc;rro
+das humanas tirannias, se faz em algum modo semelhante &aacute;
+crean&ccedil;a;
+<span class="pagenum">[108]</span>
+readquire
+o que quer que seja da sua innocencia, da sua simplicidade, dos seus
+gostos, dos seus brincos.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem se lembraria de p&ocirc;r um barco de
+corti&ccedil;a (ainda que de seu natural tivesse o ousal-o) n'um
+tanque do <a name="n14"></a>Passeio publico,
+cercado dos fumantes do Marrare, e dos
+collaboradores dos periodicos? &iquest;quem o ousaria, mas que
+fosse para entreter a seus filhinhos? E no campo, uma pessoa,
+at&eacute; s&oacute; para si, faz d'isso; e mais se encanta em
+o fazer, que um rica&ccedil;o em torrear palacios.<br />
+
+<br />
+
+Em quanto d&aacute; tempo aos passaros para irem picar no
+c&ecirc;vo das armadilhas que lhes andou dispondo, edifica
+&aacute; borda de um arroio uma azenha de dois palmos, com seu
+rodizio de canna a espadanar. S&oacute; no v&ecirc;l-o voltear,
+respingando alj&ocirc;fares pelos ares, tem entretenimento para
+horas.<br />
+
+<br />
+
+Alevanta ao p&eacute; uns pa&ccedil;os nobres, que se encheriam
+com a familia de um coelho, estira-se a espreitar para dentro da relva,
+como Werther e Hugo se embebem nas maravilhas d'aquellas selvas e
+reinos de anim&aacute;lculos, em que s&oacute; o mancebinho
+muito pequeno, ou o muito grande homem, se poderiam enlevar.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;A solid&atilde;o! &iexcl;a solid&atilde;o!...
+provae-a, sequer, affligidos do mundo, e pregoareis d'ella o que eu me
+n&atilde;o affoito a encarecer-vos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Um s&oacute; achaque hei-de eu imp&ocirc;r &aacute; boa da
+solid&atilde;o, &aacute; gentil namorada de Rousseau, de
+Petrarca, e de todos os espiritos grandiosos;
+<span class="pagenum">[109]</span>
+e vem a ser: que, pois nos descalleja o
+cora&ccedil;&atilde;o, banhado nas suavidades da m&atilde;e
+Natureza, e para a sensibilidade nos ajunta o que do egoismo nos
+detrai, assim nos deixa mais expostos ao pungir de alheias penas,
+quando n&atilde;o as podemos extirpar. No ermo ress&ocirc;am
+mais alto os gemidos, como na calada da noite se d&atilde;o a ouvir
+mais claras as vozes.<br />
+
+<br />
+
+Quizera-se, ao ver a penuria de muita casa, o escasso de muita
+colheita, o mal roupido de innocentinhos, o desagasalho de velhos
+enfermos, quizera-se ter m&atilde;os de Midas para acudir a tudo
+aquillo; e o cora&ccedil;&atilde;o, que n&atilde;o tem para
+dar sen&atilde;o suspiros, no fundo do peito se confrange todo, e
+se espeda&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Cada uma d'aquellas curas dependeria de t&atilde;o
+pouco! &iexcl;ser&iacute;a t&atilde;o
+festejada! &iexcl;tantos effeitos afortunados produziria!
+&iexcl;deixaria, por cor&ocirc;a de beneficios, t&atilde;o
+sinceros, t&atilde;o
+duradoiros agradecimentos!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Numerosas, numerosissimas, s&atilde;o as coisas das cidades, que
+d'aquellas alturas se n&atilde;o percebem; mas a que menos de todas
+se perceb&ecirc;ra &eacute; o cora&ccedil;&atilde;o
+metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus
+ouvidos que s&oacute; vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
+terrestre, e ferrolham-n-a a sete
+chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, c
+Numerosas, numerosissimas, s&atilde;o as coisas das cidades, que
+d'aquellas alturas se n&atilde;o percebem; mas a que menos de todas
+se perceb&ecirc;ra &eacute; o cora&ccedil;&atilde;o
+metallico dos Cresos, os seus olhos diamantinos sempre enxutos, os seus
+ouvidos que s&oacute; vibram ao som do oiro. Possuem a omnipotencia
+terrestre, e ferrolham-n-a a sete
+chaves. Podiam ser adorados como deuses propicios, conquistar a unica
+invejavel gloria, emendando os erros
+<span class="pagenum">[110]</span>
+da fortuna, espargindo felicidade, e felicidade enthesoirando.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o sim, que haveria que se lhes invejar.<br />
+
+<br />
+
+D&ocirc;r d'alma &eacute;, na verdade, n&atilde;o poder
+homem na solid&atilde;o pagar por estes, e por si mesmo, dividas
+grandes e urgentes da Humanidade. Entretanto, l&aacute; estende os
+bra&ccedil;os valedores at&eacute; onde lhe &eacute; dado.
+Onde
+n&atilde;o chega a remediar com obras, ajuda com o bom conselho,
+com as recommendac&otilde;es poderosas, com as
+esperan&ccedil;as, com a presen&ccedil;a, com a
+unc&ccedil;&atilde;o da palavra amigavel, com o deixar correr
+sobre a ferida o balsamico das lagrimas. Assim, se ter&aacute;
+sempre que dar; sempre, em quanto houver no proximo trabalhos, e no
+seio cora&ccedil;&atilde;o.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXII</h4>
+
+<br />
+
+Isto presenciei eu:<br />
+
+<br />
+
+O espiritual Pastor do rebanho de S. Mamede do Monte, de quem natural
+pejo me veda transladar louvores, que por l&aacute; se
+l&ecirc;em em todos os peitos, contava entre as primeiras de suas
+ditas a beneficencia, que n&atilde;o p&aacute;ra onde se lhe
+exhauriu a bolsa; que, depois de dar a capa, como o Santo Bispo
+Martinho, e a coberta, como Frei Bartholomeu dos Martyres, tem ainda
+para dar a pessoa, como S. Vicente de Paulo.<br />
+
+<br />
+
+Era para ver (se elle n&atilde;o pos&eacute;ra tanto em
+recatal-a) a alacridade, a s&ocirc;ffrega alacridade, com que ia
+levar aqui um p&atilde;o, que se devorava como vida que em
+realidade era, ali o remedio para a doen&ccedil;a; aos mal avindos,
+a
+<span class="pagenum">[111]</span>
+reconcilia&ccedil;&atilde;o;
+ao ocioso, o convite para
+trabalho; ao orphanado, a paciencia; ao errado, a luz para atinar
+com a senda, e o bord&atilde;o para a seguir; ao moribundo, o
+conforto e a alegria; a todos a moeda aurea, cunhada de uma banda com a
+effigie do cora&ccedil;&atilde;o, da outra com a da Cruz
+florida; a moeda riquissima, que por nenhuma outra se
+camb&iacute;a; o affecto
+fraternal.<br />
+
+<br />
+
+Ali, sim, que &eacute; o ser Parocho.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh officio divinamente instituido, como te h&atilde;o
+degenerado annos frios de descren&ccedil;a e desamor!
+&iexcl;Com que maravilhoso la&ccedil;o
+n&atilde;o cifravas o que de mais nobre, o que de mais amavel, se
+abrange nas ideias da eternidade e nas do mundo!<br />
+
+<br />
+
+O rei dos sacrificios era ao mesmo tempo o servo dos indigentes. Vaso
+de elei&ccedil;&atilde;o, elle diffundia ao povo ajoelhado os
+mysterios, os preceitos, os exemplos, as amea&ccedil;as, os
+an&aacute;themas,
+as absolvi&ccedil;&otilde;es, os confortos, e os jubilos. Todos
+os destinos terrestres se formavam, ou passavam, &aacute; sombra
+d'elle.<br />
+
+<br />
+
+Entrados &aacute; vida, encontravamol-o, resplandecente de
+F&eacute;, &aacute; nossa espera diante da fonte da
+Gra&ccedil;a, para n'ella, com a bocca cheia de riso, nos
+purificar.<br />
+
+<br />
+
+Arribados &aacute; edade da ras&atilde;o e dos delirios,
+tornavamol-o a achar na piscina da penitencia para nos restituir, com
+eloquencia affectiva de Ap&oacute;stolo, a foragida paz do
+interior.<br />
+
+<br />
+
+No consorcio, eram as suas m&atilde;os castas as que nos
+entregavam, com ben&ccedil;&atilde;os d'alma e sincera
+prophecia, a m&atilde;o tremente da futura m&atilde;e de nossos
+filhos.<br />
+
+<br />
+
+Nas calamidades publicas, era a sua voz
+<span class="pagenum">[112]</span>
+supplice e crente, e afogada em lagrimas, a que levava, como guia
+segura, o c&ocirc;ro de todas as nossas &aacute;
+presen&ccedil;a do Senhor da Natureza.<br />
+
+<br />
+
+Em nossas dissens&otilde;es domesticas, elle o Anjo da
+concordancia, que primeiro apparecia.<br />
+
+<br />
+
+Nas nossas qu&eacute;das, elle o primeiro bra&ccedil;o que nos
+al&ccedil;ava.<br />
+
+<br />
+
+Nas tribula&ccedil;&otilde;es, elle o nosso mais previsto
+conselheiro.<br />
+
+<br />
+
+Na enfermidade, elle o medico gratuito e n&atilde;o chamado.<br />
+
+<br />
+
+Na agra hora da partida, elle o que nos apercebia para a alma confusa e
+aterrada o p&atilde;o, o oleo, e o fardel das esperan&ccedil;as
+para o caminho.<br />
+
+<br />
+
+Elle o que ainda nos seguia, depois que j&aacute; todos os outros
+medicos iam longe, e at&eacute; nossos paes e nossos filhos nos
+deixavam s&oacute;s. Com preces fervorosas nos acompanhava,
+at&eacute; que a terra nos submergisse; e ainda ent&atilde;o
+nos n&atilde;o largava, sen&atilde;o para ir
+instaurar novas preces por n&oacute;s sobre os altares.<br />
+
+<br />
+
+Solitario na sua vivenda, elle tinha por familia o seu rebanho, com
+quem, por quem, e para quem, vivia; sempre lhano, sempre dadivoso da
+sua pobreza, sempre paschoas-flor&iacute;das para grandes e
+pequenos,
+s&oacute; temido dos maus, ainda que tambem d'esses respeitado.<br />
+
+<br />
+
+Se carecia de prog&eacute;nie, se n&atilde;o tinha uma esposa,
+elle, que t&atilde;o amenos quadros do casamento sabia apresentar
+aos noivos ao recebel-os, contava por irm&atilde;os e filhos todos
+os seus parochianos; tinha o seu th&aacute;lamo de oiro
+<span class="pagenum">[113]</span>
+a aguardal-o no paraizo,
+regi&atilde;o que todos os dias entrevia atrav&eacute;z das
+folhas do seu brevi&aacute;rio; e, se ainda no
+cora&ccedil;&atilde;o lhe
+podia alguma ternura sobejar, tinha a sua egreja, que elle amava como
+esposa; em quem se rev&iacute;a; que se recreava em ataviar, em
+enriquecer, em lhe adquirir galas de roupas, de sedas, de joias, de
+flores, de perfumes; em cujas festas se remo&ccedil;ava; em cujos
+canticos se desvanecia de misturar a sua voz.<br />
+
+<br />
+
+No seu sacerdocio se acreditava a pleno, porque elle mesmo acreditava
+tambem. Se, perante a ara santa a F&eacute; via n'elle um
+representante da Divindade, nenhum lance da sua vida desdizia esse
+caracter augusto e sobrehumano.<br />
+
+<br />
+
+A hora em que elle expirava, hora de consterna&ccedil;&atilde;o
+e alaridos para todo um povo, era a unica, talvez, em que pelos
+espiritos fuzilavam alguns relampagos de duvidas sobre a
+justi&ccedil;a e a misericordia do ENTE SUPREMO; duvidas, que a
+bocca do velho emmudecida, que a reprehens&atilde;o dos seus olhos
+fechados, j&aacute; n&atilde;o podia fulminar, mas que a sua
+presen&ccedil;a, mal chegavam a beijar-lhe os p&eacute;s como a
+bemaventurado, promptamente desvanec&igrave;a. Bem se adivinhava,
+ao olhal-o, que a sua morte n&atilde;o era mais que somno; e bem se
+entendia como, ao cabo de t&atilde;o prolixo, de t&atilde;o
+zeloso trabalhar, era ras&atilde;o colher descan&ccedil;o e
+premio, como s&oacute; l&aacute; em cima os pode haver.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Taes eram, pelo commum, pastor e grei, nas eras cheias e
+prosp&eacute;rrimas da Christandade.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[114]</span>
+De taes greis, e taes pastores, ainda hoje ha, mas raro; mas
+t&atilde;o raro, que a dedo se apontam; e ainda se n&atilde;o
+h&atilde;o-de crer, se
+n&atilde;o f&ocirc;rem vistos bem por miudo, e contrasteados
+bem de espa&ccedil;o.<br />
+
+<br />
+
+De ninguem &eacute; a culpa, sendo de todos a desgra&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o; de ninguem &eacute; a culpa. O genero humano curte
+sempre algum achaque principal; e quasi sempre maleitas. Passou-lhe a
+febre da supersti&ccedil;&atilde;o; est&aacute; agora no
+frio da incredulidade &iquest;Que lhe ha-de fazer? jazer-se com
+elle, at&eacute; que do alto lhe venha o remedio.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Existe um phantasma de altar, um phantasma de sacerdocio, um phantasma
+de vulgo fiel, um phantasma de culto; mas de F&eacute; intrinzeca,
+nem um phantasma.<br />
+
+<br />
+
+A pseudo-philosophia, de que a mean classe engafec&ecirc;ra,
+pegou-se d'ella, pelo contacto, primeiro &aacute; superior, depois
+&aacute; infima.<br />
+
+<br />
+
+Ha doen&ccedil;as que teem os seus periodos determinados; esta
+entra na conta.<br />
+
+<br />
+
+A classe que primeira a padeceu, por primeira e por mais illustrada
+j&aacute; quer ir convalescendo; j&aacute; convalesce em muitas
+partes, se em nenhuma se acha ainda san; mas a que mais tarde cahiu,
+por isso mesmo, e por ser a mais rude e numerosa, labora no auge da
+enfermidade, e ainda muito longe (segundo todos os sympt&ocirc;mas)
+de se restaurar.<br />
+
+<br />
+
+Hoje o materialismo &eacute; especialmente plebeu.<br />
+
+<br />
+
+Dos cumes da ordem social podia-se ir desferindo
+<span class="pagenum">[115]</span>
+a raio e raio, e descendo manso e
+manso, a luz, que adelga&ccedil;asse, que por derradeiro
+desfizesse, essas trevas humidas e frias, que nada criam, e afogam
+tudo.<br />
+
+<br />
+
+Mas nem de l&aacute; baixa, porque por l&aacute; faz ainda
+noite, nem se derrama da Imprensa, de que a mean classe &eacute;
+representante.<br />
+
+<br />
+
+O Poder, fingindo <em>proteger</em>, apenas
+<em>tolera</em> os escassos restos da cren&ccedil;a. Se
+alguma vez lhes d&aacute; considera&ccedil;&atilde;o,
+&eacute;
+quando se lhe ant&oacute;lha que os poder&aacute; empregar, por
+material, para obras politicas a seu modo.<br />
+
+<br />
+
+A Literatura, ou por especula&ccedil;&atilde;o de popularidade,
+ou por extravagancia de muito joven, ou porque o seculo XVIII do
+&laquo;Paiz modelo&raquo; s&oacute; poude chegar
+c&aacute; no XIX; a Literatura, figurando tributar a sua homenagem
+&aacute; unica Religi&atilde;o civilisadora, t&atilde;o
+decepada e desgeitosa se av&eacute;m, que, por entre as suas
+expremidas lagrimas de compunc&ccedil;&atilde;o, se lhe
+est&aacute; vendo voltear por dentro dos labios o seu lembrado
+sorriso de septicismo.<br />
+
+<br />
+
+A sua religiosidade &eacute; um c&aacute;lculo;
+&iexcl;grande mal! &eacute; um c&aacute;lculo transparente;
+&iexcl;mal
+ainda muito mais funesto!<br />
+
+<br />
+
+Reconhece-se que, se de alguma coisa est&aacute; convencida,
+n&atilde;o &eacute; da verdade real e absoluta que diz, mas da
+utilidade (ou necessidade) de que seus ouvintes a acreditem.
+<br />
+
+<br />
+
+Forceja para reaccender na ara um pouco de lume santo, que allumie e
+aque&ccedil;a; aconselha que se lhe cheguem; mas ella fica fria e
+&aacute;s escuras por de traz da nave, olhando com ar sobranceiro
+para a turba.<br />
+
+<br />
+
+Nunca dobra tanto o joelho e a cerviz perante &laquo;o <em>Christo</em>&raquo;
+(como lhe ella sempre chama),
+<span class="pagenum">[116]</span>
+que a sua cabe&ccedil;a ennastrada de loiros n&atilde;o
+fique, mais ou menos, sobre-sahindo &aacute; pendida fronte coroada
+de espinhos.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Que poder&aacute; jamais conseguir para verdadeiras
+aleluias da F&eacute; e da Moral, este vaidoso e vanissimo
+apostolado da eloquencia e poesia, que de baixo do falso nome de
+Christianismo preg&ocirc;a d'elle uma, ou outra, ou muitas, paginas
+desconnexas, reformadas, e adulteradas?<br />
+
+<br />
+
+Quanto entre si concordavam as inspira&ccedil;&otilde;es dos
+quatro Evangelistas, tanto discrepam uns dos outros (e n&atilde;o
+raro de si mesmos) os novos evangelhos d'estes missionarios sem
+miss&atilde;o. &Aacute; prima-vista se averigua que lhes
+fallece a convic&ccedil;&atilde;o, a coherencia, a logica, e a
+unidade. &iquest;Quem se ir&aacute;
+ap&oacute;z taes innovadores? Ninguem.<br />
+
+<br />
+
+Pelo contrario: as suas diligencias para reedificar s&oacute;
+valeriam para acabar de destruir, se podesse ser destruida a
+Religi&atilde;o de Jesu-Christo.<br />
+
+<br />
+
+A F&eacute; &eacute; uma obra celeste, que nem a sciencia, nem
+a for&ccedil;a, nem o poder da terra tem a minima
+jurisdic&ccedil;&atilde;o para alterar.<br />
+
+<br />
+
+Ou a F&eacute; toda completa, cabal, absoluta, sem um
+&aacute;tomo de menos, sem um &aacute;tomo de mais... ou
+nenhuma F&eacute;. Fraccional-a, decomp&ocirc;l-a, temperal-a
+cada um para o seu paladar, &eacute; pregar-se o homem
+estupidamente n'uma cruz desbenzida, revirado com a cabe&ccedil;a
+para a terra, e os calcanhares contra o Ceo. Em tal caso o
+indifferentismo, e at&eacute; o atheismo, seria menos descommodo e
+mais logico dobradamente.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[117]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto a Literatura assim acode &aacute; obra de Christo, como o
+poderia fazer n'uma hora de ebriedade o proprio anti-Christo,
+&iquest;como &eacute; que a trata a autoridade mundana?<br />
+
+<br />
+
+Como se f&ocirc;ra obra sua, ou sua propriedade: estende-lhe,
+protectora desdenhosa, a barra do seu terrestre manto sobre a
+cabe&ccedil;a despojada do diadema luminoso, diz-lhe que se apegue,
+para n&atilde;o cahir, ao sceptro que a diante lhe caminha.
+&iexcl;Elle, o Christianismo, elle, que ainda ha pouco roborava os
+thronos com a sua ben&ccedil;&atilde;o, permitte, quasi, que os
+seus inimigos o ludibriem!<br />
+
+<br />
+
+A blasphemia, que vai picar, verme pe&ccedil;onhento, a raiz da
+arvore da vida, d'onde se colhe a moral, a blasphemia pode qualquer
+derramal-a sobre as multid&otilde;es pelo crivo immenso da
+Imprensa, e ficar impune; ou o seu castigo, se por erro lhe cahir o da
+Lei, or&ccedil;ar&aacute; apenas pelo dos crimes leves, e
+indifferentes ao Estado.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+N&atilde;o &eacute; ainda tudo.<br />
+
+<br />
+
+Aos ministros do culto, j&aacute; de si por ventura tibios, como
+filhos e herdeiros de uma edade desfervorosa, sal da terra
+j&aacute; meio derretido, luz do mundo j&aacute;
+morti&ccedil;a, deixam-n-os, ou fazem-n-os enfraquecer-se e
+relaxar-se ainda mais, desautorisando-os, dessangrando-os, infundindo
+os nas temporalidades odiosas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[118]</span>
+Repit&acirc;mol o:
+n&atilde;o &eacute; isto culpa de ninguem, sendo de todos
+desaventura. &Eacute; uma calamidade providencial, que
+l&aacute; se encaminha para fins certamente gloriosos, que
+n&atilde;o podemos enxergar.<br />
+
+<br />
+
+Em Religi&atilde;o, como em Politica, somos n&oacute;s,
+enfatuada gera&ccedil;&atilde;o de hoje,
+mesquinho adub&iacute;o n'um ch&atilde;o semeado, que outros
+h&atilde;o-de ceifar em vindo a quadra.<br />
+
+<br />
+
+Chegar&atilde;o tempos (dil-o o instincto da ras&atilde;o) em
+que os direitos e os deveres tenham egual pezo; em que o bom e merecido
+nome n&atilde;o seja, como pomba timida, empolgado por abutres
+ferozes logo ao abrir o primeiro v&ocirc;o; em que todas as causas
+santas e uteis se conhe&ccedil;am e respeitem; em que nem a
+r&eacute;gia tribu de Jud&aacute; seja, como outr'ora,
+apesinhada pela de Levi, nem a tribu sacerdotal de Levi, como hoje,
+mercen&aacute;ria, captiva, e escrava da de Jud&aacute;.<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o quando o lenho s&ecirc;cco da Cruz, reflorir, e
+frutear (como a vara do Propheta) frutos de suavidade, de concordia, de
+alimento, de for&ccedil;as, de esperan&ccedil;a, e de
+felicidade, de felicidade para abarcar dois mundos, ent&atilde;o os
+pastores, quasi espancados agora pelos seus rebanhos, quasi mendigos, e
+cuja fronte perdeu o sello da elei&ccedil;&atilde;o,
+tornar&atilde;o a assentar ao-p&eacute; da arca
+santa a sua tenda humilde e venerada, n&atilde;o opulenta mas
+dadivosa, tenda pobre e r&ocirc;ta, para que pelas aberturas
+penetrem melhor at&eacute; ao velho os gemidos do mais necessitado
+que elle, e para que os olhos d'elle entrevejam as estrellas.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;como volver&atilde;o a ser bellos os dias
+<span class="pagenum">[119]</span>
+da Egreja acrisolada pelo fogo!
+Mal venha por quem, de imprudente, pretendesse retardal os.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O autor d'este livrinho (que ainda, apesar de tudo, n&atilde;o
+acredita em malignidades gratuitas) apressa-se de inculcar, de
+recommendar aqui, uma verdade, que a sua posi&ccedil;&atilde;o
+d'elles lhes n&atilde;o deixou talvez ainda perceber; verdade
+importante para applica&ccedil;&otilde;es, verdade a cujo
+escurecimento se pode imputar j&aacute; muito e muito damno:<br />
+
+<br />
+
+O officio pastoral tem, ou pode ter, especialmente fora das cidades,
+uma importancia para a felicidade das familias, para o bom regimento e
+prosperidade do Estado, a que nenhuma institui&ccedil;&atilde;o
+humana poderia confrontar a sua.<br />
+
+<br />
+
+Nas cidades &eacute; talvez licito o ignoral-o. O Parocho urbano
+&eacute; quasi um pastor sem rebanho; n&atilde;o conhece as
+ovelhas, nem as ovelhas o conhecem. A ellas, falta-lhes o tempo e a
+vontade para o rodearem; a elle, se para o officio entrou com zelo e
+propositos magnanimos, tudo se lhe veio a acabar com a
+esperan&ccedil;a, e logo a caridade tambem; e a final talvez tambem
+a f&eacute;, mal se inteirou de que todos seus esfor&ccedil;os
+se haviam sempre de quebrar no indifferentismo publico, e de que a sua
+voz, se lograsse vencer o estr&eacute;pito circumfuso,
+s&oacute; serviria para lhe atrahir esc&aacute;rneos e motejos,
+ou de fanatico, ou de tartufo.<br />
+
+<br />
+
+Nas freguesias ruraes, nas mais remotas, nas serranas e
+absc&ocirc;nditas sobre tudo, ainda
+<span class="pagenum">[120]</span>
+n&atilde;o &eacute; totalmente
+assim. &Aacute; entidade
+abstracta <em>Parocho</em> se conserva, no respeito e
+benevolencia dos subd&iacute;tos, um resto da sua antiga majestade,
+da sua
+ben&eacute;fica influencia, das suas altissimas prerogativas.<br />
+
+<br />
+
+Ainda &eacute; um parente proximo e autorisado de todas as casas,
+uma especie de maioral de tribu (como entre os Hebreus do tempo dos
+Patriarchas, e os Arabes do deserto); um juiz de paz insuspeito; um
+magistrado sem appella&ccedil;&atilde;o para as consciencias;
+um censor, n&atilde;o em nome da Lei (como os de Roma),
+por&eacute;m em nome, e com delega&ccedil;&atilde;o,
+e por inspira&ccedil;&atilde;o, do Espirito de Verdade, com
+quem se cr&ecirc; ter commercio no fundo do santuario. Qualquer que
+seja a sua sciencia, &eacute; a ella que se recorre como
+&aacute; principal.<br />
+
+<br />
+
+Tal &eacute;, repito, a entidade
+<em>Parocho</em> em abstracto.<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXIII</h4>
+
+<br />
+
+Isto posto, e acceito por certo, como &eacute;, pergunto: se
+n&atilde;o dever&atilde;o empregar-se as mais incessantes, as
+mais efficazes diligencias, para que o provimento das parochias (das
+rusticas ao menos) recaia sempre em homens de cultivado e provado
+entendimento, de sincera e illustrada F&eacute;, humanos e
+caritativos, desambiciosos, modestos, e de facil e aprasivel trato.<br />
+
+<br />
+
+Ninguem o negar&aacute;, pois s&atilde;o elles as fontes, que,
+segundo sua qualidade, teem de dessedentar e fertilisar, ou de
+esterilisar e consumir, a terra que os rodeia.<br />
+
+<br />
+
+N'estes agros tempos de cont&iacute;nua
+revolu&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[121]</span>
+e peleja, ou
+porque t&atilde;o momentosa
+pondera&ccedil;&atilde;o n&atilde;o occorresse, ou porque a
+vista, de dentro da cidade, n&atilde;o traspassa os muros d'ella,
+ou porque conveniencias pessoaes e eph&eacute;meras, mas urgentes,
+mas gravissimas, tenham feito postergar
+considera&ccedil;&otilde;es de maior utilidade, mas de effeito
+mais tard&iacute;o; as egrejas ruraes, como as urbanas, jazem, pelo
+commum, peor que ao desamparo: entregues, n&atilde;o como egrejas,
+a homens de ora&ccedil;&atilde;o e de esmola, mas, como torres
+e castellos, a alcaides e capit&atilde;es eleitoraes, que no dia do
+conflicto arvorem e defendam o estandarte do seu bando.<br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! que n&atilde;o sem ras&atilde;o se collocou a
+rixosa urna dos suffragios politicos na extranhada mans&atilde;o
+dos serenos suffragios religiosos. A um clero secularisado, competia um
+templo secularisado tambem.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+E n&atilde;o ha aqui arguir esta ou aquella parcialidade;
+&eacute; peccado, que todas ellas peccam; ou, para falar com mais
+justi&ccedil;a, &eacute;
+a&ccedil;oite que Deus mette na m&atilde;o de cada uma, quando
+lhe chega a sua hora de eph&eacute;mero triumpho.<br />
+
+<br />
+
+Se ellas bem considerassem n'isto (suppondo-as a todas, at&eacute;
+&aacute;s mais illusas, como as devemos supp&ocirc;r,
+cordealmente empenhadas na civilisa&ccedil;&atilde;o e no
+progresso), deixariam o uso d'esta arma, que para servir a
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[122]</span>
+O direito mesmo da Guerra, com ser t&atilde;o largo e licencioso,
+nem tudo permitte. &iquest;Porque n&atilde;o ha-de logo, nas
+suas pelejas, a Politica reconhecer limites, onde o Ceo e a
+ras&atilde;o os teem marcado?<br />
+
+<br />
+
+Combatam se os adversarios; mas n&atilde;o
+se envenenem as aguas; e se a desaven&ccedil;a &eacute; entre
+consanguineos, e em solo commum, n&atilde;o cortemos, para aquecer
+o rancho dos nossos soldados, as oliveiras centannarias, que
+j&aacute; deram oleo, sombra, e paz a nossos av&oacute;s, e que
+ainda podem liberalisar o mesmo a nossos netos.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Por que &eacute; trazer aos festins profanos os vasos
+do Templo?<br />
+
+<br />
+
+Se &eacute; chym&eacute;ra a Religi&atilde;o, se Jesus
+n&atilde;o &eacute; em realidade sen&atilde;o &laquo;o
+Christo&raquo;,
+v&atilde;o f&oacute;ra tartuf&iacute;as, que n&atilde;o
+deshonram menos a uma na&ccedil;&atilde;o que a um individuo;
+acabe-se de uma vez com
+<em>supersti&ccedil;&otilde;es</em>
+importunas e dispendiosas.<br />
+
+<br />
+
+Mas se &laquo;o Christo&raquo; foi o Verbo; se o Verbo foi o
+sol; se o sol &eacute; ainda agora a vida do genero humano; se a
+Cruz &eacute; o unico pezo que faz crescer a quem a soffre; se na
+terra n&atilde;o ha luz sen&atilde;o a que vem de cima; se toda
+a nega&ccedil;&atilde;o expira nos labios de quem chega a ouvir
+como se amiudam os anh&eacute;litos do estertor, forcejae, forcejae
+para restituir, &oacute; v&oacute;s que ainda o podeis, ao
+santuario do Deus vivo os unicos sacerdotes que elle conhece, ao Povo
+os unicos or&aacute;culos em que elle pode crer, &aacute;s
+miserias o seu antigo e t&atilde;o amado
+refugio, aos vic&iacute;os e aos crimes o dique onde j&aacute;
+tantas vagas suas rebentaram em flor, e refugiram.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[123]</span>
+&iquest;N&atilde;o &eacute; assaz amplo o thesoiro que
+entre as m&atilde;os tendes de destinos humanos?<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Os exercitos e as armadas, os tribunaes, os governos, todas
+as magistraturas, todos os magisterios, todas as
+exac&ccedil;&otilde;es, todas as
+administra&ccedil;&otilde;es, n&atilde;o vos
+d&atilde;o de sobejo com que pagar ou empenhar amisades, zelos, e
+servi&ccedil;os, sem ser mist&eacute;r que o povo de Deus
+venha, escravo e deshonrado, desde a sua Jerusalem deserta e muda,
+carregar a pedra e a areia para o vosso arco de triumpho?<br />
+
+<br />
+
+Rachel chorosa chora os seus filhos, e n&atilde;o quer consolada
+porque elles n&atilde;o existem para ella. Os moradores de
+Si&atilde;o n&atilde;o ent&ocirc;am os seus inspirados
+canticos, porque os trasladaram para a beira dos rios de Babylonia.
+Ressuscitae para Rachel os seus filhos; reponde em Si&atilde;o os
+seus moradores.<br />
+
+<br />
+
+A voz grande que se ouve em Rama prantear pela noite muda, calar-se-ha.
+A Cidade santa restaurar&aacute; as suas festas.<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o vos arreceeis de que, feriando os levitas, e
+despedindo-os das vossas tendas para a da Arca santa, o exercito da
+vossa parcialidade, qualquer que ella seja, se torne mais fraco.<br />
+
+<br />
+
+Pelo contrario: ent&atilde;o &eacute; que a victoria, filha das
+ben&ccedil;&atilde;os da terra e do Ceo, ha-de poisar para
+sempre, como uma aur&eacute;ola, sobre a hasta do vosso estandarte,
+porque se dir&aacute; de toda a parte: &laquo;Eis ali os
+fortes, os que bastam per si para se defenderem. E
+Pelo contrario: ent&atilde;o &eacute; que a victoria, filha das
+ben&ccedil;&atilde;os da terra e do Ceo, ha-de poisar para
+sempre, como uma aur&eacute;ola, sobre a hasta do vosso estandarte,
+porque se dir&aacute; de toda a parte: &laquo;Eis ali os
+fortes, os que bastam per si para se defenderem. Eis ali os justos, a
+quem o Senhor outorgar&aacute; domina&ccedil;&atilde;o,
+porque elles lhe h&atilde;o
+restituido os sacrificios.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[124]</span>
+<h4>XXIV</h4>
+
+<br />
+
+Mas redescend&acirc;mos o estylo &aacute; lhaneza do nosso
+assumpto.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Logo que na legisla&ccedil;&atilde;o entrar mais
+<em>bom-senso</em> que <em>politica</em>, mais
+realidade que
+fic&ccedil;&atilde;o, mais pensamento de semear que de ceifar,
+mais amor do homem que de homens, o recrutamento e a disciplina da
+milicia sagrada devolver-se-h&atilde;o inteiramente, francamente,
+sem restric&ccedil;&otilde;es mesquinhas e nocivas, das
+m&atilde;os profanas para as dos seus superiores e arbitros
+naturaes: os Prelados.<br />
+
+<br />
+
+O Governo se gloriar&aacute; de haver se desembara&ccedil;ado
+de uma tarefa, de pouca importancia aos olhos mundanos, e todavia cheia
+de incerteza, e de responsabilidade incommensuravel. Gloriar-se-ha
+ainda mais, de haver facultado com a sua
+restitui&ccedil;&atilde;o o incremento da religiosidade; por
+ella o das virtudes domesticas; por ellas, o das virtudes politicas;
+por tudo, o da prosperidade do Estado.<br />
+
+<br />
+
+Quando cada Bispo, maioral responsavel e zeloso de uma profusa grei,
+pod&eacute;r escolher por si mesmo, affei&ccedil;oar de
+espa&ccedil;o, collocar por sua m&atilde;o, os vigias de cada
+um dos seus rebanhos parciaes, &iquest;quem
+duv&iacute;da de que
+ent&atilde;o os desacertos nas ponderadas escolhas
+h&atilde;o-de ser t&atilde;o raros, como os acertos o
+s&atilde;o no actual systema, em que s&atilde;o as
+casualidades, quando n&atilde;o as affei&ccedil;&otilde;es
+ou os interesses, que predominam?<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[125]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Quanto aos Bispos (honra a quem a merece, e justi&ccedil;a a
+todos), as elei&ccedil;&otilde;es do
+poder temporal teem merecido a geral approva&ccedil;&atilde;o;
+teem recahido, pelo commum, em var&otilde;es de mui notoria
+sciencia e prudencia, equidistantes dos dois oppostos fanatismos,
+concertados nos costumes, e zelosos discretamente.<br />
+
+<br />
+
+Gra&ccedil;as, gra&ccedil;as ao poder temporal, que
+j&aacute; deu o primeiro passo, passo de gigante, para a suspirada
+reforma&ccedil;&atilde;o. Agora os restantes h&atilde;o de
+seguir-se, porque
+s&atilde;o consequencia.<br />
+
+<br />
+
+Logo que soube, e quiz, prep&ocirc;r ao
+Episcopado var&otilde;es taes, logo que manifestou ao mundo que
+n'elles a todos os respeitos se fiava, tacitamente se obrigou a lhes
+rep&ocirc;r... (estas suas usurpadas regalias, ia eu dizer, e era
+um erro) estes seus onus, estes cahidos galhos da sua cruz, este
+accrescimo de trabalhos e mortifica&ccedil;&otilde;es, este
+para uma consciencia melindrosa martyrio das horas todas.<br />
+
+<br />
+
+Seriam elles, elles mesmos, os Bispos, os que poderiam furtar os
+hombros a t&atilde;o duro redobramento de carga, se a caridade,
+obrigada nos do seu officio, os n&atilde;o
+for&ccedil;&aacute;ra a beijal-a com lagrimas, tomal-a com
+exulta&ccedil;&atilde;o, e seguir via pelas asperezas do
+Calvario para o Ceo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iquest;E que s&atilde;o em verdade os Parochos, ou antes:
+&iquest;que foram os Parochos desde os antigos seculos da sua
+institui&ccedil;&atilde;o, que foram, se n&atilde;o uns
+coadjutores dos Prelados maiores,
+<span class="pagenum">[126]</span>
+para fazerem chegar at&eacute; aos minimos e mais obscuros
+recantinhos das Dioc&eacute;ses a sua doutrina, a sua caridade, e
+os seus exemplos?<br />
+
+<br />
+
+Pois que os olhos, os ouvidos, os passos, e as m&atilde;os, de um
+s&oacute;, e quasi sempre velho e can&ccedil;ado,
+n&atilde;o podiam alcan&ccedil;ar
+t&atilde;o longe como o seu espirito; medicos de populosos
+hospitaes de almas (e de corpos tambem), n&atilde;o lhes chegando
+as for&ccedil;as para estarem dia e noite a todas as cabeceiras,
+contarem todos os gemidos, ministrarem todos os remedios, estudarem
+todos os symptomas, limparem todos os suores, padecerem em todos e com
+todos, segundo a maravilhosa express&atilde;o do
+Ap&oacute;stolo das gentes; distribuiram em cada
+enfermar&iacute;a quem os supprisse, quem os fizesse sempre estar
+presentes, quem em seu nome, e segundo a sua sciencia, receitasse e
+administrasse, e nos casos duvidosos os fizesse de subito acudir.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Como p&oacute;de portanto, quando militam as mesmas
+ras&otilde;es que presidiram &aacute;
+crea&ccedil;&atilde;o dos Parochos, consentir-se uma praxe, em
+que tudo vai falsificado?<br />
+
+<br />
+
+Dar ao medico, para seus ajudantes, homens escolhidos por homens
+inexpertos e ignaros da sua arte, n&atilde;o pode ser; e
+n&atilde;o ha-de ser sempre; e cabe nos esperar que nem
+continuar&aacute; a ser por muito tempo.<br />
+
+<br />
+
+O Episcopado vai reassumir a sua autoridade imprescriptivel, o
+indispensavel respeito e obediencia dos seus primeiros subditos. Os
+presbyt&eacute;rios civis, hoje de tantos corvos e abutres,
+v&atilde;o ser como essas torrinhas, que se branqueiam e se
+perfumam de
+<span class="pagenum">[127]</span>
+incenso para morada de
+pombas. As parochias reverdecer&atilde;o: e florescer&atilde;o,
+at&eacute; ao possivel auge, em crean&ccedil;as innocentes e
+instruidas, em adultos pios e laboriosos, em mulheres castas e amantes
+do seu lar e dos seus deveres, em velhos pacientes, resignados e
+conselheiros, em s&oacute;lo bem cultivado e bem festivo; e o
+Throno se alegrar&aacute; com os novos reflexos de ventura, que lhe
+vir&atilde;o de cada palmo da terra comprehendida no seu horizonte.
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>XXV</h4>
+
+<br />
+
+N&atilde;o venha agora, no processo d'esta
+santifica&ccedil;&atilde;o, intrometter se o <em>Cardeal-diabo</em>
+do ciume, com m&aacute;scara de amor da Liberdade. Ainda que a
+m&aacute;scara &eacute; de vidro, j&aacute; d'aqui lh'a
+havemos de quebrar nas m&atilde;os, batendo-lhe em cheio com tres
+nomes todos presados: Fran&ccedil;a, Italia, Inglaterra.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&iquest;Que na&ccedil;&atilde;o mais ciosa das suas
+immunidades, que a franceza? &iquest;Que
+na&ccedil;&atilde;o menos para consentir &aacute; Egreja o
+que de jus estricto lhe n&atilde;o compita?<br />
+
+<br />
+
+Nenhuma.<br />
+
+<br />
+
+Ora em Fran&ccedil;a, bem sabemos todos que s&atilde;o
+unicamente os Prelados os que formam o seu Clero. Educam-n-o
+longamente. Instruem-n o copiosamente, por livros n&atilde;o
+escolhidos
+(como entre n&oacute;s) pela Autoridade civil, ainda que (de si se
+entende) sujeitos &aacute; sua inspec&ccedil;&atilde;o.
+Acostumam n-o
+&aacute;s praticas do seu n&atilde;o facil ministerio. Estudam,
+provam, e contraprovam, a aptid&atilde;o e especial
+<span class="pagenum">[128]</span>
+pr&eacute;stimo de cada um. Aproveitam
+s&oacute; os que n'esse crivo pertinazmente bandejado sobrenadaram;
+e outra vez os escolhem &aacute; m&atilde;o, para os irem
+repartindo pelas Parochias do modo que mais aproveitem; pois de ver
+est&aacute;, que, differindo em indole e circumstancias as
+povoa&ccedil;&otilde;es como os individuos, tal individuo, que
+em tal povoa&ccedil;&atilde;o
+quadrar&aacute; &aacute; justa, a afortunar&aacute;
+afortunando-se; n'outra, que menos lhe molde, valer&aacute; menos,
+trabalhando e padecendo mais.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+O exemplo da Italia, tenho eu que ainda ap&eacute;rta melhor;
+porque, se l&aacute; os Bispos
+s&atilde;o independentes, como em Fran&ccedil;a, para o
+provimento de suas egrejas, n&atilde;o &eacute; porque em
+m&atilde;os leigas esteja o sceptro do Estado. Ali o Sceptro
+&eacute; Bago juntamente.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Documento, por&eacute;m, sobre todos frisante nos offerece por
+ultimo a Gran Bretanha.<br />
+
+<br />
+
+Ali a Egreja Catholica, sem ser a do Estado, n&atilde;o protegida
+se n&atilde;o tolerada, n&atilde;o acarinhada se n&atilde;o
+temida pelo seu progressivo, cada vez mais rapido, mais assombroso,
+engrandecimento, gosa se, n&atilde;o obstante, por longa e pacifica
+posse, d'este seu n&atilde;o <em>privilegio</em>, se
+n&atilde;o
+<em>direito</em> essencial; e os seus Bispos s&atilde;o
+pelo menos t&atilde;o independentes no tocante &aacute; cura de
+almas dentro de suas Dioc&eacute;ses, como dentro nas suas os
+proprios Bispos protestantes.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[129]</span>
+<h4>XXVI</h4>
+
+<br />
+
+Ora pois: logo que entre n&oacute;s se houver perfeito d'este modo
+a regenera&ccedil;&atilde;o do Clero pelos seus principes
+(unicos legitimos em tudo que ao seu ministerio se refere) cabe esperar
+que a optima parte das nossas popula&ccedil;&otilde;es ruraes
+se ha-de ir tambem insensivelmente regenerando, e que a minha gente de
+S. Mamede do Monte ser&aacute; querida, e comprehendida
+at&eacute; por cortes&atilde;os, quando sahirem a folgar no
+campo algum estio.<br />
+
+<br />
+
+Para ent&atilde;o &eacute; que este livrinho, semelhante aos
+frutos que amadurecem em casa e &aacute;s escuras, ha-de ter para
+mais alguem o sabor que eu j&aacute; lhe tomo.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+Se elle consegue, para al&eacute;m das raias da minha
+expecta&ccedil;&atilde;o, fazer com que um s&oacute;
+captivo da Cidade cobre amor &aacute; vida solit&aacute;ria, ou
+que um unico solit&aacute;rio aprenda a conhecer alguma parte da
+sua encoberta bemaventuran&ccedil;a, j&aacute; n&atilde;o
+trocarei o pobre gosto de o ter escrito, pelos maiores triumphos
+literarios.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM DO PROLOGO</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>Notas de Castilho a este Preambulo</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<h4>NOTA I</h4>
+
+<h3>
+Fontes de estudo</h3>
+
+<br />
+
+Como, durante a minha estada na serra, me n&atilde;o passava pela
+mente que houvesse algum dia de bosquejar esta humilde
+Odyss&ecirc;a dos sitios e gente d'ella, nada trouxe apontado a tal
+respeito. Revolvendo as minhas memorias n&atilde;o escritas, achei
+n'ellas consideraveis lacunas, mormente no tocante &aacute;
+topographia, que eu desejava (quanto dado me fosse) completar. N'esta
+pressa me soccorri &aacute; officiosa amisade do actual Prior de S.
+Mamede da Castanheira, o Rev.<sup>do</sup> Padre Antonio
+Joz&eacute;
+Rodrigues de Campos, a cujo zelo devo o ter podido apresentar menos
+imperfeito o meu painel, em que faltar&aacute; tudo, &aacute;
+excep&ccedil;&atilde;o de verdade nas
+coisas, e nos retratos parecen&ccedil;a.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>NOTA II</h4>
+
+<h3>
+Parochos</h3>
+
+<br />
+
+Na generalidade que estabele&ccedil;o, por muito convencido,
+caber&aacute; fazer algumas gloriosas
+excep&ccedil;&otilde;es; e, sem ir mais longe, o meu Parocho,
+<span class="pagenum">[132]</span>
+n'esta freguesia de Santa
+Isabel<sup><a href="#5">[5]</a></sup>, o
+Rev.<sup>do</sup> Padre Joz&eacute; Jacintho Tavares,
+&eacute;
+var&atilde;o de copiosas Letras, tanto sacras como profanas, de
+s&atilde;os costumes, sobredoirados de indole sociavel e amena, e
+incan&ccedil;avel na caridade. As repara&ccedil;&otilde;es
+e embellezamentos, com que se tem remo&ccedil;ado o templo em que
+elle serve, nada s&atilde;o comparados com os soccorros de
+p&atilde;o, de letras, e de
+instruc&ccedil;&atilde;o christan e civil, que j&aacute;
+come&ccedil;am a disfrutar os indigentes da sua freguesia. Largos
+s&atilde;o ainda os seus projectos; ajude-o a Providencia;
+deixar&aacute; formoso exemplo aos do seu officio, e muita saudade
+filial de mulheres e homens prestaveis, em que elle haver&aacute;
+transformado, pela educa&ccedil;&atilde;o, creancinhas ainda
+hontem desamparadas, e a pique de perdimento. N&atilde;o quiz
+perder este lan&ccedil;o de ajudar com um pequeno brado o clamor da
+gratid&atilde;o popular, que algum dia ha-de ser alto.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM DO PRIMEIRO VOLUME</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<b>Notas:</b><br />
+
+<br />
+
+<a name="1"></a> <sup>[1]</sup> O
+Doutor
+de capello Jos&eacute; Feliciano de Castilho
+Barreto falleceu na Castanheira do Vouga a 6 de Mar&ccedil;o de
+1827, e foi enterrado na capella m&oacute;r da egreja parochial.
+Foram em 6 de Outubro de 1872 transportados os seus restos mortaes para
+o jasigo da sua familia no cemiterio dos Praseres em Lisboa, onde se
+conservam.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os
+Editores</span></div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<a name="2"></a> <sup>[2]</sup> Existe
+ainda este cedro que tem alcan&ccedil;ado
+descommunal corpulencia. Chamam-lhe por l&aacute;
+<em>o cedro do poeta</em>, ou <em>do
+Castilho</em>.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"> <span class="smallcaps">Os
+Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="3"></a> <sup>[3]</sup>
+Ovidio&#8213; <em>Os
+Fastos</em>&#8213;Liv.
+VI.<br />
+
+<br />
+
+<a name="4"></a> <sup>[4]</sup>
+Allus&atilde;o aos amargores da
+redac&ccedil;&atilde;o da <em>Revista Universal
+Lisbonense</em>, minuciosamente narrados <em>nas Memorias
+de Castilho</em>.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Os
+Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="5"></a> <sup>[5]</sup>
+Castilho morava ent&atilde;o na rua de S.
+Mar&ccedil;al.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">
+Os Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="break">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+Sociedade editora </h4>
+
+<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br />
+
+95&#8213;RUA AUGUSTA&#8213;LISBOA</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4> <em>Obras completas de A. F. de Castilho</em></h4>
+
+<h4>
+XX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME II</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 127px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+95, Rua Augusta, 95<br />
+
+1905</h4>
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>
+OBRAS COMPLETAS<br />
+
+DE<br />
+
+ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO</h4>
+
+<h4><br />
+
+VOLUME 20.&ordm;</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>VOLUMES PUBLICADOS:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">I</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Amor
+e melancolia.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">A
+chave do enigma.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Cartas
+de Ecco e Narciso.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 12px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 538px;"> <span class="smallcaps">Felicidade
+pela agricultura</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(1.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">A primavera</span>
+(2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span>&#8213;Aprecia&ccedil;&otilde;es moraes,
+litterarias, e artisticas.</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (2.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">X</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(3.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(4.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(5.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos
+e mortos</span> (6.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e mortos</span>
+(7.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Vivos e
+mortos</span> (8.&ordm;
+vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (1.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (2.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XVIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</span> (3.&ordm; vol.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XIX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td> <span class="smallcaps">O Presbyterio da
+montanha</span>
+(1.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XX</td>
+
+ <td>&#8213;</td>
+
+ <td><span class="smallcaps">O
+Presbyterio da montanha</span>
+(2.&ordm; v.)</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>NO PR&Eacute;LO:</h3>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 41px;">XXI</td>
+
+ <td style="width: 10px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 533px;"> <span class="smallcaps">O Outono.</span></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4><a name="Vol.II"></a>OBRAS COMPLETAS DE A.
+F. DE CASTILHO<br />
+
+Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos</h4>
+
+<h4>
+XX</h4>
+
+<br />
+
+<h1>O Presbyterio<br />
+
+da<br />
+
+Montanha<br />
+
+</h1>
+
+<h3>
+VOLUME II</h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"> <img style="width: 100px; height: 126px;" alt="" src="images/fig02.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+LISBOA<br />
+
+<span class="smallcaps">Empreza da Historia de Portugal</span><br />
+
+<em>Sociedade Editora</em><br />
+
+</h4>
+
+<span style="font-weight: bold;"><br />
+
+</span>
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 49%;"> <span class="smallcaps"> <b>LIVRARIA MODERNA</b></span></td>
+
+ <td style="width: 1px; background-color: rgb(0, 0, 0);" colspan="1" rowspan="2"></td>
+
+ <td> <span class="smallcaps"> <b>TYPOGRAPHIA</b></span></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <b>Rua
+Augusta, 95</b></td>
+
+ <td> <b>45, Rua Ivens, 47</b></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<h4>1905
+</h4>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c1"></a>I </h4>
+
+<h3><br />
+
+A PRIMEIRA NOITE NA SERRA </h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry4 tinyl">... Ibi h&aelig;c
+incondita solus<br />
+
+montibus et silvis studio jactabat inani.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;V&eacute;lo?
+&iquest;Sonho? &iquest;Deliro?!
+&iquest;Em solitario monte,<br />
+
+que se espanta de ver-me, e cuja aust&eacute;ra fronte<br />
+
+nada avistou jamais, no amplissimo horizonte,<br />
+
+de mundo a tumultuar, de cidades a rir...</div>
+
+<div class="poetry">n'este ermo ignaro, frio, mudo...</div>
+
+<div class="poetry1">aqui... (&iquest;deliro?
+&iquest;ou sonho?) aqui meu lar, meu
+tudo!</div>
+
+<div class="poetry">&iexcl;o meu presente e o meu
+porvir! </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Genio invisivel da montanha,<br />
+
+de astros, de sol, o ceo te banha;<br />
+
+o mar de longe te acompanha<br />
+
+no livre cantico sem fim.</div>
+
+<div class="poetry1">Escada de
+Jacob da terra ao firmamento,</div>
+
+<div class="poetry">a
+mans&atilde;o tua &eacute;
+monumento</div>
+
+<div class="poetry1">da potencia, do amor, das glorias
+d'Elo&iuml;m. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Emquanto, em derredor do solio teu
+sublime,<br />
+
+a baixa terra vil que a instavel sorte opprime,<br />
+
+se volve, se transforma, e sua angustia exprime<br />
+
+n'um continuo anhelar, n'um confuso clamor,</div>
+
+<div class="poetry">a variedades sobranceiro</div>
+
+<div class="poetry1">mantens-te qual surgiste, e do cahos
+primeiro,</div>
+
+<div class="poetry">e do diluvio assolador.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[6]</span>
+<div class="poetry">Silencio e paz comtigo habita;<br />
+
+o ermo &eacute; como o eremita;<br />
+
+loucas vaidades n&atilde;o cogita;<br />
+
+ama o seu rustico trajar;</div>
+
+<div class="poetry1">em apparente inercia ama que ferva
+occulto</div>
+
+<div class="poetry">de seus affectos o tumulto,</div>
+
+<div class="poetry1">seus extasis, seus ais, seus gostos,
+seu orar.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Sim, Genio da montanha, Archanjo de
+poesia:<br />
+
+eu creio em ti; eu creio em
+que alma ingenua, pia,<br />
+
+p&oacute;de ouvir de tua harpa a casta
+melodia,<br />
+
+e abrazar-se de amor e endoidecer por ti;</div>
+
+<div class="poetry">sim; mas eu, frivolo, profano,</div>
+
+<div class="poetry1">&aacute; solid&atilde;o
+extranho, affeito ao mundo insano,</div>
+
+<div class="poetry">&iquest;que hei-de esperar?
+&iquest;que tenho aqui? </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Toda a minh'alma se entristece,<br />
+
+e se confrange, e se ennoitece,<br />
+
+ao ver que a sorte lhe destece<br />
+
+de um sopro os aureos sonhos seus.</div>
+
+<div class="poetry1">Sonhava applausos, gloria...
+&iexcl;em desterro desperto!</div>
+
+<div class="poetry">sonhava mundo... &iexcl;acho um
+deserto!</div>
+
+<div class="poetry1">sonhava inda illus&otilde;es...
+&iexcl;e escuto-lhes o adeus! </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N&aacute;ufrago, perco a lyra em
+meio da viagem.<br />
+
+&iexcl;Des&ccedil;o vivo ao sepulcro! &iexcl;Em ti, fatal
+paragem,<br />
+
+quem me resurgir&aacute;? Dos montes a linguagem...<br />
+
+oi&ccedil;o... escuto... medito... e em v&atilde;o quero
+entender</div>
+
+<div class="poetry">&eacute; como
+uns sons de ignota
+fala;</div>
+
+<div class="poetry1">qual &aacute;s penhas o mar, me
+inunda e me resvala,</div>
+
+<div class="poetry">
+sem me abalar, nem me embeber. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Oh!
+&iquest;&aacute;
+minh'alma taciturna<br />
+
+que importa, &oacute; montanha soturna,<br />
+
+que de perfumes sejas urna<br />
+
+da terra erguida sobre o altar?</div>
+
+<span class="pagenum">[7]</span>
+<div class="poetry1">&iquest;que o ceo te ria azul,
+mais amplo e mais de perto,</div>
+
+<div class="poetry">que o sol
+doirado, ao teu deserto</div>
+
+<div class="poetry1">mais cedo suba, e &aacute; tarde
+o
+des&ccedil;a com pesar? </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Vir mais tardia a noite, a aurora vir
+mais cedo,<br />
+
+&iquest;que me
+aproveita? Inerte entre o immovel fraguedo,<br />
+
+s&oacute; ouvindo os
+tuf&otilde;es e os corvos no arvoredo,<br />
+
+bramirei:&#8213;&laquo;&iexcl;Cresce o tempo! &iexcl;oh!
+&iexcl;supplicio cruel!</div>
+
+<div class="poetry">&iexcl;s&atilde;o mais
+pesares,
+mais saudades,</div>
+
+<div class="poetry1">mais estro a arder em v&atilde;o,
+mais
+vis&otilde;es de
+cidades,</div>
+
+<div class="poetry">mais
+tenta&ccedil;&otilde;es a
+dar-me fel!...&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Ai! &iexcl;mundo!
+&iexcl;ai! &iexcl;eccos seductores!<br />
+
+&iexcl;Tanto vate a ceifar
+louvores!...<br />
+
+&iexcl;Tanto
+mo&ccedil;o a
+colher amores!...<br />
+
+&iexcl;Tantos
+loireiros e rosaes!...</div>
+
+<div class="poetry1">E eu n'esta solid&atilde;o a
+torcer-me arraigado,</div>
+
+<div class="poetry">qual roble que geme indignado,</div>
+
+<div class="poetry1">vendo ao
+longe no Oceano os lenhos triumphaes! </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Assim ruge, bald&atilde;o de
+vingativo nume,<br />
+
+esse que a argilla
+outr'ora encheu de ethereo lume;<br />
+
+assim, nos gelos sua, agrilhoado ao
+cume<br />
+
+do cauc&aacute;seo alcantil, seu cadafalso atroz.</div>
+
+<div class="poetry">S&oacute; o abutre de eterna fome,</div>
+
+<div class="poetry1">que o grande
+cora&ccedil;&atilde;o algoz sem fim lhe come,
+</div>
+
+<div class="poetry">responde em ais &aacute; sua voz. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Fenece o dia. &iexcl;Hora jocunda,<br />
+
+que eu tanto amava! &iexcl;hora
+fecunda<br />
+
+dos cantos meus! &iquest;por
+que me
+inunda<br />
+
+nova amargura o
+cora&ccedil;&atilde;o?</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;Sino crepuscular,
+t&ocirc;as fun&eacute;reo dobre?</div>
+
+<div class="poetry">
+a serra em luto se me encobre;</div>
+
+<div class="poetry1">a nocturna mudez duplica a
+solid&atilde;o.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[8]</span>
+<div class="poetry1">Nenhuma luz scintilla; humana voz
+n&atilde;o s&ocirc;a.<br />
+
+De
+estrellas a accender-se o Empyrio se pov&ocirc;a;<br />
+
+tal a fada
+Coimbra, a senhoril Lisboa,<br />
+
+nest'hora a quem as olha, entram no escuro
+a abrir</div>
+
+<div class="poetry">de luzeiros um labyrinto.</div>
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Ceos!
+&iexcl;N&atilde;o oi&ccedil;o eu troar...
+seus coches!... O que sinto</div>
+
+<div class="poetry">&eacute;
+vento em selvas a rugir. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Calae, fugi, ventos agrestes;<br />
+
+sumi-vos, lampadas celestes;<br />
+
+n'um seio a delirios j&aacute;
+prestes<br />
+
+n&atilde;o susciteis mais
+tenta&ccedil;&otilde;es.</div>
+
+<div class="poetry1">Ou antes... aturdi-me, Euros bravos;
+ou antes...</div>
+
+<div class="poetry">v&oacute;s, astros,
+cifras de
+diamantes,</div>
+
+<div class="poetry1">o arcano me aclarae l&aacute;
+d'essas
+regi&otilde;es. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Oh! &iexcl;se
+&aacute; minha raz&atilde;o,
+contradictoria, altiva,<br />
+
+que &aacute;s trevas sente horror, e
+&aacute; clara
+F&eacute; se esquiva,<br />
+
+de v&oacute;s, faroes do Ceo, baixasse a
+cren&ccedil;a viva,<br />
+
+que aos moradores do ermo inspira a vossa
+luz!...</div>
+
+<div class="poetry">&iexcl;se me volvesseis as
+ditosas</div>
+
+<div class="poetry1">esp'ran&ccedil;as que hei
+perdido, alvas, ethereas rosas,</div>
+
+<div class="poetry">com que se enfeita e esconde a
+Cruz!... </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Tornar-se-me-hiam de improviso<br />
+
+a solid&atilde;o, em paraizo;<br />
+
+a magua, em perenne sorriso;<br />
+
+em alto cantico, a mudez;</div>
+
+<div class="poetry1">a mallograda
+lyra, o n&atilde;o colhido loiro,</div>
+
+<div class="poetry">em
+harpa augusta, em palmas d'oiro;</div>
+
+<div class="poetry1">e o monte, solio ent&atilde;o,
+veria o mundo aos p&eacute;s. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Delirios sempre v&atilde;os, fugi
+de um peito enfermo;<br />
+
+tu,
+s&oacute; tu, negra morte, has-de ao meu mal p&ocirc;r
+termo;<br />
+
+ermo para ambi&ccedil;&otilde;es, &eacute; inferno,
+e
+n&atilde;o ermo;<br />
+
+para a humilde piedade &eacute; que elle
+espelha o Ceo.</div>
+
+<span class="pagenum">[9]</span>
+<div class="poetry">Gentis phantasmas de cidades,</div>
+
+<div class="poetry1">vinde, escondei-me o ermo em vossas
+claridades,</div>
+
+<div class="poetry">como um esquife em aureo veo. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Vinde, cercae-me,
+endoidecei-me,<br />
+
+(embora em saudades me eu
+queime)!<br />
+
+O somno, as vigilias enchei-me<br />
+
+da vossa esplendida viz&atilde;o.</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;Val o riso choroso as
+festas da loucura?</div>
+
+<div class="poetry">vinde, guiae-me &aacute;
+sepultura,</div>
+
+<div class="poetry1">crente no amor, na gloria, e rindo
+&aacute; solid&atilde;o. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Eu blasphemo, eu desvairo!
+Aos encontrados votos,<br />
+
+nem ecco
+respondeu n'estes cov&otilde;es ignotos.<br />
+
+N&atilde;o, cumes
+glaciaes, t&atilde;o outros, t&atilde;o
+remotos<br />
+
+dos sitios que eu amava, e em que esperei morrer;</div>
+
+<div class="poetry">n&atilde;o, no silvestre seio
+vosso,</div>
+
+<div class="poetry1">nem de amenas
+fic&ccedil;&otilde;es apascentar-me posso,</div>
+
+<div class="poetry">nem menos as posso esquecer. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+&iexcl;Valor! &iexcl;valor!
+&iquest;Quem do futuro<br />
+
+sondou jamais
+o abysmo escuro?<br />
+
+&iexcl;Apenas chego
+e j&aacute;
+murmuro!<br />
+
+&iquest;O de que tremo
+acaso sei?</div>
+
+<div class="poetry1">Esperemos: talvez que inglorios, mas
+doirados,</div>
+
+<div class="poetry">aqui me aguardem, recatados,</div>
+
+<div class="poetry1">dias de
+estro e de paz, quaes nunca disfrutei.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Se al&eacute;m, no presbyterio,
+humillima choupana,<br />
+
+(Vaticano, e
+Queluz da pobre grei serrana)<br />
+
+mais que fraterno amor
+soll&iacute;cito se afana<br />
+
+em me af&ocirc;far o ninho, a vida em
+me inflorar;</div>
+
+<div class="poetry">se n'um retiro verde e
+mudo,</div>
+
+<div class="poetry1">por elle tenho o leito, a mesa, o
+doce estudo,</div>
+
+<div class="poetry">sombras no estio, o inverno ao lar;</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[10]</span>
+<div class="poetry">se a solid&atilde;o
+que me
+apavora,<br />
+
+s&oacute;mente o
+f&ocirc;r vista
+de f&oacute;ra;<br />
+
+se em seus
+rec&ocirc;ncavos demora<br />
+
+gente feliz,
+povo de irm&atilde;os;</div>
+
+<div class="poetry1">se do antigo viver, das
+cren&ccedil;as
+de outra edade, </div>
+
+<div class="poetry">vestigios guarda a
+soledade;</div>
+
+<div class="poetry1">se poesia se vive entre estes
+alde&atilde;os; </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">se a alegria, serena, isenta de
+pesares,<br />
+
+como a fresca saude, habita os
+puros ares;<br />
+
+se em toda a parte ha Deus, em c&eacute;os, em terra, e
+mares,<br />
+
+se Deus em toda a parte &aacute; Natureza ri...</div>
+
+<div class="poetry">cora&ccedil;&atilde;o meu,
+n&atilde;o desanimes,</div>
+
+<div class="poetry1">gozos que n&atilde;o
+prev&ecirc;s, e
+cantos mais sublimes,</div>
+
+<div class="poetry">encontrar&aacute;s talvez aqui. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">&iexcl;Ah! sendo assim,
+&iexcl;que importa a fama!<br />
+
+Tambem
+philom&eacute;la derrama<br />
+
+sua
+harmonia &aacute;s selvas que
+ama<br />
+
+longe de ouvintes e do sol.</div>
+
+<div class="poetry1">Cantarei. &iquest;Meu cantar mais
+ambi&ccedil;&otilde;es
+teria</div>
+
+<div class="poetry">que a viva, a lustrosa poesia,</div>
+
+<div class="poetry1">de
+perolas que a flux borb&oacute;ta o rouxinol?<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div class="poetry">Castanheira do Vouga </div>
+
+<div class="poetry3">Outubro de 1826.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[11]</span>
+<h4><a name="c2"></a>II</h4>
+
+<br />
+
+<h3>O SEPULCRO<br />
+
+OU<br />
+
+HISTORIA DE UMA NOITE DE SAN JO&Atilde;O<br />
+
+(POEMA) </h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<h4>INTRODUC&Ccedil;&Atilde;O<br />
+
+(QUE &Eacute; MELHOR DORMIR, QUE
+LER) </h4>
+
+<br />
+
+<div class="intro">(Ermo alpestre entre cabe&ccedil;os
+de rocha e pinheiros, na
+serra
+do Caramulo. &Eacute; noite escura como breu. O autor e um
+arrieiro, ambos a cavallo, transviados na montanha.)</div>
+
+<br />
+
+<h4>I </h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;Bem lh'o disse eu, perdemos o
+caminho;<br />
+
+a velha era por
+for&ccedil;a alguma bruxa.<br />
+
+Logo eu zanguei co'a cara e mais co'a
+touca!<br />
+
+&#8213;Bom; a pobre mulher (&iquest;que mais querias?)<br />
+
+tres vezes
+t'o ensinou.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Nem trinta vezes</div>
+
+<div class="poetry1">que eu passasse por elle, o
+aprenderia;<br />
+
+a
+n&atilde;o ser pelo rasto que deixasse<br />
+
+esmurrando o nariz por essas
+lapas.<br />
+
+J&aacute; levo sem ferrage ambas as mulas;<br />
+
+perdeu-se o
+norte; n&atilde;o descubro casa,<br />
+
+nem gente, nem caminho, e
+&eacute; quasi noite.
+</div>
+
+<span class="pagenum">[12]</span>
+<div class="poetry1">Patr&atilde;o, por meia legua
+mais ou menos,<br />
+
+n&atilde;o se
+deixa uma estrada como aquella,<br />
+
+que costeava o monte &aacute; beira
+da agua.<br />
+
+A velha era uma bruxa, e n&oacute;s dois asnos.<br />
+
+&#8213;Dize um
+que vale dois, mas dois n&atilde;o digas.<br />
+
+Se tom&aacute;mos o
+atalho em vez da estrada,<br />
+
+toda a culpa foi tua; eu n&atilde;o
+queria,<br />
+
+porem teimaste; e eu n&atilde;o me opponho a teimas.<br />
+
+&#8213;Mas
+eu &iquest;por que teimei? &iexcl;pois se a maldita,<br />
+
+com ar de
+santa, e palavrinhas man&ccedil;as,<br />
+
+nos rabiscou co'o pau no
+p&oacute; da estrada<br />
+
+t&atilde;o claramente as idas, as venidas<br />
+
+d'esta serra sem fim, n&atilde;o lhe escapando<br />
+
+lomba, moiteira,
+torcic&oacute;lo ou brenha,<br />
+
+que a mula mesma entenderia o mappa!<br />
+
+&iquest;Quem n&atilde;o cahia em tal? cahiam todos.<br />
+
+E de mais
+&iquest;quem nos diz que aquelles riscos<br />
+
+n&atilde;o tinham
+diabrura ou nigromancia<br />
+
+capazes de encarchar um Santo em carne?<br />
+
+&iquest;E quem me diz a mim que a grenha russa<br />
+
+n&atilde;o vai
+ao p&eacute; de n&oacute;s?
+&iexcl;talvez sentada<br />
+
+na anca da mula!...
+&iexcl;<em>f&uacute;gite</em>,
+demonios!</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Meu Doutor, pelo mundo ha muita coisa;</div>
+
+<div class="poetry1">quem mais
+anda, mais sabe; e eu n&atilde;o sou tolo,<br />
+
+nem creancinha de honte.
+&iexcl;Olha o diabo!<br />
+
+bem digo eu; a azinhaga aqui poz ponto;<br />
+
+caminho... &iexcl;era uma vez! &iexcl;M&aacute; raio a
+parta!<br />
+
+&iquest;que havemos de fazer nestas alturas?<br />
+
+&#8213;Tornarmos
+para traz.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iquest;Por este escuro?</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;quer dar cabo das mulas,
+e
+estoirar-me?<br />
+
+&iexcl;co'um milh&atilde;o de diabos!!...</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Pois fiquemos.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;E as mulas comam terra, como os
+sapos,<br />
+
+e
+n&oacute;s carqueja.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;As noites s&atilde;o bem curtas.</div>
+
+<span class="pagenum">[13]</span>
+<div class="poetry1">&#8213;Se ao menos se avistasse alguma
+venda...<br />
+
+&#8213;Em rompendo a manhan teremos tudo.<br />
+
+Por agora apeemo-nos. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">(<em>Apeiam-se.</em>)</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;No inferno</div>
+
+<div class="poetry1">estoire entre um milh&atilde;o de
+Satanazes<br />
+
+o que
+inventou primeiro andar de noite;<br />
+
+era o maior ladr&atilde;o...
+&iquest;Que bulha &eacute;
+essa?<br />
+
+&#8213;N&atilde;o &eacute; nada; uma pedra que rebola.<br />
+
+&#8213;&iexcl;Que rebola!? &iexcl;e sem m&atilde;o!
+ser&aacute; bonito,<br />
+
+mas nem por isso engra&ccedil;o.
+&iquest;E aquelle bruto<br />
+
+l&aacute; em cima no pinhal, que
+guincha tanto!<br />
+
+&#8213;Algum mocho.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;M&aacute;s balas o atravessem,</div>
+
+<div class="poetry1">e lhe acabem co'a casta antes de
+um'hora;<br />
+
+cuidei que era outra coisa. Eu na taverna<br />
+
+valho por cinco ou
+seis; mas c&aacute; perdido,<br />
+
+e ent&atilde;o de noite, um pisco
+me p&otilde;e medo.<br />
+
+&#8213;Pois dorme.</div>
+
+<div class="poetry3">&#8213;&iquest;O
+qu&ecirc;? &iexcl;dormir! &iexcl;co'a bruxa &aacute;s
+barbas!</div>
+
+<div class="poetry1">s&oacute; se eu f&ocirc;sse
+algum b&ecirc;bado.
+Esta noite<br />
+
+nem pregar olho, nem largar das unhas<br />
+
+dois penedos; e ao
+p&eacute; j&aacute; est&aacute;
+refor&ccedil;o.<br />
+
+&#8213;Golgan, j&aacute; que n&atilde;o foi por
+nossa escolha,<br />
+
+busquemos contentar-nos co'a poisada,<br />
+
+que inda
+n&atilde;o &eacute; t&atilde;o m&aacute; como
+o parece.<br />
+
+&iexcl;Quantos ha menos bem acomodados<br />
+
+por esse mundo
+agora! uns em cadeias,<br />
+
+outros entre ladr&otilde;es,
+n&aacute;ufragos outros,<br />
+
+estes em luto, aquelles em
+doen&ccedil;a.<br />
+
+Bastantes em colx&otilde;es de plumas
+f&ocirc;fas<br />
+
+revolvem entre hollanda, e sedas, e oiro,<br />
+
+cuidados
+tristes, asperos remorsos.<br />
+
+&iexcl;Quantos at&eacute; nas salas
+mais alegres,<br />
+
+entre as luzes, e as muzicas, e as dan&ccedil;as,<br />
+
+mas
+em face de um s&ocirc;ffrego banqueiro,</div>
+
+<span class="pagenum">[14]</span>
+<div class="poetry1">padecem mais que um reo chegando
+&aacute; f&ocirc;rca<br />
+
+N&atilde;o ha mal sem peor; qualquer estado<br />
+
+se se
+compara, &eacute; bom; com cara alegre<br />
+
+suavisam-se os incommodos;
+um fardo<br />
+
+n'um hombro impaciente &eacute; fardo e meio.<br />
+
+Quem
+n&atilde;o soffre um descommodo pequeno<br />
+
+nos grandes morre; um leve
+desagrado<br />
+
+d&aacute; realce ao prazer quando nos volta.<br />
+
+Qualquer
+estado, e pessimo que seja,<br />
+
+tem seu lado risonho; e &eacute; da
+prudencia<br />
+
+d'entre os picos da silva achar a amora.<span style="font-style: italic;"><br />
+
+</span><em>Amen</em>.&#8213;Brava
+o latim; d&aacute;
+ceia e cama.<br />
+
+&#8213;A falta d'esta ceia &eacute; novo adubo<br />
+
+do
+almo&ccedil;o de amanhan; e emquanto &aacute; cama,<br />
+
+&iquest;que outra melhor do que esta em mez de Junho?<br />
+
+Nem paredes
+nem tectos, que nos roubem<br />
+
+a vira&ccedil;&atilde;o da noite
+apoz a calma;<br />
+
+por entre essa quebrada dos penhascos<br />
+
+l&aacute; em
+baixo o mar co'os seus murmurios frescos;<br />
+
+sobre n&oacute;s, e por
+baixo das estrellas,<br />
+
+pendendo como um lustre, este carvalho<br />
+
+cravejado
+de insectos que entre-luzem;<br />
+
+dois rouxinoes ao longe; as lageas,
+mornas.<br />
+
+V&ecirc;; que soberba camara!; que leitos<br />
+
+desde a origem
+dos seculos nos guarda<br />
+
+no seio d'esta brenha a Natureza!<br />
+
+&#8213;Ao menos
+n&atilde;o tem pulgas. &iexcl;X&oacute;,
+canalha!<br />
+
+&iexcl;leva rumor! &eacute; bom pregar de coices.<br />
+
+N&atilde;o durma, S&ocirc;r Doutor.</div>
+
+<div class="poetry2">&#8213;N&atilde;o tarda muito</div>
+
+<div class="poetry1">que eu n&atilde;o entre a sonhar
+&iexcl;Que bellos sonhos<br />
+
+n&atilde;o devem ser os de uma noite
+d'estas!<br />
+
+&#8213;Tenha l&aacute; m&atilde;o com isso; o que eu
+prometto,<br />
+
+para espalhar-lhe o somno, &eacute; uma enfiada<br />
+
+de casos
+que eu passei na minha vida;<br />
+
+t&atilde;o rara, que podia ir
+&aacute;
+<em>Gazeta</em>!</div>
+
+<span class="pagenum">[15]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Uma vez ia eu s&oacute;; era em
+Novembro;<br />
+
+chuviscava e fazia um
+tal escuro<br />
+
+que era metter os dedos pelos olhos.<br />
+
+(Lembrou-me esta a
+proposito da mula<br />
+
+escoicinhar sem causa.) E era bom tempo<br />
+
+aquelle;
+andava Christo pelo mundo;<br />
+
+tinha eu mais duros, que patacos hoje,<br />
+
+e
+andava o oiro aos pontap&eacute;s da gente;<br />
+
+tambem...
+&iexcl;j&aacute; c&aacute; n&atilde;o torna!
+O grande caso<br />
+
+&eacute; que n'aquelle tempo era eu solteiro,<br />
+
+e rapaz
+bonitote; e havia muitas<br />
+
+que me fizessem fogo; eu cuido, e &eacute;
+certo,<br />
+
+que n&atilde;o pelos vintens; nem pela cara;<br />
+
+mas isto de
+casar co'um almocreve,<br />
+
+seja elle o diabo dos infernos,<br />
+
+parece a todas
+bem: &eacute; uma delicia<br />
+
+ter o seu homem s&oacute; de vez em
+quando,<br />
+
+em logar do espi&atilde;o de um pegama&ccedil;o<br />
+
+com
+residencia fixa em ar de abbade.<br />
+
+Mas... n&atilde;o &eacute; bom
+falar na vida alheia.</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Como lhe ia contando, era almocreve;<br />
+
+chamavam-me o <em>Chupista</em>.
+&iexcl;Oh! que bolaxa<br />
+
+que eu pespeguei na cara do co&eacute;cas<br />
+
+que me inventou a alcunha em certa venda!<br />
+
+qualquer crean&ccedil;a
+lhe moia os queixos;<br />
+
+j&aacute; l&aacute; est&aacute; onde o
+pague
+&iquest;Onde ia o ponto?<br />
+
+&iexcl;ah! sim; era almocreve e
+recoveiro;<br />
+
+e andava com dez machos todo o anno<br />
+
+a correr quanto valle e
+monte havia<br />
+
+para cobrar o f&ocirc;ro aos Frades Cruzios.<br />
+
+Que isto
+do f&ocirc;ro &eacute; bom, nem que pare&ccedil;a;</div>
+
+<span class="pagenum">[16]</span>
+<div class="poetry1">uns pagam-lhe borel, outros centeio,<br />
+
+queijos, presuntos, lan, cevada, vinho,<br />
+
+gallinhame por arte do diabo,<br />
+
+ovos, e at&eacute; o musgo onde se empalham.<sup><a href="#6">[1]</a></sup><br />
+
+N&atilde;o ha
+n'um pardieiro um desgra&ccedil;ado<br />
+
+que n&atilde;o deva pagar
+alguma nica.<br />
+
+J&aacute; v&ecirc; donde me vinha a minha alcunha;<br />
+
+mas sem ras&atilde;o; &eacute; porque andava &aacute;s
+ordens.<br />
+
+Tambem j&aacute; tenho ouvido alguns autores,<br />
+
+tal como o
+meu cunhado, e mais uns certos,<br />
+
+que &eacute; coisa bem mal feita a
+tal derri&ccedil;a;<br />
+
+Mas bem feito ou mal feito, eu n&atilde;o
+sou Papa.<br />
+
+Vamos c&aacute; co'o meu conto.</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Era uma noite,</div>
+
+<div class="poetry1">cuido que j&aacute; lh'o disse,
+ali por Maio,<br />
+
+e fazia um luar... que era um consolo.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Eu saio a meu
+av&ocirc;; se &eacute; boa a estrada,</div>
+
+<div class="poetry1">g&oacute;sto de andar
+de noite havendo lua;<br />
+
+c&aacute; pelas brenhas n&atilde;o, que
+n&atilde;o sou
+lobo.<br />
+
+Vinha eu mui fresco em mangas de camisa,<br />
+
+em cima de uma carga de
+presuntos,<br />
+
+pela estrada real, co'os sete machos<br />
+
+a dormitar ao som da
+chocalhada.<br />
+
+Vinhamos caminhando em certo passo<br />
+
+de quem gosta da noite,
+ou vem sem pressa,<br />
+
+ou de quem traz comida a gente farta.</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Que lhe digo, em abono da verdade,<br />
+
+que servir Santa-Cruz
+n&atilde;o d&aacute; desgosto:<br />
+
+pagam bem, fazem festa ao
+gallinheiro,</div>
+
+<span class="pagenum">[17]</span>
+<div class="poetry1">vendo os machos no
+pateo &eacute; uma alegria!...<br />
+
+&iexcl;aquillo at&eacute; os
+olhos se lhes riem!<br />
+
+d&atilde;o pinga, e de cear, e muitas vezes<br />
+
+vi
+eu estar vai n&atilde;o vai a dar-me um beijo<br />
+
+o Frade gordo que
+recebe o saque.<br />
+
+&iexcl;Bom tempo! &iexcl;bom de lei!
+j&aacute;
+c&aacute; n&atilde;o torna.<br />
+
+N&atilde;o durma S&ocirc;r
+Doutor.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;N&atilde;o durmo; acaba.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&iexcl;Acabar! n&atilde;o
+acabo em toda a noite,<br />
+
+nem que estoire a barriga do diabo.<br />
+
+Inda eu
+n&atilde;o comecei. Lembra-me um Frade<br />
+
+que havia em Santarem; tinha
+um cacha&ccedil;o,...<br />
+
+por tal signal que at&eacute; revia
+enxundia;<br />
+
+&iexcl;e era um demo, o maldito, a beber vinho!...<br />
+
+&iexcl;Mas aquillo! a pr&eacute;gar era uma joia;<br />
+
+um
+serm&atilde;osinho d'elle atarantava<br />
+
+e punha tudo azul. Tinha a
+constancia<br />
+
+de arrumar pr&egrave;ga&ccedil;&otilde;es de
+duas horas.<br />
+
+N'um que eu lhe ouvi, depois de falar muito...<br />
+
+(e olhe, foi
+tanto, que eu, e muita gente,<br />
+
+j&aacute; tinhamos dormido
+&aacute; regalada)<br />
+
+disse muito pausado: &laquo;Eu
+principio.&raquo;<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<div class="poetry">Assim fa&ccedil;o eu tambem. Todos
+devemos</div>
+
+<div class="poetry1">tirar das
+pr&egrave;ga&ccedil;&otilde;es algum
+proveito.<br />
+
+Ora pois, n&atilde;o me durma, e ahi vai a historia;<br />
+
+por&eacute;m tenha l&aacute; m&atilde;o, que a levo errada.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Nesse dia &aacute; tardinha, na
+estalage<br />
+
+tinha entrado uma
+velha; era um diabo,<br />
+
+que isso... s&oacute; visto! pequenina, magra,<br />
+
+muito preta; era um bilro de pau santo.<br />
+
+Tinha pela cabe&ccedil;a um
+len&ccedil;o pardo<br />
+
+atado pela barba, um manteo ru&ccedil;o,<br />
+
+e
+uma mantinha exotica e de agoiro.</div>
+
+<span class="pagenum">[18]</span>
+<div class="poetry1">Tinha ent&atilde;o uma cara
+n&atilde;o sei como;<br />
+
+nem parecia
+cara; era um n&oacute; cego<br />
+
+que fazia azoar a toda a gente;<br />
+
+mas
+muito experta; e uns olhos como um bixo.<br />
+
+&iexcl;Tambem aquella rez
+tinha no corpo<br />
+
+muita pipa de sangue de crean&ccedil;as!</div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Cheguei eu &aacute; estalage, e
+ia com fome;<br />
+
+vou-me &aacute;
+carga do f&ocirc;ro, agarro uns ovos,<br />
+
+mando
+os frigir com mel, que &eacute; papa
+fina;<br />
+
+e ent&atilde;o para quem tem de andar de noite<br />
+
+dizem que
+&eacute; bom, que livra do catarro,<br />
+
+j&aacute; se sabe com
+quatro pingarolas.<br />
+
+Ia se preparando o meu
+guizado,<br />
+
+e era um cheiro t&atilde;o bom pela cosinha,<br />
+
+que isso
+n&atilde;o ha dizer. J&aacute; dois gallegos,<br />
+
+e mais, tinham
+ceado; andavam tolos<br />
+
+a cochichar, e &aacute;s voltas pela casa,<br />
+
+um
+olho em mim, outro olho na tigella,<br />
+
+e eu muito concho a rir, e a pescar
+tudo.<br />
+
+Basta dizer que me pediram ambos<br />
+
+que vendesse um
+quinh&atilde;o; &iexcl;e isto em gallegos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Emfim, cheirava bem, e estava d'alma.</div>
+
+<div class="poetry1">Mas o monstro da
+velha era uma estaca<br />
+
+ali muito direita ao p&eacute; dos ovos,<br />
+
+com
+cada olho aberto, &iexcl;que te parto!<br />
+
+Era mesmo um olhar de inveja
+e zanga.<br />
+
+Logo eu tive m&aacute; f&eacute; co'a tal menina<br />
+
+quando ella perguntou quem era o dono.<br />
+
+Por&eacute;m quem mal
+n&atilde;o usa mal n&atilde;o cuida;<br />
+
+sentei-me &aacute;
+meza a codear nos ovos.</div>
+
+<span class="pagenum">[19]</span>
+<div class="poetry1">Ora
+agora o vereis: a minha amiga<br />
+
+am&uacute;a-se n'um canto, mais
+vermelha<br />
+
+que um piment&atilde;o, e eu sempre a observar n'ella.<br />
+
+Ferra os olhos em mim com tal quezilia,<br />
+
+que a n&atilde;o ser por
+temer a Deus e a ella,<br />
+
+batia-lhe co'o prato pelas trombas.<br />
+
+Botava cada
+lagrima... &iexcl;de punho!<br />
+
+dava cada suspiro, a excommungada,<br />
+
+&iexcl;que punha medo! accendo o meu cigarro,<br />
+
+pago, monto a
+cavallo, e sigo a estrada.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Era j&aacute; noite escura, e
+um vento frio</div>
+
+<div class="poetry1">como o gran Satanaz.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+&iquest;Que diabo &eacute; isso?</div>
+
+<div class="poetry1">ressona?; ou j&aacute; na
+costa anda algum moiro?<br />
+
+&#8213;Avante; s&atilde;o as ramas que
+sussurram.<br />
+
+&#8213;Pois deixe-as sussurrar. Vinha eu picando<br />
+
+pela estrada
+real por ser j&aacute; tarde,<br />
+
+e a assobiar s&oacute;sinho o
+<em>tiroliro</em>.<br />
+
+Vai sen&atilde;o quando,
+estacam-se-me as bestas.<br />
+
+&Aacute; esquerda, como ahi, ficava um
+monte;<br />
+
+d'esta banda um pinhal muito fechado;<br />
+
+de sorte que o caminho (e
+ent&atilde;o mui longe<br />
+
+de todo o povoado) era um soturno,<br />
+
+que nem
+Rold&atilde;o o andava &aacute;quellas horas.<br />
+
+Entrei logo a
+suar e a arripiar-me;<br />
+
+e as mulas n'um inferno de pinotes<br />
+
+sem
+qu&ecirc; nem para qu&ecirc;; davam taes rinchos,<br />
+
+que se fundia
+o ch&atilde;o; pregavam coices,<br />
+
+que assoviavam no ar;
+&iexcl;que contradan&ccedil;a!<br />
+
+era uma groza de diabos doidos,<br />
+
+e eu mais doido, no meio, &aacute; bordoada.<sup><a href="#7">[2]</a></sup></div>
+
+<span class="pagenum">[20]</span>
+<div class="poetry1">Aqui
+digo eu como dizia o Frade<br />
+
+n'outro serm&atilde;o de um Santo;
+<em>n&atilde;o lh'o pinto<br />
+
+por n&atilde;o ter um pincel</em>.
+Mas fa&ccedil;a
+ideia<br />
+
+que tal eu ficaria lobrigando<br />
+
+(&iexcl;eu te arrenego diabo!)
+uma luzerna<br />
+
+a ir e a vir, &aacute; roda, e acima e abaixo,<br />
+
+l&aacute; longe no pinhal. Que era bruxedo<br />
+
+tive eu logo de
+f&eacute;; muitos que m'o ouvem<br />
+
+riem-se, e tal; deixal-os rir; ha
+bruxas;<br />
+
+que isso sei eu; &iexcl;e ent&atilde;o ali!
+&iexcl;t&atilde;o tarde!<br />
+
+Por for&ccedil;a era algum sabbado
+l&aacute; d'ellas,<br />
+
+que as taes amigas juntam-se de noite<br />
+
+a fazer os
+seus sabbados, o mesmo<br />
+
+como n&oacute;s no Natal &aacute; meia
+noite...<br />
+
+Ha muita comezana de crean&ccedil;as,<br />
+
+sarrabulhos de
+sangue, cambalhotas,<br />
+
+e umas rizadas..... que at&eacute; Deus se
+admira.<br />
+
+No meio anda um pretinho muito gordo,<br />
+
+que &eacute; o
+proprio diabo em carne e osso.<br />
+
+Diz ent&atilde;o muita coisa a todas
+ellas,<br />
+
+d&aacute;-lhe l&aacute; seus conselhos, toma contas<br />
+
+do
+que teem feito, e..... acaba a tal comedia.<br />
+
+Untam-se co'uma untura que
+l&aacute; sabem,<br />
+
+transformam-se em corujas e mosquitos,<br />
+
+o diabo e o
+lume sorvem-se na terra<br />
+
+dizendo boa noite at&eacute; tal dia,<br />
+
+e
+ellas voltam-se a casa a armar j&aacute; outras.<br />
+
+Isto sabia-o eu
+como os meus dedos.<br />
+
+Lembrou-me a tal gulosa da estalage,<br />
+
+e
+ent&atilde;o &eacute; que dei tudo por perdido.<br />
+
+Deitei
+f&oacute;ra o cigarro, e entro em voz baixa<br />
+
+(&iexcl;sempre isto
+do pavor faz muita asneira!)</div>
+
+<span class="pagenum">[21]</span>
+<div class="poetry1">entrei eu
+co'as m&atilde;os postas para as mulas<br />
+
+a pedir-lhes co'as lagrimas
+nos olhos,<br />
+
+pelas Almas Bemditas, que deixassem<br />
+
+todo aquelle motim, que
+me perdiam;<br />
+
+que fugissem d'ali, que andavam bruxas,<br />
+
+e que p&eacute;
+ante p&eacute; viessem vindo;<br />
+
+que eu promettia uma
+ra&ccedil;&atilde;o dobrada.<br />
+
+Partimos. De repente
+desemb&eacute;sta<br />
+
+d'ao-p&eacute; da tal luzerna um certo vulto<br />
+
+direito para n&oacute;s como uma x&aacute;ra.<br />
+
+Com seis
+milh&otilde;es de grozas de diabos!<br />
+
+&iquest;quem havia de ser,
+sen&atilde;o a velha?<br />
+
+Salta n'um pulo a estrada, atrepa ao monte,<br />
+
+chega ao cimo, e de l&aacute; muito sizuda<br />
+
+entra a dizer-me adeus,
+e (&iexcl;t'arrenego!)<br />
+
+a fazer-me uma cara dos infernos...<br />
+
+&#8213;&iquest;E tu viste-lhe a cara em tanto escuro?<br />
+
+&#8213;Certo
+&eacute; que lembrou bem; tambem agora<br />
+
+l&aacute; me faz
+confus&atilde;o ter visto a cara.<br />
+
+&iquest;Escuro? isso era
+escuro como um prego;<br />
+
+n&atilde;o sei como isso foi, mas vi-lh'a, e
+vi-lh'a;<br />
+
+&iexcl;assim eu visse Deus! trago-a ainda hoje<br />
+
+t&atilde;o bem encasquetada no juizo,<br />
+
+que a podia pintar, e era
+pintura,<br />
+
+que urrariam os bois se lh'a mostrassem.<br />
+
+Quer escuro quer
+n&atilde;o, vi-a, e est&aacute; dito.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas o bom n&atilde;o foi isso; o
+mais bonito<br />
+
+foi entrar de
+repente o gallinha&ccedil;o<br />
+
+nas canastras da carga em cantarolas,<br />
+
+a
+romper, a fugir, e eu pila pila<br />
+
+para aqui, para ali, correndo
+&aacute;s cegas<br />
+
+sem as poder juntar. Foi
+se-me a noite<br />
+
+n'esta labuta&ccedil;&atilde;o; de cada canto</div>
+
+<span class="pagenum">[22]</span>
+<div class="poetry1">sentia um cacarejo, ia
+&aacute;s carreiras,<br />
+
+gallinha... por um oculo. J&aacute; rouco,<br />
+
+moido e desesp'rado, ao romper d'alva<br />
+
+vejo as minhas senhoras mui
+contentes<br />
+
+todas juntas n'um bando ao p&eacute; das mulas.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas alto; esta &eacute; peor.
+&iquest;N&atilde;o
+v&ecirc;? repare:<br />
+
+&iexcl;um clar&atilde;o para ali!! d'esta
+nos trincam;<br />
+
+&iexcl;meu Deus! &iexcl;onde diabo eu tinha a
+morte!!<br />
+
+&#8213;Alegra-te, Golgan; &iquest;que noite &eacute; esta?<br />
+
+&#8213;Para n&oacute;s ambos de Fieis defuntos.<br />
+
+&#8213;De San
+Jo&atilde;o.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;&iexcl;Ah! sim; pois &eacute; fogueira,</div>
+
+<div class="poetry1">e n&atilde;o
+&eacute; outra coisa. &iexcl;Ora o diabo!<br />
+
+sempre tive uma
+colica soffr&iacute;vel.<br />
+
+Mas vamos n&oacute;s a andar, se lhe
+parece.<br />
+
+Dizia um Padre Mestre ali do Algarve,<br />
+
+n'umas ras&otilde;es
+que teve com meu tio,<br />
+
+que era barbeiro ent&atilde;o, e o Padre
+Mestre<br />
+
+era o Vigario d'elle; e elle, o meu tio,<br />
+
+ia fazer-lhe a barba e
+mais ao preto,<br />
+
+que era um ti&ccedil;&atilde;o que s&oacute;
+&aacute;
+bofetada;<br />
+
+&iexcl;mas muito presumido! &iexcl;e ent&atilde;o
+por
+mo&ccedil;as<br />
+
+dava o grande magano um cavaquinho!!...<br />
+
+Com que emfim,
+tinha o Padre este ditado:<br />
+
+aonde ha lume ha fumo; e eu ent&atilde;o
+digo<br />
+
+que por for&ccedil;a onde ha lume ha-de haver gente;<br />
+
+e que
+onde ha gente ha casa; e toda a casa<br />
+
+tem a sua cosinha, e
+ent&atilde;o ce&acirc;mos.<br />
+
+E &eacute; partir de repente em
+quanto ha lume.<br />
+
+...........................................................<br />
+
+...........................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[23]</span>
+<h4>II</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Eis aqui um dialogo de ensanchas<br />
+
+sem
+geito, sem sabor, sem fim, sem
+nexo&#8213;<br />
+
+grita o leitor perdendo as estribeiras.<br />
+
+&iquest;Onde foi
+isto? &iquest;ou quando? &iquest;quem
+s&atilde;o elles?<br />
+
+&iquest;onde v&atilde;o?
+&iquest;d'onde veem?</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Leitor amigo,</div>
+
+<div class="poetry1">ha duas horas que soub&eacute;ras
+tudo,<br />
+
+se o cruel
+arrieiro o permittisse;<br />
+
+mas vais sabel-o em quanto enfreia as mulas.<br />
+
+Quanto a elle, presumo que o conheces;<br />
+
+o nome do outro autor
+dir-t'o-hei n'um verso<br />
+
+n&atilde;o peor que outros muitos
+portuguezes:<br />
+
+Antonio Feliciano de Castilho.<br />
+
+Venho do Minho de assistir
+a bodas;<br />
+
+recolho me outra vez &aacute;
+Castanheira <sup><a href="#8">[3]</a></sup><br />
+
+a casa do Prior, a fazer versos,<br />
+
+beber-lhe o vinho
+verde, e dormir muito.<br />
+
+O theatro da scena &eacute; certo monte<br />
+
+de
+que me esquece o nome; o anno, e o dia,<br />
+
+Mil oitocentos e vinte e oito,
+&aacute; noite,<br />
+
+vespera de S. Jo&atilde;o. Se mais desejas,<br />
+
+&eacute; perguntar, que eu te respondo a tudo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas o melhor (se queres um conselho)<br />
+
+&eacute; fazer-me um favor,
+ao qual protesto<br />
+
+ser toda a vida grato: anda comnosco;</div>
+
+<span class="pagenum">[24]</span>
+<div class="poetry1">a
+noite est&aacute; bellissima; podemos<br />
+
+ir co'o nosso vagar
+pataratando,<br />
+
+e conduzindo as mulas pela redea.<br />
+
+Mas tens medo ao Golgan;
+pois boas noites;<br />
+
+fica-te em paz, regala te, que eu juro<br />
+
+que estando em
+teu logar fazia o mesmo.<br />
+
+Se queres, faze &aacute;s paginas
+seguintes<br />
+
+onde vai mais Golgan (porque j&aacute; agora<br />
+
+hei-de
+contar a historia por miudo)<br />
+
+faze, digo, a taes paginas o mesmo<br />
+
+que eu,
+tu, e elle, e n&oacute;s, e v&oacute;s, e elles,<br />
+
+fazemos
+&aacute;s dos <em>Martyres</em>
+do Padre,<br />
+
+que s&atilde;o apezar d'isso uma obra prima.<br />
+
+Passa-as em
+claro, e dize que j&aacute; leste.<br />
+
+Quem fala assim n&atilde;o
+quer suor alheio.<br />
+
+E adeus; at&eacute; mais ver que vou com pressa.<br />
+
+............................................................<br />
+
+............................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>III</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;Olhe l&aacute;, S&ocirc;r
+Doutor; diz um livrito,<br />
+
+que a
+gente sem falar &eacute; como os burros;<br />
+
+e eu digo que diz bem.
+Quero contar-lhe, <br />
+
+para ver se se encurta este caminho,<br />
+
+o mais que se
+passou depois da historia.<br />
+
+Mas v&aacute; picando a
+mula; &iexcl;olhe a fogueira!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Com que, como eu j&aacute; disse,
+ao outro dia<br />
+
+vi as gallinhas
+ao redor das bestas;<br />
+
+torno-as a p&ocirc;r na carga, e digo logo:<br />
+
+A
+Santa-Cruz n&atilde;o v&atilde;o voc&ecirc;s de certo;<br />
+
+nem
+voc&ecirc;s, nem a carga dos presuntos,<br />
+
+nem nada que aqui vai,
+&iexcl;com trinta infernos!</div>
+
+<span class="pagenum">[25]</span>
+<div class="poetry1">Servos de Deus t&atilde;o bons,
+t&atilde;o meus amigos,<br />
+
+&iexcl;haviam comer tal! &iexcl;metter no corpo<br />
+
+talvez quanto
+bruxedo ha neste mundo!<br />
+
+Deus me livre do mais, que de
+encarr&ecirc;gos<br />
+
+posso-me eu bem livrar. Corto co'as mulas<br />
+
+direito
+&aacute; Hespanha, e vendo-as a uns ciganos,<br />
+
+com carga e tudo.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;&iquest;As mulas!</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Pois as mulas</div>
+
+<div class="poetry1">tinham tantos diabos na muchilla<br />
+
+como as gallinhas, os
+boreis, e os ovos.<br />
+
+Mas eu era rapaz; se fosse agora,<br />
+
+n&atilde;o
+digo que o fizesse. O divertido<br />
+
+foi andar eu trez annos para quatro<br />
+
+a
+correr Portugal e Hespanha toda<br />
+
+a buscar confessor; &iexcl;tudo
+ignorante!<br />
+
+Padre douto, nem um que me absolvesse.<br />
+
+Por fim achei o filho
+de um cigano,<br />
+
+dei-lhe trez duros, e botou-m'a logo.<br />
+
+Mas
+ent&atilde;o penitencia n&atilde;o falemos;<br />
+
+se a quizesse
+rezar, &iexcl;nem toda a vida!<br />
+
+Tudo se arranjou bem; dei-lhe outro
+duro,<br />
+
+e elle por ter vagar, se incumbiu d'ella;<br />
+
+mas disse-me que havia
+at&eacute; ser velho<br />
+
+mortificar o corpo co'um vergalho,<br />
+
+e com
+muitos jejuns. &iexcl;Se eu f&ocirc;ra pato!<br />
+
+Sabe
+ent&atilde;o o que fiz inda algum tempo?<br />
+
+era correr de
+ch&ocirc;to os meus peda&ccedil;os,<br />
+
+e depois
+descan&ccedil;ar.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">Deixemos isto,</div>
+
+<div class="poetry1">que n&atilde;o lhe importa muito,
+e a mim nem nada;<br />
+
+vim para a minha terra apenas pude,<br />
+
+muito pimp&atilde;o, e cheio
+como um ovo.</div>
+
+<span class="pagenum">[26]</span>
+<div class="poetry1">Namorei,
+namoraram-me bastantes;<br />
+
+por encurtar ras&otilde;es, casei com uma<br />
+
+que era filha do irm&atilde;o de um primo ou tio<br />
+
+de um meu compadre
+Abreu, que era cunhado<br />
+
+da sogra d'esta mesma rapariga,<br />
+
+e enteado do
+irm&atilde;o do Cura velho;<br />
+
+tudo gente limpinha, muito boa,<br />
+
+e
+temente ao Senhor, que &eacute; todo o caso.<br />
+
+Gastei para
+imp&ocirc;r Bulla os meus tanturrios,<br />
+
+&iexcl;e n&atilde;o
+foi l&aacute; t&atilde;o pouco!
+&iexcl;Veja agora:<br />
+
+&iexcl;para a gente casar largar dinheiro!<br />
+
+&Eacute; como ir para a India ou para a f&ocirc;rca,<br />
+
+e pagar
+inda em cima aos da senten&ccedil;a.<br />
+
+Perguntei ao Banqueiro a causa
+d'isto,<br />
+
+disse me elle que a causa era n&oacute;s termos<br />
+
+quatro
+humores no corpo, e d'aqui vinha<br />
+
+haver os quatro gr&atilde;os na
+parentela;<br />
+
+que ella era minha prima, e que entre primos<br />
+
+havia os quatro
+gr&atilde;os todos inteiros.<br />
+
+N&atilde;o se riu, nem me eu ri;
+paguei-lhe em pe&ccedil;as<br />
+
+n&atilde;o s&oacute; os quatro
+gr&atilde;os que se
+n&atilde;o viam,<br />
+
+mas ainda mais c&aacute; certa brincadeira.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Deixar; fosse o que fosse; emfim,
+casei me.<br />
+
+Aquelle mez primeiro &eacute; uma delicia;<br />
+
+foi
+todo elle um <em>cantate</em>; muito
+amigos,<br />
+
+muito beijo, e comer; muita broega,<br />
+
+muita romage, e tudo muito
+e muito.<br />
+
+Nunca houve um par assim t&atilde;o contentinho;<br />
+
+nanja na
+aldeia e na comarca em roda;<br />
+
+era at&eacute; amizade escandalosa.<br />
+
+Tanto assim, que o Prior, mais era amigo<br />
+
+de fazer a vontade a toda a
+gente,<br />
+
+n'um dia santo &aacute; pratica da Missa</div>
+
+<span class="pagenum">[27]</span>
+<div class="poetry1">deu-me um foguete &iexcl;caspite!
+Disse
+elle<br />
+
+que marido e mulher com tal namoro<br />
+
+era coisa mais vil que mil
+diabos.<br />
+
+Fizemos-lhe a vontade antes de muito;<br />
+
+ella entrou-me a azoar
+com trinta coisas,<br />
+
+e eu a dar-lhe a matar. Por fim de contas,<br />
+
+o
+asneir&atilde;o do Juiz, que era vizinho,<br />
+
+tomou isto em trambolho,
+e amea&ccedil;ou-me<br />
+
+de me encaixar no fundo dos infernos.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;E ent&atilde;o que
+lhe parece a entaladella?<br />
+
+Vivia
+em paz, ralha o Prior; dezanco-a,<br />
+
+vem o Juiz, promette-me a enxovia.<br />
+
+&Eacute; como o conto de um palerma velho<br />
+
+que ia a p&eacute;
+co'um rapaz e mais um burro.<br />
+
+&#8213;Bem sei.</div>
+
+<div class="poetry3">&#8213;Pois sim senhor. Com que, tivemos,</div>
+
+<div class="poetry1">n&atilde;o digo bem; teve ella
+oito ou dez filhos;<br />
+
+e sempre a dois e dois; forte coelha!<br />
+
+Entrei a dar
+&aacute; bruta; acudiu povo,<br />
+
+ella fugiu, mas eu fugi sem ella.<br />
+
+E
+d'ent&atilde;o para c&aacute; desandou tudo.<br />
+
+E hoje ando aqui
+por mo&ccedil;o de arrieiro,<br />
+
+a perder noites, e a estrompar as
+ventas.<br />
+
+Aqui est&aacute; por que eu digo que este mundo<br />
+
+&eacute; coisa muito celebre! uns ovitos<br />
+
+e uma pinga de mel fizeram
+tudo.<br />
+
+............................................................ </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Brava!
+&iquest;n&atilde;o ouve uns sinos que
+repicam?<br />
+
+&iexcl;olhe um foguete! &iexcl;truz! &iexcl;Viva o
+Vinagre!<br />
+
+&iexcl;e viva a ceia e a cama que est&atilde;o perto!</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[28]</span>
+<h4>IV</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Com effeito, assim era; a poucos
+passos<br />
+
+j&aacute; se ouvia
+tambor, gaita de folles,<br />
+
+risadas, bombas. Apressando as mulas<br />
+
+na
+direc&ccedil;&atilde;o dos sons e da fogueira,<br />
+
+descemos uma
+encosta, a cujas abas,<br />
+
+entre uns poucos de antigos castanheiros,<br />
+
+uns
+cinco ou seis pastores se occupavam<br />
+
+a abobadar de murta uma fontinha.<br />
+
+Interromperam logo o seu trabalho<br />
+
+para nos vir saudar; mostraram pena<br />
+
+de ouvir que nos perd&ecirc;ramos no monte,<br />
+
+off'recendo
+&aacute; porfia os seus albergues.<br />
+
+N&atilde;o findara a
+benevola contenda,<br />
+
+se um d'elles agarrando o freio &aacute; mula<br />
+
+me
+n&atilde;o posesse a andar; agradecendo<br />
+
+os desejos dos mais que
+inda ficavam,<br />
+
+segui affoitamente o nosso guia.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Uma ponte de pau que
+atravess&aacute;mos<br />
+
+coberta de
+chor&otilde;es, nos poz &aacute; borda<br />
+
+de um trigo
+j&aacute; maduro e sussurrante,<br />
+
+contiguo ao seu casal.
+&iexcl;Quanto eu folgara<br />
+
+de descrever tudo isto! Uma casinha<br />
+
+plantada ahi como risonha ilhota<br />
+
+n'um vasto mar de tremulas searas,<br />
+
+e
+clara como a neve, ou como a lua<br />
+
+que a espreitava do ceo por entre as
+folhas<br />
+
+de um esquivo parreiral. Junto &aacute;s paredes,<br />
+
+de rosas e
+limeiras revestidas,<br />
+
+canap&eacute;s de corti&ccedil;a
+apresentavam<br />
+
+a imagem do descan&ccedil;o e a do convite.<br />
+
+N&atilde;o era necessario entrar a porta,</div>
+
+<span class="pagenum">[29]</span>
+<div class="poetry1">para j&aacute; conhecer o
+domicilio<br />
+
+da
+hospedage e da paz; que as proprias auras,<br />
+
+como que em t&atilde;o
+poeticas folhagens<br />
+
+se ouviam sussurrar: &iexcl;&laquo;Bemvindo
+o
+estranho!&raquo;</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">N&atilde;o longe lhe ficava a sua
+aldeia</div>
+
+<div class="poetry1">na c'roa de
+um oiteiro; pensarieis,<br />
+
+vendo-as t&atilde;o perto, e um bosque a
+separal-as,<br />
+
+a aldeia t&atilde;o brilhante de fogueiras<br />
+
+e esta casa
+t&atilde;o s&oacute; mas t&atilde;o alegre,<br />
+
+pensarieis,
+como eu, ver n'uma festa<br />
+
+mo&ccedil;a ausente e feliz, amante e
+amada,<br />
+
+que entre o prazer commum n&atilde;o quer nem deve<br />
+
+ir
+desfazer seus pensamentos doces.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Visinho seu mui proximo era o templo,</div>
+
+<div class="poetry1">aos valles do arredor
+alardeando<br />
+
+na sua torre branca um Anjo de oiro,<br />
+
+e a um lado a
+Residencia, occulta em parte<br />
+
+n'um ramilhete de altas cerejeiras.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Nunca m&atilde;o de pintor juntou
+n'um quadro</div>
+
+<div class="poetry1">objectos mais simpathicos. Tal como<br />
+
+tr&eacute;pido arroio em tacita
+espessura<br />
+
+das copas bebe a sombra, e envia &aacute;s copas,<br />
+
+do sol
+reflexo voadores raios,<br />
+
+do casal a presen&ccedil;a alegra o templo;<br />
+
+a presen&ccedil;a do templo est&aacute; lan&ccedil;ando<br />
+
+sobre o casal o s&eacute;rio da virtude.<br />
+
+Tudo isto sob um ceo de
+fertil ben&ccedil;&atilde;o,</div>
+
+<span class="pagenum">[30]</span>
+<div class="poetry1">sobre um ch&atilde;o de
+abundancia, e no
+ar mais puro!<br />
+
+&#8213;&iexcl;Meu Pae,!&#8213;grita o pastor entrando
+&aacute; pressa&#8213;<br />
+
+minhas irmans! &iexcl;um hospede!&#8213;</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">A tal nome,</div>
+
+<div class="poetry1">como se fosse
+&aacute; voz de alguma fada,<br />
+
+com repentina luz nos apparecem<br />
+
+crean&ccedil;as folgasans, esbeltas mo&ccedil;as,<br />
+
+um
+anci&atilde;o, e uma velha. Imagin&aacute;reis<br />
+
+ver
+Gra&ccedil;as, ver Amores, ver Nap&ecirc;as,<br />
+
+trajados de
+alde&atilde;os, e honrando os lares<br />
+
+de Baucis e
+Phil&eacute;mon, que o parecem<br />
+
+na edade e na virtude os meus dois
+velhos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+N&atilde;o mora entre se&aacute;ras a etiqueta;<br />
+
+mas sobre
+herdada meza de pinheiro<br />
+
+em troco adeja a cordeal franqueza,<br />
+
+o bom
+desejo adubo da abundancia,<br />
+
+e a amisade dos bons, filha do instincto,<br />
+
+que nasce qual relampago, mas dura.<br />
+
+Deu-se o primeiro instante ao
+comprimento,<br />
+
+logo o segundo aos commodos;<br />
+
+o resto &aacute;
+conversa, e ao bulicio de tal noite.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Vem-nos do forno, envolto co'as risadas,<br />
+
+vital perfume de mellifluos
+bolos,<br />
+
+que em molles vira&ccedil;&otilde;es traz a alegria.<br />
+
+Aquella vai e vem compondo a meza;<br />
+
+esta afervora a ceia, e a cada
+instante<br />
+
+corre &aacute; janella que descobre a aldeia.<br />
+
+Juntam-se
+&aacute; bulha os sinos da parochia,</div>
+
+<span class="pagenum">[31]</span>
+<div class="poetry1">que o
+sacrist&atilde;o na vespera do Orago<br />
+
+jurou provar seu zelo aos Ceos e &aacute; terra.<br />
+
+O festivo repique
+exalta as mentes,<br />
+
+os meninos n&atilde;o param, correm, gritam,<br />
+
+repartem bombas, furtam-se valverdes,<br />
+
+e rindo amea&ccedil;am fogo
+&aacute; pipa velha.<br />
+
+A boa annosa m&atilde;e ralha do estrondo,<br />
+
+e o faz inda maior; o esposo enfia<br />
+
+uma sobre outra historias do seu
+tempo.<br />
+
+O avito candieiro de tres lumes<br />
+
+cobre da meza o centro, e chama
+&aacute; ceia;<br />
+
+a s&ocirc;lta sociedade eis se lhe aggrega.<br />
+
+N&atilde;o foi longo o festim, mas cada copo<br />
+
+lhe augmentava o
+praser. &iexcl;Salve tres vezes,<br />
+
+&oacute; dos tres lumes
+candieiro avito!<br />
+
+&iexcl;quanto amor, quanta paz, que bens, que
+festas<br />
+
+n&atilde;o tens visto florir em tua casa!<br />
+
+&iexcl;quantas
+m&atilde;os t&atilde;o felizes como puras<br />
+
+te h&atilde;o
+accendido em noite igual! &iexcl;quem sabe<br />
+
+que de memorias para ti
+conservas!<br />
+
+&iexcl;Em premio da hospedage aqui te accendam<br />
+
+longas
+eras em noites semelhantes<br />
+
+dignos de seus av&oacute;s contentes
+netos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Iria a muda apostrophe adiante,<br />
+
+mas ouviu-se o
+zabumba.&#8213;&iexcl;Ahi veem! &iexcl;s&atilde;o
+elles!&#8213;<br />
+
+dizem todos, e todos saem pulando.<br />
+
+&#8213;Olhae; olhae;
+&iexcl;nem uma luz na aldeia!<br />
+
+este anno veio tudo. &iexcl;Que
+alegria<br />
+
+ter&aacute; o nosso Parocho!</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Maria,</div>
+
+<div class="poetry1">d&aacute; c&aacute; o meu
+chap&eacute;o.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iexcl;Corre, Pedrinho!</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;&iquest;Onde est&aacute;
+meu
+irm&atilde;o?</div>
+
+<span class="pagenum">[32]</span>
+<div class="poetry2">&#8213;&iexcl;N&atilde;o se
+demorem!</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;Vamos dan&ccedil;ar.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;Perdi as alcaxofras.</div>
+
+<div class="poetry1">&#8213;Vinde por c&aacute;;
+passemos-lhes
+adiante;<br />
+
+que rancho que l&aacute; vem!.....................<br />
+
+..........................................................<br />
+
+........................... Golgan, que eu fosse,<br />
+
+n&atilde;o pintara a
+estrondosa miscellanea<br />
+
+que v&ocirc;a do cazal ao Presbyterio.<br />
+
+Lavra
+nos proprios velhos o alvoro&ccedil;o;<br />
+
+v&atilde;o co'os mais
+quasi a par; lavra em mim mesmo,<br />
+
+estranho &aacute; festa. O pateo
+illuminado<br />
+
+nos recebe, e comnosco a aldeia em pezo.<br />
+
+&#8213;Viva o nosso
+Prior!...</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iexcl;Viva!!!...</div>
+
+<div class="poetry5">
+Mil vozes</div>
+
+<div class="poetry1">restrugem o ecco apenas avistaram<br />
+
+rindo &aacute; janella
+o velho gordo e alegre.<br />
+
+&#8213;&iexcl;Viva o Senhor San Jo&atilde;o!
+&iexcl;viva a
+alegria!</div>
+
+<br />
+
+<h4>V</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bate o zabumba; a muzica rebenta;<br />
+
+fogem foguetes pelos ares livres<br />
+
+estrepitando; o campanario ovante<br />
+
+de jubilo endoidece; repentina<br />
+
+por
+dez partes acceza alta fogueira<br />
+
+dentro de um vasto circulo purpureo<br />
+
+mostra o prazer brincando em cada rosto.<br />
+
+Bello &eacute; ver n'este
+lance as raparigas<br />
+
+compondo mais o len&ccedil;o, alevantando<br />
+
+o
+chapeo, que o semblante lhes encobre,<br />
+
+dando, como a descuido, um toque
+leve,<br />
+
+mas gracioso, &aacute;s flores que lh'o adornam,<br />
+
+e
+&aacute; flor do seio, e ao la&ccedil;o do collete.<br />
+
+&iexcl;Quantos n&oacute;s ata amor n'esses instantes!</div>
+
+<span class="pagenum">[33]</span>
+<div class="poetry1">&iexcl;quantos outros aperta!
+&iexcl;em quantos outros<br />
+
+embebe o espinho de um sutil ciume! <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Chiton! temos o Parocho na frente;<br />
+
+e as cangalhas
+v&ecirc;em mais do que parece.<br />
+
+A <em>alegria decente</em>, eis o estribilho<br />
+
+com que
+recheia as praticas. Se cantam,<br />
+
+co'a cabe&ccedil;a e co'o
+p&eacute; bate o compasso;<br />
+
+se pulam boa dan&ccedil;a em honra
+ao Santo,<br />
+
+bota fora uma can. Por isso o baile<br />
+
+circula agora a estridula
+fogueira;<br />
+
+por isso o San Jo&atilde;o vai toda a noite<br />
+
+injuriado em
+canticos devotos.</div>
+
+<br />
+
+<h4>VI</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Meia noite. Que som mysterioso!<br />
+
+interrup&ccedil;&atilde;o no
+baile e nos descantes.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Fada das amorosas prophecias,<br />
+
+tu, tu passaste agora em concha aerea<br />
+
+tirada pelo zephyro; sentimos<br />
+
+todos n&oacute;s tua magica
+presen&ccedil;a.<br />
+
+&iexcl;Boa viagem, Fada, e boa noite!<br />
+
+&iexcl;Salve, hora duodecima; bateste,<br />
+
+e descerrou-se a porta do
+futuro.<br />
+
+Sua nevoa desfeita em orvalhadas<br />
+
+vai nas plantas eleitas, vai
+nas flores<br />
+
+mal chamuscadas, vai filtrar nas sortes<br />
+
+ben&ccedil;&atilde;o, certeza, amor, felicidade.<br />
+
+J&aacute;
+se interrompem bailes e descantes.<br />
+
+Embebida em potentes nigromancias</div>
+
+<span class="pagenum">[34]</span>
+<div class="poetry1">toda esta multid&atilde;o por
+modos
+varios<br />
+
+exerce escrupulosa altos mysterios.<br />
+
+Mas renasce o
+alvoro&ccedil;o; &eacute; porque os copos<br />
+
+dos bilhetes
+fatidicos chegaram<br />
+
+da ama nas m&atilde;os com riso de importancia. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;N&atilde;o falta aqui rapaz nem rapariga&#8213;<br />
+
+diz ella;&#8213;o senhor
+Padre escreveu todos,<br />
+
+mesmo &aacute; vista do rol dos confessados.<br />
+
+Meia noite j&aacute; deu; quem quer casar-se,<br />
+
+pode vir vindo.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Ao grande reboli&ccedil;o</div>
+
+<div class="poetry1">succedeu a
+atten&ccedil;&atilde;o, que a cada sorte<br />
+
+outra vez se converte
+em gargalhadas.<br />
+
+Por cada par que amor approvaria,<br />
+
+veem disparates
+comicos &aacute;s duzias,<br />
+
+e d&atilde;o rebate &aacute;s
+palmas e epigrammas.<br />
+
+O proprio bom do velho applaude a tudo,<br />
+
+e por
+primeira vez da sua vida<br />
+
+encontra em si chorrilhos de finuras.<br />
+
+J&aacute; pede a uma o bolo do noivado;<br />
+
+quer ser padrinho de outra;
+e &aacute;s mais bonitas<br />
+
+quer baptisar de gra&ccedil;a os
+pequerruchos. <br />
+
+<br />
+
+Muito custa no mundo o ser discreto<br />
+
+sem descambar o p&eacute;!
+coisas escapam...<br />
+
+que &eacute; por Deus n&atilde;o haver o
+Santo Officio,<br />
+
+como esta ao nosso padre: </div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Olhae, rapazes,</div>
+
+<div class="poetry1">vai n'estas sortes o que vai no mundo:<br />
+
+o acaso e a
+Providencia, ao que parece,<br />
+
+ambos l&ecirc;em pelo mesmo Breviario. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o foi dos mais christ&atilde;os o epiphonema,<br />
+
+mas fez
+rir. O Golgan neste comenos</div>
+
+<span class="pagenum">[35]</span>
+<div class="poetry1">chega,
+furta uma sorte, e diz abrindo-a:<br />
+
+&#8213;Esta, seja quem f&ocirc;r,
+&eacute; c&aacute; p'ra
+nostri. <br />
+
+<br />
+
+Pede que a leiam; l&ecirc;-se-lhe:&#8213;<span class="smallcaps">O
+coveiro</span>.&#8213;<br />
+
+Mudo o povo se entre-olha; e de repente<br />
+
+co'as
+pragas do Golgan destampam risos,<br />
+
+como os que o padre Homero encaixa
+aos deuses;<br />
+
+&iexcl;inextinguiveis risos! Mas n&atilde;o cede<br />
+
+a
+chufas nem a agoiro o var&atilde;o forte;<br />
+
+e com m&atilde;o bem
+segura extrae sublime<br />
+
+do outro copo outra sorte:&#8213;<span class="smallcaps">Ambrosia
+Tr&eacute;cula</span>. <br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o do pateo o riso clamoroso<br />
+
+deveu-se ouvir no Artabro e
+Guadiana<br />
+
+retumbou nos ceos: <span class="smallcaps">Tr&eacute;cula...
+Tr&eacute;cula</span>. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;&iquest;Quem diabo &eacute; esta Ambrosia?&#8213;o heroe pergunta.<br />
+
+&#8213;Sou eu&#8213;responde a ama.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&iexcl;Est&aacute; brincando!</div>
+
+<div class="poetry1">&eacute; talvez sua neta ou
+titrineta. &#8213;V&aacute;-se, tolo.</div>
+
+<div class="poetry4">
+&#8213;Olhe c&aacute;, senhora tia,</div>
+
+<div class="poetry1">n&atilde;o vai a arrenegar;
+n&atilde;o lhe pergunto<br />
+
+por cara, corpo e modos, que s&atilde;o
+lindos;<br />
+
+&iquest;mas tem fazenda ou bois, ou oiro, ou chelpa? <br />
+
+<br />
+
+Com o desdem mais dramatico, a matrona<br />
+
+voltou costas; e o
+b&ecirc;bado prosegue:<br />
+
+&#8213;S&ocirc; Reverendo, n&atilde;o lhe
+aceite os banhos,<br />
+
+que eu sou casado, e ponho impedimentos. <br />
+
+<br />
+
+Obriguei-o a calar-se. Eis que me off'recem<br />
+
+tirar tambem; tirei;
+&iquest;quem tiraria?<br />
+
+uma das filhas do meu bom
+Phil&eacute;mon.<br />
+
+Recebi parabens de todo o povo;<br />
+
+deixei-o bem
+disposto a divertir-se,</div>
+
+<span class="pagenum">[36]</span>
+<div class="poetry1">e tornei co'o o meu <em>sogro</em>
+ao
+nosso
+albergue.<br />
+
+Instou que me deitasse; respondi-lhe<br />
+
+que em noite de
+San-Jo&atilde;o ninguem se deita;<br />
+
+que alem d'isso a jornada
+f&ocirc;ra curta,<br />
+
+e sem nimia fadiga; ultimamente<br />
+
+que, pois que
+elle esperava a mais familia,<br />
+
+esperava eu tambem; n&atilde;o sendo
+airoso<br />
+
+faltar &aacute; noiva no primeiro dia.<br />
+
+&#8213;Cedo, mas s&oacute; co'a clausula&#8213;disse elle&#8213;<br />
+
+que
+inda amanhan sois nosso.</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Assigno.</div>
+
+<div class="poetry5">&#8213;&iexcl;Bello!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ent&atilde;o toca a palrar at&eacute; que venham.<br />
+
+Sai&acirc;mos, que faz calma; alem, na eira,<br />
+
+sobre a alta palha do
+centeio novo<br />
+
+tomaremos a fresca e as orvalhadas.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Disse, e fez se. &iexcl;Que ceo!
+&iexcl;que paz!
+&iexcl;que
+noite!<br />
+
+na molle aragem das fagueiras horas<br />
+
+meu
+cora&ccedil;&atilde;o feliz desabroxado<br />
+
+me enchia de um perfume
+egual ao vosso,<br />
+
+nocturnas flores, que o gosais sosinhas.<br />
+
+&iexcl;Quem podesse apanhar, prender na vida<br />
+
+estes momentos
+lubricos, momentos<br />
+
+que s&oacute; caem do ceo durante a noite,<br />
+
+e
+s&oacute; na solid&atilde;o! Temi perdel-os<br />
+
+co'a triste
+distrac&ccedil;&atilde;o de mutuas falas.<br />
+
+Lembrou-me haver
+notado no meu velho<br />
+
+um genio amigo de contar historias;<br />
+
+pedi-lhe uma
+qualquer, bem decidido<br />
+
+a deixal-o &aacute; vontade espanejar-se<br />
+
+sem
+lhe dar atten&ccedil;&atilde;o; mas enganei-me,<br />
+
+Pondo o rosto
+na m&atilde;o, nos c&eacute;os os olhos,</div>
+
+<span class="pagenum">[37]</span>
+<div class="poetry1">entra a buscar pela memoria antiga<br />
+
+algum caso mais raro; e como desse<br />
+
+casualmente co'a vista em certo lume<br />
+
+n'um cabe&ccedil;o remoto,</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;Ouvi&#8213;me disse;&#8213;</div>
+
+<div class="poetry1">por aquella luzinha l&aacute; ao
+longe<br />
+
+lembra-me um caso, e um caso que foi certo,<br />
+
+passado ali no Minho ha
+largos annos.<br />
+
+Inda eu conservo em casa uns Breviarios<br />
+
+de um Padre
+irm&atilde;o da minha av&oacute; materna,<br />
+
+que
+poder&atilde;o servir de documento.<br />
+
+Elle mesmo o escreveu nas
+folhas brancas<br />
+
+do principio e do fim dos quatro tomos.<br />
+
+E era um clerigo
+honrado, o que escrevia;<br />
+
+merece tanta f&eacute; como a Escritura.<br />
+
+Diz elle ent&atilde;o ali (nem &eacute; s&oacute; elle;<br />
+
+minha Av&oacute; sua irman dizia o mesmo):<br />
+
+que esta nossa familia
+inda descende<br />
+
+da Rosa de quem fala a dita historia.<br />
+
+A minha
+av&oacute; foi Rosa, e tinha o nome<br />
+
+de sua m&atilde;e; a minha
+m&atilde;e foi Rosa;<br />
+
+a vossa <em>noiva</em>
+&eacute; Rosa; e
+n'esta casa,<br />
+
+querendo Deus, sempre ha-de haver o nome.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Depois d'este preambulo de Rosas,<br />
+
+veio a historia, e encantou-me; ou
+fossem causa<br />
+
+hora e sitio, ou a amavel singeleza<br />
+
+com que narrava o
+historiador das medas,<br />
+
+ou j&aacute;
+disposi&ccedil;&atilde;o com que eu me
+achasse.<br />
+
+Creio que sim: do espirito do ouvinte<br />
+
+vem mais de meio o
+merito das obras.<br />
+
+</div>
+
+<span class="pagenum">[38]</span>
+<div class="poetry1">Por exemplo: da Eneida o livro quarto<br />
+
+dias ha que me enfada; ha
+tambem dias<br />
+
+em que se atura o <em>Italico</em> do
+Padre;<sup><a href="#9">[4]</a></sup><br />
+
+e
+em que se entende um pouco a p&aacute;lrea bruta<br />
+
+que
+aos brutos deu do amavel Lafontaine.<sup><a href="#10">[5]</a></sup><br />
+
+Nada parece mal, trazido a
+tempo;<br />
+
+fora de tempo, tudo. A mesma coisa<br />
+
+entre obras e leitores
+acontece,<br />
+
+que entre os garfos e as arvores: se enxertam<br />
+
+quando o
+n&atilde;o pede o tronco e o veda a lua,<br />
+
+&iexcl;adeus ramo
+bastardo! e se ao contrario,<br />
+
+penetra a seiva toda, e pula o ramo. <br />
+
+<br />
+
+Fosse o que fosse, ouvi com tanto gosto,<br />
+
+que protestei contar-vol-o a
+meu modo;<br />
+
+e o poema seguinte &eacute; o desempenho.<br />
+
+Tivesse elle, o
+que em v&atilde;o lhe hei procurado,<br />
+
+da prosa do meu sogro o tom
+singelo,<br />
+
+talvez, leitores meus, o relerieis. <br />
+
+<br />
+
+Inventar, descrever, compor os versos,<br />
+
+s&atilde;o os tres
+p&eacute;s, da tr&iacute;pode de Apollo.<br />
+
+J&aacute; sabereis do Reverendo Kinsey<br />
+
+que eu n&atilde;o tenho
+inven&ccedil;&atilde;o; que nada
+pinto<br />
+
+co'a verdadeira c&ocirc;r da Natureza;<br />
+
+que os versos meus
+s&atilde;o bons, mas que aborrecem;<br />
+
+o que n&atilde;o tira que
+um po&eacute;ta eu seja<br />
+
+digno de ser notado entre os que vivem.</div>
+
+<span class="pagenum">[39]</span>
+<div class="poetry1">Ora, quanto &aacute;
+inven&ccedil;&atilde;o d'este poema,<br />
+
+bem vedes que a
+n&atilde;o ha, ou se a ha que &eacute;
+d'outrem.<br />
+
+E quanto &aacute;s descripc&otilde;es, fiz o possivel<br />
+
+para n&atilde;o metter mais que as do meu
+<em>sogro</em>.<br />
+
+Mas faltava o melhor, e o mais difficil:<br />
+
+versificar &aacute; moda. Atirei fora<br />
+
+o Virgilio, o Racine, e o
+Metastasio,<br />
+
+gebos todos mon&oacute;tonos, que enfiam<br />
+
+os versos bons
+e os optimos aos centos;<br />
+
+atirei-me ao Filinto e aos Filintistas;<br />
+
+estudei, fiz ensaios, compuz paginas<br />
+
+de embr&eacute;xados
+velhissimos e esdruxulos,<br />
+
+e n&atilde;o foi sem proveito o estudo
+acerrimo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Perdoae se este livro inda vai falho<br />
+
+d'esses donaires que
+trav&ecirc;ssos fogem<br />
+
+de mal expertas m&atilde;os; soffrei-o em
+quanto<br />
+
+vou destilar sobre outro o
+<em>Elucidario</em>,<br />
+
+qual se espreme um lim&atilde;o
+sobre um guizote.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Abril de 1831.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">FIM DA
+INTRODUC&Ccedil;&Atilde;O<sup><a href="#11">[6]</a></sup>
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c3"></a>III </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+EPISTOLA<br />
+
+<br />
+
+A JO&Atilde;O EVANGELISTA PEREIRA DA COSTA </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Da paz de um ermo ao
+turbilh&atilde;o da c&ocirc;rte<br />
+
+a Musa
+de Castilho &aacute; do seu Costa<br />
+
+saude e amor. J&aacute; outra
+primavera<br />
+
+se enflora, a seu pesar, desde que ausente<br />
+
+pede aos montes a
+irman, que a n&atilde;o suspira,<br />
+
+e dorme ao lado de um feliz
+ingrato. <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em quanto a minha, ignota, emprega os ocios<br />
+
+em cantos cujo ecco
+al&eacute;m n&atilde;o passa<br />
+
+..........................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">1831&#8213;Abril, 21.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c4"></a>IV </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+O PRESBYT&Eacute;RIO </h3>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&iexcl;Salv&egrave;, principio e fim dos meus passeios!<br />
+
+&iexcl;Salv&egrave;, &oacute; tu, cujo tecto, alva casinha,<br />
+
+cobre ha perto de um lustro os meus autores,<br />
+
+meus castellos no ar, meus
+faceis versos!<br />
+
+&iexcl;Salv&egrave;, co'o teu rosal; co'as tuas
+limas,<br />
+
+festivo ornato das paredes brancas;<br />
+
+co'o teu port&atilde;o
+patente oppresso de heras;<br />
+
+e co'a tua nogueira; e co'o teu cedro,<br />
+
+bras&atilde;o futuro do obumbrado pateo!<br />
+
+&iexcl;Salv&egrave; outra vez, meu presbyt&eacute;rio!
+&iexcl;Salv&egrave;!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Hoje, que o caprichoso do meu estro<br />
+
+(bem sabes se elle o &eacute;)
+deixa inconstante<br />
+
+versos &iacute;nda no ch&ocirc;co, outros que
+apenas<br />
+
+v&atilde;o da casca a sahir, outros que breve<br />
+
+teem de fugir
+do ninho em v&ocirc;os livres,<br />
+
+entrou, mal veio a aurora
+esclarecer-te,<br />
+
+a doidejar-te em roda, a namorar-te,<br />
+
+qual borboleta
+ociosa ou leve abelha.<br />
+
+Pois que elle o quer.... cantemos-te; e
+perd&ocirc;a<br />
+
+se o canto falador, transpondo os cumes<br />
+
+das tuas
+cerejeiras, f&ocirc;r mais longe<br />
+
+revelar tua humilde obscuridade.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[44]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">A antiga mediania, a
+seguran&ccedil;a,<br />
+
+a paz, o amor dos Ceos, o
+amor dos homens,<br />
+
+genios foram, que em ben&ccedil;&atilde;os
+presidiram<br />
+
+aos alicerces teus. De P&aacute;rio monte<br />
+
+n&atilde;o
+foi mist&eacute;r que entranhas te enviassem<br />
+
+ch&atilde;o,
+columnas, e ab&oacute;badas, e estatuas;<br />
+
+tuas portas sem chave
+n&atilde;o cresceram<br />
+
+l&aacute; nas florestas do
+hemisph&eacute;rio opposto.<br />
+
+Foi visinho pinhal teu s&ocirc;lho
+e tecto;<br />
+
+deu-te paredes mais visinho oiteiro;<br />
+
+port&otilde;es e meza
+um cedro bom da extrema.<br />
+
+N&atilde;o custaste nem lagrimas a pobre,<br />
+
+que &aacute; for&ccedil;a te cedesse a cho&ccedil;a avita,<br />
+
+nem odioso suor; e n&atilde;o se dormem<br />
+
+somnos melhores em Belem
+nem Mafra.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&iquest;Que importa que no centro d'estes ermos<br />
+
+vivas
+t&atilde;o s&oacute;, que apenas descortines<br />
+
+n'um dos altos
+d'em torno esquiva aldeia?<br />
+
+Tu e o templo co'as messes que vos cingem<br />
+
+bastais no quadro agreste; em v&oacute;s affluem<br />
+
+(como em sua
+Queluz) nos festos dias<br />
+
+ondas e ondas de amaveis saudadores.<br />
+
+Os
+rebanhos ociosos n&atilde;o desdenham<br />
+
+t&ocirc;jo em flor, que
+te doira o ch&atilde;o das mattas,<br />
+
+d'onde env&ocirc;ltos co' os
+tr&eacute;mulos balidos,<br />
+
+veem cantos de amorosas guardadoras<br />
+
+endoidecer teu ecco.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry4">
+Os caminheiros</div>
+
+<div class="poetry1">aben&ccedil;&ocirc;am-te a
+sombra; aqui teem
+fonte,<br />
+
+que em tua relva, ao fresco das parreiras,<br />
+
+det&eacute;m,
+dessedentando-as, caravanas<br />
+
+que v&atilde;o ou veem no alpestre
+Caramulo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum"><a name="p45">[45]</a></span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">O anjo das flores liberal te arqueia<br />
+
+de bordada verdura as rescendentes<br />
+
+claras janellas.</div>
+
+<div class="poetry4">Um bulicio manso</div>
+
+<div class="poetry1">de amigas vozes teu recinto alegra.<br />
+
+Na sua
+t&eacute;pida cho&ccedil;a os bois ruminam<br />
+
+ante o feno em
+mont&otilde;es; dorme no p&aacute;teo<br />
+
+farto
+esquadr&atilde;o lanigero; ao sol p&ocirc;sto,<br />
+
+c&atilde;o,
+dos lobos terror, te vela as noites;<br />
+
+teus gallos as demarcam
+vigilantes.<br />
+
+Co'a luz primeira arrulha-te alvejando<br />
+
+cypria nuvem
+plumosa; e apenas saltam<br />
+
+da <a href="#e7">dextra m&atilde;o</a>
+mesquinha os gr&atilde;os doirados,<br />
+
+em torno da gentil madrugadeira<br />
+
+de toda a parte os hospedes rev&ocirc;am.<br />
+
+Bicam por entre as pombas
+&aacute; porfia<br />
+
+a gallinha de filhos rodeada,<br />
+
+o manso grasnador do
+aquoso tanque,<br />
+
+o vaidoso per&uacute;, que ri cantando,<br />
+
+e
+v&oacute;s, e v&oacute;s, mais vivos do que todos,<br />
+
+n&atilde;o chamados, mas sempre a n&oacute;s bemvindos,<br />
+
+passarinhos do ceo, turba sem dono.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Singelo presbyterio, &iexcl;oh!
+&iexcl;como te amo,<br />
+
+co'o teu ar
+casaleiro! Amo o teu forno,<br />
+
+t&atilde;o social &aacute; noite; a
+simples sala,<br />
+
+quasi sempre deserta; a livraria,<br />
+
+deserta rara vez; estas
+alc&ocirc;vas,<br />
+
+que enche um s&oacute; leito; e a adega,
+assoviada<br />
+
+do alvo s&ocirc;pro do Norte; e o fuso, e a pia<br />
+
+da
+cheirosa vendima; e o teu celleiro,<br />
+
+alto, arejado, e t&atilde;o
+patente aos pobres,<br />
+
+como as portas do templo convisinho.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[46]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Flores&ccedil;as para
+o Ceo e para a terra<br />
+
+nos
+inconstantes seculos! &iexcl;flores&ccedil;as,<br />
+
+feliz, co'o
+feliz dono, edade longa!<br />
+
+E se, l&aacute; no futuro, algum amigo,<br />
+
+s&oacute;cio dos dias bons, saudoso e triste,<br />
+
+torcendo a estrada, a
+te pedir viesse<br />
+
+novas do teu cantor,&#8213;&laquo;Amou me, e amei-o&#8213;<br />
+
+lhe dirias mostrando-te; e&#8213;&laquo;Seus ossos&#8213;<br />
+
+juntaria o teu
+velho&#8213;aqui descan&ccedil;am.&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Sim; apraz-me cuidar que inda os meus
+restos,<br />
+
+gratos aos bons d'este
+recanto obscuro,<br />
+
+onde escapei no seculo de sangue,<br />
+
+c&aacute;
+ficar&atilde;o n'este ocio, inda alguns dias<br />
+
+do simples montanhez
+talvez chorados. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Oh santa perseguida Liberdade,<br />
+
+&iexcl;onde te achei!.... Onde
+n&atilde;o vivem homens;<br />
+
+n'um torr&atilde;o bravo que
+n&atilde;o chama invejas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Em quanto, ora que a noite o ceo regela<br />
+
+humida e turva, tantos ricos
+enchem<br />
+
+de bocejante en&ocirc;jo as assembl&ecirc;as,<br />
+
+e tantos,
+tantos miseros, sem lares,<br />
+
+sem cons&ocirc;lo, sem p&atilde;o,
+sem voz de amigo,<br />
+
+s&oacute; reos de patrio amor, dormem nas furnas,<br />
+
+pelas praias do Oceano, e pelas rochas<br />
+
+(sublimes troncos pelo
+p&eacute; cortados)...</div>
+
+<span class="pagenum">[47]</span>
+<div class="poetry1">tua clara fogueira nos aquece;<br />
+
+&iexcl;gra&ccedil;as,
+gra&ccedil;as a um Deus!</div>
+
+<div class="poetry5">Assim
+vagava</div>
+
+<div class="poetry1">sobre o universo undoso a arca do
+justo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N&oacute;s, depois de annos tres,
+inda esper&acirc;mos.<br />
+
+Ainda
+do trov&atilde;o eccos retumbam.<br />
+
+Ainda os escarceos assoladores<br />
+
+remugem l&aacute; por f&oacute;ra. Ainda a pomba<br />
+
+co'o ramo de
+oliveira inda n&atilde;o volve.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Oh santa perseguida
+Liberdade!<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;Se
+eu podesse, a tr&ocirc;co dos meus
+dias,<br />
+
+restituir-te &aacute; minha Patria!....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry5">
+Basta.</div>
+
+<div class="poetry1">Esperemos ainda. Oremos sempre;<br />
+
+e
+talvez que n&atilde;o tarde a grata aurora,<br />
+
+em que, a adejar da
+serra pelos pincaros,<br />
+
+venha de longe a nuncia das venturas,<br />
+
+a pomba com
+o seu ramo de oliveira!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Castanheira de Vouga</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry3">Maio de 1831.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c5"></a>V </h4>
+
+<br />
+
+<h3>A LYRA DO DESTERRADO </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento encontrado entre os manuscritos de Castilho) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Era a noite dos finados;<br />
+
+sombria noite de outono.<br />
+
+Entre sinos
+acordados<br />
+
+l&aacute; jaz Roma entregue ao sono;<br />
+
+seus luzeiros
+apagados. <br />
+
+<br />
+
+Do ceo pelo r&ocirc;to manto<br />
+
+s&oacute; brilham frouxas
+estrellas;<br />
+
+sai a custo o clar&atilde;o santo<br />
+
+dos templos pelas
+janellas;<br />
+
+e Petrarcha vela emtanto. <br />
+
+<br />
+
+V&eacute;la Petrarcha, e suspira<br />
+
+no leito amoroso e ermo;<br />
+
+olhos na
+v&eacute;la que expira;<br />
+
+saudades no peito enfermo;<br />
+
+nem gloria
+sonha, nem lyra. <br />
+
+<br />
+
+Qual raio s&ocirc;lto de lua<br />
+
+por m&oacute;veis aguas vibrada<br />
+
+n'um bosque inteiro flut&uacute;a,<br />
+
+tal adeja no passado<br />
+
+a saudosa
+mente sua.<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quem dir&aacute; seus pensamentos?<br />
+
+a douta lingua
+est&aacute; muda.<br />
+
+&iexcl;Que paix&otilde;es, que
+sentimentos,<br />
+
+no rosto, que aspeitos muda,<br />
+
+veem transluzir por momentos!
+<br />
+
+<br />
+
+Ora &eacute; dor, ora &eacute; sorriso,<br />
+
+esperan&ccedil;a,
+amor, transporte;<br />
+
+queixas, ternuras diviso;<br />
+
+desce aos abysmos da morte,<br />
+
+v&ocirc;a a&eacute;reo ao Paraizo. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o falar o Vate agora<br />
+
+co'os labios que move
+apenas!<br />
+
+&iexcl;Que torrente abrazadora!<br />
+
+&iexcl;que amor!
+&iexcl;que incendidas penas!<br />
+
+&iexcl;qu&atilde;o nova a
+paix&atilde;o n&atilde;o
+f&ocirc;ra! <br />
+
+<br />
+
+Vai a noite adiantada;<br />
+
+humido vento assovia;<br />
+
+treme a luz quasi apagada.<br />
+
+Do gr&atilde;o Cantor que vigia<br />
+
+ferve a mente a sonhos dada. <br />
+
+<br />
+
+&#8213;&laquo;E&iacute;s o templo conhecido<br />
+
+que os meus destinos
+encerra.<br />
+
+A m&atilde;e terna, o pae querido,<br />
+
+c&aacute; m'os tem
+no seio a terra.<br />
+
+C&aacute; vi Laura, e fui perdido...<br />
+
+........................................ </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Castanheira do Vouga</div>
+
+<div class="poetry3">1830...(?)</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c6"></a>VI </h4>
+
+<br />
+
+<h3>EPISTOLA </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento achado entre os manuscritos de Castilho) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">A minha primavera emfim renasce.<br />
+
+T&eacute; n'este horror
+selvatico dos montes<br />
+
+roupas traja nupciaes a Natureza.<br />
+
+O ceo azul, o ar
+morno, as aguas puras,<br />
+
+tudo nos diz &laquo;amor&raquo;;
+dizem-n-o as aves<br />
+
+chalreando ao florir das alvoradas;<br />
+
+bala o rebanho
+alegre; armento o muge;<br />
+
+na folha nova z&eacute;phiro o cicia;<br />
+
+a
+camponeza em meio de mil flores,<br />
+
+que lh'o exhalam balsamico, o suspira,<br />
+
+e ao vi&ccedil;oso tapiz, &aacute; sombra vasta<br />
+
+macia e
+tentadora lan&ccedil;a os olhos. <br />
+
+<br />
+
+Em quanto o rouxinol, Orpheu plumoso,<br />
+
+enleva a fonte e as arvores
+nocturnas,<br />
+
+cantando amor, da lua ao raio incerto,<br />
+
+li&ccedil;&otilde;es que mais de um ente ao longe estuda<br />
+
+(e
+pratica talvez); em sons de lyra,<br />
+
+solitario eu tambem,
+li&ccedil;&otilde;es de affectos<br />
+
+de c&aacute; te envio ao
+centro da cidade.</div>
+
+<span class="pagenum">[52]</span>
+<div class="poetry1">N'esse ruidoso v&oacute;rtice de
+povo,<br />
+
+de v&atilde;os praseres,
+de negocios futeis,<br />
+
+a geral rota&ccedil;&atilde;o te arrasta
+&aacute;s cegas;<br />
+
+&eacute; dever da amisade erguer-te aos olhos<br />
+
+luz, salvadora luz. N&aacute;ufrago entre ondas<br />
+
+pode n&atilde;o
+ver a t&aacute;boa &aacute;s vezes perto;<br />
+
+pode a praia ignorar,
+e tel a em face.<br />
+
+T&aacute;boa amor te lan&ccedil;ou da praia
+firme;<br />
+
+ledo e fausto Hymeneu te est&aacute; chamando.<br />
+
+..........................................................<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c7"></a>VII </h4>
+
+<br />
+
+<h3>A ROMARIA </h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">L&aacute; vem Maio rosado.
+J&aacute; floreja<br />
+
+nas planicies,
+verdeja pelos montes;<br />
+
+&eacute; o mez de Amor, &eacute; o mez de
+Philom&eacute;la.
+<br />
+
+<br />
+
+Aureo amanhece o dia suspirado<br />
+
+da romaria annual; l&eacute;guas em
+roda<br />
+
+j&aacute; tudo &eacute; festa, esp'ran&ccedil;a, e
+regosijo.<br />
+
+As povoa&ccedil;&otilde;es, desertas. Por estradas,<br />
+
+por torcidos atalhos, por oiteiros,<br />
+
+correm de toda a parte ornados
+bandos.<br />
+
+L&aacute; retr&ocirc;a nos eccos aturdidos<br />
+
+a matinal
+girandola ruidosa;<br />
+
+acorda ao longe a torre com repiques;<br />
+
+um povo de cem
+povos misturado<br />
+
+enche a vozeada selva, a acceza ermida,<br />
+
+e de ondeado
+matiz cobre o terreno.<br />
+
+Arfa ao sol, no alto mastro volteando,<br />
+
+triumphante bandeira alvi-cer&uacute;lea.<br />
+
+Vai e vem, ora chega, ora
+se allonga,<br />
+
+n&atilde;o est&aacute; em nenhum sitio, e assoma em
+todos,<br />
+
+a alma da festa, a gloria do Gallego,<br />
+
+a aguda gaita
+t&uacute;mida e franjada,<br />
+
+que ao rufado tambor s&oacute;cia,
+repete<br />
+
+a moda velha e alegre, amor dos campos.</div>
+
+<span class="pagenum">[54]</span>
+<div class="poetry1">Em vidrado alguidar reluzem n'agua<br />
+
+os doirados
+trem&oacute;&ccedil;os, que afadigam<br />
+
+com compradores a
+afrontada tia.<br />
+
+As navalhas e an&eacute;is, o apito, o espelho,<br />
+
+se
+assoalham mais al&eacute;m; na alva toalha,<br />
+
+alva e folhuda,
+est&atilde;o chamando o exul.<br />
+
+Em cima de seus carros triumphantes<br />
+
+os laureados ton&eacute;is, reis da alegria,<br />
+
+d&atilde;o n'um
+fogo perenne a vida a tudo. <br />
+
+<br />
+
+Aqui se ouve o descante ao desafio,<br />
+
+que a viola ora segue, ora
+acompanha.<br />
+
+Ali se apinham para ver as dan&ccedil;as,<br />
+
+que a discorde
+rabecca entorta &aacute;s vezes.<br />
+
+L&aacute;, se entorna o licor
+em puros vidros;<br />
+
+ao p&eacute; se ado&ccedil;a a fresca
+limonada. <br />
+
+<br />
+
+Aqui se comprimentam; al&eacute;m chamam;<br />
+
+um se perde, outro se
+acha, outro convida.<br />
+
+Este corre; esta p&aacute;ra a ataviar-se,<br />
+
+por
+mostrar o cord&atilde;o e o len&ccedil;o novo.<br />
+
+Estirados na
+relva os velhos palram;<br />
+
+grita o rapaz. O amante, recostado<br />
+
+ao
+p&aacute;u, por onde um bra&ccedil;o lhe serpeia,<br />
+
+faz longa
+c&ocirc;rte &aacute; t&iacute;mida futura,<br />
+
+que em resposta
+de amor lhe d&aacute;
+trem&oacute;&ccedil;os. <br />
+
+<br />
+
+N'isto v&ocirc;a o foguete, e atr&ocirc;a as nuvens.<br />
+
+L&aacute; sai a prociss&atilde;o; l&aacute; foram todos.<br />
+
+&iexcl;Ah! depois do jantar comido &aacute;s sombras,<br />
+
+cada um
+levar&aacute;, volvendo a casa,<br />
+
+gratas lembran&ccedil;as para o
+anno inteiro.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c8"></a>VIII </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+O DOMINGO GORDO DOS MONTANHEZES<br />
+
+<br />
+
+OU<br />
+
+<br />
+
+A MATTA DE S. SEBASTI&Atilde;O </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Versos
+na
+planta&ccedil;&atilde;o de uns carvalhos junto
+&aacute; egreja de S. Mamede<br />
+
+da Castanheira do Vouga pelos rapazes
+solteiros da freguezia<br />
+
+no Domingo do Carnaval de 183... <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>I </h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N'este dia, em que o povo tumultuando<br />
+
+nos casaes, nas aldeias, nas
+cidades,<br />
+
+troca a enxada, o tear, o livro, a agulha,<br />
+
+por copos,
+dan&ccedil;as, m&aacute;scaras, e risos<br />
+
+nas saturnaes
+christans; quando se espraia,<br />
+
+desde o seio de Roma aos fins da terra,<br />
+
+de um praser contagioso alta vertigem;<br />
+
+&iquest;por que retreme ao
+golpe das enxadas<br />
+
+sob os meus p&eacute;s a solitaria encosta? </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Saude a v&oacute;s, a
+v&oacute;s louvor. Bemvindos,<br />
+
+montanhezes, fieis aos priscos usos!<br />
+
+O c&acirc;ntaro do estylo ahi
+est&aacute; coroado,<br />
+
+risonho e prestes a inundar os copos;<br />
+
+o
+pr&eacute;mio &aacute; vista vos redobre as
+for&ccedil;as.<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[56]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Rasgae co'o duro ferro a terra dura;<br />
+
+de vossos paes a matta veneranda<br />
+
+em torno de seu santo antigo dono<br />
+
+se accrescente por v&oacute;s.
+Plantae, que &eacute; tempo,<br />
+
+no ch&atilde;o, sagrado de suor
+devoto,<br />
+
+&oacute; presente annual, que o Ceo prosp&eacute;re.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Onde quer que elle jaz,
+aben&ccedil;oemos<br />
+
+as cinzas do homem bom,
+l&aacute; d'essas eras<br />
+
+que a pia usan&ccedil;a introduziu
+primeiro.<br />
+
+&iexcl;Quanto a sua virtude era risonha!<br />
+
+&#8213;&laquo;Cada solteiro plantar&aacute; n'este ermo<br />
+
+mais uma
+arvoresinha de anno em anno,<br />
+
+que l&aacute; em cima
+encontrar&aacute; seu premio.&raquo;<br />
+
+&iexcl;Oh! estes
+rogos, sim, este pedido,<br />
+
+doce e desint'ressado,
+unc&ccedil;&atilde;o respira;<br />
+
+manda mais do que as Leis; morrer
+n&atilde;o deve. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Produz, produz a miudo, &oacute;
+Natureza,<br />
+
+por teu bem, por bem
+nosso, homens como esse.<br />
+
+Haja quem diga ao joven par, que &aacute;s
+aras<br />
+
+sobe apenas amante, e desce esposo:<br />
+
+&#8213;&laquo;Hoje, que
+s&atilde;o j&aacute; fruto
+esp'ran&ccedil;as de hontem,<br />
+
+entrae sorrindo pelo ch&atilde;o
+da vida;<br />
+
+plantae, plantae um'arvore que o lembre.&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Quando a cabana festival se enrama,<br />
+
+se enflora a meza, e os
+alde&atilde;os visinhos</div>
+
+<span class="pagenum">[57]</span>
+<div class="poetry1">veem
+festejar na casa um filho novo,<br />
+
+a m&atilde;o paterna, de praser
+tremendo,<br />
+
+orne de um novo tronco o pr&eacute;dio avito. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Depois de suspirada e
+curta ausencia<br />
+
+volve um
+irm&atilde;o das terras estrangeiras?<br />
+
+&iquest;Convalesce um
+parente? &iquest;Em bem se acaba<br />
+
+suado, volumoso, eterno pleito,<br />
+
+que empobreceu o av&ocirc;, o filho, e o neto?<br />
+
+&iquest;Fizestes
+o adversario amigo vosso?<br />
+
+&iquest;Sorriu-vos a ventura?
+&iquest;&Eacute; farto o
+anno?<br />
+
+A s&ecirc;rdes Reis, al&ccedil;&aacute;reis
+monumentos;<br />
+
+&iquest;que vale um monumento? O homem dos campos<br />
+
+melhores pode erguer a menos custo:<br />
+
+plante sobre o caminho arvores
+f&eacute;rteis.<br />
+
+Por elle o passageiro ardendo em calma<br />
+
+ache a
+sombra hospedeira que o recreie.<br />
+
+Por elle o pobre, que seu
+p&atilde;o mendiga<br />
+
+de casal em casal, de monte em monte, <br />
+
+que
+n&atilde;o v&ecirc; ceo, nem lar onde se aque&ccedil;a,<br />
+
+nem feno onde descance, e em todo o mundo<br />
+
+s&oacute; tem por
+patrim&oacute;nio a caridade,<br />
+
+ache a fruta a pender em curvos
+ramos,<br />
+
+a acenar-lhe, a off'recer-se-lhe, a sorrir-lhe.<br />
+
+Assim, do bem de
+um s&oacute; germinariam <br />
+
+mil bens communs; e do praser de um homem<br />
+
+o publico praser, publicas ben&ccedil;&atilde;os. </div>
+
+<br />
+
+<h4>II</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Se tendes de nascer, nascei mui breve,<br />
+
+sensiveis
+cora&ccedil;&otilde;es a quem Deus guarda,<br />
+
+a gloria de influir
+eguaes costumes.</div>
+
+<span class="pagenum">[58]</span>
+<div class="poetry1">Desde
+j&aacute; nossas lagrimas de affecto<br />
+
+correm por v&oacute;s; ao
+seio do futuro<br />
+
+n&oacute;s vos lan&ccedil;amos desde
+c&aacute; louvores.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>III</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Sentemo-nos, em quanto os vossos
+filhos<br />
+
+aqui se embebem na tarefa
+honrosa,<br />
+
+sentemo-nos &aacute; sombra, a v&oacute;s bem grata,<br />
+
+do carvalhal que as vossas m&atilde;os plantaram,<br />
+
+homens das cans,
+antigas testemunhas<br />
+
+dos tempos que n&atilde;o s&atilde;o. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+V&oacute;s, deputados</div>
+
+<div class="poetry1">das mortas
+gera&ccedil;&otilde;es aos
+vivos de hoje<br />
+
+como preg&otilde;es propheticos; thesoiro<br />
+
+de
+saudades, de dor, de experiencia;<br />
+
+bons velhos, &aacute; vossa alma
+taciturna<br />
+
+aprazem mais que a festa os pensamentos.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Falae: &iquest;d'onde vos nasce
+essa tristeza<br />
+
+profunda a um tempo e
+vaga, amarga e doce?<br />
+
+&iquest;Ser&aacute; de
+enfeiti&ccedil;ada sympathia<br />
+
+que nos attrai &aacute; terra, ao
+ch&atilde;o da vida,<br />
+
+ch&atilde;o sempre cubi&ccedil;ado e
+sempre ingrato?</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">O cora&ccedil;&atilde;o,
+zeloso da existencia,<br />
+
+compara os dias
+seus do tronco aos dias,<br />
+
+e a conta desegual o opprime e o fecha.<br />
+
+&iexcl;Annos a n&oacute;s, e seculos aos bosques!...<br />
+
+Planta o
+pae, mas a sombra hosp&eacute;da os filhos;</div>
+
+<span class="pagenum">[59]</span>
+<div class="poetry1">netos, que n&atilde;o
+ver&aacute;,
+gosar&atilde;o d'ella;<br />
+
+e indiff'rentes inc&oacute;gnitos
+vindoiros<br />
+
+rir&atilde;o contentes ao folhudo abrigo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas, velhos, mui ditoso o que em seu
+predio<br />
+
+disp&otilde;e arvore
+f&eacute;rtil de esperan&ccedil;as,<br />
+
+que ir&aacute; legada
+aos filhos de seus filhos.<br />
+
+Prophecias de amor lhe expande o seio,<br />
+
+sorri, e ama o que &eacute; seu, na esp'ran&ccedil;a ao menos.<br />
+
+Mas feliz egualmente o que em seu predio<br />
+
+possue vaidoso um tronco
+hereditario. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Na r&eacute;ga, e ao vir da flor,
+e ao dar do fruto,<br />
+
+&iquest;como ha-de n&atilde;o pensar em seus maiores?<br />
+
+Um lh'o
+plantou, os outros lh'o trataram;<br />
+
+&iquest;Como ha-de recusar-lhe
+uma saudade,<br />
+
+um suspiro, um suffragio, um elogio?<br />
+
+A gratid&atilde;o
+medita &aacute; mesma sombra<br />
+
+onde j&aacute; medit&aacute;ra
+o amor paterno.<br />
+
+Esta arvore mortal &eacute; o santo marco,<br />
+
+em que
+se juntam, se entrela&ccedil;am, crescem,<br />
+
+dos idos o interesse e o
+dos vindoiros;<br />
+
+n&oacute; de affei&ccedil;&atilde;o, que os
+seculos reune. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Vedes v&oacute;s essa
+m&atilde;e, que ha tantos
+annos<br />
+
+chora um filho alem-mar, em longes terras?<br />
+
+Mostrae-lhe um
+passageiro a dar &aacute; vella<br />
+
+para o porto feliz; &iexcl;com
+que ternura<br />
+
+lhe n&atilde;o dar&aacute;, chorando, um longo
+abra&ccedil;o,<br />
+
+que leve, que lh'o entregue, ao seu querido,</div>
+
+<span class="pagenum">[59]</span>
+<div class="poetry1">e todo o amor de m&atilde;e lhe
+exprima n'elle!...<br />
+
+&iexcl;E com quanto alvoro&ccedil;o o
+desterrado<br />
+
+n&atilde;o cingir&aacute; o amavel mensageiro!...<br />
+
+Eis o emblema da arvore, cruzando<br />
+
+viva e lembrada o Oceano das edades,<br />
+
+mensageira de int'resse aos paes e aos filhos.</div>
+
+<br />
+
+<h4>IV</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Qual de v&oacute;s,
+repoisando n'esta cama<br />
+
+de folhas
+mortas, qual de v&oacute;s, no meio<br />
+
+d'esses troncos musgosos,
+seculares,<br />
+
+n&atilde;o viaja com o espirito espraiado<br />
+
+por esse mundo
+antigo e antigos homens?<br />
+
+Sim, vossa alma se apraz, phantasiando<br />
+
+de lhe
+restituir quanto houve d'elles:<br />
+
+uma vida, uma cho&ccedil;a, herdade
+e patria.<br />
+
+Deslembram cans; rugosas faces riem;<br />
+
+reviveis n'um minuto
+annos de infancia<br />
+
+sob a affei&ccedil;&atilde;o de um pae, de um
+pae nos lares;<br />
+
+sem cuidados, sem prole, e sem temores,<br />
+
+entrais folgando
+o limiar da vida.<br />
+
+&iexcl;Podesse n'este ponto o pensamento,<br />
+
+como
+ave em ramo fl&oacute;rido e viscoso,<br />
+
+deter-se a recordar, ficar
+pregado!<br />
+
+&iquest;V&oacute;s suspirais?!... desfaz-se-vos o
+sonho,<br />
+
+e a extincta gera&ccedil;&atilde;o recai nas campas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Mas qu&ecirc;?
+&iquest;d'esses antigos plantadores<br />
+
+nada mais resta al&eacute;m de uns troncos mudos<br />
+
+n'este universo
+movedi&ccedil;o e instavel?<br />
+
+&iquest;nem uma s&oacute;
+lembran&ccedil;a, um dito, um
+nome?<br />
+
+Tudo passou sem m&iacute;nimo vestigio,<br />
+
+como os sons leves de
+um descante ao longe.<br />
+
+................................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[61]</span>
+<h4>V</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bons alde&otilde;es, estas
+sombras regaladas<br />
+
+vos falam nos
+av&oacute;s; por&eacute;m comigo,<br />
+
+comigo, extranho, e novo em
+meio d'ellas,<br />
+
+conversam no aureo tempo a que assistiram;<br />
+
+recordam-me as
+edades do Universo,<br />
+
+e os varios povos, e os paizes varios,<br />
+
+contemporaneos do nascente mundo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Intonsas, invioladas, venerandas,<br />
+
+outras selvas, como esta que nos
+fecha,<br />
+
+fecharam do homem a primeira origem.<br />
+
+Sob as verdes
+ab&oacute;badas immensas<br />
+
+as velhas tradi&ccedil;&otilde;es
+nol-os descrevem<br />
+
+pobres e alegres, n&uacute;s e satisfeitos,<br />
+
+saboreando em ocio a glande e a fonte,<br />
+
+dormindo sobre a folha, e sem
+pedirem<br />
+
+outra casa, outro templo, outra cidade. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">A pouco e pouco o numero crescia,<br />
+
+minguando a pouco e pouco a
+singeleza.<br />
+
+Infecta o vicio &aacute; terra; os ceos se mudam;<br />
+
+a um
+Maio eterno as esta&ccedil;&otilde;es succedem;<br />
+
+o ar se gela e
+accende, alaga e silva;<br />
+
+j&aacute; bravejam le&otilde;es,
+j&aacute; bramam tigres;<br />
+
+o homem se acoita ao seio das cavernas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">V&oacute;s, troncos,
+at&eacute; ali seus companheiros,<br />
+
+acud&iacute;s a servil-o; &iexcl;e em quantos modos!</div>
+
+<span class="pagenum">[62]</span>
+<div class="poetry1">l&aacute;, crepitais em
+r&uacute;tila fogueira;<br />
+
+aqui, das feras prohib&iacute;s a
+entrada;<br />
+
+dais uma clava ao ca&ccedil;ador valente;<br />
+
+na
+servi&ccedil;al corti&ccedil;a um ber&ccedil;o aos
+filhos;<br />
+
+leitos a amor, assentos &aacute; velhice,<br />
+
+aos enxames um
+lar, um copo &aacute;s festas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Das precis&otilde;es ao grito, o
+engenho acorda;<br />
+
+l&aacute;
+surgem povoa&ccedil;&otilde;es, curraes,
+tug&uacute;rios,<br />
+
+e uma capella &aacute;s rusticas deidades.<br />
+
+L&aacute; rompe o novo arado a terra dura;<br />
+
+l&aacute; geme, a
+transportar enormes pezos,<br />
+
+o carro, e sulca at&oacute;nitos
+caminhos.<br />
+
+O genio excita o genio; o exemplo, o exemplo;<br />
+
+a rudeza se
+pule; as artes crescem;<br />
+
+a especie racional das mais triumpha. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">As gera&ccedil;&otilde;es do
+ceo, do mar, da terra,<br />
+
+tudo
+&eacute; j&aacute; seu; os campos lhe obedecem;<br />
+
+faltava o
+Oceano; affoita quilha o rasga. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ent&atilde;o foi, que estas
+arvores, t&atilde;o uteis<br />
+
+no patrio
+continente, abriram v&ocirc;o<br />
+
+sobre o liquido abysmo a novos
+climas. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;E em que parte do globo,
+arvore excelsa,<br />
+
+te podes
+presentar, que n&atilde;o recordes<br />
+
+uma fa&ccedil;anha, um
+culto, um gr&atilde;o successo?</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[63]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Na Grecia? Mas o Grego
+inda hoje conta<br />
+
+que foste invicta
+clava em m&atilde;o de Alcides;<br />
+
+v&ecirc;-te, suspira, bate o
+ch&atilde;o raivando<br />
+
+de achar-se escravo, e de n&atilde;o
+ter-lhe as for&ccedil;as.<br />
+
+&iquest;Na Grecia? Mas o Grego inda
+hoje conta<br />
+
+do arvoredo Dod&oacute;nio as mil respostas,<br />
+
+o passado e
+o porvir patente a todos,<br />
+
+e o livro do destino aberto ao mundo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Na Aus&oacute;nia?
+Mas Cybelle amou teus ramos;<br />
+
+Roma os
+sagrou a Jove; e, fulminada,<br />
+
+eras tremendo agoiro a todo o Imperio.<br />
+
+&iquest;Em Roma? &iquest;E a c'r&ocirc;a civica? </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry5">
+&iquest;Nos campos?</div>
+
+<div class="poetry1">&iquest;E
+Ph&iacute;l&eacute;mon, o
+justo, o caro aos
+deuses? </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Nas Gallias? em seus
+barbaros oiteiros<br />
+
+tu, s&oacute;,
+eras o altar, o deus, e o templo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Na Caledonia, em Morven,
+junto aos lagos,<br />
+
+sobre os cumes,
+&aacute; beira das torrentes?<br />
+
+L&aacute; tu viste Tremnor,
+Fingal, e os bravos,<br />
+
+reunidos na vespera do sangue<br />
+
+em nocturno festim
+que allumiavas,<br />
+
+quando na harpa dos bardos reviviam<br />
+
+os feitos dos
+heroes do antigo tempo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[64]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Salve, eleito Israel!
+Eis-nos em campos<br />
+
+de Sichem. Vejo os
+principes e os velhos,<br />
+
+os juizes, as tribus, apinhar-se<br />
+
+em torno ao
+tabern&aacute;culo de Sila.<br />
+
+Por cima d'este mar ondeado e vivo <br />
+
+reina de praia em praia alto silencio.<br />
+
+Sublime como o cedro do deserto,<br />
+
+se levanta Josu&eacute;, bra&ccedil;o do Eterno,<br />
+
+em nome do
+Senhor, que o manda e inspira;<br />
+
+os favores do Ceo recorda ao povo;<br />
+
+renasce a F&eacute;; os idolos se arrazam;<br />
+
+&#8213;&laquo;&iexcl;Gloria ao Deus de Israel!&#8213;vozeia a turba&#8213;<br />
+
+&iexcl;ao Deus dos nossos paes, dos nossos netos!<br />
+
+&#8213;Erga-se um
+monumento,&#8213;exclama o chefe&#8213;<br />
+
+que, se infieis um dia os esquecerdes,<br />
+
+vos envergonhe, e acorde os votos de hoje.&raquo;<br />
+
+E a monumento
+p&otilde;e no logar santo<br />
+
+enorme pedra &aacute; sombra de um
+carvalho,<br />
+
+que abrigava co'a copa o santu&aacute;rio.<sup><a href="#12">[7]</a></sup><br />
+
+Despede o
+Povo, e em paz contente expira;<br />
+
+em paz, que j&aacute;
+n&atilde;o v&ecirc;
+perj&uacute;rios novos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Escrava de Madian a plebe expia,<br />
+
+na miseria e no opprobrio, os males
+torpes<br />
+
+que fez ante o Senhor. Mas inda existe<br />
+
+um justo, a quem Deus fie
+o libertal-a:<br />
+
+&eacute; Gede&atilde;o, &eacute; o
+Josu&eacute;
+segundo.<sup><a href="#13">[8]</a></sup><br />
+
+Este, em quanto seu pae lan&ccedil;a aos caminhos<br />
+
+medroso olhar &aacute; espera do inimigo</div>
+
+<span class="pagenum">[65]</span>
+<div class="poetry1">para fugir com elle, ajunta
+&aacute; pressa<br />
+
+o trigo que limpou.</div>
+
+<div class="poetry2">V&ecirc; de repente</div>
+
+<div class="poetry1">um Anjo, que debaixo do carvalho<br />
+
+se assenta, e
+lhe repete a lei do Eterno.<br />
+
+Esse mesmo carvalho &eacute; testemunha<br />
+
+da belleza do alado mensageiro,<br />
+
+da voz de
+salva&ccedil;&atilde;o mandada ao Povo,<br />
+
+e do holocausto acceito
+e posto em cinzas,<br />
+
+e do altar, a quem <em>Paz</em> foi
+dada em
+nome. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">E este, que t&atilde;o frondoso
+op&aacute;ca os valles,<br />
+
+&iquest;por que o rodeia um bando taciturno<br />
+
+dos fortes de Galaad?
+as suas armas<br />
+
+jazem quebradas; sua dor vai funda;<br />
+
+dos olhos tristes
+para o ceo voltados<br />
+
+pelo rosto amarello lhes escorre<br />
+
+grosso pranto, que
+alaga as f'ridas frescas.<br />
+
+Choram Saul, e a r&eacute;gia
+descendencia,<br />
+
+que mortos no combate aqui descan&ccedil;am.<br />
+
+Para o
+Monarcha agigantado e invicto<br />
+
+nenhuma est&aacute;tua se
+erguer&aacute; na campa.<br />
+
+Sua columna e funebre palacio<br />
+
+preparou-lh'os com tempo a Natureza:<br />
+
+o tronco, rei da selva, o
+est&aacute; cobrindo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Mas quanto &eacute;
+mais tocante o que se eleva<br />
+
+nas
+faldas solitarias da montanha!<br />
+
+Ali D&eacute;bora jaz; ali Rebecca<br />
+
+chora na morte a que a nutriu na infancia,<br />
+
+ama no
+cora&ccedil;&atilde;o, m&atilde;e nos extremos,<br />
+
+de seus
+primeiros e ultimos segredos</div>
+
+<span class="pagenum">[66]</span>
+<div class="poetry1">confidente fiel no lar paterno,<br />
+
+querida socia na feliz viagem,<br />
+
+e no lar
+conjugal seu doce allivio.<br />
+
+&iquest;Arvore a tanto affecto
+consagrada<br />
+
+na affectuosa Biblia ir&aacute; sem nome?<br />
+
+o <em>carvalho
+das lagrimas</em> lhe chamam.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>VI</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Que uso t&atilde;o
+doce aos
+cora&ccedil;&otilde;es piedosos!<br />
+
+Reverdecei, costumes do bom
+tempo,<br />
+
+quando o Rei, o pastor, o chefe, a virgem,<br />
+
+tinham sob um ceo
+livre a sepultura.<br />
+
+A Morte, menos barbara do que hoje,<br />
+
+com avarenta
+m&atilde;o n&atilde;o ferrolhava<br />
+
+sob um tecto pezado, entre
+altos muros,<br />
+
+as prezas, c&aacute; de f&oacute;ra em
+v&atilde;o pedidas.<br />
+
+N&atilde;o era um templo um
+c&aacute;rcere de mortos.<br />
+
+Dormiam mollemente em terra franca,<br />
+
+em
+jardins frescos, em copadas selvas.<br />
+
+Esta esp'ran&ccedil;a
+ado&ccedil;ava um pouco o amargo <br />
+
+do ultimo trago aos labios
+moribundos. <br />
+
+Este bem, t&atilde;o pequeno em mal t&atilde;o
+grande,<br />
+
+&iexcl;quanto valor n&atilde;o tinha aos que ficavam!<br />
+
+O
+irm&atilde;o, o pae, o filho, o amigo, o esposo,<br />
+
+podiam livremente,
+a toda a hora,<br />
+
+ir regar de seu pranto amadas cinzas,<br />
+
+fartar saudades,
+inflammar lembran&ccedil;as,<br />
+
+delirar doce a noite, e o dia inteiro,<br />
+
+e de praser a um peito onde palpitam<br />
+
+supersti&ccedil;&otilde;es
+de amor ou de amisade,<br />
+
+dizer:</div>
+
+<div class="poetry3">&laquo;Este tapiz relvoso o cobre;</div>
+
+<div class="poetry1">esta ave lhe gorgeia; esta aura
+s&ocirc;lta<br />
+
+o refresca; esta lua apraz-lhe aos manes;<br />
+
+a primavera
+m'o visita, e espalha</div>
+
+<span class="pagenum">[67]</span>
+<div class="poetry1">tambem
+por cima d'elle o seu rega&ccedil;o;<br />
+
+esta violeta &eacute; sua,
+hei-de colhel-a;<br />
+
+d'est'arvore a raiz sente-lhe a fronte,<br />
+
+nutre-se do
+seu p&oacute;, vive por elle,<br />
+
+&eacute; elle mesmo em parte;
+arvore amiga,<br />
+
+recebe o nome caro, hoje sem dono,<br />
+
+toma os
+abra&ccedil;os que n&atilde;o posso dar-lhe.&raquo;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Sim, sim, conv&eacute;m um bosque &aacute;s sepulturas.<br />
+
+A
+arvore, Deus a fez como passagem<br />
+
+do mundo que respira ao mundo inerte;<br />
+
+commum co'os animaes, commum co'a terra,<br />
+
+vive e n&atilde;o sente;
+habita e ignora o mundo,<br />
+
+sympathisa co'a morte e co'a existencia,<br />
+
+&eacute; grata &aacute;s cinzas, &aacute; saude
+&eacute; grata. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Que f&eacute;rreos
+somos n&oacute;s, que a um como
+vago<br />
+
+atiramos sem d&oacute; perdidos, mixtos,<br />
+
+o detestado, o amigo,
+o estranho, e o nosso!<br />
+
+Se alguem da voraz Sylla aos sorvedoiros<br />
+
+arrojasse o que os seculos pouparam,<br />
+
+bronzes, escritos, marmores
+romanos,<br />
+
+ou, derrotando porticos, columnas,<br />
+
+theatros, colliseus,
+palacios, templos,<br />
+
+em serra inutil amontoasse as pedras,<br />
+
+&iquest;quem n&atilde;o vert&ecirc;ra em lagrimas o sangue?<br />
+
+&iexcl;E ante a nossa affei&ccedil;&atilde;o teem menos
+pezo<br />
+
+que as
+ruinas de Roma as que s&atilde;o nossas?!...<br />
+
+&iexcl;D&aacute;-se tanto aos ditosos, aos contentes,<br />
+
+espectaculos, jogos, aureas festas,<br />
+
+jardins, parques!... &iexcl;e
+aos miseros que gemem,<br />
+
+e aos peitos melanc&oacute;licos, viuvos,</div>
+
+<span class="pagenum">[68]</span>
+<div class="poetry1">ha-de negar se um canto onde
+pranteiem!?...<br />
+
+&iquest;De tanto mundo que pertence aos vivos<br />
+
+nada
+dareis aos seus antigos donos?<br />
+
+&iexcl;nem um torr&atilde;o
+perdido, e uns troncos nullos?!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Quando vir&aacute; um
+dia, em que estes bosques,<br />
+
+semeados de tumulos n&atilde;o altos,<br />
+
+de lugubres saudades se
+pov&ocirc;em?<br />
+
+Ent&atilde;o, a propria Morte, hoje
+t&atilde;o s&ecirc;cca,<br />
+
+ter&aacute; sua grinalda; a dor, seu gosto;<br />
+
+e visitas o
+p&oacute;, e cultos o ermo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Pelas noites mui placidas do estio,<br />
+
+ao duvidoso alvor da lua incerta,<br />
+
+bello ser&aacute;, sentado n'este sitio,<br />
+
+ver vir, d'aqui, d'ali,
+frouxos, dispersos,<br />
+
+o do casal, o morador na aldeia,<br />
+
+entrar chorando, e
+procurar seus mortos.<br />
+
+Aqui duas irmans resam de joelhos<br />
+
+sobre o seio
+materno sepultado.<br />
+
+Aqui o velho attento as contas passa<br />
+
+pelos dedos
+convulsos, e se encosta,<br />
+
+sem o saber, na fallecida esposa.<br />
+
+O filho aos
+p&eacute;s da m&atilde;e co'os mais
+solu&ccedil;a<br />
+
+o Padre-Nosso apenas aprendido.<br />
+
+Deitado ao lado do
+submerso amigo,<br />
+
+o amigo devaneia antigos annos. <br />
+
+Por toda a parte, as
+lagrimas e affectos, <br />
+
+memorias doces, ora&ccedil;&otilde;es e
+esp'ran&ccedil;as. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;E a quem n&atilde;o
+conviria egual retiro? <br />
+
+N'elle a
+tristeza encontraria um pasto;</div>
+
+<span class="pagenum">[69]</span>
+<div class="poetry1">a sciencia, reflex&otilde;es; o
+vicio, escolhos;<br />
+
+a leviandade,
+assento; a desventura,<br />
+
+consola&ccedil;&atilde;o; o amor,
+silencio e pranto.<br />
+
+Ensai&aacute;ra-se o infante para a vida;<br />
+
+o
+velho, para a morte; o moralista<br />
+
+viria achar
+unc&ccedil;&atilde;o para a verdade;<br />
+
+o orador,
+persuas&otilde;es, ternura, encantos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&Oacute; filhos da montanha,
+&iexcl;oh! libertae-vos<br />
+
+de um
+preconceito v&atilde;o; &eacute; toda a terra<br />
+
+a terra do
+Senhor; afora o vicio,<br />
+
+debaixo d'este ceo nada &eacute; profano.<br />
+
+A
+ben&ccedil;&atilde;o do Pastor consagraria<br />
+
+vosso asylo feliz; e
+a Cruz em meio<br />
+
+todo de um santo influxo ench&ecirc;ra o bosque.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>VII</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Mas, em quanto esses dias vos
+n&atilde;o raiam,<br />
+
+bons velhos,
+vigiae que, de anno em anno,<br />
+
+aos juvenis futuros plantadores,<br />
+
+em vez de
+se afrouxar, se inflamme o zelo.<br />
+
+Cres&ccedil;a com seu favor por
+estas serras<br />
+
+a gera&ccedil;&atilde;o dos vegetaes gigantes. <br />
+
+Com
+todos v&oacute;s conversam todos elles<br />
+
+sem cobrir campas;
+guardam-vos saudades,<br />
+
+s&atilde;o parentes de todas as aldeias,<br />
+
+e o
+bras&atilde;o da montanha &eacute; o vosso parque.<br />
+
+Sobre tudo
+influi que a vossa ra&ccedil;a<br />
+
+trema ao s&oacute; nome do
+brutal machado <br />
+
+que ouse violar a veneranda heran&ccedil;a.<br />
+
+O que
+s&oacute; Deus medrou, s&oacute; Deus derribe.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[70]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Cr&ecirc;de-me (eu j&aacute;
+vi outras) vossa terra<br />
+
+&eacute; descrida, enteada &aacute; Natureza.<br />
+
+Cumpre a
+v&oacute;s ado&ccedil;ar-lhe o aspecto agreste,<br />
+
+amiudar-lhe no
+oceano ermo dos ares<br />
+
+estas ilhas, virentes, graciosas,<br />
+
+que espalhem
+primavera pelos montes,<br />
+
+que attr&aacute;iam as volantes caravanas<br />
+
+do rouxinol, da r&ocirc;la, e da andorinha.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>VIII</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">L&aacute; em baixo a casa humilde
+que branqeja,<br />
+
+entre os alegres
+pl&aacute;tanos e o templo,<br />
+
+quasi que pasma, e se entristece e
+encolhe,<br />
+
+de ver em torno a solid&atilde;o t&atilde;o vasta.<br />
+
+Como que est&aacute; pedindo... ao menos bosques;<br />
+
+n&atilde;o
+tem outros jardins, outros passeios,<br />
+
+que offere&ccedil;a a seu dono, o Pastor
+vosso.<br />
+
+Preparae desde j&aacute; para o futuro<br />
+
+sombras novas aos
+novos successores,<br />
+
+e refrig&eacute;rio estivo &aacute;s cans do
+velho.<br />
+
+Casae co'o vosso int'resse o int'resse alheio.<br />
+
+Mil vezes sua voz
+reconhecida<br />
+
+rogar&aacute; paz ditosa aos vossos netos,<br />
+
+quando,
+serena a mente, e s&ocirc;lta a vista<br />
+
+l&aacute; f&ocirc;rem
+divagar, ora embebidos<br />
+
+nos psalmos, nos poeticos arrojos,<br />
+
+ora admirando
+o Autor e o N&oacute; dos mundos,<br />
+
+no largo azul dos ceos, no alto
+dos troncos<br />
+
+e no zumbir e no voar do insecto. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Surgi! &iexcl;surgi!
+L&aacute; jazem as enxadas.</div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Velhos, surgi! La voltam triumphantes,</div>
+
+<div class="poetry1">findo o novo trabalho, os vossos
+filhos.</div>
+
+<span class="pagenum">[71]</span>
+<div class="poetry1">Agora espumem copos,
+s&ocirc;em risos,<br />
+
+exulte a dan&ccedil;a, alonguem-se os
+cantores.<br />
+
+Conquistastes o inculto &aacute; Natureza:<br />
+
+for&ccedil;&aacute;stel-a a sorrir, a ornar-se em festas.<br />
+
+Toda
+a vasta planicie, hontem t&atilde;o erma,<br />
+
+&iexcl;que povoada
+vai j&aacute;! &iexcl;como promette<br />
+
+lembrar ao vosso gado,
+&aacute;s vossas filhas! </div>
+
+<br />
+
+<h5>UM VELHO </h5>
+
+<div class="poetry1">Sim, dar&aacute; sombra e vai
+povoado o valle:<br />
+
+mas fosse eu rico, e
+lhe dobr&aacute;ra encantos. </div>
+
+<br />
+
+<h5>SEGUNDO VELHO </h5>
+
+<div class="poetry1">&iquest;E como, irm&atilde;o?
+</div>
+
+<br />
+
+<h5>O PRIMEIRO </h5>
+
+<div class="poetry2">
+No alto d'este oiteiro,</div>
+
+<div class="poetry1">d'onde se avista o mar, o ceo, a
+terra,<br />
+
+poria
+uma capella, e um San-Mamede<br />
+
+co'o rosto de um menino, e o rir de um
+Anjo;<br />
+
+nas m&atilde;os o cajadito, o alforge ao lado,<br />
+
+e o seu
+rafeiro ao p&eacute; todo soberbo<br />
+
+co'a colleira escarlate, e todo
+amigo<br />
+
+a lamber o seu Santo. &Eacute; bom que os altos<br />
+
+se
+c'r&ocirc;em de capellas, que levantem<br />
+
+o pensamento aos Ceos, no
+campo espalhem<br />
+
+devo&ccedil;&atilde;o e piedade, e aos
+peregrinos<br />
+
+ensinem o caminho e a vista alegrem. </div>
+
+<br />
+
+<h5>UM PASTOR </h5>
+
+<div class="poetry1">Sim, co'o santo pastor de guarda aos
+bosques,<br />
+
+&iquest;que haviam de
+temer, nem c&atilde;es nem gado?</div>
+
+<span class="pagenum">[72]</span>
+<div class="poetry1">Nos degraus da capella, &aacute;
+sombra inquieta,<br />
+
+longas s&eacute;stas sonh&aacute;ramos de
+amores. </div>
+
+<br />
+
+<h5>TERCEIRO VELHO </h5>
+
+<div class="poetry1">J&aacute; l&aacute;
+v&atilde;o o bom tempo e os bons
+costumes;<br />
+
+foi-se a abundancia e os cora&ccedil;&otilde;es
+piedosos.<br />
+
+Esses fundavam templos, como o nosso,<br />
+
+n'um &aacute;rido
+deserto; e hoje.... se estala<br />
+
+no campanario um sino, em ocio eterno<br />
+
+fica mudo a pender dos bra&ccedil;os podres.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>IX</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bem, bem. Mal que a fortuna me sorria,<br />
+
+serei eu quem consagre o
+vosso oiteiro;<br />
+
+n&atilde;o a Mamede, n&atilde;o ao pastor
+martyr,<br />
+
+mas &aacute; contrita amavel Peccadora.<br />
+
+&iquest;N&atilde;o valem mais as lagrimas que o sangue?<br />
+
+&iquest;Mais que heroico valor n&atilde;o nos commove<br />
+
+doce
+humildade e penitencia longa?<br />
+
+E de mais: se &aacute;s
+asp&eacute;rrimas proezas<br />
+
+vos n&atilde;o destina o Ceo, todos
+nascestes<br />
+
+captivos fr&aacute;geis de amorosas culpas.<br />
+
+Muita virgem
+no monte solitario<br />
+
+tentada pelo amor e pelo amante,<br />
+
+s&oacute; com
+ver a capella ha-de livrar-se,<br />
+
+e pela salva flor dar lhe-ha mil flores.<br />
+
+E quando aqui errantes missionarios<br />
+
+vierem dar, e &aacute; sombra
+dos carvalhos,<br />
+
+as turbas apinhadas instruirem,<br />
+
+&iexcl;que
+persuas&otilde;es, que lagrimas, que exemplos<br />
+
+h&atilde;o-de
+tirar da veneranda Imagem!....</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[73]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Qual me ri j&aacute;
+na mente o gr&atilde;o
+projecto!<br />
+
+Eu serei pois o fundador de um culto<br />
+
+que aos frutos da moral
+reuna flores. <br />
+
+im; &iquest;quem tolhe o prazer puro e innocente?<br />
+
+............................................................. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>X</h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Partiram. E eis-me s&oacute;.
+Todos partiram.<br />
+
+O
+alvoro&ccedil;o do entrudo os chama aos lares.<br />
+
+&iexcl;Oh!
+&iexcl;Bemdita a ignorancia d'estas serras!<br />
+
+O rustico inda ri na
+Patria em luto,<br />
+
+e eu finjo o riso por dobrar-lhe o erro.<br />
+
+&iexcl;Bem
+sabe elle que lagrimas aos mares<br />
+
+d'este horizonte em roda
+est&atilde;o correndo!<br />
+
+&iquest;Sabe elle que o atro dia
+&eacute; menos atro?<br />
+
+A paz, a confian&ccedil;a, as alegrias,<br />
+
+a
+abundancia, a uni&atilde;o de antigos Lusos,<br />
+
+n&atilde;o
+deixaram, fugindo, um s&oacute; vestigio.<br />
+
+No vaivem das
+fac&ccedil;&otilde;es, que se entrevencem,<br />
+
+tudo se perde e
+esquece, afora a raiva.<br />
+
+Os bons usos, as festas populares,<br />
+
+a romaria
+alegre, as patrias dan&ccedil;as,<br />
+
+v&atilde;o-se apagando...
+Aqui, mesmo na brenha,<br />
+
+a pastora, esquecendo os seus amores,<br />
+
+canta a
+quest&atilde;o dos Reis, o hymno da guerra,<br />
+
+sons novos, que o seu
+gado e o ecco extranham. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&Oacute; Patria, bella Italia do
+Occidente,<br />
+
+tu que egual a
+Parth&eacute;nope repoisas<br />
+
+debaixo da invejada laranjeira<br />
+
+e do
+mirto florido, ao deleitoso<br />
+
+ruido de aguas limpidas, no abri</div>
+
+<span class="pagenum">[74]</span>
+<div class="poetry1">de um ceo inspirador
+t&atilde;o proprio ao genio,<br />
+
+&oacute; bella Italia do
+Occidente, &oacute; Patria,<br />
+
+&iquest;era pois fado teu lidar sem
+fruto<br />
+
+para seres a inveja, a flor das gentes?....<br />
+
+A guerra, sim, te
+coroou co'as palmas<br />
+
+das quatro partes do orbe, e as naus do mundo<br />
+
+trouxeram a teus p&eacute;s thesoiros, sceptros.<br />
+
+Mas as flores das
+artes, mas os frutos<br />
+
+das sciencias, no ch&atilde;o dos outros povos<br />
+
+com tanto custo e com suor medrados,<br />
+
+&iquest;espont&acirc;neos
+no teu medraram nunca?...<br />
+
+&iquest;Tiveste nunca os dons, que em paz
+florentes<br />
+
+ornam e absolvem da conquista os loiros?<br />
+
+&iexcl;Que
+imperios teem cahido! e tu, tu ousas,<br />
+
+hoje ainda, aspirar &aacute;
+eternidade!!...<br />
+
+Talvez bem perto os seculos se cheguem,<br />
+
+que
+h&atilde;o-de ver cego arado andar lavrando<br />
+
+tuas cidades de
+esquecido nome,<br />
+
+e o rebanho indiff'rente apascentar-se<br />
+
+sobre os teus
+tribunaes, theatros, pra&ccedil;as. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+V&ecirc;-te o sol com praser; deixa-te a custo,<br />
+
+Lusitania, que
+&aacute; borda do Oceano<br />
+
+brilhas qual deusa em majestade e em
+gra&ccedil;a.<br />
+
+Deusa, e immortal, te cr&ecirc;ram; mas tu jazes<br />
+
+entre tropheos em p&oacute;, lavada em sangue.<br />
+
+Deshonrada
+Cle&oacute;patra, inda &eacute;s bella,<br />
+
+mas j&aacute; nas
+veias te circula a morte.<br />
+
+&iexcl;Ai de quem nutre as
+&aacute;spides no seio!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;&Oacute; Patria,
+&oacute; Patria, com que voz
+t&atilde;o baixa,<br />
+
+com que pejo te expr&oacute;bro!
+&iexcl;Ah! se
+pod&eacute;res,</div>
+
+<span class="pagenum">[75]</span>
+<div class="poetry1">perd&ocirc;a meu furor,
+v&ecirc; s&oacute; meu pranto;<br />
+
+&oacute; Patria, &oacute; m&atilde;e, &oacute; misera
+querida!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&iquest;Que ouvi? &iexcl;longinquo estrondo! &iquest;que
+seria?<br />
+
+&iexcl;Som de espingardas!... Sim, talvez... s&atilde;o
+homens<br />
+
+que nos matam irm&atilde;os... &iexcl;Alerta!...
+oi&ccedil;&acirc;mos...<br />
+
+<br />
+
+.................................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c9"></a>IX </h4>
+
+<h3>
+O SAN JO&Atilde;O NAS FALDAS DO CARAMULO </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Dia
+em que o Poeta
+plantou por suas m&atilde;os um cedro no pateo<br />
+
+da residencia parochial da Castanheira do Vouga <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>(FRAGMENTO) </h4>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+.......................................................... </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">
+Se, de teus
+annos na madura for&ccedil;a,</div>
+
+<div class="poetry1">
+a m&atilde;o que te ora planta
+inda f&ocirc;r viva,<br />
+
+essa mesma, j&aacute; tr&eacute;mula e
+caduca,<br />
+
+no tronco te abrir&aacute;, com pio exfor&ccedil;o,<br />
+
+graciosa capellinha, onde sorria<br />
+
+um San-Jo&atilde;o, o Santo alegre
+do ermo,<br />
+
+trajo de pelles, juvenil frescura,<br />
+
+olhos nos Ceos, aos
+p&eacute;s cordeiro branco. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">N'essa noite poetica e devota,<br />
+
+em que
+o praser, centuplicando aspectos,<br />
+
+pov&ocirc;a, anima, encanta o mundo inteiro,<br />
+
+agua e terra, ar e
+ceo, tudo &eacute; macio,<br />
+
+em que a velhice, a mocidade, a infancia,<br />
+
+sympathisam no vago da alegria;<br />
+
+quando n'alma insaciavel de delicias<br />
+
+se
+juntam, com mistura inexplicavel,<br />
+
+ao saudoso passado, aos bens
+presentes,<br />
+
+as mil vis&otilde;es do esplendido futuro;</div>
+
+<span class="pagenum">[78]</span>
+<div class="poetry1">quando em la&ccedil;o phantastico
+se
+aggregam<br />
+
+da vida e eternidade os pensamentos,<br />
+
+gosos,
+supersti&ccedil;&otilde;es, fraquezas, cultos,<br />
+
+qual ramalhete
+de cipreste e rosas<br />
+
+na caprichosa m&atilde;o das feiticeiras;<br />
+
+n'essa noite, das noites invejada,<br />
+
+a ti concorrer&atilde;o por toda
+a parte,<br />
+
+t&eacute; das aldeias do horizonte extremo,<br />
+
+dan&ccedil;antes bandos que a viola guia. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ver&aacute;s girar seus bailes
+clamorosos<br />
+
+em redor das
+estr&iacute;dulas fogueiras;<br />
+
+ouvir&aacute;s os seus
+c&acirc;nticos em c&ocirc;ro<br />
+
+devoto e ennamorado. A bomba foge,<br />
+
+zune fugindo, e sollapada estoira;<br />
+
+o buscap&eacute; no ar
+caracolando<br />
+
+morde n'um, morde n'outro, amea&ccedil;a a todos,<br />
+
+dispersa os grupos, gasta-se raivando,<br />
+
+e entre os risos rebenta
+atroando os ares;<br />
+
+ali circula em v&oacute;rtice perenne<br />
+
+a roda leve
+espadanando incendios,<br />
+
+chovendo oiro luzente e estrellas alvas;<br />
+
+aqui
+floreia o f&uacute;lgido valverde,<br />
+
+vesuviosinho que arremette
+&aacute;s nuvens;<br />
+
+arranca o v&ocirc;o e vai rugindo aos astros<br />
+
+o ign&iacute;vomo foguete estrepitoso. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;E a musica entretanto!
+&iexcl;e as doces falas!<br />
+
+&iexcl;e os protestos de amor! &iexcl;e a prece occulta!<br />
+
+&iexcl;e essa m&atilde;o dada a furto e a furto acceita!<br />
+
+&iexcl;e esse olhar falador! &iexcl;e essas virtudes<br />
+
+da
+meia-noite em ponto! &iexcl;e a flor crestada!</div>
+
+<span class="pagenum">[79]</span>
+<div class="poetry1">&iexcl;e as sortes que a fortuna
+extrai
+&aacute;s vezes,<br />
+
+e muitas mais a pr&oacute;vida malicia!<br />
+
+&iexcl;e a fonte que amanhece entre descantes,<br />
+
+e pasma rindo de se
+ver coroada<br />
+
+de fest&otilde;es verdes e entran&ccedil;adas
+flores!<br />
+
+&iexcl;Que noites, que alegrias, que triumphos,<br />
+
+te aguardam
+no porvir, me est&atilde;o na mente!<sup><a href="#14">[9]</a></sup>
+<br />
+
+...............................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c10"></a>X </h4>
+
+<h3>
+O MOSTEIRO </h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">V&oacute;s, que sois do amavel
+sexo<br />
+
+ardentes adoradores,<br />
+
+que
+girais de bella em bella,<br />
+
+qual leve abelha entre as flores, <br />
+
+<br />
+
+que sabeis n'um s&oacute; momento<br />
+
+a mil deusas incensar,<br />
+
+e pareceis
+de ternura<br />
+
+n&atilde;o poder-vos saciar, <br />
+
+<br />
+
+mancebos, o mundo &eacute; vosso;<br />
+
+mil bellas o mundo tem;<br />
+
+mas
+n&atilde;o choreis as que &aacute; sombra<br />
+
+repoisar das aras
+veem. <br />
+
+<br />
+
+Se um jardim, flor&iacute;do, immenso,<br />
+
+encontrais na sociedade,<br />
+
+&iquest;que importa que poucas rosas<br />
+
+lhe furte a m&atilde;o da
+piedade? <br />
+
+<br />
+
+poucas rosas, que dispostas<br />
+
+v&atilde;o depois na solid&atilde;o<br />
+
+lan&ccedil;ar mais doces perfumes,<br />
+
+seguras de extranha
+m&atilde;o.</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[82]</span>
+<div class="poetry1">Vagae, vagae livremente<br />
+
+nos jardins da Id&aacute;lia Venus;<br />
+
+segui as Nymphas e as Gra&ccedil;as<br />
+
+pelos seus bosques amenos; <br />
+
+<br />
+
+os prazeres vos rodeiem,<br />
+
+os jogos em torno v&ocirc;em;<br />
+
+a mocidade
+vos ria;<br />
+
+esp&ecirc;ssas rosas vos c'r&ocirc;em; <br />
+
+<br />
+
+&iquest;que falta aos desejos vossos?<br />
+
+&iexcl;ah! soffrei, sem
+murmurar,<br />
+
+ver d'entre os verg&eacute;is flor&iacute;dos<br />
+
+poucas
+pombas desertar, <br />
+
+<br />
+
+poucas pombas, que innocentes,<br />
+
+e temendo o ca&ccedil;ador,<br />
+
+v&atilde;o nos ermos solitarios<br />
+
+buscar um fado melhor. <br />
+
+<br />
+
+Do Libano opacos cedros,<br />
+
+de Si&atilde;o bosque tranquillo,<br />
+
+v&oacute;s, palmeiras de Idum&ecirc;a,<br />
+
+prestae-lhes seguro
+asylo. <br />
+
+<br />
+
+Estranhas vistas n&atilde;o turbem<br />
+
+os seus piedosos segredos;<br />
+
+contentes &aacute; sombra vivam<br />
+
+dos sagrados arvoredos. <br />
+
+<br />
+
+Silencio, paz, e ternura,<br />
+
+alva estrella de innocencia,<br />
+
+e a vista de um
+ceo risonho,<br />
+
+lhes doirem toda a existencia.</div>
+
+<span class="pagenum">[83]</span>
+<div class="poetry1"><br />
+
+Murm&uacute;rio de castas fontes,<br />
+
+perfume de simples flores,<br />
+
+lhes paguem jardins que infestam <br />
+
+os abutres e os a&ccedil;ores. <br />
+
+<br />
+
+Eu vos lamento e vos ch&oacute;ro,<br />
+
+insensiveis
+cora&ccedil;&otilde;es,<br />
+
+que de um mosteiro entre os muros<br />
+
+n&atilde;o v&ecirc;des sen&atilde;o pris&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+C&oacute;rae da vossa loucura.<br />
+
+Correi a ver de mais perto<br />
+
+o Eden
+recatado ao mundo<br />
+
+no seio d'este deserto. <br />
+
+<br />
+
+Modestas virgens o habitam,<br />
+
+que s&oacute; n&atilde;o teem
+liberdade<br />
+
+de colher em frutos de oiro<br />
+
+as festas da sociedade. <br />
+
+<br />
+
+Segui-me, segui-me affoitos,<br />
+
+entremos. Abriu-se o templo.<br />
+
+Seus ermos,
+ao mundo ignotos,<br />
+
+inteiros d'aqui contemplo. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;N&atilde;o v&ecirc;des sobre os altares<br />
+
+com
+gra&ccedil;a engrupadas flores<br />
+
+lan&ccedil;ar torrentes de
+aromas,<br />
+
+brilhar co'as mais vivas cores? <br />
+
+<br />
+
+N'esses prados invisiveis<br />
+
+tambem pois se eleva a aurora;<br />
+
+sol, e
+zephyros, e fontes,<br />
+
+lhes d&atilde;o sorrisos de Flora.</div>
+
+<span class="pagenum">[84]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Essas pois, que v&oacute;s julgaveis<br />
+
+desgra&ccedil;adas
+prisioneiras,<br />
+
+teem praseres, teem delicias,<br />
+
+teem jardins,
+s&atilde;o jardineiras. <br />
+
+<br />
+
+V&ecirc;de ornar formosa Imagem<br />
+
+rico manto que fulgura,<br />
+
+de oiro e
+sedas matizado<br />
+
+com vistosa bordadura. <br />
+
+<br />
+
+V&ecirc;de a grinalda florida;<br />
+
+v&ecirc;de o ramo; estes
+jasmins,<br />
+
+estes lirios, estas rosas,<br />
+
+n&atilde;o s&atilde;o
+j&aacute; de seus jardins. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o devem sua existencia<br />
+
+nem &aacute; terra nem ao Ceo,<br />
+
+e nem zephyros nem fontes<br />
+
+serviram no augmento seu. <br />
+
+<br />
+
+Formou-as arte engenhosa;<br />
+
+poude mais que a Natureza;<br />
+
+deu mais vida
+&aacute;s suas flores;<br />
+
+prestou-lhes egual belleza. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Sabeis, que m&atilde;os feiticeiras<br />
+
+obraram prodigios
+taes?<br />
+
+eis o trabalho e os recreios<br />
+
+d'essas piedosas Vestaes. <br />
+
+<br />
+
+Ellas no c&ocirc;ro apparecem;<br />
+
+e, ao som dos org&atilde;os
+divinos,<br />
+
+de sua alma aos Ceos se elevam<br />
+
+devotos brilhantes hymnos.</div>
+
+<span class="pagenum">[85]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Innocentes e macias,<br />
+
+d'estas vozes a mistura<br />
+
+sem perturbar os
+sentidos<br />
+
+infunde n'alma ternura. <br />
+
+<br />
+
+Em seus canticos n&atilde;o reina<br />
+
+terreno vulgar affecto;<br />
+
+&eacute; mais puro, &eacute; mais sublime<br />
+
+de seus amores o
+objecto. <br />
+
+<br />
+
+O pensamento que as ouve,<br />
+
+sai da t&eacute;rrea
+habita&ccedil;&atilde;o,<br />
+
+deixa os ares, das esph&eacute;ras<br />
+
+atravessa o turbilh&atilde;o, <br />
+
+<br />
+
+v&ecirc; do Empyrio as portas de oiro<br />
+
+abertas &aacute;
+humanidade,<br />
+
+rompe audaz, vai submergir-se<br />
+
+no fulgor da Divindade. <br />
+
+<br />
+
+Cessa a musica, e de novo<br />
+
+volve a mente ao patrio mundo;<br />
+
+mas dos
+virgineos desertos<br />
+
+primeiro se arroja ao fundo. <br />
+
+<br />
+
+L&aacute; divisa, em liberdade,<br />
+
+nas livres tranquillas horas,<br />
+
+dadas
+a cantos diversos<br />
+
+estas formosas cantoras. <br />
+
+<br />
+
+Na sombra d'aquelles bosques,<br />
+
+n'aquelles molles passeios,<br />
+
+tambem pois
+das Musas entram<br />
+
+os aprasiveis recreios.</div>
+
+<span class="pagenum">[86]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Olhae por fim seus aspectos,<br />
+
+&iquest;N&atilde;o vedes
+v&oacute;s a bondade,<br />
+
+a alegria da innocencia,<br />
+
+as virtudes da
+piedade? <br />
+
+<br />
+
+Eis os Genios que lhes tornam<br />
+
+encantadora a existencia:<br />
+
+as virtudes da
+piedade,<br />
+
+os praseres da innocencia. <br />
+
+<br />
+
+A amisade entre ellas reina;<br />
+
+&iquest;os encantos da amisade<br />
+
+n&atilde;o prestar&atilde;o, por ventura,<br />
+
+delicias &aacute;
+soledade? <br />
+
+<br />
+
+Mas basta, insensatos, basta;<br />
+
+&aacute; scena se corra o veo;<br />
+
+n&atilde;o profanem vossos olhos<br />
+
+mais tempo os &aacute;trios do
+Ceo. <br />
+
+<br />
+
+Ide no mundo esquecel-as,<br />
+
+em vez de as irdes chorar;<br />
+
+e o vosso mundo
+vos baste,<br />
+
+como lhes basta um altar. <br />
+
+<br />
+
+Mas esperae; respondei-me;<br />
+
+consultae vosso interior:<br />
+
+&iquest;sois
+ditosos co'os sorrisos<br />
+
+de um falso inconstante amor? <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Sabeis v&oacute;s o que amor seja?<br />
+
+&iquest;Satisfaz-se o cora&ccedil;&atilde;o<br />
+
+com esses fogos
+incertos,<br />
+
+e essa eterna agita&ccedil;&atilde;o?</div>
+
+<span class="pagenum">[87]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+&iquest;N&atilde;o vir&aacute; talvez um dia,<br />
+
+em que,
+mais sabios, queirais<br />
+
+unir os vossos destinos<br />
+
+&aacute; melhor
+d'entre as mortaes? <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Como a haveis de achar no mundo,<br />
+
+no mundo, cujos enganos<br />
+
+v&oacute;s conheceis, ajudastes,<br />
+
+seguistes, por tantos annos? <br />
+
+<br />
+
+Tremereis de um la&ccedil;o eterno.<br />
+
+A vossa pena consiste<br />
+
+em
+pensardes que a virtude<br />
+
+que n&atilde;o tendes, n&atilde;o
+existe. <br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o aqui vos espero,<br />
+
+n'estes quietos retiros.<br />
+
+Estes muros
+que insultaveis,<br />
+
+ouvir&atilde;o vossos suspiros. <br />
+
+<br />
+
+Entre estas virgens mimosas,<br />
+
+que severa educa&ccedil;&atilde;o<br />
+
+forma, longe dos humanos,<br />
+
+&aacute; sombra da solid&atilde;o, <br />
+
+<br />
+
+vir&eacute;is procurar o objecto,<br />
+
+cuja ternura innocente<br />
+
+vos deve
+tornar a vida<br />
+
+risonha, pura, e contente. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o detesteis um recinto,<br />
+
+onde Amor, onde Hymeneu,<br />
+
+onde um
+Genio, amigo vosso,<br />
+
+vosso thesoiro escondeu.</div>
+
+<span class="pagenum">[88]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Pensae, pensae que ali vive,<br />
+
+cresce em virtude e talentos,<br />
+
+e em
+gra&ccedil;as, aquella que ha-de<br />
+
+doirar os vossos momentos. <br />
+
+<br />
+
+Qual arbusto delicado,<br />
+
+que a vi&ccedil;osa lou&ccedil;ania<br />
+
+mostrar em seu proprio clima,<br />
+
+em seu proprio ceo, devia, <br />
+
+<br />
+
+mas foi por m&atilde;o inimiga<br />
+
+trazido a estranhos logares,<br />
+
+onde
+murcho cederia<br />
+
+a influxos de infestos ares, <br />
+
+<br />
+
+se da estufa compassiva<br />
+
+lhe n&atilde;o fosse aberto o seio,<br />
+
+onde
+vegeta e floresce<br />
+
+de arbustos eguaes no meio; <br />
+
+<br />
+
+ali n&atilde;o receia as neves;<br />
+
+n&atilde;o treme da tempestade;<br />
+
+gosa o sol; vive no mundo,<br />
+
+vivendo na soledade; <br />
+
+<br />
+
+de extranhos somente &eacute; visto;<br />
+
+tem louvor; &eacute;
+cubi&ccedil;ado;<br />
+
+mas das flores, mas dos frutos,<br />
+
+n&atilde;o
+&eacute; jamais despojado. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Mil vezes feliz, mil vezes,<br />
+
+quem ousa, &aacute; luz da
+verdade,<br />
+
+queimar a m&aacute;scara d'oiro<br />
+
+&aacute;s larvas da
+sociedade!</div>
+
+<span class="pagenum">[89]</span><br />
+
+<div class="poetry1">
+Medrae, sagrados mosteiros;<br />
+
+medrae, desprezando a inveja;<br />
+
+jamais
+fulminar-vos possa<br />
+
+calumnia que em v&atilde;o troveja. <br />
+
+<br />
+
+Brilhae, como ilhas flor&iacute;das,<br />
+
+no meio do mar profundo<br />
+
+de
+vicios, crimes, e horrores,<br />
+
+que alaga, que abrange o mundo. <br />
+
+<br />
+
+S&ecirc;de o asylo das virtudes,<br />
+
+do Eden a propria entrada,<br />
+
+o
+enlace dos Ceos co'a terra,<br />
+
+do Empyrio a sublime escada. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Coimbra&#8213;1826 (?)</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c11"></a>XI </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+SANTA MARIA EGYPC&Iacute;ACA </h3>
+
+<h4>
+(Fragmento de um poema) </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">...........................................................<br />
+
+Prostrada aos
+p&eacute;s da Cruz, ante a caveira,<br />
+
+jaz solitaria a Egypcia. Rios
+descem<br />
+
+de olhos lindos, que os ceos fitar n&atilde;o ousam, </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;T&atilde;o nova, e
+isenta? &iexcl;Oh!
+n&atilde;o; mudou de amores.<br />
+
+Dos primeiros s&oacute; guarda a
+dor e as penas;<br />
+
+mas os novos, os ultimos, protesta<br />
+
+conserval-os em
+vida, e em morte havel-os. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">T&eacute; aqui, pela alma escura
+s&oacute; lhe ardiam<br />
+
+relampagos dispersos; derretido<br />
+
+raio dos Ceos lhe c&ocirc;a pelas
+veias. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Brilhou no mundo como a flor de um
+dia.<br />
+
+Os soes vivos, os ventos
+importunos,<br />
+
+lhe amea&ccedil;avam fim; ruins borboletas<br />
+
+captivas da
+belleza iam murchal-a.<br />
+
+Imprevisto invisivel jardineiro<br />
+
+a tempo a salva,
+e a transplantou no ermo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[92]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">No mundo, sobre o abysmo, hontem
+folgava<br />
+
+impr&oacute;vida e
+leviana; hoje pranteia<br />
+
+na solid&atilde;o, mas sob um Ceo que a
+espera.<br />
+
+As cidades, em que &iacute;dolo brilh&aacute;ra,<br />
+
+inda a
+chamam em v&atilde;o, e em v&atilde;o a aguardam.<br />
+
+De um lustro
+que a houveram, &iexcl;quantos lustros<br />
+
+lhe volveram saudade! </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Em vi&ccedil;o de annos,</div>
+
+<div class="poetry1">e mais bella que as flores todas
+juntas<br />
+
+das dezassete suas primaveras,<br />
+
+qual fugaz sonho de manhan de estio,<br />
+
+foi-se, e n&atilde;o voltou mais, Deus sabe aonde.<br />
+
+Murcharam
+festas; esmorecem dan&ccedil;as;<br />
+
+os banquetes, diffusos pela noite,<br />
+
+j&aacute; n&atilde;o veem despertar ternura e risos.<br />
+
+Nas
+roseiras intactas se desfolham<br />
+
+os bot&otilde;es das grinaldas; o
+ala&uacute;de,<br />
+
+que falou tanto amor nas m&atilde;os da bella,<br />
+
+discorde jaz, e mudo... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Ella, entretanto,</div>
+
+<div class="poetry1">co'os mimosos p&eacute;s
+n&uacute;s calcando
+areias,<br />
+
+desornado o cabello, env&ocirc;lta em pelles,<br />
+
+timida,
+envergonhada, pesarosa,<br />
+
+vai caminho do Ceo co'a fronte baixa.<br />
+
+Mil vezes
+&aacute; avesinha se comp&aacute;ra,<br />
+
+sem fam&iacute;lia,
+sem lar; corre erradia;<br />
+
+&iquest;n&atilde;o ha-de ambas manter a
+paz que &eacute; de
+ambas?<br />
+
+Beija a caverna fr&iacute;gida que a hosp&eacute;da,<br />
+
+e
+agradecendo este h&oacute;rrido paraizo<br />
+
+ao Deus que lh'o dep&aacute;ra,
+esquece o mundo,<br />
+
+ou sem saudade e com horror o aviva.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[93]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ai cora&ccedil;&atilde;o
+t&atilde;o amplo, onde estuava<br />
+
+mar
+de affectos sem conto, escoado agora,<br />
+
+&iquest;quem o ha de encher?
+&iexcl;em solid&atilde;o
+t&atilde;o funda!<br />
+
+&iquest;quem o ha-de encher? J&aacute; o
+enche o que enche
+tudo,<br />
+
+o que brilha na luz, no sol, nos astros,<br />
+
+corre nos
+aquil&otilde;es, anima os troncos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">S&oacute; conversa com Deus, e a
+Deus s&oacute; ouve.<br />
+
+Este
+seio, estas tran&ccedil;as desatadas,<br />
+
+s&atilde;o brinco
+s&oacute; do vento do deserto.<br />
+
+Esta m&atilde;o, t&atilde;o
+mimosa e t&atilde;o querida,<br />
+
+s&oacute; procura, excavando a
+terra ingrata,<br />
+
+a amorosa raiz, ou j&aacute; se encurva<br />
+
+para dar
+agua aos labios sequiosos.<br />
+
+A aurora a vem saudar j&aacute; de
+joelhos.<br />
+
+N&atilde;o ha um sol, n&atilde;o ha na noite um astro,<br />
+
+que n&atilde;o saiba os seus ais e eternas preces.<br />
+
+Nem que passe o
+chacal, a hiena, a on&ccedil;a,<br />
+
+foge, ou quebra os devotos
+exercicios.<br />
+
+Treme a gazella, e encolhe-se aos rugidos;<br />
+
+e a Estrangeira
+n&atilde;o treme; ora, e descan&ccedil;a. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ao fresco desmaiar da extrema tarde,<br />
+
+quando os raios do sol
+j&aacute; mal doiravam<br />
+
+da longinqua palmeira o incerto cume,<br />
+
+&iexcl;que vezes, assentada, e sustentando<br />
+
+na eburnea
+m&atilde;o o pallido semblante,<br />
+
+atraz do astro fogoso e fugitivo,<br />
+
+mandava o cora&ccedil;&atilde;o, mandava os olhos!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[94]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&#8213;&laquo;Al&eacute;m&#8213;dizia&#8213;al&eacute;m,
+n'esse Occidente,<br />
+
+corre o santo Jord&atilde;o delicias minhas,<br />
+
+que o Salvador banhou,
+que eu passei mesma.<br />
+
+Talvez aquella nevoa que l&aacute; brilha,<br />
+
+mudada em rosa, em purpuras, em oiro,<br />
+
+seja da santa veia alegre filha,<br />
+
+Al&eacute;m... Jerusalem, Si&atilde;o,
+Jud&ecirc;a...&raquo; </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">E a taes nomes, enxames de memorias,<br />
+
+de saudades, de affectos, lhe
+adejavam<br />
+
+pela alma, alegre em parte, em parte escura.<br />
+
+Raro, mas inda
+&aacute;s vezes lhe assomavam<br />
+
+no involuntario somno ideias meigas.<br />
+
+Inda, uma vez ou outra, o amor banido<br />
+
+entrava de relance o antigo
+alvergue,<br />
+
+e ap&oacute;z elle os passeios namorados,<br />
+
+os theatros
+esplendidos, as galas,<br />
+
+as mezas rindo, os bailes desenv&ocirc;ltos;<br />
+
+e as victorias, e as chusmas dos praseres,<br />
+
+como &aacute; sua rainha
+v&atilde;o saudal-a.<br />
+
+Acordava sorrindo, a Cruz fitava;<br />
+
+e atirando
+se &aacute; terra, e s&ocirc;lta em
+ch&oacute;ros,<br />
+
+pagava erros n&atilde;o seus com dor bem sua. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Taes se lhe v&atilde;o no ermo
+deslizando<br />
+
+dias e annos, sem ver na
+areia impressos<br />
+
+mais vestigios que os seus. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+De tempo em tempo,</div>
+
+<div class="poetry1">s&oacute; v&ecirc; talvez, ou
+ver presume ao
+longe,</div>
+
+<span class="pagenum">[95]</span>
+<div class="poetry1">do horisonte nas
+sombras pavorosas,<br />
+
+o t&eacute;nue p&oacute; da immensa
+caravana,<br />
+
+que vai de Al&eacute;po &aacute; M&eacute;ka em
+certa
+estrada.<br />
+
+Por ella ora, e entre o orar lamenta<br />
+
+a devota
+fan&aacute;tica impiedade. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Tal vai manando a limpida existencia.<br />
+
+Egual ao ramalhete que desmaia,<br />
+
+e
+se esf&oacute;lha no altar entre os perfumes,<br />
+
+tal, sem gosto e sem
+dor, e sem que o note,<br />
+
+perdendo vai co'o tempo a bella Egypcia<br />
+
+encantos, j&aacute; seu mal, e mal do mundo.<br />
+
+O juvenil das formas
+exteriores<br />
+
+concentrou-se-lhe n'alma; em cans e em rugas<br />
+
+se esconde um
+cora&ccedil;&atilde;o de amor n&atilde;o
+farto. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Quem a tivesse visto, e a visse agora,<br />
+
+sentiria o que sente o viajante,<br />
+
+quando, perto d'ali, vai dar co'os restos,<br />
+
+saudosos restos, da gentil
+Palmyra.<br />
+
+Uma e outra j&aacute; gloria do Universo;<br />
+
+agora mudas,
+s&oacute;s, e deslembradas,<br />
+
+e socias no deserto, e eguaes no
+exemplo. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Meio seculo a viu prantear sosinha<br />
+
+annos ligeiros da fugaz infancia.<br />
+
+Ao
+fim da gran carreira, o Ceo lhe envia<br />
+
+o solitario Z&oacute;zimo,
+como ella<br />
+
+anci&atilde;o virtuoso, e habitador das covas,<br />
+
+que lhe
+oi&ccedil;a a longa vida, a anime, e exforce;<br />
+
+lhe d&ecirc;
+perd&atilde;o e paz de um Deus em nome.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[96]</span>
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Pela primeira vez contente e alegre,<br />
+
+ousando olhar os Ceos,</div>
+
+<div class="poetry2">
+&#8213;&laquo;&iquest;Trareis,&#8213;lhe disse&#8213;</div>
+
+<div class="poetry1">&aacute; pobre
+peccadora o manjar de Anjos?&raquo;<br />
+
+&#8213;&laquo;Sim.&raquo;</div>
+
+<div class="poetry4">E partiu.</div>
+
+<div class="poetry2">Com vista prolongada</div>
+
+<div class="poetry1">ella o segue; co'os olhos no deserto<br />
+
+o espera todo
+o dia; &iexcl;e este &eacute; t&atilde;o
+longo!...<br />
+
+&iexcl;tarda tanto o bom h&oacute;spede!... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry5">
+Passou-se</div>
+
+<div class="poetry1">um anno inteiro. &Eacute; elle
+agora; &eacute; elle;<br />
+
+conhe&ccedil;o o fraco andar que o zelo apressa,<br />
+
+e as cans, e a
+calva, e as faces penitentes... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Chega; clama; a caverna
+n&atilde;o responde;<br />
+
+grita, e s&oacute;
+ouve a si. Olha em redondo,<br />
+
+v&ecirc;-a jazer na areia, e a areia
+escrita<br />
+
+por m&atilde;o tr&eacute;mula, errante, ao que parece: </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry tinyl">Bom Z&oacute;zimo, por santa
+caridade<br />
+
+enterra o corpo da infeliz
+Maria.<br />
+
+Aqui morri no dia em que te f&ocirc;ste.<br />
+
+Encommenda-me a
+Deus, e Deus t'o pague. </div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">..................................................................</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4><a name="c12"></a>XII </h4>
+
+<br />
+
+<h3>
+EPISTOLA </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Ao
+meu amigo o Desembargador
+Manuel Venancio<br />
+
+Deslandes
+</div>
+
+<br />
+
+<h4>
+(NO DIA DOS MEUS ANNOS)<br />
+
+<br />
+
+FRAGMENTO </h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Em torno ao teu amigo
+est&atilde;o fervendo,<br />
+
+Deslandes meu, na hora
+em que te escreve,<br />
+
+de uma festa caseira o reboli&ccedil;o. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Bem que alveje de neve o Caramulo,<br />
+
+e um fr&iacute;gido
+su&atilde;o de l&aacute; nos venha,<br />
+
+ninguem hoje de frio aqui
+se queixa.<br />
+
+N&atilde;o descan&ccedil;a nem p&eacute;, nem
+m&atilde;o, nem lingua;<br />
+
+o sumptuoso lar arde em tres
+f&oacute;gos;<br />
+
+o forno se afogueia; a branca meza<br />
+
+vai-se de
+loi&ccedil;a e vidros alegrando. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Uma estuda em comp&ocirc;r as
+sobremezas;<br />
+
+outra enrama de loiro
+alta ferrugem<br />
+
+das vigas da cosinha; esta, sizuda,<br />
+
+de riscado avental e
+nus os bra&ccedil;os,</div>
+
+<span class="pagenum">[98]</span>
+<div class="poetry1">com importancia e afan revira
+esp&ecirc;tos;<br />
+
+aquella, anda
+scismatica, e raivosa<br />
+
+de eu nascer em Janeiro, um mez agreste,<br />
+
+que
+al&eacute;m de um alecrim, de umas violetas,<br />
+
+nascidas por engano,
+al&eacute;m de rosas,<br />
+
+fr&aacute;geis, sem cheiro, e languidas,
+n&atilde;o cria<br />
+
+com que se enflore a meza dos meus annos. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iquest;Porque &eacute;,
+quando a sorrir divagam todos,<br />
+
+quando
+s&oacute; para mim se andam tecendo<br />
+
+estas pompas domesticas, agora<br />
+
+que a potente amisade em meu obsequio<br />
+
+para tudo fazer at&eacute;
+fez estros;<br />
+
+agora, emfim, que aos raios da alegria<br />
+
+n&atilde;o ha um
+cora&ccedil;&atilde;o que se
+n&atilde;o abra...<br />
+
+&iquest;por que se fecha o meu?
+&iquest;Dar&aacute;
+(n&atilde;o creio)<br />
+
+da Natureza o luto um certo assombro<br />
+
+&aacute;s festas do homem? &iquest;Pensas que enfartado<br />
+
+d'esta
+patria amargura, a filtre aos gostos,<br />
+
+qual vaso que azedado a tudo
+az&eacute;da?...<br />
+
+.......................................................... </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">26 de Janeiro</div>
+
+<div class="poetry3">de 1833.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>FIM DO PRESBYTERIO DA MONTANHA</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c13"></a>NOTAS DOS EDITORES<br />
+
+<br />
+
+AO VOLUME I DO<br />
+
+<br />
+
+PRESBYTERIO DA MONTANHA </h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Da villa da Castanheira&#8213;No Bispado de Coimbra, e na Provedoria de
+Esgueira, 1 legua da villa de Agueda, e 11 da cidade do Porto para o
+sul, em logar alto, tem seu assento a villa da Castanheira, que chamam
+da Beira, a qual &eacute; tambem dos Condes da Feira, e n'ella
+entra em correi&ccedil;&atilde;o o seu
+Ouvidor. Consta de 160 visinhos, com uma egreja parochial da
+invoca&ccedil;&atilde;o de S. Mamede, Priorado do Conde da
+Feira, que rende 600$000 r&eacute;is, e tres ermidas. O seu termo
+tem uma freguezia dedicada a Santa Maria Magdalena, no logar de
+Aguad&atilde;o, que consta de 100 visinhos. &Eacute; curado
+annexo &aacute; egreja de S. Mamede, que apresenta o seu Prior. Tem
+este logar muitas fontes de delgadas e salutiferas aguas, que
+fertilisam seus campos de p&atilde;o e vinho, e os fazem abundantes
+de todo genero de frutas. Assistem ao seu governo civil dois Juizes
+ordinarios, Vereadores, um procurador do Concelho, Escriv&atilde;o
+da Camara, Juiz dos Orph&atilde;os
+com seu Escriv&atilde;o, 1 Alcaide, e 1 Companhia da
+Ordenan&ccedil;a. <br />
+
+<br />
+
+(<em>Chorographia portugueza</em> pelo Padre
+Antonio Carvalho da Costa.&#8213;T. II, pag. 176&#8213;1708.)
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[100]</span>
+Castanheira do Vouga&#8213;Villa na provincia da Beira baixa, Bispado de
+Coimbra, Comarca de Esgueira. &Eacute; da Casa do Infantado; tem
+803 visinhos. Est&aacute;
+situada em monte junto da serra do Caramulo. &Eacute; seu orago S.
+Mamede. Tem quatro altares; e o maior &eacute; do orago; os outros
+s&atilde;o do Santissimo, de Nossa Senhora da
+Expecta&ccedil;&atilde;o, com sua irmandade, e outro de S.
+Jorge. O Parocho &eacute; Prior, apresenta&ccedil;&atilde;o
+da
+casa do Infantado; tem de renda 400$000 reis. Tem tres ermidas, que
+s&atilde;o: a do Espirito Santo, a de Nossa Senhora do
+Bom-despacho, e a de S. Sebasti&atilde;o. Os frutos d'esta terra
+s&atilde;o milho grosso, centeio, e algum vinho. Governa esta villa
+um Juiz ordinario, e a Camara. Passam por esta freguezia os rios
+Agued&atilde;o, Alfusqueiro, e Agueda. <br />
+
+<br />
+
+(<em>Diccionario geographico</em> pelo Padre
+Luiz Cardoso. 1751.) <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+Castanheira do Vouga.&#8213;Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por Orago
+S. Mamede; o Parocho &eacute; Prior da
+apresenta&ccedil;&atilde;o da Casa do
+Infantado; rende 480$000 r&eacute;is; dista de Lisboa 40 leguas, e
+de Coimbra 7; tem 58 fogos. <br />
+
+<br />
+
+&Aacute;gad&atilde;o&#8213;Freguezia no Bispado de Coimbra; tem por
+Orago Santa Maria Magdalena; o Parocho &eacute; Cura da
+apresenta&ccedil;&atilde;o do Prior da Castanheira; rende
+40$000 r&eacute;is; dista de Lisboa 40 leguas, e de Coimbra 6; tem
+102 moradores <br />
+
+<br />
+
+(<em>Portugal sacro-profano</em>&#8213;por Paulo
+Dias de Niza; cryptonimo do Padre Luiz
+Cardoso&#8213;Lisboa&#8213;1767&#8213;8.&ordm;&#8213;2
+vol) <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+Castanheira do Vouga.&#8213;Villa, Douro, Comarca de Agueda, Concelho do
+Vouga, 40 kilometros ao N. O. de Coimbra; 240 ao N. de Lisboa; 140
+fogos. Em 1757 tinha 58 fogos. Orago S. Mamede. Bispado e Districto
+administrativo de Aveiro. Foi do Bispado de Coimbra. Era antigamente da
+Comarca de Esgueira. &Eacute; da Casa do Infantado. Situada em um
+monte proximo &aacute; serra do Caramulo. A Casa do Infantado
+<span class="pagenum">[101]</span>
+apresentava o Prior, que tinha
+400$000 r&eacute;is. &Eacute; fertil em milho e centeio; produz
+algum vinho, e do mais pouco. Tem foral dado por D. Manuel em Lisboa a
+16 de Junho de 1514. Era cabe&ccedil;a do concelho do seu nome e
+tinha Juiz ordinario, Camara, Escriv&atilde;es, e mais
+Justi&ccedil;as. Passam pela freguezia
+os rios Agueda, Agued&atilde;o, e Alfusqueira.<br />
+
+<br />
+
+(<em>Portugal antigo e moderno</em>&#8213;por
+Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal&#8213;Lisboa, 1874). <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><b><big><big>*</big></big></b></div>
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n1">
+Pag. 11</a> lin. ultima
+</h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Dapibus mensas oneramus
+inemptis<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Oneramos as mezas com iguarias n&atilde;o compradas; isto
+&eacute;, vivemos, sem comprar, das nossas lavras proprias. <br />
+
+<br />
+
+Cita&ccedil;&atilde;o de Virgilio
+(<em>Georgicas</em>, Liv. IV, v. 133), com uma pequenina
+variante exigida pelo sentido. O texto inteiro e exacto &eacute;: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+<em>....Sero que revertens</em></div>
+
+<div class="poetry1"><em>nocte domum, dapibus mensas
+onerabat
+inemptis.</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Isso faz parte de uma historieta que Virg&iacute;lio conta, e que
+vamos ouvir
+na traduc&ccedil;&atilde;o de Castilho: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry4">......Alembra-me
+que
+outr'ora,</div>
+
+<div class="poetry1">l&aacute; por onde o Galeso
+arrasta a veia escura<br />
+
+por
+entre loiros ch&atilde;os de cereal cultura,<br />
+
+junto &aacute;
+Eb&aacute;lia cidade, a de torreados muros,<br />
+
+conheci um corycio em
+annos j&aacute; maduros,<br />
+
+dono de uma chanzinha ali desamparada.<br />
+
+O
+pobre do torr&atilde;o de si n&atilde;o dava nada:<br />
+
+nem pasto
+para bois, nem para um fato hervinha.<br />
+
+Sumitico de p&atilde;es,
+escasso para vinha,<br />
+
+era um sar&ccedil;al fechado; e no
+sar&ccedil;al, comtudo,<br />
+
+o bom velho, a poder de diligencia e
+estudo,<br />
+
+tinha hortali&ccedil;a rara, e emmoldurada em torno<br />
+
+com
+seve de jardim para maior adorno,<br />
+
+alvos lirios, verbena, e papoilas de
+prato.<br />
+
+N&atilde;o troc&aacute;ra co'os Reis seu parco haver
+t&atilde;o grato. <br />
+
+Recolhia ao casal j&aacute; noite; e,
+&iexcl;que riqueza<br />
+
+de iguarias de gra&ccedil;a a assoberbar-lhe
+a meza!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[102]</span>
+<h4><a href="#n2">Pag. 18</a> lin. 3 </h4>
+
+<br />
+
+<div class="quote">Pass&aacute;mos n'uma bateirinha,
+remada por uma velha moleira da
+margem, o
+v&iacute;&ccedil;oso rio de Bolfiar. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Todos esses meios de transporte mudaram muito de 1826 para hoje. O
+caminho de ferro, as estradas, e todos os aperfei&ccedil;oamentos
+modernos, deram cabo da antiga viagem t&atilde;o pittoresca. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n3">Pag. 36</a> lin. 20 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Uma especie de zimborio
+de doze palmos de altura. <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Deve ser talvez alguma pyramide geodesica ali levantada pelos que
+primeiro se dedicaram ao estudo da triangula&ccedil;&atilde;o
+do Reino. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n4">Pag. 37</a> lin. 3 </h4>
+
+<br />
+
+<div class="quote">Uma desconforme loisa
+inteiri&ccedil;a horizontalmente aguentada
+nos ares por esteios de pedra. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Estes antiquissimos monumentos megalithicos ainda se encontram em
+muitas partes das Hespanhas, e acham-se estudados &aacute; luz da
+sciencia moderna. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n5">Pag. 42</a> lin. 6 </h4>
+
+<br />
+
+<div class="quote">A Linguagem &eacute; ali, como os
+ares, de uma admiravel pureza e
+luc&iacute;dez. </div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O portuguez que n'aquella serra se falava, e fala, influiu em Castilho
+o seu constante amor &aacute; vernaculidade. Veja-se nas <em>Excava&ccedil;&otilde;es
+poeticas</em> o que elle diz do velho camponez Francisco Gomes,
+creado da casa, e &laquo;um dos mais chapados classicos&raquo;
+que elle jamais encontrou. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n6">Pag. 58</a> lin. 7 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Lia, Rachel e Rebecca <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Lia era filha primogenita de Lab&atilde;o, e irman de Rachel.
+Achando-se Rachel ajustada para casar com Jacob, teve Lab&atilde;o
+astucia de lhe substituir Lia, apesar de menos formosa. Foi
+m&atilde;e de Ruben, Sime&atilde;o, Levi, Jud&aacute;,
+Issachar, Zabulon, e Dina.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[103]</span>
+Rachel, irman de Lia, tambem foi mulher de seu cunhado Jacob, e teve
+Jos&eacute;, e mais Benjamim, de cujo parto falleceu. Parece que
+ainda se conserva e mostra o seu tumulo. <br />
+
+<br />
+
+Rebecca, filha de Bathuel, casou aos dezoito annos com Isaac, filho de
+Abrah&atilde;o, e teve por filhos Eza&uacute; e Jacob. <br />
+
+<br />
+
+Todas estas figuras biblicas, vivas 17 seculos antes da era christan,
+s&atilde;o encantadoras de singeleza e gra&ccedil;a nas
+descrip&ccedil;&otilde;es que d'ellas nos
+deixaram os Livros santos. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n7">Pag. 72</a> lin. 15 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Uma pobre mocinha
+ovelheira <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mais de uma vez se recordou Castilho d'esta pastora, cujo nome era
+Antonia. Veja-se o lindissimo retrato que pintou d'ella o nosso Poeta
+na sua <em>Chave do enigma</em>. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n8">Pag. 80</a>, lin. 9 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Filinto e o entrudo <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Com o seu espirito essencialmente nacional, recordava-se o bom
+Francisco Manuel do Nascimento, com muita saudade, do entrudo brutal da
+velha Lisboa. <br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">&iexcl;Viva o meu Portugal!
+&iexcl;viva a laranja<br />
+
+que
+derruba o chapeo!</div>
+
+<br />
+
+exclamava elle em Par&iacute;s, ao lembrar-se das
+grosseiras costumagens dos Portuguezes, felizmente meio
+pol&iacute;das j&aacute; hoje. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n9">Pag. 82</a> linhas 6 e 8 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Cita&ccedil;&otilde;es
+latinas <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Essas duas s&atilde;o de Virgilio
+(<em>Eneida</em>, Livro I) <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1"><em>Fronte sub adversa scopulis
+pendentibus antrum;<br />
+
+intus
+aquae dulces, vivoque sedilia saxo;<br />
+
+nympharum domus</em>.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Isto &eacute;: defronte, sob uns pendurados penedos, abre-se um
+antro; e l&aacute; dentro correm aguas doces, e apparecem assentos
+como que talhados na rocha viva; verdadeira
+habita&ccedil;&atilde;o de nymphas.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[104]</span>
+<h4><a href="#n10">Pag. 87</a> lin. 21 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">As
+roga&ccedil;&otilde;es de Maio <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foram instituidas por S. Mamerto, Bispo de Vienna, no Delphinado,
+fallecido no anno 475. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n11">Pagina 99</a> linha 23 </h4>
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+O ubi campi! <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Recorda&ccedil;&atilde;o de palavras de Virgilio ao Livro II
+das <em>Georgicas</em>: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1"><em>Rura mihi et rigui placeant
+in vallibus amnes;<br />
+
+flumina
+amem silvasque inglorius. O ubi campi<br />
+
+Spercheosque, et virginibus
+bacchata Lacaems<br />
+
+Taygeta!......</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Sejam minhas delicias os campos, e os ribeiros a deslizar nos valles;
+encantem-me os rios e os bosques, como obscuro que sou.
+&iquest;Onde estais, campinas? &iquest;onde est&aacute;s,
+rio Sperchio, e tu, monte Tayg&eacute;te, habitado pelas alegres
+virgens espartanas? <br />
+
+<br />
+
+Castilho traduziu assim este trecho: <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ent&atilde;o amar s&oacute;
+quero os rios e arvoredos,<br />
+
+de
+glorias desquitado. Ai, campos meus t&atilde;o quedos!<br />
+
+ai ribeiras
+do Sp&eacute;rchio, oiteiros do Tayg&eacute;to,<br />
+
+das virgens de
+Lac&oacute;nia &aacute;s &oacute;rgias
+predilecto,<br />
+
+&iquest;onde, onde me estais v&oacute;s?....</div>
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n12">Pag. 102</a>, lin. 10 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Parve, nec invideo, sine
+me, liber, ibis in urbem <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Verso de Ovidio, logo no come&ccedil;o da elegia I do Livro I das <em>Tristezas</em>.
+Dirigindo-se
+ao seu proprio volume, escrito (ou antes chorado) no desterro, entre os
+gelos do Ponto, diz-lhe o autor: vae meu pequeno livro; has-de entrar
+sem mim na Cidade; nem por isso te quero mal. <br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Parte, &oacute; meu pobre livro;
+ir&aacute;s sem mim,
+sosinho,<br />
+
+correr na gran Cidade incognito caminho<br />
+
+<br />
+
+traduziu alguem</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[105]</span>
+<h4><a href="#n13">Pag. 107</a>, lin. 17 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Zimmermann <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Jorge Zimmermann, nascido em Brug, cant&atilde;o de
+Berne, a 8 de Dezembro de 1728, seguiu os estudos medicos, e foi
+abalisado sabio. Nomeou-o medico da sua camara em 1768 el-Rei de
+Inglaterra; el Rei de Prussia Frederico, o grande, foi tratado por elle
+na sua ultima doen&ccedil;a, e deveu allivios aos seus cuidados
+intelligentes. O Principe russo Orloff foi de proposito com sua mulher
+consultar Zimmermann ao Hanover; e ao tornar-se a S. Petersburgo falou
+d'elle com enthusiasmo &aacute; Imperatriz Catherina, que em 1784
+procurou attrahir &aacute; sua c&ocirc;rte aquelle
+luminar da sciencia. Elle pediu excusa, porque a vida mundana
+n&atilde;o condizia com os habitos que tinha creado o seu espirito;
+n&atilde;o se ofendeu a eminente Princeza, e conferiu-lhe a ordem
+de Wladimiro. Infeliz na vida domestica, viu morrer-lhe entre os
+bra&ccedil;os uma filha adorada, e endoidecer-lhe um filho.
+Falleceu este notavel homem em 7 de Outubro de 1795. Al&eacute;m de
+outras obras, entre ellas um poema sobre o terremoto de Lisboa,
+publicou em 1756 o seu <em>Tratado da Solid&atilde;o</em>,
+onde todas as vantagens moraes do isolamento s&atilde;o defendidas
+com eloquencia e convic&ccedil;&atilde;o, e sem mysanthropia
+exagerada. <br />
+
+<br />
+
+<h4><a href="#n14">Pag. 108</a>, lin. 6 </h4>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">O Passeio publico e o
+Marrare <br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Para os habitantes da Lisboa moderna, diremos que o Passeio publico,
+riscado em 1764 pelo architecto da cidade, Reynaldo Manuel, nas antigas
+Hortas da cera, era o refugio campestre mais delicioso que podiam gosar
+os habitantes da Capital. Ia desde a actual pra&ccedil;a dos
+Restauradores at&eacute; &aacute;
+extinta pra&ccedil;a da Alegria, na altura da rua das Pretas. No
+sitio exacto do monumento aos heroes de 1640, espalmava-se um grande
+tanque redondo (hoje no jardim da Gra&ccedil;a). <br />
+
+<br />
+
+O caf&eacute; Marrare, poiso dos elegantes lisbonenses, era no
+Chiado.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c14"></a>ADDITAMENTO </h3>
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Visto ser esta obra de Castilho dedicada &aacute; memoria de seu
+bom irm&atilde;o, pareceu-nos acertado juntar aqui um dos tres
+serm&otilde;es que ainda restam d'este. As suas obras ineditas
+mandou o proprio Doutor Augusto Frederico de Castilho que lh'as
+queimassem por sua morte. Salvaram-se, apenas, as seguintes:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">I</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">O serm&atilde;o de S.
+Pedro, ou da F&eacute;;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">II</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">O
+serm&atilde;o da esmola, ou da Caridade;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">III</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">O serm&atilde;o
+nas exequias do senhor D. Pedro IV;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">IV</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">A pastoral dedicada ao seu
+rebanho episcopal de Beja;</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 95px;">V</td>
+
+ <td style="width: 0px;">&#8213;</td>
+
+ <td style="width: 552px;">Uns versos na <em>Primavera</em>
+de
+Antonio Feliciano.</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c15"></a>SERM&Atilde;O<br />
+
+<br />
+
+DA<br />
+
+<br />
+
+ESMOLA OU DA CARIDADE </h3>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;" class="tinyl">Pr&eacute;gado
+na 5.&ordf; dominga da Quaresma de 1839<br />
+
+na
+S&eacute; de Lisboa<br />
+
+pelo Conego Arcipreste da mesma S&eacute;,<br />
+
+o Doutor de capello em Canones Augusto Frederico de Castilho</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote2"><em>Jesus abscondit se, et
+exivit de
+templo.</em><br />
+
+Escondeu-se Jesus, e sahiu do templo.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+De duas coisas nos fala o texto que propuz: de Jesus escondido, e de
+Jesus f&oacute;ra do templo; e nem por sahido do templo, nem por
+escondido, deixa Jesus de ser Jesus, ou nos dispensa de seu
+servi&ccedil;o. Jesus vivo, e na occasi&atilde;o de que trata o
+Evangelho, estava no mundo, e faltava no templo. Jesus, hoje, por dois
+milagres de f&eacute; e amor, por duas eucharistias,
+est&aacute; no templo, e mais no mundo: no <em>templo</em>,
+encoberto no
+Sacramento; no <em>mundo</em>, encoberto nos seus pobres.
+N'uma e n'outra parte o devemos servir com egual zelo. <br />
+
+<br />
+
+Orar todo o dia na egreja, e deixar f&oacute;ra d'ella morrer
+&aacute; fome e ao frio os necessitados, n&atilde;o
+&eacute; de christ&atilde;o; &eacute;
+f&eacute; morta. Soccorrer aos infelizes, sem crer (se tal
+&eacute; possivel)
+<span class="pagenum">[110]</span>
+n'Aquelle que elles representam, &eacute; caridade morta; tambem
+n&atilde;o &eacute; de christ&atilde;o. <br />
+
+<br />
+
+V&oacute;s pareceis christ&atilde;os pela f&eacute;, pois
+que vindes &aacute; casa de Deus; v&oacute;s o pareceis, mas
+n&atilde;o o sois, porque essa f&eacute; &eacute; morta;
+cumpre que se resuscite pela caridade. <br />
+
+<br />
+
+Da caridade pr&eacute;garei portanto hoje, ou antes da esmola, que
+&eacute; a caridade pratica e activa; &eacute; o christianismo
+na sua parte mundana, o culto do Verbo humanado aos olhos de todos, a
+religi&atilde;o de todas as religi&otilde;es, a philosophia de
+todas as philosophias, o axioma para todos os entendimentos, o dogma
+at&eacute; para o atheismo. O objecto &eacute; o mais
+accommodado &aacute;s necessidades do tempo em que vivemos; offensa
+faria &aacute; vossa piedade, se vos exigisse a
+atten&ccedil;&atilde;o. <br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Alma e cora&ccedil;&atilde;o, discurso e affectos, convencem e
+persuadem como dever a esmola. N&atilde;o creou a Natureza
+irm&atilde;os privilegiados, e morgados na familia dos homens: para
+uns, patrimonio de riquezas, e commodidades; para outros, encargos de
+miseria, e lagrimas. Acasos, sagacidades, ou malicias, estabeleceram
+essa desegualdade; e andou tambem ahi tra&ccedil;a
+rec&ocirc;ndita da Providencia, para estreitamente nos ligar; se
+uns de outros n&atilde;o carecessemos, n&atilde;o nos
+am&aacute;ramos; se tudo a n&oacute;s mesmos referissemos,
+n&atilde;o f&ocirc;ramos
+virtuosos, seriamos os mais infelizes dos entes, desentranhada de
+n&oacute;s a beneficencia, origem de toda a sociedade, e purissima
+fonte dos verdadeiros prazeres da vida. Egualou-nos,
+<span class="pagenum">[111]</span>
+pois, a Natureza; a Providencia nos
+desegualou; e n'esta contradic&ccedil;&atilde;o apparente,
+&eacute; que
+Deus, supremo Autor de ambas, manifestou toda a sabedoria dos seus
+conselhos. Na Natureza, isto &eacute;, na sua Justi&ccedil;a,
+quiz que tivessemos uma norma de egualdade; na Providencia, isto
+&eacute;, na sua caridade, que aprendessemos a restabelecer, quanto
+em n&oacute;s coubesse, aquella egualdade primitiva por mutuos
+soccorros. <br />
+
+<br />
+
+O homem caritativo &eacute; portanto o homem da Natureza, e o filho
+mimoso da Providencia, depositario e executor da Justi&ccedil;a de
+Deus, transumpto e argumento de sua bondade e misericordia. <br />
+
+<br />
+
+O sup&eacute;rfluo de nossos bens constitue rigorosamente o
+patrimonio dos pobres, e negar-lh'o &eacute; ao mesmo tempo
+injusti&ccedil;a e barbaridade, egual &aacute; do depositario
+que consome os bens sagrados do deposito, do ec&oacute;nomo que
+converte em proprio uso as rendas do seu senhor, do tutor que devora a
+substancia do seu pupillo; &eacute; ainda mais: &eacute;
+declararmo-nos inimigos de Deus, desacreditando, e dando, de certo
+modo, quebra &aacute;quella Providencia, cujos &eacute;ramos
+dispensadores e supplementos; &aacute;quella Providencia, que
+n&atilde;o consente que as avesinhas mesmas, que voam errantes pelo
+ar, caiam mortas em terra, sem ordena&ccedil;&atilde;o do Pae
+Celeste. <br />
+
+<br />
+
+Tudo quanto de n&oacute;s emana, ou em n&oacute;s ressumbra
+bello, generoso, heroico, brota (n&atilde;o duvidemos) da caridade.
+Deus, para tornar as virtudes caras, e accessiveis at&eacute; aos
+mais faltos de discurso, n&atilde;o creou a caridade,
+sen&atilde;o que a tirou de suas proprias entranhas,
+<span class="pagenum">[112]</span>
+e orvalhando-a sobre a terra, lhe deu por
+ben&ccedil;&atilde;o que de todas as mais virtudes fosse ella
+semente e fruto, seiva interior e graciosa florescencia; e ella ahi nos
+ficou independente de qualquer reflex&atilde;o, affecto innato,
+instinto (&iquest;por que o n&atilde;o diremos?), instinto
+moral. <br />
+
+<br />
+
+Ainda mais, senhores: n&atilde;o s&oacute; a tornou o mais
+profundo, mas tambem o mais extenso de todos os affectos, para que,
+sobre encher-nos o cora&ccedil;&atilde;o de virtude, ella nol o
+podesse occupar; sobre constituir-nos felicidade, nol-a podesse tornar
+permanente. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;que maravilhosa n&atilde;o &eacute;
+esta caridade, que em todas as edades, e em todas as circumstancias da
+vida e do mundo, sempre acha alimento, sempre lhe renascem objectos, e
+infinita como o Ceo, d'onde procede, cobre, como elle, toda a Natureza
+creada, passa dos homens aos animaes brutos, d'estes aos proprios entes
+insensiveis, adivinha infortunios, inventa e persuade soccorros,
+at&eacute; para entes que os n&atilde;o sabem agradecer, que os
+n&atilde;o requerem, que os n&atilde;o precisam! <br />
+
+<br />
+
+Tem a caridade, como as demais paix&otilde;es, os seus excessos;
+momentos em que se n&atilde;o sabe conter, nem governar; suspiros,
+lagrimas, e desalentos; enthusiasmos, impetos, e arrojos heroicos; mas,
+como tudo lhe nasce do amor e compaix&atilde;o, tudo &eacute;
+terno, tudo
+&eacute; mavioso e consolador. Virtude de virtudes, virtude unica
+onde n&atilde;o ha excessos. <br />
+
+<br />
+
+Pela caridade principalmente nos podemos dizer imagens de Deus, e obras
+primas da crea&ccedil;&atilde;o. &iexcl;Ah! &iexcl;que
+se jamais
+se podessem tributar ao homem cultos, que s&oacute; &aacute;
+Divindade
+<span class="pagenum"><a name="p113">[113]</a></span>
+se devem, ninguem tanto
+os merec&ecirc;ra, como esses que, possuindo os thesoiros dos bens
+<a href="#e8">terrestres</a>, os derramam no seio
+dos infelizes! <br />
+
+<br />
+
+Por&eacute;m, meus irm&atilde;os, n&atilde;o &eacute;
+mist&eacute;r uma brandura de animo requintada, para nos movermos
+com os infortunios dos nossos semelhantes, e procurarmos-lhes o
+remedio. &iquest;Qual de n&oacute;s, vendo padecer um
+animalsinho, morto de fome, transido de frio, desamparado &aacute;s
+inclemencias de uma noite de inverno, e invocando a nossa piedade com
+aquelles gritos lastimosos, que a Natureza ensinou a todos os viventes
+para dizerem as suas dores, qual de n&oacute;s se n&atilde;o
+sentiria profundamente condo&iacute;do, n&atilde;o correria a
+abrir-lhe a porta, a agasalhal o, a soccorrel-o? &iexcl;Ah!
+&iquest;e deixariamos
+no infortunio o homem? &iquest;o homem, semelhante nosso, nosso
+irm&atilde;o, com quem nos ligam todos os interesses, cujos bens
+possuimos, cuja felicidade &eacute; t&atilde;o travada com a
+nossa, e cuja desgra&ccedil;a tem sido talvez effeito da nossa
+injusti&ccedil;a, da nossa barbaridade? <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! ricos do mundo, que cegastes e ensurdecestes o
+cora&ccedil;&atilde;o... &iquest;que digo? que o trazeis
+defunto no peito, e incapaz de resurgir aos clamores mais doridos da
+Natureza, &iexcl;ah! emquanto, ao redor de v&oacute;s, se
+est&atilde;o sempre a abrir abysmos, que engolem tantos miseraveis,
+&iquest;que uso mais util farieis v&oacute;s de vossos bens, do
+que seria o acudir-lhes? Na vossa avidez insaciavel (semelhantes ao
+inferno, que, por mais victimas que l&aacute; chovam,
+n&atilde;o cessa de clamar
+<em>affer</em>,
+<em>affer</em>, mais e mais), uns de v&oacute;s,
+&oacute; ricos do mundo, se contentam
+com a vis&atilde;o beatifica dos seus cofres;
+<span class="pagenum">[114]</span>
+a sua alegria, a sua felicidade, o seu
+proximo, o seu mundo, a sua alma, o seu Deus, tudo seu ali jaz; ali
+enterraram o cora&ccedil;&atilde;o, e o conservam mais duro,
+mais inerte, mais frio, mais inutil, que esse metal que amontoaram; em
+quanto outros, pr&oacute;digos em excesso, como se os seus
+thesoiros os affrontassem, os semeiam e desbaratam por phantasias, por
+luxos, por vaidades, sem modera&ccedil;&atilde;o, sem ordem,
+sem destino, sem uma s&oacute; utilidade real. Mais loucos ainda e
+mais infelizes, outros emfim, parecendo arrenegar dos beneficios da
+Providencia, os cofres que ella confiou nas suas m&atilde;os, elles
+os despeda&ccedil;am e espalham, n&atilde;o s&oacute; sem
+vantagem do proximo, mas ainda com o maior prejuizo, e inteira ruina de
+si mesmos. Com essas riquezas franquearam a entrada a todos os vicios,
+abysmaram a ras&atilde;o, destruiram as for&ccedil;as,
+aniquilaram a saude, anteciparam a morte, e.... &iexcl;ah! meus
+irm&atilde;os, &iexcl;que de
+inquieta&ccedil;&otilde;es, de violencias, de trabalhos e de
+dores, para comprar uma eternidade desgra&ccedil;ada!
+&iexcl;Com a chave de oiro de um paraiso, abrir um sepulcro e o
+inferno! <br />
+
+<br />
+
+Maus ricos, v&oacute;s sois como o discipulo traidor; com esses
+dinheiros de maldi&ccedil;&atilde;o, pre&ccedil;o dos
+tormentos e da morte de Jesu-Christo, que todos os dias se renova nos
+seus pobres, que v&oacute;s entregais e desamparais sem piedade,
+com esses dinheiros de maldi&ccedil;&atilde;o, ides comprar um
+arrependimento esteril, um remorso tardio, uma morte desesperada, o
+odio dos homens, a vingan&ccedil;a de Deus, os tormentos eternos!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[115]</span>
+&iexcl;Quantas injusti&ccedil;as accumuladas n'esta barbara
+opulencia! Injusti&ccedil;a para com os infelizes, cujos bens
+sonegamos, cujos lamentos n&atilde;o queremos escutar, cuja morte
+mesmo antecipamos muitas vezes.&#8213;Injusti&ccedil;a para com Deus, de
+quem recebemos esses bens, com a condi&ccedil;&atilde;o da
+caridade, e cuja Providencia desmentimos, e a quem devemos continuos
+beneficios e esmolas, desde que entramos no
+mundo.&#8213;Injusti&ccedil;a para comnosco mesmos, a quem fechamos as
+portas de um c&eacute;o de deleites, em quem apagamos todos os
+sentimentos de virtude, a quem j&aacute; n'este mundo excluimos de
+toda a felicidade.&#8213;Injusti&ccedil;a, emfim, para com todo o genero
+humano, de quem nos afastamos, a quem n&atilde;o queremos
+pertencer, de quem at&eacute; nos declaramos inimigos. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;E para onde fugir&atilde;o os nossos olhos, que
+l&aacute; n&atilde;o v&aacute; a miseria publica
+perseguil-os? Nunca soaram t&atilde;o alto os gemidos dos
+desgra&ccedil;ados,
+porque nunca a nossa immoralidade foi t&atilde;o barbara.
+Realisou-se sobre tantos irm&atilde;os nossos parte grande das
+maldi&ccedil;&otilde;es, com que Deus, por bocca de
+Moys&eacute;s, amea&ccedil;ava os seus inimigos. Explorae por
+todas as guaridas da indigencia; visitae os tugurios e choupanas
+miseraveis das aldeias, das maiores povoa&ccedil;&otilde;es, e
+at&eacute; das
+cidades... &iexcl;Grande Deus! &iexcl;que multid&atilde;o e
+variedade
+de miserias! Uns arruinam a saude por comidas dessaborosas e doentias,
+mais para brutos que para gente; a outros, nem um boccado de
+p&atilde;o negro e amargoso apparece nas vinte e quatro horas;
+&iexcl;quantas se n&atilde;o chamam poisadas e casas, que antes
+s&atilde;o covas,
+<span class="pagenum">[116]</span>
+masmorras,
+ou jazigo de viventes! &iexcl;de quantos n&atilde;o
+&eacute; cama a terra humida, e vestido o que nem lhes encobre a
+nudez! &iexcl;Tantos paes cercados de um bando de meninos, chorando
+e pedindo-lhes p&atilde;o! Tantos outros meninos, ainda mais
+infelizes, orph&atilde;os de pae e m&atilde;e, que nada teem na
+Natureza,
+al&eacute;m do sol que os aquece, e do ar que respiram, e
+come&ccedil;am a conhecer t&atilde;o cedo a dureza dos homens,
+obrigados, quasi desde que abrem os olhos, a procurar por si mesmos com
+que supram as necessidades, ainda t&atilde;o mesquinhas, mas
+t&atilde;o pesadas para n&oacute;s! &iexcl;Tantas viuvas
+sem protec&ccedil;&atilde;o, em quem, sobre o desamparo e
+d&ocirc;r perp&eacute;tua da viuvez, accresceu verem os seus
+bens arrancados por cr&eacute;dores, e quantas vezes por
+ladr&otilde;es, debaixo do nome de cr&eacute;dores!
+&iexcl;Tantos obreiros atirando-se a trabalhos superiores
+&aacute;s suas for&ccedil;as, ou &aacute; sua
+crea&ccedil;&atilde;o, ou aos seus annos, para sustentarem, com
+o suor, a vida, que, n'esse mesmo suor, se lhes est&aacute;
+derretendo e mirrando! &iexcl;Tantos enfermos expirando
+&aacute; mingua, sem medico, sem tratamento, sem remedios, sem
+enfermeiros, sem alma viva que os console, que lhes suscite as ideias
+da Eternidade, e at&eacute; sem um len&ccedil;ol que os
+amortalhe! &iexcl;Tantos privados dos olhos, dos bra&ccedil;os,
+e do uso dos sentidos mais preciosos, incapazes de trabalhar, arrojados
+para a borda dos caminhos, soffrendo dias inteiros os ardores do sol,
+as chuvas, os frios, e os ventos do inverno, considerados como monstros
+de outra especie pelos homens! &iexcl;Tantos mendigos, emfim, sem
+lar, sem nada, nem um amigo, s&oacute;sinhos em meio de tanto
+mundo!
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[117]</span>
+&iexcl;Mas que me can&ccedil;o eu a enfeixar o que
+n&atilde;o tem conta! E quando de taes miserias conseguisse fazer
+aqui um piedoso inventario, &iexcl;quantas outras n&atilde;o
+ficariam de f&oacute;ra,
+mais profundas, e mais miserias, porque ellas mesmas refogem e se
+escondem! As ruas e as pra&ccedil;as, com todos os seus clamores e
+penurias, n&atilde;o confessam ainda assim quanto a nossa especie
+est&aacute; padecendo. Ha, em todo este exterior, um n&atilde;o
+sei que reflexo de verniz e doirado, um n&atilde;o sei que ruido
+festivo, um perfume de opulencia e sabores, um certo sorrir, um raio de
+sol, um aspecto de c&eacute;o azul, uma vida e uma
+esperan&ccedil;a, que s&atilde;o disfarce, e mascara da
+existencia do povo, real e intima. Pelas ruas corre abundante a vida.
+Sahindo-se para a rua, deixam-se &aacute; porta as lagrimas, e
+cuidados verdadeiros, e toma-se na bocca e faces o contentamento
+posti&ccedil;o. Por f&oacute;ra andam os corpos em toda a sua
+gala; mas dentro, por todo esse immenso
+<em>dentro</em>, nas entranhas d'esse infinito
+massi&ccedil;o de pedras e areia, n'esses fechados labyrintos sem
+termo, n'esses apinhados e humanos favos de mel, est&atilde;o
+chorando milhares de cora&ccedil;&otilde;es,
+est&atilde;o-se desesperando milhares de almas. <br />
+
+<br />
+
+Oh! &iexcl;se Deus permittisse que, na hora em que o abastado gira
+para se recrear, por esses caminhos t&atilde;o lageados de
+marmores, t&atilde;o ataviados de vidros de cores, de metaes
+brilhantes, de todas as espumas mais formosas do luxo, se Deus
+permittisse que n'essa hora se lhe revelasse aos olhos por entre que
+duas montanhas de infortunio, vai caminhando!
+<span class="pagenum">[118]</span>
+&iexcl;oh!
+&iexcl;como de repente, semelhante a Phara&oacute;, na estrada
+do Mar Vermelho, desabariam de todas as partes a afogal-o ondas e mares
+de dor! <br />
+
+<br />
+
+Sim, senhores, alem de outros infelizes que tambem precisam da
+caridade, &iexcl;quantos pobres envergonhados que abafam
+solu&ccedil;os e gemidos entre as quatro paredes da sua casa! Nas
+horas da noite, quando das dansas, dos jogos, dos espectaculos, e de
+peores logares, saem torrentes de mundanos, em quem parece que o tempo,
+o dinheiro, a saude e a fama pesam insoffrivelmente, &iexcl;que de
+vezes se lhes n&atilde;o atravessam diante uns phantasmas de
+penuria, em f&oacute;rma j&aacute; de mulheres, j&aacute;
+de meninos,
+j&aacute; de anci&atilde;os, a quem a vergonha do sol
+n&atilde;o consent&iacute;ra sahir dos seus sepulcros! De um
+portal, de um recanto, da bocca estreita de uma rua, nos saem as suas
+vozes, semelhantes a gemidos, antes que as trevas, de que
+n&atilde;o soffrem arrancar-se, nol-os deixem descobrir, estendendo
+a m&atilde;o a receber a esmola, e a aben&ccedil;oar a
+caridade; algum vos esconde um rosto, que, em melhores dias, tinheis
+visto brilhar &aacute; luz da prosperidade. <br />
+
+<br />
+
+Estes mortos e esquecidos do mundo, espectros pallidos, que temem os
+dias, e n&atilde;o temem o aspecto da noite, porque j&aacute;
+n&atilde;o podem ser mais infelizes, &eacute; Deus quem nol os
+envia ao encontro, menos por elles que por n&oacute;s, menos para
+alliviarmos as suas penas que para elles nos inspirarem algum affecto
+ao cora&ccedil;&atilde;o gasto, algum pensamento fundo e
+importante &aacute; alma dissipada. &iexcl;Felizes
+v&oacute;s, os que entendeis estes avisos mysteriosos da
+<span class="pagenum">[119]</span>
+desgra&ccedil;a, estas embaixadas
+solemnes do outro mundo! &iexcl;Felizes os que, em vez de os
+repellir com dureza, accudis com o dinheiro &aacute; necessidade,
+com a esperan&ccedil;a ao queixume, e com a
+commisera&ccedil;&atilde;o a quem n&atilde;o
+cuidava que no mundo a houvesse! <br />
+
+<br />
+
+&#8213;Mas estes pobres, e a maior parte dos pobres que me accommettem, que
+me desatinam, que me desesperam (dizeis v&oacute;s),
+&iquest;quem me abona a sua pobreza? e concedendo-lh'a,
+&iquest;quem me affirma que n&atilde;o &eacute; ella
+castigo da sua pergui&ccedil;a, ou mau proceder?... &iquest;Que
+vos importa? Se p&oacute;de ser uma coisa ou outra, dae; antes
+lan&ccedil;ar dez vezes, vinte vezes, cem vezes, em vaso cheio, ou
+em vaso indigno, do que deixar de accudir uma s&oacute; vez a quem
+do vosso superfluo far&aacute; o seu necessario, e talvez, se lhe
+recusasseis, padec&ecirc;ra n'um dia o que v&oacute;s
+n&atilde;o padeceis n'um anno, ou, para o n&atilde;o padecer,
+comm&ecirc;ttera crimes, que, depois de o perderem a elle n'este
+mundo, vos percam a v&oacute;s no outro. E demais: v&oacute;s,
+que t&atilde;o de repente sentenciais o desgra&ccedil;ado que
+n&atilde;o conheceis, &iquest;por que
+vos n&atilde;o sentenciar&aacute; Deus, por esse mesmo facto, a
+v&oacute;s? <br />
+
+<br />
+
+<em>P&oacute;de n&atilde;o ser pobre o que vos
+pede.</em>&#8213;Sim, e algumas vezes se tem visto.&#8213;<em>P&oacute;de
+ter merecimentos para muito mais ainda do que padece.</em>&#8213;Sim,
+que &eacute; homem como
+v&oacute;s, e com mais raz&atilde;o do que v&oacute;s para
+aborrecer os homens, e ser seu inimigo. Sim: tudo isso p&oacute;de
+ser; &iquest;mas examinastes v&oacute;s se
+era tudo isso, ou se era uma parte? Recusando a esmola por tal motivo,
+&iquest;n&atilde;o tereis muitas vezes accrescentado ao roubo a
+injuria?
+<span class="pagenum">[120]</span>
+&iexcl;Ah! em quanto
+sentenciais uma alma que n&atilde;o conheceis, e condemnais o vosso
+semelhante para o deixar ir despojado, &iexcl;quanto mais
+raz&atilde;o n&atilde;o tem elle para condemnar a vossa alma,
+que v&oacute;s mesmos lhe descobristes inteira com uma
+s&oacute; palavra! <br />
+
+<br />
+
+Mas ainda vos concedo (perd&ocirc;e-me Deus a
+concess&atilde;o), que todos esses andam expiando peccados seus;
+s&atilde;o at&eacute; criminosos e facinorosos; que nem um
+d'elles tem necessidade; s&atilde;o at&eacute; abastados e
+opulentos; que todo o mendigo &eacute; um salteador e um
+millionario. &iquest;Estais contentes com a concess&atilde;o,
+ou quereis mais? N&atilde;o podeis querer mais, porque o
+n&atilde;o ha. Pois bem: &iquest;mas que direis, quando eu vos
+apresentar pobres, de uma pobreza processada e demonstrada, que vos
+n&atilde;o importunam nem se queixam, dos quaes muitos, dos quaes
+inteiras classes, n&atilde;o mereceram, nem poderam merecer, o seu
+estado? Ahi tendes os enjeitados, que n&atilde;o &eacute; muito
+que o sejam do mundo, e da fortuna, depois de o serem de suas
+m&atilde;es; ahi os tendes, que a Misericordia mesma n&atilde;o
+basta a amamental-os e vestil-os, e, de seus pobres bercinhos, caem em
+cardumes nas sepulturas, e v&ocirc;am a ir dep&ocirc;r na
+presen&ccedil;a de Deus,
+contra a dureza de tantos, que, tendo-lhes dado a vida por um peccado,
+por um peccado ainda mais mortal (se &eacute; licito
+diz&ecirc;l-o) o da avareza, lhes concorr&ecirc;ram para a
+morte. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? mais vos darei: tambem necessitados, tambem
+innocentes. Ahi est&atilde;o tantos asylos da infancia desvalida,
+onde se queria educar e felicitar um seculo novo, e que, por falta de
+caridade publica, morreram,
+<span class="pagenum">[121]</span>
+depois de t&atilde;o bem nascidos e esperan&ccedil;osos. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? ahi est&atilde;o os asylos da velhice,
+tambem e mais desvalida, onde os soccorros nunca s&atilde;o
+sobejos, nem sufficientes; porque muitos mais s&atilde;o sempre os
+que batem e choram &aacute;quellas portas de refugio, que os que a
+estreiteza das posses consentem sentar-se l&aacute; dentro
+&aacute; meza do convite de Deus. <br />
+
+<br />
+
+Assim que, por ambos os horizontes da vida, vos est&aacute; o
+Senhor chamando o
+cora&ccedil;&atilde;o, e por toda a parte vos tem cercado do
+dever da esmola. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? ahi tendes hospitaes, recolhimentos, cadeias.
+<br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais? ahi tendes centenares de religiosos egressos,
+a quem falta p&atilde;o, lar, vestido, mundo, que o n&atilde;o
+conhecem, nem elle os conhece; militares que envelheceram nas armas e
+morrem &aacute; m&iacute;ngua; viuvas e orph&atilde;os de
+servidores do Estado, a quem se n&atilde;o paga, nem com
+esperan&ccedil;as. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Quereis mais, e mais sem conta? ahi tendes os partidos
+pol&iacute;ticos vencidos, em quem n&atilde;o &eacute;
+mister longo
+exame para se reconhecer a desgra&ccedil;a, porque &eacute;
+corollario evidente de causas notorias. A ter&ccedil;a parte de uma
+edade do homem, dezanove annos, para n&atilde;o datar de mais
+longe, tem sido entre n&oacute;s consumidos em
+dissen&ccedil;&otilde;es e odios. Com successivos terremotos
+politicos, teem desabado as mais altas torres de fortuna;
+desappareceram abundancias afogadas entre ru&iacute;nas; voaram
+arrancadas de
+furac&otilde;es contrarios e imprevistos, as mais florescentes
+esperan&ccedil;as; os caminhos trilhados e sabidos subverteram-se;
+<span class="pagenum">[122]</span>
+por onde se descia,
+sobe-se; por onde se vingavam as alturas, desce-se precipitado; algum
+dos filhos do pobre v&ocirc;a dormitando em c&ocirc;che de
+oiro, e o anci&atilde;o doirado, que ainda hontem lhe houvera
+matado a fome, lhe alonga a m&atilde;o, da margem do caminho,
+clamando esmola. N&atilde;o se cuide, senhores, que eu condemno o
+presente e absolvo o passado. Sei os males e os bens do passado;
+entendo os males e os bens do presente, ou antes os males do presente e
+bens do futuro; mas vejo, de mais a mais, um cardume de males
+extraordinarios, que n&atilde;o s&atilde;o, para que assim
+dig&acirc;mos, nem do
+homem, nem da Natureza, nem de Deus, mas sim da mudan&ccedil;a, da
+transforma&ccedil;&atilde;o
+da fortuna, da fortuna cega, que, no trocar das m&atilde;os, quebra
+sem pejo, nem d&oacute;, nem consciencia, o que depois todos choram
+e ninguem concerta. <br />
+
+<br />
+
+Vivemos pois entranhados e afogados n'um mundo de d&ocirc;res, que
+n&atilde;o vemos, pela peior de todas as cegueiras, que
+&eacute; o n&atilde;o querer ver. E quando d'esta somnolencia,
+d'este lethargo, d'esta morte do cora&ccedil;&atilde;o,
+acordamos algum momento a este som <em>Esmola a este vosso
+irm&atilde;o pelas chagas de Nosso Senhor Jesu-Christo</em>,
+j&aacute; nos
+reput&acirc;mos muito generosos, se em vez do silencio ou de uma
+injuria, lhe acudimos com um <em>Deus o favore&ccedil;a</em>;
+e
+torn&acirc;mos a atar muito depressa o fio dos pensamentos
+v&atilde;os ou peccaminosos que traziamos; e l&aacute;
+deix&aacute;mos para traz a Jesu-Christo morto de fome, a
+Jesu-Christo chorando na pessoa do seu pobre. &iexcl;Ah! que se o
+seu estado de abjec&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[123]</span>
+os n&atilde;o obrigasse &aacute;
+humildade &iacute;nfima,
+se o uso de soffrer estas repulsas os n&atilde;o tornasse
+j&aacute; meio insensiveis, se elles nos podessem retorquir,
+&laquo;&iexcl;Qu&ecirc;! (nos responderiam)
+&iquest;Deus que nos favore&ccedil;a? Deus nos favoreceu com
+esses bens que indevidamente retendes; Deus nos favoreceu com os
+thesoiros da sua Providencia, que v&oacute;s nos roubastes.
+&iquest;Que o Senhor nos favore&ccedil;a? &iquest;Quereis
+acaso tental-o? &iquest;que elle obre em nosso favor um milagre
+desnecessario? &iquest;que torne a chover o man&aacute; do
+c&eacute;o, n&atilde;o sobre um
+deserto &aacute;rido como aos nossos paes, mas sobre uma terra, que
+por toda a parte est&aacute; cheia dos seus frutos e das suas
+d&aacute;divas? Esse man&aacute; v&oacute;s o possuis, e
+encerrado inutilmente nos vossos vasos; Deus far&aacute; que se
+corrompa e apodre&ccedil;a. &iquest;Que Deus nos
+favore&ccedil;a,
+deshumanos? Sim, sim, elle nos favorece na vossa propria dureza; os
+merecimentos que terieis na sua presen&ccedil;a em serdes
+misericordiosos, elle os accumula sobre a nossa
+resigna&ccedil;&atilde;o; com os infortunios que nos
+accrescentais, e os pr&eacute;mios que rejeitais, se
+juntar&atilde;o em nosso favor aos pr&eacute;mios de que a sua
+misericordia nos achar dignos.&raquo; <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus queridos irm&atilde;os, que se em nossa dureza
+fossemos capazes de entender os gritos e lagrimas de tantos paes de
+familias, cujas familias podem dizer que n&atilde;o teem pae,
+tantos orph&atilde;os de pae e m&atilde;e, tantas viuvas
+desamparadas, tantos jornaleiros e camponezes arruinados, tantos
+enfermos, tantos c&eacute;gos e aleijados, tantos mendigos, tantos
+pobres envergonhados, achariamos, nas suas lagrimas e gritos, menos a
+<span class="pagenum">[124]</span>
+significa&ccedil;&atilde;o
+das suas d&ocirc;res e
+desalento, que uma reprehens&atilde;o amarga da nossa barbaridade
+para com os nossos irm&atilde;os, da nossa ingratid&atilde;o
+para com Deus; achar&iacute;amos, sim, achar&iacute;amos
+at&eacute; n'esses lamentos, a
+express&atilde;o propria com que dev&ecirc;ramos deplorar
+n&oacute;s mesmos a dureza, antes ferocidade, dos nossos
+cora&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o s&oacute;, meus irm&atilde;os, as nossas
+liberalidades atalham todas estas miserias, mas ainda v&atilde;o
+precaver muitas desordens. Aqui &eacute; uma pobre rapariga, a cuja
+honra se preparam violentos ataques. O C&eacute;o a
+dot&aacute;ra das qualidades mais eminentes; mas a fortuna tentou
+de algum modo desfazer a obra do C&eacute;o, juntando-lhe a pobreza
+com a formosura. Do seio da opulencia, um libertino j&aacute;
+vibrou olhos t&ocirc;rpes e &aacute;vidos para o santuario da
+virtude. A belleza o seduziu primeiro, depois a propria honra, e todas
+as qualidades que lhe notou, como outros tantos titulos que exaltaram o
+seu triumpho, por mais arriscado e difficil. J&aacute; abriu os
+seus cofres com prodigalidade horrivel; deu-se o primeiro ataque;
+frustrou-se. N&atilde;o importa; os desejos augmentaram-se na
+repulsa, o merecimento da victoria vai subindo de ponto em ponto, e a
+seduc&ccedil;&atilde;o, de m&atilde;os dadas com a
+indigencia... &iquest;n&atilde;o vencer&atilde;o cedo
+ou tarde? Chegou emfim esse dia; &iexcl;venceu! e com um sorriso
+infernal applaudiu o seu triumpho, e a desgra&ccedil;a que
+consumou. Approximemo-nos agora, e contemplemos a pobre victima. Ali
+jaz, n'um arrependimento j&aacute; tardio e inutil para o mundo;
+ali jaz recordando todos os artificios do traidor, que,
+<span class="pagenum">[125]</span>
+depois de a desgra&ccedil;ar, chegou mesmo a
+aborrecel a; ali jaz na mesma
+indigencia que d'antes, por&eacute;m mais infeliz agora; a sua
+honra fugindo abalou-lhe todas as outras virtudes. Em odio a Deus e a
+si mesma, &iquest;ficou-lhe ao menos um refugio no mundo? nenhum,
+porque o traidor, declarando-se seu cruel inimigo, foi divulgar o
+segredo, e exigir esses applausos infames, que tanto mereceu.
+&iexcl;Pobre infeliz! Se tivesses nascido na abundancia, seriais
+sempre um anjo t&atilde;o bello de virtude. Se a caridade te
+houvesse a tempo procurado, e descoberto n'esse asylo simples e
+modesto, onde vivias t&atilde;o innocente e bemquista de Deus e dos
+homens, &iquest;n&atilde;o se teria afastado ainda o raio que
+reduziu a cinzas o desambicioso edificio da tua felicidade? <br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m &eacute; um mo&ccedil;o, que,
+can&ccedil;ado da dureza dos homens, come&ccedil;a a
+n&atilde;o conhecer as leis na sua necessidade. Por toda a parte
+repellido, julgou direito prover por si mesmo, e a todos os despeitos,
+&aacute; sua
+conserva&ccedil;&atilde;o.&#8213;&laquo;Todos esses a quem
+recorri (diz comsigo mesmo) s&atilde;o felizes; eu n&atilde;o
+quero a sua felicidade; mas tenho, como elles, direito de
+viver.&raquo;&#8213;Levado assim pelos raciocinios errados do vicio, ou
+s&oacute; por um instinto que lhe bafejou a injusti&ccedil;a
+dos homens, come&ccedil;ou por pequenos furtos; passou a maiores;
+nunca mais reconheceu os titulos sagrados da propriedade; zombou de
+todos os respeitos humanos; relaxou de todo a consciencia; e
+acabar&aacute; em salteador e assassino. Uma caridade a tempo o
+affasta do precipicio onde o leva de rastos a immoralidade, e lhe
+<span class="pagenum">[126]</span>
+tira deante dos olhos dois futuros
+que o ter&atilde;o muitas vezes feito estremecer: um carcere
+perpetuo, um degredo, uma morte infame n'este mundo, e no outro penas
+correspondentes, em si e na sua dura&ccedil;&atilde;o, a crimes
+de que nunca se arrependeu, e damnos que nunca tiveram
+restitui&ccedil;&atilde;o. E quando elle passar para o
+patibulo, v&oacute;s fechareis talvez as vossas janellas, e direis:
+&laquo;N&atilde;o tenho
+cora&ccedil;&atilde;o para taes espectaculos;&raquo;
+&iexcl;como se esse mesmo cora&ccedil;&atilde;o
+n&atilde;o fosse o seu peor
+algoz, o que o conduziu &aacute;quelle passo affrontoso! <br />
+
+<br />
+
+N'outra parte um desesperado, que sonhou alguns momentos a felicidade,
+mas que imprevistamente se sentiu naufragado de todas as suas
+esperan&ccedil;as, que contou, para segurar a subsistencia, com os
+amigos que o atrai&ccedil;oaram, com a fortuna que lhe fugiu, que
+se v&ecirc; precipitado n'uma desgra&ccedil;a a que
+n&atilde;o prev&ecirc; termo na sua
+desespera&ccedil;&atilde;o, insulta o C&eacute;o, blasfema
+da Providencia, e, se lhe n&atilde;o accudis, &iexcl;quem sabe
+se ir&aacute;
+(como tantos outros) afiar um punhal, temperar um veneno, ou suspender
+um la&ccedil;o, por onde arranque uma existencia que o importuna!
+&iquest;E a caridade e a ternura n&atilde;o poder&atilde;o
+ainda aqui obrar um novo milagre? &iquest;fazer-lhe rebentar as
+lagrimas, cuja fonte se lhe exhaurira? &iquest;abrandar-lhe o
+cora&ccedil;&atilde;o?
+&iquest;obrig&aacute;l o a bemdizer a Providencia, e
+aben&ccedil;oar o p&atilde;o com que lhe sustentamos uma vida
+que lhe fizemos amar ainda? <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Oh! &iexcl;meu Deus! &iexcl;que doces prerogativas
+n&atilde;o d&eacute;stes v&oacute;s &aacute;s almas
+generosas e humanas! Se entre os pr&oacute;prios pag&atilde;os
+alcan&ccedil;ava uma c&ocirc;roa o que salvava os dias do seu
+<span class="pagenum">[127]</span>
+concidad&atilde;o,
+&iexcl;que honras n&atilde;o merece dos
+outros homens o que os arranca a uma morte desesperada, depois de uma
+vida infeliz! &iexcl;que os reconcilia com o C&eacute;o que
+j&aacute; suppunham surdo e injusto! &iexcl;e que
+at&eacute; previne com os seus soccorros a desordem e excessos da
+miseria que lhes arrancariam os meios de
+salva&ccedil;&atilde;o! <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus irm&atilde;os, se nos basta ser homens, para
+reconhecermos como bem real esta doce obriga&ccedil;&atilde;o
+da esmola, segundo a raz&atilde;o e humanidade, &iexcl;que mais
+fortes motivos n&atilde;o tem o homem christ&atilde;o, para ser
+esmoler, segundo as Escrituras, e particularmente o Evangelho! Os
+deveres da caridade n&atilde;o s&atilde;o para n&oacute;s
+simplices axiomas, ou
+preceitos da philosophia; n&atilde;o s&atilde;o o resultado de
+um mero instinto moral: as santas doutrinas reveladas vieram
+n&atilde;o s&oacute; confirmar, mas dar ainda, se &eacute;
+poss&iacute;vel, uma
+extens&atilde;o muito maior a tudo quanto n'esta parte a
+Religi&atilde;o natural nos havia imposto. <br />
+
+<br />
+
+Segundo o systema religioso do Christianismo, &iexcl;por quantos
+modos, at&eacute; indirectos, nos n&atilde;o &eacute;
+persuadida a caridade! O Padre derramou sobre n&oacute;s todo o
+thesoiro das misericordias do C&eacute;o; creou nos entes os mais
+perfeitos de toda a Natureza; a sua mesma divindade foi o typo pelo
+qual nos formou (pelas suas proprias m&atilde;os, dizem as
+Escrituras); n&atilde;o s&oacute; nos adornou de todas as
+gra&ccedil;as que perdemos na desobedi&ecirc;ncia de nossos
+paes, mas todas as suas creaturas contribuiram, e ainda contribuem
+(mais parcamente sim, depois do peccado), para nos tornar o mundo uma
+habita&ccedil;&atilde;o commoda e feliz.
+<span class="pagenum">[128]</span>
+Esse sol que nos allumia o theatro do
+mundo, essas esta&ccedil;&otilde;es que lhe mudam as scenas, os
+frutos saborosos e delicados que rompem da terra, os vestidos que nos
+cobrem, o ar que respiramos, o somno que nos restaura as
+for&ccedil;as, os prazeres que nos lisonjeiam os sentidos, os
+prazeres ainda mais puros e doces da consciencia e do
+cora&ccedil;&atilde;o, s&atilde;o outras tantas esmolas,
+com que Deus proveu desde a eternidade ao homem, sobre fraco e
+indigente, ingrato a tantos beneficios. <br />
+
+<br />
+
+Na s&aacute;bia disposi&ccedil;&atilde;o com que de mais o
+Eterno Padre arranjou todo o grande systema da Natureza,
+&iquest;n&atilde;o nos deu Elle uma grande
+li&ccedil;&atilde;o de caridade, estabelecendo em todas as suas
+obras uma encadeac&atilde;o successiva e mutua de dependencias e
+soccorros? Olhae, por exemplo, como os mares liberalisam as suas aguas
+ao ar em nuvens, o ar as suas &aacute; terra em chuvas, a terra
+&aacute;s fontes, as fontes aos rios, os rios outra vez aos mares;
+e n'este rodear das aguas, plantas, animaes, homens, o mundo todo se
+conserva, se reanima, se restaura. <br />
+
+<br />
+
+D'esta mesma sorte, n&atilde;o s&oacute; as grandes
+por&ccedil;&otilde;es da Natureza, mas ainda os seus minimos
+individuos, trazem travado um commercio mutuo de esmolas; e os
+soccorros de uns, em circulo perpetuo, se tornam essenciaes
+&aacute; existencia dos outros. &Eacute; assim que, por toda a
+parte envolvidos pela Natureza, do meio da qual nos elevamos, como
+obras as mais perfeitas, n&atilde;o s&oacute; nos
+n&atilde;o
+devemos resvalar a uma condi&ccedil;&atilde;o inferior
+&aacute; da
+propria materia bruta, mas avantajar-nos tanto mais na mutua caridade,
+quanto nos devemos
+<span class="pagenum">[129]</span>
+considerar
+como entes, cuja conserva&ccedil;&atilde;o &eacute; mais
+importante para a manifesta&ccedil;&atilde;o da gloria de Deus.
+<br />
+
+<br />
+
+O Divino Verbo, por um mysterio da mais incomprehensivel misericordia,
+desce ao mundo, demora-se entre os homens, deixa-lhes um thesoiro de
+felicidade nas suas doutrinas, d&aacute;-lhes a esmola de todo o
+seu sangue, lava a mancha da nossa origem, e restabelece a paz entre o
+C&eacute;o e a terra. <br />
+
+<br />
+
+O Espirito Santo vem tornar effectivos todos os meios de
+santifica&ccedil;&atilde;o, e nos accode com esmolas continuas,
+desde que abrimos os olhos, at&eacute; que deixamos o mundo; pelo
+baptismo assenta os nossos nomes no livro da vida; confirma-nos e
+augmenta-nos depois esse perd&atilde;o; repete-o tantas vezes
+quantas offendemos o C&eacute;o; sustenta-nos com o manjar dos
+anjos; e accode-nos at&eacute; com remedios temporaes, &aacute;
+hora em que as portas do carcere se v&atilde;o abrir, e a alma
+s&ocirc;lta reverter &aacute; sua origem. <br />
+
+<br />
+
+Mas n&atilde;o s&oacute; pelo seu exemplo e meios
+t&atilde;o indirectos nos persuadiu Deus a esmola; n&atilde;o
+&eacute; uma simples recommenda&ccedil;&atilde;o,
+&eacute; um dos preceitos mais rigorosos:&#8213;<em>Ego
+proecipio tibi, ut aperias manum fratri tuo egeno, et pauperi qui
+tecum versatur in terra</em>: Sou eu, &eacute; o teu proprio
+Deus, quem te ordena, que abras a tua m&atilde;o ao necessitado e
+ao pobre, que lida comtigo sobre a terra. Esta lei t&atilde;o
+clara, t&atilde;o precisa e absoluta na sua letra,
+&iquest;ter&aacute; acaso todos esses caract&eacute;res que
+devem sempre manifestar-se em todas as leis de Deus? Examinemol-a, e
+seja o proprio Deus quem nol-a interprete.
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[130]</span>
+&Eacute; <em>justa e necessaria</em>:
+necessaria muito mais ainda para o bem espiritual dos bem-feitores, do
+que para o commodo temporal do soccorrido. A esmola, segundo
+Jesu-Christo, &eacute; um acto de Religi&atilde;o,
+conjuntamente com a ora&ccedil;&atilde;o e jejuns; &eacute;
+pois
+rigorosamente um meio expiatorio; &eacute; um commercio que temos
+com Deus por meio do nosso proximo; &eacute; uma agua copiosa (diz
+o Espirito-Santo) com que apagamos o incendio das nossas iniquidades;
+&eacute; uma santa usura, em que trocamos bens superfluos e
+temporaes por bens inapreciaveis e eternos; s&atilde;o thesoiros
+que ficam depositados no seio do pobre, e que d'ali est&atilde;o
+sempre clamando ao C&eacute;o em nosso favor; s&atilde;o bolsas
+que nunca teem de se estragar nem de esgotar-se, que nunca nos
+ser&atilde;o roubadas nem podem ser consumidas; &eacute; um
+seguro para o dia da
+afflic&ccedil;&atilde;o; &eacute; finalmente um arrimo a
+que nos soccorremos para n&atilde;o cahir. <br />
+
+<br />
+
+Mais: &eacute; <em>util</em>, considerada
+mesmo temporalmente para quem a d&aacute;. O Espirito-Santo o disse
+tambem nos Proverbios: <em>Aquelle que der ao pobre, de nada
+carecer&aacute;; aquelle que desprezar as suas supplicas,
+cahir&aacute; tambem na pobreza.</em>&#8213;Eis aqui, meus
+irm&atilde;os, eis
+aqui patente o terrivel segredo da vingan&ccedil;a divina, quando
+aniquilla tantas fortunas que pareciam t&atilde;o solidamente
+estabelecidas: <em>Dispersit, dedit pauperibus; divites dimisil
+inanes</em>. Sim, porque as maldi&ccedil;&otilde;es,
+&oacute; ricos do mundo, que o pobre vos lan&ccedil;a em
+segredo, na amargura da sua alma, s&atilde;o ouvidas com todas suas
+impreca&ccedil;&otilde;es, por Aquelle que o creou, e que nunca
+d'elle arredar&aacute; os seus
+<span class="pagenum">[131]</span>
+olhos. Folgae hoje, que, semelhantes ao mau rico do Evangelho, sereis
+&aacute;manhan sepultados no inferno, debaixo do peso de vossos
+thesoiros; <em>et sepultus est in
+inferno</em>. E se as vossas riquezas vos s&atilde;o
+consentidas, muitas vezes &eacute; para que principiem o vosso
+inferno no mundo. Se pareceis prosperar, &eacute; para que a vossa
+qu&eacute;da seja mais espantosa, ou para que os vossos
+descendentes, que
+n&atilde;o s&atilde;o culpados nas vossas iniquidades,
+n&atilde;o
+experimentem a puni&ccedil;&atilde;o da vossa dureza, e recebam
+juntos esses bens a que ir&atilde;o dar um justo emprego. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus irm&atilde;os, dizei me: &iquest;vistes
+v&oacute;s, pelo contrario, que homem algum se arruinasse
+j&aacute;mais pelas suas larguezas com os pobres?
+&iquest;N&atilde;o &eacute; antes uma verdade,
+confirmada pela experiencia de tantos seculos, que as familias de mais
+caridade s&atilde;o as que mais teem prosperado? Sim, sim, o
+Espirito Santo o disse pela bocca do mais sublime de todos os
+prophetas: &laquo;Se derramares toda a tua misericordia sobre os
+necessitados, e encheres de consola&ccedil;&atilde;o almas que
+gemiam na afflic&ccedil;&atilde;o, a tua casa se
+tornar&aacute;
+como um jardim sempre regado, e a tua prosperidade ser&aacute;
+t&atilde;o perenne como a fonte que a todos offerece os seus
+licores, e por mais que a bebam nunca se esgota, nem cessar&aacute;
+de correr.&raquo; &iquest;E o Redemptor n&atilde;o disse
+ainda mais expressamente: <em>Date et dabitur
+vobis</em>? &iquest;N&atilde;o compara elle a
+retribui&ccedil;&atilde;o com que o
+C&eacute;o ha-de corresponder &aacute;s nossas liberalidades,
+com uma medida avantajada, calcada, de cogulo, a verter de todos os
+lados, que se nos vasar&aacute; para o rega&ccedil;o?
+&iexcl;Oh! n&atilde;o duvidemos:
+<span class="pagenum">[132]</span>
+os bens
+do misericordioso, repartidos pelos infelizes, s&atilde;o o azeite
+e a farinha milagrosa da santa viuva de Sarepta. Comeu Elias, diz a
+Escritura, comeu ella e a sua casa; e desde aquelle dia nunca lhe
+faltou a farinha no pote, nunca o azeite do vasinho se diminuia. <br />
+
+<br />
+
+V&ecirc;de, depois d'isto, &iexcl;que multid&atilde;o de
+ben&ccedil;&atilde;os as Escrituras n&atilde;o veem
+chovendo sobre o homem compassivo e esmoler! O Senhor o conserve, o
+Senhor lhe d&ecirc; uma longa vida, o fa&ccedil;a feliz no
+mundo, o livre das m&atilde;os dos seus inimigos, o allivie no
+leito da sua d&ocirc;r. O que dispersar os seus bens pelos pobres,
+viver&aacute; de seculo em seculo na memoria dos homens,
+aben&ccedil;oado ser&aacute; o seu nome, e n'elle se
+despontar&atilde;o as settas envenenadas da calumnia. <em>Justitia
+ejus manet in saeculum saeculi. Exaltabitur in
+gloria. Ab auditione mala non timebit.</em> &iquest;Que
+significam tantas promessas, meus irm&atilde;os, tantos premios,
+tanta abundancia de ben&ccedil;&atilde;os, as glorias do
+C&eacute;o e da terra, tudo cumulado sobre o homem benefico?
+&iquest;Que sacrificio t&atilde;o importante se vai exigir
+d'elle? &iquest;a que lances heroicos o querem persuadir?
+&iquest;que perdas soffrer&aacute;
+que cumpra contrabalan&ccedil;ar por premios de t&atilde;o alta
+valia? &iquest;Exige-se-lhe a mendicidade e a miseria, em que
+viveram os Apostolos e o Redemptor? &iquest;um exterminio de todas
+as paix&otilde;es? &iquest;uma
+abnega&ccedil;&atilde;o de todos os prazeres? &iquest;as
+mortificac&otilde;es da penitencia? &iquest;a constancia e
+morte gloriosa dos martyres? N&atilde;o, n&atilde;o.
+Pede-se-lhe s&oacute; amor e provas
+de amor para com seu irm&atilde;o; pedem-se-lhe s&oacute;
+lagrimas e p&atilde;o para os infelizes. N&atilde;o se lhe
+<span class="pagenum">[133]</span>
+intima que d&ecirc;, com prejuizo
+seu, at&eacute; o ultimo boccado d'esse p&atilde;o, mas
+empenham-se os titulos mais sagrados da misericordia, e
+patenteiam-se-lhe todos os cofres e enchentes da Gra&ccedil;a, para
+lhe pedir s&oacute; as migalhas superfluas da sua meza. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Grande Deus! &iexcl;que generosidade incomprehensivel a
+vossa! &iexcl;Remunerardes como sacrificio uma virtude, e
+acceitardes como virtude o que nada custa ao
+cora&ccedil;&atilde;o!
+&iexcl;Accumulardes os vossos pr&eacute;mios sobre os prazeres
+mais doces da consciencia! &iexcl;Considerardes em mais do que
+homem a quem s&oacute; cumpr&igrave;u com deveres da
+humanidade! &iexcl;Avaliardes em tanto um superfluo, que
+trasbordamos para o seio do desgra&ccedil;ado, quando j&aacute;
+nol-o havieis dado com essa
+condi&ccedil;&atilde;o! &iexcl;Acceitardes, finalmente,
+esses bens frageis, temporaes e caducos, esses bens que s&oacute;
+devemos &aacute; vossa liberalidade, como moeda correspondente em
+valor ao pre&ccedil;o inestimavel dos vossos thesoiros infinitos! <br />
+
+<br />
+
+Mas d'estas elevadas contempla&ccedil;&otilde;es, em que todos
+nos deveriamos abysmar, v&oacute;s me chamais, meus
+irm&atilde;os, v&oacute;s me fazeis descer &aacute;s
+profundezas da vossa miseria, e surprehender nas vossas consciencias um
+segredo bem importante. &iquest;E n&atilde;o adivinho eu quaes
+teem sido, desde que enunciei o thema e objecto do meu discurso, os
+pensamentos de muitos de v&oacute;s, da maior parte, ou antes de
+quasi todos os que me escutais?&#8213;&laquo;Feliz (exclama cada um de
+v&oacute;s, no seu cora&ccedil;&atilde;o) feliz de mim, se
+eu podera soccorrer o meu proximo, que a t&atilde;o bom barato me
+veria de posse do C&eacute;o. Por&eacute;m Deus n&atilde;o
+me destinou
+<span class="pagenum">[134]</span>
+a mim esses premios e
+ben&ccedil;&atilde;os; e se a esmola f&ocirc;ra um meio
+indispensavel de salva&ccedil;&atilde;o,
+eu me perderia sem remedio, n&atilde;o por minha culpa, mas por
+culpa da fortuna. Todos os meus bens escassamente chegam para a minha
+sustenta&ccedil;&atilde;o e da minha
+casa.&raquo;&#8213;Assim pensais; assim buscamos pretextos para illudir
+todos os preceitos at&eacute; os mais terminantes e expressos da
+Religi&atilde;o. Mentis a Deus, aqui, na sua presen&ccedil;a,
+dentro da sua mesma casa, e, suppondo justificada a vossa propria
+crueldade, vos revestis d'aquelle zelo hyp&oacute;crita do phariseu
+do Evangelho, e lan&ccedil;ais de travez os olhos para os ricos,
+que ahi est&atilde;o comvosco. Folgais talvez com a sua
+confus&atilde;o; e a doutrina da caridade, a doutrina de tanto
+amor, s&oacute; serve de despertar em v&oacute;s a insolencia,
+o desprezo, e o odio. N&atilde;o permitia Deus que a sua preciosa
+semente se perca d'este modo; que s&oacute; a acceite um pequeno
+torr&atilde;o de terra, e que em vez de produzir os bellos frutos
+do Senhor, a maior parte do seu campo, ou quasi todo elle, continue a
+s&oacute; desatar-se em cardos e espinhos. Afugentemos as aves
+d'esta preciosa sementeira. Arredemos as pedras, e n&atilde;o
+consint&acirc;mos
+que fique sem proveito e inculto nenhum pedacinho, por mais pequeno, da
+sua terra. <br />
+
+<br />
+
+Todos v&oacute;s podeis dar a esmola, todos, sem
+excep&ccedil;&atilde;o, vos achais obrigados a ella; e esta
+universalidade constitue, n'aquelle divino preceito, o seu segundo
+caracter de lei. <br />
+
+<br />
+
+Ha duas especies de esmola (diz Santo Agostinho): uma da bolsa, e a
+outra do cora&ccedil;&atilde;o.
+<span class="pagenum">[135]</span>
+T&atilde;o longe vai, pois, a esmola
+como a caridade; e para podermos soccorrer o nosso proximo, basta-nos
+possuir um cora&ccedil;&atilde;o. &iquest;N&atilde;o
+tendes dinheiro, mas tendes p&atilde;o com fartura? Reparti-o por
+tantos famintos. &iquest;Escassamente vos chega o p&atilde;o,
+mas tendes algumas roupas superfluas? Cobri com ellas tantos
+n&uacute;s.
+&iquest;Nada tendes hoje? Promettei para &aacute;manhan; enchei
+de esperan&ccedil;as o seio vazio de todas as
+consola&ccedil;&otilde;es.
+&iquest;S&atilde;o a caso insignificantes os bens que vos
+restam para os frutos da caridade? Offerecei-os assim mesmo; basta que
+deis s&oacute; um copo de agua fria a um dos mais pequenos do
+mundo, lembrando-vos de que elle &eacute; meu discipulo (vos diz
+Jesu Christo); este s&oacute; copo eu vos affirmo que
+n&atilde;o ficar&aacute; sem recompensa. &iquest;Nada
+tendes que dar? Reparae bem: &iquest;Nada tendes que dar?
+Lan&ccedil;ae bem os olhos de todos os lados. Sondae bem toda a
+vossa fortuna. &iquest;Nada tendes que dar? Se n&atilde;o
+mentis ao
+desgra&ccedil;ado, se na verdade vos achais privado de todo o
+genero de haveres, ainda possuis muitos bens em que n&atilde;o
+reparaveis. S&atilde;o os que existem dentro do vosso
+cora&ccedil;&atilde;o.
+Offerecei-lh'os. Derramae d'elle torrentes de balsamos sobre todas as
+feridas dos vossos tristes irm&atilde;os. Sois ainda mais rico com
+o vosso cora&ccedil;&atilde;o, no meio mesmo da miseria, do que
+os ricos sem elle, afogados nos seus thesoiros. Consultae esse
+cora&ccedil;&atilde;o; ouvi como um oraculo as suas
+respostas. &iquest;Que vos demorais? Segui todos os seus impulsos. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;N&atilde;o tendes com que soccorrer o indigente? Correi
+&aacute; morada do rico. Entrae affoitos. <br />
+
+<br />
+
+Pintae-lhe as miserias do seu semelhante.
+<span class="pagenum">[136]</span>
+Mostrae que s&oacute; os interesses da
+humanidade vos dirigiram ali. Contae o que presenciastes com os vossos
+olhos. Chorae diante d'elle. Desfazei as calumnias. Reconciliae as
+eternas inimizades da opulencia com a miseria, e, semelhantes aos
+corvos de Elias, voae &aacute; choupaninha faminta do deserto, com
+o p&atilde;o e com a carne, que vos deu essa Providencia, que assim
+soubestes interessar. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Ajudae o vosso proximo, com o
+trabalho dos vossos bra&ccedil;os. Advogae perante o poderoso a
+causa do fraco. Desfazei os enredos e calumnias, que ennegreceram vosso
+irm&atilde;o, que lhe roubaram todas as
+protec&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Congra&ccedil;ae o homem
+com o homem, a familia com a familia. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Visitae tantos
+desgra&ccedil;ados, que gemem por esses carceres; persuadi-lhes a
+paciencia, e a resigna&ccedil;&atilde;o evangelica;
+confortae-os com palavras doces, com esperan&ccedil;as
+consoladoras. Approximae-vos ao leito do enfermo; offerecei-lhe, com
+m&atilde;o carinhosa, os remedios; animae-o com os vossos sorrisos,
+e fazei que troque os suspiros da sua d&ocirc;r e do seu desalento
+em suspiros de ternura, em express&otilde;es de conf&ocirc;rto;
+que veja os C&eacute;os abertos, e que goze antecipadamente de
+premios, que, se n&atilde;o fosseis v&oacute;s, talvez
+n&atilde;o tivesse de possuir. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;N&atilde;o tendes que dar! Instrui, na santa doutrina, a
+tantos meninos, e ainda a pessoas maiores, que a ignoram. Bemdizei de
+vosso proximo na presen&ccedil;a, assim como na ausencia. Ajudae-o
+com as vossas ora&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+Nada tendes que dar! &iexcl;Nada tendes que
+<span class="pagenum">[137]</span>
+dar! &iexcl;Ah! ainda tendes lagrimas.
+S&atilde;o as perolas e os diamantes da alma; e esse thesoiro nunca
+se esgota para um christ&atilde;o. Tomae a v&oacute;s uma parte
+do seu infortunio, e elles ficar&atilde;o menos oppressos.
+&iexcl;Que esmolas, tanto ou mais preciosas que as do oiro!
+&iexcl;De quantos e quantos modos, n&atilde;o sabe
+reproduzir-se a beneficencia! <br />
+
+<br />
+
+Bemaventurados, disse o Redemptor, todos os que usam de misericordia,
+porque elles alcan&ccedil;ar&atilde;o misericordia. <br />
+
+<br />
+
+Eis aqui as ben&ccedil;&atilde;os e os premios do
+C&eacute;o, recahindo sobre todos v&oacute;s, sem
+exclus&atilde;o de um s&oacute;. Ahi vos tendes t&atilde;o
+ricos, aos olhos do Senhor, como esses ricos, cuja dureza lamentaveis,
+a cujos bens vos promettieis dar um melhor emprego, se os possuisseis.
+&iquest;Quem vos detem? &iquest;por que n&atilde;o correis
+a praticar essas obras de misericordia, que podeis? &iquest;a
+merecerdes essas ben&ccedil;&atilde;os e premios,
+que ha pouco ambicionaveis? &iexcl;Qu&ecirc;!
+&iexcl;J&aacute; se vos affrouxa o z&ecirc;lo! Sim, o
+z&ecirc;lo, que murmura, que reprehende, que insulta nos outros a
+infrac&ccedil;&atilde;o dos deveres, em quanto os julga
+alheios, esmorece de todo se esses deveres se tornaram proprios; e, por
+mais injusta contradic&ccedil;&atilde;o, as fraquezas, que
+n&atilde;o
+perdoamos no mundo, sendo em n&oacute;s, j&aacute; as sabemos
+desculpar; &iexcl;e quantas vezes n&atilde;o passam de
+desculpadas a canonisadas! Pois bem, senhores: se a raz&atilde;o,
+se a humanidade, se a justi&ccedil;a, se a consciencia, se os
+interesses do mundo, se as ben&ccedil;&atilde;os do tempo e da
+Eternidade, se todos os premios de Deus, emfim, nada podem comvosco,
+possam-n-o, ao menos, as suas amea&ccedil;as, castigos e
+maldi&ccedil;&otilde;es,
+<span class="pagenum">[138]</span>
+que v&atilde;o constituir a sua
+lei perfeitamente obrigatoria. Eis o seu ultimo caracter. <br />
+
+<br />
+
+&iquest;Recusais a misericordia de Deus? J&aacute;
+n&atilde;o tendes que escolher. S&oacute; lhe ficaram as
+vingan&ccedil;as.
+Affastae-vos, &oacute; santa familia de infelizes. Pobresinhos do
+Senhor, affastae-vos da terra maldita, onde vai chover fogo e colera do
+C&eacute;o. Para al&eacute;m, para al&eacute;m,
+&eacute; o vosso refugio, &aacute; dextra do Eterno Padre. <em>Venite
+ad me, omnes qui laboratis,
+etc.</em> &iquest;N&atilde;o vos tinha elle dito que os
+vossos gritos lhe chegariam aos ouvidos, que as
+humilia&ccedil;&otilde;es se lhes converteriam um dia em
+triumphos? Sim, sim, &oacute;
+famintos, &oacute; sedentos, nus, chorosos, calcados, perseguidos,
+&iexcl;jubilae! V&oacute;s nunca cessastes de ser os seus
+filhos muito amados. Eu vou reassumir todos os thesoiros (vos diz elle)
+que a minha Providencia repartira pelos vossos barbaros oppressores. Eu
+lhes havia dado mais altos meios do que a v&oacute;s mesmos de
+alcan&ccedil;arem a minha gloria, de alcan&ccedil;arem a menos
+custo. Os privilegios com que eu os mimosiei, s&oacute; serviram de
+os fazer ingratos e crueis. Frutos mui formosos do meu campo, fostel-o
+v&oacute;s, &oacute; meus pobres; frutos que eu vou recolher e
+guardar para sempre no meu seio; elles foram arvores estereis, que,
+dominando toda a sementeira, a a&ccedil;oitaram com os ramos, a
+damnaram com a sombra, a devoraram com as raizes; infecundas e nocivas
+eu as arranquei em meu furor; eu vou lan&ccedil;al-as ao fogo.
+Retirae-vos de mim, malditos. Precipitae-vos no incendio eterno, que
+foi preparado ao diabo e aos seus anjos; porque eu tive fome, e
+v&oacute;s me n&atilde;o d&eacute;stes de comer; eu tive
+<span class="pagenum">[139]</span>
+s&ecirc;de, e v&oacute;s
+me n&atilde;o d&eacute;stes de
+beber; fui peregrino, e n&atilde;o me recolhestes; nu, e
+n&atilde;o me vestistes; enfermo e encarcerado, e n&atilde;o me
+visitastes. Todas as vezes que despedistes, que calcastes os pequenos
+do mundo, a mim, a mim o fizestes. <br />
+
+<br />
+
+&iexcl;Ah! meus irm&atilde;os, possa esta senten&ccedil;a
+de maldi&ccedil;&atilde;o estampar-se hoje com letras de fogo e
+indeleveis nos vossos cora&ccedil;&otilde;es. Este Jesus
+escondido nos pobres, este Jesus que por ahi vaga f&oacute;ra dos
+templos, coberto de remendos, macilento, prostrado debaixo do
+p&ecirc;so de tantas cruzes, &eacute; um rei de majestade,
+&eacute; um senhor indignado que vos ha-de apparecer em toda a sua
+c&oacute;lera, e de cujas senten&ccedil;as nunca
+poder&ecirc;is mais appelar. &iexcl;Oh! compadecei-vos d'elle,
+soccorrei-o emquanto o-v&ecirc;des pobre, cahido e humilhado, para
+o n&atilde;o experimentardes depois, senhor altivo e vingador.
+&iexcl;Oh! pobresinhos do Senhor, parabens! o
+cora&ccedil;&atilde;o me-diz que esta semente n&atilde;o
+ser&aacute; perdida, e que ter&ecirc;is hoje ao menos soccorros
+e consola&ccedil;&otilde;es. <br />
+
+<br />
+
+Pois bem, Senhor. A V&oacute;s, recorremos hoje, que ainda
+&eacute; tempo. Aqui promettemos soccorrer-vos com o que
+&eacute; vosso, a V&oacute;s, &oacute; meu Jesus pobre; a
+v&oacute;s, cahido, a v&oacute;s humilhado, para vos
+n&atilde;o experimentarmos depois accusador, testemunha, vingador e
+inexoravel. Antes que nos-accendais esses fogos de
+maldic&ccedil;&atilde;o,
+j&aacute; era nossos cora&ccedil;&otilde;es temos accezos
+outros, que muito mais s&atilde;o vossos: os da caridade. <br />
+
+<br />
+
+&Oacute; mod&ecirc;lo do bom pae de familias, ajuntae-nos em
+t&ocirc;rno da meza do vosso banquete celestial, aonde se assenta o
+opulento Salom&atilde;o
+<span class="pagenum">[140]</span>
+a par
+do Lazaro mendigo, os grandes com os pequenos da terra, o peccador
+arrependido com o justo que nunca vos-offendeu. Reclinae-nos
+s&ocirc;bre o vosso seio; e n'um abra&ccedil;o de eterno amor
+nos-apertae a todos s&ocirc;bre o vosso
+cora&ccedil;&atilde;o paternal, por todos os
+s&eacute;culos dos s&eacute;culos. <br />
+
+<br />
+
+Assim seja.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>INDICE </h3>
+
+<br />
+
+<div class="breaks">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">I</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>A primeira noite na serra</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c1">5</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O sepulchro, ou historia de uma noite de S.
+Jo&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c2">11</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Epistola a Jo&atilde;o Evangelista Pereira da
+Costa</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c3">41</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O Presbyterio</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c4">43</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>A lyra do
+desterrado</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c5">49</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Epistola a</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c6">51</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>A romaria</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c7">53</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VIII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O Domingo gordo dos
+montanhezes</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c8">55</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IX</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O S. Jo&atilde;o nas faldas do
+Caramulo</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c9">77</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">X</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>O mosteiro</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c10">81</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XI</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Santa Maria
+Egypc&iacute;aca</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c11">91</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">XII</td>
+
+ <td style="text-align: center;">&#8213;</td>
+
+ <td>Epistola ao Desembargador
+Deslandes</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c12">97</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td>Notas ao 1.&ordm;
+volume</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c13">99</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td>Additamento</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c14">107</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"></td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ <td>Serm&atilde;o da Esmola ou da
+Caridade</td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c15">109</a></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h4>EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL<br />
+
+Sociedade editora </h4>
+
+<h4><img style="width: 154px; height: 200px;" alt="" src="images/fig03.png" /><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<span class="smallcaps">Livraria Moderna</span><br />
+
+95&#8213;RUA AUGUSTA&#8213;LISBOA</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<b>Notas:</b><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="6"></a><sup>[1]</sup> Verbi
+gratia na quinta da Domanderes.
+<br />
+
+<div class="signature">Nota do autor.</div>
+
+<br />
+
+<a name="7"></a><sup>[2]</sup>
+Descreva-se aqui n'uma nota o encontro que hoje tivemos
+com o gallinheiro de Santa Cruz junto ao Val da Gallega, que quiz
+descarregar uma espingarda em mim e no poeta, julgando-nos
+ladr&otilde;es, pelas
+muitas perguntas que lhe faziamos sobre o que levava etc. etc.&#8213;<span class="smallcaps">Nota do secretario
+Augusto</span>.<br />
+
+<br />
+
+<a name="8"></a><sup>[3]</sup> A
+Castanheira
+do Vouga, Bispado de Aveiro, Comarca da
+Feira, a uma legua de Agueda.<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+do autor</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="9"></a><sup>[4]</sup> A
+traduc&ccedil;&atilde;o de parte de Silio
+Italico pelo Padre Francisco Manoel do Nascimento (Filinto Elysio.) <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+do autor</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="10"></a><sup>[5]</sup>
+Traduc&ccedil;&atilde;o da escolha das Fabulas de
+Lafontaine pelo mesmo. <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+do autor</span>.</div>
+
+<br />
+
+<a name="11"></a><sup>[6]</sup>
+(O poema desappareceu, ou nunca chegou a escrever-se.) <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Nota
+dos Editores.</span></div>
+
+<br />
+
+<a name="12"></a><sup>[7]</sup>
+Josu&eacute;&#8213;cap. XXIV<br />
+
+<br />
+
+<a name="13"></a><sup>[8]</sup>
+Juizes&#8213;cap. VI.<br />
+
+<br />
+
+<a name="14"></a><sup>[9]</sup> Foi este
+fragmento publicado na <em>Revista
+Universal Lisbonense</em> de 19 de Junho de 1845&#8213;Tomo IV, pag.
+582. <br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><span class="smallcaps">Os
+Editores</span>.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="fbox">
+<h2>Lista de erros corrigidos</h2>
+
+<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se
+listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="right">
+
+ <td style="width: 61px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correc&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: center;">Volume I</td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e1"></a> <a href="#p20">#p&aacute;g.
+20</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">a
+&eacute;m</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">al&eacute;m</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"> <a name="e2"></a> <a href="#p33">#p&aacute;g.
+33</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">&laquo;o
+salto)&raquo;</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">&laquo;o
+salto&raquo;)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <a name="e3"></a>
+ <a href="#p36">#p&aacute;g. 36</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">op&iacute;ma</td>
+
+ <td>...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">opt&iacute;ma</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: top;">
+ <a name="e4"></a> <a href="#p56">#p&aacute;g.
+56</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">Ines</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; vertical-align: middle;">lhes</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <a name="e5"></a>
+ <a href="#p69">#p&aacute;g. 69</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">fescenino,&raquo;</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">fescenino&raquo;,</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"> <a name="e6"></a>
+ <a href="#p94">#p&aacute;g. 94</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">acompapanhal-o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">acompanhal-o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: center;">Volume II</td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ <td style="text-align: center;"></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e7"></a>
+ <a href="#p45">#p&aacute;g. 45</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">dextra n&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">dextra m&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e8"></a>
+ <a href="#p113">#p&aacute;g. 113</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">tarrestres</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">terrestres</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+</div>
+</div>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O presbyterio da montanha, by
+António Feliciano de Castilho
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O PRESBYTERIO DA MONTANHA ***
+
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+
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+1.E.9.
+
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+
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+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
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+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
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+collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
+works, and the medium on which they may be stored, may contain
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+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at http://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit http://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ http://www.gutenberg.net
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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