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Nº8 (de 12) + +Author: Camilo Castelo Branco + +Release Date: February 19, 2009 [EBook #28128] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + +BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA + + +NOITES DE INSOMNIA + +OFFERECIDAS + +A QUEM NÃO PÓDE DORMIR + +POR + +Camillo Castello Branco + + +PUBLICAÇÃO MENSAL + + +N.º 8--AGOSTO + +LIVRARIA INTERNACIONAL +DE +ERNESTO CHARDRON +_96, Largo dos Clerigos, 98_ + +PORTO EUGENIO CHARDRON +_4, Largo de S. Francisco, 4_ +BRAGA + +1874 + + +PORTO + +TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA + +62--Rua da Cancella Velha--62 + +1874 + + +BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA + + +NOITES DE INSOMNIA + + +SUMMARIO + + +_Os salões, pelo exc.mo visconde de Ouguella--Subsidios para a +historia da serenissima casa de Bragança--O paço real da +Ribeira--As Cruas entranhas de D. Maria 1.ª, a Piedosa--D. Maria +Caraca Bonaparte--Lixo--Bibliographia--Pobreza academica--Sobre +Anselmo--Ao Publico_ + + + + +OS SALÕES + + +CAPITULO VI + +UMA AURORA + + Opprimé par des déspotes, qui, á leur tour, étaient menés par les + jésuites, et asservi sous le pouvoir sans frein des prêtres et des + nobles, ce petit peuple menait ainsi, sans aucun doute, pendant la + première moitié du dix-huitième siècle, l'existence la plus + miserable parmi toutes les nations de l'Europe. + + GERVINUS. + + L'histoire n'est jamais faite, on la refait sans cesse. + + VOLTAIRE. + + Les hommes embrassent volontiers avec une ardeur violente les rêves + qu'ils se font, mais ils ne veulent point qu'on les leur impose. + + ARSÈNE HOUSSAYE. + + Ignota obscurae viderunt sidera noctes, + Ardentemque polum flammis, coeloque volantes + Obliquas per inane faces.... + + LUCANO. + +Nos confins do globo, nas regiões arcticas, ao tocarmos as ultimas zonas +habitadas, toma a existencia proporções fabulosas. Expiram, alli, todas +as ousadias, todos os commettimentos, todas as aspirações dos mais +intrepidos navegadores. + +É longo o obituario dos homens illustres, que teem perecido, +abandonados, n'estas epopêas ignoradas. Seriam famosas as chronicas, +onde se compendiassem as façanhas, os esforços heroicos, as luctas +incessantes, e a coragem inexcedivel dos martyres, que vão perdendo a +vida em busca d'aquellas solidões polares. + +Todas as proezas que a antiguidade nos narra: os doze trabalhos de +Hercules, a entrada no formoso jardim das Hesperides, as excursões em +demanda do vellocino de ouro, o ousado empenho de transpor o labyrintho +de Creta, o maravilhoso e demorado cerco de Troya, a viagem aventurosa +de Ulysses procurando a patria, a retirada heroica de dez mil gregos +pelo interior da Asia, as conquistas de Alexandre, as invasões de +Sesostris, a fundação de Sparta, de Athenas, de Roma, e de +Carthago--finalmente as narrações de Homero, Xenophonte, Herodoto, +Diodoro, Thucydides, Quinto Curcio, Tito Livio, Plutarcho, e Eutropio, e +ainda as creações grandiosas, que remontam aos tempos pre-historicos dos +vedas, do Maha-Bharata, do Ramayana, do Kalidasa, e do Boudha +Sakya-Mouni, todos estes mythos, todas estas epopêas, todas estas +lendas, todas estas luctas titanicas, todas estas épicas aventuras são +debeis esforços, limitadissimos exageros, vagas e triviaes descripções, +em presença dos arrojos de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de +Christovão Colombo, de Américo Vespucio, de Magalhães, de Franklin, de +Cooper, e de não sei quantos outros navegadores e descobridores +temerarios, que teem avassallado os dous oceanos, indo, alguns d'elles, +povoar, com os seus esqueletos, as regiões remotas dos gelos polares. + +Ha um parallelo formidavel e tremendo entre a vida physica e moral da +humanidade. As leis, que regem o espirito e a materia caminham a par. + +O alvorecer da liberdade, quando um povo desperta do lethargo da +escravidão, assemelha-se á luz vaga e indecisa, com que a natureza +previdente, e sempre mãi, acode á escuridão das immensas noites +arcticas. + +Contemplemos. + +Em phases astronomicamente determinadas, o facho de luz, que arrasta +este globo, acariciando-o, e alimentando-o carinhosamente--como em berço +de ouro, e em fachas de purpura--deixa, na solidão e nas trevas, por +longas e frigidissimas épocas, as regiões que se aproximam dos polos. + +Esconde-se o astro do dia. Levantam-se tempestades inexcediveis, rangem +nas proprias raizes os arbustos, que uma temperatura, milagrosa para a +vida humana, permitte e consente que sobrevivam a uma lucta constante; +fogem espavoridos os ferozes animaes, que o Creador concedeu áquelles +climas, e o homem, ainda que afeito a esta existencia inexplicavel, +busca em cavernas, cavadas no proprio gelo, um refugio, um abrigo contra +estas tormentas, em que a terra parece agonisar. + +E quando a noite vai longa,--longa a ponto que parece +interminavel,--quando a presença d'um ente organisado assusta e apavora, +porque os vultos dão visões d'espectros, n'aquelles cataclysmos e +inversões de todas as normas por que physicamente se governa a +humanidade--do seio d'este cahos, do vacuo de todos estes ruidos, da +solidão infinda de todas estas planuras assomam os lampejos d'uma luz +vaga, indecisa, e bruxuleante--robustecem-se, avivam-se, condensam-se, +animam-se, fulguram, e em duas columnas investem com o horisonte, +aproximam-se do zenith, e desdobram-se n'uma corôa de fogo, que +resplandece, offusca, e afaga na pallidez dos planos em que se desenha, +os montes, pyramides e arcarias de gelo com que as solidificações da +agua teem revestido a terra. + +É uma aurora polar. + +O phenomeno termina. + +As trevas adensam-se, os ventos impetuosos enfurecem-se, o gelo augmenta +de volume, as plantas não receberam calorico que as aviventasse, e a +terra conserva-se fria, inerte e abandonada. + +É porque o calor e a luz foram ephemeros, e a natureza continua envolta +no seu sudario de neve, até que o luzeiro vivificador, o centro de toda +a nossa existencia venha expandir os seus raios, as suas frechas de ouro +por sobre o nosso planeta. + +A liberdade é como o sol. + +Só ella vivifica, só ella alenta, só ella esparge os seus raios de luz +pelas escuridões da intelligencia humana. Só ella rasga os véos +densissimos, que entenebrecem o senso moral dos povos. Só ella exalta +Galileu, Copernico, Luthero, Leibnitz, Calvino, Voltaire, Rousseau, +Beccaria, Filangière, Darwin, Proudhon, Lamennais, Bentham, Comte, +Stuart Mill, Littré, Michelet, Quinet, e toda esta phalange de +apostolos, que evangelisam a palavra de Deus, e pregam a boa nova, +explicando as maravilhas da creação, d'envolta com os hymnos, que +offerecem ao Eterno. + +As auroras polares são simulacros de vida--são phenomenos +meteorologicos, que fulgem e desapparecem, sem que a terra estremeça de +contentamento, sem que a natureza acorde do somno lethargico das noites +arcticas, sem que as regiões do gelo dispam o alvo manto, que as +envolve, exhaurindo a luxuriante vida, e os ricos thesouros da sua +vegetação por todos os poros dos seus ferteis e uberrimos torrões. + +Quando os povos não estão ainda preparados para as grandes evoluções +sociaes, quando as nações jazem adormecidas, nos pesadelos d'uma lenta e +demorada tyrannia, as aspirações d'um grupo diminuto de homens, o credo +da nova crença, symbolisado n'uma obscura e limitada pleiade, as +esperanças do futuro, formuladas pelos videntes e vates d'uma nova era, +são como a semente perdida de que falla o evangelho--não brota, não +germina, não rebenta, não fecunda, não viceja: fica entalada nas pedras, +ou comem-na as aves do céo. + +As evoluções sociaes, sonhadas nos improvisos e imprevidencias dos +homens, que anceiam por precipitar acontecimentos inopportunos ou +prematuros, e que tentam arrastar os tempos, na insensatez com que os +Titans ousaram escalar o Olympo--segundo a maravilhosa lenda da +mythologia grega--são auroras polares, que fulgem, brilham, e se +extinguem, deixando o frigidissimo gelo da descrença no coração dos +povos que imaginaram regenerar. + +Assim foi a revolução de 1820. + +Na noite de ignorancia, de fanatismo, de escravidão e de miseria, que ia +tão longa, e tão frigida, como nas trevas dos polos, ergueu-se um +luzeiro ephemero, passageiro, e rapido, que atravessou o horisonte +politico da patria, e esvaiu-se e dissipou-se, como um meteoro, deixando +submersa, nas trevas da mais feroz oppressão, a nobilissima Lusitania. + +A aurora polar de 1820 dissipou-se. + +As trevas de 1828 surgiram e adensaram-se com o nefasto nome de +usurpação. + +O vaticinio da emancipação dos povos, o credo dos videntes da boa nova +foram afogados no completo desconhecimento da soberania popular. Ficou o +Lazaro amortalhado, no sepulchro, sem escutar nem entender o verbo +harmonioso da redempção. + +Por vezes, no fundo d'um horisonte diaphano e transparente, recorta-se +um ponto imperceptivel, um atomo negro, que só vistas perspicazes +descortinam. Vai o baixel singrando em aguas remansadas, impellem-no +ventos prosperos e adequados a uma facil navegação; e subitamente o +atomo torna-se colosso, o ponto negro transforma-se em tempestade, e os +elementos desencadêam-se, enfurecidos, sobre o mareante, confiado e +seguro na tarde bonançosa e estival dos climas tropicaes. + +Assim nasceu a revolução. + +As colonias do norte da America, esmagadas pela soberba oppressão da +velha Albion, proclamaram-se independentes. A França educada já nas +luctas dos philosophos e encyclopedistas, affeiçoada ás theorias e +doutrinas de Descartes, Voltaire, Rousseau, D'Alembert, Hobbes e Diderot +auxiliou esta grande lucta de emancipação; e a Europa, viu, com +assombro, o Novo-mundo aceitar a republica como um systema de governo, e +sustentar a democracia como uma verdade inconcussa, que parecia o +complemento da missão do Nazareno. + +É que o christianismo recuára diante da escravidão. «Dai a Cesar o que é +de Cesar», dissera o Messias; e a França, como n'um Sinay de luz e de +transformações sociaes, formulára os direitos do homem, e esmagára, sem +remorso, todas as oppressões, e todas as tyrannias. + +A França é o capitolio da raça latina. + +Nem uma só vez a nobre terra das Gallias deixou de regar com o proprio +sangue um grande principio. E ainda, quando arrastada pela louca ambição +d'um homem desvairado, percorria a Europa, na sofreguidão das +conquistas--ainda assim, cada patrona dos seus legionarios era um fóco +de propaganda, e uma ameaça tremenda para os despotas ungidos pelo +direito divino. + +Os excessos da revolução franceza--se os houve--foram a consequencia +logica e fatalmente necessaria de tantos seculos de carnificinas, +d'escravidão, e de infamias. «Os grandes só são grandes, porque nós +estamos de joelhos: levantemo-nos», clamava Seyés ao raiar a aurora da +mais esplendida revolução, que narram os annaes de todos os povos. E o +morticinio dos albigenses, a destruição dos huguenotes, as fogueiras das +inquisições, os encerramentos nas torres, e nas bastilhas, o estupido +orgulho, e os ignobeis e torpes privilegios d'uma aristocracia banal e +dissipadora, os barbaros direitos feudaes, a miseria publica na sua +hediondez, e todas as vergonhas, todos os abusos e todos os vexames dos +governos absolutos foram anathematisados e pulverisados á face dos +grandes principios, que os vultos homericos da assembléa nacional e da +convenção ousaram proclamar. + +É d'aqui, e só d'aqui, que data a emancipação da humanidade. + +A fé religiosa podéra ser--e foi--um balsamo de consolação. Era um +esteio para as consciencias, era uma valvula de segurança, forjada pelo +clero, pelo sacerdocio, pela theocracia, para obstar ao desencadeamento +de todas as indignações, e apagar, com as adulteradas palavras de +misericordia e resignação, as justas represalias legadas por milhares de +gerações. + +As palavras de Christo, no Golgotha: «Perdoai-lhes, meu Pai, porque +elles não sabem o que fazem», ficaram sendo, na amphibologia da sua +applicação, o pára-raios de dezoito seculos de abusos, de ultrajes e +torpezas. + +Rebentou a revolução franceza. E os raios d'este Sinay da biblia da +humanidade encheram de luz a palavra justiça, em toda a severa e +inexoravel verdade do vocabulo romano: «_Jus sum cuique tribuendi._» + +Os decemviros d'esta era famosa prestavam, pela primeira vez, homenagem +á dignidade de todos os entes racionaes: viam e consideravam todos os +homens irmãos e iguaes. + +Como é triste e demorada a perfectibilidade humana! Quantos seculos de +trevas, para luzir no craneo do rei da creação esta simplicissima +verdade: todos os homens são iguaes! + +E são. + +O genio e o idiotismo formam os dous polos d'esta arca santa, d'este +tabernaculo do pensamento, da vastidão do cerebro, onde a consciencia +moral, quando culta e desenvolvida, desperta sofrega dos seus direitos, +e irrompe-lhe a intuição generosa e espontanea dos seus deveres e +obrigações. + +As colonias hespanholas responderam, com enthusiasmo, a este clamor +unisono da America do norte, e por sobre os dous oceanos voou a mensagem +de que o Novo-mundo estremecia de jubilo ao contemplar a liberdade. Foi +isto bastante para que o movimento revolucionario se propagasse na +metropole. E ao passo que os autocratas da Europa forjavam uma alliança +reaccionaria, com o intuito pueril de levantar um dique á torrente +caudal, que trasbordava nas planuras habitadas pela raça latina, a +revolução caminhava triumphante no meio dia do nosso continente, e +aceitava, como modêlo, a constituição hespanhola de 1812. + +Era a democracia que levantava o collo, e arremessava o cartel aos +privilegios de dezoito seculos. As centelhas luminosas da liberdade, as +chispas d'este fogo sagrado irrompiam tão espontaneas, e tão vivazes, +que pareciam vulcões abertos pelas forças temerosas da electricidade, +fluidos magneticos, que em correntes subterraneas pretendiam surgir dos +seios da terra, em quanto esta se debatia, agonisante, nas convulsões +d'uma nova transformação. + +Em 1820 estremeciam os dous mundos. + +A Hespanha, o Brazil, o reino de Napoles, o Piemonte, e os proprios +christãos avassallados na Grecia despertavam ao clamor da emancipação +dos povos. Irradiava o sol da justiça. Dissipavam-se as trevas na +consciencia humana. Desde o Chili até Boukarest coroavam-se as montanhas +de fachos de luz, e como se uma só vontade, um só incentivo, um só +impulso dirigisse as nações, echoava em todos os pontos o sagrado nome +da liberdade. Ouvia-se o ruido das velhas instituições que desabavam. O +clero e a nobreza perdiam o prestigio, a força, o poderio; e a +humanidade, que ouvira absorta a palavra omnipotente da convenção +nacional, estremecia jubilosa e reverente, como a virgem de Nazareth ao +escutar a saudação celestial do anjo mensageiro. + +Durou pouco a esperança. Detraz dos hymnos festivaes vinham os crepes +funerarios. Após esta radiante aurora seguiram-se as trevas da reacção, +os carceres, as galés, as deportações, os exilios e os morticinios. A +velha Europa estendeu os pulsos e deixou-se algemar. + +O mais hediondo mal da escravidão é o habito torpemente adquirido de ser +escravo. + +O maior crime da tyrannia é educar as gerações para a abjecção moral, +para a aniquilação da dignidade individual, e para a ignorancia dos +proprios deveres. + +Todavia as evoluções sociaes não dependem da vontade dos homens. + +As legitimas penalidades, na terra, imprimem-se implacaveis e cruentas +em quem pretende destruir o que de si é immutavel e eterno. O +desconhecimento completo das leis physicas e moraes da humanidade +arrasta, as mais das vezes, repetidos cataclysmos e sangrentas +catastrophes. + +A arca santa do mosaismo é o symbolo immaculado da indestructibilidade +das normas, por que o universo se rege. + +Todos os seculos teem uma feição propria, uma formula predominante, por +que se inscrevem na historia. Assim se exprime o seculo de Pericles, o +seculo de Augusto, o seculo dos Medicis, o seculo de Luiz XIV. Detraz de +cada um d'estes epithetos, que são como uma synthese, caracterisada +n'uma epigraphe, transparecem grandes commettimentos, estudos longos e +pacientes, como de benedictinos, luctas heroicas, trabalhos herculeos, +progressos infinitos, que formam a vereda, representada pelos marcos +milliarios da civilisação dos povos. Definem-se, pois, os seculos por um +grande pensamento, e gravam-se com uma nova idéa. E á medida que as +civilisações se multiplicam, as transformações são mais rapidas; e as +evoluções sociaes precipitam-se. É assim que os phenomenos da +electricidade e a força do vapor teem hoje, desde a Oceania até aos +confins do occidente europeu, a humanidade perplexa e surprehendida n'um +contacto constante, e as idéas transmittem-se com a velocidade da luz. + +Mas as gerações que se teem ido succedendo, em seculos determinados para +a sua missão--egoistas e imprevidentes, foram legando ao seculo dezenove +a solução de todos os formidaveis problemas com que hoje nos achamos a +braços. Nós--entregues e devotados ás sciencias d'observação, aos +estudos analyticos, á razão critica, á severa e leal escolha da pureza +dos elementos que constituem o nosso credo, e a encyclopedia +fundamentada dos actuaes conhecimentos humanos, encontramo-nos face a +face com a futura solução de todos os problemas religiosos, +scientificos, litterarios e sociaes, que a machiavelica prudencia de +todos os defensores dos rigorosos principios authoritarios vai deixando +accumular. + +Queixem-se de si, e só de si os zelosos apostolos da reacção--phariseus +de todas as épocas, e de todas as raças,--quando a democracia implacavel +e inexoravel na sua marcha, arrastada involuntariamente pela sua +velocidade adquirida, achar de subito a formula inteira de todas estas +temerosas soluções. + +Mil oitocentos e vinte é apenas uma data. + +Echo remoto da revolução franceza, grito agonisante d'uma nação +exhausta, indolente, ignorante, fanatisada e escrava, o povo balbuciou +sem consciencia nem fé a palavra liberdade, e adormeceu de novo, no seio +de theorias que não entendeu, de principios que não comprehendia, para +acordar d'este somno febril e agitado nas tristes e luctuosas +carnificinas do caes do Tojo. + +A inviolabilidade da vida humana era uma utopia e um escarneo para uma +geração, que se estorcia convulsa, ainda, no medo e pavor com que a +feriam em face os sombrios e ferozes carceres da inquisição. + +A democracia nem era apenas um sonho n'estes devaneios da classe media. +O proletariado, quando muito, seria uma casta de parias, que d'envolta +com o pauperismo merecia os ergastulos e gemonias da preconisada +republica romana. + +As republicas gregas e latina não eram comprehendidas pela ausencia +total das sciencias modernas. E se os vocabulos se entendiam nos +lexicons da época, desconhecia-se, pelo menos, a essencia da organisação +e constituição de povos tão diversos. A philologia e a ethnographia eram +como hieroglyphicos para uma sociedade que apenas queria destruir. O +seculo dezoito vivera em parte dos discursos emphaticos de Raynal, +Volney e Rousseau, e das historias fabulosas, escriptas pelos aulicos e +cortezãos de todas as vaidades e pompas mundanas. + +A democracia, na rasgada e imponente accepção do verbo supremo, havia de +irromper, mais tarde, n'este luzeiro immenso, que será a redempção da +humanidade. + + VISCONDE D'OUGUELLA. + + + + +SUBSIDIOS PARA A HISTORIA DA SERENISSIMA CASA DE BRAGANÇA + + +II + +A VENIAGA + +Sem preambular com as repetidas accusações (veja Rebello da Silva, +Soriano, Pinheiro Chagas) escriptas contra a cobarde inercia de D. João, +duque de Bragança, que desatravancou ao usurpador castelhano o accesso a +Portugal, vou arrolar com miudas provas as verbas que representam o +valor da honra e do patriotismo do avô de D. João IV. + +Possuo um codice que pertenceu ao archivo da casa de Bragança, escripto +em 1687, com estes dizeres na folha de rosto: _Doações do real estado e +casa de Bragança, conforme se vão desbrindo em papeis e documentos +authenticos de que em summa se dá noticia._ + +Convém saber que os successores do duque D. Fernando, degolado em tempo +de D. João II, nunca poderam obter de D. Manoel, de D. João III, da +rainha regente, de D. Sebastião e do cardeal, parte dos privilegios que +o filho de Affonso V lhes jarretára. A absoluta independencia da corôa, +e o absoluto dominio em Villa-Viçosa, nunca poderam os duques +extorquil-o á condescendencia dos soberanos. + +Obteve-o, porém, o avô de D. João IV, em fevereiro de 1581, da velhaca +magnanimidade de Philippe II de Castella, quando foi comprimentar a +Elvas o usurpador, que vinha entrando triumphalmente em Portugal. O +primeiro passo era crear magistrados seus, instaurar tribunaes sem +appellação nem aggravo das sentenças dos seus juizes, e defender o +ingresso de viandantes em seus dominios, quando elles eram suspeitos de +procedencia de lugares impedidos, e até quando o não eram. + +A seguinte _doação_ de Philippe II ao duque de Bragança, D. João, +primeiro de nome, está registada no livro V da camara de Villa-Viçosa, +fl. 31, pag. 2. + +«Eu el-rei, faço saber aos que este alvará virem que havendo respeito +ao duque de Bragança, meu muito amado e presado sobrinho e a D. +Catharina minha muito presada prima residirem ora em Villa-Viçosa, +e por outros respeitos que a isso me movem; hei por bem e me praz +que a pessoa que o dito duque nomear por guarda-mór da saude da +dita villa tenha a alçada com o dito cargo adiante declarado. Que +entrando alguma pessoa na dita villa, sem licença do dito guarda-mór, e +constando que vem de lugar impedido, o possa _mandar prender, e sendo +peão será condemnado a um anno de degredo para o couto de Castro Marim +com pregão na audiencia e 2$000 reis para os captivos; e, sendo de maior +qualidade, a mesma pena de degredo e pregão e 4$000 reis. E o mesmo nos +que metterem fatos e mercadorias das terras impedidas; e os que vierem +de terras não impedidas, entrando sem licença, presos, e da cadêa +pagarão 2$000 reis._ + +«E todas estas penas sem appellação nem aggravo, e que as sentenças +sejam dadas em camara com os vereadores. E que não passe pela +chancellaria. Ambrosio de Aguillar o fez em Elvas a 23 de fevereiro de +1581. Roque Vieira o fez escrever. El-rei.» + +Em 2 de julho de 1582 concede o mesmo monarcha ao mesmo duque _poder +despender as rendas dos concelhos das suas terras no que lhe aprouver._ + +Em 2 de maio de 1584 o mesmo Philippe II assigna o seguinte aviso: + +«Eu el-rei. Faço saber a vós licenciado Lopo de Abreu Castello Branco +que ora o duque de Bragança (D. Theodosio) meu muito amado e presado +sobrinho, com minha authoridade, envia por juiz de fora da sua villa de +Villa-Viçosa, que eu hei por bem pela confiança que de vós tenho, que +além dos poderes que por minha ordenação são dados aos juizes +ordinarios, vos tenham mais o poder e alçada ao diante declarados: + +«_Que nos casos crimes possa mandar açoutar peões de soldada que +estiverem assoldadados, e outros peões que ganharem dinheiro por +braçagem, e escravos, e que possa degredar os ditos peões para os +lugares d'além-mar por dous annos, e para os coutos do reino até tres +annos. Que possa degredar escudeiros e vassallos que não forem de +linhagem, e officiaes mecanicos para os lugares d'além-mar por dous +annos, e para os coutos do reino por tres annos... Que se alguns +fidalgos, cavalleiros e escudeiros de linhagem, e vassallos, fizessem +cousas por que mereçam ser processados, os empraze para que a certo +tempo appareçam._ João da Costa o fez em Lisboa a 2 de maio de 1584. +Rei.» + +Seguem mandados confirmando e revalidando doações abolidas ácerca das +rendas das feiras, que os duques de Bragança continuaram a perceber, +como seus avós, antes das reformas de D. João II. + +Em 1589, o duque de Bragança D. Theodosio decreta nos seus dominios +isentando os ferradores e mais officiaes mecanicos de sua casa _de todos +os serviços e encargos do concelho, de fintas, de talhas, montes, +pontes, fontes, caminhos, calçadas, etc.; nem vá com presos, nem seja +tutor, nem curador de nenhumas pessoas, nem pousem com elles, nem lhes +tomem suas casas de moradas, nem adegas, nem estrebarias, nem roupas, +nem palha, etc._ + +N'esta fórma de decreto assigna D. Catharina, por ser ainda menor o +duque. + +D. João, segundo de nome, e que depois foi rei, ainda em 1635 impetrou +licença de Philippe IV de Castella para crear doze misteres, especies de +zeladores na cobrança das alcavalas que a serenissima casa exercia sobre +os vassallos. + +D. Duarte concedêra que o duque de Bragança podesse nomear juiz, quando +o juiz de nomeação real lhe fosse suspeito. D. Affonso V confirmou. D. +João II aboliu. D. Philippe IV de Hespanha, a requerimento do duque de +Bragança, que depois foi rei, confirmou a lei de D. Duarte. + +Por doação de 1587 é permittido ao duque de Bragança não cumprir as +cartas dos corregedores da côrte. No mesmo anno lhe é facultado avocar a +si as causas das suas terras e _sentenciar como lhe parecer_. + +Em 1607 é permittido ao duque de Bragança formar chancellaria e _levar +direitos d'ella sobre cartas de seguro em caso de mortes negativas, ou +confessativas de morte, de resistencia a officiaes de justiça, ele, em +provimentos de officios e isenções de cargos_. + +Esta concessão derivava do animo bizarro do castelhano que pagava ao +duque de Bragança com o dinheiro dos proprios portuguezes, e do animo +avarento do agraciado que se cevava na pobreza dos seus conterraneos. + +Tal graça era tão pesada para os portuguezes quanto vaidosamente inepta +para o duque a do tratamento de _excellencia_ que obteve em 1597, por +lei extravagante de 6 de dezembro, que só aos duques de Bragança e aos +infantes a concedia[1]. + +Afóra a _excellencia_, «o duque de Bragança--escreve Rebello da +Silva--por ser o mais nobre e poderoso, foi tambem o primeiro que o +soberano exaltou, lançando-lhe elle proprio sobre o peito o collar do +tosão de ouro, e entregando-lhe o estoque de condestavel do reino, +dignidade por elle pedida em vão, como sabemos, ao cardeal-rei e aos +cinco governadores.» (_Hist. de Port. nos seculos XVII e XVIII_). + +Na acclamação de Philippe I de Portugal, «o primeiro que jurou foi o +duque de Bragança, o qual depois veio beijar a mão d'el-rei.» (_Obra +cit._) + +Esta preeminencia importava menos que a concessão então obtida de +transportar da India uma determinada porção de especiarias isentas de +direitos da alfandega. + +Constituiu-se pois a serenissima casa de Bragança o primeiro armazem de +canella e pimenta n'estes reinos; e, como não pagava direitos, a sua +mercadoria era a mais procurada por duas considerações: a barateza do +genero e a qualidade do especieiro. + + [1] Por provisão particular de 12 de dezembro de 1605, passada em + Valhadolid foi concedido o mesmo privilegio aos duques de Aveiro, em + attenção ao grande luzimento de sua casa, pois D. Jorge de + Alencastre, nascido em 1481, era filho do rei D. João II e de D. + Anna de Mendonça, que,--por via de regra estatuida--acabou + commendadeira de Santos. Aquelle mosteiro assignalou-se como harem + de odaliscas desbotadas. O referido D. Jorge, mestre das ordens de + S. Thiago e Avis, senhor de Aveiro e mais terras do infantado, foi + creado segundo duque de Coimbra (o 1.º duque de Coimbra fôra seu + bisavô D. Pedro, morto em Alfarrobeira), por D. Manoel em 1500, ou + por seu proprio pai, como diz _Portugal, De Donat. reg._ n.º 410. + + + + +O PAÇO REAL DA RIBEIRA + + +De um manuscripto, que seria optimo livro da topographia de Lisboa, se o +terremoto de 1755 o não suspendesse, aniquilando talvez a mão laboriosa +que o escrevia, extrahimos o capitulo respectivo ao paço da Ribeira, e +edificios convisinhos. É a mais detida descripção que ainda vimos. Os +escriptores, que conheceram Lisboa antes da catastrophe, á semelhança de +João Baptista de Castro (_Mappa de Portugal_) poucos delineamentos +particularisaram dos grandes edificios da Lisboa de D. João V. Iremos +transcrevendo o que nos parecer mais grato aos antiquarios, e ainda aos +que, sem grande affecto a velharias, se comprazem em reconstruir na +imaginativa as feições da sempre formosa Lisboa. + +«O palacio real da Ribeira, situado junto das margens do Tejo, em frente +de uma das maiores praças da Europa, chamada _Terreiro do Paço_, é um +soberbo e vastissimo edificio, commodo e magestoso. É obra d'el-rei D. +Manoel, para o qual se mudou dos antigos paços da Alcaçova, e onde, +desde então, ficaram assistindo os reis d'este reino. Fórma este real +edificio dentro em si tres grandes quadras, com dilatadas galerias em +roda, com admiraveis quartos, preciosamente guarnecidos, e muitos +salões, os maiores dos quaes são: a casa chamada de _gala_, a sala dos +_tudescos_, onde costuma estar a guarda allemã de sentinella. Esta sala +é uma das maiores de toda a Europa, porque tem 130 palmos de comprimento +e 76 de largura. A quadra que fica junto da igreja patriarchal, chamada +_pateo da capella_, é toda rodeada de galerias de arcos sobre columnas, +com janellas ao de cima bem rasgadas. Por baixo d'estas arcadas ou +galerias, em toda a circumferencia, ha muitas tendas e lojas onde se +acha tudo que mais precioso ha no mundo, ouro, diamantes e outras pedras +preciosas. Sahindo d'esta quadra por um vasto portico voltado ao sul, se +entra em outra quadra mais comprida que larga, tambem cercada de bellas +galerias, sobre a qual abrem as janellas do quarto das rainhas. Ahi ao +pé ergue-se uma altissima e bem fabricada torre de marmore, com um +magestoso sino de relogio, e dous mais pequenos dos quartos. É obra do +snr. rei D. João V, o _Magnifico_. Tambem ha n'esta segunda quadra +muitas lojas onde se vendem cousas preciosas. Para a parte da _Ribeira +das Naus_, forma este palacio outro grande quarto, feito á moderna, obra +do mesmo monarcha, chamado o _quarto dos infantes_; e, ao cabo d'elle, +abre-se uma formosissima varanda descoberta, gradeada de marmore á +volta, primorosamente lavrado, sobre cujos pilares assentam vasos de +jaspe cheios de murta e flôres. + +«Aquella parte d'este soberbo edificio, que olha para o oriente, e +abrange a largura toda do _Terreiro do Paço_, é occupada por uma +espaçosissima galeria, que termina em um magnifico pavilhão chamado o +_Forte_. É obra de Philippe II de Hespanha, dirigida pelo famoso +architecto Philippe Terzo, podendo affirmar-se que não ha outra +semelhante em toda a Europa, como confessam todos os estrangeiros que +vem a Lisboa. D'aqui se descobre toda a barra, e o porto da cidade, +porque fica sobre a praia do rio. É tanta a magestade d'este edificio +que não vi em todo o reino de França, nem nos famosos palacios de Louvre +e Versailles tão justamente encarecidos obra tão sumptuosa; sendo para +sentir que não se chegasse a concluir o risco d'esta elegante fabrica, +pois estava delineado fechar toda a praça do _Terreiro do Paço_ em roda, +com outro pavilhão fronteiro no sitio onde hoje (1754) estão as casas da +alfandega: porém, é sestro já muito antigo ficarem imperfeitas todas as +obras que outros principes começaram. + +«Contigua a este lanço, corre uma varanda de arcos que dá serventia para +a sala dos _tudescos_, e pela fachada do sul se communica para outro +quarto, não menos magestoso com suas galerias, eirados e torreões, onde +assistem os infantes, irmãos ou filhos dos reis, e hoje serve de +residencia á rainha-mãi, D. Marianna de Austria. Tem este quarto grandes +e preciosas ante-camaras com tapeçarias e moveis inestimaveis, e +pinturas dos mais insignes authores. + +«Sua magestade costuma residir no quarto do _Forte_, que dá sobre o +_Terreiro do Paço_, e é o melhor do palacio, cujas ante-camaras, salas e +gabinetes encerram em si o mais precioso que póde a terra dar; porque as +tapeçarias de ouro, prata, velludo, damasco e outras sedas, quadros de +admiraveis pinturas, e toda a mobilia, dão a conhecer a soberania da +magestade que o occupa. A casa dos _embaixadores_ é a melhor da Europa. +Ha n'este palacio uma notavel bibliotheca, constante de muitas casas de +livros, com manuscriptos os mais raros; e, sem duvida, se estivesse em +ordem como as bibliothecas do vaticano, e de el-rei de França e da +Sorbona, não lhes seria inferior; para o que muito concorreu a curiosa +applicação (!) e magnifica despeza do snr. rei D. João V mandando +comprar fóra consideráveis collecções. + +«Para o lado do rio tem este palacio um bello jardim com grande eirado, +com viveiro abundante de todo genero de aves raras, especialmente pombas +e rolas de varias castas. Não se póde dar mais aprazivel espectaculo no +mundo que a vista d'este jardim sobre o mar. + +«O snr. rei D. João V acrescentou outro quarto a este palacio: é o que +fica no _largo da Patriarchal_ e corre até ao _theatro da opera_. Consta +este augusto edificio de varios corpos e muitas galerias todas de +apuradissima arte, obra do famoso architecto Frederico, em que os +marmores apostam duração com a eternidade. Dous lanços d'este quarto +abrem para o _largo da Patriarchal_, e em meio de cada um avulta um +portico grandioso, levantado em grossas columnas marmoreas, com capiteis +corinthios, excellentemente folheados. Todo o restante d'este primoroso +edificio é feito de polidissima cantaria, com formosos lavores e +remates, com oculos romanos na cimalha, que lhe dão graça e belleza. O +saguão que vai do _largo da Patriarchal_ e atravessa este quarto para a +_Campainha_, é a melhor peça d'arte d'esta cidade; porque as quatro +columnas de jaspe que tem na frente de duas escadas lateraes, são +perfeitissimas no trabalho dos lavôres. + +«Para o lado do _theatro da opera_ fórma este quarto uma quadra pequena +com sumptuosas galerias, para a qual se entra por um grande vestibulo +fronteiro á _Patriarchal_; mas a serventia ou passagem para o _theatro_ +é a mais arrogante e magestatica obra de Lisboa. Aqui, os marmores são +de maneira sinzelados, que nem a cêra seria capaz de mais tenues +arabescos. A natureza é vencida pela arte; porque os bustos, as +carrancas, os festões, os relevos, os capiteis, os frisos, as folhagens +são cousa tão prodigiosa, quanto é mais de assombrar a qualidade da +pedra tão rija para impressões tão delicadas. Por cima d'este vestibulo, +ergue-se uma capella magnificentissima feita para uso particular dos +patriarchas, tal e qual os pontifices a tem em Roma. E, posto que ainda +não esteja concluida, é soberbissima pela profusão de jaspes vermelhos, +negros, brancos e outras côres que lhe dão o esmalte.» + + * * * * * + +Este pallido bosquejo das opulencias do paço da Ribeira era escripto em +1754. No 1.º de novembro do anno seguinte, quem procurasse estas +riquezas com o roteiro do incognito author por guia, encontraria um +entulho, coroado de linguas de fogo, e a espaços lambido pelas vagas do +Tejo. E escrevia o assombrado homem que aquelles marmores estavam alli a +_apostar duração com a eternidade_! + + + + +AS CRUAS ENTRANHAS DE D. MARIA I A PIEDOSA + + +D. Martinho de Mascarenhas, marquez de Gouvêa, e filho do duque de +Aveiro, justiçado em 1759, não tinha culpa no delicto de seu pai. Não +obstante, entrou muito moço nas trevas das masmorras, e lá o retranziram +frio, fomes, sêdes e terrores por espaço de dezoito annos. + +Em 1777 sahiu do carcere com os outros presos. E, como não tinha de seu +uma taboa--pois que a opulenta casa de Aveiro havia sido confiscada, +salgada, arrazada, absorvida--foi enviado aos frades de Mafra para lá o +fartarem no seu refeitorio. Os historiadores coevos não houveram noticia +d'esta passagem do carcere para o mosteiro. Todos os outros fidalgos, +exhumados dos ergastulos á voz de D. Maria I, tinham familia que os +consolasse e restaurassem com as cariciosas lagrimas da alegria. D. +Martinho de Mascarenhas não tinha ninguem! ninguem que lhe désse uma +lagrima e um bocado de pão comido em liberdade! Fez como os ultimos +mendigos: foi ao convento de Mafra. + +Alli o encontrou o bispo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação, quando, +n'aquelle anno de 1777, sahiu tambem da masmorra de Pedrouços, e por lá +passou, caminho da sua diocese; mas tão cortado de oito annos de +escuridade e nudez que já em 30 de agosto de 1779 era sepultado. + +Do itinerário do bispo, que tenho de letra de mão, em floreados +caracteres, como brinde feito áquelle prelado, vou extractar as linhas +respectivas ao marquez de Gouvêa:[2] «... Pelas 11 horas e um quarto da +noite chegou a Mafra, aonde passou o dia seguinte recebendo fraternaes +obsequios da sua amada communidade. Ahi se achava o exc.mo D. Martinho +Mascarenhas, marquez que é de Gouvêa, filho primogenito do infeliz duque +de Aveiro. Distinguiu-se muito nos obsequios do exc.mo bispo aquelle bem +instruido, amado e agradavel fidalgo, que soube tirar e trazer da sua +reclusão as mais bellas qualidades de um cavalheiro christão. Deve-se a +Deus a sua indole, e a um bom mestre que teve na sua prisão a educação, +que o faz merecedor de toda a estima e fortuna que conseguiria na boa +conservação de seu pai. Elle se chama desgraçado, e deve á sua desgraça +a occasião de se fazer ainda mais benemerito pelas suas virtudes.» + +N'este tempo já era morta a duqueza de Aveiro, no convento do Rato, onde +servia as freiras para ganhar o seu alimento; e, por não poder comprar +sapatos, andava descalça. Este supplicio era assim benigno porque se +provou que ella e seu filho de todo em todo ignoravam os intuitos +regicidas do duque. + +O marquez de Gouvêa tinha por si a compaixão dos proprios inimigos de +seu pai. Todos o animavam a pedir á rainha a restituição de alguns dos +bens confiscados; e o maior jurisconsulto d'aquelle tempo, Paschoal José +de Mello, encarregou-se de escrever a _Representação_ a D. Maria I. + +Este requerimento é um dos poucos trabalhos ineditos do eminente +escriptor; e a meu vêr, como historia e como supplica eloquente, +benemerito de estampar-se. + +A mim me cabe o prazer de o possuir e tiral-o da indigna obscuridade. + +É como segue: + + + «SENHORA. + +«A innocencia opprimida, digno objecto da piedade de um principe, a quem +o exemplo de Deus serve de regra, se prostra diante do real throno +implorando a clemencia de vossa magestade, e para mais facilmente a +conseguir offerece esta humilde representação, fundada nos principios da +humanidade e justiça, confirmados com uma longa serie de exemplos. + +«O fim das leis consistindo em dar a cada um o que lhe toca, não alcança +o juizo humano livre de illusão. Como póde sem culpa ter lugar algum +castigo, nem como seria conveniente aos interesses de um monarcha justo, +o desvio da imitação de Deus, privando da sua graça os innocentes? O que +poderia haver para alguns de problematico n'este ponto, a lei divina o +decide. Ninguem deve pagar o crime alheio por maior que seja a sua +proximidade com os delinquentes, e esta verdade foi muitas vezes +descoberta sem mais soccorro do que as luzes naturaes: é dito de um +espirito famoso que uma cousa são leis, outra é a justiça verdadeira. E, +se tambem é certo que pouco faria qualquer homem em regular o seu +procedimento pelo que sómente as mesmas leis prescrevem--que pratica de +virtudes se não devera esperar de um soberano para corresponder á +elevação em que Deus o pôz tão distante do resto dos mortaes!? Os de +maior sabedoria dados pela Providencia para a felicidade dos povos: os +merecedores do nome de pai da patria, e em fim os mais felizes no +governo de vastos dominios, persuadidos de que lhes venha de Deus todo o +poder, e que de sua submissão ás leis divinas dependia mais que tudo a +respeitosa obediencia dos que mesmo Deus sujeitou á sua direcção, para +serem tratados como filhos, acharam sempre injurioso o direito rigoroso, +e o não poderam conciliar como dictames mais convenientes á magestade do +throno. Os pretores antigos já foram chamados os moderadores das leis, +pelas frequentes emendas do que n'ellas se permitte aos juizes, +prohibido pela honra e equidade, e entre estas as que geralmente se +acharam mais contrarias á recta razão e á humanidade foram aquellas em +que o castigo passava além do ultimo termo da existencia dos culpados, e +chegava a propagar-se até aos innocentes. + +«Devendo ser as penas commensuradas aos crimes, e não havendo nenhuma +proporção entre o delicto e a innocencia juntamente, pareceu estranho +que, onde a calumnia não póde inventar nada para denegrir reputações, +chegassem as armas da justiça. Contra isto parece não ter cabimento +nenhuma casta de pretexto. As qualidades da alma não se podem considerar +hereditarias na fé do livre arbitrio: a boa ordem e o bem publico não +dependem sempre da maior severidade, antes pelo contrario a experiencia +em todo o tempo tem mostrado que a fortuna acompanha a clemencia, e com +ella se mudaram os genios mais ferozes. É com tudo notorio, que em +algumas leis tiveram as paixões particulares maior introducção, do que +uma certa prudencia necessaria para as fazer validas no conceito de um +principe christão. A famosa lei dos imperadores Honorio, e Arcadio, que +impõe tão atrozes penas aos filhos dos criminosos de lesa-magestade, é +derogada pelo direito divino, pelo direito natural e das gentes. Por +este ultimo, porque desde que os homens principiaram a unir-se em +sociedades distinctas, todas as providencias se dirigiram a preservar a +innocencia das irrupções e violencias em que tinha degenerado a +liberdade humana. Pelo direito natural, porque destroe o principio da +rectidão que a natureza inspira a todo o ente racional, e priva a +innocencia do direito que tem a impunidade, e a todos os mais actos de +justiça. E pelo direito divino, porque em repetidos lugares das sagradas +letras é defendida a innocencia com pena eterna. Tambem foi abolida pelo +direito civil, porque os mesmos imperadores, a quem pertence, passados +annos, movidos da penitencia, como dizem graves authores, reduziram +todas as penas por uma nova constituição aos unicos réos dos delictos. + +«D'esta lei foi deduzida a nossa ordenação, cujos termos ambiguos e a +necessaria conciliação dos capitulos seguintes mostram, com bastante +clareza, ser a intenção do legislador que se modere: com effeito +immediatamente a imposição das penas como perpetuas as faz transitorias, +declarando não deverem ter a execução se não em quanto os que a ella +sujeita não forem restituidos ao estado do seu antigo esplendor; e além +d'isto a jurisprudencia julga todas as penas exorbitantes em direito +simplesmente comminativas, e não executivas. Estas e outras semelhantes +reflexões, que por brevidade se não expressam, moveram a religião, a +justiça e piedade dos gloriosos reis que occuparam o throno portuguez a +deixar na historia tantos exemplos de rebeldes executados, como de +filhos impunidos; mas conservados, e restituidos á nobreza, honras, +dignidades e bens de substituição; d'estes exemplos se referem os +seguintes, e, por parte do innocente o infeliz marquez de Gouvêa, se +offerecem á real inspecção de vossa magestade: + +EXEMPLOS + +«João Lourenço da Cunha foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e +confiscados os seus bens; porém o morgado de Pombeiro passou a seu filho +Alvaro da Cunha, a quem foi tambem feita a mercê do senhorio da mesma +villa, possuido antes por seu pai. D'este descendem não só os condes de +Pombeiro, mas a maior parte da nobreza da côrte actual; porque tres +filhas suas depois da referida sentença casaram nas mais illustres casas +d'este reino. + +«D. Pedro de Castro, senhor do Cadaval, foi sentenciado pelo mesmo +crime, e os seus bens todos confiscados; mas os morgados, e os bens da +corôa passaram a seu filho primogenito D. João; cuja filha herdeira +casou com D. Fernando II, duque de Bragança, de que descendem +innumeraveis casas illustres, nas quaes com especialidade se inclue a de +Cadaval; além d'isto a D. Fernando, filho segundo do dito delinquente, +primogenito da casa de Cascaes, lhe fez depois mercê do Paul chamado do +Governador, de varios senhorios de terras, e da alcaidaria-mór da +Covilhã. + +«O conde de Vianna, D. João Affonso Telles de Menezes, commetteu o mesmo +crime, foi morto tumultuariamente pelo povo de Palmella, e foram +confiscados os seus bens; mas el-rei D. João o 1.º deu depois a seu +filho D. Pedro de Menezes o condado de Villa Real e capitania da cidade +de Ceuta, e muitos senhorios de terras: a filha legitima d'este D. Pedro +succedeu na casa de Villa Real, e D. Duarte, seu filho illegitimo, +progenitor de uma casa das mais illustres, conseguiu, como se sabe, +depois de muitas mercês, ser conde de Vianna e alferes-mór do reino. + +«D. Gonçalo Telles, conde de Neiva e Faria, alcaide-mór de Coimbra, +senhor de Cantanhede, e de outras muitas terras, foi sentenciado por +crime de lesa-magestade, e confiscados todos os seus bens; mas apesar +disso possuiu a casa seu filho D. Martinho com o senhorio de Cantanhede: +foi depois mordomo-mór da rainha D. Philippa, e é progenitor da illustre +descendencia que ainda se conserva. + +«Diogo Lopes Pacheco de que descendem as mais illustres casas, foi +havido e reputado por traidor, sem que a seu filho João Fernandes +Pacheco servisse isso de obstaculo para a conservação da dignidade de +rico-homem, que lograva, a maior que então havia da nobreza. + +«Alvaro Vaz de Almada foi sentenciado pelo mesmo crime, e confiscados os +seus bens. Mas os de morgado passaram a seu filho primogenito D. João +d'onde vieram a recahir na casa do conde de Valladares, e a D. Fernando, +filho segundo do dito criminoso, de que descendem por varonia os Almadas +do Rocio, foram dados os bens da corôa, que vagaram pelo delicto de seu +pai. + +«Martim Coelho foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e seu filho +succedeu nos morgados, e da mesma fórma nos senhorios de terras +possuidas por seu pai. Lopo de Azevedo foi sentenciado pelo mesmo crime; +não tinha morgados, mas os senhorios de terras por elle possuidos +passaram a seu filho. + +«O infante D. Pedro foi julgado criminoso de lesa-magestade, porém +el-rei restabeleceu seu filho em todas as honras, e dignidades +antecedentes. + +«O snr. D. Diogo, duque de Vizeu, foi morto, e sentenciado pelo mesmo +crime, e confiscados todos os seus bens: não deixou filhos legitimos, +mas um bastardo seu que por essa circumstancia de nascimento, não +succedeu nos morgados, tão longe esteve d'elle prejudicar o crime de seu +pai, que casou na casa de Villa Real, e lhe deram o emprego de +condestavel, occupado algumas vezes pelos senhores infantes. D. Alvaro +de Athayde, filho segundo da casa de Atouguia, e seu filho D. Pedro de +Athayde foram sentenciados por crime de lesa-magestade, cuja sentença +pela ausencia de D. Alvaro teve sómente a execução em D. Pedro que foi +morto, e esquartejado em Setubal: isto não obstante passou toda a casa +herdada por este ultimo de sua mãi a seu filho D. Fernando, o qual +fallecendo sem successão passaram os morgados a quem tocavam; mas os +bens da corôa foram dados a D. Antonio, filho do segundo matrimonio do +sobredito delinquente D. Alvaro, e este D. Antonio foi conde da +Castanheira, vedor da fazenda, e grande privado de el-rei D. João III, e +é por filhos e filhas avô da maior parte da nobreza d'esta côrte. + +«Fernando da Silveira, escrivão da puridade de el-rei D. João II, filho +primogenito do barão de Alvito, foi culpado e sentenciado pelo mesmo +crime: fugiu para França aonde teve o atrevimento de escrever injuriosas +cartas a el-rei, foi morto n'este reino por ordem do mesmo soberano, a +quem tinha tão gravemente offendido, sendo o ministro da execução o +conde de Pallas, catalão; mas não obstante tudo isso, seu filho D. João +foi restabelecido, e como tal casou illustremente: foi commendador de +Montalvão, governador de Ceylão, trinchante d'el-rei D. João III, e seu +embaixador a França. + +«D. Fernando de Menezes, terceiro filho do conde de Vianna, irmão do +conde de Loulé, foi culpado e justiçado pelo mesmo crime, e confiscados +os seus bens. Não consta que tivesse morgados; mas sabe-se que lhe +sobreviveram seus filhos dos quaes os dous primeiros casaram +illustremente e possuiram os bens da corôa que vagaram pelo delicto de +seu pai. D. Diogo, segundo filho d'este mesmo, deu principio á casa de +D. José de Menezes e o terceiro filho do dito criminoso seguia a vida +ecclesiastica; foi desembargador do paço, cujo emprego n'aquelle tempo +era occupado por fidalgos. O conde de Penamacor foi culpado no mesmo +crime, porém seu filho D. Garcia de Albuquerque foi restabelecido e teve +o lugar de copeiro-mór de el-rei D. João III. + +«O conde de Faro, irmão do conde de Monte-Mór foi culpado do mesmo crime +de lesa-magestade, mas seu filho D. Sancho de Noronha foi restabelecido; +foi conde de Odemira, senhor de muitas terras e alcaide-mór de Extremoz. + +«Martim de Castro do Rio foi culpado e esquartejado por crime de +lesa-magestade, porém seu filho Jorge Furtado de Mendonça foi +restabelecido, casou illustremente, teve maior estimação do que antes do +delicto tivera seu pai, e d'elle descenderam os viscondes de Barbacena. + +«O marquez de Villa Real, seu filho o duque de Caminha, D. Agostinho +Manoel, o conde de Armamar, e Fernando Telles, foram sentenciados por +crime de lesa-magestade: os quatro primeiros foram degolados, e o quinto +queimado em estatua: a todos se confiscaram os bens, e como só Fernando +Telles tivesse filhos, a estes passaram os morgados, e os dos outros +delinquentes a quem de direito pertenciam. + +«Francisco de Lucena foi julgado e justiçado por crime de +lesa-magestade, da mesma fórma o senhor de Regalados, um dos Soares de +Alarcão, os mascarenhas de Montalvão, D. Raymundo, quinto duque de +Aveiro, e outros foram reputados criminosos, sentenciados como taes, +confiscados seus bens; alguns d'estes tinham descendentes, a quem +passaram os morgados, e além d'isso conservaram a mesma estimação, e +lograram as mesmas honras, que teriam se seus ascendentes permanecessem +innocentes. Francisco Maldonado, e Francisco de Mendonça foram julgados +por traidores, e como taes justiçados, e confiscados os seus bens; +nenhum d'estes tinha filhos legitimos; mas Francisco de Mendonça deixou +uma filha bastarda, que conservou a mesma estimação que teria se seu pai +não commettesse o delicto; casou competentemente ao seu nascimento, com +descendencia nobre de quem tomou tambem o appellido. Muitos outros +factos semelhantes se omittem para não abusar da regia paciencia; só se +nota não haver nenhum em contrario de pessoa de certa ordem; e é tambem +de admirar que até quando por algum dos nossos monarchas foi +recommendado ao seu successor que se conservasse inexoravel com os que +deixava profundados na desgraça, nunca tiveram efficacia bastante as +razões politicas d'este conselho, e triumphou contra elles a clemencia e +justiça. D'ahi se seguia manifestar-se mais que nunca n'este reino a +verdade importante de ser a religião o mais solido fundamento das +felicidades e das glorias. Tudo n'este tempo pareceu por Deus abençoado, +e d'este modo se conservou, não sómente a raça respeitavel, com que +viemos a recuperar os nossos fóros nacionaes; mas concorreram tambem +para a sua exaltação muitos descendentes dos proscriptos antigos +tornados pelo mesmo rei afortunado ao estado venturoso. + +«Estes exemplos constituem um perfeito costume, porque concorre n'elle a +multiplicidade dos actos, a diuturnidade do tempo e a sciencia de +principe. Se foram de justiça, não é o supplicante menos innocente, nem +menos fiel e obediente ao sceptro do que aquelles em quem se não +executou a lei, para que n'elle se interrompa uma tão dilatada serie nos +ditos exemplos; tanto mais não lhe tendo valido até agora a opinião de +muitos santos padres, de doutos juristas, canonistas e theologos, que +deu occasião ás leis estabelecidas nos reinos mais policiados da Europa, +dos quaes reputando-se os filhos nascidos antes dos crimes de seus paes, +livres de infecção, sómente a do peccado original são preservados de +toda a pena, antes pelo contrario, tendo estado o dito supplicante +expiando por excesso de rigor o crime alheio pelo tempo que se equipára +á morte, por ser já de uma duplicada vida civil, e que pelas violentas +circumstancias da rigorosa prisão em que padeceu, lhe teria acabado a +natural, se a Providencia divina lh'a não tivesse conservado apesar dos +esforços empregados para a brevidade da sua duração,--pena nunca +praticada, porque nem as leis dos imperadores, nem a nossa ordenação, +nem alguma outra impuzeram exorbitante castigo a semelhantes filhos +innocentes. + +«Se os mesmos exemplos são de graça, o supplicante prostrado diante do +throno de V. M. a implora, tomando por protectores, a religião e a +piedade d'um principe, que preparado de muito longe pela Providencia, +com dotes proporcionados ao magestoso encargo que lhe destinava, se nos +mostra possuidor em grau sublime de tantas virtudes christãs, que fazem +o mais brilhante ornato da sua corôa. + +«D'um principe a quem com antecipadas luzes, sendo evidente que para +beneficio dos que deviam obedecer-lhe seria poderoso o seu exemplo mais +do que a sua real authoridade; que por não ter na terra tribunal que lhe +fosse superior, devia exceder muito em perfeição aos homens ordinarios; +e que em lugar tão eminente poderia o seu beneplacito ser a regra +soberana por onde tudo fosse decidido, passou os instantes da sua +preciosa vida, em um continuo exercicio do dominio das paixões e foi +sempre o juiz mais severo de si mesmo. D'um principe, em fim, que com +estes respeitaveis fundamentos certo de ter estabelecido o mais feliz +imperio nos corações dos seus vassallos, só fará sensivel o peso immenso +da sua real grandeza aos inimigos da igreja e da verdade. Não dará outro +uso ao seu poder, senão para que se execute o que Deus manda; e assim +como alguns, que foram a delicia dos seus povos, fará consistir a sua +maior gloria em livrar da oppressão os desgraçados. + +«Debaixo d'estes ditosos auspicios, d'estes augustos intercessores, +espera o supplicante vêr o termo do seu abatimento, a restituição da sua +liberdade, da sua honra, do seu credito e dos bens que o direito do +sangue lhe conferiu pelas vocações de seus ascendentes. Esta graça +humildemente pedida, será para o supplicante um novo vinculo da sua +submissão. E para el-rei nosso senhor um eterno monumento da sua benigna +magnanimidade.» + +Esta pungente invocação á caridade da rainha, que esvasiava os repletos +cofres do estado no mosteiro do Coração de Jesus, não valeu ao +desgraçado, sequer, uma esmola do real bolsinho. Braganças!... O marquez +de Gouvêa viveu longos annos da caridade do seu parente conde de Obidos, +e já no fim da vida recebia uma mezada que lhe dava D. João VI. D. +Martinho, se bem me recordo do que li, morreu em Lisboa, em uma humilde +casa, no bairro de Buenos-Ayres, por 1804. + + [2] É este o titulo do manuscripto: _Itinerario do ex.mo snr. bispo + conde, restituido ao seu bispado, para o qual partiu de Lisboa no + dia 11 de agosto de 1777._ + + + + +D. MARIA CARACA BONAPARTE + + +Não conheci, em Lisboa, esta senhora D. Maria, bastantemente historica e +benemerita de immorredoura escriptura. + +Conheceu-a aquelle esclarecido arcebispo, cujos sonhos, na noite da +demencia, o leitor ouviu no sublime desarranjo chamado _A catastrophe_. + +Est'outro escripto, menos nevoento e cerrado das turvações do delirio, +tem especies em que o riso se trava com o compadecimento, e outras em +que a compaixão d'aquelle distincto homem nos redobra o pezar de se +haver perdido no vigor da idade tamanho espirito. + + +D. MARIA CARACA BONAPARTE, OU A BURRINHA PROTESTANTE + +D. Maria Caraca teve tres estados: foi orphã, casada e viuva: seu pai +morreu na guerra da Italia combatendo contra os francezes pela +independencia da peninsula italiana; era natural de Milão, cantor da +opera e grande enthusiasta das novas idéas da republica, que haviam +volcanisado o seu cerebro até o delirio. + +Quando este maestro da opera viu que a França proclamava a liberdade +para tyrannisar os povos, lançou-se no partido mais hostil aos francezes +da republica sanguinaria, e morreu deixando a sua morte bem vingada. + +As suas idéas eram falsas e exageradas em religião e em politica; porque +seguia occultamente todos os erros e absurdos de Luthero e de Calvino: o +odio, que tinha ao summo pontifice era tão profundo, que o obrigava a +blasphemar e praguejar contra os cardeaes e contra a santa sé, contra os +bispos e contra as mitras e cadeiras. + +Bonaparte venceu muitos ou todos os partidos que estiveram em campo +contra a França: o general da republica principiou a imperar, e a +exercer a sua tyrannia nas provincias muito antes de exaltar na +metropole o throno do seu fatal despotismo, como sempre acontece. + +Verres na Sicilia era mais do que imperador; Cesar sempre imperou nas +provincias. Se D. Affonso d'Albuquerque fosse susceptivel de ambição +podia usurpar o titulo de imperador da Asia; porque o povo desejava +conferir-lhe todas as attribuições do imperio. + +Bonaparte no Egypto era saudado como rei do fogo; Mahomet e todos os +impostores e usurpadores da sua escola recebem a mesma baixa e servil +adulação que as almas mais vis sempre se empenham em prodigalisar ao +vencedor. A sciencia, e a virtude de homem grande, consiste em desprezar +estas frivolas demonstrações e em saber reprimir todos os excessos do +enthusiasmo, que se esvaem e perdem como o fumo. + +Bonaparte passou como um cometa; a sua descendencia extinguiu-se e toda +a sua parentela: existe na throno de França um homem que não tem pai nem +mãi, nem alliança, nem façanhas nem grandeza. É um homem que apenas +aspira a fazer com auxilio alheio uma memoria que mereça ser approvada +em uma academia. + +Os protestantes urdem e tecem muitos generos de lisonja aos seus heroes; +são arcos e pompas de triumpho, grinaldas, festins, e poemas, +representações, e orchestras, lisonjas e desvanecimento. + +Um deputado da convenção nacional disse a um seu amigo e collega, que ia +para Lião em commissão sanguinaria: tu verás em Lião a minha esposa, +abraça-a. + +N'este tempo todos os revolucionarios levavam as suas mulheres aos +horrorosos estupros do templo profanado: a mulher que servia de modelo, +e o homem que a gozava, eram escolhidos entre todos os concorrentes sem +attenção ao estado nem á condição dos que eram designados. + +Na Italia tributavam em quasi toda as cidades a Bonaparte a honra de o +desposar com a mulher mais formosa; Bonaparte aceitava este tributo da +infamia protestante, gozava e passava para outra cidade, aonde era +recebido com igual torpeza. + +Em Milão cahiu a nefasta sorte em Maria Caraca Bonaparte; e como era +filha d'um homem morto pelo exercito francez recusou sujeitar-se á +estranha condição para que a designaram, apesar de ser tão protestante +como seu pai. + +Os influentes de Milão que andavam empenhados n'esta impia e baixa +lisonja corromperam todos os parentes da burrinha; de sorte que cedeu de +seu odio politico, e principiou a ser do conquistador. + +Se Maria Caraca fosse verdadeira catholica, jámais consentiria em tão +grande infamia e vileza, porque esta especie de tyrannia é mais impia e +mais cruel de que era o tributo das cem virgens para o serralho e para o +harem. + +Uma amante ou manceba podem nutrir uma esperança honesta, e chegam ás +vezes a legitimar as suas uniões e prole; estas burrinhas são sempre a +negação da moral, o escarneo do affecto, e o epigramma do amor e da +sympathia. O protestantismo trata todas as mulheres como negras +escravas. Despreza-as para as fazer bem vis; porque a mulher deve ser +semelhante ao homem que a elege, e que a fórma e educa para sua +companheira. + +Os milanezes deram a um tio de Maria Caraca a espectativa de um +canonicato, prometteram á sua victima dous mil cruzados de dote, e por +esposo o primeiro cantor da opera de Milão. + +Maria Caraca e a sua familia realisaram todas as condições; os +protestantes de Milão cumpriram as suas fielmente: o casamento +verificou-se, o dote sahiu da renda da cidade, que pagou para Bonaparte +ter uma desgraçada por companheira dos seus vilissimos prazeres. + +Os que dispunham tão impiamente dos beneficios ecclesiasticos não podiam +ter duvida em defraudar o thesouro do municipio. + +Maria Caraca e seu marido seguiram o partido de Bonaparte, e na +restauração dos thronos viram-se na necessidade de emigrar para +Portugal: perderam patria, emprego, e até o sobrenome de Bonaparte de +que usaram por muito tempo. + +O marido morreu e deixou um filho e uma filha em Lisboa; o filho exerceu +n'esta cidade por algum tempo com seu pai a profissão de musico: tambem +morreu: eu só conheci a viuva e a filha chamada D. Thereza, as quaes +moraram na rua dos Poyaes de S. Bento. + +Quantas vilezas, quantas degradações, e quantas tyrannias envolve o +atroz procedimento de Milão! Não ha impiedade mais provocadora, não ha +infamia mais torpe, nem injuria maior feita ao mesmo tempo á igreja e ao +estado, á mulher e ao esposo, ao amor e ao estado e á santidade do +matrimonio. + +Estas estrangeiras eram da escola da infame Bisardeli: conviviam com a +sua amante, que foi muito tempo em Lisboa uma mulher luxuriosa e +depravada, que vendia todo o fumo da perfida nunciatura d'aquelle tempo. + +Eu foi conduzido em mil oitocentos e quarenta como deputado para a casa +das referidas Caracas: as lojas maçonicas dispunham do meu destino +traiçoeiramente para dispor de minha vida, e vivi por mais de um anno na +casa dos Poyaes de S. Bento com outros deputados, que serviam as lojas, +e que me vendiam, e entregavam aos seus caprichos: por esta razão ouvi e +aprendi o esboço d'esta negra historia; assim agora ouço e aprendo o seu +complemento e torpissimo enredo. + +A inspiração é a minha sabedoria; se em outro tempo soube alguma cousa +agora declaro, que nada sei e que todas as minhas idéas são communicadas +e inspiradas, do alto céo, e no seu piissimo docel. + +Eu tinha trinta annos de idade, e julgava que todos os homens eram de +boa fé, e amigos do seu semelhante. Bons e excellentes para a companhia +e convivencia, os traidores são os mais lisonjeiros: eu tive seis +companheiros de casa n'esta época: só um vive, cinco já falleceram. + +Os meus inimigos, que são todos os vilissimos protestantes, fizeram as +maiores diligencias para me matar: não houve astucia, nem enredo, nem +traição que não empregassem para conseguir este malevolo fim: é bem de +presumir que um d'estes fosse o veneno. + +A infanta e todos os usurpadores da casa de Bragança, o governo e todos +os seus clientes, a maçonaria e todos os seus agentes nacionaes e +estrangeiros, ora armavam contra mim o braço do cruel Mattos Lobo, ora +forjavam ou fingiam revoluções e acclamações nocturnas para me +surprehender no conflicto, ora lançavam sortes para me seguir de noite e +para me matar nos arroios da cidade ou nas encruzilhadas: ora engajavam +estrangeiros e carniceiros por grandes sommas para que me procurassem e +matassem na propria casa, aonde eram recebidos pelas infames Caracas. + +Um d'estes era um lanceiro, e carniceiro, que esteve na guerra do Porto, +a quem deram o preço do regicidio, e o bilhete de passagem em um brigue +para sahir para França logo que consummasse o attentado. + +Todas estas traições e maquinações eram cumulativas, horrorosas, e tão +desleaes e insidiosas, como as que se urdem ao innocente que não sabe ou +não póde defender-se. Eu estava no caso da mais perfeita ignorancia +porque nem sabia o que era: infelizmente a minha vida era n'este tempo +mui sujeita á fragilidade e a quedas que eu não procurava, antes tentava +e não sabia evitar. + +Estes monstros da tyrannia do inferno pediam e repelliam a minha +eleição; porque o seu fim unico exclusivo era a minha morte; só +admittiam a meu favor algumas apparencias ou disfarces com que encobriam +as suas tramas e horrores: eram seducções, tyrannias, convites para +lugares de traição, venenos, e armas occultas. Se viam que eu vingava +como advogado em Villa Real, pediam para eu ser eleito deputado só para +me atraiçoarem em Lisboa; e logo se arrependiam, e punham todos os +embaraços da sua infame escola e odiosa seita á minha eleição e +elevação; se viam que eu não era morto em Lisboa desejavam que eu fosse +para Coimbra aonde punham como ultima mira a cruz de meu martyrio e +funeral. + +Como podia livrar-me de tão infernal perseguição? Os monstros não +consentiram mais na minha eleição e ainda me propozeram pelo circulo de +Arganil, onde fui eleito deputado no anno de 1852, mas os infames logo +se arrependeram, e cassaram ou annullaram a eleição na camara, sem me +ouvir, e sem me mostrar o processo das suas infernaes tramoias. + +Quem deixaria de eleger-me para todas as legislaturas depois de vêr e +saber que o meu nome era singular e unico, e que a minha representação +não tinha igual em todo o mundo e redondeza? + +Quando concordaram na minha eleição para suffraganeo do patriarchado +entregaram a minha vida ao maldito e infernal nuncio, e ao abjecto e +tredo patriarcha e ás suas seitas e partidos para se desonerarem da +tarefa que os infames julgaram e declararam superior ás suas forças. + +Estes monstros esgotaram toda a traição, todas as maquinações e os seus +enganos, e não conseguiram o que desejavam: o perfido e abominavel +ministro do anti-papa chegou a convidar todas as seitas para o +espectaculo do meu envenenamento, as quaes enviaram os seus deputados e +representantes para assistir a esta scena de horror que se representou +na presença da diplomacia cruenta das actuaes usurpações da vergonhosa +Europa e da America por duas vezes. + +Só Deus omnipotente podia isentar-me de tão imminentes catastrophes. O +nosso fim actual é descrever a burrinha protestante e a sua bestial +condescendencia e venalidade. + +Um deputado que vivia na mesma casa da viuva Caraca mandou um seu criado +ao meu quarto para me offerecer uma criada da casa em que ambos +viviamos; eu não sabia desviar estes golpes, que o Senhor deixava ao meu +alvedrio para o merecimento, e para que désse a devida preferencia á sua +santa luz e mandamento. + +O inimigo occulto era d'uma seita de usurpadores de Deus: a sua traição +vingou por pouco tempo; quando me tentou com alguma pessoa da sua +familia não conseguiu o que desejava; o criado fez-lhe a traição, que +elle me urdiu a mim. + +Os inimigos da nossa casa e dynastia recorreram a D. Thereza Caraca, e +fizeram-lhe o mesmo partido, que os milanezes tinham feito á sua mãi +para que me seduzisse e envenenasse. + +Prometteram-lhe dinheiro, um marido, e um emprego para este, e +realisaram todas estas promessas, mas eu só bebi meia taça de seu +perfido veneno; na primeira occasião que tive de lucido intervallo +repelli a seductora, e todas as suas seducções, e, como vi que se +obstinava, sahi da casa. + +O que é a verdade? esta mulher disse que estava gravida e tentou +attribuir-me o seu ventre, ou isentar-se pelo aborto do seu nefando e +odioso mister de calumniadora; disse-me que ia queixar-se de mim ao +nuncio, ou agente occulto da junta apostolica que por este tempo estava +em Lisboa, em quanto estiveram interrompidas as relações com a côrte de +Roma. Eu zombei da perfidia e do sarcasmo d'esta mulher calumniadora e +embusteira; e procurei livral-a de sua tentativa de aborto, o que +felizmente consegui por dinheiro. + +Esta odiosa creatura teve n'este tempo dous amantes: o primeiro era um +deputado, que a seduziu para que me envenenasse, o qual morreu pouco +tempo depois, e logo adoeceu tão gravemente que parecia um espectro, ou +um cadaver ambulante: era um agente dos pedreiros livres. + +Havia n'esta casa só duas pessoas da familia, a mãi e a filha; eu tive +dous enlouquecimentos de falso amor; repelli duas tentativas da mesma +perfida natureza e nojenta cavillação. + +D. Thereza tocava dous instrumentos e cantava, tinha um amante para +casar que a acompanhava no canto e com o violoncello: eu comprei em +quanto alli estive dous pintasilgos ensinados a tirar agua com o bico, +os quaes foram ambos mortos por um gato, que havia em casa. + +A criada tambem teve dous amantes, um era sapateiro coxo, que a +procurava e requestava para casar: ambos realisaram os seus casamentos. + +A filha da viuva Caraca tinha na mesma casa um estabelecimento de +capella, e inculcava-se ao respeitavel publico como modista: a mãi tinha +o seu estabelecimento de hospedaria. + +Eram dous estabelecimentos: a casa tinha sahida para duas ruas e duas +portas para a rua dos Poyaes de S. Bento: viveram alli commigo cinco +deputados, dous delegados, dous juizes do districto, dous governadores +civis, dous juizes da antiga magistratura, dous Domingos dos quaes um +era o atraiçoado e o enganado por todos os outros: eramos ambos +deputados pelo circulo de Villa Real: os outros eram deputados por +outros circulos. + +Os delegados foram Domingos Vieira, e José Manoel Botelho, os juizes +foram o José Maria da Chamusca e o Quesado, os governadores civis foram +o dr. José Maria e João Pedro Pessanha, os juizes antigos foram o mesmo +José Maria e Domingos Vieira, e não preciso dizer quem eram os Domingos, +senão que eu sou já tão diverso do que era, que não pareço o mesmo. Os +cinco e seis deputados formavam as cinco e seis qualidades já referidas. + +Quem poderá calcular as lagrimas que tenho chorado para carpir os +peccados e os erros da minha mocidade, e para os emendar com divina +graça e misericordia? está-me parecendo que reunidas faziam o maior lago +dos nossos passeios e jardins. + +Actualmente não como carne nem peixe não bebo vinho nem cerveja, +passam-se quinze dias e tres semanas sem que prove doçura, nem chá, nem +café, nem chocolate, como por medida e por peso, e não uso de carne nem +de genero algum de tabaco, não passeio, nem vou aos espectaculos; +prefiro andar a pé e só peço ao Senhor que se compadeça da minha alma. + +A burra protestante é bem parecida com a vacca, e com o burro da seita: +eu não conversava com estas em pontos ou artigos da santa fé, o seu +veneno era a maior traição e os seus reconditos apenas me revelaram +parte da sua historia de Milão. + +Eu sempre assisti á missa mais catholica de que tinha noticia, e não +suspeitava em ninguem cavillação ou perfidia tão negra e atroz, que +chegasse a ostentar fé falsa da diabolica e tenebrosa consciencia: agora +sei que ha muitas d'estas embrutecidas consciencias, e não duvido que as +duas Caracas fossem d'este hediondo esconjuro. + +Os maçons são em geral d'esta sanhuda seita do inferno; os usurpadores +de Portugal pactuam com o demonio, e entregam as almas para poderem +possuir as leis das santas casas do divino Salvador. + +Mas estes venenosos monstros apenas gozam a presa: o direito santo e +eterno foge d'elles como foge a cerração quando nasce a aurora que vem +remir o mundo. + +Os mesmos inimigos recebem outro engano ou desengano semelhante quando +tentam usurpar o poder da santa igreja para legitimar a sua tyrannia. + +A falsa communhão dos protestantes está no estado: não póde legitimar os +actos do poder usurpador e dominador. + +O estado catholico está na igreja, e por isso legítima os seus poderes +todas as vezes que recorre para este fim ao poder espiritual do summo +pontifice. A era actual é a perfeição da disciplina. + + + + +LIXO + + +O snr. Joaquim Antonio de Sousa Telles de Mattos, critico erudito e +menos conhecido que merece, publicou, em Evora, um opusculo intitulado: +_A imparcialidade critica do snr. Joaquim de Vasconcellos._ Allude á +_Analyse critica da versão do FAUST_. A obra do critico do snr. visconde +de Castilho é um livro crasso que morreu de tabardões, e jaz no +_carneiro_ das livrarias esperando que o dente roaz da carcôma o +pulverise por modo que as letras portuguezas se desenfezem d'aquellas +escamas de ignorancia e odio. + +O snr. Telles de Mattos colligiu algumas necedades graudas que denominou +_vasconcellismos_. + +Abre a lista, com a novidade--_declinar_ verbos. Eis a passagem onde se +encontra o lerdo descôco do critico de Castilho: _Nenhum doutorando dos +ultimos cinco annos em Coimbra, estaria no caso de_ declinar _os verbos +auxiliares allemães, sem merecer palmatoada..._ (pag. 26). E acrescenta +o snr. Mattos: «Quando eu vi o _Sejai_ e _Estejai_ julguei que era erro +typographico dos _germanismos_ annunciados; vendo porém _declinar_ +verbos, percebi que o snr. Vasconcellos saberá tanto de allemão como +qualquer analphabeto nascido debaixo do paternal carinho de Bismarck.» + +Observa que a pag. 57 o snr. Vasconcellos inclue a Suissa na Allemanha; +e acrescenta: «A Suissa pertence á Allemanha na geographia do snr. +Vasconcellos; ella deve ser equiparada á sua grammatica.» + +Nota que o snr. Vasconcellos escrevendo: _os manes do Olympo_ (pag. 128) +désse a perceber que os deuses olympicos tem manes. _Manes_ tanto +significam almas dos mortos como deuses infernaes. A mythologia do snr. +Vasconcellos é como a geographia, e não desdiz da grammatica. + +Cita, na pag. 208, o imperativo do verbo _ser_, _apud_ Vasconcellos: +«_Sejai_ pois corajoso e apparecei como modêlo.» E a pag. 507: «_Sejai_ +tão infames quanto quizerdes.» E a pag. 337: «_Estejai_ dentro ao golpe +da sineta.» _Coup de clochette_--golpe de sineta, segundo Vasconcellos. +Em portuguez, traduz-se _badalada_, ou _toque de sineta_. Desculpem esta +observação os alumnos de instrucção do 3.º anno dos lyceus. + +«Desço eu (diz o snr. Vasconcellos a pag. 239) sem cessar de cima para +baixo.» O snr. Telles de Mattos ajunta: «Leitor, agradece a fineza: sem +o pleonasmo, ficavas percebendo com certeza que se desce de baixo para +cima.» + +Os cães, _apud_ Vasconcellos, grunhem. A pag. 273: «Tu vês um cão... +elle _grunhe_.» A pag. 277: «Não grunhes, cão!» E torna: «Quer o cão... +_grunhir_.» Nunca se usurpou tantas vezes a linguagem ao cevado. + +Se o snr. Vasconcellos estudasse portuguez pelo _Methodo_ de Monteverde, +teria aprendido nas _Vozes dos animaes_ do snr. Pedro Diniz como vozêam +cães e porcos. + + _Muge_ a vacca; _berra_ o touro; + _Grasna_ a rã; _ruge_ o leão; + O gato _mia_; uiva o lobo; + Tambem _uiva_ e _ladra_ o cão. + + .......................... + + _Chia_ a lebre; _grasna_ o pato; + Ouvem-se os porcos _grunhir_; + Libando o succo das flôres, + Costuma a abelha _zumbir_, etc. + +Tambem Vasconcellos, traduzindo Goethe, descobriu no cão um _caroço_ +(pag. 285). Diz-lhe o snr. Telles que _Kern_ significa _pevide_ ou +_caroço_, quand se trata de fructos; mas n'outras conjuncturas, é +_amago_, _substancia_, etc. O snr. Vasconcellos, quando tirava os +significados de _Kern_, achou _caroço_, e pespegou-o logo no cão; por +isso o cão encaroçado _grunhiu_ tres vezes. Podéra... + +A pag. 474, escreve Vasconcellos: _ouvir por um oculo._ Eu esta phrase +não a estranho. Mais me espantára, se elle dissesse: _vêr por uma +corneta acustica._ + +Dá-nos Vasconcellos a pag. 503 Tantalo _enterrado até ao queixo na +agua._ Póde uma pessoa estar _enterrada_ na agua, e estar _submergida_ +na terra. Tambem não estranho isto; mais me assombra a coragem da +ignorancia, se é que não ha um fado irresistivel e tolo que nasceu +comnosco, ou _com nós nasceu_, como diz Joaquim de Vasconcellos a pag. +339. + + + + +BIBLIOGRAPHIA + + +_Escriptos humoristicos em prosa e verso do fallecido JOSÉ DE SOUSA +BANDEIRA, precedidos da biographia e retrato do author. Porto, 1874._--O +berço da liberdade em Portugal foi embalado com as trovas politicas do +redactor do _Azemel_ e do _Artilheiro_. Bandeira é o patriarcha da +facecia jornalistica entre nós. A sua graça era da velha escóla de José +Daniel e de José Agostinho de Macedo. Não pespontava de delicadeza: ia +direita aos beiços do leitor e abria-lh'os forçosamente em casquinadas +de riso. Hoje em dia, o riso é mais preguiçoso, quando folheamos estas +paginas do livro escripto ha 38 annos. São cinzas, e cinzas esquecidas +os estadistas que José de Sousa Bandeira motejou no tumultuoso palco +politico de aquelle tempo; todavia, a historia não prescindirá de +consultar os _Annaes da imprensa da liberdade restaurada_, quando houver +de assentar de vez os vultos dos grandes obreiros do governo +representativo; e, entre todos os archivistas das luctas d'esses dias, +José de Sousa Bandeira foi o mais independente e afouto. Custodio José +Vieira, talento insigne e apreciador inflexivel dos homens e das cousas, +escreveu a biographia do jornalista com quem muitas vezes pleiteou na +sua juventude de publicista. É um lavor incompleto, dado que na vida de +Sousa Bandeira lhe não esquecessem os lances capitaes. É incompleto, por +que as 83 paginas escriptas deviam prolongar-se até completar a historia +e o proseguimento da restauração dos direitos civicos em Portugal. +Custodio Vieira revela-se, n'este eloquente escripto, historiador +severo. No estylo, usa as concisões de D. Francisco Manoel de Mello, e o +atticismo dos historiographos que melhormente exemplificaram a arte de +narrar. Se elle um dia poder furtar-se aos braços da sua amada e +amantissima jurisprudencia (que amores!) póde ser que a historia se +preze de brindar os portuguezes com os fastos da sua emancipação. + + * * * * * + +_No Minho, por D. ANTONIO DA COSTA. Lisboa, 1874._--Apenas publicado, +divulgou-se o gracioso livro de D. Antonio da Costa, escriptor provado +em ramos de variada litteratura. Os _Tres mundos_ foi obra que affirmou +os distinctos dotes revelados nos livros anteriores. Este do _Minho_ é o +repousar suave de circumspectas canceiras, que asseveram meditação, +estudo, espirito reflexivo e capacidade para tentativas avessas do +indolente genio portuguez. Escrever 310 paginas ácerca d'estas moutas +verdejantes do Minho, sem enfastiar, é condão de quem sabe quebrar com +as diversões da arte a monotonia da natureza. E, depois, jornadear por +estradas reaes, pernoitar por estalagens urbanas--em que não ha +vislumbre de urbanidade, nem sequer misericordia--passar uma noite em +Braga, é sentir-se a mais robusta e inventiva alma encodear de uma +crusta de estupidez que nos faz pensar que temos no peito uma tartaruga +sôrna. Braga, a scintillante esmeralda d'esta manilha de pedras finas +que D. Affonso Henriques tirou do pujante braço de Hespanha, Braga seria +a querida dos forasteiros de todo o mundo, se as camas das suas +hospedarias não fossem alfobres de insectos _apteros_ com seis patas, e +_hemipteros_ com azas, segundo Cuvier. Sei que no Indostão ha hospicios +em que as pulgas são pensionadas e medicadas nas suas enfermidades. Sei +que os indostanicos respeitam o dogma da metempsychose, e se deixam +sugar devotamente por ellas; mas nem Braga é Aurengabad, nem eu sou da +raça mahratta, nem tenho razões bem assentes para desconfiar que o +espirito de minha avó se compraz em me morder no hotel Real de Braga. + +Não encontro memoria d'este martyrio no livro do snr. D. Antonio da +Costa. Attribuo a omissão á delicadeza do martyr. Ha tormentos tão sujos +que o relatal-os em gemidos é indecencia consignada no _Compendio de +civilidade_ do snr. João Felix. Se bem me lembro, Boileau cantou a pulga +em magnificos alexandrinos; hoje em dia; nem á pedestre prosa se +consente rolar uma lagrima sobre a cutis sevandijada por estes e outros +carnivoros creados em um dos sete dias genesiacos... para satisfação e +proveito do homem. + +O meu amigo D. Antonio da Costa, convisinhando do snr. Manoel dos +Malhos, que roncava impenetravel ás harpias do hotel, chorou +copiosamente no capitulo intitulado: _Uma insomnia._ Quem sabe se, +n'aquella noite, as luras epidermicas da casca de Manoel dos Malhos +attrahiram as hordas a desenxovarem n'ellas as suas larvas e nymphas? +Eu, n'aquellas estalagens, encontro sempre dous Manoeis dos Malhos, um +de cada lado, e os outros bichos no meio. + +Formal e substancialmente são admiraveis os capitulos d'este livro, +intitulados _O Bom Jesus do Monte_, _Um castello feudal em 1873_, _A +mulher do Minho_, e a _Ultima impressão_. N'estas paginas que fecham o +livro reluzem os entranhados desvelos com que o snr. D. Antonio da +Costa, ha tantos annos, afaga as criancinhas carecidas da segunda alma +da educação. Este capitulo é um obelisco de gratidão publica e amoravel +a perpetuar a memoria de D. Maria Francisca dos Santos Araujo, abastada +senhora de Leça que fez do seu ouro um quinto evangelho de propaganda +caritativa. «Ah, senhora!--escreve o eloquente enthusiasmo do obreiro da +instrucção--devem de ser formosos os vossos momentos, quando na escóla +que edificastes vos achardes rodeada das meninas que se estão educando +no vosso bafo, e não menos quando sahindo d'alli festejada por ellas, ao +passardes pelas ruas de Leça, chegarem ás portas todas aquellas mães com +as filhinhas mais pequenas ao collo, e fordes vendo todas essas mães +apontarem para vós, dizendo alvoroçadas para as crianças: _É aquella!_» + +O livro _No Minho_ está julgado por 1:500 leitores que o já possuem; e, +todavia, annunciou-se a excellente obra nos primeiros dias de julho. Não +são triviaes estes triumphos em Portugal, repetidos com as mais notaveis +producções do benemerito escriptor. Aquelle grave e philosophico livro +dos _Tres mundos_, relido com intelligente ardor e creio que já +reimpresso, attesta que renasce n'este paiz o afan do estudo, e o gosto +da instrucção solida. Deviamos vir a isto, depois do cataclysmo de +palavrorio e marmanjarias com que uns sycambros andaram por ahi a querer +derrancar a mocidade. Não póde o illustre escriptor frizar de todo a sua +indole peculiar ao genero escoteiro--digamol-o assim--d'estas cousas +levissimas e quasi futeis que se escrevem em jornadas de fronteiras a +dentro. O modêlo, que Almeida Garrett imitou dos francezes, é um estorvo +que desanima. O romance, interposto na viagem, era em 1840 um dôce +engodo, e foi grande parte na prosperidade do livro. Estavamos ainda no +periodo romantico. A menina dos rouxinoes devia ser contemporanea dos +bardos que se inspiravam das proprias cabelleiras á Saint-Simon. Os +rapazes d'aquelle cyclo acreditavam em Garrett, e andavam saturados do +amor dos Espronceda e Musset. + +Hoje, não. O livro do snr. D. Antonio da Costa é, a intervallos, +condimentado das grandes questões do dia, da vitalidade regeneratriz que +estúa no pulso de todas as forças. Se parte dos leitores o desejam mais +futil, ha de haver muito quem assim o estime em dobro. Eu, de mim, achei +n'estas trezentas paginas o sorriso alegre, a meditação melancolica, o +rebate saudoso de perdidos contentamentos, o estimulo a considerações de +porvindouros beneficios a filhos e netos--consolação unica, mas santa, +que a Providencia dá aos que não esperam nada da vida presente. + + * * * * * + +_Phantasias e escriptores contemporaneos, pelo VISCONDE DE BENALCANFÔR. +Porto, 1874._--Ricardo Guimarães, com o camartello do folhetim, derruiu +o carroção, no Porto, ha vinte annos. O carroção tinha, por aquelle +tempo, dous seculos de moda. Fôra inventado na rua das Cangostas para +uso de uma familia obesa, formada de quinze pessoas adiposas. Esta +familia derreteu-se no estio de 1650; mas o carroção ficou. + +No lapso de duzentos annos, o carroção, parado no largo da Batalha, com +a lança vermelha atravessada nas sôgas dos ramalhudos bois, viu passar e +desapparecer todos os vehiculos adelgaçados pelo cepilho do progresso. O +carroção escancarou as goelas, e riu da americana, da victoria, do +phaetont, do landeau, da caleche, do dog-cart, da tipoia, do coupé, do +tilburi, do daumont, do brougham, do mail-coach, do poncy-chaise, do +groom, do break. Ricardo Guimarães, fundibulario da hoste moderna, +carregou a funda de estylo, remessou-a ao Golias de couro; e o gigante, +arrastado pelos bois que mugiam saudosos da palha-milha que comiam á +porta do theatro lyrico, dispersou os membros por Barcellos, Famalicão e +regiões visinhas. O milagre não fôra obra de um homem nem de uma geração +de espiritos finos. Fôra o estylo de Ricardo Guimarães--o estylo que é a +dynamisação de todas as forças, desde a polvora até á dynamite, desde a +alçaprema de Archimedes até á machina de Papin. Era uma delicia o +escrever d'este rapaz, e outra delicia o modo como entornava no papel os +brilhantes paradoxos, as hyperboles ridentes, as metaphoras +originalissimas. Era meu companheiro de hotel (que hotel, ó Ricardo!) em +1855. Escrevia artigos politicos de madrugada, na calma, entre meio dia +e uma hora, do seguinte feitio: tinteiro e papel no sobrado; elle +adaptava-se horisontalmente ao colchão, na postura de quem espreita a +profundidade de uma cisterna, descia o braço direito até ao pavimento, e +escrevia lá em baixo. Assim tratava Ricardo Guimarães, de bôrco, a +politica do _Nacional_, no soalho, como quem deita migalhas a uma pêga. + +Depois, um dia, enfardelou os fraques e os vernizes, os retratos de +algumas mulheres formosas e os economistas mais avançados, desdobrou as +azas da sua arrojada phantasia, deu um sorriso aos seus amigos, e... +adeus! D'ahi a pouco, deputado, esposo, pai. Fez-se um silencio de annos +na sua voga de escriptor. Os seus camaradas, que haviam afivelado com +elle a espora de cana em algaras litterarias, trajaram luto quando se +convenceram que o _visconde de Benalcanfôr_ era o epitaphio de _Ricardo +Guimarães_. + +Eil-o que resurge com as feições mais accentuadas, o sorriso menos +expansivo e mais hervado de ironia, a graça mais palaciana, a satyra com +oculos verdes para que a não acoimem de estouvada, e as antigas imagens +de sua invenção com decote que não deixe vêr a curva da espadua. + +D'esta reforma, salvou o visconde de Benalcanfôr as facetas +resplandecentes do estylo, deveras portuguez na palavra, francez no +boleio da phrase--ligação que é uma formosura, quando o escriptor tem a +consciencia d'essa difficultosa amalgama. + +Tem o visconde publicado os melhores livros que possuimos ácerca de +viagens. Este das Phantasias seria aquelle que eu mais encarecesse em +quilates de graça e critica, se me não visse ahi tão amigavelmente +indulgenciado em onze paginas. Ponderei, gravemente, meu caro Ricardo, +n'este livro o teu capitulo, intitulado ELOGIO MUTUO. Tu, com certeza, +antes queres de mim uma reminiscencia da juventude, que os tardios e +quasi inuteis gabos feitos ao teu assignalado talento. + + * * * * * + +BERNARDINO PINHEIRO. _Amores d'um visionario, romance historico original +do seculo XVI. 2 tom. Lisboa, 1874._--Se a linguagem das civilisações +adiantadas e os pensamentos de perfectibilidade humana podessem +pensar-se e exprimir-se no seculo XVI, este romance do snr. Bernardino +Pinheiro corresponderia, cabalmente, á qualificação de _historico_. A +illusão desfaz-se a cada pagina, sempre que os personagens entendem na +questão do progredir social. Que Antonio de Gouvêa, o heroe do livro, +depois de ouvir, na Europa litteraria e convulsa de reformas, as +theorias dos adversarios do papa e do dogma, propagasse idéas e palavras +novas em Portugal, é possivel; mas que a freira do Salvador, e D. +Margarida de Lencastre, e a escrava liberta discreteassem tão eloquentes +e progressistas ácerca dos direitos do homem, da emancipação do escravo, +da liberdade do pensamento, repugna aceital-o a razão, posto que de bom +animo nos affeiçoemos á vehemencia e esplendor d'essas phrases +intempestivas. + +Mulheres illustradas, se as houve em Portugal no seculo XVI, são umas +que o snr. Pinheiro nos mostra em um dos admiraveis capitulos do seu +livro. As paginas descriptivas de _Uma academia feminina do seculo XVI_ +quadrariam em livro da mais selecta historia do reinado de D. João III. +Alli estão as Sigéas, que não gozam fama de pudentissimas escriptoras, +se um poema erotico as não calumnía. Pois, n'esses completos moldes que +o snr. Pinheiro nos deu da sciencia feminil, está o maximo, o ultimo +estadio do alcance intellectual da mulher. Soror Maria, a monja que, de +escrupulosa, não ousava erguer o véo a sós com o amante, revelou +incapacidade para discorrer tão liberrima, na carta a Gouvêa, ácerca das +regalias do coração. Escrevendo ácerca de uma visionaria, diz a freira +ao seu amado: «Os espiritos convictos são logicos. O fanatismo tem as +suas leis fataes--e, por vezes, posto que raras, felizes...» E +acrescenta com intelligente ironia: «Que enormissimos criminosos que nós +somos:--amamo-nos, e acreditamos no evangelho puro!... Quando serão no +mundo livres o pensamento e o amor?!» + +A freira em 1548, podia delinquir porque era mulher; mas não saberia +desculpar o seu delicto com argumentos d'aquella natureza. E soror +Maria, se tivesse no corpo o demonio incubo da philosophia, quando abriu +a porta da cerca monastica ao amante, sahiria por ella, em vez de, +colhida em flagrantes amorios, pedir misericordia á mestra de noviças. +Teria feito o que fez depois, independente de luzes que lhe mostrassem a +nullidade e tyrannia dos votos de reclusão, castidade e pobreza. + +Esta macula é resgatada por nitidissimas paginas que manifestam o +historiador avantajando-se ao romancista. O capitulo XVIII +(_Illustrações em Coimbra_) é labor bastante a graduar um espirito culto +na convivencia dos varões insignes do seculo XVI. A disposição do grupo +é magnifica. Alli se admiram os luzeiros que chammejaram á volta da alma +negra de João III e não vingaram esclarecel-a. + +O quadro do auto de fé em que Antonio de Gouvêa é salvo da fogueira pela +cohorte dos escravos, é tão vigorosamente desenhado quanto inverosimil. +Os frades de S. Domingos não se deixavam embair por tretas nem +sancadilhas á sua credulidade, quando queimavam herejes da laia de +Gouvêa. Não obstante, esse trance, pelas commoções que produz, +dispensa-se dos realces da naturalidade. + +Em summa, _Os amores d'um visionario_ é um livro que merece graduar-se +entre os bons romances portugueses, tanto pelos predicamentos da +imaginação, como pelo subsidio de historia que presta ás pessoas +desaffectas a demorados estudos. + + + + +POBREZA ACADEMICA + + +O secretario da academia real das sciencias de Lisboa, José Bonifacio de +Andrade e Silva, escreveu a monsenhor Ferreira Gordo, pedindo-lhe um +donativo para ajuda de se pagar o busto do duque de Lafões, D. João +Carlos de Bragança, que a mesma academia desejava collocar em uma das +suas salas. O sabio monsenhor respondeu com circumspecção e graça por +meio da seguinte carta, que está inedita: + + +«Poderá v. s.ª certificar em meu nome á academia, que eu estou disposto +a concorrer com o contingente, que me couber, guardada a proporção +arithmetica, para o monumento, que pretende dedicar á memoria sempre +saudosa do seu illustre fundador, e que aproveitarei de bom grado todas +as occasiões, em que possa dar-lhe mostras do meu reconhecimento pelo +muito, de que lhe fui devedor. Mas não se achando todos os socios n'este +empenho, e fallecendo á maior parte d'elles meios, para fazer donativos +d'esta natureza, parece-me que a academia teria resolvido com mais +prudencia, e circumspecção decretando que a despeza do dito monumento +sahisse inteiramente dos seus fundos. Que póde doar sem detrimento seu +um religioso, não sendo commissario da Terra Santa, prior geral dos +conegos regrantes de Santo Agostinho, abbade geral do mosteiro de +Alcobaça, ou ministro provincial dos menores observantes de qualquer das +duas provincias de Portugal e Algarves? Que rendimento tem um professor +regio de humanidades, um lente da universidade, um ministro, e qualquer +outro funccionario publico, que na fallencia de bens patrimoniaes, lhe +não seja indispensavel para sua mantença? Dirá alguem que a academia +roga, e não manda, e isto é verdade; mas como ninguem quer o fóro de +pobre, nem ser marcado com a nota de pouco officioso, esta rogativa virá +a ser para a maior parte dos socios, o effeito de um rigoroso +mandamento. De mais se a academia é real, se todos os seus trabalhos se +dirigem a fazer prosperar, e florecer os estados de quem lhe deu este +titulo, e a subsistencia, e se até agora tem gozado a singular +prerogativa de ser presidida por uma personagem de sangue real, acho +muito improprio, que a despeito, de tudo isto, se lhe queiram dar os +attributos de uma irmandade religiosa, fazendo dependente da caridade de +seus irmãos, e não do seu patrimonio, qualquer despeza extraordinaria, +que emprehender. Perdôe v. s.ª como secretario a liberdade, que tomei, +que como meu amigo que é, tenho certeza me desculpará, se o que acabo de +escrever se encontrar com o seu parecer, que muito respeito.» + + +Os academicos de hoje são outra casta de gente, quanto a pelintraria. Se +não fazem bustos, é porque ainda estão vivos todos os sujeitos que hão +de resuscitar no marmore e no alabastro. Aquelles salões desertos hão de +ser povoados de estatuas, quando as cangas de sabios que hoje lavram os +baldios da sciencia, se foram a pascer nos almargens da immortalidade. +Medita a geração nova no modo de os entrajar, pois que a funeral casaca +destôa das arrojadas manias e sabenças de cada sujeito. Creio que +deveremos apparecer, nós, os academicos, cada qual com seu caranguejo +symbolico na mão operosa. O mocho, a ave de Minerva, apenas cabe de +direito ao snr. João Felix Pereira, o pervigil diurno e nocturno. + + + + +SOBRE ANSELMO + + +Usam dizer algumas pessoas assalteadas por bandidos da imprensa: «Não +respondo, porque o insultador é canalha.» Isto é um desacerto. Não ha +canalha irrespondivel. Todo o infame que calumnía representa uma +parcella da opinião publica. E essa parcella, malevola ou enganada, crê +esmagar o calumniado quando o interprete de seus odios ou preconceitos +tem no espinhaço a couraça repulsiva do escaravêlho, invulneravel aos +bicos da penna e aos loros do látego. + +Anselmo é um como isso. E, todavia, eu respondo a um grupo de sujeitos +representados na imprensa por Anselmo. Separal-o individualmente, e +atagantal-o, isso é que de modo nenhum. O sapo esguicha um pus fetido +quando lhe verberam as pustulas do couro. Não se bate em homens d'esta +laia, desde que o pelourinho e o açoute foram expungidos da lei. + +Convém saber que Anselmo não escreve: assigna. Theophilo Joaquim +Fernandes é o tubo intestinal por onde Anselmo estrava a alma +excrementicia; ao mesmo tempo que Anselmo é a testa polida (não é +tartaruga: finge) em que Joaquim escreve as suas protervias a carvão. +Theophilo, o ignorante que eu abafei com a critica risonha, sem lhe +impor alçada ás devassidões notorias, resfolga nas iras do outro. É a +vingança negra do mais safado caracter que ainda sahiu desembolado ao +curro das letras. + +No impresso assignado por Anselmo de Moraes encontrei duas aleivosias +que me doeram por estar conspurcado n'ellas o nome serio do snr. José +Gomes Monteiro, invocado como authoridade no meu descredito. São as +seguintes: + + +«Da cadêa começou Camillo a abrir brecha para a rapina na casa Moré, +mandando ahi mostrar um romance de descompostura ao dignissimo +procurador regio, que não lhe tolerou certas obscenidades no carcere; o +amigo do procurador regio, gerente da dita casa, teve de pagar o romance +para poupar um desgosto ao magistrado respeitavel. Ainda não ha muito +tempo que o snr. José Gomes Monteiro se refugiou no nosso escriptorio +para evitar o encontro de Camillo na loja Moré, que ia alli armar uma +_escroquerie_, com o fim, dizia elle, de pagar uma decima... + +«Ultimamente comprometteu a sorte de Vieira de Castro com a sua defeza; +explorou a desgraça do amigo com o drama o _Condemnado_, que vendeu a +dous individuos.» + + +Pedi ao snr. José Gomes Monteiro, antigo gerente da casa Moré, e editor +do _Condemnado_, que se dignasse ajudar-me a interpretar estas +deshonrosas referencias a um romance que s. exc.ª me pagára para não ser +publicado, a uma fuga de s. exc.ª no escriptorio de Anselmo para se +furtar a uma _escroquerie_; e finalmente á dupla venda do drama _O +Condemnado_ a s. exc.ª e a outro simultaneamente. + +O snr. José Gomes Monteiro, na volta do correio, respondeu d'esta fórma: + + + _Snr. Camillo Castello Branco._ + + +Meu amigo. + + +Acabo de receber a carta de v. datada de hontem, incluindo o impresso +que Anselmo de Moraes fez aqui circular. Apresso-me em responder-lhe. + +O primeiro periodo marcado por v. allude ás _Memorias do Carcere_ cuja +editação v. me veio propor em seguida á do _Amor de Perdição_. Ajustamos +a publicação d'essa obra antes de eu ter lido o original, que só no dia +seguinte me foi entregue. Li então o manuscripto aonde encontrei algumas +expressões que me pareceram offensivas da reconhecida probidade do +conselheiro Camillo Aureliano da Silva e Sousa, então procurador regio +junto á Relação do Porto. Por este motivo tive de devolver o original a +v. rogando-lhe houvesse por nulla a nossa convenção, por isso que eu +não podia ser editor de um livro em que de certo por erradas +informações, era maltratado um amigo meu, que eu tinha na conta de +magistrado integerrimo e de honradissimo cavalheiro. V. veio +immediatamente procurar-me e aceitando o meu testemunho como a expressão +da pura verdade, confessou ter sido mal informado ácerca da immaculada +probidade do meu amigo. Voltou o manuscripto devidamente reformado e v. +não se limitando a expungir as phrases que eu havia condemnado, fez +generosamente justiça ao honrado magistrado. Publicou-se o livro e elle +mesmo dará testemunho da inexactidão do que se affirma no citado +impresso, de que eu me vira obrigado a pagar um romance escripto por v. +contra o meu amigo para lhe poupar um desgosto. + +Confesso não ter guardado rigorosa reserva sobre este incidente, do que +sinceramente me peza, visto que a minha indiscrição deu lugar a que os +factos fossem desfigurados em desabono de v. + +V. não precisa de certo que eu o justifique, nem me justifique a mim de +me haver um dia refugiado no escriptorio do signatario do impresso para +me subtrahir a um pedido de v. Declaro com toda a ingenuidade não me +recordar d'esse grave capitulo de accusação dirigido não sei se a mim se +a v. O que afoutamente posso asseverar é que nas muitas transacções +commerciaes que temos tido encontrei sempre em v. a maior franqueza e +inexcedivel probidade. Não é por isso verdade que v. depois de me haver +vendido a propriedade do drama _O Condemnado_ o tivesse subrepticiamente +vendido tambem a outra casa editora. É verdade que d'este drama se veio +a fazer no Rio de Janeiro uma contrafacção, mas tenho completa certeza +de que v. fôra inteiramente alheio a esta fraude, que a falta de um +tratado com o Brazil infelizmente authorisa. + +V. fica authorisado a fazer d'esta minha carta o uso que lhe convier. + +Sou como sempre + + De v. etc. + +Porto, 25 de julho de 1874. + + _José Gomes Monteiro._ + + +Apraz-me grandemente o publico testemunho d'esta carta, no momento em +que as minhas relações sociaes e commerciaes com o snr. José Gomes +Monteiro se desatam. Eu não poderia, sem impostôra inutilidade, +fingir-me amigo de s. exc.ª desde que do contexto da sua carta se +deprehende que o snr. Gomes Monteiro não se recorda bem se fugiu de mim +para o escriptorio de Anselmo. Figura-se-me mais consentaneo ao honesto +caracter do snr. Gomes Monteiro negar-se pela palavra a um favor pedido, +e não pelo escondrijo no escriptorio de Anselmo a quem, pelos modos, s. +exc.ª não disse _que nas muitas transacções commerciaes que tivera +commigo encontrára sempre a maior franqueza e inexcedivel probidade_. + +Tirante esta feição mais attendivel do impresso, o remanescente é +indiscutivel nos prelos e nos tribunaes. Tenho vergonha das infamias +alheias, e respeito os nomes das pessoas que ahi se ultrajam. + +No entanto, não me esquivo a tocar dous episodios da minha biographia, +que lá vem contados: + +Que eu guardara cabras em Villa Real. + +Quer o leitor saber onde Theophilo foi esquadrinhar este indecoroso +lance da minha vida? Em um livro meu, chamado DUAS HORAS DE LEITURA, +escripto ha 20 annos. Sou eu que, em uma carta ao meu fallecido amigo +José Barbosa e Silva, conto assim o caso das cabras: + + +«Aos meus dez annos, levantou-se uma tempestade no seio da minha +familia. Uma vaga levou meu pai á sepultura; outra atirou commigo de +Lisboa, minha patria, para um torrão agro e triste do norte; e a +outra... Não merece chronica a outra: arrebatou-me um esperançoso +patrimonio. Foi bem pregada a peça, para que eu não tivesse a impudencia +de nascer, a despeito da moral juridica, filho natural de não sei que +nobre. Disseram-me que uma lei da snr.ª D. Maria I me desherdava. A boa +da rainha, se tivesse amado mais cedo um certo bispo, não legislaria tão +cruamente para os filhos do peccado; Denominava-se a _piedosa_, pela +mesma razão que um rei nosso, soprando a fogueira de vinte mil hebreus, +se chamou o _piedoso_... Fui educado n'uma aldêa, onde tenho uma irmã +casada com um medico, irmão de um padre, que foi meu mestre. O mestre +podia ensinar-me muita cousa que me falta; mas eu era refractario á luz +da gorda sciencia do meu padre. Fugia de casa para a serra, dava muitos +tiros ás gallinholas e perdizes... O meu gosto era (_hic_, cabras) +pascer o rebanho de casa por aquelles saudosos valles. Todavia, minha +irmã oppunha-se a este humilde serviço. Dizia-me cousas que eu não +percebia ácerca da minha dignidade, reprehendia os meus baixos +instinctos, attrahia ao seu voto o marido e o padre, e cortava-me o +rasteiro vôo, escondendo de mim a clavina, o polvorinho, os salpicões, a +brôa, e a cabacinha da aguardente. Não obstante, eu pedia tudo de +emprestimo, e ia com as ovelhas para o monte. Passava lá o dia inteiro, +sentado nas espinhas d'aquelles alcantis fragosos, sempre sósinho, +scismando sem saber em quê, engolfada a vista nas gargantas dos +despenhadeiros.» + + * * * * * + +A respeito de cabras, não ha mais nada nos archivos impressos, que eu +deva transmittir á posteridade. + +Ai! meu saudoso rebanho! Provavelmente, d'este lidar com cabras é que me +ficou o sestro e coragem de aparar as marradas de cabrões, como Anselmo. + +N'essa mesma carta a Barbosa e Silva, conto eu que ajudava diariamente á +missa a cinco sacerdotes. O sarrafaçal deixou escapar o ensejo de dizer +ao publico que eu tambem fui sacristão. + +E a historia da filha do taberneiro, que me deu um fato novo e uma moeda +para eu lhe casar com a filha; e vai eu pego a fugir com o fato e a +moeda e deixo a rapariguinha perdida! + +Desbragada porcaria! + +Ó meus amigos de Villa Real, ou lá d'onde se passou o caso +infando! Procurai a miseranda menina; e, se a topardes n'alguma +gafaria--derradeira paragem da espiral das perdidas--trazei-a a casa +d'este Anselmo para lhe agradecer o pregão que a vinga, e para lá se +rehabilitar, vendo-se honesta em contacto com certo exemplo femeal de +podridão d'alma e corpo. + + * * * * * + +Despedi-me, ha dias, de assignante da _Actualidade_. Estou arrependido. +Devemos todos contribuir com alguns cobres para que Anselmo de Moraes +não seja forçado pela necessidade a _picar-nos_ (giria d'elle) o paletó +no cunhal da viella da Neta. Em quanto aquelle archi-pulha tiver gazeta, +o seu pão, embora deshonrado, garante-nos do assalto nocturno. Não lhe +leio mais o jornal; mas dou-lhe a esmola dos 240 reis mensaes. Mande-os +receber em quanto a espinha em via de amollecimento me consentir +subscrever com seis patacos, a fim de que elle me não liquide a cadêa do +relogio. + +É verdade: affirma o impudentissimo caloteiro que tem lá uns titulos do +saldo de nossas contas. + +A fim de que esses documentos appareçam, offereço o seguinte e perpetuo +supplemento a todos os numeros da _Actualidade_: + + +ANSELMO DE MORAES É RADICALMENTE LADRÃO, COM UM CORTEJO DE TORPEZAS +ESPECIAES E RARAS NOS LADRÕES MAIS DESPEJADOS. + + + + +AO PUBLICO + + +AO PUBLICO + +Distribuiu-se ahi ha dias com generosa profusão um libello famoso por +motivos a que sou completamente estranho, mas em que nem por isso +quizeram que eu deixasse de figurar. + +Indignou por ahi a todos a alludida publicação, sem exceptuar os +proprios amigos ou parciaes do signatario d'ella, o snr. Anselmo de +Moraes. Dou-me com isso por bem vingado das malevolas intenções que me +apontaram ás iras atravessadas do insultador enraivecido. Não ha +desforço pessoal que valha tanto, e, ainda que o houvesse, não seria eu +que o tirasse. A dignidade nem sempre manda procurar o aggressor, antes +ás vezes exige que se evite. + +O meu fim é, pois, sómente esclarecer o publico, a quem respeito, como +devo, e de quem quero continuar a merecer bom conceito, ácerca da +perfida insinuação com que se intentou manchar a minha probidade +commercial, que só d'isto posso aqui fallar sem offensa da moral +publica. Obrigou-me aquella insinuação a dirigir-me ao exc.mo snr. José +Gomes Monteiro, que, como homem de bem, se dignou dar-me o testemunho +que se segue: + + + _Snr._ + +_Respondendo restrictamente á carta que de V. acabo de receber, +cumpre-me declarar, como o exige o meu caracter, que durante o tempo que +sob a minha direcção V. serviu a casa da snr.ª viuva Moré, nunca d'ella +subtrahiu cousa alguma ou quantia e prestou regularmente as suas +contas._ + + _De V._ + +_Porto 28, 7, 74._ + + _attento venerador_ + + _José Gomes Monteiro_ + + +Depois d'isto seria de mais tudo quanto eu podesse dizer. Fica o publico +habilitado para fazer o seu juizo. + + _Ernesto Chardron._ + + + + +FIM DO 8.º NUMERO + + + + +EMENDAS AO N.º 7 + + +Pag. 47, lin. 15: quer-me _parece_, emende: quer-me _parecer_. + +Pag. 95, lin. 10: _king-charles_, emende: _king's-charles_. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem +não póde dormir. Nº8 (de 12), by Camilo Castelo Branco + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) *** + +***** This file should be named 28128-8.txt or 28128-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28128/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/28128-8.zip b/28128-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..1af317a --- /dev/null +++ b/28128-8.zip diff --git a/28128-h.zip b/28128-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..65a526c --- /dev/null +++ b/28128-h.zip diff --git a/28128-h/28128-h.htm b/28128-h/28128-h.htm new file mode 100644 index 0000000..0c43279 --- /dev/null +++ b/28128-h/28128-h.htm @@ -0,0 +1,2490 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Noites de Insomnia, offerecidas a quem não póde dormir, nº 8</title> + <meta name="author" content="Camilo Castelo Branco"> + <meta http-equiv="Content-Type" content="text/html; charset=iso-8859-1"> + <meta name="KEYWORDS" content=""> + <style type="text/css"> + @media print { + .pagenum { display: none;} + body {width: 80%; margin: auto;} + } + @media handheld { + .pagenum { display: none;} + body {width: 80%; margin: auto;} + } + body {width: 520px; margin-left: 90px;} + .pagenum {font-size: 0.8em; font-style: normal; color: silver; position:absolute; left: 630px;} + .capa {text-align: center; border: solid 1px #000000;} + hr { + border: 0; + border-bottom: solid 2px #000000; + text-align: center; + } + a {color: #000000; text-decoration: none;} + sup {font-size: 0.8em; font-style: normal;} + h2, h3, h4 {text-align: center;} + h1 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + .small-caps { + font-variant: small-caps; + } + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + #corpo p{ + line-height: 1.5em; + text-align: justify; + text-indent: 1em; + } + .dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000000;} + #sumario { + width: 75%; + margin: auto; + border-left: solid 1px #000000; + border-top: solid 1px #000000; + border-right: solid 3px #000000; + border-bottom: solid 3px #000000; + padding: 1em; + } + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não +póde dormir. Nº8 (de 12), by Camilo Castelo Branco + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº8 (de 12) + +Author: Camilo Castelo Branco + +Release Date: February 19, 2009 [EBook #28128] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +</pre> + +<span class="pagenum">[1]</span> + +<div class="capa"> +<p style="font-size: 1.2em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p> +<hr style="width: 6em;"> + +<p style="font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p> + +<p style="font-size: 0.7em;">OFFERECIDAS</p> + +<p>A QUEM NÃO PÓDE DORMIR</p> + +<p style="font-size: 0.7em;">POR</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">Camillo Castello Branco</p> +<hr style="width: 3em;"> + +<p style="font-size: 0.7em;">PUBLICAÇÃO MENSAL</p> +<br> + +<hr style="width: 3em;"> + +<p style="font-size: 0.9em;">N.º 8—AGOSTO</p> +<hr style="width: 3em;"> + +<table width="100%" summary="endereço editor"> + <tbody> + <tr> + <th colspan="2">LIVRARIA INTERNACIONAL<br> + <span style="font-size: 0.7em;">DE</span> </th> + </tr> + <tr> + <td style="border-right: solid 1px #000000;"><span + style="font-size: 0.9em;">ERNESTO CHARDRON <br> + <em>96, Largo dos Clerigos, 98</em><br> + <strong>PORTO</strong> </span> </td> + <td><span style="font-size: 0.9em;">EUGENIO CHARDRON<br> + <em>4, Largo de S. Francisco, 4</em><br> + <strong>BRAGA</strong> </span> </td> + </tr> + </tbody> +</table> +<hr style="width: 2em;"> + +<p style="font-size: 0.9em;">1874</p> +</div> +<span class="pagenum">[2]</span> + +<div id="impressor" style="text-align: center;"> +<br> +<br> +<br> +<br> + +<hr style="width: 8em;"> + +<p>PORTO</p> + +<p style="font-size: 0.9em;">TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">68—Rua da Cancella Velha—62</p> +<hr style="width: 2em;"> + +<p style="font-size: 0.9em;">1874</p> +</div> +<span class="pagenum">[3]</span> + +<div id="sumario"> +<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p> +<hr style="width: 4em;"> + +<p style="text-align: center; font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p> +<hr style="width: 4em;"> + +<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;"><strong>SUMMARIO</strong></p> + +<p><em><a href="#cap01">Os salões, pelo exc.<sup>mo</sup> visconde de +Ouguella</a> —<a href="#cap02">Subsidios para a historia da serenissima casa +de Bragança</a> —<a href="#cap03">O paço real da Ribeira</a> —<a +href="#cap04">As Cruas entranhas de D. Maria 1.ª, a Piedosa</a> —<a +href="#cap05">D. Maria Caraca Bonaparte</a> —<a href="#cap06">Lixo</a> —<a +href="#cap07">Bibliographia</a> —<a href="#cap08">Pobreza academica</a> —<a +href="#cap09">Sobre Anselmo</a> —<a href="#cap10">Ao Publico</a></em></p> +</div> +<span class="pagenum">[5]</span> + +<div id="corpo"> +<hr> + +<h1><a id="cap01" name="cap01">OS SALÕES</a></h1> + +<h2>CAPITULO VI</h2> + +<h2>UMA AURORA</h2> + +<blockquote style="font-size: 0.9em; margin-left: 30%;"> + <p>Opprimé par des déspotes, qui, á leur tour, étaient menés par les + jésuites, et asservi sous le pouvoir sans frein des prêtres et des nobles, ce + petit peuple menait ainsi, sans aucun doute, pendant la première moitié du + dix-huitième siècle, l'existence la plus miserable parmi toutes les nations + de l'Europe.</p> + + <p style="text-align:right;">GERVINUS.</p> + + <p>L'histoire n'est jamais faite, on la refait sans cesse.</p> + + <p style="text-align:right;">VOLTAIRE.</p> + + <p>Les hommes embrassent volontiers avec une ardeur violente les rêves qu'ils + se font, mais ils ne veulent point qu'on les leur impose.</p> + + <p style="text-align:right;">ARSÈNE HOUSSAYE.</p> + + <p>Ignota obscuræ viderunt sidera noctes,<br> + Ardentemque polum flammis, cœloque volantes<br> + Obliquas per inane faces....</p> + + <p style="text-align:right;">LUCANO.</p> +</blockquote> + +<p>Nos confins do globo, nas regiões arcticas, ao tocarmos as ultimas zonas +habitadas, toma a<span class="pagenum">[6]</span> existencia proporções fabulosas. Expiram, alli, todas as +ousadias, todos os commettimentos, todas as aspirações dos mais intrepidos +navegadores.</p> + +<p>É longo o obituario dos homens illustres, que teem perecido, abandonados, +n'estas epopêas ignoradas. Seriam famosas as chronicas, onde se compendiassem +as façanhas, os esforços heroicos, as luctas incessantes, e a coragem +inexcedivel dos martyres, que vão perdendo a vida em busca d'aquellas solidões +polares.</p> + +<p>Todas as proezas que a antiguidade nos narra: os doze trabalhos de Hercules, +a entrada no formoso jardim das Hesperides, as excursões em demanda do +vellocino de ouro, o ousado empenho de transpor o labyrintho de Creta, o +maravilhoso e demorado cerco de Troya, a viagem aventurosa de Ulysses +procurando a patria, a retirada heroica de dez mil gregos pelo interior da +Asia, as conquistas de Alexandre, as invasões de Sesostris, a fundação de +Sparta, de Athenas, de Roma, e de Carthago—finalmente as narrações de Homero, +Xenophonte, Herodoto, Diodoro, Thucydides, Quinto Curcio, Tito Livio, +Plutarcho, e Eutropio, e ainda as creações grandiosas, que remontam aos tempos +pre-historicos dos vedas, do Maha-Bharata, do Ramayana, do Kalidasa, e do +Boudha<span class="pagenum">[7]</span> Sakya-Mouni, todos estes mythos, todas estas epopêas, todas estas +lendas, todas estas luctas titanicas, todas estas épicas aventuras são debeis +esforços, limitadissimos exageros, vagas e triviaes descripções, em presença +dos arrojos de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de Christovão Colombo, +de Américo Vespucio, de Magalhães, de Franklin, de Cooper, e de não sei quantos +outros navegadores e descobridores temerarios, que teem avassallado os dous +oceanos, indo, alguns d'elles, povoar, com os seus esqueletos, as regiões +remotas dos gelos polares.</p> + +<p>Ha um parallelo formidavel e tremendo entre a vida physica e moral da +humanidade. As leis, que regem o espirito e a materia caminham a par.</p> + +<p>O alvorecer da liberdade, quando um povo desperta do lethargo da escravidão, +assemelha-se á luz vaga e indecisa, com que a natureza previdente, e sempre +mãi, acode á escuridão das immensas noites arcticas.</p> + +<p>Contemplemos.</p> + +<p>Em phases astronomicamente determinadas, o facho de luz, que arrasta este +globo, acariciando-o, e alimentando-o carinhosamente—como em berço de ouro, e +em fachas de purpura—deixa, na solidão e nas trevas, por longas e +frigidissimas<span class="pagenum">[8]</span> épocas, as regiões que se aproximam dos polos.</p> + +<p>Esconde-se o astro do dia. Levantam-se tempestades inexcediveis, rangem nas +proprias raizes os arbustos, que uma temperatura, milagrosa para a vida humana, +permitte e consente que sobrevivam a uma lucta constante; fogem espavoridos os +ferozes animaes, que o Creador concedeu áquelles climas, e o homem, ainda que +afeito a esta existencia inexplicavel, busca em cavernas, cavadas no proprio +gelo, um refugio, um abrigo contra estas tormentas, em que a terra parece +agonisar.</p> + +<p>E quando a noite vai longa,—longa a ponto que parece interminavel,—quando +a presença d'um ente organisado assusta e apavora, porque os vultos dão visões +d'espectros, n'aquelles cataclysmos e inversões de todas as normas por que +physicamente se governa a humanidade—do seio d'este cahos, do vacuo de todos +estes ruidos, da solidão infinda de todas estas planuras assomam os lampejos +d'uma luz vaga, indecisa, e bruxuleante—robustecem-se, avivam-se, +condensam-se, animam-se, fulguram, e em duas columnas investem com o horisonte, +aproximam-se do zenith, e desdobram-se n'uma corôa de fogo, que resplandece, +offusca, e afaga na pallidez dos planos<span class="pagenum">[9]</span> em que se desenha, os montes, +pyramides e arcarias de gelo com que as solidificações da agua teem revestido a +terra.</p> + +<p>É uma aurora polar.</p> + +<p>O phenomeno termina.</p> + +<p>As trevas adensam-se, os ventos impetuosos enfurecem-se, o gelo augmenta de +volume, as plantas não receberam calorico que as aviventasse, e a terra +conserva-se fria, inerte e abandonada.</p> + +<p>É porque o calor e a luz foram ephemeros, e a natureza continua envolta no +seu sudario de neve, até que o luzeiro vivificador, o centro de toda a nossa +existencia venha expandir os seus raios, as suas frechas de ouro por sobre o +nosso planeta.</p> + +<p>A liberdade é como o sol.</p> + +<p>Só ella vivifica, só ella alenta, só ella esparge os seus raios de luz pelas +escuridões da intelligencia humana. Só ella rasga os véos densissimos, que +entenebrecem o senso moral dos povos. Só ella exalta Galileu, Copernico, +Luthero, Leibnitz, Calvino, Voltaire, Rousseau, Beccaria, Filangière, Darwin, +Proudhon, Lamennais, Bentham, Comte, Stuart Mill, Littré, Michelet, Quinet, e +toda esta phalange de apostolos, que evangelisam a palavra de Deus, e pregam a +boa nova,<span class="pagenum">[10]</span> explicando as maravilhas da creação, d'envolta com os hymnos, +que offerecem ao Eterno.</p> + +<p>As auroras polares são simulacros de vida—são phenomenos meteorologicos, +que fulgem e desapparecem, sem que a terra estremeça de contentamento, sem que +a natureza acorde do somno lethargico das noites arcticas, sem que as regiões +do gelo dispam o alvo manto, que as envolve, exhaurindo a luxuriante vida, e os +ricos thesouros da sua vegetação por todos os poros dos seus ferteis e +uberrimos torrões.</p> + +<p>Quando os povos não estão ainda preparados para as grandes evoluções +sociaes, quando as nações jazem adormecidas, nos pesadelos d'uma lenta e +demorada tyrannia, as aspirações d'um grupo diminuto de homens, o credo da nova +crença, symbolisado n'uma obscura e limitada pleiade, as esperanças do futuro, +formuladas pelos videntes e vates d'uma nova era, são como a semente perdida de +que falla o evangelho—não brota, não germina, não rebenta, não fecunda, não +viceja: fica entalada nas pedras, ou comem-na as aves do céo.</p> + +<p>As evoluções sociaes, sonhadas nos improvisos e imprevidencias dos homens, +que anceiam por precipitar acontecimentos inopportunos ou prematuros, e que +tentam arrastar os tempos,<span class="pagenum">[11]</span> na insensatez com que os Titans ousaram +escalar o Olympo—segundo a maravilhosa lenda da mythologia grega—são auroras +polares, que fulgem, brilham, e se extinguem, deixando o frigidissimo gelo da +descrença no coração dos povos que imaginaram regenerar.</p> + +<p>Assim foi a revolução de 1820.</p> + +<p>Na noite de ignorancia, de fanatismo, de escravidão e de miseria, que ia tão +longa, e tão frigida, como nas trevas dos polos, ergueu-se um luzeiro ephemero, +passageiro, e rapido, que atravessou o horisonte politico da patria, e +esvaiu-se e dissipou-se, como um meteoro, deixando submersa, nas trevas da mais +feroz oppressão, a nobilissima Lusitania.</p> + +<p>A aurora polar de 1820 dissipou-se.</p> + +<p>As trevas de 1828 surgiram e adensaram-se com o nefasto nome de usurpação. +</p> + +<p>O vaticinio da emancipação dos povos, o credo dos videntes da boa nova foram +afogados no completo desconhecimento da soberania popular. Ficou o Lazaro +amortalhado, no sepulchro, sem escutar nem entender o verbo harmonioso da +redempção.</p> + +<p>Por vezes, no fundo d'um horisonte diaphano e transparente, recorta-se um +ponto imperceptivel,<span class="pagenum">[12]</span> um atomo negro, que só vistas perspicazes +descortinam. Vai o baixel singrando em aguas remansadas, impellem-no ventos +prosperos e adequados a uma facil navegação; e subitamente o atomo torna-se +colosso, o ponto negro transforma-se em tempestade, e os elementos +desencadêam-se, enfurecidos, sobre o mareante, confiado e seguro na tarde +bonançosa e estival dos climas tropicaes.</p> + +<p>Assim nasceu a revolução.</p> + +<p>As colonias do norte da America, esmagadas pela soberba oppressão da velha +Albion, proclamaram-se independentes. A França educada já nas luctas dos +philosophos e encyclopedistas, affeiçoada ás theorias e doutrinas de Descartes, +Voltaire, Rousseau, D'Alembert, Hobbes e Diderot auxiliou esta grande lucta de +emancipação; e a Europa, viu, com assombro, o Novo-mundo aceitar a republica +como um systema de governo, e sustentar a democracia como uma verdade +inconcussa, que parecia o complemento da missão do Nazareno.</p> + +<p>É que o christianismo recuára diante da escravidão. «Dai a Cesar o que é de +Cesar», dissera o Messias; e a França, como n'um Sinay de luz e de +transformações sociaes, formulára os direitos<span class="pagenum">[13]</span> do homem, e esmagára, sem +remorso, todas as oppressões, e todas as tyrannias.</p> + +<p>A França é o capitolio da raça latina.</p> + +<p>Nem uma só vez a nobre terra das Gallias deixou de regar com o proprio +sangue um grande principio. E ainda, quando arrastada pela louca ambição d'um +homem desvairado, percorria a Europa, na sofreguidão das conquistas—ainda +assim, cada patrona dos seus legionarios era um fóco de propaganda, e uma +ameaça tremenda para os despotas ungidos pelo direito divino.</p> + +<p>Os excessos da revolução franceza—se os houve—foram a consequencia logica +e fatalmente necessaria de tantos seculos de carnificinas, d'escravidão, e de +infamias. «Os grandes só são grandes, porque nós estamos de joelhos: +levantemo-nos», clamava Seyés ao raiar a aurora da mais esplendida revolução, +que narram os annaes de todos os povos. E o morticinio dos albigenses, a +destruição dos huguenotes, as fogueiras das inquisições, os encerramentos nas +torres, e nas bastilhas, o estupido orgulho, e os ignobeis e torpes privilegios +d'uma aristocracia banal e dissipadora, os barbaros direitos feudaes, a miseria +publica na sua hediondez, e todas as vergonhas, todos os abusos e todos os +vexames dos governos absolutos foram anathematisados e pulverisados<span class="pagenum">[14]</span> á +face dos grandes principios, que os vultos homericos da assembléa nacional e da +convenção ousaram proclamar.</p> + +<p>É d'aqui, e só d'aqui, que data a emancipação da humanidade.</p> + +<p>A fé religiosa podéra ser—e foi—um balsamo de consolação. Era um esteio +para as consciencias, era uma valvula de segurança, forjada pelo clero, pelo +sacerdocio, pela theocracia, para obstar ao desencadeamento de todas as +indignações, e apagar, com as adulteradas palavras de misericordia e +resignação, as justas represalias legadas por milhares de gerações.</p> + +<p>As palavras de Christo, no Golgotha: «Perdoai-lhes, meu Pai, porque elles +não sabem o que fazem», ficaram sendo, na amphibologia da sua applicação, o +pára-raios de dezoito seculos de abusos, de ultrajes e torpezas.</p> + +<p>Rebentou a revolução franceza. E os raios d'este Sinay da biblia da +humanidade encheram de luz a palavra justiça, em toda a severa e inexoravel +verdade do vocabulo romano: «<em>Jus sum cuique tribuendi.</em>»</p> + +<p>Os decemviros d'esta era famosa prestavam, pela primeira vez, homenagem á +dignidade de todos os entes racionaes: viam e consideravam todos os homens +irmãos e iguaes.<span class="pagenum">[15]</span></p> + +<p>Como é triste e demorada a perfectibilidade humana! Quantos seculos de +trevas, para luzir no craneo do rei da creação esta simplicissima verdade: +todos os homens são iguaes!</p> + +<p>E são.</p> + +<p>O genio e o idiotismo formam os dous polos d'esta arca santa, d'este +tabernaculo do pensamento, da vastidão do cerebro, onde a consciencia moral, +quando culta e desenvolvida, desperta sofrega dos seus direitos, e irrompe-lhe +a intuição generosa e espontanea dos seus deveres e obrigações.</p> + +<p>As colonias hespanholas responderam, com enthusiasmo, a este clamor unisono +da America do norte, e por sobre os dous oceanos voou a mensagem de que o +Novo-mundo estremecia de jubilo ao contemplar a liberdade. Foi isto bastante +para que o movimento revolucionario se propagasse na metropole. E ao passo que +os autocratas da Europa forjavam uma alliança reaccionaria, com o intuito +pueril de levantar um dique á torrente caudal, que trasbordava nas planuras +habitadas pela raça latina, a revolução caminhava triumphante no meio dia do +nosso continente, e aceitava, como modêlo, a constituição hespanhola de 1812. +</p> + +<p>Era a democracia que levantava o collo, e arremessava<span class="pagenum">[16]</span> o cartel aos +privilegios de dezoito seculos. As centelhas luminosas da liberdade, as chispas +d'este fogo sagrado irrompiam tão espontaneas, e tão vivazes, que pareciam +vulcões abertos pelas forças temerosas da electricidade, fluidos magneticos, +que em correntes subterraneas pretendiam surgir dos seios da terra, em quanto +esta se debatia, agonisante, nas convulsões d'uma nova transformação.</p> + +<p>Em 1820 estremeciam os dous mundos.</p> + +<p>A Hespanha, o Brazil, o reino de Napoles, o Piemonte, e os proprios +christãos avassallados na Grecia despertavam ao clamor da emancipação dos +povos. Irradiava o sol da justiça. Dissipavam-se as trevas na consciencia +humana. Desde o Chili até Boukarest coroavam-se as montanhas de fachos de luz, +e como se uma só vontade, um só incentivo, um só impulso dirigisse as nações, +echoava em todos os pontos o sagrado nome da liberdade. Ouvia-se o ruido das +velhas instituições que desabavam. O clero e a nobreza perdiam o prestigio, a +força, o poderio; e a humanidade, que ouvira absorta a palavra omnipotente da +convenção nacional, estremecia jubilosa e reverente, como a virgem de Nazareth +ao escutar a saudação celestial do anjo mensageiro.</p> + +<p>Durou pouco a esperança. Detraz dos hymnos<span class="pagenum">[17]</span> festivaes vinham os crepes +funerarios. Após esta radiante aurora seguiram-se as trevas da reacção, os +carceres, as galés, as deportações, os exilios e os morticinios. A velha Europa +estendeu os pulsos e deixou-se algemar.</p> + +<p>O mais hediondo mal da escravidão é o habito torpemente adquirido de ser +escravo.</p> + +<p>O maior crime da tyrannia é educar as gerações para a abjecção moral, para a +aniquilação da dignidade individual, e para a ignorancia dos proprios deveres. +</p> + +<p>Todavia as evoluções sociaes não dependem da vontade dos homens.</p> + +<p>As legitimas penalidades, na terra, imprimem-se implacaveis e cruentas em +quem pretende destruir o que de si é immutavel e eterno. O desconhecimento +completo das leis physicas e moraes da humanidade arrasta, as mais das vezes, +repetidos cataclysmos e sangrentas catastrophes.</p> + +<p>A arca santa do mosaismo é o symbolo immaculado da indestructibilidade das +normas, por que o universo se rege.</p> + +<p>Todos os seculos teem uma feição propria, uma formula predominante, por que +se inscrevem na historia. Assim se exprime o seculo de Pericles, o seculo de +Augusto, o seculo dos Medicis, o seculo de Luiz XIV. Detraz de cada um d'estes +epithetos,<span class="pagenum">[18]</span> que são como uma synthese, caracterisada n'uma epigraphe, +transparecem grandes commettimentos, estudos longos e pacientes, como de +benedictinos, luctas heroicas, trabalhos herculeos, progressos infinitos, que +formam a vereda, representada pelos marcos milliarios da civilisação dos povos. +Definem-se, pois, os seculos por um grande pensamento, e gravam-se com uma nova +idéa. E á medida que as civilisações se multiplicam, as transformações são mais +rapidas; e as evoluções sociaes precipitam-se. É assim que os phenomenos da +electricidade e a força do vapor teem hoje, desde a Oceania até aos confins do +occidente europeu, a humanidade perplexa e surprehendida n'um contacto +constante, e as idéas transmittem-se com a velocidade da luz.</p> + +<p>Mas as gerações que se teem ido succedendo, em seculos determinados para a +sua missão—egoistas e imprevidentes, foram legando ao seculo dezenove a +solução de todos os formidaveis problemas com que hoje nos achamos a braços. +Nós—entregues e devotados ás sciencias d'observação, aos estudos analyticos, á +razão critica, á severa e leal escolha da pureza dos elementos que constituem o +nosso credo, e a encyclopedia fundamentada dos actuaes conhecimentos humanos, +encontramo-nos face a face com a futura<span class="pagenum">[19]</span> solução de todos os problemas +religiosos, scientificos, litterarios e sociaes, que a machiavelica prudencia +de todos os defensores dos rigorosos principios authoritarios vai deixando +accumular.</p> + +<p>Queixem-se de si, e só de si os zelosos apostolos da reacção—phariseus de +todas as épocas, e de todas as raças,—quando a democracia implacavel e +inexoravel na sua marcha, arrastada involuntariamente pela sua velocidade +adquirida, achar de subito a formula inteira de todas estas temerosas +soluções.</p> + +<p>Mil oitocentos e vinte é apenas uma data.</p> + +<p>Echo remoto da revolução franceza, grito agonisante d'uma nação exhausta, +indolente, ignorante, fanatisada e escrava, o povo balbuciou sem consciencia +nem fé a palavra liberdade, e adormeceu de novo, no seio de theorias que não +entendeu, de principios que não comprehendia, para acordar d'este somno febril +e agitado nas tristes e luctuosas carnificinas do caes do Tojo.</p> + +<p>A inviolabilidade da vida humana era uma utopia e um escarneo para uma +geração, que se estorcia convulsa, ainda, no medo e pavor com que a feriam em +face os sombrios e ferozes carceres da inquisição.</p> + +<p>A democracia nem era apenas um sonho n'estes devaneios da classe media. O +proletariado,<span class="pagenum">[20]</span> quando muito, seria uma casta de parias, que d'envolta com +o pauperismo merecia os ergastulos e gemonias da preconisada republica romana. +</p> + +<p>As republicas gregas e latina não eram comprehendidas pela ausencia total +das sciencias modernas. E se os vocabulos se entendiam nos lexicons da época, +desconhecia-se, pelo menos, a essencia da organisação e constituição de povos +tão diversos. A philologia e a ethnographia eram como hieroglyphicos para uma +sociedade que apenas queria destruir. O seculo dezoito vivera em parte dos +discursos emphaticos de Raynal, Volney e Rousseau, e das historias fabulosas, +escriptas pelos aulicos e cortezãos de todas as vaidades e pompas mundanas.</p> + +<p>A democracia, na rasgada e imponente accepção do verbo supremo, havia de +irromper, mais tarde, n'este luzeiro immenso, que será a redempção da +humanidade.</p> + +<p style="text-align:right;">VISCONDE D'OUGUELLA.<span class="pagenum">[21]</span></p> +<hr> + +<h1><a id="cap02" name="cap02">SUBSIDIOS PARA A HISTORIA</a> <br> +DA <br> +SERENISSIMA CASA DE BRAGANÇA</h1> + +<h2>II</h2> + +<h2>A VENIAGA</h2> + +<p>Sem preambular com as repetidas accusações (veja Rebello da Silva, Soriano, +Pinheiro Chagas) escriptas contra a cobarde inercia de D. João, duque de +Bragança, que desatravancou ao usurpador castelhano o accesso a Portugal, vou +arrolar com miudas provas as verbas que representam o valor da honra e do +patriotismo do avô de D. João IV.</p> + +<p>Possuo um codice que pertenceu ao archivo da casa de Bragança, escripto em +1687, com estes dizeres na folha de rosto: <em>Doações do real estado e casa de +Bragança, conforme se vão desbrindo<span class="pagenum">[22]</span> em papeis e documentos authenticos de +que em summa se dá noticia.</em></p> + +<p>Convém saber que os successores do duque D. Fernando, degolado em tempo de +D. João II, nunca poderam obter de D. Manoel, de D. João III, da rainha +regente, de D. Sebastião e do cardeal, parte dos privilegios que o filho de +Affonso V lhes jarretára. A absoluta independencia da corôa, e o absoluto +dominio em Villa-Viçosa, nunca poderam os duques extorquil-o á condescendencia +dos soberanos.</p> + +<p>Obteve-o, porém, o avô de D. João IV, em fevereiro de 1581, da velhaca +magnanimidade de Philippe II de Castella, quando foi comprimentar a Elvas o +usurpador, que vinha entrando triumphalmente em Portugal. O primeiro passo era +crear magistrados seus, instaurar tribunaes sem appellação nem aggravo das +sentenças dos seus juizes, e defender o ingresso de viandantes em seus +dominios, quando elles eram suspeitos de procedencia de lugares impedidos, e +até quando o não eram.</p> + +<p>A seguinte <em>doação</em> de Philippe II ao duque de Bragança, D. João, +primeiro de nome, está registada no livro V da camara de Villa-Viçosa, fl. 31, +pag. 2.</p> + +<p>«Eu el-rei, faço saber aos que este alvará virem<span class="pagenum">[23]</span> que havendo +respeito ao duque de Bragança, meu muito amado e presado sobrinho e a D. +Catharina minha muito presada prima residirem ora em Villa-Viçosa, e por outros +respeitos que a isso me movem; hei por bem e me praz que a pessoa que o dito +duque nomear por guarda-mór da saude da dita villa tenha a alçada com o dito +cargo adiante declarado. Que entrando alguma pessoa na dita villa, sem licença +do dito guarda-mór, e constando que vem de lugar impedido, o possa <em>mandar +prender, e sendo peão será condemnado a um anno de degredo para o couto de +Castro Marim com pregão na audiencia e 2$000 reis para os captivos; e, sendo de +maior qualidade, a mesma pena de degredo e pregão e 4$000 reis. E o mesmo nos +que metterem fatos e mercadorias das terras impedidas; e os que vierem de +terras não impedidas, entrando sem licença, presos, e da cadêa pagarão 2$000 +reis.</em></p> + +<p>«E todas estas penas sem appellação nem aggravo, e que as sentenças sejam +dadas em camara com os vereadores. E que não passe pela chancellaria. Ambrosio +de Aguillar o fez em Elvas a 23 de fevereiro de 1581. Roque Vieira o fez +escrever. El-rei.»</p> + +<p>Em 2 de julho de 1582 concede o mesmo monarcha<span class="pagenum">[24]</span> ao mesmo duque +<em>poder despender as rendas dos concelhos das suas terras no que lhe +aprouver.</em></p> + +<p>Em 2 de maio de 1584 o mesmo Philippe II assigna o seguinte aviso:</p> + +<p>«Eu el-rei. Faço saber a vós licenciado Lopo de Abreu Castello Branco que +ora o duque de Bragança (D. Theodosio) meu muito amado e presado sobrinho, com +minha authoridade, envia por juiz de fora da sua villa de Villa-Viçosa, que eu +hei por bem pela confiança que de vós tenho, que além dos poderes que por minha +ordenação são dados aos juizes ordinarios, vos tenham mais o poder e alçada ao +diante declarados:</p> + +<p>«<em>Que nos casos crimes possa mandar açoutar peões de soldada que +estiverem assoldadados, e outros peões que ganharem dinheiro por braçagem, e +escravos, e que possa degredar os ditos peões para os lugares d'além-mar por +dous annos, e para os coutos do reino até tres annos. Que possa degredar +escudeiros e vassallos que não forem de linhagem, e officiaes mecanicos para os +lugares d'além-mar por dous annos, e para os coutos do reino por tres annos... +Que se alguns fidalgos, cavalleiros e escudeiros de linhagem, e vassallos, +fizessem cousas por que mereçam ser processados,<span class="pagenum">[25]</span> os empraze para que a +certo tempo appareçam.</em> João da Costa o fez em Lisboa a 2 de maio de 1584. +Rei.»</p> + +<p>Seguem mandados confirmando e revalidando doações abolidas ácerca das rendas +das feiras, que os duques de Bragança continuaram a perceber, como seus avós, +antes das reformas de D. João II.</p> + +<p>Em 1589, o duque de Bragança D. Theodosio decreta nos seus dominios +isentando os ferradores e mais officiaes mecanicos de sua casa <em>de todos os +serviços e encargos do concelho, de fintas, de talhas, montes, pontes, fontes, +caminhos, calçadas, etc.; nem vá com presos, nem seja tutor, nem curador de +nenhumas pessoas, nem pousem com elles, nem lhes tomem suas casas de moradas, +nem adegas, nem estrebarias, nem roupas, nem palha, etc.</em></p> + +<p>N'esta fórma de decreto assigna D. Catharina, por ser ainda menor o +duque.</p> + +<p>D. João, segundo de nome, e que depois foi rei, ainda em 1635 impetrou +licença de Philippe IV de Castella para crear doze misteres, especies de +zeladores na cobrança das alcavalas que a serenissima casa exercia sobre os +vassallos.</p> + +<p>D. Duarte concedêra que o duque de Bragança podesse nomear juiz, quando o +juiz de nomeação<span class="pagenum">[26]</span> real lhe fosse suspeito. D. Affonso V confirmou. D. João +II aboliu. D. Philippe IV de Hespanha, a requerimento do duque de Bragança, que +depois foi rei, confirmou a lei de D. Duarte.</p> + +<p>Por doação de 1587 é permittido ao duque de Bragança não cumprir as cartas +dos corregedores da côrte. No mesmo anno lhe é facultado avocar a si as causas +das suas terras e <em>sentenciar como lhe parecer</em>.</p> + +<p>Em 1607 é permittido ao duque de Bragança formar chancellaria e <em>levar +direitos d'ella sobre cartas de seguro em caso de mortes negativas, ou +confessativas de morte, de resistencia a officiaes de justiça, ele, em +provimentos de officios e isenções de cargos</em>.</p> + +<p>Esta concessão derivava do animo bizarro do castelhano que pagava ao duque +de Bragança com o dinheiro dos proprios portuguezes, e do animo avarento do +agraciado que se cevava na pobreza dos seus conterraneos.</p> + +<p>Tal graça era tão pesada para os portuguezes quanto vaidosamente inepta para +o duque a do tratamento de <em>excellencia</em> que obteve em 1597, por lei +extravagante de 6 de dezembro, que só aos duques de Bragança e aos infantes a +concedia<sup><a name="L897" id="L897" href="#L899">[1]</a></sup>.<span class="pagenum">[27]</span></p> + +<p>Afóra a <em>excellencia</em>, «o duque de Bragança—escreve Rebello da +Silva—por ser o mais nobre e poderoso, foi tambem o primeiro que o soberano +exaltou, lançando-lhe elle proprio sobre o peito o collar do tosão de ouro, e +entregando-lhe o estoque de condestavel do reino, dignidade por elle pedida em +vão, como sabemos, ao cardeal-rei e aos cinco governadores.» (<em>Hist. de +Port. nos seculos XVII e XVIII</em>).</p> + +<p>Na acclamação de Philippe I de Portugal, «o primeiro que jurou foi o duque +de Bragança, o qual depois veio beijar a mão d'el-rei.» (<em>Obra cit.</em>)</p> + +<p>Esta preeminencia importava menos que a concessão então obtida de +transportar da India uma determinada porção de especiarias isentas de direitos +da alfandega.<span class="pagenum">[28]</span></p> + +<p>Constituiu-se pois a serenissima casa de Bragança o primeiro armazem de +canella e pimenta n'estes reinos; e, como não pagava direitos, a sua mercadoria +era a mais procurada por duas considerações: a barateza do genero e a qualidade +do especieiro.</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L899" id="L899" href="#L897">[1]</a></sup> Por provisão +particular de 12 de dezembro de 1605, passada em Valhadolid foi concedido o +mesmo privilegio aos duques de Aveiro, em attenção ao grande luzimento de sua +casa, pois D. Jorge de Alencastre, nascido em 1481, era filho do rei D. João II +e de D. Anna de Mendonça, que,—por via de regra estatuida—acabou +commendadeira de Santos. Aquelle mosteiro assignalou-se como harem de odaliscas +desbotadas. O referido D. Jorge, mestre das ordens de S. Thiago e Avis, senhor +de Aveiro e mais terras do infantado, foi creado segundo duque de Coimbra (o +1.º duque de Coimbra fôra seu bisavô D. Pedro, morto em Alfarrobeira), por D. +Manoel em 1500, ou por seu proprio pai, como diz <em>Portugal, De Donat. +reg.</em> n.º 410.</p> +</div> +<hr> + +<h1><a id="cap03" name="cap03">O PAÇO REAL DA RIBEIRA</a></h1> + +<p>De um manuscripto, que seria optimo livro da topographia de Lisboa, se o +terremoto de 1755 o não suspendesse, aniquilando talvez a mão laboriosa que o +escrevia, extrahimos o capitulo respectivo ao paço da Ribeira, e edificios +convisinhos. É a mais detida descripção que ainda vimos. Os escriptores, que +conheceram Lisboa antes da catastrophe, á semelhança de João Baptista de Castro +(<em>Mappa de Portugal</em>) poucos delineamentos particularisaram dos grandes +edificios da Lisboa de D. João V. Iremos transcrevendo o que nos parecer mais +grato aos antiquarios, e ainda aos que, sem grande affecto a velharias, se +comprazem em reconstruir na imaginativa as feições da sempre formosa +Lisboa.<span class="pagenum">[29]</span></p> + +<p>«O palacio real da Ribeira, situado junto das margens do Tejo, em frente de +uma das maiores praças da Europa, chamada <em>Terreiro do Paço</em>, é um +soberbo e vastissimo edificio, commodo e magestoso. É obra d'el-rei D. Manoel, +para o qual se mudou dos antigos paços da Alcaçova, e onde, desde então, +ficaram assistindo os reis d'este reino. Fórma este real edificio dentro em si +tres grandes quadras, com dilatadas galerias em roda, com admiraveis quartos, +preciosamente guarnecidos, e muitos salões, os maiores dos quaes são: a casa +chamada de <em>gala</em>, a sala dos <em>tudescos</em>, onde costuma estar a +guarda allemã de sentinella. Esta sala é uma das maiores de toda a Europa, +porque tem 130 palmos de comprimento e 76 de largura. A quadra que fica junto +da igreja patriarchal, chamada <em>pateo da capella</em>, é toda rodeada de +galerias de arcos sobre columnas, com janellas ao de cima bem rasgadas. Por +baixo d'estas arcadas ou galerias, em toda a circumferencia, ha muitas tendas e +lojas onde se acha tudo que mais precioso ha no mundo, ouro, diamantes e outras +pedras preciosas. Sahindo d'esta quadra por um vasto portico voltado ao sul, se +entra em outra quadra mais comprida que larga, tambem cercada de bellas +galerias, sobre a qual abrem as janellas do quarto das rainhas. Ahi ao pé +ergue-se<span class="pagenum">[30]</span> uma altissima e bem fabricada torre de marmore, com um magestoso +sino de relogio, e dous mais pequenos dos quartos. É obra do snr. rei D. João +V, o <em>Magnifico</em>. Tambem ha n'esta segunda quadra muitas lojas onde se +vendem cousas preciosas. Para a parte da <em>Ribeira das Naus</em>, forma este +palacio outro grande quarto, feito á moderna, obra do mesmo monarcha, chamado o +<em>quarto dos infantes</em>; e, ao cabo d'elle, abre-se uma formosissima +varanda descoberta, gradeada de marmore á volta, primorosamente lavrado, sobre +cujos pilares assentam vasos de jaspe cheios de murta e flôres.</p> + +<p>«Aquella parte d'este soberbo edificio, que olha para o oriente, e abrange a +largura toda do <em>Terreiro do Paço</em>, é occupada por uma espaçosissima +galeria, que termina em um magnifico pavilhão chamado o <em>Forte</em>. É obra +de Philippe II de Hespanha, dirigida pelo famoso architecto Philippe Terzo, +podendo affirmar-se que não ha outra semelhante em toda a Europa, como +confessam todos os estrangeiros que vem a Lisboa. D'aqui se descobre toda a +barra, e o porto da cidade, porque fica sobre a praia do rio. É tanta a +magestade d'este edificio que não vi em todo o reino de França, nem nos famosos +palacios de Louvre e Versailles tão justamente encarecidos obra tão<span class="pagenum">[31]</span> +sumptuosa; sendo para sentir que não se chegasse a concluir o risco d'esta +elegante fabrica, pois estava delineado fechar toda a praça do <em>Terreiro do +Paço</em> em roda, com outro pavilhão fronteiro no sitio onde hoje (1754) estão +as casas da alfandega: porém, é sestro já muito antigo ficarem imperfeitas +todas as obras que outros principes começaram.</p> + +<p>«Contigua a este lanço, corre uma varanda de arcos que dá serventia para a +sala dos <em>tudescos</em>, e pela fachada do sul se communica para outro +quarto, não menos magestoso com suas galerias, eirados e torreões, onde +assistem os infantes, irmãos ou filhos dos reis, e hoje serve de residencia á +rainha-mãi, D. Marianna de Austria. Tem este quarto grandes e preciosas +ante-camaras com tapeçarias e moveis inestimaveis, e pinturas dos mais insignes +authores.</p> + +<p>«Sua magestade costuma residir no quarto do <em>Forte</em>, que dá sobre o +<em>Terreiro do Paço</em>, e é o melhor do palacio, cujas ante-camaras, salas e +gabinetes encerram em si o mais precioso que póde a terra dar; porque as +tapeçarias de ouro, prata, velludo, damasco e outras sedas, quadros de +admiraveis pinturas, e toda a mobilia, dão a conhecer a soberania da magestade +que o occupa.<span class="pagenum">[32]</span> A casa dos <em>embaixadores</em> é a melhor da Europa. Ha +n'este palacio uma notavel bibliotheca, constante de muitas casas de livros, +com manuscriptos os mais raros; e, sem duvida, se estivesse em ordem como as +bibliothecas do vaticano, e de el-rei de França e da Sorbona, não lhes seria +inferior; para o que muito concorreu a curiosa applicação (!) e magnifica +despeza do snr. rei D. João V mandando comprar fóra consideráveis collecções. +</p> + +<p>«Para o lado do rio tem este palacio um bello jardim com grande eirado, com +viveiro abundante de todo genero de aves raras, especialmente pombas e rolas de +varias castas. Não se póde dar mais aprazivel espectaculo no mundo que a vista +d'este jardim sobre o mar.</p> + +<p>«O snr. rei D. João V acrescentou outro quarto a este palacio: é o que fica +no <em>largo da Patriarchal</em> e corre até ao <em>theatro da opera</em>. +Consta este augusto edificio de varios corpos e muitas galerias todas de +apuradissima arte, obra do famoso architecto Frederico, em que os marmores +apostam duração com a eternidade. Dous lanços d'este quarto abrem para o +<em>largo da Patriarchal</em>, e em meio de cada um avulta um portico +grandioso, levantado em grossas columnas marmoreas, com<span class="pagenum">[33]</span> capiteis +corinthios, excellentemente folheados. Todo o restante d'este primoroso +edificio é feito de polidissima cantaria, com formosos lavores e remates, com +oculos romanos na cimalha, que lhe dão graça e belleza. O saguão que vai do +<em>largo da Patriarchal</em> e atravessa este quarto para a +<em>Campainha</em>, é a melhor peça d'arte d'esta cidade; porque as quatro +columnas de jaspe que tem na frente de duas escadas lateraes, são +perfeitissimas no trabalho dos lavôres.</p> + +<p>«Para o lado do <em>theatro da opera</em> fórma este quarto uma quadra +pequena com sumptuosas galerias, para a qual se entra por um grande vestibulo +fronteiro á <em>Patriarchal</em>; mas a serventia ou passagem para o +<em>theatro</em> é a mais arrogante e magestatica obra de Lisboa. Aqui, os +marmores são de maneira sinzelados, que nem a cêra seria capaz de mais tenues +arabescos. A natureza é vencida pela arte; porque os bustos, as carrancas, os +festões, os relevos, os capiteis, os frisos, as folhagens são cousa tão +prodigiosa, quanto é mais de assombrar a qualidade da pedra tão rija para +impressões tão delicadas. Por cima d'este vestibulo, ergue-se uma capella +magnificentissima feita para uso particular dos patriarchas, tal e qual os +pontifices a tem em Roma. E, posto que ainda não esteja concluida, é +soberbissima pela<span class="pagenum">[34]</span> profusão de jaspes vermelhos, negros, brancos e outras +côres que lhe dão o esmalte.»</p> + +<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br> +* *</p> + +<p>Este pallido bosquejo das opulencias do paço da Ribeira era escripto em +1754. No 1.º de novembro do anno seguinte, quem procurasse estas riquezas com o +roteiro do incognito author por guia, encontraria um entulho, coroado de +linguas de fogo, e a espaços lambido pelas vagas do Tejo. E escrevia o +assombrado homem que aquelles marmores estavam alli a <em>apostar duração com a +eternidade</em>!</p> +<hr> + +<h1><a id="cap04" name="cap04">AS CRUAS ENTRANHAS DE D. MARIA I A +PIEDOSA</a></h1> + +<p>D. Martinho de Mascarenhas, marquez de Gouvêa, e filho do duque de Aveiro, +justiçado em<span class="pagenum">[35]</span> 1759, não tinha culpa no delicto de seu pai. Não obstante, +entrou muito moço nas trevas das masmorras, e lá o retranziram frio, fomes, +sêdes e terrores por espaço de dezoito annos.</p> + +<p>Em 1777 sahiu do carcere com os outros presos. E, como não tinha de seu uma +taboa—pois que a opulenta casa de Aveiro havia sido confiscada, salgada, +arrazada, absorvida—foi enviado aos frades de Mafra para lá o fartarem no seu +refeitorio. Os historiadores coevos não houveram noticia d'esta passagem do +carcere para o mosteiro. Todos os outros fidalgos, exhumados dos ergastulos á +voz de D. Maria I, tinham familia que os consolasse e restaurassem com as +cariciosas lagrimas da alegria. D. Martinho de Mascarenhas não tinha ninguem! +ninguem que lhe désse uma lagrima e um bocado de pão comido em liberdade! Fez +como os ultimos mendigos: foi ao convento de Mafra.</p> + +<p>Alli o encontrou o bispo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação, quando, +n'aquelle anno de 1777, sahiu tambem da masmorra de Pedrouços, e por lá passou, +caminho da sua diocese; mas tão cortado de oito annos de escuridade e nudez que +já em 30 de agosto de 1779 era sepultado.</p> + +<p>Do itinerário do bispo, que tenho de letra de mão, em floreados caracteres, +como brinde feito<span class="pagenum">[36]</span> áquelle prelado, vou extractar as linhas respectivas ao +marquez de Gouvêa:<sup><a name="L957" id="L957" href="#L955">[2]</a></sup> «... +Pelas 11 horas e um quarto da noite chegou a Mafra, aonde passou o dia seguinte +recebendo fraternaes obsequios da sua amada communidade. Ahi se achava o +exc.<sup>mo</sup> D. Martinho Mascarenhas, marquez que é de Gouvêa, filho +primogenito do infeliz duque de Aveiro. Distinguiu-se muito nos obsequios do +exc.<sup>mo</sup> bispo aquelle bem instruido, amado e agradavel fidalgo, que +soube tirar e trazer da sua reclusão as mais bellas qualidades de um cavalheiro +christão. Deve-se a Deus a sua indole, e a um bom mestre que teve na sua prisão +a educação, que o faz merecedor de toda a estima e fortuna que conseguiria na +boa conservação de seu pai. Elle se chama desgraçado, e deve á sua desgraça a +occasião de se fazer ainda mais benemerito pelas suas virtudes.»</p> + +<p>N'este tempo já era morta a duqueza de Aveiro, no convento do Rato, onde +servia as freiras para ganhar o seu alimento; e, por não poder comprar sapatos, +andava descalça. Este supplicio era assim benigno porque se provou que ella e +seu<span class="pagenum">[37]</span> filho de todo em todo ignoravam os intuitos regicidas do duque.</p> + +<p>O marquez de Gouvêa tinha por si a compaixão dos proprios inimigos de seu +pai. Todos o animavam a pedir á rainha a restituição de alguns dos bens +confiscados; e o maior jurisconsulto d'aquelle tempo, Paschoal José de Mello, +encarregou-se de escrever a <em>Representação</em> a D. Maria I.</p> + +<p>Este requerimento é um dos poucos trabalhos ineditos do eminente escriptor; +e a meu vêr, como historia e como supplica eloquente, benemerito de +estampar-se.</p> + +<p>A mim me cabe o prazer de o possuir e tiral-o da indigna obscuridade.</p> + +<p>É como segue:</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;">«<span class="small-caps">Senhora.</span></p> + +<p>«A innocencia opprimida, digno objecto da piedade de um principe, a quem o +exemplo de Deus serve de regra, se prostra diante do real throno implorando a +clemencia de vossa magestade, e para mais facilmente a conseguir offerece esta +humilde representação, fundada nos principios<span class="pagenum">[38]</span> da humanidade e justiça, +confirmados com uma longa serie de exemplos.</p> + +<p>«O fim das leis consistindo em dar a cada um o que lhe toca, não alcança o +juizo humano livre de illusão. Como póde sem culpa ter lugar algum castigo, nem +como seria conveniente aos interesses de um monarcha justo, o desvio da +imitação de Deus, privando da sua graça os innocentes? O que poderia haver para +alguns de problematico n'este ponto, a lei divina o decide. Ninguem deve pagar +o crime alheio por maior que seja a sua proximidade com os delinquentes, e esta +verdade foi muitas vezes descoberta sem mais soccorro do que as luzes naturaes: +é dito de um espirito famoso que uma cousa são leis, outra é a justiça +verdadeira. E, se tambem é certo que pouco faria qualquer homem em regular o +seu procedimento pelo que sómente as mesmas leis prescrevem—que pratica de +virtudes se não devera esperar de um soberano para corresponder á elevação em +que Deus o pôz tão distante do resto dos mortaes!? Os de maior sabedoria dados +pela Providencia para a felicidade dos povos: os merecedores do nome de pai da +patria, e em fim os mais felizes no governo de vastos dominios, persuadidos de +que lhes venha de Deus todo o poder, e que de sua submissão ás leis divinas +dependia mais que tudo a<span class="pagenum">[39]</span> respeitosa obediencia dos que mesmo Deus +sujeitou á sua direcção, para serem tratados como filhos, acharam sempre +injurioso o direito rigoroso, e o não poderam conciliar como dictames mais +convenientes á magestade do throno. Os pretores antigos já foram chamados os +moderadores das leis, pelas frequentes emendas do que n'ellas se permitte aos +juizes, prohibido pela honra e equidade, e entre estas as que geralmente se +acharam mais contrarias á recta razão e á humanidade foram aquellas em que o +castigo passava além do ultimo termo da existencia dos culpados, e chegava a +propagar-se até aos innocentes.</p> + +<p>«Devendo ser as penas commensuradas aos crimes, e não havendo nenhuma +proporção entre o delicto e a innocencia juntamente, pareceu estranho que, onde +a calumnia não póde inventar nada para denegrir reputações, chegassem as armas +da justiça. Contra isto parece não ter cabimento nenhuma casta de pretexto. As +qualidades da alma não se podem considerar hereditarias na fé do livre +arbitrio: a boa ordem e o bem publico não dependem sempre da maior severidade, +antes pelo contrario a experiencia em todo o tempo tem mostrado que a fortuna +acompanha a clemencia, e com ella se mudaram os genios mais ferozes. É com tudo +notorio, que em algumas leis<span class="pagenum">[40]</span> tiveram as paixões particulares maior +introducção, do que uma certa prudencia necessaria para as fazer validas no +conceito de um principe christão. A famosa lei dos imperadores Honorio, e +Arcadio, que impõe tão atrozes penas aos filhos dos criminosos de +lesa-magestade, é derogada pelo direito divino, pelo direito natural e das +gentes. Por este ultimo, porque desde que os homens principiaram a unir-se em +sociedades distinctas, todas as providencias se dirigiram a preservar a +innocencia das irrupções e violencias em que tinha degenerado a liberdade +humana. Pelo direito natural, porque destroe o principio da rectidão que a +natureza inspira a todo o ente racional, e priva a innocencia do direito que +tem a impunidade, e a todos os mais actos de justiça. E pelo direito divino, +porque em repetidos lugares das sagradas letras é defendida a innocencia com +pena eterna. Tambem foi abolida pelo direito civil, porque os mesmos +imperadores, a quem pertence, passados annos, movidos da penitencia, como dizem +graves authores, reduziram todas as penas por uma nova constituição aos unicos +réos dos delictos.</p> + +<p>«D'esta lei foi deduzida a nossa ordenação, cujos termos ambiguos e a +necessaria conciliação dos capitulos seguintes mostram, com bastante clareza, +ser a intenção do legislador que se modere:<span class="pagenum">[41]</span> com effeito immediatamente a +imposição das penas como perpetuas as faz transitorias, declarando não deverem +ter a execução se não em quanto os que a ella sujeita não forem restituidos ao +estado do seu antigo esplendor; e além d'isto a jurisprudencia julga todas as +penas exorbitantes em direito simplesmente comminativas, e não executivas. +Estas e outras semelhantes reflexões, que por brevidade se não expressam, +moveram a religião, a justiça e piedade dos gloriosos reis que occuparam o +throno portuguez a deixar na historia tantos exemplos de rebeldes executados, +como de filhos impunidos; mas conservados, e restituidos á nobreza, honras, +dignidades e bens de substituição; d'estes exemplos se referem os seguintes, e, +por parte do innocente o infeliz marquez de Gouvêa, se offerecem á real +inspecção de vossa magestade:</p> + +<p style="text-align:center;">EXEMPLOS</p> + +<p>«João Lourenço da Cunha foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e +confiscados os seus bens; porém o morgado de Pombeiro passou a seu filho Alvaro +da Cunha, a quem foi tambem<span class="pagenum">[42]</span> feita a mercê do senhorio da mesma villa, +possuido antes por seu pai. D'este descendem não só os condes de Pombeiro, mas +a maior parte da nobreza da côrte actual; porque tres filhas suas depois da +referida sentença casaram nas mais illustres casas d'este reino.</p> + +<p>«D. Pedro de Castro, senhor do Cadaval, foi sentenciado pelo mesmo crime, e +os seus bens todos confiscados; mas os morgados, e os bens da corôa passaram a +seu filho primogenito D. João; cuja filha herdeira casou com D. Fernando II, +duque de Bragança, de que descendem innumeraveis casas illustres, nas quaes com +especialidade se inclue a de Cadaval; além d'isto a D. Fernando, filho segundo +do dito delinquente, primogenito da casa de Cascaes, lhe fez depois mercê do +Paul chamado do Governador, de varios senhorios de terras, e da alcaidaria-mór +da Covilhã.</p> + +<p>«O conde de Vianna, D. João Affonso Telles de Menezes, commetteu o mesmo +crime, foi morto tumultuariamente pelo povo de Palmella, e foram confiscados os +seus bens; mas el-rei D. João o 1.º deu depois a seu filho D. Pedro de Menezes +o condado de Villa Real e capitania da cidade de Ceuta, e muitos senhorios de +terras: a filha legitima d'este D. Pedro succedeu na casa de Villa Real, e D. +Duarte, seu filho illegitimo, progenitor<span class="pagenum">[43]</span> de uma casa das mais illustres, +conseguiu, como se sabe, depois de muitas mercês, ser conde de Vianna e +alferes-mór do reino.</p> + +<p>«D. Gonçalo Telles, conde de Neiva e Faria, alcaide-mór de Coimbra, senhor +de Cantanhede, e de outras muitas terras, foi sentenciado por crime de +lesa-magestade, e confiscados todos os seus bens; mas apesar disso possuiu a +casa seu filho D. Martinho com o senhorio de Cantanhede: foi depois mordomo-mór +da rainha D. Philippa, e é progenitor da illustre descendencia que ainda se +conserva.</p> + +<p>«Diogo Lopes Pacheco de que descendem as mais illustres casas, foi havido e +reputado por traidor, sem que a seu filho João Fernandes Pacheco servisse isso +de obstaculo para a conservação da dignidade de rico-homem, que lograva, a +maior que então havia da nobreza.</p> + +<p>«Alvaro Vaz de Almada foi sentenciado pelo mesmo crime, e confiscados os +seus bens. Mas os de morgado passaram a seu filho primogenito D. João d'onde +vieram a recahir na casa do conde de Valladares, e a D. Fernando, filho segundo +do dito criminoso, de que descendem por varonia os Almadas do Rocio, foram +dados os bens da corôa, que vagaram pelo delicto de seu pai.</p> + +<p>«Martim Coelho foi sentenciado por crime de<span class="pagenum">[44]</span> lesa-magestade, e seu +filho succedeu nos morgados, e da mesma fórma nos senhorios de terras possuidas +por seu pai. Lopo de Azevedo foi sentenciado pelo mesmo crime; não tinha +morgados, mas os senhorios de terras por elle possuidos passaram a seu filho. +</p> + +<p>«O infante D. Pedro foi julgado criminoso de lesa-magestade, porém el-rei +restabeleceu seu filho em todas as honras, e dignidades antecedentes.</p> + +<p>«O snr. D. Diogo, duque de Vizeu, foi morto, e sentenciado pelo mesmo crime, +e confiscados todos os seus bens: não deixou filhos legitimos, mas um bastardo +seu que por essa circumstancia de nascimento, não succedeu nos morgados, tão +longe esteve d'elle prejudicar o crime de seu pai, que casou na casa de Villa +Real, e lhe deram o emprego de condestavel, occupado algumas vezes pelos +senhores infantes. D. Alvaro de Athayde, filho segundo da casa de Atouguia, e +seu filho D. Pedro de Athayde foram sentenciados por crime de lesa-magestade, +cuja sentença pela ausencia de D. Alvaro teve sómente a execução em D. Pedro +que foi morto, e esquartejado em Setubal: isto não obstante passou toda a casa +herdada por este ultimo de sua mãi a seu filho D. Fernando, o qual fallecendo +sem successão passaram os morgados<span class="pagenum">[45]</span> a quem tocavam; mas os bens da corôa +foram dados a D. Antonio, filho do segundo matrimonio do sobredito delinquente +D. Alvaro, e este D. Antonio foi conde da Castanheira, vedor da fazenda, e +grande privado de el-rei D. João III, e é por filhos e filhas avô da maior +parte da nobreza d'esta côrte.</p> + +<p>«Fernando da Silveira, escrivão da puridade de el-rei D. João II, filho +primogenito do barão de Alvito, foi culpado e sentenciado pelo mesmo crime: +fugiu para França aonde teve o atrevimento de escrever injuriosas cartas a +el-rei, foi morto n'este reino por ordem do mesmo soberano, a quem tinha tão +gravemente offendido, sendo o ministro da execução o conde de Pallas, catalão; +mas não obstante tudo isso, seu filho D. João foi restabelecido, e como tal +casou illustremente: foi commendador de Montalvão, governador de Ceylão, +trinchante d'el-rei D. João III, e seu embaixador a França.</p> + +<p>«D. Fernando de Menezes, terceiro filho do conde de Vianna, irmão do conde +de Loulé, foi culpado e justiçado pelo mesmo crime, e confiscados os seus bens. +Não consta que tivesse morgados; mas sabe-se que lhe sobreviveram seus filhos +dos quaes os dous primeiros casaram illustremente e possuiram os bens da corôa +que vagaram pelo delicto de seu pai. D. Diogo, segundo filho d'este<span class="pagenum">[46]</span> +mesmo, deu principio á casa de D. José de Menezes e o terceiro filho do dito +criminoso seguia a vida ecclesiastica; foi desembargador do paço, cujo emprego +n'aquelle tempo era occupado por fidalgos. O conde de Penamacor foi culpado no +mesmo crime, porém seu filho D. Garcia de Albuquerque foi restabelecido e teve +o lugar de copeiro-mór de el-rei D. João III.</p> + +<p>«O conde de Faro, irmão do conde de Monte-Mór foi culpado do mesmo crime de +lesa-magestade, mas seu filho D. Sancho de Noronha foi restabelecido; foi conde +de Odemira, senhor de muitas terras e alcaide-mór de Extremoz.</p> + +<p>«Martim de Castro do Rio foi culpado e esquartejado por crime de +lesa-magestade, porém seu filho Jorge Furtado de Mendonça foi restabelecido, +casou illustremente, teve maior estimação do que antes do delicto tivera seu +pai, e d'elle descenderam os viscondes de Barbacena.</p> + +<p>«O marquez de Villa Real, seu filho o duque de Caminha, D. Agostinho Manoel, +o conde de Armamar, e Fernando Telles, foram sentenciados por crime de +lesa-magestade: os quatro primeiros foram degolados, e o quinto queimado em +estatua: a todos se confiscaram os bens, e como só Fernando Telles tivesse +filhos, a estes passaram<span class="pagenum">[47]</span> os morgados, e os dos outros delinquentes a quem +de direito pertenciam.</p> + +<p>«Francisco de Lucena foi julgado e justiçado por crime de lesa-magestade, da +mesma fórma o senhor de Regalados, um dos Soares de Alarcão, os mascarenhas de +Montalvão, D. Raymundo, quinto duque de Aveiro, e outros foram reputados +criminosos, sentenciados como taes, confiscados seus bens; alguns d'estes +tinham descendentes, a quem passaram os morgados, e além d'isso conservaram a +mesma estimação, e lograram as mesmas honras, que teriam se seus ascendentes +permanecessem innocentes. Francisco Maldonado, e Francisco de Mendonça foram +julgados por traidores, e como taes justiçados, e confiscados os seus bens; +nenhum d'estes tinha filhos legitimos; mas Francisco de Mendonça deixou uma +filha bastarda, que conservou a mesma estimação que teria se seu pai não +commettesse o delicto; casou competentemente ao seu nascimento, com +descendencia nobre de quem tomou tambem o appellido. Muitos outros factos +semelhantes se omittem para não abusar da regia paciencia; só se nota não haver +nenhum em contrario de pessoa de certa ordem; e é tambem de admirar que até +quando por algum dos nossos monarchas foi recommendado ao seu successor que se +conservasse<span class="pagenum">[48]</span> inexoravel com os que deixava profundados na desgraça, nunca +tiveram efficacia bastante as razões politicas d'este conselho, e triumphou +contra elles a clemencia e justiça. D'ahi se seguia manifestar-se mais que +nunca n'este reino a verdade importante de ser a religião o mais solido +fundamento das felicidades e das glorias. Tudo n'este tempo pareceu por Deus +abençoado, e d'este modo se conservou, não sómente a raça respeitavel, com que +viemos a recuperar os nossos fóros nacionaes; mas concorreram tambem para a sua +exaltação muitos descendentes dos proscriptos antigos tornados pelo mesmo rei +afortunado ao estado venturoso.</p> + +<p>«Estes exemplos constituem um perfeito costume, porque concorre n'elle a +multiplicidade dos actos, a diuturnidade do tempo e a sciencia de principe. Se +foram de justiça, não é o supplicante menos innocente, nem menos fiel e +obediente ao sceptro do que aquelles em quem se não executou a lei, para que +n'elle se interrompa uma tão dilatada serie nos ditos exemplos; tanto mais não +lhe tendo valido até agora a opinião de muitos santos padres, de doutos +juristas, canonistas e theologos, que deu occasião ás leis estabelecidas nos +reinos mais policiados da Europa, dos quaes reputando-se os filhos nascidos +antes dos crimes<span class="pagenum">[49]</span> de seus paes, livres de infecção, sómente a do peccado +original são preservados de toda a pena, antes pelo contrario, tendo estado o +dito supplicante expiando por excesso de rigor o crime alheio pelo tempo que se +equipára á morte, por ser já de uma duplicada vida civil, e que pelas violentas +circumstancias da rigorosa prisão em que padeceu, lhe teria acabado a natural, +se a Providencia divina lh'a não tivesse conservado apesar dos esforços +empregados para a brevidade da sua duração,—pena nunca praticada, porque nem +as leis dos imperadores, nem a nossa ordenação, nem alguma outra impuzeram +exorbitante castigo a semelhantes filhos innocentes.</p> + +<p>«Se os mesmos exemplos são de graça, o supplicante prostrado diante do +throno de V. M. a implora, tomando por protectores, a religião e a piedade d'um +principe, que preparado de muito longe pela Providencia, com dotes +proporcionados ao magestoso encargo que lhe destinava, se nos mostra possuidor +em grau sublime de tantas virtudes christãs, que fazem o mais brilhante ornato +da sua corôa.</p> + +<p>«D'um principe a quem com antecipadas luzes, sendo evidente que para +beneficio dos que deviam obedecer-lhe seria poderoso o seu exemplo mais do que +a sua real authoridade; que por não<span class="pagenum">[50]</span> ter na terra tribunal que lhe fosse +superior, devia exceder muito em perfeição aos homens ordinarios; e que em +lugar tão eminente poderia o seu beneplacito ser a regra soberana por onde tudo +fosse decidido, passou os instantes da sua preciosa vida, em um continuo +exercicio do dominio das paixões e foi sempre o juiz mais severo de si mesmo. +D'um principe, em fim, que com estes respeitaveis fundamentos certo de ter +estabelecido o mais feliz imperio nos corações dos seus vassallos, só fará +sensivel o peso immenso da sua real grandeza aos inimigos da igreja e da +verdade. Não dará outro uso ao seu poder, senão para que se execute o que Deus +manda; e assim como alguns, que foram a delicia dos seus povos, fará consistir +a sua maior gloria em livrar da oppressão os desgraçados.</p> + +<p>«Debaixo d'estes ditosos auspicios, d'estes augustos intercessores, espera o +supplicante vêr o termo do seu abatimento, a restituição da sua liberdade, da +sua honra, do seu credito e dos bens que o direito do sangue lhe conferiu pelas +vocações de seus ascendentes. Esta graça humildemente pedida, será para o +supplicante um novo vinculo da sua submissão. E para el-rei nosso senhor um +eterno monumento da sua benigna magnanimidade.»<span class="pagenum">[51]</span></p> + +<p>Esta pungente invocação á caridade da rainha, que esvasiava os repletos +cofres do estado no mosteiro do Coração de Jesus, não valeu ao desgraçado, +sequer, uma esmola do real bolsinho. Braganças!... O marquez de Gouvêa viveu +longos annos da caridade do seu parente conde de Obidos, e já no fim da vida +recebia uma mezada que lhe dava D. João VI. D. Martinho, se bem me recordo do +que li, morreu em Lisboa, em uma humilde casa, no bairro de Buenos-Ayres, por +1804.</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a name="L955" id="L955" href="#L957">[2]</a></sup> É este o titulo do +manuscripto: <em>Itinerario do ex.<sup>mo</sup> snr. bispo conde, restituido ao +seu bispado, para o qual partiu de Lisboa no dia 11 de agosto de 1777.</em></p> +</div> +<hr> + +<h1><a id="cap05" name="cap05">D. MARIA CARACA BONAPARTE</a></h1> + +<p>Não conheci, em Lisboa, esta senhora D. Maria, bastantemente historica e +benemerita de immorredoura escriptura.</p> + +<p>Conheceu-a aquelle esclarecido arcebispo, cujos sonhos, na noite da +demencia, o leitor ouviu no sublime desarranjo chamado <em>A catastrophe</em>. +</p> + +<p>Est'outro escripto, menos nevoento e cerrado das turvações do delirio, tem +especies em que o<span class="pagenum">[52]</span> riso se trava com o compadecimento, e outras em que a +compaixão d'aquelle distincto homem nos redobra o pezar de se haver perdido no +vigor da idade tamanho espirito.</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">D. MARIA CARACA BONAPARTE, OU A BURRINHA +PROTESTANTE</p> + +<p> </p> + +<p>D. Maria Caraca teve tres estados: foi orphã, casada e viuva: seu pai morreu +na guerra da Italia combatendo contra os francezes pela independencia da +peninsula italiana; era natural de Milão, cantor da opera e grande enthusiasta +das novas idéas da republica, que haviam volcanisado o seu cerebro até o +delirio.</p> + +<p>Quando este maestro da opera viu que a França proclamava a liberdade para +tyrannisar os povos, lançou-se no partido mais hostil aos francezes da +republica sanguinaria, e morreu deixando a sua morte bem vingada.</p> + +<p>As suas idéas eram falsas e exageradas em religião e em politica; porque +seguia occultamente todos os erros e absurdos de Luthero e de Calvino: o odio, +que tinha ao summo pontifice era tão profundo, que o obrigava a blasphemar e +praguejar<span class="pagenum">[53]</span> contra os cardeaes e contra a santa sé, contra os bispos e +contra as mitras e cadeiras.</p> + +<p>Bonaparte venceu muitos ou todos os partidos que estiveram em campo contra a +França: o general da republica principiou a imperar, e a exercer a sua tyrannia +nas provincias muito antes de exaltar na metropole o throno do seu fatal +despotismo, como sempre acontece.</p> + +<p>Verres na Sicilia era mais do que imperador; Cesar sempre imperou nas +provincias. Se D. Affonso d'Albuquerque fosse susceptivel de ambição podia +usurpar o titulo de imperador da Asia; porque o povo desejava conferir-lhe +todas as attribuições do imperio.</p> + +<p>Bonaparte no Egypto era saudado como rei do fogo; Mahomet e todos os +impostores e usurpadores da sua escola recebem a mesma baixa e servil adulação +que as almas mais vis sempre se empenham em prodigalisar ao vencedor. A +sciencia, e a virtude de homem grande, consiste em desprezar estas frivolas +demonstrações e em saber reprimir todos os excessos do enthusiasmo, que se +esvaem e perdem como o fumo.</p> + +<p>Bonaparte passou como um cometa; a sua descendencia extinguiu-se e toda a +sua parentela: existe na throno de França um homem que não tem pai nem mãi, nem +alliança, nem façanhas<span class="pagenum">[54]</span> nem grandeza. É um homem que apenas aspira a fazer +com auxilio alheio uma memoria que mereça ser approvada em uma academia.</p> + +<p>Os protestantes urdem e tecem muitos generos de lisonja aos seus heroes; são +arcos e pompas de triumpho, grinaldas, festins, e poemas, representações, e +orchestras, lisonjas e desvanecimento.</p> + +<p>Um deputado da convenção nacional disse a um seu amigo e collega, que ia +para Lião em commissão sanguinaria: tu verás em Lião a minha esposa, abraça-a. +</p> + +<p>N'este tempo todos os revolucionarios levavam as suas mulheres aos +horrorosos estupros do templo profanado: a mulher que servia de modelo, e o +homem que a gozava, eram escolhidos entre todos os concorrentes sem attenção ao +estado nem á condição dos que eram designados.</p> + +<p>Na Italia tributavam em quasi toda as cidades a Bonaparte a honra de o +desposar com a mulher mais formosa; Bonaparte aceitava este tributo da infamia +protestante, gozava e passava para outra cidade, aonde era recebido com igual +torpeza.</p> + +<p>Em Milão cahiu a nefasta sorte em Maria Caraca Bonaparte; e como era filha +d'um homem morto pelo exercito francez recusou sujeitar-se<span class="pagenum">[55]</span> á estranha +condição para que a designaram, apesar de ser tão protestante como seu pai.</p> + +<p>Os influentes de Milão que andavam empenhados n'esta impia e baixa lisonja +corromperam todos os parentes da burrinha; de sorte que cedeu de seu odio +politico, e principiou a ser do conquistador.</p> + +<p>Se Maria Caraca fosse verdadeira catholica, jámais consentiria em tão grande +infamia e vileza, porque esta especie de tyrannia é mais impia e mais cruel de +que era o tributo das cem virgens para o serralho e para o harem.</p> + +<p>Uma amante ou manceba podem nutrir uma esperança honesta, e chegam ás vezes +a legitimar as suas uniões e prole; estas burrinhas são sempre a negação da +moral, o escarneo do affecto, e o epigramma do amor e da sympathia. O +protestantismo trata todas as mulheres como negras escravas. Despreza-as para +as fazer bem vis; porque a mulher deve ser semelhante ao homem que a elege, e +que a fórma e educa para sua companheira.</p> + +<p>Os milanezes deram a um tio de Maria Caraca a espectativa de um canonicato, +prometteram á sua victima dous mil cruzados de dote, e por esposo o primeiro +cantor da opera de Milão.</p> + +<p>Maria Caraca e a sua familia realisaram todas<span class="pagenum">[56]</span> as condições; os +protestantes de Milão cumpriram as suas fielmente: o casamento verificou-se, o +dote sahiu da renda da cidade, que pagou para Bonaparte ter uma desgraçada por +companheira dos seus vilissimos prazeres.</p> + +<p>Os que dispunham tão impiamente dos beneficios ecclesiasticos não podiam ter +duvida em defraudar o thesouro do municipio.</p> + +<p>Maria Caraca e seu marido seguiram o partido de Bonaparte, e na restauração +dos thronos viram-se na necessidade de emigrar para Portugal: perderam patria, +emprego, e até o sobrenome de Bonaparte de que usaram por muito tempo.</p> + +<p>O marido morreu e deixou um filho e uma filha em Lisboa; o filho exerceu +n'esta cidade por algum tempo com seu pai a profissão de musico: tambem morreu: +eu só conheci a viuva e a filha chamada D. Thereza, as quaes moraram na rua dos +Poyaes de S. Bento.</p> + +<p>Quantas vilezas, quantas degradações, e quantas tyrannias envolve o atroz +procedimento de Milão! Não ha impiedade mais provocadora, não ha infamia mais +torpe, nem injuria maior feita ao mesmo tempo á igreja e ao estado, á mulher e +ao esposo, ao amor e ao estado e á santidade do matrimonio.</p> + +<p>Estas estrangeiras eram da escola da infame<span class="pagenum">[57]</span> Bisardeli: conviviam com a +sua amante, que foi muito tempo em Lisboa uma mulher luxuriosa e depravada, que +vendia todo o fumo da perfida nunciatura d'aquelle tempo.</p> + +<p>Eu foi conduzido em mil oitocentos e quarenta como deputado para a casa das +referidas Caracas: as lojas maçonicas dispunham do meu destino traiçoeiramente +para dispor de minha vida, e vivi por mais de um anno na casa dos Poyaes de S. +Bento com outros deputados, que serviam as lojas, e que me vendiam, e +entregavam aos seus caprichos: por esta razão ouvi e aprendi o esboço d'esta +negra historia; assim agora ouço e aprendo o seu complemento e torpissimo +enredo.</p> + +<p>A inspiração é a minha sabedoria; se em outro tempo soube alguma cousa agora +declaro, que nada sei e que todas as minhas idéas são communicadas e +inspiradas, do alto céo, e no seu piissimo docel.</p> + +<p>Eu tinha trinta annos de idade, e julgava que todos os homens eram de boa +fé, e amigos do seu semelhante. Bons e excellentes para a companhia e +convivencia, os traidores são os mais lisonjeiros: eu tive seis companheiros de +casa n'esta época: só um vive, cinco já falleceram.</p> + +<p>Os meus inimigos, que são todos os vilissimos protestantes, fizeram as +maiores diligencias para<span class="pagenum">[58]</span> me matar: não houve astucia, nem enredo, nem +traição que não empregassem para conseguir este malevolo fim: é bem de presumir +que um d'estes fosse o veneno.</p> + +<p>A infanta e todos os usurpadores da casa de Bragança, o governo e todos os +seus clientes, a maçonaria e todos os seus agentes nacionaes e estrangeiros, +ora armavam contra mim o braço do cruel Mattos Lobo, ora forjavam ou fingiam +revoluções e acclamações nocturnas para me surprehender no conflicto, ora +lançavam sortes para me seguir de noite e para me matar nos arroios da cidade +ou nas encruzilhadas: ora engajavam estrangeiros e carniceiros por grandes +sommas para que me procurassem e matassem na propria casa, aonde eram recebidos +pelas infames Caracas.</p> + +<p>Um d'estes era um lanceiro, e carniceiro, que esteve na guerra do Porto, a +quem deram o preço do regicidio, e o bilhete de passagem em um brigue para +sahir para França logo que consummasse o attentado.</p> + +<p>Todas estas traições e maquinações eram cumulativas, horrorosas, e tão +desleaes e insidiosas, como as que se urdem ao innocente que não sabe ou não +póde defender-se. Eu estava no caso da mais perfeita ignorancia porque nem +sabia o que era: infelizmente a minha vida era n'este tempo<span class="pagenum">[59]</span> mui sujeita á +fragilidade e a quedas que eu não procurava, antes tentava e não sabia evitar. +</p> + +<p>Estes monstros da tyrannia do inferno pediam e repelliam a minha eleição; +porque o seu fim unico exclusivo era a minha morte; só admittiam a meu favor +algumas apparencias ou disfarces com que encobriam as suas tramas e horrores: +eram seducções, tyrannias, convites para lugares de traição, venenos, e armas +occultas. Se viam que eu vingava como advogado em Villa Real, pediam para eu +ser eleito deputado só para me atraiçoarem em Lisboa; e logo se arrependiam, e +punham todos os embaraços da sua infame escola e odiosa seita á minha eleição e +elevação; se viam que eu não era morto em Lisboa desejavam que eu fosse para +Coimbra aonde punham como ultima mira a cruz de meu martyrio e funeral.</p> + +<p>Como podia livrar-me de tão infernal perseguição? Os monstros não +consentiram mais na minha eleição e ainda me propozeram pelo circulo de +Arganil, onde fui eleito deputado no anno de 1852, mas os infames logo se +arrependeram, e cassaram ou annullaram a eleição na camara, sem me ouvir, e sem +me mostrar o processo das suas infernaes tramoias.</p> + +<p>Quem deixaria de eleger-me para todas as legislaturas depois de vêr e saber +que o meu nome<span class="pagenum">[60]</span> era singular e unico, e que a minha representação não +tinha igual em todo o mundo e redondeza?</p> + +<p>Quando concordaram na minha eleição para suffraganeo do patriarchado +entregaram a minha vida ao maldito e infernal nuncio, e ao abjecto e tredo +patriarcha e ás suas seitas e partidos para se desonerarem da tarefa que os +infames julgaram e declararam superior ás suas forças.</p> + +<p>Estes monstros esgotaram toda a traição, todas as maquinações e os seus +enganos, e não conseguiram o que desejavam: o perfido e abominavel ministro do +anti-papa chegou a convidar todas as seitas para o espectaculo do meu +envenenamento, as quaes enviaram os seus deputados e representantes para +assistir a esta scena de horror que se representou na presença da diplomacia +cruenta das actuaes usurpações da vergonhosa Europa e da America por duas +vezes.</p> + +<p>Só Deus omnipotente podia isentar-me de tão imminentes catastrophes. O nosso +fim actual é descrever a burrinha protestante e a sua bestial condescendencia e +venalidade.</p> + +<p>Um deputado que vivia na mesma casa da viuva Caraca mandou um seu criado ao +meu quarto para me offerecer uma criada da casa em que ambos viviamos; eu não +sabia desviar estes<span class="pagenum">[61]</span> golpes, que o Senhor deixava ao meu alvedrio para o +merecimento, e para que désse a devida preferencia á sua santa luz e +mandamento.</p> + +<p>O inimigo occulto era d'uma seita de usurpadores de Deus: a sua traição +vingou por pouco tempo; quando me tentou com alguma pessoa da sua familia não +conseguiu o que desejava; o criado fez-lhe a traição, que elle me urdiu a mim. +</p> + +<p>Os inimigos da nossa casa e dynastia recorreram a D. Thereza Caraca, e +fizeram-lhe o mesmo partido, que os milanezes tinham feito á sua mãi para que +me seduzisse e envenenasse.</p> + +<p>Prometteram-lhe dinheiro, um marido, e um emprego para este, e realisaram +todas estas promessas, mas eu só bebi meia taça de seu perfido veneno; na +primeira occasião que tive de lucido intervallo repelli a seductora, e todas as +suas seducções, e, como vi que se obstinava, sahi da casa.</p> + +<p>O que é a verdade? esta mulher disse que estava gravida e tentou +attribuir-me o seu ventre, ou isentar-se pelo aborto do seu nefando e odioso +mister de calumniadora; disse-me que ia queixar-se de mim ao nuncio, ou agente +occulto da junta apostolica que por este tempo estava em Lisboa, em quanto +estiveram interrompidas as relações com a côrte de Roma. Eu zombei da +perfidia<span class="pagenum">[62]</span> e do sarcasmo d'esta mulher calumniadora e embusteira; e +procurei livral-a de sua tentativa de aborto, o que felizmente consegui por +dinheiro.</p> + +<p>Esta odiosa creatura teve n'este tempo dous amantes: o primeiro era um +deputado, que a seduziu para que me envenenasse, o qual morreu pouco tempo +depois, e logo adoeceu tão gravemente que parecia um espectro, ou um cadaver +ambulante: era um agente dos pedreiros livres.</p> + +<p>Havia n'esta casa só duas pessoas da familia, a mãi e a filha; eu tive dous +enlouquecimentos de falso amor; repelli duas tentativas da mesma perfida +natureza e nojenta cavillação.</p> + +<p>D. Thereza tocava dous instrumentos e cantava, tinha um amante para casar +que a acompanhava no canto e com o violoncello: eu comprei em quanto alli +estive dous pintasilgos ensinados a tirar agua com o bico, os quaes foram ambos +mortos por um gato, que havia em casa.</p> + +<p>A criada tambem teve dous amantes, um era sapateiro coxo, que a procurava e +requestava para casar: ambos realisaram os seus casamentos.</p> + +<p>A filha da viuva Caraca tinha na mesma casa um estabelecimento de capella, e +inculcava-se ao respeitavel publico como modista: a mãi tinha o seu +estabelecimento de hospedaria.<span class="pagenum">[63]</span></p> + +<p>Eram dous estabelecimentos: a casa tinha sahida para duas ruas e duas portas +para a rua dos Poyaes de S. Bento: viveram alli commigo cinco deputados, dous +delegados, dous juizes do districto, dous governadores civis, dous juizes da +antiga magistratura, dous Domingos dos quaes um era o atraiçoado e o enganado +por todos os outros: eramos ambos deputados pelo circulo de Villa Real: os +outros eram deputados por outros circulos.</p> + +<p>Os delegados foram Domingos Vieira, e José Manoel Botelho, os juizes foram o +José Maria da Chamusca e o Quesado, os governadores civis foram o dr. José +Maria e João Pedro Pessanha, os juizes antigos foram o mesmo José Maria e +Domingos Vieira, e não preciso dizer quem eram os Domingos, senão que eu sou já +tão diverso do que era, que não pareço o mesmo. Os cinco e seis deputados +formavam as cinco e seis qualidades já referidas.</p> + +<p>Quem poderá calcular as lagrimas que tenho chorado para carpir os peccados e +os erros da minha mocidade, e para os emendar com divina graça e misericordia? +está-me parecendo que reunidas faziam o maior lago dos nossos passeios e +jardins.</p> + +<p>Actualmente não como carne nem peixe não<span class="pagenum">[64]</span> bebo vinho nem cerveja, +passam-se quinze dias e tres semanas sem que prove doçura, nem chá, nem café, +nem chocolate, como por medida e por peso, e não uso de carne nem de genero +algum de tabaco, não passeio, nem vou aos espectaculos; prefiro andar a pé e só +peço ao Senhor que se compadeça da minha alma.</p> + +<p>A burra protestante é bem parecida com a vacca, e com o burro da seita: eu +não conversava com estas em pontos ou artigos da santa fé, o seu veneno era a +maior traição e os seus reconditos apenas me revelaram parte da sua historia de +Milão.</p> + +<p>Eu sempre assisti á missa mais catholica de que tinha noticia, e não +suspeitava em ninguem cavillação ou perfidia tão negra e atroz, que chegasse a +ostentar fé falsa da diabolica e tenebrosa consciencia: agora sei que ha muitas +d'estas embrutecidas consciencias, e não duvido que as duas Caracas fossem +d'este hediondo esconjuro.</p> + +<p>Os maçons são em geral d'esta sanhuda seita do inferno; os usurpadores de +Portugal pactuam com o demonio, e entregam as almas para poderem possuir as +leis das santas casas do divino Salvador.</p> + +<p>Mas estes venenosos monstros apenas gozam a presa: o direito santo e eterno +foge d'elles<span class="pagenum">[65]</span> como foge a cerração quando nasce a aurora que vem remir o +mundo.</p> + +<p>Os mesmos inimigos recebem outro engano ou desengano semelhante quando +tentam usurpar o poder da santa igreja para legitimar a sua tyrannia.</p> + +<p>A falsa communhão dos protestantes está no estado: não póde legitimar os +actos do poder usurpador e dominador.</p> + +<p>O estado catholico está na igreja, e por isso legítima os seus poderes todas +as vezes que recorre para este fim ao poder espiritual do summo pontifice. A +era actual é a perfeição da disciplina.</p> +<hr> + +<h1><a id="cap06" name="cap06">LIXO</a></h1> + +<p>O snr. Joaquim Antonio de Sousa Telles de Mattos, critico erudito e menos +conhecido que merece, publicou, em Evora, um opusculo intitulado: <em>A +imparcialidade critica do snr. Joaquim de Vasconcellos.</em> Allude á +<em>Analyse critica da versão do <span class="small-caps">Faust</span></em>. A +obra do critico do snr. visconde de Castilho é um livro crasso que morreu de +tabardões, e jaz no <em>carneiro</em> das livrarias esperando que o dente roaz +da carcôma o pulverise por modo que<span class="pagenum">[66]</span> as letras portuguezas se desenfezem +d'aquellas escamas de ignorancia e odio.</p> + +<p>O snr. Telles de Mattos colligiu algumas necedades graudas que denominou +<em>vasconcellismos</em>.</p> + +<p>Abre a lista, com a novidade—<em>declinar</em> verbos. Eis a passagem onde +se encontra o lerdo descôco do critico de Castilho: <em>Nenhum doutorando dos +ultimos cinco annos em Coimbra, estaria no caso de</em> declinar <em>os verbos +auxiliares allemães, sem merecer palmatoada...</em> (pag. 26). E acrescenta o +snr. Mattos: «Quando eu vi o <em>Sejai</em> e <em>Estejai</em> julguei que era +erro typographico dos <em>germanismos</em> annunciados; vendo porém +<em>declinar</em> verbos, percebi que o snr. Vasconcellos saberá tanto de +allemão como qualquer analphabeto nascido debaixo do paternal carinho de +Bismarck.»</p> + +<p>Observa que a pag. 57 o snr. Vasconcellos inclue a Suissa na Allemanha; e +acrescenta: «A Suissa pertence á Allemanha na geographia do snr. Vasconcellos; +ella deve ser equiparada á sua grammatica.»</p> + +<p>Nota que o snr. Vasconcellos escrevendo: <em>os manes do Olympo</em> (pag. +128) désse a perceber que os deuses olympicos tem manes. <em>Manes</em> tanto +significam almas dos mortos como deuses infernaes. A mythologia do snr. +Vasconcellos é como a geographia, e não desdiz da grammatica.<span class="pagenum">[67]</span></p> + +<p>Cita, na pag. 208, o imperativo do verbo <em>ser</em>, <em>apud</em> +Vasconcellos: «<em>Sejai</em> pois corajoso e apparecei como modêlo.» E a pag. +507: «<em>Sejai</em> tão infames quanto quizerdes.» E a pag. 337: +«<em>Estejai</em> dentro ao golpe da sineta.» <em>Coup de clochette</em>—golpe +de sineta, segundo Vasconcellos. Em portuguez, traduz-se <em>badalada</em>, ou +<em>toque de sineta</em>. Desculpem esta observação os alumnos de instrucção do +3.º anno dos lyceus.</p> + +<p>«Desço eu (diz o snr. Vasconcellos a pag. 239) sem cessar de cima para +baixo.» O snr. Telles de Mattos ajunta: «Leitor, agradece a fineza: sem o +pleonasmo, ficavas percebendo com certeza que se desce de baixo para cima.»</p> + +<p>Os cães, <em>apud</em> Vasconcellos, grunhem. A pag. 273: «Tu vês um cão... +elle <em>grunhe</em>.» A pag. 277: «Não grunhes, cão!» E torna: «Quer o cão... +<em>grunhir</em>.» Nunca se usurpou tantas vezes a linguagem ao cevado.</p> + +<p>Se o snr. Vasconcellos estudasse portuguez pelo <em>Methodo</em> de +Monteverde, teria aprendido nas <em>Vozes dos animaes</em> do snr. Pedro Diniz +como vozêam cães e porcos.</p> + +<blockquote style="font-size: 0.9em;"> + <em>Muge</em> a vacca; <em>berra</em> o touro;<br> + <em>Grasna</em> a rã; <em>ruge</em> o leão;<br> + O gato <em>mia</em>; uiva o lobo;<br> + Tambem <em>uiva</em> e <em>ladra</em> o cão.<br> + <br> + ..........................<br> + <em><br> + Chia</em> a lebre; <em>grasna</em> o pato;<br> + Ouvem-se os porcos <em>grunhir</em>;<br> + Libando o succo das flôres,<br> + Costuma a abelha <em>zumbir</em>, etc. </blockquote> + +<p>Tambem Vasconcellos, traduzindo Gœthe, descobriu no cão um +<em>caroço</em> (pag. 285). Diz-lhe o snr. Telles que <em>Kern</em> significa +<em>pevide</em> ou <em>caroço</em>, quand se trata de fructos; mas n'outras +conjuncturas, é <em>amago</em>, <em>substancia</em>, etc. O snr. Vasconcellos, +quando tirava os significados de <em>Kern</em>, achou <em>caroço</em>, e +pespegou-o logo no cão; por isso o cão encaroçado <em>grunhiu</em> tres vezes. +Podéra...</p> + +<p>A pag. 474, escreve Vasconcellos: <em>ouvir por um oculo.</em> Eu esta +phrase não a estranho. Mais me espantára, se elle dissesse: <em>vêr por uma +corneta acustica.</em></p> + +<p>Dá-nos Vasconcellos a pag. 503 Tantalo <em>enterrado até ao queixo na +agua.</em> Póde uma pessoa estar <em>enterrada</em> na agua, e estar +<em>submergida</em> na terra. Tambem não estranho isto; mais me assombra a +coragem da ignorancia, se é que não ha um fado irresistivel e tolo que nasceu +comnosco, ou <em>com nós nasceu</em>, como diz Joaquim de Vasconcellos a pag. +339.</p> +<hr> + +<h1><a id="cap07" name="cap07">BIBLIOGRAPHIA</a></h1> + +<p><em>Escriptos humoristicos em prosa e verso do fallecido <span +class="small-caps">José de Sousa Bandeira</span>, precedidos da biographia e +retrato do author. Porto, 1874.</em>—O berço da liberdade em Portugal foi +embalado com as trovas politicas do redactor do <em>Azemel</em> e do +<em>Artilheiro</em>. Bandeira é o patriarcha da facecia jornalistica entre nós. +A sua graça era da velha escóla de José Daniel e de José Agostinho de Macedo. +Não pespontava de delicadeza: ia direita aos beiços do leitor e abria-lh'os +forçosamente em casquinadas de riso. Hoje em dia, o riso é mais preguiçoso, +quando folheamos estas paginas do livro escripto ha 38 annos. São cinzas, e +cinzas esquecidas os estadistas que José de Sousa Bandeira motejou no +tumultuoso palco politico de aquelle tempo; todavia, a historia não prescindirá +de consultar os <em>Annaes da imprensa da liberdade restaurada</em>, quando +houver de assentar de vez os vultos dos grandes obreiros do governo +representativo; e, entre todos os archivistas das luctas d'esses dias, José de +Sousa Bandeira foi o mais independente e afouto. Custodio José Vieira,<span class="pagenum">[70]</span> +talento insigne e apreciador inflexivel dos homens e das cousas, escreveu a +biographia do jornalista com quem muitas vezes pleiteou na sua juventude de +publicista. É um lavor incompleto, dado que na vida de Sousa Bandeira lhe não +esquecessem os lances capitaes. É incompleto, por que as 83 paginas escriptas +deviam prolongar-se até completar a historia e o proseguimento da restauração +dos direitos civicos em Portugal. Custodio Vieira revela-se, n'este eloquente +escripto, historiador severo. No estylo, usa as concisões de D. Francisco +Manoel de Mello, e o atticismo dos historiographos que melhormente +exemplificaram a arte de narrar. Se elle um dia poder furtar-se aos braços da +sua amada e amantissima jurisprudencia (que amores!) póde ser que a historia se +preze de brindar os portuguezes com os fastos da sua emancipação.</p> + +<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br> +* *</p> + +<p><em>No Minho, por <span class="small-caps">D. Antonio da Costa</span>. +Lisboa, 1874.</em>—Apenas publicado, divulgou-se o gracioso livro de D. +Antonio da Costa, escriptor provado em ramos de variada litteratura. Os +<em>Tres mundos</em> foi obra que affirmou os distinctos dotes revelados nos +livros anteriores. Este do <em>Minho</em> é<span class="pagenum">[71]</span> o repousar suave de +circumspectas canceiras, que asseveram meditação, estudo, espirito reflexivo e +capacidade para tentativas avessas do indolente genio portuguez. Escrever 310 +paginas ácerca d'estas moutas verdejantes do Minho, sem enfastiar, é condão de +quem sabe quebrar com as diversões da arte a monotonia da natureza. E, depois, +jornadear por estradas reaes, pernoitar por estalagens urbanas—em que não ha +vislumbre de urbanidade, nem sequer misericordia—passar uma noite em Braga, é +sentir-se a mais robusta e inventiva alma encodear de uma crusta de estupidez +que nos faz pensar que temos no peito uma tartaruga sôrna. Braga, a +scintillante esmeralda d'esta manilha de pedras finas que D. Affonso Henriques +tirou do pujante braço de Hespanha, Braga seria a querida dos forasteiros de +todo o mundo, se as camas das suas hospedarias não fossem alfobres de insectos +<em>apteros</em> com seis patas, e <em>hemipteros</em> com azas, segundo +Cuvier. Sei que no Indostão ha hospicios em que as pulgas são pensionadas e +medicadas nas suas enfermidades. Sei que os indostanicos respeitam o dogma da +metempsychose, e se deixam sugar devotamente por ellas; mas nem Braga é +Aurengabad, nem eu sou da raça mahratta, nem tenho razões bem assentes para +desconfiar que o espirito de<span class="pagenum">[72]</span> minha avó se compraz em me morder no hotel +Real de Braga.</p> + +<p>Não encontro memoria d'este martyrio no livro do snr. D. Antonio da Costa. +Attribuo a omissão á delicadeza do martyr. Ha tormentos tão sujos que o +relatal-os em gemidos é indecencia consignada no <em>Compendio de +civilidade</em> do snr. João Felix. Se bem me lembro, Boileau cantou a pulga em +magnificos alexandrinos; hoje em dia; nem á pedestre prosa se consente rolar +uma lagrima sobre a cutis sevandijada por estes e outros carnivoros creados em +um dos sete dias genesiacos... para satisfação e proveito do homem.</p> + +<p>O meu amigo D. Antonio da Costa, convisinhando do snr. Manoel dos Malhos, +que roncava impenetravel ás harpias do hotel, chorou copiosamente no capitulo +intitulado: <em>Uma insomnia.</em> Quem sabe se, n'aquella noite, as luras +epidermicas da casca de Manoel dos Malhos attrahiram as hordas a desenxovarem +n'ellas as suas larvas e nymphas? Eu, n'aquellas estalagens, encontro sempre +dous Manoeis dos Malhos, um de cada lado, e os outros bichos no meio.</p> + +<p>Formal e substancialmente são admiraveis os capitulos d'este livro, +intitulados <em>O Bom Jesus do Monte</em>, <em>Um castello feudal em 1873</em>, +<em>A mulher do Minho</em>, e a <em>Ultima impressão</em>. N'estas paginas +que<span class="pagenum">[73]</span> fecham o livro reluzem os entranhados desvelos com que o snr. D. +Antonio da Costa, ha tantos annos, afaga as criancinhas carecidas da segunda +alma da educação. Este capitulo é um obelisco de gratidão publica e amoravel a +perpetuar a memoria de D. Maria Francisca dos Santos Araujo, abastada senhora +de Leça que fez do seu ouro um quinto evangelho de propaganda caritativa. «Ah, +senhora!—escreve o eloquente enthusiasmo do obreiro da instrucção—devem de +ser formosos os vossos momentos, quando na escóla que edificastes vos achardes +rodeada das meninas que se estão educando no vosso bafo, e não menos quando +sahindo d'alli festejada por ellas, ao passardes pelas ruas de Leça, chegarem +ás portas todas aquellas mães com as filhinhas mais pequenas ao collo, e fordes +vendo todas essas mães apontarem para vós, dizendo alvoroçadas para as +crianças: <em>É aquella!</em>»</p> + +<p>O livro <em>No Minho</em> está julgado por 1:500 leitores que o já possuem; +e, todavia, annunciou-se a excellente obra nos primeiros dias de julho. Não são +triviaes estes triumphos em Portugal, repetidos com as mais notaveis producções +do benemerito escriptor. Aquelle grave e philosophico livro dos <em>Tres +mundos</em>, relido com intelligente ardor e creio que já reimpresso, attesta +que renasce<span class="pagenum">[74]</span> n'este paiz o afan do estudo, e o gosto da instrucção solida. +Deviamos vir a isto, depois do cataclysmo de palavrorio e marmanjarias com que +uns sycambros andaram por ahi a querer derrancar a mocidade. Não póde o +illustre escriptor frizar de todo a sua indole peculiar ao genero +escoteiro—digamol-o assim—d'estas cousas levissimas e quasi futeis que se +escrevem em jornadas de fronteiras a dentro. O modêlo, que Almeida Garrett +imitou dos francezes, é um estorvo que desanima. O romance, interposto na +viagem, era em 1840 um dôce engodo, e foi grande parte na prosperidade do +livro. Estavamos ainda no periodo romantico. A menina dos rouxinoes devia ser +contemporanea dos bardos que se inspiravam das proprias cabelleiras á +Saint-Simon. Os rapazes d'aquelle cyclo acreditavam em Garrett, e andavam +saturados do amor dos Espronceda e Musset.</p> + +<p>Hoje, não. O livro do snr. D. Antonio da Costa é, a intervallos, +condimentado das grandes questões do dia, da vitalidade regeneratriz que estúa +no pulso de todas as forças. Se parte dos leitores o desejam mais futil, ha de +haver muito quem assim o estime em dobro. Eu, de mim, achei n'estas trezentas +paginas o sorriso alegre, a meditação melancolica, o rebate saudoso de perdidos +contentamentos, o estimulo a considerações<span class="pagenum">[75]</span> de porvindouros beneficios a +filhos e netos—consolação unica, mas santa, que a Providencia dá aos que não +esperam nada da vida presente.</p> + +<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br> +* *</p> + +<p><em>Phantasias e escriptores contemporaneos, pelo <span +class="small-caps">visconde de Benalcanfôr</span>. Porto, 1874.</em>—Ricardo +Guimarães, com o camartello do folhetim, derruiu o carroção, no Porto, ha vinte +annos. O carroção tinha, por aquelle tempo, dous seculos de moda. Fôra +inventado na rua das Cangostas para uso de uma familia obesa, formada de quinze +pessoas adiposas. Esta familia derreteu-se no estio de 1650; mas o carroção +ficou.</p> + +<p>No lapso de duzentos annos, o carroção, parado no largo da Batalha, com a +lança vermelha atravessada nas sôgas dos ramalhudos bois, viu passar e +desapparecer todos os vehiculos adelgaçados pelo cepilho do progresso. O +carroção escancarou as goelas, e riu da americana, da victoria, do phaetont, do +landeau, da caleche, do dog-cart, da tipoia, do coupé, do tilburi, do daumont, +do brougham, do mail-coach, do poncy-chaise, do groom, do break. Ricardo +Guimarães, fundibulario da hoste moderna, carregou a<span class="pagenum">[76]</span> funda de estylo, +remessou-a ao Golias de couro; e o gigante, arrastado pelos bois que mugiam +saudosos da palha-milha que comiam á porta do theatro lyrico, dispersou os +membros por Barcellos, Famalicão e regiões visinhas. O milagre não fôra obra de +um homem nem de uma geração de espiritos finos. Fôra o estylo de Ricardo +Guimarães—o estylo que é a dynamisação de todas as forças, desde a polvora até +á dynamite, desde a alçaprema de Archimedes até á machina de Papin. Era uma +delicia o escrever d'este rapaz, e outra delicia o modo como entornava no papel +os brilhantes paradoxos, as hyperboles ridentes, as metaphoras originalissimas. +Era meu companheiro de hotel (que hotel, ó Ricardo!) em 1855. Escrevia artigos +politicos de madrugada, na calma, entre meio dia e uma hora, do seguinte +feitio: tinteiro e papel no sobrado; elle adaptava-se horisontalmente ao +colchão, na postura de quem espreita a profundidade de uma cisterna, descia o +braço direito até ao pavimento, e escrevia lá em baixo. Assim tratava Ricardo +Guimarães, de bôrco, a politica do <em>Nacional</em>, no soalho, como quem +deita migalhas a uma pêga.</p> + +<p>Depois, um dia, enfardelou os fraques e os vernizes, os retratos de algumas +mulheres formosas e os economistas mais avançados, desdobrou<span class="pagenum">[77]</span> as azas da +sua arrojada phantasia, deu um sorriso aos seus amigos, e... adeus! D'ahi a +pouco, deputado, esposo, pai. Fez-se um silencio de annos na sua voga de +escriptor. Os seus camaradas, que haviam afivelado com elle a espora de cana em +algaras litterarias, trajaram luto quando se convenceram que o <em>visconde de +Benalcanfôr</em> era o epitaphio de <em>Ricardo Guimarães</em>.</p> + +<p>Eil-o que resurge com as feições mais accentuadas, o sorriso menos expansivo +e mais hervado de ironia, a graça mais palaciana, a satyra com oculos verdes +para que a não acoimem de estouvada, e as antigas imagens de sua invenção com +decote que não deixe vêr a curva da espadua.</p> + +<p>D'esta reforma, salvou o visconde de Benalcanfôr as facetas resplandecentes +do estylo, deveras portuguez na palavra, francez no boleio da phrase—ligação +que é uma formosura, quando o escriptor tem a consciencia d'essa difficultosa +amalgama.</p> + +<p>Tem o visconde publicado os melhores livros que possuimos ácerca de viagens. +Este das Phantasias seria aquelle que eu mais encarecesse em quilates de graça +e critica, se me não visse ahi tão amigavelmente indulgenciado em onze paginas. +Ponderei, gravemente, meu caro Ricardo, n'este livro o teu capitulo, intitulado +<span class="small-caps">elogio mutuo</span>.<span class="pagenum">[78]</span> Tu, com certeza, antes +queres de mim uma reminiscencia da juventude, que os tardios e quasi inuteis +gabos feitos ao teu assignalado talento.</p> + +<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br> +* *</p> + +<p><span class="small-caps">Bernardino Pinheiro</span>. <em>Amores d'um +visionario, romance historico original do seculo XVI. 2 tom. Lisboa, +1874.</em>—Se a linguagem das civilisações adiantadas e os pensamentos de +perfectibilidade humana podessem pensar-se e exprimir-se no seculo XVI, este +romance do snr. Bernardino Pinheiro corresponderia, cabalmente, á qualificação +de <em>historico</em>. A illusão desfaz-se a cada pagina, sempre que os +personagens entendem na questão do progredir social. Que Antonio de Gouvêa, o +heroe do livro, depois de ouvir, na Europa litteraria e convulsa de reformas, +as theorias dos adversarios do papa e do dogma, propagasse idéas e palavras +novas em Portugal, é possivel; mas que a freira do Salvador, e D. Margarida de +Lencastre, e a escrava liberta discreteassem tão eloquentes e progressistas +ácerca dos direitos do homem, da emancipação do escravo, da liberdade do +pensamento, repugna aceital-o a razão, posto que de bom animo nos affeiçoemos á +vehemencia e esplendor d'essas phrases intempestivas.<span class="pagenum">[79]</span></p> + +<p>Mulheres illustradas, se as houve em Portugal no seculo XVI, são umas que o +snr. Pinheiro nos mostra em um dos admiraveis capitulos do seu livro. As +paginas descriptivas de <em>Uma academia feminina do seculo XVI</em> quadrariam +em livro da mais selecta historia do reinado de D. João III. Alli estão as +Sigéas, que não gozam fama de pudentissimas escriptoras, se um poema erotico as +não calumnía. Pois, n'esses completos moldes que o snr. Pinheiro nos deu da +sciencia feminil, está o maximo, o ultimo estadio do alcance intellectual da +mulher. Soror Maria, a monja que, de escrupulosa, não ousava erguer o véo a sós +com o amante, revelou incapacidade para discorrer tão liberrima, na carta a +Gouvêa, ácerca das regalias do coração. Escrevendo ácerca de uma visionaria, +diz a freira ao seu amado: «Os espiritos convictos são logicos. O fanatismo tem +as suas leis fataes—e, por vezes, posto que raras, felizes...» E acrescenta +com intelligente ironia: «Que enormissimos criminosos que nós +somos:—amamo-nos, e acreditamos no evangelho puro!... Quando serão no mundo +livres o pensamento e o amor?!»</p> + +<p>A freira em 1548, podia delinquir porque era mulher; mas não saberia +desculpar o seu delicto com argumentos d'aquella natureza. E soror Maria, se +tivesse no corpo o demonio incubo da<span class="pagenum">[80]</span> philosophia, quando abriu a porta da +cerca monastica ao amante, sahiria por ella, em vez de, colhida em flagrantes +amorios, pedir misericordia á mestra de noviças. Teria feito o que fez depois, +independente de luzes que lhe mostrassem a nullidade e tyrannia dos votos de +reclusão, castidade e pobreza.</p> + +<p>Esta macula é resgatada por nitidissimas paginas que manifestam o +historiador avantajando-se ao romancista. O capitulo XVIII (<em>Illustrações em +Coimbra</em>) é labor bastante a graduar um espirito culto na convivencia dos +varões insignes do seculo XVI. A disposição do grupo é magnifica. Alli se +admiram os luzeiros que chammejaram á volta da alma negra de João III e não +vingaram esclarecel-a.</p> + +<p>O quadro do auto de fé em que Antonio de Gouvêa é salvo da fogueira pela +cohorte dos escravos, é tão vigorosamente desenhado quanto inverosimil. Os +frades de S. Domingos não se deixavam embair por tretas nem sancadilhas á sua +credulidade, quando queimavam herejes da laia de Gouvêa. Não obstante, esse +trance, pelas commoções que produz, dispensa-se dos realces da naturalidade. +</p> + +<p>Em summa, <em>Os amores d'um visionario</em> é um livro que merece +graduar-se entre os bons romances<span class="pagenum">[81]</span> portugueses, tanto pelos predicamentos +da imaginação, como pelo subsidio de historia que presta ás pessoas desaffectas +a demorados estudos.</p> +<hr> + +<h1><a id="cap08" name="cap08">POBREZA ACADEMICA</a></h1> + +<p>O secretario da academia real das sciencias de Lisboa, José Bonifacio de +Andrade e Silva, escreveu a monsenhor Ferreira Gordo, pedindo-lhe um donativo +para ajuda de se pagar o busto do duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança, +que a mesma academia desejava collocar em uma das suas salas. O sabio monsenhor +respondeu com circumspecção e graça por meio da seguinte carta, que está +inedita:</p> + +<p> </p> + +<p style="font-size:small;">«Poderá v. s.ª certificar em meu nome á academia, +que eu estou disposto a concorrer com o contingente, que me couber, guardada a +proporção arithmetica, para o monumento, que pretende dedicar á memoria sempre +saudosa do seu illustre fundador, e que aproveitarei<span class="pagenum">[82]</span> de bom grado todas +as occasiões, em que possa dar-lhe mostras do meu reconhecimento pelo muito, de +que lhe fui devedor. Mas não se achando todos os socios n'este empenho, e +fallecendo á maior parte d'elles meios, para fazer donativos d'esta natureza, +parece-me que a academia teria resolvido com mais prudencia, e circumspecção +decretando que a despeza do dito monumento sahisse inteiramente dos seus +fundos. Que póde doar sem detrimento seu um religioso, não sendo commissario da +Terra Santa, prior geral dos conegos regrantes de Santo Agostinho, abbade geral +do mosteiro de Alcobaça, ou ministro provincial dos menores observantes de +qualquer das duas provincias de Portugal e Algarves? Que rendimento tem um +professor regio de humanidades, um lente da universidade, um ministro, e +qualquer outro funccionario publico, que na fallencia de bens patrimoniaes, lhe +não seja indispensavel para sua mantença? Dirá alguem que a academia roga, e +não manda, e isto é verdade; mas como ninguem quer o fóro de pobre, nem ser +marcado com a nota de pouco officioso, esta rogativa virá a ser para a maior +parte dos socios, o effeito de um rigoroso mandamento. De mais se a academia é +real, se todos os seus trabalhos se dirigem a fazer prosperar, e florecer os +estados de quem lhe deu este titulo, e a subsistencia, e se até agora tem +gozado a singular prerogativa de ser presidida por uma personagem de sangue +real, acho muito improprio, que a despeito, de tudo isto, se lhe queiram dar os +attributos de uma<span class="pagenum">[83]</span> irmandade religiosa, fazendo dependente da caridade de +seus irmãos, e não do seu patrimonio, qualquer despeza extraordinaria, que +emprehender. Perdôe v. s.ª como secretario a liberdade, que tomei, que como meu +amigo que é, tenho certeza me desculpará, se o que acabo de escrever se +encontrar com o seu parecer, que muito respeito.»</p> + +<p> </p> + +<p>Os academicos de hoje são outra casta de gente, quanto a pelintraria. Se não +fazem bustos, é porque ainda estão vivos todos os sujeitos que hão de +resuscitar no marmore e no alabastro. Aquelles salões desertos hão de ser +povoados de estatuas, quando as cangas de sabios que hoje lavram os baldios da +sciencia, se foram a pascer nos almargens da immortalidade. Medita a geração +nova no modo de os entrajar, pois que a funeral casaca destôa das arrojadas +manias e sabenças de cada sujeito. Creio que deveremos apparecer, nós, os +academicos, cada qual com seu caranguejo symbolico na mão operosa. O mocho, a +ave de Minerva, apenas cabe de direito ao snr. João Felix Pereira, o pervigil +diurno e nocturno.<span class="pagenum">[84]</span></p> +<hr> + +<h1><a id="cap09" name="cap09">SOBRE ANSELMO</a></h1> + +<p>Usam dizer algumas pessoas assalteadas por bandidos da imprensa: «Não +respondo, porque o insultador é canalha.» Isto é um desacerto. Não ha canalha +irrespondivel. Todo o infame que calumnía representa uma parcella da opinião +publica. E essa parcella, malevola ou enganada, crê esmagar o calumniado quando +o interprete de seus odios ou preconceitos tem no espinhaço a couraça repulsiva +do escaravêlho, invulneravel aos bicos da penna e aos loros do látego.</p> + +<p>Anselmo é um como isso. E, todavia, eu respondo a um grupo de sujeitos +representados na imprensa por Anselmo. Separal-o individualmente, e +atagantal-o, isso é que de modo nenhum. O<span class="pagenum">[86]</span> sapo esguicha um pus fetido +quando lhe verberam as pustulas do couro. Não se bate em homens d'esta laia, +desde que o pelourinho e o açoute foram expungidos da lei.</p> + +<p>Convém saber que Anselmo não escreve: assigna. Theophilo Joaquim Fernandes é +o tubo intestinal por onde Anselmo estrava a alma excrementicia; ao mesmo tempo +que Anselmo é a testa polida (não é tartaruga: finge) em que Joaquim escreve as +suas protervias a carvão. Theophilo, o ignorante que eu abafei com a critica +risonha, sem lhe impor alçada ás devassidões notorias, resfolga nas iras do +outro. É a vingança negra do mais safado caracter que ainda sahiu desembolado +ao curro das letras.</p> + +<p>No impresso assignado por Anselmo de Moraes encontrei duas aleivosias que me +doeram por estar conspurcado n'ellas o nome serio do snr. José Gomes Monteiro, +invocado como authoridade no meu descredito. São as seguintes:</p> + +<p> </p> + +<div style="font-size: small;"> +<p>«Da cadêa começou Camillo a abrir brecha para a rapina na casa Moré, +mandando ahi mostrar um romance de descompostura ao dignissimo procurador +regio, que não lhe tolerou certas obscenidades no carcere; o amigo do +procurador regio, gerente da dita casa, teve de pagar o romance para poupar um +desgosto<span class="pagenum">[87]</span> ao magistrado respeitavel. Ainda não ha muito tempo que o snr. +José Gomes Monteiro se refugiou no nosso escriptorio para evitar o encontro de +Camillo na loja Moré, que ia alli armar uma <em>escroquerie</em>, com o fim, +dizia elle, de pagar uma decima...</p> + +<p>«Ultimamente comprometteu a sorte de Vieira de Castro com a sua defeza; +explorou a desgraça do amigo com o drama o <em>Condemnado</em>, que vendeu a +dous individuos.»</p> +</div> + +<p> </p> + +<p>Pedi ao snr. José Gomes Monteiro, antigo gerente da casa Moré, e editor do +<em>Condemnado</em>, que se dignasse ajudar-me a interpretar estas deshonrosas +referencias a um romance que s. exc.ª me pagára para não ser publicado, a uma +fuga de s. exc.ª no escriptorio de Anselmo para se furtar a uma +<em>escroquerie</em>; e finalmente á dupla venda do drama <em>O Condemnado</em> +a s. exc.ª e a outro simultaneamente.</p> + +<p>O snr. José Gomes Monteiro, na volta do correio, respondeu d'esta fórma:</p> + +<div style="font-size: small;"> +<p> </p> + +<p style="text-align:right;"><em>Snr. Camillo Castello Branco.</em></p> + +<p> </p> + +<p>Meu amigo.</p> + +<p> </p> + +<p>Acabo de receber a carta de v. datada de hontem, incluindo o impresso que +Anselmo de Moraes fez aqui circular. Apresso-me em responder-lhe.</p> + +<p>O primeiro periodo marcado por v. allude ás <em>Memorias do +Carcere</em><span class="pagenum">[88]</span> cuja editação v. me veio propor em seguida á do <em>Amor de +Perdição</em>. Ajustamos a publicação d'essa obra antes de eu ter lido o +original, que só no dia seguinte me foi entregue. Li então o manuscripto aonde +encontrei algumas expressões que me pareceram offensivas da reconhecida +probidade do conselheiro Camillo Aureliano da Silva e Sousa, então procurador +regio junto á Relação do Porto. Por este motivo tive de devolver o original a +v. rogando-lhe houvesse por nulla a nossa convenção, por isso que eu não podia +ser editor de um livro em que de certo por erradas informações, era maltratado +um amigo meu, que eu tinha na conta de magistrado integerrimo e de honradissimo +cavalheiro. V. veio immediatamente procurar-me e aceitando o meu testemunho +como a expressão da pura verdade, confessou ter sido mal informado ácerca da +immaculada probidade do meu amigo. Voltou o manuscripto devidamente reformado e +v. não se limitando a expungir as phrases que eu havia condemnado, fez +generosamente justiça ao honrado magistrado. Publicou-se o livro e elle mesmo +dará testemunho da inexactidão do que se affirma no citado impresso, de que eu +me vira obrigado a pagar um romance escripto por v. contra o meu amigo para lhe +poupar um desgosto.</p> + +<p>Confesso não ter guardado rigorosa reserva sobre este incidente, do que +sinceramente me peza, visto que a minha indiscrição deu lugar a que os factos +fossem desfigurados em desabono de v.<span class="pagenum">[89]</span></p> + +<p>V. não precisa de certo que eu o justifique, nem me justifique a mim de me +haver um dia refugiado no escriptorio do signatario do impresso para me +subtrahir a um pedido de v. Declaro com toda a ingenuidade não me recordar +d'esse grave capitulo de accusação dirigido não sei se a mim se a v. O que +afoutamente posso asseverar é que nas muitas transacções commerciaes que temos +tido encontrei sempre em v. a maior franqueza e inexcedivel probidade. Não é +por isso verdade que v. depois de me haver vendido a propriedade do drama <em>O +Condemnado</em> o tivesse subrepticiamente vendido tambem a outra casa editora. +É verdade que d'este drama se veio a fazer no Rio de Janeiro uma contrafacção, +mas tenho completa certeza de que v. fôra inteiramente alheio a esta fraude, +que a falta de um tratado com o Brazil infelizmente authorisa.</p> + +<p>V. fica authorisado a fazer d'esta minha carta o uso que lhe convier.</p> + +<p>Sou como sempre</p> + +<p style="text-align:right;">De v. etc.</p> + +<p>Porto, 25 de julho de 1874.</p> + +<p style="text-align:right;"><em>José Gomes Monteiro.</em></p> +</div> + +<p><span class="pagenum">[90]</span></p> + +<p>Apraz-me grandemente o publico testemunho d'esta carta, no momento em que as +minhas relações sociaes e commerciaes com o snr. José Gomes Monteiro se +desatam. Eu não poderia, sem impostôra inutilidade, fingir-me amigo de s. exc.ª +desde que do contexto da sua carta se deprehende que o snr. Gomes Monteiro não +se recorda bem se fugiu de mim para o escriptorio de Anselmo. Figura-se-me mais +consentaneo ao honesto caracter do snr. Gomes Monteiro negar-se pela palavra a +um favor pedido, e não pelo escondrijo no escriptorio de Anselmo a quem, pelos +modos, s. exc.ª não disse <em>que nas muitas transacções commerciaes que tivera +commigo encontrára sempre a maior franqueza e inexcedivel probidade</em>.</p> + +<p>Tirante esta feição mais attendivel do impresso, o remanescente é +indiscutivel nos prelos e nos tribunaes. Tenho vergonha das infamias alheias, e +respeito os nomes das pessoas que ahi se ultrajam.</p> + +<p>No entanto, não me esquivo a tocar dous episodios da minha biographia, que +lá vem contados:</p> + +<p>Que eu guardara cabras em Villa Real.</p> + +<p>Quer o leitor saber onde Theophilo foi esquadrinhar este indecoroso lance da +minha vida? Em um livro meu, chamado <span class="small-caps">duas horas de +leitura</span>,<span class="pagenum">[91]</span> escripto ha 20 annos. Sou eu que, em uma carta ao meu +fallecido amigo José Barbosa e Silva, conto assim o caso das cabras:</p> + +<p> </p> + +<p style="font-size: small;">«Aos meus dez annos, levantou-se uma tempestade no +seio da minha familia. Uma vaga levou meu pai á sepultura; outra atirou commigo +de Lisboa, minha patria, para um torrão agro e triste do norte; e a outra... +Não merece chronica a outra: arrebatou-me um esperançoso patrimonio. Foi bem +pregada a peça, para que eu não tivesse a impudencia de nascer, a despeito da +moral juridica, filho natural de não sei que nobre. Disseram-me que uma lei da +snr.ª D. Maria I me desherdava. A boa da rainha, se tivesse amado mais cedo um +certo bispo, não legislaria tão cruamente para os filhos do peccado; +Denominava-se a <em>piedosa</em>, pela mesma razão que um rei nosso, soprando a +fogueira de vinte mil hebreus, se chamou o <em>piedoso</em>... Fui educado +n'uma aldêa, onde tenho uma irmã casada com um medico, irmão de um padre, que +foi meu mestre. O mestre podia ensinar-me muita cousa que me falta; mas eu era +refractario á luz da gorda sciencia do meu padre. Fugia de casa para a serra, +dava muitos tiros ás gallinholas e perdizes... O meu gosto era (<em>hic</em>, +cabras) pascer o rebanho de casa por aquelles saudosos valles. Todavia, minha +irmã oppunha-se a este humilde serviço. Dizia-me cousas que eu não percebia +ácerca da minha dignidade, reprehendia os<span class="pagenum">[92]</span> meus baixos instinctos, +attrahia ao seu voto o marido e o padre, e cortava-me o rasteiro vôo, +escondendo de mim a clavina, o polvorinho, os salpicões, a brôa, e a cabacinha +da aguardente. Não obstante, eu pedia tudo de emprestimo, e ia com as ovelhas +para o monte. Passava lá o dia inteiro, sentado nas espinhas d'aquelles +alcantis fragosos, sempre sósinho, scismando sem saber em quê, engolfada a +vista nas gargantas dos despenhadeiros.»</p> + +<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br> +* *</p> + +<p>A respeito de cabras, não ha mais nada nos archivos impressos, que eu deva +transmittir á posteridade.</p> + +<p>Ai! meu saudoso rebanho! Provavelmente, d'este lidar com cabras é que me +ficou o sestro e coragem de aparar as marradas de cabrões, como Anselmo.</p> + +<p>N'essa mesma carta a Barbosa e Silva, conto eu que ajudava diariamente á +missa a cinco sacerdotes. O sarrafaçal deixou escapar o ensejo de dizer ao +publico que eu tambem fui sacristão.</p> + +<p>E a historia da filha do taberneiro, que me deu um fato novo e uma moeda +para eu lhe casar com a filha; e vai eu pego a fugir com o fato e a moeda e +deixo a rapariguinha perdida!<span class="pagenum">[93]</span></p> + +<p>Desbragada porcaria!</p> + +<p>Ó meus amigos de Villa Real, ou lá d'onde se passou o caso infando! Procurai +a miseranda menina; e, se a topardes n'alguma gafaria—derradeira paragem da +espiral das perdidas—trazei-a a casa d'este Anselmo para lhe agradecer o +pregão que a vinga, e para lá se rehabilitar, vendo-se honesta em contacto com +certo exemplo femeal de podridão d'alma e corpo.</p> + +<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br> +* *</p> + +<p>Despedi-me, ha dias, de assignante da <em>Actualidade</em>. Estou +arrependido. Devemos todos contribuir com alguns cobres para que Anselmo de +Moraes não seja forçado pela necessidade a <em>picar-nos</em> (giria d'elle) o +paletó no cunhal da viella da Neta. Em quanto aquelle archi-pulha tiver gazeta, +o seu pão, embora deshonrado, garante-nos do assalto nocturno. Não lhe leio +mais o jornal; mas dou-lhe a esmola dos 240 reis mensaes. Mande-os receber em +quanto a espinha em via de amollecimento me consentir subscrever com seis +patacos, a fim de que elle me não liquide a cadêa do relogio.</p> + +<p>É verdade: affirma o impudentissimo caloteiro<span class="pagenum">[94]</span> que tem lá uns titulos +do saldo de nossas contas.</p> + +<p>A fim de que esses documentos appareçam, offereço o seguinte e perpetuo +supplemento a todos os numeros da <em>Actualidade</em>:</p> + +<p> </p> + +<p>ANSELMO DE MORAES É RADICALMENTE LADRÃO, COM UM CORTEJO DE TORPEZAS +ESPECIAES E RARAS NOS LADRÕES MAIS DESPEJADOS.</p> +<hr> + +<h1><a id="cap10" name="cap10">AO PUBLICO</a></h1> + +<h2>AO PUBLICO</h2> + +<p>Distribuiu-se ahi ha dias com generosa profusão um libello famoso por +motivos a que sou completamente estranho, mas em que nem por isso quizeram que +eu deixasse de figurar.</p> + +<p>Indignou por ahi a todos a alludida publicação, sem exceptuar os proprios +amigos ou parciaes do signatario d'ella, o snr. Anselmo<span class="pagenum">[98]</span> de Moraes. Dou-me +com isso por bem vingado das malevolas intenções que me apontaram ás iras +atravessadas do insultador enraivecido. Não ha desforço pessoal que valha +tanto, e, ainda que o houvesse, não seria eu que o tirasse. A dignidade nem +sempre manda procurar o aggressor, antes ás vezes exige que se evite.</p> + +<p>O meu fim é, pois, sómente esclarecer o publico, a quem respeito, como devo, +e de quem quero continuar a merecer bom conceito, ácerca da perfida insinuação +com que se intentou manchar a minha probidade commercial, que só d'isto posso +aqui fallar sem offensa da moral publica. Obrigou-me aquella insinuação a +dirigir-me ao exc.<sup>mo</sup> snr. José Gomes Monteiro, que, como homem de +bem, se dignou dar-me o testemunho que se segue:<span class="pagenum">[99]</span></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;"><em>Snr.</em></p> + +<p> </p> + +<p><em>Respondendo restrictamente á carta que de V. acabo de receber, cumpre-me +declarar, como o exige o meu caracter, que durante o tempo que sob a minha +direcção V. serviu a casa da snr.ª viuva Moré, nunca d'ella subtrahiu cousa +alguma ou quantia e prestou regularmente as suas contas.</em></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;"><em>De V.</em></p> + +<p><em>Porto 28, 7, 74.</em></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;"><em>attento venerador</em></p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;"><em>José Gomes Monteiro</em><span class="pagenum">[100]</span></p> + +<p> </p> + +<p>Depois d'isto seria de mais tudo quanto eu podesse dizer. Fica o publico +habilitado para fazer o seu juizo.</p> + +<p style="text-align:right;"><em>Ernesto Chardron.</em></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">FIM DO 8.º NUMERO</p> + +<p> </p> +<hr> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">EMENDAS AO N.º 7</p> + +<p> </p> + +<p>Pag. 47, lin. 15: quer-me <em>parece</em>, emende: quer-me +<em>parecer</em>.</p> + +<p>Pag. 95, lin. 10: <em>king-charles</em>, emende: <em>king's-charles</em>.</p> + +<p> </p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem +não póde dormir. Nº8 (de 12), by Camilo Castelo Branco + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) *** + +***** This file should be named 28128-h.htm or 28128-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28128/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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