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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
+póde dormir. Nº8 (de 12), by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº8 (de 12)
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: February 19, 2009 [EBook #28128]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+
+
+
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+
+
+NOITES DE INSOMNIA
+
+OFFERECIDAS
+
+A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
+
+POR
+
+Camillo Castello Branco
+
+
+PUBLICAÇÃO MENSAL
+
+
+N.º 8--AGOSTO
+
+LIVRARIA INTERNACIONAL
+DE
+ERNESTO CHARDRON
+_96, Largo dos Clerigos, 98_
+
+PORTO EUGENIO CHARDRON
+_4, Largo de S. Francisco, 4_
+BRAGA
+
+1874
+
+
+PORTO
+
+TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
+
+62--Rua da Cancella Velha--62
+
+1874
+
+
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+
+
+NOITES DE INSOMNIA
+
+
+SUMMARIO
+
+
+_Os salões, pelo exc.mo visconde de Ouguella--Subsidios para a
+historia da serenissima casa de Bragança--O paço real da
+Ribeira--As Cruas entranhas de D. Maria 1.ª, a Piedosa--D. Maria
+Caraca Bonaparte--Lixo--Bibliographia--Pobreza academica--Sobre
+Anselmo--Ao Publico_
+
+
+
+
+OS SALÕES
+
+
+CAPITULO VI
+
+UMA AURORA
+
+ Opprimé par des déspotes, qui, á leur tour, étaient menés par les
+ jésuites, et asservi sous le pouvoir sans frein des prêtres et des
+ nobles, ce petit peuple menait ainsi, sans aucun doute, pendant la
+ première moitié du dix-huitième siècle, l'existence la plus
+ miserable parmi toutes les nations de l'Europe.
+
+ GERVINUS.
+
+ L'histoire n'est jamais faite, on la refait sans cesse.
+
+ VOLTAIRE.
+
+ Les hommes embrassent volontiers avec une ardeur violente les rêves
+ qu'ils se font, mais ils ne veulent point qu'on les leur impose.
+
+ ARSÈNE HOUSSAYE.
+
+ Ignota obscurae viderunt sidera noctes,
+ Ardentemque polum flammis, coeloque volantes
+ Obliquas per inane faces....
+
+ LUCANO.
+
+Nos confins do globo, nas regiões arcticas, ao tocarmos as ultimas zonas
+habitadas, toma a existencia proporções fabulosas. Expiram, alli, todas
+as ousadias, todos os commettimentos, todas as aspirações dos mais
+intrepidos navegadores.
+
+É longo o obituario dos homens illustres, que teem perecido,
+abandonados, n'estas epopêas ignoradas. Seriam famosas as chronicas,
+onde se compendiassem as façanhas, os esforços heroicos, as luctas
+incessantes, e a coragem inexcedivel dos martyres, que vão perdendo a
+vida em busca d'aquellas solidões polares.
+
+Todas as proezas que a antiguidade nos narra: os doze trabalhos de
+Hercules, a entrada no formoso jardim das Hesperides, as excursões em
+demanda do vellocino de ouro, o ousado empenho de transpor o labyrintho
+de Creta, o maravilhoso e demorado cerco de Troya, a viagem aventurosa
+de Ulysses procurando a patria, a retirada heroica de dez mil gregos
+pelo interior da Asia, as conquistas de Alexandre, as invasões de
+Sesostris, a fundação de Sparta, de Athenas, de Roma, e de
+Carthago--finalmente as narrações de Homero, Xenophonte, Herodoto,
+Diodoro, Thucydides, Quinto Curcio, Tito Livio, Plutarcho, e Eutropio, e
+ainda as creações grandiosas, que remontam aos tempos pre-historicos dos
+vedas, do Maha-Bharata, do Ramayana, do Kalidasa, e do Boudha
+Sakya-Mouni, todos estes mythos, todas estas epopêas, todas estas
+lendas, todas estas luctas titanicas, todas estas épicas aventuras são
+debeis esforços, limitadissimos exageros, vagas e triviaes descripções,
+em presença dos arrojos de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de
+Christovão Colombo, de Américo Vespucio, de Magalhães, de Franklin, de
+Cooper, e de não sei quantos outros navegadores e descobridores
+temerarios, que teem avassallado os dous oceanos, indo, alguns d'elles,
+povoar, com os seus esqueletos, as regiões remotas dos gelos polares.
+
+Ha um parallelo formidavel e tremendo entre a vida physica e moral da
+humanidade. As leis, que regem o espirito e a materia caminham a par.
+
+O alvorecer da liberdade, quando um povo desperta do lethargo da
+escravidão, assemelha-se á luz vaga e indecisa, com que a natureza
+previdente, e sempre mãi, acode á escuridão das immensas noites
+arcticas.
+
+Contemplemos.
+
+Em phases astronomicamente determinadas, o facho de luz, que arrasta
+este globo, acariciando-o, e alimentando-o carinhosamente--como em berço
+de ouro, e em fachas de purpura--deixa, na solidão e nas trevas, por
+longas e frigidissimas épocas, as regiões que se aproximam dos polos.
+
+Esconde-se o astro do dia. Levantam-se tempestades inexcediveis, rangem
+nas proprias raizes os arbustos, que uma temperatura, milagrosa para a
+vida humana, permitte e consente que sobrevivam a uma lucta constante;
+fogem espavoridos os ferozes animaes, que o Creador concedeu áquelles
+climas, e o homem, ainda que afeito a esta existencia inexplicavel,
+busca em cavernas, cavadas no proprio gelo, um refugio, um abrigo contra
+estas tormentas, em que a terra parece agonisar.
+
+E quando a noite vai longa,--longa a ponto que parece
+interminavel,--quando a presença d'um ente organisado assusta e apavora,
+porque os vultos dão visões d'espectros, n'aquelles cataclysmos e
+inversões de todas as normas por que physicamente se governa a
+humanidade--do seio d'este cahos, do vacuo de todos estes ruidos, da
+solidão infinda de todas estas planuras assomam os lampejos d'uma luz
+vaga, indecisa, e bruxuleante--robustecem-se, avivam-se, condensam-se,
+animam-se, fulguram, e em duas columnas investem com o horisonte,
+aproximam-se do zenith, e desdobram-se n'uma corôa de fogo, que
+resplandece, offusca, e afaga na pallidez dos planos em que se desenha,
+os montes, pyramides e arcarias de gelo com que as solidificações da
+agua teem revestido a terra.
+
+É uma aurora polar.
+
+O phenomeno termina.
+
+As trevas adensam-se, os ventos impetuosos enfurecem-se, o gelo augmenta
+de volume, as plantas não receberam calorico que as aviventasse, e a
+terra conserva-se fria, inerte e abandonada.
+
+É porque o calor e a luz foram ephemeros, e a natureza continua envolta
+no seu sudario de neve, até que o luzeiro vivificador, o centro de toda
+a nossa existencia venha expandir os seus raios, as suas frechas de ouro
+por sobre o nosso planeta.
+
+A liberdade é como o sol.
+
+Só ella vivifica, só ella alenta, só ella esparge os seus raios de luz
+pelas escuridões da intelligencia humana. Só ella rasga os véos
+densissimos, que entenebrecem o senso moral dos povos. Só ella exalta
+Galileu, Copernico, Luthero, Leibnitz, Calvino, Voltaire, Rousseau,
+Beccaria, Filangière, Darwin, Proudhon, Lamennais, Bentham, Comte,
+Stuart Mill, Littré, Michelet, Quinet, e toda esta phalange de
+apostolos, que evangelisam a palavra de Deus, e pregam a boa nova,
+explicando as maravilhas da creação, d'envolta com os hymnos, que
+offerecem ao Eterno.
+
+As auroras polares são simulacros de vida--são phenomenos
+meteorologicos, que fulgem e desapparecem, sem que a terra estremeça de
+contentamento, sem que a natureza acorde do somno lethargico das noites
+arcticas, sem que as regiões do gelo dispam o alvo manto, que as
+envolve, exhaurindo a luxuriante vida, e os ricos thesouros da sua
+vegetação por todos os poros dos seus ferteis e uberrimos torrões.
+
+Quando os povos não estão ainda preparados para as grandes evoluções
+sociaes, quando as nações jazem adormecidas, nos pesadelos d'uma lenta e
+demorada tyrannia, as aspirações d'um grupo diminuto de homens, o credo
+da nova crença, symbolisado n'uma obscura e limitada pleiade, as
+esperanças do futuro, formuladas pelos videntes e vates d'uma nova era,
+são como a semente perdida de que falla o evangelho--não brota, não
+germina, não rebenta, não fecunda, não viceja: fica entalada nas pedras,
+ou comem-na as aves do céo.
+
+As evoluções sociaes, sonhadas nos improvisos e imprevidencias dos
+homens, que anceiam por precipitar acontecimentos inopportunos ou
+prematuros, e que tentam arrastar os tempos, na insensatez com que os
+Titans ousaram escalar o Olympo--segundo a maravilhosa lenda da
+mythologia grega--são auroras polares, que fulgem, brilham, e se
+extinguem, deixando o frigidissimo gelo da descrença no coração dos
+povos que imaginaram regenerar.
+
+Assim foi a revolução de 1820.
+
+Na noite de ignorancia, de fanatismo, de escravidão e de miseria, que ia
+tão longa, e tão frigida, como nas trevas dos polos, ergueu-se um
+luzeiro ephemero, passageiro, e rapido, que atravessou o horisonte
+politico da patria, e esvaiu-se e dissipou-se, como um meteoro, deixando
+submersa, nas trevas da mais feroz oppressão, a nobilissima Lusitania.
+
+A aurora polar de 1820 dissipou-se.
+
+As trevas de 1828 surgiram e adensaram-se com o nefasto nome de
+usurpação.
+
+O vaticinio da emancipação dos povos, o credo dos videntes da boa nova
+foram afogados no completo desconhecimento da soberania popular. Ficou o
+Lazaro amortalhado, no sepulchro, sem escutar nem entender o verbo
+harmonioso da redempção.
+
+Por vezes, no fundo d'um horisonte diaphano e transparente, recorta-se
+um ponto imperceptivel, um atomo negro, que só vistas perspicazes
+descortinam. Vai o baixel singrando em aguas remansadas, impellem-no
+ventos prosperos e adequados a uma facil navegação; e subitamente o
+atomo torna-se colosso, o ponto negro transforma-se em tempestade, e os
+elementos desencadêam-se, enfurecidos, sobre o mareante, confiado e
+seguro na tarde bonançosa e estival dos climas tropicaes.
+
+Assim nasceu a revolução.
+
+As colonias do norte da America, esmagadas pela soberba oppressão da
+velha Albion, proclamaram-se independentes. A França educada já nas
+luctas dos philosophos e encyclopedistas, affeiçoada ás theorias e
+doutrinas de Descartes, Voltaire, Rousseau, D'Alembert, Hobbes e Diderot
+auxiliou esta grande lucta de emancipação; e a Europa, viu, com
+assombro, o Novo-mundo aceitar a republica como um systema de governo, e
+sustentar a democracia como uma verdade inconcussa, que parecia o
+complemento da missão do Nazareno.
+
+É que o christianismo recuára diante da escravidão. «Dai a Cesar o que é
+de Cesar», dissera o Messias; e a França, como n'um Sinay de luz e de
+transformações sociaes, formulára os direitos do homem, e esmagára, sem
+remorso, todas as oppressões, e todas as tyrannias.
+
+A França é o capitolio da raça latina.
+
+Nem uma só vez a nobre terra das Gallias deixou de regar com o proprio
+sangue um grande principio. E ainda, quando arrastada pela louca ambição
+d'um homem desvairado, percorria a Europa, na sofreguidão das
+conquistas--ainda assim, cada patrona dos seus legionarios era um fóco
+de propaganda, e uma ameaça tremenda para os despotas ungidos pelo
+direito divino.
+
+Os excessos da revolução franceza--se os houve--foram a consequencia
+logica e fatalmente necessaria de tantos seculos de carnificinas,
+d'escravidão, e de infamias. «Os grandes só são grandes, porque nós
+estamos de joelhos: levantemo-nos», clamava Seyés ao raiar a aurora da
+mais esplendida revolução, que narram os annaes de todos os povos. E o
+morticinio dos albigenses, a destruição dos huguenotes, as fogueiras das
+inquisições, os encerramentos nas torres, e nas bastilhas, o estupido
+orgulho, e os ignobeis e torpes privilegios d'uma aristocracia banal e
+dissipadora, os barbaros direitos feudaes, a miseria publica na sua
+hediondez, e todas as vergonhas, todos os abusos e todos os vexames dos
+governos absolutos foram anathematisados e pulverisados á face dos
+grandes principios, que os vultos homericos da assembléa nacional e da
+convenção ousaram proclamar.
+
+É d'aqui, e só d'aqui, que data a emancipação da humanidade.
+
+A fé religiosa podéra ser--e foi--um balsamo de consolação. Era um
+esteio para as consciencias, era uma valvula de segurança, forjada pelo
+clero, pelo sacerdocio, pela theocracia, para obstar ao desencadeamento
+de todas as indignações, e apagar, com as adulteradas palavras de
+misericordia e resignação, as justas represalias legadas por milhares de
+gerações.
+
+As palavras de Christo, no Golgotha: «Perdoai-lhes, meu Pai, porque
+elles não sabem o que fazem», ficaram sendo, na amphibologia da sua
+applicação, o pára-raios de dezoito seculos de abusos, de ultrajes e
+torpezas.
+
+Rebentou a revolução franceza. E os raios d'este Sinay da biblia da
+humanidade encheram de luz a palavra justiça, em toda a severa e
+inexoravel verdade do vocabulo romano: «_Jus sum cuique tribuendi._»
+
+Os decemviros d'esta era famosa prestavam, pela primeira vez, homenagem
+á dignidade de todos os entes racionaes: viam e consideravam todos os
+homens irmãos e iguaes.
+
+Como é triste e demorada a perfectibilidade humana! Quantos seculos de
+trevas, para luzir no craneo do rei da creação esta simplicissima
+verdade: todos os homens são iguaes!
+
+E são.
+
+O genio e o idiotismo formam os dous polos d'esta arca santa, d'este
+tabernaculo do pensamento, da vastidão do cerebro, onde a consciencia
+moral, quando culta e desenvolvida, desperta sofrega dos seus direitos,
+e irrompe-lhe a intuição generosa e espontanea dos seus deveres e
+obrigações.
+
+As colonias hespanholas responderam, com enthusiasmo, a este clamor
+unisono da America do norte, e por sobre os dous oceanos voou a mensagem
+de que o Novo-mundo estremecia de jubilo ao contemplar a liberdade. Foi
+isto bastante para que o movimento revolucionario se propagasse na
+metropole. E ao passo que os autocratas da Europa forjavam uma alliança
+reaccionaria, com o intuito pueril de levantar um dique á torrente
+caudal, que trasbordava nas planuras habitadas pela raça latina, a
+revolução caminhava triumphante no meio dia do nosso continente, e
+aceitava, como modêlo, a constituição hespanhola de 1812.
+
+Era a democracia que levantava o collo, e arremessava o cartel aos
+privilegios de dezoito seculos. As centelhas luminosas da liberdade, as
+chispas d'este fogo sagrado irrompiam tão espontaneas, e tão vivazes,
+que pareciam vulcões abertos pelas forças temerosas da electricidade,
+fluidos magneticos, que em correntes subterraneas pretendiam surgir dos
+seios da terra, em quanto esta se debatia, agonisante, nas convulsões
+d'uma nova transformação.
+
+Em 1820 estremeciam os dous mundos.
+
+A Hespanha, o Brazil, o reino de Napoles, o Piemonte, e os proprios
+christãos avassallados na Grecia despertavam ao clamor da emancipação
+dos povos. Irradiava o sol da justiça. Dissipavam-se as trevas na
+consciencia humana. Desde o Chili até Boukarest coroavam-se as montanhas
+de fachos de luz, e como se uma só vontade, um só incentivo, um só
+impulso dirigisse as nações, echoava em todos os pontos o sagrado nome
+da liberdade. Ouvia-se o ruido das velhas instituições que desabavam. O
+clero e a nobreza perdiam o prestigio, a força, o poderio; e a
+humanidade, que ouvira absorta a palavra omnipotente da convenção
+nacional, estremecia jubilosa e reverente, como a virgem de Nazareth ao
+escutar a saudação celestial do anjo mensageiro.
+
+Durou pouco a esperança. Detraz dos hymnos festivaes vinham os crepes
+funerarios. Após esta radiante aurora seguiram-se as trevas da reacção,
+os carceres, as galés, as deportações, os exilios e os morticinios. A
+velha Europa estendeu os pulsos e deixou-se algemar.
+
+O mais hediondo mal da escravidão é o habito torpemente adquirido de ser
+escravo.
+
+O maior crime da tyrannia é educar as gerações para a abjecção moral,
+para a aniquilação da dignidade individual, e para a ignorancia dos
+proprios deveres.
+
+Todavia as evoluções sociaes não dependem da vontade dos homens.
+
+As legitimas penalidades, na terra, imprimem-se implacaveis e cruentas
+em quem pretende destruir o que de si é immutavel e eterno. O
+desconhecimento completo das leis physicas e moraes da humanidade
+arrasta, as mais das vezes, repetidos cataclysmos e sangrentas
+catastrophes.
+
+A arca santa do mosaismo é o symbolo immaculado da indestructibilidade
+das normas, por que o universo se rege.
+
+Todos os seculos teem uma feição propria, uma formula predominante, por
+que se inscrevem na historia. Assim se exprime o seculo de Pericles, o
+seculo de Augusto, o seculo dos Medicis, o seculo de Luiz XIV. Detraz de
+cada um d'estes epithetos, que são como uma synthese, caracterisada
+n'uma epigraphe, transparecem grandes commettimentos, estudos longos e
+pacientes, como de benedictinos, luctas heroicas, trabalhos herculeos,
+progressos infinitos, que formam a vereda, representada pelos marcos
+milliarios da civilisação dos povos. Definem-se, pois, os seculos por um
+grande pensamento, e gravam-se com uma nova idéa. E á medida que as
+civilisações se multiplicam, as transformações são mais rapidas; e as
+evoluções sociaes precipitam-se. É assim que os phenomenos da
+electricidade e a força do vapor teem hoje, desde a Oceania até aos
+confins do occidente europeu, a humanidade perplexa e surprehendida n'um
+contacto constante, e as idéas transmittem-se com a velocidade da luz.
+
+Mas as gerações que se teem ido succedendo, em seculos determinados para
+a sua missão--egoistas e imprevidentes, foram legando ao seculo dezenove
+a solução de todos os formidaveis problemas com que hoje nos achamos a
+braços. Nós--entregues e devotados ás sciencias d'observação, aos
+estudos analyticos, á razão critica, á severa e leal escolha da pureza
+dos elementos que constituem o nosso credo, e a encyclopedia
+fundamentada dos actuaes conhecimentos humanos, encontramo-nos face a
+face com a futura solução de todos os problemas religiosos,
+scientificos, litterarios e sociaes, que a machiavelica prudencia de
+todos os defensores dos rigorosos principios authoritarios vai deixando
+accumular.
+
+Queixem-se de si, e só de si os zelosos apostolos da reacção--phariseus
+de todas as épocas, e de todas as raças,--quando a democracia implacavel
+e inexoravel na sua marcha, arrastada involuntariamente pela sua
+velocidade adquirida, achar de subito a formula inteira de todas estas
+temerosas soluções.
+
+Mil oitocentos e vinte é apenas uma data.
+
+Echo remoto da revolução franceza, grito agonisante d'uma nação
+exhausta, indolente, ignorante, fanatisada e escrava, o povo balbuciou
+sem consciencia nem fé a palavra liberdade, e adormeceu de novo, no seio
+de theorias que não entendeu, de principios que não comprehendia, para
+acordar d'este somno febril e agitado nas tristes e luctuosas
+carnificinas do caes do Tojo.
+
+A inviolabilidade da vida humana era uma utopia e um escarneo para uma
+geração, que se estorcia convulsa, ainda, no medo e pavor com que a
+feriam em face os sombrios e ferozes carceres da inquisição.
+
+A democracia nem era apenas um sonho n'estes devaneios da classe media.
+O proletariado, quando muito, seria uma casta de parias, que d'envolta
+com o pauperismo merecia os ergastulos e gemonias da preconisada
+republica romana.
+
+As republicas gregas e latina não eram comprehendidas pela ausencia
+total das sciencias modernas. E se os vocabulos se entendiam nos
+lexicons da época, desconhecia-se, pelo menos, a essencia da organisação
+e constituição de povos tão diversos. A philologia e a ethnographia eram
+como hieroglyphicos para uma sociedade que apenas queria destruir. O
+seculo dezoito vivera em parte dos discursos emphaticos de Raynal,
+Volney e Rousseau, e das historias fabulosas, escriptas pelos aulicos e
+cortezãos de todas as vaidades e pompas mundanas.
+
+A democracia, na rasgada e imponente accepção do verbo supremo, havia de
+irromper, mais tarde, n'este luzeiro immenso, que será a redempção da
+humanidade.
+
+ VISCONDE D'OUGUELLA.
+
+
+
+
+SUBSIDIOS PARA A HISTORIA DA SERENISSIMA CASA DE BRAGANÇA
+
+
+II
+
+A VENIAGA
+
+Sem preambular com as repetidas accusações (veja Rebello da Silva,
+Soriano, Pinheiro Chagas) escriptas contra a cobarde inercia de D. João,
+duque de Bragança, que desatravancou ao usurpador castelhano o accesso a
+Portugal, vou arrolar com miudas provas as verbas que representam o
+valor da honra e do patriotismo do avô de D. João IV.
+
+Possuo um codice que pertenceu ao archivo da casa de Bragança, escripto
+em 1687, com estes dizeres na folha de rosto: _Doações do real estado e
+casa de Bragança, conforme se vão desbrindo em papeis e documentos
+authenticos de que em summa se dá noticia._
+
+Convém saber que os successores do duque D. Fernando, degolado em tempo
+de D. João II, nunca poderam obter de D. Manoel, de D. João III, da
+rainha regente, de D. Sebastião e do cardeal, parte dos privilegios que
+o filho de Affonso V lhes jarretára. A absoluta independencia da corôa,
+e o absoluto dominio em Villa-Viçosa, nunca poderam os duques
+extorquil-o á condescendencia dos soberanos.
+
+Obteve-o, porém, o avô de D. João IV, em fevereiro de 1581, da velhaca
+magnanimidade de Philippe II de Castella, quando foi comprimentar a
+Elvas o usurpador, que vinha entrando triumphalmente em Portugal. O
+primeiro passo era crear magistrados seus, instaurar tribunaes sem
+appellação nem aggravo das sentenças dos seus juizes, e defender o
+ingresso de viandantes em seus dominios, quando elles eram suspeitos de
+procedencia de lugares impedidos, e até quando o não eram.
+
+A seguinte _doação_ de Philippe II ao duque de Bragança, D. João,
+primeiro de nome, está registada no livro V da camara de Villa-Viçosa,
+fl. 31, pag. 2.
+
+«Eu el-rei, faço saber aos que este alvará virem que havendo respeito
+ao duque de Bragança, meu muito amado e presado sobrinho e a D.
+Catharina minha muito presada prima residirem ora em Villa-Viçosa,
+e por outros respeitos que a isso me movem; hei por bem e me praz
+que a pessoa que o dito duque nomear por guarda-mór da saude da
+dita villa tenha a alçada com o dito cargo adiante declarado. Que
+entrando alguma pessoa na dita villa, sem licença do dito guarda-mór, e
+constando que vem de lugar impedido, o possa _mandar prender, e sendo
+peão será condemnado a um anno de degredo para o couto de Castro Marim
+com pregão na audiencia e 2$000 reis para os captivos; e, sendo de maior
+qualidade, a mesma pena de degredo e pregão e 4$000 reis. E o mesmo nos
+que metterem fatos e mercadorias das terras impedidas; e os que vierem
+de terras não impedidas, entrando sem licença, presos, e da cadêa
+pagarão 2$000 reis._
+
+«E todas estas penas sem appellação nem aggravo, e que as sentenças
+sejam dadas em camara com os vereadores. E que não passe pela
+chancellaria. Ambrosio de Aguillar o fez em Elvas a 23 de fevereiro de
+1581. Roque Vieira o fez escrever. El-rei.»
+
+Em 2 de julho de 1582 concede o mesmo monarcha ao mesmo duque _poder
+despender as rendas dos concelhos das suas terras no que lhe aprouver._
+
+Em 2 de maio de 1584 o mesmo Philippe II assigna o seguinte aviso:
+
+«Eu el-rei. Faço saber a vós licenciado Lopo de Abreu Castello Branco
+que ora o duque de Bragança (D. Theodosio) meu muito amado e presado
+sobrinho, com minha authoridade, envia por juiz de fora da sua villa de
+Villa-Viçosa, que eu hei por bem pela confiança que de vós tenho, que
+além dos poderes que por minha ordenação são dados aos juizes
+ordinarios, vos tenham mais o poder e alçada ao diante declarados:
+
+«_Que nos casos crimes possa mandar açoutar peões de soldada que
+estiverem assoldadados, e outros peões que ganharem dinheiro por
+braçagem, e escravos, e que possa degredar os ditos peões para os
+lugares d'além-mar por dous annos, e para os coutos do reino até tres
+annos. Que possa degredar escudeiros e vassallos que não forem de
+linhagem, e officiaes mecanicos para os lugares d'além-mar por dous
+annos, e para os coutos do reino por tres annos... Que se alguns
+fidalgos, cavalleiros e escudeiros de linhagem, e vassallos, fizessem
+cousas por que mereçam ser processados, os empraze para que a certo
+tempo appareçam._ João da Costa o fez em Lisboa a 2 de maio de 1584.
+Rei.»
+
+Seguem mandados confirmando e revalidando doações abolidas ácerca das
+rendas das feiras, que os duques de Bragança continuaram a perceber,
+como seus avós, antes das reformas de D. João II.
+
+Em 1589, o duque de Bragança D. Theodosio decreta nos seus dominios
+isentando os ferradores e mais officiaes mecanicos de sua casa _de todos
+os serviços e encargos do concelho, de fintas, de talhas, montes,
+pontes, fontes, caminhos, calçadas, etc.; nem vá com presos, nem seja
+tutor, nem curador de nenhumas pessoas, nem pousem com elles, nem lhes
+tomem suas casas de moradas, nem adegas, nem estrebarias, nem roupas,
+nem palha, etc._
+
+N'esta fórma de decreto assigna D. Catharina, por ser ainda menor o
+duque.
+
+D. João, segundo de nome, e que depois foi rei, ainda em 1635 impetrou
+licença de Philippe IV de Castella para crear doze misteres, especies de
+zeladores na cobrança das alcavalas que a serenissima casa exercia sobre
+os vassallos.
+
+D. Duarte concedêra que o duque de Bragança podesse nomear juiz, quando
+o juiz de nomeação real lhe fosse suspeito. D. Affonso V confirmou. D.
+João II aboliu. D. Philippe IV de Hespanha, a requerimento do duque de
+Bragança, que depois foi rei, confirmou a lei de D. Duarte.
+
+Por doação de 1587 é permittido ao duque de Bragança não cumprir as
+cartas dos corregedores da côrte. No mesmo anno lhe é facultado avocar a
+si as causas das suas terras e _sentenciar como lhe parecer_.
+
+Em 1607 é permittido ao duque de Bragança formar chancellaria e _levar
+direitos d'ella sobre cartas de seguro em caso de mortes negativas, ou
+confessativas de morte, de resistencia a officiaes de justiça, ele, em
+provimentos de officios e isenções de cargos_.
+
+Esta concessão derivava do animo bizarro do castelhano que pagava ao
+duque de Bragança com o dinheiro dos proprios portuguezes, e do animo
+avarento do agraciado que se cevava na pobreza dos seus conterraneos.
+
+Tal graça era tão pesada para os portuguezes quanto vaidosamente inepta
+para o duque a do tratamento de _excellencia_ que obteve em 1597, por
+lei extravagante de 6 de dezembro, que só aos duques de Bragança e aos
+infantes a concedia[1].
+
+Afóra a _excellencia_, «o duque de Bragança--escreve Rebello da
+Silva--por ser o mais nobre e poderoso, foi tambem o primeiro que o
+soberano exaltou, lançando-lhe elle proprio sobre o peito o collar do
+tosão de ouro, e entregando-lhe o estoque de condestavel do reino,
+dignidade por elle pedida em vão, como sabemos, ao cardeal-rei e aos
+cinco governadores.» (_Hist. de Port. nos seculos XVII e XVIII_).
+
+Na acclamação de Philippe I de Portugal, «o primeiro que jurou foi o
+duque de Bragança, o qual depois veio beijar a mão d'el-rei.» (_Obra
+cit._)
+
+Esta preeminencia importava menos que a concessão então obtida de
+transportar da India uma determinada porção de especiarias isentas de
+direitos da alfandega.
+
+Constituiu-se pois a serenissima casa de Bragança o primeiro armazem de
+canella e pimenta n'estes reinos; e, como não pagava direitos, a sua
+mercadoria era a mais procurada por duas considerações: a barateza do
+genero e a qualidade do especieiro.
+
+ [1] Por provisão particular de 12 de dezembro de 1605, passada em
+ Valhadolid foi concedido o mesmo privilegio aos duques de Aveiro, em
+ attenção ao grande luzimento de sua casa, pois D. Jorge de
+ Alencastre, nascido em 1481, era filho do rei D. João II e de D.
+ Anna de Mendonça, que,--por via de regra estatuida--acabou
+ commendadeira de Santos. Aquelle mosteiro assignalou-se como harem
+ de odaliscas desbotadas. O referido D. Jorge, mestre das ordens de
+ S. Thiago e Avis, senhor de Aveiro e mais terras do infantado, foi
+ creado segundo duque de Coimbra (o 1.º duque de Coimbra fôra seu
+ bisavô D. Pedro, morto em Alfarrobeira), por D. Manoel em 1500, ou
+ por seu proprio pai, como diz _Portugal, De Donat. reg._ n.º 410.
+
+
+
+
+O PAÇO REAL DA RIBEIRA
+
+
+De um manuscripto, que seria optimo livro da topographia de Lisboa, se o
+terremoto de 1755 o não suspendesse, aniquilando talvez a mão laboriosa
+que o escrevia, extrahimos o capitulo respectivo ao paço da Ribeira, e
+edificios convisinhos. É a mais detida descripção que ainda vimos. Os
+escriptores, que conheceram Lisboa antes da catastrophe, á semelhança de
+João Baptista de Castro (_Mappa de Portugal_) poucos delineamentos
+particularisaram dos grandes edificios da Lisboa de D. João V. Iremos
+transcrevendo o que nos parecer mais grato aos antiquarios, e ainda aos
+que, sem grande affecto a velharias, se comprazem em reconstruir na
+imaginativa as feições da sempre formosa Lisboa.
+
+«O palacio real da Ribeira, situado junto das margens do Tejo, em frente
+de uma das maiores praças da Europa, chamada _Terreiro do Paço_, é um
+soberbo e vastissimo edificio, commodo e magestoso. É obra d'el-rei D.
+Manoel, para o qual se mudou dos antigos paços da Alcaçova, e onde,
+desde então, ficaram assistindo os reis d'este reino. Fórma este real
+edificio dentro em si tres grandes quadras, com dilatadas galerias em
+roda, com admiraveis quartos, preciosamente guarnecidos, e muitos
+salões, os maiores dos quaes são: a casa chamada de _gala_, a sala dos
+_tudescos_, onde costuma estar a guarda allemã de sentinella. Esta sala
+é uma das maiores de toda a Europa, porque tem 130 palmos de comprimento
+e 76 de largura. A quadra que fica junto da igreja patriarchal, chamada
+_pateo da capella_, é toda rodeada de galerias de arcos sobre columnas,
+com janellas ao de cima bem rasgadas. Por baixo d'estas arcadas ou
+galerias, em toda a circumferencia, ha muitas tendas e lojas onde se
+acha tudo que mais precioso ha no mundo, ouro, diamantes e outras pedras
+preciosas. Sahindo d'esta quadra por um vasto portico voltado ao sul, se
+entra em outra quadra mais comprida que larga, tambem cercada de bellas
+galerias, sobre a qual abrem as janellas do quarto das rainhas. Ahi ao
+pé ergue-se uma altissima e bem fabricada torre de marmore, com um
+magestoso sino de relogio, e dous mais pequenos dos quartos. É obra do
+snr. rei D. João V, o _Magnifico_. Tambem ha n'esta segunda quadra
+muitas lojas onde se vendem cousas preciosas. Para a parte da _Ribeira
+das Naus_, forma este palacio outro grande quarto, feito á moderna, obra
+do mesmo monarcha, chamado o _quarto dos infantes_; e, ao cabo d'elle,
+abre-se uma formosissima varanda descoberta, gradeada de marmore á
+volta, primorosamente lavrado, sobre cujos pilares assentam vasos de
+jaspe cheios de murta e flôres.
+
+«Aquella parte d'este soberbo edificio, que olha para o oriente, e
+abrange a largura toda do _Terreiro do Paço_, é occupada por uma
+espaçosissima galeria, que termina em um magnifico pavilhão chamado o
+_Forte_. É obra de Philippe II de Hespanha, dirigida pelo famoso
+architecto Philippe Terzo, podendo affirmar-se que não ha outra
+semelhante em toda a Europa, como confessam todos os estrangeiros que
+vem a Lisboa. D'aqui se descobre toda a barra, e o porto da cidade,
+porque fica sobre a praia do rio. É tanta a magestade d'este edificio
+que não vi em todo o reino de França, nem nos famosos palacios de Louvre
+e Versailles tão justamente encarecidos obra tão sumptuosa; sendo para
+sentir que não se chegasse a concluir o risco d'esta elegante fabrica,
+pois estava delineado fechar toda a praça do _Terreiro do Paço_ em roda,
+com outro pavilhão fronteiro no sitio onde hoje (1754) estão as casas da
+alfandega: porém, é sestro já muito antigo ficarem imperfeitas todas as
+obras que outros principes começaram.
+
+«Contigua a este lanço, corre uma varanda de arcos que dá serventia para
+a sala dos _tudescos_, e pela fachada do sul se communica para outro
+quarto, não menos magestoso com suas galerias, eirados e torreões, onde
+assistem os infantes, irmãos ou filhos dos reis, e hoje serve de
+residencia á rainha-mãi, D. Marianna de Austria. Tem este quarto grandes
+e preciosas ante-camaras com tapeçarias e moveis inestimaveis, e
+pinturas dos mais insignes authores.
+
+«Sua magestade costuma residir no quarto do _Forte_, que dá sobre o
+_Terreiro do Paço_, e é o melhor do palacio, cujas ante-camaras, salas e
+gabinetes encerram em si o mais precioso que póde a terra dar; porque as
+tapeçarias de ouro, prata, velludo, damasco e outras sedas, quadros de
+admiraveis pinturas, e toda a mobilia, dão a conhecer a soberania da
+magestade que o occupa. A casa dos _embaixadores_ é a melhor da Europa.
+Ha n'este palacio uma notavel bibliotheca, constante de muitas casas de
+livros, com manuscriptos os mais raros; e, sem duvida, se estivesse em
+ordem como as bibliothecas do vaticano, e de el-rei de França e da
+Sorbona, não lhes seria inferior; para o que muito concorreu a curiosa
+applicação (!) e magnifica despeza do snr. rei D. João V mandando
+comprar fóra consideráveis collecções.
+
+«Para o lado do rio tem este palacio um bello jardim com grande eirado,
+com viveiro abundante de todo genero de aves raras, especialmente pombas
+e rolas de varias castas. Não se póde dar mais aprazivel espectaculo no
+mundo que a vista d'este jardim sobre o mar.
+
+«O snr. rei D. João V acrescentou outro quarto a este palacio: é o que
+fica no _largo da Patriarchal_ e corre até ao _theatro da opera_. Consta
+este augusto edificio de varios corpos e muitas galerias todas de
+apuradissima arte, obra do famoso architecto Frederico, em que os
+marmores apostam duração com a eternidade. Dous lanços d'este quarto
+abrem para o _largo da Patriarchal_, e em meio de cada um avulta um
+portico grandioso, levantado em grossas columnas marmoreas, com capiteis
+corinthios, excellentemente folheados. Todo o restante d'este primoroso
+edificio é feito de polidissima cantaria, com formosos lavores e
+remates, com oculos romanos na cimalha, que lhe dão graça e belleza. O
+saguão que vai do _largo da Patriarchal_ e atravessa este quarto para a
+_Campainha_, é a melhor peça d'arte d'esta cidade; porque as quatro
+columnas de jaspe que tem na frente de duas escadas lateraes, são
+perfeitissimas no trabalho dos lavôres.
+
+«Para o lado do _theatro da opera_ fórma este quarto uma quadra pequena
+com sumptuosas galerias, para a qual se entra por um grande vestibulo
+fronteiro á _Patriarchal_; mas a serventia ou passagem para o _theatro_
+é a mais arrogante e magestatica obra de Lisboa. Aqui, os marmores são
+de maneira sinzelados, que nem a cêra seria capaz de mais tenues
+arabescos. A natureza é vencida pela arte; porque os bustos, as
+carrancas, os festões, os relevos, os capiteis, os frisos, as folhagens
+são cousa tão prodigiosa, quanto é mais de assombrar a qualidade da
+pedra tão rija para impressões tão delicadas. Por cima d'este vestibulo,
+ergue-se uma capella magnificentissima feita para uso particular dos
+patriarchas, tal e qual os pontifices a tem em Roma. E, posto que ainda
+não esteja concluida, é soberbissima pela profusão de jaspes vermelhos,
+negros, brancos e outras côres que lhe dão o esmalte.»
+
+ * * * * *
+
+Este pallido bosquejo das opulencias do paço da Ribeira era escripto em
+1754. No 1.º de novembro do anno seguinte, quem procurasse estas
+riquezas com o roteiro do incognito author por guia, encontraria um
+entulho, coroado de linguas de fogo, e a espaços lambido pelas vagas do
+Tejo. E escrevia o assombrado homem que aquelles marmores estavam alli a
+_apostar duração com a eternidade_!
+
+
+
+
+AS CRUAS ENTRANHAS DE D. MARIA I A PIEDOSA
+
+
+D. Martinho de Mascarenhas, marquez de Gouvêa, e filho do duque de
+Aveiro, justiçado em 1759, não tinha culpa no delicto de seu pai. Não
+obstante, entrou muito moço nas trevas das masmorras, e lá o retranziram
+frio, fomes, sêdes e terrores por espaço de dezoito annos.
+
+Em 1777 sahiu do carcere com os outros presos. E, como não tinha de seu
+uma taboa--pois que a opulenta casa de Aveiro havia sido confiscada,
+salgada, arrazada, absorvida--foi enviado aos frades de Mafra para lá o
+fartarem no seu refeitorio. Os historiadores coevos não houveram noticia
+d'esta passagem do carcere para o mosteiro. Todos os outros fidalgos,
+exhumados dos ergastulos á voz de D. Maria I, tinham familia que os
+consolasse e restaurassem com as cariciosas lagrimas da alegria. D.
+Martinho de Mascarenhas não tinha ninguem! ninguem que lhe désse uma
+lagrima e um bocado de pão comido em liberdade! Fez como os ultimos
+mendigos: foi ao convento de Mafra.
+
+Alli o encontrou o bispo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação, quando,
+n'aquelle anno de 1777, sahiu tambem da masmorra de Pedrouços, e por lá
+passou, caminho da sua diocese; mas tão cortado de oito annos de
+escuridade e nudez que já em 30 de agosto de 1779 era sepultado.
+
+Do itinerário do bispo, que tenho de letra de mão, em floreados
+caracteres, como brinde feito áquelle prelado, vou extractar as linhas
+respectivas ao marquez de Gouvêa:[2] «... Pelas 11 horas e um quarto da
+noite chegou a Mafra, aonde passou o dia seguinte recebendo fraternaes
+obsequios da sua amada communidade. Ahi se achava o exc.mo D. Martinho
+Mascarenhas, marquez que é de Gouvêa, filho primogenito do infeliz duque
+de Aveiro. Distinguiu-se muito nos obsequios do exc.mo bispo aquelle bem
+instruido, amado e agradavel fidalgo, que soube tirar e trazer da sua
+reclusão as mais bellas qualidades de um cavalheiro christão. Deve-se a
+Deus a sua indole, e a um bom mestre que teve na sua prisão a educação,
+que o faz merecedor de toda a estima e fortuna que conseguiria na boa
+conservação de seu pai. Elle se chama desgraçado, e deve á sua desgraça
+a occasião de se fazer ainda mais benemerito pelas suas virtudes.»
+
+N'este tempo já era morta a duqueza de Aveiro, no convento do Rato, onde
+servia as freiras para ganhar o seu alimento; e, por não poder comprar
+sapatos, andava descalça. Este supplicio era assim benigno porque se
+provou que ella e seu filho de todo em todo ignoravam os intuitos
+regicidas do duque.
+
+O marquez de Gouvêa tinha por si a compaixão dos proprios inimigos de
+seu pai. Todos o animavam a pedir á rainha a restituição de alguns dos
+bens confiscados; e o maior jurisconsulto d'aquelle tempo, Paschoal José
+de Mello, encarregou-se de escrever a _Representação_ a D. Maria I.
+
+Este requerimento é um dos poucos trabalhos ineditos do eminente
+escriptor; e a meu vêr, como historia e como supplica eloquente,
+benemerito de estampar-se.
+
+A mim me cabe o prazer de o possuir e tiral-o da indigna obscuridade.
+
+É como segue:
+
+
+ «SENHORA.
+
+«A innocencia opprimida, digno objecto da piedade de um principe, a quem
+o exemplo de Deus serve de regra, se prostra diante do real throno
+implorando a clemencia de vossa magestade, e para mais facilmente a
+conseguir offerece esta humilde representação, fundada nos principios da
+humanidade e justiça, confirmados com uma longa serie de exemplos.
+
+«O fim das leis consistindo em dar a cada um o que lhe toca, não alcança
+o juizo humano livre de illusão. Como póde sem culpa ter lugar algum
+castigo, nem como seria conveniente aos interesses de um monarcha justo,
+o desvio da imitação de Deus, privando da sua graça os innocentes? O que
+poderia haver para alguns de problematico n'este ponto, a lei divina o
+decide. Ninguem deve pagar o crime alheio por maior que seja a sua
+proximidade com os delinquentes, e esta verdade foi muitas vezes
+descoberta sem mais soccorro do que as luzes naturaes: é dito de um
+espirito famoso que uma cousa são leis, outra é a justiça verdadeira. E,
+se tambem é certo que pouco faria qualquer homem em regular o seu
+procedimento pelo que sómente as mesmas leis prescrevem--que pratica de
+virtudes se não devera esperar de um soberano para corresponder á
+elevação em que Deus o pôz tão distante do resto dos mortaes!? Os de
+maior sabedoria dados pela Providencia para a felicidade dos povos: os
+merecedores do nome de pai da patria, e em fim os mais felizes no
+governo de vastos dominios, persuadidos de que lhes venha de Deus todo o
+poder, e que de sua submissão ás leis divinas dependia mais que tudo a
+respeitosa obediencia dos que mesmo Deus sujeitou á sua direcção, para
+serem tratados como filhos, acharam sempre injurioso o direito rigoroso,
+e o não poderam conciliar como dictames mais convenientes á magestade do
+throno. Os pretores antigos já foram chamados os moderadores das leis,
+pelas frequentes emendas do que n'ellas se permitte aos juizes,
+prohibido pela honra e equidade, e entre estas as que geralmente se
+acharam mais contrarias á recta razão e á humanidade foram aquellas em
+que o castigo passava além do ultimo termo da existencia dos culpados, e
+chegava a propagar-se até aos innocentes.
+
+«Devendo ser as penas commensuradas aos crimes, e não havendo nenhuma
+proporção entre o delicto e a innocencia juntamente, pareceu estranho
+que, onde a calumnia não póde inventar nada para denegrir reputações,
+chegassem as armas da justiça. Contra isto parece não ter cabimento
+nenhuma casta de pretexto. As qualidades da alma não se podem considerar
+hereditarias na fé do livre arbitrio: a boa ordem e o bem publico não
+dependem sempre da maior severidade, antes pelo contrario a experiencia
+em todo o tempo tem mostrado que a fortuna acompanha a clemencia, e com
+ella se mudaram os genios mais ferozes. É com tudo notorio, que em
+algumas leis tiveram as paixões particulares maior introducção, do que
+uma certa prudencia necessaria para as fazer validas no conceito de um
+principe christão. A famosa lei dos imperadores Honorio, e Arcadio, que
+impõe tão atrozes penas aos filhos dos criminosos de lesa-magestade, é
+derogada pelo direito divino, pelo direito natural e das gentes. Por
+este ultimo, porque desde que os homens principiaram a unir-se em
+sociedades distinctas, todas as providencias se dirigiram a preservar a
+innocencia das irrupções e violencias em que tinha degenerado a
+liberdade humana. Pelo direito natural, porque destroe o principio da
+rectidão que a natureza inspira a todo o ente racional, e priva a
+innocencia do direito que tem a impunidade, e a todos os mais actos de
+justiça. E pelo direito divino, porque em repetidos lugares das sagradas
+letras é defendida a innocencia com pena eterna. Tambem foi abolida pelo
+direito civil, porque os mesmos imperadores, a quem pertence, passados
+annos, movidos da penitencia, como dizem graves authores, reduziram
+todas as penas por uma nova constituição aos unicos réos dos delictos.
+
+«D'esta lei foi deduzida a nossa ordenação, cujos termos ambiguos e a
+necessaria conciliação dos capitulos seguintes mostram, com bastante
+clareza, ser a intenção do legislador que se modere: com effeito
+immediatamente a imposição das penas como perpetuas as faz transitorias,
+declarando não deverem ter a execução se não em quanto os que a ella
+sujeita não forem restituidos ao estado do seu antigo esplendor; e além
+d'isto a jurisprudencia julga todas as penas exorbitantes em direito
+simplesmente comminativas, e não executivas. Estas e outras semelhantes
+reflexões, que por brevidade se não expressam, moveram a religião, a
+justiça e piedade dos gloriosos reis que occuparam o throno portuguez a
+deixar na historia tantos exemplos de rebeldes executados, como de
+filhos impunidos; mas conservados, e restituidos á nobreza, honras,
+dignidades e bens de substituição; d'estes exemplos se referem os
+seguintes, e, por parte do innocente o infeliz marquez de Gouvêa, se
+offerecem á real inspecção de vossa magestade:
+
+EXEMPLOS
+
+«João Lourenço da Cunha foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e
+confiscados os seus bens; porém o morgado de Pombeiro passou a seu filho
+Alvaro da Cunha, a quem foi tambem feita a mercê do senhorio da mesma
+villa, possuido antes por seu pai. D'este descendem não só os condes de
+Pombeiro, mas a maior parte da nobreza da côrte actual; porque tres
+filhas suas depois da referida sentença casaram nas mais illustres casas
+d'este reino.
+
+«D. Pedro de Castro, senhor do Cadaval, foi sentenciado pelo mesmo
+crime, e os seus bens todos confiscados; mas os morgados, e os bens da
+corôa passaram a seu filho primogenito D. João; cuja filha herdeira
+casou com D. Fernando II, duque de Bragança, de que descendem
+innumeraveis casas illustres, nas quaes com especialidade se inclue a de
+Cadaval; além d'isto a D. Fernando, filho segundo do dito delinquente,
+primogenito da casa de Cascaes, lhe fez depois mercê do Paul chamado do
+Governador, de varios senhorios de terras, e da alcaidaria-mór da
+Covilhã.
+
+«O conde de Vianna, D. João Affonso Telles de Menezes, commetteu o mesmo
+crime, foi morto tumultuariamente pelo povo de Palmella, e foram
+confiscados os seus bens; mas el-rei D. João o 1.º deu depois a seu
+filho D. Pedro de Menezes o condado de Villa Real e capitania da cidade
+de Ceuta, e muitos senhorios de terras: a filha legitima d'este D. Pedro
+succedeu na casa de Villa Real, e D. Duarte, seu filho illegitimo,
+progenitor de uma casa das mais illustres, conseguiu, como se sabe,
+depois de muitas mercês, ser conde de Vianna e alferes-mór do reino.
+
+«D. Gonçalo Telles, conde de Neiva e Faria, alcaide-mór de Coimbra,
+senhor de Cantanhede, e de outras muitas terras, foi sentenciado por
+crime de lesa-magestade, e confiscados todos os seus bens; mas apesar
+disso possuiu a casa seu filho D. Martinho com o senhorio de Cantanhede:
+foi depois mordomo-mór da rainha D. Philippa, e é progenitor da illustre
+descendencia que ainda se conserva.
+
+«Diogo Lopes Pacheco de que descendem as mais illustres casas, foi
+havido e reputado por traidor, sem que a seu filho João Fernandes
+Pacheco servisse isso de obstaculo para a conservação da dignidade de
+rico-homem, que lograva, a maior que então havia da nobreza.
+
+«Alvaro Vaz de Almada foi sentenciado pelo mesmo crime, e confiscados os
+seus bens. Mas os de morgado passaram a seu filho primogenito D. João
+d'onde vieram a recahir na casa do conde de Valladares, e a D. Fernando,
+filho segundo do dito criminoso, de que descendem por varonia os Almadas
+do Rocio, foram dados os bens da corôa, que vagaram pelo delicto de seu
+pai.
+
+«Martim Coelho foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e seu filho
+succedeu nos morgados, e da mesma fórma nos senhorios de terras
+possuidas por seu pai. Lopo de Azevedo foi sentenciado pelo mesmo crime;
+não tinha morgados, mas os senhorios de terras por elle possuidos
+passaram a seu filho.
+
+«O infante D. Pedro foi julgado criminoso de lesa-magestade, porém
+el-rei restabeleceu seu filho em todas as honras, e dignidades
+antecedentes.
+
+«O snr. D. Diogo, duque de Vizeu, foi morto, e sentenciado pelo mesmo
+crime, e confiscados todos os seus bens: não deixou filhos legitimos,
+mas um bastardo seu que por essa circumstancia de nascimento, não
+succedeu nos morgados, tão longe esteve d'elle prejudicar o crime de seu
+pai, que casou na casa de Villa Real, e lhe deram o emprego de
+condestavel, occupado algumas vezes pelos senhores infantes. D. Alvaro
+de Athayde, filho segundo da casa de Atouguia, e seu filho D. Pedro de
+Athayde foram sentenciados por crime de lesa-magestade, cuja sentença
+pela ausencia de D. Alvaro teve sómente a execução em D. Pedro que foi
+morto, e esquartejado em Setubal: isto não obstante passou toda a casa
+herdada por este ultimo de sua mãi a seu filho D. Fernando, o qual
+fallecendo sem successão passaram os morgados a quem tocavam; mas os
+bens da corôa foram dados a D. Antonio, filho do segundo matrimonio do
+sobredito delinquente D. Alvaro, e este D. Antonio foi conde da
+Castanheira, vedor da fazenda, e grande privado de el-rei D. João III, e
+é por filhos e filhas avô da maior parte da nobreza d'esta côrte.
+
+«Fernando da Silveira, escrivão da puridade de el-rei D. João II, filho
+primogenito do barão de Alvito, foi culpado e sentenciado pelo mesmo
+crime: fugiu para França aonde teve o atrevimento de escrever injuriosas
+cartas a el-rei, foi morto n'este reino por ordem do mesmo soberano, a
+quem tinha tão gravemente offendido, sendo o ministro da execução o
+conde de Pallas, catalão; mas não obstante tudo isso, seu filho D. João
+foi restabelecido, e como tal casou illustremente: foi commendador de
+Montalvão, governador de Ceylão, trinchante d'el-rei D. João III, e seu
+embaixador a França.
+
+«D. Fernando de Menezes, terceiro filho do conde de Vianna, irmão do
+conde de Loulé, foi culpado e justiçado pelo mesmo crime, e confiscados
+os seus bens. Não consta que tivesse morgados; mas sabe-se que lhe
+sobreviveram seus filhos dos quaes os dous primeiros casaram
+illustremente e possuiram os bens da corôa que vagaram pelo delicto de
+seu pai. D. Diogo, segundo filho d'este mesmo, deu principio á casa de
+D. José de Menezes e o terceiro filho do dito criminoso seguia a vida
+ecclesiastica; foi desembargador do paço, cujo emprego n'aquelle tempo
+era occupado por fidalgos. O conde de Penamacor foi culpado no mesmo
+crime, porém seu filho D. Garcia de Albuquerque foi restabelecido e teve
+o lugar de copeiro-mór de el-rei D. João III.
+
+«O conde de Faro, irmão do conde de Monte-Mór foi culpado do mesmo crime
+de lesa-magestade, mas seu filho D. Sancho de Noronha foi restabelecido;
+foi conde de Odemira, senhor de muitas terras e alcaide-mór de Extremoz.
+
+«Martim de Castro do Rio foi culpado e esquartejado por crime de
+lesa-magestade, porém seu filho Jorge Furtado de Mendonça foi
+restabelecido, casou illustremente, teve maior estimação do que antes do
+delicto tivera seu pai, e d'elle descenderam os viscondes de Barbacena.
+
+«O marquez de Villa Real, seu filho o duque de Caminha, D. Agostinho
+Manoel, o conde de Armamar, e Fernando Telles, foram sentenciados por
+crime de lesa-magestade: os quatro primeiros foram degolados, e o quinto
+queimado em estatua: a todos se confiscaram os bens, e como só Fernando
+Telles tivesse filhos, a estes passaram os morgados, e os dos outros
+delinquentes a quem de direito pertenciam.
+
+«Francisco de Lucena foi julgado e justiçado por crime de
+lesa-magestade, da mesma fórma o senhor de Regalados, um dos Soares de
+Alarcão, os mascarenhas de Montalvão, D. Raymundo, quinto duque de
+Aveiro, e outros foram reputados criminosos, sentenciados como taes,
+confiscados seus bens; alguns d'estes tinham descendentes, a quem
+passaram os morgados, e além d'isso conservaram a mesma estimação, e
+lograram as mesmas honras, que teriam se seus ascendentes permanecessem
+innocentes. Francisco Maldonado, e Francisco de Mendonça foram julgados
+por traidores, e como taes justiçados, e confiscados os seus bens;
+nenhum d'estes tinha filhos legitimos; mas Francisco de Mendonça deixou
+uma filha bastarda, que conservou a mesma estimação que teria se seu pai
+não commettesse o delicto; casou competentemente ao seu nascimento, com
+descendencia nobre de quem tomou tambem o appellido. Muitos outros
+factos semelhantes se omittem para não abusar da regia paciencia; só se
+nota não haver nenhum em contrario de pessoa de certa ordem; e é tambem
+de admirar que até quando por algum dos nossos monarchas foi
+recommendado ao seu successor que se conservasse inexoravel com os que
+deixava profundados na desgraça, nunca tiveram efficacia bastante as
+razões politicas d'este conselho, e triumphou contra elles a clemencia e
+justiça. D'ahi se seguia manifestar-se mais que nunca n'este reino a
+verdade importante de ser a religião o mais solido fundamento das
+felicidades e das glorias. Tudo n'este tempo pareceu por Deus abençoado,
+e d'este modo se conservou, não sómente a raça respeitavel, com que
+viemos a recuperar os nossos fóros nacionaes; mas concorreram tambem
+para a sua exaltação muitos descendentes dos proscriptos antigos
+tornados pelo mesmo rei afortunado ao estado venturoso.
+
+«Estes exemplos constituem um perfeito costume, porque concorre n'elle a
+multiplicidade dos actos, a diuturnidade do tempo e a sciencia de
+principe. Se foram de justiça, não é o supplicante menos innocente, nem
+menos fiel e obediente ao sceptro do que aquelles em quem se não
+executou a lei, para que n'elle se interrompa uma tão dilatada serie nos
+ditos exemplos; tanto mais não lhe tendo valido até agora a opinião de
+muitos santos padres, de doutos juristas, canonistas e theologos, que
+deu occasião ás leis estabelecidas nos reinos mais policiados da Europa,
+dos quaes reputando-se os filhos nascidos antes dos crimes de seus paes,
+livres de infecção, sómente a do peccado original são preservados de
+toda a pena, antes pelo contrario, tendo estado o dito supplicante
+expiando por excesso de rigor o crime alheio pelo tempo que se equipára
+á morte, por ser já de uma duplicada vida civil, e que pelas violentas
+circumstancias da rigorosa prisão em que padeceu, lhe teria acabado a
+natural, se a Providencia divina lh'a não tivesse conservado apesar dos
+esforços empregados para a brevidade da sua duração,--pena nunca
+praticada, porque nem as leis dos imperadores, nem a nossa ordenação,
+nem alguma outra impuzeram exorbitante castigo a semelhantes filhos
+innocentes.
+
+«Se os mesmos exemplos são de graça, o supplicante prostrado diante do
+throno de V. M. a implora, tomando por protectores, a religião e a
+piedade d'um principe, que preparado de muito longe pela Providencia,
+com dotes proporcionados ao magestoso encargo que lhe destinava, se nos
+mostra possuidor em grau sublime de tantas virtudes christãs, que fazem
+o mais brilhante ornato da sua corôa.
+
+«D'um principe a quem com antecipadas luzes, sendo evidente que para
+beneficio dos que deviam obedecer-lhe seria poderoso o seu exemplo mais
+do que a sua real authoridade; que por não ter na terra tribunal que lhe
+fosse superior, devia exceder muito em perfeição aos homens ordinarios;
+e que em lugar tão eminente poderia o seu beneplacito ser a regra
+soberana por onde tudo fosse decidido, passou os instantes da sua
+preciosa vida, em um continuo exercicio do dominio das paixões e foi
+sempre o juiz mais severo de si mesmo. D'um principe, em fim, que com
+estes respeitaveis fundamentos certo de ter estabelecido o mais feliz
+imperio nos corações dos seus vassallos, só fará sensivel o peso immenso
+da sua real grandeza aos inimigos da igreja e da verdade. Não dará outro
+uso ao seu poder, senão para que se execute o que Deus manda; e assim
+como alguns, que foram a delicia dos seus povos, fará consistir a sua
+maior gloria em livrar da oppressão os desgraçados.
+
+«Debaixo d'estes ditosos auspicios, d'estes augustos intercessores,
+espera o supplicante vêr o termo do seu abatimento, a restituição da sua
+liberdade, da sua honra, do seu credito e dos bens que o direito do
+sangue lhe conferiu pelas vocações de seus ascendentes. Esta graça
+humildemente pedida, será para o supplicante um novo vinculo da sua
+submissão. E para el-rei nosso senhor um eterno monumento da sua benigna
+magnanimidade.»
+
+Esta pungente invocação á caridade da rainha, que esvasiava os repletos
+cofres do estado no mosteiro do Coração de Jesus, não valeu ao
+desgraçado, sequer, uma esmola do real bolsinho. Braganças!... O marquez
+de Gouvêa viveu longos annos da caridade do seu parente conde de Obidos,
+e já no fim da vida recebia uma mezada que lhe dava D. João VI. D.
+Martinho, se bem me recordo do que li, morreu em Lisboa, em uma humilde
+casa, no bairro de Buenos-Ayres, por 1804.
+
+ [2] É este o titulo do manuscripto: _Itinerario do ex.mo snr. bispo
+ conde, restituido ao seu bispado, para o qual partiu de Lisboa no
+ dia 11 de agosto de 1777._
+
+
+
+
+D. MARIA CARACA BONAPARTE
+
+
+Não conheci, em Lisboa, esta senhora D. Maria, bastantemente historica e
+benemerita de immorredoura escriptura.
+
+Conheceu-a aquelle esclarecido arcebispo, cujos sonhos, na noite da
+demencia, o leitor ouviu no sublime desarranjo chamado _A catastrophe_.
+
+Est'outro escripto, menos nevoento e cerrado das turvações do delirio,
+tem especies em que o riso se trava com o compadecimento, e outras em
+que a compaixão d'aquelle distincto homem nos redobra o pezar de se
+haver perdido no vigor da idade tamanho espirito.
+
+
+D. MARIA CARACA BONAPARTE, OU A BURRINHA PROTESTANTE
+
+D. Maria Caraca teve tres estados: foi orphã, casada e viuva: seu pai
+morreu na guerra da Italia combatendo contra os francezes pela
+independencia da peninsula italiana; era natural de Milão, cantor da
+opera e grande enthusiasta das novas idéas da republica, que haviam
+volcanisado o seu cerebro até o delirio.
+
+Quando este maestro da opera viu que a França proclamava a liberdade
+para tyrannisar os povos, lançou-se no partido mais hostil aos francezes
+da republica sanguinaria, e morreu deixando a sua morte bem vingada.
+
+As suas idéas eram falsas e exageradas em religião e em politica; porque
+seguia occultamente todos os erros e absurdos de Luthero e de Calvino: o
+odio, que tinha ao summo pontifice era tão profundo, que o obrigava a
+blasphemar e praguejar contra os cardeaes e contra a santa sé, contra os
+bispos e contra as mitras e cadeiras.
+
+Bonaparte venceu muitos ou todos os partidos que estiveram em campo
+contra a França: o general da republica principiou a imperar, e a
+exercer a sua tyrannia nas provincias muito antes de exaltar na
+metropole o throno do seu fatal despotismo, como sempre acontece.
+
+Verres na Sicilia era mais do que imperador; Cesar sempre imperou nas
+provincias. Se D. Affonso d'Albuquerque fosse susceptivel de ambição
+podia usurpar o titulo de imperador da Asia; porque o povo desejava
+conferir-lhe todas as attribuições do imperio.
+
+Bonaparte no Egypto era saudado como rei do fogo; Mahomet e todos os
+impostores e usurpadores da sua escola recebem a mesma baixa e servil
+adulação que as almas mais vis sempre se empenham em prodigalisar ao
+vencedor. A sciencia, e a virtude de homem grande, consiste em desprezar
+estas frivolas demonstrações e em saber reprimir todos os excessos do
+enthusiasmo, que se esvaem e perdem como o fumo.
+
+Bonaparte passou como um cometa; a sua descendencia extinguiu-se e toda
+a sua parentela: existe na throno de França um homem que não tem pai nem
+mãi, nem alliança, nem façanhas nem grandeza. É um homem que apenas
+aspira a fazer com auxilio alheio uma memoria que mereça ser approvada
+em uma academia.
+
+Os protestantes urdem e tecem muitos generos de lisonja aos seus heroes;
+são arcos e pompas de triumpho, grinaldas, festins, e poemas,
+representações, e orchestras, lisonjas e desvanecimento.
+
+Um deputado da convenção nacional disse a um seu amigo e collega, que ia
+para Lião em commissão sanguinaria: tu verás em Lião a minha esposa,
+abraça-a.
+
+N'este tempo todos os revolucionarios levavam as suas mulheres aos
+horrorosos estupros do templo profanado: a mulher que servia de modelo,
+e o homem que a gozava, eram escolhidos entre todos os concorrentes sem
+attenção ao estado nem á condição dos que eram designados.
+
+Na Italia tributavam em quasi toda as cidades a Bonaparte a honra de o
+desposar com a mulher mais formosa; Bonaparte aceitava este tributo da
+infamia protestante, gozava e passava para outra cidade, aonde era
+recebido com igual torpeza.
+
+Em Milão cahiu a nefasta sorte em Maria Caraca Bonaparte; e como era
+filha d'um homem morto pelo exercito francez recusou sujeitar-se á
+estranha condição para que a designaram, apesar de ser tão protestante
+como seu pai.
+
+Os influentes de Milão que andavam empenhados n'esta impia e baixa
+lisonja corromperam todos os parentes da burrinha; de sorte que cedeu de
+seu odio politico, e principiou a ser do conquistador.
+
+Se Maria Caraca fosse verdadeira catholica, jámais consentiria em tão
+grande infamia e vileza, porque esta especie de tyrannia é mais impia e
+mais cruel de que era o tributo das cem virgens para o serralho e para o
+harem.
+
+Uma amante ou manceba podem nutrir uma esperança honesta, e chegam ás
+vezes a legitimar as suas uniões e prole; estas burrinhas são sempre a
+negação da moral, o escarneo do affecto, e o epigramma do amor e da
+sympathia. O protestantismo trata todas as mulheres como negras
+escravas. Despreza-as para as fazer bem vis; porque a mulher deve ser
+semelhante ao homem que a elege, e que a fórma e educa para sua
+companheira.
+
+Os milanezes deram a um tio de Maria Caraca a espectativa de um
+canonicato, prometteram á sua victima dous mil cruzados de dote, e por
+esposo o primeiro cantor da opera de Milão.
+
+Maria Caraca e a sua familia realisaram todas as condições; os
+protestantes de Milão cumpriram as suas fielmente: o casamento
+verificou-se, o dote sahiu da renda da cidade, que pagou para Bonaparte
+ter uma desgraçada por companheira dos seus vilissimos prazeres.
+
+Os que dispunham tão impiamente dos beneficios ecclesiasticos não podiam
+ter duvida em defraudar o thesouro do municipio.
+
+Maria Caraca e seu marido seguiram o partido de Bonaparte, e na
+restauração dos thronos viram-se na necessidade de emigrar para
+Portugal: perderam patria, emprego, e até o sobrenome de Bonaparte de
+que usaram por muito tempo.
+
+O marido morreu e deixou um filho e uma filha em Lisboa; o filho exerceu
+n'esta cidade por algum tempo com seu pai a profissão de musico: tambem
+morreu: eu só conheci a viuva e a filha chamada D. Thereza, as quaes
+moraram na rua dos Poyaes de S. Bento.
+
+Quantas vilezas, quantas degradações, e quantas tyrannias envolve o
+atroz procedimento de Milão! Não ha impiedade mais provocadora, não ha
+infamia mais torpe, nem injuria maior feita ao mesmo tempo á igreja e ao
+estado, á mulher e ao esposo, ao amor e ao estado e á santidade do
+matrimonio.
+
+Estas estrangeiras eram da escola da infame Bisardeli: conviviam com a
+sua amante, que foi muito tempo em Lisboa uma mulher luxuriosa e
+depravada, que vendia todo o fumo da perfida nunciatura d'aquelle tempo.
+
+Eu foi conduzido em mil oitocentos e quarenta como deputado para a casa
+das referidas Caracas: as lojas maçonicas dispunham do meu destino
+traiçoeiramente para dispor de minha vida, e vivi por mais de um anno na
+casa dos Poyaes de S. Bento com outros deputados, que serviam as lojas,
+e que me vendiam, e entregavam aos seus caprichos: por esta razão ouvi e
+aprendi o esboço d'esta negra historia; assim agora ouço e aprendo o seu
+complemento e torpissimo enredo.
+
+A inspiração é a minha sabedoria; se em outro tempo soube alguma cousa
+agora declaro, que nada sei e que todas as minhas idéas são communicadas
+e inspiradas, do alto céo, e no seu piissimo docel.
+
+Eu tinha trinta annos de idade, e julgava que todos os homens eram de
+boa fé, e amigos do seu semelhante. Bons e excellentes para a companhia
+e convivencia, os traidores são os mais lisonjeiros: eu tive seis
+companheiros de casa n'esta época: só um vive, cinco já falleceram.
+
+Os meus inimigos, que são todos os vilissimos protestantes, fizeram as
+maiores diligencias para me matar: não houve astucia, nem enredo, nem
+traição que não empregassem para conseguir este malevolo fim: é bem de
+presumir que um d'estes fosse o veneno.
+
+A infanta e todos os usurpadores da casa de Bragança, o governo e todos
+os seus clientes, a maçonaria e todos os seus agentes nacionaes e
+estrangeiros, ora armavam contra mim o braço do cruel Mattos Lobo, ora
+forjavam ou fingiam revoluções e acclamações nocturnas para me
+surprehender no conflicto, ora lançavam sortes para me seguir de noite e
+para me matar nos arroios da cidade ou nas encruzilhadas: ora engajavam
+estrangeiros e carniceiros por grandes sommas para que me procurassem e
+matassem na propria casa, aonde eram recebidos pelas infames Caracas.
+
+Um d'estes era um lanceiro, e carniceiro, que esteve na guerra do Porto,
+a quem deram o preço do regicidio, e o bilhete de passagem em um brigue
+para sahir para França logo que consummasse o attentado.
+
+Todas estas traições e maquinações eram cumulativas, horrorosas, e tão
+desleaes e insidiosas, como as que se urdem ao innocente que não sabe ou
+não póde defender-se. Eu estava no caso da mais perfeita ignorancia
+porque nem sabia o que era: infelizmente a minha vida era n'este tempo
+mui sujeita á fragilidade e a quedas que eu não procurava, antes tentava
+e não sabia evitar.
+
+Estes monstros da tyrannia do inferno pediam e repelliam a minha
+eleição; porque o seu fim unico exclusivo era a minha morte; só
+admittiam a meu favor algumas apparencias ou disfarces com que encobriam
+as suas tramas e horrores: eram seducções, tyrannias, convites para
+lugares de traição, venenos, e armas occultas. Se viam que eu vingava
+como advogado em Villa Real, pediam para eu ser eleito deputado só para
+me atraiçoarem em Lisboa; e logo se arrependiam, e punham todos os
+embaraços da sua infame escola e odiosa seita á minha eleição e
+elevação; se viam que eu não era morto em Lisboa desejavam que eu fosse
+para Coimbra aonde punham como ultima mira a cruz de meu martyrio e
+funeral.
+
+Como podia livrar-me de tão infernal perseguição? Os monstros não
+consentiram mais na minha eleição e ainda me propozeram pelo circulo de
+Arganil, onde fui eleito deputado no anno de 1852, mas os infames logo
+se arrependeram, e cassaram ou annullaram a eleição na camara, sem me
+ouvir, e sem me mostrar o processo das suas infernaes tramoias.
+
+Quem deixaria de eleger-me para todas as legislaturas depois de vêr e
+saber que o meu nome era singular e unico, e que a minha representação
+não tinha igual em todo o mundo e redondeza?
+
+Quando concordaram na minha eleição para suffraganeo do patriarchado
+entregaram a minha vida ao maldito e infernal nuncio, e ao abjecto e
+tredo patriarcha e ás suas seitas e partidos para se desonerarem da
+tarefa que os infames julgaram e declararam superior ás suas forças.
+
+Estes monstros esgotaram toda a traição, todas as maquinações e os seus
+enganos, e não conseguiram o que desejavam: o perfido e abominavel
+ministro do anti-papa chegou a convidar todas as seitas para o
+espectaculo do meu envenenamento, as quaes enviaram os seus deputados e
+representantes para assistir a esta scena de horror que se representou
+na presença da diplomacia cruenta das actuaes usurpações da vergonhosa
+Europa e da America por duas vezes.
+
+Só Deus omnipotente podia isentar-me de tão imminentes catastrophes. O
+nosso fim actual é descrever a burrinha protestante e a sua bestial
+condescendencia e venalidade.
+
+Um deputado que vivia na mesma casa da viuva Caraca mandou um seu criado
+ao meu quarto para me offerecer uma criada da casa em que ambos
+viviamos; eu não sabia desviar estes golpes, que o Senhor deixava ao meu
+alvedrio para o merecimento, e para que désse a devida preferencia á sua
+santa luz e mandamento.
+
+O inimigo occulto era d'uma seita de usurpadores de Deus: a sua traição
+vingou por pouco tempo; quando me tentou com alguma pessoa da sua
+familia não conseguiu o que desejava; o criado fez-lhe a traição, que
+elle me urdiu a mim.
+
+Os inimigos da nossa casa e dynastia recorreram a D. Thereza Caraca, e
+fizeram-lhe o mesmo partido, que os milanezes tinham feito á sua mãi
+para que me seduzisse e envenenasse.
+
+Prometteram-lhe dinheiro, um marido, e um emprego para este, e
+realisaram todas estas promessas, mas eu só bebi meia taça de seu
+perfido veneno; na primeira occasião que tive de lucido intervallo
+repelli a seductora, e todas as suas seducções, e, como vi que se
+obstinava, sahi da casa.
+
+O que é a verdade? esta mulher disse que estava gravida e tentou
+attribuir-me o seu ventre, ou isentar-se pelo aborto do seu nefando e
+odioso mister de calumniadora; disse-me que ia queixar-se de mim ao
+nuncio, ou agente occulto da junta apostolica que por este tempo estava
+em Lisboa, em quanto estiveram interrompidas as relações com a côrte de
+Roma. Eu zombei da perfidia e do sarcasmo d'esta mulher calumniadora e
+embusteira; e procurei livral-a de sua tentativa de aborto, o que
+felizmente consegui por dinheiro.
+
+Esta odiosa creatura teve n'este tempo dous amantes: o primeiro era um
+deputado, que a seduziu para que me envenenasse, o qual morreu pouco
+tempo depois, e logo adoeceu tão gravemente que parecia um espectro, ou
+um cadaver ambulante: era um agente dos pedreiros livres.
+
+Havia n'esta casa só duas pessoas da familia, a mãi e a filha; eu tive
+dous enlouquecimentos de falso amor; repelli duas tentativas da mesma
+perfida natureza e nojenta cavillação.
+
+D. Thereza tocava dous instrumentos e cantava, tinha um amante para
+casar que a acompanhava no canto e com o violoncello: eu comprei em
+quanto alli estive dous pintasilgos ensinados a tirar agua com o bico,
+os quaes foram ambos mortos por um gato, que havia em casa.
+
+A criada tambem teve dous amantes, um era sapateiro coxo, que a
+procurava e requestava para casar: ambos realisaram os seus casamentos.
+
+A filha da viuva Caraca tinha na mesma casa um estabelecimento de
+capella, e inculcava-se ao respeitavel publico como modista: a mãi tinha
+o seu estabelecimento de hospedaria.
+
+Eram dous estabelecimentos: a casa tinha sahida para duas ruas e duas
+portas para a rua dos Poyaes de S. Bento: viveram alli commigo cinco
+deputados, dous delegados, dous juizes do districto, dous governadores
+civis, dous juizes da antiga magistratura, dous Domingos dos quaes um
+era o atraiçoado e o enganado por todos os outros: eramos ambos
+deputados pelo circulo de Villa Real: os outros eram deputados por
+outros circulos.
+
+Os delegados foram Domingos Vieira, e José Manoel Botelho, os juizes
+foram o José Maria da Chamusca e o Quesado, os governadores civis foram
+o dr. José Maria e João Pedro Pessanha, os juizes antigos foram o mesmo
+José Maria e Domingos Vieira, e não preciso dizer quem eram os Domingos,
+senão que eu sou já tão diverso do que era, que não pareço o mesmo. Os
+cinco e seis deputados formavam as cinco e seis qualidades já referidas.
+
+Quem poderá calcular as lagrimas que tenho chorado para carpir os
+peccados e os erros da minha mocidade, e para os emendar com divina
+graça e misericordia? está-me parecendo que reunidas faziam o maior lago
+dos nossos passeios e jardins.
+
+Actualmente não como carne nem peixe não bebo vinho nem cerveja,
+passam-se quinze dias e tres semanas sem que prove doçura, nem chá, nem
+café, nem chocolate, como por medida e por peso, e não uso de carne nem
+de genero algum de tabaco, não passeio, nem vou aos espectaculos;
+prefiro andar a pé e só peço ao Senhor que se compadeça da minha alma.
+
+A burra protestante é bem parecida com a vacca, e com o burro da seita:
+eu não conversava com estas em pontos ou artigos da santa fé, o seu
+veneno era a maior traição e os seus reconditos apenas me revelaram
+parte da sua historia de Milão.
+
+Eu sempre assisti á missa mais catholica de que tinha noticia, e não
+suspeitava em ninguem cavillação ou perfidia tão negra e atroz, que
+chegasse a ostentar fé falsa da diabolica e tenebrosa consciencia: agora
+sei que ha muitas d'estas embrutecidas consciencias, e não duvido que as
+duas Caracas fossem d'este hediondo esconjuro.
+
+Os maçons são em geral d'esta sanhuda seita do inferno; os usurpadores
+de Portugal pactuam com o demonio, e entregam as almas para poderem
+possuir as leis das santas casas do divino Salvador.
+
+Mas estes venenosos monstros apenas gozam a presa: o direito santo e
+eterno foge d'elles como foge a cerração quando nasce a aurora que vem
+remir o mundo.
+
+Os mesmos inimigos recebem outro engano ou desengano semelhante quando
+tentam usurpar o poder da santa igreja para legitimar a sua tyrannia.
+
+A falsa communhão dos protestantes está no estado: não póde legitimar os
+actos do poder usurpador e dominador.
+
+O estado catholico está na igreja, e por isso legítima os seus poderes
+todas as vezes que recorre para este fim ao poder espiritual do summo
+pontifice. A era actual é a perfeição da disciplina.
+
+
+
+
+LIXO
+
+
+O snr. Joaquim Antonio de Sousa Telles de Mattos, critico erudito e
+menos conhecido que merece, publicou, em Evora, um opusculo intitulado:
+_A imparcialidade critica do snr. Joaquim de Vasconcellos._ Allude á
+_Analyse critica da versão do FAUST_. A obra do critico do snr. visconde
+de Castilho é um livro crasso que morreu de tabardões, e jaz no
+_carneiro_ das livrarias esperando que o dente roaz da carcôma o
+pulverise por modo que as letras portuguezas se desenfezem d'aquellas
+escamas de ignorancia e odio.
+
+O snr. Telles de Mattos colligiu algumas necedades graudas que denominou
+_vasconcellismos_.
+
+Abre a lista, com a novidade--_declinar_ verbos. Eis a passagem onde se
+encontra o lerdo descôco do critico de Castilho: _Nenhum doutorando dos
+ultimos cinco annos em Coimbra, estaria no caso de_ declinar _os verbos
+auxiliares allemães, sem merecer palmatoada..._ (pag. 26). E acrescenta
+o snr. Mattos: «Quando eu vi o _Sejai_ e _Estejai_ julguei que era erro
+typographico dos _germanismos_ annunciados; vendo porém _declinar_
+verbos, percebi que o snr. Vasconcellos saberá tanto de allemão como
+qualquer analphabeto nascido debaixo do paternal carinho de Bismarck.»
+
+Observa que a pag. 57 o snr. Vasconcellos inclue a Suissa na Allemanha;
+e acrescenta: «A Suissa pertence á Allemanha na geographia do snr.
+Vasconcellos; ella deve ser equiparada á sua grammatica.»
+
+Nota que o snr. Vasconcellos escrevendo: _os manes do Olympo_ (pag. 128)
+désse a perceber que os deuses olympicos tem manes. _Manes_ tanto
+significam almas dos mortos como deuses infernaes. A mythologia do snr.
+Vasconcellos é como a geographia, e não desdiz da grammatica.
+
+Cita, na pag. 208, o imperativo do verbo _ser_, _apud_ Vasconcellos:
+«_Sejai_ pois corajoso e apparecei como modêlo.» E a pag. 507: «_Sejai_
+tão infames quanto quizerdes.» E a pag. 337: «_Estejai_ dentro ao golpe
+da sineta.» _Coup de clochette_--golpe de sineta, segundo Vasconcellos.
+Em portuguez, traduz-se _badalada_, ou _toque de sineta_. Desculpem esta
+observação os alumnos de instrucção do 3.º anno dos lyceus.
+
+«Desço eu (diz o snr. Vasconcellos a pag. 239) sem cessar de cima para
+baixo.» O snr. Telles de Mattos ajunta: «Leitor, agradece a fineza: sem
+o pleonasmo, ficavas percebendo com certeza que se desce de baixo para
+cima.»
+
+Os cães, _apud_ Vasconcellos, grunhem. A pag. 273: «Tu vês um cão...
+elle _grunhe_.» A pag. 277: «Não grunhes, cão!» E torna: «Quer o cão...
+_grunhir_.» Nunca se usurpou tantas vezes a linguagem ao cevado.
+
+Se o snr. Vasconcellos estudasse portuguez pelo _Methodo_ de Monteverde,
+teria aprendido nas _Vozes dos animaes_ do snr. Pedro Diniz como vozêam
+cães e porcos.
+
+ _Muge_ a vacca; _berra_ o touro;
+ _Grasna_ a rã; _ruge_ o leão;
+ O gato _mia_; uiva o lobo;
+ Tambem _uiva_ e _ladra_ o cão.
+
+ ..........................
+
+ _Chia_ a lebre; _grasna_ o pato;
+ Ouvem-se os porcos _grunhir_;
+ Libando o succo das flôres,
+ Costuma a abelha _zumbir_, etc.
+
+Tambem Vasconcellos, traduzindo Goethe, descobriu no cão um _caroço_
+(pag. 285). Diz-lhe o snr. Telles que _Kern_ significa _pevide_ ou
+_caroço_, quand se trata de fructos; mas n'outras conjuncturas, é
+_amago_, _substancia_, etc. O snr. Vasconcellos, quando tirava os
+significados de _Kern_, achou _caroço_, e pespegou-o logo no cão; por
+isso o cão encaroçado _grunhiu_ tres vezes. Podéra...
+
+A pag. 474, escreve Vasconcellos: _ouvir por um oculo._ Eu esta phrase
+não a estranho. Mais me espantára, se elle dissesse: _vêr por uma
+corneta acustica._
+
+Dá-nos Vasconcellos a pag. 503 Tantalo _enterrado até ao queixo na
+agua._ Póde uma pessoa estar _enterrada_ na agua, e estar _submergida_
+na terra. Tambem não estranho isto; mais me assombra a coragem da
+ignorancia, se é que não ha um fado irresistivel e tolo que nasceu
+comnosco, ou _com nós nasceu_, como diz Joaquim de Vasconcellos a pag.
+339.
+
+
+
+
+BIBLIOGRAPHIA
+
+
+_Escriptos humoristicos em prosa e verso do fallecido JOSÉ DE SOUSA
+BANDEIRA, precedidos da biographia e retrato do author. Porto, 1874._--O
+berço da liberdade em Portugal foi embalado com as trovas politicas do
+redactor do _Azemel_ e do _Artilheiro_. Bandeira é o patriarcha da
+facecia jornalistica entre nós. A sua graça era da velha escóla de José
+Daniel e de José Agostinho de Macedo. Não pespontava de delicadeza: ia
+direita aos beiços do leitor e abria-lh'os forçosamente em casquinadas
+de riso. Hoje em dia, o riso é mais preguiçoso, quando folheamos estas
+paginas do livro escripto ha 38 annos. São cinzas, e cinzas esquecidas
+os estadistas que José de Sousa Bandeira motejou no tumultuoso palco
+politico de aquelle tempo; todavia, a historia não prescindirá de
+consultar os _Annaes da imprensa da liberdade restaurada_, quando houver
+de assentar de vez os vultos dos grandes obreiros do governo
+representativo; e, entre todos os archivistas das luctas d'esses dias,
+José de Sousa Bandeira foi o mais independente e afouto. Custodio José
+Vieira, talento insigne e apreciador inflexivel dos homens e das cousas,
+escreveu a biographia do jornalista com quem muitas vezes pleiteou na
+sua juventude de publicista. É um lavor incompleto, dado que na vida de
+Sousa Bandeira lhe não esquecessem os lances capitaes. É incompleto, por
+que as 83 paginas escriptas deviam prolongar-se até completar a historia
+e o proseguimento da restauração dos direitos civicos em Portugal.
+Custodio Vieira revela-se, n'este eloquente escripto, historiador
+severo. No estylo, usa as concisões de D. Francisco Manoel de Mello, e o
+atticismo dos historiographos que melhormente exemplificaram a arte de
+narrar. Se elle um dia poder furtar-se aos braços da sua amada e
+amantissima jurisprudencia (que amores!) póde ser que a historia se
+preze de brindar os portuguezes com os fastos da sua emancipação.
+
+ * * * * *
+
+_No Minho, por D. ANTONIO DA COSTA. Lisboa, 1874._--Apenas publicado,
+divulgou-se o gracioso livro de D. Antonio da Costa, escriptor provado
+em ramos de variada litteratura. Os _Tres mundos_ foi obra que affirmou
+os distinctos dotes revelados nos livros anteriores. Este do _Minho_ é o
+repousar suave de circumspectas canceiras, que asseveram meditação,
+estudo, espirito reflexivo e capacidade para tentativas avessas do
+indolente genio portuguez. Escrever 310 paginas ácerca d'estas moutas
+verdejantes do Minho, sem enfastiar, é condão de quem sabe quebrar com
+as diversões da arte a monotonia da natureza. E, depois, jornadear por
+estradas reaes, pernoitar por estalagens urbanas--em que não ha
+vislumbre de urbanidade, nem sequer misericordia--passar uma noite em
+Braga, é sentir-se a mais robusta e inventiva alma encodear de uma
+crusta de estupidez que nos faz pensar que temos no peito uma tartaruga
+sôrna. Braga, a scintillante esmeralda d'esta manilha de pedras finas
+que D. Affonso Henriques tirou do pujante braço de Hespanha, Braga seria
+a querida dos forasteiros de todo o mundo, se as camas das suas
+hospedarias não fossem alfobres de insectos _apteros_ com seis patas, e
+_hemipteros_ com azas, segundo Cuvier. Sei que no Indostão ha hospicios
+em que as pulgas são pensionadas e medicadas nas suas enfermidades. Sei
+que os indostanicos respeitam o dogma da metempsychose, e se deixam
+sugar devotamente por ellas; mas nem Braga é Aurengabad, nem eu sou da
+raça mahratta, nem tenho razões bem assentes para desconfiar que o
+espirito de minha avó se compraz em me morder no hotel Real de Braga.
+
+Não encontro memoria d'este martyrio no livro do snr. D. Antonio da
+Costa. Attribuo a omissão á delicadeza do martyr. Ha tormentos tão sujos
+que o relatal-os em gemidos é indecencia consignada no _Compendio de
+civilidade_ do snr. João Felix. Se bem me lembro, Boileau cantou a pulga
+em magnificos alexandrinos; hoje em dia; nem á pedestre prosa se
+consente rolar uma lagrima sobre a cutis sevandijada por estes e outros
+carnivoros creados em um dos sete dias genesiacos... para satisfação e
+proveito do homem.
+
+O meu amigo D. Antonio da Costa, convisinhando do snr. Manoel dos
+Malhos, que roncava impenetravel ás harpias do hotel, chorou
+copiosamente no capitulo intitulado: _Uma insomnia._ Quem sabe se,
+n'aquella noite, as luras epidermicas da casca de Manoel dos Malhos
+attrahiram as hordas a desenxovarem n'ellas as suas larvas e nymphas?
+Eu, n'aquellas estalagens, encontro sempre dous Manoeis dos Malhos, um
+de cada lado, e os outros bichos no meio.
+
+Formal e substancialmente são admiraveis os capitulos d'este livro,
+intitulados _O Bom Jesus do Monte_, _Um castello feudal em 1873_, _A
+mulher do Minho_, e a _Ultima impressão_. N'estas paginas que fecham o
+livro reluzem os entranhados desvelos com que o snr. D. Antonio da
+Costa, ha tantos annos, afaga as criancinhas carecidas da segunda alma
+da educação. Este capitulo é um obelisco de gratidão publica e amoravel
+a perpetuar a memoria de D. Maria Francisca dos Santos Araujo, abastada
+senhora de Leça que fez do seu ouro um quinto evangelho de propaganda
+caritativa. «Ah, senhora!--escreve o eloquente enthusiasmo do obreiro da
+instrucção--devem de ser formosos os vossos momentos, quando na escóla
+que edificastes vos achardes rodeada das meninas que se estão educando
+no vosso bafo, e não menos quando sahindo d'alli festejada por ellas, ao
+passardes pelas ruas de Leça, chegarem ás portas todas aquellas mães com
+as filhinhas mais pequenas ao collo, e fordes vendo todas essas mães
+apontarem para vós, dizendo alvoroçadas para as crianças: _É aquella!_»
+
+O livro _No Minho_ está julgado por 1:500 leitores que o já possuem; e,
+todavia, annunciou-se a excellente obra nos primeiros dias de julho. Não
+são triviaes estes triumphos em Portugal, repetidos com as mais notaveis
+producções do benemerito escriptor. Aquelle grave e philosophico livro
+dos _Tres mundos_, relido com intelligente ardor e creio que já
+reimpresso, attesta que renasce n'este paiz o afan do estudo, e o gosto
+da instrucção solida. Deviamos vir a isto, depois do cataclysmo de
+palavrorio e marmanjarias com que uns sycambros andaram por ahi a querer
+derrancar a mocidade. Não póde o illustre escriptor frizar de todo a sua
+indole peculiar ao genero escoteiro--digamol-o assim--d'estas cousas
+levissimas e quasi futeis que se escrevem em jornadas de fronteiras a
+dentro. O modêlo, que Almeida Garrett imitou dos francezes, é um estorvo
+que desanima. O romance, interposto na viagem, era em 1840 um dôce
+engodo, e foi grande parte na prosperidade do livro. Estavamos ainda no
+periodo romantico. A menina dos rouxinoes devia ser contemporanea dos
+bardos que se inspiravam das proprias cabelleiras á Saint-Simon. Os
+rapazes d'aquelle cyclo acreditavam em Garrett, e andavam saturados do
+amor dos Espronceda e Musset.
+
+Hoje, não. O livro do snr. D. Antonio da Costa é, a intervallos,
+condimentado das grandes questões do dia, da vitalidade regeneratriz que
+estúa no pulso de todas as forças. Se parte dos leitores o desejam mais
+futil, ha de haver muito quem assim o estime em dobro. Eu, de mim, achei
+n'estas trezentas paginas o sorriso alegre, a meditação melancolica, o
+rebate saudoso de perdidos contentamentos, o estimulo a considerações de
+porvindouros beneficios a filhos e netos--consolação unica, mas santa,
+que a Providencia dá aos que não esperam nada da vida presente.
+
+ * * * * *
+
+_Phantasias e escriptores contemporaneos, pelo VISCONDE DE BENALCANFÔR.
+Porto, 1874._--Ricardo Guimarães, com o camartello do folhetim, derruiu
+o carroção, no Porto, ha vinte annos. O carroção tinha, por aquelle
+tempo, dous seculos de moda. Fôra inventado na rua das Cangostas para
+uso de uma familia obesa, formada de quinze pessoas adiposas. Esta
+familia derreteu-se no estio de 1650; mas o carroção ficou.
+
+No lapso de duzentos annos, o carroção, parado no largo da Batalha, com
+a lança vermelha atravessada nas sôgas dos ramalhudos bois, viu passar e
+desapparecer todos os vehiculos adelgaçados pelo cepilho do progresso. O
+carroção escancarou as goelas, e riu da americana, da victoria, do
+phaetont, do landeau, da caleche, do dog-cart, da tipoia, do coupé, do
+tilburi, do daumont, do brougham, do mail-coach, do poncy-chaise, do
+groom, do break. Ricardo Guimarães, fundibulario da hoste moderna,
+carregou a funda de estylo, remessou-a ao Golias de couro; e o gigante,
+arrastado pelos bois que mugiam saudosos da palha-milha que comiam á
+porta do theatro lyrico, dispersou os membros por Barcellos, Famalicão e
+regiões visinhas. O milagre não fôra obra de um homem nem de uma geração
+de espiritos finos. Fôra o estylo de Ricardo Guimarães--o estylo que é a
+dynamisação de todas as forças, desde a polvora até á dynamite, desde a
+alçaprema de Archimedes até á machina de Papin. Era uma delicia o
+escrever d'este rapaz, e outra delicia o modo como entornava no papel os
+brilhantes paradoxos, as hyperboles ridentes, as metaphoras
+originalissimas. Era meu companheiro de hotel (que hotel, ó Ricardo!) em
+1855. Escrevia artigos politicos de madrugada, na calma, entre meio dia
+e uma hora, do seguinte feitio: tinteiro e papel no sobrado; elle
+adaptava-se horisontalmente ao colchão, na postura de quem espreita a
+profundidade de uma cisterna, descia o braço direito até ao pavimento, e
+escrevia lá em baixo. Assim tratava Ricardo Guimarães, de bôrco, a
+politica do _Nacional_, no soalho, como quem deita migalhas a uma pêga.
+
+Depois, um dia, enfardelou os fraques e os vernizes, os retratos de
+algumas mulheres formosas e os economistas mais avançados, desdobrou as
+azas da sua arrojada phantasia, deu um sorriso aos seus amigos, e...
+adeus! D'ahi a pouco, deputado, esposo, pai. Fez-se um silencio de annos
+na sua voga de escriptor. Os seus camaradas, que haviam afivelado com
+elle a espora de cana em algaras litterarias, trajaram luto quando se
+convenceram que o _visconde de Benalcanfôr_ era o epitaphio de _Ricardo
+Guimarães_.
+
+Eil-o que resurge com as feições mais accentuadas, o sorriso menos
+expansivo e mais hervado de ironia, a graça mais palaciana, a satyra com
+oculos verdes para que a não acoimem de estouvada, e as antigas imagens
+de sua invenção com decote que não deixe vêr a curva da espadua.
+
+D'esta reforma, salvou o visconde de Benalcanfôr as facetas
+resplandecentes do estylo, deveras portuguez na palavra, francez no
+boleio da phrase--ligação que é uma formosura, quando o escriptor tem a
+consciencia d'essa difficultosa amalgama.
+
+Tem o visconde publicado os melhores livros que possuimos ácerca de
+viagens. Este das Phantasias seria aquelle que eu mais encarecesse em
+quilates de graça e critica, se me não visse ahi tão amigavelmente
+indulgenciado em onze paginas. Ponderei, gravemente, meu caro Ricardo,
+n'este livro o teu capitulo, intitulado ELOGIO MUTUO. Tu, com certeza,
+antes queres de mim uma reminiscencia da juventude, que os tardios e
+quasi inuteis gabos feitos ao teu assignalado talento.
+
+ * * * * *
+
+BERNARDINO PINHEIRO. _Amores d'um visionario, romance historico original
+do seculo XVI. 2 tom. Lisboa, 1874._--Se a linguagem das civilisações
+adiantadas e os pensamentos de perfectibilidade humana podessem
+pensar-se e exprimir-se no seculo XVI, este romance do snr. Bernardino
+Pinheiro corresponderia, cabalmente, á qualificação de _historico_. A
+illusão desfaz-se a cada pagina, sempre que os personagens entendem na
+questão do progredir social. Que Antonio de Gouvêa, o heroe do livro,
+depois de ouvir, na Europa litteraria e convulsa de reformas, as
+theorias dos adversarios do papa e do dogma, propagasse idéas e palavras
+novas em Portugal, é possivel; mas que a freira do Salvador, e D.
+Margarida de Lencastre, e a escrava liberta discreteassem tão eloquentes
+e progressistas ácerca dos direitos do homem, da emancipação do escravo,
+da liberdade do pensamento, repugna aceital-o a razão, posto que de bom
+animo nos affeiçoemos á vehemencia e esplendor d'essas phrases
+intempestivas.
+
+Mulheres illustradas, se as houve em Portugal no seculo XVI, são umas
+que o snr. Pinheiro nos mostra em um dos admiraveis capitulos do seu
+livro. As paginas descriptivas de _Uma academia feminina do seculo XVI_
+quadrariam em livro da mais selecta historia do reinado de D. João III.
+Alli estão as Sigéas, que não gozam fama de pudentissimas escriptoras,
+se um poema erotico as não calumnía. Pois, n'esses completos moldes que
+o snr. Pinheiro nos deu da sciencia feminil, está o maximo, o ultimo
+estadio do alcance intellectual da mulher. Soror Maria, a monja que, de
+escrupulosa, não ousava erguer o véo a sós com o amante, revelou
+incapacidade para discorrer tão liberrima, na carta a Gouvêa, ácerca das
+regalias do coração. Escrevendo ácerca de uma visionaria, diz a freira
+ao seu amado: «Os espiritos convictos são logicos. O fanatismo tem as
+suas leis fataes--e, por vezes, posto que raras, felizes...» E
+acrescenta com intelligente ironia: «Que enormissimos criminosos que nós
+somos:--amamo-nos, e acreditamos no evangelho puro!... Quando serão no
+mundo livres o pensamento e o amor?!»
+
+A freira em 1548, podia delinquir porque era mulher; mas não saberia
+desculpar o seu delicto com argumentos d'aquella natureza. E soror
+Maria, se tivesse no corpo o demonio incubo da philosophia, quando abriu
+a porta da cerca monastica ao amante, sahiria por ella, em vez de,
+colhida em flagrantes amorios, pedir misericordia á mestra de noviças.
+Teria feito o que fez depois, independente de luzes que lhe mostrassem a
+nullidade e tyrannia dos votos de reclusão, castidade e pobreza.
+
+Esta macula é resgatada por nitidissimas paginas que manifestam o
+historiador avantajando-se ao romancista. O capitulo XVIII
+(_Illustrações em Coimbra_) é labor bastante a graduar um espirito culto
+na convivencia dos varões insignes do seculo XVI. A disposição do grupo
+é magnifica. Alli se admiram os luzeiros que chammejaram á volta da alma
+negra de João III e não vingaram esclarecel-a.
+
+O quadro do auto de fé em que Antonio de Gouvêa é salvo da fogueira pela
+cohorte dos escravos, é tão vigorosamente desenhado quanto inverosimil.
+Os frades de S. Domingos não se deixavam embair por tretas nem
+sancadilhas á sua credulidade, quando queimavam herejes da laia de
+Gouvêa. Não obstante, esse trance, pelas commoções que produz,
+dispensa-se dos realces da naturalidade.
+
+Em summa, _Os amores d'um visionario_ é um livro que merece graduar-se
+entre os bons romances portugueses, tanto pelos predicamentos da
+imaginação, como pelo subsidio de historia que presta ás pessoas
+desaffectas a demorados estudos.
+
+
+
+
+POBREZA ACADEMICA
+
+
+O secretario da academia real das sciencias de Lisboa, José Bonifacio de
+Andrade e Silva, escreveu a monsenhor Ferreira Gordo, pedindo-lhe um
+donativo para ajuda de se pagar o busto do duque de Lafões, D. João
+Carlos de Bragança, que a mesma academia desejava collocar em uma das
+suas salas. O sabio monsenhor respondeu com circumspecção e graça por
+meio da seguinte carta, que está inedita:
+
+
+«Poderá v. s.ª certificar em meu nome á academia, que eu estou disposto
+a concorrer com o contingente, que me couber, guardada a proporção
+arithmetica, para o monumento, que pretende dedicar á memoria sempre
+saudosa do seu illustre fundador, e que aproveitarei de bom grado todas
+as occasiões, em que possa dar-lhe mostras do meu reconhecimento pelo
+muito, de que lhe fui devedor. Mas não se achando todos os socios n'este
+empenho, e fallecendo á maior parte d'elles meios, para fazer donativos
+d'esta natureza, parece-me que a academia teria resolvido com mais
+prudencia, e circumspecção decretando que a despeza do dito monumento
+sahisse inteiramente dos seus fundos. Que póde doar sem detrimento seu
+um religioso, não sendo commissario da Terra Santa, prior geral dos
+conegos regrantes de Santo Agostinho, abbade geral do mosteiro de
+Alcobaça, ou ministro provincial dos menores observantes de qualquer das
+duas provincias de Portugal e Algarves? Que rendimento tem um professor
+regio de humanidades, um lente da universidade, um ministro, e qualquer
+outro funccionario publico, que na fallencia de bens patrimoniaes, lhe
+não seja indispensavel para sua mantença? Dirá alguem que a academia
+roga, e não manda, e isto é verdade; mas como ninguem quer o fóro de
+pobre, nem ser marcado com a nota de pouco officioso, esta rogativa virá
+a ser para a maior parte dos socios, o effeito de um rigoroso
+mandamento. De mais se a academia é real, se todos os seus trabalhos se
+dirigem a fazer prosperar, e florecer os estados de quem lhe deu este
+titulo, e a subsistencia, e se até agora tem gozado a singular
+prerogativa de ser presidida por uma personagem de sangue real, acho
+muito improprio, que a despeito, de tudo isto, se lhe queiram dar os
+attributos de uma irmandade religiosa, fazendo dependente da caridade de
+seus irmãos, e não do seu patrimonio, qualquer despeza extraordinaria,
+que emprehender. Perdôe v. s.ª como secretario a liberdade, que tomei,
+que como meu amigo que é, tenho certeza me desculpará, se o que acabo de
+escrever se encontrar com o seu parecer, que muito respeito.»
+
+
+Os academicos de hoje são outra casta de gente, quanto a pelintraria. Se
+não fazem bustos, é porque ainda estão vivos todos os sujeitos que hão
+de resuscitar no marmore e no alabastro. Aquelles salões desertos hão de
+ser povoados de estatuas, quando as cangas de sabios que hoje lavram os
+baldios da sciencia, se foram a pascer nos almargens da immortalidade.
+Medita a geração nova no modo de os entrajar, pois que a funeral casaca
+destôa das arrojadas manias e sabenças de cada sujeito. Creio que
+deveremos apparecer, nós, os academicos, cada qual com seu caranguejo
+symbolico na mão operosa. O mocho, a ave de Minerva, apenas cabe de
+direito ao snr. João Felix Pereira, o pervigil diurno e nocturno.
+
+
+
+
+SOBRE ANSELMO
+
+
+Usam dizer algumas pessoas assalteadas por bandidos da imprensa: «Não
+respondo, porque o insultador é canalha.» Isto é um desacerto. Não ha
+canalha irrespondivel. Todo o infame que calumnía representa uma
+parcella da opinião publica. E essa parcella, malevola ou enganada, crê
+esmagar o calumniado quando o interprete de seus odios ou preconceitos
+tem no espinhaço a couraça repulsiva do escaravêlho, invulneravel aos
+bicos da penna e aos loros do látego.
+
+Anselmo é um como isso. E, todavia, eu respondo a um grupo de sujeitos
+representados na imprensa por Anselmo. Separal-o individualmente, e
+atagantal-o, isso é que de modo nenhum. O sapo esguicha um pus fetido
+quando lhe verberam as pustulas do couro. Não se bate em homens d'esta
+laia, desde que o pelourinho e o açoute foram expungidos da lei.
+
+Convém saber que Anselmo não escreve: assigna. Theophilo Joaquim
+Fernandes é o tubo intestinal por onde Anselmo estrava a alma
+excrementicia; ao mesmo tempo que Anselmo é a testa polida (não é
+tartaruga: finge) em que Joaquim escreve as suas protervias a carvão.
+Theophilo, o ignorante que eu abafei com a critica risonha, sem lhe
+impor alçada ás devassidões notorias, resfolga nas iras do outro. É a
+vingança negra do mais safado caracter que ainda sahiu desembolado ao
+curro das letras.
+
+No impresso assignado por Anselmo de Moraes encontrei duas aleivosias
+que me doeram por estar conspurcado n'ellas o nome serio do snr. José
+Gomes Monteiro, invocado como authoridade no meu descredito. São as
+seguintes:
+
+
+«Da cadêa começou Camillo a abrir brecha para a rapina na casa Moré,
+mandando ahi mostrar um romance de descompostura ao dignissimo
+procurador regio, que não lhe tolerou certas obscenidades no carcere; o
+amigo do procurador regio, gerente da dita casa, teve de pagar o romance
+para poupar um desgosto ao magistrado respeitavel. Ainda não ha muito
+tempo que o snr. José Gomes Monteiro se refugiou no nosso escriptorio
+para evitar o encontro de Camillo na loja Moré, que ia alli armar uma
+_escroquerie_, com o fim, dizia elle, de pagar uma decima...
+
+«Ultimamente comprometteu a sorte de Vieira de Castro com a sua defeza;
+explorou a desgraça do amigo com o drama o _Condemnado_, que vendeu a
+dous individuos.»
+
+
+Pedi ao snr. José Gomes Monteiro, antigo gerente da casa Moré, e editor
+do _Condemnado_, que se dignasse ajudar-me a interpretar estas
+deshonrosas referencias a um romance que s. exc.ª me pagára para não ser
+publicado, a uma fuga de s. exc.ª no escriptorio de Anselmo para se
+furtar a uma _escroquerie_; e finalmente á dupla venda do drama _O
+Condemnado_ a s. exc.ª e a outro simultaneamente.
+
+O snr. José Gomes Monteiro, na volta do correio, respondeu d'esta fórma:
+
+
+ _Snr. Camillo Castello Branco._
+
+
+Meu amigo.
+
+
+Acabo de receber a carta de v. datada de hontem, incluindo o impresso
+que Anselmo de Moraes fez aqui circular. Apresso-me em responder-lhe.
+
+O primeiro periodo marcado por v. allude ás _Memorias do Carcere_ cuja
+editação v. me veio propor em seguida á do _Amor de Perdição_. Ajustamos
+a publicação d'essa obra antes de eu ter lido o original, que só no dia
+seguinte me foi entregue. Li então o manuscripto aonde encontrei algumas
+expressões que me pareceram offensivas da reconhecida probidade do
+conselheiro Camillo Aureliano da Silva e Sousa, então procurador regio
+junto á Relação do Porto. Por este motivo tive de devolver o original a
+v. rogando-lhe houvesse por nulla a nossa convenção, por isso que eu
+não podia ser editor de um livro em que de certo por erradas
+informações, era maltratado um amigo meu, que eu tinha na conta de
+magistrado integerrimo e de honradissimo cavalheiro. V. veio
+immediatamente procurar-me e aceitando o meu testemunho como a expressão
+da pura verdade, confessou ter sido mal informado ácerca da immaculada
+probidade do meu amigo. Voltou o manuscripto devidamente reformado e v.
+não se limitando a expungir as phrases que eu havia condemnado, fez
+generosamente justiça ao honrado magistrado. Publicou-se o livro e elle
+mesmo dará testemunho da inexactidão do que se affirma no citado
+impresso, de que eu me vira obrigado a pagar um romance escripto por v.
+contra o meu amigo para lhe poupar um desgosto.
+
+Confesso não ter guardado rigorosa reserva sobre este incidente, do que
+sinceramente me peza, visto que a minha indiscrição deu lugar a que os
+factos fossem desfigurados em desabono de v.
+
+V. não precisa de certo que eu o justifique, nem me justifique a mim de
+me haver um dia refugiado no escriptorio do signatario do impresso para
+me subtrahir a um pedido de v. Declaro com toda a ingenuidade não me
+recordar d'esse grave capitulo de accusação dirigido não sei se a mim se
+a v. O que afoutamente posso asseverar é que nas muitas transacções
+commerciaes que temos tido encontrei sempre em v. a maior franqueza e
+inexcedivel probidade. Não é por isso verdade que v. depois de me haver
+vendido a propriedade do drama _O Condemnado_ o tivesse subrepticiamente
+vendido tambem a outra casa editora. É verdade que d'este drama se veio
+a fazer no Rio de Janeiro uma contrafacção, mas tenho completa certeza
+de que v. fôra inteiramente alheio a esta fraude, que a falta de um
+tratado com o Brazil infelizmente authorisa.
+
+V. fica authorisado a fazer d'esta minha carta o uso que lhe convier.
+
+Sou como sempre
+
+ De v. etc.
+
+Porto, 25 de julho de 1874.
+
+ _José Gomes Monteiro._
+
+
+Apraz-me grandemente o publico testemunho d'esta carta, no momento em
+que as minhas relações sociaes e commerciaes com o snr. José Gomes
+Monteiro se desatam. Eu não poderia, sem impostôra inutilidade,
+fingir-me amigo de s. exc.ª desde que do contexto da sua carta se
+deprehende que o snr. Gomes Monteiro não se recorda bem se fugiu de mim
+para o escriptorio de Anselmo. Figura-se-me mais consentaneo ao honesto
+caracter do snr. Gomes Monteiro negar-se pela palavra a um favor pedido,
+e não pelo escondrijo no escriptorio de Anselmo a quem, pelos modos, s.
+exc.ª não disse _que nas muitas transacções commerciaes que tivera
+commigo encontrára sempre a maior franqueza e inexcedivel probidade_.
+
+Tirante esta feição mais attendivel do impresso, o remanescente é
+indiscutivel nos prelos e nos tribunaes. Tenho vergonha das infamias
+alheias, e respeito os nomes das pessoas que ahi se ultrajam.
+
+No entanto, não me esquivo a tocar dous episodios da minha biographia,
+que lá vem contados:
+
+Que eu guardara cabras em Villa Real.
+
+Quer o leitor saber onde Theophilo foi esquadrinhar este indecoroso
+lance da minha vida? Em um livro meu, chamado DUAS HORAS DE LEITURA,
+escripto ha 20 annos. Sou eu que, em uma carta ao meu fallecido amigo
+José Barbosa e Silva, conto assim o caso das cabras:
+
+
+«Aos meus dez annos, levantou-se uma tempestade no seio da minha
+familia. Uma vaga levou meu pai á sepultura; outra atirou commigo de
+Lisboa, minha patria, para um torrão agro e triste do norte; e a
+outra... Não merece chronica a outra: arrebatou-me um esperançoso
+patrimonio. Foi bem pregada a peça, para que eu não tivesse a impudencia
+de nascer, a despeito da moral juridica, filho natural de não sei que
+nobre. Disseram-me que uma lei da snr.ª D. Maria I me desherdava. A boa
+da rainha, se tivesse amado mais cedo um certo bispo, não legislaria tão
+cruamente para os filhos do peccado; Denominava-se a _piedosa_, pela
+mesma razão que um rei nosso, soprando a fogueira de vinte mil hebreus,
+se chamou o _piedoso_... Fui educado n'uma aldêa, onde tenho uma irmã
+casada com um medico, irmão de um padre, que foi meu mestre. O mestre
+podia ensinar-me muita cousa que me falta; mas eu era refractario á luz
+da gorda sciencia do meu padre. Fugia de casa para a serra, dava muitos
+tiros ás gallinholas e perdizes... O meu gosto era (_hic_, cabras)
+pascer o rebanho de casa por aquelles saudosos valles. Todavia, minha
+irmã oppunha-se a este humilde serviço. Dizia-me cousas que eu não
+percebia ácerca da minha dignidade, reprehendia os meus baixos
+instinctos, attrahia ao seu voto o marido e o padre, e cortava-me o
+rasteiro vôo, escondendo de mim a clavina, o polvorinho, os salpicões, a
+brôa, e a cabacinha da aguardente. Não obstante, eu pedia tudo de
+emprestimo, e ia com as ovelhas para o monte. Passava lá o dia inteiro,
+sentado nas espinhas d'aquelles alcantis fragosos, sempre sósinho,
+scismando sem saber em quê, engolfada a vista nas gargantas dos
+despenhadeiros.»
+
+ * * * * *
+
+A respeito de cabras, não ha mais nada nos archivos impressos, que eu
+deva transmittir á posteridade.
+
+Ai! meu saudoso rebanho! Provavelmente, d'este lidar com cabras é que me
+ficou o sestro e coragem de aparar as marradas de cabrões, como Anselmo.
+
+N'essa mesma carta a Barbosa e Silva, conto eu que ajudava diariamente á
+missa a cinco sacerdotes. O sarrafaçal deixou escapar o ensejo de dizer
+ao publico que eu tambem fui sacristão.
+
+E a historia da filha do taberneiro, que me deu um fato novo e uma moeda
+para eu lhe casar com a filha; e vai eu pego a fugir com o fato e a
+moeda e deixo a rapariguinha perdida!
+
+Desbragada porcaria!
+
+Ó meus amigos de Villa Real, ou lá d'onde se passou o caso
+infando! Procurai a miseranda menina; e, se a topardes n'alguma
+gafaria--derradeira paragem da espiral das perdidas--trazei-a a casa
+d'este Anselmo para lhe agradecer o pregão que a vinga, e para lá se
+rehabilitar, vendo-se honesta em contacto com certo exemplo femeal de
+podridão d'alma e corpo.
+
+ * * * * *
+
+Despedi-me, ha dias, de assignante da _Actualidade_. Estou arrependido.
+Devemos todos contribuir com alguns cobres para que Anselmo de Moraes
+não seja forçado pela necessidade a _picar-nos_ (giria d'elle) o paletó
+no cunhal da viella da Neta. Em quanto aquelle archi-pulha tiver gazeta,
+o seu pão, embora deshonrado, garante-nos do assalto nocturno. Não lhe
+leio mais o jornal; mas dou-lhe a esmola dos 240 reis mensaes. Mande-os
+receber em quanto a espinha em via de amollecimento me consentir
+subscrever com seis patacos, a fim de que elle me não liquide a cadêa do
+relogio.
+
+É verdade: affirma o impudentissimo caloteiro que tem lá uns titulos do
+saldo de nossas contas.
+
+A fim de que esses documentos appareçam, offereço o seguinte e perpetuo
+supplemento a todos os numeros da _Actualidade_:
+
+
+ANSELMO DE MORAES É RADICALMENTE LADRÃO, COM UM CORTEJO DE TORPEZAS
+ESPECIAES E RARAS NOS LADRÕES MAIS DESPEJADOS.
+
+
+
+
+AO PUBLICO
+
+
+AO PUBLICO
+
+Distribuiu-se ahi ha dias com generosa profusão um libello famoso por
+motivos a que sou completamente estranho, mas em que nem por isso
+quizeram que eu deixasse de figurar.
+
+Indignou por ahi a todos a alludida publicação, sem exceptuar os
+proprios amigos ou parciaes do signatario d'ella, o snr. Anselmo de
+Moraes. Dou-me com isso por bem vingado das malevolas intenções que me
+apontaram ás iras atravessadas do insultador enraivecido. Não ha
+desforço pessoal que valha tanto, e, ainda que o houvesse, não seria eu
+que o tirasse. A dignidade nem sempre manda procurar o aggressor, antes
+ás vezes exige que se evite.
+
+O meu fim é, pois, sómente esclarecer o publico, a quem respeito, como
+devo, e de quem quero continuar a merecer bom conceito, ácerca da
+perfida insinuação com que se intentou manchar a minha probidade
+commercial, que só d'isto posso aqui fallar sem offensa da moral
+publica. Obrigou-me aquella insinuação a dirigir-me ao exc.mo snr. José
+Gomes Monteiro, que, como homem de bem, se dignou dar-me o testemunho
+que se segue:
+
+
+ _Snr._
+
+_Respondendo restrictamente á carta que de V. acabo de receber,
+cumpre-me declarar, como o exige o meu caracter, que durante o tempo que
+sob a minha direcção V. serviu a casa da snr.ª viuva Moré, nunca d'ella
+subtrahiu cousa alguma ou quantia e prestou regularmente as suas
+contas._
+
+ _De V._
+
+_Porto 28, 7, 74._
+
+ _attento venerador_
+
+ _José Gomes Monteiro_
+
+
+Depois d'isto seria de mais tudo quanto eu podesse dizer. Fica o publico
+habilitado para fazer o seu juizo.
+
+ _Ernesto Chardron._
+
+
+
+
+FIM DO 8.º NUMERO
+
+
+
+
+EMENDAS AO N.º 7
+
+
+Pag. 47, lin. 15: quer-me _parece_, emende: quer-me _parecer_.
+
+Pag. 95, lin. 10: _king-charles_, emende: _king's-charles_.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
+não póde dormir. Nº8 (de 12), by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) ***
+
+***** This file should be named 28128-8.txt or 28128-8.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
+ https://www.gutenberg.org/2/8/1/2/28128/
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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+will be renamed.
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+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
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+works. See paragraph 1.E below.
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+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
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+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
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+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
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+ Dr. Gregory B. Newby
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+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
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+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
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+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
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+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
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+any statements concerning tax treatment of donations received from
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+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
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+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
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+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
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+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
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+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº8 (de 12)
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: February 19, 2009 [EBook #28128]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) ***
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+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
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+</pre>
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+<span class="pagenum">[1]</span>
+
+<div class="capa">
+<p style="font-size: 1.2em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p>
+<hr style="width: 6em;">
+
+<p style="font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">OFFERECIDAS</p>
+
+<p>A QUEM NÃO PÓDE DORMIR</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">POR</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">Camillo Castello Branco</p>
+<hr style="width: 3em;">
+
+<p style="font-size: 0.7em;">PUBLICAÇÃO MENSAL</p>
+<br>
+
+<hr style="width: 3em;">
+
+<p style="font-size: 0.9em;">N.º 8&mdash;AGOSTO</p>
+<hr style="width: 3em;">
+
+<table width="100%" summary="endereço editor">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <th colspan="2">LIVRARIA INTERNACIONAL<br>
+ <span style="font-size: 0.7em;">DE</span> </th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="border-right: solid 1px #000000;"><span
+ style="font-size: 0.9em;">ERNESTO CHARDRON <br>
+ <em>96, Largo dos Clerigos, 98</em><br>
+ <strong>PORTO</strong> </span> </td>
+ <td><span style="font-size: 0.9em;">EUGENIO CHARDRON<br>
+ <em>4, Largo de S. Francisco, 4</em><br>
+ <strong>BRAGA</strong> </span> </td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+<hr style="width: 2em;">
+
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[2]</span>
+
+<div id="impressor" style="text-align: center;">
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+
+<hr style="width: 8em;">
+
+<p>PORTO</p>
+
+<p style="font-size: 0.9em;">TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">68&mdash;Rua da Cancella Velha&mdash;62</p>
+<hr style="width: 2em;">
+
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[3]</span>
+
+<div id="sumario">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p>
+<hr style="width: 4em;">
+
+<p style="text-align: center; font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p>
+<hr style="width: 4em;">
+
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;"><strong>SUMMARIO</strong></p>
+
+<p><em><a href="#cap01">Os salões, pelo exc.<sup>mo</sup> visconde de
+Ouguella</a> &mdash;<a href="#cap02">Subsidios para a historia da serenissima casa
+de Bragança</a> &mdash;<a href="#cap03">O paço real da Ribeira</a> &mdash;<a
+href="#cap04">As Cruas entranhas de D. Maria 1.ª, a Piedosa</a> &mdash;<a
+href="#cap05">D. Maria Caraca Bonaparte</a> &mdash;<a href="#cap06">Lixo</a> &mdash;<a
+href="#cap07">Bibliographia</a> &mdash;<a href="#cap08">Pobreza academica</a> &mdash;<a
+href="#cap09">Sobre Anselmo</a> &mdash;<a href="#cap10">Ao Publico</a></em></p>
+</div>
+<span class="pagenum">[5]</span>
+
+<div id="corpo">
+<hr>
+
+<h1><a id="cap01" name="cap01">OS SALÕES</a></h1>
+
+<h2>CAPITULO VI</h2>
+
+<h2>UMA AURORA</h2>
+
+<blockquote style="font-size: 0.9em; margin-left: 30%;">
+ <p>Opprimé par des déspotes, qui, á leur tour, étaient menés par les
+ jésuites, et asservi sous le pouvoir sans frein des prêtres et des nobles, ce
+ petit peuple menait ainsi, sans aucun doute, pendant la première moitié du
+ dix-huitième siècle, l'existence la plus miserable parmi toutes les nations
+ de l'Europe.</p>
+
+ <p style="text-align:right;">GERVINUS.</p>
+
+ <p>L'histoire n'est jamais faite, on la refait sans cesse.</p>
+
+ <p style="text-align:right;">VOLTAIRE.</p>
+
+ <p>Les hommes embrassent volontiers avec une ardeur violente les rêves qu'ils
+ se font, mais ils ne veulent point qu'on les leur impose.</p>
+
+ <p style="text-align:right;">ARSÈNE HOUSSAYE.</p>
+
+ <p>Ignota obscur&aelig; viderunt sidera noctes,<br>
+ Ardentemque polum flammis, c&oelig;loque volantes<br>
+ Obliquas per inane faces....</p>
+
+ <p style="text-align:right;">LUCANO.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Nos confins do globo, nas regiões arcticas, ao tocarmos as ultimas zonas
+habitadas, toma a<span class="pagenum">[6]</span> existencia proporções fabulosas. Expiram, alli, todas as
+ousadias, todos os commettimentos, todas as aspirações dos mais intrepidos
+navegadores.</p>
+
+<p>É longo o obituario dos homens illustres, que teem perecido, abandonados,
+n'estas epopêas ignoradas. Seriam famosas as chronicas, onde se compendiassem
+as façanhas, os esforços heroicos, as luctas incessantes, e a coragem
+inexcedivel dos martyres, que vão perdendo a vida em busca d'aquellas solidões
+polares.</p>
+
+<p>Todas as proezas que a antiguidade nos narra: os doze trabalhos de Hercules,
+a entrada no formoso jardim das Hesperides, as excursões em demanda do
+vellocino de ouro, o ousado empenho de transpor o labyrintho de Creta, o
+maravilhoso e demorado cerco de Troya, a viagem aventurosa de Ulysses
+procurando a patria, a retirada heroica de dez mil gregos pelo interior da
+Asia, as conquistas de Alexandre, as invasões de Sesostris, a fundação de
+Sparta, de Athenas, de Roma, e de Carthago&mdash;finalmente as narrações de Homero,
+Xenophonte, Herodoto, Diodoro, Thucydides, Quinto Curcio, Tito Livio,
+Plutarcho, e Eutropio, e ainda as creações grandiosas, que remontam aos tempos
+pre-historicos dos vedas, do Maha-Bharata, do Ramayana, do Kalidasa, e do
+Boudha<span class="pagenum">[7]</span> Sakya-Mouni, todos estes mythos, todas estas epopêas, todas estas
+lendas, todas estas luctas titanicas, todas estas épicas aventuras são debeis
+esforços, limitadissimos exageros, vagas e triviaes descripções, em presença
+dos arrojos de Vasco da Gama, de Pedro Alvares Cabral, de Christovão Colombo,
+de Américo Vespucio, de Magalhães, de Franklin, de Cooper, e de não sei quantos
+outros navegadores e descobridores temerarios, que teem avassallado os dous
+oceanos, indo, alguns d'elles, povoar, com os seus esqueletos, as regiões
+remotas dos gelos polares.</p>
+
+<p>Ha um parallelo formidavel e tremendo entre a vida physica e moral da
+humanidade. As leis, que regem o espirito e a materia caminham a par.</p>
+
+<p>O alvorecer da liberdade, quando um povo desperta do lethargo da escravidão,
+assemelha-se á luz vaga e indecisa, com que a natureza previdente, e sempre
+mãi, acode á escuridão das immensas noites arcticas.</p>
+
+<p>Contemplemos.</p>
+
+<p>Em phases astronomicamente determinadas, o facho de luz, que arrasta este
+globo, acariciando-o, e alimentando-o carinhosamente&mdash;como em berço de ouro, e
+em fachas de purpura&mdash;deixa, na solidão e nas trevas, por longas e
+frigidissimas<span class="pagenum">[8]</span> épocas, as regiões que se aproximam dos polos.</p>
+
+<p>Esconde-se o astro do dia. Levantam-se tempestades inexcediveis, rangem nas
+proprias raizes os arbustos, que uma temperatura, milagrosa para a vida humana,
+permitte e consente que sobrevivam a uma lucta constante; fogem espavoridos os
+ferozes animaes, que o Creador concedeu áquelles climas, e o homem, ainda que
+afeito a esta existencia inexplicavel, busca em cavernas, cavadas no proprio
+gelo, um refugio, um abrigo contra estas tormentas, em que a terra parece
+agonisar.</p>
+
+<p>E quando a noite vai longa,&mdash;longa a ponto que parece interminavel,&mdash;quando
+a presença d'um ente organisado assusta e apavora, porque os vultos dão visões
+d'espectros, n'aquelles cataclysmos e inversões de todas as normas por que
+physicamente se governa a humanidade&mdash;do seio d'este cahos, do vacuo de todos
+estes ruidos, da solidão infinda de todas estas planuras assomam os lampejos
+d'uma luz vaga, indecisa, e bruxuleante&mdash;robustecem-se, avivam-se,
+condensam-se, animam-se, fulguram, e em duas columnas investem com o horisonte,
+aproximam-se do zenith, e desdobram-se n'uma corôa de fogo, que resplandece,
+offusca, e afaga na pallidez dos planos<span class="pagenum">[9]</span> em que se desenha, os montes,
+pyramides e arcarias de gelo com que as solidificações da agua teem revestido a
+terra.</p>
+
+<p>É uma aurora polar.</p>
+
+<p>O phenomeno termina.</p>
+
+<p>As trevas adensam-se, os ventos impetuosos enfurecem-se, o gelo augmenta de
+volume, as plantas não receberam calorico que as aviventasse, e a terra
+conserva-se fria, inerte e abandonada.</p>
+
+<p>É porque o calor e a luz foram ephemeros, e a natureza continua envolta no
+seu sudario de neve, até que o luzeiro vivificador, o centro de toda a nossa
+existencia venha expandir os seus raios, as suas frechas de ouro por sobre o
+nosso planeta.</p>
+
+<p>A liberdade é como o sol.</p>
+
+<p>Só ella vivifica, só ella alenta, só ella esparge os seus raios de luz pelas
+escuridões da intelligencia humana. Só ella rasga os véos densissimos, que
+entenebrecem o senso moral dos povos. Só ella exalta Galileu, Copernico,
+Luthero, Leibnitz, Calvino, Voltaire, Rousseau, Beccaria, Filangière, Darwin,
+Proudhon, Lamennais, Bentham, Comte, Stuart Mill, Littré, Michelet, Quinet, e
+toda esta phalange de apostolos, que evangelisam a palavra de Deus, e pregam a
+boa nova,<span class="pagenum">[10]</span> explicando as maravilhas da creação, d'envolta com os hymnos,
+que offerecem ao Eterno.</p>
+
+<p>As auroras polares são simulacros de vida&mdash;são phenomenos meteorologicos,
+que fulgem e desapparecem, sem que a terra estremeça de contentamento, sem que
+a natureza acorde do somno lethargico das noites arcticas, sem que as regiões
+do gelo dispam o alvo manto, que as envolve, exhaurindo a luxuriante vida, e os
+ricos thesouros da sua vegetação por todos os poros dos seus ferteis e
+uberrimos torrões.</p>
+
+<p>Quando os povos não estão ainda preparados para as grandes evoluções
+sociaes, quando as nações jazem adormecidas, nos pesadelos d'uma lenta e
+demorada tyrannia, as aspirações d'um grupo diminuto de homens, o credo da nova
+crença, symbolisado n'uma obscura e limitada pleiade, as esperanças do futuro,
+formuladas pelos videntes e vates d'uma nova era, são como a semente perdida de
+que falla o evangelho&mdash;não brota, não germina, não rebenta, não fecunda, não
+viceja: fica entalada nas pedras, ou comem-na as aves do céo.</p>
+
+<p>As evoluções sociaes, sonhadas nos improvisos e imprevidencias dos homens,
+que anceiam por precipitar acontecimentos inopportunos ou prematuros, e que
+tentam arrastar os tempos,<span class="pagenum">[11]</span> na insensatez com que os Titans ousaram
+escalar o Olympo&mdash;segundo a maravilhosa lenda da mythologia grega&mdash;são auroras
+polares, que fulgem, brilham, e se extinguem, deixando o frigidissimo gelo da
+descrença no coração dos povos que imaginaram regenerar.</p>
+
+<p>Assim foi a revolução de 1820.</p>
+
+<p>Na noite de ignorancia, de fanatismo, de escravidão e de miseria, que ia tão
+longa, e tão frigida, como nas trevas dos polos, ergueu-se um luzeiro ephemero,
+passageiro, e rapido, que atravessou o horisonte politico da patria, e
+esvaiu-se e dissipou-se, como um meteoro, deixando submersa, nas trevas da mais
+feroz oppressão, a nobilissima Lusitania.</p>
+
+<p>A aurora polar de 1820 dissipou-se.</p>
+
+<p>As trevas de 1828 surgiram e adensaram-se com o nefasto nome de usurpação.
+</p>
+
+<p>O vaticinio da emancipação dos povos, o credo dos videntes da boa nova foram
+afogados no completo desconhecimento da soberania popular. Ficou o Lazaro
+amortalhado, no sepulchro, sem escutar nem entender o verbo harmonioso da
+redempção.</p>
+
+<p>Por vezes, no fundo d'um horisonte diaphano e transparente, recorta-se um
+ponto imperceptivel,<span class="pagenum">[12]</span> um atomo negro, que só vistas perspicazes
+descortinam. Vai o baixel singrando em aguas remansadas, impellem-no ventos
+prosperos e adequados a uma facil navegação; e subitamente o atomo torna-se
+colosso, o ponto negro transforma-se em tempestade, e os elementos
+desencadêam-se, enfurecidos, sobre o mareante, confiado e seguro na tarde
+bonançosa e estival dos climas tropicaes.</p>
+
+<p>Assim nasceu a revolução.</p>
+
+<p>As colonias do norte da America, esmagadas pela soberba oppressão da velha
+Albion, proclamaram-se independentes. A França educada já nas luctas dos
+philosophos e encyclopedistas, affeiçoada ás theorias e doutrinas de Descartes,
+Voltaire, Rousseau, D'Alembert, Hobbes e Diderot auxiliou esta grande lucta de
+emancipação; e a Europa, viu, com assombro, o Novo-mundo aceitar a republica
+como um systema de governo, e sustentar a democracia como uma verdade
+inconcussa, que parecia o complemento da missão do Nazareno.</p>
+
+<p>É que o christianismo recuára diante da escravidão. «Dai a Cesar o que é de
+Cesar», dissera o Messias; e a França, como n'um Sinay de luz e de
+transformações sociaes, formulára os direitos<span class="pagenum">[13]</span> do homem, e esmagára, sem
+remorso, todas as oppressões, e todas as tyrannias.</p>
+
+<p>A França é o capitolio da raça latina.</p>
+
+<p>Nem uma só vez a nobre terra das Gallias deixou de regar com o proprio
+sangue um grande principio. E ainda, quando arrastada pela louca ambição d'um
+homem desvairado, percorria a Europa, na sofreguidão das conquistas&mdash;ainda
+assim, cada patrona dos seus legionarios era um fóco de propaganda, e uma
+ameaça tremenda para os despotas ungidos pelo direito divino.</p>
+
+<p>Os excessos da revolução franceza&mdash;se os houve&mdash;foram a consequencia logica
+e fatalmente necessaria de tantos seculos de carnificinas, d'escravidão, e de
+infamias. «Os grandes só são grandes, porque nós estamos de joelhos:
+levantemo-nos», clamava Seyés ao raiar a aurora da mais esplendida revolução,
+que narram os annaes de todos os povos. E o morticinio dos albigenses, a
+destruição dos huguenotes, as fogueiras das inquisições, os encerramentos nas
+torres, e nas bastilhas, o estupido orgulho, e os ignobeis e torpes privilegios
+d'uma aristocracia banal e dissipadora, os barbaros direitos feudaes, a miseria
+publica na sua hediondez, e todas as vergonhas, todos os abusos e todos os
+vexames dos governos absolutos foram anathematisados e pulverisados<span class="pagenum">[14]</span> á
+face dos grandes principios, que os vultos homericos da assembléa nacional e da
+convenção ousaram proclamar.</p>
+
+<p>É d'aqui, e só d'aqui, que data a emancipação da humanidade.</p>
+
+<p>A fé religiosa podéra ser&mdash;e foi&mdash;um balsamo de consolação. Era um esteio
+para as consciencias, era uma valvula de segurança, forjada pelo clero, pelo
+sacerdocio, pela theocracia, para obstar ao desencadeamento de todas as
+indignações, e apagar, com as adulteradas palavras de misericordia e
+resignação, as justas represalias legadas por milhares de gerações.</p>
+
+<p>As palavras de Christo, no Golgotha: «Perdoai-lhes, meu Pai, porque elles
+não sabem o que fazem», ficaram sendo, na amphibologia da sua applicação, o
+pára-raios de dezoito seculos de abusos, de ultrajes e torpezas.</p>
+
+<p>Rebentou a revolução franceza. E os raios d'este Sinay da biblia da
+humanidade encheram de luz a palavra justiça, em toda a severa e inexoravel
+verdade do vocabulo romano: «<em>Jus sum cuique tribuendi.</em>»</p>
+
+<p>Os decemviros d'esta era famosa prestavam, pela primeira vez, homenagem á
+dignidade de todos os entes racionaes: viam e consideravam todos os homens
+irmãos e iguaes.<span class="pagenum">[15]</span></p>
+
+<p>Como é triste e demorada a perfectibilidade humana! Quantos seculos de
+trevas, para luzir no craneo do rei da creação esta simplicissima verdade:
+todos os homens são iguaes!</p>
+
+<p>E são.</p>
+
+<p>O genio e o idiotismo formam os dous polos d'esta arca santa, d'este
+tabernaculo do pensamento, da vastidão do cerebro, onde a consciencia moral,
+quando culta e desenvolvida, desperta sofrega dos seus direitos, e irrompe-lhe
+a intuição generosa e espontanea dos seus deveres e obrigações.</p>
+
+<p>As colonias hespanholas responderam, com enthusiasmo, a este clamor unisono
+da America do norte, e por sobre os dous oceanos voou a mensagem de que o
+Novo-mundo estremecia de jubilo ao contemplar a liberdade. Foi isto bastante
+para que o movimento revolucionario se propagasse na metropole. E ao passo que
+os autocratas da Europa forjavam uma alliança reaccionaria, com o intuito
+pueril de levantar um dique á torrente caudal, que trasbordava nas planuras
+habitadas pela raça latina, a revolução caminhava triumphante no meio dia do
+nosso continente, e aceitava, como modêlo, a constituição hespanhola de 1812.
+</p>
+
+<p>Era a democracia que levantava o collo, e arremessava<span class="pagenum">[16]</span> o cartel aos
+privilegios de dezoito seculos. As centelhas luminosas da liberdade, as chispas
+d'este fogo sagrado irrompiam tão espontaneas, e tão vivazes, que pareciam
+vulcões abertos pelas forças temerosas da electricidade, fluidos magneticos,
+que em correntes subterraneas pretendiam surgir dos seios da terra, em quanto
+esta se debatia, agonisante, nas convulsões d'uma nova transformação.</p>
+
+<p>Em 1820 estremeciam os dous mundos.</p>
+
+<p>A Hespanha, o Brazil, o reino de Napoles, o Piemonte, e os proprios
+christãos avassallados na Grecia despertavam ao clamor da emancipação dos
+povos. Irradiava o sol da justiça. Dissipavam-se as trevas na consciencia
+humana. Desde o Chili até Boukarest coroavam-se as montanhas de fachos de luz,
+e como se uma só vontade, um só incentivo, um só impulso dirigisse as nações,
+echoava em todos os pontos o sagrado nome da liberdade. Ouvia-se o ruido das
+velhas instituições que desabavam. O clero e a nobreza perdiam o prestigio, a
+força, o poderio; e a humanidade, que ouvira absorta a palavra omnipotente da
+convenção nacional, estremecia jubilosa e reverente, como a virgem de Nazareth
+ao escutar a saudação celestial do anjo mensageiro.</p>
+
+<p>Durou pouco a esperança. Detraz dos hymnos<span class="pagenum">[17]</span> festivaes vinham os crepes
+funerarios. Após esta radiante aurora seguiram-se as trevas da reacção, os
+carceres, as galés, as deportações, os exilios e os morticinios. A velha Europa
+estendeu os pulsos e deixou-se algemar.</p>
+
+<p>O mais hediondo mal da escravidão é o habito torpemente adquirido de ser
+escravo.</p>
+
+<p>O maior crime da tyrannia é educar as gerações para a abjecção moral, para a
+aniquilação da dignidade individual, e para a ignorancia dos proprios deveres.
+</p>
+
+<p>Todavia as evoluções sociaes não dependem da vontade dos homens.</p>
+
+<p>As legitimas penalidades, na terra, imprimem-se implacaveis e cruentas em
+quem pretende destruir o que de si é immutavel e eterno. O desconhecimento
+completo das leis physicas e moraes da humanidade arrasta, as mais das vezes,
+repetidos cataclysmos e sangrentas catastrophes.</p>
+
+<p>A arca santa do mosaismo é o symbolo immaculado da indestructibilidade das
+normas, por que o universo se rege.</p>
+
+<p>Todos os seculos teem uma feição propria, uma formula predominante, por que
+se inscrevem na historia. Assim se exprime o seculo de Pericles, o seculo de
+Augusto, o seculo dos Medicis, o seculo de Luiz XIV. Detraz de cada um d'estes
+epithetos,<span class="pagenum">[18]</span> que são como uma synthese, caracterisada n'uma epigraphe,
+transparecem grandes commettimentos, estudos longos e pacientes, como de
+benedictinos, luctas heroicas, trabalhos herculeos, progressos infinitos, que
+formam a vereda, representada pelos marcos milliarios da civilisação dos povos.
+Definem-se, pois, os seculos por um grande pensamento, e gravam-se com uma nova
+idéa. E á medida que as civilisações se multiplicam, as transformações são mais
+rapidas; e as evoluções sociaes precipitam-se. É assim que os phenomenos da
+electricidade e a força do vapor teem hoje, desde a Oceania até aos confins do
+occidente europeu, a humanidade perplexa e surprehendida n'um contacto
+constante, e as idéas transmittem-se com a velocidade da luz.</p>
+
+<p>Mas as gerações que se teem ido succedendo, em seculos determinados para a
+sua missão&mdash;egoistas e imprevidentes, foram legando ao seculo dezenove a
+solução de todos os formidaveis problemas com que hoje nos achamos a braços.
+Nós&mdash;entregues e devotados ás sciencias d'observação, aos estudos analyticos, á
+razão critica, á severa e leal escolha da pureza dos elementos que constituem o
+nosso credo, e a encyclopedia fundamentada dos actuaes conhecimentos humanos,
+encontramo-nos face a face com a futura<span class="pagenum">[19]</span> solução de todos os problemas
+religiosos, scientificos, litterarios e sociaes, que a machiavelica prudencia
+de todos os defensores dos rigorosos principios authoritarios vai deixando
+accumular.</p>
+
+<p>Queixem-se de si, e só de si os zelosos apostolos da reacção&mdash;phariseus de
+todas as épocas, e de todas as raças,&mdash;quando a democracia implacavel e
+inexoravel na sua marcha, arrastada involuntariamente pela sua velocidade
+adquirida, achar de subito a formula inteira de todas estas temerosas
+soluções.</p>
+
+<p>Mil oitocentos e vinte é apenas uma data.</p>
+
+<p>Echo remoto da revolução franceza, grito agonisante d'uma nação exhausta,
+indolente, ignorante, fanatisada e escrava, o povo balbuciou sem consciencia
+nem fé a palavra liberdade, e adormeceu de novo, no seio de theorias que não
+entendeu, de principios que não comprehendia, para acordar d'este somno febril
+e agitado nas tristes e luctuosas carnificinas do caes do Tojo.</p>
+
+<p>A inviolabilidade da vida humana era uma utopia e um escarneo para uma
+geração, que se estorcia convulsa, ainda, no medo e pavor com que a feriam em
+face os sombrios e ferozes carceres da inquisição.</p>
+
+<p>A democracia nem era apenas um sonho n'estes devaneios da classe media. O
+proletariado,<span class="pagenum">[20]</span> quando muito, seria uma casta de parias, que d'envolta com
+o pauperismo merecia os ergastulos e gemonias da preconisada republica romana.
+</p>
+
+<p>As republicas gregas e latina não eram comprehendidas pela ausencia total
+das sciencias modernas. E se os vocabulos se entendiam nos lexicons da época,
+desconhecia-se, pelo menos, a essencia da organisação e constituição de povos
+tão diversos. A philologia e a ethnographia eram como hieroglyphicos para uma
+sociedade que apenas queria destruir. O seculo dezoito vivera em parte dos
+discursos emphaticos de Raynal, Volney e Rousseau, e das historias fabulosas,
+escriptas pelos aulicos e cortezãos de todas as vaidades e pompas mundanas.</p>
+
+<p>A democracia, na rasgada e imponente accepção do verbo supremo, havia de
+irromper, mais tarde, n'este luzeiro immenso, que será a redempção da
+humanidade.</p>
+
+<p style="text-align:right;">VISCONDE D'OUGUELLA.<span class="pagenum">[21]</span></p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap02" name="cap02">SUBSIDIOS PARA A HISTORIA</a> <br>
+DA <br>
+SERENISSIMA CASA DE BRAGANÇA</h1>
+
+<h2>II</h2>
+
+<h2>A VENIAGA</h2>
+
+<p>Sem preambular com as repetidas accusações (veja Rebello da Silva, Soriano,
+Pinheiro Chagas) escriptas contra a cobarde inercia de D. João, duque de
+Bragança, que desatravancou ao usurpador castelhano o accesso a Portugal, vou
+arrolar com miudas provas as verbas que representam o valor da honra e do
+patriotismo do avô de D. João IV.</p>
+
+<p>Possuo um codice que pertenceu ao archivo da casa de Bragança, escripto em
+1687, com estes dizeres na folha de rosto: <em>Doações do real estado e casa de
+Bragança, conforme se vão desbrindo<span class="pagenum">[22]</span> em papeis e documentos authenticos de
+que em summa se dá noticia.</em></p>
+
+<p>Convém saber que os successores do duque D. Fernando, degolado em tempo de
+D. João II, nunca poderam obter de D. Manoel, de D. João III, da rainha
+regente, de D. Sebastião e do cardeal, parte dos privilegios que o filho de
+Affonso V lhes jarretára. A absoluta independencia da corôa, e o absoluto
+dominio em Villa-Viçosa, nunca poderam os duques extorquil-o á condescendencia
+dos soberanos.</p>
+
+<p>Obteve-o, porém, o avô de D. João IV, em fevereiro de 1581, da velhaca
+magnanimidade de Philippe II de Castella, quando foi comprimentar a Elvas o
+usurpador, que vinha entrando triumphalmente em Portugal. O primeiro passo era
+crear magistrados seus, instaurar tribunaes sem appellação nem aggravo das
+sentenças dos seus juizes, e defender o ingresso de viandantes em seus
+dominios, quando elles eram suspeitos de procedencia de lugares impedidos, e
+até quando o não eram.</p>
+
+<p>A seguinte <em>doação</em> de Philippe II ao duque de Bragança, D. João,
+primeiro de nome, está registada no livro V da camara de Villa-Viçosa, fl. 31,
+pag. 2.</p>
+
+<p>«Eu el-rei, faço saber aos que este alvará virem<span class="pagenum">[23]</span> que havendo
+respeito ao duque de Bragança, meu muito amado e presado sobrinho e a D.
+Catharina minha muito presada prima residirem ora em Villa-Viçosa, e por outros
+respeitos que a isso me movem; hei por bem e me praz que a pessoa que o dito
+duque nomear por guarda-mór da saude da dita villa tenha a alçada com o dito
+cargo adiante declarado. Que entrando alguma pessoa na dita villa, sem licença
+do dito guarda-mór, e constando que vem de lugar impedido, o possa <em>mandar
+prender, e sendo peão será condemnado a um anno de degredo para o couto de
+Castro Marim com pregão na audiencia e 2$000 reis para os captivos; e, sendo de
+maior qualidade, a mesma pena de degredo e pregão e 4$000 reis. E o mesmo nos
+que metterem fatos e mercadorias das terras impedidas; e os que vierem de
+terras não impedidas, entrando sem licença, presos, e da cadêa pagarão 2$000
+reis.</em></p>
+
+<p>«E todas estas penas sem appellação nem aggravo, e que as sentenças sejam
+dadas em camara com os vereadores. E que não passe pela chancellaria. Ambrosio
+de Aguillar o fez em Elvas a 23 de fevereiro de 1581. Roque Vieira o fez
+escrever. El-rei.»</p>
+
+<p>Em 2 de julho de 1582 concede o mesmo monarcha<span class="pagenum">[24]</span> ao mesmo duque
+<em>poder despender as rendas dos concelhos das suas terras no que lhe
+aprouver.</em></p>
+
+<p>Em 2 de maio de 1584 o mesmo Philippe II assigna o seguinte aviso:</p>
+
+<p>«Eu el-rei. Faço saber a vós licenciado Lopo de Abreu Castello Branco que
+ora o duque de Bragança (D. Theodosio) meu muito amado e presado sobrinho, com
+minha authoridade, envia por juiz de fora da sua villa de Villa-Viçosa, que eu
+hei por bem pela confiança que de vós tenho, que além dos poderes que por minha
+ordenação são dados aos juizes ordinarios, vos tenham mais o poder e alçada ao
+diante declarados:</p>
+
+<p>«<em>Que nos casos crimes possa mandar açoutar peões de soldada que
+estiverem assoldadados, e outros peões que ganharem dinheiro por braçagem, e
+escravos, e que possa degredar os ditos peões para os lugares d'além-mar por
+dous annos, e para os coutos do reino até tres annos. Que possa degredar
+escudeiros e vassallos que não forem de linhagem, e officiaes mecanicos para os
+lugares d'além-mar por dous annos, e para os coutos do reino por tres annos...
+Que se alguns fidalgos, cavalleiros e escudeiros de linhagem, e vassallos,
+fizessem cousas por que mereçam ser processados,<span class="pagenum">[25]</span> os empraze para que a
+certo tempo appareçam.</em> João da Costa o fez em Lisboa a 2 de maio de 1584.
+Rei.»</p>
+
+<p>Seguem mandados confirmando e revalidando doações abolidas ácerca das rendas
+das feiras, que os duques de Bragança continuaram a perceber, como seus avós,
+antes das reformas de D. João II.</p>
+
+<p>Em 1589, o duque de Bragança D. Theodosio decreta nos seus dominios
+isentando os ferradores e mais officiaes mecanicos de sua casa <em>de todos os
+serviços e encargos do concelho, de fintas, de talhas, montes, pontes, fontes,
+caminhos, calçadas, etc.; nem vá com presos, nem seja tutor, nem curador de
+nenhumas pessoas, nem pousem com elles, nem lhes tomem suas casas de moradas,
+nem adegas, nem estrebarias, nem roupas, nem palha, etc.</em></p>
+
+<p>N'esta fórma de decreto assigna D. Catharina, por ser ainda menor o
+duque.</p>
+
+<p>D. João, segundo de nome, e que depois foi rei, ainda em 1635 impetrou
+licença de Philippe IV de Castella para crear doze misteres, especies de
+zeladores na cobrança das alcavalas que a serenissima casa exercia sobre os
+vassallos.</p>
+
+<p>D. Duarte concedêra que o duque de Bragança podesse nomear juiz, quando o
+juiz de nomeação<span class="pagenum">[26]</span> real lhe fosse suspeito. D. Affonso V confirmou. D. João
+II aboliu. D. Philippe IV de Hespanha, a requerimento do duque de Bragança, que
+depois foi rei, confirmou a lei de D. Duarte.</p>
+
+<p>Por doação de 1587 é permittido ao duque de Bragança não cumprir as cartas
+dos corregedores da côrte. No mesmo anno lhe é facultado avocar a si as causas
+das suas terras e <em>sentenciar como lhe parecer</em>.</p>
+
+<p>Em 1607 é permittido ao duque de Bragança formar chancellaria e <em>levar
+direitos d'ella sobre cartas de seguro em caso de mortes negativas, ou
+confessativas de morte, de resistencia a officiaes de justiça, ele, em
+provimentos de officios e isenções de cargos</em>.</p>
+
+<p>Esta concessão derivava do animo bizarro do castelhano que pagava ao duque
+de Bragança com o dinheiro dos proprios portuguezes, e do animo avarento do
+agraciado que se cevava na pobreza dos seus conterraneos.</p>
+
+<p>Tal graça era tão pesada para os portuguezes quanto vaidosamente inepta para
+o duque a do tratamento de <em>excellencia</em> que obteve em 1597, por lei
+extravagante de 6 de dezembro, que só aos duques de Bragança e aos infantes a
+concedia<sup><a name="L897" id="L897" href="#L899">[1]</a></sup>.<span class="pagenum">[27]</span></p>
+
+<p>Afóra a <em>excellencia</em>, «o duque de Bragança&mdash;escreve Rebello da
+Silva&mdash;por ser o mais nobre e poderoso, foi tambem o primeiro que o soberano
+exaltou, lançando-lhe elle proprio sobre o peito o collar do tosão de ouro, e
+entregando-lhe o estoque de condestavel do reino, dignidade por elle pedida em
+vão, como sabemos, ao cardeal-rei e aos cinco governadores.» (<em>Hist. de
+Port. nos seculos XVII e XVIII</em>).</p>
+
+<p>Na acclamação de Philippe I de Portugal, «o primeiro que jurou foi o duque
+de Bragança, o qual depois veio beijar a mão d'el-rei.» (<em>Obra cit.</em>)</p>
+
+<p>Esta preeminencia importava menos que a concessão então obtida de
+transportar da India uma determinada porção de especiarias isentas de direitos
+da alfandega.<span class="pagenum">[28]</span></p>
+
+<p>Constituiu-se pois a serenissima casa de Bragança o primeiro armazem de
+canella e pimenta n'estes reinos; e, como não pagava direitos, a sua mercadoria
+era a mais procurada por duas considerações: a barateza do genero e a qualidade
+do especieiro.</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L899" id="L899" href="#L897">[1]</a></sup> Por provisão
+particular de 12 de dezembro de 1605, passada em Valhadolid foi concedido o
+mesmo privilegio aos duques de Aveiro, em attenção ao grande luzimento de sua
+casa, pois D. Jorge de Alencastre, nascido em 1481, era filho do rei D. João II
+e de D. Anna de Mendonça, que,&mdash;por via de regra estatuida&mdash;acabou
+commendadeira de Santos. Aquelle mosteiro assignalou-se como harem de odaliscas
+desbotadas. O referido D. Jorge, mestre das ordens de S. Thiago e Avis, senhor
+de Aveiro e mais terras do infantado, foi creado segundo duque de Coimbra (o
+1.º duque de Coimbra fôra seu bisavô D. Pedro, morto em Alfarrobeira), por D.
+Manoel em 1500, ou por seu proprio pai, como diz <em>Portugal, De Donat.
+reg.</em> n.º 410.</p>
+</div>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap03" name="cap03">O PAÇO REAL DA RIBEIRA</a></h1>
+
+<p>De um manuscripto, que seria optimo livro da topographia de Lisboa, se o
+terremoto de 1755 o não suspendesse, aniquilando talvez a mão laboriosa que o
+escrevia, extrahimos o capitulo respectivo ao paço da Ribeira, e edificios
+convisinhos. É a mais detida descripção que ainda vimos. Os escriptores, que
+conheceram Lisboa antes da catastrophe, á semelhança de João Baptista de Castro
+(<em>Mappa de Portugal</em>) poucos delineamentos particularisaram dos grandes
+edificios da Lisboa de D. João V. Iremos transcrevendo o que nos parecer mais
+grato aos antiquarios, e ainda aos que, sem grande affecto a velharias, se
+comprazem em reconstruir na imaginativa as feições da sempre formosa
+Lisboa.<span class="pagenum">[29]</span></p>
+
+<p>«O palacio real da Ribeira, situado junto das margens do Tejo, em frente de
+uma das maiores praças da Europa, chamada <em>Terreiro do Paço</em>, é um
+soberbo e vastissimo edificio, commodo e magestoso. É obra d'el-rei D. Manoel,
+para o qual se mudou dos antigos paços da Alcaçova, e onde, desde então,
+ficaram assistindo os reis d'este reino. Fórma este real edificio dentro em si
+tres grandes quadras, com dilatadas galerias em roda, com admiraveis quartos,
+preciosamente guarnecidos, e muitos salões, os maiores dos quaes são: a casa
+chamada de <em>gala</em>, a sala dos <em>tudescos</em>, onde costuma estar a
+guarda allemã de sentinella. Esta sala é uma das maiores de toda a Europa,
+porque tem 130 palmos de comprimento e 76 de largura. A quadra que fica junto
+da igreja patriarchal, chamada <em>pateo da capella</em>, é toda rodeada de
+galerias de arcos sobre columnas, com janellas ao de cima bem rasgadas. Por
+baixo d'estas arcadas ou galerias, em toda a circumferencia, ha muitas tendas e
+lojas onde se acha tudo que mais precioso ha no mundo, ouro, diamantes e outras
+pedras preciosas. Sahindo d'esta quadra por um vasto portico voltado ao sul, se
+entra em outra quadra mais comprida que larga, tambem cercada de bellas
+galerias, sobre a qual abrem as janellas do quarto das rainhas. Ahi ao pé
+ergue-se<span class="pagenum">[30]</span> uma altissima e bem fabricada torre de marmore, com um magestoso
+sino de relogio, e dous mais pequenos dos quartos. É obra do snr. rei D. João
+V, o <em>Magnifico</em>. Tambem ha n'esta segunda quadra muitas lojas onde se
+vendem cousas preciosas. Para a parte da <em>Ribeira das Naus</em>, forma este
+palacio outro grande quarto, feito á moderna, obra do mesmo monarcha, chamado o
+<em>quarto dos infantes</em>; e, ao cabo d'elle, abre-se uma formosissima
+varanda descoberta, gradeada de marmore á volta, primorosamente lavrado, sobre
+cujos pilares assentam vasos de jaspe cheios de murta e flôres.</p>
+
+<p>«Aquella parte d'este soberbo edificio, que olha para o oriente, e abrange a
+largura toda do <em>Terreiro do Paço</em>, é occupada por uma espaçosissima
+galeria, que termina em um magnifico pavilhão chamado o <em>Forte</em>. É obra
+de Philippe II de Hespanha, dirigida pelo famoso architecto Philippe Terzo,
+podendo affirmar-se que não ha outra semelhante em toda a Europa, como
+confessam todos os estrangeiros que vem a Lisboa. D'aqui se descobre toda a
+barra, e o porto da cidade, porque fica sobre a praia do rio. É tanta a
+magestade d'este edificio que não vi em todo o reino de França, nem nos famosos
+palacios de Louvre e Versailles tão justamente encarecidos obra tão<span class="pagenum">[31]</span>
+sumptuosa; sendo para sentir que não se chegasse a concluir o risco d'esta
+elegante fabrica, pois estava delineado fechar toda a praça do <em>Terreiro do
+Paço</em> em roda, com outro pavilhão fronteiro no sitio onde hoje (1754) estão
+as casas da alfandega: porém, é sestro já muito antigo ficarem imperfeitas
+todas as obras que outros principes começaram.</p>
+
+<p>«Contigua a este lanço, corre uma varanda de arcos que dá serventia para a
+sala dos <em>tudescos</em>, e pela fachada do sul se communica para outro
+quarto, não menos magestoso com suas galerias, eirados e torreões, onde
+assistem os infantes, irmãos ou filhos dos reis, e hoje serve de residencia á
+rainha-mãi, D. Marianna de Austria. Tem este quarto grandes e preciosas
+ante-camaras com tapeçarias e moveis inestimaveis, e pinturas dos mais insignes
+authores.</p>
+
+<p>«Sua magestade costuma residir no quarto do <em>Forte</em>, que dá sobre o
+<em>Terreiro do Paço</em>, e é o melhor do palacio, cujas ante-camaras, salas e
+gabinetes encerram em si o mais precioso que póde a terra dar; porque as
+tapeçarias de ouro, prata, velludo, damasco e outras sedas, quadros de
+admiraveis pinturas, e toda a mobilia, dão a conhecer a soberania da magestade
+que o occupa.<span class="pagenum">[32]</span> A casa dos <em>embaixadores</em> é a melhor da Europa. Ha
+n'este palacio uma notavel bibliotheca, constante de muitas casas de livros,
+com manuscriptos os mais raros; e, sem duvida, se estivesse em ordem como as
+bibliothecas do vaticano, e de el-rei de França e da Sorbona, não lhes seria
+inferior; para o que muito concorreu a curiosa applicação (!) e magnifica
+despeza do snr. rei D. João V mandando comprar fóra consideráveis collecções.
+</p>
+
+<p>«Para o lado do rio tem este palacio um bello jardim com grande eirado, com
+viveiro abundante de todo genero de aves raras, especialmente pombas e rolas de
+varias castas. Não se póde dar mais aprazivel espectaculo no mundo que a vista
+d'este jardim sobre o mar.</p>
+
+<p>«O snr. rei D. João V acrescentou outro quarto a este palacio: é o que fica
+no <em>largo da Patriarchal</em> e corre até ao <em>theatro da opera</em>.
+Consta este augusto edificio de varios corpos e muitas galerias todas de
+apuradissima arte, obra do famoso architecto Frederico, em que os marmores
+apostam duração com a eternidade. Dous lanços d'este quarto abrem para o
+<em>largo da Patriarchal</em>, e em meio de cada um avulta um portico
+grandioso, levantado em grossas columnas marmoreas, com<span class="pagenum">[33]</span> capiteis
+corinthios, excellentemente folheados. Todo o restante d'este primoroso
+edificio é feito de polidissima cantaria, com formosos lavores e remates, com
+oculos romanos na cimalha, que lhe dão graça e belleza. O saguão que vai do
+<em>largo da Patriarchal</em> e atravessa este quarto para a
+<em>Campainha</em>, é a melhor peça d'arte d'esta cidade; porque as quatro
+columnas de jaspe que tem na frente de duas escadas lateraes, são
+perfeitissimas no trabalho dos lavôres.</p>
+
+<p>«Para o lado do <em>theatro da opera</em> fórma este quarto uma quadra
+pequena com sumptuosas galerias, para a qual se entra por um grande vestibulo
+fronteiro á <em>Patriarchal</em>; mas a serventia ou passagem para o
+<em>theatro</em> é a mais arrogante e magestatica obra de Lisboa. Aqui, os
+marmores são de maneira sinzelados, que nem a cêra seria capaz de mais tenues
+arabescos. A natureza é vencida pela arte; porque os bustos, as carrancas, os
+festões, os relevos, os capiteis, os frisos, as folhagens são cousa tão
+prodigiosa, quanto é mais de assombrar a qualidade da pedra tão rija para
+impressões tão delicadas. Por cima d'este vestibulo, ergue-se uma capella
+magnificentissima feita para uso particular dos patriarchas, tal e qual os
+pontifices a tem em Roma. E, posto que ainda não esteja concluida, é
+soberbissima pela<span class="pagenum">[34]</span> profusão de jaspes vermelhos, negros, brancos e outras
+côres que lhe dão o esmalte.»</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Este pallido bosquejo das opulencias do paço da Ribeira era escripto em
+1754. No 1.º de novembro do anno seguinte, quem procurasse estas riquezas com o
+roteiro do incognito author por guia, encontraria um entulho, coroado de
+linguas de fogo, e a espaços lambido pelas vagas do Tejo. E escrevia o
+assombrado homem que aquelles marmores estavam alli a <em>apostar duração com a
+eternidade</em>!</p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap04" name="cap04">AS CRUAS ENTRANHAS DE D. MARIA I A
+PIEDOSA</a></h1>
+
+<p>D. Martinho de Mascarenhas, marquez de Gouvêa, e filho do duque de Aveiro,
+justiçado em<span class="pagenum">[35]</span> 1759, não tinha culpa no delicto de seu pai. Não obstante,
+entrou muito moço nas trevas das masmorras, e lá o retranziram frio, fomes,
+sêdes e terrores por espaço de dezoito annos.</p>
+
+<p>Em 1777 sahiu do carcere com os outros presos. E, como não tinha de seu uma
+taboa&mdash;pois que a opulenta casa de Aveiro havia sido confiscada, salgada,
+arrazada, absorvida&mdash;foi enviado aos frades de Mafra para lá o fartarem no seu
+refeitorio. Os historiadores coevos não houveram noticia d'esta passagem do
+carcere para o mosteiro. Todos os outros fidalgos, exhumados dos ergastulos á
+voz de D. Maria I, tinham familia que os consolasse e restaurassem com as
+cariciosas lagrimas da alegria. D. Martinho de Mascarenhas não tinha ninguem!
+ninguem que lhe désse uma lagrima e um bocado de pão comido em liberdade! Fez
+como os ultimos mendigos: foi ao convento de Mafra.</p>
+
+<p>Alli o encontrou o bispo de Coimbra, D. Miguel da Annunciação, quando,
+n'aquelle anno de 1777, sahiu tambem da masmorra de Pedrouços, e por lá passou,
+caminho da sua diocese; mas tão cortado de oito annos de escuridade e nudez que
+já em 30 de agosto de 1779 era sepultado.</p>
+
+<p>Do itinerário do bispo, que tenho de letra de mão, em floreados caracteres,
+como brinde feito<span class="pagenum">[36]</span> áquelle prelado, vou extractar as linhas respectivas ao
+marquez de Gouvêa:<sup><a name="L957" id="L957" href="#L955">[2]</a></sup> «...
+Pelas 11 horas e um quarto da noite chegou a Mafra, aonde passou o dia seguinte
+recebendo fraternaes obsequios da sua amada communidade. Ahi se achava o
+exc.<sup>mo</sup> D. Martinho Mascarenhas, marquez que é de Gouvêa, filho
+primogenito do infeliz duque de Aveiro. Distinguiu-se muito nos obsequios do
+exc.<sup>mo</sup> bispo aquelle bem instruido, amado e agradavel fidalgo, que
+soube tirar e trazer da sua reclusão as mais bellas qualidades de um cavalheiro
+christão. Deve-se a Deus a sua indole, e a um bom mestre que teve na sua prisão
+a educação, que o faz merecedor de toda a estima e fortuna que conseguiria na
+boa conservação de seu pai. Elle se chama desgraçado, e deve á sua desgraça a
+occasião de se fazer ainda mais benemerito pelas suas virtudes.»</p>
+
+<p>N'este tempo já era morta a duqueza de Aveiro, no convento do Rato, onde
+servia as freiras para ganhar o seu alimento; e, por não poder comprar sapatos,
+andava descalça. Este supplicio era assim benigno porque se provou que ella e
+seu<span class="pagenum">[37]</span> filho de todo em todo ignoravam os intuitos regicidas do duque.</p>
+
+<p>O marquez de Gouvêa tinha por si a compaixão dos proprios inimigos de seu
+pai. Todos o animavam a pedir á rainha a restituição de alguns dos bens
+confiscados; e o maior jurisconsulto d'aquelle tempo, Paschoal José de Mello,
+encarregou-se de escrever a <em>Representação</em> a D. Maria I.</p>
+
+<p>Este requerimento é um dos poucos trabalhos ineditos do eminente escriptor;
+e a meu vêr, como historia e como supplica eloquente, benemerito de
+estampar-se.</p>
+
+<p>A mim me cabe o prazer de o possuir e tiral-o da indigna obscuridade.</p>
+
+<p>É como segue:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;">«<span class="small-caps">Senhora.</span></p>
+
+<p>«A innocencia opprimida, digno objecto da piedade de um principe, a quem o
+exemplo de Deus serve de regra, se prostra diante do real throno implorando a
+clemencia de vossa magestade, e para mais facilmente a conseguir offerece esta
+humilde representação, fundada nos principios<span class="pagenum">[38]</span> da humanidade e justiça,
+confirmados com uma longa serie de exemplos.</p>
+
+<p>«O fim das leis consistindo em dar a cada um o que lhe toca, não alcança o
+juizo humano livre de illusão. Como póde sem culpa ter lugar algum castigo, nem
+como seria conveniente aos interesses de um monarcha justo, o desvio da
+imitação de Deus, privando da sua graça os innocentes? O que poderia haver para
+alguns de problematico n'este ponto, a lei divina o decide. Ninguem deve pagar
+o crime alheio por maior que seja a sua proximidade com os delinquentes, e esta
+verdade foi muitas vezes descoberta sem mais soccorro do que as luzes naturaes:
+é dito de um espirito famoso que uma cousa são leis, outra é a justiça
+verdadeira. E, se tambem é certo que pouco faria qualquer homem em regular o
+seu procedimento pelo que sómente as mesmas leis prescrevem&mdash;que pratica de
+virtudes se não devera esperar de um soberano para corresponder á elevação em
+que Deus o pôz tão distante do resto dos mortaes!? Os de maior sabedoria dados
+pela Providencia para a felicidade dos povos: os merecedores do nome de pai da
+patria, e em fim os mais felizes no governo de vastos dominios, persuadidos de
+que lhes venha de Deus todo o poder, e que de sua submissão ás leis divinas
+dependia mais que tudo a<span class="pagenum">[39]</span> respeitosa obediencia dos que mesmo Deus
+sujeitou á sua direcção, para serem tratados como filhos, acharam sempre
+injurioso o direito rigoroso, e o não poderam conciliar como dictames mais
+convenientes á magestade do throno. Os pretores antigos já foram chamados os
+moderadores das leis, pelas frequentes emendas do que n'ellas se permitte aos
+juizes, prohibido pela honra e equidade, e entre estas as que geralmente se
+acharam mais contrarias á recta razão e á humanidade foram aquellas em que o
+castigo passava além do ultimo termo da existencia dos culpados, e chegava a
+propagar-se até aos innocentes.</p>
+
+<p>«Devendo ser as penas commensuradas aos crimes, e não havendo nenhuma
+proporção entre o delicto e a innocencia juntamente, pareceu estranho que, onde
+a calumnia não póde inventar nada para denegrir reputações, chegassem as armas
+da justiça. Contra isto parece não ter cabimento nenhuma casta de pretexto. As
+qualidades da alma não se podem considerar hereditarias na fé do livre
+arbitrio: a boa ordem e o bem publico não dependem sempre da maior severidade,
+antes pelo contrario a experiencia em todo o tempo tem mostrado que a fortuna
+acompanha a clemencia, e com ella se mudaram os genios mais ferozes. É com tudo
+notorio, que em algumas leis<span class="pagenum">[40]</span> tiveram as paixões particulares maior
+introducção, do que uma certa prudencia necessaria para as fazer validas no
+conceito de um principe christão. A famosa lei dos imperadores Honorio, e
+Arcadio, que impõe tão atrozes penas aos filhos dos criminosos de
+lesa-magestade, é derogada pelo direito divino, pelo direito natural e das
+gentes. Por este ultimo, porque desde que os homens principiaram a unir-se em
+sociedades distinctas, todas as providencias se dirigiram a preservar a
+innocencia das irrupções e violencias em que tinha degenerado a liberdade
+humana. Pelo direito natural, porque destroe o principio da rectidão que a
+natureza inspira a todo o ente racional, e priva a innocencia do direito que
+tem a impunidade, e a todos os mais actos de justiça. E pelo direito divino,
+porque em repetidos lugares das sagradas letras é defendida a innocencia com
+pena eterna. Tambem foi abolida pelo direito civil, porque os mesmos
+imperadores, a quem pertence, passados annos, movidos da penitencia, como dizem
+graves authores, reduziram todas as penas por uma nova constituição aos unicos
+réos dos delictos.</p>
+
+<p>«D'esta lei foi deduzida a nossa ordenação, cujos termos ambiguos e a
+necessaria conciliação dos capitulos seguintes mostram, com bastante clareza,
+ser a intenção do legislador que se modere:<span class="pagenum">[41]</span> com effeito immediatamente a
+imposição das penas como perpetuas as faz transitorias, declarando não deverem
+ter a execução se não em quanto os que a ella sujeita não forem restituidos ao
+estado do seu antigo esplendor; e além d'isto a jurisprudencia julga todas as
+penas exorbitantes em direito simplesmente comminativas, e não executivas.
+Estas e outras semelhantes reflexões, que por brevidade se não expressam,
+moveram a religião, a justiça e piedade dos gloriosos reis que occuparam o
+throno portuguez a deixar na historia tantos exemplos de rebeldes executados,
+como de filhos impunidos; mas conservados, e restituidos á nobreza, honras,
+dignidades e bens de substituição; d'estes exemplos se referem os seguintes, e,
+por parte do innocente o infeliz marquez de Gouvêa, se offerecem á real
+inspecção de vossa magestade:</p>
+
+<p style="text-align:center;">EXEMPLOS</p>
+
+<p>«João Lourenço da Cunha foi sentenciado por crime de lesa-magestade, e
+confiscados os seus bens; porém o morgado de Pombeiro passou a seu filho Alvaro
+da Cunha, a quem foi tambem<span class="pagenum">[42]</span> feita a mercê do senhorio da mesma villa,
+possuido antes por seu pai. D'este descendem não só os condes de Pombeiro, mas
+a maior parte da nobreza da côrte actual; porque tres filhas suas depois da
+referida sentença casaram nas mais illustres casas d'este reino.</p>
+
+<p>«D. Pedro de Castro, senhor do Cadaval, foi sentenciado pelo mesmo crime, e
+os seus bens todos confiscados; mas os morgados, e os bens da corôa passaram a
+seu filho primogenito D. João; cuja filha herdeira casou com D. Fernando II,
+duque de Bragança, de que descendem innumeraveis casas illustres, nas quaes com
+especialidade se inclue a de Cadaval; além d'isto a D. Fernando, filho segundo
+do dito delinquente, primogenito da casa de Cascaes, lhe fez depois mercê do
+Paul chamado do Governador, de varios senhorios de terras, e da alcaidaria-mór
+da Covilhã.</p>
+
+<p>«O conde de Vianna, D. João Affonso Telles de Menezes, commetteu o mesmo
+crime, foi morto tumultuariamente pelo povo de Palmella, e foram confiscados os
+seus bens; mas el-rei D. João o 1.º deu depois a seu filho D. Pedro de Menezes
+o condado de Villa Real e capitania da cidade de Ceuta, e muitos senhorios de
+terras: a filha legitima d'este D. Pedro succedeu na casa de Villa Real, e D.
+Duarte, seu filho illegitimo, progenitor<span class="pagenum">[43]</span> de uma casa das mais illustres,
+conseguiu, como se sabe, depois de muitas mercês, ser conde de Vianna e
+alferes-mór do reino.</p>
+
+<p>«D. Gonçalo Telles, conde de Neiva e Faria, alcaide-mór de Coimbra, senhor
+de Cantanhede, e de outras muitas terras, foi sentenciado por crime de
+lesa-magestade, e confiscados todos os seus bens; mas apesar disso possuiu a
+casa seu filho D. Martinho com o senhorio de Cantanhede: foi depois mordomo-mór
+da rainha D. Philippa, e é progenitor da illustre descendencia que ainda se
+conserva.</p>
+
+<p>«Diogo Lopes Pacheco de que descendem as mais illustres casas, foi havido e
+reputado por traidor, sem que a seu filho João Fernandes Pacheco servisse isso
+de obstaculo para a conservação da dignidade de rico-homem, que lograva, a
+maior que então havia da nobreza.</p>
+
+<p>«Alvaro Vaz de Almada foi sentenciado pelo mesmo crime, e confiscados os
+seus bens. Mas os de morgado passaram a seu filho primogenito D. João d'onde
+vieram a recahir na casa do conde de Valladares, e a D. Fernando, filho segundo
+do dito criminoso, de que descendem por varonia os Almadas do Rocio, foram
+dados os bens da corôa, que vagaram pelo delicto de seu pai.</p>
+
+<p>«Martim Coelho foi sentenciado por crime de<span class="pagenum">[44]</span> lesa-magestade, e seu
+filho succedeu nos morgados, e da mesma fórma nos senhorios de terras possuidas
+por seu pai. Lopo de Azevedo foi sentenciado pelo mesmo crime; não tinha
+morgados, mas os senhorios de terras por elle possuidos passaram a seu filho.
+</p>
+
+<p>«O infante D. Pedro foi julgado criminoso de lesa-magestade, porém el-rei
+restabeleceu seu filho em todas as honras, e dignidades antecedentes.</p>
+
+<p>«O snr. D. Diogo, duque de Vizeu, foi morto, e sentenciado pelo mesmo crime,
+e confiscados todos os seus bens: não deixou filhos legitimos, mas um bastardo
+seu que por essa circumstancia de nascimento, não succedeu nos morgados, tão
+longe esteve d'elle prejudicar o crime de seu pai, que casou na casa de Villa
+Real, e lhe deram o emprego de condestavel, occupado algumas vezes pelos
+senhores infantes. D. Alvaro de Athayde, filho segundo da casa de Atouguia, e
+seu filho D. Pedro de Athayde foram sentenciados por crime de lesa-magestade,
+cuja sentença pela ausencia de D. Alvaro teve sómente a execução em D. Pedro
+que foi morto, e esquartejado em Setubal: isto não obstante passou toda a casa
+herdada por este ultimo de sua mãi a seu filho D. Fernando, o qual fallecendo
+sem successão passaram os morgados<span class="pagenum">[45]</span> a quem tocavam; mas os bens da corôa
+foram dados a D. Antonio, filho do segundo matrimonio do sobredito delinquente
+D. Alvaro, e este D. Antonio foi conde da Castanheira, vedor da fazenda, e
+grande privado de el-rei D. João III, e é por filhos e filhas avô da maior
+parte da nobreza d'esta côrte.</p>
+
+<p>«Fernando da Silveira, escrivão da puridade de el-rei D. João II, filho
+primogenito do barão de Alvito, foi culpado e sentenciado pelo mesmo crime:
+fugiu para França aonde teve o atrevimento de escrever injuriosas cartas a
+el-rei, foi morto n'este reino por ordem do mesmo soberano, a quem tinha tão
+gravemente offendido, sendo o ministro da execução o conde de Pallas, catalão;
+mas não obstante tudo isso, seu filho D. João foi restabelecido, e como tal
+casou illustremente: foi commendador de Montalvão, governador de Ceylão,
+trinchante d'el-rei D. João III, e seu embaixador a França.</p>
+
+<p>«D. Fernando de Menezes, terceiro filho do conde de Vianna, irmão do conde
+de Loulé, foi culpado e justiçado pelo mesmo crime, e confiscados os seus bens.
+Não consta que tivesse morgados; mas sabe-se que lhe sobreviveram seus filhos
+dos quaes os dous primeiros casaram illustremente e possuiram os bens da corôa
+que vagaram pelo delicto de seu pai. D. Diogo, segundo filho d'este<span class="pagenum">[46]</span>
+mesmo, deu principio á casa de D. José de Menezes e o terceiro filho do dito
+criminoso seguia a vida ecclesiastica; foi desembargador do paço, cujo emprego
+n'aquelle tempo era occupado por fidalgos. O conde de Penamacor foi culpado no
+mesmo crime, porém seu filho D. Garcia de Albuquerque foi restabelecido e teve
+o lugar de copeiro-mór de el-rei D. João III.</p>
+
+<p>«O conde de Faro, irmão do conde de Monte-Mór foi culpado do mesmo crime de
+lesa-magestade, mas seu filho D. Sancho de Noronha foi restabelecido; foi conde
+de Odemira, senhor de muitas terras e alcaide-mór de Extremoz.</p>
+
+<p>«Martim de Castro do Rio foi culpado e esquartejado por crime de
+lesa-magestade, porém seu filho Jorge Furtado de Mendonça foi restabelecido,
+casou illustremente, teve maior estimação do que antes do delicto tivera seu
+pai, e d'elle descenderam os viscondes de Barbacena.</p>
+
+<p>«O marquez de Villa Real, seu filho o duque de Caminha, D. Agostinho Manoel,
+o conde de Armamar, e Fernando Telles, foram sentenciados por crime de
+lesa-magestade: os quatro primeiros foram degolados, e o quinto queimado em
+estatua: a todos se confiscaram os bens, e como só Fernando Telles tivesse
+filhos, a estes passaram<span class="pagenum">[47]</span> os morgados, e os dos outros delinquentes a quem
+de direito pertenciam.</p>
+
+<p>«Francisco de Lucena foi julgado e justiçado por crime de lesa-magestade, da
+mesma fórma o senhor de Regalados, um dos Soares de Alarcão, os mascarenhas de
+Montalvão, D. Raymundo, quinto duque de Aveiro, e outros foram reputados
+criminosos, sentenciados como taes, confiscados seus bens; alguns d'estes
+tinham descendentes, a quem passaram os morgados, e além d'isso conservaram a
+mesma estimação, e lograram as mesmas honras, que teriam se seus ascendentes
+permanecessem innocentes. Francisco Maldonado, e Francisco de Mendonça foram
+julgados por traidores, e como taes justiçados, e confiscados os seus bens;
+nenhum d'estes tinha filhos legitimos; mas Francisco de Mendonça deixou uma
+filha bastarda, que conservou a mesma estimação que teria se seu pai não
+commettesse o delicto; casou competentemente ao seu nascimento, com
+descendencia nobre de quem tomou tambem o appellido. Muitos outros factos
+semelhantes se omittem para não abusar da regia paciencia; só se nota não haver
+nenhum em contrario de pessoa de certa ordem; e é tambem de admirar que até
+quando por algum dos nossos monarchas foi recommendado ao seu successor que se
+conservasse<span class="pagenum">[48]</span> inexoravel com os que deixava profundados na desgraça, nunca
+tiveram efficacia bastante as razões politicas d'este conselho, e triumphou
+contra elles a clemencia e justiça. D'ahi se seguia manifestar-se mais que
+nunca n'este reino a verdade importante de ser a religião o mais solido
+fundamento das felicidades e das glorias. Tudo n'este tempo pareceu por Deus
+abençoado, e d'este modo se conservou, não sómente a raça respeitavel, com que
+viemos a recuperar os nossos fóros nacionaes; mas concorreram tambem para a sua
+exaltação muitos descendentes dos proscriptos antigos tornados pelo mesmo rei
+afortunado ao estado venturoso.</p>
+
+<p>«Estes exemplos constituem um perfeito costume, porque concorre n'elle a
+multiplicidade dos actos, a diuturnidade do tempo e a sciencia de principe. Se
+foram de justiça, não é o supplicante menos innocente, nem menos fiel e
+obediente ao sceptro do que aquelles em quem se não executou a lei, para que
+n'elle se interrompa uma tão dilatada serie nos ditos exemplos; tanto mais não
+lhe tendo valido até agora a opinião de muitos santos padres, de doutos
+juristas, canonistas e theologos, que deu occasião ás leis estabelecidas nos
+reinos mais policiados da Europa, dos quaes reputando-se os filhos nascidos
+antes dos crimes<span class="pagenum">[49]</span> de seus paes, livres de infecção, sómente a do peccado
+original são preservados de toda a pena, antes pelo contrario, tendo estado o
+dito supplicante expiando por excesso de rigor o crime alheio pelo tempo que se
+equipára á morte, por ser já de uma duplicada vida civil, e que pelas violentas
+circumstancias da rigorosa prisão em que padeceu, lhe teria acabado a natural,
+se a Providencia divina lh'a não tivesse conservado apesar dos esforços
+empregados para a brevidade da sua duração,&mdash;pena nunca praticada, porque nem
+as leis dos imperadores, nem a nossa ordenação, nem alguma outra impuzeram
+exorbitante castigo a semelhantes filhos innocentes.</p>
+
+<p>«Se os mesmos exemplos são de graça, o supplicante prostrado diante do
+throno de V. M. a implora, tomando por protectores, a religião e a piedade d'um
+principe, que preparado de muito longe pela Providencia, com dotes
+proporcionados ao magestoso encargo que lhe destinava, se nos mostra possuidor
+em grau sublime de tantas virtudes christãs, que fazem o mais brilhante ornato
+da sua corôa.</p>
+
+<p>«D'um principe a quem com antecipadas luzes, sendo evidente que para
+beneficio dos que deviam obedecer-lhe seria poderoso o seu exemplo mais do que
+a sua real authoridade; que por não<span class="pagenum">[50]</span> ter na terra tribunal que lhe fosse
+superior, devia exceder muito em perfeição aos homens ordinarios; e que em
+lugar tão eminente poderia o seu beneplacito ser a regra soberana por onde tudo
+fosse decidido, passou os instantes da sua preciosa vida, em um continuo
+exercicio do dominio das paixões e foi sempre o juiz mais severo de si mesmo.
+D'um principe, em fim, que com estes respeitaveis fundamentos certo de ter
+estabelecido o mais feliz imperio nos corações dos seus vassallos, só fará
+sensivel o peso immenso da sua real grandeza aos inimigos da igreja e da
+verdade. Não dará outro uso ao seu poder, senão para que se execute o que Deus
+manda; e assim como alguns, que foram a delicia dos seus povos, fará consistir
+a sua maior gloria em livrar da oppressão os desgraçados.</p>
+
+<p>«Debaixo d'estes ditosos auspicios, d'estes augustos intercessores, espera o
+supplicante vêr o termo do seu abatimento, a restituição da sua liberdade, da
+sua honra, do seu credito e dos bens que o direito do sangue lhe conferiu pelas
+vocações de seus ascendentes. Esta graça humildemente pedida, será para o
+supplicante um novo vinculo da sua submissão. E para el-rei nosso senhor um
+eterno monumento da sua benigna magnanimidade.»<span class="pagenum">[51]</span></p>
+
+<p>Esta pungente invocação á caridade da rainha, que esvasiava os repletos
+cofres do estado no mosteiro do Coração de Jesus, não valeu ao desgraçado,
+sequer, uma esmola do real bolsinho. Braganças!... O marquez de Gouvêa viveu
+longos annos da caridade do seu parente conde de Obidos, e já no fim da vida
+recebia uma mezada que lhe dava D. João VI. D. Martinho, se bem me recordo do
+que li, morreu em Lisboa, em uma humilde casa, no bairro de Buenos-Ayres, por
+1804.</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a name="L955" id="L955" href="#L957">[2]</a></sup> É este o titulo do
+manuscripto: <em>Itinerario do ex.<sup>mo</sup> snr. bispo conde, restituido ao
+seu bispado, para o qual partiu de Lisboa no dia 11 de agosto de 1777.</em></p>
+</div>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap05" name="cap05">D. MARIA CARACA BONAPARTE</a></h1>
+
+<p>Não conheci, em Lisboa, esta senhora D. Maria, bastantemente historica e
+benemerita de immorredoura escriptura.</p>
+
+<p>Conheceu-a aquelle esclarecido arcebispo, cujos sonhos, na noite da
+demencia, o leitor ouviu no sublime desarranjo chamado <em>A catastrophe</em>.
+</p>
+
+<p>Est'outro escripto, menos nevoento e cerrado das turvações do delirio, tem
+especies em que o<span class="pagenum">[52]</span> riso se trava com o compadecimento, e outras em que a
+compaixão d'aquelle distincto homem nos redobra o pezar de se haver perdido no
+vigor da idade tamanho espirito.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">D. MARIA CARACA BONAPARTE, OU A BURRINHA
+PROTESTANTE</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>D. Maria Caraca teve tres estados: foi orphã, casada e viuva: seu pai morreu
+na guerra da Italia combatendo contra os francezes pela independencia da
+peninsula italiana; era natural de Milão, cantor da opera e grande enthusiasta
+das novas idéas da republica, que haviam volcanisado o seu cerebro até o
+delirio.</p>
+
+<p>Quando este maestro da opera viu que a França proclamava a liberdade para
+tyrannisar os povos, lançou-se no partido mais hostil aos francezes da
+republica sanguinaria, e morreu deixando a sua morte bem vingada.</p>
+
+<p>As suas idéas eram falsas e exageradas em religião e em politica; porque
+seguia occultamente todos os erros e absurdos de Luthero e de Calvino: o odio,
+que tinha ao summo pontifice era tão profundo, que o obrigava a blasphemar e
+praguejar<span class="pagenum">[53]</span> contra os cardeaes e contra a santa sé, contra os bispos e
+contra as mitras e cadeiras.</p>
+
+<p>Bonaparte venceu muitos ou todos os partidos que estiveram em campo contra a
+França: o general da republica principiou a imperar, e a exercer a sua tyrannia
+nas provincias muito antes de exaltar na metropole o throno do seu fatal
+despotismo, como sempre acontece.</p>
+
+<p>Verres na Sicilia era mais do que imperador; Cesar sempre imperou nas
+provincias. Se D. Affonso d'Albuquerque fosse susceptivel de ambição podia
+usurpar o titulo de imperador da Asia; porque o povo desejava conferir-lhe
+todas as attribuições do imperio.</p>
+
+<p>Bonaparte no Egypto era saudado como rei do fogo; Mahomet e todos os
+impostores e usurpadores da sua escola recebem a mesma baixa e servil adulação
+que as almas mais vis sempre se empenham em prodigalisar ao vencedor. A
+sciencia, e a virtude de homem grande, consiste em desprezar estas frivolas
+demonstrações e em saber reprimir todos os excessos do enthusiasmo, que se
+esvaem e perdem como o fumo.</p>
+
+<p>Bonaparte passou como um cometa; a sua descendencia extinguiu-se e toda a
+sua parentela: existe na throno de França um homem que não tem pai nem mãi, nem
+alliança, nem façanhas<span class="pagenum">[54]</span> nem grandeza. É um homem que apenas aspira a fazer
+com auxilio alheio uma memoria que mereça ser approvada em uma academia.</p>
+
+<p>Os protestantes urdem e tecem muitos generos de lisonja aos seus heroes; são
+arcos e pompas de triumpho, grinaldas, festins, e poemas, representações, e
+orchestras, lisonjas e desvanecimento.</p>
+
+<p>Um deputado da convenção nacional disse a um seu amigo e collega, que ia
+para Lião em commissão sanguinaria: tu verás em Lião a minha esposa, abraça-a.
+</p>
+
+<p>N'este tempo todos os revolucionarios levavam as suas mulheres aos
+horrorosos estupros do templo profanado: a mulher que servia de modelo, e o
+homem que a gozava, eram escolhidos entre todos os concorrentes sem attenção ao
+estado nem á condição dos que eram designados.</p>
+
+<p>Na Italia tributavam em quasi toda as cidades a Bonaparte a honra de o
+desposar com a mulher mais formosa; Bonaparte aceitava este tributo da infamia
+protestante, gozava e passava para outra cidade, aonde era recebido com igual
+torpeza.</p>
+
+<p>Em Milão cahiu a nefasta sorte em Maria Caraca Bonaparte; e como era filha
+d'um homem morto pelo exercito francez recusou sujeitar-se<span class="pagenum">[55]</span> á estranha
+condição para que a designaram, apesar de ser tão protestante como seu pai.</p>
+
+<p>Os influentes de Milão que andavam empenhados n'esta impia e baixa lisonja
+corromperam todos os parentes da burrinha; de sorte que cedeu de seu odio
+politico, e principiou a ser do conquistador.</p>
+
+<p>Se Maria Caraca fosse verdadeira catholica, jámais consentiria em tão grande
+infamia e vileza, porque esta especie de tyrannia é mais impia e mais cruel de
+que era o tributo das cem virgens para o serralho e para o harem.</p>
+
+<p>Uma amante ou manceba podem nutrir uma esperança honesta, e chegam ás vezes
+a legitimar as suas uniões e prole; estas burrinhas são sempre a negação da
+moral, o escarneo do affecto, e o epigramma do amor e da sympathia. O
+protestantismo trata todas as mulheres como negras escravas. Despreza-as para
+as fazer bem vis; porque a mulher deve ser semelhante ao homem que a elege, e
+que a fórma e educa para sua companheira.</p>
+
+<p>Os milanezes deram a um tio de Maria Caraca a espectativa de um canonicato,
+prometteram á sua victima dous mil cruzados de dote, e por esposo o primeiro
+cantor da opera de Milão.</p>
+
+<p>Maria Caraca e a sua familia realisaram todas<span class="pagenum">[56]</span> as condições; os
+protestantes de Milão cumpriram as suas fielmente: o casamento verificou-se, o
+dote sahiu da renda da cidade, que pagou para Bonaparte ter uma desgraçada por
+companheira dos seus vilissimos prazeres.</p>
+
+<p>Os que dispunham tão impiamente dos beneficios ecclesiasticos não podiam ter
+duvida em defraudar o thesouro do municipio.</p>
+
+<p>Maria Caraca e seu marido seguiram o partido de Bonaparte, e na restauração
+dos thronos viram-se na necessidade de emigrar para Portugal: perderam patria,
+emprego, e até o sobrenome de Bonaparte de que usaram por muito tempo.</p>
+
+<p>O marido morreu e deixou um filho e uma filha em Lisboa; o filho exerceu
+n'esta cidade por algum tempo com seu pai a profissão de musico: tambem morreu:
+eu só conheci a viuva e a filha chamada D. Thereza, as quaes moraram na rua dos
+Poyaes de S. Bento.</p>
+
+<p>Quantas vilezas, quantas degradações, e quantas tyrannias envolve o atroz
+procedimento de Milão! Não ha impiedade mais provocadora, não ha infamia mais
+torpe, nem injuria maior feita ao mesmo tempo á igreja e ao estado, á mulher e
+ao esposo, ao amor e ao estado e á santidade do matrimonio.</p>
+
+<p>Estas estrangeiras eram da escola da infame<span class="pagenum">[57]</span> Bisardeli: conviviam com a
+sua amante, que foi muito tempo em Lisboa uma mulher luxuriosa e depravada, que
+vendia todo o fumo da perfida nunciatura d'aquelle tempo.</p>
+
+<p>Eu foi conduzido em mil oitocentos e quarenta como deputado para a casa das
+referidas Caracas: as lojas maçonicas dispunham do meu destino traiçoeiramente
+para dispor de minha vida, e vivi por mais de um anno na casa dos Poyaes de S.
+Bento com outros deputados, que serviam as lojas, e que me vendiam, e
+entregavam aos seus caprichos: por esta razão ouvi e aprendi o esboço d'esta
+negra historia; assim agora ouço e aprendo o seu complemento e torpissimo
+enredo.</p>
+
+<p>A inspiração é a minha sabedoria; se em outro tempo soube alguma cousa agora
+declaro, que nada sei e que todas as minhas idéas são communicadas e
+inspiradas, do alto céo, e no seu piissimo docel.</p>
+
+<p>Eu tinha trinta annos de idade, e julgava que todos os homens eram de boa
+fé, e amigos do seu semelhante. Bons e excellentes para a companhia e
+convivencia, os traidores são os mais lisonjeiros: eu tive seis companheiros de
+casa n'esta época: só um vive, cinco já falleceram.</p>
+
+<p>Os meus inimigos, que são todos os vilissimos protestantes, fizeram as
+maiores diligencias para<span class="pagenum">[58]</span> me matar: não houve astucia, nem enredo, nem
+traição que não empregassem para conseguir este malevolo fim: é bem de presumir
+que um d'estes fosse o veneno.</p>
+
+<p>A infanta e todos os usurpadores da casa de Bragança, o governo e todos os
+seus clientes, a maçonaria e todos os seus agentes nacionaes e estrangeiros,
+ora armavam contra mim o braço do cruel Mattos Lobo, ora forjavam ou fingiam
+revoluções e acclamações nocturnas para me surprehender no conflicto, ora
+lançavam sortes para me seguir de noite e para me matar nos arroios da cidade
+ou nas encruzilhadas: ora engajavam estrangeiros e carniceiros por grandes
+sommas para que me procurassem e matassem na propria casa, aonde eram recebidos
+pelas infames Caracas.</p>
+
+<p>Um d'estes era um lanceiro, e carniceiro, que esteve na guerra do Porto, a
+quem deram o preço do regicidio, e o bilhete de passagem em um brigue para
+sahir para França logo que consummasse o attentado.</p>
+
+<p>Todas estas traições e maquinações eram cumulativas, horrorosas, e tão
+desleaes e insidiosas, como as que se urdem ao innocente que não sabe ou não
+póde defender-se. Eu estava no caso da mais perfeita ignorancia porque nem
+sabia o que era: infelizmente a minha vida era n'este tempo<span class="pagenum">[59]</span> mui sujeita á
+fragilidade e a quedas que eu não procurava, antes tentava e não sabia evitar.
+</p>
+
+<p>Estes monstros da tyrannia do inferno pediam e repelliam a minha eleição;
+porque o seu fim unico exclusivo era a minha morte; só admittiam a meu favor
+algumas apparencias ou disfarces com que encobriam as suas tramas e horrores:
+eram seducções, tyrannias, convites para lugares de traição, venenos, e armas
+occultas. Se viam que eu vingava como advogado em Villa Real, pediam para eu
+ser eleito deputado só para me atraiçoarem em Lisboa; e logo se arrependiam, e
+punham todos os embaraços da sua infame escola e odiosa seita á minha eleição e
+elevação; se viam que eu não era morto em Lisboa desejavam que eu fosse para
+Coimbra aonde punham como ultima mira a cruz de meu martyrio e funeral.</p>
+
+<p>Como podia livrar-me de tão infernal perseguição? Os monstros não
+consentiram mais na minha eleição e ainda me propozeram pelo circulo de
+Arganil, onde fui eleito deputado no anno de 1852, mas os infames logo se
+arrependeram, e cassaram ou annullaram a eleição na camara, sem me ouvir, e sem
+me mostrar o processo das suas infernaes tramoias.</p>
+
+<p>Quem deixaria de eleger-me para todas as legislaturas depois de vêr e saber
+que o meu nome<span class="pagenum">[60]</span> era singular e unico, e que a minha representação não
+tinha igual em todo o mundo e redondeza?</p>
+
+<p>Quando concordaram na minha eleição para suffraganeo do patriarchado
+entregaram a minha vida ao maldito e infernal nuncio, e ao abjecto e tredo
+patriarcha e ás suas seitas e partidos para se desonerarem da tarefa que os
+infames julgaram e declararam superior ás suas forças.</p>
+
+<p>Estes monstros esgotaram toda a traição, todas as maquinações e os seus
+enganos, e não conseguiram o que desejavam: o perfido e abominavel ministro do
+anti-papa chegou a convidar todas as seitas para o espectaculo do meu
+envenenamento, as quaes enviaram os seus deputados e representantes para
+assistir a esta scena de horror que se representou na presença da diplomacia
+cruenta das actuaes usurpações da vergonhosa Europa e da America por duas
+vezes.</p>
+
+<p>Só Deus omnipotente podia isentar-me de tão imminentes catastrophes. O nosso
+fim actual é descrever a burrinha protestante e a sua bestial condescendencia e
+venalidade.</p>
+
+<p>Um deputado que vivia na mesma casa da viuva Caraca mandou um seu criado ao
+meu quarto para me offerecer uma criada da casa em que ambos viviamos; eu não
+sabia desviar estes<span class="pagenum">[61]</span> golpes, que o Senhor deixava ao meu alvedrio para o
+merecimento, e para que désse a devida preferencia á sua santa luz e
+mandamento.</p>
+
+<p>O inimigo occulto era d'uma seita de usurpadores de Deus: a sua traição
+vingou por pouco tempo; quando me tentou com alguma pessoa da sua familia não
+conseguiu o que desejava; o criado fez-lhe a traição, que elle me urdiu a mim.
+</p>
+
+<p>Os inimigos da nossa casa e dynastia recorreram a D. Thereza Caraca, e
+fizeram-lhe o mesmo partido, que os milanezes tinham feito á sua mãi para que
+me seduzisse e envenenasse.</p>
+
+<p>Prometteram-lhe dinheiro, um marido, e um emprego para este, e realisaram
+todas estas promessas, mas eu só bebi meia taça de seu perfido veneno; na
+primeira occasião que tive de lucido intervallo repelli a seductora, e todas as
+suas seducções, e, como vi que se obstinava, sahi da casa.</p>
+
+<p>O que é a verdade? esta mulher disse que estava gravida e tentou
+attribuir-me o seu ventre, ou isentar-se pelo aborto do seu nefando e odioso
+mister de calumniadora; disse-me que ia queixar-se de mim ao nuncio, ou agente
+occulto da junta apostolica que por este tempo estava em Lisboa, em quanto
+estiveram interrompidas as relações com a côrte de Roma. Eu zombei da
+perfidia<span class="pagenum">[62]</span> e do sarcasmo d'esta mulher calumniadora e embusteira; e
+procurei livral-a de sua tentativa de aborto, o que felizmente consegui por
+dinheiro.</p>
+
+<p>Esta odiosa creatura teve n'este tempo dous amantes: o primeiro era um
+deputado, que a seduziu para que me envenenasse, o qual morreu pouco tempo
+depois, e logo adoeceu tão gravemente que parecia um espectro, ou um cadaver
+ambulante: era um agente dos pedreiros livres.</p>
+
+<p>Havia n'esta casa só duas pessoas da familia, a mãi e a filha; eu tive dous
+enlouquecimentos de falso amor; repelli duas tentativas da mesma perfida
+natureza e nojenta cavillação.</p>
+
+<p>D. Thereza tocava dous instrumentos e cantava, tinha um amante para casar
+que a acompanhava no canto e com o violoncello: eu comprei em quanto alli
+estive dous pintasilgos ensinados a tirar agua com o bico, os quaes foram ambos
+mortos por um gato, que havia em casa.</p>
+
+<p>A criada tambem teve dous amantes, um era sapateiro coxo, que a procurava e
+requestava para casar: ambos realisaram os seus casamentos.</p>
+
+<p>A filha da viuva Caraca tinha na mesma casa um estabelecimento de capella, e
+inculcava-se ao respeitavel publico como modista: a mãi tinha o seu
+estabelecimento de hospedaria.<span class="pagenum">[63]</span></p>
+
+<p>Eram dous estabelecimentos: a casa tinha sahida para duas ruas e duas portas
+para a rua dos Poyaes de S. Bento: viveram alli commigo cinco deputados, dous
+delegados, dous juizes do districto, dous governadores civis, dous juizes da
+antiga magistratura, dous Domingos dos quaes um era o atraiçoado e o enganado
+por todos os outros: eramos ambos deputados pelo circulo de Villa Real: os
+outros eram deputados por outros circulos.</p>
+
+<p>Os delegados foram Domingos Vieira, e José Manoel Botelho, os juizes foram o
+José Maria da Chamusca e o Quesado, os governadores civis foram o dr. José
+Maria e João Pedro Pessanha, os juizes antigos foram o mesmo José Maria e
+Domingos Vieira, e não preciso dizer quem eram os Domingos, senão que eu sou já
+tão diverso do que era, que não pareço o mesmo. Os cinco e seis deputados
+formavam as cinco e seis qualidades já referidas.</p>
+
+<p>Quem poderá calcular as lagrimas que tenho chorado para carpir os peccados e
+os erros da minha mocidade, e para os emendar com divina graça e misericordia?
+está-me parecendo que reunidas faziam o maior lago dos nossos passeios e
+jardins.</p>
+
+<p>Actualmente não como carne nem peixe não<span class="pagenum">[64]</span> bebo vinho nem cerveja,
+passam-se quinze dias e tres semanas sem que prove doçura, nem chá, nem café,
+nem chocolate, como por medida e por peso, e não uso de carne nem de genero
+algum de tabaco, não passeio, nem vou aos espectaculos; prefiro andar a pé e só
+peço ao Senhor que se compadeça da minha alma.</p>
+
+<p>A burra protestante é bem parecida com a vacca, e com o burro da seita: eu
+não conversava com estas em pontos ou artigos da santa fé, o seu veneno era a
+maior traição e os seus reconditos apenas me revelaram parte da sua historia de
+Milão.</p>
+
+<p>Eu sempre assisti á missa mais catholica de que tinha noticia, e não
+suspeitava em ninguem cavillação ou perfidia tão negra e atroz, que chegasse a
+ostentar fé falsa da diabolica e tenebrosa consciencia: agora sei que ha muitas
+d'estas embrutecidas consciencias, e não duvido que as duas Caracas fossem
+d'este hediondo esconjuro.</p>
+
+<p>Os maçons são em geral d'esta sanhuda seita do inferno; os usurpadores de
+Portugal pactuam com o demonio, e entregam as almas para poderem possuir as
+leis das santas casas do divino Salvador.</p>
+
+<p>Mas estes venenosos monstros apenas gozam a presa: o direito santo e eterno
+foge d'elles<span class="pagenum">[65]</span> como foge a cerração quando nasce a aurora que vem remir o
+mundo.</p>
+
+<p>Os mesmos inimigos recebem outro engano ou desengano semelhante quando
+tentam usurpar o poder da santa igreja para legitimar a sua tyrannia.</p>
+
+<p>A falsa communhão dos protestantes está no estado: não póde legitimar os
+actos do poder usurpador e dominador.</p>
+
+<p>O estado catholico está na igreja, e por isso legítima os seus poderes todas
+as vezes que recorre para este fim ao poder espiritual do summo pontifice. A
+era actual é a perfeição da disciplina.</p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap06" name="cap06">LIXO</a></h1>
+
+<p>O snr. Joaquim Antonio de Sousa Telles de Mattos, critico erudito e menos
+conhecido que merece, publicou, em Evora, um opusculo intitulado: <em>A
+imparcialidade critica do snr. Joaquim de Vasconcellos.</em> Allude á
+<em>Analyse critica da versão do <span class="small-caps">Faust</span></em>. A
+obra do critico do snr. visconde de Castilho é um livro crasso que morreu de
+tabardões, e jaz no <em>carneiro</em> das livrarias esperando que o dente roaz
+da carcôma o pulverise por modo que<span class="pagenum">[66]</span> as letras portuguezas se desenfezem
+d'aquellas escamas de ignorancia e odio.</p>
+
+<p>O snr. Telles de Mattos colligiu algumas necedades graudas que denominou
+<em>vasconcellismos</em>.</p>
+
+<p>Abre a lista, com a novidade&mdash;<em>declinar</em> verbos. Eis a passagem onde
+se encontra o lerdo descôco do critico de Castilho: <em>Nenhum doutorando dos
+ultimos cinco annos em Coimbra, estaria no caso de</em> declinar <em>os verbos
+auxiliares allemães, sem merecer palmatoada...</em> (pag. 26). E acrescenta o
+snr. Mattos: «Quando eu vi o <em>Sejai</em> e <em>Estejai</em> julguei que era
+erro typographico dos <em>germanismos</em> annunciados; vendo porém
+<em>declinar</em> verbos, percebi que o snr. Vasconcellos saberá tanto de
+allemão como qualquer analphabeto nascido debaixo do paternal carinho de
+Bismarck.»</p>
+
+<p>Observa que a pag. 57 o snr. Vasconcellos inclue a Suissa na Allemanha; e
+acrescenta: «A Suissa pertence á Allemanha na geographia do snr. Vasconcellos;
+ella deve ser equiparada á sua grammatica.»</p>
+
+<p>Nota que o snr. Vasconcellos escrevendo: <em>os manes do Olympo</em> (pag.
+128) désse a perceber que os deuses olympicos tem manes. <em>Manes</em> tanto
+significam almas dos mortos como deuses infernaes. A mythologia do snr.
+Vasconcellos é como a geographia, e não desdiz da grammatica.<span class="pagenum">[67]</span></p>
+
+<p>Cita, na pag. 208, o imperativo do verbo <em>ser</em>, <em>apud</em>
+Vasconcellos: «<em>Sejai</em> pois corajoso e apparecei como modêlo.» E a pag.
+507: «<em>Sejai</em> tão infames quanto quizerdes.» E a pag. 337:
+«<em>Estejai</em> dentro ao golpe da sineta.» <em>Coup de clochette</em>&mdash;golpe
+de sineta, segundo Vasconcellos. Em portuguez, traduz-se <em>badalada</em>, ou
+<em>toque de sineta</em>. Desculpem esta observação os alumnos de instrucção do
+3.º anno dos lyceus.</p>
+
+<p>«Desço eu (diz o snr. Vasconcellos a pag. 239) sem cessar de cima para
+baixo.» O snr. Telles de Mattos ajunta: «Leitor, agradece a fineza: sem o
+pleonasmo, ficavas percebendo com certeza que se desce de baixo para cima.»</p>
+
+<p>Os cães, <em>apud</em> Vasconcellos, grunhem. A pag. 273: «Tu vês um cão...
+elle <em>grunhe</em>.» A pag. 277: «Não grunhes, cão!» E torna: «Quer o cão...
+<em>grunhir</em>.» Nunca se usurpou tantas vezes a linguagem ao cevado.</p>
+
+<p>Se o snr. Vasconcellos estudasse portuguez pelo <em>Methodo</em> de
+Monteverde, teria aprendido nas <em>Vozes dos animaes</em> do snr. Pedro Diniz
+como vozêam cães e porcos.</p>
+
+<blockquote style="font-size: 0.9em;">
+ <em>Muge</em> a vacca; <em>berra</em> o touro;<br>
+ <em>Grasna</em> a rã; <em>ruge</em> o leão;<br>
+ O gato <em>mia</em>; uiva o lobo;<br>
+ Tambem <em>uiva</em> e <em>ladra</em> o cão.<br>
+ <br>
+ ..........................<br>
+ <em><br>
+ Chia</em> a lebre; <em>grasna</em> o pato;<br>
+ Ouvem-se os porcos <em>grunhir</em>;<br>
+ Libando o succo das flôres,<br>
+ Costuma a abelha <em>zumbir</em>, etc. </blockquote>
+
+<p>Tambem Vasconcellos, traduzindo G&oelig;the, descobriu no cão um
+<em>caroço</em> (pag. 285). Diz-lhe o snr. Telles que <em>Kern</em> significa
+<em>pevide</em> ou <em>caroço</em>, quand se trata de fructos; mas n'outras
+conjuncturas, é <em>amago</em>, <em>substancia</em>, etc. O snr. Vasconcellos,
+quando tirava os significados de <em>Kern</em>, achou <em>caroço</em>, e
+pespegou-o logo no cão; por isso o cão encaroçado <em>grunhiu</em> tres vezes.
+Podéra...</p>
+
+<p>A pag. 474, escreve Vasconcellos: <em>ouvir por um oculo.</em> Eu esta
+phrase não a estranho. Mais me espantára, se elle dissesse: <em>vêr por uma
+corneta acustica.</em></p>
+
+<p>Dá-nos Vasconcellos a pag. 503 Tantalo <em>enterrado até ao queixo na
+agua.</em> Póde uma pessoa estar <em>enterrada</em> na agua, e estar
+<em>submergida</em> na terra. Tambem não estranho isto; mais me assombra a
+coragem da ignorancia, se é que não ha um fado irresistivel e tolo que nasceu
+comnosco, ou <em>com nós nasceu</em>, como diz Joaquim de Vasconcellos a pag.
+339.</p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap07" name="cap07">BIBLIOGRAPHIA</a></h1>
+
+<p><em>Escriptos humoristicos em prosa e verso do fallecido <span
+class="small-caps">José de Sousa Bandeira</span>, precedidos da biographia e
+retrato do author. Porto, 1874.</em>&mdash;O berço da liberdade em Portugal foi
+embalado com as trovas politicas do redactor do <em>Azemel</em> e do
+<em>Artilheiro</em>. Bandeira é o patriarcha da facecia jornalistica entre nós.
+A sua graça era da velha escóla de José Daniel e de José Agostinho de Macedo.
+Não pespontava de delicadeza: ia direita aos beiços do leitor e abria-lh'os
+forçosamente em casquinadas de riso. Hoje em dia, o riso é mais preguiçoso,
+quando folheamos estas paginas do livro escripto ha 38 annos. São cinzas, e
+cinzas esquecidas os estadistas que José de Sousa Bandeira motejou no
+tumultuoso palco politico de aquelle tempo; todavia, a historia não prescindirá
+de consultar os <em>Annaes da imprensa da liberdade restaurada</em>, quando
+houver de assentar de vez os vultos dos grandes obreiros do governo
+representativo; e, entre todos os archivistas das luctas d'esses dias, José de
+Sousa Bandeira foi o mais independente e afouto. Custodio José Vieira,<span class="pagenum">[70]</span>
+talento insigne e apreciador inflexivel dos homens e das cousas, escreveu a
+biographia do jornalista com quem muitas vezes pleiteou na sua juventude de
+publicista. É um lavor incompleto, dado que na vida de Sousa Bandeira lhe não
+esquecessem os lances capitaes. É incompleto, por que as 83 paginas escriptas
+deviam prolongar-se até completar a historia e o proseguimento da restauração
+dos direitos civicos em Portugal. Custodio Vieira revela-se, n'este eloquente
+escripto, historiador severo. No estylo, usa as concisões de D. Francisco
+Manoel de Mello, e o atticismo dos historiographos que melhormente
+exemplificaram a arte de narrar. Se elle um dia poder furtar-se aos braços da
+sua amada e amantissima jurisprudencia (que amores!) póde ser que a historia se
+preze de brindar os portuguezes com os fastos da sua emancipação.</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *</p>
+
+<p><em>No Minho, por <span class="small-caps">D. Antonio da Costa</span>.
+Lisboa, 1874.</em>&mdash;Apenas publicado, divulgou-se o gracioso livro de D.
+Antonio da Costa, escriptor provado em ramos de variada litteratura. Os
+<em>Tres mundos</em> foi obra que affirmou os distinctos dotes revelados nos
+livros anteriores. Este do <em>Minho</em> é<span class="pagenum">[71]</span> o repousar suave de
+circumspectas canceiras, que asseveram meditação, estudo, espirito reflexivo e
+capacidade para tentativas avessas do indolente genio portuguez. Escrever 310
+paginas ácerca d'estas moutas verdejantes do Minho, sem enfastiar, é condão de
+quem sabe quebrar com as diversões da arte a monotonia da natureza. E, depois,
+jornadear por estradas reaes, pernoitar por estalagens urbanas&mdash;em que não ha
+vislumbre de urbanidade, nem sequer misericordia&mdash;passar uma noite em Braga, é
+sentir-se a mais robusta e inventiva alma encodear de uma crusta de estupidez
+que nos faz pensar que temos no peito uma tartaruga sôrna. Braga, a
+scintillante esmeralda d'esta manilha de pedras finas que D. Affonso Henriques
+tirou do pujante braço de Hespanha, Braga seria a querida dos forasteiros de
+todo o mundo, se as camas das suas hospedarias não fossem alfobres de insectos
+<em>apteros</em> com seis patas, e <em>hemipteros</em> com azas, segundo
+Cuvier. Sei que no Indostão ha hospicios em que as pulgas são pensionadas e
+medicadas nas suas enfermidades. Sei que os indostanicos respeitam o dogma da
+metempsychose, e se deixam sugar devotamente por ellas; mas nem Braga é
+Aurengabad, nem eu sou da raça mahratta, nem tenho razões bem assentes para
+desconfiar que o espirito de<span class="pagenum">[72]</span> minha avó se compraz em me morder no hotel
+Real de Braga.</p>
+
+<p>Não encontro memoria d'este martyrio no livro do snr. D. Antonio da Costa.
+Attribuo a omissão á delicadeza do martyr. Ha tormentos tão sujos que o
+relatal-os em gemidos é indecencia consignada no <em>Compendio de
+civilidade</em> do snr. João Felix. Se bem me lembro, Boileau cantou a pulga em
+magnificos alexandrinos; hoje em dia; nem á pedestre prosa se consente rolar
+uma lagrima sobre a cutis sevandijada por estes e outros carnivoros creados em
+um dos sete dias genesiacos... para satisfação e proveito do homem.</p>
+
+<p>O meu amigo D. Antonio da Costa, convisinhando do snr. Manoel dos Malhos,
+que roncava impenetravel ás harpias do hotel, chorou copiosamente no capitulo
+intitulado: <em>Uma insomnia.</em> Quem sabe se, n'aquella noite, as luras
+epidermicas da casca de Manoel dos Malhos attrahiram as hordas a desenxovarem
+n'ellas as suas larvas e nymphas? Eu, n'aquellas estalagens, encontro sempre
+dous Manoeis dos Malhos, um de cada lado, e os outros bichos no meio.</p>
+
+<p>Formal e substancialmente são admiraveis os capitulos d'este livro,
+intitulados <em>O Bom Jesus do Monte</em>, <em>Um castello feudal em 1873</em>,
+<em>A mulher do Minho</em>, e a <em>Ultima impressão</em>. N'estas paginas
+que<span class="pagenum">[73]</span> fecham o livro reluzem os entranhados desvelos com que o snr. D.
+Antonio da Costa, ha tantos annos, afaga as criancinhas carecidas da segunda
+alma da educação. Este capitulo é um obelisco de gratidão publica e amoravel a
+perpetuar a memoria de D. Maria Francisca dos Santos Araujo, abastada senhora
+de Leça que fez do seu ouro um quinto evangelho de propaganda caritativa. «Ah,
+senhora!&mdash;escreve o eloquente enthusiasmo do obreiro da instrucção&mdash;devem de
+ser formosos os vossos momentos, quando na escóla que edificastes vos achardes
+rodeada das meninas que se estão educando no vosso bafo, e não menos quando
+sahindo d'alli festejada por ellas, ao passardes pelas ruas de Leça, chegarem
+ás portas todas aquellas mães com as filhinhas mais pequenas ao collo, e fordes
+vendo todas essas mães apontarem para vós, dizendo alvoroçadas para as
+crianças: <em>É aquella!</em>»</p>
+
+<p>O livro <em>No Minho</em> está julgado por 1:500 leitores que o já possuem;
+e, todavia, annunciou-se a excellente obra nos primeiros dias de julho. Não são
+triviaes estes triumphos em Portugal, repetidos com as mais notaveis producções
+do benemerito escriptor. Aquelle grave e philosophico livro dos <em>Tres
+mundos</em>, relido com intelligente ardor e creio que já reimpresso, attesta
+que renasce<span class="pagenum">[74]</span> n'este paiz o afan do estudo, e o gosto da instrucção solida.
+Deviamos vir a isto, depois do cataclysmo de palavrorio e marmanjarias com que
+uns sycambros andaram por ahi a querer derrancar a mocidade. Não póde o
+illustre escriptor frizar de todo a sua indole peculiar ao genero
+escoteiro&mdash;digamol-o assim&mdash;d'estas cousas levissimas e quasi futeis que se
+escrevem em jornadas de fronteiras a dentro. O modêlo, que Almeida Garrett
+imitou dos francezes, é um estorvo que desanima. O romance, interposto na
+viagem, era em 1840 um dôce engodo, e foi grande parte na prosperidade do
+livro. Estavamos ainda no periodo romantico. A menina dos rouxinoes devia ser
+contemporanea dos bardos que se inspiravam das proprias cabelleiras á
+Saint-Simon. Os rapazes d'aquelle cyclo acreditavam em Garrett, e andavam
+saturados do amor dos Espronceda e Musset.</p>
+
+<p>Hoje, não. O livro do snr. D. Antonio da Costa é, a intervallos,
+condimentado das grandes questões do dia, da vitalidade regeneratriz que estúa
+no pulso de todas as forças. Se parte dos leitores o desejam mais futil, ha de
+haver muito quem assim o estime em dobro. Eu, de mim, achei n'estas trezentas
+paginas o sorriso alegre, a meditação melancolica, o rebate saudoso de perdidos
+contentamentos, o estimulo a considerações<span class="pagenum">[75]</span> de porvindouros beneficios a
+filhos e netos&mdash;consolação unica, mas santa, que a Providencia dá aos que não
+esperam nada da vida presente.</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *</p>
+
+<p><em>Phantasias e escriptores contemporaneos, pelo <span
+class="small-caps">visconde de Benalcanfôr</span>. Porto, 1874.</em>&mdash;Ricardo
+Guimarães, com o camartello do folhetim, derruiu o carroção, no Porto, ha vinte
+annos. O carroção tinha, por aquelle tempo, dous seculos de moda. Fôra
+inventado na rua das Cangostas para uso de uma familia obesa, formada de quinze
+pessoas adiposas. Esta familia derreteu-se no estio de 1650; mas o carroção
+ficou.</p>
+
+<p>No lapso de duzentos annos, o carroção, parado no largo da Batalha, com a
+lança vermelha atravessada nas sôgas dos ramalhudos bois, viu passar e
+desapparecer todos os vehiculos adelgaçados pelo cepilho do progresso. O
+carroção escancarou as goelas, e riu da americana, da victoria, do phaetont, do
+landeau, da caleche, do dog-cart, da tipoia, do coupé, do tilburi, do daumont,
+do brougham, do mail-coach, do poncy-chaise, do groom, do break. Ricardo
+Guimarães, fundibulario da hoste moderna, carregou a<span class="pagenum">[76]</span> funda de estylo,
+remessou-a ao Golias de couro; e o gigante, arrastado pelos bois que mugiam
+saudosos da palha-milha que comiam á porta do theatro lyrico, dispersou os
+membros por Barcellos, Famalicão e regiões visinhas. O milagre não fôra obra de
+um homem nem de uma geração de espiritos finos. Fôra o estylo de Ricardo
+Guimarães&mdash;o estylo que é a dynamisação de todas as forças, desde a polvora até
+á dynamite, desde a alçaprema de Archimedes até á machina de Papin. Era uma
+delicia o escrever d'este rapaz, e outra delicia o modo como entornava no papel
+os brilhantes paradoxos, as hyperboles ridentes, as metaphoras originalissimas.
+Era meu companheiro de hotel (que hotel, ó Ricardo!) em 1855. Escrevia artigos
+politicos de madrugada, na calma, entre meio dia e uma hora, do seguinte
+feitio: tinteiro e papel no sobrado; elle adaptava-se horisontalmente ao
+colchão, na postura de quem espreita a profundidade de uma cisterna, descia o
+braço direito até ao pavimento, e escrevia lá em baixo. Assim tratava Ricardo
+Guimarães, de bôrco, a politica do <em>Nacional</em>, no soalho, como quem
+deita migalhas a uma pêga.</p>
+
+<p>Depois, um dia, enfardelou os fraques e os vernizes, os retratos de algumas
+mulheres formosas e os economistas mais avançados, desdobrou<span class="pagenum">[77]</span> as azas da
+sua arrojada phantasia, deu um sorriso aos seus amigos, e... adeus! D'ahi a
+pouco, deputado, esposo, pai. Fez-se um silencio de annos na sua voga de
+escriptor. Os seus camaradas, que haviam afivelado com elle a espora de cana em
+algaras litterarias, trajaram luto quando se convenceram que o <em>visconde de
+Benalcanfôr</em> era o epitaphio de <em>Ricardo Guimarães</em>.</p>
+
+<p>Eil-o que resurge com as feições mais accentuadas, o sorriso menos expansivo
+e mais hervado de ironia, a graça mais palaciana, a satyra com oculos verdes
+para que a não acoimem de estouvada, e as antigas imagens de sua invenção com
+decote que não deixe vêr a curva da espadua.</p>
+
+<p>D'esta reforma, salvou o visconde de Benalcanfôr as facetas resplandecentes
+do estylo, deveras portuguez na palavra, francez no boleio da phrase&mdash;ligação
+que é uma formosura, quando o escriptor tem a consciencia d'essa difficultosa
+amalgama.</p>
+
+<p>Tem o visconde publicado os melhores livros que possuimos ácerca de viagens.
+Este das Phantasias seria aquelle que eu mais encarecesse em quilates de graça
+e critica, se me não visse ahi tão amigavelmente indulgenciado em onze paginas.
+Ponderei, gravemente, meu caro Ricardo, n'este livro o teu capitulo, intitulado
+<span class="small-caps">elogio mutuo</span>.<span class="pagenum">[78]</span> Tu, com certeza, antes
+queres de mim uma reminiscencia da juventude, que os tardios e quasi inuteis
+gabos feitos ao teu assignalado talento.</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *</p>
+
+<p><span class="small-caps">Bernardino Pinheiro</span>. <em>Amores d'um
+visionario, romance historico original do seculo XVI. 2 tom. Lisboa,
+1874.</em>&mdash;Se a linguagem das civilisações adiantadas e os pensamentos de
+perfectibilidade humana podessem pensar-se e exprimir-se no seculo XVI, este
+romance do snr. Bernardino Pinheiro corresponderia, cabalmente, á qualificação
+de <em>historico</em>. A illusão desfaz-se a cada pagina, sempre que os
+personagens entendem na questão do progredir social. Que Antonio de Gouvêa, o
+heroe do livro, depois de ouvir, na Europa litteraria e convulsa de reformas,
+as theorias dos adversarios do papa e do dogma, propagasse idéas e palavras
+novas em Portugal, é possivel; mas que a freira do Salvador, e D. Margarida de
+Lencastre, e a escrava liberta discreteassem tão eloquentes e progressistas
+ácerca dos direitos do homem, da emancipação do escravo, da liberdade do
+pensamento, repugna aceital-o a razão, posto que de bom animo nos affeiçoemos á
+vehemencia e esplendor d'essas phrases intempestivas.<span class="pagenum">[79]</span></p>
+
+<p>Mulheres illustradas, se as houve em Portugal no seculo XVI, são umas que o
+snr. Pinheiro nos mostra em um dos admiraveis capitulos do seu livro. As
+paginas descriptivas de <em>Uma academia feminina do seculo XVI</em> quadrariam
+em livro da mais selecta historia do reinado de D. João III. Alli estão as
+Sigéas, que não gozam fama de pudentissimas escriptoras, se um poema erotico as
+não calumnía. Pois, n'esses completos moldes que o snr. Pinheiro nos deu da
+sciencia feminil, está o maximo, o ultimo estadio do alcance intellectual da
+mulher. Soror Maria, a monja que, de escrupulosa, não ousava erguer o véo a sós
+com o amante, revelou incapacidade para discorrer tão liberrima, na carta a
+Gouvêa, ácerca das regalias do coração. Escrevendo ácerca de uma visionaria,
+diz a freira ao seu amado: «Os espiritos convictos são logicos. O fanatismo tem
+as suas leis fataes&mdash;e, por vezes, posto que raras, felizes...» E acrescenta
+com intelligente ironia: «Que enormissimos criminosos que nós
+somos:&mdash;amamo-nos, e acreditamos no evangelho puro!... Quando serão no mundo
+livres o pensamento e o amor?!»</p>
+
+<p>A freira em 1548, podia delinquir porque era mulher; mas não saberia
+desculpar o seu delicto com argumentos d'aquella natureza. E soror Maria, se
+tivesse no corpo o demonio incubo da<span class="pagenum">[80]</span> philosophia, quando abriu a porta da
+cerca monastica ao amante, sahiria por ella, em vez de, colhida em flagrantes
+amorios, pedir misericordia á mestra de noviças. Teria feito o que fez depois,
+independente de luzes que lhe mostrassem a nullidade e tyrannia dos votos de
+reclusão, castidade e pobreza.</p>
+
+<p>Esta macula é resgatada por nitidissimas paginas que manifestam o
+historiador avantajando-se ao romancista. O capitulo XVIII (<em>Illustrações em
+Coimbra</em>) é labor bastante a graduar um espirito culto na convivencia dos
+varões insignes do seculo XVI. A disposição do grupo é magnifica. Alli se
+admiram os luzeiros que chammejaram á volta da alma negra de João III e não
+vingaram esclarecel-a.</p>
+
+<p>O quadro do auto de fé em que Antonio de Gouvêa é salvo da fogueira pela
+cohorte dos escravos, é tão vigorosamente desenhado quanto inverosimil. Os
+frades de S. Domingos não se deixavam embair por tretas nem sancadilhas á sua
+credulidade, quando queimavam herejes da laia de Gouvêa. Não obstante, esse
+trance, pelas commoções que produz, dispensa-se dos realces da naturalidade.
+</p>
+
+<p>Em summa, <em>Os amores d'um visionario</em> é um livro que merece
+graduar-se entre os bons romances<span class="pagenum">[81]</span> portugueses, tanto pelos predicamentos
+da imaginação, como pelo subsidio de historia que presta ás pessoas desaffectas
+a demorados estudos.</p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap08" name="cap08">POBREZA ACADEMICA</a></h1>
+
+<p>O secretario da academia real das sciencias de Lisboa, José Bonifacio de
+Andrade e Silva, escreveu a monsenhor Ferreira Gordo, pedindo-lhe um donativo
+para ajuda de se pagar o busto do duque de Lafões, D. João Carlos de Bragança,
+que a mesma academia desejava collocar em uma das suas salas. O sabio monsenhor
+respondeu com circumspecção e graça por meio da seguinte carta, que está
+inedita:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="font-size:small;">«Poderá v. s.ª certificar em meu nome á academia,
+que eu estou disposto a concorrer com o contingente, que me couber, guardada a
+proporção arithmetica, para o monumento, que pretende dedicar á memoria sempre
+saudosa do seu illustre fundador, e que aproveitarei<span class="pagenum">[82]</span> de bom grado todas
+as occasiões, em que possa dar-lhe mostras do meu reconhecimento pelo muito, de
+que lhe fui devedor. Mas não se achando todos os socios n'este empenho, e
+fallecendo á maior parte d'elles meios, para fazer donativos d'esta natureza,
+parece-me que a academia teria resolvido com mais prudencia, e circumspecção
+decretando que a despeza do dito monumento sahisse inteiramente dos seus
+fundos. Que póde doar sem detrimento seu um religioso, não sendo commissario da
+Terra Santa, prior geral dos conegos regrantes de Santo Agostinho, abbade geral
+do mosteiro de Alcobaça, ou ministro provincial dos menores observantes de
+qualquer das duas provincias de Portugal e Algarves? Que rendimento tem um
+professor regio de humanidades, um lente da universidade, um ministro, e
+qualquer outro funccionario publico, que na fallencia de bens patrimoniaes, lhe
+não seja indispensavel para sua mantença? Dirá alguem que a academia roga, e
+não manda, e isto é verdade; mas como ninguem quer o fóro de pobre, nem ser
+marcado com a nota de pouco officioso, esta rogativa virá a ser para a maior
+parte dos socios, o effeito de um rigoroso mandamento. De mais se a academia é
+real, se todos os seus trabalhos se dirigem a fazer prosperar, e florecer os
+estados de quem lhe deu este titulo, e a subsistencia, e se até agora tem
+gozado a singular prerogativa de ser presidida por uma personagem de sangue
+real, acho muito improprio, que a despeito, de tudo isto, se lhe queiram dar os
+attributos de uma<span class="pagenum">[83]</span> irmandade religiosa, fazendo dependente da caridade de
+seus irmãos, e não do seu patrimonio, qualquer despeza extraordinaria, que
+emprehender. Perdôe v. s.ª como secretario a liberdade, que tomei, que como meu
+amigo que é, tenho certeza me desculpará, se o que acabo de escrever se
+encontrar com o seu parecer, que muito respeito.»</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Os academicos de hoje são outra casta de gente, quanto a pelintraria. Se não
+fazem bustos, é porque ainda estão vivos todos os sujeitos que hão de
+resuscitar no marmore e no alabastro. Aquelles salões desertos hão de ser
+povoados de estatuas, quando as cangas de sabios que hoje lavram os baldios da
+sciencia, se foram a pascer nos almargens da immortalidade. Medita a geração
+nova no modo de os entrajar, pois que a funeral casaca destôa das arrojadas
+manias e sabenças de cada sujeito. Creio que deveremos apparecer, nós, os
+academicos, cada qual com seu caranguejo symbolico na mão operosa. O mocho, a
+ave de Minerva, apenas cabe de direito ao snr. João Felix Pereira, o pervigil
+diurno e nocturno.<span class="pagenum">[84]</span></p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap09" name="cap09">SOBRE ANSELMO</a></h1>
+
+<p>Usam dizer algumas pessoas assalteadas por bandidos da imprensa: «Não
+respondo, porque o insultador é canalha.» Isto é um desacerto. Não ha canalha
+irrespondivel. Todo o infame que calumnía representa uma parcella da opinião
+publica. E essa parcella, malevola ou enganada, crê esmagar o calumniado quando
+o interprete de seus odios ou preconceitos tem no espinhaço a couraça repulsiva
+do escaravêlho, invulneravel aos bicos da penna e aos loros do látego.</p>
+
+<p>Anselmo é um como isso. E, todavia, eu respondo a um grupo de sujeitos
+representados na imprensa por Anselmo. Separal-o individualmente, e
+atagantal-o, isso é que de modo nenhum. O<span class="pagenum">[86]</span> sapo esguicha um pus fetido
+quando lhe verberam as pustulas do couro. Não se bate em homens d'esta laia,
+desde que o pelourinho e o açoute foram expungidos da lei.</p>
+
+<p>Convém saber que Anselmo não escreve: assigna. Theophilo Joaquim Fernandes é
+o tubo intestinal por onde Anselmo estrava a alma excrementicia; ao mesmo tempo
+que Anselmo é a testa polida (não é tartaruga: finge) em que Joaquim escreve as
+suas protervias a carvão. Theophilo, o ignorante que eu abafei com a critica
+risonha, sem lhe impor alçada ás devassidões notorias, resfolga nas iras do
+outro. É a vingança negra do mais safado caracter que ainda sahiu desembolado
+ao curro das letras.</p>
+
+<p>No impresso assignado por Anselmo de Moraes encontrei duas aleivosias que me
+doeram por estar conspurcado n'ellas o nome serio do snr. José Gomes Monteiro,
+invocado como authoridade no meu descredito. São as seguintes:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="font-size: small;">
+<p>«Da cadêa começou Camillo a abrir brecha para a rapina na casa Moré,
+mandando ahi mostrar um romance de descompostura ao dignissimo procurador
+regio, que não lhe tolerou certas obscenidades no carcere; o amigo do
+procurador regio, gerente da dita casa, teve de pagar o romance para poupar um
+desgosto<span class="pagenum">[87]</span> ao magistrado respeitavel. Ainda não ha muito tempo que o snr.
+José Gomes Monteiro se refugiou no nosso escriptorio para evitar o encontro de
+Camillo na loja Moré, que ia alli armar uma <em>escroquerie</em>, com o fim,
+dizia elle, de pagar uma decima...</p>
+
+<p>«Ultimamente comprometteu a sorte de Vieira de Castro com a sua defeza;
+explorou a desgraça do amigo com o drama o <em>Condemnado</em>, que vendeu a
+dous individuos.»</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Pedi ao snr. José Gomes Monteiro, antigo gerente da casa Moré, e editor do
+<em>Condemnado</em>, que se dignasse ajudar-me a interpretar estas deshonrosas
+referencias a um romance que s. exc.ª me pagára para não ser publicado, a uma
+fuga de s. exc.ª no escriptorio de Anselmo para se furtar a uma
+<em>escroquerie</em>; e finalmente á dupla venda do drama <em>O Condemnado</em>
+a s. exc.ª e a outro simultaneamente.</p>
+
+<p>O snr. José Gomes Monteiro, na volta do correio, respondeu d'esta fórma:</p>
+
+<div style="font-size: small;">
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>Snr. Camillo Castello Branco.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Meu amigo.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Acabo de receber a carta de v. datada de hontem, incluindo o impresso que
+Anselmo de Moraes fez aqui circular. Apresso-me em responder-lhe.</p>
+
+<p>O primeiro periodo marcado por v. allude ás <em>Memorias do
+Carcere</em><span class="pagenum">[88]</span> cuja editação v. me veio propor em seguida á do <em>Amor de
+Perdição</em>. Ajustamos a publicação d'essa obra antes de eu ter lido o
+original, que só no dia seguinte me foi entregue. Li então o manuscripto aonde
+encontrei algumas expressões que me pareceram offensivas da reconhecida
+probidade do conselheiro Camillo Aureliano da Silva e Sousa, então procurador
+regio junto á Relação do Porto. Por este motivo tive de devolver o original a
+v. rogando-lhe houvesse por nulla a nossa convenção, por isso que eu não podia
+ser editor de um livro em que de certo por erradas informações, era maltratado
+um amigo meu, que eu tinha na conta de magistrado integerrimo e de honradissimo
+cavalheiro. V. veio immediatamente procurar-me e aceitando o meu testemunho
+como a expressão da pura verdade, confessou ter sido mal informado ácerca da
+immaculada probidade do meu amigo. Voltou o manuscripto devidamente reformado e
+v. não se limitando a expungir as phrases que eu havia condemnado, fez
+generosamente justiça ao honrado magistrado. Publicou-se o livro e elle mesmo
+dará testemunho da inexactidão do que se affirma no citado impresso, de que eu
+me vira obrigado a pagar um romance escripto por v. contra o meu amigo para lhe
+poupar um desgosto.</p>
+
+<p>Confesso não ter guardado rigorosa reserva sobre este incidente, do que
+sinceramente me peza, visto que a minha indiscrição deu lugar a que os factos
+fossem desfigurados em desabono de v.<span class="pagenum">[89]</span></p>
+
+<p>V. não precisa de certo que eu o justifique, nem me justifique a mim de me
+haver um dia refugiado no escriptorio do signatario do impresso para me
+subtrahir a um pedido de v. Declaro com toda a ingenuidade não me recordar
+d'esse grave capitulo de accusação dirigido não sei se a mim se a v. O que
+afoutamente posso asseverar é que nas muitas transacções commerciaes que temos
+tido encontrei sempre em v. a maior franqueza e inexcedivel probidade. Não é
+por isso verdade que v. depois de me haver vendido a propriedade do drama <em>O
+Condemnado</em> o tivesse subrepticiamente vendido tambem a outra casa editora.
+É verdade que d'este drama se veio a fazer no Rio de Janeiro uma contrafacção,
+mas tenho completa certeza de que v. fôra inteiramente alheio a esta fraude,
+que a falta de um tratado com o Brazil infelizmente authorisa.</p>
+
+<p>V. fica authorisado a fazer d'esta minha carta o uso que lhe convier.</p>
+
+<p>Sou como sempre</p>
+
+<p style="text-align:right;">De v. etc.</p>
+
+<p>Porto, 25 de julho de 1874.</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>José Gomes Monteiro.</em></p>
+</div>
+
+<p><span class="pagenum">[90]</span></p>
+
+<p>Apraz-me grandemente o publico testemunho d'esta carta, no momento em que as
+minhas relações sociaes e commerciaes com o snr. José Gomes Monteiro se
+desatam. Eu não poderia, sem impostôra inutilidade, fingir-me amigo de s. exc.ª
+desde que do contexto da sua carta se deprehende que o snr. Gomes Monteiro não
+se recorda bem se fugiu de mim para o escriptorio de Anselmo. Figura-se-me mais
+consentaneo ao honesto caracter do snr. Gomes Monteiro negar-se pela palavra a
+um favor pedido, e não pelo escondrijo no escriptorio de Anselmo a quem, pelos
+modos, s. exc.ª não disse <em>que nas muitas transacções commerciaes que tivera
+commigo encontrára sempre a maior franqueza e inexcedivel probidade</em>.</p>
+
+<p>Tirante esta feição mais attendivel do impresso, o remanescente é
+indiscutivel nos prelos e nos tribunaes. Tenho vergonha das infamias alheias, e
+respeito os nomes das pessoas que ahi se ultrajam.</p>
+
+<p>No entanto, não me esquivo a tocar dous episodios da minha biographia, que
+lá vem contados:</p>
+
+<p>Que eu guardara cabras em Villa Real.</p>
+
+<p>Quer o leitor saber onde Theophilo foi esquadrinhar este indecoroso lance da
+minha vida? Em um livro meu, chamado <span class="small-caps">duas horas de
+leitura</span>,<span class="pagenum">[91]</span> escripto ha 20 annos. Sou eu que, em uma carta ao meu
+fallecido amigo José Barbosa e Silva, conto assim o caso das cabras:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="font-size: small;">«Aos meus dez annos, levantou-se uma tempestade no
+seio da minha familia. Uma vaga levou meu pai á sepultura; outra atirou commigo
+de Lisboa, minha patria, para um torrão agro e triste do norte; e a outra...
+Não merece chronica a outra: arrebatou-me um esperançoso patrimonio. Foi bem
+pregada a peça, para que eu não tivesse a impudencia de nascer, a despeito da
+moral juridica, filho natural de não sei que nobre. Disseram-me que uma lei da
+snr.ª D. Maria I me desherdava. A boa da rainha, se tivesse amado mais cedo um
+certo bispo, não legislaria tão cruamente para os filhos do peccado;
+Denominava-se a <em>piedosa</em>, pela mesma razão que um rei nosso, soprando a
+fogueira de vinte mil hebreus, se chamou o <em>piedoso</em>... Fui educado
+n'uma aldêa, onde tenho uma irmã casada com um medico, irmão de um padre, que
+foi meu mestre. O mestre podia ensinar-me muita cousa que me falta; mas eu era
+refractario á luz da gorda sciencia do meu padre. Fugia de casa para a serra,
+dava muitos tiros ás gallinholas e perdizes... O meu gosto era (<em>hic</em>,
+cabras) pascer o rebanho de casa por aquelles saudosos valles. Todavia, minha
+irmã oppunha-se a este humilde serviço. Dizia-me cousas que eu não percebia
+ácerca da minha dignidade, reprehendia os<span class="pagenum">[92]</span> meus baixos instinctos,
+attrahia ao seu voto o marido e o padre, e cortava-me o rasteiro vôo,
+escondendo de mim a clavina, o polvorinho, os salpicões, a brôa, e a cabacinha
+da aguardente. Não obstante, eu pedia tudo de emprestimo, e ia com as ovelhas
+para o monte. Passava lá o dia inteiro, sentado nas espinhas d'aquelles
+alcantis fragosos, sempre sósinho, scismando sem saber em quê, engolfada a
+vista nas gargantas dos despenhadeiros.»</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>A respeito de cabras, não ha mais nada nos archivos impressos, que eu deva
+transmittir á posteridade.</p>
+
+<p>Ai! meu saudoso rebanho! Provavelmente, d'este lidar com cabras é que me
+ficou o sestro e coragem de aparar as marradas de cabrões, como Anselmo.</p>
+
+<p>N'essa mesma carta a Barbosa e Silva, conto eu que ajudava diariamente á
+missa a cinco sacerdotes. O sarrafaçal deixou escapar o ensejo de dizer ao
+publico que eu tambem fui sacristão.</p>
+
+<p>E a historia da filha do taberneiro, que me deu um fato novo e uma moeda
+para eu lhe casar com a filha; e vai eu pego a fugir com o fato e a moeda e
+deixo a rapariguinha perdida!<span class="pagenum">[93]</span></p>
+
+<p>Desbragada porcaria!</p>
+
+<p>Ó meus amigos de Villa Real, ou lá d'onde se passou o caso infando! Procurai
+a miseranda menina; e, se a topardes n'alguma gafaria&mdash;derradeira paragem da
+espiral das perdidas&mdash;trazei-a a casa d'este Anselmo para lhe agradecer o
+pregão que a vinga, e para lá se rehabilitar, vendo-se honesta em contacto com
+certo exemplo femeal de podridão d'alma e corpo.</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Despedi-me, ha dias, de assignante da <em>Actualidade</em>. Estou
+arrependido. Devemos todos contribuir com alguns cobres para que Anselmo de
+Moraes não seja forçado pela necessidade a <em>picar-nos</em> (giria d'elle) o
+paletó no cunhal da viella da Neta. Em quanto aquelle archi-pulha tiver gazeta,
+o seu pão, embora deshonrado, garante-nos do assalto nocturno. Não lhe leio
+mais o jornal; mas dou-lhe a esmola dos 240 reis mensaes. Mande-os receber em
+quanto a espinha em via de amollecimento me consentir subscrever com seis
+patacos, a fim de que elle me não liquide a cadêa do relogio.</p>
+
+<p>É verdade: affirma o impudentissimo caloteiro<span class="pagenum">[94]</span> que tem lá uns titulos
+do saldo de nossas contas.</p>
+
+<p>A fim de que esses documentos appareçam, offereço o seguinte e perpetuo
+supplemento a todos os numeros da <em>Actualidade</em>:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>ANSELMO DE MORAES É RADICALMENTE LADRÃO, COM UM CORTEJO DE TORPEZAS
+ESPECIAES E RARAS NOS LADRÕES MAIS DESPEJADOS.</p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap10" name="cap10">AO PUBLICO</a></h1>
+
+<h2>AO PUBLICO</h2>
+
+<p>Distribuiu-se ahi ha dias com generosa profusão um libello famoso por
+motivos a que sou completamente estranho, mas em que nem por isso quizeram que
+eu deixasse de figurar.</p>
+
+<p>Indignou por ahi a todos a alludida publicação, sem exceptuar os proprios
+amigos ou parciaes do signatario d'ella, o snr. Anselmo<span class="pagenum">[98]</span> de Moraes. Dou-me
+com isso por bem vingado das malevolas intenções que me apontaram ás iras
+atravessadas do insultador enraivecido. Não ha desforço pessoal que valha
+tanto, e, ainda que o houvesse, não seria eu que o tirasse. A dignidade nem
+sempre manda procurar o aggressor, antes ás vezes exige que se evite.</p>
+
+<p>O meu fim é, pois, sómente esclarecer o publico, a quem respeito, como devo,
+e de quem quero continuar a merecer bom conceito, ácerca da perfida insinuação
+com que se intentou manchar a minha probidade commercial, que só d'isto posso
+aqui fallar sem offensa da moral publica. Obrigou-me aquella insinuação a
+dirigir-me ao exc.<sup>mo</sup> snr. José Gomes Monteiro, que, como homem de
+bem, se dignou dar-me o testemunho que se segue:<span class="pagenum">[99]</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>Snr.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><em>Respondendo restrictamente á carta que de V. acabo de receber, cumpre-me
+declarar, como o exige o meu caracter, que durante o tempo que sob a minha
+direcção V. serviu a casa da snr.ª viuva Moré, nunca d'ella subtrahiu cousa
+alguma ou quantia e prestou regularmente as suas contas.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>De V.</em></p>
+
+<p><em>Porto 28, 7, 74.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>attento venerador</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>José Gomes Monteiro</em><span class="pagenum">[100]</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Depois d'isto seria de mais tudo quanto eu podesse dizer. Fica o publico
+habilitado para fazer o seu juizo.</p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>Ernesto Chardron.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">FIM DO 8.º NUMERO</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<hr>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">EMENDAS AO N.º 7</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Pag. 47, lin. 15: quer-me <em>parece</em>, emende: quer-me
+<em>parecer</em>.</p>
+
+<p>Pag. 95, lin. 10: <em>king-charles</em>, emende: <em>king's-charles</em>.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
+não póde dormir. Nº8 (de 12), by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 8 (DE 12) ***
+
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+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
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+
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+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
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+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+
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+ gbnewby@pglaf.org
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+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
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+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
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+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
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+approach us with offers to donate.
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+
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+
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