diff options
Diffstat (limited to '28154-8.txt')
| -rw-r--r-- | 28154-8.txt | 5189 |
1 files changed, 5189 insertions, 0 deletions
diff --git a/28154-8.txt b/28154-8.txt new file mode 100644 index 0000000..e60545a --- /dev/null +++ b/28154-8.txt @@ -0,0 +1,5189 @@ +The Project Gutenberg EBook of Petronio, by Marcelino Mesquita + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Petronio + Peça livremente extrahida do romance Quo Vadis de Henryk Sienkiewicz + +Author: Marcelino Mesquita + +Release Date: February 23, 2009 [EBook #28154] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PETRONIO *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + PETRONIO + + + _MARCELLINO MESQUITA_ + + PETRONIO + + PEÇA LIVREMENTE EXTRAHIDA DO ROMANCE + + QUO VADIS + + DE + + HENRYK SIENKIEWICZ + + + + + _LISBOA_ + MANUEL GOMES, EDITOR + _Livreiro de Suas Magestades e Altezas_ + 61--Rua Garrett (Chiado)--61 + + M DCCCC I + + + Typ. do DIA, calçada do Cabra, 7--Lisboa + + + + +Esta peça foi representada, pela primeira vez, no theatro D. Amelia, na +noite de 8 de março de 1901. Foram os interpretes: + +_Petronio_, poeta satyrico............................ _Eduardo Brazão_ +_Néro_, imperador romano................................ _Augusto Rosa_ +_Paulo de Tarso_, apostolo christão........................ _João Rosa_ +_Marcos Vinicio_, consul, sobrinho de Petronio............ _Luiz Pinto_ +_Chilon_, philosopho charlatão........................... _A. Pinheiro_ +_Tigelino_, chefe dos pretorianos, rival de Petronio...... _A. Antunes_ +_Senécion_, patricio romano............................ _Carlos Bayard_ +_Vitelio_, idem............................................. _João Gil_ +_Lucano_, poeta....................................... _Henrique Alves_ +_Vatino_, intendente das festas............................. _F. Senna_ +_Domicio_................................................. _A. Sampaio_ +_Musonio_, philosopho e poeta.............................. _F. Salles_ +_Ursus_, escravo lygio................................ _Alfredo Santos_ +_Pitagoras_, ephebo, favorito de Néro................. _Maria Ferreira_ +_Nerva_, patricio de Cumas............................. _Alvaro Cabral_ +_Lucio_, idem............................................... _S. Ayres_ +_Seneca_, philosopho......................................... _J. Reis_ +_Teiresias_, liberto de Petronio......................... _A. Quaresma_ +_Um escravo de Petronio_............................... _Antonio Silva_ +_1.º Rabbino_................................................. _Salles_ +_2.º Rabbino_............................................... _A. Pedro_ +_Gulon_, liberto de Vinicio................................. _A. Silva_ +_Outro escravo_............................................. _N. Gomes_ +_Timon_, gladiador............................................. _N. N._ +_Croton_, idem................................................. _N. N._ +_1.º Senador_.............................................. _J. Subtil_ +_2.º Senador_................................................ _Germano_ +_Poppêa_, concubina de Néro................................ _Maria Pia_ +_Eunice_, escrava de Petronio........................... _Maria Falcão_ +_Actêa_, ex-amante de Néro.............................. _Angela Pinto_ +_Lygia_, donzella christã............................. _Amelia Pereira_ +_Calvia_, dama romana................................... _Elvira Costa_ +_Nigidia_, idem........................................... _F. Salazar_ +_Crispinilla_, idem...................................... _C. de Sousa_ +_Flavia_, idem......................................... _Elvira Santos_ +_Pomponia_, idem...................................... _A. O'Sullivand_ +_Lucrecia_, idem...................................... _Maria Ferreira_ +_Julia_, dama cumense........................................ _Candida_ +_Octavia_, idem.......................................... _M. Ferreira_ + +Senadores, palacianos, ephebos, pretorianos, escravos, augustanos, povo +romano, gladiadores, damas da côrte, escravas, etc., etc. + + + + +ACTO PRIMEIRO + + +QUADRO PRIMEIRO + +Casa de Petronio em Roma. A um lado, a estatua de Petronio, em marmore. +Sobre uma meza, frascos varios de aguas, de oleos; escovas, pentes, +ferros de frisar. Duas escravas ethiopes e duas brancas, o rodeiam. As +negras acabaram de o pentear. + +ESCRAVA BRANCA + +Que manto? (as escravas negras sahem) + +PETRONIO + +O azul. (a escrava sahe e traz) + +EUNICE, que, de joelhos, compõe a tunica + +Bello... como um Deus! + +PETRONIO, sorrindo, delicado + +«Animal impudens», de Séneca. + +O INTRODUCTOR + +O consul Marcos Vinicio. + +PETRONIO + +Oh! + +MARCOS grave + +Salve, Petronio! + +PETRONIO + +Salve. Sê bem vindo em Roma. Que o repouso te seja grato depois da guerra. + +MARCOS + +Que os Deuses te sejam propicios, sobre tudo Asclépias e Cypris. + +PETRONIO + +Que o tal Asclépias me perdôe; não tenho fé n'elle. Um Deus cuja mãi se +ignora! Sabe-se lá se é filho de Arsinoé ou de Corónida? Que fará do +pai! Quem, por estes tempos que correm, pode ter a certeza de ser +filho... do pai? (Marcos, ri contrafeito) Estás preocupado? + +MARCOS + +... Não. + +PETRONIO + +Dos Asclepiades já tive de me servir, o anno passado... para a bexiga. +Sabia que eram charlatães; mas o mundo repousa sobre o charlatanismo e a +vida mesmo não é senão uma illusão! O que é precizo é saber distinguir +as bôas illusões das más. Eu mando aquecer a minha estufa com madeira de +cedro, pulverisada com ambar, porque prefiro os perfumes aos máus +cheiros. Quanto a Cypris, a quem me recomendaste, devo-lhe o ter +coxeado, amorosamente, dois mezes; mas, emfim, é uma bôa deusa a quem +espero sacrificarás, em breve, as brancas pombas. + +MARCOS + +Talvez. Se as flechas dos Parthas me não alcançaram, em compensação, fui +tocado pelas do Amôr, d'uma maneira imprevista. + +PETRONIO + +Sim? + +MARCOS + +A dois passos das portas de Roma. + +PETRONIO + +Pelas Graças! conta-me isso. + +MARCOS + +Tanto mais que precizo do teu conselho... + +PETRONIO + +É escusado perguntar se o teu amôr é correspondido! (olhando-o) Se +Lysias te tem conhecido, ornavas, hoje, a porta do Palatino sob a fórma +d'um Hercules juvenil. (Eunice offerece-lhe e põe-lhe o manto) + +MARCOS (olhando a escrava) + +Por Zeus, que bella escolha! Mais bello corpo não se encontrará nem em +caza do Barbas de Bronze, d'esse famoso Nero, teu amigo. + +PETRONIO + +Tu és meu parente... e eu não sou egoista; nem tão austero, como um Aulo +Plaucio...! Se queres...? + +MARCOS + +Como te veio á ideia Aulo Plaucio? É d'elle que te venho fallar. + +PETRONIO + +Estarás, tu, por acaso enamorado de Pomponia, sua mulher? Diabo! +Velha... virtuosa... Lamento-te. + +MARCOS + +Não é de Pomponia. Oh! Não! + +PETRONIO + +De quem?... + +MARCOS + +Nem sei. Nem sei mesmo o seu nome. Lygia? Calina? Chamam-lhe Lygia +porque é do paiz dos Lygios; mas o seu nome barbaro é Calina. Estive +doente em caza d'esse Plaucio, por um accidente de viagem... + +PETRONIO + +Qual? + +MARCOS + +Desloquei um pé, n'uma queda do cavallo... É uma caza estranha: cheia de +gente e silenciosa como um bosque sagrado. Durante quinze dias, ignorei +que uma deusa a habitasse. Vi-a, uma manhã, a banhar-se n'um tanque, sob +as arvores. E... juro-te pela espuma d'onde nasceu Aphrodite... os raios +da Aurora brincavam atravez do seu corpo! Julguei-a uma apparição, uma +sombra que os raios do sol nascente dissipassem, como um crepusculo! +Desde então, não tive mais tranquilidade; não tive mais descanso; não +tive outro desejo; não vejo outra mulher! Tudo me merece desprezo; o +oiro, os bronzes de Corintho... Aborreço os vinhos, os festins; só vejo, +só quero Lygia! O mundo para mim é ella... e só ella! + +PETRONIO + +É uma escrava de Plaucio? Compra-lh'a. + +MARCOS + +Não é uma escrava. + +PETRONIO + +Uma liberta, então? + +MARCOS + +Se nunca foi escrava, como pode ser liberta? + +PETRONIO + +Quem é, pois? + +MARCOS + +A filha d'um rei. + +PETRONIO + +Hein? Começas a intrigar-me... + +MARCOS + +É filha de Vanio, rei dos Suévos. + +PETRONIO + +O que teve guerras, no tempo de Claudio?... + +MARCOS + +Com os sobrinhos; que levantaram, contra elle os Lygios, terriveís na +rapina. Claudio, temendo pelas fronteiras, mandou Hister, legionario do +Danubio, que vigiasse para que a paz não fôsse alterada. Hister exigiu +aos Lygios a promessa de não invadirem a fronteira, e, como refem +recebeu a filha e a mulher do chefe. + +PETRONIO + +D'onde sabes, tu, isso? + +MARCOS + +Contou-m'o Plaucio, elle proprio. Na guerra o rei dos Lygios morreu. +Hister ficou com a mãi e a filha. A mãi morreu pouco depois, e Hister +para se desembaraçar da creança, mandou-a a Pomponio, governador da +Germania e vencedor dos Gathes. Quando Pomponio entrou em Roma, em +triumphador, a pequena Lygia seguia o seu carro; mas como era um refem e +não uma escrava, Pomponio entregou-a a sua irmã, mulher de Aulo. N'esta +caza onde tudo respira virtude, cresceu, tão virtuosa e tão pura, que ao +pé d'ella, Poppêa, que passa pela mulher mais bella de Roma, é como um +figo do outomno, ao pé d'um pômmo das Hesperides! + +PETRONIO + +E, então? + +MARCOS + +Repito-te, desde que vi a luz brincar atravez do seu corpo... + +PETRONIO + +Ella é então transparente como uma lampreia...! + +MARCOS + +Não gracejes, Petronio. + +PETRONIO + +Pois bem, diz-me o que queres, claramente. + +MARCOS + +Quero Lygia! Quero que os meus braços a apertem; que a minha bôcca +respire na sua bôcca! Se fosse uma escrava daria por ella cem virgens! +Quero-a, eis tudo! Têl-a, guardál-a, até que a minha cabeça branquêje +como a crista do Sorate, no hinverno! + +PETRONIO + +... Se não é uma escrava, é, em todo o caso uma rapariga abandonada. +Plaucio póde ceder-t'a, se quizer. + +MARCOS + +Não conheces Plaucio nem Pomponia sua mulher? De resto, amam-na como filha! + +PETRONIO + +Pomponia? conheço: é um cypreste! Tem o ar de quem vive n'um cemiterio. +Mas é, diga se, mulher d'um homem só; o que faz que entre as nossas +romanas, quatro e cinco vezes divorciadas, seja uma phenix! + +MARCOS + +Mas... Petronio... + +PETRONIO + +Que queres que te diga, meu caro Marcos? Conheço muito bem Aulo Plaucio, +como elle conhece o meu modo de pensar e o meu modo de viver. Se pensas +que poderei obter alguma coisa d'elle, francamente, parece-me que te +enganas. + +MARCOS + +O teu espirito é inexgotavel em expedientes... + +PETRONIO + +Exageras. + +MARCOS + +Todo o mundo te conhece. + +PETRONIO + +Como o rei da elegancia? sim. É o meu reino. Se fosse o da Lygia eu não +teria senão prazer em te offerecer a minha filha, bello e amoroso consul. + +MARCOS + +Não fallarás a Plaucio? + +PETRONIO + +... Não. É inutil. Mas... fallarei a Cezar. + +MARCOS + +Melhor ainda... + +PETRONIO + +Se Lygia é um refem, Cezar pode dispôr d'ella, pode offerecer-t'a. + +MARCOS + +Fallar-lhe-has, então? + +PETRONIO + +Sim. + +MARCOS + +Hoje mesmo? + +PETRONIO + +Hoje... talvez. É precizo esperar occasião de o poder louvar, pelo +canto, ou pelos versos, ou pela aptidão de cocheiro, de actôr... A +proposito, fazes versos? + +MARCOS + +Nunca pude arranjar um hexametro. + +PETRONIO + +Não tocas cithara, nem alaúde? + +MARCOS + +Não. + +PETRONIO + +Não guias um carro? + +MARCOS + +Tomei, uma vez, parte n'umas corridas em Antiochia; mas fui infeliz. + +PETRONIO + +Bem. Estou descançado a teu respeito. O melhor é não fazer nenhuma +d'essas coisas e admiral-as, muito, nos outros... sobretudo em Cezar. És +bello e Poppêa pode agradar-se de ti. É um perigo. Nero não t'o +supportaria. É verdade que Poppêa está uma mulher experiente: d'amôr os +dois primeiros maridos saciaram-na; Nero é para outra coisa. + +MARCOS + +Que é feito de Othon? + +PETRONIO + +O terceiro? O pobre homem ama-a ainda loucamente. Anda a choral-a sobre +os rochedos da Hespanha. E, dizem, que de tal modo perdeu os habitos da +galanteria, que hoje, com o penteado, só gasta tres horas por dia! + +MARCOS + +Eu, no caso d'elle, fazia outra coisa. + +PETRONIO + +O quê? + +MARCOS + +São valentes e duros soldados os da Iberia! Recrutaria umas legiões +fieis... + +PETRONIO + +Marcos, Marcos! Essas coisas fazem-se, mas não se dizem, nem como +hypotheses... Eu, no logar d'elle, rir-me-hia de Poppêa e de Nero: +arranjava uma legião, mas não era de homens, era de mulheres!... (Eunice +entra com um frasco.) Ah! a verbena. (deita nas mãos e esfrega as +fontes) Não imaginas como isto vivifica, dá fôrça! + +MARCOS + +Mas... Lygia... + +PETRONIO + +Sim, homem, descança. + +MARCOS + +Não posso, Petronio. Se eu não consigo comer nem dormir! Vou passeiar um +pouco pela cidade, mover-me, andar, distrahir-me... + +PETRONIO, reparando + +É verdade, tu não fizeste a barba, hoje! + +MARCOS + +Nem hontem! + +PETRONIO, toma-lhe o pulso + +Tens febre. Escuta. Eu não sei o que te prescreveria um medico, um +d'esses asclepiades; mas sei o que eu faria no teu logar. Sim... eu sei +o que é o amor, e, que quando se deseja uma mulher, nenhuma outra a póde +substituir! A belleza, porém, encanta sempre; e uma bella escrava... + +MARCOS + +Não, não quero. + +PETRONIO + +A novidade faz esquecer... por um novo desejo... (Pondo a mão no hombro +de Eunice, que lhe offerece, de novo a verbena) Repara, um pouco, n'esta +filha de Cós. Ha dias, o joven Fonteio offerecia-me por ella tres +admiraveis éphebos: tres maravilhas dignas do pincel de Scopas! +(olhando-a com interesse) É curioso; como não dei ha mais tempo pelos +seus encantos? No entanto, dou-t'a, leva-a. + +MARCOS, apertando a cabeça + +Não, não a quero: não quero ninguem! Obrigado. Vais d'aqui ao Palatino, +ao palacio de Cesar? + +PETRONIO + +Vou. + +MARCOS + +Bem... Voltarei mais tarde. Vou á outra margem do Tibre... + +PETRONIO + +Não. Vais almoçar comigo. Eunice? + +EUNICE + +Meu senhôr. + +PETRONIO + +Tomarás o teu banho: ungirás o teu corpo, com os melhores perfumes, e +irás para casa de Marcos Vinicio. + +EUNICE, ajoelhando-se + +Ó, meu senhor, não! Não me façais sahir da vossa casa! Prefiro ser, +aqui, a ultima das vossas escravas! ser açoitada todos os dias, contanto +que me não deis a ninguem! Não posso, tende piedade de mim! Não posso! +não posso! + +PETRONIO, surprehendido + +Hein? + +EUNICE + +Repito-vol-o, senhôr. Não irei para caza de Marcos Vinicio. Não sahirei +de vossa casa. Tende piedade! Sêde bom, como sois! + +PETRONIO + +Vai chamar Teirésias. (Eunice sahe) + +MARCOS + +Petronio, eu não a quero. Nem a ella nem a nenhuma. Deixa... + +PETRONIO (brandamente) + +Uma escrava! + +MARCOS, vendo entrar Eunice e Teirésias senta-se a lêr + +Perdôa-lhe. + +PETRONIO, a Teirésias + +Leva Eunice, e dá-lhe quinze chibatadas. (baixo) Com geito para lhe não +estragares a pelle. (a Marcos) O que lês? + +MARCOS + +O teu livro: o Satyrikon. Já não fazes versos? + +PETRONIO + +Não. Desde que Nero é poeta e os faz... É perigoso. + +MARCOS + +Se amasses! + +PETRONIO + +Hoje? Ser-me-hia precizo encontrar... uma Lygia. + +MARCOS + +Uma deusa! Alcançar-ma-has, Petronio? + +PETRONIO + +Será tua. Quanto se pode responder por Cezar, respondo. + +MARCOS + +Tu és filho de minha irmã e por isto me foste sempre muito caro; mas, +agora, collocarei, nos meus lares, uma estatua tua, (indicando a estatua +de Petronio) tão bella como esta e offerecer-lhe-hei sacrificios. (vendo +a) Tu és verdadeiramente bello, Petronio! Se Páris era assim, Helena +teve razão na escolha. + +PETRONIO + +Chamam-me o Rei da Elegancia, Marcos. (Eunice entra de semblante alegre) +Recebeste as chibatadas? + +EUNICE + +Sim, meu senhor, quinze, só! + +PETRONIO + +Só! (a Marcos) Não comprehendes? + +MARCOS + +Não. + +PETRONIO + +Comprehendo eu. (a Eunice) Tu tens um amante, aqui? + +EUNICE, joelhando-se-lhe aos pés + +Sim, senhor! (inclina a cabeça) + +PETRONIO + +Quem é? (Eunice inclina mais a cabeça, silenciosa) Quem é? (repara na +mulher) Hei-de sabêl-o. (a Marcos) Vamos almoçar. (Pôe-lhe a mão sobre o +hombro, olha com interesse Eunice) Vamos. (Sahem) + +(Eunice deixa-os sahir. Levanta se. Toma por disfarce o frasco da +verbena e, fingindo sahir, espreita. Não vendo ninguem, volta, toma a +cadeira onde se sentou Petronio; colloca-a ao pé da estatua; sobe, +abraça o marmore e, ao mesmo tempo em que os cabellos loiros lhe cahem +pelas costas, colla os labios aos labios da estatua). + +O PANNO DESCE + + +QUADRO SEGUNDO + +Triclinio. (Caza de jantar no palacio de Néro.) No 1.º plano tres mezas, +em ferradura, com os competentes leitos e cadeiras. Á esquerda uma +balaustrada que se suppôe dar para uma escada, inferior, de entrada. As +mezas estão promptas: os tocheiros accesos. Grande movimento de +escravos, até á chegada dos convivas. Entram Lygia e Actêa. + +LYGIA + +Dize-me, minha bôa Actêa, é bem certo que, Néro, Cezar, matou a mulher, +a mãi, o irmão? + +ACTÊA + +É certo... e quantos outros! + +LYGIA + +E, dizias-me que o amavas? + +ACTÊA + +Conhecí-o, moço, bello e generoso! É sempre essa imagem, esse Néro que +eu vejo. O outro, o que fizeram os mestres, os aulicos, os amigos, os +senadôres, o proprio povo, esse não o conheço. Esse pertenceu sempre a +outra mulher, cujo dominio se firmou no sangue: esse é de Poppêa, a divina! + +LYGIA + +Como eu tremo de estar, aqui! Daria tudo por me vêr de novo em caza de +Pomponia: ou na campina de Rôma, só, abandonada que fosse. Se eu +pudesse... se tu pudesses, generosa Actêa, proporcionar-me a fuga! + +ACTÊA + +Eu t'o repito, Lygia: era a tua morte e a dos teus. A vontade de Cezar é +absoluta! Approuve a Cezar chamar-te, és uma coisa sua, na vida e na morte! + +LYGIA + +Uma coisa...!? + +ACTÊA + +Tenho lido, tambem, as cartas de Paulo de Tarso, e ellas dizem que, lá +em cima, ha um Deus cujo filho morreu por nós! Mas sobre a Terra não ha +senão um Deus: é Cezar! A tua doutrina prohibe-te de seres o que eu +sou... uma concubina!... e manda-te preferir a morte á deshonra--como os +estoicos de que me fallou tanta vez, Epicteto... + +LYGIA + +Sempre! + +ACTÊA + +Quando uma possa evitar a outra. Ignoras os recursos d'um Cezar. A filha +de Sejano, uma creança de doze annos, foi condenada á morte. A lei +prohibe que as virgens possam soffrer tal pena. O que imaginas que +resolveu, Tiberio? + +LYGIA + +Eu sei! + +ACTÊA + +Mandou-a violar, primeiro, por um escravo e matou-a depois! + +LYGIA + +Que horrôr! + +ACTÊA + +Reflecte. Não irrites nunca os tyranos. Os deuses da Terra são sempre +sanguinarios. És bella, nova, e tão bôa...! Sê cautelosa e espera no +futuro. Eu te protegerei, aqui, quanto pudér. + +LYGIA, abraçando-a + +Como tu és bôa, Actêa! + +ACTÊA + +Sem alegria e sem felicidade, é certo;... mas não sou má. «Elle» tambem +o não era. + +LYGIA + +Lamenta-l'o? + +ACTÊA + +Se te digo que o amo, ainda! O teu Deus não morreu por amôr dos que o +mataram? + +LYGIA + +E, perdoou-lhes. + +ACTÊA + +O amôr é o perdão. (Como subindo a escadaria e voltando a entrar no +salão, no 2.º plano, começam a entrar os senadôres de togas bordadas nas +bandas, sandalias ricas, tunicas de côres. Mulheres vestidas e penteadas +á Grega ou á Romana, as cabeças coroadas de flôres, etc.) + +LYGIA + +Que de gente sobe. + +ACTÊA + +Os convivas que chegam. + +MUSONIO, entrando e passando com Séneca + +Salve, Actêa! + +SÉNECA + +Salve, divina Actêa! + +ACTÊA + +Salve, Séneca! + +LYGIA + +Quem é este velho, de grave aspecto? + +ACTÊA + +É Séneca, o filosofo, mestre de Néro. Um filosofo que manda desprezar as +riquezas e fez, em quatro annos, uma fortuna de quatrocentos milhões de +cestercios! + +LYGIA + +E, o companheiro? + +ACTÊA + +É tambem filosofo; mas bom: um estoico. + +LYGIA + +Como se chama? + +ACTÊA + +Musonio. + +TIGELINO, entrando com Calvia + +Salve, Actêa! + +ACTÊA + +Salve! (a Lygia) Tigelino o infâme, o corruptôr, o valido de Néro. O que +fornece as orgias e os venenos! + +LYGIA + +E, a mulher? + +ACTÊA + +Calvia; a mais impudica das, cortezãs, de Roma. Cinco vezes divorciada. + +LUCANO, entrando com Nigidia + +Que os deuses te conservem sempre a belleza e o coração. + +ACTÊA + +Salve. (a Lygia) Lucano o poeta e Nigidia a amante. + +LYGIA + +É tão novo. + +ACTÊA + +E é bello; mas Cezar odeia-o. Os seus versos são melhores do que os +d'elle e Cezar não perdôa. A sua vida não vale uma moeda d'oiro. + +LYGIA + +E elle sabe-o? e, arrisca-se, aqui?... + +ACTÊA + +É uma creança. (Entra Crispinilla, com Pitagoras.) Crispinilla a +devassa, cheia de incestos... + +LYGIA + +E o mancebo? aquelle adolescente? + +ACTÊA + +É Pitagoras, o éphebo favorito de Néro. + +LYGIA + +Como favorito? Ama-o muito? + +ACTÊA, lembrando-se da inocencia de Lygia + +Sim... Ama-o, muito! (Um grupo de homens e mulheres passa e comprimenta +de longe, sem grande respeito). Senécion, Vitelio, Domicio... Vês como +me comprimentam, de longe? Houve tempo em que teriam vindo comparar-me +ás Deusas e beijar me os pés! São os cortezãos de todos os tempos. (O +grupo sobe) + +LYGIA + +Onde vão? + +ACTÊA + +Dizer a Poppêa, a divina, o que em tempo me disseram a mim! + +LYGIA + +Como tudo isto faz mêdo! + +ACTÊA + +E asco! (Entram, conversando, Petronio e Marcos Vinicio. Petronio vai +para os grupos; Vinicio vê Lygia e desce). Petronio e Marcos Vinicio. +Estes conheces de certo. + +LYGIA + +Marcos! + +MARCOS + +Á mais pura das virgens da Terra, á mais bella das estrellas do Céu, á +divina Lygia, salve! + +LYGIA + +Salve, Marcos Vinicio. + +MARCOS, tomando o pulso d'Actêa e beijando-lh'o + +Salve, Actêa. Por Vénus, sois ainda a mais bella mulher do palacio de Néro. + +ACTÊA + +Cuidado, Marcos Vinicio, que se arremedais vosso tio, no galanteio, não +tendes como elle a faculdade de que Néro oiça pelos vossos ouvidos e +falle pela vossa bôca. + +MARCOS + +O louvor é tão perigoso em Caza de Cezar? + +ACTÊA + +É que dirigido a mim pode parecer epigrama. + +MARCOS, a Lygia + +Felizes os meus olhos que te comtemplam: os meus ouvidos que escutam a +tua voz mais dôce do que as citharas e as flautas! + +LYGIA + +Como fiquei bem, ao vêr te! Que mêdo tenho de estar aqui! Sabias que me +encontravas? + +MARCOS + +Sabia e todavia ao vêr-te senti na minh'alma um extranho e novo prazer! + +LYGIA + +Como sabias? + +MARCOS + +Disse-m'o Aulo Plaucio. + +LYGIA + +Como estará! e os seus! E porque estou eu aqui? + +MARCOS + +Por mandado de Cezar. + +LYGIA + +E para quê? + +MARCOS + +Cezar não dá conta, a ninguem, dos seus actos. + +LYGIA + +Nada d'isto é natural, Marcos. Conhecia-me, acaso Cezar? Tenho o +presentimento de desgraças! Tu és bom: leva-me para caza dos Plaucios, a +caza onde eu vivi tranquilla e tão feliz! Faz-me mal este ruido, esta +gente toda. Porque me arrancaram do pequeno jardim onde brincava com +Aulo? O que me convem a mim é o socêgo e a obscuridade. Não nasci para +festas e para jantares! e, aqui, no palacio de Néro... tenho mêdo, leva-me! + +MARCOS + +Acalma-te! Estou ao pé de ti. Nada pode acontecer-te. Amo-te, não o crês? + +LYGIA + +Sim, Marcos. + +MARCOS + +E, tu m'o disséste, tambem, n'esse jardim, onde brincavas com o pequeno +Aulo. E, eu não ouvi nunca mais outra voz; não vi outro olhar senão o +teu; não pensei, não tive outro querer, outra vontade senão a ti. + +LYGIA + +O socêgo entra na minh'alma com as tuas palavras, generoso Marcos! + +MARCOS + +Tu és a minha felicidade, ó mais bella do que Vénus! A minha felicidade +completa, inegualavel; porque nem Cezar, nem nenhum Deus, póde sentir +maior alegria do que um mortal (abraça-a, delicadamente) que sente bater +contra o peito um peito querido! Assim, ó Lygia, o amôr nos eguala aos +Deuses! + +LYGIA + +A tua palavra é como a luz, que afugenta as trévas e dissipa os +terrôres. Entrego-me a ti. Restitue-me aos meus. Pomponia, a casta, +amar-te-ha como se fôsse tua mãi: abençoar-nos-ha e seremos felizes! Por +ella e pelos seus te agradeço o prazer que lhe darás; e, por mim, +Marcos, amar-te-hei até ao fim da minha vida. + +(Na sala do fundo, onde estão, tambem, mezas visiveis, rompe a orchestra +de citharas, flautas, harpas e timbales. Os escravos serventes entram +dos lados) + +MARCOS + +Vem Cezar. (Vai a querer subir) + +LYGIA + +Não me deixes, só! + +MARCOS + +Não. (Actêa, desce) Aqui tens Actêa... Eu volto já. (Sobe.) + +LYGIA + +Oh! Actêa! (agarrando-lhe a mão) + +ACTÊA + +Que tens? + +LYGIA + +Foje-me a vista. + +ACTÊA + +Serena-te (beijando-a) Isso passa! + +(Néro apparece ao fundo. Á maneira que passa, a multidão aclama-o. +Começam a cahir flôres do tecto até ao fim do acto. Os escravos trazem +brazeiros e deitam-lhe myrra. Gritam) + +VOZES + +Avé, Cezar! + +Avé, Jupiter! + +Avé, divino Cezar! + +Salve, divino! + +Olympico! + +Hercules! + +Immortal! + +NÉRO, junto a meza + +Á meza! (Os homens deitam se nos leitos. As mulheres occupam leitos e +cadeiras. Os escravos enchem as taças de vinho que veem em baldes com +gêlo: outros servem a comida. A orchestra toca mansamente. Néro, +reclinando-se no leito, coroado de rosas): Petronio, dir-se-hia que +entoei um dos meus hymnos! + +PETRONIO + +É a condicção dos Deuses. A sua presença basta para arrancar as +saudações dos homens. + +NÉRO + +Estas? Que significam? Os romanos são verdadeiros selvagens. Não me +entendem. Lembras-te do meu apparecimento em Napoles? + +PETRONIO + +Que noite! + +NÉRO + +Que noite de gloria! Nunca sentirei mais, na minha vida, uma impressão +egual! Chorei! Lembras-te, Petronio? + +PETRONIO + +Como um mortal! E, desmaiaste, até, nos meus braços, exclamando: «Onde +ha triumpho comparavel ao meu?! Eis o que são os Gregos! eis a Grecia!» + +NÉRO + +Comprende-me a Grecia. Em Roma, sei-o bem, chegam a censurar-me por +cantar em publico; como se a arte divina pudésse manchar a purpura dos +Cézares! + +PETRONIO + +Voltaremos? + +NÉRO + +Certamente. Tu sabes que as profecias me dão a soberania do Oriente e do +Egypto. Fundarei alli um imperio luminoso de arte, de sol, de poesia, de +realidade transformada em sonho, de vida transformada n'um perpetuo +gozo! Quero esquecer Roma e collocar o centro do mundo entre a Grecia, a +Asia e o Egypto. Viver a vida, não dos homens, mas dos Deuses. Vogar +atravez do Archipélago, em galéras d'oiro, á sombra de vélas de purpura, +embriagar-me de sol, de poesia! Ser, ao mesmo tempo, Apollo e Osiris! +Reinar ... viver... sonhar...! + +PETRONIO + +Eis o sonho d'um Cezar! + +NÉRO + +Uma realidade! No Egypto levantarei monumentos, ao lado dos quaes as +pyramides hão-de parecer brinquedos de creanças! Farei construir uma +esphinge, sete vezes maior do que a de Memphis, que olha para o deserto, +semelhando-a a mim! E, os seculos futuros não fallarão d'outra coisa: do +monumento e de Néro! + +LUCANO + +Pelos teus versos tu te erigiste, já, um monumento, não sete, mas +setenta vezes maior do que a de Chéops. + +NÉRO + +E, pelo meu canto? + +PETRONIO + +Se tu pudésses levantar uma estatua,--como a de Memnom--, que ao nascer +do sol o fizesse ouvir, durante seculos, os mares do Egypto +coalharam-se-hiam de navios, onde as multidões, das tres partes do +mundo, viriam embriagar se, esquecer a vida, ouvindo a tua voz! + +(Néro, radiante, bebe e todos o acompanham) + +NÉRO + +E... emfim, desposarei a Lua, que é viuva, e serei verdadeiramente um Deus! + +PETRONIO + +E, cazar-nos-has com as estrellas, para formarmos a constelação de Néro! +(A Vitelio, gordissimo, que está de pé, na meza do centro, de taça em +punho, ébrio) Cazarás Vitelio com o Nilo para gerarem hipopótamos. + +TIGELINO + +E a mim, que destino me dás? + +PETRONIO + +Cezar pode dar-te o deserto e serás rei... dos chacaes. + +TIGELINO, aparte + +Insolente! + +(Cezar falla em segredo com Petronio. De repente pôe no olho uma +esmeralda e olha Marcos e Lygia. Marcos diz segrêdos amorosos, todo +curvado.) + +MARCOS, alto + +Como eu te amo, Lygia! (apertando-lhe o pulso) + +LYGIA + +Deixa-me, Marcos, fazes-me mal. + +MARCOS + +Oh! divina, ama-me muito! (beija-lhe o pulso) muito! + +ACTÊA + +Cezar está a olhar-vos. + +MARCOS + +Que me importa? + +ACTÊA + +Tu brincas com a vida, Marcos; não bebas mais. + +MARCOS + +O Phalerno é tão dôce e Lygia tão bella! (Offerece-lhe a taça; Lygia +recuza; Marcos bebe) + +NÉRO, deixando de olhar, depõe a esmeralda na meza + +Petronio, quem é a dama que se senta ao lado de Marcos Vinicio? + +PETRONIO, asustado + +A rapariga... o refem que mandaste buscar a caza dos Plaucios. + +NÉRO + +Ah! De que povo é? + +PETRONIO + +Dos Lygios. + +NÉRO + +Deve ser bella... Vinicio enche-a de galanteios. + +PETRONIO + +Cobre um tronco velho d'oliveira com um vestido feminino e Vinicio +achal-o-ha admiravel. A mocidade! Muito magra. Uma cabeça de dormideira +n'um pé esguio. A ti, estheta divino, que prezas na mulher sobretudo a +haste, aposto--por muito difficil que seja julgar das proporções d'uma +mulher sentada--aposto que já lhe viste o defeito?... + +NERO, piscando os olhos para vêr + +Não tem ancas. + +PETRONIO + +Nenhumas. (malicioso) + +SENÉCION + +Não sei o que questionavas, mas sou da opinião de Cezar. + +PETRONIO + +Fazes bem. Eu estava dizendo a Cezar que tu tinhas uma certa inteligencia: +Cezar affirmava que eras estupido como um burro! (gargalhadas) + +NÉRO, rindo exageradamente, inclina o pollegar para o chão + +E está dito! + +VATINO + +Seja como fôr, eu creio nos sonhos. Séneca um dia disse-me que tambem +acreditava... como Plinio. + +CALVIA + +Sim? Pois a noite passada sonhei que era Vestal. + +NERO, rindo, batendo as palmas, o que todos imitam + +Bravo! + +CALVIA + +E, então? São todas velhas e feias, as vossas vestaes. Só Rubria tem +fórma humana. Assim, ao menos, seriamos duas. Ainda que Rubria, na +primavera, tem a pelle cheia de manchas rôxas. + +SENÉCION + +De que são? + +CALVIA + +Ella é que sabe... e os médicos. + +LUCANO + +É o abrir dos botões. Flôres do amôr! + +PETRONIO + +Calvia, onde deixaste a cabelleira loira, das... vestaes? + +CALVIA + +Tu és um impertinente. + +PETRONIO + +Não era o que me chamavas, uma noite, no lago d'Agripa. + +CALVIA + +És capaz de dizer que te não resistí, satyro? Que não estiveste a meus pés? + +PETRONIO + +Para os encher d'anneis. (Calvia olha instintivamente os pés: todos riem) + +VITELIO, cambaleando + +O meu annel. (rí estupidamente) + +NÉRO + +De que diabo rí esta barrica de cêbo? + +PETRONIO + +O riso é proprio do homem. Vitelio quer provar-nos que não é um porco. + +VITELIO + +O annel... perdí o meu annel de cavalleiro... O annel que me veio de meu +pai... + +PETRONIO + +Que era sapateiro. + +Vitelio, rindo parvamente, procura o annel no colo de Calvia. + +CALVIA + +Que queres? O atrevido. + +NIGIDIA + +Elle não perdeu o que procura. + +LUCANO + +E... ainda que o ache não será capaz de o usar. + +(Os escravos reenchem as taças. Ouvem-se vozes. Vinho. Phalerno.) + +LYGIA + +O jantar durará muito, ainda, Marcos? + +MARCOS + +Inda agora começou. Não estás bem? + +LYGIA + +Sim... mas... morre-se com calor... com os perfumes... + +ACTÊA + +Toma o meu leque. Queres um vinho geládo? + +LYGIA + +Ó não. Queria sahir. + +ACTÊA + +É impossivel. + +Néro, que tem estado a comer e beber bem e a conversar com Petronio, +levanta-se. A musica emudece. Terpros e Diodoro, correm com as citharas. +Néro faz gesto negativo. + +SENÉCION + +Pela arte e pela humanidade! + +NÉRO + +Não estou em voz. Onde está Poppêa? + +UM ESCRAVO + +Doente; não pode vir. + +NÉRO + +Chamai-a (o escravo sahe) + +PETRONIO + +Faze desta festa um festim, divino Cezar: canta! + +LUCANO + +Cezar, não sejas implacavel. + +VATINO + +Não sejas implacavel! + +VOZES + +Sê magnanimo, Cezar! + +NÉRO + +O meu medico prohibiu me de cantar, hoje. + +SENÉCION + +Poupa a tua divina garganta, Cezar. Que seria de Roma e da Grecia se a +tua voz se enublasse! + +NÉRO + +Recitarei o meu hymno novo. Se, mais tarde, puder, cantarei. + +TODOS + +Graças, Cezar. + +Entra Poppêa, sumptuosa e bella. + +VOZES + +Salve, divina Augusta! Salve, ó Deusa! Salve, divina! + +NÉRO + +Um momento, bella Poppêa. Vou recitar o meu novo hymno a Vénus. Precizo +de têl-a diante. + +LYGIA + +Ó Marcos, é possivel! Poppêa, a sanguinaria, é esta mulher de uma +belleza divina?! + +MARCOS + +Sim, é bella; mas tu és cem vezes mais! Bebe um golo, para que eu ponha +os meus labios no sitio dos teus! (Offerece-lhe a taça, que Lygia recusa) + +Faz-se silencio profundo. Musonio, o poeta, encosta-se a uma cadeira e +adormece, emquanto Nero recita. Este vê-o. + +NÉRO, recitando + + Embalde pretendi deixar a escravidão, + Que nos impôe o amôr! + A Deusa luminosa + Que accende, em Chypre, o facho da paixão + Por sobre a humanidade; altiva, desdenhosa + Arrancou-me do peito o coração, + E foi depôl-o aos pés, da mais formosa + Das Romanas, Poppêa, a minha amada! + + Da Vénus Aphrodite a incandescente lava + Passou pela minh'alma! + As intimas ternuras, + Só pode soluçar a minha lyra escrava + Do seu divino olhar, das calidas alvuras + Do seu colo de neve, da bôcca onde os Prazeres + Moram em ninho rubro entre desejos... + Uma lyra que chora a pedir beijos! + + Vem, amada Poppêa, e escuta a Deusa: + Sê como ella, de quem tens a fórma, + Caritativa e dôce! + Abre o teu leito + Aos segrêdos do amôr, ao eterno gozo! + Eu sou um Deus! que troca a divindade, + Do mundo o senhorio, a magestade, + Pelo logar do esposo! + +TODOS + +Ó poeta divino! Salve! + +TODOS, com palmas e gritos + +Ó voz divina! + +Ó immortal! + +Ó Jupiter! + +Ó artista divino! + +Ó resplandecente! + +Salve! Salve! Salve! + +POPPÊA, vem beijar magestosamente a mão de Néro + +Obrigada, Cezar! (sahe) + +Mulheres choram, homens fazem gestos exagerados de espanto: o éphebo +Pitagoras vem joelhar-se ao pé do leito de Néro e fica. Sentam-se de +novo alguns convivas, outros ficam de pé. + +PETRONIO, empunhando a taça + +A Cezar olimpico! (Todos bebem) + +NÉRO, consultando + +Petronio? + +PETRONIO + +Os versos são admiraveis. Lucano deve estar amarello de inveja! +Querel-os-hia peores, para poder fazer-lhes um elogio que os valesse. + +LUCANO + +Maldito o destino que me fez contemporaneo de Cezar! Elle me eclipsa +como a luz do sol a luz d'um candieiro! + +NÉRO, a Tigelino, mostrando-lhe Musonio adormecido + +Faze-me dormir Musonio, o estoico, por uma vez. + +TIGELINO, deitando veneno n'uma taça + +Lentamente? + +NERO + +Não. + +ACTÊA + +Musonio adormeceu emquanto Néro recitava! + +LYGIA + +É um crime? + +MARCOS + +De lesa-magestade. + +LYGIA + +E vão acordal-o? + +MARCOS + +Para dormir outra vez... para sempre! + +TIGELINO + +Eh! Musonio? eh! filosofo? + +MUSONIO, aparvalhado + +Que é? Que queres? Maldito cão! + +TIGELINO + +Cezar, chama-te. (Musonio, levanta-se) + +NÉRO + +O quê sonhavas? + +MUSONIO + +Que Cerebero me ladrava, raivosamente. + +NÉRO + +Tu vês, Vatino, é preciso acreditar nos sonhos. + +TIGELINO + +Petronio brindou a Cezar olimpico. Todos beberam; faltas, tu! + +Musonio, percebe, e hesita em pegar na taça. + +TIGELINO + +Vamos: a Cezar olimpico. + +Musonio, olha Cezar, que o fita com a esmeralda; bebe, vacila e cahe morto. + +LYGIA, levantando-se + +Que horrôr! + +Dois escravos levam-no + +ACTÊA + +Tem coragem. Senta-te. + +NÉRO + +Os gladiadôres? (Entram Croton e Timon) Croton, não te esqueças de que +és o mestre da minha escola. E tu, Timon, mostra-nos, se podes, como se +substitue um mestre. + +Os gladiadôres luctam. O interesse cresce. + +NÉRO + +Bravo, Croton. + +PETRONIO + +Bello grupo para marmore. + +MARCOS + +Bravo! Timon. + +CALVIA + +Que bellas fórmas! + +PETRONIO + +Vestal, silencio! + +NÉRO + +Não é uma bella arte? + +PETRONIO + +A mais bella, depois do canto e da musica. + +NÉRO + +Hei-de de experimental-a, tambem. + +PETRONIO + +Sereis invencivel! + +Croton dominou Timon. Agarra-lhe a garganta e vai estrangulal-o.--Á voz +de Néro: abraça-o e ergue-o. + +NÉRO + +Alto! Bravo, Croton! (applausos) Exercita-te, Timon. Por momentos +tiveste a victoria. Tens qualidades. Vai e não te esqueças de que me +deves a vida. + +TIMON + +Ella é vossa, divino Cezar! + +NÉRO + +Dai-lhe de beber. E, a mim; por Bacho, que não hei-de engulir a sêco +esta aza de pavão de Samos. (deitam-lhe vinho) Que comes, tu, Calvia? + +CALVIA + +Una bocado de cabrito de Ambracia. + +NÉRO + +Estás em familia! Petronio, estás triste? A tua vista tem fome de graça +e de belleza. Tigelino, mostra-nos a graça assyria. + +Tigelino sobe. Ouve-se o côro bachico. Dançarinas assyrias, semi-núas, +de cabeças ornadas de flôres, envoltas n'um véu ligeiro, braços e +tornezellos com braceletes d'oiro, entram dançando com o côro. Os +convivas comem e bebem, conversando em segrêdo. Côro e danças esmorecem +lentamente. Os escravos dão vinho ás bailadeiras. Algumas sentam-se. +Todos estão bebedos, excepto Lygia e Actêa. Durante as danças as luzes +das salas esmorecem. + +SENÉCION, de pé + +Eu creio nos Deuzes. Dizem que Roma ha-de morrer! Ha quem diga que ella +morre já! A falta é dos rapazes que não tem fé e sem fé não ha virtude. + +VATINO + +Quem é que diz de Roma vai morrer? + +SENÉCION + +Os filosofos. + +VITELIO + +Má raça, essa, dos filosofos. + +LUCANO, com Nigidia no colo + +Não ames nunca um filosofo, Nigidia! Ama os poetas. A filosofia é uma +adega cheia de ôdres... os filosofos. Quanto mais ôccos, maiores são. +Disse-o não sei se Epicteto. + +NIGIDIA + +Nunca disse isso, Epicteto. + +LUCANO + +Não? Pois podia dizel-o; porque disse tolices muito maiores. Então, +digo-o eu. + +SENÉCION + +Não, Roma não morre! Teriamos de morrer todos! Nunca mais beber vinho! +(chora sobre o colo de uma bachante.) + +BACHANTE + +Não chores, imbecil... que te fazes feio. Dorme antes. (empurra-o +levemente. Elle cahe debaixo d'uma meza e fica.) + +LUCANO, enrolando-se na hera d'uma amphora + +Eh! lá, Bachantes, aqui está um Fauno! + +NÉRO + +Pitágoras, vem cá! (a Petronio) conheces alguma coisa mais bella? (beija +as mãos do éphebo) Hei-de cazar comtigo! Mãos tão bellas, nunca vi. +Vi... já... quando? (lugubre) Eram de... minha mãe! (pausa e espanto) +Eram de minha mãe... Sim, d'Agrippina! (baixo) Dizem que pelas noites de +luar pelas aguas da Baïa... vagueia como que á procura... não se sabe de +quê! Se encontra uma barca desapparece; mas o pescadôr que a viu, morre! + +VATINO + +Nos Deuses não acredito... mas nos espectros... sim. Nos espectros! + +NÉRO + +E, todavia celebrei, grandiosamente, aos Deuses tumulares! Não a quero +vêr... Cinco annos! cinco annos! Matei a, mas fui forçado a isso! +Matava-me ella, se não o faço! Se eu tivesse morrido não me tinheis +ouvido, hoje! + +TIGELINO + +Graças, Cezar, por nós, pela cidade, pelo mundo! + +NÉRO + +Não a quero vêr! (gritando) Vinho! e que esses timbales rujam! + +LUCANO + +Eu sou um Fauno! É é é... cho... ó ó ó. Os faunos amam as florestas! Nos +jardins de Néro ha bosques profundos! Nigidia, levanta-te... acorda... +vamos para o bosque! + +NÉRO + +Tem razão Lucano; abraza-se, aqui! Vamos para os jardins! Agora, sim, +agora, vou cantar. Trazei vinhos! Terpnos, Diodoro, as citharas. +(obedecem) Quero dançar tambem. E archotes... quero luz... muita luz... +tudo bem claro, que a não quero vêr! + +CALVIA + +Quem? + +NÉRO + +A mulher das mãos brancas... como as de Pitágoras! (reparando em Actêa +que acabou de fallar com Ursus o gigante que fica atraz de Marcos e +Lygia) Ó bella e generosa Actêa! dá-me o teu braço. Vou cantar, para ti, +uma canção á Lua! Á casta Lua, serena como tu, velada e meiga! + +ACTÊA, acceitando-lhe o braço + +Senhôr, sou a vossa escrava. + +NÉRO + +Não; és uma estrella do meu céu! Um comêta que só apparece, de longe em +longe! (sobem todos) + +MARCOS, agarrando brutalmente Lygia + +Dá-me os teus labios! Hoje ou amanhã... que importa? Para que esperar? +És minha! Cezar roubou-te para mim! + +LYGIA + +Marcos... + +MARCOS + +Para mim! Ha quanto te quero! Um dia em caza dos Plaucios, vi-te no +banho... núa! Não o sabias? Como és bella! Sahias da agua como a Vénus +das espumas... Um sonho! Pedi-te a Cezar que te mandou buscar... Amanhã +vaes para minha caza... Dá-me os teus labios! (força para beijal-a) +Dá-mos, já, agora. + +LYGIA, recuando aflicta + +Marcos, não te conheço... tem piedade!... não, nunca...! + +MARCOS + +Piedade? não; amôr! És minha, quero beijar-te... quero a tua bôcca! +Dá-m'a! (agarrando-lhe brutalmente a cabeça) Ó dá-m'a, por Jupiter! ou... + +O escravo Ursus agarra-o pela cinta e atira-o sobre o leito. + +LYGIA + +Es tu? (atira-se-lhe ao colo e fica suspensa) + +URSUS + +Não tenha mêdo... sou eu! (leva-a a colo) + +MARCOS, levantando-se tonto + +Lygia! Lygia! (vai a querer seguil-a, e cambaleia) Por Hercules! +(ampara-se a uma assyria que bebe) Que é? que foi? + +ASSYRIA, dando-lhe a taça + +Um sonho! Bebe! + +Marcos bebe e cahe sobre o leito. + +URSUS + +Eis os senhores do mundo! (sahe, levando Lygia). + +No jardim ouve-se a musica. As luzes esmorecem. Um ou outro bebedo +levanta a cabeça aos sons da orchestra e torna a deixal-a cahir. As +rosas sahem sempre. O panno desce, lento. + +FINAL DO 1.º ACTO + + + + +ACTO SEGUNDO + + +QUADRO TERCEIRO + +Caza de Vinicio. O tablium ornado com flôres. Perfumadôres no chão. + +PETRONIO + +Estavas bebedo, hontem. Não gostei de te vêr. Andaste como um carroceiro +dos montes Albanos. Não sejas nunca tão sôfrego. Lembra-te que um bom +vinho deve ser bebido lentamente. Porque escravo a mandaste buscar? + +MARCOS + +Por Altacino. + +PETRONIO + +É de confiança? + +MARCOS + +Da maior. (passeia agitadíssimo) Que demora! + +PETRONIO + +E, faze por lhe alcançares as bôas graças. Pôe-na de bom humôr, para lhe +destruires o máu effeito das brutalidades de hontem. + +MARCOS + +Que demora! + +PETRONIO + +Sê generoso, que ella merece-o. É bella! Sê magnanimo! + +MARCOS + +Deviam, cá estar, ha meia hora. + +PETRONIO + +De certo. Queres tu, para matar o tempo, que te falle das prophecias de +Appolonio de Tyana, ou das maximas de Aristóteles, meu mestre, o estheta +maximo? + +MARCOS + +Não... Deviam já ter chegado. + +PETRONIO + +Está dito... Deviam já ter chegado. + +MARCOS + +Malditos escravos. Teem as pernas ankilosadas por falta de exercicio. +Terei de os fazer correr diante das varas. + +PETRONIO + +Elles não são o amante que espera. Tu não tens paciencia, nem +serenidade. É precizo ser distincto, sempre! E, depois, não se traz +assim uma princeza, uma filha do rei da Lygia. + +MARCOS + +Tu zombas?... se fôsse comtigo! + +PETRONIO + +Agradeceria aos Deuses o fazer-me prelibar, mais amplamente, uma posse +divina. + +MARCOS + +A demora não é natural... Eu vou vêr... + +PETRONIO + +Não percas a tua bella linha esthetica. Espera; não sejas vulgar. +(ouve-se ruido) Tanto mais, que me parece que chegam. (o ruido augmenta. +Á porta apparecem quatro escravos. Dois d'elles com os rostos +ensanguentados) + +MARCOS + +Onde está Lygia? + +OS ESCRAVOS + +Ai, Senhôr!; ai, Senhôr! + +MARCOS + +Onde está Lygia? (avança furioso) + +OS ESCRAVOS + +Vê o sangue, Senhor! Vê o sangue! + +UM ESCRAVO + +Defendêmo-la, até á ultima. + +MARCOS + +Que é d'ella? + +UM ESCRAVO + +Raptaram-na! + +MARCOS + +Ah! miseravel. (atira-lhe uma taça á cabeça) Gulon? + +GULON, apparece + +Senhôr. + +MARCOS + +Cem varadas a cada um. + +OS ESCRAVOS + +Senhôr, piedade! + +MARCOS + +Até a morte! (os escravos sahem, em grita, adiante de Gulon) + +PETRONIO + +Está doido! Vamos ter carnificina. Repugnam-me os talhos. Vale. (sahe) + +MARCOS, postrado, senta-se + +Mas quem poderia roubar-ma? Quem? Plaucio? Ai d'elle, se o foi! Ai +d'elle!... Pedirei a Cezar a sua morte!... E, se foi Cezar? Pelas +furias! se foi Néro n'uma das suas nocturnas «pescas de Perolas,» como +elle lhes chama?! E, quem podia ser senão, elle, Néro? Quem ousaria +oppôr-se á sua vontade? Viu-a hontem, apeteceu-lhe... roubou-ma! Cezar +diverte-se comigo! Por Écate, por Érebo, por vós ó Deuses do lar, (toma +terra n'um vaso e espalha-a pelo o chão) juro que quem quer que foi, +escravo ou imperadôr, mendigo ou Cezar, mato o! (ao introductor, que +apparece) O meu manto. + +O INTRODUCTOR + +Actêa deseja fallar-vos. + +MARCOS + +Actêa? Em bôa hora. Venha. (A Actêa, que entra, agarrando-lhes as mãos) +Onde está Lygia? + +ACTÊA + +Vinha perguntar-t'o. + +MARCOS + +Não sei; roubaram-ma no caminho. (junto do rosto d'Actêa, com os dentes +cerrados) Actêa, se tens amôr á vida, se não queres ser causa de +desgraças, cujo alcance nem podes conhecer, diz-me a verdade: foi Cezar +quem m'a robou? + +ACTÊA + +Cezar não sahiu hontem do palacio. + +MARCOS + +Pela memoria de tua mãi, por todos os Deuses, Lygia não está no Palatino? + +ACTÊA + +Pela memoria de minha mãi, Lygia não está no Palatino, nem foi Cezar +quem t'a robou. + +MARCOS, cahindo na cadeira, com a cabeça nos punhos + +Então foram os Plaucios! Ai d'elles! + +ACTÊA + +Aulo Plaucio procurou-me, hoje, a saber de Lygia. + +MARCOS + +Hypocrisia! Se não soubesse d'ella ter-me-hia procurado a mim. + +ACTÊA + +Tambem procurou. + +MARCOS + +A mim? + +ACTÊA + +De manhã. + +MARCOS + +Não o vi, nem me fallou. + +ACTÊA + +Os teus servos contaram-lhe o acontecido. (Pausa) Não, Marcos, o que +aconteceu, aconteceu por vontade de Lygia. + +MARCOS + +Tu sabias que ella queria fugir? + +ACTÊA + +Sabia que ella não consentiria em ser tua concubina! + +MARCOS + +E... tu? que tens sido toda a tua vida? + +ACTÊA + +Eu?... És pouco generoso! Eu era uma escrava! + +MARCOS + +Seja como fôr. Cezar deu-ma! Descobril-a-hei nem que seja debaixo da +terra. Farei d'ella o que eu quizer! A minha concubina... porque não? A +minha concubina! Nem que seja precizo chicoteal-a, de dia e de noite! +Dal-a-hei, ao ultimo dos meus escravos! Mandal-a-hei atrelar a um moinho +da costa d'Africa. Procural-a-hei, eu. Procural-a-ha Cezar, inda que +seja precizo empregar todas as legiões. + +ACTÊA + +Tu deliras...! Tem cautella em não metter Cezar, na busca, porque te +arriscas a perdel-a para sempre, no dia em que elle a achar. + +MARCOS + +Como? + +ACTÊA + +Ouve, Marcos. Hontem, antes de jantar levei Lygia, para a distrahir, a +passeiar nos jardins. Encontrámos Poppêa e a pequena Augusta, sua filha +e filha querida de Néro, nos braços da ama negra. Á tarde a creança +cahiu doente e Lilith, a ama, diz que foi a estrangeira que a +enfeitiçou! Se a creança melhora, tudo esquecerá: se peóra Poppêa será a +primeira a accusar Lygia de feiticeria e, encontrada, não terá salvação! + +MARCOS + +Talvez que ella enfeitiçasse a creança... e a mim tambem! + +ACTÊA + +A negra diz que a pequenita se pôz a chorar logo que passou por nós. É +certo, ouvi. Mera coincidencia. Procura-a; mas antes das melhoras da +creança não falles de Lygia. Seus olhos choraram, bastante, de mais... +por ti! + +MARCOS + +Por mim? Disse-t'o ella? + +ACTÊA + +Eu o vi. As suas lagrimas eram sinceras e a sua dôr sentida. Como velei +por ella no palacio de Cezar, quiz valer-lhe, se pudesse, ainda, junto +de ti. + +MARCOS + +Como? + +ACTÊA + +Invocando a tua generosidade para ella. + +MARCOS + +Zombas de mim: se não sei onde pára... + +ACTÊA + +Ainda o podes saber: deixa-a em paz. + +MARCOS + +Não posso. + +ACTÊA + +Desposa-a. + +MARCOS + +Nunca! + +ACTÊA + +Não é uma escrava, é um refem de guerra: os refens são sagrados. + +MARCOS + +Concorreste, já vejo, para o rapto? + +ACTÊA + +Talvez. + +MARCOS + +Contra, Cezar. + +ACTÊA + +Não; contra ti. + +MARCOS + +E, dás-lhe razão? + +ACTÊA + +Defendo-a. + +MARCOS + +Tu ama-la? + +ACTÊA + +Quanto ella merece. + +MARCOS + +Porque te não paga, como a mim, o amôr com o desprêzo. + +ACTÊA + +Homem cégo, ella amava-te. + +MARCOS + +A mim? Que amôr é esse que prefere a vida errante, a indigencia do dia +seguinte e talvez uma morte miseravel, a uma vida de riquezas e de +alegria? Que amôr é esse, que tem mêdo do prazer e sêde dos sofrimentos? +É que ella me odeia, do coração! + +ACTÊA + +Como imaginaste captival-a? Em vez de te inclinares diante dos seus pais +adoptivos, os Plaucios, e de lh'a pedires para esposa, por surpreza, +roubaste lh'a. Era a filha d'um rei, quizeste fazer d'ella a tua +concubina! Feriste-lhe os olhos inocentes com o espectaculo da orgia, +sem comprehenderes que aquella creança candida preferiria a morte á +deshonra! Sabes tu quaes são as suas crenças? sabes que Deus adora? e se +esse Deus não é melhor do que essa Vénus impudíca e essa Isis que os +Romanos veneram, no seu impudôr? Que te importou tudo isto? A pobre +creança, quando fallava de ti, córava: amava-te! Como lhe pagaste a +aspiração pura do primeiro amôr? Enchendo-a de espanto, tratando-a como +a uma escrava, insultando-a! + +MARCOS + +Eu não a insultei! + +ACTÊA ironica + +Generoso senhôr... vilmente! Venceste os Parthas, tu? Que é agora um +coração de mulher para um famoso guerreiro? Enganaste-te: é mais facil +vencer os barbaros. Amava-te; é possivel que te despreze, agora! + +MARCOS + +Que me importa? Amo-a eu; quero-a, hei-de tel-a. + +ACTÊA + +Se ella te não amar, essa satisfação deve ser bem mesquinha. O amôr de +dois é um misterio divino: o de um só: uma torpeza! Nobre consul, adeus! + +PETRONIO, entrando: a Actêa que vae a sahir + +Salve, divina Actêa. + +ACTÊA + +Salve, galante Petronio. + +PETRONIO + +Dou-vos graças pela bondade com que tratastes Lygia. + +ACTÊA + +Fiz o meu dever. Ella tem a candura d'uma virgem e a graça das pombas... + +PETRONIO + +Que vôam. + +ACTÊA + +Officio de quem tem azas. Adeus. (sahe) + +PETRONIO + +Sabes alguma coisa de Lygia? Actêa a que veio? + +MARCOS + +Saber d'ella... Não sahiu da cidade. Os meus escravos vigiam as portas. +Ella ou o tal gigante, hão-de apparecer. + +PETRONIO + +Tens sorte em que não seja Cezar o raptadôr. Trago-te uma boa nova. + +MARCOS + +Qual? + +PETRONIO + +Eunice, a minha escrava,--desde hontem que reparo que é verdadeiramente +bella!--conhece um homem capaz de a descobrir. + +MARCOS + +Quem é? + +PETRONIO + +Um tal Chilon, médico, sabio, feiticeiro, ou o que é, que lê o destino e +prediz o futuro. Mandei-o chamar e trago-t'o. Queres fallar-lhe? + +MARCOS + +Que venha. + +Petronio faz signal para dentro. Chilon entra. É um corcovado, tunica no +fio, esburacada, barba e cabelleira intonsas. Sandalias velhas, etc. + +CHILON + +Salve, senhores nobilissimos! + +MARCOS + +Aproxima-te. Sabes bem do que queres encarregar-te? + +CHILON + +Pelo o que em toda a Roma se falla, não é difficil de adivinhar. +Roubaram aos teus escravos, nobre senhôr, Lygia, ou Calina, filha +adoptiva dos Plaucios. Encarrego me de t'a descobrir, na cidade ou fóra, +onde estiver. + +MARCOS + +Que meios tens para isso? + +CHILON + +Os meios tens, tu, senhôr. Eu só possúo o genio. + +PETRONIO + +É homem para a descobrir. + +MARCOS + +Previno-te de que se me enganas para me apanhares dinheiro, mando-te +desfazer com varadas. + +CHILON + +Eu sou um pobre filosofo, senhôr, e um filosofo não pode deixar de +pensar na recompensa, sobretudo quando ella pode sêr da especie que +acabais de me fazer entrevêr, tão magnanimamente! + +PETRONIO + +Então és filosofo?; mas Eunice disse-me que eras médico ou adivinho. +D'onde a conheces? + +CHILON + +Veio consultar-me. A minha fama chegou até ella. + +PETRONIO + +Sobre quê? + +CHILON + +Materia d'amôr. Queria curar-se d'um amôr, não partilhado. + +PETRONIO + +E, curaste-a? + +CHILON + +Fiz mais. Dei-lhe um amuleto que faz nascer o amôr reciproco: um fio do +cinto da Vénus de Chypre. + +PETRONIO + +De que escola és tu, divino sabio? + +CHILON + +Senhôr, pelo meu manto em escumadeira, sou um cynico: um estoico, pela +paciencia com que soffro a minha miseria: e, porque, como não tenho +liteira, tenho de andar a pé, de taberna em taberna, a dar lições aos +que me pagam o vinho, sou um peripathetico. + +PETRONIO + +Gostas de vinho? + +CHILON + +Heraclito disse que o vinho era fôgo e que o fôgo era uma divindade! + +PETRONIO + +Deante da qual o teu nariz se illumina. + +MARCOS + +Já te tens empregado em cargos semelhantes? + +CHILON + +Hoje, senhôr, a virtude e a sabedoria teem tão pouco valôr, que um pobre +filosofo se vê forçado a lançar mão de todos os meios de existencia! + +MARCOS + +Quaes são os teus? + +CHILON + +Saber tudo o que se passa e offerecer os meus serviços a quem preciza +d'elles. + +PETRONIO + +E pagas-te? + +CHILON + +Conforme os meus meritos. Que remedio! + +MARCOS + +Não devem ser grandes porque te não deram ainda para um manto. + +CHILON + +Sou modesto, senhôr. O que é pequeno não é o meu merito é a gratidão dos +homens. Quando se esconde um escravo de preço quem o descobre? Quem +indica os culpados dos pasquins em _louvôr_ de Poppêa, a divina? Quem +descobre nas livrarias os versos contra Cezar? Quem leva as cartas que +se não podem confiar aos escravos? Quem faz fallar os barbeiros, os +alfaiates, os taberneiros e capta a confiança dos escravos a saber tudo +o que se passa n'uma casa, do atrio ao jardim? Quem conhece todas as +ruas, praças, bêcos, alfurjas, da cidade? Quem sabe o que se diz, nas +thermas, no circo... + +PETRONIO + +Basta, por todos os Deuses, illustre sabio, ja sabemos quem és. + +CHILON + +E quanto valho. + +MARCOS + +Bem. Tens necessidade de indicações? + +CHILON + +Eu? Tenho necessidade de armas. + +MARCOS + +Quaes? + +CHILON, fazendo o gesto de dinheiro + +Os tempos vão tão máus, para os filosofos... + +MARCOS, atirando-lhe a bolsa + +Ahi tens. + +CHILON, apanhando-a + +Começamos a entender-nos. Nobre senhor, ouvide: Lygia não foi roubada +por Aulo, nem está no Palatino. O rapto foi feito por Ursus, o gigante +seu escravo, e pelos christãos. + +PETRONIO + +Ouve, Marcos. + +CHILON + +Lygia adora a mesma divindade que Pomponia, a mais virtuosa das Romanas; +é Christã... + +MARCOS + +Como o sabes? + +CHILON, com emphase + +Sou christão! + +PETRONIO + +Tu? + +CHILON + +Desde hontem, senhôr, desde hontem. + +MARCOS + +Reflecte Chilon. Tu não és um imbecil. Quererás presuadir-nos de que +Pomponia e Lygia pertencem á seita dos inimigos do genero humano, dos +envenenadôres, das gentes perdidas nos ultimos vicios? + +CHILON + +É christã, senhôr, tende a certeza absoluta. + +PETRONIO + +O que quer dizer que Pomponia e Lygia envenenam as fontes, immolam as +creanças encontradas nas ruas e se entregam ao deboche? Tu que viveste +em caza de Aulo vês como isto é uma calumnia ou uma tolice! Ou então os +christãos não são o que se diz. + +MARCOS + +Seja como fôr. Foi então esse Ursus quem a roubou? + +CHILON + +Com os christãos. + +MARCOS + +E, encontral-a-has? Saberás onde está? + +CHILON + +Esta noite, ainda, trarei noticias. + +MARCOS + +Duplicarei a offerta se a achares. Gulon? (para dentro) + +GULON + +Meu senhôr. + +MARCOS + +Dá um manto capaz a esse... filosofo. + +CHILON + +Nobre consul, sois duplamente generoso: cobrís d'uma vez, com a mesma +capa: a Sciencia e a Virtude! Nobre Petronio, vale. (Sahe) + +PETRONIO + +Adeus... _collega_. Não me desagrada o tal filosofo. Descobre Lygia, +verás. Mas parece-me bom mandares desinfectar o atrio... A respeito de +perfumes a filosofia está muito atrazada... só conhece... os naturaes. +Fica-te com os Deuses... Sabes que amanhã é a festa do Lago? + +MARCOS + +Sei. + +PETRONIO + +Dizem que Vatino inventou maravilhas. Não podes faltar. Cezar poderia +notar a tua falta. E... bôas novas, até lá. + +MARCOS + +Gulon? + +GULON + +Meu Senhôr. O jantar? + +MARCOS + +O meu manto e o estilete. (paseia agitado) + +GULON + +Eil-os. (Veste-lhe o manto) Ides só? + +MARCOS, mettendo o estilete no cinto + +Só. (Sahe) + +O PANNO DESCE + + +QUADRO QUARTO + +Salão no palacio de Néro. Ao fundo um terraço d'onde se vê Roma. Mezas, +cadeiras. Anoitece, gradualmente, durante o acto. + +PETRONIO, a Marcos que vai a passar ao fundo + +Dou graças aos Deuses, nobre consul, por te saber ainda vivo. + +MARCOS + +Ah! Petronio. + +PETRONIO + +Nem me vias. D'onde te desenterraste? Em tua caza, em parte alguma se +sabia onde estavas. Alguma Deusa te raptou para a sua morada? + +MARCOS + +Talvez. + +PETRONIO + +Mas tu estás mal, meu sobrinho, muito mal. É evidente que Vénus te +perturbou o espirito e te faz perder a razão! Por Pollux, se a chama que +te consome te não reduz a cinzas, tu metamorfoseias-te n'aquella +esphinge do Egypto, que dizem que perdida d'amôr pela Lua, se tornou +indifferente ao dia, de modo a só esperar a noite, para poder com os +olhos de pedra, namorar a amante! + +MARCOS + +Oxalá me transformasse em esphinge! + +PETRONIO + +... Se não sou eu, na ultima vez que nos vimos, na festa do lago, ou +tinhas de transformar-te em esfinge... ou eras um homem perdido. + +MARCOS + +Como assim? + +PETRONIO + +Quem era a mulher que, no bosque de Diana, te queria levar para entre as +sombras? + +MARCOS + +A mulher mascarada? + +PETRONIO + +Sim. + +MARCOS + +Não sube, nem quiz. + +PETRONIO + +Era Poppêa. + +MARCOS + +Heim? + +PETRONIO + +Chamei-te a tempo. Ella fugiu. Se n'esse momento lhe negas o amôr, que +era feito de ti? + +MARCOS + +Tel-o-hia recuzado. + +PETRONIO + +Evitei essa asneira a tempo; mas a hesitação que mostraste, valeu-te o +seu odio. As mulheres não perdôam, nunca, essas coisas... e então +Poppêa...! Acautela-te. + +MARCOS + +Desprezo-a. + +PETRONIO + +A pequena Augusta morreu... + +MARCOS + +Que me importa? + +PETRONIO + +A morte atribue-se aos feitiços de Lygia. + +MARCOS + +Imbecís! + +PETRONIO + +E, a proposito... Lygia? + +MARCOS + +Tu não calculas, Petronio, o que me tem acontecido. + +PETRONIO + +Mas diz. Tens-me causado sustos. Sabes que te quero... + +MARCOS + +N'essa noite... a do Lago, quando cheguei a caza esperava-me Chilon. + +PETRONIO + +O filosofo? + +MARCOS + +O tal. Sabia de Lygia, vinha propôr-me o raptal-a. Concordei. Fomos, eu, +elle e Croton, o gladiadôr, embuçados, ao Ostrianum, o velho cemiterio, +á sahida da porta Capuana. Alli se reunem escondidamente os Christãos e +lá ouvi Paulo, o apostolo, pela primeira vez. Lygia estava junto d'elle, +envolta n'um manto escuro, embebida, a ouvil-o, n'uma allucinação de +todo o seu sêr, arrebatada, divina! Se tivesses visto a sua figura d'uma +belleza ideal... + +PETRONIO + +Adiante. + +MARCOS + +Todo o meu amôr renasceu com a furia d'um toiro das Hespanhas. Jurei +tel-a. Alli, era perigoso: os christãos eram alguns centos. Seguimo-la +até a caza, á sahida. Uma velha caza, no bairro do Transtiberino. Entrou +n'um pateo com o velho apostolo e esse Ursus, o escravo gigante, que a +não larga, nunca. Escondemo-nos n'um corredôr á espera de occasião +propicia, eu e Croton, porque o filosofo não sendo capaz de entrar... +ficou de vigia, na rua. Ursus veio buscar agua á cisterna do pateo. Era +occasião: virei-me para Croton e disse-lhe: matta. O gladiadôr atirou-se +ao escravo como um tigre; eu corri pelo corredôr, empurrei a porta +entreaberta, agarrei Lygia ao collo e corri para fóra. Desmaiára. + +PETRONIO + +Bello grupo dariam para um rapto. + +MARCOS + +Ao chegar ao pateo eis o que eu vi. Ursus dominava Croton vergado sobre +um joelho, apertando-lhe, com uma das mãos, o pescoço. O gladiadôr tinha +um estertôr na garganta, os olhos sahiam-lhe das orbitas! Ao vêr-me, +Ursus, applicou sobre o peito de Croton um murro tal que este rolou pelo +chão, de bôcca aberta, jorrando sangue. Estava morto! + +PETRONIO + +Por Hercules, que esse homem merece uma estatua. + +MARCOS + +De chofre, voltou-se para mim, agarrou-me este braço e partiu-m'o. + +PETRONIO + +Depois? + +MARCOS + +Não me lembra senão d'uma voz, feita de todos os sons das citharas, +dizer: Ursus, não mates! Quando acordei estava n'uma cama e vigiava-me +uma pobre viuva, um filho e... ella! + +PETRONIO + +E foi ella quem te tractou? + +MARCOS + +Tratou-me um medico; mas salvou-me, ella! Que cuidados, que dedicação, +dias e noites! Contando mesmo as horas dolorosas da doença, passei, +alli, os melhores dias da minha vida. O apostolo, contava toda a vida e +morte de Cristo, seus milagres e douctrina. Vi os mais bellos exemplos +de caridade, de amôr e de perdão! Se tu o ouvisses! + +PETRONIO + +Não me faltava mais nada! O que faz o amôr! Começavas a achar essa +religião adoravel, porque era a de Lygia. + +MARCOS + +Talvez. + +PETRONIO + +É assim. O amôr transforma as pessôas completamente, opiniões e gostos. +Como a mim me está acontecendo. D'antes só gostava do perfume da +verbena; lembras-te? Hoje, como a bella Eunice prefere o das violetas, é +d'este que eu gosto mais. + +MARCOS + +Eunice? + +PETRONIO + +Sim, Eunice. Ah! tu não sabias ainda... Tenho que te agradecer aquella +recuza... É uma maravilha de esthetica, a loira Eunice! Uma obra de +Praxiteles...! + +MARCOS + +E a tua Chrisotémis? + +PETRONIO + +Mandei-lhe umas sandalias bordadas a perolas... É como quem diz: vai +passeiar. É o meu processo; ellas já sabem. Chrisotémis, francamente, +era contemporanea da guerra de Troia. E, afinal, melhoraste, sahiste... +e o que é feito da tua Lygia? + +MARCOS + +Fugiu-me. + +PETRONIO + +Outra vez? + +MARCOS + +No dia em que me levantei, ella sahiu. + +PETRONIO + +Tinha mêdo de ti? + +MARCOS + +Tinha mêdo de si, propria. + +PETRONIO + +É extraordinario! + +MARCOS + +Dizes bem. Ella não é como as outras mulheres! + +PETRONIO + +Ah! não? Então não perdes nada com a abstinencia. + +MARCOS + +Não podemos entender-nos. + +PETRONIO + +Decerto, não. Que o Hades confunda esses christãos que te fazem perder o +senso commum. + +MARCOS + +Tu não conheces a sua doutrina. + +PETRONIO + +Enganas-te, conheço. Já li as taes cartas de Paulo de Tarso. Babozeiras. +É uma doutrina anti-humana: porque a felicidade só vem da belleza, do +amôr, e da força! A isto, chama elle, vaidades! E que theorias! +Retribuir o mal com o bem... Que justiça! O que devemos ao bem? Se a +sanção é a mesma para o bem e para o mal, porque seriam os homens bons? + +MARCOS + +Segundo elles a sanção começa na vida futura, eterna. + +PETRONIO + +Isso são coisas a verificar... depois da morte. + +MARCOS + +A vida para elles começa com a morte. + +PETRONIO + +É natural. É como se se dissesse: o dia começa com a noite! Vais raptar +Lygia outra vez? + +MARCOS + +Não. Prometti-o. + +PETRONIO + +Tens tenção de adoptar a doutrina christã? + +MARCOS + +Querel-o-hia; mas toda a minha natureza se oppõe. + +PETRONIO + +Emfim, és capaz de esquecer Lygia? + +MARCOS + +Nunca! + +PETRONIO + +Então vai... viajar. (entram escravos com amphoras e taças que collocam +nas mezas do 1.º salão e nas da varanda) Vem Cezar. O que vieste fazer? + +MARCOS + +Cezar mandou-me convidar para a leitura da Tróiada. + +PETRONIO + +Tambem? E... se elle te perguntar por Lygia? + +MARCOS + +Não sei... + +PETRONIO + +Dize-lhe... que a tens guardada... que esta ausencia... foi a lua de mel. + +Entra Cezar, Poppêa, Tigelino, Vitelio, Senecion, Vatino etc. escravos. +Poppêa sobe para o terraço, com outras damas, onde bebem. Os éphebos +galanteiam, etc. + +NÉRO, aborrecidissimo + +Salve, Petronio. Inda bem que chegaste. Creio que vou morrer de tédio, +de aborrecimento! A minha viagem á Grecia, adiada! + +PETRONIO + +Porquê? + +NÉRO + +Vesta, a propria Deusa, me avisou, no templo. Venho agora de lá. Tão ao +ouvido me disse: addia a viagem, que me assustou. + +TIGELINO + +Ficámos todos aterrados. A vestal Rubria desmaiou. + +NERO + +Que linda garganta que tem Rubria! Que branca! (bebe) Eu precizo +distrahir-me. Vinheis ouvir o poema! Não posso lêr! Nem cantar! Nem +tenho paciencia. Não posso ficar em Roma, irei para Ancio. Abafo, +n'estes bairros apertados, no meio de cazas que se desmuronam, de +ruellas immundas. Um ar empestado chega até aos jardins, chega até aqui! +Porque não houve, nunca, um tremôr de terra que destruisse Roma? Se um +Deus, na sua colera, a nivelasse com a terra, eu ensinaria como se +edificava uma cidade para capital do mundo! + +TIGELINO + +Não dizes, tu, Cezar: se um Deus destruisse a cidade? + +NÉRO + +Sim e então? + +TIGELINO + +Não és, tu, um Deus? + +SENECION + +Podes fazel-o. + +VATINO + +Fal-o. + +NÉRO + +...Não lerei o meu poema! O meu incendio de Troia flameja timidamente! +Julgava que egualaria Homero e tinha ficado contente. + +PETRONIO + +Não o egualaste? + +NÉRO + +Não...! Um esculptor quando por esculpir a estatua de um Deus, escolhe +um modêlo. Nunca vi arder uma cidade, não o posso pintar. + +PETRONIO + +Mas tens genio para tanto se o quizeres fazer, Cezar. Aposto que os teus +versos... + +NÉRO + +Não, não. Responde-me a uma questão, Petronio. Tens pena que tenha +ardido Troia? + +PETRONIO + +Pena de quê? Por Marte, pelo contrario. Tróia não teria ardido sem o +fôgo dado por Prometheu aos homens e sem os gregos terem declarado a +guerra a Priamo. D'ahi veio que Eschylo escreveu o seu Prometheo e +Homero a Illiada. Quero mais a estes dois poemas do que á tal Troia, +provavelmente uma villoria de cazas de madeira, velhas e sujas! + +NÉRO + +Eis o que é fallar com tino. Á poesia e á arte tem-se obrigação de +sacrificar, tudo. Felizes os Gregos que deram a Homero o assumpto do seu +poêma! Feliz Priamo que viu as ruinas da sua patria!... Eu nunca vi uma +cidade em chamas! + +Silencio geral de receio. + +VITELIO, avinhado + +Nem eu!; mas se fosse Cezar e a quizesse vêr, via-a! + +TIGELINO + +Era facil. + +PITAGORAS + +Poppêa e as damas, Cezar, pedem-te para vires cantar. + +PETRONIO + +Aproxima-se a noite, o sol agoniza, a tarde é bella, o ar cheio de +perfumes dos jardins. Á natureza só falta um cantico... + +MARCOS + +O teu, Cezar! + +NÉRO + +É cêdo ainda. (olha para Tigelino, misteriosamente) É cêdo, ainda. + +VITELIO + +Eu adoro a musica. + +PETRONIO + +Das taças. + +NÉRO + +Dize-me, Petronio, que pensas tu da musica? + +PETRONIO + +A tua, sobretudo, quando a oiço, faz-me sentir um mundo de prazeres +novos. A musica é um mar, onde á onda succede a onda, á agua, agua sem +fim, até... ao infinito...! e é sempre impossivel vêr a outra margem. + +NÉRO + +É assim que eu penso da musica. Quando canto e tóco, eu, Cezar, senhôr +do Mundo, descubro reinos desconhecidos, mares virgens, mundos nunca +sonhados! Vejo os Deuses! subo ao Olimpo! Um sôpro estranho passa, a +esphera vibra em roda de mim e dir-te-hei (leva Petronio, pelo braço, +para o lado) que eu, Cezar e Deus (muito baixo) me sinto tão pequeno +como um grão d'areia! + +PETRONIO + +Só os grandes artistas se sentem pequenos deante da belleza! + +NÉRO + +Morro de aborrecimento, aqui! Ouve: imaginas que sou cégo ou idiota? +Pensas que não sei que por essa Roma pregam, todos os dias, inscripções +injuriosas, pelas esquinas? que me chamam matricida, assassino de meu +irmão, e de minha mulher? Que me chamam algoz, porque tenho morto a meus +inimigos?... Um homem bom póde ser cruel? + +PETRONIO + +Póde. + +NÉRO + +Eis o meu caso. Quando a musica acalenta a minh'a alma, eu sinto-me tão +bom como uma creança no bêrço. + +PETRONIO + +Os Romanos nunca vos souberam apreciar. + +NÉRO + +Os Romanos! Como eu odeio os Romanos! (Vai á meza beber. Anoitece mais) +Tigelino? + +VITELIO + +Sahiu. Disse que ia mandar accender as lampadas. + +NERO + +Ah! sim... Escurece. + +PITAGORAS + +Cezar, o cantico? (ao fundo) + +CEZAR + +Ainda é cêdo... (Desce a Petronio) Sou em tudo um artista. A musica +abre-me as portas d'uma prespectiva indizivel; devo aos Deuses o +explorar esse infinito! Para ascender ás regiões olimpicas não será +precizo, primeiro, praticar algum prodigioso acto propiciatorio? + +PETRONIO + +Não te entendo, Cezar. + +NÉRO, baixo + +Para abrir as portas do mundo desconhecido, eu quiz fazer o maior +sacrificio que pode fazer um homem: minha mulher... minha mãi... foi +para isso que ellas morreram! Mas é precizo um sacrificio ainda maior +para abrir as portas do Olimpo! Cumpra-se a vontade dos Oraculos! + +PETRONIO + +...Qual é o teu projecto? + +NÉRO + +Vais vêr... de aqui a pouco. (sobe) + +PETRONIO, aparte + +Extranho-o. + +NÉRO, bebe e desce + +Mas, antes, vê bem que ha dois Néros: um o que os homens conhecem; o +outro o que só tu conheces: o que mata como a Morte e o que delira como +Bacho! E, mata, porque odeia a baixeza, tudo o que é vil e lhe repugna +tudo o que não merece a vida! E mata e elimina!... Como a vida será +pequena quando eu desapparecer! + +PETRONIO + +Comprehendo o teu coração e as tuas máguas! + +NÉRO + +Como o meu coração é, por vezes, negro! Como este mundo e esta terra são +pequenos, mesquinhos, para mim! Mas, quanto eu puder, aniquilarei esta +vida, e esmagarei este mundo! + +(Subito Roma apparece incendiada por diversos lados. Ouve-se ruido ao +longe. Pitagoras, desce) + +PITAGORAS + +Cezar, Roma está a arder! + +PETRONIO + +Quê? + +TODOS, levantando-se e olhando + +A ardêr? + +NÉRO + +Ó Deuses immortaes!... eu vos dos dou graças!.. Posso em fim vêr uma +grande cidade em chammas! Posso acabar o meu canto! + +VOZES, do fundo + +Cezar? Cezar? + +NÉRO + +Ah! É agora o momento. A minha cithara? (Sobe) + +UM CENTURIÃO, entrando rapido + +Divino imperador? + +NÉRO + +Quê? + +CENTURIÃO + +A cidade é um oceano de chamas! Os homens cahem asfixiados! O terrôr +enloquece! + +NÉRO + +É a vontade dos Deuses! A minha cithara? (Trazem-lh'a. Terpnos, Diodoro +e os musicos correm) Ó Deuses, que espectaculo sublime! Graças, por +poder vêr, como Priamo, o incendio de minha patria! Agora, vou cantar! +(sobe) + +MARCOS + +Centurião, sabes tu se o bairro do Transtevero, foi invadido, já? + +CENTURIÃO + +Todo, Senhôr. Foi o primeiro. + +MARCOS + +Maldicção! Se ella morreu... (sahe, doido) + +(O incendio generalisa-se. De todos os lados do palacio corre gente para +o terraço. Néro sobe os degráus e de cithara em punho, acompanhado, canta) + +NÉRO + + Berço de meus pais, + Roma divina! + Quanto eras cara + Á minh'alma!... + +O ruido, ao longe, cresce. Ouvem-se os rugidos das féras. O panno desce. + +FIM DO SEGUNDO ACTO + + + + +ACTO TERCEIRO + + +QUADRO QUINTO + +Sala no palacio de Néro. Néro e Poppêa, Vinicio, Tigelino, Petronio, +Vitelio, Senecion e Vatino. + +NÉRO, descendo + +Ha tres dias que componho o meu poema. Não posso perder tempo. Sejamos +breves. Roma está exaltada? + +TIGELINO + +Gravemente. + +NÉRO + +A animadversão cresce? + +TIGELINO + +Cada vez mais. + +NÉRO + +O Senado? + +TIGELINO + +Indignadissimo contra ti. + +NÉRO + +Ó o Senado! Reedificarei a cidade! Dar-lhe-hei uma outra digna do povo +romano; que mais quer? + +TIGELINO + +Mas as miserias, as mortes causadas... + +NÉRO + +Não abri os meus jardins ao povo? Não tem elle que comer, á farta? + +TIGELINO + +Os pequenos estão satisfeitos. Os grandes... + +NÉRO + +É preciza uma decisão rapida. Que havemos de fazer, o que será +conveniente...? A tua opinião, Petronio. + +PETRONIO + +Vamos para a Grecia e depois para o Egypto. + +SENECION + +É facil partir: voltar é que não será tão facil. + +PETRONIO + +Por Hercules, voltaremos, se fôr precizo, á frente das legiões da Asia! + +NÉRO + +Assim, farei. + +TIGELINO + +Escuta-me, Cezar. O conselho é desastroso. Antes de chegares a Ostia, +rebentará a guerra civil. E sabes, tu, se algum vago descendente do +divino Augusto, se não se fará proclamar imperador? + +NÉRO + +Farei que nenhum exista. Tu sabes como. + +TIGELINO + +Mas será um outro. Hontem, os meus soldados ouviram dizer á multidão que +se devia proclamar alguem, como Thrazéias! + +NÉRO + +Povo insaciavel e ingrato! Que mais quer? + +TIGELINO + +A vingança. + +NÉRO + +A vingança?... quer victimas? (Pausa e silencio) Se nós lançassemos a +nova de que foi... (olhando-os) Vatino, quem incendiou a cidade? + +VATINO, empalidecendo + +Eu?... Quem sou eu, ó divindade...? + +NÉRO + +Tens razão. É preciso alguem mais importante. (circunvagando o olhar): +Vitelio! + +VITELIO, riso amarello + +As minhas banhas farão rebentar um novo incendio. + +NÉRO + +Tigelino?... Tigelino, fôste tu que incendiaste Roma! + +TIGELINO, audaz + +Por tua ordem, Cezar! + +NÉRO + +És meu amigo? + +TIGELINO + +Tu o sabes, Senhôr. + +NÉRO + +Bem. Sacrifica-te por mim. + +TIGELINO, hypocritamente + +Eu bem o quizera, Senhôr; mas não posso fazêl-o. (ironico) O povo +murmura e revolta-se. Queres tu que a guarda pretoriana faça o mesmo, +pelo seu chefe? + +UM ESCRAVO + +A divina Augusta deseja fallar-te, Tigelino. + +TIGELINO, a Cezar + +Permittis? (Cezar, faz signal aprovativo. Tigelino sahe) + +NÉRO + +Aqueci uma serpente no seio! (a Petronio) Vamos, falla tu. Confio em ti. +Tens mais senso do que todos elles juntos e és meu amigo. + +PETRONIO + +Vamos para a Grecia. + +NÉRO + +Esperava mais do teu juizo. Se parto quem me garante que o senado não +proclame outro imperadôr? O povo era-me fiel... não é. O senado!... Ah! +se este povo e este senado tivesse uma cabeça, só! + +PETRONIO + +Se queres conservar Roma, Cezar, é precizo deixares alguns Romanos. + +NÉRO + +Roma, os Romanos, que me importam? Escutar-me-hiam na Helada! Ao redor +de mim, aqui, não ha, senão traição! (subito) Petronio, a plebe murmura +pelas praças... se eu fôsse ao Campo de Marte e cantasse o meu hymno; o +que cantei durante o incendio... não poderia, eu, como Orpheu, encantal-os? + +VATINO + +A difficuldade, Cezar, era elles deixarem-te principiar. + +NÉRO + +Pois vamos para a Grecia. + +POPPÊA, entrando com Tigelino + +Ouve-me, Cezar. O povo quer uma vingança e uma victima! Que digo eu? +uma? centenas, milhares! Existem as que o devem sêr, devem-se-lhe. +Ignoras que na cidade se acoita um exercito de christãos? Não os +conheces? Não te fallei, eu, tanta vez dos seus crimes e das suas +infames cerimonias? das suas profecias segundo as quaes o mundo acabará +pelo fôgo? O povo, instintivamente, odeia-os e suspeita d'elles. Ninguem +os vê nos templos, no circo, nas corridas! Murmura contra ti e não +fôste, tu, Cezar, nem eu, quem incendiou a cidade! Foram elles! É +preziso dizêl-o. Viram-nos levando nas mãos as tochas incendiarias! O +povo tem sêde de vingança? dá-lha. O povo quer circo, quer sangue? +dá-lh'o! Conheces os culpados! manda! + +PETRONIO a Marcos, aparte + +A caça a Lygia. + +PETRONIO + +Coragem! + +NÉRO, levantando as mãos ao ceu + +Oh! Zeus, Appolo, Hera, Actréa, vós, todos, ó Deuses immortaes, porque +nos não socorresteis? Que tinha feito essa bella Roma, a esses energumenos? + +TIGELINO + +Vinga-a! + +VATINO + +Faz justiça! + +NÉRO + +Que castigo terrivel, que torturas serão bastantes para punir tal crime? +Com a ajuda das potencias do Tartaro, darei ao meu povo um tal +espectaculo, que d'elle se falará, em Roma, pelos seculos dos seculos! + +PETRONIO, aparte + +Que Cezar bandido! (olhando Marcos, que passeia louco) É precizo salvar +Lygia. Ou me perco, ou a salvo. (approximando-se galante, natural, +brincando com a tunica gracioso) Assim... encontrastes as victimas? bem; +mas escutai me. Tendes a auctoridade, tendes a guarda dos pretorianos, +tendes a fôrça! Então sêdes leaes. Entregai os christãos ao povo, +supliciais-os; mas confessai primeiro que não foram elles que +incendiaram Roma! Ha tambem uma elegancia da alma: como mestre de todas +as elegancias dir-vos-hei, que não supporto tão miseraveis comedias! +(Pasmo) Com relação a ti, Cezar, porque me tens fallado muita vez da +posteridade, reflecte o que ella dirá de ti! Pela divina Clio! +Néro-Senhôr do mundo, Nero-Deus queimou Roma porque era tão formidavel +na Terra, como Zeus no Olympo! Nero-poeta amou a tal ponto a poesia que +lhe sacrificou a Patria! Desde o principio do mundo, ninguem ousou +pensar em tão extraordinaria coisa! Tu o fizeste, esta gloria é tua, não +a renegues. Ao pé de ti o que será Priamo, Agamenon, Achilles? os +proprios Deuses? Coragem. Livra-te de abdicações indignas; porque então +a posteridade poderá dizer-te: Nero queimou Roma; mas tão pussilamine +Cezar, como pussilanime poeta, negou o facto, e atirou, cobardemente, a +falta por sobre os innocentes! Tal acção não honrará a tua memoria! + +TIGELINO + +Senhôr, dá-me licença para que sáia. Aconselham-te a lançares-te no +maior perigo: tratam-te de Cezar e poeta pussilanime, de comediante... +Os meus ouvidos recuzam se a ouvir mais. + +PETRONIO, aparte + +Cezar hesita? Estou perdido! (a Tigelino) Tigelino, a ti é que eu chamei +comediante, porque o és, ainda n'este momento. + +TIGELINO + +Porque não posso escutar as tuas injurias? + +PETRONIO + +Porque figuras um grande amôr por Cezar e ainda ha pouco, ouvimo-lo +todos e elle, o ameaçaste com a guarda de pretorianos. + +POPPÊA + +Cezar, como permittes que taes pensamentos venham a alguem e que esse +alguem os diga deante de ti? + +NÉRO + +É assim que tu sabes reconhecer a amizade que sempre te tive? + +MARCOS, aparte + +Petronio perdeu-se por mim! + +PETRONIO + +Se me enganei, Cezar, mostra-me o meu erro; mas sabe que te disse o que +me ditou a lealdade que, emfim, te devo! + +POPPÊA + +Renova os insultos. + +TIGELINO + +Punide-o, Senhôr. + +VATINO + +Castigai o insultadôr. + +VOZES + +Castigai-o! (affastam-se de Petronio) + +NÉRO + +Quereis que o puna? Foi sempre o meu companheiro e meu amigo! Feriu-me o +coração; mas quero que elle saiba que este coração só tem para os +amigos, o perdão. + +PETRONIO, aparte + +Conheço o teu perdão! (alto) Cezar! (inclinando-se, faz signal a Marcos, +e sahem.) + +POPPÊA + +Quereis ouvir as testemunhas? + +NERO + +Que venham. + +Um escravo sahe e traz dois rabinos de longas togas e mitras, um escriba +e Chilon. + +1.º RABINO + +Salve, monarcha dos monarchas, rei dos reis! + +2.º RABINO + +Salve, Senhôr do mundo! + +CHILON + +Salve, Cezar, Leão entre os homens! tu cujo reino é semelhante á +claridade do sol, ao cedro do Libano, ao balsamo de Jerichó! + +NÉRO + +Accusais os christãos de terem incendiado Roma? + +1.º RABINO + +Nós, Senhôr, só os accusamos de serem inimigos dos homens, e inimigos de +Roma. De terem muita vez ameaçado a cidade e o mundo, com o fogo do céu! +O resto dil-o-ha este homem, de cujos labios nunca sahiu a mentira, +porque nas veias de sua mãi corria o sangue do povo escolhido! + +NÉRO + +Quem és, tu? + +CHILON + +O teu cão fiel, divino Osiris! Um pobre estoico! + +NÉRO + +Detesto os estoicos: o seu desprezo pela arte e a sua linguagem +repugnam-me; como a sua miseria e falta d'aceio. Por isso mandei matar +Musonio... + +CHILON + +Senhôr, eu sou um estoico por necessidade. Cobre o meu estoicismo, ó +Resplandecente, com uma corôa de rozas e poê-lhe, deante, uma taça de +vinho e elle cantará Anacréonte! + +NÉRO + +Gosto de ti. + +TIGELINO + +Vale quanto peza. + +NÉRO + +Que sabes dos christãos? + +CHILON + +Permittir-me-has que chore, divino Cezar? + +NÉRO + +Não. Aborrecem-me as lagrimas. + +CHILON + +E terás, cem vezes, razão; porque os olhos que te viram uma vez, não +devem chorar nunca. + +NÉRO + +Falla dos christãos. + +CHILON + +Ouve, divino Isis! De creança me dediquei á filosofia e procurei a +verdade. Procurei-a na academia de Athenas e na de Alexandria. Tendo +ouvido fallar da doutrina dos christãos, julguei que fosse uma escola +onde achasse algumas parcellas da verdade. Relacionei-me com elles e, +por minha desgraça, o primeiro que conheci foi um tal Glaucos, medico de +Napoles. Sube por elle, que adoravam um certo Christo que promettera +exterminar os homens e aniquilar todas as cidades da Terra. Por isso +odeiam os homens, envenenam as fontes e em suas assembléas cobrem de +improperios os templos onde adoramos os nossos Deuses. Christo foi +crucificado, mas prometeu-lhes que no dia em que Roma fosse destruida, +voltaria á terra, a dar-lhes o reino promettido. + +NÉRO + +Então é a occasião. + +POPPÊA + +O povo comprehenderá porque Roma foi queimada. + +CHILON + +Muitos o sabem já, divina Augusta! N'isso se falla nos Jardins, no Campo +de Marte, a toda a hora. O povo levanta-se, sedento de vingança! Essa +vingança será a minha. + +NERO + +Porquê? + +CHILON + +Ouvide, divino Cezar! Glaucos, o medico, não me ensinava que a doutrina +christã ordenasse que se odiassem os homens; pelo contrario dizia que +esse Christo era uma bôa divindade e que a base da sua doutrina era o +amôr. Amei Glaucos e tanto d'elle confiei que com elle partilhava o meu +pão e o meu dinheiro. Um dia, entre Napoles e Roma, deu-me uma punhalada +e vendeu-me a mulher, a minha Berenice, tão formosa e tão bella! a um +mercadôr de escravos! + +POPPÊA + +Pobre homem. + +CHILON + +Chegado a Roma procurei os seus chefes para obter justiça contra +Glaucos. Nada obtive; mas fiquei conhecendo o apostolo Pedro, o apostolo +Paulo, o filho do Zebedeu, Crispo e muitos outros. Sei onde habitavam, +antes do incendio e onde se reunem. Posso indicar o subterraneo do +Vaticano e o Cemiterio d'Ostrianum. N'este, ouvi pregar o apostolo +Paulo. Vi Glaucos degolar creanças para que o apostolo derramasse o +sangue sobre a cabeça dos neophitos e ouvi Lygia, a filha adoptiva dos +Plaucios, gabar-se de ter enfiteiçado a tua filha, divina Osiris! e a +tua, ó Isis, a pequenina Augusta! + +POPPÊA + +Cezar, vinga a nossa filha! Ouves, Cezar? + +NÉRO + +Por Hercules! + +CHILON + +Ouvindo isto quiz apunhala-la. Impediu-m'o o nobre consul Marcos Vinicio +que estava ao seu lado e que a ama! + +NÉRO + +Quem? + +CHILON + +O consul Marcos Vinicio. + +NÉRO + +É christão? Oh! a tragedia degenera em farça! + +CHILON + +Senhôr, pela luz que vêm de ti, te juro que o é. Como o é Pomponia, o +pequeno Aulo, Lygia, Ursus, Lino e milhares d'outros, cujos templos +secretos posso indicar! As vossas prisões não chegarão para os conter! + +POPPÊA + +Cezar, vinga a nossa filha. Ordemna. + +CHILON + +E, appressai vos, aliás, o consul Marcos Vinicio terá tempo de a +esconder. Sahiu correndo... dir-vos-hei a caza... + +TIGELINO + +Dou-te dez homens. Vai lá immediatamente. + +CHILON + +Dez homens... com Ursus lá dentro... nem de longe! + +NÉRO + +Tigelino, entrego-t'os. + +POPPÊA + +E, nossa filha, Cezar? + +NÉRO + +Por todos os Deuses que será vingada! Oh, os christãos! não deixarei um +sobre a face de Terra! Os leões de Numidia e os tigres de Hircania terão +o mais lauto banquete de que ha memoria, na historia do mundo! + +UM ESCRAVO, entra appressado + +Cezar, um velho que se diz ex-centurião da Judêa pede para te fallar. + +NÉRO + +Que quer? + +ESCRAVO + +Não o disse. Quer fallar a Cezar... + +NÉRO + +Entre quem seja. + +PAULO, entra, com ar rude + +És tu o Cezar? + +NÉRO + +Creio que sou. E, tú, quem és? + +PAULO + +Paulo de Tarso! + +NÉRO + +Não conheço; mas falla... Estou hoje de bom humôr... Vens da Judêa? + +PAULO + +Lá estive, pela segunda vez, depois de percorrer a Lygia, a Cilicia e a +Galacia. Depois de ter fundado a egreja de Thessaloníca e de ter prégado +em Athenas e em Corintho. + +NÉRO + +Prégado, o quê? + +PAULO + +A religião de Christo, nosso Senhôr, meu e teu! + +NÉRO + +És christão? É o primeiro que vejo... + +PAULO + +Pela graça de Deus. + +NÉRO + +Qual Deus? + +PAULO + +O unico que ha. Que está no céu! e que um dia desceu á Terra e morreu +pelos nossos pecados e pela nossa remissão! + +NÉRO + +Tambem por mim? + +PAULO + +Por todos. + +NÉRO + +Ignorava que devia esse favor a teu Deus! Séneca nunca me fallou d'essa +divindade! Encarrego-te de lhe agradeceres por mim! + +PAULO + +O meu Deus é superior ás tuas zombarias... + +NÉRO + +Mas o que queres, tu, afinal, com o teu Deus? É para me fallares d'elle +que aqui vieste? + +PAULO + +Em seu nome. + +NÉRO + +És christão. Vens pedir o perdão para ti e para os teus? + +PAULO + +De quê? + +NÉRO + +Do seu crime. + +PAULO + +Qual crime? + +NÉRO + +O de terem incendiado Roma. + +PAULO + +Gritam isso nas praças, vós o espalhastes! A plebe miseravel, sedenta de +sangue, pede para elles o circo e a fogueira! + +NÉRO + +E tel-a hão. + +PAULO + +Porquê? + +NÉRO + +Porque fôram elles... + +PAULO + +Que... + +NÉRO + +... Incendiaram a cidade. + +PAULO + +Néro, Imperadôr dos Romanos, Rei do mundo, Cezar augusto... mentes! (Vai +a lançar-se a elle) + +NÉRO + +Deixai. Velho, tu és um doido por fôrça. + +PAULO + +Chamo-me Paulo e sou apostolo de Christo! + +NÉRO + +É poderoso o teu Deus. Só assim... + +PAULO + +Tu o vês. Tu és Cezar, cercado dos teus, defendido pela tua guarda +pretoriana, tendo ao teu dispôr, dezenas de legiões: eu sou Paulo, um +velho cujas pernas tremem no andar, cujos braços oscilam quando ora, e +eu faço, pelo meu Deus,--o que tu não serias capaz de fazer pelos teus +falsos Deuses--rio-me de ti, de teu poder, porque elle não alcança mais +do que até á morte! + +TIGELINO + +É o maior alcance. + +PAULO + +Não é nenhum. A vida da terra é transitoria e mesquinha: só é grande a +que vem depois da morte: infinita, eterna! + +NÉRO + +Quem t'a garantiu? + +PAULO + +O meu Deus; que eu vi morrer na Cruz, no Calvario, ao pé de Jerusalem, +para nol-a dar em troca! O que prégou a egualdade na Terra, o que +amaldiçoou o despota e levantou o escravo; o que prégou o desprezo da +carne e santificou a alma! O que condemnou, ó Romanos, a vossa luxuria +tôrpe, a vossa prostituição feita de todas as abominações e infamias! O +Deus dos Christãos! Aquelle que fez com que eu, o mais humilde dos seus +pastores, vos fale como se fôra o vosso imperador e elle... o +verdadeiro, pense... + +NÉRO + +No supplicio a inventar de que sejas digno, divino apostolo! + +PAULO + +Todos me agradam, Nero. Desde o harpão dos teus gladiadores, até aos +dentes das tuas feras! Está assente para mim... agradeço-te! Mas ha uma +legião de pobres que nunca te fizeram mal; que vivem felizes na +humildade das suas crenças com o seu Deus e que, como elle ensinou, dão +a Cezar o que é de Cezar e a Christo o que é de Christo! Nunca +perturbaram os teus prazeres, nunca disputaram o teu poder, nunca +insultaram publicamente os teus affectos, nem tentaram contra a tua vida +ou a dos teus. Innocentes d'um crime de que os accusam, só podem +defender-se, morrendo! São fracos, humildes, ignorados! Não carregues a +tua memoria com crimes inuteis; porque, em verdade te digo, que se o +fizeres terás de responder por elles... + +NÉRO + +Ante quem? + +PAULO + +Ante o nosso pae, que está no céu! + +NÉRO + +Cala-te. + +PAULO + +Cezar, disse! + +NÉRO + +De mais. Tigelino mette-me na cadeia esse apostolo, esse pastor, a vêr +se o tal poderoso Deus o tira de lá. (A Paulo) E, quanto ás tuas +ovelhas, prepara-te para vêres, no Circo, como os leões lhes tosquiam a lã. + +PAULO + +Não ha piedade na tua alma, Cezar? + +NÉRO, ironico + +Não sou um Deus... + +PAULO + +Não. Ha um, só! E, em nome d'elle, eu te amaldiçôo! Assassino de tua mãe +e de tua irmã! Anti-Christo! O abysmo abre-se a teus pés! a morte vae +empolgar-te! o tumulo abre a guella para te engulir! Amaldiçôo-te, +cadaver vivo! porque morrerás no espanto e no terrôr! e serás condemnado +por todos os seculos dos seculos sem fim! (Agarram-no) Maldito sejas, +assassino! incendiario! matricida! + +TIGELINO, vae a matal-o com o estylete + +Cala-te, velho! + +NÉRO + +Tem audacia, por Jupiter! Guarda-m'o para o circo, quero vêr como é +feito, por dentro, um apostolo christão! + +(Os escravos levam-no, arrastado) + +Emfim, consegui distrahir-me, hoje. Vamos jantar. + +Dá o braço a Poppêa. Vão sahindo. + +O PANNO DESCE + + +QUADRO SEXTO + +Jardim de Petronio. + +PETRONIO, inspeccionando as mezas e flôres + +Poucas flôres. O calôr do incendio chegaria a Cumes? + +O INTRODUCTOR + +Procura-te um servo de Numa, com uma carta. + +PETRONIO + +Vem de Roma? + +O SERVO, entrando + +De Numa. (da-lhe um rolo de pergaminho) + +PETRONIO + +Como vai o teu senhôr? + +O SERVO + +Bem, nobre Petronio. + +PETRONIO, lêndo + +.......... «Aviso-te de que receberás, em breve, ordem de não abandonar +Cumas e dias depois a de te abrires as veias... Eis o que está decidido +no palacio de Cezar... Vale. Séneca.» Virá atrazada a ordem. Licio, +dirás a teu amo que lhe agradeço a carta e que já estava prevenido. +Leva-lhe esta taça (dá-lhe uma d'oiro) como recordação minha e penhôr de +nossa longa amizade. (o servo sahe) (ao escravo) Chama Eunice. (rindo) +Julgava, talvez, surprehender-me esse bandalho de Cezar! Como se eu lhe +não conhecesse as manchas de toda a vida! Como não respondi, logo, á sua +carta, decidiu-se. Pois ha-de agradar-lhe a resposta. (Entra Eunice, de +branco. Petronio, senta-se) Vem Eunice; abraça-me e beija-me! Amas-me? + +EUNICE + +Se fôsses um Deus, não te amaria mais. (ajoelha-se-lhe aos pés) + +PETRONIO + +E tu sabes a quem deves o meu amôr? + +EUNICE + +A ti, á tua bondade! + +PETRONIO + +E a Chilon. + +EUNICE + +A Chilon? + +PETRONIO + +Não te vendeu elle dois fios da cinta da Vénus de Chypre? + +EUNICE + +Oh, o charlatão! Ninguem pode modificar a vontade dos Deuses? + +PETRONIO + +Nem mesmo o nobre Chilon? + +EUNICE + +Nobre? + +PETRONIO + +É hoje um dos companheiros de Néro. Uma arma de Poppêa. Delatou os +christãos. + +EUNICE + +Oh, o infame! + +PETRONIO + +Tal imperadôr, tal côrte! (acaricia-lhe a cabeça) Mas tu és, +verdadeiramente, bella, Eunice. + +EUNICE + +Meu Senhôr! + +PETRONIO + +Feliz aquelle que, como eu, encontrou o amôr habitando em tal corpo! +Parece-me ás vezes que sômos duas divindades! Nem Lyzias, nem +Praxiteles, criaram, nunca, linhas tão bellas! Não ha marmore mais +quente, mais rozado do que o do teu collo! (Toma um punhado de violetas +e deita-lh'o pela cabeça e hombros) Eis o que os christãos querem +abolir: o culto da belleza! Um selvagem não criaria uma tão ridicula +filosofia. Trata sempre o teu corpo bello, como um dom divino! Sê sempre +Deusa, bella, adoravel, Eunice! (Beija a) + +EUNICE + +Tu és tão bom, meu senhor, tão bom, que eu quizera ser realmente uma +Deusa... e tua escrava, como sou! + +PETRONIO + +Enganas-te. Tu não és minha escrava: pertencem-te esta casa, estes +jardins, os meus escravos, os campos e os rebanhos. + +EUNICE + +A mim? + +PETRONIO + +A ti. Libertei-te ha muito. Nada te disse. O consul dispensou a tua +presença. Fiz-te, sem saberes, os meus presentes de nupcias. + +EUNICE, beijando-lhe as mãos + +Meu senhor e para quê? + +PETRONIO + +Porque vamos talvez separar-nos. + +EUNICE, levantando-se + +Como, senhor? + +PETRONIO + +Socega... terei de fazer uma longa viagem... + +EUNICE + +Leva-me comtigo. + +PETRONIO + +Não posso. + +EUNICE + +Não podes? + +PETRONIO + +É uma desconhecida viagem... que se tem de fazer, só! + +EUNICE, receiando comprehender + +Só? + +PETRONIO + +Só! + +EUNICE, comprehendendo + +Petronio! meu senhor. (Joelha de novo). + +PETRONIO, respondendo á pergunta, muda, do olhar de Eunice + +Sim! + +EUNICE + +Que desgraçada sou! Os deuses não permittirão... + +PETRONIO + +Eunice, eu quero morrer... como me compete! + +EUNICE + +Comprehendo, meu senhor. (Domina-se completamente.) + +PETRONIO + +Tu és bella, livre, rica! A mocidade e a belleza tem os seus direitos. +Lembra-te de mim... com amor! + +EUNICE + +Não, meu senhor, eu não sou rica nem livre. Não o quero ser. Sou a tua +escrava! + +PETRONIO + +Então eu serei o escravo da minha escrava. (Acaricia-a) Eunice, faz +servir o jantar. (Dão um longo beijo.) Que a belleza seja sempre adorada! + +EUNICE + +E a bondade! + +Eunice sahe e volta com Nerva, Lucio, Octavia e Julia. Ao entrar uns +adolescentes coroam-nos de rozas. Trazem-se perfumes. Ha uma orchestra +invisivel. + +TODOS + +Salve, Petronio. + +PETRONIO + +Salve, salve. + +Reclinam-se. Os escravos servem. + +JULIA + +Que noticias de Roma? + +PETRONIO + +Cesar mandou-me chamar. + +JULIA + +É teu amigo, Cezar. + +PETRONIO + +Muito. + +OCTAVIA + +Acaso serás tu, agora, o querido dos homens, como tens sido sempre o das +mulheres? + +PETRONIO + +Que os Deuses se amerciem de mim, formosa Octavia. Na minha edade! (Riem). + +NERVA + +E, não vais? + +PETRONIO + +Não vou. + +LUCIO + +Ficarás então em Cumas? + +PETRONIO + +Para sempre. + +OCTAVIA + +E o imperador? + +PETRONIO + +Que cante e dance. + +JULIA + +É a sua maneira de descançar. + +PETRONIO + +É; porque para se fatigar vae matando os christãos. + +NERVA + +A perseguição continúa? + +PETRONIO + +Cada vez mais terrivel. + +OCTAVIA + +Haverá, ainda, muitas tardes de circo? + +PETRONIO + +É natural. Os christãos são já aos milhares, em Roma, como em outras +cidades da Italia, na Grecia e na Asia. Ha-os entre os legionarios, +entre os pretorianos, nas melhores familias de Roma. + +NERVA + +Dizem que nunca houve tres tardes de circo, como as dos christãos! + +PETRONIO + +Nunca! + +JULIA + +Estiveste em todas, Petronio? + +PETRONIO + +Em todas. + +OCTAVIA + +Amas o espectaculo? + +PETRONIO + +Não: necessitava de lá estar. + +LUCIO + +Conta-nos. + +PETRONIO + +Nenhum de vós esteve em Roma? + +NERVA + +Nenhum; creio. + +PETRONIO + +Pois foram celebres as tardes. Nero lançou a ordem de prisão. +Agarraram-se homens e mulheres, velhos e novos, creanças e virgens! Na +primeira tarde, vestiram-nos com pelles de animaes e largaram-lhes os +cães fulvos de Peleponéso e os molossos zebrados dos Pyrenéus, +esfaimados, de dias. As prezas, porém, eram extranhas, e os cães +hesitaram no attaque. Mas logo que o primeiro enterrou os dentes na +espadua d'uma rapariga, os outros, ao verem sangue, cahiram sobre o +monte dos christãos, ajoelhados! Então, por entre as convulsões, os +estertores de agonia, os uivos dos mastins, ouviam-se vozes, que diziam: +pelo Christo! pelo Christo! As feras mutilavam e, sobre a arena, corria +em rêgos o sangue entre membros decepados e os corpos sedentos dos cães +insaciaveis! O cheiro do sangue e dos intestinos abertos cobriu os +perfumes da Arabia e encheu o circo! Os cães não venciam a tarefa. O +povo rugindo, em delirio, pediu os leões. Viram-se então cabeças +desapparecer em guellas vermelhas, peitos abertos com um roçar de garra, +corações e ventres extravazados, e o ruido dos ossos triturados por +maxillas de ferro! O povo esmagava-se, descendo as bancadas, para vêr +melhor: os leões enchiam de trovões as arcarias do Circo! + +OCTAVIA + +E acabou? + +PETRONIO + +Não. Havia ainda muitos vivos. Abriram-se as jaulas e sahiram os tigres +do Euphrates, as pantheras de Java, ursos, lobos, hyenas, chacaes! A +scena perdeu toda a apparencia de realidade! Entre os gritos, os urros, +os rugidos, ouviam-se gritos, aqui e ali, pelas bancadas, gritos, entre +dentes, de mulheres em espasmo, cujas forças se iam exgotando! +Empallideciam os rostos e vozes gritavam: basta! basta! Um exercito de +Numidas, armados de flechas, fez recolher as féras. Limpou-se a arena; +as fontes jorraram aguas perfumadas e uma nuvem de adolescentes, +vestidos de amôres, encheu o circo de petalas de rosas! Caso extranho e +unico no circo: Nero desceu á arena, tomou a cithara e cantou um hymno! + +LUCIO + +E foi applaudido? + +PETRONIO + +Como sempre. + +OCTAVIA + +A mim era-me impossivel assistir a uma tarde de circo. + +JULIA + +E tu, Petronio, cujo gosto e prazeres teem um tão grande cunho de +elegancia e de delicadeza... + +PETRONIO + +Comecei por dizer, bella Julia, que precisava de lá estar. + +NERVA + +E, a segunda? + +LUCIO + +Conta-nos a segunda. + +PETRONIO + +Foi menos interessante. Limitaram-se a queimar muitos e a sacrificar os +restantes. Todo o prazer do espectaculo, para quem o achava, estava em +gozar a morte lenta, a agonia das victimas! (Reparando) Por Pollux, eu +deixo de contar, se apenas empregaes os vossos sentidos em me ouvir. + +NERVA + +Escutamos-te e comemos, ao mesmo tempo. + +PETRONIO + +Mas não bebeis. (faz signal; os escravos enchem as taças) + +LUCIO + +Conta a terceira. + +OCTAVIA + +É mais curiosa, a terceira tarde? + +PETRONIO + +Terrivelmente curiosa, para mim. Foi de noite. Na noite a seguir áquella +em que Néro passeiou, entre crucificados christãos, breados, a arder, +pelos jardins! + +JULIA + +Que crueldade! + +PETRONIO + +E quê cheiro! A peripecia extranha foi esta. Quando soaram as cornetas, +correu-se a grade d'um subterraneo e um homem colossal, um Lygio, de +côxas herculeas e braços, os musculos do peito que pareciam dois escudos +unidos, tal era o relêvo, appareceu, na arêna! Quando se esperava que +inimigo lhe dariam, abriu-se a grade fronteira e um toiro da Hespanha, +negro como a noite, rompeu pelo circo, trazendo, atado ás hastes, no +cachaço, o corpo semi-nú d'uma virgem christã. Lygia! rugiu o escravo ao +conhecer a rapariga! Lygia, tem coragem!... E, de espinha curva, rapido, +cortando a terra, o olhar em braza, as mãos em garra... aproximou-se do +toiro, e d'um salto, cahiu-lhe na frente, agarrando lhe os cornos! +Fez-se um silencio profundo! Ouvir-se-hia o vôo d'uma môsca! Homem e +toiro quedaram se na imobilidade do marmore, semelhantes a um trabalho +d'Hercules, esculpido! Para se libertar do jugo, o toiro, fincando-se +nas patas, dobrou-se, em arco: turgiam-se os musculos do homem a estalar +a pelle que se fazia purpura! No peito de Néro, como no das vestaes, +como nos do povo inteiro, os corações saltavam! Corria o suor pelas +testas! A palavra expirava nos labios! Homem e toiro, n'um suprêmo +esforço, dir-se-hiam pregados no solo! Estes momentos duraram séculos. +Subitamente, ouviu se como um vagido surdo, e, como n'uma allucinação, os +olhos viram a cabeça da fera, voltar, voltar, quasi imperceptivelmente... +Ouvia-se o respirar offegante do homem; mas a cabeça do toiro continuava +a voltar-se, lentamente, lentamente... quando, de subito, da bôcca +sahe-lhe, pendida a lingua cheia de baba! Um momento mais... um ranger +de vertebras... e n'um tremôr subito, o olhar baço, o pescoço estendido, +como uma massa inerte, o toiro cahe!... morto! + +NERVA + +Por Jupiter, eis ahi um homem! + +JULIA + +Por Venus! + +LUCIO + +Por Hercules! + +OCTAVIA + +E, foram perdoados? + +PETRONIO + +O povo ergueu-se pedindo-o. Néro recuzava, quando, de subito, um bello +rapaz, um guerreiro, salta á arena, rasga a tunica no peito, para +mostrar as cicatrizes das batalhas e levanta os braços para o povo, +cobrindo com o manto o corpo nú da christã. O povo rugiu improperios e +Néro, com mêdo, cedeu. + +JULIA + +Quem era esse mancebo? Um amante? + +PETRONIO + +Um apaixonado, que a pretendera arrancar á prizão que tentava salval-a, +ainda, nos subterraneos do circo, e que, sem esperança, estava a meu +lado, branco como um cadaver! + +JULIA + +Chamava-se? + +OCTAVIA + +Quem era? + +PETRONIO + +Marcos Vinicio, o filho de minha irmã. Eis porque vos disse do começo, +bella Octavia, que precizava de lá estar. + +JULIA + +Que tormentos d'amante! + +PETRONIO + +A felicidade é como a vida: nasce entre dôres! + +NERVA + +Que é feito d'elles? + +PETRONIO + +Cazaram e foram para o campo, para a beira mar, afogar em beijos os +terrôres e lagrimas passadas! + +OCTAVIA + +Que os Deuses os protejam. + +PETRONIO + +Pois brindemos aos Deuses pela sua felicidade. (bebem) + +JULIA + +Amava-lo muito, Petronio? + +PETRONIO + +Tanto, que arrisquei, por elle, o favôr de Cezar! + +NERVA + +Como? + +PETRONIO + +Defendendo os christãos. + +LUCIO + +Os christãos? + +PETRONIO + +Os christãos que me importavam? Defendia Lygia e Marcos. + +NERVA + +Espantava-me que defendesses os Deuses estranhos. + +PETRONIO + +Nem os estranhos, nem os nossos. + +LUCIO + +Não amas os nossos Deuses? + +PETRONIO + +Muito... para figuras de rethorica! + +OCTAVIA + +O que amais então no mundo, elegante sceptico? + +PETRONIO + +As arvores e as flôres; as joias e os perfumes; as estatuas de +Praxiteles e os bronzes de Corintho; os vinhos velhos da Grecia e as +mulheres novas... de toda a parte. + +JULIA + +Tendes amado muito. + +PETRONIO + +E, ainda os livros, a poesia, os versos--excepto os de Néro--. + +OCTAVIA + +Dizem que os scepticos são, sempre, alegres. + +PETRONIO + +Será por isso que me esforcei por viver, sempre, alegremente, e o farei +até ao fim... o que será facil... agora! (tomando a taça) Á Rainha de +Chypre! por Eunice! + +NERVA + +Aos Deuses, pela felicidade de Petronio! + +EUNICE, aparte a Petronio + +Ao meu senhôr! (bebem os dois, sós) + +PETRONIO, levantando-se um pouco sobre o leito + +Amigos, perdoai-me o fazer-vos um pedido: eu quizera que cada um de vós +se dignasse de acceitar a taça com que brindou aos Deuses e á minha +felicidade. (toma a taça) Eis a taça do meu brinde á rainha de Chypre, +por Eunice. Nenhuns outros labios beberão por ella; nenhuma outra mão +ousará levantal-a, em honra de outra divindade! (atira-a ao chão e +parte-se: espanto) Amigos, alegrai-vos. A velhice é a triste companheira +dos nossos ultimos annos. Dou-vos um exemplo e um conselho. + +NERVA + +Que queres fazer? + +PETRONIO + +Gozar, beber, contemplar as fórmas divinas que repoisam a meu lado e +adormecer, emfim, n'um sonho, cercado de rozas. Fiz já as minhas +despedidas a Cezar. Ouvide o que lhe mandei dizer, no meus adeus. (tira +um rolo e lê) «Sei, divino Cezar, que me esperas impacientemente e que +para premiares a minha ida para junto de ti, não duvidarias dar-me o +comando das tuas guardas e fazer de Tigelino um almocreve, officio para +que parece ter sido creado pelos Deuses! Pelo Hades e em particular +pelos manes de tua mãi, de teu irmão, de tua mulher, juro-te que me é +impossivel ir. A vida é um thesoiro de que eu sube extrahir as mais +preciosas joias; mas tem coisas, tambem, que confesso sou incapaz de +suportar até ao fim! Não vás pensar que me indignou o assassinato de tua +mãi, de teu irmão, de tua mulher; que me revoltei contra o incendio de +Roma; que me offendeu o teu processo de matar todos os homens honrados +de teu imperio! Não; mas por largos annos ainda, deixar-me esfolar os +ouvidos pelo teu canto, vêr as tuas pobres tibias escoicear nas danças +pirricas, ouvir-te tocar, declamar, recitar a teu modo--pobre poeta +d'agua dôce--semelhante perspectiva é superior a minhas fôrças. Resolvi +morrer! Roma tapa os ouvidos; o universo cobre-te de gargalhadas! E, eu? +eu não quero mais envergonhar-me de ti! O ladrar de Cerebero ser-me-ha +menos penoso: não sou amigo d'elle, não tenho de córar pela sua voz! +Goza e passa bem, mas deixa-te de musica! assassina, mas não faças +versos! envenêna, mas para-te de dançar! incendeia as cidades, mas deixa +em paz a cithara! Tal é o conselho do teu amigo, Petronio.» (dá o rolo +ao escravo) Queima esta carta e manda entrar o médico. + +NERVA + +... Mas é a morte! + +LUCIO + +E, nós...? + +PETRONIO, rindo sereno + +Nada receieis. Nenhum tem necessidade de dizer que ouviu ler esta carta. +(Faz signal ao medico que entra. Este passa-lhe no pulso uma anilha de +oiro e com um estylete abre-lhe a veia radial). + +EUNICE + +Senhor, se os Deuses me dessem a immortalidade, se Cezar me desse um +imperio, para te deixar, eu não faria nunca! Tenho pois o direito de ir +comtigo... concede-m'o! + +PETRONIO + +Tu amas me, verdadeiramente, divina! Vem commigo, pois, se assim o queres. + +EUNICE, alegre, estendendo o braço ao medico + +Abre. (O medico faz o mesmo. O sangue corre. Eunice inclina se sobre o +peito de Petronio). + +PETRONIO + +Phalerno! (Um escravo deita-lh'o) Servide antes, ás damas, o xaroposo +Careno, ou o opalino Chio, que convida a amar! (Inclina se para Eunice) +Não queres tu, Divina, que bebamos, na tua taça, pela ultima vez, aos +Deuses, por toda a felicidade que nos deram? + +EUNICE + +Sim, meu senhor. (Bebem os dois). + +O INTRODUCTOR + +Marcos Venicio e Lygia. + +PETRONIO + +Bem vindos! (Ao medico) Não posso morrer ainda; estanca-me o sangue. (O +medico liga-lhe o pulso, rapido). + +MARCOS, entra + +Salve senhores! salve Petronio. + +TODOS + +Salve Marcos! + +TODOS + +Salve Lygia! + +NERVA + +Salve, formosa Lygia! + +PETRONIO aos dois que chegam junto d'elle + +Salve! Salve! (Os escravos trazem duas cadeiras. Marcos e Lygia +sentam-se). Que vieste fazer a Cumes, Marcos? + +MARCOS + +Escrevemos-te. Queriamos que fosses passar comnosco uns tempos na nossa +casa da Sicilia. A tua carta entristeceu-nos. Resolvemos vir-mos +buscar-te. És preciso á nossa ventura! + +PETRONIO + +Admiro o teu coração: como me admira que dois noivos se possam lembrar +d'um amigo ausente. + +LYGIA + +Tu és para nós muito caro. Devemos-te a maior parte da nossa felicidade! + +PETRONIO + +Foi o vosso Christo quem vos salvou! (Levemente ironico). + +LYGIA + +Não rias... + +PETRONIO + +Oh, não; mas é preciso confessar que Ursus e o povo romano tambem +fizeram alguma coisa para o caso. + +MARCOS + +Vem comnosco, Petronio. + +PETRONIO + +Não, feliz esposo da princeza Aurora: se eu tivesse desejo de ir para +onde me queres levar, eu não o poderia fazer. Se alguma coisa depois da +morte--ao contrario da opinião de Pyrrhon--subsiste e vive, a que +animava o corpo da minha bella, de cabellos d'oiro, a minha Eunice, +espera-me! (Indicando-a) Está morta! (Arranca a facha do pulso e aperta +Eunice contra o peito). + +MARCOS + +Petronio! + +LYGIA + +Meu amigo! + +PETRONIO + +Não vos afflijaes! Para vós nasce a aurora da vida, para mim, pôz-se já +o sol, cerca-me o crepusculo! Tinha de ser: conheces Néro, comprehendes +o resto. Vivi como quiz, morro como me apraz! Não vos afflijaes! A morte +é um episodio da vida! Já vês, Marcos, que te enganas, se pensas que só +o teu Deus dá a tranquillidade na morte! Vê como morro tranquillo. +Platão diz que a virtude é uma musica e a vida do sabio uma harmonia! Se +assim é, vivi e morro virtuoso. (Toma a taça) Permitte, virtuosa Lygia, +que me despeça de ti, com as palavras com que te saudei, na primeira vez +que nos vimos. «Vi durante a minha vida povos sem conto, mas uma mulher +que te egualasse, eu não vi nunca!» (Aos dois) Se eu tenho uma alma, +ella irá poisar junto á vossa casa, na forma d'uma borboleta, ou, como +querem os egypcios, na de um falcão. Só, assim, irei. (Levantando a taça +e todos) O ultimo brinde aos noivos. (A voz enfraquece levemente) Que a +terra de Sicilia se metamorfoseie para vós n'um jardim dos Hesperides, +que os Deuses dos campos, dos lagos, das fontes, façam nascer as flores +sob os vossos pés, e que em todos os acanthos dos vossos pyristilos +vivam e noivem, eternamente, as pombas brancas! (Bebe e todos. +Inclina-se a beijar a cabeça d'Eunice). + +O INTRODUCTOR + +Um servo de Numa. + +PETRONIO + +Outro? + +O SERVO + +Nobre Petronio. Chego de Roma a toda a brida, mandado por Numa, meu +senhor, dizer-te... + +PETRONIO + +O quê? + +O SERVO + +Revoltou-se Vindex, com as legiões da Galia. A guarda pretoriana, +amigos, escravos, todos abandonaram Cezar. Todos fugiram do palacio e o +deixaram só! Só, de mêdo, suicidou-se! + +PETRONIO + +É tarde! (Desmaia e morre sobre a cabeça de Eunice). + +MARCOS + +Que dôr! + +VOZES + +Mortos! O bom Petronio! A bella Eunice! + +MARCOS + +Sabeis, vós, amigos, o que morreu? O mundo romano: a Graça e a Belleza! + +LYGIA, joelhando + +Ó Christo! tende piedade das suas almas! + +(O PANNO DESCE, LENTO) + +FIM DO TERCEIRO E ULTIMO ACTO + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Petronio, by Marcelino Mesquita + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PETRONIO *** + +***** This file should be named 28154-8.txt or 28154-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/8/1/5/28154/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project +Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you +charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you +do not charge anything for copies of this eBook, complying with the +rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose +such as creation of derivative works, reports, performances and +research. They may be modified and printed and given away--you may do +practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project +Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement +and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic +works. See paragraph 1.E below. + +1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" +or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project +Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the +collection are in the public domain in the United States. If an +individual work is in the public domain in the United States and you are +located in the United States, we do not claim a right to prevent you from +copying, distributing, performing, displaying or creating derivative +works based on the work as long as all references to Project Gutenberg +are removed. Of course, we hope that you will support the Project +Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by +freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of +this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with +the work. You can easily comply with the terms of this agreement by +keeping this work in the same format with its attached full Project +Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. + +1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern +what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in +a constant state of change. If you are outside the United States, check +the laws of your country in addition to the terms of this agreement +before downloading, copying, displaying, performing, distributing or +creating derivative works based on this work or any other Project +Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning +the copyright status of any work in any country outside the United +States. + +1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: + +1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate +access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently +whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the +phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project +Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, +copied or distributed: + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + +1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived +from the public domain (does not contain a notice indicating that it is +posted with permission of the copyright holder), the work can be copied +and distributed to anyone in the United States without paying any fees +or charges. If you are redistributing or providing access to a work +with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the +work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 +through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the +Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or +1.E.9. + +1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted +with the permission of the copyright holder, your use and distribution +must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional +terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked +to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the +permission of the copyright holder found at the beginning of this work. + +1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm +License terms from this work, or any files containing a part of this +work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. + +1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this +electronic work, or any part of this electronic work, without +prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with +active links or immediate access to the full terms of the Project +Gutenberg-tm License. + +1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, +compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any +word processing or hypertext form. However, if you provide access to or +distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than +"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version +posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), +you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a +copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon +request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other +form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm +License as specified in paragraph 1.E.1. + +1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, +performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works +unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. + +1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing +access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided +that + +- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from + the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method + you already use to calculate your applicable taxes. The fee is + owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he + has agreed to donate royalties under this paragraph to the + Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments + must be paid within 60 days following each date on which you + prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax + returns. Royalty payments should be clearly marked as such and + sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the + address specified in Section 4, "Information about donations to + the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." + +- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies + you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he + does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm + License. You must require such a user to return or + destroy all copies of the works possessed in a physical medium + and discontinue all use of and all access to other copies of + Project Gutenberg-tm works. + +- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any + money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the + electronic work is discovered and reported to you within 90 days + of receipt of the work. + +- You comply with all other terms of this agreement for free + distribution of Project Gutenberg-tm works. + +1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm +electronic work or group of works on different terms than are set +forth in this agreement, you must obtain permission in writing from +both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael +Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the +Foundation as set forth in Section 3 below. + +1.F. + +1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable +effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread +public domain works in creating the Project Gutenberg-tm +collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic +works, and the medium on which they may be stored, may contain +"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or +corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual +property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a +computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by +your equipment. + +1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right +of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project +Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project +Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all +liability to you for damages, costs and expenses, including legal +fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT +LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE +PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE +TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE +LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR +INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH +DAMAGE. + +1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a +defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can +receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a +written explanation to the person you received the work from. If you +received the work on a physical medium, you must return the medium with +your written explanation. The person or entity that provided you with +the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a +refund. If you received the work electronically, the person or entity +providing it to you may choose to give you a second opportunity to +receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy +is also defective, you may demand a refund in writing without further +opportunities to fix the problem. + +1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth +in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER +WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO +WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. + +1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied +warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. +If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the +law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be +interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by +the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any +provision of this agreement shall not void the remaining provisions. + +1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the +trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone +providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance +with this agreement, and any volunteers associated with the production, +promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, +harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, +that arise directly or indirectly from any of the following which you do +or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm +work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any +Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. + + +Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm + +Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of +electronic works in formats readable by the widest variety of computers +including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. |
