summaryrefslogtreecommitdiff
path: root/28154-8.txt
diff options
context:
space:
mode:
Diffstat (limited to '28154-8.txt')
-rw-r--r--28154-8.txt5189
1 files changed, 5189 insertions, 0 deletions
diff --git a/28154-8.txt b/28154-8.txt
new file mode 100644
index 0000000..e60545a
--- /dev/null
+++ b/28154-8.txt
@@ -0,0 +1,5189 @@
+The Project Gutenberg EBook of Petronio, by Marcelino Mesquita
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Petronio
+ Peça livremente extrahida do romance Quo Vadis de Henryk Sienkiewicz
+
+Author: Marcelino Mesquita
+
+Release Date: February 23, 2009 [EBook #28154]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PETRONIO ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
+
+
+
+
+ PETRONIO
+
+
+ _MARCELLINO MESQUITA_
+
+ PETRONIO
+
+ PEÇA LIVREMENTE EXTRAHIDA DO ROMANCE
+
+ QUO VADIS
+
+ DE
+
+ HENRYK SIENKIEWICZ
+
+
+
+
+ _LISBOA_
+ MANUEL GOMES, EDITOR
+ _Livreiro de Suas Magestades e Altezas_
+ 61--Rua Garrett (Chiado)--61
+
+ M DCCCC I
+
+
+ Typ. do DIA, calçada do Cabra, 7--Lisboa
+
+
+
+
+Esta peça foi representada, pela primeira vez, no theatro D. Amelia, na
+noite de 8 de março de 1901. Foram os interpretes:
+
+_Petronio_, poeta satyrico............................ _Eduardo Brazão_
+_Néro_, imperador romano................................ _Augusto Rosa_
+_Paulo de Tarso_, apostolo christão........................ _João Rosa_
+_Marcos Vinicio_, consul, sobrinho de Petronio............ _Luiz Pinto_
+_Chilon_, philosopho charlatão........................... _A. Pinheiro_
+_Tigelino_, chefe dos pretorianos, rival de Petronio...... _A. Antunes_
+_Senécion_, patricio romano............................ _Carlos Bayard_
+_Vitelio_, idem............................................. _João Gil_
+_Lucano_, poeta....................................... _Henrique Alves_
+_Vatino_, intendente das festas............................. _F. Senna_
+_Domicio_................................................. _A. Sampaio_
+_Musonio_, philosopho e poeta.............................. _F. Salles_
+_Ursus_, escravo lygio................................ _Alfredo Santos_
+_Pitagoras_, ephebo, favorito de Néro................. _Maria Ferreira_
+_Nerva_, patricio de Cumas............................. _Alvaro Cabral_
+_Lucio_, idem............................................... _S. Ayres_
+_Seneca_, philosopho......................................... _J. Reis_
+_Teiresias_, liberto de Petronio......................... _A. Quaresma_
+_Um escravo de Petronio_............................... _Antonio Silva_
+_1.º Rabbino_................................................. _Salles_
+_2.º Rabbino_............................................... _A. Pedro_
+_Gulon_, liberto de Vinicio................................. _A. Silva_
+_Outro escravo_............................................. _N. Gomes_
+_Timon_, gladiador............................................. _N. N._
+_Croton_, idem................................................. _N. N._
+_1.º Senador_.............................................. _J. Subtil_
+_2.º Senador_................................................ _Germano_
+_Poppêa_, concubina de Néro................................ _Maria Pia_
+_Eunice_, escrava de Petronio........................... _Maria Falcão_
+_Actêa_, ex-amante de Néro.............................. _Angela Pinto_
+_Lygia_, donzella christã............................. _Amelia Pereira_
+_Calvia_, dama romana................................... _Elvira Costa_
+_Nigidia_, idem........................................... _F. Salazar_
+_Crispinilla_, idem...................................... _C. de Sousa_
+_Flavia_, idem......................................... _Elvira Santos_
+_Pomponia_, idem...................................... _A. O'Sullivand_
+_Lucrecia_, idem...................................... _Maria Ferreira_
+_Julia_, dama cumense........................................ _Candida_
+_Octavia_, idem.......................................... _M. Ferreira_
+
+Senadores, palacianos, ephebos, pretorianos, escravos, augustanos, povo
+romano, gladiadores, damas da côrte, escravas, etc., etc.
+
+
+
+
+ACTO PRIMEIRO
+
+
+QUADRO PRIMEIRO
+
+Casa de Petronio em Roma. A um lado, a estatua de Petronio, em marmore.
+Sobre uma meza, frascos varios de aguas, de oleos; escovas, pentes,
+ferros de frisar. Duas escravas ethiopes e duas brancas, o rodeiam. As
+negras acabaram de o pentear.
+
+ESCRAVA BRANCA
+
+Que manto? (as escravas negras sahem)
+
+PETRONIO
+
+O azul. (a escrava sahe e traz)
+
+EUNICE, que, de joelhos, compõe a tunica
+
+Bello... como um Deus!
+
+PETRONIO, sorrindo, delicado
+
+«Animal impudens», de Séneca.
+
+O INTRODUCTOR
+
+O consul Marcos Vinicio.
+
+PETRONIO
+
+Oh!
+
+MARCOS grave
+
+Salve, Petronio!
+
+PETRONIO
+
+Salve. Sê bem vindo em Roma. Que o repouso te seja grato depois da guerra.
+
+MARCOS
+
+Que os Deuses te sejam propicios, sobre tudo Asclépias e Cypris.
+
+PETRONIO
+
+Que o tal Asclépias me perdôe; não tenho fé n'elle. Um Deus cuja mãi se
+ignora! Sabe-se lá se é filho de Arsinoé ou de Corónida? Que fará do
+pai! Quem, por estes tempos que correm, pode ter a certeza de ser
+filho... do pai? (Marcos, ri contrafeito) Estás preocupado?
+
+MARCOS
+
+... Não.
+
+PETRONIO
+
+Dos Asclepiades já tive de me servir, o anno passado... para a bexiga.
+Sabia que eram charlatães; mas o mundo repousa sobre o charlatanismo e a
+vida mesmo não é senão uma illusão! O que é precizo é saber distinguir
+as bôas illusões das más. Eu mando aquecer a minha estufa com madeira de
+cedro, pulverisada com ambar, porque prefiro os perfumes aos máus
+cheiros. Quanto a Cypris, a quem me recomendaste, devo-lhe o ter
+coxeado, amorosamente, dois mezes; mas, emfim, é uma bôa deusa a quem
+espero sacrificarás, em breve, as brancas pombas.
+
+MARCOS
+
+Talvez. Se as flechas dos Parthas me não alcançaram, em compensação, fui
+tocado pelas do Amôr, d'uma maneira imprevista.
+
+PETRONIO
+
+Sim?
+
+MARCOS
+
+A dois passos das portas de Roma.
+
+PETRONIO
+
+Pelas Graças! conta-me isso.
+
+MARCOS
+
+Tanto mais que precizo do teu conselho...
+
+PETRONIO
+
+É escusado perguntar se o teu amôr é correspondido! (olhando-o) Se
+Lysias te tem conhecido, ornavas, hoje, a porta do Palatino sob a fórma
+d'um Hercules juvenil. (Eunice offerece-lhe e põe-lhe o manto)
+
+MARCOS (olhando a escrava)
+
+Por Zeus, que bella escolha! Mais bello corpo não se encontrará nem em
+caza do Barbas de Bronze, d'esse famoso Nero, teu amigo.
+
+PETRONIO
+
+Tu és meu parente... e eu não sou egoista; nem tão austero, como um Aulo
+Plaucio...! Se queres...?
+
+MARCOS
+
+Como te veio á ideia Aulo Plaucio? É d'elle que te venho fallar.
+
+PETRONIO
+
+Estarás, tu, por acaso enamorado de Pomponia, sua mulher? Diabo!
+Velha... virtuosa... Lamento-te.
+
+MARCOS
+
+Não é de Pomponia. Oh! Não!
+
+PETRONIO
+
+De quem?...
+
+MARCOS
+
+Nem sei. Nem sei mesmo o seu nome. Lygia? Calina? Chamam-lhe Lygia
+porque é do paiz dos Lygios; mas o seu nome barbaro é Calina. Estive
+doente em caza d'esse Plaucio, por um accidente de viagem...
+
+PETRONIO
+
+Qual?
+
+MARCOS
+
+Desloquei um pé, n'uma queda do cavallo... É uma caza estranha: cheia de
+gente e silenciosa como um bosque sagrado. Durante quinze dias, ignorei
+que uma deusa a habitasse. Vi-a, uma manhã, a banhar-se n'um tanque, sob
+as arvores. E... juro-te pela espuma d'onde nasceu Aphrodite... os raios
+da Aurora brincavam atravez do seu corpo! Julguei-a uma apparição, uma
+sombra que os raios do sol nascente dissipassem, como um crepusculo!
+Desde então, não tive mais tranquilidade; não tive mais descanso; não
+tive outro desejo; não vejo outra mulher! Tudo me merece desprezo; o
+oiro, os bronzes de Corintho... Aborreço os vinhos, os festins; só vejo,
+só quero Lygia! O mundo para mim é ella... e só ella!
+
+PETRONIO
+
+É uma escrava de Plaucio? Compra-lh'a.
+
+MARCOS
+
+Não é uma escrava.
+
+PETRONIO
+
+Uma liberta, então?
+
+MARCOS
+
+Se nunca foi escrava, como pode ser liberta?
+
+PETRONIO
+
+Quem é, pois?
+
+MARCOS
+
+A filha d'um rei.
+
+PETRONIO
+
+Hein? Começas a intrigar-me...
+
+MARCOS
+
+É filha de Vanio, rei dos Suévos.
+
+PETRONIO
+
+O que teve guerras, no tempo de Claudio?...
+
+MARCOS
+
+Com os sobrinhos; que levantaram, contra elle os Lygios, terriveís na
+rapina. Claudio, temendo pelas fronteiras, mandou Hister, legionario do
+Danubio, que vigiasse para que a paz não fôsse alterada. Hister exigiu
+aos Lygios a promessa de não invadirem a fronteira, e, como refem
+recebeu a filha e a mulher do chefe.
+
+PETRONIO
+
+D'onde sabes, tu, isso?
+
+MARCOS
+
+Contou-m'o Plaucio, elle proprio. Na guerra o rei dos Lygios morreu.
+Hister ficou com a mãi e a filha. A mãi morreu pouco depois, e Hister
+para se desembaraçar da creança, mandou-a a Pomponio, governador da
+Germania e vencedor dos Gathes. Quando Pomponio entrou em Roma, em
+triumphador, a pequena Lygia seguia o seu carro; mas como era um refem e
+não uma escrava, Pomponio entregou-a a sua irmã, mulher de Aulo. N'esta
+caza onde tudo respira virtude, cresceu, tão virtuosa e tão pura, que ao
+pé d'ella, Poppêa, que passa pela mulher mais bella de Roma, é como um
+figo do outomno, ao pé d'um pômmo das Hesperides!
+
+PETRONIO
+
+E, então?
+
+MARCOS
+
+Repito-te, desde que vi a luz brincar atravez do seu corpo...
+
+PETRONIO
+
+Ella é então transparente como uma lampreia...!
+
+MARCOS
+
+Não gracejes, Petronio.
+
+PETRONIO
+
+Pois bem, diz-me o que queres, claramente.
+
+MARCOS
+
+Quero Lygia! Quero que os meus braços a apertem; que a minha bôcca
+respire na sua bôcca! Se fosse uma escrava daria por ella cem virgens!
+Quero-a, eis tudo! Têl-a, guardál-a, até que a minha cabeça branquêje
+como a crista do Sorate, no hinverno!
+
+PETRONIO
+
+... Se não é uma escrava, é, em todo o caso uma rapariga abandonada.
+Plaucio póde ceder-t'a, se quizer.
+
+MARCOS
+
+Não conheces Plaucio nem Pomponia sua mulher? De resto, amam-na como filha!
+
+PETRONIO
+
+Pomponia? conheço: é um cypreste! Tem o ar de quem vive n'um cemiterio.
+Mas é, diga se, mulher d'um homem só; o que faz que entre as nossas
+romanas, quatro e cinco vezes divorciadas, seja uma phenix!
+
+MARCOS
+
+Mas... Petronio...
+
+PETRONIO
+
+Que queres que te diga, meu caro Marcos? Conheço muito bem Aulo Plaucio,
+como elle conhece o meu modo de pensar e o meu modo de viver. Se pensas
+que poderei obter alguma coisa d'elle, francamente, parece-me que te
+enganas.
+
+MARCOS
+
+O teu espirito é inexgotavel em expedientes...
+
+PETRONIO
+
+Exageras.
+
+MARCOS
+
+Todo o mundo te conhece.
+
+PETRONIO
+
+Como o rei da elegancia? sim. É o meu reino. Se fosse o da Lygia eu não
+teria senão prazer em te offerecer a minha filha, bello e amoroso consul.
+
+MARCOS
+
+Não fallarás a Plaucio?
+
+PETRONIO
+
+... Não. É inutil. Mas... fallarei a Cezar.
+
+MARCOS
+
+Melhor ainda...
+
+PETRONIO
+
+Se Lygia é um refem, Cezar pode dispôr d'ella, pode offerecer-t'a.
+
+MARCOS
+
+Fallar-lhe-has, então?
+
+PETRONIO
+
+Sim.
+
+MARCOS
+
+Hoje mesmo?
+
+PETRONIO
+
+Hoje... talvez. É precizo esperar occasião de o poder louvar, pelo
+canto, ou pelos versos, ou pela aptidão de cocheiro, de actôr... A
+proposito, fazes versos?
+
+MARCOS
+
+Nunca pude arranjar um hexametro.
+
+PETRONIO
+
+Não tocas cithara, nem alaúde?
+
+MARCOS
+
+Não.
+
+PETRONIO
+
+Não guias um carro?
+
+MARCOS
+
+Tomei, uma vez, parte n'umas corridas em Antiochia; mas fui infeliz.
+
+PETRONIO
+
+Bem. Estou descançado a teu respeito. O melhor é não fazer nenhuma
+d'essas coisas e admiral-as, muito, nos outros... sobretudo em Cezar. És
+bello e Poppêa pode agradar-se de ti. É um perigo. Nero não t'o
+supportaria. É verdade que Poppêa está uma mulher experiente: d'amôr os
+dois primeiros maridos saciaram-na; Nero é para outra coisa.
+
+MARCOS
+
+Que é feito de Othon?
+
+PETRONIO
+
+O terceiro? O pobre homem ama-a ainda loucamente. Anda a choral-a sobre
+os rochedos da Hespanha. E, dizem, que de tal modo perdeu os habitos da
+galanteria, que hoje, com o penteado, só gasta tres horas por dia!
+
+MARCOS
+
+Eu, no caso d'elle, fazia outra coisa.
+
+PETRONIO
+
+O quê?
+
+MARCOS
+
+São valentes e duros soldados os da Iberia! Recrutaria umas legiões
+fieis...
+
+PETRONIO
+
+Marcos, Marcos! Essas coisas fazem-se, mas não se dizem, nem como
+hypotheses... Eu, no logar d'elle, rir-me-hia de Poppêa e de Nero:
+arranjava uma legião, mas não era de homens, era de mulheres!... (Eunice
+entra com um frasco.) Ah! a verbena. (deita nas mãos e esfrega as
+fontes) Não imaginas como isto vivifica, dá fôrça!
+
+MARCOS
+
+Mas... Lygia...
+
+PETRONIO
+
+Sim, homem, descança.
+
+MARCOS
+
+Não posso, Petronio. Se eu não consigo comer nem dormir! Vou passeiar um
+pouco pela cidade, mover-me, andar, distrahir-me...
+
+PETRONIO, reparando
+
+É verdade, tu não fizeste a barba, hoje!
+
+MARCOS
+
+Nem hontem!
+
+PETRONIO, toma-lhe o pulso
+
+Tens febre. Escuta. Eu não sei o que te prescreveria um medico, um
+d'esses asclepiades; mas sei o que eu faria no teu logar. Sim... eu sei
+o que é o amor, e, que quando se deseja uma mulher, nenhuma outra a póde
+substituir! A belleza, porém, encanta sempre; e uma bella escrava...
+
+MARCOS
+
+Não, não quero.
+
+PETRONIO
+
+A novidade faz esquecer... por um novo desejo... (Pondo a mão no hombro
+de Eunice, que lhe offerece, de novo a verbena) Repara, um pouco, n'esta
+filha de Cós. Ha dias, o joven Fonteio offerecia-me por ella tres
+admiraveis éphebos: tres maravilhas dignas do pincel de Scopas!
+(olhando-a com interesse) É curioso; como não dei ha mais tempo pelos
+seus encantos? No entanto, dou-t'a, leva-a.
+
+MARCOS, apertando a cabeça
+
+Não, não a quero: não quero ninguem! Obrigado. Vais d'aqui ao Palatino,
+ao palacio de Cesar?
+
+PETRONIO
+
+Vou.
+
+MARCOS
+
+Bem... Voltarei mais tarde. Vou á outra margem do Tibre...
+
+PETRONIO
+
+Não. Vais almoçar comigo. Eunice?
+
+EUNICE
+
+Meu senhôr.
+
+PETRONIO
+
+Tomarás o teu banho: ungirás o teu corpo, com os melhores perfumes, e
+irás para casa de Marcos Vinicio.
+
+EUNICE, ajoelhando-se
+
+Ó, meu senhor, não! Não me façais sahir da vossa casa! Prefiro ser,
+aqui, a ultima das vossas escravas! ser açoitada todos os dias, contanto
+que me não deis a ninguem! Não posso, tende piedade de mim! Não posso!
+não posso!
+
+PETRONIO, surprehendido
+
+Hein?
+
+EUNICE
+
+Repito-vol-o, senhôr. Não irei para caza de Marcos Vinicio. Não sahirei
+de vossa casa. Tende piedade! Sêde bom, como sois!
+
+PETRONIO
+
+Vai chamar Teirésias. (Eunice sahe)
+
+MARCOS
+
+Petronio, eu não a quero. Nem a ella nem a nenhuma. Deixa...
+
+PETRONIO (brandamente)
+
+Uma escrava!
+
+MARCOS, vendo entrar Eunice e Teirésias senta-se a lêr
+
+Perdôa-lhe.
+
+PETRONIO, a Teirésias
+
+Leva Eunice, e dá-lhe quinze chibatadas. (baixo) Com geito para lhe não
+estragares a pelle. (a Marcos) O que lês?
+
+MARCOS
+
+O teu livro: o Satyrikon. Já não fazes versos?
+
+PETRONIO
+
+Não. Desde que Nero é poeta e os faz... É perigoso.
+
+MARCOS
+
+Se amasses!
+
+PETRONIO
+
+Hoje? Ser-me-hia precizo encontrar... uma Lygia.
+
+MARCOS
+
+Uma deusa! Alcançar-ma-has, Petronio?
+
+PETRONIO
+
+Será tua. Quanto se pode responder por Cezar, respondo.
+
+MARCOS
+
+Tu és filho de minha irmã e por isto me foste sempre muito caro; mas,
+agora, collocarei, nos meus lares, uma estatua tua, (indicando a estatua
+de Petronio) tão bella como esta e offerecer-lhe-hei sacrificios. (vendo
+a) Tu és verdadeiramente bello, Petronio! Se Páris era assim, Helena
+teve razão na escolha.
+
+PETRONIO
+
+Chamam-me o Rei da Elegancia, Marcos. (Eunice entra de semblante alegre)
+Recebeste as chibatadas?
+
+EUNICE
+
+Sim, meu senhor, quinze, só!
+
+PETRONIO
+
+Só! (a Marcos) Não comprehendes?
+
+MARCOS
+
+Não.
+
+PETRONIO
+
+Comprehendo eu. (a Eunice) Tu tens um amante, aqui?
+
+EUNICE, joelhando-se-lhe aos pés
+
+Sim, senhor! (inclina a cabeça)
+
+PETRONIO
+
+Quem é? (Eunice inclina mais a cabeça, silenciosa) Quem é? (repara na
+mulher) Hei-de sabêl-o. (a Marcos) Vamos almoçar. (Pôe-lhe a mão sobre o
+hombro, olha com interesse Eunice) Vamos. (Sahem)
+
+(Eunice deixa-os sahir. Levanta se. Toma por disfarce o frasco da
+verbena e, fingindo sahir, espreita. Não vendo ninguem, volta, toma a
+cadeira onde se sentou Petronio; colloca-a ao pé da estatua; sobe,
+abraça o marmore e, ao mesmo tempo em que os cabellos loiros lhe cahem
+pelas costas, colla os labios aos labios da estatua).
+
+O PANNO DESCE
+
+
+QUADRO SEGUNDO
+
+Triclinio. (Caza de jantar no palacio de Néro.) No 1.º plano tres mezas,
+em ferradura, com os competentes leitos e cadeiras. Á esquerda uma
+balaustrada que se suppôe dar para uma escada, inferior, de entrada. As
+mezas estão promptas: os tocheiros accesos. Grande movimento de
+escravos, até á chegada dos convivas. Entram Lygia e Actêa.
+
+LYGIA
+
+Dize-me, minha bôa Actêa, é bem certo que, Néro, Cezar, matou a mulher,
+a mãi, o irmão?
+
+ACTÊA
+
+É certo... e quantos outros!
+
+LYGIA
+
+E, dizias-me que o amavas?
+
+ACTÊA
+
+Conhecí-o, moço, bello e generoso! É sempre essa imagem, esse Néro que
+eu vejo. O outro, o que fizeram os mestres, os aulicos, os amigos, os
+senadôres, o proprio povo, esse não o conheço. Esse pertenceu sempre a
+outra mulher, cujo dominio se firmou no sangue: esse é de Poppêa, a divina!
+
+LYGIA
+
+Como eu tremo de estar, aqui! Daria tudo por me vêr de novo em caza de
+Pomponia: ou na campina de Rôma, só, abandonada que fosse. Se eu
+pudesse... se tu pudesses, generosa Actêa, proporcionar-me a fuga!
+
+ACTÊA
+
+Eu t'o repito, Lygia: era a tua morte e a dos teus. A vontade de Cezar é
+absoluta! Approuve a Cezar chamar-te, és uma coisa sua, na vida e na morte!
+
+LYGIA
+
+Uma coisa...!?
+
+ACTÊA
+
+Tenho lido, tambem, as cartas de Paulo de Tarso, e ellas dizem que, lá
+em cima, ha um Deus cujo filho morreu por nós! Mas sobre a Terra não ha
+senão um Deus: é Cezar! A tua doutrina prohibe-te de seres o que eu
+sou... uma concubina!... e manda-te preferir a morte á deshonra--como os
+estoicos de que me fallou tanta vez, Epicteto...
+
+LYGIA
+
+Sempre!
+
+ACTÊA
+
+Quando uma possa evitar a outra. Ignoras os recursos d'um Cezar. A filha
+de Sejano, uma creança de doze annos, foi condenada á morte. A lei
+prohibe que as virgens possam soffrer tal pena. O que imaginas que
+resolveu, Tiberio?
+
+LYGIA
+
+Eu sei!
+
+ACTÊA
+
+Mandou-a violar, primeiro, por um escravo e matou-a depois!
+
+LYGIA
+
+Que horrôr!
+
+ACTÊA
+
+Reflecte. Não irrites nunca os tyranos. Os deuses da Terra são sempre
+sanguinarios. És bella, nova, e tão bôa...! Sê cautelosa e espera no
+futuro. Eu te protegerei, aqui, quanto pudér.
+
+LYGIA, abraçando-a
+
+Como tu és bôa, Actêa!
+
+ACTÊA
+
+Sem alegria e sem felicidade, é certo;... mas não sou má. «Elle» tambem
+o não era.
+
+LYGIA
+
+Lamenta-l'o?
+
+ACTÊA
+
+Se te digo que o amo, ainda! O teu Deus não morreu por amôr dos que o
+mataram?
+
+LYGIA
+
+E, perdoou-lhes.
+
+ACTÊA
+
+O amôr é o perdão. (Como subindo a escadaria e voltando a entrar no
+salão, no 2.º plano, começam a entrar os senadôres de togas bordadas nas
+bandas, sandalias ricas, tunicas de côres. Mulheres vestidas e penteadas
+á Grega ou á Romana, as cabeças coroadas de flôres, etc.)
+
+LYGIA
+
+Que de gente sobe.
+
+ACTÊA
+
+Os convivas que chegam.
+
+MUSONIO, entrando e passando com Séneca
+
+Salve, Actêa!
+
+SÉNECA
+
+Salve, divina Actêa!
+
+ACTÊA
+
+Salve, Séneca!
+
+LYGIA
+
+Quem é este velho, de grave aspecto?
+
+ACTÊA
+
+É Séneca, o filosofo, mestre de Néro. Um filosofo que manda desprezar as
+riquezas e fez, em quatro annos, uma fortuna de quatrocentos milhões de
+cestercios!
+
+LYGIA
+
+E, o companheiro?
+
+ACTÊA
+
+É tambem filosofo; mas bom: um estoico.
+
+LYGIA
+
+Como se chama?
+
+ACTÊA
+
+Musonio.
+
+TIGELINO, entrando com Calvia
+
+Salve, Actêa!
+
+ACTÊA
+
+Salve! (a Lygia) Tigelino o infâme, o corruptôr, o valido de Néro. O que
+fornece as orgias e os venenos!
+
+LYGIA
+
+E, a mulher?
+
+ACTÊA
+
+Calvia; a mais impudica das, cortezãs, de Roma. Cinco vezes divorciada.
+
+LUCANO, entrando com Nigidia
+
+Que os deuses te conservem sempre a belleza e o coração.
+
+ACTÊA
+
+Salve. (a Lygia) Lucano o poeta e Nigidia a amante.
+
+LYGIA
+
+É tão novo.
+
+ACTÊA
+
+E é bello; mas Cezar odeia-o. Os seus versos são melhores do que os
+d'elle e Cezar não perdôa. A sua vida não vale uma moeda d'oiro.
+
+LYGIA
+
+E elle sabe-o? e, arrisca-se, aqui?...
+
+ACTÊA
+
+É uma creança. (Entra Crispinilla, com Pitagoras.) Crispinilla a
+devassa, cheia de incestos...
+
+LYGIA
+
+E o mancebo? aquelle adolescente?
+
+ACTÊA
+
+É Pitagoras, o éphebo favorito de Néro.
+
+LYGIA
+
+Como favorito? Ama-o muito?
+
+ACTÊA, lembrando-se da inocencia de Lygia
+
+Sim... Ama-o, muito! (Um grupo de homens e mulheres passa e comprimenta
+de longe, sem grande respeito). Senécion, Vitelio, Domicio... Vês como
+me comprimentam, de longe? Houve tempo em que teriam vindo comparar-me
+ás Deusas e beijar me os pés! São os cortezãos de todos os tempos. (O
+grupo sobe)
+
+LYGIA
+
+Onde vão?
+
+ACTÊA
+
+Dizer a Poppêa, a divina, o que em tempo me disseram a mim!
+
+LYGIA
+
+Como tudo isto faz mêdo!
+
+ACTÊA
+
+E asco! (Entram, conversando, Petronio e Marcos Vinicio. Petronio vai
+para os grupos; Vinicio vê Lygia e desce). Petronio e Marcos Vinicio.
+Estes conheces de certo.
+
+LYGIA
+
+Marcos!
+
+MARCOS
+
+Á mais pura das virgens da Terra, á mais bella das estrellas do Céu, á
+divina Lygia, salve!
+
+LYGIA
+
+Salve, Marcos Vinicio.
+
+MARCOS, tomando o pulso d'Actêa e beijando-lh'o
+
+Salve, Actêa. Por Vénus, sois ainda a mais bella mulher do palacio de Néro.
+
+ACTÊA
+
+Cuidado, Marcos Vinicio, que se arremedais vosso tio, no galanteio, não
+tendes como elle a faculdade de que Néro oiça pelos vossos ouvidos e
+falle pela vossa bôca.
+
+MARCOS
+
+O louvor é tão perigoso em Caza de Cezar?
+
+ACTÊA
+
+É que dirigido a mim pode parecer epigrama.
+
+MARCOS, a Lygia
+
+Felizes os meus olhos que te comtemplam: os meus ouvidos que escutam a
+tua voz mais dôce do que as citharas e as flautas!
+
+LYGIA
+
+Como fiquei bem, ao vêr te! Que mêdo tenho de estar aqui! Sabias que me
+encontravas?
+
+MARCOS
+
+Sabia e todavia ao vêr-te senti na minh'alma um extranho e novo prazer!
+
+LYGIA
+
+Como sabias?
+
+MARCOS
+
+Disse-m'o Aulo Plaucio.
+
+LYGIA
+
+Como estará! e os seus! E porque estou eu aqui?
+
+MARCOS
+
+Por mandado de Cezar.
+
+LYGIA
+
+E para quê?
+
+MARCOS
+
+Cezar não dá conta, a ninguem, dos seus actos.
+
+LYGIA
+
+Nada d'isto é natural, Marcos. Conhecia-me, acaso Cezar? Tenho o
+presentimento de desgraças! Tu és bom: leva-me para caza dos Plaucios, a
+caza onde eu vivi tranquilla e tão feliz! Faz-me mal este ruido, esta
+gente toda. Porque me arrancaram do pequeno jardim onde brincava com
+Aulo? O que me convem a mim é o socêgo e a obscuridade. Não nasci para
+festas e para jantares! e, aqui, no palacio de Néro... tenho mêdo, leva-me!
+
+MARCOS
+
+Acalma-te! Estou ao pé de ti. Nada pode acontecer-te. Amo-te, não o crês?
+
+LYGIA
+
+Sim, Marcos.
+
+MARCOS
+
+E, tu m'o disséste, tambem, n'esse jardim, onde brincavas com o pequeno
+Aulo. E, eu não ouvi nunca mais outra voz; não vi outro olhar senão o
+teu; não pensei, não tive outro querer, outra vontade senão a ti.
+
+LYGIA
+
+O socêgo entra na minh'alma com as tuas palavras, generoso Marcos!
+
+MARCOS
+
+Tu és a minha felicidade, ó mais bella do que Vénus! A minha felicidade
+completa, inegualavel; porque nem Cezar, nem nenhum Deus, póde sentir
+maior alegria do que um mortal (abraça-a, delicadamente) que sente bater
+contra o peito um peito querido! Assim, ó Lygia, o amôr nos eguala aos
+Deuses!
+
+LYGIA
+
+A tua palavra é como a luz, que afugenta as trévas e dissipa os
+terrôres. Entrego-me a ti. Restitue-me aos meus. Pomponia, a casta,
+amar-te-ha como se fôsse tua mãi: abençoar-nos-ha e seremos felizes! Por
+ella e pelos seus te agradeço o prazer que lhe darás; e, por mim,
+Marcos, amar-te-hei até ao fim da minha vida.
+
+(Na sala do fundo, onde estão, tambem, mezas visiveis, rompe a orchestra
+de citharas, flautas, harpas e timbales. Os escravos serventes entram
+dos lados)
+
+MARCOS
+
+Vem Cezar. (Vai a querer subir)
+
+LYGIA
+
+Não me deixes, só!
+
+MARCOS
+
+Não. (Actêa, desce) Aqui tens Actêa... Eu volto já. (Sobe.)
+
+LYGIA
+
+Oh! Actêa! (agarrando-lhe a mão)
+
+ACTÊA
+
+Que tens?
+
+LYGIA
+
+Foje-me a vista.
+
+ACTÊA
+
+Serena-te (beijando-a) Isso passa!
+
+(Néro apparece ao fundo. Á maneira que passa, a multidão aclama-o.
+Começam a cahir flôres do tecto até ao fim do acto. Os escravos trazem
+brazeiros e deitam-lhe myrra. Gritam)
+
+VOZES
+
+Avé, Cezar!
+
+Avé, Jupiter!
+
+Avé, divino Cezar!
+
+Salve, divino!
+
+Olympico!
+
+Hercules!
+
+Immortal!
+
+NÉRO, junto a meza
+
+Á meza! (Os homens deitam se nos leitos. As mulheres occupam leitos e
+cadeiras. Os escravos enchem as taças de vinho que veem em baldes com
+gêlo: outros servem a comida. A orchestra toca mansamente. Néro,
+reclinando-se no leito, coroado de rosas): Petronio, dir-se-hia que
+entoei um dos meus hymnos!
+
+PETRONIO
+
+É a condicção dos Deuses. A sua presença basta para arrancar as
+saudações dos homens.
+
+NÉRO
+
+Estas? Que significam? Os romanos são verdadeiros selvagens. Não me
+entendem. Lembras-te do meu apparecimento em Napoles?
+
+PETRONIO
+
+Que noite!
+
+NÉRO
+
+Que noite de gloria! Nunca sentirei mais, na minha vida, uma impressão
+egual! Chorei! Lembras-te, Petronio?
+
+PETRONIO
+
+Como um mortal! E, desmaiaste, até, nos meus braços, exclamando: «Onde
+ha triumpho comparavel ao meu?! Eis o que são os Gregos! eis a Grecia!»
+
+NÉRO
+
+Comprende-me a Grecia. Em Roma, sei-o bem, chegam a censurar-me por
+cantar em publico; como se a arte divina pudésse manchar a purpura dos
+Cézares!
+
+PETRONIO
+
+Voltaremos?
+
+NÉRO
+
+Certamente. Tu sabes que as profecias me dão a soberania do Oriente e do
+Egypto. Fundarei alli um imperio luminoso de arte, de sol, de poesia, de
+realidade transformada em sonho, de vida transformada n'um perpetuo
+gozo! Quero esquecer Roma e collocar o centro do mundo entre a Grecia, a
+Asia e o Egypto. Viver a vida, não dos homens, mas dos Deuses. Vogar
+atravez do Archipélago, em galéras d'oiro, á sombra de vélas de purpura,
+embriagar-me de sol, de poesia! Ser, ao mesmo tempo, Apollo e Osiris!
+Reinar ... viver... sonhar...!
+
+PETRONIO
+
+Eis o sonho d'um Cezar!
+
+NÉRO
+
+Uma realidade! No Egypto levantarei monumentos, ao lado dos quaes as
+pyramides hão-de parecer brinquedos de creanças! Farei construir uma
+esphinge, sete vezes maior do que a de Memphis, que olha para o deserto,
+semelhando-a a mim! E, os seculos futuros não fallarão d'outra coisa: do
+monumento e de Néro!
+
+LUCANO
+
+Pelos teus versos tu te erigiste, já, um monumento, não sete, mas
+setenta vezes maior do que a de Chéops.
+
+NÉRO
+
+E, pelo meu canto?
+
+PETRONIO
+
+Se tu pudésses levantar uma estatua,--como a de Memnom--, que ao nascer
+do sol o fizesse ouvir, durante seculos, os mares do Egypto
+coalharam-se-hiam de navios, onde as multidões, das tres partes do
+mundo, viriam embriagar se, esquecer a vida, ouvindo a tua voz!
+
+(Néro, radiante, bebe e todos o acompanham)
+
+NÉRO
+
+E... emfim, desposarei a Lua, que é viuva, e serei verdadeiramente um Deus!
+
+PETRONIO
+
+E, cazar-nos-has com as estrellas, para formarmos a constelação de Néro!
+(A Vitelio, gordissimo, que está de pé, na meza do centro, de taça em
+punho, ébrio) Cazarás Vitelio com o Nilo para gerarem hipopótamos.
+
+TIGELINO
+
+E a mim, que destino me dás?
+
+PETRONIO
+
+Cezar pode dar-te o deserto e serás rei... dos chacaes.
+
+TIGELINO, aparte
+
+Insolente!
+
+(Cezar falla em segredo com Petronio. De repente pôe no olho uma
+esmeralda e olha Marcos e Lygia. Marcos diz segrêdos amorosos, todo
+curvado.)
+
+MARCOS, alto
+
+Como eu te amo, Lygia! (apertando-lhe o pulso)
+
+LYGIA
+
+Deixa-me, Marcos, fazes-me mal.
+
+MARCOS
+
+Oh! divina, ama-me muito! (beija-lhe o pulso) muito!
+
+ACTÊA
+
+Cezar está a olhar-vos.
+
+MARCOS
+
+Que me importa?
+
+ACTÊA
+
+Tu brincas com a vida, Marcos; não bebas mais.
+
+MARCOS
+
+O Phalerno é tão dôce e Lygia tão bella! (Offerece-lhe a taça; Lygia
+recuza; Marcos bebe)
+
+NÉRO, deixando de olhar, depõe a esmeralda na meza
+
+Petronio, quem é a dama que se senta ao lado de Marcos Vinicio?
+
+PETRONIO, asustado
+
+A rapariga... o refem que mandaste buscar a caza dos Plaucios.
+
+NÉRO
+
+Ah! De que povo é?
+
+PETRONIO
+
+Dos Lygios.
+
+NÉRO
+
+Deve ser bella... Vinicio enche-a de galanteios.
+
+PETRONIO
+
+Cobre um tronco velho d'oliveira com um vestido feminino e Vinicio
+achal-o-ha admiravel. A mocidade! Muito magra. Uma cabeça de dormideira
+n'um pé esguio. A ti, estheta divino, que prezas na mulher sobretudo a
+haste, aposto--por muito difficil que seja julgar das proporções d'uma
+mulher sentada--aposto que já lhe viste o defeito?...
+
+NERO, piscando os olhos para vêr
+
+Não tem ancas.
+
+PETRONIO
+
+Nenhumas. (malicioso)
+
+SENÉCION
+
+Não sei o que questionavas, mas sou da opinião de Cezar.
+
+PETRONIO
+
+Fazes bem. Eu estava dizendo a Cezar que tu tinhas uma certa inteligencia:
+Cezar affirmava que eras estupido como um burro! (gargalhadas)
+
+NÉRO, rindo exageradamente, inclina o pollegar para o chão
+
+E está dito!
+
+VATINO
+
+Seja como fôr, eu creio nos sonhos. Séneca um dia disse-me que tambem
+acreditava... como Plinio.
+
+CALVIA
+
+Sim? Pois a noite passada sonhei que era Vestal.
+
+NERO, rindo, batendo as palmas, o que todos imitam
+
+Bravo!
+
+CALVIA
+
+E, então? São todas velhas e feias, as vossas vestaes. Só Rubria tem
+fórma humana. Assim, ao menos, seriamos duas. Ainda que Rubria, na
+primavera, tem a pelle cheia de manchas rôxas.
+
+SENÉCION
+
+De que são?
+
+CALVIA
+
+Ella é que sabe... e os médicos.
+
+LUCANO
+
+É o abrir dos botões. Flôres do amôr!
+
+PETRONIO
+
+Calvia, onde deixaste a cabelleira loira, das... vestaes?
+
+CALVIA
+
+Tu és um impertinente.
+
+PETRONIO
+
+Não era o que me chamavas, uma noite, no lago d'Agripa.
+
+CALVIA
+
+És capaz de dizer que te não resistí, satyro? Que não estiveste a meus pés?
+
+PETRONIO
+
+Para os encher d'anneis. (Calvia olha instintivamente os pés: todos riem)
+
+VITELIO, cambaleando
+
+O meu annel. (rí estupidamente)
+
+NÉRO
+
+De que diabo rí esta barrica de cêbo?
+
+PETRONIO
+
+O riso é proprio do homem. Vitelio quer provar-nos que não é um porco.
+
+VITELIO
+
+O annel... perdí o meu annel de cavalleiro... O annel que me veio de meu
+pai...
+
+PETRONIO
+
+Que era sapateiro.
+
+Vitelio, rindo parvamente, procura o annel no colo de Calvia.
+
+CALVIA
+
+Que queres? O atrevido.
+
+NIGIDIA
+
+Elle não perdeu o que procura.
+
+LUCANO
+
+E... ainda que o ache não será capaz de o usar.
+
+(Os escravos reenchem as taças. Ouvem-se vozes. Vinho. Phalerno.)
+
+LYGIA
+
+O jantar durará muito, ainda, Marcos?
+
+MARCOS
+
+Inda agora começou. Não estás bem?
+
+LYGIA
+
+Sim... mas... morre-se com calor... com os perfumes...
+
+ACTÊA
+
+Toma o meu leque. Queres um vinho geládo?
+
+LYGIA
+
+Ó não. Queria sahir.
+
+ACTÊA
+
+É impossivel.
+
+Néro, que tem estado a comer e beber bem e a conversar com Petronio,
+levanta-se. A musica emudece. Terpros e Diodoro, correm com as citharas.
+Néro faz gesto negativo.
+
+SENÉCION
+
+Pela arte e pela humanidade!
+
+NÉRO
+
+Não estou em voz. Onde está Poppêa?
+
+UM ESCRAVO
+
+Doente; não pode vir.
+
+NÉRO
+
+Chamai-a (o escravo sahe)
+
+PETRONIO
+
+Faze desta festa um festim, divino Cezar: canta!
+
+LUCANO
+
+Cezar, não sejas implacavel.
+
+VATINO
+
+Não sejas implacavel!
+
+VOZES
+
+Sê magnanimo, Cezar!
+
+NÉRO
+
+O meu medico prohibiu me de cantar, hoje.
+
+SENÉCION
+
+Poupa a tua divina garganta, Cezar. Que seria de Roma e da Grecia se a
+tua voz se enublasse!
+
+NÉRO
+
+Recitarei o meu hymno novo. Se, mais tarde, puder, cantarei.
+
+TODOS
+
+Graças, Cezar.
+
+Entra Poppêa, sumptuosa e bella.
+
+VOZES
+
+Salve, divina Augusta! Salve, ó Deusa! Salve, divina!
+
+NÉRO
+
+Um momento, bella Poppêa. Vou recitar o meu novo hymno a Vénus. Precizo
+de têl-a diante.
+
+LYGIA
+
+Ó Marcos, é possivel! Poppêa, a sanguinaria, é esta mulher de uma
+belleza divina?!
+
+MARCOS
+
+Sim, é bella; mas tu és cem vezes mais! Bebe um golo, para que eu ponha
+os meus labios no sitio dos teus! (Offerece-lhe a taça, que Lygia recusa)
+
+Faz-se silencio profundo. Musonio, o poeta, encosta-se a uma cadeira e
+adormece, emquanto Nero recita. Este vê-o.
+
+NÉRO, recitando
+
+ Embalde pretendi deixar a escravidão,
+ Que nos impôe o amôr!
+ A Deusa luminosa
+ Que accende, em Chypre, o facho da paixão
+ Por sobre a humanidade; altiva, desdenhosa
+ Arrancou-me do peito o coração,
+ E foi depôl-o aos pés, da mais formosa
+ Das Romanas, Poppêa, a minha amada!
+
+ Da Vénus Aphrodite a incandescente lava
+ Passou pela minh'alma!
+ As intimas ternuras,
+ Só pode soluçar a minha lyra escrava
+ Do seu divino olhar, das calidas alvuras
+ Do seu colo de neve, da bôcca onde os Prazeres
+ Moram em ninho rubro entre desejos...
+ Uma lyra que chora a pedir beijos!
+
+ Vem, amada Poppêa, e escuta a Deusa:
+ Sê como ella, de quem tens a fórma,
+ Caritativa e dôce!
+ Abre o teu leito
+ Aos segrêdos do amôr, ao eterno gozo!
+ Eu sou um Deus! que troca a divindade,
+ Do mundo o senhorio, a magestade,
+ Pelo logar do esposo!
+
+TODOS
+
+Ó poeta divino! Salve!
+
+TODOS, com palmas e gritos
+
+Ó voz divina!
+
+Ó immortal!
+
+Ó Jupiter!
+
+Ó artista divino!
+
+Ó resplandecente!
+
+Salve! Salve! Salve!
+
+POPPÊA, vem beijar magestosamente a mão de Néro
+
+Obrigada, Cezar! (sahe)
+
+Mulheres choram, homens fazem gestos exagerados de espanto: o éphebo
+Pitagoras vem joelhar-se ao pé do leito de Néro e fica. Sentam-se de
+novo alguns convivas, outros ficam de pé.
+
+PETRONIO, empunhando a taça
+
+A Cezar olimpico! (Todos bebem)
+
+NÉRO, consultando
+
+Petronio?
+
+PETRONIO
+
+Os versos são admiraveis. Lucano deve estar amarello de inveja!
+Querel-os-hia peores, para poder fazer-lhes um elogio que os valesse.
+
+LUCANO
+
+Maldito o destino que me fez contemporaneo de Cezar! Elle me eclipsa
+como a luz do sol a luz d'um candieiro!
+
+NÉRO, a Tigelino, mostrando-lhe Musonio adormecido
+
+Faze-me dormir Musonio, o estoico, por uma vez.
+
+TIGELINO, deitando veneno n'uma taça
+
+Lentamente?
+
+NERO
+
+Não.
+
+ACTÊA
+
+Musonio adormeceu emquanto Néro recitava!
+
+LYGIA
+
+É um crime?
+
+MARCOS
+
+De lesa-magestade.
+
+LYGIA
+
+E vão acordal-o?
+
+MARCOS
+
+Para dormir outra vez... para sempre!
+
+TIGELINO
+
+Eh! Musonio? eh! filosofo?
+
+MUSONIO, aparvalhado
+
+Que é? Que queres? Maldito cão!
+
+TIGELINO
+
+Cezar, chama-te. (Musonio, levanta-se)
+
+NÉRO
+
+O quê sonhavas?
+
+MUSONIO
+
+Que Cerebero me ladrava, raivosamente.
+
+NÉRO
+
+Tu vês, Vatino, é preciso acreditar nos sonhos.
+
+TIGELINO
+
+Petronio brindou a Cezar olimpico. Todos beberam; faltas, tu!
+
+Musonio, percebe, e hesita em pegar na taça.
+
+TIGELINO
+
+Vamos: a Cezar olimpico.
+
+Musonio, olha Cezar, que o fita com a esmeralda; bebe, vacila e cahe morto.
+
+LYGIA, levantando-se
+
+Que horrôr!
+
+Dois escravos levam-no
+
+ACTÊA
+
+Tem coragem. Senta-te.
+
+NÉRO
+
+Os gladiadôres? (Entram Croton e Timon) Croton, não te esqueças de que
+és o mestre da minha escola. E tu, Timon, mostra-nos, se podes, como se
+substitue um mestre.
+
+Os gladiadôres luctam. O interesse cresce.
+
+NÉRO
+
+Bravo, Croton.
+
+PETRONIO
+
+Bello grupo para marmore.
+
+MARCOS
+
+Bravo! Timon.
+
+CALVIA
+
+Que bellas fórmas!
+
+PETRONIO
+
+Vestal, silencio!
+
+NÉRO
+
+Não é uma bella arte?
+
+PETRONIO
+
+A mais bella, depois do canto e da musica.
+
+NÉRO
+
+Hei-de de experimental-a, tambem.
+
+PETRONIO
+
+Sereis invencivel!
+
+Croton dominou Timon. Agarra-lhe a garganta e vai estrangulal-o.--Á voz
+de Néro: abraça-o e ergue-o.
+
+NÉRO
+
+Alto! Bravo, Croton! (applausos) Exercita-te, Timon. Por momentos
+tiveste a victoria. Tens qualidades. Vai e não te esqueças de que me
+deves a vida.
+
+TIMON
+
+Ella é vossa, divino Cezar!
+
+NÉRO
+
+Dai-lhe de beber. E, a mim; por Bacho, que não hei-de engulir a sêco
+esta aza de pavão de Samos. (deitam-lhe vinho) Que comes, tu, Calvia?
+
+CALVIA
+
+Una bocado de cabrito de Ambracia.
+
+NÉRO
+
+Estás em familia! Petronio, estás triste? A tua vista tem fome de graça
+e de belleza. Tigelino, mostra-nos a graça assyria.
+
+Tigelino sobe. Ouve-se o côro bachico. Dançarinas assyrias, semi-núas,
+de cabeças ornadas de flôres, envoltas n'um véu ligeiro, braços e
+tornezellos com braceletes d'oiro, entram dançando com o côro. Os
+convivas comem e bebem, conversando em segrêdo. Côro e danças esmorecem
+lentamente. Os escravos dão vinho ás bailadeiras. Algumas sentam-se.
+Todos estão bebedos, excepto Lygia e Actêa. Durante as danças as luzes
+das salas esmorecem.
+
+SENÉCION, de pé
+
+Eu creio nos Deuzes. Dizem que Roma ha-de morrer! Ha quem diga que ella
+morre já! A falta é dos rapazes que não tem fé e sem fé não ha virtude.
+
+VATINO
+
+Quem é que diz de Roma vai morrer?
+
+SENÉCION
+
+Os filosofos.
+
+VITELIO
+
+Má raça, essa, dos filosofos.
+
+LUCANO, com Nigidia no colo
+
+Não ames nunca um filosofo, Nigidia! Ama os poetas. A filosofia é uma
+adega cheia de ôdres... os filosofos. Quanto mais ôccos, maiores são.
+Disse-o não sei se Epicteto.
+
+NIGIDIA
+
+Nunca disse isso, Epicteto.
+
+LUCANO
+
+Não? Pois podia dizel-o; porque disse tolices muito maiores. Então,
+digo-o eu.
+
+SENÉCION
+
+Não, Roma não morre! Teriamos de morrer todos! Nunca mais beber vinho!
+(chora sobre o colo de uma bachante.)
+
+BACHANTE
+
+Não chores, imbecil... que te fazes feio. Dorme antes. (empurra-o
+levemente. Elle cahe debaixo d'uma meza e fica.)
+
+LUCANO, enrolando-se na hera d'uma amphora
+
+Eh! lá, Bachantes, aqui está um Fauno!
+
+NÉRO
+
+Pitágoras, vem cá! (a Petronio) conheces alguma coisa mais bella? (beija
+as mãos do éphebo) Hei-de cazar comtigo! Mãos tão bellas, nunca vi.
+Vi... já... quando? (lugubre) Eram de... minha mãe! (pausa e espanto)
+Eram de minha mãe... Sim, d'Agrippina! (baixo) Dizem que pelas noites de
+luar pelas aguas da Baïa... vagueia como que á procura... não se sabe de
+quê! Se encontra uma barca desapparece; mas o pescadôr que a viu, morre!
+
+VATINO
+
+Nos Deuses não acredito... mas nos espectros... sim. Nos espectros!
+
+NÉRO
+
+E, todavia celebrei, grandiosamente, aos Deuses tumulares! Não a quero
+vêr... Cinco annos! cinco annos! Matei a, mas fui forçado a isso!
+Matava-me ella, se não o faço! Se eu tivesse morrido não me tinheis
+ouvido, hoje!
+
+TIGELINO
+
+Graças, Cezar, por nós, pela cidade, pelo mundo!
+
+NÉRO
+
+Não a quero vêr! (gritando) Vinho! e que esses timbales rujam!
+
+LUCANO
+
+Eu sou um Fauno! É é é... cho... ó ó ó. Os faunos amam as florestas! Nos
+jardins de Néro ha bosques profundos! Nigidia, levanta-te... acorda...
+vamos para o bosque!
+
+NÉRO
+
+Tem razão Lucano; abraza-se, aqui! Vamos para os jardins! Agora, sim,
+agora, vou cantar. Trazei vinhos! Terpnos, Diodoro, as citharas.
+(obedecem) Quero dançar tambem. E archotes... quero luz... muita luz...
+tudo bem claro, que a não quero vêr!
+
+CALVIA
+
+Quem?
+
+NÉRO
+
+A mulher das mãos brancas... como as de Pitágoras! (reparando em Actêa
+que acabou de fallar com Ursus o gigante que fica atraz de Marcos e
+Lygia) Ó bella e generosa Actêa! dá-me o teu braço. Vou cantar, para ti,
+uma canção á Lua! Á casta Lua, serena como tu, velada e meiga!
+
+ACTÊA, acceitando-lhe o braço
+
+Senhôr, sou a vossa escrava.
+
+NÉRO
+
+Não; és uma estrella do meu céu! Um comêta que só apparece, de longe em
+longe! (sobem todos)
+
+MARCOS, agarrando brutalmente Lygia
+
+Dá-me os teus labios! Hoje ou amanhã... que importa? Para que esperar?
+És minha! Cezar roubou-te para mim!
+
+LYGIA
+
+Marcos...
+
+MARCOS
+
+Para mim! Ha quanto te quero! Um dia em caza dos Plaucios, vi-te no
+banho... núa! Não o sabias? Como és bella! Sahias da agua como a Vénus
+das espumas... Um sonho! Pedi-te a Cezar que te mandou buscar... Amanhã
+vaes para minha caza... Dá-me os teus labios! (força para beijal-a)
+Dá-mos, já, agora.
+
+LYGIA, recuando aflicta
+
+Marcos, não te conheço... tem piedade!... não, nunca...!
+
+MARCOS
+
+Piedade? não; amôr! És minha, quero beijar-te... quero a tua bôcca!
+Dá-m'a! (agarrando-lhe brutalmente a cabeça) Ó dá-m'a, por Jupiter! ou...
+
+O escravo Ursus agarra-o pela cinta e atira-o sobre o leito.
+
+LYGIA
+
+Es tu? (atira-se-lhe ao colo e fica suspensa)
+
+URSUS
+
+Não tenha mêdo... sou eu! (leva-a a colo)
+
+MARCOS, levantando-se tonto
+
+Lygia! Lygia! (vai a querer seguil-a, e cambaleia) Por Hercules!
+(ampara-se a uma assyria que bebe) Que é? que foi?
+
+ASSYRIA, dando-lhe a taça
+
+Um sonho! Bebe!
+
+Marcos bebe e cahe sobre o leito.
+
+URSUS
+
+Eis os senhores do mundo! (sahe, levando Lygia).
+
+No jardim ouve-se a musica. As luzes esmorecem. Um ou outro bebedo
+levanta a cabeça aos sons da orchestra e torna a deixal-a cahir. As
+rosas sahem sempre. O panno desce, lento.
+
+FINAL DO 1.º ACTO
+
+
+
+
+ACTO SEGUNDO
+
+
+QUADRO TERCEIRO
+
+Caza de Vinicio. O tablium ornado com flôres. Perfumadôres no chão.
+
+PETRONIO
+
+Estavas bebedo, hontem. Não gostei de te vêr. Andaste como um carroceiro
+dos montes Albanos. Não sejas nunca tão sôfrego. Lembra-te que um bom
+vinho deve ser bebido lentamente. Porque escravo a mandaste buscar?
+
+MARCOS
+
+Por Altacino.
+
+PETRONIO
+
+É de confiança?
+
+MARCOS
+
+Da maior. (passeia agitadíssimo) Que demora!
+
+PETRONIO
+
+E, faze por lhe alcançares as bôas graças. Pôe-na de bom humôr, para lhe
+destruires o máu effeito das brutalidades de hontem.
+
+MARCOS
+
+Que demora!
+
+PETRONIO
+
+Sê generoso, que ella merece-o. É bella! Sê magnanimo!
+
+MARCOS
+
+Deviam, cá estar, ha meia hora.
+
+PETRONIO
+
+De certo. Queres tu, para matar o tempo, que te falle das prophecias de
+Appolonio de Tyana, ou das maximas de Aristóteles, meu mestre, o estheta
+maximo?
+
+MARCOS
+
+Não... Deviam já ter chegado.
+
+PETRONIO
+
+Está dito... Deviam já ter chegado.
+
+MARCOS
+
+Malditos escravos. Teem as pernas ankilosadas por falta de exercicio.
+Terei de os fazer correr diante das varas.
+
+PETRONIO
+
+Elles não são o amante que espera. Tu não tens paciencia, nem
+serenidade. É precizo ser distincto, sempre! E, depois, não se traz
+assim uma princeza, uma filha do rei da Lygia.
+
+MARCOS
+
+Tu zombas?... se fôsse comtigo!
+
+PETRONIO
+
+Agradeceria aos Deuses o fazer-me prelibar, mais amplamente, uma posse
+divina.
+
+MARCOS
+
+A demora não é natural... Eu vou vêr...
+
+PETRONIO
+
+Não percas a tua bella linha esthetica. Espera; não sejas vulgar.
+(ouve-se ruido) Tanto mais, que me parece que chegam. (o ruido augmenta.
+Á porta apparecem quatro escravos. Dois d'elles com os rostos
+ensanguentados)
+
+MARCOS
+
+Onde está Lygia?
+
+OS ESCRAVOS
+
+Ai, Senhôr!; ai, Senhôr!
+
+MARCOS
+
+Onde está Lygia? (avança furioso)
+
+OS ESCRAVOS
+
+Vê o sangue, Senhor! Vê o sangue!
+
+UM ESCRAVO
+
+Defendêmo-la, até á ultima.
+
+MARCOS
+
+Que é d'ella?
+
+UM ESCRAVO
+
+Raptaram-na!
+
+MARCOS
+
+Ah! miseravel. (atira-lhe uma taça á cabeça) Gulon?
+
+GULON, apparece
+
+Senhôr.
+
+MARCOS
+
+Cem varadas a cada um.
+
+OS ESCRAVOS
+
+Senhôr, piedade!
+
+MARCOS
+
+Até a morte! (os escravos sahem, em grita, adiante de Gulon)
+
+PETRONIO
+
+Está doido! Vamos ter carnificina. Repugnam-me os talhos. Vale. (sahe)
+
+MARCOS, postrado, senta-se
+
+Mas quem poderia roubar-ma? Quem? Plaucio? Ai d'elle, se o foi! Ai
+d'elle!... Pedirei a Cezar a sua morte!... E, se foi Cezar? Pelas
+furias! se foi Néro n'uma das suas nocturnas «pescas de Perolas,» como
+elle lhes chama?! E, quem podia ser senão, elle, Néro? Quem ousaria
+oppôr-se á sua vontade? Viu-a hontem, apeteceu-lhe... roubou-ma! Cezar
+diverte-se comigo! Por Écate, por Érebo, por vós ó Deuses do lar, (toma
+terra n'um vaso e espalha-a pelo o chão) juro que quem quer que foi,
+escravo ou imperadôr, mendigo ou Cezar, mato o! (ao introductor, que
+apparece) O meu manto.
+
+O INTRODUCTOR
+
+Actêa deseja fallar-vos.
+
+MARCOS
+
+Actêa? Em bôa hora. Venha. (A Actêa, que entra, agarrando-lhes as mãos)
+Onde está Lygia?
+
+ACTÊA
+
+Vinha perguntar-t'o.
+
+MARCOS
+
+Não sei; roubaram-ma no caminho. (junto do rosto d'Actêa, com os dentes
+cerrados) Actêa, se tens amôr á vida, se não queres ser causa de
+desgraças, cujo alcance nem podes conhecer, diz-me a verdade: foi Cezar
+quem m'a robou?
+
+ACTÊA
+
+Cezar não sahiu hontem do palacio.
+
+MARCOS
+
+Pela memoria de tua mãi, por todos os Deuses, Lygia não está no Palatino?
+
+ACTÊA
+
+Pela memoria de minha mãi, Lygia não está no Palatino, nem foi Cezar
+quem t'a robou.
+
+MARCOS, cahindo na cadeira, com a cabeça nos punhos
+
+Então foram os Plaucios! Ai d'elles!
+
+ACTÊA
+
+Aulo Plaucio procurou-me, hoje, a saber de Lygia.
+
+MARCOS
+
+Hypocrisia! Se não soubesse d'ella ter-me-hia procurado a mim.
+
+ACTÊA
+
+Tambem procurou.
+
+MARCOS
+
+A mim?
+
+ACTÊA
+
+De manhã.
+
+MARCOS
+
+Não o vi, nem me fallou.
+
+ACTÊA
+
+Os teus servos contaram-lhe o acontecido. (Pausa) Não, Marcos, o que
+aconteceu, aconteceu por vontade de Lygia.
+
+MARCOS
+
+Tu sabias que ella queria fugir?
+
+ACTÊA
+
+Sabia que ella não consentiria em ser tua concubina!
+
+MARCOS
+
+E... tu? que tens sido toda a tua vida?
+
+ACTÊA
+
+Eu?... És pouco generoso! Eu era uma escrava!
+
+MARCOS
+
+Seja como fôr. Cezar deu-ma! Descobril-a-hei nem que seja debaixo da
+terra. Farei d'ella o que eu quizer! A minha concubina... porque não? A
+minha concubina! Nem que seja precizo chicoteal-a, de dia e de noite!
+Dal-a-hei, ao ultimo dos meus escravos! Mandal-a-hei atrelar a um moinho
+da costa d'Africa. Procural-a-hei, eu. Procural-a-ha Cezar, inda que
+seja precizo empregar todas as legiões.
+
+ACTÊA
+
+Tu deliras...! Tem cautella em não metter Cezar, na busca, porque te
+arriscas a perdel-a para sempre, no dia em que elle a achar.
+
+MARCOS
+
+Como?
+
+ACTÊA
+
+Ouve, Marcos. Hontem, antes de jantar levei Lygia, para a distrahir, a
+passeiar nos jardins. Encontrámos Poppêa e a pequena Augusta, sua filha
+e filha querida de Néro, nos braços da ama negra. Á tarde a creança
+cahiu doente e Lilith, a ama, diz que foi a estrangeira que a
+enfeitiçou! Se a creança melhora, tudo esquecerá: se peóra Poppêa será a
+primeira a accusar Lygia de feiticeria e, encontrada, não terá salvação!
+
+MARCOS
+
+Talvez que ella enfeitiçasse a creança... e a mim tambem!
+
+ACTÊA
+
+A negra diz que a pequenita se pôz a chorar logo que passou por nós. É
+certo, ouvi. Mera coincidencia. Procura-a; mas antes das melhoras da
+creança não falles de Lygia. Seus olhos choraram, bastante, de mais...
+por ti!
+
+MARCOS
+
+Por mim? Disse-t'o ella?
+
+ACTÊA
+
+Eu o vi. As suas lagrimas eram sinceras e a sua dôr sentida. Como velei
+por ella no palacio de Cezar, quiz valer-lhe, se pudesse, ainda, junto
+de ti.
+
+MARCOS
+
+Como?
+
+ACTÊA
+
+Invocando a tua generosidade para ella.
+
+MARCOS
+
+Zombas de mim: se não sei onde pára...
+
+ACTÊA
+
+Ainda o podes saber: deixa-a em paz.
+
+MARCOS
+
+Não posso.
+
+ACTÊA
+
+Desposa-a.
+
+MARCOS
+
+Nunca!
+
+ACTÊA
+
+Não é uma escrava, é um refem de guerra: os refens são sagrados.
+
+MARCOS
+
+Concorreste, já vejo, para o rapto?
+
+ACTÊA
+
+Talvez.
+
+MARCOS
+
+Contra, Cezar.
+
+ACTÊA
+
+Não; contra ti.
+
+MARCOS
+
+E, dás-lhe razão?
+
+ACTÊA
+
+Defendo-a.
+
+MARCOS
+
+Tu ama-la?
+
+ACTÊA
+
+Quanto ella merece.
+
+MARCOS
+
+Porque te não paga, como a mim, o amôr com o desprêzo.
+
+ACTÊA
+
+Homem cégo, ella amava-te.
+
+MARCOS
+
+A mim? Que amôr é esse que prefere a vida errante, a indigencia do dia
+seguinte e talvez uma morte miseravel, a uma vida de riquezas e de
+alegria? Que amôr é esse, que tem mêdo do prazer e sêde dos sofrimentos?
+É que ella me odeia, do coração!
+
+ACTÊA
+
+Como imaginaste captival-a? Em vez de te inclinares diante dos seus pais
+adoptivos, os Plaucios, e de lh'a pedires para esposa, por surpreza,
+roubaste lh'a. Era a filha d'um rei, quizeste fazer d'ella a tua
+concubina! Feriste-lhe os olhos inocentes com o espectaculo da orgia,
+sem comprehenderes que aquella creança candida preferiria a morte á
+deshonra! Sabes tu quaes são as suas crenças? sabes que Deus adora? e se
+esse Deus não é melhor do que essa Vénus impudíca e essa Isis que os
+Romanos veneram, no seu impudôr? Que te importou tudo isto? A pobre
+creança, quando fallava de ti, córava: amava-te! Como lhe pagaste a
+aspiração pura do primeiro amôr? Enchendo-a de espanto, tratando-a como
+a uma escrava, insultando-a!
+
+MARCOS
+
+Eu não a insultei!
+
+ACTÊA ironica
+
+Generoso senhôr... vilmente! Venceste os Parthas, tu? Que é agora um
+coração de mulher para um famoso guerreiro? Enganaste-te: é mais facil
+vencer os barbaros. Amava-te; é possivel que te despreze, agora!
+
+MARCOS
+
+Que me importa? Amo-a eu; quero-a, hei-de tel-a.
+
+ACTÊA
+
+Se ella te não amar, essa satisfação deve ser bem mesquinha. O amôr de
+dois é um misterio divino: o de um só: uma torpeza! Nobre consul, adeus!
+
+PETRONIO, entrando: a Actêa que vae a sahir
+
+Salve, divina Actêa.
+
+ACTÊA
+
+Salve, galante Petronio.
+
+PETRONIO
+
+Dou-vos graças pela bondade com que tratastes Lygia.
+
+ACTÊA
+
+Fiz o meu dever. Ella tem a candura d'uma virgem e a graça das pombas...
+
+PETRONIO
+
+Que vôam.
+
+ACTÊA
+
+Officio de quem tem azas. Adeus. (sahe)
+
+PETRONIO
+
+Sabes alguma coisa de Lygia? Actêa a que veio?
+
+MARCOS
+
+Saber d'ella... Não sahiu da cidade. Os meus escravos vigiam as portas.
+Ella ou o tal gigante, hão-de apparecer.
+
+PETRONIO
+
+Tens sorte em que não seja Cezar o raptadôr. Trago-te uma boa nova.
+
+MARCOS
+
+Qual?
+
+PETRONIO
+
+Eunice, a minha escrava,--desde hontem que reparo que é verdadeiramente
+bella!--conhece um homem capaz de a descobrir.
+
+MARCOS
+
+Quem é?
+
+PETRONIO
+
+Um tal Chilon, médico, sabio, feiticeiro, ou o que é, que lê o destino e
+prediz o futuro. Mandei-o chamar e trago-t'o. Queres fallar-lhe?
+
+MARCOS
+
+Que venha.
+
+Petronio faz signal para dentro. Chilon entra. É um corcovado, tunica no
+fio, esburacada, barba e cabelleira intonsas. Sandalias velhas, etc.
+
+CHILON
+
+Salve, senhores nobilissimos!
+
+MARCOS
+
+Aproxima-te. Sabes bem do que queres encarregar-te?
+
+CHILON
+
+Pelo o que em toda a Roma se falla, não é difficil de adivinhar.
+Roubaram aos teus escravos, nobre senhôr, Lygia, ou Calina, filha
+adoptiva dos Plaucios. Encarrego me de t'a descobrir, na cidade ou fóra,
+onde estiver.
+
+MARCOS
+
+Que meios tens para isso?
+
+CHILON
+
+Os meios tens, tu, senhôr. Eu só possúo o genio.
+
+PETRONIO
+
+É homem para a descobrir.
+
+MARCOS
+
+Previno-te de que se me enganas para me apanhares dinheiro, mando-te
+desfazer com varadas.
+
+CHILON
+
+Eu sou um pobre filosofo, senhôr, e um filosofo não pode deixar de
+pensar na recompensa, sobretudo quando ella pode sêr da especie que
+acabais de me fazer entrevêr, tão magnanimamente!
+
+PETRONIO
+
+Então és filosofo?; mas Eunice disse-me que eras médico ou adivinho.
+D'onde a conheces?
+
+CHILON
+
+Veio consultar-me. A minha fama chegou até ella.
+
+PETRONIO
+
+Sobre quê?
+
+CHILON
+
+Materia d'amôr. Queria curar-se d'um amôr, não partilhado.
+
+PETRONIO
+
+E, curaste-a?
+
+CHILON
+
+Fiz mais. Dei-lhe um amuleto que faz nascer o amôr reciproco: um fio do
+cinto da Vénus de Chypre.
+
+PETRONIO
+
+De que escola és tu, divino sabio?
+
+CHILON
+
+Senhôr, pelo meu manto em escumadeira, sou um cynico: um estoico, pela
+paciencia com que soffro a minha miseria: e, porque, como não tenho
+liteira, tenho de andar a pé, de taberna em taberna, a dar lições aos
+que me pagam o vinho, sou um peripathetico.
+
+PETRONIO
+
+Gostas de vinho?
+
+CHILON
+
+Heraclito disse que o vinho era fôgo e que o fôgo era uma divindade!
+
+PETRONIO
+
+Deante da qual o teu nariz se illumina.
+
+MARCOS
+
+Já te tens empregado em cargos semelhantes?
+
+CHILON
+
+Hoje, senhôr, a virtude e a sabedoria teem tão pouco valôr, que um pobre
+filosofo se vê forçado a lançar mão de todos os meios de existencia!
+
+MARCOS
+
+Quaes são os teus?
+
+CHILON
+
+Saber tudo o que se passa e offerecer os meus serviços a quem preciza
+d'elles.
+
+PETRONIO
+
+E pagas-te?
+
+CHILON
+
+Conforme os meus meritos. Que remedio!
+
+MARCOS
+
+Não devem ser grandes porque te não deram ainda para um manto.
+
+CHILON
+
+Sou modesto, senhôr. O que é pequeno não é o meu merito é a gratidão dos
+homens. Quando se esconde um escravo de preço quem o descobre? Quem
+indica os culpados dos pasquins em _louvôr_ de Poppêa, a divina? Quem
+descobre nas livrarias os versos contra Cezar? Quem leva as cartas que
+se não podem confiar aos escravos? Quem faz fallar os barbeiros, os
+alfaiates, os taberneiros e capta a confiança dos escravos a saber tudo
+o que se passa n'uma casa, do atrio ao jardim? Quem conhece todas as
+ruas, praças, bêcos, alfurjas, da cidade? Quem sabe o que se diz, nas
+thermas, no circo...
+
+PETRONIO
+
+Basta, por todos os Deuses, illustre sabio, ja sabemos quem és.
+
+CHILON
+
+E quanto valho.
+
+MARCOS
+
+Bem. Tens necessidade de indicações?
+
+CHILON
+
+Eu? Tenho necessidade de armas.
+
+MARCOS
+
+Quaes?
+
+CHILON, fazendo o gesto de dinheiro
+
+Os tempos vão tão máus, para os filosofos...
+
+MARCOS, atirando-lhe a bolsa
+
+Ahi tens.
+
+CHILON, apanhando-a
+
+Começamos a entender-nos. Nobre senhor, ouvide: Lygia não foi roubada
+por Aulo, nem está no Palatino. O rapto foi feito por Ursus, o gigante
+seu escravo, e pelos christãos.
+
+PETRONIO
+
+Ouve, Marcos.
+
+CHILON
+
+Lygia adora a mesma divindade que Pomponia, a mais virtuosa das Romanas;
+é Christã...
+
+MARCOS
+
+Como o sabes?
+
+CHILON, com emphase
+
+Sou christão!
+
+PETRONIO
+
+Tu?
+
+CHILON
+
+Desde hontem, senhôr, desde hontem.
+
+MARCOS
+
+Reflecte Chilon. Tu não és um imbecil. Quererás presuadir-nos de que
+Pomponia e Lygia pertencem á seita dos inimigos do genero humano, dos
+envenenadôres, das gentes perdidas nos ultimos vicios?
+
+CHILON
+
+É christã, senhôr, tende a certeza absoluta.
+
+PETRONIO
+
+O que quer dizer que Pomponia e Lygia envenenam as fontes, immolam as
+creanças encontradas nas ruas e se entregam ao deboche? Tu que viveste
+em caza de Aulo vês como isto é uma calumnia ou uma tolice! Ou então os
+christãos não são o que se diz.
+
+MARCOS
+
+Seja como fôr. Foi então esse Ursus quem a roubou?
+
+CHILON
+
+Com os christãos.
+
+MARCOS
+
+E, encontral-a-has? Saberás onde está?
+
+CHILON
+
+Esta noite, ainda, trarei noticias.
+
+MARCOS
+
+Duplicarei a offerta se a achares. Gulon? (para dentro)
+
+GULON
+
+Meu senhôr.
+
+MARCOS
+
+Dá um manto capaz a esse... filosofo.
+
+CHILON
+
+Nobre consul, sois duplamente generoso: cobrís d'uma vez, com a mesma
+capa: a Sciencia e a Virtude! Nobre Petronio, vale. (Sahe)
+
+PETRONIO
+
+Adeus... _collega_. Não me desagrada o tal filosofo. Descobre Lygia,
+verás. Mas parece-me bom mandares desinfectar o atrio... A respeito de
+perfumes a filosofia está muito atrazada... só conhece... os naturaes.
+Fica-te com os Deuses... Sabes que amanhã é a festa do Lago?
+
+MARCOS
+
+Sei.
+
+PETRONIO
+
+Dizem que Vatino inventou maravilhas. Não podes faltar. Cezar poderia
+notar a tua falta. E... bôas novas, até lá.
+
+MARCOS
+
+Gulon?
+
+GULON
+
+Meu Senhôr. O jantar?
+
+MARCOS
+
+O meu manto e o estilete. (paseia agitado)
+
+GULON
+
+Eil-os. (Veste-lhe o manto) Ides só?
+
+MARCOS, mettendo o estilete no cinto
+
+Só. (Sahe)
+
+O PANNO DESCE
+
+
+QUADRO QUARTO
+
+Salão no palacio de Néro. Ao fundo um terraço d'onde se vê Roma. Mezas,
+cadeiras. Anoitece, gradualmente, durante o acto.
+
+PETRONIO, a Marcos que vai a passar ao fundo
+
+Dou graças aos Deuses, nobre consul, por te saber ainda vivo.
+
+MARCOS
+
+Ah! Petronio.
+
+PETRONIO
+
+Nem me vias. D'onde te desenterraste? Em tua caza, em parte alguma se
+sabia onde estavas. Alguma Deusa te raptou para a sua morada?
+
+MARCOS
+
+Talvez.
+
+PETRONIO
+
+Mas tu estás mal, meu sobrinho, muito mal. É evidente que Vénus te
+perturbou o espirito e te faz perder a razão! Por Pollux, se a chama que
+te consome te não reduz a cinzas, tu metamorfoseias-te n'aquella
+esphinge do Egypto, que dizem que perdida d'amôr pela Lua, se tornou
+indifferente ao dia, de modo a só esperar a noite, para poder com os
+olhos de pedra, namorar a amante!
+
+MARCOS
+
+Oxalá me transformasse em esphinge!
+
+PETRONIO
+
+... Se não sou eu, na ultima vez que nos vimos, na festa do lago, ou
+tinhas de transformar-te em esfinge... ou eras um homem perdido.
+
+MARCOS
+
+Como assim?
+
+PETRONIO
+
+Quem era a mulher que, no bosque de Diana, te queria levar para entre as
+sombras?
+
+MARCOS
+
+A mulher mascarada?
+
+PETRONIO
+
+Sim.
+
+MARCOS
+
+Não sube, nem quiz.
+
+PETRONIO
+
+Era Poppêa.
+
+MARCOS
+
+Heim?
+
+PETRONIO
+
+Chamei-te a tempo. Ella fugiu. Se n'esse momento lhe negas o amôr, que
+era feito de ti?
+
+MARCOS
+
+Tel-o-hia recuzado.
+
+PETRONIO
+
+Evitei essa asneira a tempo; mas a hesitação que mostraste, valeu-te o
+seu odio. As mulheres não perdôam, nunca, essas coisas... e então
+Poppêa...! Acautela-te.
+
+MARCOS
+
+Desprezo-a.
+
+PETRONIO
+
+A pequena Augusta morreu...
+
+MARCOS
+
+Que me importa?
+
+PETRONIO
+
+A morte atribue-se aos feitiços de Lygia.
+
+MARCOS
+
+Imbecís!
+
+PETRONIO
+
+E, a proposito... Lygia?
+
+MARCOS
+
+Tu não calculas, Petronio, o que me tem acontecido.
+
+PETRONIO
+
+Mas diz. Tens-me causado sustos. Sabes que te quero...
+
+MARCOS
+
+N'essa noite... a do Lago, quando cheguei a caza esperava-me Chilon.
+
+PETRONIO
+
+O filosofo?
+
+MARCOS
+
+O tal. Sabia de Lygia, vinha propôr-me o raptal-a. Concordei. Fomos, eu,
+elle e Croton, o gladiadôr, embuçados, ao Ostrianum, o velho cemiterio,
+á sahida da porta Capuana. Alli se reunem escondidamente os Christãos e
+lá ouvi Paulo, o apostolo, pela primeira vez. Lygia estava junto d'elle,
+envolta n'um manto escuro, embebida, a ouvil-o, n'uma allucinação de
+todo o seu sêr, arrebatada, divina! Se tivesses visto a sua figura d'uma
+belleza ideal...
+
+PETRONIO
+
+Adiante.
+
+MARCOS
+
+Todo o meu amôr renasceu com a furia d'um toiro das Hespanhas. Jurei
+tel-a. Alli, era perigoso: os christãos eram alguns centos. Seguimo-la
+até a caza, á sahida. Uma velha caza, no bairro do Transtiberino. Entrou
+n'um pateo com o velho apostolo e esse Ursus, o escravo gigante, que a
+não larga, nunca. Escondemo-nos n'um corredôr á espera de occasião
+propicia, eu e Croton, porque o filosofo não sendo capaz de entrar...
+ficou de vigia, na rua. Ursus veio buscar agua á cisterna do pateo. Era
+occasião: virei-me para Croton e disse-lhe: matta. O gladiadôr atirou-se
+ao escravo como um tigre; eu corri pelo corredôr, empurrei a porta
+entreaberta, agarrei Lygia ao collo e corri para fóra. Desmaiára.
+
+PETRONIO
+
+Bello grupo dariam para um rapto.
+
+MARCOS
+
+Ao chegar ao pateo eis o que eu vi. Ursus dominava Croton vergado sobre
+um joelho, apertando-lhe, com uma das mãos, o pescoço. O gladiadôr tinha
+um estertôr na garganta, os olhos sahiam-lhe das orbitas! Ao vêr-me,
+Ursus, applicou sobre o peito de Croton um murro tal que este rolou pelo
+chão, de bôcca aberta, jorrando sangue. Estava morto!
+
+PETRONIO
+
+Por Hercules, que esse homem merece uma estatua.
+
+MARCOS
+
+De chofre, voltou-se para mim, agarrou-me este braço e partiu-m'o.
+
+PETRONIO
+
+Depois?
+
+MARCOS
+
+Não me lembra senão d'uma voz, feita de todos os sons das citharas,
+dizer: Ursus, não mates! Quando acordei estava n'uma cama e vigiava-me
+uma pobre viuva, um filho e... ella!
+
+PETRONIO
+
+E foi ella quem te tractou?
+
+MARCOS
+
+Tratou-me um medico; mas salvou-me, ella! Que cuidados, que dedicação,
+dias e noites! Contando mesmo as horas dolorosas da doença, passei,
+alli, os melhores dias da minha vida. O apostolo, contava toda a vida e
+morte de Cristo, seus milagres e douctrina. Vi os mais bellos exemplos
+de caridade, de amôr e de perdão! Se tu o ouvisses!
+
+PETRONIO
+
+Não me faltava mais nada! O que faz o amôr! Começavas a achar essa
+religião adoravel, porque era a de Lygia.
+
+MARCOS
+
+Talvez.
+
+PETRONIO
+
+É assim. O amôr transforma as pessôas completamente, opiniões e gostos.
+Como a mim me está acontecendo. D'antes só gostava do perfume da
+verbena; lembras-te? Hoje, como a bella Eunice prefere o das violetas, é
+d'este que eu gosto mais.
+
+MARCOS
+
+Eunice?
+
+PETRONIO
+
+Sim, Eunice. Ah! tu não sabias ainda... Tenho que te agradecer aquella
+recuza... É uma maravilha de esthetica, a loira Eunice! Uma obra de
+Praxiteles...!
+
+MARCOS
+
+E a tua Chrisotémis?
+
+PETRONIO
+
+Mandei-lhe umas sandalias bordadas a perolas... É como quem diz: vai
+passeiar. É o meu processo; ellas já sabem. Chrisotémis, francamente,
+era contemporanea da guerra de Troia. E, afinal, melhoraste, sahiste...
+e o que é feito da tua Lygia?
+
+MARCOS
+
+Fugiu-me.
+
+PETRONIO
+
+Outra vez?
+
+MARCOS
+
+No dia em que me levantei, ella sahiu.
+
+PETRONIO
+
+Tinha mêdo de ti?
+
+MARCOS
+
+Tinha mêdo de si, propria.
+
+PETRONIO
+
+É extraordinario!
+
+MARCOS
+
+Dizes bem. Ella não é como as outras mulheres!
+
+PETRONIO
+
+Ah! não? Então não perdes nada com a abstinencia.
+
+MARCOS
+
+Não podemos entender-nos.
+
+PETRONIO
+
+Decerto, não. Que o Hades confunda esses christãos que te fazem perder o
+senso commum.
+
+MARCOS
+
+Tu não conheces a sua doutrina.
+
+PETRONIO
+
+Enganas-te, conheço. Já li as taes cartas de Paulo de Tarso. Babozeiras.
+É uma doutrina anti-humana: porque a felicidade só vem da belleza, do
+amôr, e da força! A isto, chama elle, vaidades! E que theorias!
+Retribuir o mal com o bem... Que justiça! O que devemos ao bem? Se a
+sanção é a mesma para o bem e para o mal, porque seriam os homens bons?
+
+MARCOS
+
+Segundo elles a sanção começa na vida futura, eterna.
+
+PETRONIO
+
+Isso são coisas a verificar... depois da morte.
+
+MARCOS
+
+A vida para elles começa com a morte.
+
+PETRONIO
+
+É natural. É como se se dissesse: o dia começa com a noite! Vais raptar
+Lygia outra vez?
+
+MARCOS
+
+Não. Prometti-o.
+
+PETRONIO
+
+Tens tenção de adoptar a doutrina christã?
+
+MARCOS
+
+Querel-o-hia; mas toda a minha natureza se oppõe.
+
+PETRONIO
+
+Emfim, és capaz de esquecer Lygia?
+
+MARCOS
+
+Nunca!
+
+PETRONIO
+
+Então vai... viajar. (entram escravos com amphoras e taças que collocam
+nas mezas do 1.º salão e nas da varanda) Vem Cezar. O que vieste fazer?
+
+MARCOS
+
+Cezar mandou-me convidar para a leitura da Tróiada.
+
+PETRONIO
+
+Tambem? E... se elle te perguntar por Lygia?
+
+MARCOS
+
+Não sei...
+
+PETRONIO
+
+Dize-lhe... que a tens guardada... que esta ausencia... foi a lua de mel.
+
+Entra Cezar, Poppêa, Tigelino, Vitelio, Senecion, Vatino etc. escravos.
+Poppêa sobe para o terraço, com outras damas, onde bebem. Os éphebos
+galanteiam, etc.
+
+NÉRO, aborrecidissimo
+
+Salve, Petronio. Inda bem que chegaste. Creio que vou morrer de tédio,
+de aborrecimento! A minha viagem á Grecia, adiada!
+
+PETRONIO
+
+Porquê?
+
+NÉRO
+
+Vesta, a propria Deusa, me avisou, no templo. Venho agora de lá. Tão ao
+ouvido me disse: addia a viagem, que me assustou.
+
+TIGELINO
+
+Ficámos todos aterrados. A vestal Rubria desmaiou.
+
+NERO
+
+Que linda garganta que tem Rubria! Que branca! (bebe) Eu precizo
+distrahir-me. Vinheis ouvir o poema! Não posso lêr! Nem cantar! Nem
+tenho paciencia. Não posso ficar em Roma, irei para Ancio. Abafo,
+n'estes bairros apertados, no meio de cazas que se desmuronam, de
+ruellas immundas. Um ar empestado chega até aos jardins, chega até aqui!
+Porque não houve, nunca, um tremôr de terra que destruisse Roma? Se um
+Deus, na sua colera, a nivelasse com a terra, eu ensinaria como se
+edificava uma cidade para capital do mundo!
+
+TIGELINO
+
+Não dizes, tu, Cezar: se um Deus destruisse a cidade?
+
+NÉRO
+
+Sim e então?
+
+TIGELINO
+
+Não és, tu, um Deus?
+
+SENECION
+
+Podes fazel-o.
+
+VATINO
+
+Fal-o.
+
+NÉRO
+
+...Não lerei o meu poema! O meu incendio de Troia flameja timidamente!
+Julgava que egualaria Homero e tinha ficado contente.
+
+PETRONIO
+
+Não o egualaste?
+
+NÉRO
+
+Não...! Um esculptor quando por esculpir a estatua de um Deus, escolhe
+um modêlo. Nunca vi arder uma cidade, não o posso pintar.
+
+PETRONIO
+
+Mas tens genio para tanto se o quizeres fazer, Cezar. Aposto que os teus
+versos...
+
+NÉRO
+
+Não, não. Responde-me a uma questão, Petronio. Tens pena que tenha
+ardido Troia?
+
+PETRONIO
+
+Pena de quê? Por Marte, pelo contrario. Tróia não teria ardido sem o
+fôgo dado por Prometheu aos homens e sem os gregos terem declarado a
+guerra a Priamo. D'ahi veio que Eschylo escreveu o seu Prometheo e
+Homero a Illiada. Quero mais a estes dois poemas do que á tal Troia,
+provavelmente uma villoria de cazas de madeira, velhas e sujas!
+
+NÉRO
+
+Eis o que é fallar com tino. Á poesia e á arte tem-se obrigação de
+sacrificar, tudo. Felizes os Gregos que deram a Homero o assumpto do seu
+poêma! Feliz Priamo que viu as ruinas da sua patria!... Eu nunca vi uma
+cidade em chamas!
+
+Silencio geral de receio.
+
+VITELIO, avinhado
+
+Nem eu!; mas se fosse Cezar e a quizesse vêr, via-a!
+
+TIGELINO
+
+Era facil.
+
+PITAGORAS
+
+Poppêa e as damas, Cezar, pedem-te para vires cantar.
+
+PETRONIO
+
+Aproxima-se a noite, o sol agoniza, a tarde é bella, o ar cheio de
+perfumes dos jardins. Á natureza só falta um cantico...
+
+MARCOS
+
+O teu, Cezar!
+
+NÉRO
+
+É cêdo ainda. (olha para Tigelino, misteriosamente) É cêdo, ainda.
+
+VITELIO
+
+Eu adoro a musica.
+
+PETRONIO
+
+Das taças.
+
+NÉRO
+
+Dize-me, Petronio, que pensas tu da musica?
+
+PETRONIO
+
+A tua, sobretudo, quando a oiço, faz-me sentir um mundo de prazeres
+novos. A musica é um mar, onde á onda succede a onda, á agua, agua sem
+fim, até... ao infinito...! e é sempre impossivel vêr a outra margem.
+
+NÉRO
+
+É assim que eu penso da musica. Quando canto e tóco, eu, Cezar, senhôr
+do Mundo, descubro reinos desconhecidos, mares virgens, mundos nunca
+sonhados! Vejo os Deuses! subo ao Olimpo! Um sôpro estranho passa, a
+esphera vibra em roda de mim e dir-te-hei (leva Petronio, pelo braço,
+para o lado) que eu, Cezar e Deus (muito baixo) me sinto tão pequeno
+como um grão d'areia!
+
+PETRONIO
+
+Só os grandes artistas se sentem pequenos deante da belleza!
+
+NÉRO
+
+Morro de aborrecimento, aqui! Ouve: imaginas que sou cégo ou idiota?
+Pensas que não sei que por essa Roma pregam, todos os dias, inscripções
+injuriosas, pelas esquinas? que me chamam matricida, assassino de meu
+irmão, e de minha mulher? Que me chamam algoz, porque tenho morto a meus
+inimigos?... Um homem bom póde ser cruel?
+
+PETRONIO
+
+Póde.
+
+NÉRO
+
+Eis o meu caso. Quando a musica acalenta a minh'a alma, eu sinto-me tão
+bom como uma creança no bêrço.
+
+PETRONIO
+
+Os Romanos nunca vos souberam apreciar.
+
+NÉRO
+
+Os Romanos! Como eu odeio os Romanos! (Vai á meza beber. Anoitece mais)
+Tigelino?
+
+VITELIO
+
+Sahiu. Disse que ia mandar accender as lampadas.
+
+NERO
+
+Ah! sim... Escurece.
+
+PITAGORAS
+
+Cezar, o cantico? (ao fundo)
+
+CEZAR
+
+Ainda é cêdo... (Desce a Petronio) Sou em tudo um artista. A musica
+abre-me as portas d'uma prespectiva indizivel; devo aos Deuses o
+explorar esse infinito! Para ascender ás regiões olimpicas não será
+precizo, primeiro, praticar algum prodigioso acto propiciatorio?
+
+PETRONIO
+
+Não te entendo, Cezar.
+
+NÉRO, baixo
+
+Para abrir as portas do mundo desconhecido, eu quiz fazer o maior
+sacrificio que pode fazer um homem: minha mulher... minha mãi... foi
+para isso que ellas morreram! Mas é precizo um sacrificio ainda maior
+para abrir as portas do Olimpo! Cumpra-se a vontade dos Oraculos!
+
+PETRONIO
+
+...Qual é o teu projecto?
+
+NÉRO
+
+Vais vêr... de aqui a pouco. (sobe)
+
+PETRONIO, aparte
+
+Extranho-o.
+
+NÉRO, bebe e desce
+
+Mas, antes, vê bem que ha dois Néros: um o que os homens conhecem; o
+outro o que só tu conheces: o que mata como a Morte e o que delira como
+Bacho! E, mata, porque odeia a baixeza, tudo o que é vil e lhe repugna
+tudo o que não merece a vida! E mata e elimina!... Como a vida será
+pequena quando eu desapparecer!
+
+PETRONIO
+
+Comprehendo o teu coração e as tuas máguas!
+
+NÉRO
+
+Como o meu coração é, por vezes, negro! Como este mundo e esta terra são
+pequenos, mesquinhos, para mim! Mas, quanto eu puder, aniquilarei esta
+vida, e esmagarei este mundo!
+
+(Subito Roma apparece incendiada por diversos lados. Ouve-se ruido ao
+longe. Pitagoras, desce)
+
+PITAGORAS
+
+Cezar, Roma está a arder!
+
+PETRONIO
+
+Quê?
+
+TODOS, levantando-se e olhando
+
+A ardêr?
+
+NÉRO
+
+Ó Deuses immortaes!... eu vos dos dou graças!.. Posso em fim vêr uma
+grande cidade em chammas! Posso acabar o meu canto!
+
+VOZES, do fundo
+
+Cezar? Cezar?
+
+NÉRO
+
+Ah! É agora o momento. A minha cithara? (Sobe)
+
+UM CENTURIÃO, entrando rapido
+
+Divino imperador?
+
+NÉRO
+
+Quê?
+
+CENTURIÃO
+
+A cidade é um oceano de chamas! Os homens cahem asfixiados! O terrôr
+enloquece!
+
+NÉRO
+
+É a vontade dos Deuses! A minha cithara? (Trazem-lh'a. Terpnos, Diodoro
+e os musicos correm) Ó Deuses, que espectaculo sublime! Graças, por
+poder vêr, como Priamo, o incendio de minha patria! Agora, vou cantar!
+(sobe)
+
+MARCOS
+
+Centurião, sabes tu se o bairro do Transtevero, foi invadido, já?
+
+CENTURIÃO
+
+Todo, Senhôr. Foi o primeiro.
+
+MARCOS
+
+Maldicção! Se ella morreu... (sahe, doido)
+
+(O incendio generalisa-se. De todos os lados do palacio corre gente para
+o terraço. Néro sobe os degráus e de cithara em punho, acompanhado, canta)
+
+NÉRO
+
+ Berço de meus pais,
+ Roma divina!
+ Quanto eras cara
+ Á minh'alma!...
+
+O ruido, ao longe, cresce. Ouvem-se os rugidos das féras. O panno desce.
+
+FIM DO SEGUNDO ACTO
+
+
+
+
+ACTO TERCEIRO
+
+
+QUADRO QUINTO
+
+Sala no palacio de Néro. Néro e Poppêa, Vinicio, Tigelino, Petronio,
+Vitelio, Senecion e Vatino.
+
+NÉRO, descendo
+
+Ha tres dias que componho o meu poema. Não posso perder tempo. Sejamos
+breves. Roma está exaltada?
+
+TIGELINO
+
+Gravemente.
+
+NÉRO
+
+A animadversão cresce?
+
+TIGELINO
+
+Cada vez mais.
+
+NÉRO
+
+O Senado?
+
+TIGELINO
+
+Indignadissimo contra ti.
+
+NÉRO
+
+Ó o Senado! Reedificarei a cidade! Dar-lhe-hei uma outra digna do povo
+romano; que mais quer?
+
+TIGELINO
+
+Mas as miserias, as mortes causadas...
+
+NÉRO
+
+Não abri os meus jardins ao povo? Não tem elle que comer, á farta?
+
+TIGELINO
+
+Os pequenos estão satisfeitos. Os grandes...
+
+NÉRO
+
+É preciza uma decisão rapida. Que havemos de fazer, o que será
+conveniente...? A tua opinião, Petronio.
+
+PETRONIO
+
+Vamos para a Grecia e depois para o Egypto.
+
+SENECION
+
+É facil partir: voltar é que não será tão facil.
+
+PETRONIO
+
+Por Hercules, voltaremos, se fôr precizo, á frente das legiões da Asia!
+
+NÉRO
+
+Assim, farei.
+
+TIGELINO
+
+Escuta-me, Cezar. O conselho é desastroso. Antes de chegares a Ostia,
+rebentará a guerra civil. E sabes, tu, se algum vago descendente do
+divino Augusto, se não se fará proclamar imperador?
+
+NÉRO
+
+Farei que nenhum exista. Tu sabes como.
+
+TIGELINO
+
+Mas será um outro. Hontem, os meus soldados ouviram dizer á multidão que
+se devia proclamar alguem, como Thrazéias!
+
+NÉRO
+
+Povo insaciavel e ingrato! Que mais quer?
+
+TIGELINO
+
+A vingança.
+
+NÉRO
+
+A vingança?... quer victimas? (Pausa e silencio) Se nós lançassemos a
+nova de que foi... (olhando-os) Vatino, quem incendiou a cidade?
+
+VATINO, empalidecendo
+
+Eu?... Quem sou eu, ó divindade...?
+
+NÉRO
+
+Tens razão. É preciso alguem mais importante. (circunvagando o olhar):
+Vitelio!
+
+VITELIO, riso amarello
+
+As minhas banhas farão rebentar um novo incendio.
+
+NÉRO
+
+Tigelino?... Tigelino, fôste tu que incendiaste Roma!
+
+TIGELINO, audaz
+
+Por tua ordem, Cezar!
+
+NÉRO
+
+És meu amigo?
+
+TIGELINO
+
+Tu o sabes, Senhôr.
+
+NÉRO
+
+Bem. Sacrifica-te por mim.
+
+TIGELINO, hypocritamente
+
+Eu bem o quizera, Senhôr; mas não posso fazêl-o. (ironico) O povo
+murmura e revolta-se. Queres tu que a guarda pretoriana faça o mesmo,
+pelo seu chefe?
+
+UM ESCRAVO
+
+A divina Augusta deseja fallar-te, Tigelino.
+
+TIGELINO, a Cezar
+
+Permittis? (Cezar, faz signal aprovativo. Tigelino sahe)
+
+NÉRO
+
+Aqueci uma serpente no seio! (a Petronio) Vamos, falla tu. Confio em ti.
+Tens mais senso do que todos elles juntos e és meu amigo.
+
+PETRONIO
+
+Vamos para a Grecia.
+
+NÉRO
+
+Esperava mais do teu juizo. Se parto quem me garante que o senado não
+proclame outro imperadôr? O povo era-me fiel... não é. O senado!... Ah!
+se este povo e este senado tivesse uma cabeça, só!
+
+PETRONIO
+
+Se queres conservar Roma, Cezar, é precizo deixares alguns Romanos.
+
+NÉRO
+
+Roma, os Romanos, que me importam? Escutar-me-hiam na Helada! Ao redor
+de mim, aqui, não ha, senão traição! (subito) Petronio, a plebe murmura
+pelas praças... se eu fôsse ao Campo de Marte e cantasse o meu hymno; o
+que cantei durante o incendio... não poderia, eu, como Orpheu, encantal-os?
+
+VATINO
+
+A difficuldade, Cezar, era elles deixarem-te principiar.
+
+NÉRO
+
+Pois vamos para a Grecia.
+
+POPPÊA, entrando com Tigelino
+
+Ouve-me, Cezar. O povo quer uma vingança e uma victima! Que digo eu?
+uma? centenas, milhares! Existem as que o devem sêr, devem-se-lhe.
+Ignoras que na cidade se acoita um exercito de christãos? Não os
+conheces? Não te fallei, eu, tanta vez dos seus crimes e das suas
+infames cerimonias? das suas profecias segundo as quaes o mundo acabará
+pelo fôgo? O povo, instintivamente, odeia-os e suspeita d'elles. Ninguem
+os vê nos templos, no circo, nas corridas! Murmura contra ti e não
+fôste, tu, Cezar, nem eu, quem incendiou a cidade! Foram elles! É
+preziso dizêl-o. Viram-nos levando nas mãos as tochas incendiarias! O
+povo tem sêde de vingança? dá-lha. O povo quer circo, quer sangue?
+dá-lh'o! Conheces os culpados! manda!
+
+PETRONIO a Marcos, aparte
+
+A caça a Lygia.
+
+PETRONIO
+
+Coragem!
+
+NÉRO, levantando as mãos ao ceu
+
+Oh! Zeus, Appolo, Hera, Actréa, vós, todos, ó Deuses immortaes, porque
+nos não socorresteis? Que tinha feito essa bella Roma, a esses energumenos?
+
+TIGELINO
+
+Vinga-a!
+
+VATINO
+
+Faz justiça!
+
+NÉRO
+
+Que castigo terrivel, que torturas serão bastantes para punir tal crime?
+Com a ajuda das potencias do Tartaro, darei ao meu povo um tal
+espectaculo, que d'elle se falará, em Roma, pelos seculos dos seculos!
+
+PETRONIO, aparte
+
+Que Cezar bandido! (olhando Marcos, que passeia louco) É precizo salvar
+Lygia. Ou me perco, ou a salvo. (approximando-se galante, natural,
+brincando com a tunica gracioso) Assim... encontrastes as victimas? bem;
+mas escutai me. Tendes a auctoridade, tendes a guarda dos pretorianos,
+tendes a fôrça! Então sêdes leaes. Entregai os christãos ao povo,
+supliciais-os; mas confessai primeiro que não foram elles que
+incendiaram Roma! Ha tambem uma elegancia da alma: como mestre de todas
+as elegancias dir-vos-hei, que não supporto tão miseraveis comedias!
+(Pasmo) Com relação a ti, Cezar, porque me tens fallado muita vez da
+posteridade, reflecte o que ella dirá de ti! Pela divina Clio!
+Néro-Senhôr do mundo, Nero-Deus queimou Roma porque era tão formidavel
+na Terra, como Zeus no Olympo! Nero-poeta amou a tal ponto a poesia que
+lhe sacrificou a Patria! Desde o principio do mundo, ninguem ousou
+pensar em tão extraordinaria coisa! Tu o fizeste, esta gloria é tua, não
+a renegues. Ao pé de ti o que será Priamo, Agamenon, Achilles? os
+proprios Deuses? Coragem. Livra-te de abdicações indignas; porque então
+a posteridade poderá dizer-te: Nero queimou Roma; mas tão pussilamine
+Cezar, como pussilanime poeta, negou o facto, e atirou, cobardemente, a
+falta por sobre os innocentes! Tal acção não honrará a tua memoria!
+
+TIGELINO
+
+Senhôr, dá-me licença para que sáia. Aconselham-te a lançares-te no
+maior perigo: tratam-te de Cezar e poeta pussilanime, de comediante...
+Os meus ouvidos recuzam se a ouvir mais.
+
+PETRONIO, aparte
+
+Cezar hesita? Estou perdido! (a Tigelino) Tigelino, a ti é que eu chamei
+comediante, porque o és, ainda n'este momento.
+
+TIGELINO
+
+Porque não posso escutar as tuas injurias?
+
+PETRONIO
+
+Porque figuras um grande amôr por Cezar e ainda ha pouco, ouvimo-lo
+todos e elle, o ameaçaste com a guarda de pretorianos.
+
+POPPÊA
+
+Cezar, como permittes que taes pensamentos venham a alguem e que esse
+alguem os diga deante de ti?
+
+NÉRO
+
+É assim que tu sabes reconhecer a amizade que sempre te tive?
+
+MARCOS, aparte
+
+Petronio perdeu-se por mim!
+
+PETRONIO
+
+Se me enganei, Cezar, mostra-me o meu erro; mas sabe que te disse o que
+me ditou a lealdade que, emfim, te devo!
+
+POPPÊA
+
+Renova os insultos.
+
+TIGELINO
+
+Punide-o, Senhôr.
+
+VATINO
+
+Castigai o insultadôr.
+
+VOZES
+
+Castigai-o! (affastam-se de Petronio)
+
+NÉRO
+
+Quereis que o puna? Foi sempre o meu companheiro e meu amigo! Feriu-me o
+coração; mas quero que elle saiba que este coração só tem para os
+amigos, o perdão.
+
+PETRONIO, aparte
+
+Conheço o teu perdão! (alto) Cezar! (inclinando-se, faz signal a Marcos,
+e sahem.)
+
+POPPÊA
+
+Quereis ouvir as testemunhas?
+
+NERO
+
+Que venham.
+
+Um escravo sahe e traz dois rabinos de longas togas e mitras, um escriba
+e Chilon.
+
+1.º RABINO
+
+Salve, monarcha dos monarchas, rei dos reis!
+
+2.º RABINO
+
+Salve, Senhôr do mundo!
+
+CHILON
+
+Salve, Cezar, Leão entre os homens! tu cujo reino é semelhante á
+claridade do sol, ao cedro do Libano, ao balsamo de Jerichó!
+
+NÉRO
+
+Accusais os christãos de terem incendiado Roma?
+
+1.º RABINO
+
+Nós, Senhôr, só os accusamos de serem inimigos dos homens, e inimigos de
+Roma. De terem muita vez ameaçado a cidade e o mundo, com o fogo do céu!
+O resto dil-o-ha este homem, de cujos labios nunca sahiu a mentira,
+porque nas veias de sua mãi corria o sangue do povo escolhido!
+
+NÉRO
+
+Quem és, tu?
+
+CHILON
+
+O teu cão fiel, divino Osiris! Um pobre estoico!
+
+NÉRO
+
+Detesto os estoicos: o seu desprezo pela arte e a sua linguagem
+repugnam-me; como a sua miseria e falta d'aceio. Por isso mandei matar
+Musonio...
+
+CHILON
+
+Senhôr, eu sou um estoico por necessidade. Cobre o meu estoicismo, ó
+Resplandecente, com uma corôa de rozas e poê-lhe, deante, uma taça de
+vinho e elle cantará Anacréonte!
+
+NÉRO
+
+Gosto de ti.
+
+TIGELINO
+
+Vale quanto peza.
+
+NÉRO
+
+Que sabes dos christãos?
+
+CHILON
+
+Permittir-me-has que chore, divino Cezar?
+
+NÉRO
+
+Não. Aborrecem-me as lagrimas.
+
+CHILON
+
+E terás, cem vezes, razão; porque os olhos que te viram uma vez, não
+devem chorar nunca.
+
+NÉRO
+
+Falla dos christãos.
+
+CHILON
+
+Ouve, divino Isis! De creança me dediquei á filosofia e procurei a
+verdade. Procurei-a na academia de Athenas e na de Alexandria. Tendo
+ouvido fallar da doutrina dos christãos, julguei que fosse uma escola
+onde achasse algumas parcellas da verdade. Relacionei-me com elles e,
+por minha desgraça, o primeiro que conheci foi um tal Glaucos, medico de
+Napoles. Sube por elle, que adoravam um certo Christo que promettera
+exterminar os homens e aniquilar todas as cidades da Terra. Por isso
+odeiam os homens, envenenam as fontes e em suas assembléas cobrem de
+improperios os templos onde adoramos os nossos Deuses. Christo foi
+crucificado, mas prometeu-lhes que no dia em que Roma fosse destruida,
+voltaria á terra, a dar-lhes o reino promettido.
+
+NÉRO
+
+Então é a occasião.
+
+POPPÊA
+
+O povo comprehenderá porque Roma foi queimada.
+
+CHILON
+
+Muitos o sabem já, divina Augusta! N'isso se falla nos Jardins, no Campo
+de Marte, a toda a hora. O povo levanta-se, sedento de vingança! Essa
+vingança será a minha.
+
+NERO
+
+Porquê?
+
+CHILON
+
+Ouvide, divino Cezar! Glaucos, o medico, não me ensinava que a doutrina
+christã ordenasse que se odiassem os homens; pelo contrario dizia que
+esse Christo era uma bôa divindade e que a base da sua doutrina era o
+amôr. Amei Glaucos e tanto d'elle confiei que com elle partilhava o meu
+pão e o meu dinheiro. Um dia, entre Napoles e Roma, deu-me uma punhalada
+e vendeu-me a mulher, a minha Berenice, tão formosa e tão bella! a um
+mercadôr de escravos!
+
+POPPÊA
+
+Pobre homem.
+
+CHILON
+
+Chegado a Roma procurei os seus chefes para obter justiça contra
+Glaucos. Nada obtive; mas fiquei conhecendo o apostolo Pedro, o apostolo
+Paulo, o filho do Zebedeu, Crispo e muitos outros. Sei onde habitavam,
+antes do incendio e onde se reunem. Posso indicar o subterraneo do
+Vaticano e o Cemiterio d'Ostrianum. N'este, ouvi pregar o apostolo
+Paulo. Vi Glaucos degolar creanças para que o apostolo derramasse o
+sangue sobre a cabeça dos neophitos e ouvi Lygia, a filha adoptiva dos
+Plaucios, gabar-se de ter enfiteiçado a tua filha, divina Osiris! e a
+tua, ó Isis, a pequenina Augusta!
+
+POPPÊA
+
+Cezar, vinga a nossa filha! Ouves, Cezar?
+
+NÉRO
+
+Por Hercules!
+
+CHILON
+
+Ouvindo isto quiz apunhala-la. Impediu-m'o o nobre consul Marcos Vinicio
+que estava ao seu lado e que a ama!
+
+NÉRO
+
+Quem?
+
+CHILON
+
+O consul Marcos Vinicio.
+
+NÉRO
+
+É christão? Oh! a tragedia degenera em farça!
+
+CHILON
+
+Senhôr, pela luz que vêm de ti, te juro que o é. Como o é Pomponia, o
+pequeno Aulo, Lygia, Ursus, Lino e milhares d'outros, cujos templos
+secretos posso indicar! As vossas prisões não chegarão para os conter!
+
+POPPÊA
+
+Cezar, vinga a nossa filha. Ordemna.
+
+CHILON
+
+E, appressai vos, aliás, o consul Marcos Vinicio terá tempo de a
+esconder. Sahiu correndo... dir-vos-hei a caza...
+
+TIGELINO
+
+Dou-te dez homens. Vai lá immediatamente.
+
+CHILON
+
+Dez homens... com Ursus lá dentro... nem de longe!
+
+NÉRO
+
+Tigelino, entrego-t'os.
+
+POPPÊA
+
+E, nossa filha, Cezar?
+
+NÉRO
+
+Por todos os Deuses que será vingada! Oh, os christãos! não deixarei um
+sobre a face de Terra! Os leões de Numidia e os tigres de Hircania terão
+o mais lauto banquete de que ha memoria, na historia do mundo!
+
+UM ESCRAVO, entra appressado
+
+Cezar, um velho que se diz ex-centurião da Judêa pede para te fallar.
+
+NÉRO
+
+Que quer?
+
+ESCRAVO
+
+Não o disse. Quer fallar a Cezar...
+
+NÉRO
+
+Entre quem seja.
+
+PAULO, entra, com ar rude
+
+És tu o Cezar?
+
+NÉRO
+
+Creio que sou. E, tú, quem és?
+
+PAULO
+
+Paulo de Tarso!
+
+NÉRO
+
+Não conheço; mas falla... Estou hoje de bom humôr... Vens da Judêa?
+
+PAULO
+
+Lá estive, pela segunda vez, depois de percorrer a Lygia, a Cilicia e a
+Galacia. Depois de ter fundado a egreja de Thessaloníca e de ter prégado
+em Athenas e em Corintho.
+
+NÉRO
+
+Prégado, o quê?
+
+PAULO
+
+A religião de Christo, nosso Senhôr, meu e teu!
+
+NÉRO
+
+És christão? É o primeiro que vejo...
+
+PAULO
+
+Pela graça de Deus.
+
+NÉRO
+
+Qual Deus?
+
+PAULO
+
+O unico que ha. Que está no céu! e que um dia desceu á Terra e morreu
+pelos nossos pecados e pela nossa remissão!
+
+NÉRO
+
+Tambem por mim?
+
+PAULO
+
+Por todos.
+
+NÉRO
+
+Ignorava que devia esse favor a teu Deus! Séneca nunca me fallou d'essa
+divindade! Encarrego-te de lhe agradeceres por mim!
+
+PAULO
+
+O meu Deus é superior ás tuas zombarias...
+
+NÉRO
+
+Mas o que queres, tu, afinal, com o teu Deus? É para me fallares d'elle
+que aqui vieste?
+
+PAULO
+
+Em seu nome.
+
+NÉRO
+
+És christão. Vens pedir o perdão para ti e para os teus?
+
+PAULO
+
+De quê?
+
+NÉRO
+
+Do seu crime.
+
+PAULO
+
+Qual crime?
+
+NÉRO
+
+O de terem incendiado Roma.
+
+PAULO
+
+Gritam isso nas praças, vós o espalhastes! A plebe miseravel, sedenta de
+sangue, pede para elles o circo e a fogueira!
+
+NÉRO
+
+E tel-a hão.
+
+PAULO
+
+Porquê?
+
+NÉRO
+
+Porque fôram elles...
+
+PAULO
+
+Que...
+
+NÉRO
+
+... Incendiaram a cidade.
+
+PAULO
+
+Néro, Imperadôr dos Romanos, Rei do mundo, Cezar augusto... mentes! (Vai
+a lançar-se a elle)
+
+NÉRO
+
+Deixai. Velho, tu és um doido por fôrça.
+
+PAULO
+
+Chamo-me Paulo e sou apostolo de Christo!
+
+NÉRO
+
+É poderoso o teu Deus. Só assim...
+
+PAULO
+
+Tu o vês. Tu és Cezar, cercado dos teus, defendido pela tua guarda
+pretoriana, tendo ao teu dispôr, dezenas de legiões: eu sou Paulo, um
+velho cujas pernas tremem no andar, cujos braços oscilam quando ora, e
+eu faço, pelo meu Deus,--o que tu não serias capaz de fazer pelos teus
+falsos Deuses--rio-me de ti, de teu poder, porque elle não alcança mais
+do que até á morte!
+
+TIGELINO
+
+É o maior alcance.
+
+PAULO
+
+Não é nenhum. A vida da terra é transitoria e mesquinha: só é grande a
+que vem depois da morte: infinita, eterna!
+
+NÉRO
+
+Quem t'a garantiu?
+
+PAULO
+
+O meu Deus; que eu vi morrer na Cruz, no Calvario, ao pé de Jerusalem,
+para nol-a dar em troca! O que prégou a egualdade na Terra, o que
+amaldiçoou o despota e levantou o escravo; o que prégou o desprezo da
+carne e santificou a alma! O que condemnou, ó Romanos, a vossa luxuria
+tôrpe, a vossa prostituição feita de todas as abominações e infamias! O
+Deus dos Christãos! Aquelle que fez com que eu, o mais humilde dos seus
+pastores, vos fale como se fôra o vosso imperador e elle... o
+verdadeiro, pense...
+
+NÉRO
+
+No supplicio a inventar de que sejas digno, divino apostolo!
+
+PAULO
+
+Todos me agradam, Nero. Desde o harpão dos teus gladiadores, até aos
+dentes das tuas feras! Está assente para mim... agradeço-te! Mas ha uma
+legião de pobres que nunca te fizeram mal; que vivem felizes na
+humildade das suas crenças com o seu Deus e que, como elle ensinou, dão
+a Cezar o que é de Cezar e a Christo o que é de Christo! Nunca
+perturbaram os teus prazeres, nunca disputaram o teu poder, nunca
+insultaram publicamente os teus affectos, nem tentaram contra a tua vida
+ou a dos teus. Innocentes d'um crime de que os accusam, só podem
+defender-se, morrendo! São fracos, humildes, ignorados! Não carregues a
+tua memoria com crimes inuteis; porque, em verdade te digo, que se o
+fizeres terás de responder por elles...
+
+NÉRO
+
+Ante quem?
+
+PAULO
+
+Ante o nosso pae, que está no céu!
+
+NÉRO
+
+Cala-te.
+
+PAULO
+
+Cezar, disse!
+
+NÉRO
+
+De mais. Tigelino mette-me na cadeia esse apostolo, esse pastor, a vêr
+se o tal poderoso Deus o tira de lá. (A Paulo) E, quanto ás tuas
+ovelhas, prepara-te para vêres, no Circo, como os leões lhes tosquiam a lã.
+
+PAULO
+
+Não ha piedade na tua alma, Cezar?
+
+NÉRO, ironico
+
+Não sou um Deus...
+
+PAULO
+
+Não. Ha um, só! E, em nome d'elle, eu te amaldiçôo! Assassino de tua mãe
+e de tua irmã! Anti-Christo! O abysmo abre-se a teus pés! a morte vae
+empolgar-te! o tumulo abre a guella para te engulir! Amaldiçôo-te,
+cadaver vivo! porque morrerás no espanto e no terrôr! e serás condemnado
+por todos os seculos dos seculos sem fim! (Agarram-no) Maldito sejas,
+assassino! incendiario! matricida!
+
+TIGELINO, vae a matal-o com o estylete
+
+Cala-te, velho!
+
+NÉRO
+
+Tem audacia, por Jupiter! Guarda-m'o para o circo, quero vêr como é
+feito, por dentro, um apostolo christão!
+
+(Os escravos levam-no, arrastado)
+
+Emfim, consegui distrahir-me, hoje. Vamos jantar.
+
+Dá o braço a Poppêa. Vão sahindo.
+
+O PANNO DESCE
+
+
+QUADRO SEXTO
+
+Jardim de Petronio.
+
+PETRONIO, inspeccionando as mezas e flôres
+
+Poucas flôres. O calôr do incendio chegaria a Cumes?
+
+O INTRODUCTOR
+
+Procura-te um servo de Numa, com uma carta.
+
+PETRONIO
+
+Vem de Roma?
+
+O SERVO, entrando
+
+De Numa. (da-lhe um rolo de pergaminho)
+
+PETRONIO
+
+Como vai o teu senhôr?
+
+O SERVO
+
+Bem, nobre Petronio.
+
+PETRONIO, lêndo
+
+.......... «Aviso-te de que receberás, em breve, ordem de não abandonar
+Cumas e dias depois a de te abrires as veias... Eis o que está decidido
+no palacio de Cezar... Vale. Séneca.» Virá atrazada a ordem. Licio,
+dirás a teu amo que lhe agradeço a carta e que já estava prevenido.
+Leva-lhe esta taça (dá-lhe uma d'oiro) como recordação minha e penhôr de
+nossa longa amizade. (o servo sahe) (ao escravo) Chama Eunice. (rindo)
+Julgava, talvez, surprehender-me esse bandalho de Cezar! Como se eu lhe
+não conhecesse as manchas de toda a vida! Como não respondi, logo, á sua
+carta, decidiu-se. Pois ha-de agradar-lhe a resposta. (Entra Eunice, de
+branco. Petronio, senta-se) Vem Eunice; abraça-me e beija-me! Amas-me?
+
+EUNICE
+
+Se fôsses um Deus, não te amaria mais. (ajoelha-se-lhe aos pés)
+
+PETRONIO
+
+E tu sabes a quem deves o meu amôr?
+
+EUNICE
+
+A ti, á tua bondade!
+
+PETRONIO
+
+E a Chilon.
+
+EUNICE
+
+A Chilon?
+
+PETRONIO
+
+Não te vendeu elle dois fios da cinta da Vénus de Chypre?
+
+EUNICE
+
+Oh, o charlatão! Ninguem pode modificar a vontade dos Deuses?
+
+PETRONIO
+
+Nem mesmo o nobre Chilon?
+
+EUNICE
+
+Nobre?
+
+PETRONIO
+
+É hoje um dos companheiros de Néro. Uma arma de Poppêa. Delatou os
+christãos.
+
+EUNICE
+
+Oh, o infame!
+
+PETRONIO
+
+Tal imperadôr, tal côrte! (acaricia-lhe a cabeça) Mas tu és,
+verdadeiramente, bella, Eunice.
+
+EUNICE
+
+Meu Senhôr!
+
+PETRONIO
+
+Feliz aquelle que, como eu, encontrou o amôr habitando em tal corpo!
+Parece-me ás vezes que sômos duas divindades! Nem Lyzias, nem
+Praxiteles, criaram, nunca, linhas tão bellas! Não ha marmore mais
+quente, mais rozado do que o do teu collo! (Toma um punhado de violetas
+e deita-lh'o pela cabeça e hombros) Eis o que os christãos querem
+abolir: o culto da belleza! Um selvagem não criaria uma tão ridicula
+filosofia. Trata sempre o teu corpo bello, como um dom divino! Sê sempre
+Deusa, bella, adoravel, Eunice! (Beija a)
+
+EUNICE
+
+Tu és tão bom, meu senhor, tão bom, que eu quizera ser realmente uma
+Deusa... e tua escrava, como sou!
+
+PETRONIO
+
+Enganas-te. Tu não és minha escrava: pertencem-te esta casa, estes
+jardins, os meus escravos, os campos e os rebanhos.
+
+EUNICE
+
+A mim?
+
+PETRONIO
+
+A ti. Libertei-te ha muito. Nada te disse. O consul dispensou a tua
+presença. Fiz-te, sem saberes, os meus presentes de nupcias.
+
+EUNICE, beijando-lhe as mãos
+
+Meu senhor e para quê?
+
+PETRONIO
+
+Porque vamos talvez separar-nos.
+
+EUNICE, levantando-se
+
+Como, senhor?
+
+PETRONIO
+
+Socega... terei de fazer uma longa viagem...
+
+EUNICE
+
+Leva-me comtigo.
+
+PETRONIO
+
+Não posso.
+
+EUNICE
+
+Não podes?
+
+PETRONIO
+
+É uma desconhecida viagem... que se tem de fazer, só!
+
+EUNICE, receiando comprehender
+
+Só?
+
+PETRONIO
+
+Só!
+
+EUNICE, comprehendendo
+
+Petronio! meu senhor. (Joelha de novo).
+
+PETRONIO, respondendo á pergunta, muda, do olhar de Eunice
+
+Sim!
+
+EUNICE
+
+Que desgraçada sou! Os deuses não permittirão...
+
+PETRONIO
+
+Eunice, eu quero morrer... como me compete!
+
+EUNICE
+
+Comprehendo, meu senhor. (Domina-se completamente.)
+
+PETRONIO
+
+Tu és bella, livre, rica! A mocidade e a belleza tem os seus direitos.
+Lembra-te de mim... com amor!
+
+EUNICE
+
+Não, meu senhor, eu não sou rica nem livre. Não o quero ser. Sou a tua
+escrava!
+
+PETRONIO
+
+Então eu serei o escravo da minha escrava. (Acaricia-a) Eunice, faz
+servir o jantar. (Dão um longo beijo.) Que a belleza seja sempre adorada!
+
+EUNICE
+
+E a bondade!
+
+Eunice sahe e volta com Nerva, Lucio, Octavia e Julia. Ao entrar uns
+adolescentes coroam-nos de rozas. Trazem-se perfumes. Ha uma orchestra
+invisivel.
+
+TODOS
+
+Salve, Petronio.
+
+PETRONIO
+
+Salve, salve.
+
+Reclinam-se. Os escravos servem.
+
+JULIA
+
+Que noticias de Roma?
+
+PETRONIO
+
+Cesar mandou-me chamar.
+
+JULIA
+
+É teu amigo, Cezar.
+
+PETRONIO
+
+Muito.
+
+OCTAVIA
+
+Acaso serás tu, agora, o querido dos homens, como tens sido sempre o das
+mulheres?
+
+PETRONIO
+
+Que os Deuses se amerciem de mim, formosa Octavia. Na minha edade! (Riem).
+
+NERVA
+
+E, não vais?
+
+PETRONIO
+
+Não vou.
+
+LUCIO
+
+Ficarás então em Cumas?
+
+PETRONIO
+
+Para sempre.
+
+OCTAVIA
+
+E o imperador?
+
+PETRONIO
+
+Que cante e dance.
+
+JULIA
+
+É a sua maneira de descançar.
+
+PETRONIO
+
+É; porque para se fatigar vae matando os christãos.
+
+NERVA
+
+A perseguição continúa?
+
+PETRONIO
+
+Cada vez mais terrivel.
+
+OCTAVIA
+
+Haverá, ainda, muitas tardes de circo?
+
+PETRONIO
+
+É natural. Os christãos são já aos milhares, em Roma, como em outras
+cidades da Italia, na Grecia e na Asia. Ha-os entre os legionarios,
+entre os pretorianos, nas melhores familias de Roma.
+
+NERVA
+
+Dizem que nunca houve tres tardes de circo, como as dos christãos!
+
+PETRONIO
+
+Nunca!
+
+JULIA
+
+Estiveste em todas, Petronio?
+
+PETRONIO
+
+Em todas.
+
+OCTAVIA
+
+Amas o espectaculo?
+
+PETRONIO
+
+Não: necessitava de lá estar.
+
+LUCIO
+
+Conta-nos.
+
+PETRONIO
+
+Nenhum de vós esteve em Roma?
+
+NERVA
+
+Nenhum; creio.
+
+PETRONIO
+
+Pois foram celebres as tardes. Nero lançou a ordem de prisão.
+Agarraram-se homens e mulheres, velhos e novos, creanças e virgens! Na
+primeira tarde, vestiram-nos com pelles de animaes e largaram-lhes os
+cães fulvos de Peleponéso e os molossos zebrados dos Pyrenéus,
+esfaimados, de dias. As prezas, porém, eram extranhas, e os cães
+hesitaram no attaque. Mas logo que o primeiro enterrou os dentes na
+espadua d'uma rapariga, os outros, ao verem sangue, cahiram sobre o
+monte dos christãos, ajoelhados! Então, por entre as convulsões, os
+estertores de agonia, os uivos dos mastins, ouviam-se vozes, que diziam:
+pelo Christo! pelo Christo! As feras mutilavam e, sobre a arena, corria
+em rêgos o sangue entre membros decepados e os corpos sedentos dos cães
+insaciaveis! O cheiro do sangue e dos intestinos abertos cobriu os
+perfumes da Arabia e encheu o circo! Os cães não venciam a tarefa. O
+povo rugindo, em delirio, pediu os leões. Viram-se então cabeças
+desapparecer em guellas vermelhas, peitos abertos com um roçar de garra,
+corações e ventres extravazados, e o ruido dos ossos triturados por
+maxillas de ferro! O povo esmagava-se, descendo as bancadas, para vêr
+melhor: os leões enchiam de trovões as arcarias do Circo!
+
+OCTAVIA
+
+E acabou?
+
+PETRONIO
+
+Não. Havia ainda muitos vivos. Abriram-se as jaulas e sahiram os tigres
+do Euphrates, as pantheras de Java, ursos, lobos, hyenas, chacaes! A
+scena perdeu toda a apparencia de realidade! Entre os gritos, os urros,
+os rugidos, ouviam-se gritos, aqui e ali, pelas bancadas, gritos, entre
+dentes, de mulheres em espasmo, cujas forças se iam exgotando!
+Empallideciam os rostos e vozes gritavam: basta! basta! Um exercito de
+Numidas, armados de flechas, fez recolher as féras. Limpou-se a arena;
+as fontes jorraram aguas perfumadas e uma nuvem de adolescentes,
+vestidos de amôres, encheu o circo de petalas de rosas! Caso extranho e
+unico no circo: Nero desceu á arena, tomou a cithara e cantou um hymno!
+
+LUCIO
+
+E foi applaudido?
+
+PETRONIO
+
+Como sempre.
+
+OCTAVIA
+
+A mim era-me impossivel assistir a uma tarde de circo.
+
+JULIA
+
+E tu, Petronio, cujo gosto e prazeres teem um tão grande cunho de
+elegancia e de delicadeza...
+
+PETRONIO
+
+Comecei por dizer, bella Julia, que precisava de lá estar.
+
+NERVA
+
+E, a segunda?
+
+LUCIO
+
+Conta-nos a segunda.
+
+PETRONIO
+
+Foi menos interessante. Limitaram-se a queimar muitos e a sacrificar os
+restantes. Todo o prazer do espectaculo, para quem o achava, estava em
+gozar a morte lenta, a agonia das victimas! (Reparando) Por Pollux, eu
+deixo de contar, se apenas empregaes os vossos sentidos em me ouvir.
+
+NERVA
+
+Escutamos-te e comemos, ao mesmo tempo.
+
+PETRONIO
+
+Mas não bebeis. (faz signal; os escravos enchem as taças)
+
+LUCIO
+
+Conta a terceira.
+
+OCTAVIA
+
+É mais curiosa, a terceira tarde?
+
+PETRONIO
+
+Terrivelmente curiosa, para mim. Foi de noite. Na noite a seguir áquella
+em que Néro passeiou, entre crucificados christãos, breados, a arder,
+pelos jardins!
+
+JULIA
+
+Que crueldade!
+
+PETRONIO
+
+E quê cheiro! A peripecia extranha foi esta. Quando soaram as cornetas,
+correu-se a grade d'um subterraneo e um homem colossal, um Lygio, de
+côxas herculeas e braços, os musculos do peito que pareciam dois escudos
+unidos, tal era o relêvo, appareceu, na arêna! Quando se esperava que
+inimigo lhe dariam, abriu-se a grade fronteira e um toiro da Hespanha,
+negro como a noite, rompeu pelo circo, trazendo, atado ás hastes, no
+cachaço, o corpo semi-nú d'uma virgem christã. Lygia! rugiu o escravo ao
+conhecer a rapariga! Lygia, tem coragem!... E, de espinha curva, rapido,
+cortando a terra, o olhar em braza, as mãos em garra... aproximou-se do
+toiro, e d'um salto, cahiu-lhe na frente, agarrando lhe os cornos!
+Fez-se um silencio profundo! Ouvir-se-hia o vôo d'uma môsca! Homem e
+toiro quedaram se na imobilidade do marmore, semelhantes a um trabalho
+d'Hercules, esculpido! Para se libertar do jugo, o toiro, fincando-se
+nas patas, dobrou-se, em arco: turgiam-se os musculos do homem a estalar
+a pelle que se fazia purpura! No peito de Néro, como no das vestaes,
+como nos do povo inteiro, os corações saltavam! Corria o suor pelas
+testas! A palavra expirava nos labios! Homem e toiro, n'um suprêmo
+esforço, dir-se-hiam pregados no solo! Estes momentos duraram séculos.
+Subitamente, ouviu se como um vagido surdo, e, como n'uma allucinação, os
+olhos viram a cabeça da fera, voltar, voltar, quasi imperceptivelmente...
+Ouvia-se o respirar offegante do homem; mas a cabeça do toiro continuava
+a voltar-se, lentamente, lentamente... quando, de subito, da bôcca
+sahe-lhe, pendida a lingua cheia de baba! Um momento mais... um ranger
+de vertebras... e n'um tremôr subito, o olhar baço, o pescoço estendido,
+como uma massa inerte, o toiro cahe!... morto!
+
+NERVA
+
+Por Jupiter, eis ahi um homem!
+
+JULIA
+
+Por Venus!
+
+LUCIO
+
+Por Hercules!
+
+OCTAVIA
+
+E, foram perdoados?
+
+PETRONIO
+
+O povo ergueu-se pedindo-o. Néro recuzava, quando, de subito, um bello
+rapaz, um guerreiro, salta á arena, rasga a tunica no peito, para
+mostrar as cicatrizes das batalhas e levanta os braços para o povo,
+cobrindo com o manto o corpo nú da christã. O povo rugiu improperios e
+Néro, com mêdo, cedeu.
+
+JULIA
+
+Quem era esse mancebo? Um amante?
+
+PETRONIO
+
+Um apaixonado, que a pretendera arrancar á prizão que tentava salval-a,
+ainda, nos subterraneos do circo, e que, sem esperança, estava a meu
+lado, branco como um cadaver!
+
+JULIA
+
+Chamava-se?
+
+OCTAVIA
+
+Quem era?
+
+PETRONIO
+
+Marcos Vinicio, o filho de minha irmã. Eis porque vos disse do começo,
+bella Octavia, que precizava de lá estar.
+
+JULIA
+
+Que tormentos d'amante!
+
+PETRONIO
+
+A felicidade é como a vida: nasce entre dôres!
+
+NERVA
+
+Que é feito d'elles?
+
+PETRONIO
+
+Cazaram e foram para o campo, para a beira mar, afogar em beijos os
+terrôres e lagrimas passadas!
+
+OCTAVIA
+
+Que os Deuses os protejam.
+
+PETRONIO
+
+Pois brindemos aos Deuses pela sua felicidade. (bebem)
+
+JULIA
+
+Amava-lo muito, Petronio?
+
+PETRONIO
+
+Tanto, que arrisquei, por elle, o favôr de Cezar!
+
+NERVA
+
+Como?
+
+PETRONIO
+
+Defendendo os christãos.
+
+LUCIO
+
+Os christãos?
+
+PETRONIO
+
+Os christãos que me importavam? Defendia Lygia e Marcos.
+
+NERVA
+
+Espantava-me que defendesses os Deuses estranhos.
+
+PETRONIO
+
+Nem os estranhos, nem os nossos.
+
+LUCIO
+
+Não amas os nossos Deuses?
+
+PETRONIO
+
+Muito... para figuras de rethorica!
+
+OCTAVIA
+
+O que amais então no mundo, elegante sceptico?
+
+PETRONIO
+
+As arvores e as flôres; as joias e os perfumes; as estatuas de
+Praxiteles e os bronzes de Corintho; os vinhos velhos da Grecia e as
+mulheres novas... de toda a parte.
+
+JULIA
+
+Tendes amado muito.
+
+PETRONIO
+
+E, ainda os livros, a poesia, os versos--excepto os de Néro--.
+
+OCTAVIA
+
+Dizem que os scepticos são, sempre, alegres.
+
+PETRONIO
+
+Será por isso que me esforcei por viver, sempre, alegremente, e o farei
+até ao fim... o que será facil... agora! (tomando a taça) Á Rainha de
+Chypre! por Eunice!
+
+NERVA
+
+Aos Deuses, pela felicidade de Petronio!
+
+EUNICE, aparte a Petronio
+
+Ao meu senhôr! (bebem os dois, sós)
+
+PETRONIO, levantando-se um pouco sobre o leito
+
+Amigos, perdoai-me o fazer-vos um pedido: eu quizera que cada um de vós
+se dignasse de acceitar a taça com que brindou aos Deuses e á minha
+felicidade. (toma a taça) Eis a taça do meu brinde á rainha de Chypre,
+por Eunice. Nenhuns outros labios beberão por ella; nenhuma outra mão
+ousará levantal-a, em honra de outra divindade! (atira-a ao chão e
+parte-se: espanto) Amigos, alegrai-vos. A velhice é a triste companheira
+dos nossos ultimos annos. Dou-vos um exemplo e um conselho.
+
+NERVA
+
+Que queres fazer?
+
+PETRONIO
+
+Gozar, beber, contemplar as fórmas divinas que repoisam a meu lado e
+adormecer, emfim, n'um sonho, cercado de rozas. Fiz já as minhas
+despedidas a Cezar. Ouvide o que lhe mandei dizer, no meus adeus. (tira
+um rolo e lê) «Sei, divino Cezar, que me esperas impacientemente e que
+para premiares a minha ida para junto de ti, não duvidarias dar-me o
+comando das tuas guardas e fazer de Tigelino um almocreve, officio para
+que parece ter sido creado pelos Deuses! Pelo Hades e em particular
+pelos manes de tua mãi, de teu irmão, de tua mulher, juro-te que me é
+impossivel ir. A vida é um thesoiro de que eu sube extrahir as mais
+preciosas joias; mas tem coisas, tambem, que confesso sou incapaz de
+suportar até ao fim! Não vás pensar que me indignou o assassinato de tua
+mãi, de teu irmão, de tua mulher; que me revoltei contra o incendio de
+Roma; que me offendeu o teu processo de matar todos os homens honrados
+de teu imperio! Não; mas por largos annos ainda, deixar-me esfolar os
+ouvidos pelo teu canto, vêr as tuas pobres tibias escoicear nas danças
+pirricas, ouvir-te tocar, declamar, recitar a teu modo--pobre poeta
+d'agua dôce--semelhante perspectiva é superior a minhas fôrças. Resolvi
+morrer! Roma tapa os ouvidos; o universo cobre-te de gargalhadas! E, eu?
+eu não quero mais envergonhar-me de ti! O ladrar de Cerebero ser-me-ha
+menos penoso: não sou amigo d'elle, não tenho de córar pela sua voz!
+Goza e passa bem, mas deixa-te de musica! assassina, mas não faças
+versos! envenêna, mas para-te de dançar! incendeia as cidades, mas deixa
+em paz a cithara! Tal é o conselho do teu amigo, Petronio.» (dá o rolo
+ao escravo) Queima esta carta e manda entrar o médico.
+
+NERVA
+
+... Mas é a morte!
+
+LUCIO
+
+E, nós...?
+
+PETRONIO, rindo sereno
+
+Nada receieis. Nenhum tem necessidade de dizer que ouviu ler esta carta.
+(Faz signal ao medico que entra. Este passa-lhe no pulso uma anilha de
+oiro e com um estylete abre-lhe a veia radial).
+
+EUNICE
+
+Senhor, se os Deuses me dessem a immortalidade, se Cezar me desse um
+imperio, para te deixar, eu não faria nunca! Tenho pois o direito de ir
+comtigo... concede-m'o!
+
+PETRONIO
+
+Tu amas me, verdadeiramente, divina! Vem commigo, pois, se assim o queres.
+
+EUNICE, alegre, estendendo o braço ao medico
+
+Abre. (O medico faz o mesmo. O sangue corre. Eunice inclina se sobre o
+peito de Petronio).
+
+PETRONIO
+
+Phalerno! (Um escravo deita-lh'o) Servide antes, ás damas, o xaroposo
+Careno, ou o opalino Chio, que convida a amar! (Inclina se para Eunice)
+Não queres tu, Divina, que bebamos, na tua taça, pela ultima vez, aos
+Deuses, por toda a felicidade que nos deram?
+
+EUNICE
+
+Sim, meu senhor. (Bebem os dois).
+
+O INTRODUCTOR
+
+Marcos Venicio e Lygia.
+
+PETRONIO
+
+Bem vindos! (Ao medico) Não posso morrer ainda; estanca-me o sangue. (O
+medico liga-lhe o pulso, rapido).
+
+MARCOS, entra
+
+Salve senhores! salve Petronio.
+
+TODOS
+
+Salve Marcos!
+
+TODOS
+
+Salve Lygia!
+
+NERVA
+
+Salve, formosa Lygia!
+
+PETRONIO aos dois que chegam junto d'elle
+
+Salve! Salve! (Os escravos trazem duas cadeiras. Marcos e Lygia
+sentam-se). Que vieste fazer a Cumes, Marcos?
+
+MARCOS
+
+Escrevemos-te. Queriamos que fosses passar comnosco uns tempos na nossa
+casa da Sicilia. A tua carta entristeceu-nos. Resolvemos vir-mos
+buscar-te. És preciso á nossa ventura!
+
+PETRONIO
+
+Admiro o teu coração: como me admira que dois noivos se possam lembrar
+d'um amigo ausente.
+
+LYGIA
+
+Tu és para nós muito caro. Devemos-te a maior parte da nossa felicidade!
+
+PETRONIO
+
+Foi o vosso Christo quem vos salvou! (Levemente ironico).
+
+LYGIA
+
+Não rias...
+
+PETRONIO
+
+Oh, não; mas é preciso confessar que Ursus e o povo romano tambem
+fizeram alguma coisa para o caso.
+
+MARCOS
+
+Vem comnosco, Petronio.
+
+PETRONIO
+
+Não, feliz esposo da princeza Aurora: se eu tivesse desejo de ir para
+onde me queres levar, eu não o poderia fazer. Se alguma coisa depois da
+morte--ao contrario da opinião de Pyrrhon--subsiste e vive, a que
+animava o corpo da minha bella, de cabellos d'oiro, a minha Eunice,
+espera-me! (Indicando-a) Está morta! (Arranca a facha do pulso e aperta
+Eunice contra o peito).
+
+MARCOS
+
+Petronio!
+
+LYGIA
+
+Meu amigo!
+
+PETRONIO
+
+Não vos afflijaes! Para vós nasce a aurora da vida, para mim, pôz-se já
+o sol, cerca-me o crepusculo! Tinha de ser: conheces Néro, comprehendes
+o resto. Vivi como quiz, morro como me apraz! Não vos afflijaes! A morte
+é um episodio da vida! Já vês, Marcos, que te enganas, se pensas que só
+o teu Deus dá a tranquillidade na morte! Vê como morro tranquillo.
+Platão diz que a virtude é uma musica e a vida do sabio uma harmonia! Se
+assim é, vivi e morro virtuoso. (Toma a taça) Permitte, virtuosa Lygia,
+que me despeça de ti, com as palavras com que te saudei, na primeira vez
+que nos vimos. «Vi durante a minha vida povos sem conto, mas uma mulher
+que te egualasse, eu não vi nunca!» (Aos dois) Se eu tenho uma alma,
+ella irá poisar junto á vossa casa, na forma d'uma borboleta, ou, como
+querem os egypcios, na de um falcão. Só, assim, irei. (Levantando a taça
+e todos) O ultimo brinde aos noivos. (A voz enfraquece levemente) Que a
+terra de Sicilia se metamorfoseie para vós n'um jardim dos Hesperides,
+que os Deuses dos campos, dos lagos, das fontes, façam nascer as flores
+sob os vossos pés, e que em todos os acanthos dos vossos pyristilos
+vivam e noivem, eternamente, as pombas brancas! (Bebe e todos.
+Inclina-se a beijar a cabeça d'Eunice).
+
+O INTRODUCTOR
+
+Um servo de Numa.
+
+PETRONIO
+
+Outro?
+
+O SERVO
+
+Nobre Petronio. Chego de Roma a toda a brida, mandado por Numa, meu
+senhor, dizer-te...
+
+PETRONIO
+
+O quê?
+
+O SERVO
+
+Revoltou-se Vindex, com as legiões da Galia. A guarda pretoriana,
+amigos, escravos, todos abandonaram Cezar. Todos fugiram do palacio e o
+deixaram só! Só, de mêdo, suicidou-se!
+
+PETRONIO
+
+É tarde! (Desmaia e morre sobre a cabeça de Eunice).
+
+MARCOS
+
+Que dôr!
+
+VOZES
+
+Mortos! O bom Petronio! A bella Eunice!
+
+MARCOS
+
+Sabeis, vós, amigos, o que morreu? O mundo romano: a Graça e a Belleza!
+
+LYGIA, joelhando
+
+Ó Christo! tende piedade das suas almas!
+
+(O PANNO DESCE, LENTO)
+
+FIM DO TERCEIRO E ULTIMO ACTO
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Petronio, by Marcelino Mesquita
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK PETRONIO ***
+
+***** This file should be named 28154-8.txt or 28154-8.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
+ https://www.gutenberg.org/2/8/1/5/28154/
+
+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
+produced from scanned images of public domain material
+from the Google Print project.)
+
+
+Updated editions will replace the previous one--the old editions
+will be renamed.
+
+Creating the works from public domain print editions means that no
+one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
+permission and without paying copyright royalties. Special rules,
+set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
+copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
+protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project
+Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
+charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
+do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
+rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
+such as creation of derivative works, reports, performances and
+research. They may be modified and printed and given away--you may do
+practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
+
+
+
+*** START: FULL LICENSE ***
+
+THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
+PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
+
+To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
+distribution of electronic works, by using or distributing this work
+(or any other work associated in any way with the phrase "Project
+Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
+Gutenberg-tm License (available with this file or online at
+https://gutenberg.org/license).
+
+
+Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
+electronic works
+
+1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
+electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
+and accept all the terms of this license and intellectual property
+(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
+the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
+all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
+If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
+Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
+terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
+entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
+
+1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
+used on or associated in any way with an electronic work by people who
+agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
+located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
+copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
+works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
+are removed. Of course, we hope that you will support the Project
+Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
+freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
+this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
+the work. You can easily comply with the terms of this agreement by
+keeping this work in the same format with its attached full Project
+Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.
+
+1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
+what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in
+a constant state of change. If you are outside the United States, check
+the laws of your country in addition to the terms of this agreement
+before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
+creating derivative works based on this work or any other Project
+Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning
+the copyright status of any work in any country outside the United
+States.
+
+1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
+
+1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate
+access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
+whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
+phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
+Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
+copied or distributed:
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
+from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
+posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
+and distributed to anyone in the United States without paying any fees
+or charges. If you are redistributing or providing access to a work
+with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
+work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
+through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
+Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
+1.E.9.
+
+1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
+with the permission of the copyright holder, your use and distribution
+must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
+terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
+to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
+permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
+
+1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
+License terms from this work, or any files containing a part of this
+work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
+
+1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
+electronic work, or any part of this electronic work, without
+prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
+active links or immediate access to the full terms of the Project
+Gutenberg-tm License.
+
+1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
+compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
+word processing or hypertext form. However, if you provide access to or
+distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
+"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
+posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
+you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
+copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
+request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
+performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
+
+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
+access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
+that
+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
+- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
+ does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
+ Project Gutenberg-tm works.
+
+- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
+1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
+public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
+collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
+works, and the medium on which they may be stored, may contain
+"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
+corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
+property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
+computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
+your equipment.
+
+1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
+of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
+Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
+Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
+liability to you for damages, costs and expenses, including legal
+fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
+LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
+PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
+TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
+LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
+INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
+DAMAGE.
+
+1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
+defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
+receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
+written explanation to the person you received the work from. If you
+received the work on a physical medium, you must return the medium with
+your written explanation. The person or entity that provided you with
+the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
+refund. If you received the work electronically, the person or entity
+providing it to you may choose to give you a second opportunity to
+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
+providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.