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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
+póde dormir. Nº 9 (de 12), by Camilo Castelo Branco
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 9 (de 12)
+
+Author: Camilo Castelo Branco
+
+Release Date: February 23, 2009 [EBook #28155]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 9 (DE 12) ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+
+
+
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+
+
+NOITES DE INSOMNIA
+
+OFFERECIDAS
+
+A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
+
+POR
+
+Camillo Castello Branco
+
+
+PUBLICAÇÃO MENSAL
+
+
+N.º 9--SETEMBRO
+
+LIVRARIA INTERNACIONAL
+DE
+ERNESTO CHARDRON
+_96, Largo dos Clerigos, 98_
+
+PORTO EUGENIO CHARDRON
+_4, Largo de S. Francisco, 4_
+BRAGA
+
+1874
+
+
+PORTO
+
+TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
+
+62--Rua da Cancella Velha--62
+
+1874
+
+
+BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
+
+
+NOITES DE INSOMNIA
+
+
+SUMMARIO
+
+
+_Os salões, pelo exc.mo visconde de Ouguella--Condemnação de corpo e
+alma--O doutor Botija--O palco portuguez em 1815--Bibliographia (Senna
+Freitas, Cunha Vianna, Monsenhor Joaquim Pinto de Campos)--Que
+segredos são estes_
+
+
+
+
+OS SALÕES
+
+
+Os capitulos, assim intitulados e publicados nestes livrinhos, vão ser
+reproduzidos em volume com outros, complementares da obra. Teremos,
+pois, um livro de mão primorosa, de extenso folego, portuguez na fórma,
+bem que estranho á indole nacional. Entre portuguezes, os estudos
+sociaes, profundos e largos, não se ajustam á irrequieta vertigem dos
+que navegam de costeagem com o baixel da politica.
+
+Aqui proeja-se ao descançado porto das situações gananciosas, e deixa-se
+ao acaso resolver os problemas.
+
+O snr. visconde de Ouguella revelou-se n'este severo estudo um espirito
+de grande alcance, e discipulo dos que melhormente professam a sciencia
+historica. Se algumas vezes a sua penna roça asperrima na crusta das
+ulceras que lhe fazem nauseas, resgata-se briosamente avoando ás regiões
+altas, no rasto luminoso das augustas verdades.
+
+O livro, que ha de ser a affirmação da honrada consciencia que nunca,
+desde a primeira mocidade, apostatou da religião do berço, é dedicado a
+uma formosa criança, Ramiro Soares de Oliveira da Silva Coutinho, filho
+do snr. visconde de Ouguella.
+
+São maviosas de affecto paternal e de nobre civismo estas expressões que
+o pai dirige á alma que se está formando entre as caricias de uma
+familia virtuosa: _É incentivo, estimulo e lição, para seguir, como
+luzeiro e farol do seu futuro, as nobilissimas tradições liberaes,
+legadas por seu avô, e meu presadissimo pai, Ricardo Sylles Coutinho.
+Seja este tambem o testemunho do meu acrisolado amor filial._
+
+O prefacio que precede os _Salões_ é igual a elles na elevação e rigidez
+da idéa, no donaire e esplendor da linguagem; mas avantaja-se ao
+restante como prognostico dos brilhantes capitulos que hão de proceder
+de tão desprendido e intransigente programma.
+
+São raros em Portugal os escriptores que, á imitação do visconde de
+Ouguella, podem enlaçar a independencia com o talento, e esculpir no
+frontal do templo, onde os vendilhões armam tenda de bufarinheiros a
+legenda, que lhe compete.
+
+Eis o prefacio:
+
+
+AO LEITOR
+
+ La pensée est pouvoir.
+ Tout pouvoir est devoir.
+
+ VICTOR HUGO.
+
+Este livro tem uma missão, e tem um fim.
+
+Escripto para o povo, a sua missão é levar a luz ás ultimas camadas
+sociaes. Diffundil-a no tugurio do operario, e na choupana humilde do
+aldeão.
+
+Inspirado nas mais sinceras crenças da democracia, aceita, como fim,
+arrancar ás garras d'esse immenso desalento e d'essa torpe
+corrupção--que por ahi vai gangrenando as sociedades--os generosos
+espiritos populares, para que as almas se não gelem, e os corações--que
+vivem de nobres aspirações--se não atrophiem, n'este completo
+desmoronamento de todas as instituições existentes.
+
+O author d'este livro não tem pretenções, nem vaidades, nem receios. Não
+se julga apostolo, nem propheta, nem vidente. O mais obscuro dos
+obreiros d'este seculo--como é, e quer ser--escuta, attento, o ruido que
+vai lá fóra, nos paizes onde a idéa tem um culto, onde as crenças
+consubstanciam religiões, onde as sociedades se debatem na agonia de
+organisações politicas, sociaes e religiosas, que tendem a desapparecer;
+e pelo facto de existir, e de se considerar obrigado ás luctas da
+existencia, giza o terreno em que combate, sem orgulho, sem odios, e sem
+rancores pessoaes.
+
+Volta-se para os seus irmãos no trabalho, operarios tambem--qualquer que
+seja a fórma por que exercem a sua actividade, e diz-lhes:
+
+«Eu penso assim. Aqui tendes o producto das minhas meditações, e dos
+meus estudos. Dou-vos os lavores do meu espirito. Combatei-me, ou
+enfileirai-vos commigo.»
+
+Eis a razão do livro.
+
+Vêde, agora, a sua desenvolução.
+
+O author crê nas inspirações grandiosas do povo, crê na mocidade
+estudiosa das escolas, e crê nas leis immutaveis, fataes, e inexoraveis
+do progresso, que acompanham a vida das gerações, e que nos conduzem a
+uma determinada somma de civilisação, a um especimen de perfectibilidade
+relativa, quaesquer que sejam os cyclos de descrença, de abjecto
+abatimento, de egoismo individual, e de corrupção momentanea em que se
+debatem as sociedades.
+
+O author d'este livro é espiritualista.
+
+Devotado ás leis sagradas e eternas por que se rege a humanidade,
+curvando-se, submisso e reverente, á vontade absoluta, que governa, e
+dirige o universo, pronuncia a medo, e na humildade da sua existencia, o
+nome do Ente Supremo, e crê firmemente, que todos os homens são iguaes.
+Ajoelha, e adora a omnipotencia, a infinita bondade, e sublime
+misericordia de Brahma, Zeus, Jezeu, Elohim, Jehovah, Allah, Osiris,
+Jupiter, Deus, Christna, Christo, finalmente do Eterno--qualquer que
+seja o nome sagrado, e mysterioso, por que as gerações modernas o
+pretendam appellidar.
+
+O seculo dezoito teve por missão destruir.
+
+O seculo dezenove é a transição, que liga, e une civilisações
+heterogeneas, é o parenthesis aberto n'estas luctas do espirito, n'esta
+convulsão moral, em que as sociedades actuaes trabalham para se
+regenerarem radicalmente, sob um differente aspecto, e aceitando novos
+dogmas, e diversas doutrinas.
+
+O author d'este livro não despreza o passado. Não o injuria, não o
+diffama, nem o calumnia. Explica-o até, e, por vezes, justifica-o.
+
+Mas aceita jubilosamente a corrente das idéas do seu seculo, e louva o
+Eterno na effusão das suas crenças.
+
+Todavia não volta o rosto, como a mulher de Loth, para contemplar
+Sodoma.
+
+Só a magestosa omnisciencia do Ser Supremo póde avaliar os entes que
+creou.
+
+Ao sentar-se nos bancos das escolas superiores, no prefacio de um
+livro--dado a lume por um irmão d'armas, ferido, e cahido moribundo, já,
+na arena da discussão, pelas luctas da palavra--escreveu as seguintes
+linhas:
+
+«Pergunta-se--se os gozos, se os prazezes pertencem unicamente a um
+pequeno numero de homens?--se a maioria, se as classes proletarias, se
+os Spartacus da civilisação moderna teem de escolher entre o passamento
+ignominioso nas gemonias do seculo dezenove, ou nas barricadas, nascidas
+do desespero, que a miseria e o ardor do martyrio obrigam a levantar?
+Pergunta-se--se o monopolio, se a concorrencia, são os dogmas injustos e
+tyrannicos, que hão de destruir as massas, como o carro do idolo
+Jagrenat, entre os indios, esmaga o craneo dos brahmanes, ou se a
+associação, esse credo dos assalariados das industrias, que os
+economistas victoriam--póde acabar com o pauperismo, e obstar á
+ignorancia dos povos, palladio deshumano a que os ambiciosos se
+seguram?»
+
+Ainda hoje o author d'estas linhas formúla as mesmas perguntas, com a
+mesma severidade, e aceita a responsabilidade d'ellas na tranquillidade
+constante, e inalteravel do seu espirito.
+
+A quem o accusar de leviano, de voluvel, e de imaginoso, no seio d'este
+hediondo tropel de ambições, que renegam, e apostasiam a cada
+hora--redemoinhando, revoltas, em torno do poder, seja qual fôr a sua
+origem ou procedencia--responde o author d'este livro com o sorriso do
+desprezo, e com a consciencia segura de que não sabe, não póde, nem quer
+deslizar nunca da lei augusta e sacrosanta do dever.
+
+Os espiritos, para quem a libré é mais do que um distinctivo, e uma
+triste e crapulosa missão, porque chega a ser um sacramento imprimindo
+caracter,--esses, que se curvem, que se dobrem, e que degradem a face
+humana, varrendo, com a fronte, o pó das alcatifas e alfombras das
+regias aulas e alcaceres dos principes, magnates e satrapas do poder.
+
+Pouco importa.
+
+O vocabulo _lacaio_ tem, na sua etymologia, a justa e bem merecida
+ignominia.
+
+É a pena que a dignidade humana confere á abjecção.
+
+Um dos primeiros--senão o primeiro escriptor d'este seculo--narra o
+seguinte:
+
+«Octavio Augusto, na madrugada da batalha de Accio, encontrou um jumento
+a quem o burriqueiro alcunhára ou appellidára _Triumphus_. Este
+Triumpho, dotado com a faculdade de zurrar, pareceu-lhe de bom agouro.
+Octavio Augusto ganhou a batalha, lembrou-se do Triumpho, mandou-o
+fundir, e esculpir em bronze, e collocou-o no capitolio. Burro
+capitolino foi elle--mas ficou sempre burro.»
+
+Eis a historia das vaidades humanas.
+
+«O habito não faz o monge», diz a sabedoria dos povos.
+
+As grandezas da terra são, as mais das vezes, o pelourinho de todas as
+ignominias--assim como do sambenito, e da cana verde da irrisão
+pharisaica surgem, em ondas de luz, a magestosa auréola do martyrio, e a
+apotheose deslumbrante, que a posteridade engrandece e divinisa.
+
+O author d'este livro não crê nos partidos militantes, nos diversos
+grupos parlamentares, nas ambições e cubiças, que fervilham em torno das
+insignias consulares--quer se chamem opposições ou governo.
+
+Escalar o poder pelo poder, aceital-o em todas as condições, á sombra de
+todas as bandeiras, na defeza de todos os codigos, e na metamorphose de
+todos os principios, parece ser a maxima inspiração de todas estas
+phalanges, ávidas e sedentas de governo, que reputam, como suprema
+beatitude, o ineffavel gozo de dirigirem uma situação politica qualquer.
+
+D'aqui vem o scepticismo partidario, a indifferença profunda, e a
+descrença completa do povo.
+
+N'isto, como em tudo, o author d'este livro está ao lado do povo.
+
+Basta.
+
+Fecha-se este prologo com uma simples remissão ao prefacio ou
+introducção do livro, que fica referido.
+
+Assim termina esta advertencia ao leitor:
+
+«A educação, nas classes pobres da nossa terra, tem sido desprezada: o
+povo ignora tudo, porque tudo lhe é vedado. Convinha, pois, que á frente
+de um livro, que narra com singeleza as tristes vicissitudes por que a
+governação entre nós tem passado; que aponta, sem exagerações, como a
+liberdade vai sendo sophismada, fossem estampadas algumas linhas, que
+levassem a esperança a corações para quem a educação é um miseravel
+scepticismo, e a vida um sudario de pungentes dôres.»
+
+Estas linhas, escriptas ha vinte annos, firma-as o author d'este livro,
+com a convicção plena de que ainda não deslizou d'estas crenças, nem
+renegou, n'um só momento, a religião da sua mocidade.
+
+Em mil oitocentos cincoenta e seis, quando a pena de morte era lei entre
+nós, quando o homicidio legal erguia a sua sinistra, e hedionda
+influencia n'esta terra--terminava o author d'este livro, em presença de
+um tribunal e em defeza de um réo, pelo seguinte modo, a sua oração:
+
+«Quanto a mim, resta-me a honra de ter pelejado com a forca, esta peleja
+solemne e derradeira. Se eu ficar vencido, se triumphar o carrasco,
+tanto peor para o seculo em que combati, e para a philosophia que
+invoquei.»
+
+Foi já rasgada a lei do homicidio. Falleceu o ultimo carrasco.
+
+Bemdito seja Deus!
+
+Venceu aqui a civilisação.
+
+É para crêr, que venceu, tambem, a justiça absoluta, a consciencia, e a
+sociedade.
+
+A inviolabilidade da vida humana é mais do que um principio, mais do que
+uma doutrina, mais do que uma lei: é um culto prestado ao Ente Supremo.
+
+Deixai, agora, que o author d'este livro peleje pela democracia.
+
+É esta, e só esta a verdadeira religião do futuro: é a obra sublime do
+Creador.
+
+Lisboa, 24 de julho de 1874.
+
+ VISCONDE DE OUGUELLA.
+
+
+
+
+CONDEMNAÇÃO DE CORPO E ALMA
+
+
+A lei dos justiçados, antes de 5 de fevereiro de 1587, condemnava o
+corpo e a alma, não admittindo á communhão os condemnados á morte. Os
+juizes faziam-se intrepretes da justiça divina. Trancavam as portas do
+purgatorio á contrição, privando a alma do sacramento, que a theologia
+declarára indispensavel ao viador da eternidade, por fóra das regiões
+das trevas infinitas.
+
+Não sei onde os legisladores acharam o esteio de tão cruel severidade
+com as almas dos justiçados. Não podemos, porém, duvidar d'este desprezo
+da lei de Jesus, em época tão assignalada de bons theologos,
+comprehendida nos reinados de D. Manoel e D. João III. Que os
+condemnados á morte não eram admittidos á communhão deprehende-se do
+tratado _De sacramentis proestandis ultimo supplicio damnatis_, do
+famoso jurisconsulto Antonio da Gama, já no cap. I, já na dedicatoria ao
+cardeal D. Henrique, impressa pela primeira vez em 1559, e não em 1554,
+como diz o abbade de Sever, na _Bibl. Lusit._ O mesmo se infere do
+_Compromisso da Misericordia de Lisboa_, cap. 36, confirmado por alvará
+de 19 de maio de 1618. Ahi se estabelece o modo de acompanhar os
+padecentes e de lhes assistir. Estes usos subsistiram, através de dous
+seculos, exceptuados os enforcados politicos a quem por misericordia
+matavam com pouco apparato processional.
+
+Ainda depois da lei que permittia o Viatico aos condemnados, nem todos
+gozaram esse dôce prazer, essa extrema consolação que lhes abria no
+reino de Deus a porta da esperança. Themudo, nas _Decisões_, tom. II,
+decis. 155, pag. 126, n.º 3, conta que o marquez de Villa Real, cumplice
+na conjuração de 1641 contra D. João IV, pediu licença ao arcebispo de
+Lisboa para commungar, na vespera do dia em que fôra degolado. O
+arcebispo concedeu a licença. Á meia noite ouviu missa no oratorio, e ás
+tres da tarde do dia seguinte (28 de agosto de 1641) foi executado. Ao
+mesmo proposito, leiam os curiosos o _Commentario aos Lusiadas_, por
+Manoel de Faria e Sousa, cant. III, est. 38.
+
+Os co-réos do marquez de Villa Real ou não pediram licença, ou lhes foi
+negada. Agostinho Manoel de Vasconcellos, poeta, escriptor galante, e
+mais verde de juizo do que de annos--pois já orçava pelos cincoenta e
+tantos--parece que não tinha absoluta confiança no sacramento, pois que
+morreu sem elle. Póde ser que este peccador incontrito, vendo que os
+theologos do seculo XVI dispensavam os condemnados da communhão, e os
+julgavam irreparavelmente precítos na outra vida, fosse da opinião
+d'elles, e se deixasse ir até vêr o que succedia aos seus companheiros
+do cadafalso, passado o estreito medonho d'aquella horrenda morte.
+
+Tenho lido romances historicos portuguezes, e de bom pulso, em que os
+condemnados coevos de D. João I e II, se confessam e commungam. Esta
+inventiva piedade dos romancistas encontra as cruezas repellentes da
+historia. É erro muito desculpavel. Qual é o romancista que lê os
+reinícolas Antonio da Gama, e Themudo, e o _Codigo Filippino_, e a
+_Synopsis Chronologica_?! Estes livros são escumadeiras das faculdades
+imaginosas. Quem se affizer a herborisar em taes charnecas, póde ser que
+vingue saber muita cousa obsoleta; mas toda a sua erudição, fundida na
+moeda miuda dos livros de passatempo, não logra captivar o leitor que
+lhe attribua a vigilia de uma noite. Não se é escriptor ameno e
+agradavel sem muita ignorancia. Eu devo a isto os meus creditos e a
+minha fecundidade.
+
+
+
+
+O DOUTOR BOTIJA
+
+
+Francisco Dias Gomes,--considerado pelo snr. A. Herculano o homem talvez
+de mais apurado engenho que Portugal tem tido para avaliar os meritos de
+escriptores--foi malquisto de uns poetas contemporaneos que lhe chamavam
+o _doutor Botija_, allusão tirada das vasilhas de seu commercio de
+mercearia.
+
+Um dos seus medianos admiradores era o abalisado mathematico e estimavel
+poeta José Anastacio da Cunha. Dos seus raros amigos--pois que os não
+grangeava em razão de sua indole desconversavel e um tanto
+hypochondriaca--o mais esclarecido e provado foi Garção Stochler, então
+lente de mathematica, e depois barão e general.
+
+Francisco Dias Gomes, posto que modesto e conformado com a sorte de
+especieiro, não se deixava insensivelmente morder pelos epigrammas de
+quem quer que fosse. A honesta musa que lhe inspirou os graves e
+soporiferos poemas constantes do seu livro impresso por ordem da
+academia real, algumas vezes se lhe apresentou despeitorada e de saia
+curta, n'aquelle desatavio que desnorteia a circumspecção de um
+philologo da polpa de Francisco Dias.
+
+O leitor, provavelmente, ainda não viu como este sisudo academico jogava
+o venabulo da satyra. A academia, se alguma topou entre os manuscriptos
+do seu confrade, com certeza a pospoz como damnosa aos serios escriptos
+com que a esposa e filhos do finado critico haviam de quebrar alguns
+espinhos da herdada pobreza.
+
+Não me recordo se Stochler, na noticia critico-biographica anteposta aos
+versos posthumos do seu amigo, faz referencia ao espirito satyrico de
+Francisco Dias; o que certissimamente sei é que nunca vi impressa a
+satyra seguinte contra José Anastacio da Cunha, nem tão pouco a replica
+d'este poeta, que no proximo numero sahirá como prova do retrincado odio
+com que, em todos os tempos, os escriptores se expozeram á irrisão dos
+ignorantes, mutuando-se affrontosas injustiças.
+
+Francisco Dias é iniquissimo no conceito que finge formar de José
+Anastacio, e tanto mais censuravel quanto aquelle douto e infeliz
+philosopho nunca desfizera na valia do mercieiro poeta, segundo se
+deprehende da resposta.
+
+N'esta satyra o que muito vale é a pureza da linguagem condimentada com
+especies do seculo XVII, bastante avelhentadas e rancidas; mas, assim
+mesmo, saborosas a paladares não de todos depravados pela malagueta da
+poesia vermelha que ultimamente vige e viça.
+
+Quanto a graça, é tão difficil achal-a em Francisco Dias como nas
+comedias de Jorge Ferreira. Os nossos bons classicos, quer fossem moços
+e mundanos, quer ascetas e encanecidos, não sei como pensavam; mas no
+escrever, eram todos como uns frades velhos que digeriam as suas idéas,
+tal qual um estomago dyspeptico de hoje em dia esmoe um paio do
+Alemtejo.
+
+Ahi vai, tal e quejanda, a satyra do _doutor Botija_:
+
+
+ SATYRA
+
+ Vem cá, louco varrido, que diabo
+ Te metteu na cabeça ser poeta?
+ Quem te chegou a tão extremo cabo?
+
+ Não vês que toda a gente anda inquieta,
+ Cançada de soffrer teus argumentos,
+ Que te julga demente, que és pateta?
+
+ Eu nunca imaginei que teus intentos
+ Fossem fazer-te vão: agora julgo
+ Que em nada se tornaram teus talentos.
+
+ Se eu crêra em quantas pêtas conta o vulgo,
+ Das feiticeiras sordidas e aváras,
+ E outras, que aqui não digo, nem divulgo;
+
+ Dissera que perjuro te mostráras,
+ Que infido amante da cruel Canidia,
+ Seus magicos encantos divulgarás.
+
+ Que ella, por castigar tua perfidia,
+ Sobre as azas d'um Lémure correra
+ O Tauro, o Atlante, o Nilo, e a sêcca Lidia,
+
+ Onde hervas potentissimas colhêra,
+ Com que mixtos veneficos, horrenda,
+ De funestos effeitos compozera.
+
+ E porque ao fim viesse da contenda,
+ Pela alta noite, barbara, ullulára,
+ Com voz funesta, horrisona e tremenda,
+
+ Que as infernaes Deidades convocára
+ Do tremebundo Tartaro, formando
+ Mil circulos no chão com fatal vara.
+
+ Pallida, e consumida, suspirando,
+ As horridas madeixas eriçadas,
+ Com ellas murmurára um canto infando.
+
+ Alli foram de todo desatadas
+ As prisões, que a teu corpo o siso unia;
+ Alli tuas idéas perturbadas;
+
+ Sómente em ti ficou triste mania
+ De maus versos fazer, de argumentar
+ Com quantos ha, nas praças, noite, e dia.
+
+ Não deixa a gente já de murmurar
+ D'essa tremenda furia que te agita,
+ D'esse teu furioso e vão fallar.
+
+ Cuidas que, ainda que nescio, assim se excita
+ A celebrar-te o povo por sciente,
+ Elle que em tudo mofa, e fel vomita?!
+
+ E julgas que de rustico não sente
+ A differença que ha do branco ao preto?
+ Por certo que te enganas claramente.
+
+ Tu crês que só quem faz um bom soneto,
+ Ou decifra um enigma mathematico,
+ Esse só tem juizo, e é só discreto?
+
+ Se para ser qualquer da vida pratico,
+ Bem aviado está, se lhe é preciso,
+ Ser um grande geometra, ou grammatico.
+
+ Tal ha por esse mundo, e tal diviso,
+ Que sem saber a regra do _abc_,
+ É sagaz como trinta, e tem juizo.
+
+ Como queres tu pois que não te dê
+ Surriadas o povo maldizente,
+ Posto que nunca estuda, e nunca lê?
+
+ Se elle anda já cançado longamente
+ De ouvir as tuas vãs declamações
+ Com que pretendes emendar a gente!
+
+ Se defender intentas conclusões,
+ Mestre em artes, de borla, ou capacete,
+ Porque te ouçam as tuas decisões;
+
+ Rapa a cabeça tu, frade temete:
+ Combaterás então mais forte e ufano,
+ Que um guerreiro montado em bom ginete.
+
+ Não andes pelas ruas como insano
+ Syllogismos em barbara formando;
+ Se assim queres ter fama, é grande engano.
+
+ Que quer dizer, continuo, andar fallando
+ Em curvas, corollarios e problemas,
+ Demonstrações fazendo, e explicando?
+
+ Quando te ouvem fallar em theoremas,
+ Escalenos triangulos, e rectas,
+ Espheroides, polygonos, e lemmas,
+
+ Julgam ser isso termos de patetas
+ Ou d'esses que tem pacto c'o diabo,
+ E lhe fallam em partes mui secretas.
+
+ Pois eu d'aconselhar-te não acabo,
+ Se por tal te tiverem, fugirás
+ Como cão com funil atado ao rabo.
+
+ Em vão com grande esforço ladrarás,
+ Distinguindo a menor, que concedendo
+ Quanto o povo quizer á força irás.
+
+ Que achaste, inda que tu lhe vás dizendo,
+ Do circulo a sonhada quadratura,
+ Nada te valerá, segundo entendo.
+
+ C'os rapazes e moços, gente escura,
+ Gente indomita em fim, tua pessoa
+ Não poderá jámais andar segura.
+
+ Tanto já de ti fallam por Lisboa,
+ Que quando vaes por uma praça, ou rua,
+ Grande susurro em toda a parte sôa.
+
+ Ora pois tem razão, que a audacia tua,
+ E teus discursos vãos, e palavrosos
+ Dão causa a que qualquer teu sestro argua.
+
+ Eis aqui porque chamam ociosos
+ Aos que ás letras se applicam, temerarios,
+ Phantasticos, herejes, mentirosos.
+
+ Os fidalgos os tem por ordinarios,
+ Baixos de nascimento, sem avós,
+ De humildes pensamentos, vãos e varios.
+
+ Se alguem com acto humilde e baixa voz
+ Lhe offerece o elogio em prosa ou rima,
+ Louco, dizem, te vai longe de nós.
+
+ De nós a poesia não se estima;
+ Vê se tens outra cousa por que valhas,
+ Falla-nos de cavallos ou de esgrima.
+
+ De cavallos, de esgrima, de batalhas,
+ Não d'essas verdadeiras batalhadas
+ Com lança e espada, aereas antigualhas.
+
+ Entra por esta brecha ás cutiladas,
+ Amigo, tu que n'isto és o primeiro,
+ Segundo já te ouvi grandes roncadas.
+
+ Não te ficou venida no tinteiro,
+ Nem tantas soube o Molho destemido,
+ De malsins espantalho verdadeiro.
+
+ Se te ouvira o Palermo esmorecido
+ Da côrte se ausentára, por não vêr
+ Com teu valor seu credito abatido.
+
+ Bem pódes pelo mundo discorrer,
+ Novo Roldão, armado d'armas brancas,
+ Mil encantos e aggravos desfazer.
+
+ Leva do teu cavallo sobre as ancas
+ Tua dama sentada; esgrime e clama,
+ Que assim tudo afugentas, tudo espancas.
+
+ Ganharás maior nome, e maior fama,
+ Do que andar versos maus vociferando,
+ Dignos dos becos sordidos d'Alfama.
+
+ Se a fazer versos lá do lago infando
+ O diabo sahisse em tons diversos,
+ Taes como os teus faria, impio, e nefando.
+
+ Por isso não os tenhas por perversos,
+ Aos que pulhas te dizem, porque em fim,
+ Não ha cousa peor do que maus versos.
+
+ Antes mais vale ser villão ruim,
+ Frade apostata em casa das mancebas,
+ Do que ser mau poeta, antes malsim.
+
+ Agora quero eu que me percebas,
+ Se alguem te applaude e rijo as palmas bate,
+ É porque mais em teu vicio te embebas.
+
+ Que aqui te manifesto sem debate,
+ Todos esses amigos que te cercam,
+ Todos te tem por um famoso orate.
+
+ Quaes ha que rindo o folego não percam,
+ Vendo, quando andas só, teu ar profundo?
+ Se o gosto não lh'o invejo, caro o mercam.
+
+ Como o que anda d'um bosque lá no fundo
+ As féras conversando e as amadríadas
+ Desgostoso das gentes, e do mundo,
+
+ Quem te vê tão suspenso, outras iliadas
+ Julga que andas compondo, alto portento!
+ Outros novos altissimos _Lusiadas_.
+
+ Mas cada vez que recordar intento
+ Teu soberano e largo magisterio,
+ Fico qual nau sem leme ao som do vento.
+
+ Alli tudo decides com imperio:
+ Não foram tão despoticos em Roma
+ O tyranno Caligula, ou Tiberio.
+
+ Qualquer, de ti pendente, lições toma,
+ Não ousa, inda que queira, dizer nada,
+ Que tudo á tua voz se rende, e doma.
+
+ Alli qualquer materia é bem tratada,
+ Com larga voz e cópia de palavras,
+ Alli com teu discurso illuminada.
+
+ Antes fallasses tu em gado ou lavras,
+ Do que em sciencias, de que nada entendes:
+ Ou fosses para o monte guardar cabras.
+
+ Novos systemas se fundar emprendes,
+ Porque a fama no numero te conte
+ Dos grandes homens, que offuscar pretendes,
+
+ Pede ao bom Ariosto que te monte
+ Sobre o seu grifo rapido, e serás
+ Outro Astolfo, outro audaz Bellerophonte.
+
+ Ao concavo da lua subirás
+ Para vêr se descobres novos mundos,
+ Mas nunca o teu juizo encontrarás;
+
+ Perdeu-se como pedra em poços fundos,
+ Que nunca acima vem, nem nada, ou boia:
+ Juizos são de Deus, altos, profundos!
+
+ Não te esqueça maranha, nem tramoia,
+ Porque ao fim desejado te Conduzas,
+ Mais famoso serás que Helena e Troia.
+
+ Avante, ó novo Gama, já confusas
+ Com as tuas acções vejo as antigas,
+ E para te cantar promptas as musas.
+
+ Tem-nas da tua parte por amigas,
+ Materia dando a satyras facetas
+ Como as de Horacio, destro n'estas brigas.
+
+ Se minhas forem, não serão discretas,
+ Porque da rima a musica sonante
+ Adorna as minhas pobres cançonetas.
+
+ Inda esta nos faltava, a cada instante
+ Andares tu contra ella declamando!
+ Que mal te fez o pobre consoante?
+
+ Quando o chamas não vem logo a teu mando?
+ É porque com verdade não se preza
+ Do teu engenho o som suave e brando.
+
+ Elles fogem de ti com ligeireza
+ Os consoantes, porque em ti não sentem
+ Para bem usar d'elles natureza.
+
+ Se as minhas conjecturas me não mentem,
+ Os que poetas querem ser á força,
+ Pouco de um secco rábula desmentem.
+
+ Em vão um pobre espirito se esforça
+ Porque os seus versos sóem docemente,
+ Por mais e mais que o pensamento torça.
+
+ Nunca ouviste dizer que Apollo ardente
+ Agita a phantasia dos poetas,
+ Para que mais seu cerebro se esquente?
+
+ Inda que ouçam razões muito discretas
+ Das mulheres e filhos que pão pedem,
+ Deixam ficar-se, assim como patetas.
+
+ Nem fomes, nem trabalhos os impedem,
+ Que exercitem o dom divino e raro:
+ Tanto em seu desatino se desmedem;
+
+ Por isso ás vezes julga o vulgo ignaro,
+ Que elles são intrataveis, desabridos,
+ Posto que os bons lhe dêm louvor preclaro.
+
+ Mas tu que nunca ergueste os teus sentidos,
+ Que em idéas vulgares e confusas
+ Sempre andaste com elles envolvidos;
+
+ Se nunca conheceste Apollo, ou musas,
+ Nem pintado sequer viste o Parnaso,
+ Para que de seus dons sem saber usas?
+
+ Se temes que o teu nome em negro vaso
+ Para sempre se veja sepultado;
+ Usa do para que tiveres azo.
+
+ Não digas mal do consoante amado
+ Tanto dos bons engenhos peregrinos
+ Dos do tempo d'agora e do passado.
+
+ Se tu fundas em Miltons e Trissinos
+ Teus aereos phantasticos systemas,
+ Assás de bons não foram seus destinos.
+
+ Poucos ou raros lêm os seus poemas;
+ Um triste e melancolico caminha
+ Farto de extravagancias mil extremas.
+
+ A musa d'outro misera e mesquinha,
+ Languida e fria, sem adorno e graça
+ Da solta prosa jaz quasi visinha.
+
+ Ninguem jámais a noite e o dia passa
+ Seus aridos escriptos estudando,
+ Por muito que o seu gosto contrafaça.
+
+ Não o nego porém, de quando em quando
+ D'elles se eleva um resplendor sublime,
+ Digno do Pindo e Phebo claro e brando.
+
+ Mas tu a quem a rima tanto opprime,
+ Se não sabes, aprende: o canto hebraico
+ Dizem que ás vezes n'ella bem se exprime.
+
+ E que por evitar o tom prosaico,
+ Algumas vezes d'ella se servira
+ O poeta syriaco e o chaldaico.
+
+ Tambem a musa grega ao som da lyra,
+ Lá nos tempos antigos, d'ella usou;
+ E o romano que a face ao mundo vira.
+
+ Novamente o seu uso renovou
+ Dando-lhe fórma e ser o provençal,
+ De nova graça a poesia ornou.
+
+ Mas isto para ti de nada val,
+ Que porque te foi d'ella Apollo escasso,
+ D'ella e dos que a usaram dizes mal.
+
+ Que mal te fez Camões e o culto Tasso?
+ Camões a quem as musas educaram
+ Na sua gruta, e virginal regaço?
+
+ Qu'o cantico divino lhe inspiraram
+ Em que aos astros ergueu os lusos feitos,
+ Que tanto pelo mundo se afamaram.
+
+ Para exprimir altissimos conceitos
+ Nunca jámais a rima lhe fallece
+ Estylo e puro culto sem defeitos.
+
+ Qualquer rustico espirito conhece,
+ Que quanto o Camões quiz dizer, o disse
+ Facil e natural, como apparece.
+
+ Quem quer que d'elle mal fallar te ouvisse,
+ Diria afoutamente e com verdade,
+ Q'isso em ti era inveja, era doudice.
+
+ Ora pois, porque tens difficuldade
+ Em dizer teu conceito em dôce rima,
+ Vituperal-a é grande iniquidade.
+
+ Julgavas facil e de pouca estima
+ Dôces versos fazer? amigo, não,
+ É preciso trabalho, estudo e lima.
+
+ E isto sem natural inclinação,
+ Ou pouco ou nada val: se disso és pobre
+ Martellarás no pobre siso em vão.
+
+ A vêa natural não se descobre,
+ Mil glosas n'um outeiro recitando,
+ Mais vis que escoria vil de ferro ou cobre.
+
+ Oh quanto te escarnece a gente quando
+ N'elle estás como insano loucamente
+ «Tyrse, Tyrse!» com larga voz gritando.
+
+ Inda do consoante tão vãmente,
+ Te atreves, pobre infusa, a blasphemar,
+ Sendo tu tão vã cousa, e tão demente!
+
+ Elle nunca se deixa demonstrar
+ Na tão formosa lingua portuguesa
+ A quem com diligencia o procurar:
+
+ Qualquer, inda que pouca natureza
+ Tenha, dirá rimando o que quizer
+ Em estylo corrente e com clareza.
+
+ Tanto que aqui mui bem se póde vêr
+ Que sendo o meu engenho rude e baxo,
+ Exprimo quanto tenho que dizer.
+
+ Ou bem ou mal os consoantes acho,
+ Tão facilmente ás vezes me apparecem
+ Que para os apanhar me não abaxo.
+
+ Mas julgo que os ouvintes adormecem
+ Co'a minha longa pratica: eu me calo,
+ Pois que os gostos d'ouvir-me lhes fallecem.
+
+ Em fim já sem refolho aqui te fallo;
+ Se os meus versos conseguem felizmente
+ Fazer dentro em teu peito algum abalo,
+
+ Que o teu fado se quebre em continente,
+ Tornando-te, de louco, homem cordato,
+ E acabes de ser fabula da gente.
+
+ Tuas acções medindo com recato,
+ Deixando versos maus, vãos argumentos
+ Que te fazem de todo mentecato,
+
+ Darei por bem gastados os momentos
+ Que empreguei n'esta misera escriptura,
+ Censurando os teus fatuos pensamentos,
+ E ter-me-hei por mimoso da ventura.
+
+
+
+
+O PALCO PORTUGUEZ EM 1815
+
+
+Já n'aquelle anno, em meio da bruteza das nossas platêas, se confrangiam
+de magoa e pejo alguns raros entendimentos que vaticinavam a resurreição
+do theatro nacional. Almeida Garrett orçava então pelos dezeseis annos.
+Florecidas mais seis primaveras n'aquelle precoce espirito, a arte nova
+lhe desbotoaria as primeiras flôres da grinalda.
+
+A tristeza dos bons entendimentos, em presença do abatido e nojoso palco
+d'aquella época, prenunciava a aurora que alvoreceu, passados quinze
+annos, com o primeiro dia da liberdade. As musas, trajadas com elegancia
+e aquecidas ao sol de estranhos, repatriaram-se com os desterrados que
+lá fóra retemperaram o genio na incude da pobreza, e reviveram nos
+esplendores da civilisação.
+
+Um dos liberaes, que emigraram em 1828, e cursavam as aulas em 1815,
+escreveu, n'este anno, uma carta ácerca do theatro nacional. Se este
+escripto da primeira mocidade não revela vasto estudo nem gentilezas de
+phrase, com certeza denota razão esclarecida. O author da carta volveu á
+sua patria, mais atido á espada que á penna. Uma e outra lhe cahiram
+simultaneamente da mão, no cerco do Porto. Não sei o nome do official
+que jaz obscurecido na valla dos que morreram em batalha. Apenas em uma
+nota que precede a seguinte carta se diz que o author d'ella, morto na
+rareada fileira dos mais audazes soldados do imperador, teria sido um
+dos melhores cultores das letras que esmeradamente seguira na emigração.
+Archivemos o documento que merece ser lido como desfastio aos indigestos
+pastelões de historia theatral com que o snr. Theophilo Fernandes
+(Joaquim) nos tem intestinado o tedio da leitura:
+
+
+Carta escripta a um amigo em 3 de fevereiro de 1815 sobre a chegada dos
+comicos italianos, com algumas reflexões sobre os theatros portugueses.
+
+Chegou finalmente a esta cidade a companhia dos comicos italianos, ha
+tanto tempo esperada, e hontem fizeram o seu primeiro ensaio. Domingo
+gordo vão, pela primeira vez, á scena, onde a curiosidade dos
+_dilettanti_ é igual á impaciencia com que viam o theatro de S. Carlos
+fechado por falta de actores. Será bem difficil que estes, que chegaram,
+satisfaçam plenamente a espectação publica, onde se conserva ainda bem
+gravada a lembrança dos excellentes cantores, que tanto nos deleitaram
+n'estes ultimos tempos, e que brilharam com a mais bem merecida
+reputação n'este nosso theatro de S. Carlos, e que illustraram
+distinctamente a arte da musica tão agradavel, que a nossa mesma
+imaginação figura os anjos, cantando no paraiso a gloria do Deus
+Supremo.
+
+Geralmente os portuguezes amam a musica com extremo, e tem um gosto
+particular por esta arte, principalmente depois que o senhor rei D. José
+fez vir para o seu theatro magnifico, que infelizmente o grande
+terremoto do anno de 1755 devorou, os melhores cantores que então havia
+em toda a Italia. Depois d'esta época sustentou o mesmo monarcha a mesma
+inclinação por esta arte, em que era muito entendido, e á sua imitação a
+nação toda se costumou tanto á boa musica, que houve particulares que
+chegaram a rivalisar com os mesmos professores. Ainda hoje não teem
+perdido de todo este gosto, principalmente os habitantes de Lisboa, que
+conservam viva a lembrança do canto melodioso, suave e delicado da
+Crescentini, de Cafforina, e da celebre Catalana, que por uma maneira
+nova de cantar, levaram esta sublime arte áquelle grau de perfeição, a
+que ella póde humanamente chegar.
+
+Não julgo que estes virtuosos, que vieram, sejam iguaes em talentos
+áquelles de quem venho de fazer menção. Como não é sómente a arte, mas a
+natureza igualmente que os produz, e nem sempre esta é fertil em
+semelhantes producções, parece-me que o seu canto não causará nos
+espectadores o mesmo interesse, com que todos os lisbonenses corriam
+para o theatro a ouvir a melodia de vozes, e a harmonia de accentos, que
+realisavam os fabulosos das serêas. Como dizem, porém, que vem duas
+raparigas que não são mal parecidas, não deixarão de serem bem
+applaudidas pela platêa de Lisboa, na qual a mocidade olha sempre com
+mais attenção para os agrados da natureza do que para as perfeições da
+arte, ás quaes não paga tão grande tributo como á belleza.
+
+É muito provavel que d'aqui em diante os bons cantores sejam mais raros
+na Italia, onde em outro tempo eram mais communs, não sómente porque os
+successos politicos tem influido consideravelmente n'esta parte da
+Europa sobre os progressos das artes liberaes, onde nasceram e tiveram o
+seu berço; mas porque o infame e detestavel costume da castração, com o
+fim de fazer as vozes finas, e bons sopranos, está justamente prohibida
+por uma lei sabia e judiciosa. Pois que barbaridade maior podia haver do
+que condemnarem os paes seus proprios filhos a uma mutilação que degrada
+a especie humana, que a inutilisa e que annulla os votos da natureza em
+prejuizo das suas mais admiraveis producções?
+
+Não poderemos, pois, ouvir d'aqui em diante um novo Echiziel ou um
+Crescentini, que modulavam as suas vozes finas á custa do bem que tinham
+perdido, por umas notas successivas e prolongadas, que bem longe de
+moverem a alma pela força da expressão, a affligiam pelos patheticos
+esforços de uma modulação uniforme; mas ouviremos talvez com um prazer
+mais interessante os sons masculinos d'aquellas vozes fortes e animadas,
+que conciliem com os seus accentos a viva expressão dos sentimentos
+differentes da nossa alma, em que um gosto sublime e delicado faz
+consistir a perfeição da musica, para o qual não é o melhor musico
+aquelle que se occupa só em vencer difficuldades; mas aquelle que, pelas
+doçuras da harmonia, inspira na nossa alma, e lhe communica os mesmos
+sentimentos que exprime no seu canto.
+
+Qualquer que seja, porém, o merecimento dos novos comicos, é sempre uma
+especie de satisfação para os moradores de Lisboa verem o melhor
+theatro, que teem, aberto, e terem quem trabalhe n'elle, o que é sempre
+um grande recurso em uma grande cidade, destituida de divertimentos
+publicos, e onde se consome o homem, e sobre tudo os estrangeiros, á
+força de uma negra melancolia, não havendo outro passatempo, que não
+seja o de algumas sociedades particulares, onde só apparecem aquelles
+que possuem grandes meios, para alli ostentarem toda a sua vaidade, e
+quasi sempre todo o seu orgulho. É bem verdade que toda a comica
+representação, que alli fazem, é quasi sempre á custa da sua bolsa, pois
+que é descredito entre elles não jogar. Os gatunos que nunca faltam
+n'estas assembléas, nunca perdem a occasião de os depennarem; e os
+murmuradores e maldizentes de admirarem o como a fortuna faz de um tolo
+um homem entendido, e como transforma um sevandija em um fidalgo
+cortezão.
+
+É certo que os invernos são bem custosos de passar em Lisboa sem o
+recurso dos theatros, não havendo outro algum divertimento publico, mais
+do que as assembléas acima referidas, onde nem todos podem ir, e que nem
+a todos é permittido frequentar. Não ha aqui, como em Londres, em Paris,
+em Vienna, em Petersbourg e em Veneza salas publicas de baile, onde se
+passem as noites, e menos cafés bem compostos, em que todo o homem bem
+creado acha a melhor companhia, e onde trava amizade com os homens mais
+distinctos e que são assás uteis muitas vezes. Os nossos costumes
+reservados, e os principios da politica, de os dirigir pela desconfiança
+ou pelo temor, em que a policia ganha porque tem menos que observar e
+menos motivo para temer que a ordem publica seja alterada, fazem que
+estas privações se soffram com toda a paciencia, contentando-se cada um
+que não tem os meios competentes para frequentar as companhias do melhor
+tom, a ir passar a noite com o seu compadre ou com o seu visinho, a
+murmurarem uns dos outros. Sem este recurso ficariam sempre em casa,
+semelhantes ás mumias do Egypto, embrulhados nos seus capotes, unico
+meio de que se servem para resistirem aos rigores da estação.
+
+Não faltará quem diga que faço um quadro de Lisboa, no tocante aos seus
+divertimentos publicos, menos vantajoso; pois que uma cidade populosa
+que tem tres theatros nacionaes, além do italiano, e uma quantidade
+immensa de grandes sociedades, que tem nas semanas dias fixos em que se
+ajuntam, não está de menor condição n'esta parte ás mais opulentas da
+Europa. Esta reflexão, se ficasse sem replica, me attribuiria talvez, na
+opinião geral, um espirito de maledicencia que eu não tenho; e para me
+salvar de qualquer imputação que n'este particular se me haja de fazer,
+vejo-me obrigado a fazer aqui algumas observações sobre os nossos
+theatros nacionaes, que pela sua construcção material e pelo genio dos
+actores, que n'elles representam, não constituem um divertimento que
+chame o gosto, o interesse e a distracção da classe mais escolhida da
+nação, a quem não fazem grande honra nem excitam aquella curiosidade que
+faz frequentar estas escólas dos costumes e do bom gosto.
+
+Quanto á construcção destes nossos theatros duvido que se achem, ainda
+nas mesmas provincias dos reinos mais civilisados, outros semelhantes ao
+da rua dos Condes ou do Salitre. As incommodidades que cada um é
+obrigado alli a supportar, não compensam os agrados mais deleitaveis da
+melhor representação, ainda no caso que a houvesse. No meio da platêa
+arde em fogo, nas mesmas noites mais frias do inverno, o desgraçado
+espectador que acha alli lugar; pelos lados da mesma platêa vem um vento
+encanado pelos corredores, que atormenta todo o miseravel que occupa
+estes assentos. Nos camarotes, que são tão mesquinhos como tudo o mais,
+estes incommodos são ainda mais penosos; por entre as frestas das portas
+entra um frio pelo inverno, que gela, e que é principio certo de
+catarrhos, pleurizes e constipações, que circulam amplamente n'aquelle
+triste recinto; e quando o espectaculo acaba, nem lugar reservado, em
+que se esperem as carruagens, nem modo algum de prevenir os grandes
+males, a que cada um fica exposto á porta da rua ou no aperto dos
+corredores, até que chegue a carruagem que o ha de transportar. O
+theatro do Salitre e o da Boa Hora teem estas incommodidades mais
+marcadas; de maneira que todo aquelle que se propõe a ir a algum d'elles
+passar uma noite, deve ir disposto a vir doente: se é de verão, pelo
+nimio calor, se é de inverno, pelo frio. Assim não conheço um meio mais
+proprio a quem está em boa saude, de estar doente, do que ir a um
+d'estes theatros. Ora, que divertimento póde ter n'estes espectaculos
+aquelle, que cuida mais em se livrar dos males a que se vê exposto, do
+que gozar das illusões que apresenta á imaginação uma sala de
+espectaculo? Se todos estes incommodos, que se compram por dinheiro,
+fossem, comtudo, compensados pelo deleite de uma boa representação,
+seria ainda assim desculpavel, sacrificar ao prazer certos incommodos,
+de que uns não fazem caso por genio, e que outros desprezam, porque lhes
+insta a necessidade que sentem de se distrahirem. Mas a representação é
+tão insipida e tão enfadonha! Os comicos interessam tão pouco; e os
+caracteres que representam são, ou por falta de natureza ou por
+ignorancia propria, tão mal sustentados, que não valem a pena de se
+ouvirem á custa dos grandes detrimentos que se soffrem, principalmente
+quando um homem tem o seu gosto formado pelos bons modelos da arte
+dramatica, a quem um actor mediocre e baixo é tão insupportavel, como
+uma musica desafinada e sem harmonia na sua composição. Taes são,
+portanto todos os nossos actores, os quaes entram n'esta carreira mais
+com o fim de acharem n'ella uma subsistencia segura e commoda, que com o
+nobre intento de adquirirem uma gloria que immortalisou os famosos nomes
+de Molière, de Baron, de Garrik e de le Kain.
+
+Pois que uma casualidade impensada me chegou a ponto de fazer algumas
+observações sobre os nossos theatros, não quero perder esta occasião de
+expor o meu juizo sobre este assumpto, que aliás é um seguro
+thermometro, que indica o grau em que se acha a civilisação e os
+costumes das nações. Como escrevo uma carta e não faço uma dissertação,
+cuidarei quanto podér de abreviar o meu discurso, que não terá mais que
+simplesmente o resultado de fazer vêr quanto Thalia e Melpomene favorece
+pouco os engenhos dos portuguezes nas artes a que presidem estas musas,
+cujas influencias são tão brilhantes e tão liberaes para outras nações,
+que cultivam com o melhor successo esta arte, que nos representa
+vivamente os vicios e as virtudes dos homens, assim como tambem os seus
+defeitos e os seus ridiculos.
+
+Podemos seguramente dizer com toda a verdade, que nós, os portuguezes,
+não podemos ter a gloria de dizer que temos um theatro nacional, pois
+que não temos nem actores dramaticos nem actores capazes de
+desempenharem estas bellas composições do espirito humano. Não é de
+admirar que não haja bons representantes, onde faltam os poetas; porque
+aquella mesma natureza, que inspira o enthusiasmo da imaginação, não
+deixa de inspirar tambem o gosto particular da imitação, de modo que é
+observação demonstrada, que onde os engenhos sabem conceber os mais
+brilhantes pensamentos e estudam todos os movimentos da nossa alma,
+dirigida pelas suas affeições ou pelos impulsos das paixões humanas, ahi
+se encontram tambem aquelles talentos superiores e naturaes, que na
+scena representam com toda a energia e delicadeza aquelles mesmos
+movimentos; de maneira que parece realidade o que não é mais que
+imitação. Garrik, a cada sentimento que exprimia nos theatros de
+Londres, mudava de voz e de semblante, como a expressão requeria; e
+Molière, em França, ridiculisava com uma graça tal todas as classes de
+homens de que se compõe o corpo social, quando a vaidade, presumpção ou
+amor proprio as desviava dos principios que a razão prescreve, que todos
+sentiam em si o defeito de que elle ria e zombava, para se corrigirem
+quando se julgavam objecto dos epigrammas e dos gestos comicos do
+comediante. Como este mesmo era o author das suas comedias, não é de
+admirar que exprimisse com energia aquillo mesmo que a sua alma sentia
+com toda a sua força; e é d'este modo que os theatros, que são as
+escólas dos costumes, onde se pintam ao natural pela fealdade do vicio
+ou pela ridicula pratica que os degrada, preenchem plenamente o fim para
+que foram instituidos; pois é evidente que todo aquelle actor que não
+tiver meios proprios para penetrar a alma dos seus espectadores pelas
+mais vivas e mais naturaes maneiras, figura e gestos da sua
+representação, não póde produzir o effeito que esta admiravel arte de
+imitação é capaz de produzir, e sem o qual effeito, uma sala de
+espectaculo não é mais do que uma camara optica em que os sentidos podem
+gozar de algumas momentaneas illusões, mas onde a alma jámais se deixará
+possuir d'aquelles prestigios do sentimento que faz amar a virtude e
+detestar o vicio, nas peças tragicas, e nas comicas, temer o amargoso
+fel da critica que corrige o homem, fazendo mofa dos seus costumes que
+pinta, quando são ridiculos, ao natural.
+
+É para notar que os engenhos portuguezes, dotados, como todos os mais
+que gozam das dôces influencias do céo puro e crystallino do meio-dia,
+de uma viva e ardente inclinação para as artes de pura imaginação,
+principalmente a da poesia, se contentem só de a cultivarem á margem dos
+rios e á sombra dos arvoredos, onde suspiram pelas suas amadas, em
+versos sim, amorosos e sentimentaes, mas que só fallam de amor, de
+saudades, de ciumes e de ingratidão. Um só d'estes genios favorecidos
+das musas tem aspirado á gloria de rivalisar com Euripedes ou com
+Sophocles, de igualar a Plauto ou a Terencio, e aquelle que tem
+intentado dar alguns passos na carreira dramatica, tem sido com tão
+infeliz successo, que parou no principio d'ella. Muitas vezes tenho
+pensado sobre a causa por que os nossos poetas, sendo inspirados de um
+estro proprio a todo o genero de versificação, só para o theatral não
+teem os talentos requeridos; e por resultado das minhas observações a
+este respeito, tenho colhido a idéa de que para compôr uma ecloga, um
+idyllio, uma epistola ou uma elegia, basta ao poeta exprimir os seus
+proprios sentimentos em bons versos e harmoniosos para ter um nome
+distincto no Parnaso: mas para compôr uma tragedia ou uma boa comedia de
+caracter, é preciso exprimir com elegancia, pureza e enthusiasmo os
+sentimentos dos outros, que é absolutamente necessario conhecer e
+aprofundar para os saber desenvolver pela acção. Ora este conhecimento
+não se adquire senão por um grande uso do mundo, e por um tacto
+particular do coração do homem e de toda a natureza humana em geral; mas
+este grande livro não se acha nas livrarias escripto, acha-se espalhado
+no tumulto da sociedade, onde os homens desenvolvem todas as suas idéas,
+todos os seus sentimentos, as suas paixões, os seus vicios, os seus
+crimes e o seu heroismo. É n'este livro que o poeta dramatico aprende a
+pintar na scena as virtudes de Catão e as ridiculas maneiras de um
+villão afidalgado; mas se o poeta, concentrado no fogo do seu amor, não
+conhece senão Damiana a quem dirige seus ais e seus queixumes, como ha
+de pintar as paixões dos homens e os seus ridiculos caprichos? Esta
+ignorancia me parece ser a causa por que os poetas portuguezes não
+consagram as suas musas mais que simplesmente ao amor a que os chama uma
+natural ternura, e o conhecimento de uma paixão, que elles conhecem
+melhor que quaesquer outras, e que explicam com mais sensibilidade e
+doçura. Nunca sahindo dos seus lares, vivendo em um pequeno circulo, uma
+imaginação, por mais poetica que seja, não póde produzir grandes e
+brilhantes concepções; e por consequencia, se conceber o plano de uma
+tragedia, que, segundo a opinião de mr. de la Harpe, é a obra prima do
+espirito humano, onde ha de ir buscar a materia para os debates? Se
+quizer compôr uma comedia, apenas saberá ridiculisar os defeitos do seu
+visinho tendeiro ou sapateiro.
+
+Para provar que o cothurno não é feito para os nossos poetas lusitanos,
+basta lembrar que o assumpto da morte tragica da rainha D. Ignez de
+Castro, assumpto dos mais interessantes que tem apparecido em scena,
+tanto nos tempos antigos como nos modernos, tem apurado o estro dos
+nossos poetas portuguezes, não só pelo interesse da acção, mas por ser a
+acção passada entre nós, e que para excitar a compaixão tem de mais a
+historia que a proclama verdadeira. Tres ou quatro tragedias temos na
+nossa lingua portugueza d'este infeliz successo, e uma só d'ellas o
+immortalisa pelas bellezas dramaticas, que pouco ou nada correspondem a
+um assumpto igualmente sublime que pathetico. Não fallo da primeira e
+mais antiga de Antonio Ferreira, que passa aliás por poeta classico
+entre nós, e na qual se não acha a força de sentimentos, a violencia das
+paixões, postas em jogo para trazerem imminentemente a catastrophe que
+finalisa a tragedia. As scenas sem ligação, a intriga mal combinada e
+tão descoberta pelo dialogo, que todo o espectador conhece, desde o
+primeiro acto, qual será o fim da peça. Não fallo n'estes dialogos, em
+que as personagens que os declamam não tem bastante força para mostrarem
+todo o horror da inveja que instiga e anima os cortezãos orgulhosos da
+côrte de D. Affonso IV para sacrificarem ao furor d'aquella paixão o
+amor fino, legitimo e innocente de dous corações ternos, ligados pelos
+dôces e sagrados laços do hymeneu. Os córos que o author Ferreira
+introduziu por intervallos dos actos d'esta sua tragedia, á maneira dos
+gregos, é o que ha n'ella de melhor, por serem compostos de uma bella
+poesia, e tão pathetica, que movem o coração á maior sensibilidade.
+Outra tragedia, que temos sobre o mesmo assumpto, composta por o arcade
+Alcino não tem merecimento algum: as regras do theatro não são
+observadas; a versificação é languida e sem elegancia; os sentimentos
+friamente exprimidos, e os actores sempre sustentando um caracter
+forçado e não tirado da natureza da acção, d'aquella acção que deriva de
+paixões complicadas e violentas, que deviam ser mais energicamente
+desenvolvidas. Esta peça não tem regularidade nem entrecho de uma
+tragedia; é um drama feito á imitação dos de Metastasio, que não é poeta
+tragico, pois que além dos seus dramas interessarem geralmente mais pela
+musica do que pelo desenvolvimento da peça, este vem muitas vezes no
+segundo acto, e o terceiro é composto então de incidentes accessorios,
+quasi sempre insipidos e frios, porque n'elles não ha acção. Lembra-me
+ha annos vêr representar no theatro do Bairro Alto uma tragedia de D.
+Ignez de Castro tirada de uma comedia hespanhola de Don Calderon de la
+Barca, intitulada _Reynar despues de morir_. Esta peça foi geralmente
+applaudida e gostada pela energia e força de alma, com que uma actriz,
+chamada Cecilia, representou o papel de D. Ignez de Castro; mas esta
+peça deveu ao genio e aos talentos d'esta actriz o bom successo que
+teve, pois que examinando a contextura da peça, ella tinha os defeitos
+da hespanhola, em que não havia mais que tiradas de bons versos; mas
+pouca ou nenhuma verdade na acção; pois que, depois da morte d'esta
+infeliz princeza, apparecia uma scena em que o seu cadaver, sentado
+debaixo do solio, era coroado e solemnemente proclamado pelo seu amante,
+já rei, e por todo o seu povo como sua legitima rainha, e isto muito
+tempo depois de ter sido a victima das paixões dos cortezãos, invejosos
+de verem a familia dos Castros sobre o throno de Portugal. Esta scena,
+que pela sua magestosa decoração fazia todo o interesse d'esta peça, não
+parece ser uma segunda acção, que se representa? onde está pois a
+unidade da acção tragica, que é o primeiro preceito da tragedia? A
+coroação da rainha na mesma peça é tão irregular, quanto é novo de
+sentar em um solio o cadaver de uma princeza, assassinada no seu proprio
+palacio, muito tempo depois de enterrada no silencio de um sepulcro.
+Passemos todas estas incongruencias, que sómente trago á lembrança para
+mostrar que a poesia dramatica não é largamente distribuida pelas musas
+aos portuguezes.
+
+N'estes ultimos tempos appareceu entre nós, sobre o mesmo assumpto, uma
+tragedia com o titulo de _Nova tragedia de Ignez de Castro_. Esta peça
+observa melhor os preceitos do theatro; a sua versificação é em algumas
+scenas elegante e sentimental; mas em outras não conserva esta
+igualdade. O fim ou o desatado da intriga é a catastrophe, que vem um
+pouco precipitada e não trazida por um jogo de paixões, susceptiveis de
+modificações differentes, que levam o coração humano ao excesso da
+paixão que agita e move os animos; o que faz que os dialogos são curtos
+e as scenas ainda mais. A da entrevista de Affonso IV com D. Ignez de
+Castro, que é uma das mais interessantes da peça, não póde satisfazer os
+espectadores, que vêem que um rei se occupa da sorte da infeliz Castro,
+de quem se separa, dizendo-lhe que vai para o conselho de estado, onde
+ella ha de ser julgada, e alli elle advogará a sua causa. Que enormes
+incongruencias! O rei tem no seu poder o perdoar-lhe; não é uma acção
+generosa salvar a innocencia das mãos que pretendem banhar-se no seu
+sangue? O conselho de estado não é um tribunal judiciario, que é só quem
+póde julgar e condemnar. E um ajuntamento de conselheiros, que o rei
+convoca para tratar da sorte de D. Ignez de Castro, como um negocio
+simplesmente politico. E então que triste personagem faz elle em advogar
+pela infeliz Castro, diante não de ministros que a julgam pelas leis, em
+que elle mesmo póde dispensar, mas diante de conselheiros invejosos, que
+verdadeiramente são algozes! Esta scena podia ser conduzida mais
+nobremente, conciliando a bondade do rei, que se mostra interessado a
+favor de Castro, com a dignidade da sua corôa, que póde ser enganada
+pelo artificio dos seus conselheiros, a quem é indigno da sua parte
+dar-lhes consentimento para serem os executores de um assassinio. Estas
+delicadezas não escapariam a Racine nem a Voltaire, se tratassem esta
+materia, porque, exactos observadores de tudo o que é decente e
+decoroso, não atropellariam tão facilmente o respeito da magestade,
+fazendo-a instrumento de crimes odiosos em um theatro em que um
+monarcha, se pelas paixões é um homem como outro qualquer, pela
+soberania é sempre executor da lei.
+
+Alguns outros poetas n'estes tempos posteriores teem ensaiado o seu
+estro n'este genero de composição. A condessa de Vimieiro compoz uma
+tragedia, que foi laureada pela academia das sciencias de Lisboa, mais
+por favor que por justiça. Um certo Francisco Dias, homem só conhecido
+pelos seus talentos litterarios que cultivou no lugar humilde de uma
+tenda, compoz outra, cuja sorte foi, segundo creio, ainda mais infeliz
+do que a da condessa; e tantos esforços juntos não tem produzido um bom
+poeta tragico em Portugal que possa pôr-se ao pé do grande Corneille ou
+do sentimental Racine, mas ainda junto dos mais mediocres poetas
+tragicos do theatro francez. Esta inopia não vem ella do principio que
+acima já apontei? Para Raphael pintar uma obra prima no inimitavel
+quadro da transfiguração de Christo, foi preciso que a sua imaginação
+sublime lêsse no grande livro do universo todas as bellezas da natureza,
+para as saber pintar com propriedade, e conforme as suas primitivas
+creações; para um poeta tragico reproduzir o caracter de Catão, de
+Cesar, de Marco Antonio, de Brutus e da infeliz Dido, é necessario que
+entre com a sua imaginação no immenso theatro do mundo e contemple a
+variedade de successos que os interesses dos homens, as suas paixões, os
+motivos que as põem em acção, os progressos que fazem sobre as suas
+almas para virem a dominal-as com despotico poder, os crimes e as acções
+infames de que são causa, a degradação, em fim, da intelligencia humana,
+quando de todo se sujeita á perversidade do vicio e se entrega á
+corrupção dos costumes: sobre este quadro immenso a imaginação quer um
+campo largo para o contemplar, examinar e estudar; mas este campo falta
+aos nossos poetas, que levados do gosto dominante da nação, que tem por
+objecto o amor, não são pintores para retratarem grandes caracteres, nem
+teem imaginação bastante para darem aos grandes successos uma fórma que
+mostre todos os horrores dos vicios e todas as bellezas das virtudes,
+que é o principal objecto das tragedias.
+
+Se este genero de composição não tem dado nome a poeta algum portuguez,
+menos se teem elles distinguido na comedia, pois que não temos uma, não
+digo boa, mas ainda muito mediocre. Parece que as musas são ainda n'esta
+parte mais avaras com os engenhos portuguezes, que, sendo os primeiros
+que abraçaram logo as artes graciosas, que no seculo XV a fortuna
+transplantou da Grecia para a Italia, onde acharam um benigno
+acolhimento, foram aquelles que por meio dellas menos gloria teem
+adquirido. As comedias que os nossos poetas do nosso seculo de
+Augusto--que é o d'el-rei D. João III--nos deixaram, não merecem sequer
+o nome de comedias; o que me não faz espanto, pois que Portugal então
+não tinha um só theatro, mais que o dos campos de Marte, e onde não ha
+theatros não ha quem componha comedias. A nossa feliz época da boa
+litteratura passou, e Camões ficou conhecido pelo primeiro poeta das
+Hespanhas pelo seu poema lyrico e não pelas suas miseraveis comedias, e
+a mesma sorte tiveram os seus contemporaneos que molharam o seu pincel
+na paleta de Melpomene. Os castelhanos que se senhorearam de Portugal,
+se distinguiram, mais que nenhuma outra nação da Europa, na arte de
+Aristophanes e de Menandro; porém não nos passaram este gosto, ou os
+portuguezes o não quizeram seguir, talvez por ser de uma nação que
+aborreciam. Como quer que seja, a arte dramatica foi inteiramente
+desprezada em Portugal, e o bom gosto da litteratura tendo-se corrompido
+n'este paiz pelos successos politicos, por que passou, fez totalmente
+esquecer aos poetas do tempo este genero de composição. Elle se limitava
+só a alguns autos sacramentaes, que se representavam popularmente em
+festas de igrejas e nos adros dos templos. As vidas dos santos davam
+assumpto para muitos d'estes autos, que correm ainda entre nós; e a
+piedade christã ia buscar n'estas representações mais estimulos para
+amarem a religião, do que motivos para cultivarem uma arte que, segundo
+Horacio, _castigat ridendo mores_. Não tenho idéa, nem pela historia nem
+por tradição alguma, que em Portugal houvesse um theatro em que se
+representassem comedias portuguezas, de que não appareciam authores, ou
+pelos embaraços da longa guerra, que houve n'este reino para sustentar a
+corôa na casa de Bragança, que não deram lugar para a applicação das
+artes, ou porque os portuguezes não quizeram imitar os seus inimigos,
+exercitando as suas musas na poesia dramatica em que os hespanhoes
+excediam a todas as outras nações da Europa. Estes não tinham theatros
+fixos; companhias ambulantes de comediantes, de que lemos na historia de
+_Gil Blaz_ a descripção tão circumstanciada como critica. Corriam de
+villa em villa, a recitar as comedias de Calderon, Moreto, Solis, tres
+«Ingenios» que inundavam toda a Hespanha, em tanto que o espirito dos
+portuguezes se contentava com os seus autos sacramentaes de _Santa
+Genoveva_, _de Santo Aleixo_ e outros semelhantes, que se davam ao
+publico em espectaculo nos dias das maiores festividades da igreja.
+Assim não se sabia entre nós o que era uma boa comedia, e n'esta
+ignorancia vivemos até que no principio do seculo passado appareceu o
+judeu Antonio José, que compoz um theatro de operas, as quaes nem pela
+poesia, pois que são em prosa, nem pelos titulos, que são _Labyrintho de
+Creta_, _Encantos de Medêa_ e outros iguaes podem chamar-se comedias, ou
+porque trazem misturada musica de recitados e de arias, á maneira dos
+italianos, ou porque lhe falta aquelle caracter que distingue a comedia,
+e que Molière só fixou em França na época feliz da sua mais brilhante
+litteratura. Aquelle engenho, porém, infeliz pela fórma das suas
+composições dramaticas e mais ainda pela miseravel sorte que teve de ser
+condemnado a morrer queimado pelo santo officio, foi comtudo, o primeiro
+que viu as suas operas representadas no theatro do Bairro Alto, o
+primeiro que houve em Lisboa e onde os representantes eram bonecos que
+se moviam por arame e que fallavam pelas vozes dos interlocutores, que
+se mettiam por entre os bastidores. Tal era o estado em que se achava a
+arte dramatica em Portugal, quando já Molière brilhava em França como o
+restaurador dos theatros de Grecia e Roma, pelas suas admiraveis
+comedias e como um modelo perfeito da mais decente, entendida, natural e
+agradavel representação que até então não tinha apparecido em algum
+theatro do mundo antigo e moderno.
+
+Nem este excellente author, que deu tanta gloria á França como
+Aristophanes tinha em outro tempo dado a Athenas, nem o genio particular
+que a natureza lhe tinha dado para imitar na scena as differentes
+personagens, que como author era obrigado a representar, causaram o mais
+pequeno estimulo aos engenhos portuguezes para o seguirem na carreira
+dramatica. As suas musas ficaram mudas n'este ponto, até que el-rei D.
+José, apaixonado pela musica, logo que subiu ao throno, mandou construir
+um magnifico theatro; e mandando vir da Italia os mais celebres musicos
+para cantarem n'elle as peças de Metastasio, extinguiu de todo o gosto
+da nação pelas comedias em lingua vulgar. Quem poderá deixar de
+reflectir que houvesse theatro nacional em uma nação em que o rei não
+gostava, e, por conseguinte, o não protegia? Não o havia, pois--nem
+comedias para se representarem, no caso de o haver; porque, como já
+disse, a poesia n'este genero emmudeceu em Portugal. O theatro real era
+tão magestoso que não admittia mais que pessoas de qualidades
+superiores; e as que ficavam mais abaixo não indo a elle ignoravam o que
+era uma comedia, uma tragedia e os mesmos dramas em musica, que se
+punham no theatro real. Succedeu o fatal terremoto de 1755; arruinou-se
+com a maior parte da cidade este sumptuoso espectaculo, e, até que a
+confusão d'aquella calamidade se ordenou, nem el-rei teve theatro nem o
+povo. Mas no anno de 1758 abriu-se o da rua dos Condes, que ainda hoje
+existe nas ruinas do palacio do marquez do Louriçal, com algum augmento
+que teve, depois da sua primitiva creação. As peças que ao principio
+n'elle se representavam eram as operas de Metastasio traduzidas em
+portuguez, _Artaxerxes_, _Alexandre na India_, _Demofonte em Thracia_,
+_Ezio em Roma_, etc. com relações á maneira hespanhola, e mil
+bufonerias, que d'aquelles bellos dramas faziam as peças mais ridiculas
+que se podiam pôr em scena; e, para tornar o theatro de todo
+desprezivel, eram homens vestidos de mulheres que representavam o papel
+de Erytrêa e das mais damas das peças e suas criadas, que os traductores
+introduziam para fazerem rir a plebe. Um só poeta appareceu com uma
+composição dramatica que fosse digna de apparecer em scena; e os
+directores d'este miseravel theatro pozeram em contribuição poetas
+hespanhoes e italianos para sustentarem o theatro.
+
+Alguns annos depois um novo empresario estabeleceu um theatro no Bairro
+Alto, não onde havia o dos bonecos em tempo mais antigo, mas nas ruinas
+do palacio do conde de Soure, cuja abertura foi com uma companhia de
+musicos italianos que foi buscar a Londres. Esta empresa não durou muito
+tempo, e aos italianos succederam os portuguezes com o mesmo successo
+que tinham os da rua dos Condes, que podiam chamar-se actores de
+arraial. Este theatro do Bairro Alto de todo acabou e succedeu-lhe o do
+Salitre, que se conserva sem melhoramento algum que possa acreditar os
+engenhos portuguezes, que, nem pelas suas composições, nem pelo jogo da
+representação, tem dado á sua patria a gloria de ter um theatro
+nacional.
+
+N'esta curta narração historica dos theatros portuguezes tenho feito vêr
+o pouco progresso que a arte dramatica tem feito em Portugal. Não é de
+admirar, porque onde os talentos superiores não são apreciados com
+justiça e recompensados com a grande estimação que lhe é devida, nem
+podem produzir fecundos fructos na arte theatral, que fazem as delicias
+do homem de gosto fino e delicado das cidades mais opulentas da Europa,
+nem terem a esperança de vêr seus nomes inscriptos nos monumentos que os
+homens gratos lhes consagram. As artes não florecem senão quando são
+immediatamente protegidas e estimadas pelos soberanos; e quer seja
+poeta, quer seja actor, se tem talentos distinctos, não merece a
+attenção e a estimação do seu principe, quem contribue para fazer a sua
+gloria mais brilhante? Os seculos de Augusto, de Leão X e dos Medicis de
+Florença, o de Luiz XIV em França não provam esta verdade? Não me
+detenho em amplificar estas minhas idéas com outras razões, porque não
+padece duvida que a memoria dos soberanos que se tem pronunciado
+protectores das bellas-artes vive ainda nos padrões que ellas lhe tem
+erigido, entretanto que a dos mais famosos conquistadores ficou
+confundida nos estragos que fizeram. Infelizmente os nossos soberanos
+portuguezes tem esquecido esta verdade, como muitas outras, e deixaram
+morrer Camões, que dá tanta gloria a Portugal, em um hospital. Desde
+esta desgraçada época tem sido os poetas n'este paiz tão pouco
+venturosos pela sua arte, que o nome de poeta só entre nós é synonymo de
+pobre e de miseravel. Que comedias, que tragedias boas podia pois haver
+em um tal paiz?
+
+Se não podemos competir com as nações que cultivam as bellas-artes
+n'este genero dramatico, menos ainda os actores dos nossos theatros
+podem rivalisar com os das outras nações que tem formado já um gosto
+apurado e exquisito n'aquella parte que se chama representação. Ella não
+é mais do que uma simples imitação da natureza, que é o primeiro
+principio que deve seguir todo o bom actor. Separar-se d'elle por
+acanhamento ou por excesso, não acompanhar de gestos correspondentes as
+expressões, não saber desenvolver pelas attitudes os sentimentos que tem
+para declamar ou recitar, deixar-se transportar por estes sentimentos
+sem faltar á dignidade e á decencia que exige a personagem que
+representa, pronunciar com clareza e energia o que lhe compete dizer, e
+mostrar pela physionomia que o que diz vem do fundo da sua alma, sem
+estudo nem affectação, são as circumstancias principaes que formam um
+bom actor. Ora examinemos quaes dos nossos as sabem pôr em uso. Os
+grandes artistas desenvolvem os seus talentos estudando a natureza e
+seguindo os modelos que aprenderam a imital-a. Guido, Carrache, Albano
+devem a admiravel belleza dos seus quadros a este estudo singular de
+imitação; mas onde podem achar os nossos actores modelos, a quem possam
+imitar e talvez exceder? Não fazem estudo algum da natureza; ensaiam os
+seus papeis como simples obreiros, que tem uma empreitada a fazer e que
+hão de acabar seja como fôr; e n'esta parte o povo que compõe a platêa
+dos nossos theatros é o mais tolerante povo do universo, pois que soffre
+com a maior paciencia todos os actores bons, maus, medianos e incapazes
+de apparecerem. Por isso nunca aspiram áquella superioridade, em que o
+bom gosto, dirigido por um discernimento perspicaz e por uma critica sã
+e judiciosa, faz consistir a gloria do grande talento. Molière, o
+primeiro restaurador da comedia, como já disse acima, foi tambem o
+primeiro actor da França. Conta-se d'elle que os papeis que representava
+recitava-os antes a uma criada que tinha, que decidia, como
+intelligente, da sua boa ou má representação, e como bom juiz corrigia e
+emendava os seus defeitos. Um dia Molière, para melhor se convencer da
+intelligencia d'esta sua criada, recitava-lhe um papel de um author
+estranho, que fazia uma grande differença d'aquelles que eram composição
+d'aquelle homem inimitavel; ella conheceu logo o engano, e voltando-se
+para o amo lhe disse: «Vós representaes as vossas comedias como um
+exellente actor; mas essa que ensaiaes nem é vossa, nem vos fará
+applaudir.» Eis aqui como a applicação, o estudo e o modo de estudar
+secunda os dons da natureza: ora qual dos nossos actores tem imitado a
+Molière? Qual d'elles tem sido capaz de apurar o seu talento, se o tem,
+por um modo tão novo e tão extraordinario?
+
+É difficil que um homem, que tem algum conhecimento de theatros, possa
+aturar a representação dos nossos comicos portuguezes, sempre affectada,
+sempre fóra do natural e sempre exprimida em vozes altisonantes, e cujos
+dialogos acabam geralmente em um hiato desagradavel e musical, estylo
+que não é proprio de quem conversa, que é o que compete á comedia, a
+qual representa um facto, um caracter, uma intriga, que se explica por
+uma conversação natural e semelhante ás que se fazem nas sociedades. Se
+a este estylo declamatorio ajuntarmos o excesso com que os criados ou
+criadas que vem á scena desempenham os seus papeis em gracejos que
+divertem o publico e que pela maior parte são insipidos, e sem outro
+interesse mais que o da risota, acharemos que está entre nós tão
+atrazado o jogo da representação theatral, que os nossos actores em
+seguindo bem o ponto, que lhes indica o que hão de dizer, são proprios
+para todas as personagens, e por conseguinte bons para nenhuma.
+
+Lembra-me ha annos ir ao theatro da rua dos Condes assistir á
+representação da tragedia intitulada _A Vestal_, que traduzira em
+portuguez com elegancia o celebre Bocage. Esta peça tragica, susceptivel
+da mais brilhante representação pelo seu assumpto e pelos grandes
+interesses que n'ella se tratam, foi desgraçadamente tão mal
+representada, que pela parte que me toca não me fez a menor sensação.
+Quantas vezes disse commigo mesmo: «Ah! famoso Talma[1] que estiveste em
+Londres muitos annos com o fim de reunires os talentos da arte theatral
+dos dous paizes, que os sabem tão bem apreciar! se tu aqui estivesses,
+como verias esta excellente peça despedaçada por semelhantes actores?»
+Em uma das scenas apparece o grande pontifice que deve fazer executar a
+lei imposta ás vestaes sacrilegas e criminosas; reconhece que sua filha
+é a delinquente accusada; que conflicto de grandes e violentos
+sentimentos da religião e da natureza não devem combater a alma de um
+pai, que sendo igualmente pontifice ou ha de faltar á observancia da
+lei, primeira obrigação do homem, ou ha de calcar os estimulos quasi
+invenciveis da natureza, sacrificando o seu proprio sangue á vindicta da
+lei? Que genio, que talentos, que energia de caracter não são precisos
+para desenvolver toda esta opposição de sentimentos que combatem o
+coração humano de uma e de outra parte? O pobre miseravel actor era um
+automato no meio do theatro, e sem duvida eu tive tanta afflicção de vêr
+a sua insufficiencia pessoal, como aborrecimento de vêr a indifferença
+com que o povo portuguez soffre semelhantes actores, a quem convém mais
+propriamente uma enxada, do que a profissão de uma arte para a qual
+lhes faltam todos os requisitos. Esta peça me desenganou inteiramente
+da mediocridade dos nossos actores portuguezes e do estado miseravel em
+que estão os nossos theatros nacionaes, que tem a desgraça de verem
+estropeados nos seus proscenios as mais admiraveis producções do
+espirito humano.
+
+Tenho dado uma curta idéa do pouco que a poesia dramatica concorre
+n'esta parte para a gloria nacional, assim como do pouco que os nossos
+actores contribuem para fazer brilhar uma arte que os povos mais polidos
+amam com tanto excesso, porque n'ella acham uma dôce e agradavel
+distracção aos seus negocios civis, quando ella é cultivada
+principalmente por aquelles talentos sublimes que ennobrecem tanto as
+nações que os viu nascer e creou, como a mesma arte que souberam
+aperfeiçoar.
+
+Os limites de uma simples carta não me permittiram que eu tratasse este
+assumpto com aquella extensão que elle requeria para desilludir os
+muitos ignorantes que se persuadem da boa direcção dos nossos theatros e
+dos grandes talentos dos nossos actores. Contentei-me unicamente com
+tocar este ponto pela superficie conforme convinha a uma simples carta,
+em que a casualidade quiz que o fizesse entrar, a fim de dar a conhecer
+o nosso grande atrazamento n'esta parte; e creio que algumas das minhas
+observações não serão frivolas na opinião d'aquelles que tem frequentado
+os theatros estrangeiros, em que as peças que se representam n'elles
+concorrem tão poderosamente para a educação publica se ir aperfeiçoando
+cada vez mais, o que, a meu vêr, é o principal objecto da instituição
+dos theatros.
+
+O povo de Lisboa não gosta com preferencia senão de farças e entremezes,
+por que só quer rir e divertir-se com as baboseiras que se dizem
+n'elles; mas é porque não conhece ainda a grande utilidade que poderia
+tirar de uma escóla de costumes e de maneiras que lhe quadrariam melhor
+que as muitas chalaças que ouvem, que lhes pervertem toda a inclinação
+que poderiam ter para aprenderem a ser polidos, decentes, modestos e
+virtuosos cidadãos--o que as peças theatraes que estão vendo
+representar, todos os dias, lhes não ensinam.
+
+Adeus, meu bom amigo; perdôe esta matraca que lhe dou em favor do
+espirito com que a escrevi, que é o do bem publico, que se estende
+tambem a este ramo, que produz os fructos delicados do bom gosto, o qual
+se adquire nos theatros, e d'aquella urbanidade que não é filha da
+imitação; mas de uma intelligencia dirigida pela razão--tão util ao
+homem na sua condição particular, como gloriosa para a nação a que elle
+pertence.
+
+Sou sinceramente
+
+ amigo fiel e affectivo
+
+ _M._
+
+ [1] Talma, primeiro actor tragico do theatro de Paris.
+
+
+
+
+BIBLIOGRAPHIA
+
+(Padre Senna Freitas--Cunha Vianna--Monsenhor Joaquim Pinto de Campos)
+
+
+_Padre Senna Freitas._ NO PRESBITERIO E NO TEMPLO, vol. I, _Livraria
+Internacional de E. Chardron. Porto. 1874._--Este primeiro tomo
+comprehende dezesete artigos que se rivalisam na excellencia da doutrina
+e da linguagem. Alguns, sem destoar da seriedade do livro, movem o
+leitor a um sorriso complacente. N'este genero, estrema-se o intitulado
+_Asphyxia... pela imprensa_. Tem resaltos de graça e nervo
+epigrammatico. Faz lembrar as paginas felizes de Luis Veuillot nos
+_Odeurs de Paris_. «Livros, opusculos, livrorios, livrecos, nacionaes,
+nacionalisados, _in folio_, _in quarto_, _in octavo_, em dezeseis;
+obesos, normaes, anemicos, succulentos, indigestos, aquosos; edicionados
+aos mil, aos dous, aos tres mil, de mais de dez a menos de dous tostões;
+impressos a capricho, moldurados, coloridos, iriados, rendilhados,
+casquilhos.» (Pag. 215 e 216).
+
+Recenseia d'esta arte o snr. padre Senna Freitas as producções
+asphyxiosas; mas não se deprehenda que elle, o illustrado escriptor
+respiraria melhor oxygeneo em regiões onde escasseassem prelos e
+authores. O que o suffoca é o gaz acido carbonico das inepcias em
+dicção, em philosophia, e em moral. Contra as da linguagem protesta o
+snr. Senna Freitas, abrasado nas risonhas coleras do padre Francisco
+Manoel do Nascimento: «Pois ha nada comparavel em elegancia castiça de
+terminologia áquellas paginas e áquellas columnas arrebicadas de
+gallicismos, e anglicismos tão expressivos e engraçados que deixam a
+nossa lingua corrida? Travemos, por exemplo, d'uma gazeta (salvas, bem
+entendido, as que fazem honra ao jornalismo). A pouco fundo, já lá
+apparecem a boiar os «meetings», os «comités», as recriminações do
+articulista contra as «chicanas» parlamentares, e as «coalições»
+ministeriaes, e o estylo por demais «descosido» em que se exprimiu o
+deputado fulano de tal, etc... Passemos á revista interna e
+noticiosa--prosegue o analysta bem humorado.--Acaba de dar-se um
+successo tristemente «remarcavel» que o noticiador conta «em detalhe»
+aos leitores, «tirando d'elle partido» para fazer uma discreta
+consideração moral. Em seguida, dá um leve «golpe de vista» pelo
+«high-life» da terra, e analysa o ultimo livro publicado por... que é na
+sua apreciação um verdadeiro «chefe d'obra.» (Pag. 219).
+
+E assim, com razão e discreto sal, o esclarecido moço, que tão digna e
+exemplarmente allia o viçor da idade ao respeito do habito clerical, vai
+desfiando o ruim tecido dos maus livros, quer na fórma, quer na
+substancia.
+
+Culpa os romances nimiamente realistas de perversores dos bons costumes:
+«Ha o romance serio, instructivo, philosophico, moral, espiritualista,
+da tempera do _Promessi Sposi_ de Manzoni, que nos transporta a uma
+atmosphera salubre, onde se respira um ar impregnado de oxygeneo; que
+photographa todo o lado bello, puro e grande da humanidade. E ha o
+romance enervante, declinação insipida e interminavel d'_elles_ e
+d'_ellas_; o romance bohemio ou cigano, composto pelo mancebo
+apaixonado, que come no _restaurante_ de terceira classe, e morre etico
+aos vinte e cinco annos; e o romance realista ou positivista, ainda peor
+que o precedente, sem ideal algum; condensado de todos os miasmas da
+lama, de todas as corrupções do esphacelo, e de todos os sarcasmos e
+negações do atheismo, sem outra esphera por conseguinte mais que a
+materia pura, só por uma ironia de mau gosto chamado _a alma nova_.»
+(Pag. 227 e 228).
+
+Acato a opinião do snr. Senna Freitas, quanto ás novellas descriptivas
+da vida contemporanea; mas desliso da severidade do seu juizo. Creio que
+assim como os bons e moralissimos romances não morigeram, tambem os
+immoraes não desmoralisam. Não são os romances que formam os costumes
+bons e maus; são os costumes que fazem os romances. E casos ha em que as
+novellas saturadas de virtude são inverosimeis e puramente phantasticas.
+Eu já escrevi algumas, nomeadamente as _Lagrimas abençoadas_ e as _Tres
+irmãs_. Ninguem acreditou aquillo; e toda a gente aceitou como copias do
+natural _Os brilhantes do brazileiro_ e _A mulher fatal_--dous livros
+miasmaticos, que só podem lêr-se com o interior do nariz plantado de
+alfadega e mangericão. Quando o marquez d'Urfé escrevia as suas novellas
+pastoraes, embrincadas de polidissima cortezia nos amores, vivia-se em
+França, pouco mais ou menos, como nos romances de Soulié, de Kock e de
+Feydeau. Ha de tudo. Ha muitissima gente honesta que lê a _Lelia_ de
+Sand, e muitissima gente de ruins manhas que lê a _Fabiola_ do cardeal
+Wisemann. Sem embargo estes reparos não desluzem a efficacia das
+considerações do snr. Senna Freitas.
+
+Da summa do seu livro direi, com sincera admiração e devida justiça, que
+se revela ahi um excellente escriptor, um padre illustradissimo, um
+homem de bem, um argumentador convicto e em grande parte irrefutavel.
+D'este modo ajuiza o author da sua obra: _É um livro christão que não
+fará ruim companhia junto ao lar das boas familias: nada mais._
+
+É muito mais; porque afervora as crenças tibias, alvoroça as almas
+marasmadas na indifferença religiosa, descondensa a escuridade que fez
+noite algida nos corações abatidos pela desgraça. O snr. Senna Freitas
+nobilita o clero portuguez e honra as letras patrias. Se não fosse a
+palavra _religião_, quem explicaria tão obscura vida em tão alumiado
+espirito?
+
+Congratulo-me com o meu benemerito amigo Ernesto Chardron, quando vejo
+entre as edições da sua copiosa livaria a estreia gloriosa do snr. Senna
+Freitas.
+
+ * * * * *
+
+_Cunha Vianna._ RELAMPAGOS com um prologo por _João Penha_. _Livraria
+Internacional. Porto, 1874._--O author está na primeira florecencia dos
+annos. Reçumbra-lhe do rosto a branda tristeza dos que soffrem com o
+encontro da incerteza nos umbraes da vida. Nuta entre os parceis, quando
+as vagas descahem, e lhe abrem um vacuo onde as idealisações lhe não dão
+pé, nem o positivismo ancora. É um dos muitos, cuja salvação depende de
+pouco: a experiencia da vida, o entrar na inanidade das cousas, o
+acordar com a cabeça ferida na corrente que fecha a galé dos obreiros do
+ideal--especie de somnambulos que fallam comsigo proprios, como João
+Penha, o redactor do _Prologo_.
+
+Este, ainda assim, tem momentos de apégar no commum da vida. O seu
+fechar dos sonetos conhecidos e decorados é sempre a zombaria das altas
+cousas, dos raptos á divindade que se esconde, e aos mysterios do céo
+que atira estrellas a milhões sobre os seus interrogadores. O paio de
+Lamego e o presunto de Melgaço raro deixam de testemunhar que o espirito
+de João Penha é escorreito, e que a poesia, quando lhe apparece, como as
+revoadas das andorinhas, passa, não deixando de si no azul um vestigio
+de saudade.
+
+O snr. Cunha Vianna está ainda entre os poetas de consciencia e
+inspiração. N'estes seus poemas não ha os desmandos e dislates que
+individualisam a poesia ultimamente inventada. É muito moço, e a sua
+musa parece filha da que floreceu em Portugal ha trinta annos. Não se
+dôa por isso o esperançoso escriptor. Do bom senso dos seus versos ha de
+derivar-se o bom senso da sua prosa. Quando as flôres fenecerem, e os
+fructos se desabotoarem, verá quanto proveitoso é ter sido, a um tempo,
+o interprete do vago da alma e o aprendiz do positivo dos bons
+diccionarios.
+
+Entre as suas poesias escolho um fragmento da _Armada_ para que o leitor
+se convença de que lhe não inculco no snr. Cunha Vianna um arrolador de
+podridões, de anemias, de chloroses, e de tanta outra moxinifada com que
+intentam fazer-nos da imaginação hospital.
+
+N'este poema, o oceano interroga Portugal algemado na grilheta do
+despotismo. Veleja ao longe a esquadra da Terceira que aprôa ao Mindelo.
+O grande Atlante pergunta á armada o seu destino:
+
+ --Somos a Liberdade!
+ a esplendida epopéa!
+ a voz da humanidade!
+ o sol da Nova-Idéa!
+ Somos, oh monstro aquatico,
+ o verbo democratico,
+ tão forte como Deus!
+ mais rijo que a tormenta!
+ Astros, descei dos ceus!
+ Nuvens, descei do espaço!
+ vinde beijar o traço
+ das nossas naus possantes!
+ Nós somos os gigantes,
+ os Cyclopes modernos:
+ vimos livrar os mundos
+ de horrificos infernos.
+ Vimos fazer a guerra,
+ bradar a Torquemada:
+ --pódes fugir da terra,
+ que o teu imperio é nada!
+ Somos a Liberdade!
+ a esplendida epopéa!
+ a voz da humanidade!
+ a luz da Nova-Idéa!
+
+ «--Eu vos saúdo, ministros
+ d'uma idade d'esplendores!
+ Expulsai corvos sinistros
+ d'essa terra de condores!
+ --aves d'arrojo inaudito,
+ que muitas vezes s'elevam
+ ás solidões do infinito!
+ Que lindo paiz! é vêl-o:
+ por toda a parte boninas,
+ e, mais além, do Mindelo
+ as vicejantes campinas!
+ E mais ao longe a cidade,
+ que reflora ao Douro a estancia,
+ a Ostende da liberdade,
+ nova rival de Numancia!
+ --o Capitolio altaneiro
+ d'um povo livre e guerreiro,
+ que, n'um heroismo ardente,
+ unico, bello, e assombroso,
+ roubou mais d'um continente
+ ao meu reino tormentoso!
+ Heis de vencer, porque a historia,
+ a virgem que vos inspira,
+ já vos prepara na lyra
+ os hosannas da victoria!
+ Vencerá ao retrocesso
+ quem este abysmo venceu:
+ tendes por guia o progresso--
+ d'esta idade o Prometheu!»
+
+ * * *
+
+ Tempos depois a luz da nova aurora
+ illuminava os montes e a cidade!
+ A tyrannia, aniquilado o sceptro,
+ como livido espectro
+ lá transpunha os umbraes da soledade;
+ e um povo inteiro, a quem a paz inflora,
+ salvava estrepitoso
+ o brilho radioso
+ da augusta Liberdade!
+
+Eis aqui um poeta.
+
+ * * * * *
+
+JERUSALEM, por _Joaquim Pinto de Campos_, etc. _Lisboa, 1874._--Precede
+este precioso livro uma carta do snr. visconde de Castilho. Ahi se
+annunciam primores, quanto ao modo como a obra é escripta, e se dá de
+suspeito o snr. visconde quanto á substancia, ao contexto da idéa.
+«Creei-me semi-pagão entre pagãos millenarios do melhor engenho,
+sociedade minha ainda hoje», diz o grande poeta, em quem reviveram as
+almas de Anacreonte e Ovidio.
+
+Comprehende-se este retrocesso no rasto esplendoroso que nos leva até
+casa dos Mecenas; mas, se ahi nos convida Petronio para uma cêa de
+Trimalcião, dá-nos vontade de fugir para uma das ágapes lôbregas em que
+o bocado de pão se ungia de lagrimas.
+
+Magestade, estrondo, alegrias, febris prazeres e infernaes delicias tudo
+teriam de seu as musas pagãs com que deleitar a inspiração e o officio
+dos seus dilectos; mas poesia, a sincera, a ideal, a que aformosêa a
+vida dentro dos abysmos das suas quedas, essa não nos vem herdada de
+Horacio nem de Catullo: deu-nol-a o christianismo.
+
+Aos muito affeiçoados a reliquias do velho Oriente suscita o monsenhor
+Pinto de Campos as reminiscencias dos cyclos anteriores á sagração do
+local em que passaram os lances da divina missão de Jesus Christo. A
+cada passo, resaltam ahi recordações da Roma imperial, com todos os
+accessorios que lhe lustraram a prosperidade como contraste da voragem
+que de um hausto a sorveu para sempre apagada.
+
+O livro é tão de molde para todos os paladares, cinge-se tão caroavel ao
+deleite do curioso, do sabio e do devoto, que a ninguem será estranho o
+prazer da leitura. Em duas palavras qualifica um doutissimo critico
+fluminense o livro do snr. Pinto Campos: _para mim tenho que a opinião
+classificará esta obra entre as de mór vulto que este seculo ha visto em
+lingua portugueza._ (Reflexões de um solitario relativas ao livro
+_Jerusalem_, pag. 3).
+
+Evidentemente, o snr. Pinto de de Campos conhece e exercita as menos
+communs bellezas da nossa lingua. Já o haviamos admirado nas fluencias
+descuidadas da conversação, antes de o reconhecermos no purismo d'este
+livro perfeitamente executado. O seu estylo tem a sobriedade, a
+parcimonia de enfeites que se adquirem quando a sã e alumiada razão os
+escolhe. As pompas e os recamos da dicção occorrem-lhe a ponto com
+rigorosa propriedade. A unção religiosa dos quadros nunca é prejudicada
+pelos estofos da rhetorica. As figuras cedem a sua luz ficticia ao
+brilho permanente da verdade. A relanços descriptivos da Terra Santa,
+resôa ás vezes o dizer chão e affavel de fr. Pantaleão de Aveiro,
+alternando-se com os raptos vehementes da piedade de Chateaubriand e do
+apaixonado lyrismo de Lamartine; mas tudo isto tão nosso, tão portuguez,
+tão condimentado do idioma de Sousa e de Bernardes, que não póde ser
+senão de monsenhor Pinto de Campos.
+
+O leitor, que lê os telegrammas vindos do Brazil, já viu que lá se
+ergueu uma voz calumniadora acoimando de plagiario o author da
+_Jerusalem_. Sem interposição de tempo, sahiu pela honra e lealdade do
+calumniado escriptor um dos maiores sabios que hoje se contam
+viventissimos na rareada fileira dos sinceros homens de letras em
+Portugal. Parece-nos ter entrevisto no _Solitario_, que tão egregiamente
+repelle os detrahidores de Pinto de Campos, o conselheiro José Feliciano
+de Castilho, o mais poderoso talento alliançado á mais tenaz memoria de
+que temos noticia, e, mais que noticia, lição aturada e incansavel.
+
+Eis aqui a repulsão da aleivosia, que trasladamos textualmente:
+
+
+Li uns artigos em que, confrontando-se trechos da _Jerusalem_ com outros
+semelhantes das obras de Pozada Arango e de Perinaldo, se qualificam
+essas transcripções de _plagiatos escandalosos, furto na mão, bocca na
+botija, acto proprio para fazer subir o pejo ás faces do culpado, motivo
+de indignação_, etc., etc. Assim enfeixadas as injurias, não se dirá que
+as attenuo; e quanto ao facto da reproducção d'esses e outros passos no
+soberbo livro, começo declarando que elle é real, licito; publicado,
+antes de o ser pelos censores, pelo proprio escriptor; e que, nas
+circumstancias d'esta polemica, pouca prova de lealdade de quem occulta
+essa declaração com que o author de antemão desmorona todo esse castello
+de cartas. Ah! isso não convinha aos sinceros Aristarchos: esmerilharam
+tudo, mas fecharam olhos nada menos que sobre o peristilo do monumento,
+ao qual apenas fazem uma referencia vaga, passando como cão por vinha
+vindimada.
+
+«O author podia, como grande numero dos seus predecessores em um
+assumpto d'esta ordem, reproduzir aquillo que bem entrasse no plano da
+sua obra, em materia de descripções, de averiguações e narrações dos
+successos, sem citar as fontes. Pois acaso inventa-se a religião?
+Inventa-se a historia? Inventa-se a natureza? Inventam-se factos? Sempre
+que em tudo isso se toca, é evidente que se repete o que já se ha dito;
+e todas as vezes que essas descripções estão bem feitas, que utilidade
+ha em alteral-as? Nada haveria mais facil que dar sempre as mesmas idéas
+por diversas palavras, mas n'isso então é que se daria manifesta má fé,
+porque transpareceria a intenção culposa, o que nunca póde imputar-se a
+quem, uma ou outra vez, traduz litteralmente de livros que andam em
+todas as mãos.
+
+«Não desenvolverei este ponto em these, como tão facil seria;
+limitar-me-hei a demonstrar a candura com que monsenhor Pinto de Campos,
+logo ao romper o seu livro, nos denunciou... isso mesmo que hoje se lhe
+assaca? Completa elle o seu prologo (pag. XVI e XVII), revelando a quem
+vai lêr, que transcreveu largos trechos de escriptores antigos e
+modernos; enumera os principaes d'esses escriptores; affirma, com
+inexcedivel modestia, que só a ess'outros (o que é descabido) deve ser
+restituida qualquer gloriola, que das suas paginas se possa colher; que
+se embrenhou na floresta d'esses authores; que das flôres d'elles sugou
+o mel. Transcreverei (com as almejadas aspas):
+
+«Na averiguação e narração dos successos, tomei por norma _seguir os
+varões_ doutissimos e diligentissimos, _citando lealmente suas palavras
+ás vezes, muitas outras suas sentenças_; assim como é certo que lhes
+addicionei outras muitas, que pelo proprio estudo alcancei... _Segui_ de
+preferencia a Sagrada Escriptura, Flavio José, S. Jeronymo, e entre os
+proporcionalmente modernos, Quaresmio... Em muitos outros, antigos e
+modernos, _procurei flôres que em meu ramilhete ennastrasse, e a todos
+os quaes fiquei mais ou menos devedor; se n'este rescende alguma
+fragrancia, a elles e não a mim se deve_. Sem ordem nem de merito nem de
+idades, aqui apontarei Adricomio, Biagio Terzi, Calmei, Mariano Morone
+de Maléo, Chateaubriand, Lamartine, conde Marcellus, Valiani, Geramb,
+Poujoulat, MICHAUD, fr. Pantaleão d'Aveiro; MISLIN, fr. Lavinio,
+Renazzi, Gaume, POZADA ARANGO, Escrich, Munk, Dupin, De Saulcy, Saint
+Aignan; e particularmente os padres Dupuis e PERINALDO me foram de
+INEXCEDIVEL AUXILIO... Não se destina esta enumeração a ostentar pompa
+de erudição; serve, ao contrario, para _restituir a outros_ qualquer
+gloriola que de entre estas paginas podesse ser colhida. Solícita
+abelha, embrenhei-me n'essa vasta floresta e sem estragar as flôres,
+_suguei-lhes o mel_; e se em alguma havia veneno, lá o deixei.»
+
+«O que ahi fica (idéa que mais de uma vez apparece reiterada no corpo da
+obra), constitue um luxo de precauções, a fim de que nenhum mal
+intencionado ousasse attribuir-lhe a intenção de locupletar-se com a
+jactura alheia. «Eu segui varões doutissimos», «suas palavras ás vezes,
+muitas outras suas sentenças.» «Em muitos authores procurei flôres que
+em meu ramilhete ennastrasse, e a todos fiquei mais ou menos devedor.»
+«Apontarei entre estes Pozada Arango, Michaud, Milsin.» «Particularmente
+o padre Perinaldo me foi de inexcedivel auxilio.» «Se n'este ramilhete
+rescende alguma fragrancia, a elles, e não a mim se deve.» «Seja a elles
+restituida qualquer gloriola que d'entre estas paginas podesse ser
+colhida.» «Na vasta floresta dos authores citados, suguei o mel de suas
+flôres. »
+
+«Santo Deus! É n'estas circumstancias que se imputa a um escriptor a
+perpetração de (nada menos!) _plagios escandalosos_! O que ahi fica, se
+pecca é pela repetição, até á saciedade, do proprio facto com que os
+inimigos hoje o criminam. Foi innocentemente o monsenhor quem deu essas
+armas contra si. Leram no prefacio os seus detractores que elle
+declarava haver transcripto numerosos passos de Michaud, Mislin, Pozada
+Arango; e que Perinaldo principalmente lhe havia sido de inexcedivel
+auxilio. O processo da malevolencia tornava-se, desde então,
+singelissimo.
+
+«Ah! elle diz que ha um escriptor chamado Perinaldo, que lhe foi de
+inexcedivel auxilio? que ha um Pozada Arango, etc., de quem extrahiu as
+proprias palavras, ás vezes, ou sentenças? que para este ramilhete
+colheu d'esses livros muitas flôres, e as mais preciosas? Ora, copiosas
+flôres, colhidas de livros, não podem ser rosas, nem malmequeres, são
+forçosamente paginas. Toca a procurar esses livros, cuja existencia elle
+nos patentêa; a pesquizar ahi os trechos do que nos revela ter-se
+apoderado; e depois, lançando-lhe em rosto o que elle mesmo nos
+denunciou, tripudiaremos, e subindo ao capitolio, iremos render graças
+aos deuses!»
+
+«Em tal procedimento, a lealdade pede meças á justiça.»
+
+
+Delida a macula com que a malevolencia, aborto de odios politicos,
+tentou denegrir a mais notavel obra modernamente escripta com os
+primores da lingua portugueza por um brazileiro--que entre os seus e os
+nossos a escreve como os distinctissimos--não temos senão a louvar o
+grande alento que tirou a salvo de tropeços esta obra perduravel com que
+monsenhor Pinto de Campos brindou os seus conterraneos e os da patria de
+seus avós. Já conheciamos e reverenciavamos o orador religioso e
+parlamentar. Agora lhe recebemos de sua mão um livro que vamos reler e
+collocar entre os que nos ensinaram a escrever.
+
+
+
+
+QUE SEGREDOS SÃO ESTES?...
+
+ Fosse terror ou sentimento fosse
+ De mais occulta origem...
+
+ GARRETT.
+
+ A pallida doença lhe tocava
+ Com fria mão o corpo enfraquecido.
+
+ CAMÕES.
+
+
+I
+
+--Fui hoje vêr á casa da saude o Duarte Valdez.
+
+--O nosso companheiro de casa em Coimbra?
+
+--Justamente.
+
+--Que tem elle?
+
+--Os dias contados.
+
+--Tisico?
+
+--Perguntei ao doutor Arantes que doença era a do Valdez. Fez com os
+hombros um tregeito significativo de que a medicina nem sempre tem
+alçada para devassar das doenças que matam, e denominal-as com
+terminações inflammatoriamente gregas. Quando, porém, é a alma que mata
+o corpo, os medicos lavam d'ahi as mãos como o governador da Judêa.
+
+Tive este dialogo, em Lisboa, ha hoje doze annos, e, seguidamente, fui á
+casa da saude no largo do Monteiro.
+
+Quando, na ida, atravessava o jardim da Estrella, sentei-me a encadear
+as lembranças vagas e desatadas que eu tinha de Duarte Valdez.
+
+Tres épocas me occorreram.
+
+Primeira, a da nossa jovial convivencia em um casebre da Couraça dos
+Apostolos, em Coimbra, no anno 1845. Segunda, outra menos modesta e
+menos alegre camaradagem de quarto, no hotel Francez, do Porto, em 1851.
+
+Antes de mencionar a terceira época, urge saber-se que nenhum de nós se
+formára. Elle contentára-se com um diploma de insufficiencia em
+rhetorica, e eu com a prenda não commum de arpejar tres varios fados na
+viola. Não rivalisavamos em sciencia. Formavamos da nossa reciproca
+ignorancia um conceito honesto. Não queriamos implicar com sabios, nem
+para os invejar nem para os detrahir.
+
+A terceira época ou terceiro encontro foi em 1856. Vi-o em S. João da
+Foz, e ouvi-lhe revelar mysteriosamente que estava emboscado em uns
+arvoredos, entre Lordello e Pastelleiro, com uma extremosa e estremecida
+menina, fugida aos paes. Não me recordo os pormenores d'estes amores que
+elle me disse serem os primeiros e ultimos. Tenho, porém, a certeza de
+que me ri d'uns _amores ultimos_, aos vinte e cinco annos de idade.
+
+N'aquelle tempo a fuga de uma menina qualquer não era successo por tanta
+maneira horrido, que eu devesse desmaiar na presença do meu acelerado
+amigo. Eu já contava então uns decrepitos vinte e nove annos, e conhecia
+varios acontecimentos impudicos, por exemplo, aquelle da D. Hermenigilda
+d'Amarante, que eu exhibi ás lagrimas do publico sensivel nas _Scenas da
+Foz_. Aquella especie de pellicula carmezim que assetina a epiderme do
+rosto, e se chama _pudicicia_ nos droguistas da moral, tinham-m'a delido
+as aguas lustraes da nossa civilisação pagã, para o que tambem muito
+contribuiram as reuniões semanaes da Philarmonica, na rua das Hortas,
+onde os rabecões entravam cheios de cupidos e sahiam cheios de suspiros.
+Muitas senhoras portuenses, que hoje cedem a primazia da ternura ás
+filhas, viram n'aquellas salas da Philarmonica os anjos com quem se
+maridaram. Os annuncios das festas lyricas, enviados dos corações aos
+corações, rezavam assim: _Sabbado, ás 7 da noite, musica de Mozart, e
+Laços de Hymemeu_. Tudo antigo e bom.
+
+Isto veio a proposito de eu não ter uma congestão de pudor, quando
+Duarte Valdez me segredou que se embrenhára nas selvas rumorosas do
+Pastelleiro com uma menina perdida de amor, e tão cega de alma que já
+não via na imaginação, sequer, as lagrimas da mãi, e o mortal abatimento
+do pai que a amaldiçoava.
+
+
+II
+
+O enfermeiro-mór da casa da saude conduziu-me ao quarto de Duarte. Com
+certeza, se eu o encontrasse desprevenidamente, não o conheceria. O
+espasmo dos olhos seria bastante a desfigurar-lhe as outras feições,
+quasi sumidas na desgrenhada cabelleira e nas barbas. Immobilisava-lhe o
+semblante a sinistra quietação da demencia contemplativa.
+
+Tambem elle me não reconheceu a mim, sem que eu lhe dissesse o meu nome.
+Fitava-me com repulsão, como se a presença de um desconhecido o
+molestasse fortemente; porém, depois que eu me nomeei, sahiu do torpor,
+levantou-se de golpe, e abraçou-me com transporte.
+
+--Que tens tu, Duarte?... Estavas aqui, e não me participavas?
+
+--Eu não sabia que estavas em Lisboa, nem tinha a vaidade de suppôr que
+ainda me conhecesses. Desde que te fallei na Foz, em 1856, nunca mais
+nos encontramos nem escrevemos.
+
+--É verdade; mas nem por isso me eram estranhos os principaes passos da
+tua vida. Soube que casaste...
+
+--Sim... casei...
+
+--Com aquella menina que então... estava comtigo?
+
+--Não...--respondeu Duarte com assombrado aspecto, e um sacudir de
+cabeça indicativos de azedume por tal pergunta.
+
+Hesitei, á vista de tão subita mudança, se devia proseguir em tal
+interrogatorio. Foi elle quem interrompeu o silencio, repetindo:
+
+--Não, não casei com essa...--e acrescentou, pondo-me no hombro a mão
+tremula--casei com outra... que já morreu...
+
+--Morreu?
+
+--Sim, morreram ambas; matei-as eu...
+
+E, erguendo-se, travou-me do braço, levou-me comsigo para a janella, que
+abria sobre um jardim, alongou a vista na direcção da cupula do convento
+de Jesus, fez um gesto com a mão direita apontando para o céo, e quiz
+dizer umas palavras que, abafadas pelos gemidos, pareciam rever-lhe nos
+olhos em lagrimas copiosas.
+
+E eu, que poderia imaginar agora phrases muito apropositadas á situação
+do meu amigo, não as invento, porque não lh'as disse então.
+
+E quem seria mais verboso que eu, em lance tão desusado? Se elle, com
+effeito, havia matado as duas mulheres, eu, na verdade, não devia
+ensaiar maneiras de o consolar, dizendo-lhe que, se as matou, fizera
+muito bem. Figurou-se-me que Duarte fallára figuradamente. Porque ha
+muitos sujeitos, ainda mal, que vivem penalisados com remorsos de ter
+matado certas senhoras, sem ao menos admittirem que os medicos
+collaborassem com elles. Ora eu que reputára, n'outro tempo, aquelle
+Duarte Valdez tanto ou quê desarranjado pelas novellas, attribui ao seu
+romanticismo a parte odiosa no assassinio das duas senhoras.
+
+Passados alguns segundos, fiz-lhe esta vulgarissima pergunta:
+
+--Como as mataste tu?
+
+--Despedaçando-as uma contra a outra.
+
+Póde ser que o leitor esteja sorrindo; saiba, porém, que o tremor
+d'aquellas palavras vibrava tanto do seio do afflicto moço que uns
+calefrios me correram a espinha, e o turvamento das lagrimas me embaciou
+a vista. Situações analogas terá experimentado o leitor no theatro. Duas
+palavras, em uma ficção dramatica, exprimidas pelo actor que pintou os
+vincos da desgraça no rosto com fino pó de carvão, obrigam ás lagrimas
+pessoas que não chorariam, se a desgraça fosse com ellas.
+
+--Chora, chora!--me disse elle, com vehemente exaltação.--Preciso que me
+chorem, porque... eu morrerei, adorando as duas mulheres que matei... e
+ninguem me ha de chorar.
+
+--Pódes tu contar-me a tua historia?--perguntei eu.
+
+--Posso... quero contar-t'a; mas receio que m'a não creias... A minha
+familia, e os medicos da provincia dizem que eu me deixo matar pela
+superstição, indigna da minha intelligencia... É um phantasma que me
+mata, dizem elles... Ah! se o vissem! se eu te podesse contar...
+
+--Mas olha, Duarte, conta o que poderes... Eu hei de comprehender das
+tuas dôres alguma cousa mais que o vulgar dos homens. Até as
+superstições, se as tens, eu t'as entenderei; porque ha infortunios que
+não podem entender-se, sem a intervenção de alguma cousa sobrehumana.
+
+--Pois então, vou contar-te a minha desastrada vida... Aquella infeliz
+menina que esteve na Foz, ha dez annos--começou Duarte com pausadas
+intercadencias--seria a minha bemaventurança, se eu não viesse a este
+mundo com a predestinação dos reprobos. Meu pai, desde que eu a tirei da
+casa paterna, ganhou-me entranhado odio; não por causa da culpa; mas com
+receio que eu remediasse a culpa com o casamento. O seu primeiro acto de
+vingança foi dar a casa a meu irmão, e reduzir-me a um patrimonio tão
+escasso que não chegaria ás minhas despezas de dous annos. Maria do
+Resgate era mais pobre que eu. Não desisti ainda assim de casar com
+ella. Pedi um emprego com a eloquencia da virtude desgraçada, já quando
+a minha subsistencia corria por conta dos paes de Maria. Estava eu em
+vespera de ser despachado amanuense do governo civil de Bragança, quando
+meu pai conseguiu inutilisar os esforços humilhantes que eu fizera para
+adquirir tão mesquinho emprego. Fui ajoelhar aos pés de meu pai: estava
+ao pé de mim, para me defender dos primeiros impetos da ira d'elle,
+minha mãi. Eu pedi-lhe simplesmente que não se oppozesse á minha
+collocação. Respondeu que se dava por aviltado, se seu filho fosse
+exercer tão ignobil occupação; e, sem me dar a confiança de questionar
+com o seu orgulho, disse que me dava recursos para estar dous annos em
+Lisbôa, ou o tempo necessario para me esquecer da filha do procurador de
+causas.
+
+Minha mãi chamou-me de parte, e aconselhou-me que annuisse; na certeza
+de que, no espaço de dous annos, se eu não esquecesse Maria do Resgate,
+ella conseguiria o consentimento de meu pai.
+
+Cedi forçado pela extrema necessidade. Maria, tão confiada em mim quanto
+eu confiava no meu proprio coração, accedeu na ausencia dos dous annos.
+Assim que eu sahi para Lisboa, sahiu ella para um convento de Bragança.
+
+Cheguei aqui, e encontrei dinheiro em abundancia, amigos, relações,
+mulheres, liberdade, distracções, theatros, cêas, um desafogo de vida
+tão agradavel quanto amargurado me tinha corrido o ultimo anno.
+
+Ás vezes, em meio dos meus divertimentos, assaltavam-me remorsos. Era
+então que eu respondia ás cartas apaixonadas de Maria, e perguntava a
+minha mãi se já tinha conseguido amollecer o duro coração de meu pai.
+Respondia-me que esperasse, e Maria respondia-me que esperava uma de
+duas cousas, que ambas lhe serviam: sahir da sua cella para mim ou para
+a sepultura. Os meus amigos viam estas cartas, e riam-se da minha
+credulidade.
+
+Ao cabo de um anno, os remorsos que me incutiam as cartas, já nem a
+virtude tinham de as inspirar verdadeiras. Maria graduou por ellas o
+sentimento frio que as disfarçava, e disse-me que eu era tão ingrato que
+nem ao menos a deixava morrer enganada.
+
+Aborreciam-me já as lastimas e a obrigação de as consolar. Sentava-me
+constrangido para lhe escrever. Já me queixava da sua pertinacia em me
+accusar de ingrato, quando ella mesma se acommodára á cruel necessidade
+da separação. Culpando-a de indiscreta, perguntava-lhe se quereria para
+mando um homem que teria de mendigar ou roubar para sustental-a. Aqui
+havia uma occulta infamia na mentira. Se eu pretendesse em Lisboa um
+emprego, tel-o-hia, sufficiente á sustentação de uma familia modesta;
+mas eu, desde que pisei os tapetes dos salões, pensava em ter salões com
+tapetes, e desde que as carruagens dos meus amigos me levaram aos
+theatros, desejei possuil-as para me desquitar de obrigações aos meus
+amigos. Eu estava perdido como meu pai me desejára; estava deshonrado
+bastantemente para desviar a imaginação da filha do procurador de
+causas, quando as titulares de Lisboa me perguntavam quem era a rainha
+dos bailes.
+
+Ao fim de dous annos, minha mãi, quando eu já não perguntava o resultado
+das suas diligencias, avisou-me que meu pai vinha a Lisboa, na companhia
+de um nosso primo e de nossa prima, chegados do Brazil, com o proposito
+de nos visitarem.
+
+Estes nossos primos eram naturaes do Rio de Janeiro. Alli ficára meu
+tio, pai d'elles, quando meu avô, que para lá fôra com o principe
+regente na qualidade de desembargador do paço, voltou para Portugal. Eu
+sabia d'estes parentes, e muitas vezes meu pai dissera que seria
+convenientissimo casar um de seus filhos com a prima brazileira, cuja
+fortuna rendia mais n'um mez que toda a nossa casa em um anno.
+
+Confesso-te miseravelmente que me sobresaltou o aviso da vinda de minha
+prima. Vi salões com tapetes, e vi as suspiradas carruagens. Quem eu não
+vi foi a imagem de Maria do Resgate.
+
+Minha prima Olinda era adoravel, ainda sem riqueza.
+
+Este conceito que formei ao vêl-a e ouvil-a, dispensou-me de o formar,
+de mim, de grande villão. Amnistiava-me com a idéa de que, sendo ella
+pobre, eu a quereria para esposa. Amei-a, é certo que a idolatrei. Não
+tenho outra virtude que contrabalance com os meus delictos na presença
+de Deus, e d'ella e da outra desgraçada.
+
+Havia dous mezes que Maria do Resgate me não escrevia, quando aqui
+chegou Olinda, e, passados dous mezes, sahia eu de Lisboa, casado com
+minha prima, a ir visitar minha mãi, para depois ir ao Rio receber os
+trezentos contos de minha mulher, e d'alli passarmos a residir em
+Lisboa, n'um palacio, com tapetes e carruagens.
+
+Meu pai foi adiante preparar as festas da recepção, e ornamentar as
+salas para o baile, e a hospedagem para os convidados da nossa grande
+parentella.
+
+Entrei profundamente triste na minha villa. As janellas da casa de Maria
+do Resgate estavam fechadas como se houvesse alli morrido alguem. Nas
+casas visinhas, havia senhoras e crianças que choviam abadas de flôres
+sobre o nosso carro.
+
+Pouco depois que sahimos da mesa do jantar, atravessei com minha mulher
+a sala de espera, para descermos ao jardim. N'este transito, vimos sahir
+de um canto da sala uma mulher trajada de luto, que marchou de encontro
+a Olinda, sem levantar o véo espesso do rosto.
+
+Não a conheci; mas mal podia suster-me de convulso.
+
+--Que tens?!--disse minha mulher.--Esta senhora parece que tem alguma
+cousa que me dizer...
+
+--Tenho, sim, minha senhora--acudiu a mulher de luto--v. exc.ª não me
+conhece nas salas de seu marido, porque eu sou a viuva de um pobre
+procurador de causas que morreu ha quinze dias, quando perdeu a
+esperança de vêr remediada a deshonra de nossa filha. Em quanto ella
+teve pai, embora perdida no conceito do mundo, tinha o pão, que seu pai
+lhe ganhava; mas agora, reduzida á orphandade, á pobreza, e á deshonra,
+venho implorar a v. exc.ª que a receba como sua criada, visto que foi
+seu marido que a perdeu. V. exc.ª fará o que a sua virtude e caridade
+lhe aconselhar.
+
+E sahiu sem esperar resposta.
+
+Estas palavras ouço-as ainda como se a alma da mulher que as disse m'as
+estivesse escrevendo na consciencia com um estylete de fogo.
+
+--Que é isto?--perguntou-me minha mulher.
+
+--É uma desgraça que eu te contarei--respondi torvamente.
+
+--Conta-m'a já, e remediêmol-a sem demora--tornou ella.
+
+Escondi-me com Olinda no mais sombrio do jardim, e tudo lhe referi com a
+sinceridade de um penitente. Ella ouviu-me com semblante carregado,
+avincando a testa, e ás vezes com signaes de compaixão, que de certo não
+era por mim.
+
+Depois, ergueu-se, repelliu com brandura a minha mão que lhe acariciava
+o rosto e murmurou:
+
+--Eu ignorava tudo isto. Desgraça irremediavel, já agora! Eu quero
+fallar com a mãi d'essa infeliz menina.
+
+E assim que foi noite fechada, sahiu com um escudeiro, que a conduziu a
+casa da viuva do procurador.
+
+Suspeito que a conferencia versou sobre a rica dotação de Maria do
+Resgate. A viuva repelliu a proposta, porque minha mulher voltando ao
+seu quarto, disse, como se ninguem a escutasse:
+
+--As deshonradas... de certo não são ellas.
+
+Até aqui--proseguiu Duarte Valdez--não ha nada maravilhoso na minha
+historia...
+
+--De certo não; tudo vulgar--obtemperei eu que sabia centurias d'estas
+historias, cuja trivialidade nenhum romancista de tino hoje em dia
+aproveita da fardagem dos vicios communs.
+
+--O horrivel maravilhoso começa agora--continuou Duarte.--Passados
+vintes dias, divulgou-se a noticia de estar moribunda no convento de
+Bragança Maria do Resgate. E em uma das seguintes noites, estando eu a
+dormir profundamente em um leito proximo do de minha mulher, acordei,
+sentindo no pescoço os apertões convulsos de duas mãos que me
+estrangulavam; e, abrindo os olhos, vi distinctamente nas trevas o rosto
+macerado de Maria muito perto do meu rosto; e, ao mesmo tempo que as
+suas mãos me asphyxiavam, sentia que o joelho d'ella me esmagava o
+coração. N'este lance dei um grito, e ouvi o estrebuchar de minha
+mulher, que soltava uns gemidos afflictissimos, como se lá sentisse
+angustias de suffocação iguaes ás minhas. Saltei do leito, e fui á
+recamara buscar a lamparina. Quando voltei, minha mulher estava de
+joelhos á beira da sua cama, com as mãos postas, com as faces cobertas
+de lagrimas, e os olhos esgazeados de terror.
+
+--Que é isto, Olinda?--exclamei.
+
+E ella, escondendo o rosto entre as mãos, murmurou:
+
+--Vi agora a desgraçada menina que tu abandonaste. Já estava
+amortalhada. Era formosa como as martyres, e bem mais linda do que eu...
+Disse-me adeus... Sabia que eu tinha chorado por ella... Veio dizer-me
+que estava remida das suas dôres.
+
+Eu não disse a Olinda que tambem vira Maria do Resgate.
+
+O meu terror abafava-me a voz na garganta. Recorri á oração...--eu que
+desde a infancia não tinha orado. Fui ao quarto de minha mãi; acordei-a;
+pedi-lhe que viesse commigo para o oratorio. Contei-lhe as torturas da
+minha visão, e a visão de Olinda. Ella pegou de tremer e chorar. Se eu
+lhe dizia, sobre-posse, que a coincidencia dos sonhos podia acontecer,
+sem intervenção do phantasma de Maria, minha mãi não achava isto
+possivel, e mais me trespassava de horror.
+
+No dia seguinte, chegou a noticia de ter expirado á uma hora da noite
+antecedente a reclusa do convento de Bragança. A pessoa que trouxe a
+nova, era encarregada de me entregar o maço de minhas cartas. Em volta
+das ultimas, que eu lhe escrevêra de Lisboa, havia uma cinta de papel e
+um escripto interposto com estas palavras:
+
+
+_Quando receber isto, que lhe deixo, para se convencer de que não ha
+testemunho escripto da sua crueldade, a mais feliz serei eu, porque
+estarei morta. O senhor de certo nunca será feliz, porque infamia e boa
+consciencia não se encontram juntas. Perdôo-lhe o que me fez: mas não
+posso perdoar-lhe a morte de meu pai nem o desamparo em que fica minha
+mãi._
+
+
+Resta-me dizer-te--ajuntou Duarte, arquejando de cansaço e commoção--que
+minha mulher desde aquella hora nunca mais teve um instante de alegria
+nem saude. Viemos, passados dias, para Lisboa. D'aqui partimos para o
+Rio de Janeiro. Ao cabo de oito mezes, eu estava viuvo, e rico,
+muitissimo rico, e cada dia, cada hora mais desgraçado, mais combalido
+de uma enfermidade indescriptivel. Voltei ao seio de minha familia. Já
+não encontrei minha mãi; e a presença de meu pai coava-me nas veias um
+estremecimento de pavor. Ha cinco annos que arrasto esta vida sem a
+coragem de a despedaçar. Sinto ainda na garganta a pressão dos dedos
+fincados do phantasma. Ajoelho-lhe, alta noite, e imploro-lhe que me
+deixe morrer socegado. Peço á alma de minha mulher que suavise com
+palavras compassivas a vingança da desgraçada que deve estar na presença
+de Deus... Em fim...
+
+
+E não proseguiu, porque n'este momento entrava o doutor Arantes, o
+previsto medico da casa da saude, que, sem ouvir esta narrativa, sabia
+que aquelle enfermo devia morrer, pela mesma razão mysteriosa que muitos
+atacados de semelhante morbus engordam e porejam saude por todos os
+orificios da sua enxundiosa epiderme.
+
+ * * * * *
+
+Duarte Valdez, que ainda vi na vespera da sua ida para a Madeira, foi e
+não voltou. As supplicas de Olinda lograriam que a misericordia divina o
+resgatasse da presa do seu remorso.
+
+ _Que segredos são estes da natura?_
+
+Perguntaria Luiz de Camões.
+
+
+FIM DO 9.° NUMERO
+
+
+
+
+Ernesto Chardron, editor
+
+DICCIONARIO UNIVERSAL DE EDUCAÇÃO E ENSINO
+
+Util á mocidade de ambos os sexos, ás mães de familia, aos professores,
+aos directores e directoras de collegios, aos alumnos une se preparam
+para exames, contendo o mais essencial da sabedoria humana, trasladado a
+portuguez por CAMILLO CASTELLO BRANCO e ampliado pelo traductor nos
+artigos deficientes a Portugal e Brazil. 2 grossos vol. cada um de 800
+paginas a 2 columnas, 6$000. Encadernados, 7$000
+
+AS GRANDES INVENÇÕES ANTIGAS E MODERNAS
+
+Nas sciencias, industria e artes, por LUIZ FIGUIER obra adornada com 238
+gravuras magnificas, e traduzida da 5.ª edição original francesa. 1
+grosso vol. brochado, 3$000. Com uma rica cartonagem, 3$600
+
+GRANDE DICCIONARIO PORTUGUEZ
+
+Ou o thesouro da lingua portugueza, pelo DR. FREI DOMINGOS VIEIRA
+
+1.º volume--A-B, 4$500
+
+2.º »--C-D, 4$500
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+3.º »--E-L, 5$500
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+4.º »--M-P, 4$000
+
+Volume 5.º (ultimo) estará á venda em dezembro de 1874.
+
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+não póde dormir. Nº 9 (de 12), by Camilo Castelo Branco
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+The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 9 (de 12)
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+Author: Camilo Castelo Branco
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+Release Date: February 23, 2009 [EBook #28155]
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+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-1
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 9 (DE 12) ***
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+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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+
+
+</pre>
+
+<span class="pagenum">[1]</span>
+
+<div class="capa">
+<p style="font-size: 1.2em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p>
+<hr style="width: 6em;">
+
+<p style="font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">OFFERECIDAS</p>
+
+<p>A QUEM NÃO PÓDE DORMIR</p>
+
+<p style="font-size: 0.7em;">POR</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">Camillo Castello Branco</p>
+<hr style="width: 3em;">
+
+<p style="font-size: 0.7em;">PUBLICAÇÃO MENSAL</p>
+<br>
+
+<hr style="width: 3em;">
+
+<p style="font-size: 0.9em;">N.º 9&mdash;SETEMBRO</p>
+<hr style="width: 3em;">
+
+<table width="100%" summary="endereço editor">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <th colspan="2">LIVRARIA INTERNACIONAL<br>
+ <span style="font-size: 0.7em;">DE</span> </th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td style="border-right: solid 1px #000000;"><span
+ style="font-size: 0.9em;">ERNESTO CHARDRON <br>
+ <em>96, Largo dos Clerigos, 98</em><br>
+ <strong>PORTO</strong> </span> </td>
+ <td><span style="font-size: 0.9em;">EUGENIO CHARDRON<br>
+ <em>4, Largo de S. Francisco, 4</em><br>
+ <strong>BRAGA</strong> </span> </td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+<hr style="width: 2em;">
+
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[2]</span>
+
+<div id="impressor" style="text-align: center;">
+<br>
+<br>
+<br>
+<br>
+
+<hr style="width: 8em;">
+
+<p>PORTO</p>
+
+<p style="font-size: 0.9em;">TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">68&mdash;Rua da Cancella Velha&mdash;62</p>
+<hr style="width: 2em;">
+
+<p style="font-size: 0.9em;">1874</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[3]</span>
+
+<div id="sumario">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;">BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA</p>
+<hr style="width: 4em;">
+
+<p style="text-align: center; font-size: 2em;">NOITES DE INSOMNIA</p>
+<hr style="width: 4em;">
+
+<p style="text-align: center; font-size: 1.5em;"><strong>SUMMARIO</strong></p>
+
+<p style="text-align:justify;"><em><a href="#cap01">Os salões, pelo
+exc.<sup>mo</sup> visconde de Ouguella</a> &mdash;<a href="#cap02">Condemnação
+de corpo e alma</a> &mdash;<a href="#cap03">O doutor Botija</a> &mdash;<a
+href="#cap04">O palco portuguez em 1815</a> &mdash;<a
+href="#cap05">Bibliographia (Senna Freitas, Cunha Vianna, Monsenhor Joaquim
+Pinto de Campos)</a> &mdash;<a href="#cap06">Que segredos são estes</a></em>
+</p>
+</div>
+<span class="pagenum">[5]</span>
+
+<div id="corpo">
+<hr>
+
+<h1><a id="cap01" name="cap01">OS SALÕES</a></h1>
+
+<p>Os capitulos, assim intitulados e publicados nestes livrinhos, vão ser
+reproduzidos em volume com outros, complementares da obra. Teremos, pois, um
+livro de mão primorosa, de extenso folego, portuguez na fórma, bem que estranho
+á indole nacional. Entre portuguezes, os estudos sociaes, profundos e largos,
+não se ajustam á irrequieta vertigem dos que navegam de costeagem com o baixel
+da politica.</p>
+
+<p>Aqui proeja-se ao descançado porto das situações gananciosas, e deixa-se ao
+acaso resolver os problemas.</p>
+
+<p>O snr. visconde de Ouguella revelou-se n'este severo estudo um espirito de
+grande alcance, e discipulo dos que melhormente professam a sciencia historica.
+Se algumas vezes a sua penna roça asperrima na crusta das ulceras que lhe fazem
+nauseas, resgata-se briosamente avoando ás regiões altas, no rasto luminoso das
+augustas verdades.</p>
+
+<p>O livro, que ha de ser a affirmação da<span class="pagenum">[6]</span>
+honrada consciencia que nunca, desde a primeira mocidade, apostatou da religião
+do berço, é dedicado a uma formosa criança, Ramiro Soares de Oliveira da Silva
+Coutinho, filho do snr. visconde de Ouguella.</p>
+
+<p>São maviosas de affecto paternal e de nobre civismo estas expressões que o
+pai dirige á alma que se está formando entre as caricias de uma familia
+virtuosa: <em>É incentivo, estimulo e lição, para seguir, como luzeiro e farol
+do seu futuro, as nobilissimas tradições liberaes, legadas por seu avô, e meu
+presadissimo pai, Ricardo Sylles Coutinho. Seja este tambem o testemunho do meu
+acrisolado amor filial.</em></p>
+
+<p>O prefacio que precede os <em>Salões</em> é igual a elles na elevação e
+rigidez da idéa, no donaire e esplendor da linguagem; mas avantaja-se ao
+restante como prognostico dos brilhantes capitulos que hão de proceder de tão
+desprendido e intransigente programma.</p>
+
+<p>São raros em Portugal os escriptores que, á imitação do visconde de
+Ouguella, podem enlaçar a independencia com o talento, e esculpir no frontal do
+templo, onde os vendilhões armam tenda de bufarinheiros a legenda, que lhe
+compete.</p>
+
+<p>Eis o prefacio:<span class="pagenum">[7]</span></p>
+
+<h2>AO LEITOR</h2>
+
+<blockquote style="font-size: 0.8em; margin-left: 30%;">
+ La pensée est pouvoir.<br>
+ Tout pouvoir est devoir.<br>
+ <br>
+ VICTOR HUGO.<br>
+</blockquote>
+
+<p>Este livro tem uma missão, e tem um fim.</p>
+
+<p>Escripto para o povo, a sua missão é levar a luz ás ultimas camadas sociaes.
+Diffundil-a no tugurio do operario, e na choupana humilde do aldeão.</p>
+
+<p>Inspirado nas mais sinceras crenças da democracia, aceita, como fim,
+arrancar ás garras d'esse immenso desalento e d'essa torpe corrupção&mdash;que
+por ahi vai gangrenando as sociedades&mdash;os generosos espiritos populares,
+para que as almas se não gelem, e os corações&mdash;que vivem de nobres
+aspirações&mdash;se não atrophiem, n'este completo desmoronamento de todas as
+instituições existentes.</p>
+
+<p>O author d'este livro não tem pretenções, nem vaidades, nem receios. Não se
+julga apostolo, nem propheta, nem vidente. O mais obscuro dos obreiros d'este
+seculo&mdash;como é, e quer ser&mdash;escuta, attento, o ruido que vai lá fóra,
+nos paizes onde a idéa tem um culto, onde as crenças consubstanciam religiões,
+onde<span class="pagenum">[8]</span> as sociedades se debatem na agonia de
+organisações politicas, sociaes e religiosas, que tendem a desapparecer; e pelo
+facto de existir, e de se considerar obrigado ás luctas da existencia, giza o
+terreno em que combate, sem orgulho, sem odios, e sem rancores pessoaes.</p>
+
+<p>Volta-se para os seus irmãos no trabalho, operarios tambem&mdash;qualquer
+que seja a fórma por que exercem a sua actividade, e diz-lhes:</p>
+
+<p>«Eu penso assim. Aqui tendes o producto das minhas meditações, e dos meus
+estudos. Dou-vos os lavores do meu espirito. Combatei-me, ou enfileirai-vos
+commigo.»</p>
+
+<p>Eis a razão do livro.</p>
+
+<p>Vêde, agora, a sua desenvolução.</p>
+
+<p>O author crê nas inspirações grandiosas do povo, crê na mocidade estudiosa
+das escolas, e crê nas leis immutaveis, fataes, e inexoraveis do progresso, que
+acompanham a vida das gerações, e que nos conduzem a uma determinada somma de
+civilisação, a um especimen de perfectibilidade relativa, quaesquer que sejam
+os cyclos de descrença, de abjecto abatimento, de egoismo individual, e de
+corrupção momentanea em que se debatem as sociedades.</p>
+
+<p>O author d'este livro é espiritualista.</p>
+
+<p>Devotado ás leis sagradas e eternas por<span class="pagenum">[9]</span> que
+se rege a humanidade, curvando-se, submisso e reverente, á vontade absoluta,
+que governa, e dirige o universo, pronuncia a medo, e na humildade da sua
+existencia, o nome do Ente Supremo, e crê firmemente, que todos os homens são
+iguaes. Ajoelha, e adora a omnipotencia, a infinita bondade, e sublime
+misericordia de Brahma, Zeus, Jezeu, Elohim, Jehovah, Allah, Osiris, Jupiter,
+Deus, Christna, Christo, finalmente do Eterno&mdash;qualquer que seja o nome
+sagrado, e mysterioso, por que as gerações modernas o pretendam appellidar.</p>
+
+<p>O seculo dezoito teve por missão destruir.</p>
+
+<p>O seculo dezenove é a transição, que liga, e une civilisações heterogeneas,
+é o parenthesis aberto n'estas luctas do espirito, n'esta convulsão moral, em
+que as sociedades actuaes trabalham para se regenerarem radicalmente, sob um
+differente aspecto, e aceitando novos dogmas, e diversas doutrinas.</p>
+
+<p>O author d'este livro não despreza o passado. Não o injuria, não o diffama,
+nem o calumnia. Explica-o até, e, por vezes, justifica-o.</p>
+
+<p>Mas aceita jubilosamente a corrente das idéas do seu seculo, e louva o
+Eterno na effusão das suas crenças.</p>
+
+<p>Todavia não volta o rosto, como a mulher de Loth, para contemplar
+Sodoma.<span class="pagenum">[10]</span></p>
+
+<p>Só a magestosa omnisciencia do Ser Supremo póde avaliar os entes que creou.
+</p>
+
+<p>Ao sentar-se nos bancos das escolas superiores, no prefacio de um
+livro&mdash;dado a lume por um irmão d'armas, ferido, e cahido moribundo, já,
+na arena da discussão, pelas luctas da palavra&mdash;escreveu as seguintes
+linhas:</p>
+
+<p>«Pergunta-se&mdash;se os gozos, se os prazezes pertencem unicamente a um
+pequeno numero de homens?&mdash;se a maioria, se as classes proletarias, se os
+Spartacus da civilisação moderna teem de escolher entre o passamento
+ignominioso nas gemonias do seculo dezenove, ou nas barricadas, nascidas do
+desespero, que a miseria e o ardor do martyrio obrigam a levantar?
+Pergunta-se&mdash;se o monopolio, se a concorrencia, são os dogmas injustos e
+tyrannicos, que hão de destruir as massas, como o carro do idolo Jagrenat,
+entre os indios, esmaga o craneo dos brahmanes, ou se a associação, esse credo
+dos assalariados das industrias, que os economistas victoriam&mdash;póde acabar
+com o pauperismo, e obstar á ignorancia dos povos, palladio deshumano a que os
+ambiciosos se seguram?»</p>
+
+<p>Ainda hoje o author d'estas linhas formúla as mesmas perguntas, com a mesma
+severidade, e aceita a responsabilidade d'ellas na tranquillidade constante, e
+inalteravel do seu espirito.<span class="pagenum">[11]</span></p>
+
+<p>A quem o accusar de leviano, de voluvel, e de imaginoso, no seio d'este
+hediondo tropel de ambições, que renegam, e apostasiam a cada
+hora&mdash;redemoinhando, revoltas, em torno do poder, seja qual fôr a sua
+origem ou procedencia&mdash;responde o author d'este livro com o sorriso do
+desprezo, e com a consciencia segura de que não sabe, não póde, nem quer
+deslizar nunca da lei augusta e sacrosanta do dever.</p>
+
+<p>Os espiritos, para quem a libré é mais do que um distinctivo, e uma triste e
+crapulosa missão, porque chega a ser um sacramento imprimindo
+caracter,&mdash;esses, que se curvem, que se dobrem, e que degradem a face
+humana, varrendo, com a fronte, o pó das alcatifas e alfombras das regias aulas
+e alcaceres dos principes, magnates e satrapas do poder.</p>
+
+<p>Pouco importa.</p>
+
+<p>O vocabulo <em>lacaio</em> tem, na sua etymologia, a justa e bem merecida
+ignominia.</p>
+
+<p>É a pena que a dignidade humana confere á abjecção.</p>
+
+<p>Um dos primeiros&mdash;senão o primeiro escriptor d'este seculo&mdash;narra
+o seguinte:</p>
+
+<p>«Octavio Augusto, na madrugada da batalha de Accio, encontrou um jumento a
+quem o burriqueiro alcunhára ou appellidára <em>Triumphus</em>. Este Triumpho,
+dotado com a faculdade de zurrar, pareceu-lhe de bom agouro.<span
+class="pagenum">[12]</span> Octavio Augusto ganhou a batalha, lembrou-se do
+Triumpho, mandou-o fundir, e esculpir em bronze, e collocou-o no capitolio.
+Burro capitolino foi elle&mdash;mas ficou sempre burro.»</p>
+
+<p>Eis a historia das vaidades humanas.</p>
+
+<p>«O habito não faz o monge», diz a sabedoria dos povos.</p>
+
+<p>As grandezas da terra são, as mais das vezes, o pelourinho de todas as
+ignominias&mdash;assim como do sambenito, e da cana verde da irrisão pharisaica
+surgem, em ondas de luz, a magestosa auréola do martyrio, e a apotheose
+deslumbrante, que a posteridade engrandece e divinisa.</p>
+
+<p>O author d'este livro não crê nos partidos militantes, nos diversos grupos
+parlamentares, nas ambições e cubiças, que fervilham em torno das insignias
+consulares&mdash;quer se chamem opposições ou governo.</p>
+
+<p>Escalar o poder pelo poder, aceital-o em todas as condições, á sombra de
+todas as bandeiras, na defeza de todos os codigos, e na metamorphose de todos
+os principios, parece ser a maxima inspiração de todas estas phalanges, ávidas
+e sedentas de governo, que reputam, como suprema beatitude, o ineffavel gozo de
+dirigirem uma situação politica qualquer.</p>
+
+<p>D'aqui vem o scepticismo partidario, a indifferença<span
+class="pagenum">[13]</span> profunda, e a descrença completa do povo.</p>
+
+<p>N'isto, como em tudo, o author d'este livro está ao lado do povo.</p>
+
+<p>Basta.</p>
+
+<p>Fecha-se este prologo com uma simples remissão ao prefacio ou introducção do
+livro, que fica referido.</p>
+
+<p>Assim termina esta advertencia ao leitor:</p>
+
+<p>«A educação, nas classes pobres da nossa terra, tem sido desprezada: o povo
+ignora tudo, porque tudo lhe é vedado. Convinha, pois, que á frente de um
+livro, que narra com singeleza as tristes vicissitudes por que a governação
+entre nós tem passado; que aponta, sem exagerações, como a liberdade vai sendo
+sophismada, fossem estampadas algumas linhas, que levassem a esperança a
+corações para quem a educação é um miseravel scepticismo, e a vida um sudario
+de pungentes dôres.»</p>
+
+<p>Estas linhas, escriptas ha vinte annos, firma-as o author d'este livro, com
+a convicção plena de que ainda não deslizou d'estas crenças, nem renegou, n'um
+só momento, a religião da sua mocidade.</p>
+
+<p>Em mil oitocentos cincoenta e seis, quando a pena de morte era lei entre
+nós, quando o homicidio legal erguia a sua sinistra, e hedionda influencia
+n'esta terra&mdash;terminava o author d'este livro, em presença de um
+tribunal<span class="pagenum">[14]</span> e em defeza de um réo, pelo seguinte
+modo, a sua oração:</p>
+
+<p>«Quanto a mim, resta-me a honra de ter pelejado com a forca, esta peleja
+solemne e derradeira. Se eu ficar vencido, se triumphar o carrasco, tanto peor
+para o seculo em que combati, e para a philosophia que invoquei.»</p>
+
+<p>Foi já rasgada a lei do homicidio. Falleceu o ultimo carrasco.</p>
+
+<p>Bemdito seja Deus!</p>
+
+<p>Venceu aqui a civilisação.</p>
+
+<p>É para crêr, que venceu, tambem, a justiça absoluta, a consciencia, e a
+sociedade.</p>
+
+<p>A inviolabilidade da vida humana é mais do que um principio, mais do que uma
+doutrina, mais do que uma lei: é um culto prestado ao Ente Supremo.</p>
+
+<p>Deixai, agora, que o author d'este livro peleje pela democracia.</p>
+
+<p>É esta, e só esta a verdadeira religião do futuro: é a obra sublime do
+Creador.</p>
+
+<p>Lisboa, 24 de julho de 1874.</p>
+
+<p style="text-align:right;">VISCONDE DE OUGUELLA.<span
+class="pagenum">[15]</span></p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap02" name="cap02">CONDEMNAÇÃO DE CORPO E ALMA</a></h1>
+
+<p>A lei dos justiçados, antes de 5 de fevereiro de 1587, condemnava o corpo e
+a alma, não admittindo á communhão os condemnados á morte. Os juizes faziam-se
+intrepretes da justiça divina. Trancavam as portas do purgatorio á contrição,
+privando a alma do sacramento, que a theologia declarára indispensavel ao
+viador da eternidade, por fóra das regiões das trevas infinitas.</p>
+
+<p>Não sei onde os legisladores acharam o esteio de tão cruel severidade com as
+almas dos justiçados. Não podemos, porém, duvidar d'este desprezo da lei de
+Jesus, em época tão assignalada de bons theologos, comprehendida nos reinados
+de D. Manoel e D. João III. Que os condemnados á morte não eram admittidos á
+communhão deprehende-se do tratado <em>De sacramentis pr&oelig;standis ultimo
+supplicio damnatis</em>, do famoso jurisconsulto Antonio da Gama, já no cap. I,
+já na dedicatoria ao cardeal D. Henrique, impressa pela primeira vez em 1559, e
+não em 1554, como diz o abbade de Sever, na <em>Bibl. Lusit.</em> O mesmo se
+infere do <em>Compromisso da Misericordia de Lisboa</em>, cap. 36,
+confirmado<span class="pagenum">[16]</span> por alvará de 19 de maio de 1618.
+Ahi se estabelece o modo de acompanhar os padecentes e de lhes assistir. Estes
+usos subsistiram, através de dous seculos, exceptuados os enforcados politicos
+a quem por misericordia matavam com pouco apparato processional.</p>
+
+<p>Ainda depois da lei que permittia o Viatico aos condemnados, nem todos
+gozaram esse dôce prazer, essa extrema consolação que lhes abria no reino de
+Deus a porta da esperança. Themudo, nas <em>Decisões</em>, tom. II, decis. 155,
+pag. 126, n.º 3, conta que o marquez de Villa Real, cumplice na conjuração de
+1641 contra D. João IV, pediu licença ao arcebispo de Lisboa para commungar, na
+vespera do dia em que fôra degolado. O arcebispo concedeu a licença. Á meia
+noite ouviu missa no oratorio, e ás tres da tarde do dia seguinte (28 de agosto
+de 1641) foi executado. Ao mesmo proposito, leiam os curiosos o <em>Commentario
+aos Lusiadas</em>, por Manoel de Faria e Sousa, cant. III, est. 38.</p>
+
+<p>Os co-réos do marquez de Villa Real ou não pediram licença, ou lhes foi
+negada. Agostinho Manoel de Vasconcellos, poeta, escriptor galante, e mais
+verde de juizo do que de annos&mdash;pois já orçava pelos cincoenta e
+tantos&mdash;parece que não tinha absoluta confiança no sacramento, pois que
+morreu sem elle. Póde ser que este peccador incontrito, vendo que<span
+class="pagenum">[17]</span> os theologos do seculo XVI dispensavam os
+condemnados da communhão, e os julgavam irreparavelmente precítos na outra
+vida, fosse da opinião d'elles, e se deixasse ir até vêr o que succedia aos
+seus companheiros do cadafalso, passado o estreito medonho d'aquella horrenda
+morte.</p>
+
+<p>Tenho lido romances historicos portuguezes, e de bom pulso, em que os
+condemnados coevos de D. João I e II, se confessam e commungam. Esta inventiva
+piedade dos romancistas encontra as cruezas repellentes da historia. É erro
+muito desculpavel. Qual é o romancista que lê os reinícolas Antonio da Gama, e
+Themudo, e o <em>Codigo Filippino</em>, e a <em>Synopsis Chronologica</em>?!
+Estes livros são escumadeiras das faculdades imaginosas. Quem se affizer a
+herborisar em taes charnecas, póde ser que vingue saber muita cousa obsoleta;
+mas toda a sua erudição, fundida na moeda miuda dos livros de passatempo, não
+logra captivar o leitor que lhe attribua a vigilia de uma noite. Não se é
+escriptor ameno e agradavel sem muita ignorancia. Eu devo a isto os meus
+creditos e a minha fecundidade.<span class="pagenum">[18]</span></p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap03" name="cap03">O DOUTOR BOTIJA</a></h1>
+
+<p>Francisco Dias Gomes,&mdash;considerado pelo snr. A. Herculano o homem
+talvez de mais apurado engenho que Portugal tem tido para avaliar os meritos de
+escriptores&mdash;foi malquisto de uns poetas contemporaneos que lhe chamavam o
+<em>doutor Botija</em>, allusão tirada das vasilhas de seu commercio de
+mercearia.</p>
+
+<p>Um dos seus medianos admiradores era o abalisado mathematico e estimavel
+poeta José Anastacio da Cunha. Dos seus raros amigos&mdash;pois que os não
+grangeava em razão de sua indole desconversavel e um tanto
+hypochondriaca&mdash;o mais esclarecido e provado foi Garção Stochler, então
+lente de mathematica, e depois barão e general.</p>
+
+<p>Francisco Dias Gomes, posto que modesto e conformado com a sorte de
+especieiro, não se deixava insensivelmente morder pelos epigrammas de quem quer
+que fosse. A honesta musa que lhe inspirou os graves e soporiferos poemas
+constantes do seu livro impresso por ordem da academia real, algumas vezes se
+lhe apresentou despeitorada e de saia curta, n'aquelle desatavio que desnorteia
+a circumspecção<span class="pagenum">[19]</span> de um philologo da polpa de
+Francisco Dias.</p>
+
+<p>O leitor, provavelmente, ainda não viu como este sisudo academico jogava o
+venabulo da satyra. A academia, se alguma topou entre os manuscriptos do seu
+confrade, com certeza a pospoz como damnosa aos serios escriptos com que a
+esposa e filhos do finado critico haviam de quebrar alguns espinhos da herdada
+pobreza.</p>
+
+<p>Não me recordo se Stochler, na noticia critico-biographica anteposta aos
+versos posthumos do seu amigo, faz referencia ao espirito satyrico de Francisco
+Dias; o que certissimamente sei é que nunca vi impressa a satyra seguinte
+contra José Anastacio da Cunha, nem tão pouco a replica d'este poeta, que no
+proximo numero sahirá como prova do retrincado odio com que, em todos os
+tempos, os escriptores se expozeram á irrisão dos ignorantes, mutuando-se
+affrontosas injustiças.</p>
+
+<p>Francisco Dias é iniquissimo no conceito que finge formar de José Anastacio,
+e tanto mais censuravel quanto aquelle douto e infeliz philosopho nunca
+desfizera na valia do mercieiro poeta, segundo se deprehende da resposta.</p>
+
+<p>N'esta satyra o que muito vale é a pureza da linguagem condimentada com
+especies do seculo XVII, bastante avelhentadas e rancidas;<span
+class="pagenum">[20]</span> mas, assim mesmo, saborosas a paladares não de
+todos depravados pela malagueta da poesia vermelha que ultimamente vige e viça.
+</p>
+
+<p>Quanto a graça, é tão difficil achal-a em Francisco Dias como nas comedias
+de Jorge Ferreira. Os nossos bons classicos, quer fossem moços e mundanos, quer
+ascetas e encanecidos, não sei como pensavam; mas no escrever, eram todos como
+uns frades velhos que digeriam as suas idéas, tal qual um estomago dyspeptico
+de hoje em dia esmoe um paio do Alemtejo.</p>
+
+<p>Ahi vai, tal e quejanda, a satyra do <em>doutor Botija</em>:</p>
+
+<blockquote style="font-size: 90%;">
+ SATYRA<br>
+ <br>
+ Vem cá, louco varrido, que diabo<br>
+ Te metteu na cabeça ser poeta?<br>
+ Quem te chegou a tão extremo cabo?<br>
+ <br>
+ Não vês que toda a gente anda inquieta,<br>
+ Cançada de soffrer teus argumentos,<br>
+ Que te julga demente, que és pateta?<br>
+ <br>
+ Eu nunca imaginei que teus intentos<br>
+ Fossem fazer-te vão: agora julgo<br>
+ Que em nada se tornaram teus talentos.<br>
+ <br>
+ Se eu crêra em quantas pêtas conta o vulgo,<br>
+ Das feiticeiras sordidas e aváras,<br>
+ E outras, que aqui não digo, nem divulgo;<span class="pagenum">[21]</span><br>
+ <br>
+ Dissera que perjuro te mostráras,<br>
+ Que infido amante da cruel Canidia,<br>
+ Seus magicos encantos divulgarás.<br>
+ <br>
+ Que ella, por castigar tua perfidia,<br>
+ Sobre as azas d'um Lémure correra<br>
+ O Tauro, o Atlante, o Nilo, e a sêcca Lidia,<br>
+ <br>
+ Onde hervas potentissimas colhêra,<br>
+ Com que mixtos veneficos, horrenda,<br>
+ De funestos effeitos compozera.<br>
+ <br>
+ E porque ao fim viesse da contenda,<br>
+ Pela alta noite, barbara, ullulára,<br>
+ Com voz funesta, horrisona e tremenda,<br>
+ <br>
+ Que as infernaes Deidades convocára<br>
+ Do tremebundo Tartaro, formando<br>
+ Mil circulos no chão com fatal vara.<br>
+ <br>
+ Pallida, e consumida, suspirando,<br>
+ As horridas madeixas eriçadas,<br>
+ Com ellas murmurára um canto infando.<br>
+ <br>
+ Alli foram de todo desatadas<br>
+ As prisões, que a teu corpo o siso unia;<br>
+ Alli tuas idéas perturbadas;<br>
+ <br>
+ Sómente em ti ficou triste mania<br>
+ De maus versos fazer, de argumentar<br>
+ Com quantos ha, nas praças, noite, e dia.<br>
+ <br>
+ Não deixa a gente já de murmurar<br>
+ D'essa tremenda furia que te agita,<br>
+ D'esse teu furioso e vão fallar.<br>
+ <br>
+ Cuidas que, ainda que nescio, assim se excita<br>
+ A celebrar-te o povo por sciente,<br>
+ Elle que em tudo mofa, e fel vomita?!<span class="pagenum">[22]</span><br>
+ <br>
+ E julgas que de rustico não sente<br>
+ A differença que ha do branco ao preto?<br>
+ Por certo que te enganas claramente.<br>
+ <br>
+ Tu crês que só quem faz um bom soneto,<br>
+ Ou decifra um enigma mathematico,<br>
+ Esse só tem juizo, e é só discreto?<br>
+ <br>
+ Se para ser qualquer da vida pratico,<br>
+ Bem aviado está, se lhe é preciso,<br>
+ Ser um grande geometra, ou grammatico.<br>
+ <br>
+ Tal ha por esse mundo, e tal diviso,<br>
+ Que sem saber a regra do <em>abc</em>,<br>
+ É sagaz como trinta, e tem juizo.<br>
+ <br>
+ Como queres tu pois que não te dê<br>
+ Surriadas o povo maldizente,<br>
+ Posto que nunca estuda, e nunca lê?<br>
+ <br>
+ Se elle anda já cançado longamente<br>
+ De ouvir as tuas vãs declamações<br>
+ Com que pretendes emendar a gente!<br>
+ <br>
+ Se defender intentas conclusões,<br>
+ Mestre em artes, de borla, ou capacete,<br>
+ Porque te ouçam as tuas decisões;<br>
+ <br>
+ Rapa a cabeça tu, frade temete:<br>
+ Combaterás então mais forte e ufano,<br>
+ Que um guerreiro montado em bom ginete.<br>
+ <br>
+ Não andes pelas ruas como insano<br>
+ Syllogismos em barbara formando;<br>
+ Se assim queres ter fama, é grande engano.<br>
+ <br>
+ Que quer dizer, continuo, andar fallando<br>
+ Em curvas, corollarios e problemas,<br>
+ Demonstrações fazendo, e explicando?<span class="pagenum">[23]</span><br>
+ <br>
+ Quando te ouvem fallar em theoremas,<br>
+ Escalenos triangulos, e rectas,<br>
+ Espheroides, polygonos, e lemmas,<br>
+ <br>
+ Julgam ser isso termos de patetas<br>
+ Ou d'esses que tem pacto c'o diabo,<br>
+ E lhe fallam em partes mui secretas.<br>
+ <br>
+ Pois eu d'aconselhar-te não acabo,<br>
+ Se por tal te tiverem, fugirás<br>
+ Como cão com funil atado ao rabo.<br>
+ <br>
+ Em vão com grande esforço ladrarás,<br>
+ Distinguindo a menor, que concedendo<br>
+ Quanto o povo quizer á força irás.<br>
+ <br>
+ Que achaste, inda que tu lhe vás dizendo,<br>
+ Do circulo a sonhada quadratura,<br>
+ Nada te valerá, segundo entendo.<br>
+ <br>
+ C'os rapazes e moços, gente escura,<br>
+ Gente indomita em fim, tua pessoa<br>
+ Não poderá jámais andar segura.<br>
+ <br>
+ Tanto já de ti fallam por Lisboa,<br>
+ Que quando vaes por uma praça, ou rua,<br>
+ Grande susurro em toda a parte sôa.<br>
+ <br>
+ Ora pois tem razão, que a audacia tua,<br>
+ E teus discursos vãos, e palavrosos<br>
+ Dão causa a que qualquer teu sestro argua.<br>
+ <br>
+ Eis aqui porque chamam ociosos<br>
+ Aos que ás letras se applicam, temerarios,<br>
+ Phantasticos, herejes, mentirosos.<br>
+ <br>
+ Os fidalgos os tem por ordinarios,<br>
+ Baixos de nascimento, sem avós,<br>
+ De humildes pensamentos, vãos e varios.<span class="pagenum">[24]</span><br>
+ <br>
+ Se alguem com acto humilde e baixa voz<br>
+ Lhe offerece o elogio em prosa ou rima,<br>
+ Louco, dizem, te vai longe de nós.<br>
+ <br>
+ De nós a poesia não se estima;<br>
+ Vê se tens outra cousa por que valhas,<br>
+ Falla-nos de cavallos ou de esgrima.<br>
+ <br>
+ De cavallos, de esgrima, de batalhas,<br>
+ Não d'essas verdadeiras batalhadas<br>
+ Com lança e espada, aereas antigualhas.<br>
+ <br>
+ Entra por esta brecha ás cutiladas,<br>
+ Amigo, tu que n'isto és o primeiro,<br>
+ Segundo já te ouvi grandes roncadas.<br>
+ <br>
+ Não te ficou venida no tinteiro,<br>
+ Nem tantas soube o Molho destemido,<br>
+ De malsins espantalho verdadeiro.<br>
+ <br>
+ Se te ouvira o Palermo esmorecido<br>
+ Da côrte se ausentára, por não vêr<br>
+ Com teu valor seu credito abatido.<br>
+ <br>
+ Bem pódes pelo mundo discorrer,<br>
+ Novo Roldão, armado d'armas brancas,<br>
+ Mil encantos e aggravos desfazer.<br>
+ <br>
+ Leva do teu cavallo sobre as ancas<br>
+ Tua dama sentada; esgrime e clama,<br>
+ Que assim tudo afugentas, tudo espancas.<br>
+ <br>
+ Ganharás maior nome, e maior fama,<br>
+ Do que andar versos maus vociferando,<br>
+ Dignos dos becos sordidos d'Alfama.<br>
+ <br>
+ Se a fazer versos lá do lago infando<br>
+ O diabo sahisse em tons diversos,<br>
+ Taes como os teus faria, impio, e nefando.<span
+ class="pagenum">[25]</span><br>
+ <br>
+ Por isso não os tenhas por perversos,<br>
+ Aos que pulhas te dizem, porque em fim,<br>
+ Não ha cousa peor do que maus versos.<br>
+ <br>
+ Antes mais vale ser villão ruim,<br>
+ Frade apostata em casa das mancebas,<br>
+ Do que ser mau poeta, antes malsim.<br>
+ <br>
+ Agora quero eu que me percebas,<br>
+ Se alguem te applaude e rijo as palmas bate,<br>
+ É porque mais em teu vicio te embebas.<br>
+ <br>
+ Que aqui te manifesto sem debate,<br>
+ Todos esses amigos que te cercam,<br>
+ Todos te tem por um famoso orate.<br>
+ <br>
+ Quaes ha que rindo o folego não percam,<br>
+ Vendo, quando andas só, teu ar profundo?<br>
+ Se o gosto não lh'o invejo, caro o mercam.<br>
+ <br>
+ Como o que anda d'um bosque lá no fundo<br>
+ As féras conversando e as amadríadas<br>
+ Desgostoso das gentes, e do mundo,<br>
+ <br>
+ Quem te vê tão suspenso, outras iliadas<br>
+ Julga que andas compondo, alto portento!<br>
+ Outros novos altissimos <em>Lusiadas</em>.<br>
+ <br>
+ Mas cada vez que recordar intento<br>
+ Teu soberano e largo magisterio,<br>
+ Fico qual nau sem leme ao som do vento.<br>
+ <br>
+ Alli tudo decides com imperio:<br>
+ Não foram tão despoticos em Roma<br>
+ O tyranno Caligula, ou Tiberio.<br>
+ <br>
+ Qualquer, de ti pendente, lições toma,<br>
+ Não ousa, inda que queira, dizer nada,<br>
+ Que tudo á tua voz se rende, e doma.<span class="pagenum">[26]</span><br>
+ <br>
+ Alli qualquer materia é bem tratada,<br>
+ Com larga voz e cópia de palavras,<br>
+ Alli com teu discurso illuminada.<br>
+ <br>
+ Antes fallasses tu em gado ou lavras,<br>
+ Do que em sciencias, de que nada entendes:<br>
+ Ou fosses para o monte guardar cabras.<br>
+ <br>
+ Novos systemas se fundar emprendes,<br>
+ Porque a fama no numero te conte<br>
+ Dos grandes homens, que offuscar pretendes,<br>
+ <br>
+ Pede ao bom Ariosto que te monte<br>
+ Sobre o seu grifo rapido, e serás<br>
+ Outro Astolfo, outro audaz Bellerophonte.<br>
+ <br>
+ Ao concavo da lua subirás<br>
+ Para vêr se descobres novos mundos,<br>
+ Mas nunca o teu juizo encontrarás;<br>
+ <br>
+ Perdeu-se como pedra em poços fundos,<br>
+ Que nunca acima vem, nem nada, ou boia:<br>
+ Juizos são de Deus, altos, profundos!<br>
+ <br>
+ Não te esqueça maranha, nem tramoia,<br>
+ Porque ao fim desejado te Conduzas,<br>
+ Mais famoso serás que Helena e Troia.<br>
+ <br>
+ Avante, ó novo Gama, já confusas<br>
+ Com as tuas acções vejo as antigas,<br>
+ E para te cantar promptas as musas.<br>
+ <br>
+ Tem-nas da tua parte por amigas,<br>
+ Materia dando a satyras facetas<br>
+ Como as de Horacio, destro n'estas brigas.<br>
+ <br>
+ Se minhas forem, não serão discretas,<br>
+ Porque da rima a musica sonante<br>
+ Adorna as minhas pobres cançonetas.<span class="pagenum">[27]</span><br>
+ <br>
+ Inda esta nos faltava, a cada instante<br>
+ Andares tu contra ella declamando!<br>
+ Que mal te fez o pobre consoante?<br>
+ <br>
+ Quando o chamas não vem logo a teu mando?<br>
+ É porque com verdade não se preza<br>
+ Do teu engenho o som suave e brando.<br>
+ <br>
+ Elles fogem de ti com ligeireza<br>
+ Os consoantes, porque em ti não sentem<br>
+ Para bem usar d'elles natureza.<br>
+ <br>
+ Se as minhas conjecturas me não mentem,<br>
+ Os que poetas querem ser á força,<br>
+ Pouco de um secco rábula desmentem.<br>
+ <br>
+ Em vão um pobre espirito se esforça<br>
+ Porque os seus versos sóem docemente,<br>
+ Por mais e mais que o pensamento torça.<br>
+ <br>
+ Nunca ouviste dizer que Apollo ardente<br>
+ Agita a phantasia dos poetas,<br>
+ Para que mais seu cerebro se esquente?<br>
+ <br>
+ Inda que ouçam razões muito discretas<br>
+ Das mulheres e filhos que pão pedem,<br>
+ Deixam ficar-se, assim como patetas.<br>
+ <br>
+ Nem fomes, nem trabalhos os impedem,<br>
+ Que exercitem o dom divino e raro:<br>
+ Tanto em seu desatino se desmedem;<br>
+ <br>
+ Por isso ás vezes julga o vulgo ignaro,<br>
+ Que elles são intrataveis, desabridos,<br>
+ Posto que os bons lhe dêm louvor preclaro.<br>
+ <br>
+ Mas tu que nunca ergueste os teus sentidos,<br>
+ Que em idéas vulgares e confusas<br>
+ Sempre andaste com elles envolvidos;<span class="pagenum">[28]</span><br>
+ <br>
+ Se nunca conheceste Apollo, ou musas,<br>
+ Nem pintado sequer viste o Parnaso,<br>
+ Para que de seus dons sem saber usas?<br>
+ <br>
+ Se temes que o teu nome em negro vaso<br>
+ Para sempre se veja sepultado;<br>
+ Usa do para que tiveres azo.<br>
+ <br>
+ Não digas mal do consoante amado<br>
+ Tanto dos bons engenhos peregrinos<br>
+ Dos do tempo d'agora e do passado.<br>
+ <br>
+ Se tu fundas em Miltons e Trissinos<br>
+ Teus aereos phantasticos systemas,<br>
+ Assás de bons não foram seus destinos.<br>
+ <br>
+ Poucos ou raros lêm os seus poemas;<br>
+ Um triste e melancolico caminha<br>
+ Farto de extravagancias mil extremas.<br>
+ <br>
+ A musa d'outro misera e mesquinha,<br>
+ Languida e fria, sem adorno e graça<br>
+ Da solta prosa jaz quasi visinha.<br>
+ <br>
+ Ninguem jámais a noite e o dia passa<br>
+ Seus aridos escriptos estudando,<br>
+ Por muito que o seu gosto contrafaça.<br>
+ <br>
+ Não o nego porém, de quando em quando<br>
+ D'elles se eleva um resplendor sublime,<br>
+ Digno do Pindo e Phebo claro e brando.<br>
+ <br>
+ Mas tu a quem a rima tanto opprime,<br>
+ Se não sabes, aprende: o canto hebraico<br>
+ Dizem que ás vezes n'ella bem se exprime.<br>
+ <br>
+ E que por evitar o tom prosaico,<br>
+ Algumas vezes d'ella se servira<br>
+ O poeta syriaco e o chaldaico.<span class="pagenum">[29]</span><br>
+ <br>
+ Tambem a musa grega ao som da lyra,<br>
+ Lá nos tempos antigos, d'ella usou;<br>
+ E o romano que a face ao mundo vira.<br>
+ <br>
+ Novamente o seu uso renovou<br>
+ Dando-lhe fórma e ser o provençal,<br>
+ De nova graça a poesia ornou.<br>
+ <br>
+ Mas isto para ti de nada val,<br>
+ Que porque te foi d'ella Apollo escasso,<br>
+ D'ella e dos que a usaram dizes mal.<br>
+ <br>
+ Que mal te fez Camões e o culto Tasso?<br>
+ Camões a quem as musas educaram<br>
+ Na sua gruta, e virginal regaço?<br>
+ <br>
+ Qu'o cantico divino lhe inspiraram<br>
+ Em que aos astros ergueu os lusos feitos,<br>
+ Que tanto pelo mundo se afamaram.<br>
+ <br>
+ Para exprimir altissimos conceitos<br>
+ Nunca jámais a rima lhe fallece<br>
+ Estylo e puro culto sem defeitos.<br>
+ <br>
+ Qualquer rustico espirito conhece,<br>
+ Que quanto o Camões quiz dizer, o disse<br>
+ Facil e natural, como apparece.<br>
+ <br>
+ Quem quer que d'elle mal fallar te ouvisse,<br>
+ Diria afoutamente e com verdade,<br>
+ Q'isso em ti era inveja, era doudice.<br>
+ <br>
+ Ora pois, porque tens difficuldade<br>
+ Em dizer teu conceito em dôce rima,<br>
+ Vituperal-a é grande iniquidade.<br>
+ <br>
+ Julgavas facil e de pouca estima<br>
+ Dôces versos fazer? amigo, não,<br>
+ É preciso trabalho, estudo e lima.<span class="pagenum">[30]</span><br>
+ <br>
+ E isto sem natural inclinação,<br>
+ Ou pouco ou nada val: se disso és pobre<br>
+ Martellarás no pobre siso em vão.<br>
+ <br>
+ A vêa natural não se descobre,<br>
+ Mil glosas n'um outeiro recitando,<br>
+ Mais vis que escoria vil de ferro ou cobre.<br>
+ <br>
+ Oh quanto te escarnece a gente quando<br>
+ N'elle estás como insano loucamente<br>
+ «Tyrse, Tyrse!» com larga voz gritando.<br>
+ <br>
+ Inda do consoante tão vãmente,<br>
+ Te atreves, pobre infusa, a blasphemar,<br>
+ Sendo tu tão vã cousa, e tão demente!<br>
+ <br>
+ Elle nunca se deixa demonstrar<br>
+ Na tão formosa lingua portuguesa<br>
+ A quem com diligencia o procurar:<br>
+ <br>
+ Qualquer, inda que pouca natureza<br>
+ Tenha, dirá rimando o que quizer<br>
+ Em estylo corrente e com clareza.<br>
+ <br>
+ Tanto que aqui mui bem se póde vêr<br>
+ Que sendo o meu engenho rude e baxo,<br>
+ Exprimo quanto tenho que dizer.<br>
+ <br>
+ Ou bem ou mal os consoantes acho,<br>
+ Tão facilmente ás vezes me apparecem<br>
+ Que para os apanhar me não abaxo.<br>
+ <br>
+ Mas julgo que os ouvintes adormecem<br>
+ Co'a minha longa pratica: eu me calo,<br>
+ Pois que os gostos d'ouvir-me lhes fallecem.<br>
+ <br>
+ Em fim já sem refolho aqui te fallo;<br>
+ Se os meus versos conseguem felizmente<br>
+ Fazer dentro em teu peito algum abalo,<span class="pagenum">[31]</span><br>
+ <br>
+ Que o teu fado se quebre em continente,<br>
+ Tornando-te, de louco, homem cordato,<br>
+ E acabes de ser fabula da gente.<br>
+ <br>
+ Tuas acções medindo com recato,<br>
+ Deixando versos maus, vãos argumentos<br>
+ Que te fazem de todo mentecato,<br>
+ <br>
+ Darei por bem gastados os momentos<br>
+ Que empreguei n'esta misera escriptura,<br>
+ Censurando os teus fatuos pensamentos,<br>
+ E ter-me-hei por mimoso da ventura.<br>
+</blockquote>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap04" name="cap04">O PALCO PORTUGUEZ EM 1815</a></h1>
+
+<p>Já n'aquelle anno, em meio da bruteza das nossas platêas, se confrangiam de
+magoa e pejo alguns raros entendimentos que vaticinavam a resurreição do
+theatro nacional. Almeida Garrett orçava então pelos dezeseis annos. Florecidas
+mais seis primaveras n'aquelle precoce espirito, a arte nova lhe desbotoaria as
+primeiras flôres da grinalda.<span class="pagenum">[32]</span></p>
+
+<p>A tristeza dos bons entendimentos, em presença do abatido e nojoso palco
+d'aquella época, prenunciava a aurora que alvoreceu, passados quinze annos, com
+o primeiro dia da liberdade. As musas, trajadas com elegancia e aquecidas ao
+sol de estranhos, repatriaram-se com os desterrados que lá fóra retemperaram o
+genio na incude da pobreza, e reviveram nos esplendores da civilisação.</p>
+
+<p>Um dos liberaes, que emigraram em 1828, e cursavam as aulas em 1815,
+escreveu, n'este anno, uma carta ácerca do theatro nacional. Se este escripto
+da primeira mocidade não revela vasto estudo nem gentilezas de phrase, com
+certeza denota razão esclarecida. O author da carta volveu á sua patria, mais
+atido á espada que á penna. Uma e outra lhe cahiram simultaneamente da mão, no
+cerco do Porto. Não sei o nome do official que jaz obscurecido na valla dos que
+morreram em batalha. Apenas em uma nota que precede a seguinte carta se diz que
+o author d'ella, morto na rareada fileira dos mais audazes soldados do
+imperador, teria sido um dos melhores cultores das letras que esmeradamente
+seguira na emigração. Archivemos o documento que merece ser lido como desfastio
+aos indigestos pastelões de historia theatral com que o snr. Theophilo
+Fernandes (Joaquim) nos tem intestinado o tedio da leitura:<span
+class="pagenum">[33]</span></p>
+
+<h3>Carta escripta a um amigo em 3 de fevereiro de 1815 sobre a chegada dos
+comicos italianos, com algumas reflexões sobre os theatros portugueses.</h3>
+
+<p>Chegou finalmente a esta cidade a companhia dos comicos italianos, ha tanto
+tempo esperada, e hontem fizeram o seu primeiro ensaio. Domingo gordo vão, pela
+primeira vez, á scena, onde a curiosidade dos <em>dilettanti</em> é igual á
+impaciencia com que viam o theatro de S. Carlos fechado por falta de actores.
+Será bem difficil que estes, que chegaram, satisfaçam plenamente a espectação
+publica, onde se conserva ainda bem gravada a lembrança dos excellentes
+cantores, que tanto nos deleitaram n'estes ultimos tempos, e que brilharam com
+a mais bem merecida reputação n'este nosso theatro de S. Carlos, e que
+illustraram distinctamente a arte da musica tão agradavel, que a nossa mesma
+imaginação figura os anjos, cantando no paraiso a gloria do Deus Supremo.</p>
+
+<p>Geralmente os portuguezes amam a musica com extremo, e tem um gosto
+particular por esta arte, principalmente depois que o senhor rei D. José fez
+vir para o seu theatro magnifico, que infelizmente o grande terremoto do anno
+de 1755 devorou, os melhores cantores que então havia em toda a Italia.
+Depois<span class="pagenum">[34]</span> d'esta época sustentou o mesmo monarcha
+a mesma inclinação por esta arte, em que era muito entendido, e á sua imitação
+a nação toda se costumou tanto á boa musica, que houve particulares que
+chegaram a rivalisar com os mesmos professores. Ainda hoje não teem perdido de
+todo este gosto, principalmente os habitantes de Lisboa, que conservam viva a
+lembrança do canto melodioso, suave e delicado da Crescentini, de Cafforina, e
+da celebre Catalana, que por uma maneira nova de cantar, levaram esta sublime
+arte áquelle grau de perfeição, a que ella póde humanamente chegar.</p>
+
+<p>Não julgo que estes virtuosos, que vieram, sejam iguaes em talentos áquelles
+de quem venho de fazer menção. Como não é sómente a arte, mas a natureza
+igualmente que os produz, e nem sempre esta é fertil em semelhantes producções,
+parece-me que o seu canto não causará nos espectadores o mesmo interesse, com
+que todos os lisbonenses corriam para o theatro a ouvir a melodia de vozes, e a
+harmonia de accentos, que realisavam os fabulosos das serêas. Como dizem,
+porém, que vem duas raparigas que não são mal parecidas, não deixarão de serem
+bem applaudidas pela platêa de Lisboa, na qual a mocidade olha sempre com mais
+attenção para os agrados da natureza do que para as perfeições da<span
+class="pagenum">[35]</span> arte, ás quaes não paga tão grande tributo como á
+belleza.</p>
+
+<p>É muito provavel que d'aqui em diante os bons cantores sejam mais raros na
+Italia, onde em outro tempo eram mais communs, não sómente porque os successos
+politicos tem influido consideravelmente n'esta parte da Europa sobre os
+progressos das artes liberaes, onde nasceram e tiveram o seu berço; mas porque
+o infame e detestavel costume da castração, com o fim de fazer as vozes finas,
+e bons sopranos, está justamente prohibida por uma lei sabia e judiciosa. Pois
+que barbaridade maior podia haver do que condemnarem os paes seus proprios
+filhos a uma mutilação que degrada a especie humana, que a inutilisa e que
+annulla os votos da natureza em prejuizo das suas mais admiraveis producções?
+</p>
+
+<p>Não poderemos, pois, ouvir d'aqui em diante um novo Echiziel ou um
+Crescentini, que modulavam as suas vozes finas á custa do bem que tinham
+perdido, por umas notas successivas e prolongadas, que bem longe de moverem a
+alma pela força da expressão, a affligiam pelos patheticos esforços de uma
+modulação uniforme; mas ouviremos talvez com um prazer mais interessante os
+sons masculinos d'aquellas vozes fortes e animadas, que conciliem com os seus
+accentos a viva expressão dos sentimentos differentes da nossa alma, em<span
+class="pagenum">[36]</span> que um gosto sublime e delicado faz consistir a
+perfeição da musica, para o qual não é o melhor musico aquelle que se occupa só
+em vencer difficuldades; mas aquelle que, pelas doçuras da harmonia, inspira na
+nossa alma, e lhe communica os mesmos sentimentos que exprime no seu canto.</p>
+
+<p>Qualquer que seja, porém, o merecimento dos novos comicos, é sempre uma
+especie de satisfação para os moradores de Lisboa verem o melhor theatro, que
+teem, aberto, e terem quem trabalhe n'elle, o que é sempre um grande recurso em
+uma grande cidade, destituida de divertimentos publicos, e onde se consome o
+homem, e sobre tudo os estrangeiros, á força de uma negra melancolia, não
+havendo outro passatempo, que não seja o de algumas sociedades particulares,
+onde só apparecem aquelles que possuem grandes meios, para alli ostentarem toda
+a sua vaidade, e quasi sempre todo o seu orgulho. É bem verdade que toda a
+comica representação, que alli fazem, é quasi sempre á custa da sua bolsa, pois
+que é descredito entre elles não jogar. Os gatunos que nunca faltam n'estas
+assembléas, nunca perdem a occasião de os depennarem; e os murmuradores e
+maldizentes de admirarem o como a fortuna faz de um tolo um homem entendido, e
+como transforma um sevandija em um fidalgo cortezão.<span
+class="pagenum">[37]</span></p>
+
+<p>É certo que os invernos são bem custosos de passar em Lisboa sem o recurso
+dos theatros, não havendo outro algum divertimento publico, mais do que as
+assembléas acima referidas, onde nem todos podem ir, e que nem a todos é
+permittido frequentar. Não ha aqui, como em Londres, em Paris, em Vienna, em
+Petersbourg e em Veneza salas publicas de baile, onde se passem as noites, e
+menos cafés bem compostos, em que todo o homem bem creado acha a melhor
+companhia, e onde trava amizade com os homens mais distinctos e que são assás
+uteis muitas vezes. Os nossos costumes reservados, e os principios da politica,
+de os dirigir pela desconfiança ou pelo temor, em que a policia ganha porque
+tem menos que observar e menos motivo para temer que a ordem publica seja
+alterada, fazem que estas privações se soffram com toda a paciencia,
+contentando-se cada um que não tem os meios competentes para frequentar as
+companhias do melhor tom, a ir passar a noite com o seu compadre ou com o seu
+visinho, a murmurarem uns dos outros. Sem este recurso ficariam sempre em casa,
+semelhantes ás mumias do Egypto, embrulhados nos seus capotes, unico meio de
+que se servem para resistirem aos rigores da estação.</p>
+
+<p>Não faltará quem diga que faço um quadro de Lisboa, no tocante aos seus
+divertimentos<span class="pagenum">[38]</span> publicos, menos vantajoso; pois
+que uma cidade populosa que tem tres theatros nacionaes, além do italiano, e
+uma quantidade immensa de grandes sociedades, que tem nas semanas dias fixos em
+que se ajuntam, não está de menor condição n'esta parte ás mais opulentas da
+Europa. Esta reflexão, se ficasse sem replica, me attribuiria talvez, na
+opinião geral, um espirito de maledicencia que eu não tenho; e para me salvar
+de qualquer imputação que n'este particular se me haja de fazer, vejo-me
+obrigado a fazer aqui algumas observações sobre os nossos theatros nacionaes,
+que pela sua construcção material e pelo genio dos actores, que n'elles
+representam, não constituem um divertimento que chame o gosto, o interesse e a
+distracção da classe mais escolhida da nação, a quem não fazem grande honra nem
+excitam aquella curiosidade que faz frequentar estas escólas dos costumes e do
+bom gosto.</p>
+
+<p>Quanto á construcção destes nossos theatros duvido que se achem, ainda nas
+mesmas provincias dos reinos mais civilisados, outros semelhantes ao da rua dos
+Condes ou do Salitre. As incommodidades que cada um é obrigado alli a
+supportar, não compensam os agrados mais deleitaveis da melhor representação,
+ainda no caso que a houvesse. No meio da platêa arde em fogo, nas mesmas noites
+mais frias do<span class="pagenum">[39]</span> inverno, o desgraçado espectador
+que acha alli lugar; pelos lados da mesma platêa vem um vento encanado pelos
+corredores, que atormenta todo o miseravel que occupa estes assentos. Nos
+camarotes, que são tão mesquinhos como tudo o mais, estes incommodos são ainda
+mais penosos; por entre as frestas das portas entra um frio pelo inverno, que
+gela, e que é principio certo de catarrhos, pleurizes e constipações, que
+circulam amplamente n'aquelle triste recinto; e quando o espectaculo acaba, nem
+lugar reservado, em que se esperem as carruagens, nem modo algum de prevenir os
+grandes males, a que cada um fica exposto á porta da rua ou no aperto dos
+corredores, até que chegue a carruagem que o ha de transportar. O theatro do
+Salitre e o da Boa Hora teem estas incommodidades mais marcadas; de maneira que
+todo aquelle que se propõe a ir a algum d'elles passar uma noite, deve ir
+disposto a vir doente: se é de verão, pelo nimio calor, se é de inverno, pelo
+frio. Assim não conheço um meio mais proprio a quem está em boa saude, de estar
+doente, do que ir a um d'estes theatros. Ora, que divertimento póde ter n'estes
+espectaculos aquelle, que cuida mais em se livrar dos males a que se vê
+exposto, do que gozar das illusões que apresenta á imaginação uma sala de
+espectaculo? Se todos estes incommodos, que se compram<span
+class="pagenum">[40]</span> por dinheiro, fossem, comtudo, compensados pelo
+deleite de uma boa representação, seria ainda assim desculpavel, sacrificar ao
+prazer certos incommodos, de que uns não fazem caso por genio, e que outros
+desprezam, porque lhes insta a necessidade que sentem de se distrahirem. Mas a
+representação é tão insipida e tão enfadonha! Os comicos interessam tão pouco;
+e os caracteres que representam são, ou por falta de natureza ou por ignorancia
+propria, tão mal sustentados, que não valem a pena de se ouvirem á custa dos
+grandes detrimentos que se soffrem, principalmente quando um homem tem o seu
+gosto formado pelos bons modelos da arte dramatica, a quem um actor mediocre e
+baixo é tão insupportavel, como uma musica desafinada e sem harmonia na sua
+composição. Taes são, portanto todos os nossos actores, os quaes entram n'esta
+carreira mais com o fim de acharem n'ella uma subsistencia segura e commoda,
+que com o nobre intento de adquirirem uma gloria que immortalisou os famosos
+nomes de Molière, de Baron, de Garrik e de le Kain.</p>
+
+<p>Pois que uma casualidade impensada me chegou a ponto de fazer algumas
+observações sobre os nossos theatros, não quero perder esta occasião de expor o
+meu juizo sobre este assumpto, que aliás é um seguro thermometro, que indica o
+grau em que se acha a civilisação<span class="pagenum">[41]</span> e os
+costumes das nações. Como escrevo uma carta e não faço uma dissertação,
+cuidarei quanto podér de abreviar o meu discurso, que não terá mais que
+simplesmente o resultado de fazer vêr quanto Thalia e Melpomene favorece pouco
+os engenhos dos portuguezes nas artes a que presidem estas musas, cujas
+influencias são tão brilhantes e tão liberaes para outras nações, que cultivam
+com o melhor successo esta arte, que nos representa vivamente os vicios e as
+virtudes dos homens, assim como tambem os seus defeitos e os seus ridiculos.
+</p>
+
+<p>Podemos seguramente dizer com toda a verdade, que nós, os portuguezes, não
+podemos ter a gloria de dizer que temos um theatro nacional, pois que não temos
+nem actores dramaticos nem actores capazes de desempenharem estas bellas
+composições do espirito humano. Não é de admirar que não haja bons
+representantes, onde faltam os poetas; porque aquella mesma natureza, que
+inspira o enthusiasmo da imaginação, não deixa de inspirar tambem o gosto
+particular da imitação, de modo que é observação demonstrada, que onde os
+engenhos sabem conceber os mais brilhantes pensamentos e estudam todos os
+movimentos da nossa alma, dirigida pelas suas affeições ou pelos impulsos das
+paixões humanas, ahi se encontram tambem aquelles talentos superiores<span
+class="pagenum">[42]</span> e naturaes, que na scena representam com toda a
+energia e delicadeza aquelles mesmos movimentos; de maneira que parece
+realidade o que não é mais que imitação. Garrik, a cada sentimento que exprimia
+nos theatros de Londres, mudava de voz e de semblante, como a expressão
+requeria; e Molière, em França, ridiculisava com uma graça tal todas as classes
+de homens de que se compõe o corpo social, quando a vaidade, presumpção ou amor
+proprio as desviava dos principios que a razão prescreve, que todos sentiam em
+si o defeito de que elle ria e zombava, para se corrigirem quando se julgavam
+objecto dos epigrammas e dos gestos comicos do comediante. Como este mesmo era
+o author das suas comedias, não é de admirar que exprimisse com energia aquillo
+mesmo que a sua alma sentia com toda a sua força; e é d'este modo que os
+theatros, que são as escólas dos costumes, onde se pintam ao natural pela
+fealdade do vicio ou pela ridicula pratica que os degrada, preenchem plenamente
+o fim para que foram instituidos; pois é evidente que todo aquelle actor que
+não tiver meios proprios para penetrar a alma dos seus espectadores pelas mais
+vivas e mais naturaes maneiras, figura e gestos da sua representação, não póde
+produzir o effeito que esta admiravel arte de imitação é capaz de produzir, e
+sem o qual effeito, uma sala<span class="pagenum">[43]</span> de espectaculo
+não é mais do que uma camara optica em que os sentidos podem gozar de algumas
+momentaneas illusões, mas onde a alma jámais se deixará possuir d'aquelles
+prestigios do sentimento que faz amar a virtude e detestar o vicio, nas peças
+tragicas, e nas comicas, temer o amargoso fel da critica que corrige o homem,
+fazendo mofa dos seus costumes que pinta, quando são ridiculos, ao natural.</p>
+
+<p>É para notar que os engenhos portuguezes, dotados, como todos os mais que
+gozam das dôces influencias do céo puro e crystallino do meio-dia, de uma viva
+e ardente inclinação para as artes de pura imaginação, principalmente a da
+poesia, se contentem só de a cultivarem á margem dos rios e á sombra dos
+arvoredos, onde suspiram pelas suas amadas, em versos sim, amorosos e
+sentimentaes, mas que só fallam de amor, de saudades, de ciumes e de
+ingratidão. Um só d'estes genios favorecidos das musas tem aspirado á gloria de
+rivalisar com Euripedes ou com Sophocles, de igualar a Plauto ou a Terencio, e
+aquelle que tem intentado dar alguns passos na carreira dramatica, tem sido com
+tão infeliz successo, que parou no principio d'ella. Muitas vezes tenho pensado
+sobre a causa por que os nossos poetas, sendo inspirados de um estro proprio a
+todo o genero de versificação, só para<span class="pagenum">[44]</span> o
+theatral não teem os talentos requeridos; e por resultado das minhas
+observações a este respeito, tenho colhido a idéa de que para compôr uma
+ecloga, um idyllio, uma epistola ou uma elegia, basta ao poeta exprimir os seus
+proprios sentimentos em bons versos e harmoniosos para ter um nome distincto no
+Parnaso: mas para compôr uma tragedia ou uma boa comedia de caracter, é preciso
+exprimir com elegancia, pureza e enthusiasmo os sentimentos dos outros, que é
+absolutamente necessario conhecer e aprofundar para os saber desenvolver pela
+acção. Ora este conhecimento não se adquire senão por um grande uso do mundo, e
+por um tacto particular do coração do homem e de toda a natureza humana em
+geral; mas este grande livro não se acha nas livrarias escripto, acha-se
+espalhado no tumulto da sociedade, onde os homens desenvolvem todas as suas
+idéas, todos os seus sentimentos, as suas paixões, os seus vicios, os seus
+crimes e o seu heroismo. É n'este livro que o poeta dramatico aprende a pintar
+na scena as virtudes de Catão e as ridiculas maneiras de um villão afidalgado;
+mas se o poeta, concentrado no fogo do seu amor, não conhece senão Damiana a
+quem dirige seus ais e seus queixumes, como ha de pintar as paixões dos homens
+e os seus ridiculos caprichos? Esta ignorancia me parece ser a causa por que
+os<span class="pagenum">[45]</span> poetas portuguezes não consagram as suas
+musas mais que simplesmente ao amor a que os chama uma natural ternura, e o
+conhecimento de uma paixão, que elles conhecem melhor que quaesquer outras, e
+que explicam com mais sensibilidade e doçura. Nunca sahindo dos seus lares,
+vivendo em um pequeno circulo, uma imaginação, por mais poetica que seja, não
+póde produzir grandes e brilhantes concepções; e por consequencia, se conceber
+o plano de uma tragedia, que, segundo a opinião de mr. de la Harpe, é a obra
+prima do espirito humano, onde ha de ir buscar a materia para os debates? Se
+quizer compôr uma comedia, apenas saberá ridiculisar os defeitos do seu visinho
+tendeiro ou sapateiro.</p>
+
+<p>Para provar que o cothurno não é feito para os nossos poetas lusitanos,
+basta lembrar que o assumpto da morte tragica da rainha D. Ignez de Castro,
+assumpto dos mais interessantes que tem apparecido em scena, tanto nos tempos
+antigos como nos modernos, tem apurado o estro dos nossos poetas portuguezes,
+não só pelo interesse da acção, mas por ser a acção passada entre nós, e que
+para excitar a compaixão tem de mais a historia que a proclama verdadeira. Tres
+ou quatro tragedias temos na nossa lingua portugueza d'este infeliz successo, e
+uma só d'ellas o immortalisa pelas bellezas dramaticas, que pouco ou nada<span
+class="pagenum">[46]</span> correspondem a um assumpto igualmente sublime que
+pathetico. Não fallo da primeira e mais antiga de Antonio Ferreira, que passa
+aliás por poeta classico entre nós, e na qual se não acha a força de
+sentimentos, a violencia das paixões, postas em jogo para trazerem
+imminentemente a catastrophe que finalisa a tragedia. As scenas sem ligação, a
+intriga mal combinada e tão descoberta pelo dialogo, que todo o espectador
+conhece, desde o primeiro acto, qual será o fim da peça. Não fallo n'estes
+dialogos, em que as personagens que os declamam não tem bastante força para
+mostrarem todo o horror da inveja que instiga e anima os cortezãos orgulhosos
+da côrte de D. Affonso IV para sacrificarem ao furor d'aquella paixão o amor
+fino, legitimo e innocente de dous corações ternos, ligados pelos dôces e
+sagrados laços do hymeneu. Os córos que o author Ferreira introduziu por
+intervallos dos actos d'esta sua tragedia, á maneira dos gregos, é o que ha
+n'ella de melhor, por serem compostos de uma bella poesia, e tão pathetica, que
+movem o coração á maior sensibilidade. Outra tragedia, que temos sobre o mesmo
+assumpto, composta por o arcade Alcino não tem merecimento algum: as regras do
+theatro não são observadas; a versificação é languida e sem elegancia; os
+sentimentos friamente exprimidos, e os actores sempre sustentando um
+caracter<span class="pagenum">[47]</span> forçado e não tirado da natureza da
+acção, d'aquella acção que deriva de paixões complicadas e violentas, que
+deviam ser mais energicamente desenvolvidas. Esta peça não tem regularidade nem
+entrecho de uma tragedia; é um drama feito á imitação dos de Metastasio, que
+não é poeta tragico, pois que além dos seus dramas interessarem geralmente mais
+pela musica do que pelo desenvolvimento da peça, este vem muitas vezes no
+segundo acto, e o terceiro é composto então de incidentes accessorios, quasi
+sempre insipidos e frios, porque n'elles não ha acção. Lembra-me ha annos vêr
+representar no theatro do Bairro Alto uma tragedia de D. Ignez de Castro tirada
+de uma comedia hespanhola de Don Calderon de la Barca, intitulada <em>Reynar
+despues de morir</em>. Esta peça foi geralmente applaudida e gostada pela
+energia e força de alma, com que uma actriz, chamada Cecilia, representou o
+papel de D. Ignez de Castro; mas esta peça deveu ao genio e aos talentos d'esta
+actriz o bom successo que teve, pois que examinando a contextura da peça, ella
+tinha os defeitos da hespanhola, em que não havia mais que tiradas de bons
+versos; mas pouca ou nenhuma verdade na acção; pois que, depois da morte d'esta
+infeliz princeza, apparecia uma scena em que o seu cadaver, sentado debaixo do
+solio, era coroado e solemnemente<span class="pagenum">[48]</span> proclamado
+pelo seu amante, já rei, e por todo o seu povo como sua legitima rainha, e isto
+muito tempo depois de ter sido a victima das paixões dos cortezãos, invejosos
+de verem a familia dos Castros sobre o throno de Portugal. Esta scena, que pela
+sua magestosa decoração fazia todo o interesse d'esta peça, não parece ser uma
+segunda acção, que se representa? onde está pois a unidade da acção tragica,
+que é o primeiro preceito da tragedia? A coroação da rainha na mesma peça é tão
+irregular, quanto é novo de sentar em um solio o cadaver de uma princeza,
+assassinada no seu proprio palacio, muito tempo depois de enterrada no silencio
+de um sepulcro. Passemos todas estas incongruencias, que sómente trago á
+lembrança para mostrar que a poesia dramatica não é largamente distribuida
+pelas musas aos portuguezes.</p>
+
+<p>N'estes ultimos tempos appareceu entre nós, sobre o mesmo assumpto, uma
+tragedia com o titulo de <em>Nova tragedia de Ignez de Castro</em>. Esta peça
+observa melhor os preceitos do theatro; a sua versificação é em algumas scenas
+elegante e sentimental; mas em outras não conserva esta igualdade. O fim ou o
+desatado da intriga é a catastrophe, que vem um pouco precipitada e não trazida
+por um jogo de paixões, susceptiveis de modificações differentes, que levam o
+coração humano ao excesso da<span class="pagenum">[49]</span> paixão que agita
+e move os animos; o que faz que os dialogos são curtos e as scenas ainda mais.
+A da entrevista de Affonso IV com D. Ignez de Castro, que é uma das mais
+interessantes da peça, não póde satisfazer os espectadores, que vêem que um rei
+se occupa da sorte da infeliz Castro, de quem se separa, dizendo-lhe que vai
+para o conselho de estado, onde ella ha de ser julgada, e alli elle advogará a
+sua causa. Que enormes incongruencias! O rei tem no seu poder o perdoar-lhe;
+não é uma acção generosa salvar a innocencia das mãos que pretendem banhar-se
+no seu sangue? O conselho de estado não é um tribunal judiciario, que é só quem
+póde julgar e condemnar. E um ajuntamento de conselheiros, que o rei convoca
+para tratar da sorte de D. Ignez de Castro, como um negocio simplesmente
+politico. E então que triste personagem faz elle em advogar pela infeliz
+Castro, diante não de ministros que a julgam pelas leis, em que elle mesmo póde
+dispensar, mas diante de conselheiros invejosos, que verdadeiramente são
+algozes! Esta scena podia ser conduzida mais nobremente, conciliando a bondade
+do rei, que se mostra interessado a favor de Castro, com a dignidade da sua
+corôa, que póde ser enganada pelo artificio dos seus conselheiros, a quem é
+indigno da sua parte dar-lhes consentimento para serem os executores de um
+assassinio.<span class="pagenum">[50]</span> Estas delicadezas não escapariam a
+Racine nem a Voltaire, se tratassem esta materia, porque, exactos observadores
+de tudo o que é decente e decoroso, não atropellariam tão facilmente o respeito
+da magestade, fazendo-a instrumento de crimes odiosos em um theatro em que um
+monarcha, se pelas paixões é um homem como outro qualquer, pela soberania é
+sempre executor da lei.</p>
+
+<p>Alguns outros poetas n'estes tempos posteriores teem ensaiado o seu estro
+n'este genero de composição. A condessa de Vimieiro compoz uma tragedia, que
+foi laureada pela academia das sciencias de Lisboa, mais por favor que por
+justiça. Um certo Francisco Dias, homem só conhecido pelos seus talentos
+litterarios que cultivou no lugar humilde de uma tenda, compoz outra, cuja
+sorte foi, segundo creio, ainda mais infeliz do que a da condessa; e tantos
+esforços juntos não tem produzido um bom poeta tragico em Portugal que possa
+pôr-se ao pé do grande Corneille ou do sentimental Racine, mas ainda junto dos
+mais mediocres poetas tragicos do theatro francez. Esta inopia não vem ella do
+principio que acima já apontei? Para Raphael pintar uma obra prima no
+inimitavel quadro da transfiguração de Christo, foi preciso que a sua
+imaginação sublime lêsse no grande livro do universo todas as bellezas da
+natureza, para as saber pintar<span class="pagenum">[51]</span> com
+propriedade, e conforme as suas primitivas creações; para um poeta tragico
+reproduzir o caracter de Catão, de Cesar, de Marco Antonio, de Brutus e da
+infeliz Dido, é necessario que entre com a sua imaginação no immenso theatro do
+mundo e contemple a variedade de successos que os interesses dos homens, as
+suas paixões, os motivos que as põem em acção, os progressos que fazem sobre as
+suas almas para virem a dominal-as com despotico poder, os crimes e as acções
+infames de que são causa, a degradação, em fim, da intelligencia humana, quando
+de todo se sujeita á perversidade do vicio e se entrega á corrupção dos
+costumes: sobre este quadro immenso a imaginação quer um campo largo para o
+contemplar, examinar e estudar; mas este campo falta aos nossos poetas, que
+levados do gosto dominante da nação, que tem por objecto o amor, não são
+pintores para retratarem grandes caracteres, nem teem imaginação bastante para
+darem aos grandes successos uma fórma que mostre todos os horrores dos vicios e
+todas as bellezas das virtudes, que é o principal objecto das tragedias.</p>
+
+<p>Se este genero de composição não tem dado nome a poeta algum portuguez,
+menos se teem elles distinguido na comedia, pois que não temos uma, não digo
+boa, mas ainda muito mediocre. Parece que as musas são ainda n'esta<span
+class="pagenum">[52]</span> parte mais avaras com os engenhos portuguezes, que,
+sendo os primeiros que abraçaram logo as artes graciosas, que no seculo XV a
+fortuna transplantou da Grecia para a Italia, onde acharam um benigno
+acolhimento, foram aquelles que por meio dellas menos gloria teem adquirido. As
+comedias que os nossos poetas do nosso seculo de Augusto&mdash;que é o d'el-rei
+D. João III&mdash;nos deixaram, não merecem sequer o nome de comedias; o que me
+não faz espanto, pois que Portugal então não tinha um só theatro, mais que o
+dos campos de Marte, e onde não ha theatros não ha quem componha comedias. A
+nossa feliz época da boa litteratura passou, e Camões ficou conhecido pelo
+primeiro poeta das Hespanhas pelo seu poema lyrico e não pelas suas miseraveis
+comedias, e a mesma sorte tiveram os seus contemporaneos que molharam o seu
+pincel na paleta de Melpomene. Os castelhanos que se senhorearam de Portugal,
+se distinguiram, mais que nenhuma outra nação da Europa, na arte de
+Aristophanes e de Menandro; porém não nos passaram este gosto, ou os
+portuguezes o não quizeram seguir, talvez por ser de uma nação que aborreciam.
+Como quer que seja, a arte dramatica foi inteiramente desprezada em Portugal, e
+o bom gosto da litteratura tendo-se corrompido n'este paiz pelos successos
+politicos, por que passou, fez totalmente esquecer<span
+class="pagenum">[53]</span> aos poetas do tempo este genero de composição. Elle
+se limitava só a alguns autos sacramentaes, que se representavam popularmente
+em festas de igrejas e nos adros dos templos. As vidas dos santos davam
+assumpto para muitos d'estes autos, que correm ainda entre nós; e a piedade
+christã ia buscar n'estas representações mais estimulos para amarem a religião,
+do que motivos para cultivarem uma arte que, segundo Horacio, <em>castigat
+ridendo mores</em>. Não tenho idéa, nem pela historia nem por tradição alguma,
+que em Portugal houvesse um theatro em que se representassem comedias
+portuguezas, de que não appareciam authores, ou pelos embaraços da longa
+guerra, que houve n'este reino para sustentar a corôa na casa de Bragança, que
+não deram lugar para a applicação das artes, ou porque os portuguezes não
+quizeram imitar os seus inimigos, exercitando as suas musas na poesia dramatica
+em que os hespanhoes excediam a todas as outras nações da Europa. Estes não
+tinham theatros fixos; companhias ambulantes de comediantes, de que lemos na
+historia de <em>Gil Blaz</em> a descripção tão circumstanciada como critica.
+Corriam de villa em villa, a recitar as comedias de Calderon, Moreto, Solis,
+tres «Ingenios» que inundavam toda a Hespanha, em tanto que o espirito dos
+portuguezes se contentava com os seus autos sacramentaes de<span
+class="pagenum">[54]</span> <em>Santa Genoveva</em>, <em>de Santo Aleixo</em> e
+outros semelhantes, que se davam ao publico em espectaculo nos dias das maiores
+festividades da igreja. Assim não se sabia entre nós o que era uma boa comedia,
+e n'esta ignorancia vivemos até que no principio do seculo passado appareceu o
+judeu Antonio José, que compoz um theatro de operas, as quaes nem pela poesia,
+pois que são em prosa, nem pelos titulos, que são <em>Labyrintho de Creta</em>,
+<em>Encantos de Medêa</em> e outros iguaes podem chamar-se comedias, ou porque
+trazem misturada musica de recitados e de arias, á maneira dos italianos, ou
+porque lhe falta aquelle caracter que distingue a comedia, e que Molière só
+fixou em França na época feliz da sua mais brilhante litteratura. Aquelle
+engenho, porém, infeliz pela fórma das suas composições dramaticas e mais ainda
+pela miseravel sorte que teve de ser condemnado a morrer queimado pelo santo
+officio, foi comtudo, o primeiro que viu as suas operas representadas no
+theatro do Bairro Alto, o primeiro que houve em Lisboa e onde os representantes
+eram bonecos que se moviam por arame e que fallavam pelas vozes dos
+interlocutores, que se mettiam por entre os bastidores. Tal era o estado em que
+se achava a arte dramatica em Portugal, quando já Molière brilhava em França
+como o restaurador dos theatros de Grecia e Roma, pelas<span
+class="pagenum">[55]</span> suas admiraveis comedias e como um modelo perfeito
+da mais decente, entendida, natural e agradavel representação que até então não
+tinha apparecido em algum theatro do mundo antigo e moderno.</p>
+
+<p>Nem este excellente author, que deu tanta gloria á França como Aristophanes
+tinha em outro tempo dado a Athenas, nem o genio particular que a natureza lhe
+tinha dado para imitar na scena as differentes personagens, que como author era
+obrigado a representar, causaram o mais pequeno estimulo aos engenhos
+portuguezes para o seguirem na carreira dramatica. As suas musas ficaram mudas
+n'este ponto, até que el-rei D. José, apaixonado pela musica, logo que subiu ao
+throno, mandou construir um magnifico theatro; e mandando vir da Italia os mais
+celebres musicos para cantarem n'elle as peças de Metastasio, extinguiu de todo
+o gosto da nação pelas comedias em lingua vulgar. Quem poderá deixar de
+reflectir que houvesse theatro nacional em uma nação em que o rei não gostava,
+e, por conseguinte, o não protegia? Não o havia, pois&mdash;nem comedias para
+se representarem, no caso de o haver; porque, como já disse, a poesia n'este
+genero emmudeceu em Portugal. O theatro real era tão magestoso que não admittia
+mais que pessoas de qualidades superiores; e as que ficavam mais abaixo não
+indo a elle ignoravam<span class="pagenum">[56]</span> o que era uma comedia,
+uma tragedia e os mesmos dramas em musica, que se punham no theatro real.
+Succedeu o fatal terremoto de 1755; arruinou-se com a maior parte da cidade
+este sumptuoso espectaculo, e, até que a confusão d'aquella calamidade se
+ordenou, nem el-rei teve theatro nem o povo. Mas no anno de 1758 abriu-se o da
+rua dos Condes, que ainda hoje existe nas ruinas do palacio do marquez do
+Louriçal, com algum augmento que teve, depois da sua primitiva creação. As
+peças que ao principio n'elle se representavam eram as operas de Metastasio
+traduzidas em portuguez, <em>Artaxerxes</em>, <em>Alexandre na India</em>,
+<em>Demofonte em Thracia</em>, <em>Ezio em Roma</em>, etc. com relações á
+maneira hespanhola, e mil bufonerias, que d'aquelles bellos dramas faziam as
+peças mais ridiculas que se podiam pôr em scena; e, para tornar o theatro de
+todo desprezivel, eram homens vestidos de mulheres que representavam o papel de
+Erytrêa e das mais damas das peças e suas criadas, que os traductores
+introduziam para fazerem rir a plebe. Um só poeta appareceu com uma composição
+dramatica que fosse digna de apparecer em scena; e os directores d'este
+miseravel theatro pozeram em contribuição poetas hespanhoes e italianos para
+sustentarem o theatro.</p>
+
+<p>Alguns annos depois um novo empresario estabeleceu um theatro no Bairro
+Alto, não<span class="pagenum">[57]</span> onde havia o dos bonecos em tempo
+mais antigo, mas nas ruinas do palacio do conde de Soure, cuja abertura foi com
+uma companhia de musicos italianos que foi buscar a Londres. Esta empresa não
+durou muito tempo, e aos italianos succederam os portuguezes com o mesmo
+successo que tinham os da rua dos Condes, que podiam chamar-se actores de
+arraial. Este theatro do Bairro Alto de todo acabou e succedeu-lhe o do
+Salitre, que se conserva sem melhoramento algum que possa acreditar os engenhos
+portuguezes, que, nem pelas suas composições, nem pelo jogo da representação,
+tem dado á sua patria a gloria de ter um theatro nacional.</p>
+
+<p>N'esta curta narração historica dos theatros portuguezes tenho feito vêr o
+pouco progresso que a arte dramatica tem feito em Portugal. Não é de admirar,
+porque onde os talentos superiores não são apreciados com justiça e
+recompensados com a grande estimação que lhe é devida, nem podem produzir
+fecundos fructos na arte theatral, que fazem as delicias do homem de gosto fino
+e delicado das cidades mais opulentas da Europa, nem terem a esperança de vêr
+seus nomes inscriptos nos monumentos que os homens gratos lhes consagram. As
+artes não florecem senão quando são immediatamente protegidas e estimadas pelos
+soberanos; e quer seja poeta, quer seja actor,<span class="pagenum">[58]</span>
+se tem talentos distinctos, não merece a attenção e a estimação do seu
+principe, quem contribue para fazer a sua gloria mais brilhante? Os seculos de
+Augusto, de Leão X e dos Medicis de Florença, o de Luiz XIV em França não
+provam esta verdade? Não me detenho em amplificar estas minhas idéas com outras
+razões, porque não padece duvida que a memoria dos soberanos que se tem
+pronunciado protectores das bellas-artes vive ainda nos padrões que ellas lhe
+tem erigido, entretanto que a dos mais famosos conquistadores ficou confundida
+nos estragos que fizeram. Infelizmente os nossos soberanos portuguezes tem
+esquecido esta verdade, como muitas outras, e deixaram morrer Camões, que dá
+tanta gloria a Portugal, em um hospital. Desde esta desgraçada época tem sido
+os poetas n'este paiz tão pouco venturosos pela sua arte, que o nome de poeta
+só entre nós é synonymo de pobre e de miseravel. Que comedias, que tragedias
+boas podia pois haver em um tal paiz?</p>
+
+<p>Se não podemos competir com as nações que cultivam as bellas-artes n'este
+genero dramatico, menos ainda os actores dos nossos theatros podem rivalisar
+com os das outras nações que tem formado já um gosto apurado e exquisito
+n'aquella parte que se chama representação. Ella não é mais do que uma simples
+imitação da natureza, que é o primeiro principio<span
+class="pagenum">[59]</span> que deve seguir todo o bom actor. Separar-se d'elle
+por acanhamento ou por excesso, não acompanhar de gestos correspondentes as
+expressões, não saber desenvolver pelas attitudes os sentimentos que tem para
+declamar ou recitar, deixar-se transportar por estes sentimentos sem faltar á
+dignidade e á decencia que exige a personagem que representa, pronunciar com
+clareza e energia o que lhe compete dizer, e mostrar pela physionomia que o que
+diz vem do fundo da sua alma, sem estudo nem affectação, são as circumstancias
+principaes que formam um bom actor. Ora examinemos quaes dos nossos as sabem
+pôr em uso. Os grandes artistas desenvolvem os seus talentos estudando a
+natureza e seguindo os modelos que aprenderam a imital-a. Guido, Carrache,
+Albano devem a admiravel belleza dos seus quadros a este estudo singular de
+imitação; mas onde podem achar os nossos actores modelos, a quem possam imitar
+e talvez exceder? Não fazem estudo algum da natureza; ensaiam os seus papeis
+como simples obreiros, que tem uma empreitada a fazer e que hão de acabar seja
+como fôr; e n'esta parte o povo que compõe a platêa dos nossos theatros é o
+mais tolerante povo do universo, pois que soffre com a maior paciencia todos os
+actores bons, maus, medianos e incapazes de apparecerem. Por isso<span
+class="pagenum">[60]</span> nunca aspiram áquella superioridade, em que o bom
+gosto, dirigido por um discernimento perspicaz e por uma critica sã e
+judiciosa, faz consistir a gloria do grande talento. Molière, o primeiro
+restaurador da comedia, como já disse acima, foi tambem o primeiro actor da
+França. Conta-se d'elle que os papeis que representava recitava-os antes a uma
+criada que tinha, que decidia, como intelligente, da sua boa ou má
+representação, e como bom juiz corrigia e emendava os seus defeitos. Um dia
+Molière, para melhor se convencer da intelligencia d'esta sua criada,
+recitava-lhe um papel de um author estranho, que fazia uma grande differença
+d'aquelles que eram composição d'aquelle homem inimitavel; ella conheceu logo o
+engano, e voltando-se para o amo lhe disse: «Vós representaes as vossas
+comedias como um exellente actor; mas essa que ensaiaes nem é vossa, nem vos
+fará applaudir.» Eis aqui como a applicação, o estudo e o modo de estudar
+secunda os dons da natureza: ora qual dos nossos actores tem imitado a Molière?
+Qual d'elles tem sido capaz de apurar o seu talento, se o tem, por um modo tão
+novo e tão extraordinario?</p>
+
+<p>É difficil que um homem, que tem algum conhecimento de theatros, possa
+aturar a representação dos nossos comicos portuguezes, sempre affectada, sempre
+fóra do natural e<span class="pagenum">[61]</span> sempre exprimida em vozes
+altisonantes, e cujos dialogos acabam geralmente em um hiato desagradavel e
+musical, estylo que não é proprio de quem conversa, que é o que compete á
+comedia, a qual representa um facto, um caracter, uma intriga, que se explica
+por uma conversação natural e semelhante ás que se fazem nas sociedades. Se a
+este estylo declamatorio ajuntarmos o excesso com que os criados ou criadas que
+vem á scena desempenham os seus papeis em gracejos que divertem o publico e que
+pela maior parte são insipidos, e sem outro interesse mais que o da risota,
+acharemos que está entre nós tão atrazado o jogo da representação theatral, que
+os nossos actores em seguindo bem o ponto, que lhes indica o que hão de dizer,
+são proprios para todas as personagens, e por conseguinte bons para nenhuma.
+</p>
+
+<p>Lembra-me ha annos ir ao theatro da rua dos Condes assistir á representação
+da tragedia intitulada <em>A Vestal</em>, que traduzira em portuguez com
+elegancia o celebre Bocage. Esta peça tragica, susceptivel da mais brilhante
+representação pelo seu assumpto e pelos grandes interesses que n'ella se
+tratam, foi desgraçadamente tão mal representada, que pela parte que me toca
+não me fez a menor sensação. Quantas vezes disse commigo mesmo: «Ah!
+famoso<span class="pagenum">[61]</span> Talma<sup><a href="#fn1" id="mfn1"
+name="mfn1">[1]</a></sup> que estiveste em Londres muitos annos com o fim de
+reunires os talentos da arte theatral dos dous paizes, que os sabem tão bem
+apreciar! se tu aqui estivesses, como verias esta excellente peça despedaçada
+por semelhantes actores?» Em uma das scenas apparece o grande pontifice que
+deve fazer executar a lei imposta ás vestaes sacrilegas e criminosas; reconhece
+que sua filha é a delinquente accusada; que conflicto de grandes e violentos
+sentimentos da religião e da natureza não devem combater a alma de um pai, que
+sendo igualmente pontifice ou ha de faltar á observancia da lei, primeira
+obrigação do homem, ou ha de calcar os estimulos quasi invenciveis da natureza,
+sacrificando o seu proprio sangue á vindicta da lei? Que genio, que talentos,
+que energia de caracter não são precisos para desenvolver toda esta opposição
+de sentimentos que combatem o coração humano de uma e de outra parte? O pobre
+miseravel actor era um automato no meio do theatro, e sem duvida eu tive tanta
+afflicção de vêr a sua insufficiencia pessoal, como aborrecimento de vêr a
+indifferença com que o povo portuguez soffre semelhantes actores, a quem<span
+class="pagenum">[63]</span> convém mais propriamente uma enxada, do que a
+profissão de uma arte para a qual lhes faltam todos os requisitos. Esta peça
+me desenganou inteiramente da mediocridade dos nossos actores portuguezes e do
+estado miseravel em que estão os nossos theatros nacionaes, que tem a desgraça
+de verem estropeados nos seus proscenios as mais admiraveis producções do
+espirito humano.</p>
+
+<p>Tenho dado uma curta idéa do pouco que a poesia dramatica concorre n'esta
+parte para a gloria nacional, assim como do pouco que os nossos actores
+contribuem para fazer brilhar uma arte que os povos mais polidos amam com tanto
+excesso, porque n'ella acham uma dôce e agradavel distracção aos seus negocios
+civis, quando ella é cultivada principalmente por aquelles talentos sublimes
+que ennobrecem tanto as nações que os viu nascer e creou, como a mesma arte que
+souberam aperfeiçoar.</p>
+
+<p>Os limites de uma simples carta não me permittiram que eu tratasse este
+assumpto com aquella extensão que elle requeria para desilludir os muitos
+ignorantes que se persuadem da boa direcção dos nossos theatros e dos grandes
+talentos dos nossos actores. Contentei-me unicamente com tocar este ponto pela
+superficie conforme convinha a uma simples carta, em que a casualidade quiz que
+o fizesse entrar, a fim de dar a conhecer o<span class="pagenum">[64]</span>
+nosso grande atrazamento n'esta parte; e creio que algumas das minhas
+observações não serão frivolas na opinião d'aquelles que tem frequentado os
+theatros estrangeiros, em que as peças que se representam n'elles concorrem tão
+poderosamente para a educação publica se ir aperfeiçoando cada vez mais, o que,
+a meu vêr, é o principal objecto da instituição dos theatros.</p>
+
+<p>O povo de Lisboa não gosta com preferencia senão de farças e entremezes, por
+que só quer rir e divertir-se com as baboseiras que se dizem n'elles; mas é
+porque não conhece ainda a grande utilidade que poderia tirar de uma escóla de
+costumes e de maneiras que lhe quadrariam melhor que as muitas chalaças que
+ouvem, que lhes pervertem toda a inclinação que poderiam ter para aprenderem a
+ser polidos, decentes, modestos e virtuosos cidadãos&mdash;o que as peças
+theatraes que estão vendo representar, todos os dias, lhes não ensinam.</p>
+
+<p>Adeus, meu bom amigo; perdôe esta matraca que lhe dou em favor do espirito
+com que a escrevi, que é o do bem publico, que se estende tambem a este ramo,
+que produz os fructos delicados do bom gosto, o qual se adquire nos theatros, e
+d'aquella urbanidade que não é filha da imitação; mas de uma intelligencia
+dirigida pela razão&mdash;tão util ao homem<span class="pagenum">[65]</span> na
+sua condição particular, como gloriosa para a nação a que elle pertence.</p>
+
+<p>Sou sinceramente</p>
+
+<p style="text-align: right;">amigo fiel e affectivo</p>
+
+<p style="text-align: right;"><em>M.</em></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a href="#mfn1" id="fn1" name="fn1">[1]</a></sup> Talma, primeiro actor
+tragico do theatro de Paris.</p>
+</div>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap05" name="cap05">BIBLIOGRAPHIA</a></h1>
+
+<p class="sc" style="text-align:center;">(Padre Senna Freitas&mdash;Cunha
+Vianna&mdash;Monsenhor Joaquim Pinto de Campos)</p>
+
+<p><em>Padre Senna Freitas.</em> <span class="sc">No presbiterio e no
+templo</span>, vol. I, <em>Livraria Internacional de E. Chardron. Porto.
+1874.</em>&mdash;Este primeiro tomo comprehende dezesete artigos que se
+rivalisam na excellencia da doutrina e da linguagem. Alguns, sem destoar da
+seriedade do livro, movem o leitor a um sorriso complacente. N'este genero,
+estrema-se o intitulado <em>Asphyxia... pela imprensa</em>. Tem resaltos de
+graça e nervo epigrammatico. Faz lembrar as paginas felizes de Luis Veuillot
+nos <em>Odeurs de Paris</em>. «Livros, opusculos, livrorios, livrecos,<span
+class="pagenum">[66]</span> nacionaes, nacionalisados, <em>in folio</em>,
+<em>in quarto</em>, <em>in octavo</em>, em dezeseis; obesos, normaes, anemicos,
+succulentos, indigestos, aquosos; edicionados aos mil, aos dous, aos tres mil,
+de mais de dez a menos de dous tostões; impressos a capricho, moldurados,
+coloridos, iriados, rendilhados, casquilhos.» (Pag. 215 e 216).</p>
+
+<p>Recenseia d'esta arte o snr. padre Senna Freitas as producções asphyxiosas;
+mas não se deprehenda que elle, o illustrado escriptor respiraria melhor
+oxygeneo em regiões onde escasseassem prelos e authores. O que o suffoca é o
+gaz acido carbonico das inepcias em dicção, em philosophia, e em moral. Contra
+as da linguagem protesta o snr. Senna Freitas, abrasado nas risonhas coleras do
+padre Francisco Manoel do Nascimento: «Pois ha nada comparavel em elegancia
+castiça de terminologia áquellas paginas e áquellas columnas arrebicadas de
+gallicismos, e anglicismos tão expressivos e engraçados que deixam a nossa
+lingua corrida? Travemos, por exemplo, d'uma gazeta (salvas, bem entendido, as
+que fazem honra ao jornalismo). A pouco fundo, já lá apparecem a boiar os
+«meetings», os «comités», as recriminações do articulista contra as «chicanas»
+parlamentares, e as «coalições» ministeriaes, e o estylo por demais «descosido»
+em que se exprimiu o deputado fulano de tal, etc... Passemos á revista
+interna<span class="pagenum">[67]</span> e noticiosa&mdash;prosegue o analysta
+bem humorado.&mdash;Acaba de dar-se um successo tristemente «remarcavel» que o
+noticiador conta «em detalhe» aos leitores, «tirando d'elle partido» para fazer
+uma discreta consideração moral. Em seguida, dá um leve «golpe de vista» pelo
+«high-life» da terra, e analysa o ultimo livro publicado por... que é na sua
+apreciação um verdadeiro «chefe d'obra.» (Pag. 219).</p>
+
+<p>E assim, com razão e discreto sal, o esclarecido moço, que tão digna e
+exemplarmente allia o viçor da idade ao respeito do habito clerical, vai
+desfiando o ruim tecido dos maus livros, quer na fórma, quer na substancia.</p>
+
+<p>Culpa os romances nimiamente realistas de perversores dos bons costumes: «Ha
+o romance serio, instructivo, philosophico, moral, espiritualista, da tempera
+do <em>Promessi Sposi</em> de Manzoni, que nos transporta a uma atmosphera
+salubre, onde se respira um ar impregnado de oxygeneo; que photographa todo o
+lado bello, puro e grande da humanidade. E ha o romance enervante, declinação
+insipida e interminavel d'<em>elles</em> e d'<em>ellas</em>; o romance bohemio
+ou cigano, composto pelo mancebo apaixonado, que come no <em>restaurante</em>
+de terceira classe, e morre etico aos vinte e cinco annos; e o romance realista
+ou positivista, ainda peor que o precedente, sem ideal algum; condensado de
+todos os miasmas da lama, de todas as corrupções do esphacelo, e de todos os
+sarcasmos e negações do atheismo, sem outra esphera por conseguinte mais que a
+materia pura, só por uma ironia de mau gosto chamado <em>a alma nova</em>.»
+(Pag. 227 e 228).</p>
+
+<p>Acato a opinião do snr. Senna Freitas, quanto ás novellas descriptivas da
+vida contemporanea; mas desliso da severidade do seu juizo. Creio que assim
+como os bons e moralissimos romances não morigeram, tambem os immoraes não
+desmoralisam. Não são os romances que formam os costumes bons e maus; são os
+costumes que fazem os romances. E casos ha em que as novellas saturadas de
+virtude são inverosimeis e puramente phantasticas. Eu já escrevi algumas,
+nomeadamente as <em>Lagrimas abençoadas</em> e as <em>Tres irmãs</em>. Ninguem
+acreditou aquillo; e toda a gente aceitou como copias do natural <em>Os
+brilhantes do brazileiro</em> e <em>A mulher fatal</em>&mdash;dous livros
+miasmaticos, que só podem lêr-se com o interior do nariz plantado de alfadega e
+mangericão. Quando o marquez d'Urfé escrevia as suas novellas pastoraes,
+embrincadas de polidissima cortezia nos amores, vivia-se em França, pouco mais
+ou menos, como nos romances de Soulié, de Kock e de Feydeau. Ha de tudo. Ha
+muitissima gente honesta que lê a <em>Lelia</em> de Sand, e muitissima gente de
+ruins manhas que lê a<span class="pagenum">[69]</span> <em>Fabiola</em> do
+cardeal Wisemann. Sem embargo estes reparos não desluzem a efficacia das
+considerações do snr. Senna Freitas.</p>
+
+<p>Da summa do seu livro direi, com sincera admiração e devida justiça, que se
+revela ahi um excellente escriptor, um padre illustradissimo, um homem de bem,
+um argumentador convicto e em grande parte irrefutavel. D'este modo ajuiza o
+author da sua obra: <em>É um livro christão que não fará ruim companhia junto
+ao lar das boas familias: nada mais.</em></p>
+
+<p>É muito mais; porque afervora as crenças tibias, alvoroça as almas
+marasmadas na indifferença religiosa, descondensa a escuridade que fez noite
+algida nos corações abatidos pela desgraça. O snr. Senna Freitas nobilita o
+clero portuguez e honra as letras patrias. Se não fosse a palavra
+<em>religião</em>, quem explicaria tão obscura vida em tão alumiado espirito?
+</p>
+
+<p>Congratulo-me com o meu benemerito amigo Ernesto Chardron, quando vejo entre
+as edições da sua copiosa livaria a estreia gloriosa do snr. Senna Freitas.</p>
+<hr style="width: 20%;">
+
+<p><em>Cunha Vianna.</em> <span class="sc">Relampagos</span>, com um prologo
+por <em>João Penha</em>. <em>Livraria Internacional. Porto, 1874.</em>&mdash;O
+author está na primeira florecencia<span class="pagenum">[70]</span> dos annos.
+Reçumbra-lhe do rosto a branda tristeza dos que soffrem com o encontro da
+incerteza nos umbraes da vida. Nuta entre os parceis, quando as vagas descahem,
+e lhe abrem um vacuo onde as idealisações lhe não dão pé, nem o positivismo
+ancora. É um dos muitos, cuja salvação depende de pouco: a experiencia da vida,
+o entrar na inanidade das cousas, o acordar com a cabeça ferida na corrente que
+fecha a galé dos obreiros do ideal&mdash;especie de somnambulos que fallam
+comsigo proprios, como João Penha, o redactor do <em>Prologo</em>.</p>
+
+<p>Este, ainda assim, tem momentos de apégar no commum da vida. O seu fechar
+dos sonetos conhecidos e decorados é sempre a zombaria das altas cousas, dos
+raptos á divindade que se esconde, e aos mysterios do céo que atira estrellas a
+milhões sobre os seus interrogadores. O paio de Lamego e o presunto de Melgaço
+raro deixam de testemunhar que o espirito de João Penha é escorreito, e que a
+poesia, quando lhe apparece, como as revoadas das andorinhas, passa, não
+deixando de si no azul um vestigio de saudade.</p>
+
+<p>O snr. Cunha Vianna está ainda entre os poetas de consciencia e inspiração.
+N'estes seus poemas não ha os desmandos e dislates que individualisam a poesia
+ultimamente inventada. É muito moço, e a sua musa parece<span
+class="pagenum">[71]</span> filha da que floreceu em Portugal ha trinta annos.
+Não se dôa por isso o esperançoso escriptor. Do bom senso dos seus versos ha de
+derivar-se o bom senso da sua prosa. Quando as flôres fenecerem, e os fructos
+se desabotoarem, verá quanto proveitoso é ter sido, a um tempo, o interprete do
+vago da alma e o aprendiz do positivo dos bons diccionarios.</p>
+
+<p>Entre as suas poesias escolho um fragmento da <em>Armada</em> para que o
+leitor se convença de que lhe não inculco no snr. Cunha Vianna um arrolador de
+podridões, de anemias, de chloroses, e de tanta outra moxinifada com que
+intentam fazer-nos da imaginação hospital.</p>
+
+<p>N'este poema, o oceano interroga Portugal algemado na grilheta do
+despotismo. Veleja ao longe a esquadra da Terceira que aprôa ao Mindelo. O
+grande Atlante pergunta á armada o seu destino:</p>
+
+<blockquote style="font-size: 90%;">
+ &mdash;Somos a Liberdade!<br>
+ a esplendida epopéa!<br>
+ a voz da humanidade!<br>
+ o sol da Nova-Idéa!<br>
+ Somos, oh monstro aquatico,<br>
+ o verbo democratico,<br>
+ tão forte como Deus!<br>
+ mais rijo que a tormenta!<br>
+ Astros, descei dos ceus!<br>
+ Nuvens, descei do espaço!<br>
+ vinde beijar o traço<br>
+ das nossas naus possantes!<span class="pagenum">[72]</span><br>
+ Nós somos os gigantes,<br>
+ os Cyclopes modernos:<br>
+ vimos livrar os mundos<br>
+ de horrificos infernos.<br>
+ Vimos fazer a guerra,<br>
+ bradar a Torquemada:<br>
+ &mdash;pódes fugir da terra,<br>
+ que o teu imperio é nada!<br>
+ Somos a Liberdade!<br>
+ a esplendida epopéa!<br>
+ a voz da humanidade!<br>
+ a luz da Nova-Idéa!<br>
+ <br>
+ «&mdash;Eu vos saúdo, ministros<br>
+ d'uma idade d'esplendores!<br>
+ Expulsai corvos sinistros<br>
+ d'essa terra de condores!<br>
+ &mdash;aves d'arrojo inaudito,<br>
+ que muitas vezes s'elevam<br>
+ ás solidões do infinito!<br>
+ Que lindo paiz! é vêl-o:<br>
+ por toda a parte boninas,<br>
+ e, mais além, do Mindelo<br>
+ as vicejantes campinas!<br>
+ E mais ao longe a cidade,<br>
+ que reflora ao Douro a estancia,<br>
+ a Ostende da liberdade,<br>
+ nova rival de Numancia!<br>
+ &mdash;o Capitolio altaneiro<br>
+ d'um povo livre e guerreiro,<br>
+ que, n'um heroismo ardente,<br>
+ unico, bello, e assombroso,<br>
+ roubou mais d'um continente<br>
+ ao meu reino tormentoso!<br>
+ Heis de vencer, porque a historia,<br>
+ a virgem que vos inspira,<br>
+ já vos prepara na lyra<span class="pagenum">[73]</span><br>
+ os hosannas da victoria!<br>
+ Vencerá ao retrocesso<br>
+ quem este abysmo venceu:<br>
+ tendes por guia o progresso&mdash;<br>
+ d'esta idade o Prometheu!»<br>
+ <br>
+         *        *        *<br>
+ <br>
+ Tempos depois a luz da nova aurora<br>
+ illuminava os montes e a cidade!<br>
+ A tyrannia, aniquilado o sceptro,<br>
+         como livido espectro<br>
+ lá transpunha os umbraes da soledade;<br>
+ e um povo inteiro, a quem a paz inflora,<br>
+         salvava estrepitoso<br>
+         o brilho radioso<br>
+         da augusta Liberdade! </blockquote>
+
+<p>Eis aqui um poeta.</p>
+<hr style="width: 20%;">
+
+<p><span class="sc">Jerusalem</span>, por <em>Joaquim Pinto de Campos</em>,
+etc. <em>Lisboa, 1874.</em>&mdash;Precede este precioso livro uma carta do snr.
+visconde de Castilho. Ahi se annunciam primores, quanto ao modo como a obra é
+escripta, e se dá de suspeito o snr. visconde quanto á substancia, ao contexto
+da idéa. «Creei-me semi-pagão entre pagãos millenarios do melhor engenho,
+sociedade minha ainda hoje», diz o grande poeta,<span
+class="pagenum">[74]</span> em quem reviveram as almas de Anacreonte e Ovidio.
+</p>
+
+<p>Comprehende-se este retrocesso no rasto esplendoroso que nos leva até casa
+dos Mecenas; mas, se ahi nos convida Petronio para uma cêa de Trimalcião,
+dá-nos vontade de fugir para uma das ágapes lôbregas em que o bocado de pão se
+ungia de lagrimas.</p>
+
+<p>Magestade, estrondo, alegrias, febris prazeres e infernaes delicias tudo
+teriam de seu as musas pagãs com que deleitar a inspiração e o officio dos seus
+dilectos; mas poesia, a sincera, a ideal, a que aformosêa a vida dentro dos
+abysmos das suas quedas, essa não nos vem herdada de Horacio nem de Catullo:
+deu-nol-a o christianismo.</p>
+
+<p>Aos muito affeiçoados a reliquias do velho Oriente suscita o monsenhor Pinto
+de Campos as reminiscencias dos cyclos anteriores á sagração do local em que
+passaram os lances da divina missão de Jesus Christo. A cada passo, resaltam
+ahi recordações da Roma imperial, com todos os accessorios que lhe lustraram a
+prosperidade como contraste da voragem que de um hausto a sorveu para sempre
+apagada.</p>
+
+<p>O livro é tão de molde para todos os paladares, cinge-se tão caroavel ao
+deleite do curioso, do sabio e do devoto, que a ninguem será estranho o prazer
+da leitura. Em duas<span class="pagenum">[75]</span> palavras qualifica um
+doutissimo critico fluminense o livro do snr. Pinto Campos: <em>para mim tenho
+que a opinião classificará esta obra entre as de mór vulto que este seculo ha
+visto em lingua portugueza.</em> (Reflexões de um solitario relativas ao livro
+<em>Jerusalem</em>, pag. 3).</p>
+
+<p>Evidentemente, o snr. Pinto de de Campos conhece e exercita as menos communs
+bellezas da nossa lingua. Já o haviamos admirado nas fluencias descuidadas da
+conversação, antes de o reconhecermos no purismo d'este livro perfeitamente
+executado. O seu estylo tem a sobriedade, a parcimonia de enfeites que se
+adquirem quando a sã e alumiada razão os escolhe. As pompas e os recamos da
+dicção occorrem-lhe a ponto com rigorosa propriedade. A unção religiosa dos
+quadros nunca é prejudicada pelos estofos da rhetorica. As figuras cedem a sua
+luz ficticia ao brilho permanente da verdade. A relanços descriptivos da Terra
+Santa, resôa ás vezes o dizer chão e affavel de fr. Pantaleão de Aveiro,
+alternando-se com os raptos vehementes da piedade de Chateaubriand e do
+apaixonado lyrismo de Lamartine; mas tudo isto tão nosso, tão portuguez, tão
+condimentado do idioma de Sousa e de Bernardes, que não póde ser senão de
+monsenhor Pinto de Campos.</p>
+
+<p>O leitor, que lê os telegrammas vindos do Brazil, já viu que lá se ergueu
+uma voz calumniadora<span class="pagenum">[76]</span> acoimando de plagiario o
+author da <em>Jerusalem</em>. Sem interposição de tempo, sahiu pela honra e
+lealdade do calumniado escriptor um dos maiores sabios que hoje se contam
+viventissimos na rareada fileira dos sinceros homens de letras em Portugal.
+Parece-nos ter entrevisto no <em>Solitario</em>, que tão egregiamente repelle
+os detrahidores de Pinto de Campos, o conselheiro José Feliciano de Castilho, o
+mais poderoso talento alliançado á mais tenaz memoria de que temos noticia, e,
+mais que noticia, lição aturada e incansavel.</p>
+
+<p>Eis aqui a repulsão da aleivosia, que trasladamos textualmente:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Li uns artigos em que, confrontando-se trechos da <em>Jerusalem</em> com
+outros semelhantes das obras de Pozada Arango e de Perinaldo, se qualificam
+essas transcripções de <em>plagiatos escandalosos, furto na mão, bocca na
+botija, acto proprio para fazer subir o pejo ás faces do culpado, motivo de
+indignação</em>, etc., etc. Assim enfeixadas as injurias, não se dirá que as
+attenuo; e quanto ao facto da reproducção d'esses e outros passos no soberbo
+livro, começo declarando que elle é real, licito; publicado, antes de o ser
+pelos censores, pelo proprio escriptor; e que, nas circumstancias d'esta
+polemica, pouca prova de lealdade de quem occulta essa declaração com que o
+author de antemão<span class="pagenum">[77]</span> desmorona todo esse castello
+de cartas. Ah! isso não convinha aos sinceros Aristarchos: esmerilharam tudo,
+mas fecharam olhos nada menos que sobre o peristilo do monumento, ao qual
+apenas fazem uma referencia vaga, passando como cão por vinha vindimada.</p>
+
+<p>«O author podia, como grande numero dos seus predecessores em um assumpto
+d'esta ordem, reproduzir aquillo que bem entrasse no plano da sua obra, em
+materia de descripções, de averiguações e narrações dos successos, sem citar as
+fontes. Pois acaso inventa-se a religião? Inventa-se a historia? Inventa-se a
+natureza? Inventam-se factos? Sempre que em tudo isso se toca, é evidente que
+se repete o que já se ha dito; e todas as vezes que essas descripções estão bem
+feitas, que utilidade ha em alteral-as? Nada haveria mais facil que dar sempre
+as mesmas idéas por diversas palavras, mas n'isso então é que se daria
+manifesta má fé, porque transpareceria a intenção culposa, o que nunca póde
+imputar-se a quem, uma ou outra vez, traduz litteralmente de livros que andam
+em todas as mãos.</p>
+
+<p>«Não desenvolverei este ponto em these, como tão facil seria; limitar-me-hei
+a demonstrar a candura com que monsenhor Pinto de Campos, logo ao romper o seu
+livro, nos denunciou... isso mesmo que hoje se lhe assaca? Completa elle o seu
+prologo (pag. XVI e XVII),<span class="pagenum">[78]</span> revelando a quem
+vai lêr, que transcreveu largos trechos de escriptores antigos e modernos;
+enumera os principaes d'esses escriptores; affirma, com inexcedivel modestia,
+que só a ess'outros (o que é descabido) deve ser restituida qualquer gloriola,
+que das suas paginas se possa colher; que se embrenhou na floresta d'esses
+authores; que das flôres d'elles sugou o mel. Transcreverei (com as almejadas
+aspas):</p>
+
+<p>«Na averiguação e narração dos successos, tomei por norma <em>seguir os
+varões</em> doutissimos e diligentissimos, <em>citando lealmente suas palavras
+ás vezes, muitas outras suas sentenças</em>; assim como é certo que lhes
+addicionei outras muitas, que pelo proprio estudo alcancei... <em>Segui</em> de
+preferencia a Sagrada Escriptura, Flavio José, S. Jeronymo, e entre os
+proporcionalmente modernos, Quaresmio... Em muitos outros, antigos e modernos,
+<em>procurei flôres que em meu ramilhete ennastrasse, e a todos os quaes fiquei
+mais ou menos devedor; se n'este rescende alguma fragrancia, a elles e não a
+mim se deve</em>. Sem ordem nem de merito nem de idades, aqui apontarei
+Adricomio, Biagio Terzi, Calmei, Mariano Morone de Maléo, Chateaubriand,
+Lamartine, conde Marcellus, Valiani, Geramb, Poujoulat, <span
+class="sc">Michaud</span>, fr. Pantaleão d'Aveiro; <span
+class="sc">Mislin</span>, fr. Lavinio, Renazzi, Gaume, <span class="sc">Pozada
+Arango</span>, Escrich,<span class="pagenum">[79]</span> Munk, Dupin, De
+Saulcy, Saint Aignan; e particularmente os padres Dupuis e <span
+class="sc">Perinaldo</span> me foram de <span class="sc">inexcedivel
+auxilio</span>... Não se destina esta enumeração a ostentar pompa de erudição;
+serve, ao contrario, para <em>restituir a outros</em> qualquer gloriola que de
+entre estas paginas podesse ser colhida. Solícita abelha, embrenhei-me n'essa
+vasta floresta e sem estragar as flôres, <em>suguei-lhes o mel</em>; e se em
+alguma havia veneno, lá o deixei.»</p>
+
+<p>«O que ahi fica (idéa que mais de uma vez apparece reiterada no corpo da
+obra), constitue um luxo de precauções, a fim de que nenhum mal intencionado
+ousasse attribuir-lhe a intenção de locupletar-se com a jactura alheia. «Eu
+segui varões doutissimos», «suas palavras ás vezes, muitas outras suas
+sentenças.» «Em muitos authores procurei flôres que em meu ramilhete
+ennastrasse, e a todos fiquei mais ou menos devedor.» «Apontarei entre estes
+Pozada Arango, Michaud, Milsin.» «Particularmente o padre Perinaldo me foi de
+inexcedivel auxilio.» «Se n'este ramilhete rescende alguma fragrancia, a elles,
+e não a mim se deve.» «Seja a elles restituida qualquer gloriola que d'entre
+estas paginas podesse ser colhida.» «Na vasta floresta dos authores citados,
+suguei o mel de suas flôres. »</p>
+
+<p>«Santo Deus! É n'estas circumstancias que se imputa a um escriptor a
+perpetração de<span class="pagenum">[80]</span> (nada menos!) <em>plagios
+escandalosos</em>! O que ahi fica, se pecca é pela repetição, até á saciedade,
+do proprio facto com que os inimigos hoje o criminam. Foi innocentemente o
+monsenhor quem deu essas armas contra si. Leram no prefacio os seus detractores
+que elle declarava haver transcripto numerosos passos de Michaud, Mislin,
+Pozada Arango; e que Perinaldo principalmente lhe havia sido de inexcedivel
+auxilio. O processo da malevolencia tornava-se, desde então, singelissimo.</p>
+
+<p>«Ah! elle diz que ha um escriptor chamado Perinaldo, que lhe foi de
+inexcedivel auxilio? que ha um Pozada Arango, etc., de quem extrahiu as
+proprias palavras, ás vezes, ou sentenças? que para este ramilhete colheu
+d'esses livros muitas flôres, e as mais preciosas? Ora, copiosas flôres,
+colhidas de livros, não podem ser rosas, nem malmequeres, são forçosamente
+paginas. Toca a procurar esses livros, cuja existencia elle nos patentêa; a
+pesquizar ahi os trechos do que nos revela ter-se apoderado; e depois,
+lançando-lhe em rosto o que elle mesmo nos denunciou, tripudiaremos, e subindo
+ao capitolio, iremos render graças aos deuses!»</p>
+
+<p>«Em tal procedimento, a lealdade pede meças á justiça.»</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Delida a macula com que a malevolencia,<span class="pagenum">[81]</span>
+aborto de odios politicos, tentou denegrir a mais notavel obra modernamente
+escripta com os primores da lingua portugueza por um brazileiro&mdash;que entre
+os seus e os nossos a escreve como os distinctissimos&mdash;não temos senão a
+louvar o grande alento que tirou a salvo de tropeços esta obra perduravel com
+que monsenhor Pinto de Campos brindou os seus conterraneos e os da patria de
+seus avós. Já conheciamos e reverenciavamos o orador religioso e parlamentar.
+Agora lhe recebemos de sua mão um livro que vamos reler e collocar entre os que
+nos ensinaram a escrever.<span class="pagenum">[82]</span></p>
+<hr>
+
+<h1><a id="cap06" name="cap06">QUE SEGREDOS SÃO ESTES?...</a></h1>
+
+<blockquote style="font-size: 80%; margin-left: 30%;">
+ Fosse terror ou sentimento fosse<br>
+ De mais occulta origem...<br>
+
+
+ <p style="text-align:right;"><span class="sc">Garrett.</span></p>
+
+ <p><br>
+ A pallida doença lhe tocava<br>
+ Com fria mão o corpo enfraquecido.</p>
+
+ <p style="text-align:right;">          <span class="sc">Camões.</span><br>
+ </p>
+
+ <p>&nbsp;</p>
+</blockquote>
+
+<h2>I</h2>
+
+<p>&mdash;Fui hoje vêr á casa da saude o Duarte Valdez.</p>
+
+<p>&mdash;O nosso companheiro de casa em Coimbra?</p>
+
+<p>&mdash;Justamente.</p>
+
+<p>&mdash;Que tem elle?</p>
+
+<p>&mdash;Os dias contados.</p>
+
+<p>&mdash;Tisico?</p>
+
+<p>&mdash;Perguntei ao doutor Arantes que doença<span
+class="pagenum">[83]</span> era a do Valdez. Fez com os hombros um tregeito
+significativo de que a medicina nem sempre tem alçada para devassar das doenças
+que matam, e denominal-as com terminações inflammatoriamente gregas. Quando,
+porém, é a alma que mata o corpo, os medicos lavam d'ahi as mãos como o
+governador da Judêa.</p>
+
+<p>Tive este dialogo, em Lisboa, ha hoje doze annos, e, seguidamente, fui á
+casa da saude no largo do Monteiro.</p>
+
+<p>Quando, na ida, atravessava o jardim da Estrella, sentei-me a encadear as
+lembranças vagas e desatadas que eu tinha de Duarte Valdez.</p>
+
+<p>Tres épocas me occorreram.</p>
+
+<p>Primeira, a da nossa jovial convivencia em um casebre da Couraça dos
+Apostolos, em Coimbra, no anno 1845. Segunda, outra menos modesta e menos
+alegre camaradagem de quarto, no hotel Francez, do Porto, em 1851.</p>
+
+<p>Antes de mencionar a terceira época, urge saber-se que nenhum de nós se
+formára. Elle contentára-se com um diploma de insufficiencia em rhetorica, e eu
+com a prenda não commum de arpejar tres varios fados na viola. Não
+rivalisavamos em sciencia. Formavamos da nossa reciproca ignorancia um conceito
+honesto. Não queriamos implicar com sabios, nem para os invejar nem para os
+detrahir.<span class="pagenum">[84]</span></p>
+
+<p>A terceira época ou terceiro encontro foi em 1856. Vi-o em S. João da Foz, e
+ouvi-lhe revelar mysteriosamente que estava emboscado em uns arvoredos, entre
+Lordello e Pastelleiro, com uma extremosa e estremecida menina, fugida aos
+paes. Não me recordo os pormenores d'estes amores que elle me disse serem os
+primeiros e ultimos. Tenho, porém, a certeza de que me ri d'uns <em>amores
+ultimos</em>, aos vinte e cinco annos de idade.</p>
+
+<p>N'aquelle tempo a fuga de uma menina qualquer não era successo por tanta
+maneira horrido, que eu devesse desmaiar na presença do meu acelerado amigo. Eu
+já contava então uns decrepitos vinte e nove annos, e conhecia varios
+acontecimentos impudicos, por exemplo, aquelle da D. Hermenigilda d'Amarante,
+que eu exhibi ás lagrimas do publico sensivel nas <em>Scenas da Foz</em>.
+Aquella especie de pellicula carmezim que assetina a epiderme do rosto, e se
+chama <em>pudicicia</em> nos droguistas da moral, tinham-m'a delido as aguas
+lustraes da nossa civilisação pagã, para o que tambem muito contribuiram as
+reuniões semanaes da Philarmonica, na rua das Hortas, onde os rabecões entravam
+cheios de cupidos e sahiam cheios de suspiros. Muitas senhoras portuenses, que
+hoje cedem a primazia da ternura ás filhas, viram n'aquellas salas da
+Philarmonica os anjos com quem se maridaram. Os annuncios<span
+class="pagenum">[85]</span> das festas lyricas, enviados dos corações aos
+corações, rezavam assim: <em>Sabbado, ás 7 da noite, musica de Mozart, e Laços
+de Hymemeu</em>. Tudo antigo e bom.</p>
+
+<p>Isto veio a proposito de eu não ter uma congestão de pudor, quando Duarte
+Valdez me segredou que se embrenhára nas selvas rumorosas do Pastelleiro com
+uma menina perdida de amor, e tão cega de alma que já não via na imaginação,
+sequer, as lagrimas da mãi, e o mortal abatimento do pai que a amaldiçoava.</p>
+
+<h2>II</h2>
+
+<p>O enfermeiro-mór da casa da saude conduziu-me ao quarto de Duarte. Com
+certeza, se eu o encontrasse desprevenidamente, não o conheceria. O espasmo dos
+olhos seria bastante a desfigurar-lhe as outras feições, quasi sumidas na
+desgrenhada cabelleira e nas barbas. Immobilisava-lhe o semblante a sinistra
+quietação da demencia contemplativa.</p>
+
+<p>Tambem elle me não reconheceu a mim, sem que eu lhe dissesse o meu nome.
+Fitava-me com repulsão, como se a presença de um<span
+class="pagenum">[86]</span> desconhecido o molestasse fortemente; porém, depois
+que eu me nomeei, sahiu do torpor, levantou-se de golpe, e abraçou-me com
+transporte.</p>
+
+<p>&mdash;Que tens tu, Duarte?... Estavas aqui, e não me participavas?</p>
+
+<p>&mdash;Eu não sabia que estavas em Lisboa, nem tinha a vaidade de suppôr que
+ainda me conhecesses. Desde que te fallei na Foz, em 1856, nunca mais nos
+encontramos nem escrevemos.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade; mas nem por isso me eram estranhos os principaes passos da
+tua vida. Soube que casaste...</p>
+
+<p>&mdash;Sim... casei...</p>
+
+<p>&mdash;Com aquella menina que então... estava comtigo?</p>
+
+<p>&mdash;Não...&mdash;respondeu Duarte com assombrado aspecto, e um sacudir de
+cabeça indicativos de azedume por tal pergunta.</p>
+
+<p>Hesitei, á vista de tão subita mudança, se devia proseguir em tal
+interrogatorio. Foi elle quem interrompeu o silencio, repetindo:</p>
+
+<p>&mdash;Não, não casei com essa...&mdash;e acrescentou, pondo-me no hombro a
+mão tremula&mdash;casei com outra... que já morreu...</p>
+
+<p>&mdash;Morreu?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, morreram ambas; matei-as eu...</p>
+
+<p>E, erguendo-se, travou-me do braço, levou-me comsigo para a janella, que
+abria sobre um<span class="pagenum">[87]</span> jardim, alongou a vista na
+direcção da cupula do convento de Jesus, fez um gesto com a mão direita
+apontando para o céo, e quiz dizer umas palavras que, abafadas pelos gemidos,
+pareciam rever-lhe nos olhos em lagrimas copiosas.</p>
+
+<p>E eu, que poderia imaginar agora phrases muito apropositadas á situação do
+meu amigo, não as invento, porque não lh'as disse então.</p>
+
+<p>E quem seria mais verboso que eu, em lance tão desusado? Se elle, com
+effeito, havia matado as duas mulheres, eu, na verdade, não devia ensaiar
+maneiras de o consolar, dizendo-lhe que, se as matou, fizera muito bem.
+Figurou-se-me que Duarte fallára figuradamente. Porque ha muitos sujeitos,
+ainda mal, que vivem penalisados com remorsos de ter matado certas senhoras,
+sem ao menos admittirem que os medicos collaborassem com elles. Ora eu que
+reputára, n'outro tempo, aquelle Duarte Valdez tanto ou quê desarranjado pelas
+novellas, attribui ao seu romanticismo a parte odiosa no assassinio das duas
+senhoras.</p>
+
+<p>Passados alguns segundos, fiz-lhe esta vulgarissima pergunta:</p>
+
+<p>&mdash;Como as mataste tu?</p>
+
+<p>&mdash;Despedaçando-as uma contra a outra.</p>
+
+<p>Póde ser que o leitor esteja sorrindo; saiba, porém, que o tremor d'aquellas
+palavras vibrava tanto do seio do afflicto moço que uns<span
+class="pagenum">[88]</span> calefrios me correram a espinha, e o turvamento das
+lagrimas me embaciou a vista. Situações analogas terá experimentado o leitor no
+theatro. Duas palavras, em uma ficção dramatica, exprimidas pelo actor que
+pintou os vincos da desgraça no rosto com fino pó de carvão, obrigam ás
+lagrimas pessoas que não chorariam, se a desgraça fosse com ellas.</p>
+
+<p>&mdash;Chora, chora!&mdash;me disse elle, com vehemente
+exaltação.&mdash;Preciso que me chorem, porque... eu morrerei, adorando as duas
+mulheres que matei... e ninguem me ha de chorar.</p>
+
+<p>&mdash;Pódes tu contar-me a tua historia?&mdash;perguntei eu.</p>
+
+<p>&mdash;Posso... quero contar-t'a; mas receio que m'a não creias... A minha
+familia, e os medicos da provincia dizem que eu me deixo matar pela
+superstição, indigna da minha intelligencia... É um phantasma que me mata,
+dizem elles... Ah! se o vissem! se eu te podesse contar...</p>
+
+<p>&mdash;Mas olha, Duarte, conta o que poderes... Eu hei de comprehender das
+tuas dôres alguma cousa mais que o vulgar dos homens. Até as superstições, se
+as tens, eu t'as entenderei; porque ha infortunios que não podem entender-se,
+sem a intervenção de alguma cousa sobrehumana.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, vou contar-te a minha desastrada vida... Aquella infeliz
+menina que esteve<span class="pagenum">[89]</span> na Foz, ha dez
+annos&mdash;começou Duarte com pausadas intercadencias&mdash;seria a minha
+bemaventurança, se eu não viesse a este mundo com a predestinação dos reprobos.
+Meu pai, desde que eu a tirei da casa paterna, ganhou-me entranhado odio; não
+por causa da culpa; mas com receio que eu remediasse a culpa com o casamento. O
+seu primeiro acto de vingança foi dar a casa a meu irmão, e reduzir-me a um
+patrimonio tão escasso que não chegaria ás minhas despezas de dous annos. Maria
+do Resgate era mais pobre que eu. Não desisti ainda assim de casar com ella.
+Pedi um emprego com a eloquencia da virtude desgraçada, já quando a minha
+subsistencia corria por conta dos paes de Maria. Estava eu em vespera de ser
+despachado amanuense do governo civil de Bragança, quando meu pai conseguiu
+inutilisar os esforços humilhantes que eu fizera para adquirir tão mesquinho
+emprego. Fui ajoelhar aos pés de meu pai: estava ao pé de mim, para me defender
+dos primeiros impetos da ira d'elle, minha mãi. Eu pedi-lhe simplesmente que
+não se oppozesse á minha collocação. Respondeu que se dava por aviltado, se seu
+filho fosse exercer tão ignobil occupação; e, sem me dar a confiança de
+questionar com o seu orgulho, disse que me dava recursos para estar dous annos
+em Lisbôa,<span class="pagenum">[90]</span> ou o tempo necessario para me
+esquecer da filha do procurador de causas.</p>
+
+<p>Minha mãi chamou-me de parte, e aconselhou-me que annuisse; na certeza de
+que, no espaço de dous annos, se eu não esquecesse Maria do Resgate, ella
+conseguiria o consentimento de meu pai.</p>
+
+<p>Cedi forçado pela extrema necessidade. Maria, tão confiada em mim quanto eu
+confiava no meu proprio coração, accedeu na ausencia dos dous annos. Assim que
+eu sahi para Lisboa, sahiu ella para um convento de Bragança.</p>
+
+<p>Cheguei aqui, e encontrei dinheiro em abundancia, amigos, relações,
+mulheres, liberdade, distracções, theatros, cêas, um desafogo de vida tão
+agradavel quanto amargurado me tinha corrido o ultimo anno.</p>
+
+<p>Ás vezes, em meio dos meus divertimentos, assaltavam-me remorsos. Era então
+que eu respondia ás cartas apaixonadas de Maria, e perguntava a minha mãi se já
+tinha conseguido amollecer o duro coração de meu pai. Respondia-me que
+esperasse, e Maria respondia-me que esperava uma de duas cousas, que ambas lhe
+serviam: sahir da sua cella para mim ou para a sepultura. Os meus amigos viam
+estas cartas, e riam-se da minha credulidade.</p>
+
+<p>Ao cabo de um anno, os remorsos que me<span class="pagenum">[91]</span>
+incutiam as cartas, já nem a virtude tinham de as inspirar verdadeiras. Maria
+graduou por ellas o sentimento frio que as disfarçava, e disse-me que eu era
+tão ingrato que nem ao menos a deixava morrer enganada.</p>
+
+<p>Aborreciam-me já as lastimas e a obrigação de as consolar. Sentava-me
+constrangido para lhe escrever. Já me queixava da sua pertinacia em me accusar
+de ingrato, quando ella mesma se acommodára á cruel necessidade da separação.
+Culpando-a de indiscreta, perguntava-lhe se quereria para mando um homem que
+teria de mendigar ou roubar para sustental-a. Aqui havia uma occulta infamia na
+mentira. Se eu pretendesse em Lisboa um emprego, tel-o-hia, sufficiente á
+sustentação de uma familia modesta; mas eu, desde que pisei os tapetes dos
+salões, pensava em ter salões com tapetes, e desde que as carruagens dos meus
+amigos me levaram aos theatros, desejei possuil-as para me desquitar de
+obrigações aos meus amigos. Eu estava perdido como meu pai me desejára; estava
+deshonrado bastantemente para desviar a imaginação da filha do procurador de
+causas, quando as titulares de Lisboa me perguntavam quem era a rainha dos
+bailes.</p>
+
+<p>Ao fim de dous annos, minha mãi, quando eu já não perguntava o resultado das
+suas diligencias, avisou-me que meu pai vinha a<span
+class="pagenum">[92]</span> Lisboa, na companhia de um nosso primo e de nossa
+prima, chegados do Brazil, com o proposito de nos visitarem.</p>
+
+<p>Estes nossos primos eram naturaes do Rio de Janeiro. Alli ficára meu tio,
+pai d'elles, quando meu avô, que para lá fôra com o principe regente na
+qualidade de desembargador do paço, voltou para Portugal. Eu sabia d'estes
+parentes, e muitas vezes meu pai dissera que seria convenientissimo casar um de
+seus filhos com a prima brazileira, cuja fortuna rendia mais n'um mez que toda
+a nossa casa em um anno.</p>
+
+<p>Confesso-te miseravelmente que me sobresaltou o aviso da vinda de minha
+prima. Vi salões com tapetes, e vi as suspiradas carruagens. Quem eu não vi foi
+a imagem de Maria do Resgate.</p>
+
+<p>Minha prima Olinda era adoravel, ainda sem riqueza.</p>
+
+<p>Este conceito que formei ao vêl-a e ouvil-a, dispensou-me de o formar, de
+mim, de grande villão. Amnistiava-me com a idéa de que, sendo ella pobre, eu a
+quereria para esposa. Amei-a, é certo que a idolatrei. Não tenho outra virtude
+que contrabalance com os meus delictos na presença de Deus, e d'ella e da outra
+desgraçada.</p>
+
+<p>Havia dous mezes que Maria do Resgate me não escrevia, quando aqui chegou
+Olinda,<span class="pagenum">[93]</span> e, passados dous mezes, sahia eu de
+Lisboa, casado com minha prima, a ir visitar minha mãi, para depois ir ao Rio
+receber os trezentos contos de minha mulher, e d'alli passarmos a residir em
+Lisboa, n'um palacio, com tapetes e carruagens.</p>
+
+<p>Meu pai foi adiante preparar as festas da recepção, e ornamentar as salas
+para o baile, e a hospedagem para os convidados da nossa grande parentella.</p>
+
+<p>Entrei profundamente triste na minha villa. As janellas da casa de Maria do
+Resgate estavam fechadas como se houvesse alli morrido alguem. Nas casas
+visinhas, havia senhoras e crianças que choviam abadas de flôres sobre o nosso
+carro.</p>
+
+<p>Pouco depois que sahimos da mesa do jantar, atravessei com minha mulher a
+sala de espera, para descermos ao jardim. N'este transito, vimos sahir de um
+canto da sala uma mulher trajada de luto, que marchou de encontro a Olinda, sem
+levantar o véo espesso do rosto.</p>
+
+<p>Não a conheci; mas mal podia suster-me de convulso.</p>
+
+<p>&mdash;Que tens?!&mdash;disse minha mulher.&mdash;Esta senhora parece que
+tem alguma cousa que me dizer...</p>
+
+<p>&mdash;Tenho, sim, minha senhora&mdash;acudiu a mulher de luto&mdash;v.
+exc.ª não me conhece<span class="pagenum">[94]</span> nas salas de seu marido,
+porque eu sou a viuva de um pobre procurador de causas que morreu ha quinze
+dias, quando perdeu a esperança de vêr remediada a deshonra de nossa filha. Em
+quanto ella teve pai, embora perdida no conceito do mundo, tinha o pão, que seu
+pai lhe ganhava; mas agora, reduzida á orphandade, á pobreza, e á deshonra,
+venho implorar a v. exc.ª que a receba como sua criada, visto que foi seu
+marido que a perdeu. V. exc.ª fará o que a sua virtude e caridade lhe
+aconselhar.</p>
+
+<p>E sahiu sem esperar resposta.</p>
+
+<p>Estas palavras ouço-as ainda como se a alma da mulher que as disse m'as
+estivesse escrevendo na consciencia com um estylete de fogo.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isto?&mdash;perguntou-me minha mulher.</p>
+
+<p>&mdash;É uma desgraça que eu te contarei&mdash;respondi torvamente.</p>
+
+<p>&mdash;Conta-m'a já, e remediêmol-a sem demora&mdash;tornou ella.</p>
+
+<p>Escondi-me com Olinda no mais sombrio do jardim, e tudo lhe referi com a
+sinceridade de um penitente. Ella ouviu-me com semblante carregado, avincando a
+testa, e ás vezes com signaes de compaixão, que de certo não era por mim.</p>
+
+<p>Depois, ergueu-se, repelliu com brandura<span class="pagenum">[95]</span> a
+minha mão que lhe acariciava o rosto e murmurou:</p>
+
+<p>&mdash;Eu ignorava tudo isto. Desgraça irremediavel, já agora! Eu quero
+fallar com a mãi d'essa infeliz menina.</p>
+
+<p>E assim que foi noite fechada, sahiu com um escudeiro, que a conduziu a casa
+da viuva do procurador.</p>
+
+<p>Suspeito que a conferencia versou sobre a rica dotação de Maria do Resgate.
+A viuva repelliu a proposta, porque minha mulher voltando ao seu quarto, disse,
+como se ninguem a escutasse:</p>
+
+<p>&mdash;As deshonradas... de certo não são ellas.</p>
+
+<p>Até aqui&mdash;proseguiu Duarte Valdez&mdash;não ha nada maravilhoso na
+minha historia...</p>
+
+<p>&mdash;De certo não; tudo vulgar&mdash;obtemperei eu que sabia centurias
+d'estas historias, cuja trivialidade nenhum romancista de tino hoje em dia
+aproveita da fardagem dos vicios communs.</p>
+
+<p>&mdash;O horrivel maravilhoso começa agora&mdash;continuou
+Duarte.&mdash;Passados vintes dias, divulgou-se a noticia de estar moribunda no
+convento de Bragança Maria do Resgate. E em uma das seguintes noites, estando
+eu a dormir profundamente em um leito proximo do de minha mulher, acordei,
+sentindo no pescoço os apertões convulsos de duas mãos que me estrangulavam; e,
+abrindo os olhos,<span class="pagenum">[96]</span> vi distinctamente nas trevas
+o rosto macerado de Maria muito perto do meu rosto; e, ao mesmo tempo que as
+suas mãos me asphyxiavam, sentia que o joelho d'ella me esmagava o coração.
+N'este lance dei um grito, e ouvi o estrebuchar de minha mulher, que soltava
+uns gemidos afflictissimos, como se lá sentisse angustias de suffocação iguaes
+ás minhas. Saltei do leito, e fui á recamara buscar a lamparina. Quando voltei,
+minha mulher estava de joelhos á beira da sua cama, com as mãos postas, com as
+faces cobertas de lagrimas, e os olhos esgazeados de terror.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isto, Olinda?&mdash;exclamei.</p>
+
+<p>E ella, escondendo o rosto entre as mãos, murmurou:</p>
+
+<p>&mdash;Vi agora a desgraçada menina que tu abandonaste. Já estava
+amortalhada. Era formosa como as martyres, e bem mais linda do que eu...
+Disse-me adeus... Sabia que eu tinha chorado por ella... Veio dizer-me que
+estava remida das suas dôres.</p>
+
+<p>Eu não disse a Olinda que tambem vira Maria do Resgate.</p>
+
+<p>O meu terror abafava-me a voz na garganta. Recorri á oração...&mdash;eu que
+desde a infancia não tinha orado. Fui ao quarto de minha mãi; acordei-a;
+pedi-lhe que viesse commigo para o oratorio. Contei-lhe as torturas<span
+class="pagenum">[97]</span> da minha visão, e a visão de Olinda. Ella pegou de
+tremer e chorar. Se eu lhe dizia, sobre-posse, que a coincidencia dos sonhos
+podia acontecer, sem intervenção do phantasma de Maria, minha mãi não achava
+isto possivel, e mais me trespassava de horror.</p>
+
+<p>No dia seguinte, chegou a noticia de ter expirado á uma hora da noite
+antecedente a reclusa do convento de Bragança. A pessoa que trouxe a nova, era
+encarregada de me entregar o maço de minhas cartas. Em volta das ultimas, que
+eu lhe escrevêra de Lisboa, havia uma cinta de papel e um escripto interposto
+com estas palavras:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><em>Quando receber isto, que lhe deixo, para se convencer de que não ha
+testemunho escripto da sua crueldade, a mais feliz serei eu, porque estarei
+morta. O senhor de certo nunca será feliz, porque infamia e boa consciencia não
+se encontram juntas. Perdôo-lhe o que me fez: mas não posso perdoar-lhe a morte
+de meu pai nem o desamparo em que fica minha mãi.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Resta-me dizer-te&mdash;ajuntou Duarte, arquejando de cansaço e
+commoção&mdash;que minha mulher desde aquella hora nunca mais teve um instante
+de alegria nem saude. Viemos, passados dias, para Lisboa. D'aqui partimos<span
+class="pagenum">[98]</span> para o Rio de Janeiro. Ao cabo de oito mezes, eu
+estava viuvo, e rico, muitissimo rico, e cada dia, cada hora mais desgraçado,
+mais combalido de uma enfermidade indescriptivel. Voltei ao seio de minha
+familia. Já não encontrei minha mãi; e a presença de meu pai coava-me nas veias
+um estremecimento de pavor. Ha cinco annos que arrasto esta vida sem a coragem
+de a despedaçar. Sinto ainda na garganta a pressão dos dedos fincados do
+phantasma. Ajoelho-lhe, alta noite, e imploro-lhe que me deixe morrer socegado.
+Peço á alma de minha mulher que suavise com palavras compassivas a vingança da
+desgraçada que deve estar na presença de Deus... Em fim...</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>E não proseguiu, porque n'este momento entrava o doutor Arantes, o previsto
+medico da casa da saude, que, sem ouvir esta narrativa, sabia que aquelle
+enfermo devia morrer, pela mesma razão mysteriosa que muitos atacados de
+semelhante morbus engordam e porejam saude por todos os orificios da sua
+enxundiosa epiderme.</p>
+
+<p style="text-align:center; text-indent: 0em;">*<br>
+*      *<span class="pagenum">[99]</span></p>
+
+<p>Duarte Valdez, que ainda vi na vespera da sua ida para a Madeira, foi e não
+voltou. As supplicas de Olinda lograriam que a misericordia divina o resgatasse
+da presa do seu remorso.</p>
+
+<blockquote>
+ <em>Que segredos são estes da natura?</em></blockquote>
+
+<p>Perguntaria Luiz de Camões.</p>
+
+<p style="text-align:center;">FIM DO 9.° NUMERO</p>
+</div>
+<hr>
+
+<div style="font-size: 80%;">
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3 style="text-align:center;">Ernesto Chardron, editor </h3>
+
+<p style="text-align:center;">DICCIONARIO UNIVERSAL DE EDUCAÇÃO E ENSINO</p>
+
+<p style="text-align:justify;">Util á mocidade de ambos os sexos, ás mães de
+familia, aos professores, aos directores e directoras de collegios, aos alumnos
+que se preparam para exames, contendo o mais essencial da sabedoria humana,
+trasladado a portuguez por CAMILLO CASTELLO BRANCO e ampliado pelo traductor
+nos artigos deficientes a Portugal e Brazil. 2 grossos vol. cada um de 800
+paginas a 2 columnas, 6$000. Encadernados, 7$000</p>
+
+<p>AS GRANDES INVENÇÕES ANTIGAS E MODERNAS</p>
+
+<p>Nas sciencias, industria e artes, por LUIZ FIGUIER obra adornada com 238
+gravuras magnificas, e traduzida da 5.ª edição original francesa. 1 grosso vol.
+brochado, 3$000. Com uma rica cartonagem, 3$600</p>
+
+<p>GRANDE DICCIONARIO PORTUGUEZ</p>
+
+<p>Ou o thesouro da lingua portugueza, pelo DR. FREI DOMINGOS VIEIRA</p>
+
+<p>1.º volume&mdash;A-B, 4$500</p>
+
+<p>2.º » &mdash;C-D, 4$500</p>
+
+<p>3.º » &mdash;E-L, 5$500</p>
+
+<p>4.º » &mdash;M-P, 4$000</p>
+
+<p>Volume 5.º (ultimo) estará á venda em dezembro de 1874.</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
+não póde dormir. Nº 9 (de 12), by Camilo Castelo Branco
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 9 (DE 12) ***
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
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+
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+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
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+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
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+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
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+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
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+ https://www.gutenberg.org
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+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+</body>
+</html>
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
+
+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
+
+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
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index 0000000..3a7959c
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+++ b/README.md
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+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #28155 (https://www.gutenberg.org/ebooks/28155)