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| author | Roger Frank <rfrank@pglaf.org> | 2025-10-15 02:47:28 -0700 |
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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Historia alegre de Portugal + leitura para o povo e para as escolas + +Author: Manuel Pinheiro Chagas + +Release Date: July 13, 2009 [EBook #29394] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + + HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL + + + + + HISTORIA ALEGRE + + DE + + PORTUGAL + + LEITURA PARA O POVO E PARA AS ESCOLAS + + POR + + M. PINHEIRO CHAGAS + + + + + DAVID CORAZZI--EDITOR + EMPREZA HORAS ROMANTICAS + Lisboa--Rua da Atalaya--40 a 52 + 1880 + + + + +Ao Ill.mo e Ex.mo Sr. + +CONSELHEIRO + +MIGUEL MARTINS DANTAS + +Ministro de Portugal em Londres + + + + + Ill.mo e Ex.mo Am.o e Sr. + +Ha dois ou tres annos, desejando eu obter de Inglaterra um livro que +fôra citado no parlamento por um deputado da opposição ao ministerio +Beaconsfield, dirigi-me a v. ex.ª, meu collega na Academia, +perguntando-lhe se seria possivel alcançal-o. A resposta de v. ex.ª não +se fez esperar. Enviou-me o livro pedido, que obtivera com summa +difficuldade, e juntamente com elle quantos documentos officiaes se +referiam á questão da escravatura, questão de que esse livro se +occupava, e que então me captivava mais particularmente a attenção. Foi +mais longe ainda a amabilidade de v. ex.ª; enviou-me um livrinho +francez, de que eu não tinha conhecimento, intitulado _Entretiens +populaires sur l'histoire de France_, perguntando-me se não seria +possivel fazer, com relação á historia portugueza, um livro n'esse +genero. + +Li o livro e achei-o encantador. Tempos depois, encontrei-me com v. ex.ª +em Lisboa, e disse-lhe que ía tentar o emprehendimento a que v. ex.ª me +incitára, e pedi-lhe licença para lhe dedicar o livro, que fosse o +fructo d'essa tentativa. É o que faço agora. Como v. ex.ª verá, o plano +da _Historia alegre de Portugal_ é diversissimo do dos _Entretiens +populaires sur l'histoire de France_, mas a _Historia alegre_ vae +escripta tambem no tom faceto, folgazão, singelo e popular que achei +original, picante e util no livro francez que v. ex.ª me recommendava. + +Folgo de ter ensejo de mostrar publicamente a minha gratidão a v. ex.ª +pelas provas de estima e de consideração que me dispensou n'esta e +n'outras occasiões, e o alto apreço em que tenho o talento e o saber +do escriptor distinctissimo, que renovou completamente, com os seus +_Faux Don Sébastien_, o estudo de uma época interessante da historia +portugueza, que nos deu emfim n'esse primoroso livro um estudo +profundamente moderno, um estudo, como Gachard os sabe fazer, de um dos +episodios mais curiosos e mais romanescos da nossa vida nacional. + + De v. ex.ª + +Cruz Quebrada, 25 de outubro de 1880. + + Att.o v.or e ob.o + + _Pinheiro Chagas_. + + + + +INTRODUCÇÃO + + +O sr. João Martins, mais conhecido pelo nome de João da Agualva, porque +morava na pequena aldeia d'este nome, que fica entre Bellas e o Cacem +n'um sitio árido e feio, fôra mestre de instrucção primaria numa das +freguezias do concelho de Cintra. Conseguira a sua aposentação, e viera +para a sua aldeia natal amanhar umas terras que ali possuia, e cujo +rendimento o impedira já de morrer de fome nos tempos, em que o Estado +lhe pagava munificentemente os noventa mil réis annuaes, com que +remunerava n'essa época os primeiros guias do homem nos ásperos caminhos +da instrucção. Mas o João da Agualva era homem de uma illustração +excepcional. Convivera muito tempo com o prior de Monte-lavar, padre +instruido que emprestára ao bom do professor os livros da sua +limitada bibliotheca; em Bellas tambem se relacionára com um engenheiro +francez, empregado nas obras de agua de Valle de Lobos, de Broco e de +Valle de Figueira, o qual tomára gosto em desenvolver o espirito +intelligente e ávido de saber do velho professor. Apezar d'isto vivia +modestamente na sua pobre casa, lidando com os saloios que o tratavam +com verdadeiro respeito, e tinham por elle um affecto em que entrava um +pouco de veneração. + +Era no inverno, e o João da Agualva estava passando a noite em casa de +uma boa velha, a tia Margarida, viuva de um caseiro do marquez de +Bellas, e mãe do Francisco Artilheiro, que, depois de ter servido cinco +annos em artilheria, como indicava o seu sobre-nome, viera para Bellas +ajudar a mãe a cuidar de umas leiras de terra, que a velhinha herdára do +marido. Um grupo de saloios de Bellas e das aldeias proximas, sabendo +que o João da Agualva viera para ali seroar, tinham vindo tambem, +desejosos de ouvir algumas das historias que o velho ás vezes contava e +que entretinham agradavelmente a noite. N'essa occasião, porém, o +professor estava macambusio, e, quando o velho Bartholomeu, irmão da tia +Margarida, que era dos que mais gostavam de o ouvir, lhe pediu que +contasse alguma das suas historias, o bom do João da Agualva abanou +negativamente a cabeça. + +--Não estou hoje com disposição para historias da carochinha, +disse elle, e sabem vocês? Tenho andado a matutar n'uma cousa. Não é uma +vergonha que vocês saibam de cór as alteiadas historias de cousas que +nunca succederam, nem podiam succeder, e não saibam ao mesmo tempo nem o +que foram seus paes nem os seus avós, nem o que fizeram, nem como elles +viveram, nem o que succedeu n'esta boa terra de Portugal, que nós todos +regamos com o nosso suor, que hoje nada vale, mas que deu brado no mundo +pelas façanhas que os nossos praticaram? + +--Tomára eu saber tudo isso, sr. João da Agualva, disse o Manuel da +Idanha, rapazote de cara esperta, moço de lavoura do sr. Garignan, o +antigo dono de collegio, que hoje reside na aldeia da Idanha, a cousa de +quinhentos metros de Bellas, tomára eu saber tudo isso, mas como ha de +ser!? É verdade que, graças a Deus, sei ler e escrever, e lá o patrão +emprestou-me uma vez uns livros de historia que eu lhe pedi, mas, mal os +comecei a ler, deu-me o somno. Diziam á gente os nomes dos reis e os +filhos que tinham tido, e as batalhas que tinham ganho, e mais umas +lenga-lengas de que não percebi patavina. Ora, sr. João da Agualva, eu, +para dormir, graças a Deus, ainda não preciso de ler historia. + +--Mas que diriam vocês, tornou o velho professor, se eu, n'estes nossos +serões, lhes contasse, em vez de contos de fadas, e de historias de +Carlos Magno, a historia do que succedeu em Portugal? Talvez vocês +me entendessem, quer-me parecer que se não aborreceriam muito, e, +em todo o caso, se se enfastiassem, diziam-m'o francamente, e eu não +continuava, porque lá para massador é que não sirvo. + +--Ah! sr. João, exclamou o Manuel da Idanha, isso é que era um regalo! + +Os outros não disseram palavra, e o João, que os percebeu, riu-se para +dentro, e fingiu-se desentendido. + +--Pois então, vá feito, eu hoje estou cançado, porque já fui a pé ao +Sabugo tratar da compra de um boi, mas amanhã é domingo. Venham vocês á +noite aqui para casa da tia Margarida, e eu começarei a minha historia. + +No domingo á noite ninguem faltou; mas, se vieram, foi pelo respeito que +tinham ao João da Agualva, não porque esperassem divertir-se muito. O +Bartholomeu já abria a bôca ainda antes do João da Agualva principiar. +Mas o João chegou-se mais para o lume, porque a noite estava fria a +valer, sorriu-se, e principiou como o leitor verá no capitulo immediato. + + + + +PRIMEIRO SERÃO + +O que era Portugal.--Os seus primeiros habitantes.--As colonias +estrangeiras.--Os phenicios.--Os gregos.--Os carthaginezes.--Os +romanos.--Viriato.--Sertorio. + + +--Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra em +que nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguem se lembrasse de +fallar, aqui ha cousa de uns tres ou quatro mil annos ou mesmo só de mil +annos, em Portugal e em portuguezes, havia de ver como todos ficavam +embasbacados sem perceber patavina. Isto lá para os antigos era tudo +Hespanha, desde os cocurutos dos Pyrinéus, que são uns montes que +separam a Hespanha da França, até essas aguas do mar que cercam por +todos os lados a nossa terra, mais a dos hespanhoes, e até por estar +este pedação de terra cercado de agua por toda a parte, menos pela banda +dos Pyrinéus, é que se chama a isto _peninsula_, que quer dizer uma +cousa que é quasi uma ilha, mas que o não vem a ser de todo. + +--Bem sei, bem sei! peninsula é onde houve uma guerra em que entrou meu +avô! exclamou o fallador do Manuel da Idanha. + +--Mette a viola no sacco, Manuel, quem muito falla pouco acerta. Lá +chegaremos á guerra da peninsula. Roma e Pavia não se fez n'um dia. + +--Pois então, vá lá vocemecê contando a sua historia. + +--Como eu ía dizendo, esta peninsula, a que se chama Hespanha e +Portugal, era então só Hespanha. Hespanhoes éramos nós todos... + +--Menos eu! acudiu o Bartholomeu, levantando-se todo furioso, hespanhol +é que nunca fui, nem sou, nem serei. Vae aqui tudo raso, se... + +--Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse hespanhol se nunca +mais o ha de ser? Tambem a Hespanha, e a França, e a Inglaterra, e a +Italia, e a Grecia, e o Egypto foi tudo imperio romano, e vae lá dizer +agora a essas nações todas que se sujeitem ao mesmo governo! Tambem a +França d'antes se chamava Gallia e estendia-se pela Belgica fóra, e mais +pela Suissa, e, se o Gambetta, ou quem é que governa lá na França, +quizesse por isso empolgar a Suissa e a Belgica, ía ahi em toda a Europa +uma berraria de seiscentos demonios. + +--Pois sim, resmungou o Bartholomeu sentando-se de mau humor, mas não me +digam a mim que eu fui hespanhol. + +--Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram cá n'este canto +de terra é que ninguem sabe. Seriam uns iberos, que fallavam uma lingua +arrevesada, assim a modo similhante á que fallam hoje os hespanhoes das +Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O +que sei é que, quando a Hespanha começou a ser conhecida, havia aqui uma +sucia de povos que era uma cousa por demais, turdetanos para um lado, +celtiberos para outro, ilergetas para aqui, bastetanos para acolá. +Estava até ámanhã a dizer-lhes nomes estramboticos, se não preferisse +fallar-lhes só nos nossos avós, cá nos que moraram na nossa terra. + +--Isso é que é! bradaram todos em côro. + +--Pois muito bem! Saibam vocês que não era um povo só. No Algarve e n'um +pedaço do Alemtejo havia os _cuneenses_, no resto do Alemtejo, na +Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o +Douro, para o Minho e mais para Traz-os-Montes moravam os gallegos. + +--Os gallegos! exclamou o irritavel Bartholomeu, veja lá como falla, sr. +João da Agualva, olhe que o pae de minha mulher veiu de Traz-os-Montes, +e meus sogro não era nenhum gallego, ouviu? + +--Valha-te Deus, Bartholomeu, então tu cuidas que os gallegos andam +todos com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os +aguadeiros dos chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e depois t'o +mostrarei, que de todos os povos lá das Hespanhas foram os gallegos os +que mais depressa se poliram. Mas, cala-te bôca, não vá o carro adiante +dos bois, e, como tu não queres ser genro de um gallego, sempre te direi +que os que moravam para cá do Minho não eram da mesma casta que os de +lá. Os nossos chamavam-se _Bracharos_ e os gallegos da Galliza +chamavam-se _Lucenses_. + +--Ainda bem! murmurou o Bartholomeu, isso de _Bracharos_ até parece que +dá idéa de _Braga_. + +--E é verdade que dá, sr. Bartholomeu, lavre lá dois tentos. + +Todos se riram, e o João da Agualva continuou: + +--Mas não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que +viviam em cidades, villas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á +cabeça, que tinham espingardas para a caça e para a guerra. Qual +carapuça! Eram uns selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de +cobre, e o amante pedregulho, mais uns dardos e uma especie de escudo +para se defenderem; fato pouco havia, cabello comprido como o das +mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de ir para a guerra. +As mulheres é que tinham os seus enfeites e os seus bordados, os seus +vestidos compridos, etc. + +--Pois já se vê que lá as meninas nunca podem passar sem arrebiques! +disse o Zé Caneira, relanceando um olhar malicioso para a boa tia +Margarida que fiava na sua roca ao pé da lareira. + +--Melhor para ellas, ouviu! redarguiu a velha. Que pena que não vivesses +n'esse tempo para atares os cabellos com uma fita, quando fosses para a +guerra! + +Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação +da tia Margarida. + +--Em comidas não eram muito requintados, de carne de cabra é que elles +principalmente se alimentavam, e o seu pão era cousa de pouca +substancia. Bebiam agua, dormiam no chão, os seus barcos eram de couro, +matavam gente em sacrificio aos seus deuses, quando tinham algum doente +punham-n'o á beira da estrada, quem fazia algum roubo ou outro crime +grave era apedrejado. Não passavam de ser uns selvagens. Então que +querem? nem os homens nem os povos nascem ensinados. Todos começam +assim. Valentes eram elles, isso sim, valentes como touros. Tiveram +occasião de a mostrar, porque esta nossa terra foi na antiguidade uma +espécie de California. + +Por muito tempo ninguem soube d'ella, e os navios da gente civilisada +que vivia lá para o Oriente nunca passavam para cá do estreito de +Gibraltar, até que um dia passaram os phenicios, gente atrevida, que +queriam metter o nariz em toda a parte, e que sobretudo procuravam +terras novas para commerciar. Acharam que lhes convinham a Andaluzia e o +Algarve, e aqui fundaram algumas colonias, sendo Cadiz a principal. Como +tinhamos por cá muitas minas de ouro, e os homens deram sempre o +cavaquinho por este metal, estavam os phenicios nas suas sete quintas. +Ao mesmo tempo outro povo civilisado do Oriente, os gregos, vieram na +piugada dos phenicios, mas esses estabeleceram-se principalmente na +Hespanha do lado de lá, onde hoje é a Catalunha, e o Aragão e Valencia, +etc. + +Os indigenas de cá não se deram mal com os phenicios, emquanto elles se +limitaram a trocar as suas fazendas pelo nosso ouro e outras producções, +mas, quando viram que os taes estrangeiros começavam a fazer casa, +acabaram com o negocio, foram aos gaditanos e deram-lhes uma tareia real. + +--Foi bem feito! observou Bartholomeu. + +--Mas os phenicios, que estavam muito longe da sua terra, chamaram em +seu soccorro os carthaginezes, que eram tambem uns phenicios, quer dizer +tinham assim com os phenicios o mesmo parentesco que os brazileiros têem +comnosco. Ora os cartagineses viviam aqui mais proximo, ali na Africa, +ao pé de Tunis, não muito longe de Argel. + +--Argel! exclamou o Francisco Artilheiro, já lá estive. + +--Já lá estiveste? + +--Já, sim senhor. Quando eu andava ao serviço, e que fui para a India, o +vapor que me levou arribou a Argel. É uma bonita terra. + +--Já vês que não fica muito longe. Carthago era mais para o lado de lá. +Vieram pois os carthaginezes em soccorro dos phenicios, mas gostaram da +terra, pozeram fóra os que vinham soccorrer, e á força de bordoada, +porque bons guerreiros eram elles, sujeitaram ao seu poder tudo. + +--Mas então, tornou o Francisco Artilheiro, vocemecê diz que os nossos +eram tão valentes?... + +--Ora, que outro me fizesse essa pergunta, vá, mas tu que foste militar! +Quem vence é quem tem disciplina. Por mais valentes que os homens sejam, +em combatendo sem ordem, um por aqui, outro por ali, um regimento bem +formado dá logo cabo d'elles. + +--Isso é verdade. + +--Estavam os carthaginezes senhores da Hespanha, e, como tinham posto +fóra os phenicios, queriam tambem pôr fóra os gregos, quando estes se +lembraram de pedir o soccorro dos romanos, que andavam ha muito tempo de +rixa velha com os carthaginezes, e que eram dos povos mais pimpões +d'aquelle tempo. + +--Vieram então os romanos? perguntou o Francisco Artilheiro que +estava seguindo com interesse a narrativa. + +--Não tiveram tempo de vir, porque um tal Annibal, rapasote dos seus +vinte e cinco annos, e que dizem até que era filho de uma lusitana, +succedendo no commando dos carthaginezes a seu pae Amilcar, não esperou +que elles viessem, correu a Sagunto, uma das taes colonias gregas, +tomou-a e queimou-a, e depois sae da Hespanha, atravessa os montes +Pyrinéus e mais os montes Alpes, que parecia que tinha mesmo o diabo no +corpo, bate os romanos aqui, derrota-os acolá, escangalha-os mais alem, +e ás duas por tres, se continua assim de vento em popa, era uma vez +Roma. Porém, os romanos, que eram tambem levadinhos da breca, nunca +desanimaram, e, apesar de estarem de corda na garganta, tiveram artes de +mandar para cá um exercito, de fórma que, emquanto Annibal saía por uma +porta, entravam os romanos por outra. O atrevimento ía-lhes saíndo caro, +isso é verdade, mas a fortuna virou, e o que é certo é que d'ahi a pouco +tempo não havia nem um carthaginez na peninsula, e estavam os romanos +senhores de tudo isto. + +--Então os povos de cá estavam a olhar ao signal? perguntou Bartholomeu. + +--Ora ahi é que bate o ponto. Effectivamente, os povos cá das Hespanhas +acharam assim exquisito que os carthaginezes e os romanos andassem a +dispor d'elles, sem ao menos lhes perguntar a sua opinião, de fórma que, +quando os romanos, julgando-se senhores da Hespanha, começaram a +espreguiçar-se, os differentes povos da peninsula disseram-lhes d'esta +maneira: «Ora esperem lá, senhores romanos, que nós somos duros para +colchões!» + +--Ah! boa rapasiada! observou, esfregando as mãos, o Francisco Artilheiro. + +--Começou a pancadaria, e o povo que andou sempre na frente foram cá os +nossos lusitanos, principalmente os serranos do Herminio (que era assim +que se chamava d'antes a serra da Estrella). Não eram os romanos capazes +de metter dente cá para este lado, até que uma vez um dos seus generaes, +chamado Sergio Galba, apanhou os lusitanos á traição, e fez n'elles uma +mortandade de que poucos escaparam. + +--Ah! grande patife! exclamou o Manoel da Idanha. + +--Isso era, mas alem de patife era tolo, porque isto de excitar muito dá +maus resultados. Os lusitanos, que escaparam, ficaram como uma bicha. +Ora um d'elles era um pastor chamado Viriato, homem decidido e esperto, +que disse para os seus patricios: Façam vocês o que eu mandar, e deixem +os romanos comigo. Assim foi, juntaram-se á roda de Viriato, e, quando +appareceu um exercito romano commandado pelo consul Vetilio, o nosso +homem, que era das bandas de Vizeu, esconde n'uma emboscada uma parte da +sua gente, e com o resto põe-se a fazer fosquinhas aos romanos, +parecendo a modo medroso. O consul percebe que elle está assim com seu +susto, e diz lá de si para si: «Vaes apanhar uma surra mestra.» Corre +sobre elle, Viriato faz tres meia volta, e, pernas para que te quero, +elle ahi vae. O consul Vetilio desata a correr atraz de Viriato, e +vae-se mesmo metter na boca do lobo. Era uma vez um exercito romano. +Depois de Vetilio vem outro e outro, e elle sempre zás, pásada de crear +bicho. Em Roma havia terror, diziam que o luzitano lhes dava mais que +fazer que o proprio Annibal. Em Hespanha então era um enthusiasmo por +ahi alem. Se Viriato já nem se contentava em estar nas montanhas, +entrava pelos povoados romanos, levantava contribuições, revolucionava +os povos, era um vivo demonio, e cada novo exercito, que por cá +apparecia, não lhes digo nada, sumia-se n'um abrir e fechar de olhos, +até que emfim o consul Scipião apanha lá dois patifes que Viriato +mandára para tratar de um negocio, e tantas endrominas lhes metteu na +cabeça, e tantas promessas lhes fez que elles, quando voltaram para onde +estava o seu chefe, apanharam-n'o a dormir e mataram-n'o. + +--Oh! que grandes malvados! exclamou Bartholomeu. + +--E assim acabou esse homem que foi o que se póde chamar um homemzarrão! +Ó senhores, eu sou um pateta, que não percebo nada d'estas cousas, mas, +quando me ponho a pensar n'este Viriato, quando me lembro que era apenas +um pobre pastor de cabras, um selvagem que não entendia nada de guerras, +nem de manobras, nem de legiões para aqui, nem de centuriões para ahi, e +que, apezar disso, em defeza da sua terra, fez andar os romanos em papos +de aranha, e atarantou aquella poderosa Roma que mettia medo a todos, +quando me lembro que elle era filho d'esta boa terra; que hoje se chama +Portugal, ah! c'o a breca, sinto assim uns arripios pela espinha, e +parece que é até uma vergonha para o paiz não se lhe ter levantado uma +estatua de um tamanho por ahi alem, no alto da serra da Estrella, que +aquillo é que se podia chamar a sentinella da nossa independencia. + +E o bom do João da Agualva, no impeto do seu enthusiasmo, cerrava os +punhos; faiscavam-lhe os olhos, e dava mostras de querer elle mesmo ir +pôr nos fraguedos da serra da Estrella a estatua do seu heroe. + +--Tem rasão, tem, observou o Bartholomeu, lá que o tal Viriato foi um +homem de truz, isso foi. + +--A morte de Viriato, como podem imaginar, continuou o João da Agualva, +deixou ficar os lusitanos um pouco atrapalhados, mas continuaram a +defender-se, e os romanos viram uma bruxa com elles. Póde-se dizer que +só Roma foi senhora da Lusitania, quando não ficaram nas nossas +montanhas senão as mulheres e as creanças. Mas as creanças fizeram-se +homens, e os homens estavam mortos por jogar as cristas com os romanos. +Não tardou a apparecer-lhes uma boa occasião. + +--Vamos lá a ver isso! exclamou o Bartholomeu, com um orgulho patriotico. + +--É de saber que em Roma havia umas guerras civis, tal qual como nós +tivemos cá por muito tempo em Portugal, assim umas cousas á moda da +_Maria da Fonte_ ou da guerra dos dois irmãos. Um fulano Sylla e um +sicrano Mario andaram á pancadaria um com o outro, até que venceu um +d'elles que foi Sylla. Era homem de cabellinho na venta este Sylla, e, +apenas se viu no poleiro, começou a chacinar nos que eram do partido +contrario, de fórma que parecia que não queria deixar vivo nem um só. Os +amigos de Mario trataram de se escapulir, e um d'elles, homem +desembaraçado, chamado Sertorio, safou-se cá para Hespanha, para os +lados do Oriente. Ahi, n'um instante, revolucionou tudo, arranjou um +exercito, mas os generaes de Sylla espatifaram-lh'o, e o amigo Sertorio +tingou-se para a Africa. Souberam os lusitanos do caso, e disseram +comsigo: «Este maganão é que nos faz conta.» Mettem-se uns poucos n'um +barco, vão ali a Marrocos, por onde o Sertorio andava aos paus; +offerecem-lhe o vir commandal-os. Sertorio saltou logo para dentro do +barco, e d'ahi a pouco estavam os lusitanos em campo com Sertorio á frente. + +Este, porém, não era, como Viriato, um pastor de cabras, era homem +civilisado, sabendo tudo o que se sabia no seu tempo, e que tratou de +arranjar cá nas nossas terras uma especie de Roma. Pareceu-lhe que Evora +servia para o caso, estabeleceu-se ali, e, como o tinham acompanhado +muitos romanos, conseguiu perfeitamente o seu fim. + +Que o Sertorio era uma grande cabeça, isso é que não tem duvida! Não só +poz o sal na moleirinha dos seus patricios que se quizeram metter com +elle, mas costumou os lusitanos a ser gente civilisada, e a imitar os +romanos em tudo, de fórma que Viriato, se resuscitasse, não os +reconhecia. E a final de contas, vejam como as cousas são! Este Sertorio +deu lambada nos romanos por um sarilho! pois ninguem fez mais serviços a +Roma do que elle! Introduziu aqui as artes, os usos e os costumes de +Roma! de fórma que, depois, os nossos começaram a ter menos repugnancia +aos estrangeiros, a confundir-se com elles. Isto de fallar a mesma +lingua, de ter os mesmos habitos, sempre é uma grande cousa! Sertorio +foi assassinado, assassinado tambem por um traidor, um patricio d'elle, +um tal Perpenna! Pois senhores, quando morreu, já isto por cá era +tão romano como a propria Roma; de fórma que nunca mais houve revoltas, +e os lusitanos como o resto dos habitantes de Hespanha, á excepção dos +vasconsos que sempre foram mettidos comsigo, e nunca se deram com os +visinhos, os lusitanos ficaram fazendo parte do grande imperio que vinha +do Mar Negro ao Oceano Atlantico, e da bôca do Rheno até á foz do +Guadalquivir, e ainda mais para baixo, do outro lado do estreito. + +E com isto os não enfado mais, meus amigos, a Margarida já acabou a sua +estriga, a luz do candieiro está assim a modo aos upas como quem se quer +ir embora, e então domingo á noite continuaremos com esta conversa, +visto que vocês parece que vão gostando. + +--Ora se gostamos, sr. João de Agualva! bradaram todos em côro. Venha +depressa o domingo para ouvirmos o resto. + +E despedindo-se de Margarida, e de João, retiraram-se para as suas +casas. + + + + +SEGUNDO SERÃO + +Cesar e os montanhezes do Herminio.--O imperio romano.--O +christianismo.--Os barbaros.--Suevos, alanos e visigodos.--Os mouros.--O +reino das Asturias.--O reino de Leão.--Portucale.--Os condados de +Portugal e de Coimbra. + + +--Meus amigos, começou o João da Agualva, apenas todos fizeram roda no +domingo immediato, e que a boa da tia Margarida, depois de carregar a +sua roca, principiou a fazer girar o fuso nos seus dedos ageis, deixámos +no outro dia os bons dos nossos lusitanos, depois da morte de Sertorio, +costumados já á civilisação romana, e fallando o latim como se tivesse +sido sempre a sua lingua, gostando de dar as suas passeatas até Roma, e +provavelmente chamando barbaros aos que se lembravam com saudades dos +tempos de Viriato. Nas serras continuavam a refilar o dente aos senhores +do mundo, e o proprio Cesar, que veio a ser depois um grande homem, +estreiou-se nas guerras, tendo cá na Lusitania os seus dares e tomares +com os montanhezes do Herminio, que vieram diante d'elle em rota batida +até aqui ás proximidades de Peniche, pouco mais ou menos, e que, quando +deram de cara com o mar, não estiveram lá com meias medidas, metteram-se +n'umas jangadas, e foram merendar ás Berlengas, deitando a lingua de +fóra ao sr. Cesar, que se foi embora de queixo caído. Mas isso eram +barulhos lá de quando em quando. A verdade é que a Lusitania estava +sendo devéras romana, e então, quando lá em Roma á republica succederam +os imperadores, nem mais se pensou em independencias, nem meias +independencias. As cidades com os nomes romanos ferviam por ahi, as +estradas militares cortavam o paiz, e uma pessoa podia ir de Lisboa até +Roma sem perguntar a ninguem. Hoje diz-se: quem tem bôca vae a Roma. +Pois n'aquelle tempo, e com as estradas militares, bastava ter pés e +olhos, ía-se lá direito como um fuso. + +--Havia caminho de ferro? perguntou o Zé Caneira embasbacado. + +--Qual caminho de ferro, bruto! Teu avô ainda nem sabia que vinha isso a +ser, e já tu querias que o teu trigesimo ou quadragesimo avô andasse de +wagon! Não senhor, eram estradas ordinarias, mas feitas com todo o +cuidado e limpeza, e que, partindo de Roma, íam ter aos pontos mais +distantes do imperio! Lá que os taes romanos eram um grande povo, +isso eram! + +--Pois sim! mas regalaram-se de levar tapona cá na nossa terra, +interrompeu o Bartholomeu. + +--Quem vae á guerra dá e leva, respondeu o João da Agualva, e a final +quem vence é quem mais sabe. Se os romanos venceram, não foi nem porque +tinham mais força, nem porque eram mais valentes, foi porque sabiam +mais. Tu verás ao depois. Olha que isto cá no mundo não se leva a poder +de bordoada. Queres um exemplo? Ora ahi tens tu o mundo todo romano. O +imperador está em Roma, e tudo governa. N'isto sáem da Judéa uns homens +de bordão na mão, e de pés descalços, que começam a prégar por esse +mundo, a dizer que Deus veiu á terra, que foi crucificado, que disse que +todos os homens eram iguaes, senhores e escravos e grandes e pequenos, +que a gente deve amar não só os seus amigos, mas tambem os seus +inimigos, que ha mais alegria no céu pela volta de um peccador, que se +arrepende, do que pela entrada de noventa e nove justos, e outras cousas +assim que embasbacavam todos, e vae os imperadores romanos começaram a +scismar que esta gente, que lhes fazia mal, que desorganisava tudo, e +botam a chacinar n'esses sujeitos que se diziam christãos, e a +queimal-os, e a deital-os ás feras, e a martyrisal-os, e quanto mais os +desbastavam mais elles cresciam, e tanto e tanto que lhes não digo +nada. Ás duas por tres o mundo romano tinha sido conquistado, sem pau +nem pedra, por esses soldados de Christo. Ora aqui tens tu como quem +vence nem sempre é a força bruta. + +--Essa agora é mais fina! accudiu o Manuel da Idanha. Esses, se +venceram, é porque eram os santos apostolos, e porque prégavam a palavra +de Deus. + +--Pois assim é, Manuel, dizes tu muito bem, mas é que isto que se chama +civilisação não é tambem senão a palavra de Deus. A civilisação é o que +concorre para nos fazer melhores, mais dignos de ser homens. Umas vezes +prégam-n'a os santos, outras vezes são os sabios, e ás vezes tambem são +os soldados, porque Deus de todos os meios se serve para chegar aos seus +fins. E é assim que o instrumento d'isto a que eu chamo civilisação umas +vezes é o livro, outras vezes a cruz, e outras vezes a espada. + +Os bons dos saloios ouviam boqui-abertos estas cousas todas, que só o +Manuel da Idanha parecia perceber um bocadinho, por isso o João da +Agualva, que não queria perder a attenção do auditorio, apressou-se a +continuar: + +--Isto quer dizer, meus amigos, que foi por este tempo que principiou a +prégar-se no mundo a nossa santa religião, e foi cá a nossa terra uma +das primeiras que se converteram. Dizem até que veiu aqui o proprio +apostolo S. Thiago, mas isso estou que são lérias; o que é certo, porém, +é que ainda quasi não havia bispos por esse mundo de Christo, e já Braga +era bispado, tanto assim que se chama ao arcebispo de Braga arcebispo +primaz das Hespanhas, porque foi o primeiro que na Hespanha houve. + +Mas, entretanto, meus amigos, grandes cousas se passavam pelo mundo. +Fóra dos limites do imperio, do lado de lá do Rheno, do lado de lá do +Danubio, havia povos que Roma não conseguira conquistar: gente selvagem +como os luzitanos do tempo do Viriato; valentes como elles, e ao mesmo +tempo gente inquieta que não parava n'um sitio e que não podia viver +quasi senão de caça e de rapina. Tinham os romanos um trabalhão em os +conter, mas, quando o imperio começou a fraquear, porque aquillo estava +já sendo uma choldra, quando as legiões, que é como quem hoje diria as +divisões e as brigadas, começaram cada uma a apregoar um imperador pela +sua banda, desabam todos aquelles meus amigos sobre o imperio, e foi +como quem diz uma verdadeira inundação. Ahi pelos annos quatrocentos e +tantos caíram em cima de Hespanha, vindos das bandas dos Pyrenéus, nada +menos de tres povos, os Alanos, os Suevos e os Vandalos. Nós, só á nossa +parte, tivemos dois que tomaram conta de tudo isto, que foram os +suevos e os alanos. Mas aquillo! as florestas de alem do Danubio e do +Rheno parece que se não fartavam de despejar povos que se empurravam uns +aos outros. Atraz d'estes tres povos vieram os visigodos que expulsaram +os outros e ficaram senhores da Hespanha toda. Mas agora ahi têem vocês +como nem sempre quem vence é quem conquista. Julgam por acaso que se +fallou na Hespanha o visigodo, e que as leis visigothicas é que +governaram, e que a religião dos visigodos é que triumphou? Qual +carapuça! os vencidos é que conquistaram os vencedores e deram-lhes a +sua lingua, as suas leis e a sua religião. Porque? porque os mais +civilisados eram os vencidos, e quem mais sabe é quem triumpha. + +--Mas então, a final de contas, perguntou o Manuel da Idanha, sempre +isto ficou sendo romano? + +--Não, rapaz, não é assim. Ora dize-me uma cousa, quando tu deitas sal e +carne para dentro de uma pouca de agua, o que é que fica? é agua, é +carne ou é sal? + +--Essa agora é mais fina, não fica nem uma coisa nem outra, o que fica é +caldo. + +--Ora pois ahi tens tu: a agua eram os lusitanos, os romanos foram o +sal, e os visigodos a carne, e de tudo isso saíu uma cousa nova, um povo +novo, este caldo que depois veio a chamar-se portuguez, que é no fundo +lusitano, como o caldo é agua, e a que Roma deu o sal que foi a +idéa, e os visigodos a carne que foi a força. + +Acharam graça á comparação os bons dos saloios e o João da Agualva +proseguiu d'esta maneira: + +--Mas as cousas não ficaram por aqui, porque no anno de 756 appareceu de +repente em Hespanha gente nova. Eram os mouros. Esses, em vez de vir do +norte, vinham do sul. Seguiam uma religião nova, a de Mafoma. Não eram +uns selvagens, como tinham sido os visigodos. Traziam uma civilisação, e +das mais apuradas. Por isso a lucta que se travou foi medonha: +civilisação contra civilisação, Jesus contra Mafoma. Primeiro venceram +os mouros. Na batalha do Guadalete foram os visigodos vencidos, e morto +o seu rei Rodrigo. Em pouco tempo tinham os mouros tomado toda a +Hespanha. A nossa terra lá foi tambem para elles. Só nos montes das +Asturias, que são levados de quantos diabos ha, um punhado de visigodos +continuou a resistir, commandados por um tal Pelayo, que foi o primeiro +rei das Asturias. Metteram-se os mouros com elle, levaram para o seu +tabaco. Deixaram-n'o lá estar no seu reino, que era como quem diz um +ninho de aguia, encarapitado no cucuruto das montanhas, e c'o a breca, +parece-me que uma aguia c'o as azas estendidas fazia-lhe sombra a elle +todo. A pouco e pouco foi augmentando. Agora tomava-se uma cidade, +logo outra; a grão e grão, diz o proverbio, enche a gallinha o papo. +D'ahi a duzentos annos já os visigodos tinham tirado aos mouros terras +bastantes para formar não só um reino, mas uns poucos. A moda que havia +de se dividir o reino pelos filhos de um rei que ía para o outro mundo, +dava este resultado. Deixemos, porém, isso, e vamos a saber o que era +feito de nós. + +--Isso é que é, acudiu o Bartholomeu, os hespanhoes que tratem de si. + +--Pois nós faziamos parte do reino que se chamou reino de Leão; quando +digo nós, quero dizer de Coimbra para cima, porque, entre Coimbra e +Lisboa, umas vezes era-se mouro e outras vezes christão, mas de Lisboa +para baixo não havia duvida nenhuma, era tudo moirama. + +--Mas então, vamos a saber, isto era já Portugal ou não era Portugal? +perguntou o Zé Caneira. + +--Ora com que tu vens! Sabes o que era Portugal? Era, para assim dizer, +o Minho. Havia Portugal e havia o condado de Coimbra. Portugal +chamava-se assim porque na foz do Douro havia uma terra que se chamava +_Cale_, que depois se mudou em Gaya, e vae defronte mesmo á beira do +rio, começou a levantar-se outra terra que se chamou _Portus Cale_ ou +_Porto de Cale_. Esta terra é o que se chama hoje simplesmente _Porto_, +e o nome de _Porto de Cale_, que se foi mudando em Portugal, dava-se +a tudo o que ficava para o norte do Douro. E aqui está, meus amigos, +como Portugal deve o seu nome ao Porto, exactamente como depois lhe veio +a dever a liberdade. + +--E então Coimbra já não era Portugal? + +--Não, rapaz. Coimbra era outro condado, tambem christão, mas que tinha +existencia sobre si. Ora o que lhes digo, meus amigos, é que a corneta +do destacamento que chegou hoje está já a tocar a recolher, que são +horas de se ir chegando cada um para suas casas, e que no proximo +domingo continuaremos a nossa historia. + + + + +TERCEIRO SERÃO + +D. Affonso VI de Leão.--O conde D. Henrique.--D. Thereza.--O conde de +Trava.--Batalha de S. Mamede.--Egas Moniz.--Fundação da monarchia.--D. +Affonso Henriques.--Os cruzados.--D. Sancho I.--D. Affonso II.--D. +Sancho II.--D. Affonso III. + + +--Viram vocês, meus amigos, tornou o João de Agualva, no domingo +immediato, que o Portugal de agora, ahi pelo anno mil, pouco mais ou +menos estava, do Mondego para baixo, quasi todo em poder dos mouros, e +do Mondego para cima distribuido em dois condados, um que se chamava de +Portugal, que era como quem diz do Porto, e o outro que se chamava de +Coimbra, e ambos estes condados faziam parte do reino de Leão, onde +governava um rei de cabellinho na venta, chamado o sr. D. Affonso VI. +Ora, como D. Affonso VI tinha sempre guerra com os mouros, e como n'esse +tempo o grande pratinho para um principe ou para um fidalgo, era jogar +as cristas com elles, tanto que os íam buscar a casa de seiscentos +diabos, só para lhes dar tapona, aconteceu que dois francezes, chamados +um Henrique e outro Raymundo, ambos primos, e ambos da casa de Borgonha, +em vez de ir á Palestina, vieram aqui a Hespanha, que lhes ficava mais +ao pé da porta, pedir para dar tambem as suas garfadas nos de Mafoma. +Não havia duvida, a mesa estava sempre posta e podiam servir-se á +vontade. Deram bordoada de crear bicho, e o D. Affonso VI, que viu que +eram uns valentões, e que lhe podiam prestar para muito, casou-os com +duas filhas que tinha, uma legitima filha do matrimonio, e outra cousas +e tal etc. A primeira chamava-se Urraca e foi para o Raymundo, a segunda +chamava-se Tareja ou Thereza, e dizem até que era uma rapariga de truz, +para o Henrique. Ora ao primeiro, como era casado com a legitima, deu +elle o governo de toda a parte do reino, que ficava á borda do mar, +desde os altos da Galliza até ás proximidades do Tejo, e a D. Henrique +deu especialmente os condados de Portugal e de Coimbra, ficando sempre +sujeito ao primo. Ha quem diga que Portugal veiu como dote de D. Tareja! +Tó carocho! N'esse tempo nem os paes davam dotes ás filhas, os que +queriam casar com ellas é que ainda davam alguma cousa. + +--E acho isso muito bem entendido! exclamou vivamente o Zé Caneira, que +tinha uma filha casadoira. + +--Pois sim! redarguiu sorrindo o João da Agualva. O que é certo é que a +moda não pegou. D. Henrique, porém, ficou sendo vassallo de Affonso VI, +e empenhou-se em alargar os seus dominios, dando pancadaria nos mouros. +Muito cedo deixou de ser sujeito a seu primo, e teve a sua capital em +Guimarães, que por isso se chama o _berço da monarchia_. Mas este D. +Henrique parece que tinha bicho carpinteiro, foi á Palestina, como se +não tivesse por cá mouros com fartura, e, quando o sogro morreu deixando +o throno á cunhada D. Urraca, que já então era viuva, o bom do conde +metteu-se em todos os barulhos que lá íam por Hespanha, para ver se +apanhava mais alguma cousa para si. Qual carapuça! não apanhou nada, e +ía perdendo muito, porque os mouros, que se viram á larga, começaram a +fazer-se finos, e já subiam por ahi acima, como quem estava com desejo +de se espreguiçar o seu pedaço nos montes verdes de Coimbra. + +No meio d'esta azafama toda, morreu em 1114 o honrado conde deixando uma +viuva muito frescalhota ainda, e um filho pequeno que teria os seus tres +annos, e se chamava Affonso Henriques, que é o mesmo que se dissesse +Affonso filho de Henrique, assim como Sanches queria dizer filho de +Sancho, Fernandes filho de Fernando, e Martins filho de Martim. + +--Ora essa! exclamou um que até ahi estivera silencioso, aqui estou eu +que me chamo Antonio Martins, e mais meu pae chamava-se José. + +--Pois isto que eu digo, tornou João, era n'aquelle tempo, depois os +nomes ficaram, mas já sem se lhes saber a significação, como acontece a +muitas outras cousas. + +A mãe de D. Affonso Henriques, que era uma mulher bonita e +desembaraçada, continuou a andar por cercos e batalhas, sempre a ver se +isto cá em Portugal ficava independente, e, emquanto ella assim +procedeu, correu tudo bem; mas isto de mulheres sempre são mulheres--não +se zangue, tia Margarida--e D. Thereza lá teve o seu fatacaz por um +conde gallego, Fernão Peres de Trava, que d'ahi a pouco era quem punha e +dispunha em Portugal. Não agradava isso muito aos nossos fidalgos, e +menos ao rapazelho, que era levadinho da bréca, esperto como um alho, +valente como seu pae, e que fôra de mais a mais educado por um fidalgo +ás direitas, um tal Egas Moniz, portuguez dos quatro costados. Já se vê +que o aio não lhe ensinou a revoltar-se contra sua mãe, e até devo dizer +que são verdadeiras patranhas muitas das cousas que a esse respeito se +contam. Por exemplo, diz-se que o rapazote andava ás bulhas com a mãe, e +que o rei de Leão, D. Affonso VII, viera em soccorro da tia contra o +primo. Peta! D. Affonso VII veiu a Portugal, é verdade, mas foi para +obrigar a infanta-rainha (assim lhe chamavam) e o filho e os fidalgos e +todo o povo a reconhecer a sua suzerania. Apanhou o rapaz em Guimarães, +cercou-o, e pôl-o deveras em talas. Egas Moniz foi ter com elle, e +disse-lhe que se fosse embora e que lhe empenhava a sua palavra que a +sua suzerania seria reconhecida. Affonso VII assim o fez, e partiu d'ali +contra D. Thereza, que essa reconheceu-o immediatamente por seu senhor e +suzerano. Mas D. Affonso Henriques, livre do primo, pediu á mãe que +fizesse favor de lhe dar o governo a elle, que sempre era mais portuguez +que o conde de Trava. Este disse á rainha que não tivesse cuidado, que +elle iria dar uma duzia de palmatoadas no pequeno. Foram boas as +palmatoadas! Em S. Mamede, ao pé de Guimarães, e no anno de 1128, o +conde gallego levou uma esfrega, e teve de se pôr a andar, levando +comsigo D. Thereza. De fórma que nem D. Affonso Henriques prendeu a mãe, +nem fez cousa que se parecesse com isso. Quiz apenas governar, porque +tinha o direito de o fazer, e porque os barões portuguezes estavam +fartos de aturar o gallego. E a vassallagem que promettera a D. Affonso +VII? Boa vae ella! Mesmo agora D. Affonso Henriques pozera fóra o +gallego para se sujeitar ao de Leão! Nem se pensou em tal. Mas Egas +Moniz tinha dado a sua palavra, e não queria que um patife de um +estrangeiro dissesse que havia portuguezes desleaes. Não contou nada +ao seu querido discipulo, e foi até dos primeiros a aconselhar que se +mantivesse a independencia, mas agarrou em si, na mulher e nos filhos, e +foram todos de corda ao pescoço ter com o rei de Leão, e dizer-lhe: +«Para resgatar a minha palavra, só tenho a minha cabeça e a dos meus! +Ellas aqui estão!» O rei ficou assombrado d'este acto de lealdade e +mandou-os embora com palavras de muito louvor. + +--Homem! isso agora parece-me asneira! acudiu o Zé. Que diabo de culpa +tinha elle que esse D. Affonso Henriques não fizesse o que promettera? + +--Nenhuma, bem sei! mas elle é que ficára por fiador. Outro seria que +dissesse: Eu quiz, mas não pude. Elle foi mais franco e disse: Não pude +e não quiz. O interesse da nação oppunha-se a isso, mas a minha vida ha +de resgatar a minha palavra, e não se fundará n'uma deslealdade a nova +monarchia. + +--Aquillo é que eram homens! murmurou o Manuel da Idanha. + +--Espera que tu vaes ver o que era um homem. Este Affonso Henriques +digo-te que foi mesmo fadado para fundador de reino. Não parava um +instante. No principio do governo, andou sempre á bulha com o primo, e +com os gallegos, e tudo era ver se passava o Minho; mas um bello dia +olhou para o sul, e percebeu que para ali é que havia muito que fazer. +Os mouros começavam a dar signal de si, e a romper de novo por ali +acima. Em 1139, Affonso Henriques vae só n'uma galopada até ao Alemtejo, +derrota os mouros em Ourique, e volta para casa. A respeito de Ourique +tem havido mosquitos por cordas. Diz-se que appareceu Nosso Senhor a D. +Affonso, que este foi ali acclamado rei pelos soldados, que aquillo foi +uma batalha formidavel, etc. Eu cá não me metto n'essas cousas. Que +Nosso Senhor Jesus Christo apparecesse crucificado a D. Affonso +Henriques, é muito possivel, Deus póde fazer estes milagres, sempre que +lhe aprouver, e milagre de Deus foi a nossa historia toda. Sem a ajuda +de Nosso Senhor mal podia este pequeno povo fazer o que fez. Que a +batalha fosse muito importante, não me parece, pelo menos não teve +consequencias; ficou tudo como d'antes, e o que se não póde dizer é que +o quartel general fosse em Abrantes, porque a Abrantes ainda nós não +tinhamos chegado; que os soldados se lembrassem de acclamar D. Affonso +Henriques rei n'essa occasião tambem me parece historia. Sou capaz de +apostar que rei já lhe chamavam ha muito tempo, como chamavam rainha á +mãe; de mais a mais, esse titulo de rei, que affirmava mais a nossa +independencia, onde se deveria dar era n'uma batalha contra os leonezes, +mas n'uma batalha contra os mouros, que tanto se importavam que Portugal +fosse independente, como que fosse vassallo de Leão, a quem tanto +convinha que Affonso Henriques fosse rei como que fosse conde, não +se percebe. Diz-se tambem que foi nas côrtes de Lamego que o titulo se +confirmou. Ora adeus! Côrtes com clero, nobreza e povo ainda cá se não +faziam. E de mais, quem diz isso parece que imagina que n'aquelle tempo +se passavam as cousas como agora, e que isto de fazer rei um conde +soberano era negocio que se não podia praticar sem grandes ceremonias e +ajuntamentos. Boas noites, meus amigos. Oiçam vocês o que succedia! +Morria o rei de Leão, por exemplo, e dividia os estados pelos filhos, e +aqui ficava sendo um rei da Galliza, o outro rei de Leão e o outro de +Castella. E depois juntavam-se os estados, e já não havia reinos nem em +Galliza, nem em Castella, depois tornavam-se a separar, e assim andavam, +sem maior massada. D. Affonso Henriques fizera-se independente, era o +essencial, depois começaram a chamal-o rei, e rei se ficou chamando. O +que elle fez, como era espertalhão, para garantir a conservação do +reino, foi declarar-se vassallo do papa, e mandar-lhe pagar um pequeno +tributo, para que o pontifice lhe valesse. A manha não era má; n'aquelle +tempo quem tinha por si a côrte de Roma tinha tudo. + +Mas o caso não era chamar-se uma pessoa rei, era ter um reino que +merecesse o nome, e esse Portugalsito, que vinha apenas do Minho até ao +Mondego, para fallar a verdade, não parecia lá um grande reino. E +vae D. Affonso Henriques disse então com os seus botões: Toca a +alargal-o! Ora o que faz um de vocês quando se vê com uma terrola para +seu grangeio? Cospe nas mãos, agarra na enchada, começa a fossar o chão, +e ali está desde pela manhã até á noite. D. Affonso Henriques fez o +mesmo, cuspio nas manoplas, arrancou do montante, e elle ahi vae para a +faina em que andou desde pela manhã até á noite, quer dizer, desde que +lhe apontou o buço até que a morte pregou com elle na sepultura. O +montante era a sua enchada, rapazes, e, a cada enchadada, saía do chão +sarraceno agora Santarem, depois Lisboa. Ah! meus amigos, que vida! +Aquillo era um lidar continuado! Elle casou com uma princeza de Saboya, +a sr.ª D. Mafalda, mas estou em dizer que não foram muitas as noites em +que dormio muito bem aconchegado com ella nos seus paços de Coimbra. +Alta noite lá ía elle tomar Santarem, de surpreza, e outra vez +constava-lhe que ía uma gente do norte fazer guerra aos mouros na +Palestina, para defender contra elles o sepulchro de Christo, e vae D. +Affonso Henriques ía logo á beira-mar ter com os homens, e pedir-lhes +que descançassem aqui um pedaço, e que o ajudassem ao mesmo tempo na sua +tarefa de todos os dias. Elles não se fizeram rogar, desembarcaram, e +d'ahi a pouco estava Lisboa no poder dos nossos. Muitos d'elles por cá +ficaram, porque D. Affonso Henriques deu-lhes terras, e até ha por +ahi povoações que ainda se chamam com os nomes d'elles, por exemplo +Villa Franca, que é como quem diz villa dos Francos, etc. + +--Então os de Villa Franca são estrangeiros? perguntou o Manuel da Idanha. + +--Qual carapuça, homem! Tu não te lembras da minha comparação do caldo? +Não é sal, nem agua, nem carne; mas tem carne, agua e sal. A carne eram +os godos, a agua os luzitanos e os romanos o sal; pois tambem no caldo +se deita ás vezes o seu raminho de hortelã ou de segurelha, que sempre +lhe dá assim um sabor mais cousas, tal, etc., pois esses raminhos de +segurelha e de hortelã foram os estrangeiros, que aqui vieram a Portugal +e por cá se deixaram ficar. Vieram tambem contribuir para fazer o nosso +bom caldo portuguez. + +--É bem achado, sim senhor, observou a tia Margarida. + +--Pois assim mesmo é que é. Ora já vocês vêem que o pobre do D. Affonso +não podia estar muito tempo socegado. Hoje tomava Cintra, amanhã Mafra, +no outro dia Palmella, no outro Abrantes! Era um vivodemonio. Os mouros +com elle andavam n'um sarilho. Por isso tambem tinham-lhe tomado um +medo! Fallarem-lhes no Ibn-Errik, assim lhe chamavam elles na sua +lingua, como quem diz _filho de Henrique_, fallarem-lhes em Ibn-Errik, +era o mesmo que fallarem-lhes no diabo. E que gente que elle tinha! +homens como um Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morreu combatendo, +e mais andava já pelos noventa annos, e um que tomou Evora, Giraldo sem +Pavor, e outro que tomou Beja, cada qual por sua conta e risco. Gente +levadinha da bréca, isso é que é fallar a verdade. + +Mas, emfim, meus amigos, ainda que se diz «pedra movediça não cria +bolor», sempre dá o caruncho n'uma pessoa, por mais que ella se mexa e +trabalhe. D. Affonso envelheceu, mas antes d'isso já deitára um filho +que era o seu retrato, valente como elle, e homem de grande talento, D. +Sancho, que foi depois rei. Podia morrer descançado D. Affonso +Henriques, deixava a sua espada em boas mãos e a sua corôa em boa +cabeça. E com essa consolação morreu em 1185 el-rei D. Affonso +Henriques, depois de ter não só tornado o reino independente, mas de o +ter alargado até ao meio do Alemtejo, e principalmente de ter tomado +Lisboa que era, como diz o outro, a menina dos olhos dos arabes, a +cidade sem a qual não se podia fazer cá para estas bandas cousa que +geito tivesse. Ah! meus amigos, se algum de vocês fôr alguma vez a +Coimbra, e entrar na igreja de Santa Cruz, suba até á capella mór, e +olhe para os dois tumulos que ali se vêem, pergunte qual é o de D. +Affonso Henriques, e depois ajoelhe diante d'elles, porque, com +seiscentos diabos, se nós hoje não somos para ahi uns gallegos e uns +andaluzes, se démos que fallar no mundo, e praticámos cousas que fazem +com que uma pessoa tenha orgulho de se chamar portuguez, oh! com a +bréca, é a elle que o devemos, porque, como lá diz o outro, de pequenino +se torce o pepino», e este reino de Portugal era bem pequerrucho ainda, +quando esse homem de ferro levou a sua vida inteira a costumal-o a fazer +cousas grandes. + +E o bom do João da Agualva limpou o suor, que lhe escorria pela testa +com o enthusiasmo que o inflammava. Os seus companheiros escutavam-n'o +silenciosos, e já não faziam interrupções nem observações. Estavam +deveras interessados com a narrativa. + +--Meus amigos, continuou o João da Agualva, no governo como na lavoura +ha tempo para tudo, agora cava-se e depois semea-se. Primeiro compra-se +a terra e depois é que se amanha. Pois assim foi em Portugal; D. Affonso +Henriques ou D. Affonso I conquistára, D. Sancho tratou de povoar. Por +isso a historia chamou _conquistador_ ao primeiro e _povoador_ ao +segundo; e olhem que isso não quer dizer que D. Sancho não fosse tambem +um guerreiro de truz. Tó carocho! Já na vida do pae elle dera que +fallar. Apenas o pae morreu, começou elle a namorar uma terra do +Algarve, que hoje está bem decaída, mas que n'esse tempo era, por assim +dizer, a Lisboa lá do sul--Silves. Não se lhe mettia dente, porém, +com facilidade. Para ir lá por terra, era custoso como o demonio, para +ir por mar, é de saber, meus rapazes, que o sr. D. Sancho I ainda não se +lembrára de comprar nem a fragata _D. Fernando_, nem esse navio com que +andam por ahi sempre os jornaes aos tombos, e a que uns chamam o +_Pimpão_ e os outros o _Vasco da Gama_. + +Uma gargalhada geral mostrou que os bons dos ouvintes tinham apanhado +facilmente o chiste do jovial anachronismo do narrador. + +--Mas, meus amigos, isto de Portugal ficar no caminho da Palestina para +os christãos que vinham lá das terras do norte, foi uma verdadeira +pechincha. Descançavam aqui e sempre havia por cá algum biquinho de +obra. Foi o que succedeu tambem d'esta vez. D. Sancho apanhou uma frota +de cruzados... + +--Novos? perguntou o Zé. + +--Novos eram elles, que não costumavam vir para a guerra os carecas como +tu; mas é de saber que se chamavam cruzados aos christãos que tinham ido +tirar o sepulchro de Christo das mãos dos infieis, e que depois o +defendiam. D. Sancho apanhou pois uma frota de cruzados, e disse-lhes +d'esta maneira: + +«--Vocemecês é que me podiam fazer um favor. + +«--Se estiver na nossa mão!... + +«--Lá isso está. É simplesmente acompanhar-me ali a baixo a Silves, +e ajudar-me a intimar mandado de despejo aos mouros que lá estão dentro. +Eu fico com a cidade, e os senhores levam as riquezas que se apanharem. + +«--Vá de feição. + +E foi. Tomou-se Silves, tanto mais que lhes ficava na estrada, e não +tinham de torcer caminho. Mas D. Sancho não poude continuar com essas +funçanatas, porque os mouros cá da peninsula, que começavam a estar +assim esmorecidos, receberam de repente uns reforços da Moirama, e... +não lhes digo nada, vieram outra vez por ahi acima que parecia que +tornava a haver invasão. Foi uma torrente que levou tudo adiante de si. +O Tejo tornou a ser a fronteira de Portugal, e apenas no Alemtejo uma +terra ou outra surgia ainda, como uma ilha, com a bandeira portugueza, +d'entre as ondas da mourisma. Então D. Sancho pensou que primeiro que +tudo era necessario tratar do que era seu, e começou n'uma lida +abençoada: elle mandou vir gente do norte da Europa para povoar os +nossos campos desertos, elle edificou, elle fez castellos, elle cuidou +emfim de tudo, e não se esqueceu tambem de mostrar aos bispos que tinha +muita contemplação por elles, emquanto se limitavam ás suas rezas, mas +que lhes não permittia metter o nariz assim de muito perto nos negocios +do estado. A final, este bom rei morreu, menos velho que o pae, em 1212. +Tinha sido casado com uma princeza chamada D. Dulce, filha do conde +de Barcelona. De fórma que aqui temos pois já duas rainhas de Portugal, +D. Mafalda e D. Dulce. + +O filho mais velho de D. Sancho, que veiu a ser rei depois d'elle, não +se parecia muito, valha a verdade, nem com o pae, nem com o avô, mas +olhem que nem por isso foi menos util cá ao nosso paiz. É o que eu digo. +Cada qual tem a sua tarefa. Uns cavam, outros semeam, outros põem fóra +os pardaes e arrancam o joio, que podem dar cabo da ceara. Foi esta a +tarefa de D. Affonso II. Ora vêem perfeitamente que, se este Portugal +tão pequeno se começasse a dividir, pedaço para aqui, pedaço para acolá, +ía-se tudo quanto Martha fiou. D. Sancho, que tivera uma sucia de +filhos, pensára mais em os deixar bem arranjados do que em assegurar a +conservação do reino. Por isso no testamento era umas mãos rotas. Esta e +aquella villa para o senhor infante fulano, esta e aquella cidade para +sicrano, e terras para este, e terras para aquelle. D. Affonso II +arrebitou a venta, e disse d'este modo: Então vamos a saber, e eu com +que fico? E ahi começa á bulha com as irmãs e com os fidalgos. Andava +tudo em polvorosa com elle. Os fidalgos, por exemplo, tinham recebido de +D. Affonso e de D. Sancho esta ou aquella terra, mas íam-se fazendo +finos, e por sua conta e risco íam apanhando mais alguma, os frades +então nunca chegaram á cabeceira de um moribundo que não apanhassem +algumas terras de bom rendimento. Isto assim não póde ser, berrava D. +Affonso II, ás duas por tres fico a olhar ao signal. E elle ahi vae por +essas provincias fóra, a obrigar os fidalgos a pôr para ali os titulos +das suas propriedades, declarando que não valiam senão os que elle +confirmasse, e foi a isso que se chamou _confirmação_. Ao mesmo tempo +prohibia ás corporações religiosas que tivessem mais terras do que as +que tinham. Emquanto ao testamento de D. Sancho I, cumpriu só o que lhe +parecia bom, e, como as irmãs refilassem, houve pancadaria a menos de real. + +--Então, por esse andar, os mouros deviam ter vida folgada com elle? +observou o Francisco Artilheiro. + +--Lá isso é verdade, e tanto assim que, quando se tomou Alcacer do Sal, +os cruzados, que nos ajudaram, e que nunca pozeram a vista em cima do +soberano, imaginaram que era uma rainha que governava em Portugal; mas, +meus amigos, olhem que o nosso paiz não lhe deve menos por isso. Se as +infantas começam a puxar para um lado, os fidalgos a puxar para o outro, +e ainda os frades a arrancar tambem as terras, n'um abrir e fechar +d'olhos tinhamos para ahi vinte reinos, e adeus Portugal. Mas o +gordanchudo do Affonso II, apesar de se não importar para nada com +os mouros, tinha cabellinho na venta; e por isso os frades foram +prohibidos de ter mais terras, as infantas tiveram de pôr para ali as +cidades que o pae lhes tinha deixado, porque D. Affonso II disse-lhes +que a respeito de corôa em Portugal não havia senão uma, e finalmente os +fidalgos tiveram de receber d'elle as terras mas por favor e mercê real. +De fórma que, a 25 de março de 1223, quando morreu apenas com trinta e +seis annos de idade, Portugal era pequeno, mas estava todo na mão do +rei, o que já era grande façanha. + +--E o filho foi pelo mesmo caminho, sr. João? perguntou o Manuel da Idanha. + +--Ora, meu amigo, eu te vou dizer o que succedeu ao filho, e por aqui tu +verás se o que eu acabo de dizer não é verdade, e se não ha na historia +exemplos para tudo. O filho era creança, quando subiu ao throno, por +conseguinte foi necessario haver regencia. Chamava-se Sancho o +pequenote, Sancho II, por alcunha o _Capello_, porque em creança andara +com um capuz de frade, lá por promessa da mãe, ou cousa assim. Quem +ficou com o governo foram os ministros do pae, e, ainda que eram homens +de truz, sempre lhes faltava a auctoridade que tinha um rei. De fórma +que toda aquella nobreza e fradaria, quando se viu assim á solta, livre +da mão de ferro de D. Affonso II, começou a alvorotar-se, e os +ministros, para os terem quietos, íam dando o que elles pediam. As +infantas apanharam as cidades, os frades foram juntando terras ás que já +tinham, e parece que o rei andava umas vezes nas mãos de uns, outras +vezes nas mãos de outros. Pouco se sabe d'aquelle tempo. Ia pelo reino +todo uma confusão de seiscentos demonios. O que é certo é que, quando D. +Sancho II chegou á maioridade, estava já tão costumado a não ser rei que +não soube puxar pelos seus direitos. E não era que elle fosse fraco. +Pois não! pelo contrario! Era da raça do avô, não estava bem senão a +cavallo e com os mouros de volta. Tomou uma boa parte do Alemtejo e do +Algarve, mas fidalgos e frades esses faziam o que queriam e sobrava-lhes +tempo. Vêem vocês? Para uma pessoa governar não basta ser um valentão. +Ás vezes um porta-machado, com umas barbaças por ahi alem, anda em +bolandas nas mãos de um creançola, outras vezes uma fraca figura faz +andar um regimento ali direitinho que nem um fuso. D. Affonso não queria +nada com os mouros, o que o não impedia de governar como um homem; para +D. Sancho as batalhas eram o pão nosso de cada dia, e em Portugal todos +governavam menos elle. Cousas da vida! Como os fidalgos faziam o que +lhes dava na cabeça, e os frades tambem, e os bispos a mesma cousa, +parecia que deviam estar todos muito satisfeitos. Mas não succedia +assim. Os bispos queixavam-se dos fidalgos, estes queixavam-se dos +frades, e todos do rei, os frades porque não reprimia os bispos, os +bispos porque não tinha mão nos fidalgos, os fidalgos porque não puxava +as orelhas ao clero. Quando elle saltava nos mouros, ainda as cousas não +corriam mal. A fidalguia gostava d'aquillo, íam todos atrás do rei, e +não se pensava em mais nada. Mas, quando uma hespanholita, chamada D. +Mecia Lopes de Haro, caiu em graça ao rei, que casou com ella, e que +passou os dias a namorar os olhos pretos da rainha, lá se foi tudo +quanto Martha fiou. A desordem excedeu todos os limites, e os bispos +foram ter com o papa a fim de lhe pedirem que tirasse a corôa a D. +Sancho II. O papa, que era Innocencio IV, pulou de contente com o +pedido. Era o mesmo que virem-lhe dizer que era elle quem dava e tirava +as corôas n'este mundo, e que vinha a ser portanto o rei dos reis. +Estava em França n'esse tempo um irmão de D. Sancho II, chamado D. +Affonso, que saíra de Portugal para ir correr terras, encontrára em +França uma condessa de Bolonha, viuva, e já durazia, ao que parece, que +gostou d'elle e com elle casou, levando-lhe o condado em dote. Ora o tal +condado era uma especie de reino, sujeito ao rei de França, que n'esse +tempo era o rei santo que elles tiveram, a saber S. Luiz. + +--S. Luiz rei de França, interrompeu a Margarida, é uma igreja que +fica ali para as bandas do Rocio. + +--Pois é uma igreja e foi um rei, tia Margarida, respondeu o João de +Agualva, como Santa Izabel é uma igreja que fica ali para as bandas da +Estrella, o que a não impediu de ser tambem uma rainha e rainha de +Portugal. + +--Isso é verdade! confirmou a tia Margarida. + +--Pois então, como lhes ía dizendo, reinava S. Luiz em França, e D. +Affonso, seu vassallo, por ser conde de Bolonha, fôra com elle á guerra, +e déra provas de ser homem desembaraçado. Lembraram-se d'elle para rei, +e D. Affonso, que era ambicioso, acceitou. Os bispos e os fidalgos +disseram comsigo que um rei feito por elles havia de ser um creado que +tivessem ali no throno, e o papa entendeu tambem que aquillo era «senhor +mandar, preto obedecer». Combinou-se tudo. D. Affonso prometteu quanto +quizeram e ahi vae elle caminho de Portugal, fingindo que ía para a +Terra Santa. Desembarca e principia a guerra civil. Tambem se não sabe +muito do modo como as cousas se passaram. Parece que foi uma guerra +levada do diabo como são sempre as guerras civis, queimaram-se villas e +cidades, arrasaram-se muitas cearas, ficou muita gente na miseria, e o +pobre D. Sancho viu-se abandonado por todos, dizem até que pela mulher, +que fôra, a final de contas, o motivo de todas aquellas cousas. +Houve só um ou outro que se lhe mostrou fiel. D. Sancho teve de saír do +nosso paiz, e foi para Hespanha, onde morreu em Toledo apenas com trinta +e sete annos. + +--Pobre do homem! acudiu compassiva a tia Margarida. Então que mal tinha +elle feito áquella gente toda? + +--Era um rei fraco, e, como se costuma dizer, não era nem para si nem +para os outros. Até a mulher não fez caso d'elle, porque as mulheres são +assim: em estando uma pessoa embasbacada a olhar para ellas, não fazem +caso nenhum, e ás vezes de quem gostam é de quem lhes chega um _calor_ +ao corpo, como o outro que diz. + +--Vae-te excommungado, bradou indignada a tia Margarida. Se um homem me +batesse, eu até parece que era capaz de lhe arrancar os olhos. + +--Pois sim, tia Margarida! não digo menos d'isso. Mas a rainha D. Mecia +não era do mesmo parecer, e pagou bem as pieguices de D. Sancho!... Só +de dois fidalgos se conta que se mostraram fieis ao desgraçado rei. Um +foi o alcaide de Celorico, que até dizem que fez uma partida com graça. +Estava-o cercando D. Affonso, e elle já não tinha nem uma migalha de +pão, n'isto passa uma aguia por cima da praça com uma truta no bico, e +deixa-a cair dentro da villa. O alcaide, em vez de a comer, manda-a +cosinhar muito bem, e envia-a de presente aos cercadores. D. +Affonso, vendo que na praça havia petiscos d'aquelles, entendeu de si, +para si que estava perdendo o tempo e o feitio, e foi-se embora. Póde +ser que isto seja patranha, mas o que é verdadeiro, sem tirar nem pôr, é +o caso de Martim de Freitas. Esse era alcaide de Coimbra, foi cercado +tambem, não se rendeu. Disseram-lhe que já D. Sancho morrera, e que por +conseguinte era D. Affonso o seu natural successor. Não acreditou. +Affirmaram-lhe que morrera em Toledo. Pediu para ir ver. Deram-lhe um +salvo conducto, e Martim de Freitas, mettendo na algibeira as chaves de +Coimbra, foi de passeio até Toledo. Mostraram-lhe o tumulo do rei, +mandou-o abrir; mostraram-lhe o caixão, quiz ver o corpo; e ao ver emfim +o pobre cadaver do seu rei, que assim morrera aos trinta e sete annos, +longe da sua terra e longe dos seus, ajoelhou e poz as chaves da cidade +nas mãos do rei que lh'as entregára; depois, tirou-as d'essas mãos já +frias que as não podiam segurar, e partiu para Coimbra, entregando-as ao +novo rei, que louvou muito a acção. + +--E tinha rasão para isso, tornou a tia Margarida, que estava sendo +agora a interruptora, mas com o tal rei novo é que eu não engraço nada. +Olhem que irmão! Sempre tinha uns figados! + +--Não era muito boa rez, não, tia Margarida, mas então n'este mundo não +são só as boas pessoas que servem. Que D. Affonso se importava tanto +com a familia como eu me importo com a familia do imperador da China, é +o que não tem questão, mas que foi um grande rei, isso tambem é verdade. + +--Era fresco o tal rei, que assim fazia guerra ao irmão sem mais nem menos! + +--Ha mais exemplos d'isso, tia Margarida, e não vão elles tão longe que +uma pessoa se não possa lembrar. Mas olhe que não param ahi as maldades +de D. Affonso. Tambem não fez caso da mulher, a tal condessa de Bolonha, +que nunca foi capaz de pôr pé em Portugal, e casou, em vida d'ella, com +uma filha do rei de Hespanha. + +--E ainda você o gaba, sr. João? perguntou a tia Margarida. Sabe o que +eu lhe digo? Parece-me que você é tão bom como elle! + +--Olhe, tia Margarida, não me rogue você nunca outra praga, que lá com +essa não me hei de eu dar mal. O que lhe disse é que o sr. D. Affonso +III foi um dos reis que fizeram mais bem ao pobre povo, e sabe vocemecê +porque? Porque era homem de cabeça, e o que succedera com elle não tinha +caído em cesto roto. Elle disse comsigo; Estes patifes d'estes fidalgos +e d'estes bispos são capazes de me fazer a mim o mesmo que fizeram a meu +irmão. Ora, eu sósinho não posso com elles. A quem me hei de encostar? +Olhou em torno de si e vio o povo, o povo em quem ninguem fallava, e que +era a final de contas quem pagava as custas dos barulhos entre os +grandes, o povo que pagava tributos a toda a gente, e que mesmo quando +vivia em seus concelhos governando-se pelos seus foraes, que eram para +assim dizer as suas leis, mesmo então era ralado pela fidalguia. E +Affonso III disse comsigo: Ora ahi está quem me serve. E desata a fazer +concelhos, e, quando reuniu côrtes que até ahi eram só de fidalgos e +padres, chamou tambem procuradores do povo, e favoreceu o mais que poude +o seu negocio, e deu-lhes socego e cousas e tal, de fórma que depois +poude dar para baixo nos prelados, que berravam pelos contractos que +tinha diabo, mas D. Affonso III, que era finorio, abanou-lhes as +orelhas. E que os papas tinham deposto não só o rei D. Sancho II, mas +tambem um imperador da Allemanha, de modo que aos chefes dos estados já +ía cheirando a chamusco, e principiaram a fazer parede contra o papa. +Assim os bispos, que levavam tapona de D. Affonso III, íam a Roma fazer +queixas ao papa, e o papa naturalmente respondia-lhes contando-lhes uma +fabula que lhes vou contar a vocês tambem. + +--Conte lá sr. João da Agualva, exclamou o Manel da Idanha, ainda que +eu, a dizer a verdade, não sei lá muito bem o que venha a ser isso de +_fava_ ou _fabula_ ou o que é. + +--Fabula é assim uma historia em que os animaes fallam como se fossem +gente, e pelo que elles dizem tira a gente... sim... é como diz o outro +pelos domingos se tiram os dias santos... Eu lá, a estas +explicações, não se póde dizer que seja um barra, mas em fim, em eu +contando o caso, logo vos apercebem. + +--É isso mesmo, tio João, conte lá, disse o Bartholomeu. + +--Uma vez as rãs foram ter com Deus Nosso Senhor e pediram-lhe um rei, e +Deus Nosso Senhor, que estava de maré, não quiz abusar das pobresinhas, +e atirou-lhes para o charco um cepo; mas o cepo não fazia nada, andava á +tona da agua, para aqui e para acolá, as rãs não lhe tinham respeito +nenhum, e saltavam n'elle, qual debaixo qual de cima, e o cepo sempre um +paz d'alma, que tanto valia terem rei como não o terem. Vae então as rãs +voltaram a Deus Nosso Senhor, e disseram-lhe d'esta maneira: Dê-nos +Vossa Divindade um rei que se veja, um rei que nos governe.--Pois então +ahi vae um rei como vocês querem, respondeu Nosso Senhor, e atirou-lhes +para o charco uma serpente, e a serpente, a primeira cousa que fez, foi +engulir as primeiras vassallas que lhe pareceram mais gordas, e depois +outras e outras, de fórma que as pobres rãs já se não atreviam nem +sequer a coaxar para que sua magestade não desse com ellas. Percebem +vocês agora porque é que o papa podia contar esta historia aos bispos +que íam ter com elle? + +--Percebo eu, acudiu logo o Manel da Idanha. É que elles não +descançaram emquanto não pozeram fóra um rei que era um paz d'alma, um +cepo, o D. Sancho II, e foram buscar outro rei que era uma serpente e +que deu cabo d'elles que foi um regalo. + +--Ora, tal qual, sô Manel. Com gente assim é que eu me entendo. D. +Affonso III bem se póde dizer que era uma serpente, porque as serpentes +são manhosas, e elle tinha manha a valer. Mostrou-o em tudo, até no modo +como se assenhoreou do Algarve, que era só o que faltava para Portugal +chegar ao mar pelo lado do sul. Tomou-o aos mouros, e isso foi obra de +pouco tempo; mas o rei de Castella começou a berrar que o Algarve lhe +devia pertencer a elle. D. Affonso III nunca lhe disse o contrario, mas +foi arrastando a entrega, e depois aproveitando tudo, de fórma que ás +duas por tres estava senhor do Algarve, e, quando D. Affonso III morreu, +que foi a 16 de fevereiro de 1279, estava Portugal completo e seguro, e, +visto que chegámos ao fim d'esta primeira parte, parece-me que o melhor +é irmos dormir, que para o outro domingo continuaremos. + +--Mas ó sô João, disse o Manel da Idanha, já agora, faça favor, não +deixe ir a gente embora, sem nos explicar uma cousa. Vocemecê diz que o +rei, para esmurrar as ventas aos bispos mais aos fidalgos, começou a +fazer concelhos por dá cá aquella palha, e lá isso é que eu não +percebo muito bem. Então que diabo tinham os fidalgos com o haver ou o +não haver concelhos? + +--Pois tem rasão, sô Manel da Idanha, e bom é que essas cousas fiquem +explicadas, porque a mim parece-me cá no meu modo de ver que o que nos +importa a nós, que somos do povo, não é tanto saber as batalhas que se +deram, e mais os reis que houve; o que nos importa é saber como é que +viviam os nossos paes, e como se governavam e cousas e tal. Ora pois, +saibam vocês que muitos dos nossos paes eram a bem dizer escravos, não +como os do tempo dos romanos que podiam ser vendidos como uns negros, +mas faziam parte das terras que cultivavam, e com ellas passavam de dono +para dono. Isto foi melhorando, e os servos passaram a ser gente livre, +mas sem ter terras suas; pagavam foros e foros pesados, os senhores das +terras eram os reis, os nobres, os bispos e os mosteiros. As terras dos +reis chamavam-se _terras da corôa_, as dos fidalgos e as da igreja +_coutos_, _honras_ e _behetrias_. Ora os fidalgos, que só tinham +obrigação de servir o rei na guerra e não pagavam mais nada, ou por +herança de seus paes, ou por doações dos reis em recompensa dos seus +serviços, íam mettendo em si o paiz todo, já se vê de embrulhada com os +padres; e os reis pouco tinham de seu, porque, demais a mais, fidalgos, +bispos e conventos apanhavam tudo quanto podiam, o que se lhes dava +e o que se lhes não dava. Por isso D. Affonso fez as taes _inquirições_, +quer dizer, obrigou todos a porem para ali os seus titulos, para se +saber se tinham as terras com direito ou sem elle, estabeleceu mais as +famosas confirmações que punham a fidalguia sempre na dependencia da +corôa, porque cada novo rei confirmava ou não confirmava as doações dos +outros, e finalmente prohibiu aos conventos que arranjassem mais terras. +E vae o povo o que fazia? Sempre que se podia livrar dos fidalgos e dos +padres por qualquer modo e feitio, formava-se um concelho. Então +continuavam a pagar tributo, e serviam nas guerras, mas não estavam +sujeitos a ninguem, governavam-se elles por si, e tinham as terras muito +suas. Ora, como os reis é que os podiam ajudar a ver-se livres da +fidalguia, chegavam-se para elles, e os reis, que tinham nos concelhos +gente que tambem ía á guerra e que lhes pagava tributos, encostavam-se +para esse lado, para terem quem lhes valesse quando os barões ou os +bispos se faziam finos. Aqui tens tu explicado pela rama como cada +concelho, que se formava, era ao mesmo tempo um asylo de liberdade para +o povo e um auxiliar para o rei contra as ameaças dos fidalgos. + +--Muito obrigado, sô João da Agualva, tornou o Manel; mas sempre lhe +digo que quem não sabe é como quem não vê. Ora quem me _havera_ de dizer +que esta historia de ter uma terra, um pelourinho no meio da praça, +era de tanta vantagem cá para o povo! Pois até domingo, e tomára eu que +passasse depressa a semana porque divertimentos como este é que ha muito +tempo a gente não apanha. + + + + +QUARTO SERÃO + +D. Diniz.--A universidade de Coimbra.--Os Templarios.--Santa Isabel.--D. +Afonso IV.--A batalha do Salado.--Morte de Ignez de Castro.--D. Pedro +I.--D. Fernando I.--Leonor Telles.--Estado de Portugal no fim do reinado +de D. Fernando. + + +--Meus amigos, principiou o João da Agualva, corriam os annos, e lá por +esse mundo de Christo íam todos abrindo os olhos. Os romanos, como lhes +disse, eram um povo que sabia o nome aos bois. Elles faziam estradas, +elles faziam edificios que ainda hoje, arruinados, deixam ficar uma +pessoa embasbacada, elles tinham escolas, o diabo! Mas, depois, vieram +os barbaros dos bosques da Allemanha e da Russia, e zas, tras, catatras, +lá se foi tudo pela agua abaixo. Por muito tempo não se pensou senão em +pancadaria. Tudo era gente rude, os reis não sabiam ler nem escrever, os +povos fallavam uma lingua assaralhopada que nem era latina, nem deixava +de o ser. Mas a pouco e pouco foram-se aclarando as cousas, foi +havendo estudos, e D. Diniz, que subiu ao throno, depois da morte de D. +Affonso III, era já um sabichão. Elle fazia os seus versos de pé +quebrado, que a gente hoje quasi que não entende, mas que eram já +escriptos n'uma lingua com termos, elle emfim vio que havia escolas por +esse mundo onde se ensinava tudo o que então se sabia, e quiz tambem ter +uma que foi a universidade de Coimbra. Depois tratou de fazer do reino +alguma cousa com geito. Já não tinha que pensar em mouros, e então +pensou na lavoura, pensou na marinha, pensou em tudo o diabo do homem! +Mandou vir capitães de navios, de Italia, para ensinarem os nossos, e +ajudou os navegantes do Porto, que sempre foram gente desembaraçada, a +crear uma especie de companhia de seguros, e não se descuidou tambem de +dar para baixo na nobreza e nos padres para elles se não fazerem finos, +e dava-lhes de modo que elles não tinham rasão de queixa, porque era +sempre com justiça. Ora, por exemplo, d'antes havia uma especie de +frades que se chamavam freires militares, que eram, como quem diz, +frades e soldados ao mesmo tempo. Em vez de fazerem voto de rezar e de +jejuar, faziam voto mas era de dar bordoada nos mouros. Havia umas +poucas de ordens n'esse gosto, a ordem dos Templarios, a de S. Thiago, a +de Aviz e outras. Ora, como é de ver, esses templarios, por exemplo, que +se fartavam de tomar terras aos mouros, com algumas haviam de ficar +para si. E depois tinham doações, emfim eram ricos a valer. O que +acontecia por cá, tambem acontecia lá por fóra. Succedeu, pois, que um +rei de França e um papa acharam excellente apanhar para si essas +riquezas todas, e acabaram com a ordem dos Templarios em toda a parte; +mas D. Diniz, que era um homem serio, não esteve pelos ajustes, e +entendeu que seria um roubo tirar aos homens o que elles tinham ganho á +custa do seu sangue, e então, como não havia de desobedecer ao papa, +abolio a ordem dos Templarios, mas passou todos os bens para outra que +pediu ao papa que creasse e a que chamou ordem de Christo. + +--Ó sr. João, perguntou o Francisco Artilheiro, esse D. Diniz não era +marido da rainha Santa Isabel? + +--Era sim, rapaz, e já vou fallar n'essa rainha, que foi tambem uma das +bençãos de Portugal n'esse tempo. Era filha do rei de Aragão, e bem se +póde dizer que aquella é que foi uma verdadeira santa. Pobre senhora! +Não lhe faltaram desgostos, não. Primeiro houve grande bulha entre o +marido e um cunhado, D. Affonso Sanches, que embirrou em que lhe +pertencia a corôa, apesar de ser mais novo; depois, e isso foi o peor, o +filho, que veio a ser D. Affonso IV, revoltou-se contra o pae, e porque? +Porque el-rei D. Diniz, que era frecheiro, e que se fartou de ter +filhos bastardos, parecia que olhava mais por elles do que pelos +proprios filhos do matrimonio. Imaginem o desgosto da rainha! Primeiro +porque emfim não havia de gostar muito de ver o marido sempre ao laré +com esta e com aquella a arranjar filhos por fóra de casa, e depois por +ver assim a guerra accesa entre seu marido e seu filho. E ainda por cima +o rei desconfiou que ella ía de accordo com o filho, e chegou até a +tratal-a mal, e a mandal-a saír da côrte. Pobre senhora! aquillo era o +que ali estava. Ella tudo supportou com resignação--as infidelidades e +as injustiças do marido, só o que queria era ver tudo em paz. E sempre o +conseguio. Tanto pediu, tanto chorou, que o filho e o pae vieram ás +boas. Mas d'ahi a pouco torna a haver intrigas, e o D. Affonso, que era +um vivo demonio, torna á pancadaria com o pae. Pois senhores, a batalha +estava para ser aqui ao pé de Lisboa, no Campo Grande; mas quando já +começavam á lambada, apparece no meio d'elles a boa rainha, que foi +mesmo o anjo da paz, e depois que ella appareceu ninguem mais se atreveu +a levantar uma lança. Oh! rapazes! digo-lhes que até me parece que não +era necessario que o papa a fizesse santa para que o povo a adorasse! +Pois então se aquella não fosse santa quem é que o havia de ser? Dizem +que mudava o ouro em rosas, e rosas em ouro. Isso creio eu, que aquellas +bentas mãos haviam de mudar em flores tudo em que tocassem, porque +eram, como o outro que diz, mãos puras e boas, como a aragem de maio! +Mas milagres maiores fazia ella ainda, porque as lagrimas que chorava em +segredo caíam depois sobre a cabeça do pai e do filho como orvalho de +paz e como chuva de amor! Sim! Sim! continuou o bom do João da Agualva, +com voz tremula, e meio a chorar, digam lá vocês que ella não mudava +tudo em que tocava em rosas, quando agora mesmo, que diabo! só de fallar +n'ella, parece que até as palavras na minha bôca se estão mudando em +flores! + +--Ai! a minha rica Santa Isabel! exclamou a tia Margarida, pondo as +mãos, n'um enlevo. Coitadinha da minha rica santa que foi logo casada +com um homem tão mau! + +--Não era mau, não senhora, tornou o João da Agualva, foi até um dos +melhores reis que nós tivemos, mas como elle ás vezes lá escorregava o +seu pedaço, e nem sempre tratou a santa como ella merecia ser tratada, +bastou isso para que o povo começasse a inventar cousas, que elle que +era um sovina, um desconfiado, um unhas de fome, e até os pintores, +quando fazem o quadro do milagre das rosas, põem-n'o com uma carantonha +de metter medo, que ninguem dirá que está ali o rei poeta, o rei a quem +chamavam o pae do povo, o rei que não quiz roubar os templarios, o rei +que fundou a universidade de Coimbra, o rei que tanto se desvelou +pelo bem do paiz! E que as injustiças, por mais pequenas que sejam, +sempre vem a pagar-se, e D. Diniz, esses peccados que teve, pagou-os bem +caro, primeiro com a revolta de seu filho, depois com a injustiça do +futuro, e agora vão vocês ver como o filho tambem pagou o que fizera ao +pae, porque em 1325 morreu el-rei D. Diniz e subiu ao throno seu filho +D. Affonso IV, a quem chamaram o Bravo. + +--Ora vamos lá a ver o que fez esse senhor, disse uma voz. + +--D. Affonso IV, meus amigos, tinha muito boas qualidades. Era, por +exemplo, um homem de muito bons costumes, e foi isso até que o levou a +praticar uma acção... emfim, depois fallaremos. Era homem serio, mas +arrebatado e vingativo. A primeira cousa que fez, assim que subiu ao +throno, foi vingar-se dos irmãos, por cuja causa tivera as bulhas com o +pai. D'ahi guerra. Quem acudiu? A rainha Santa Isabel. + +Casou uma filha com o rei de Castella, Affonso XI. Este, que era do +feitio de D. Diniz, começou a largar a mulher e a metter-se com uma tal +D. Leonor de Gusman. D. Affonso IV, que ficára embirrando deveras com +esses arranjos depois das turras com o pai, começou a criar má vontade +ao genro, e zas, toma que te dou eu, ao primeiro pretexto que teve, ahi +começam as bulhas. Foi uma guerra de cá cá ra cá, que não prestou +para nada, mas que sempre fazia mal ao povo. No mais seguiu á risca o +exemplo do pae. Tratou do povo, teve os fidalgos muito na mão, mais os +padres tambem. E então com esses não foi lá só por causa das terras a +que deitavam a unha, foi tambem por causa dos maus costumes, porque +elles gostavam de passar vida airada e outras cousas que D. Affonso IV +lhes não levou a bem. Por isso apanharam uma vez uma rabecada, n'uma +carta que D. Affonso escreveu ao papa, que foi de ficarem de cara a uma +banda. + +--Bem feito! acudiu a tia Margarida. Esse rei sim! esse é que me quadra. +Bem se vê que era filho da rainha Santa Isabel! + +--Espere lá, tia Margarida, não falle antes de tempo que, como diz o +outro, até ao lavar dos cestos é vindima. Houve no reinado de D. Affonso +IV duas cousas famosas: primeiro a batalha do Salado, depois a morte de +D. Ignez de Castro. + +--Foi com os hespanhoes a batalha do Salado? + +--Não homem, foi dada até para os ajudar. Já lhes disse, meus amigos, +que nós desde o reinado de D. Affonso III tinhamos posto os mouros na +rua. Mas os hespanhoes ainda não tinham conseguido o mesmo, os mouros +estavam reduzidos apenas ao reino de Granada, mas sempre isso era alguma +cousa. Ora agora ali em Marrocos estava, como sabem, a moirama toda. +Imaginem que um bello dia o tal miramolim de Marrocos, ou como diabo +se chamava elle, desaba em Hespanha com o poder do mundo e junta-se ao +rei de Granada para darem cabo do rei de Castella. Era este D. Affonso +XI, genro do nosso D. Affonso IV. Aterrado com o perigo, pediu soccorro +ao sogro, apesar de estar mal com elle; mas o nosso rei, homem ajuizado, +vio que a occasião não era para dize tu direi eu, que não era só +Castella que estava em perigo, estava em perigo a Hespanha toda; se +Affonso XI levasse uma tareia e perdesse algumas provincias ficavam aqui +os mouros de raiz, e tinha de se começar outra vez a pôl-os fóra. Por +isso não esperou por mais nada, ajuntou quanta gente poude, e foi em +soccorro do genro. O nosso rei era homem de pulso, os nossos soldados +tambem eram pimpões. O soccorro não foi nada mau. Na batalha do Salado +os mouros levaram uma sova de primeira ordem, e nunca mais os de +Marrocos vieram cá metter o nariz d'este lado do mar. D. Affonso IV +voltou para a sua terra sem ter querido acceitar cousa nenhuma da grande +preza que fizeram. + +--E isso de D. Ignez de Castro o que foi, ó sr. João da Agualva? +perguntou a tia Margarida. Não foi essa Ignez de Castro que esteve aqui +em Bellas, que até ali na quinta do marquez ha uma arvore a que chamam +de Ignez de Castro? + +--Ora adeus, tia Margarida! esteve agora em Bellas! quer dizer, eu, +como não andei com ella por toda a parte, não sei se por cá passaria +alguma vez, mas onde viveu principalmente foi em Coimbra. Era uma +hespanhola esta Ignez de Castro, linda como os amores, loura como o sol, +e com um pescoço tão bonito, que lhe chamavam o _collo de garça_. Veio +para Portugal como dama da infanta D. Constança que foi mulher do +principe D. Pedro, filho de D. Affonso IV, mas o principe parece que +gostou mais da dama que da mulher. Tristes amores foram aquelles, +rapazes! Ella tinha pelo seu Pedro um fatacaz lá de dentro, que estou em +dizer que mais gostaria ella de que elle fosse um pastor de cabras do +que filho de um rei. A princeza D. Constança morreu, e para isso não +deixaria de concorrer a paixão do marido, que, por mais que elle a +quizesse esconder, rebentava por todos os lados. Coitada da princeza! +tudo fez para arredar o marido d'aquelles mal-aventurados amores. Mas +então! vão lá fugir ao seu destino! Pediu a Ignez de Castro que fosse +madrinha de um filho que ella teve, porque n'esse tempo haver amores +entre compadre e comadre quasi que era maior peccado que havel-os entre +irmãos. Nada! aquillo era como um fogo valente que tanto mais se accende +quanto mais agua lhe deitam. Em fim, morreu a princeza, e D. Pedro e D. +Ignez ficaram á vontade, porque até ahi tinham guardado respeito á pobre +senhora. Casariam? D. Pedro assim o jurou depois, mas eu estou em +dizer que não, porque para casarem era necessaria dispensa graúda, que o +papa não daria assim sem mais nem menos e com tanto segredo como o +principe quereria. Mas, ou casassem ou não, é certo que tiveram tres +filhos, e que o principe D. Pedro não queria saber de mais nada senão da +sua loura Ignez. + +D. Affonso IV não viu isso com bons olhos. Sabem como elle era. Vivia só +para a sua mulher, queria tudo em boa ordem, e não gostava d'essas +fraquezas. Os fidalgos tambem não gostavam, mas esses por outras rasões. +Tinha D. Ignez muita parentella, e diziam comsigo que, apenas D. Affonso +IV fechasse os olhos, eram os Castros que davam as cartas em Portugal. +Começaram a ferver as intrigas, e chegaram a aconselhar o rei que, visto +que não havia forças humanas que arrancassem D. Pedro á sua Ignez, o +melhor era darem cabo d'ella. D. Affonso IV torceu o nariz, mas lá por +dentro estava em braza. Ora, imaginem vocês! D. Affonso, no principio da +sua vida, tivera os maiores desgostos por causa dos bastardos de seu +pae. Tambem o tinham feito de fel e vinagre os amores de seu genro com +D. Leonor de Gusman. Morria pelo neto, um rapazinho bonito como a +aurora, que tinha de ser depois D. Fernando o Formoso. Lembrou-se das +amarguras que viriam a causar ao rapazito os filhos da amante +querida, que talvez até lhe roubassem a corôa. Subiu-lhe a mostarda ao +nariz com a teima do filho, e deu ordem aos seus tres conselheiros, +Alvaro Gonçalves, Diogo Lopes Pacheco e Pedro Coelho para que o +livrassem de D. Ignez. Ahi vão todos até Coimbra, onde estava muito +socegada a triste da rapariga. Ella, apenas suspeitou do caso, veiu com +os filhos lançar-se aos pés do rei. O pobre D. Affonso enterneceu-se, +mas os conselheiros é que viram o caso mal parado. «Se elle perdôa, +disseram comsigo, nós é que pagamos as favas.» Não esperaram que D. +Affonso resolvesse as cousas de outro modo. Foram-se á pequena, e, +emquanto o diabo esfrega um olho, ferraram com ella no outro mundo! + +--Ai que malvados! bradaram todos. + +--Isso eram, tornou o João da Agualva. Sim! que eu não desculpo D. +Pedro, nem a desculpo a ella. Se uma mulher, só porque gosta de um +homem, não está lá com mais ceremonias e passa a viver com elle, sem a +benção do padre, aonde irá isto parar? mas tambem matal-a sem mais nem +menos, matal-a no meio dos seus filhos, matar uma pobre menina, que não +fazia senão chorar, ah! só uns malvados eram capazes de fazer similhante +cousa. Por isso tambem, vêem vocês? D. Affonso foi um bom rei, um homem +de bons costumes, um valente, tudo quanto quizerem, mas a final de +contas perguntem ahi a um pequeno:--Quem era D, Affonso IV? Cuidam +que elle que lhes responde: Era um bom rei, isto, aquillo e +aquell'outro. Não, senhores, diz logo: Foi o rei que matou Ignez de +Castro. E como assassino é que a gente o conhece, e no seu manto real +não se vê o sangue das batalhas, vê-se mas é o sangue de Ignez! E esta? +Se a não matassem, o que dizia a historia? Foi a amante de um rei. Olhem +que gloria! E assim? Todos choram por ella, como a tia Margarida, que +está ali a limpar os olhos com a ponta do seu avental. + +--E o que fez D. Pedro? perguntou o Manuel da Idanha. + +--O que fez D. Pedro? Ah! com os diabos! Imaginem! Elle ainda tinha +peior genio que o pae. Apenas soube do que succedera, aquillo parecia um +leão ferido. Saltou logo para o campo em som de guerra, e D. Affonso +pagou o que fizera ao pae, porque teve tambem o filho revoltado contra +si. Correu muito sangue por esse reino, até que emfim se fez a paz, mas +D. Affonso IV pouco tempo sobreviveu, morrendo em 1359, dois annos +depois da morte de Ignez. + +--Subio ao throno D. Pedro, não é verdade? perguntou com muito interesse +o Manuel da Idanha. + +--É verdade que sim, e, meus amigos, então é que se viu o amor lá de +dentro que elle tinha á sua Ignez. Apenas subio ao throno, os assassinos +da Castro safaram-se para Hespanha, mas D. Pedro lá fez o seu +negocio com o rei de Castella, de fórma que apanhou os criminosos, menos +um, Diogo Lopes, que conseguiu fugir. Assim que os teve em seu poder, +fez-lhes torturas. A um mandou arrancar o coração pelo peito e a outro +pelas costas. + +--Credo! exclamou a tia Margarida. + +--Por isso lhe chamavam D. Pedro o Cruel, assim como tambem lhe deram o +nome de D. Pedro o Justiceiro. Justiça fez elle, porque bradava aos céus +a morte de D. Jgnez, mas uma crueldade assim é de se porem a uma pessoa +os cabellos em pé! Que mais querem? D. Pedro parece que não pensava +n'outra cousa senão na sua Ignez, elle trasladou-a, com um estadão nunca +visto, de Coimbra para Alcobaça, onde lhe mandara fazer um tumulo que +era mesmo uma lindeza. Elle declarou que tinha casado com ella, e até se +diz que a sentou, depois de morta, no throno, e mandou que todos lhe +beijassem a mão. Mas isso parece-me patranha, ainda que D. Pedro era +capaz d'essas extravagancias e de muitas mais. Porque effectivamente, +meus amigos, parece que elle tinha endoidecido com a morte de D. Ignez. +Tinha assim de repente umas furias que era livrar quem estivesse diante. +Era justiceiro, é verdade, mas fazia justiça á doida e á bruta. Outras +vezes entrava por essa Lisboa dentro a dançar, muito contente da sua +vida. Governava bem, não ha duvida, punia pelo povo, abaixava a prôa +aos bispos, conservava o reino em paz, e juntava bom dinheiro nos cofres +para uma occasião de apuros, mas era ao mesmo tempo umas mãos rotas com +os fidalgos, que tornaram a fazer-se finos, como se viu depois. + +Foi em 1367 que D. Pedro morreu, e logo subiu ao throno D. Fernando, a +quem chamavam o Formoso, de bonito que era. Lá que elle tinha telha, +isso é que não padece duvida, porque nunca se viu uma ventoinha assim. +Aquillo era mesmo um gallo de torre de igreja. Primeiro deu-lhe na tonta +o querer ser rei de Castella, de mais a mais não tendo geito nenhum para +a guerra, e não gostando de batalhas. D'ahi, o que resultou? Gastou o +que tinha, levou pasada de crear bicho, e teve de fazer as pazes. Mas +vejam vocês que cabecinha! Quando fez guerra a Castella, alliou-se com o +Aragão, mandou-lhe para lá bom dinheiro, e prometteu casar com a filha +do rei, que se chamava D. Leonor. Faz as pazes com o de Castella, e, sem +se lembrar já do primeiro casamento, promette casar com a filha do rei +castelhano, que tambem se chamava Leonor. O de Aragão não fez caso, +metteu o dinheiro portuguez, que lá tinha, nas algibeiras, e nunca mais +deu contas. Mas o peor não é isso, o peor é que D. Fernando tambem não +casou com D. Leonor de Castella, porque n'este meio tempo namorou-se de +uma dama do paço, chamada D. Leonor Telles, e desposou-a! Ao menos +n'uma cousa era elle constante, é que não saía das Leonores. + +Esta Leonor Telles foi o que se chama uma mulher de truz, bonita como as +que o são, manhosa como a serpente, e dando, como a nossa mãe Eva, o +cavaquinho pelo fructo prohibido. Quando casou com D. Fernando já era +casada com um D. João Lourenço da Cunha, mas lembrou-se á ultima hora de +que ainda eram parentes, e o rei arranjou do papa que desfizesse o +casamento. João Lourenço da Cunha deu graças ao céu por se ver livre da +mulher que estava para lh'a pregar mesmo na menina do olho, e D. +Fernando levou D. Leonor Telles para casa. Mas o povo é que não esteve +pelos autos e gritou e berrou e fez tumulto, tanto que el-rei safou-se +de Lisboa. Houve mosquitos por cordas por esse reino todo, e a final +acabou tudo em paz. D. Leonor ficou sendo rainha, os de Lisboa apanharam +para o seu tabaco e D. Fernando não tardou a levar a paga. + +O rei de Castella achou que D. Fernando o tratara com tal ou qual +sem-ceremonia, e quiz-lhe dar uma lição de bem viver. Veio a Portugal, +chegou a Lisboa, entrou por ahi dentro, fez um estrago de seiscentos +demonios, e dava cabo da capital se D. Fernando lhe não vem pedir pazes, +que, já se vê, custaram caras. Aqui ficámos finalmente em socego, e +então D. Fernando parecia outro homem. Sabia governar aquelle rapazote, +quando as mulheres lhe não faziam andar a cabeça á roda, ou quando se +não lembrava de ter outros reinos. Era economico e arranjado. Sabia pôr +as cousas no seu logar. Foi elle que cercou Lisboa de fortificações, que +depois não serviram de pouco ao seu successor. + +Mas, coitado, acertára mal, em todos os sentidos, com a tal D. Leonor +Telles, que era mesmo o demonio em pessoa; quando se enfastiou d'elle, +tomou amores com um gallego que vivia em Portugal, chamado conde +Andeiro. El-rei, entretanto, metteu-se outra vez em guerras com +Castella, e pediu auxilio aos inglezes. Oh! rapazes, que tristes tempos +foram aquelles! A vida do paço era um desaforo. Estava ali aquella +mulher, aquella... não sei que diga, a pôr na cabeça a corôa da rainha +Santa Isabel, a corôa que não podéra pôr nos seus cabellos louros a +pobre Ignez de Castro, que, apesar de todos os pezares, era mil vezes +mais capaz do que essa rainha de contrabando, que andou de um para +outro, sem vergonha de qualidade nenhuma! E ainda por cima era malvada! +vingativa! e para ella a vida de um homem valia tanto... como... a honra +do marido, que é o mais que se póde dizer! + +O povo desgraçado, porque tudo se juntava. As guerras com Castella +sempre infelizes! os inglezes, como sempre, apesar de amigos, muito +peores do que se fossem inimigos. Os fidalgos de Castella, que tinham +tomado o partido de D. Fernando, tratados aqui á grande! e ainda por +cima D. Fernando sem ter filhos, e com a filha unica já casada com D. +João I de Castella. D. Fernando, apesar da sua cegueira, já ía +percebendo as cousas, e tinha lá por dentro um desgosto que o ralava. +Tambem em 1383, tendo apenas trinta e oito annos de idade, esticou a +canella, depois de um reinado que podia ter sido muito proveitoso, e que +assim foi uma desgraça para todos. E eu tambem me vou chegando para a +cama, não sem lhes dizer que houvera mudança completa no modo de viver +da nossa gente n'estes ultimos reinados. Os fidalgos tinham levado para +baixo, e estavam já em grande parte, por assim dizer, ás sopas dos reis. +Os concelhos do povo tinham-se feito fortes, e batiam o pé á fidalguia, +e ao clero, principalmente, nas côrtes, em que entravam. O resultado de +tudo isso é o que vocês hão de ver de hoje a oito dias. + + + + +QUINTO SERÃO + +Interregno.--Regencia de Leonor Telles.--Morte do conde Andeiro.--O +cerco de Lisboa.--Nuno Alvares Pereira e João das Regras.--As côrtes de +Coimbra.--D. João I.--A batalha de Aljubarrota.--Os filhos de D. João +I.--Tomada de Ceuta.--Os descobrimentos.--D. Duarte.--Expedição de +Tanger.--Menoridade de D. Affonso V.--O infante D. Pedro.--Batalha de +Alfarrobeira.--Tomada das praças africanas.--Guerras com +Hespanha.--Batalha de Toro.--Ida de D. Affonso V a França.--Continuação +dos descobrimentos. + + +--Meus amigos, disse o João da Agualva no outro domingo, o que eu agora +vou contar ha de parecer assim a vocês grande patranha, e a todos +pareceria se não houvesse tantas provas da verdade. É caso de uma pessoa +ficar pasmada ver o que fez este paiz só, ao canto do mundo, pequeno +como é. Oiçam, pois, rapazes, com attenção. Apenas morreu el-rei D. +Fernando, tratou logo D. Leonor Telles de fazer proclamar rainha de +Portugal a sua filha D. Beatriz, que era uma pequenota casada com o rei +de Castella D. João I, e ao mesmo tempo fez-se regente. O povo, que não +queria ser castelhano, ou hespanhol como hoje diriamos, nem que o +matassem, começou a levantar-se por toda a parte. Mas o que faltava +era um chefe. Os filhos de D. Ignez de Castro andavam fugidos por fóra +de Portugal, um por isto, outro por aquillo, mas quem estava em Lisboa +era um rapaz muito sympathico, filho bastardo de el-rei D. Pedro, que +este fizera mestre de Aviz, e a quem D. Leonor Telles sempre tivera +muito odio. A elle se dirigiram. O mestre vio que não havia remedio +senão fazer o que o povo queria. Toma logo a sua resolução, vae ao paço +e mata elle mesmo o conde Andeiro, põe-se á frente do povo de Lisboa, +põe no meio da rua D. Leonor Telles, e proclama-se _defensor do reino_. +O povo toma todo, sem excepção, o seu partido, e por todas as +provincias; mas uma grande parte dos fidalgos foram para o rei de +Castella. Entre os que ficaram figurava um rapaz sympathico tambem, +valente como as armas, leal como a sua espada, amigo intimo e dedicado +do mestre de Aviz, Nuno Alvares Pereira. + +Sabedor do que se passava, desce a Portugal o rei de Castella com um +exercito poderoso; mas pára deante de Lisboa já fortificada. Os +lisboetas, commandados pelo mestre de Aviz, defenderam-se como homens, e +o rei de Castella teve de se pôr na pireza; entretanto Nuno Alvares +Pereira, que estava no Alemtejo, ganhava a batalha dos Atoleiros, e +começava a estabelecer um systema de guerra que havia de dar muito de +si. Como os concelhos estavam todos com o mestre de Aviz, a força do +exercito era principalmente infanteria. Pois Nuno Alvares Pereira +aproveitou isso para ensinar os nossos a combaterem a pé. Formava uma +especie de quadrado, ou como é que se chama, com os seus soldados, +quadrado onde a cavallaria fidalga vinha sempre despedaçar-se. + +--Ah! se elles calavam bayoneta, observou o Francisco Artilheiro, não +entrava lá para dentro nem um cavallaria só que fosse. + +--Não calavam bayoneta, respondeu o João da Agualva, porque era cousa +que então não havia, mas fincavam as lanças no chão, e fossem lá entrar +com elles. + +Acabado o cerco de Lisboa, reuniram-se os dois amigos, e foram +conquistar todas as terras de Portugal em que os fidalgos tinham +levantado a bandeira de Castella. Ao mesmo tempo reuniram-se côrtes em +Coimbra, para se escolher um rei. Ahi teve D. João I outro amigo, +advogado de mão cheia, fino como um coral, chamado João das Regras, que +foi quem lhe fez ganhar a eleição. Assim, o mestre de Aviz tinha a +felicidade de ter dois amigos particulares que o serviam +excellentemente, e cada um segundo o seu officio. Para cousas de penna e +parlenda João das Regras, para batalhas e mais bordoada correspondente +Nuno Alvares Pereira. + +--Mas então as côrtes é que escolheram quem havia de ser rei? perguntou +o Manuel da Idanha. + +--Tal e qual. + +--E eram côrtes como as de agora? acrescentou o Bartholomeu. + +--Não, senhor, havia os tres braços, como então se dizia, clero, nobreza +e povo. Os bispos e os conventos mandavam os seus escolhidos, os +fidalgos mandavam os seus e o povo tambem, quer dizer cada concelho +mandava o seu procurador. Antes de D. Affonso III, íam só os padres e os +fidalgos, depois é que o povo tambem começou a figurar n'essas festas; +mas n'estas côrtes, que se reuniram em Coimbra, como muitos fidalgos +estavam mettidos com o rei de Castella, póde-se dizer que foi o povo +quem escolheu, e que o mestre de Aviz, isto é, D. João I, foi +verdadeiramente o eleito do povo. + +--E ahi lhe valeu o João das Regras? acudiu o Manoel da Idanha. + +--Isso mesmo, porque lá para fallar não havia outro como elle. Mas d'ahi +a pouco tornou-se necessario fallar outra lingua, a lingua das espadas, +e n'essa, quem lia de cadeira era Nuno Alvares, que o novo rei fez logo +condestavel. Os castelhanos, que tinham ido de cara á banda, voltaram á +carga, e d'essa vez com um exercito immenso, porque o D. João I de lá +tinha resolvido acabar de todo com o D. João I de cá. Antes de vir o rei +com toda a sua fidalguia, já um corpo hespanhol tinha entrado pela Beira +dentro, mas em Trancoso levou uma tareia de primeira ordem. Não se +emendaram e disseram comsigo: Agora é que vão ser ellas. A fallar a +verdade tinham rasão. D. João I de Portugal teria, quando muito, uns +oito ou nove mil homens, D. João I de Castella não tinha menos de trinta +mil, e alem d'isso trazia comsigo peças de artilheria que era a primeira +vez que se viam em Portugal. Encontraram-se os dois exercitos em +Aljubarrota, que fica entre Alcobaça e Leiria, a 14 de agosto de 1385, +grande dia, rapazes! Eu não sei que diabo tinham os nossos, mas parece +que os animava um esforço sobrenatural. E elles não eram nenhuns +fracalhões, os castelhanos, era tudo gente valente e destemida, mas os +nossos estavam todos resolvidos a morrer ali mesmo. Depois tinham cabos +de guerra que sabiam da poda, emquanto os de lá eram valentes, e mais +nada. De lá, eram tudo fidalgos muito bem montados, com as suas espadas +a luzir ao sol; de cá, gente do povo, soldados de pé, mas que todos +queriam ser portuguezes com o seu rei que elles tinham feito, e que +tambem com elles queria vencer ou morrer. E por isso Nuno Alvares dizia: +Rapaziada, pé terra! e zás! lanças no chão, e venha para cá a fidalguia +castelhana, mais os traidores portuguezes que se uniram ao estrangeiro. +E não é dizer que não houvesse fidalgos tambem de cá. Oh! se os havia, e +dos bons e dos melhores, porque eram todos os que tinham preferido +morrer com um rei portuguez a receber do estrangeiro honras e +castellos, gente briosa e valente, e aventurosa, que combatia pelo seu +rei, e pela sua dama, e pela sua honra e pela sua patria. Tambem, não +lhes digo nada, nunca levaram os hespanhoes tão formidavel refrega. Por +muito tempo lhes ficou lembrada, e o rei, que fugio a toda a brida para +Santarem e de Santarem para a sua terra, não se podia consolar de +similhante desastre. D. João I mandou fazer, no sitio da batalha, uma +igreja e um convento maravilhoso, a igreja e o convento da Batalha, para +agradecer a Deus a sua victoria,--e rasão tinha para isso, porque foi +Deus decerto quem deu aos portuguezes o esforço e a galhardia que então +mostraram, que, eu, meus amigos, não sou dos que acreditam que Deus se +mette n'estes barulhos dos homens, mas quando um povo combate pela sua +terra, que é como quem diz quando um filho combate pela sua mãe, então, +meus amigos, ha uma cousa cá dentro em nós, que vem a ser a consciencia +a bradar-nos que Deus, que é a justiça e a bondade, ha de querer a +victoria do que é justo e do que é bom. + +--E a padeira de Aljubarrota, sr. João da Agualva? perguntou o Francisco +Artilheiro. + +--Deixemo-nos lá de padeiras. Eu não sou muito amigo de mulheres que se +mettem n'estas danças. A padeira era melhor que amassasse pão. Se é +verdade o que se diz, quando os castelhanos já íam de rota batida, a +padeira foi-lhes no encalço e deu cabo de sete com a pá do forno. Olhem +que grande façanha: matar quem vae fugindo! Aquillo era mulher de faca e +calhau, e eu torço sempre o nariz a essa gentinha. Vamos adiante. A +batalha de Aljubarrota decidio a sorte de Portugal. Ainda durou a guerra +muito tempo, ainda o condestavel deu nova tareia nos hespanhoes em +Valverde, mas a verdade é que estava tudo acabado. D. João I governou +então com socego, casou com uma senhora ingleza muito virtuosa e muito +boa, D. Philippa de Lencastre, teve muitos filhos que educou muito bem, +e que foram todos homens de saber e alguns d'elles grandes homens, +chamou muitas vezes as côrtes para ouvir o que ellas tinham que lhe +dizer ácerca dos negocios do Estado, e governou tão bem, que se lhe +chama, com toda a justiça, o rei da _Boa Memoria_. Já em idade +adiantada, trinta annos depois da batalha de Aljubarrota, sentiu D. João +I um appetite de tentar alguma empreza grande. Quem o metteu n'isso +foram os filhos, tudo rapazes decididos que andavam mortos por se metter +n'alguma cousa que lhes désse gloria. O que haviam de fazer? Foram-se +aos mouros. Passaram o estreito, e tomaram Ceuta que fica ali mesmo +defronte de Gibraltar. Vêem vocês? Aquillo era uma raça que não podia +estar quieta. Emquanto jogavam as cristas com os visinhos, ía tudo +bem, mas depois? Os aragonezes viravam-se para Italia, os castelhanos lá +tinham os mouros granadís, nós o que tinhamos? Os mouros de Marrocos e +as ondas do Oceano. Pois foram as ondas e os mouros que pagaram as +favas. D. João I tomou Ceuta, e D. Henrique, seu filho, deliberou tomar +o desconhecido. + +--Ó sr. João, exclamou o Francisco Artilheiro, devo confessar que lá +isso é que eu não percebo muito bem. + +--Pois eu te explico, rapaz. Julgava-se d'antes que do outro lado do mar +não havia cousa nenhuma, ou antes que as ondas lá para longe eram um +verdadeiro inferno ou um paraizo tambem, porque uns diziam que tudo para +alem eram ilhas de santos e jardins do céu, e outros que eram ilhas do +diabo e terras de maldição; que havia umas estatuas encantadas que não +deixavam passar ninguem, e um mar de pez que engolia os navios. Ora +vocês hão de saber que póde uma pessoa ser muito valente, e ter medo de +almas do outro mundo, e de feitiços e do diabo. Ali está o Francisco +Artilheiro, que, quando foi na expedição á Africa, se atirou ao Bonga +como gato a bofes, que é capaz de varrer uma feira, e que, se lhe +disserem que vá de noite ao palacio do marquez, lá ao corredor onde +dizem que falla a voz do Roque... + +--Tarrenego! exclamou o Francisco Artilheiro, um homem é para um +homem, mas lá uma alma do outro mundo!... + +--Ora ahi está! era o que acontecia aos soldados de D. João I. Com +mouros e castelhanos tudo o que quizessem, mas com as aventesmas do +mar... arreda! Pois imaginem vocês se D. Henrique não fez um milagre +conseguindo que os marinheiros do Algarve, porque elle, desde que poz o +fito em querer saber o que o mar escondia, foi-se estabelecer em Sagres, +mesmo na ponta do cabo de S. Vicente, conseguindo que os marinheiros do +Algarve se mettessem ás ondas, sem medo de phantasmas, nem de avejões. E +foram aquelles valentes, que fizeram tão grande no mundo este paiz tão +pequeno, e partiram por esses mares fóra, sem saber o que por lá havia, +e sempre a tremer da perdição da vida e da perdição da alma, e foram, e +encontraram a Madeira e encontraram os Açores, e Gil Eanes dobrou o cabo +Bojador, que era onde diziam que estavam as taes estatuas encantadas, e, +como não encontrou estatuas nenhumas, lá foi tudo atraz d'elle, e, de +repente, Portugal poude desenrolar diante do mundo um outro mundo +ignorado, a costa da Africa toda, com os seus grandes rios, os seus +bosques verdes, o seu povo de pretos, como eu vi, n'um theatro de +Lisboa, desenrolar-se diante da platéa pasmada um panno pintado com +cidades e quintas e ilhas e rios, que era de uma pessoa ficar de boca +aberta. Ah! meus amigos, podem agora não fazer caso de nós, e +podemos nós tambem dizer mal de nós mesmos, mas um povo que assim se +atreve a arcar com o que mette medo aos mais valentes, e abre aos outros +as portas de um mundo maravilhoso, é um grande povo, digam lá o que +disserem. + +--E D. João I é que fez tudo isso? perguntou o Manuel da Idanha. + +--Não foi elle, mas foi o filho, D. Henrique, que era um sabio, e que a +seu pae deveu a educação que recebera; e o grande rei, que salvára +Portugal do estrangeiro, teve a gloria, antes de morrer em 1433, de ver +começada essa obra que havia de tornar para sempre grande no mundo o seu +nome e o nome de Portugal. + +Succedeu-lhe seu filho, D. Duarte, a quem chamaram o _Eloquente_, pelo +bem que fallava e que escrevia, porque tambem fazia livros como o rei D. +Diniz, e livros muito bem feitos. Coitado! não merecia a sorte que teve. +Os irmãos, D. Henrique e D. Fernando, quizeram continuar a obra do pae, +e foram tomar Tanger. Não o conseguiram, perderam muita gente, e para se +salvar o exercito das garras dos mouros, teve de ficar preso na Moirama +o infante D. Fernando. Para o livrar era necessario entregar Ceuta, mas +o infante D. Fernando, que bem mereceu o nome de _Santo_ que lhe +pozeram, não quiz nunca ouvir fallar em similhante cousa, e preferiu +morrer atormentado nas masmorras de Fez a consentir que dessem por elle +aos mouros uma terra, que tanto sangue nos custára. Tudo isto foram +desgostos grandes para o pobre D. Duarte, que morreu, depois de cinco +annos de reinado, em 1438, da peste que então assolou o reino, porque +não houve desgraça que n'esse tempo não acontecesse. + +Succedeu-lhe um filho pequeno que tinha, e que foi D. Affonso V, e, como +D. Duarte era muito amigo da mulher, foi a ella que nomeou regente. Ora, +na verdade, tendo o pequeno uns poucos de tios que seriam todos grandes +reis, como D. Pedro, D. Henrique e mesmo D. João, dar a regencia a uma +mulher, e de mais a mais hespanhola, era tolice graúda, por isso o povo +não gostou, e as côrtes convidaram D. Pedro a tomar conta da regencia. A +rainha, que era levada da bréca, e que nunca podéra ver os cunhados, deu +pulo de corça com esta resolução, a que foi obrigada a ceder, e, com o +partido que tinha, agitou o reino de tal maneira, que D. Pedro não teve +remedio senão tomar providencias, e uma d'ellas foi tirar o filho á +rainha, porque o pequeno estava sendo nas mãos d'ella um instrumento de +revolta. A final, a rainha foi para Hespanha, mas eu estou convencido, +rapazes, que o odio que D. Affonso V sempre teve ao tio veio d'ahi. Ora +imaginem vocês! D. Affonso era uma creança n'esse tempo, agarrado á mãe +como são todas as creanças; não percebia cousa nenhuma de politica +nem de meia politica, viu-se arrancado dos braços da sua mamãsinha, que +se agarrava a elle a chorar, e arrancado por quem? Por seu tio. Depois, +quando fosse maior, podia reconhecer que o tio era o que se podia chamar +um grande homem, que lhe tinha governado o reino como ninguem seria +capaz de o governar, que era tão pouco amigo de vaidades, que nem +quizera que lhe fizessem uma estatua, mas o rancor da creança nunca se +foi embora. Pois o tio, apenas elle chegou á maioridade, logo lhe +entregou o governo, sem a mais pequena demora, e foi viver para Coimbra +com o maior socego. Apesar de tudo isso, e apesar de ser muito amigo da +mulher que era filha de D. Pedro, o rei tal odio tinha ao tio e ao sogro +que deu ouvidos a todas as intrigas dos inimigos d'elle, e +principalmente ás do primeiro duque de Bragança, seu tio tambem, filho +bastardo de D. João I; chegou o duque a levantar tropas para ir contra o +pobre D. Pedro, que, espicaçado e ralado por todas as fórmas, teve de +tratar da sua defeza. Emquanto o duque de Bragança levantava tropas por +sua conta e risco, achava o rei isso muito bem feito; apenas o infante +D. Pedro juntou alguns soldados para não atravessar esse reino ao +desamparo, logo D. Affonso V entendeu que era caso de rebeldia e +traição, e marchou contra elle. Na Alfarrobeira, ali ao pé de Alverca, +se encontraram as tropas de um e as tropas do outro. Não houve +batalha, mas travaram-se de rasões os soldados, e, quando mal se +precatavam, achou-se tudo embrulhado na bulha, e lá morreu o pobre do +infante D. Pedro, tão sabio, tão bom, tão justiceiro. + +Quem ouvir isto, ha de dizer que D. Affonso V era um malvado, pois não +era; cabeça de vento sim, nunca houve outra igual! Sympathico e bondoso, +um mãos-rotas, principalmente para os fidalgos que apanhavam d'elle +quanto queriam, enthusiasmava-se todo por cousas que já não importavam a +ninguem, e quiz até fazer uma cruzada contra os turcos. Os outros +principes christãos não estiveram pelos autos, e vae elle então +voltou-se contra os mouros da Africa, e é certo que juntou a Ceuta as +praças de Tanger, Arzilla e Alcacer Ceguer. Por isso lhe chamaram o +_Africano_. Emfim, bom seria que nunca tivesse pensado n'outra cousa, +mas deu-lhe na veneta querer tambem ser rei de Hespanha, e, quando lá +houve grande bulha para se saber quem havia de succeder ao rei que +morrera, se havia de ser D. Isabel que era irmã, se D. Joanna que era +filha, o nosso D. Affonso, apezar de já não ser novo, casou com esta, +que vinha a ser tambem sua sobrinha, ao passo que D. Fernando de Aragão +casava com a outra. D'ahi veio uma guerra levada dos demonios; mas, a +final, D. Affonso deu a batalha de Toro, que ficou indecisa, mas foi o +mesmo que se a perdesse, porque não poude continuar a guerra. De que +se ha de lembrar então o nosso D. Affonso V? De ir em pessoa pedir +soccorro ao rei Luiz XI de França, que era o mais manhoso de todos os +principes, e que não fazia nada sem interesse. Luiz XI andou a cassoar +com elle, até que D. Affonso V mandou dizer ao filho, que ficára a +governar o reino, que subisse ao throno, porque elle abdicava, e ía para +a Terra Santa; mas depois muda de tenções, e, quando já ninguem o +esperava, apparece em Portugal. O filho é que não quiz saber de mais +nada; entregou-lhe logo a corôa, que D. Affonso acceitou, morrendo +quatro annos depois, em 1431. + +--Ó sr. João, interrompeu o Bartholomeu, e essa historia de descobrir +terras novas tinha parado? + +--Qual tinha parado, homem! Emquanto D. Henrique viveu, e só expirou em +1460, quando já D. Affonso V era homem, não pensou n'outra cousa; todos +os annos se ía descobrindo mais alguma porção da Africa, e já não havia +quem acreditasse em carapetões de estatuas. Os portuguezes, o que faziam +era sempre seguir para baixo, até ver se topavam com a India, ou então +se davam com um rei que diziam que era christão, e a quem chamavam o +Prestes João das Indias. + +--E quem era esse rei? perguntou o Manuel. + +--Eu depois lhes digo, rapazes, agora não me fallem á mão. O que é certo +é que estava já descoberta uma boa porção da Africa, e já por lá se +fazia muito bom negocio, tanto que D. Affonso V, que andava embrulhado +com outras cousas, e que não podia cuidar dos descobrimentos como o tio, +arrendou o commercio da costa da Mina a um tal Fernão Gomes, com a +condição d'elle continuar a descobrir terras. Felizmente, quem ía subir +ao throno era um rei de outra laia, que tinha lume no olho, e que havia +de levar as cousas pelo rumo que devia de ser, para gloria do nosso paiz. + +Foi D. João II esse rei, e com rasão lhe chamaram o principe perfeito, +porque não houve nenhum que entendesse tão bem do seu officio; mas, +antes de fallar n'elle, meus amigos, deixem-me vocês explicar-lhes o que +é que se tinha passado no tempo d'esses tres primeiros reis da dynastia +que se chamou de Aviz. + +Viram vocês como os reis se encostaram ao povo para dar cabo da nobreza +e do clero, e como lhe deram força para que os fidalgos e padres se não +fizessem finos. Por isso tambem se póde dizer que foi o povo quem fez +rei D. João I, e este nunca se esqueceu d'isso. Comtudo, padres e +fidalgos, continuavam a ser muito poderosos, e, se D. Duarte, com a lei +chamada mental, e o infante D. Pedro lhes tinham dado para baixo, D. +Affonso V quasi que desfizera tudo, porque com elle não havia parente +pobre, dava aos fidalgos o que elles queriam, e com rasão dizia o +filho que seu pae o deixára rei das estradas de Portugal, o que, valha a +verdade, não devia ser um grande reino. Ora agora acontecia tambem o +seguinte: é que o povo, nas côrtes, estava sendo mais um servo do rei do +que outra cousa. Já não podia dizer aos reis: «Toma lá, dá cá.» Já não +era cada concelho que mandava um procurador, juntavam-se uns poucos de +procuradores para mandar um deputado a que chamavam definidor, e o rei +sempre os podia ter mais na sua mão do que á turbamulta dos antigos +procuradores. Alem d'isso, os doutores, o que aprendiam nas escolas eram +as leis de Roma, o direito romano, e ahi o que se dizia era que o rei +podia fazer o que quizesse. O que resultava? Resultava que o clero e a +nobreza haviam de levar para baixo, mas que o povo depois... esperasse +pela pancada. É o que vocês saberão para o domingo que vem, porque a tia +Margarida está a caír com somno, e eu não quero que digam de mim, como +de alguns prégadores, que sou bom para quem anda com falta de dormir. + + + + +SEXTO SERÃO + +D. João II.--As côrtes de Évora.--Morte do duque de Bragança.--Morte do +duque de Vizeu.--Continuação dos descobrimentos.--O cabo da Boa +Esperança.--Christovão Colombo.--Entrada dos judeus.--Morte do principe +D. Affonso.--D. Manuel.--Descobrimento da India e do Brazil.--Os +conquistadores da India.--Fernão de Magalhães.--D. João III.--A +inquisição e os jesuitas.--Decadencia do nosso dominio na India.--D. +Sebastião.--A batalha de Alcacer-Kibir.--D. Henrique, o cardeal-rei.--A +successão do throno.--D. Antonio, prior do Crato.--Batalha de +Alcantara.--Perda da independencia:--Causas da decadencia de Portugal. + + +--Estou morto por saber, porque é que chamaram a D. João II o principe +perfeito, principiou o Manuel da Idanha no domingo immediato, quando +estiveram todos sentados á roda da lareira, porque, emfim, vocemecê já +nos fallou n'uns poucos de reis de quem se não póde dizer mal: D. Diniz, +por exemplo, D. João I, etc. + +--Eu te digo, rapaz, é porque não houve nenhum que percebesse tão bem o +seu tempo, nem soubesse tão bem como é que se governa. Era homem de +cabellinho na venta, mas só dava cabo de quem lhe fazia transtornar os +seus planos, era valente como os que o são, mas, depois de ser rei, +nunca mais foi á guerra. Calculava tudo, combinava tudo, e, como +quem joga bem a bisca, sabia de cór os trunfos, e o que queria era +marcar bons pontos, désse lá por onde désse. Subiu ao throno, na firme +resolução de acabar com os privilegios da nobreza e do clero. Para isso, +como de costume, serviu-se do povo. Chamou côrtes a Evora, ahi +entendeu-se com os procuradores do povo para elles se queixarem dos +fidalgos. Então o rei põe-se no seu logar, e toca a deitar abaixo +privilegios. Se vocês querem ver o que é berraria! O primeiro que se +levantou foi o duque de Bragança, e esse então metteu-se com os +castelhanos. D. João II não esteve com ceremonias, mandou-lhe cortar a +cabeça. O duque de Vizeu, seu proprio primo e cunhado, fez-se tambem +chefe de conspiração. O mesmo rei deu cabo d'elle com uma boa punhalada, +e depois foi tudo raso com o diabo do homem. Prendia uns, desterrava +outros, mandava matar este, confiscava os bens áquelle... um inferno. + +--Então por isso é que era principe perfeito? perguntou a tia Margarida +indignada. + +--Ó mulhersinha, espere lá. Diz o proverbio: cada terra com seu uso, +cada roca com seu fuso. Pois eu digo tambem: cada tempo com os seus +costumes. O tempo d'elle não era como o nosso. Hoje matar um homem é, +com rasão, uma cousa por ahi alem. N'aquelle tempo parecia a todos +perfeitamente natural que se castigassem com a morte, mesmo á +punhalada, todas as conspirações. Ora D. João II só escapou por milagre +a muitas que houve contra elle. + +Mas D. João II não era homem que se assustasse. Estreiara-se em Arzilla, +ao lado de seu pae, e logo mostrára um grande esforço; na refrega de +Toro, em Hespanha, foi elle quem ganhou a batalha pelo seu lado, +emquanto o pae a perdia pelo outro. Nas conspirações, que se faziam +contra elle, mostrou sempre uma coragem por ahi alem, mas tambem não +perdoava nenhuma. E tanto fez, tanto fez, que a final todas as cabeças +se abaixaram, e quem ficou governando a valer e devéras foi elle. + +Eu não lhes digo, rapazes, que approvo todas aquellas crueldades, e que +acho bonito que D. João II matasse sem dó nem piedade até os parentes. +Conheço que era preciso ter cabellos no coração para fazer o que elle +fez, mas que querem vocês? É sina que nunca se fizeram as grandes +mudanças politicas sem correr muito sangue. Dizia aquelle engenheiro +francez, que aqui esteve em Bellas na obra da agua, quando ás vezes se +punha a conversar commigo: «João, não se faz omeleta sem se quebrar +ovos.» E dizia bem. Aquillo entre D. João II e a nobreza era guerra de +morte. Atiravam á cabeça; eu bem sei que era mais bonito perdoar. Mas, +meus amigos, perdoar aos seus inimigos só o fez Nosso Senhor Jesus +Christo, e isso bastava para que todos conhecessem que elle era Deus +e não homem. + +Em todo o caso, rapazes, sempre lhes quero confessar que, para gostar +deveras de D. João II, preciso de desviar os olhos d'aquella sangueira +toda, e ver o que elle fez por outro lado. Ah! que rei aquelle, rapazes! +Nos descobrimentos foi um segundo infante D. Henrique, porque não foi só +dizer aos pilotos: «Vão vocês andando por ahi abaixo, e quando toparem a +India mandem cá um recado.» Não, senhores! Agarrou em dois judeus que +eram homens de sabença, e mandou-os por terra ao Egypto, para que fossem +do Egypto ver se topavam a India e se sabiam como é que se podia lá ir +ter por mar. Foram estes Pedro da Covilhã e Affonso de Paiva. Ao mesmo +tempo não deixára de mandar navios pela Africa abaixo. Um sujeito, +chamado Bartholomeu Dias, tanto andou, tanto andou sempre com a terra á +esquerda, até que um bello dia, por mais que tocasse á esquerda, não via +senão agua: «Mau, disse elle comsigo, o diabo da costa virou de rumo.» +Vira elle tambem e dá com a terra que ía para cima em vez de ir para +baixo como até ahi. «Eu cheguei ao fim da Africa, disse comsigo o +Bartholomeu Dias, eu passei algum cabo sem dar por isso.» E, já todo +contente, queria ir seguindo para diante a ver onde iria dar comsigo. +Mas a marinhagem estava cançada e quiz por força voltar para traz. +Não houve remedio, e á volta effectivamente deram com o tal cabo que +vinha a ser a ponta da Africa, e apanharam tantos temporaes que +Bartholomeu Dias chamou a esse cabo, cabo Tormentorio; mas, quando +chegou a Lisboa e contou a D. João II o que succedera, este, que logo +percebeu que estava dado o grande passo na descoberta da India, não quiz +para tamanha descoberta um nome de mau agouro, e mudou ao cabo +Tormentorio o nome em cabo da Boa Esperança, como quem diz: Agora sim, +agora é que me parece que vamos por estrada direita. + +Ora hão de vocês saber, rapazes, que por esta occasião vivia em Portugal +um sujeito genovez chamado Christovão Colombo, que era homem entendido +em cousas de mar, e que se occupava tambem muito de descobrimentos de +terras e tal etc. Foi até por isso que elle veio para Portugal, porque +isto aqui era a forja, onde, para assim dizer, se fabricavam terras +novas, e todos os que se enthusiasmavam com essas cousas vinham para cá +assoprar aos folles. Christovão Colombo estivera na Madeira, ouvira +fallar em signaes de terra para os lados do pôr do sol, e começára a +embirrar que, indo atraz do sol, havia de esbarrar com a India. Fallou +n'isso a D. João II, este consultou os sabios, e os sabios desataram a +rir. Colombo então foi-se embora e começou a offerecer os seus serviços +a quem lhe désse uma casca de noz; acceitou-os a Hespanha, depois de +massar muito o pobre do homem. Christovão Colombo partiu seguindo sempre +para o occidente, e a final deu com uma terra povoada de selvagens, que +vinha a ser nem mais nem menos do que a America, emfim um mundo inteiro +muito maior que a Europa toda. Ora, tudo isso podia ter vindo para nós, +e não nos fazia mal nenhum, se D. João II não cáe na asneira de não +acreditar no Colombo, que todos sabiam que era um homem esperto, e de +lhe não querer dar dois ou tres navios para tentar a sua descoberta, +elle que tinha navios a rodo por esses portos todos! + +--Sim! lá isso! acudiu o Manuel da Idanha coçando na cabeça. Vocemecê +diz que o homem era tão espertalhão, mas essa parece-me de cabo de +esquadra! + +--Achas, meu palerma? Diz um proverbio: Quem adivinha vae para a +casinha. E eu já te mostro que outro qualquer, no caso de D. João II, +fazia o mesmo. Tu imaginas que Christovão Colombo chegou ao pé de D. +João II e lhe disse: Saiba Vossa Alteza (que então ainda se não dava +magestade aos reis) saiba Vossa Alteza que ali defronte dos Açores está +um paiz muito rico, onde ha muito ouro, e muita prata e muitos +diamantes, e, se Vossa Alteza quizer, eu chego ali n'um instante e cá +lh'o trago? Estás tu muito enganado. O proprio Colombo nem sabia que +havia ali similhante paiz. Toda a sua mania era que, sendo a terra +redonda, e n'isso tinha elle rasão, indo uma pessoa para o occidente, +havia de dar volta e chegar ao oriente. Mas o que elle não sabia é que a +terra era tão grande como lhe saíu; e, se não lhe apparece a America, o +homem via-se grego, e ainda tinha de comer muito pão antes de arribar, +onde elle queria ir, tanto que provavelmente não levava no porão farinha +que lhe chegasse. Ora agora, pensem vocês tambem, rapazes, no seguinte: +Havia um bom par de annos que Portugal andava a teimar em seguir pela +Africa abaixo á procura da India. Teimou, teimou, até que a final chegou +ao fim da Africa, e percebeu que a terra seguia para cima, e ía com toda +a certeza parar á India. E é exactamente quando se consegue o que se +procurava havia tanto tempo, quando se descobre o cabo da Boa Esperança, +quando se tem a certeza de que se encontrou o caminho da India, que vem +um sujeito ter com o rei de Portugal, que está todo alegre com a +descoberta, e dizer-lhe: Faça favor de apagar tudo isso, e de começar +outra vez a procurar a India por outro lado. O rei, é claro, mandou-o +pentear macacos. Ora agora confesso tambem que se não põe assim no meio +da rua um homem como Christovão Colombo. Procurar a India pelo occidente +não impedia que se continuasse a procurar pelo caminho que até ahi se +seguira, e nós já tinhamos topado tanta terra que não esperavamos, +que não era cousa do outro mundo que fossem mais duas caravellas a Deus +e á ventura ver o que o mar dava de si. + +Emfim não se fez isso; os hespanhoes ficaram com a America, e +principiaram ao desafio comnosco n'isso de descobrimentos, tanto que foi +necessario que o papa dividisse entre elles os novos mundos ao meio, +dizendo: Para aqui descobrem os hespanhoes, e para aqui descobrem os +portuguezes, o que fazia com que um rei de França dissesse depois: Ora +sempre eu queria ver o artigo do testamento do pai Adão que deixou a +terra aos hespanhoes e aos portuguezes! + +Todos se riram, e o João da Agualva continuou: + +--Muito mais provas de juizo deu el-rei D. João II, e felizes seriamos +nós se os reis que se seguiram fossem como elle. Na Africa, tratou de +chamar a si os pretos, de os mandar baptisar, mas ás boas, e de fazer +por ali fortalezas para se assenhorear do commercio. Na Europa então +houve uma cousa que mostra que elle sabia ser rei. Os soberanos de +Hespanha, todos devotos, mandaram pôr fóra do seu paiz os judeus, que +eram, como foram sempre, uma raça trabalhadeira e esperta, que se +enriquecia e ía enriquecendo a terra onde vivia. Mas a rainha de +Hespanha, lá por beaterios tolos, não os quiz consentir no seu reino, e +intimou-lhes mandado de despejo. Sempre quero que vocês me digam +porque? Porque tinham crucificado Jesus Christo? Mas isso foram uns +malandrins de Jerusalem, e nem os filhos tinham culpa do que os paes +fizeram, e até os paes de muitos d'elles talvez nem em Jerusalem +estivessem n'esse tempo. Porque não acreditavam na religião christã? O +peor era para elles. Pois se não se póde salvar quem não for christão, +no outro mundo torceriam a orelha, e não era necessario já n'este mundo +ir-lhes torcendo pescoço. Porque não comiam toucinho? Tanto melhor para +os bons christãos, que sempre ficava mais barata a carne de porco. Mas +fossem lá dizer estas cousas n'aquelle tempo aos reis catholicos! Corria +uma pessoa risco de ir parar a uma fogueira. D. João II riu-se da +devoção dos visinhos, recebeu os judeus na sua terra, e tirou proveito +do caso, obrigando-os, em troca do asylo que lhes dava, a pagar-lhe um +bom tributo. Elles estavam com a corda na garganta, pagaram com lingua +de palmo, ainda que isso lhes havia de custar, porque sempre foram +sovinas. Mas, como diz o outro, para judeu, judeu e meio. + +--Olhe lá, ó sr. João de Agualva, e então quem diz que a inquisição cá +em Portugal queimava os judeus? perguntou o Manuel da Idanha. + +--Lá chegaremos, sr. Manuel da Idanha, lá chegaremos. Não ha só muitas +Marias na terra, ha tambem muitos Joões, e nós então tivemos seis, +cada um do seu feitio. + +Tudo se paga, meus amigos, e um homem póde ser principe perfeito; quando +ultraja a lei de Deus, derramando o sangue de seus irmãos, ha de o pagar +com lagrimas que tambem são sangue ás vezes. Tinha D. João II um filho +chamado Affonso, a quem queria como ás meninas dos seus olhos. Casára +com a filha dos reis de Hespanha, e as festas com que se celebrou o +casamento tinham sido das mais pomposas. Morreu, e morreu de um +desastre. Quem pôde imaginar a dôr d'aquelle pae! Chorou esse homem de +ferro, que tantas lagrimas tambem fizera derramar, chorou lagrimas de +sangue, do sangue do seu coração, e, lá nas horas mortas da noite, +quando estivesse sósinho a pensar no filho, havia de ver muitas vezes os +espectros d'aquelles que matára sem ter piedade da orphandade de seus +filhos, como Deus não tivera tambem compaixão da orphandade da sua alma. +Morreu quatro annos depois, em 1495, sem poder deixar a corôa a um filho +seu, porque debalde quizera legitimar um bastardo que tinha, e assim, +altos juizos de Deus! quem lhe havia de succeder, e não é só isso, quem +havia de colher para si a gloria de realisar a conquista da India, que +D. João II tão cuidadosamente preparava? Um irmão d'aquelle duque de +Vizeu, que elle assassinára, D. Manuel, o _Afortunado_. + +Afortunado ou Venturoso lhe chamou a historia, e com rasão, porque não +teve senão bamburrice, o que não quer dizer que fosse um palerma, e que +não tivesse mesmo bastante tino, mas fazia tanta differença de D. João +II como uma larangeira de um carvalho. Encontrou a papinha feita. +Estavam preparados os navios para a descoberta da India, poz á frente +d'elles Vasco da Gama, e em 1497 chegava Vasco da Gama á India, que era +o paiz mais rico d'esse tempo. Mandou atraz d'elle Pedro Alvares Cabral, +este chega-se mais para o occidente do que devia ser, e esbarra com o +Brazil em 1500; bom! Põe ambos de parte, que lá ingrato como aquelle não +havia nenhum, e manda para a India uma esquadra, onde ía Duarte Pacheco, +homem que parece mesmo um d'aquelles sujeitos da antiguidade, que eram +meios homens, meios deuses, e de quem se contam muitas patranhas, que +foram excedidas pelas verdades d'este nosso patricio. Querem vocês +saber? Na India havia muitos reis, como ainda hoje ha, apesar que estão +agora todos sujeitos aos inglezes. Vasco da Gama tinha chegado a uma +terra chamada Calicut, onde residiam muitos mouros, que eram quem fazia +n'esse tempo o negocio todo da India. Viram a bolsa em perigo, e não +descançaram emquanto não pozeram ao rei de Calicut de mal com os +portuguezes. Palavra puxa palavra, elle matou-nos um homem, apanhou uma +lição mestra, e de vingança em vingança ficámos inimigos para +sempre. Mas havia outro rei, o rei de Cochim, que era e foi sempre nosso +amigo. D'ahi, barulho entre os dois. Como o rei de Calicut era muito +mais poderoso, esperou que não estivessem lá navios nossos, e, sabendo +que tinha ficado apenas Duarte Pacheco e mais uns cincoenta portuguezes, +disse comsigo: «Agora é que tu m'as pagas.» E arranjou um exercito +forte, e marchou contra o pobre rei, nosso amigo. Os soldados de Cochim +tinham medo que se pellavam, e fugiam que era um louvar a Deus; mas +Duarte Pacheco, mais os seus cincoenta homens, com a sua habilidade e a +sua valentia, conseguiu tomar o passo ao de Calicut, e dar-lhe tareias +monumentaes. Ó rapazes, pois uma pessoa não se hade ás vezes ufanar de +ser portuguez? Quando é que se viu uma cousa assim? Meia duzia de gatos +bastaram para dar cabo de exercitos immensos! Eu bem sei que era a +disciplina, que eram as armas, que era tambem a fraqueza d'aquelles +bananas, que o sol da India faz uns mollengas, mas era necessario que +fossem de aço e de ferro, em vez de ser de carne e osso, esses valentes +que assim viam, sem descorar, marchar contra elles um exercito +formidavel! Era necessario que se tivessem disposto a morrer para não +deixarem que fosse pisada aos pés a bandeira de Portugal! E, a final de +contas, por muito molles que os outros fossem, sempre eram mil +contra um, e, com certeza, nenhum dos nossos pensava que saíria com +vida de similhante combate. Depois acções d'essas eram mais faceis, não +só porque os nossos já tinham tomado confiança em si, e sentiam-se +capazes de levar aos pontapés quantos indios houvesse na India, mas +tambem porque elles tinham-nos tomado medo; mas isso tudo a quem o +devemos senão a Duarte Pacheco? Pois, meus amigos, imaginam vocês que +Duarte Pacheco foi feito governador da India, ou teve algum titulo, ou +alguma recompensa grande? Qual carapuça! D. Manuel nem mais pensou +n'elle, e era tão feliz que logo encontrou para ser primeiro vice-rei da +India um homem como D. Francisco de Almeida, que em toda a parte do +mundo seria digno de exercer os primeiros logares. + +Com effeito, D. Manuel, que primeiro quizera apenas que os seus seus +navios viessem carregados de mercadorias da India, que depois cá se +vendiam na Europa, entendeu que devia tomar raizes, e encarregou D. +Francisco de Almeida de governar os portuguezes que por lá estivessem, +fundando ao mesmo tempo fortalezas. D. Francisco de Almeida entendia, +porém, e não deixava de ter rasão, que Portugal era um paiz muito +pequeno para estar assim a mandar soldados para a India, e o que elle +queria era ser senhor do mar para que ninguem mais ali podesse fazer +negocio. Emquanto só teve os indios pela prôa íam as cousas bem, +mas os turcos, que viam diminuir os seus rendimentos com o novo caminho +das Indias, começaram a metter-se na dança, e os turcos não eram tropa +fandanga, eram gente de quem tremia a Europa. Tambem, quando se +encontraram primeiro com os portuguezes, levaram a melhor e até mataram +um filho de D. Francisco de Almeida, que o vice-rei adorava. Foi a sua +perdição, porque D. Francisco de Almeida não descançou emquanto não +vingou a morte do seu estremecido Lourenço. Os turcos levaram uma sova +de primeira qualidade, e na India ficou-se sabendo de uma vez para +sempre que casta de homens eram os portuguezes. + +Pois, rapazes, parecia que d'esta vez D. Manuel se daria por muito feliz +em ter no Oriente um homem como D. Francisco de Almeida, que tinha posto +os indios a pão e laranja, e dado uma esfrega tal nos turcos que se não +atreveram por muito tempo a tornar á India. Enganam-se. Apenas acabou o +seu tempo, foi chamado a Portugal, e naturalmente el-rei nem pensaria +mais n'elle, ainda que não tivesse morrido no caminho. Mas continuava a +ser tão feliz que encontrou, para substituir D. Francisco de Almeida, um +homem que ainda valia mais do que elle, porque era o grande Affonso de +Albuquerque. Ah! meus amigos, apparecem de vez em quando no mundo uns +homens, que são capazes de revolver a terra, como os Napoleões e +outros assim, Affonso de Albuquerque foi um d'esses. + +A respeito das cousas da India não pensava como D. Francisco de Almeida, +mas não era porque visse as cousas de outro modo, era porque achára +maneira de as concertar. Sim, elle bem sabia que Portugal não podia +estar a encher a India de soldados, mas o que elle queria era que os +Indios se misturassem com os portuguezes, e, para o conseguir, ao passo +que era cruel com os mouros, com os indios era tão bom e tão justo que, +depois da sua morte, íam elles resar ao seu tumulo, como quem vae resar +ao tumulo de um santo. Escolheu elle tres pontos, em que estabeleceu, +para assim dizer, os seus quarteis generaes, e todos muito bem +escolhidos: Ormuz, ao pé da Persia; Goa, no meio da India; Malaca, para +os lados da China e das ilhas a que se chamava das Especiarias ou das +Molucas. Primeiro tomou Goa, depois Malaca que tinha dente de coelho, +porque os malaios são levadinhos da bréca, depois Ormuz, e, quando +acabou de fazer tudo isto, estava já demittido, e sabendo que ía ser +nomeado para o seu logar o seu peor inimigo! Morreu com esse desgosto. + +Tambem d'essa vez tinha-se acabado o fornecimento de grandes homens, e +os dois ultimos governadores da India, no tempo de D. Manuel, não foram +lá grande cousa, mas tambem não estragaram nada. Aquillo então ía +n'um sino. Os portuguezes espalhavam-se por toda a parte, de um lado +chegavam á China, do outro á Persia, do outro ás Molucas, do outro a +Cambaya. Tinham fortalezas por toda a parte; elles recebiam a boa +canella de Ceylão, o bom cravo das Molucas, a boa pimenta da India, os +bons cavallos da Persia, as sedas da China, o incenso da Arabia, os +diamantes de Golconda, e traziam estas riquezas todas para a Europa e +vinham aqui a Lisboa, que estava sempre cheia de navios, os hollandezes +e os inglezes comprar tudo isto para o vender por esse mundo. Do Brazil +não se fazia caso porque nem valia a pena; na Africa sempre se íam +tomando praças, que era para n'aquellas constantes guerras com os mouros +se exercitar a fidalguia, que depois fazia o diabo a quatro na India. +Emfim, quando D. Manuel mandou ao papa uma embaixada com presentes +vindos de todas as suas conquistas, Roma ficou embasbacada, e não se +fallava em todo esse mundo senão na grandeza de Portugal. Bons tempos, +meus amigos, mas que duraram pouco! + +No reino, D. Manuel logo mostrou que, se não era tolo, tambem não tinha +o entendimento de D. João II. Poz fóra os judeus; é verdade que depois, +quando em Lisboa o povo fez uma matança nos que tinham ficado a titulo +de se terem convertido, mostrou-se muito zangado e castigou a cidade. +Grande não foi elle, mas viu-se cercado de gente que o fez grande, +e teve a esperteza de os saber conhecer. Depois, punha-os de parte com a +maior facilidade, mas atinava com elles; só não percebeu o que podia +esperar de Fernão de Magalhães, que, zangando-se com uma picardia que +lhe fez, passou para Hespanha, e assim nos deixou ficar sem a gloria de +termos sido nós os primeiros que deram volta ao mundo, como fizeram os +hespanhoes commandados pelo tal Fernão de Magalhães, porque isso, +n'aquelle tempo, não havia por esses mares uma onda que não marulhasse +em portuguez... + +--Em portuguez porque? perguntou o Francisco Artilheiro. Eu nunca +percebi o que ellas diziam. + +--Então é que têem a cabeça tão dura como tu, porque foi sempre o +portuguez a primeira lingua que ouviram, e até lá para a terra dos +bacalhaus, para o norte, onde faz um frio de rachar, lá mesmo foi Gaspar +Cortereal que primeiro descobriu a Terra Nova. Emfim, meus amigos, +depois de ter casado tres vezes, e sempre com princezas hespanholas, +morreu em 1521 el-rei D. Manuel, e, verdade verdade, com elle se póde +dizer que morreu a grandeza de Portugal. + +Succedeu-lhe o filho D. João III, que era o beato mais beato que tem +vindo a este mundo. D. Manuel já lá tinha as suas manias, mas, como eu +lhes contei, quando os de Lisboa desataram a matar os judeus, ou +antes os christaos novos, deu-lhes com o _basta_. D. João III, esse, não +descançou emquanto não metteu em Portugal a inquisição. O papa não +queria, fazia-se rogado, e D. João III é que insistiu com elle para +apanhar essa prenda. Chegou a gastar rios de dinheiro para o conseguir!! +Ora, realmente, metter cá um tribunal que, apenas um sujeito se esquecia +de ir á missa, ferrava com elle na cadeia, quando não era na fogueira, +só lembrava a D. João III. Até os estrangeiros fugiam, e então o resto +dos judeus, que ainda por cá havia, e que por amor á nossa terra se +tinham feito christãos, com medo da inquisição, se foram safando logo +que poderam. E, não contente com isso, introduziu tambem a companhia de +Jesus, que era uma ordem nova de frades mais disciplinados que um +regimento, e que tinham jurado ser elles que haviam de governar o mundo. +Ora, lá para prégar aos herejes, e aos gentios da India, e aos selvagens +do Brazil, eram muito bons, porque não recuavam nem diante da morte, e +houve jesuitas, como S. Francisco Xavier, que não ficaram a dever nada +aos doze apostolos; mas em Portugal mettiam-se em toda a parte: elles +ensinavam, elles confessavam, e estou em dizer que não podia ser bom. Eu +não sou contra os padres, nem contra a religião, pelo contrario, mas +tambem não se hão de metter em tudo. Ora vejam vocês como havia de +viver um dos nossos avós d'esses tempos! Os jesuitas a apertarem-lhe o +freio, e ao mais pequeno desmando, zás, fogueira da inquisição com elle. +Até se fizeram macambuzios os pobres homens, que eram até ahi gente +alegre. Não se podia escrever cousa nenhuma, que não viessem logo os +jesuitas: Corte-se isto porque parece contra a religião, não se +represente aquillo porque se faz troça a um frade, e porque torna e +porque deixa. O que é certo, meu amigos, é que, emquanto lá por fóra se +andava para diante, e se faziam invenções, e se estudava, nós não +passavamos da cepa torta, e o mal que isso fez vão vocês vêl-o. + +Na India parecia que ía tudo muito bem, mas via-se que não podia durar +muito. Valentes eram os nossos, mas, em vez de fazerem o que Albuquerque +queria, em vez de accommodarem os Indios, e de se porem ás boas com +elles, não senhor, faziam crueldades que era uma cousa por demais, e o +que queriam era apanhar dinheiro. Passavam o tempo, ora em guerra com o +rei de Calicut, ora com o rei de Cambaya, ora com o rei de Achem, ora +com o rei de Bintam, ora com o rei de Kandy, ora com todos ao mesmo +tempo. Isto não era vida. Obravam prodigios de valor, isso é verdade, +como por exemplo nos dois cercos de Diu, em que Antonio da Silveira e D. +João de Mascarenhas se defenderam de um modo maravilhoso, mas, á força +de dar cutiladas, o braço ía cançando, e o paiz estava esfalfado. +Não havia nem um instante de socego. Se apparecia um governador como D. +João de Castro, o da Penha Verde de Cintra, que era honradissimo e +justiceiro, os outros não pensavam senão em roubar. Já se pegavam uns +com os outros, como fez Lopo Vaz de Sampaio com Pedro Mascarenhas, e +quando D. João III, o Piedoso, como lhe chamaram os frades, morreu em +1557, todos previam que isto ía para baixo. O filho mais velho de D. +João III morrera ainda em vida do pae, e quem lhe succedeu foi um neto, +creança de cinco annos, que tinha o nome de D. Sebastião. Ficou regente +a avó, senhora de bastante juizo, que governou bem, mas que em 1562 teve +de ceder a regencia ao cunhado, o cardeal D. Henrique, todo dominado +pelos jesuitas, e que cercou de padres o principe. O que resultou d'ahi? +Resultou que D. Sebastião, que gostava de guerras e batalhas, fez-se ao +mesmo tempo beato. Parecia um d'aquelles antigos frades militares, que +tinham concorrido tanto para expulsar os mouros de Portugal. Não quiz +casar, e até fugia das mulheres. Não pensava senão em dar cabo dos +mouros. Ora, se nós que já tinhamos tanto trabalho para nos sustentarmos +na India, que fôramos obrigados a largar umas poucas de praças na +Africa, que tinhamos precisado de um grande esforço para salvar Mazagão, +cercada pelos mouros, nos mettiamos em grandes guerras com elles, +aonde iria isto parar! Pois foi o que succedeu. Na India o trabalho era +cada vez maior; um governador, chamado D. Constantino de Bragança, +parente da casa real, fizera por lá grandes cousas, mas pouco tempo +depois juntavam-se quasi todos os reis da India e vinham sobre nós. O +que nos valeu foi termos um novo Affonso de Albuquerque, um general de +mão cheia, D. Luiz de Athayde, que a tudo acudiu e tudo salvou; mas +vocês bem vêem que isto não podia continuar assim. Quando as cousas +estavam n'este bonito estado, quando nós tinhamos ás costas a India, o +Brazil para que D. João III principiára a olhar, onde precisávamos de +nos defender contra os aventureiros francezes que achavam a terra a seu +gosto, de que se ha de lembrar el-rei D. Sebastião? De ir conquistar +Marrocos! Eu já tenho ouvido dizer que mais valia termos conquistado +Marrocos, que nos ficava á porta, do que irmos á India que ficava tão +longe. Pois sim, mas o que era necessario era escolher. Ou uma cousa ou +outra. Mas D. Sebastião, com aquella embrulhada, que elle tinha na +cabeça, de idéas religiosas e de idéas guerreiras, não attendia a cousa +nenhuma, nem fazia calculos nenhuns. O que elle queria era dar lambada +nos mouros, e, apesar dos conselhos de toda a gente, levanta um pequeno +exercito, e para o levantar custou-lhe, porque já não havia braços +no paiz... co'a breca, que elles não chegavam para tudo! e abala-se +para a Africa a pretexto de ir soccorrer um principe mouro que tinha +sido expulso do throno por seu tio! + +Ah! meus amigos, aquillo era mesmo um doido que ali ía. A gente gosta de +ver um rapaz que tem o sangue na guelra, e que se atira para diante, +embora faça asneira, mas é que D. Sebastião estava perfeitamente maluco. +Era maluquice a empreza, foi maluquice o modo como a preparou, foi +maluquice o modo como a dirigiu. Parecia que Deus, por umas poucas de +vezes, o quizera salvar, e elle sempre a atirar comsigo de cabeça para +baixo. Emfim, no dia 4 de agosto de 1578, deu-se a batalha á moda de +seiscentos diabos, porque nem houve commando, nem houve nada. D. +Sebastião atirou-se aos mouros e não quiz saber de exercito, nem de +cousa nenhuma. Emquanto poude dar cutilada, deu. A flor da fidalguia +portugueza ali morreu, a que não morreu ficou prisioneira. Os soldados +fugiram, uns por aqui outros por ali, e, quando a noticia chegou ao +reino, imaginem que afflicção! Não se perdera só um rei, perdera-se a +corôa, porque não havia herdeiros, e quem subiu ao throno foi o velho +cardeal D. Henrique, tio avô do fallecido, que nunca fôra esperto e que +estava então meio apatetado. Ainda houve quem dissesse que D. Sebastião +não morrera, porque ninguem o vira caír morto, e o cadaver que +appareceu, e que se disse que era d'elle, estava tão desfigurado que se +não podia conhecer. Assim lá ficou D. Henrique a governar, mas para que? +Todos sabiam que a corôa era herança que não tardava. Quem a havia de +apanhar? Quem tinha direito verdadeiro era a duqueza de Bragança, por +ser filha de um irmão de D. João III, D. Duarte; quem era mais +sympathico ao povo era D. Antonio, filho bastardo de outro irmão de D. +João III, D. Luiz; quem tinha mais força era D. Filippe II, rei de +Hespanha, filho de uma irmã de D. João III, D. Isabel. Ainda havia +outros que se diziam herdeiros, mas entre aquelles tres é que a lucta +era séria. Ferviam as intrigas. D. Filippe tinha em Portugal um +embaixador, e até por signal era portuguez, D. Christovão de Moura, que +comprava todos quantos se queriam vender, e bem parvos eram os que não +íam ao mercado. As côrtes, chamadas por D. Henrique para decidir a +questão, estavam já tão pouco costumadas a metter o seu bedelho n'essas +questões, que disseram ao rei que decidisse como quizesse, apesar de +berrar muito contra isso um portuguez ás direitas, procurador de Lisboa, +e que se chamava Phebo Moniz. O rei não decidiu cousa alguma. Morreu em +1580, e deixou o quartel general em Abrantes, tudo como d'antes. Nomeou +governadores do reino uns sujeitos que se tinham já vendido aos +hespanhoes, e que de certo íam escolher D. Filippe II. Mas, como se +demorassem, este não esteve para os aturar, e mandou-nos cá um exercito +commandado pelo duque de Alba. Vendo os hespanhoes, o povo virou-se para +D. Antonio, prior do Crato e bastardo do infante D. Luiz, e acclamou-o +rei. Valente era elle, mas não era mais nada. Quiz resistir aos +hespanhoes com um punhado de gente que nunca pegára em armas. Batido em +Alcantara, ás portas de Lisboa, depois de algumas horas de combate, +fugiu para o Minho, por onde andou escondido, até que poude safar-se +para o estrangeiro. Filippe II entrou socegadamente em Lisboa, e era uma +vez a independencia de Portugal. + +--O que! estavamos hespanhoes? perguntou furioso o Bartholomeu. + +--Estavamos hespanhoes, sim, meu amigo, e eu te vou explicar como é que +tinhamos chegado a isso em tão pouco tempo. Em primeiro logar, creio que +já sabem que D. João II abaixára a prôa de todo á nobreza, e d'ahi por +diante os fidalgos ficaram sendo simplesmente criados do paço. O povo +ajudára o rei a fazer essa obra necessaria, mas o rei, apenas se viu +servido, deu-lhe para baixo, e el-rei D. Manuel começou a dizer que os +foraes, que eram as leis por que se governavam os concelhos, não estavam +muito claros, e para os aclarar, reformou-os, quer dizer, deu cabo +d'elles. Em côrtes já se não fallava senão de longe a longe. D'antes, +pelo menos, para se lançarem tributos novos, sempre se reuniam as +côrtes. D. Manuel não quiz que ellas se incommodassem por tão pouco, e, +para lhes poupar trabalho, começou elle a deitar os tributos por sua +conta. Ora isto é muito bom, emquanto as cousas vão correndo bem. O rei +tem ali o seu povo manso como um leão domesticado, com as unhas cortadas +e os dentes limados, mas, quando vem as occasiões, o povo mette o +rabinho nas pernas e não tuge nem muge. Para mais ajuda, a inquisição +concorria para terem todos pouca vontade de se mexer. Os jesuitas, que +tanto podiam fazer pela influencia que possuiam, não se importaram para +nada com isso. Frades como elles eram, muito ligados entre si, e muito +escravos do seu geral que estava em Roma, não tinham patria, a sua +patria era a Companhia. Depois, vocês bem vêem que o reino não podia +deixar de estar sem forças. Era um saír de gente todos os annos para a +Africa, para a India, para o Brazil, que era uma cousa por demais. No +meio de tantas riquezas o paiz achava-se pobre. Havia muita gente rica e +vadia, mas não havia lavoura, não havia fabricas, não havia nada, o +dinheiro entrava por um lado para saír pelo outro. Demais a mais tudo +era pandiga rasgada. Os portuguezes vinham do Oriente descançar das suas +fadigas. Tinham escravos para o serviço, passavam os dias na amante +vadiagem. Não ha cousa que mais deite a perder os homens. Por isso +D. Filippe e o seu embaixador Christovão de Moura encontraram tudo podre. + +Hão de vocês dizer: Pois então, só porque um rei morreu, e só porque se +perdeu um exercito, que não era grande cousa, perdeu-se Portugal? É +assim mesmo. Faltou o rei, faltou tudo, porque o povo nem já sabia de +si, e as côrtes, quando não havia quem mandasse alguma cousa, nem sabiam +o que haviam de fazer. Soldados portuguezes, os bons, estavam na India, +e não bastavam; os que tinham voltado não pensavam senão na pandiga. +Tudo estava alluido na nação portugueza, veio o empurrão de +Alcacer-Kibir, foi tudo abaixo, e eu, meus amigos, não vou para baixo, +vou para cima que são horas de me ir chegando ao pouso. Domingo +continuaremos, porque já agora havemos de acabar, que lá dizer que eu +tenho muita vontade de lhes contar a historia do que se passou no tempo +dos Filippes, isso não tenho. Então é que Portugal perdeu a esperança de +se levantar. + + + + +SETIMO SERÃO + +Portugal durante o dominio hespanhol.--Filippe I.--Os falsos D. +Sebastião.--Ultimos esforços do prior do Crato.--Os inglezes e +hollandezes no ultramar.--A invencivel armada.--D. Filippe II.--Perda e +restauração da Bahia.--Filippe III.--O conde-duque de Olivares e os +privilegios das provincias.--Perda de Pernambuco.--Tumultos de Evora.--O +duque de Bragança.--A conspiração dos fidalgos.--Revolução de 1 de +dezembro de 1640. + + +--Meus amigos, disse o João da Agualva no domingo immediato, demorei-me +e o resultado foi apanhar uma constipação, que ainda mal me deixa +fallar. Não quiz comtudo deixar de vir para se não perder este bom +costume dos domingos, mas pouco tempo me demoro, e não farei mais do que +contar-lhes a historia do que passou Portugal com o dominio dos hespanhoes. + +Se nós ao menos tivessemos passado para uma nação forte, com vida e com +sangue, alguma cousa lucrariamos, mas a Hespanha estava peor do que nós. +Parecia muito poderosa por fóra, mas só havia podridão lá dentro. Depois +andava em guerra com a Europa toda, e n'essa guerra nos embrulhou +para nossa desgraça. + +Apesar dos pesares, não cuidem vocês que tudo foram rosas para o nosso +rei Filippe I, que era em Hespanha Filippe II. Elle veio com pésinhos de +lã, prometteu respeitar as liberdades portuguezas, nunca nos dar por +governadores senão portuguezes ou principes da familia real, jurou +quanto quizeram, mas o povo não andava satisfeito, e, como não tinha a +quem se encostar, pensava em D. Sebastião, o _Desejado_, como lhe +chamam. Assim que apparecia um homem que tinha alguma parecença com o +rei fallecido, diziam logo que era elle, de fórma que os hespanhoes +estavam sempre em sobresalto. Por isso o rei de Penamacor e o rei da +Ericeira, uns pobres homens que o povo embirrou em querer que fosse cada +um d'elles D. Sebastião, e que tomaram o caso a serio, provocaram os +seus tumultos, sendo os da Ericeira um poucochinho graves. Passados +tempos, ainda appareceram lá fora, em Hespanha e em Italia, dois homens +que diziam ser D. Sebastião, e que lograram muita gente, mas esses eram +verdadeiros intrujões que nem mesmo pensavam senão em comer á +barba-longa, á custa dos freguezes. O tal amor ao D. Sebastião foi-se +pegando a ponto que começou a formar-se uma seita que ainda ha pouco +tempo durava, a seita dos sebastianistas, que acreditavam que D. +Sebastião havia de apparecer n'um dia de nevoeiro para governar em +Portugal. Eu ainda conheci um sebastianista. + +--E eu tambem, acudiu o Bartholomeu. + +--Já vêem que não minto. Mas d'esse D. Sebastião não ha de vir mal ao +mundo, nem bem que é o peor. D. Antonio tambem trabalhava pela sua +banda, e, como a ilha Terceira o acclamára rei, foi-se lá metter e +arranjou soccorro de França, mas os hespanhoes bateram a esquadra +franceza, e tomaram a ilha. Depois arranjou soccorros da rainha de +Inglaterra, que mandou uma esquadra a Lisboa, mas os inglezes foram +repellidos, e D. Antonio, descoroçoado de todo, foi morrer a Paris em 1595. + +Mas querem vocês ver o que nós ganhámos com o estar juntos á Hespanha? +Foi termos á perna os inglezes e os hollandezes, que principiaram a +sacudir-nos da India, e que então aos nossos navios faziam guerra +mortal. Ia tudo pela agua abaixo, e, para mais desventura, Filippe +lembra-se de mandar contra a Inglaterra uma esquadra immensa, a que +chamou «a invencivel armada», e que saíu do porto de Lisboa. A armada +perdeu-se e lá se foram os nossos melhores navios. Filippe morria em +1598, e succedia-lhe Filippe II aqui e III em Hespanha. Se as cousas +tinham ido mal até ahi, então foram peor. A Hespanha ía a Deus e á +ventura, e nós atraz d'ella. O governo hespanhol, que mal cuidava de si, +não cuidava nada de nós. Os inglezes e os hollandezes tomavam-nos +quasi tudo o que tinhamos na India, e estes ultimos tambem se mettiam no +Brazil comnosco. Grandes façanhas ainda se faziam, é verdade, e da +Bahia, por exemplo, foram os hollandezes expulsos, mas, quando Filippe +II morreu em 1621, já o nosso poder não era nem a sombra do que tinha sido. + +Succedeu-lhe Filippe III, e esse tinha um primeiro ministro chamado +conde-duque de Olivares, que imaginou que havia de acabar com os +privilegios das provincias, principalmente com os de Portugal. Não +pensava n'outra cousa, de fórma que deixava ir as colonias, e no Brazil +já os hollandezes tinham tomado raizes, e estavam senhores de +Pernambuco. Mas os portuguezes começaram a achar a brincadeira pesada e +a refilar ao Olivares. Em 1637 rebentou uma revolta em Evora, foi logo +apagada, mas com muito sangue. Peor para o caso. Os fidalgos, que +andavam tambem damnados, principiavam a conversar com o duque de +Bragança, D. João, e a apalpal-o para ver se elle quereria a corôa. O +duque não dizia nem que sim, nem que não. Mas n'isto a Catalunha, que +tambem não perdoava ao Olivares a sem-ceremonia com que elle lhe queria +tirar os seus antigos privilegios, revolta-se. Boa occasião! Os +fidalgos, em Lisboa, sentiam-se cada vez mais dispostos a mandar os +hespanhoes para o diabo. O Olivares não fazia senão desesperal-os e +atiçal-os. Tinha-lhes dado por governador a duqueza de Mantua, e para +secretario do governo um portuguez, Miguel de Vasconcellos, que era mais +damnado contra os seus patricios do que se fosse hespanhol. Emquanto +deixava perder as colonias portuguezas, Olivares levava os nossos +fidalgos e os nossos soldados para as guerras de Flandres e da +Catalunha. Lembra-se emfim de dar ordem ao duque de Bragança para que vá +para Madrid. Então é que já se não podia estar com pannos quentes. Os +fidalgos dizem ao duque de Bragança: Ou acceita a corôa, ou nós pomo-nos +em republica. O duque, a final, disse que sim. Com a bréca! aquillo foi +um momento. Era um punhado de homens, os que andavam assim a conspirar; +elles não sabiam se podiam contar com o povo, nem se não podiam, +conspiravam ás claras, que parece que em Lisboa todos sabiam da +conspiração menos os hespanhoes; reuniam-se umas vezes em casa de João +Pinto Ribeiro, outras vezes em casa de D. Antão de Almada, no jardim. No +dia 1 de dezembro de 1640 saem todos para o meio da rua. Eram quarenta, +pouco mais ou menos. Chegam ao paço, matam o Miguel de Vasconcellos, +agarram na duqueza de Mantua e fecham-n'a á chave, desarmam a guarda, +abrem as janellas, e dizem a quem ía passando: Viva o duque de Bragança, +rei de Portugal! viva o sr. D. João IV! O povo diz-lhes cá de baixo: +Viva! e viva, e viva! e eram uma vez os hespanhoes, e d'ahi a +pedaço estava tudo tão socegado como se não tivesse havido cousa +nenhuma, e os hespanhoes tinham desapparecido; e aqui têem vocês como se +faz uma revolução quando ella está na vontade de todos. Digo-lhes, +rapazes, que este dia 1 de dezembro consola uma pessoa. Parecia que o +paiz não tinha feito senão acordar de um pesadello. Aquillo foi só +saltar da cama abaixo, e elle ahi estava de pé, todo pimpão como em +outros tempos. E sabem vocês porque isto foi? É porque as nações são +como as espadas, onde enrijam é na bigorna. + + + + +OITAVO SERÃO + +Unanimidade da revolução.--Preparativos de resistencia.--Organisação +militar do paiz.--As allianças.--Relações de Portugal com +a Hollanda.--Restauração de Pernambuco e de Angola, e perda +de Ceylão.--Conspirações contra D. João IV.--Guerra da +Restauração.--Batalhas de Montijo e de Telena.--D. Affonso VI.--A sua +educação e a sua indole.--Regencia da rainha D. Luiza.--Antonio +Conti.--O conde de Castello Melhor.--Continuação da guerra.--Cerco de +Badajoz.--Batalha das Linhas de Elvas.--Paz entre a Hespanha e a +França.--Campanhas de D. João de Austria.--Schomberg.--Victorias do +Ameixial, Castello Rodrigo e Montes Claros.--Planos do conde de Castello +Melhor.--Intrigas do Paço.--Casamento, desthronamento e divorcio +vergonhoso de D. Affonso VI.--Regencia do infante D. Pedro.--Casamento +com a cunhada.--Tratado de Methwen.--Guerra da successão de +Hespanha.--D. João V.--As minas do Brazil.--Desperdicios, beaterio e +immoralidades. + + +--Meus amigos, principiou no outro domingo o João da Agualva, e já +ninguem o interrompia, tal era o interesse com que todos seguiam a sua +narrativa; o que succedeu na capital, succedeu no reino todo. Aquillo +foi chegar a noticia do que se passava em Lisboa, e de um momento para o +outro desappareciam os hespanhoes, e tornava tudo a ser Portugal. +Poupámos-lhes muita despeza em correios, porque logo souberam pelo +primeiro que Lisboa se tinha revoltado, que tinha vencido, que reinava +em Portugal D. João IV, e que a Hespanha, do Minho para baixo e do +Caya para o occidente, já não possuia nem um palmo de terra. Querem +vocês saber como o conde-duque de Olivares deu a noticia ao patrão? Foi +d'esta maneira:--Dou os parabens a Vossa Magestade; acabam de lhe entrar +uns poucos de milhões no bolso.--Como assim? perguntou o rei que estava +a jogar, e que não desgostaria de que lhe saisse d'essa maneira a sorte +grande de Hespanha.--Porque o duque de Bragança, tornou o ministro, +acaba de se revoltar, e de se fazer rei de Portugal, e, como temos de +lhe tirar os bens e de lhe cortar a cabeça, fica Vossa Magestade mais +rico. O rei não gostou muito d'esse modo de enriquecer, e ainda olhou +para os parceiros a ver se algum lhe dava quatro vintens pela herança. +Nenhum caíu n'essa. + +Isso era muito bom, mas Portugal é que não vivia de cantigas. A Hespanha +era então ainda maior do que hoje é, e, se ella nos caísse em cima, +estavamos promptos. De que precisavamos nós? De dinheiro, de soldados e +de allianças. Tratou-se logo de tudo. Dinheiro votaram as côrtes quanto +se quiz; para arranjar soldados fez-se uma obra fina que nunca ninguem +até ahi tinha feito, e que foi pôr toda a gente em armas. E como? +dividiu-se o reino em tres linhas; a primeira de soldados, que se +chamavam pagos, a segunda de milicianos, e a terceira, que era a dos +velhotes, de ordenanças. Uns íam á guerra, os outros ajudavam-nos +em sendo preciso, saíndo, o menos que podesse ser, dos seus sitios, e +finalmente os ultimos defendiam as suas terras, porque isso, atraz de um +muro, todos fazem figura. Digo-lhes, rapazes, que aquillo é que foi uma +idéa, e olhem que não nos serviu só então, tambem na guerra da peninsula +foi o que nos valeu, e, aqui para nós, não me parece que fizessem muito +bem em deitar abaixo aquella historia. Estava já tudo costumado, e +quando vinha uma guerra, saltava toda a gente para o meio da rua; e +olhem que isto de estar um homem dentro de casa, de espingarda na mão, +dá que fazer aos mais pintados. E logo se viu. + +Emquanto a allianças tambem não faltaram; é verdade que não serviram de +muito, porque cada um cuidava de si. A França, prompta, o que ella +queria era abaixar a prôa á Hespanha, mas, como tambem lá andava em +guerra com os hespanhoes, o mais que fez foi consentir que arranjassemos +officiaes francezes pelo nosso dinheiro; a Inglaterra, a mesma cousa, +muita festa para a festa, mas andava embrulhada em guerras civís, não +mandou para cá nem um navio. Então a Hollanda ainda foi peor, isso... +recebeu o nosso embaixador de braços abertos, poz luminarias, achou que +tinhamos feito muito bem, mas, quando o embaixador lhe disse: «Então +agora que estamos amigos, venham para cá as nossas colonias, que +são nossas e não dos hespanhoes», a Hollanda exclamou: «As colonias! ah! +sim! nós somos tão amigos d'ellas! Estão já acostumadas comnosco! até +tinhamos pena de as deixar». E acrescentava o embaixador: «Mas então, +c'os diabos, ao menos não nos tomem mais nenhuma».--«Não tomamos, dizia +a Hollanda, isso nunca. Ora agora sabem vocês? as colonias são como as +cerejas. O caso é apanhar uma». Ah! elle é isso! disseram os portuguezes +comsigo, pois então vamos a ellas. E, zás, rebenta uma revolta em +Pernambuco, e os brazileiros a berrarem: Viva D. João IV! A Hollanda +chamou o nosso embaixador: «Então que diabo é isso? nós somos amigos e +fazem-nos uma partida d'estas!»--«Patifes! dizia o embaixador. Aquillo é +do sol! esquenta-lhes a cabeça, e dão por paus e por pedras. Mas, aqui +para nós, se elles dizem: Viva D. João IV, não havemos de lhes ir dizer: +Morra D. João IV! Não nos ficava bem.»--«Pois sim, mas digam-lhes que +estejam quietos.»--«Pois isso dizemos nós.» E D. João IV mandava para lá +armas e officiaes, e dizia-lhes: «Ahi vae isso, que é para vocês estarem +quietos.» E em poucos annos estavamos senhores de Pernambuco, e os +hollandezes na rua. + +D'ahi a tempos, Salvador Correia de Sá ía a Angola e punha fóra os +hollandezes que nos tinham tomado esse reino.--«Então isto que vem a +ser? bradaram os hollandezes, então os senhores vão de proposito do +Brazil a Angola para nos sacudir!»--«Quem é que fez isso?» perguntava o +embaixador.--«Salvador Correia de Sá.»--«Sim! pois estejam vocês +descançados, que lhe vamos já perguntar pelo correio, que diabo de +lembrança foi essa. Em vindo resposta cá lh'a mandamos. E a proposito, +sr.ª Hollanda, vocês tomaram-nos Ceylão?»--«Tomámos Ceylão, mas que +defeza! Antonio de Sousa Coutinho defendeu-se maravilhosamente. Os +nossos generaes são todos accordes que nunca encontraram resistencia tão +desesperada! Quando escreverem para lá, mandem os nossos parabens ao sr. +Antonio de Sousa Coutinho e recommendações aos amigos.» + +E era assim que nós estávamos com a Hollanda: abraços na Europa e +lambada lá por fóra. + +Houve só duas côrtes que não quizeram nunca reconhecer a independencia +de Portugal; uma foi a côrte de Roma que estava toda nas mãos dos +hespanhoes, e a outra a da Allemanha, cujo imperador era da mesma +familia que a do rei Filippe. E fizeram-nos transtorno: a primeira +porque estávamos assim a modo excommungados, a segunda por uma patifaria +que praticou o imperador, mandando prender sem mais nem menos o principe +D. Duarte de Bragança, irmão de D. João IV, que andava por lá na guerra +contra os turcos, e que tanta conta nos faria em Portugal. Morreu +na cadeia o pobre rapaz por causa de nós e da traição do tal imperador. + +Em Portugal, ao principio, tinha ido tudo bem, mas, assim que passou +aquelle primeiro fogo, houve muitos que começaram a pensar no caso e que +disseram comsigo: «Isto foi uma grande asneira. Vem ahi os hespanhoes e +dão cabo de todos nós. O melhor é pormos as costas no seguro, e, antes +que elles venham ter comnosco, vamos nós ao encontro d'elles, que sempre +apanharemos alguma cousa.» E n'isto desatam a conspirar contra D. João +IV. Foram castigados cruelmente. Morreram muitos com a cabeça cortada, e +mais nem todos eram culpados. Mas que querem vocês? A mania de D. João +IV era que o não tomariam a sério como rei em Madrid, emquanto não +mandasse cortar a cabeça a alguem. + +Pois em primeiro logar visse bem a quem matava, e em segundo logar eu +sempre ouvi que os reis, quando são mais reis, é quando perdôam. E, alem +d'isso, os hespanhoes quando tomaram a sério D. João IV não foi quando +elle mandou cortar a cabeça a fidalgos portuguezes, mas quando os +soldados portuguezes lhes começaram a esfregar as costas a elles. + +Lá que os taes conspiradores tinham rasão em estar com medo, isso +tinham, porque parecia mesmo impossivel que Portugal resistisse. +Tambem o que nos valeu foi a asneira dos hespanhoes, que nos primeiros +dois annos não fizeram senão dar um rebate falso a uma praça, atacar +outra, escaramuçar aqui, disparar uns tiros alem. Parecia que estavam +incumbidos por D. João IV de fazer andar os nossos soldados na recruta. +Em 1644 é que, pela primeira vez, fizeram assim movimento mais serio, +mas já tinhamos então soldados velhos, commandados por um bom general, +Mathias de Albuquerque, e os amigos hespanhoes levaram a primeira sova +mesmo lá na sua terra, em Montijo; em 1646 nova batalha em Telena, mas +n'essa perdemos nós mais do que lucrámos, ainda que os hespanhoes com +isso nada ganharam tambem, porque voltaram á costumeira antiga. Emfim, +para encurtar rasões, quando D. João IV morreu, em 1656, estavamos havia +dezeseis annos n'aquella brincadeira, hoje íamos nós á Hespanha e +apanhavamos gado, ámanhã vinham elles cá e levavam-nos o nosso. Mas quem +lucrava com isso? Éramos nós, porque os nossos milicianos, e as nossas +ordenanças íam-se costumando á guerra, e cada vez este bocadinho de +Portugal se ía tornando para a Hespanha mais duro de roer. + +Em 1656 morreu pois D. João IV, como eu lhes disse, e succedeu-lhe seu +filho D. Affonso VI, a quem chamaram o _Victorioso_, como chamaram a +D. João IV o _Restaurador_, mas emfim a este com mais um bocadinho +de rasão. + +D. Affonso VI não era o filho mais velho, mas o mais velho, um rapazito +que dava esperanças, Theodosio, morrera em 1653. D. Affonso VI fôra +desde creança muito doente, nunca podéra aprender cousa nenhuma e tivera +uma educação muito descuidada. O seu gosto era brincar com os garotos +que íam para debaixo das janellas do paço, e, quando foi homem, andava +em pandigas pela cidade, com uma roda de facinoras que faziam tudo o que +queriam á sombra d'elle, a ponto que até havia mortes nas ruas de +Lisboa! Como ainda era pequeno quando seu pae morreu, ficou regendo o +reino sua mãe D. Luiza de Gusmão, uma hespanhola muito decidida, que +diziam até que fôra quem mais concorrera para o marido acceitar a corôa. +A regente lá foi governando com acerto, emquanto o rapazote andava ao +laré com um tal Antonio Conti, que lhe soubera conquistar a amisade. A +rainha um dia pegou n'esse Antonio Conti, e ferrou com elle desterrado +no Brazil. Ó diabo que tal fizeste! o pequeno zanga-se, e, quando o +conde de Castello Melhor lhe disse que era bom que começasse a governar +por si, porque tinha já chegado á maioridade, D. Affonso, para pregar +pirraça á mãe, acceitou; eu não louvo o conde de Castello Melhor por ter +aconselhado esta acção, mas a verdade é que D. Affonso VI já estava +em idade de governar, e que, se não podia dirigir os negocios, sempre +era melhor que por elle os dirigisse um homem como o conde de Castello +Melhor, que tinha uma excellente cachimonia, do que a rainha, que, +apezar de ser esperta, sempre era senhora, e por isso menos capaz de +governar o reino em tempo de guerra. + +Bem conheço que D. Affonso VI era um mau rei, que não tinha juizo, que +se entregava a divertimentos indecentes e até criminosos, mas uma +qualidade tinha elle, percebia perfeitamente que não sabia cuidar do +reino, e deixava o Castello Melhor fazer tudo quanto queria. Ora o +Castello Melhor era uma das melhores cabeças que têem governado o nosso +paiz, como vocês vão ver, porque é bom que saibam o que se passára na +guerra. + +Logo depois da morte de D. João IV, um general portuguez, João Mendes de +Vasconcellos, fizera grande asneira. Vendo que os hespanhoes andavam só +a fazer fosquinhas, disse comsigo: Não nos hão de conquistar, e havemos +de ser nós que os conquistaremos a elles. Junta um exercito magnifico, e +vae cercar Badajoz. Ainda ali ganhámos uma batalha, que foi a do Forte +de S. Miguel, mas a final tivemos de levantar o cerco, depois de +havermos perdido inutilmente a flor dos nossos soldados. Ora o que +succedeu? Foi que, no anno seguinte, quer dizer em 1659, os hespanhoes, +picados com o nosso atrevimento, saíram da sua pachorra, juntaram +um exercito formidavel commandado pelo proprio ministro do rei, D. Luiz +de Haro, vieram sobre Portugal e cercaram Elvas. A cousa esteve +phosphorica, porque os nossos melhores soldados tinham ficado estendidos +diante de Badajoz, e andava isto por cá muito desarranjado. Mas para +alguma cousa haviam de servir os dezenove annos de guerra. Em primeiro +logar Elvas, governada por D. Sancho Manuel que foi depois conde de +Villa Flor, defendeu-se admiravelmente, em segundo logar o conde de +Cantanhede, depois marquez de Marialva, como não tinha outra gente, +reuniu um exercito quasi todo de milicianos e saltou nos hespanhoes que +cercavam Elvas. Foi no dia 14 de janeiro de 1659 que se deu a batalha, +conhecida pelo nome de batalha das linhas de Elvas, e nunca os +hespanhoes apanharam tamanha pilota. Os prisioneiros foram aos milhares, +artilheria, bagagens, tudo nos caío nas mãos, e o proprio D. Luiz de +Haro escapou-se por um fio. Tambem nunca mais nos perdoou aquella sova, +e, quando n'esse mesmo anno foi fazer a paz com a França, deu aos +francezes tudo quanto elles quizeram, só com uma condição--a de se não +fallar em Portugal. Era patifaria graúda do ministro francez, um padre, +um tal cardeal Mazarino, porque as tareias que davamos nos hespanhoes +tinham feito muita conta aos francezes. Mas o Mazarino foi +apanhando o que poude, e pouco lhe importou mandar-nos á fava. + +Vêem vocês a situação em que ficámos. Quando começámos a guerra com a +Hespanha, estava ella em guerra tambem com quasi toda a Europa, o que +não era mau para nós. Em 1648 fez a paz com muitas nações, e isso não +foi lá muito bom, porém, como a França continuava em guerra, e essa só +por si dava mais que fazer á Hespanha do que todas as outras juntas, +ainda a cousa não ía mal; mas agora? A França fazia a paz, quasi que se +alliava com os hespanhoes, porque o rei de França, Luiz XIV, casava com +uma princeza hespanhola, e nós é que ficavamos em campo, com a Hespanha +ás costas. Ella ainda esteve dois annos a apalpar-nos, mas em 1662 +rompeu o fogo com alma. Poz um dos seus melhores generaes, D. João de +Austria, filho bastardo do rei, á frente dos seus exercitos, e caíu em +cima de nós com todo o seu peso. + +Ora foi exactamente em 1662 que entrou no poder o conde de Castello +Melhor, e foi sobre elle que desabou esse temporal desfeito. Nunca +Portugal se vira em tão maus lençoes. D. João de Austria tomava praças +sobre praças, e na campanha do anno immediato, 1663, quasi que chegava +ás portas de Lisboa. Mas o ministro fizera o diabo, parece que até das +pedras tinha feito soldados. Depois, como Mazarino era um finorio, que +não desgostava de jogar com pau de dois bicos, ao passo que +contentava a Hespanha, mandava-nos para cá os officiaes que podia, entre +elles o conde de Schomberg, que era um general de mão cheia. Não +commandou nunca em chefe, porque os nossos não gostavam, e tinham rasão, +que elles já haviam dado provas de que não precisavam de tutores; mas +foi um excellente conselheiro. O que é certo, meus amigos, é que, em +tres annos successivos, em que os hespanhoes fizeram todos os esforços +para dar cabo de nós, levaram tres sovas mestras; a primeira deu-lh'a em +1663 o conde de Villa Flor na batalha do Ameixial, a segunda em 1664 +Pedro Jacques de Magalhães na batalha de Castello Rodrigo, a terceira em +1665 na batalha de Montes Claros o marquez de Marialva. D'ahi por diante +nunca os hespanhoes levantaram cabeça, e não pensaram mais em tomar +conta outra vez de Portugal. + +Ora o conde de Castello Melhor tinha uma grande idéa; dizia elle +comsigo: os hespanhoes levaram tanta pancadaria, que, se fazemos a paz +com elles, ficando nós simplesmente com o que tinhamos ao principio, +póde-se dizer que fomos logrados. Demais a mais Portugal é pequeno, a +Hespanha é grande; em qualquer bulha que tivermos estamos de mau +partido. É necessario fazer Portugal maior e a Hespanha mais pequena. E +toda a sua tineta era obrigar os hespanhoes a dar-nos a Galliza. E +o que fazia elle então? Encostava-se a Luiz XIV, rei de França, que +andava namorando umas provincias hespanholas lá de Flandres. Casava D. +Affonso VI com uma princeza franceza, e dizia comsigo: Mais dia menos +dia, Luiz XIV pega-se com a Hespanha. Nós vamos com elle. A Hespanha +leva para o seu tabaco a valer. Elle fica com as provincias que quizer, +até com a Flandres toda, se isso lhe fizer conta, e nós com a Galliza, e +com mais alguma cousa se podér ser. + +--E era bem pensado, sr. João da Agualva, observou o Bartholomeu, porque +é que não havia de ser nossa a Galliza? + +--Tens rasão, e já vês que, se nós tivessemos a Galliza tambem, não +estavamos sempre com medo de ser engulidos pelos visinhos. Mas que +queres tu? Entretanto íam grandes intrigas no paço. A rainha, que era +uma princeza toda _liró_ e toda costumada ás janotices da côrte de Luiz +XIV, achando-se casada com um homem que só se dava bem com moços de +cavallariça, e que de mais a mais era tão doente que nem marido podia +ser, principiou a desgostar-se, e ao mesmo tempo a agradar-se do infante +D. Pedro, rapaz desempennado, que tambem não desgostava da francezita. +Pensaram em se juntar e governar o paiz. Principiaram as intrigas. Tanto +fizeram que conseguiram pôr fóra o conde de Castello Melhor. +Desamparado, o pobre D. Affonso VI não tardou a ser expulso do +throno, e até o descasaram, coitado! Foi necessario para isso um +processo que é uma vergonha, e realmente não posso perceber como foi que +uma rainha se deixou assim andar nas bôcas do mundo!... Emfim, o que é +certo é que desterraram o pobre D. Affonso VI, mandando-o para a ilha +Terceira; prenderam-n'o depois em Cintra, onde morreu, e a rainha casou +com o cunhado, e este ficou a governar o reino. Eu já lhes disse, +rapazes, que bem conheço os defeitos de D. Affonso VI; mas o pobre +homem, que era mesmo uma creança, que se não importava para nada com a +politica, que tivera a fortuna de acertar com um bom ministro que +governava por elle e governava bem, não merecia que lhe fizessem +similhante entrega! Mette dó, porque elle nem sabia defender-se, andava +ali como o menino nas mãos das bruxas. + +E o irmão, que lhe tirára a corôa, e que lhe tirára a mulher, nem ao +menos lhe dava a sua liberdade, nem lhe consentia que espairecesse. +Tinha-o preso n'um quarto em Cintra, e ali o deixou morrer de +aborrecimento e de desgosto, a elle que nunca fizera mal a ninguem senão +com as suas tolas rapaziadas! + +Emfim, passemos adiante! O que é certo é que isto succedeu em 1667, e +logo no anno seguinte de 1668 fazia-se a paz com a Hespanha, sem lucro +nenhum para nós, porque nem ao menos apanhavamos a praça africana +de Ceuta, que era tão nossa, por causa da qual morreu no captiveiro o +infante santo, e que em 1640 não conseguira livrar-se dos hespanhoes. + +Tanto se empenhára em governar o reino o sr. D. Pedro II, que desde 1667 +até 1683, anno em que morreu D. Affonso VI, só tomou o titulo de +regente, e a final de contas não fez senão tolices. Demais a mais +algumas cousas boas que deixou fazer, logo as desmanchou. Um ministro +que elle teve, o conde da Ericeira, quiz ver se fundava fabricas em +Portugal, mas em 1703 um tratado com a Inglaterra, conhecido pelo nome +de tratado de Methwen, que este era o nome do embaixador que o assignou, +deu cabo da nossa industria. Conservou-se em paz, tanto que lhe deram o +nome de _Pacifico_, e vae no fim do seu reinado mette-se sem mais nem +menos na guerra da successão de Hespanha, favorecendo D. Carlos da casa +de Austria contra D. Filippe da casa de Bourbon. Como tinhamos então um +excellente general, que era o marquez das Minas, deu-nos este o gostinho +de entrar victorioso em Madrid, e de proclamar ali D. Carlos rei de +Hespanha; mas esse gostinho não tardámos a amargal-o, porque, morrendo +D. Pedro II no dia 1 de dezembro de 1706, logo no dia 25 de abril de +1707 era o marquez das Minas batido na batalha de Almanza com graves +perdas para nós, tanto que até ao fim da guerra póde-se dizer que +nunca mais levantámos cabeça. + +Subio ao throno D. João V, e eu, para lhes dizer a verdade, o que não +posso perceber é como ha historiadores que gabam aquelle rei. Cá para +mim foi um dos peores que nós tivemos. Possuia algumas qualidades que +não eram de todo más, era porém o mesmo que se as não tivesse, porque +não pensava senão no beaterio, e em obras grandes e magnificas, que a +maior parte das vezes para nada serviam. Logo por desgraça foi n'esse +reinado que começaram a render rios e rios de dinheiro as minas do +Brazil, e tudo era pouco para o rei que não cuidava senão de si e nada +do reino. Por exemplo, achou-se embrulhado com a Hespanha e com a França +n'uma guerra que no seu tempo não foi senão desastrosa. Uns corsarios +francezes deram-nos cabo do Rio de Janeiro e levaram-nos umas riquezas +espantosas. Pois não encontrou aquelle homem uns poucos de navios para +saltarem tambem nas colonias francezas, ou para protegerem as nossas! +Emfim! se os não tinhamos, paciencia! Mas d'ahi a pouco saíu de Lisboa +uma excellente esquadra em soccorro do papa, commandada pelo conde do +Rio Grande, esquadra que foi bater os turcos no cabo Matapan! Ora vejam +se ha um patarata assim! Annos depois, por causa de uns insultos feitos +em Madrid ao nosso embaixador, está para rebentar a guerra com a +Hespanha. Fazem-se preparativos, e vê-se que não temos nem exercito, nem +marinha. De que tratou logo D. João V? De comprar armamento? Qual +historia! De mandar fazer em Paris, para si, uma barraca de campanha +muito rica, e tão luxuosa que toda a gente a ía ver!! + +Não tinhamos estradas, não tinhamos rios canalisados, não tinhamos +desentulhados os portos, não tinhamos nada do que nos era necessario, +mas tinhamos aquella monstruosidade do convento de Mafra que custou 120 +milhões de cruzados, que não serve para cousa nenhuma, e que nem ao +menos é bonito. Dizem que gostava muito de imitar Luiz XIV, mas o que me +dizia o engenheiro francez que esteve aqui em Bellas, é que Luiz XIV +mandava ir sabios para França, dava pensões aos sabios estrangeiros, e +este o que dava era dinheiro para igrejas, e o que mandava vir era de +Roma bullas e capellas. Dizem que nunca deixou ás nações estrangeiras +pôr pé em ramo verde comnosco. Quem lhe valeu para isso foram os +diplomatas que teve, que nunca em Portugal os houve tão bons, e tambem o +ser tão orgulhoso que ía aos ares só com a idéa de que mangavam com elle. + +Mas no mais não me fallem em D. João V, que até me sobe o sangue á +cabeça. Pois vocês conhecem cousa que mais indigne do que ir um homem +ali para Lisboa, no campo da Lã, ver os inquisidores queimarem +gente de bem, ou porque não gostavam de toucinho, ou porque nem sempre +íam á missa, e depois montar a cavallo, para se metter em Odivellas na +cella de uma freira e passar ali a noite? Eu digo que me chega a parecer +nem sei o que uma malvadez assim. + +Morreu em 1750 esse rei que não fez nada bom em Portugal, a não ser as +Aguas-Livres. Pouco mais dinheiro gastou que se podesse dizer que fosse +bem gasto. E digo-lhes que, se vocês olharem para o paiz, até lhes ha de +fazer pena. A nobreza já não se compunha senão simplesmente de criados +do paço, o clero immenso e corrompido enchia o reino com os seus padres +e os seus conventos, e conservava o povo n'uma ignorancia completa, o +povo, miseravel, vadio, ou emigrava para o Brazil, ou pedia esmola ás +portarias dos conventos, ou sentava-se ao sol. Tinhamos chegado ao mais +baixo a que podiamos chegar. Felizmente, quando uma nação desce a tal +ponto, sempre apparece alguem que a levante e esse, eu, para o outro +domingo, lhes direi quem foi. Por hoje basta. Quando fallo no sr. D. +João V, o _Magnifico_, e penso no mal que elle fez ao paiz, fico sempre +macambusio, e então o melhor é ir-me deitar. + + + + +NONO SERÃO + +D. José I.--As transformações sociaes.--O marquez de Pombal +e a revolução.--Terramoto de 1 de novembro de 1755.--As +grandes reformas de Sebastião de Carvalho.--Expulsão dos +jesuitas.--Reforma da universidade.--Reorganisação do +exercito.--Agricultura.--Industria.--Inquisição.--Christãos novos e +christãos velhos.--Politica estrangeira.--Energia com Roma e com +Inglaterra.--Reconstrucção de Lisboa.--Estatua de D. José.--Attentado +contra o rei.--Supplicio dos Tavoras.--D. Maria I.--Reacção contra as +medidas do marquez de Pombal.--Processo do grande ministro.--Pina +Manique, Francisco de Almada.--Martinho de Mello.--Loucura da +rainha.--Regencia do principe D. João.--A republica franceza.--Campanha +do Roussillon.--Campanha de 1801.--Napoleão e o tratado de +Fontainebleau.--Fuga da familia real para o Brazil.--Guerra +peninsular.--Congresso de Vienna.--D. João VI.--Conspiração de +1817.--Revolta de Pernambuco.--Revolução de 1820. + + +Hão de vocês notar, rapazes, observou o João da Agualva mal todos se +sentaram no domingo seguinte em torno da lareira, que, em estando para +haver uma grande mudança na sorte dos homens, parece que todos, sem o +querer e sem o saber, trabalham para essa mudança, desejando fazer +muitas vezes exactamente o contrario. Por exemplo, lembram-se vocês que +ali por 1500 é que os reis se fizeram senhores absolutos, porque +acabaram com os privilegios da nobreza, e com os foraes do povo. +Quem é que contribuiu para isso? O povo, que ajudou o rei a dar +cabo dos nobres. Agora encaminha-se tudo para a liberdade e para a +igualdade, e quem é que no nosso paiz vae concorrer mais para similhante +cousa? O marquez de Pombal. Dir-me-hão vocês: Então o marquez de Pombal +era algum liberalão por ahi alem como os de vinte? Qual historia! Era um +tyranno e dos mais ferozes que nunca houve, mas, sem o querer e sem o +saber, ninguem mais do que elle trabalhou pela liberdade. + +Em primeiro logar hão de vocês saber que o rei D. José, que subiu ao +throno por morte de seu pae D. João V, quasi que nem conhecia o marquez +de Pombal, que já era homem dos seus cincoenta annos, e que tinha andado +por fóra como embaixador, ora em Londres, ora em Vienna de Austria, onde +casára com a filha de um figurão austriaco. Quem metteu empenhos para +que elle fosse ministro foi a mãe de D. José, D. Marianna se chamava +ella, archiduqueza de Austria, e por isso amiga da mulher do marquez, +que então se chamava simplesmente Sebastião José de Carvalho e Mello. +Era um ministro como os outros, e o rei não fazia mais caso d'elle do +que fazia dos seus collegas, quando de repente acontece uma grande +desgraça em Lisboa, que veio a ser o terramoto do dia 1 de novembro de +1755. A cidade foi quasi toda a terra, morreram muitas mil pessoas, +outras ficaram a pedir esmola, e sobretudo reinava um terror +tamanho que ninguem sabia o que havia de fazer nem para onde se havia de +virar. O Sebastião de Carvalho não perdeu a tramontana. Toma elle a +direcção de tudo, arranja sustento, enforca ás portas da cidade quantos +ladrões apanha, porque isso então era uma praga, trata do desentulho, e +logo em seguida de reconstruir a cidade, isto com uma actividade, com um +desembaraço, com um acerto, que D. José disse comsigo: Temos homem! +D'ahi por diante quem governou foi elle, e é de uma pessoa pasmar ver o +que fez. Até ahi os governos, para fallar a verdade, em quem menos +pensavam era no povo e no paiz. O dinheiro do estado não servia senão +para elles fazerem o que lhes agradava, e por felizes se podiam dar os +povos quando lhes dava o capricho para cousas uteis. Sebastião José de +Carvalho e Mello tratou do paiz e mais nada. Ora de que é que o paiz +precisava? + +Precisava, primeiro que tudo, de acabar com as despezas no gosto das que +fazia el-rei D. João V, que era umas mãos rotas com fidalgos e com igrejas. + +Precisava de poder pensar e estudar, sem ser sempre debaixo da +palmatoria dos frades e dos jesuitas. + +Precisava de acabar com a inquisição, porque era uma vergonha que ainda +se queimasse gente em Portugal só porque não ía á missa. + +Precisava de ter exercito e de ter marinha. + +Precisava de ter industria. + +Precisava de ter lavoura. + +E nada d'isto elle tinha. + +Sebastião de Carvalho via estas cousas e disse comsigo: Mãos á obra. Ora +digam-me vocês: Quando chegam a uma quintarola que compraram e vêem tudo +estragado: os pardaes a darem cabo da fructa, as cearas a morrerem á +sede, a terra fraca por falta de estrume, as hervas ruins a afogarem o +trigo, o que é que fazem? Arregaçam as mangas e dizem: Vamos a isto. E +sacham as hervas, sem dó nem piedade, e saltam ao tiro nos pardaes até +os pôrem fóra, e deitam estrume na terra, e levam a agua da rega para as +cearas, e levantam os muros arrasados, e enxotam os porcos que lhes +vinham fossar nas batatas, e sacodem as gallinhas que lhes depinicavam +tudo, e até vocês se riam se os accusassem de crueldade porque matavam +os pardaes, ou porque arrancavam e deitavam fóra as hervas ruins. + +Pois Sebastião José de Carvalho e Mello tratou Portugal exactamente como +vocês tratariam a tal quintarola. Olhou para tudo e disse comsigo: Eh! +com os diabos, como isto está. No paço ha um bando de pardaes que dá +cabo da melhor fructa dos pomares da nação. Toca a enxotar os pardaes, +e, como os pardaes refilaram, saltou ao tiro n'elles. As cearas da +intelligencia, que tambem são trigo porque dão o pão do espirito, não +podiam medrar porque os affogava por toda a parte o joio do jesuitismo. +Toca a sachar os jesuitas. Os muros da quinta estavam arrasados, quer +dizer, estavam as fronteiras a descoberto, e em vez de haver fortes o +que havia era igrejas, e elle mandou fazer o forte da Graça em Elvas, e +poz o exercito a direito, mandando vir para isso um militar estrangeiro, +o principe de Lippe, que era da escola de um rei da Prussia que foi o +primeiro militar do seu tempo. Não havia lavoura nem havia industria, +porque ninguem lhe dava a protecção da rega e do adubo, e Pombal deu-lhe +tudo isso á moda do seu tempo, que elle tambem não podia adivinhar o que +hoje se sabe. Elle reformou os estudos e a universidade, elle fundou +companhias e fabricas, elle partiu os dentes á inquisição, elle poz fóra +os jesuitas, elle tirou a censura dos livros aos padres, elle acabou com +distincções de christãos-novos e christãos-velhos, e na India e no +Brazil acabou tambem com todas as tolices das raças, elle arreganhou os +dentes a Roma, e soube pôr o papa no seu logar, elle bateu o pé á +Hespanha, elle fez-se respeitar da Inglaterra, elle acabou com os +morgados pequenos que só faziam mal á lavoura, elle não deixou que +entrassem para padres e frades todos quantos o queriam ser, porque, se +as cousas continuassem assim, ás duas por tres não havia senão +cabeças rapadas em Portugal, emfim, meus amigos, é de uma pessoa pasmar +ver que aquelle diabo de homem, que ao mesmo tempo fazia de Lisboa uma +cidade nova e levantava uma estatua ao seu rei no Terreiro do Paço, em +tudo poz a mão, tudo melhorou, tudo reformou, tudo arranjou, e póde-se +dizer que virou a nação de dentro para fóra. Já se vê que fez tudo isto +com o «posso, quero e mando.» Mas a quem é que prestou verdadeiros +serviços? Foi á liberdade, porque tirou o povo da miseria e da +ignorancia em que vivia, porque o livrou de ter os jesuitas por tutores, +e assim o animou a cuidar dos seus direitos, e o preparou para um bello +dia reclamar a liberdade. Foi cruel, bem sei, não digo menos d'isso. +Tratou os homens como se fossem pardaes, e praticou mesmo barbaridades +escusadas; mas que diabo! não sei que sina é esta: reforma graúda sem +muito sangue parece que não ha modo de se fazer; uma vez são os +reformadores que derramam o seu proprio sangue, e então é que a reforma +vem de Deus, como acontece com o christianismo; outras vezes os +reformadores derramam o sangue dos outros, e então é que a reforma vem +dos homens, como aconteceu com a revolução franceza; porque lá isso de +regar as arvores do bem com o sangue das nossas proprias veias, Deus é +que o ensina, que os homens só por si não são capazes de chegar a +tanto. + +--Ó sr. João, exclamou o Bartholomeu, mas parece-me que tenho ouvido +dizer que os Tavoras, o duque de Aveiro e os mais fidalgos soffreram +tormentos do diabo ali na praça de Belem. Ora, ainda que fosse +necessario dar cabo d'elles, acho que não era preciso atormental-os, e +que o marquez de Pombal tinha na verdade cabellos no coração. + +--Não digo menos d'isso, Bartholomeu, mas ouve lá uma cousa: tu sabes +porque é que os fidalgos foram executados, não sabes? Foi por darem uns +tiros no rei. Elles queriam livrar-se do ministro, o rei não largava o +ministro, cada vez se lhe agarrava mais, como depois mostrou, fazendo-o +conde de Oeiras e marquez de Pombal, e então lembraram-se de dar cabo de +D. José. Ora sabes tu como fôra castigado em França, pouco tempo antes, +um homem que tinha querido matar o rei Luiz XV? Foi posto a tormentos, +depois nas feridas abertas deitaram-lhe chumbo a ferver, e a final +ataram-n'o aos rabos de quatro cavallos, e esquartejaram-n'o. E comtudo +ninguem diz que Luiz XV tivesse cabellos no coração. As cousas faziam-se +assim no seu tempo, não foi o marquez de Pombal que as inventou. + +Hão de vocês dizer: Este diabo gaba sempre as tyrannias por toda a +parte. Já defendeu D. João II, agora defende o marquez de Pombal. Eu não +as louvo, rapazes. Se vivesse n'esses tempos e podesse, havia de berrar +contra ellas; mas cá de longe, vendo as cousas com socego, digo que +ninguem é perfeito, e que todos os homens têem, como dizia o tal +engenheiro francez que esteve em Bellas, os defeitos das suas +qualidades. Ali está o Francisco Artilheiro que foi soldado: havia de +ter servido com muitos coroneis. Encontrou algum que fosse teso a valer +e que ao mesmo tempo desatasse a chorar, no tempo das varadas, quando +tinha de mandar chibatar algum soldado? Não póde ser. Estes pimpões que +quebram todos os abusos, que põem um joelho de ferro em cima de todas as +revoltas, fazem aos homens o mesmo que fazem ás cousas, e o dever de +quem depois conta a historia é perceber isso tudo, e não estar a berrar +contra aquelles que fizeram serviços ao seu paiz, só porque nem sempre +paravam onde seria melhor que tivessem parado. + +Mas vamos nós ao resto da historia que d'aqui a pouco já as noites são +mais pequenas, e mal chega o tempo para dormir a quem tem de se levantar +com o sol. D. José morreu em 1777, e, apenas elle fechou os olhos, +rebentou o odio que havia contra o grande ministro; ninguem quiz lá +pensar no bem que elle tinha feito, e todos clamaram contra as suas +crueldades. Demais a mais quem succedia a D. José era sua filha a rainha +D. Maria I, muito beata, embirrando muito com o marquez, porque +desconfiava que elle quizera fazer passar o throno para o filho +d'ella, um rapazito muito esperto, chamado D. José; e então o rei a +morrer hoje e o ministro a ser demittido ámanhã. Não houve picardia que +lhe não fizessem. Mandaram-n'o para a sua quinta do Pombal, e, estando +elle já doente e amargurado, moeram-n'o com perguntas porque lhe armaram +um processo. Se podessem desfazer tudo o que elle fizera, desfaziam, mas +a final só soltaram os presos, porque emquanto ao mais tiveram medo de +dar bordoada no finado rei, que a final de contas respondia pelos actos +do ministro, porque elle é que assignava as ordens. Tiraram o retrato do +marquez da memoria do Terreiro do Paço, qué só em 1834 se tornou a pôr +como era justo; em vez do retrato pozeram as armas de Lisboa que são um +navio á véla, e foi então que o marquez de Pombal disse, ao saber do +caso: Ai! Portugal que vaes a véla! + +Bem quizera D. Maria I admittir os jesuitas outra vez, mas não podia +ser, porque o marquez de Pombal não só os expulsára de Portugal, mas +fizera uma liga contra elles em toda a Europa, e conseguira que o papa +Clemente XIV acabasse com a Ordem. Muito trabalharam os parentes dos +Tavoras para conseguir que se désse uma sentença a declarar que era peta +o que se dissera a seu respeito, e injusta a sentença que os condemnava; +mas a final não conseguiram isso, porque a rainha percebeu que, +condemnando o marquez de Pombal, a quem condemnava era ao pae. + +No mais tudo andou para traz, a não ser na marinha, que teve um bom +ministro, Martinho de Mello, e n'isto de escolas que sempre se foram +desenvolvendo. Houve alem d'isso dois homens que fizeram muito bem a +Lisboa e ao Porto, a saber, o intendente da policia Pina Manique e o +corregedor do Porto Francisco de Almada. É que já se não podia deixar de +cuidar de melhoramentos; mas o que deu cabo de nós foi a birra que +tivemos em nos metter na bulha contra a republica franceza. Isso, fallar +em Portugal nas idéas novas, era o mesmo que fallar no diabo, e D. Maria +I, em vez de tratar da sua vida, seguio o caminho de D. João V. Este +ía-se metter com os turcos que lhe não faziam mal nenhum, D. Maria I +foi-se metter com a republica franceza, que estava lá tão longe e que +nada tinha com Portugal. + +O que resultou d'aqui é que mandámos uma divisão ao Russilhão a ajudar +os hespanhoes, e uma esquadra a Toulon a ajudar os inglezes. A divisão +do Russilhão portou-se o que se chama bem, mas depois? A Hespanha fez a +paz com a França, e nós ficámos a olhar ao signal, a Inglaterra +mettia-nos na dança, e depois punha-se de palanque. Tivemos de andar a +pedir a paz á republica franceza, quasi de joelhos, e o Napoleão, que já +n'esse tempo começava a governar em França, e que nos tinha jurado pela +pelle, teve a habilidade de açudar a Hespanha contra nós, +resultando d'ahi a guerra de 1801. Foi uma guerra vergonhosa. Tinhamos o +exercito escangalhado, não fizemos senão levar bordoada, e, para +alcançarmos paz, tivemos de pagar bom dinheiro, e de dar aos hespanhoes +Olivença que nunca mais apanhámos. De nada nos valeram todas as +humilhações. Em 1807, Napoleão, que já era imperador, e que andava n'uma +lucta de morte com a Inglaterra, quiz que fechassemos os portos aos +nossos antigos alliados. Andámos a hesitar, até que Napoleão, que não +gostava de perder tempo, declara que a casa de Bragança deixára de +reinar, e mette-nos cá dentro um exercito commandado pelo Junot. A +familia real não teve senão tempo de fazer as malas e de partir para o +Brazil, por conselho dos inglezes. Devo-lhes dizer uma cousa: a rainha +D. Maria I endoidecera havia muito tempo, e quem governava em seu nome +como principe regente desde 1792, era o principe D. João, seu filho mais +velho, porque aquelle D. José, de quem lhes fallei, e que dava tantas +esperanças, tinha morrido em 1788. + +Imaginem vocês como ficaria o povo com esta _partida_, e agora é que é o +caso de se lhe chamar _partida_. + +Abandonado pela familia real, viu o Junot tomar conta do governo, +agarrar no exercito portuguez, que não tinha ordem para resistir, e +mandal-o para França servir no exercito de Napoleão, lançar +contribuições pesadas como o diabo, e emfim tratar isto como terra +conquistada. E, para maior vergonha, Junot invadira o paiz, no coração +do inverno, com meia duzia de gatos, e entrára em Lisboa á frente de +quatro soldados estropiados e esfarrapados. A vergonha de todas estas +humilhações começou a fazer ferver o sangue aos portuguezes, e um bello +dia rebentou a revolta no Porto. Foi como quem diz um rastilho de +polvora. Desde o Minho até ao Algarve, não houve terra em que se não +pegasse em armas contra os francezes. O Junot mandou as suas tropas +esmagar as revoltas, e os francezes fizeram então cousas do arco da +velha, mataram, roubaram, queimaram... + +--Ah! pae do céu! exclamou a tia Margarida, eu era bem pequenina então, +havia de ter sete ou oito annos, mas lembra-me do que minha mãe me +contava. Havia um que ella chamava o _Maneta_, que isso parece que era o +diabo em pessoa. + +--Era o general Loison, que não tinha um braço. Em Evora fez elle o +demonio, mas, por mais que fizessem, não conseguiam acabar com a +revolta. Era pobre gente do povo, sem armas, sem disciplina, sem chefe, +que assim se levantava contra os francezes, e estes davam-lhe para baixo +facilmente, mas a gente levava aqui em Bellas, levantava-se em Cintra, +íam os francezes a Cintra, levantavam-se os de Bellas. Demais a mais, +cada qual faz a guerra como póde. Lá em batalha não podiam os +nossos medir-se com os soldados de Napoleão. O que faziam? Davam-lhes +caça; em os apanhando separados, carga para cima d'elles. Era facada, +era paulada, era tiro de bacamarte, era o que podia ser, com os diabos! +que um povo é como uma pessoa, quando o querem pisar aos pés, defende-se +com unhas e dentes. Mas n'isto os inglezes, que andavam á tóca de ver se +podiam saír da sua ilha e desembarcar n'algum sitio onde podessem +incommodar Napoleão, assim que viram que Portugal estava revoltado, +desembarcaram aqui um exercito commandado por um sugeito chamado +Wellington, que, se não era tão bom general como Napoleão, pelo menos +parece-me que ainda seria mais feliz do que elle. O Junot, que não +passava de ser um valentão, foi batido pelos inglezes na Roliça e +Vimeiro, onde os nossos, já se vê, tambem combateram ao lado das fardas +vermelhas, que é, como vocês sabem, o uniforme inglez, e, para se safar +de Portugal, teve de capitular. É verdade que o patife apanhou uma +capitulação, que a não podia ter melhor se fosse elle que houvesse dado +a tunda nos inglezes. Levou-nos tudo o que nos tinha roubado, e nem se +fallou nos nossos soldados que lá andaram, contra vontade sua, a servir +no exercito de Napoleão. + +--Ó sr. João, acudiu o Manuel da Idanha, vocemecê ha de desculpar +uma pergunta, mas parece-me que ninguem póde vir por terra de França a +Portugal, sem passar pela Hespanha, não é verdade? + +--É sim, rapaz; mas que queres tu dizer com isso? + +--Quero dizer que não percebo como foi que o Junot cá veio. Então os +hespanhoes deixaram-n'o passar? + +--Fizeram mais alguma cousa, vieram com elle, porque n'esse tempo +estavam ainda muito manos com os francezes, tanto que repartiram entre +si Portugal como quem reparte um melão, uma talhada para este, outra +talhada para aquelle, etc. Mas o Napoleão surripiou aos hespanhoes a sua +familia real, e fez rei de Hespanha um seu irmão chamado José, de fórma +que, quando nós nos revoltámos, revoltaram-se elles tambem, e começámos +uns e outros á lambada aos francezes. + +Entretanto cá se arranjára um governo; tratou elle de organisar o +exercito, que ainda era á moda de 1640, e que só precisava de um general +como o principe de Lippe para ficar uma joia. Esse general appareceu, +foi um inglez chamado Beresford, que n'um abrir e fechar de olhos poz +tudo a direito. O que é certo, meus amigos, é que na guerra da +Peninsula, que durou seis annos, os nossos soldados, combatendo ao lado +dos soldados inglezes, passavam por ser tão bons como elles e +talvez melhores. Já se vê que tinha sido necessario virem muitos +officiaes inglezes para os nossos regimentos, porque a officialidade +portugueza estava toda dispersa, uns tinham ido para França, outros para +o Brazil, e outros, diga-se a verdade, não prestavam para nada. + +--Ó sr. João, dá licença que lhe faça uma pergunta? interrompeu de novo +o Manuel da Idanha. + +--Faze, rapaz, podéra! Pois então para que estou eu aqui? + +--Porque é que se chamou a essa guerra a guerra da Peninsula? + +--Não te disse eu, rapaz, no principio d'esta conversa, que Portugal e a +Hespanha juntos formavam uma peninsula, quer dizer quasi uma ilha, +porque a cérca o mar por toda a parte menos por um lado, que é onde pega +com a França pelos Pyrenéus? + +--Disse, sim senhor. + +--E não te acabei de dizer que, quando nos revoltámos contra Napoleão, +revoltaram-se tambem os hespanhoes, e que desatámos uns e outros á +pancada aos francezes? + +--Tambem é verdade. + +--Pois então ahi tens tu: a guerra era de Hespanha e de Portugal, por +conseguinte era a guerra da Peninsula. + +--Ora tambem quero fazer uma pergunta, disse a tia Margarida. + +--Pois então, tia Margarida! Era o que faltava era que as mulheres não +tivessem a palavra. + +--O que você precisava era de um puxão de orelhas, mas emfim lá vae a +pergunta. Eu, sempre que minha mãe fallava n'essas cousas, ouvia-lhe +dizer que os francezes eram muito maus, mas que os inglezes talvez ainda +fossem peores. Ora você diz que os inglezes vieram ajudar-nos... + +--Dizia muito bem a sua mãe, tia Margarida, mas eu tambem não digo mal. +Soldados inglezes sempre foram abrutados, principalmente em estando com +o vinho. Nunca vieram a Portugal senão ajudar-nos, e nunca tambem cá +vieram que não ficasse tudo a berrar contra elles. Olhem no tempo de D. +Fernando. Parece-me que lhes contei que, vindo elles combater ao nosso +lado contra os hespanhoes, fizeram o que o demonio não fez. E, agora que +já respondi ás suas perguntas, vou continuar a minha historia. + +O Junot foi posto fóra em 1808, os inglezes então viraram-se contra os +francezes que estavam na Hespanha, e metteram-se pela Galliza dentro, +mas o Soult, apanhando-os lá, deu-lhes uma tareia formidavel, e depois +veio sobre Portugal e entrou no Porto. A gente do Porto, a fugir dos +francezes, metteu-se na ponte de barcas que então havia sobre o +Douro, para passar para o outro lado; a ponte abateu e morreram milhares +de pessoas. + +--Ah! bem sei! interrompeu a tia Margarida, diz que foi o dia de juizo. + +--Ora se foi! os francezes pararam no Porto, mas nós e os inglezes +fomo-nos a elles d'ahi a tempo e pozemol-os fóra. O Napoleão, embirrando +com o caso, mandou um exercito commandado pelo marechal Masséna, um dos +seus melhores generaes, com ordem de atirar o Wellington ao mar; mas o +Wellington, que era homem avisado, e que não gostava de tomar banhos de +choque, aproveitára o tempo a arranjar as linhas de Torres Vedras, de +traz das quaes se metteu. O Masséna bateu com as ventas nas linhas, vio +que não podia fazer nada, foi-se embora, e nós logo atraz d'elle. + +Para encurtar rasões, em quatro annos de campanha, fomos a pouco e pouco +empurrando os francezes pela Hespanha fóra, em 1814 entrámos em França +de embrulhada, e, como os russos, os austriacos e os prussianos tambem +entraram por outro lado, levando o Napoleão adiante de si, caíu aquella +caranguejola toda, o Napoleão teve de dar a sua demissão de imperador, e +nós ficámos livres dos francezes. + +Dois annos depois, em 1816, morreu a rainha D. Maria I no Brazil, sem +que ninguem, por assim dizer, désse por isso. O principe regente tomou +o nome de D. João VI e continuou tudo como até ahi. + +Entretanto em Portugal estava tudo descontente. O povo levantára-se +contra os francezes por sua conta e risco, e parecia-lhe historia que o +rei, que fugira, continuasse a não fazer caso nenhum d'elle. + +Em Hespanha tinham-se reunido côrtes e arranjára-se uma constituição +pela qual se acabava com o poder absoluto dos reis. Em Portugal, se não +se fizera o mesmo, não fôra por falta de vontade, mas os inglezes não +deixavam. Todos percebiam, porém, que se não podia voltar á antiga, como +se não se tivesse passado cousa nenhuma no intervallo. Por outro lado a +teima do rei em ficar no Brazil já nos ía fazendo chegar a mostarda ao +nariz, tanto mais que, ao passo que havia por cá muita miseria, estava +sempre a ir dinheiro para o Brazil, e não só dinheiro mas tropa tambem, +porque D. João VI, em 1817, lembrára-se de juntar Montevideu ao Brazil, +como se o Brazil ainda fosse pequeno, aproveitando para isso a revolta +das colonias hespanholas. Emfim, a conservação de Beresford e dos +coroneis inglezes no quadro do exercito portuguez incommodava os nossos +officiaes, e descontentava a nação. + +Em 1817, descobre-se ainda por cima uma conspiração liberal, dão como +implicado n'ella, com provas de cá cá rá cá, um general muito +estimado, Gomes Freire de Andrade, de quem diziam que Beresford tinha +ciumes, e enforcam-n'o. Tudo isto ía fazendo ferver o sangue aos +portuguezes, e, quando em 1820 começou a haver revoluções liberaes por +toda a parte, rebenta tambem uma revolução liberal no Porto, espalha-se +logo por todo o reino, chega a Lisboa, e pega-se ao Brazil. D. João VI é +obrigado a acceital-a, e a vir para Portugal, a mandar embora os +officiaes inglezes, e a assignar uma constituição que as côrtes fizeram; +mas os governos lá de fóra, e logo os mais poderosos, acharam perigoso +que se tornasse a fallar em liberdade e constituições, e decidiram que +viesse um exercito francez pôr a mordaça na boca aos liberaes da +Hespanha, emquanto um exercito austriaco ía fazer o mesmo aos da Italia. +Apenas cá chegou a noticia, os amigos do absolutismo, que tinham por +chefe o infante D. Miguel, segundo filho do rei, levam este para Villa +Franca, e deitam abaixo a constituição. Mas o que a fez caír não foram +elles, foram os passos dos soldados francezes que já a essas horas +andavam por Hespanha. + +Entretanto o Brazil, onde ficára governando o principe D. Pedro, que era +o filho mais velho do rei, fazia-se independente. Antes d'elle tinham +feito o mesmo as colonias visinhas que pertenciam á Hespanha, e +cincoenta annos antes as que pertenciam á Inglaterra. No Brazil já +houvera duas tentativas de revolta, e ambas tinham sido afogadas em +sangue, uma em 1789, outra em 1817. A final venceram. Accusam muito D. +Pedro de se ter feito imperador do Brazil, e de se haver revoltado +contra seu pae. Elle não se revoltou, mas só podia fazer uma de duas +cousas, ou ir com os brazileiros, ou pôr-se no andar da rua. Então esses +figurões imaginavam que um paiz rico, grande e forte, está agora para +receber ordens de outro mais pequeno, ou maior que elle seja, e que fica +de mais a mais do outro lado do mar? Ora, historias da vida! e não se +queixem d'isso. É ordem das cousas. As colonias são como os filhos. A +gente educa-os, trata-os, deixa-os ir crescendo. Quando são maiores +emancipam-se. E ninguem tem que estranhar. Foi o que aconteceu com o +Brazil. Estava maior, emancipou-se. Perdemos o Brazil em 1825, em 1826 +morreu D. João VI. Os seus ultimos dias foram amargurados. Tivera guerra +com o filho mais velho que se revoltára com o Brazil; estivera para ser +desthronado pelo filho mais novo, D. Miguel, que o chegára a prender na +Bemposta, e que elle depois tivera que mandar para fóra do reino; a +mulher, D. Carlota Joaquina, que estava sempre ás turras com elle, nunca +lhe déra senão desgostos. Falleceu ralado o pobre do rei, que era uma +excellente pessoa, amigo de tomar o seu rapé com socego, e que para sua +desgraça governára no tempo da revolução franceza, no tempo de +Napoleão, e no tempo da revolução de 1820. E ha de a gente acreditar no +rifão: Dá Deus o frio conforme a roupa. + +E, como eu tambem estou com frio, rapazes, vou até casa á procura de +roupa, e no proximo domingo acabaremos com isto. + + + + +DECIMO SERÃO + +Historia contemporanea.--D. Pedro IV.--A Carta Constitucional.--Regencia +da infanta D. Izabel Maria.--D. Miguel, rei absoluto.--Sublevação do +Porto.--Emigração.--A ilha Terceira.--O conde de Villa +Flor.--Perseguição aos liberaes.--A esquadra franceza no Tejo.--D. Pedro +IV põe-se á frente dos liberaes.--Desembarque no Mindello.--Cêrco do +Porto.--Expedição do Algarve.--Batalha do Cabo de S. Vicente.--Entrada +das tropas do duque da Terceira em Lisboa, a 24 de julho.--Cêrco de +Lisboa.--Batalhas de Asseiceira e Almoster.--Convenção de Evora +Monte.--Reinado de D. Maria II.--Revolução de Setembro.--Constituição de +1838.--Restauração da Carta.--A Maria da Fonte.--A Junta do Porto.--A +intervenção estrangeira.--A Regeneração.--Reinado de D. Pedro V.--A +febre amarella.--Reinado de D. Luiz.--Conclusão. + + +--Vocês percebem, meus amigos, principiou o João da Agualva, que, tendo +de lhes contar agora acontecimentos em que tomou parte muita gente que +ainda está viva e sã, e não querendo offender ninguem, não posso estar +com muitas reflexões. Quem succedeu a D. João VI foi D. Pedro IV, já +então imperador do Brazil. Este, que era um principe que percebia as +cousas, vio bem que o nosso tempo já não era tempo para +absolutismos, e antes quiz dar elle uma constituição do que ir o povo +arrancar-lh'a. Mandou portanto para Portugal a Carta, dizendo ao mesmo +tempo que abdicava em sua filha D. Maria, a qual havia de casar com seu +tio o infante D. Miguel, e, emquanto D. Miguel não voltava para +Portugal, nomeou regente a infanta D. Izabel Maria, que vocês haviam de +conhecer muito bem. + +--Ora se conhecemos! morava ali em Bemfica! + +--Tal qual! morreu ha cousa de tres ou quatro annos. A Carta +Constitucional ficou sendo lei do reino, apezar de algumas revoltas, mas +o infante D. Miguel, apenas chegou a Lisboa em 1828, fecha as côrtes, +atira com a Carta de pernas ao ar e faz-se proclamar rei absoluto. A +guarnição do Porto não está pelos ajustes, e revolta-se, mas tem de +fugir para Hespanha. Tudo o que eram liberaes, e que poderam safar-se, +emigraram uns para França, outros para Inglaterra. Mas o que é certo é +que o povo todo estava com D. Miguel. Porque? Como póde haver um povo +que não goste de liberdade? Vão lá explical-o! Os padres e os frades +estavam quasi todos ao lado de D. Miguel, e levavam comsigo muita gente. + +Mas a ilha Terceira não esteve pelos autos, e não acceitou o +absolutismo. Apenas isso constou, correram os emigrados para essa ilha, +o conde de Villa Flor tomou conta do governo, e ali resistio ás +esquadras de D. Miguel. Este, entretanto, com o devido respeito, +fazia tolices graúdas, e a maior era perseguir os liberaes a ferro e +fogo. A forca estava sempre armada, as prisões sempre atulhadas, e os +caceteiros não deixavam ninguem socegado. Isto de fazer martyres é o +diabo. Para a arvore da liberdade não ha rega como o sangue dos seus +filhos. + +Ora, além d'isso, emquanto o governo francez se mostrava pouco amigo da +liberdade, tinha D. Miguel as sympathias da França, mas depois da +revolução de 1830 aconteceu o contrario. O governo de D. Miguel caíu na +asneira de perseguir uns francezes. D'ahi resultou vir uma esquadra +franceza ao Tejo e levar os navios que ahi estavam. Ao mesmo tempo D. +Pedro, que tivera os seus dares e tomares com os brazileiros, abdicou a +corôa imperial do Brazil, e veio tomar o commando dos defensores de sua +filha. Põe-se á frente d'elles, que não eram muitos, eram 7:500, +desembarca no Mindello a 8 de julho de 1832, mette-se no Porto, e ahi +resiste mais de um anno aos soldados de D. Miguel, que eram muito +valentes, mas mal commandados. Envia ao Algarve em 1833 meia duzia de +gatos, debaixo das ordens do conde de Villa Flor, já então duque da +Terceira, n'uma pequena esquadra, que primeiro fôra commandada por um +inglez chamado Sertorius, que ainda vive, e que o estava sendo por outro +inglez chamado Napier. Este desembarca o duque da Terceira no +Algarve; depois vae-se á esquadra miguelista e derrota-a no cabo de S. +Vicente. O duque da Terceira marcha sobre Lisboa, bate na cova da +Piedade os miguelistas, commandados pelo Telles Jordão, que tinha sido +um tyranno para os presos liberaes, e que ali morreu, e entrou em Lisboa +no dia 24 de julho de 1833. D. Pedro vem para Lisboa que os miguelistas +cercam. Elle e os seus dois marechaes, duques da Terceira e de Saldanha, +obrigam os miguelistas a retirar para Santarem. Depois o duque de +Saldanha por um lado bate os miguelistas em Almoster, o duque da +Terceira por outro bate-os na Asseiceira, e D. Miguel assigna a 25 de +maio de 1834 a convenção de Evora Monte, pela qual o seu exercito +depunha as armas, e elle abandonava Portugal. Como se esperasse +unicamente o fim da sua empreza para terminar tambem a sua vida, D. +Pedro IV veiu aqui morrer a Queluz no dia 24 de setembro de 1834. Podem +para ahi pensar d'elle o que quizerem, meus amigos, mas o homem que, +tendo nascido no throno, passou a sua vida a regeitar corôas, e a +combater, como um soldado valente, pela liberdade dos povos, merece bem +as tres estatuas que no Porto, em Lisboa e no Rio de Janeiro, mostram +que, ao menos depois da sua morte, não foram ingratos com elle os +portuguezes e os brazileiros. + +Succedia-lhe a senhora D. Maria II, que viveu bem pouco tempo, e +teve uma vida bem atormentada. Logo em 1836 um partido, que queria mais +liberdades que as da Carta fez a revolução de setembro, e em 1838 veiu +uma nova constituição. Contra ella se fazem muitas revoltas, até que em +janeiro de 1842 Costa Cabral, depois conde de Thomar, deita abaixo a +constituição de 1838, e põe outra vez a Carta de pé. Governou elle muito +tempo, mas, diga-se a verdade, um poucochinho á bruta. D'ahi vieram mais +revoluções, e a maior de todas que foi a da Maria da Fonte, em 1846, em +que metade do reino obedecia á Junta do Porto, e a outra metade ao +governo nomeado pela rainha. Batidos em Val-Passos, em Torres Vedras, e +no Alto do Viso, os _patuléas_, como se chamava aos partidarios da +junta, são obrigados a depor as armas pelos inglezes e pelos hespanhoes +que mandaram uns uma esquadra, os outros um exercito para restabelecerem +aqui o socego. Mas no fundo estava tudo em braza, e quando em 1851 o +duque de Saldanha se levantou contra o conde, hoje marquez de Thomar, +foi tudo atraz d'elle. Reuniram-se côrtes que introduziram umas mudanças +na Carta, e d'ahi por diante nunca mais houve revoltas de consideração. +Pegaram os governos a fazer estradas e caminhos de ferro, e lá de +partidos é que eu não entendo. Em 1853 morria a senhora D. Maria II, +considerada por todos como uma santa senhora, e uma santa mãe, e +succedeu-lhe seu filho, o senhor D. Pedro V, sendo regente nos +primeiros dois annos o senhor D. Fernando que vocês todos conhecem. O +sr. D. Pedro V era uma joia, como sabem. Quando em 1857 veio a febre +amarella a Lisboa, andou elle pelos hospitaes, a consolar os doentes, e +a dar coragem e exemplo a todos. Tambem quando em 1859 morreu a boa +rainha Estephania, sua mulher não houve portuguez que a não chorasse com +elle, e quando em 1861 morreu elle tambem quasi de repente, com os seus +dois irmãos, o senhor D. Fernando e o senhor D. João, a dôr do povo foi +tamanha que chegou a haver tumultos, porque até se desconfiava que +aquillo não fosse natural. Subio ao throno o senhor D. Luiz que hoje +reina, e aqui portanto acaba a historia. Sempre direi, com tudo, que não +são muitos os paizes por esse mundo onde os povos ainda hoje chorem +pelos reis, e que isso vem de serem os nossos tão amigos da liberdade +como são e tem sido, graças a Deus. E aqui, meus amigos, acabo a minha +tarefa; o que eu desejo, rapazes, é que vocês achem que não os massou +muito o pobre do João da Agualva, e que entendam que empregaram melhor o +seu tempo a ouvir as minhas historias, do que a beber decilitros na +taverna do Funileiro. + +FIM + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Historia alegre de Portugal, by +Manuel Pinheiro Chagas + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL *** + +***** This file should be named 29394-8.txt or 29394-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/9/3/9/29394/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/29394-8.zip b/29394-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..e76749c --- /dev/null +++ b/29394-8.zip diff --git a/29394-h.zip b/29394-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..0e11054 --- /dev/null +++ b/29394-h.zip diff --git a/29394-h/29394-h.htm b/29394-h/29394-h.htm new file mode 100644 index 0000000..dfd96fb --- /dev/null +++ b/29394-h/29394-h.htm @@ -0,0 +1,3965 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Historia Alegre de Portugal, por Pinheiro Chagas</title> + <meta name="Author" content="Manuel Pinheiro Chagas"> + <meta name="Publisher" content="David Corazzi"> + <meta name="Date" content="1880"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 1em; font-size: 0.8em; text-indent: -1em;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +Project Gutenberg's Historia alegre de Portugal, by Manuel Pinheiro Chagas + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Historia alegre de Portugal + leitura para o povo e para as escolas + +Author: Manuel Pinheiro Chagas + +Release Date: July 13, 2009 [EBook #29394] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +</pre> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 2em;">HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL</p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">HISTORIA ALEGRE</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">DE</p> + +<p style="font-size: 2.5em;">PORTUGAL</p> + +<p>LEITURA PARA O POVO E PARA AS ESCOLAS</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">POR</p> + +<p>M. PINHEIRO CHAGAS</p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p style="font-size: 0.8em;"><small>DAVID CORAZZI—EDITOR</small><br> + +EMPREZA HORAS ROMANTICAS<br> + +<small>Lisboa—Rua da Atalaya—40 a 52</small><br> + +1880</p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<p style="text-align:center;">Ao Ill.<sup>mo</sup> e Ex.<sup>mo</sup> Sr.</p> + +<p style="text-align:center;">CONSELHEIRO</p> + +<p style="text-align:center;">MIGUEL MARTINS DANTAS</p> + +<p style="text-align:center;">Ministro de Portugal em Londres<span +class="pn"><a name="pg_VI">{VI}</a></span></p> + +<p><span class="pn"><a name="pg_VII">{VII}</a></span></p> + +<p style="text-align:right;"> +Ill.<sup>mo</sup> e Ex.<sup>mo</sup> Am.<sup>o</sup> e Sr.</p> + +<p> </p> + +<p>Ha dois ou tres annos, desejando eu obter de Inglaterra um livro que fôra +citado no parlamento por um deputado da opposição ao ministerio Beaconsfield, +dirigi-me a v. ex.ª, meu collega na Academia, perguntando-lhe se seria possivel +alcançal-o. A resposta de v. ex.ª não se fez esperar. Enviou-me o livro pedido, +que obtivera com summa difficuldade, e juntamente com elle quantos documentos +officiaes se referiam á questão da escravatura, questão de que esse livro se +occupava, e que então me captivava mais particularmente a attenção. Foi mais +longe ainda a amabilidade de v. ex.ª; enviou-me um livrinho francez, de que eu +não tinha conhecimento, intitulado <em>Entretiens populaires sur l'histoire de +France</em>, perguntando-me se não seria possivel fazer, com relação<span +class="pn"><a name="pg_VIII">{VIII}</a></span> á historia portugueza, um livro +n'esse genero.</p> + +<p>Li o livro e achei-o encantador. Tempos depois, encontrei-me com v. ex.ª em +Lisboa, e disse-lhe que ía tentar o emprehendimento a que v. ex.ª me incitára, +e pedi-lhe licença para lhe dedicar o livro, que fosse o fructo d'essa +tentativa. É o que faço agora. Como v. ex.ª verá, o plano da <em>Historia +alegre de Portugal</em> é diversissimo do dos <em>Entretiens populaires sur +l'histoire de France</em>, mas a <em>Historia alegre</em> vae escripta tambem +no tom faceto, folgazão, singelo e popular que achei original, picante e util +no livro francez que v. ex.ª me recommendava.</p> + +<p>Folgo de ter ensejo de mostrar publicamente a minha gratidão a v. ex.ª pelas +provas de estima e de consideração que me dispensou n'esta e n'outras<span +class="pn"><a name="pg_IX">{IX}</a></span> occasiões, e o alto apreço em que +tenho o talento e o saber do escriptor distinctissimo, que renovou +completamente, com os seus <em>Faux Don Sébastien</em>, o estudo de uma época +interessante da historia portugueza, que nos deu emfim n'esse primoroso livro +um estudo profundamente moderno, um estudo, como Gachard os sabe fazer, de um +dos episodios mais curiosos e mais romanescos da nossa vida nacional.</p> + +<p style="text-align:right;">De v. ex.ª</p> + +<p>Cruz Quebrada, 25 de outubro de 1880.</p> + +<p style="text-align:right;">Att.<sup>o</sup> v.<sup>or</sup> e +ob.<sup>o</sup></p> + +<p style="text-align:right;"><em>Pinheiro Chagas</em>.<span class="pn"><a +name="pg_X">{X}</a><br><a name="pg_XI">{XI}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h1>INTRODUCÇÃO</h1> + +<p>O sr. João Martins, mais conhecido pelo nome de João da Agualva, porque +morava na pequena aldeia d'este nome, que fica entre Bellas e o Cacem n'um +sitio árido e feio, fôra mestre de instrucção primaria numa das freguezias do +concelho de Cintra. Conseguira a sua aposentação, e viera para a sua aldeia +natal amanhar umas terras que ali possuia, e cujo rendimento o impedira já de +morrer de fome nos tempos, em que o Estado lhe pagava munificentemente os +noventa mil réis annuaes, com que remunerava n'essa época os primeiros guias do +homem nos ásperos caminhos da instrucção. Mas o João da Agualva era homem de +uma illustração excepcional. Convivera muito tempo com o prior de Monte-lavar, +padre instruido que emprestára<span class="pn"><a +name="pg_XII">{XII}</a></span> ao bom do professor os livros da sua limitada +bibliotheca; em Bellas tambem se relacionára com um engenheiro francez, +empregado nas obras de agua de Valle de Lobos, de Broco e de Valle de Figueira, +o qual tomára gosto em desenvolver o espirito intelligente e ávido de saber do +velho professor. Apezar d'isto vivia modestamente na sua pobre casa, lidando +com os saloios que o tratavam com verdadeiro respeito, e tinham por elle um +affecto em que entrava um pouco de veneração.</p> + +<p>Era no inverno, e o João da Agualva estava passando a noite em casa de uma +boa velha, a tia Margarida, viuva de um caseiro do marquez de Bellas, e mãe do +Francisco Artilheiro, que, depois de ter servido cinco annos em artilheria, +como indicava o seu sobre-nome, viera para Bellas ajudar a mãe a cuidar de umas +leiras de terra, que a velhinha herdára do marido. Um grupo de saloios de +Bellas e das aldeias proximas, sabendo que o João da Agualva viera para ali +seroar, tinham vindo tambem, desejosos de ouvir algumas das historias que o +velho ás vezes contava e que entretinham agradavelmente a noite. N'essa +occasião, porém, o professor estava macambusio, e, quando o velho Bartholomeu, +irmão da tia Margarida, que era dos que mais gostavam de o ouvir, lhe pediu que +contasse alguma das suas historias, o bom do João da Agualva abanou +negativamente a cabeça.</p> + +<p>—Não estou hoje com disposição para historias da<span class="pn"><a +name="pg_XIII">{XIII}</a></span> carochinha, disse elle, e sabem vocês? Tenho +andado a matutar n'uma cousa. Não é uma vergonha que vocês saibam de cór as +alteiadas historias de cousas que nunca succederam, nem podiam succeder, e não +saibam ao mesmo tempo nem o que foram seus paes nem os seus avós, nem o que +fizeram, nem como elles viveram, nem o que succedeu n'esta boa terra de +Portugal, que nós todos regamos com o nosso suor, que hoje nada vale, mas que +deu brado no mundo pelas façanhas que os nossos praticaram?</p> + +<p>—Tomára eu saber tudo isso, sr. João da Agualva, disse o Manuel da Idanha, +rapazote de cara esperta, moço de lavoura do sr. Garignan, o antigo dono de +collegio, que hoje reside na aldeia da Idanha, a cousa de quinhentos metros de +Bellas, tomára eu saber tudo isso, mas como ha de ser!? É verdade que, graças a +Deus, sei ler e escrever, e lá o patrão emprestou-me uma vez uns livros de +historia que eu lhe pedi, mas, mal os comecei a ler, deu-me o somno. Diziam á +gente os nomes dos reis e os filhos que tinham tido, e as batalhas que tinham +ganho, e mais umas lenga-lengas de que não percebi patavina. Ora, sr. João da +Agualva, eu, para dormir, graças a Deus, ainda não preciso de ler historia.</p> + +<p>—Mas que diriam vocês, tornou o velho professor, se eu, n'estes nossos +serões, lhes contasse, em vez de contos de fadas, e de historias de Carlos +Magno, a historia do que succedeu em Portugal? Talvez vocês me<span +class="pn"><a name="pg_XIV">{XIV}</a></span> entendessem, quer-me parecer que +se não aborreceriam muito, e, em todo o caso, se se enfastiassem, diziam-m'o +francamente, e eu não continuava, porque lá para massador é que não sirvo.</p> + +<p>—Ah! sr. João, exclamou o Manuel da Idanha, isso é que era um regalo!</p> + +<p>Os outros não disseram palavra, e o João, que os percebeu, riu-se para +dentro, e fingiu-se desentendido.</p> + +<p>—Pois então, vá feito, eu hoje estou cançado, porque já fui a pé ao Sabugo +tratar da compra de um boi, mas amanhã é domingo. Venham vocês á noite aqui +para casa da tia Margarida, e eu começarei a minha historia.</p> + +<p>No domingo á noite ninguem faltou; mas, se vieram, foi pelo respeito que +tinham ao João da Agualva, não porque esperassem divertir-se muito. O +Bartholomeu já abria a bôca ainda antes do João da Agualva principiar. Mas o +João chegou-se mais para o lume, porque a noite estava fria a valer, sorriu-se, +e principiou como o leitor verá no capitulo immediato.<span class="pn"><a +name="pg_1">{1}</a></span></p> + + + +<h1>PRIMEIRO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">O que era Portugal.—Os seus primeiros habitantes.—As +colonias estrangeiras.—Os phenicios.—Os gregos.—Os carthaginezes.—Os +romanos.—Viriato.—Sertorio.</p> + +<p> </p> + +<p>—Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra em que +nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguem se lembrasse de fallar, aqui +ha cousa de uns tres ou quatro mil annos ou mesmo só de mil annos, em Portugal +e em portuguezes, havia de ver como todos ficavam embasbacados sem perceber +patavina. Isto lá para os antigos era tudo Hespanha, desde os cocurutos dos +Pyrinéus, que são uns montes que separam a Hespanha da França, até essas aguas +do mar que cercam por todos os lados a nossa terra, mais a dos hespanhoes, e +até por estar este pedação de terra cercado de agua por toda a parte, menos +pela banda dos Pyrinéus, é que se chama a isto <em>peninsula</em>,<span +class="pn"><a name="pg_2">{2}</a></span> que quer dizer uma cousa que é quasi +uma ilha, mas que o não vem a ser de todo.</p> + +<p>—Bem sei, bem sei! peninsula é onde houve uma guerra em que entrou meu avô! +exclamou o fallador do Manuel da Idanha.</p> + +<p>—Mette a viola no sacco, Manuel, quem muito falla pouco acerta. Lá +chegaremos á guerra da peninsula. Roma e Pavia não se fez n'um dia.</p> + +<p>—Pois então, vá lá vocemecê contando a sua historia.</p> + +<p>—Como eu ía dizendo, esta peninsula, a que se chama Hespanha e Portugal, +era então só Hespanha. Hespanhoes éramos nós todos...</p> + +<p>—Menos eu! acudiu o Bartholomeu, levantando-se todo furioso, hespanhol é +que nunca fui, nem sou, nem serei. Vae aqui tudo raso, se...</p> + +<p>—Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse hespanhol se nunca mais +o ha de ser? Tambem a Hespanha, e a França, e a Inglaterra, e a Italia, e a +Grecia, e o Egypto foi tudo imperio romano, e vae lá dizer agora a essas nações +todas que se sujeitem ao mesmo governo! Tambem a França d'antes se chamava +Gallia e estendia-se pela Belgica fóra, e mais pela Suissa, e, se o Gambetta, +ou quem é que governa lá na França, quizesse por isso empolgar a Suissa e a +Belgica, ía ahi em toda a Europa uma berraria de seiscentos demonios.<span +class="pn"><a name="pg_3">{3}</a></span></p> + +<p>—Pois sim, resmungou o Bartholomeu sentando-se de mau humor, mas não me +digam a mim que eu fui hespanhol.</p> + +<p>—Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram cá n'este canto de +terra é que ninguem sabe. Seriam uns iberos, que fallavam uma lingua +arrevesada, assim a modo similhante á que fallam hoje os hespanhoes das +Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O que sei +é que, quando a Hespanha começou a ser conhecida, havia aqui uma sucia de povos +que era uma cousa por demais, turdetanos para um lado, celtiberos para outro, +ilergetas para aqui, bastetanos para acolá. Estava até ámanhã a dizer-lhes +nomes estramboticos, se não preferisse fallar-lhes só nos nossos avós, cá nos +que moraram na nossa terra.</p> + +<p>—Isso é que é! bradaram todos em côro.</p> + +<p>—Pois muito bem! Saibam vocês que não era um povo só. No Algarve e n'um +pedaço do Alemtejo havia os <em>cuneenses</em>, no resto do Alemtejo, na +Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o Douro, para +o Minho e mais para Traz-os-Montes moravam os gallegos.</p> + +<p>—Os gallegos! exclamou o irritavel Bartholomeu, veja lá como falla, sr. +João da Agualva, olhe que o pae de minha mulher veiu de Traz-os-Montes, e meus +sogro não era nenhum gallego, ouviu?<span class="pn"><a +name="pg_4">{4}</a></span></p> + +<p>—Valha-te Deus, Bartholomeu, então tu cuidas que os gallegos andam todos +com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os aguadeiros dos +chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e depois t'o mostrarei, que de todos os +povos lá das Hespanhas foram os gallegos os que mais depressa se poliram. Mas, +cala-te bôca, não vá o carro adiante dos bois, e, como tu não queres ser genro +de um gallego, sempre te direi que os que moravam para cá do Minho não eram da +mesma casta que os de lá. Os nossos chamavam-se <em>Bracharos</em> e os +gallegos da Galliza chamavam-se <em>Lucenses</em>.</p> + +<p>—Ainda bem! murmurou o Bartholomeu, isso de <em>Bracharos</em> até parece +que dá idéa de <em>Braga</em>.</p> + +<p>—E é verdade que dá, sr. Bartholomeu, lavre lá dois tentos.</p> + +<p>Todos se riram, e o João da Agualva continuou:</p> + +<p>—Mas não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que +viviam em cidades, villas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á cabeça, +que tinham espingardas para a caça e para a guerra. Qual carapuça! Eram uns +selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de cobre, e o amante pedregulho, +mais uns dardos e uma especie de escudo para se defenderem; fato pouco havia, +cabello comprido como o das mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de +ir para a guerra.<span class="pn"><a name="pg_5">{5}</a></span> As mulheres é +que tinham os seus enfeites e os seus bordados, os seus vestidos compridos, +etc.</p> + +<p>—Pois já se vê que lá as meninas nunca podem passar sem arrebiques! disse o +Zé Caneira, relanceando um olhar malicioso para a boa tia Margarida que fiava +na sua roca ao pé da lareira.</p> + +<p>—Melhor para ellas, ouviu! redarguiu a velha. Que pena que não vivesses +n'esse tempo para atares os cabellos com uma fita, quando fosses para a guerra! +</p> + +<p>Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação da +tia Margarida.</p> + +<p>—Em comidas não eram muito requintados, de carne de cabra é que elles +principalmente se alimentavam, e o seu pão era cousa de pouca substancia. +Bebiam agua, dormiam no chão, os seus barcos eram de couro, matavam gente em +sacrificio aos seus deuses, quando tinham algum doente punham-n'o á beira da +estrada, quem fazia algum roubo ou outro crime grave era apedrejado. Não +passavam de ser uns selvagens. Então que querem? nem os homens nem os povos +nascem ensinados. Todos começam assim. Valentes eram elles, isso sim, valentes +como touros. Tiveram occasião de a mostrar, porque esta nossa terra foi na +antiguidade uma espécie de California.</p> + +<p>Por muito tempo ninguem soube d'ella, e os navios da gente civilisada que +vivia lá para o Oriente<span class="pn"><a name="pg_6">{6}</a></span> nunca +passavam para cá do estreito de Gibraltar, até que um dia passaram os +phenicios, gente atrevida, que queriam metter o nariz em toda a parte, e que +sobretudo procuravam terras novas para commerciar. Acharam que lhes convinham a +Andaluzia e o Algarve, e aqui fundaram algumas colonias, sendo Cadiz a +principal. Como tinhamos por cá muitas minas de ouro, e os homens deram sempre +o cavaquinho por este metal, estavam os phenicios nas suas sete quintas. Ao +mesmo tempo outro povo civilisado do Oriente, os gregos, vieram na piugada dos +phenicios, mas esses estabeleceram-se principalmente na Hespanha do lado de lá, +onde hoje é a Catalunha, e o Aragão e Valencia, etc.</p> + +<p>Os indigenas de cá não se deram mal com os phenicios, emquanto elles se +limitaram a trocar as suas fazendas pelo nosso ouro e outras producções, mas, +quando viram que os taes estrangeiros começavam a fazer casa, acabaram com o +negocio, foram aos gaditanos e deram-lhes uma tareia real.</p> + +<p>—Foi bem feito! observou Bartholomeu.</p> + +<p>—Mas os phenicios, que estavam muito longe da sua terra, chamaram em seu +soccorro os carthaginezes, que eram tambem uns phenicios, quer dizer tinham +assim com os phenicios o mesmo parentesco que os brazileiros têem comnosco. Ora +os cartagineses viviam aqui mais proximo, ali na Africa, ao pé de Tunis, não +muito longe de Argel.<span class="pn"><a name="pg_7">{7}</a></span></p> + +<p>—Argel! exclamou o Francisco Artilheiro, já lá estive.</p> + +<p>—Já lá estiveste?</p> + +<p>—Já, sim senhor. Quando eu andava ao serviço, e que fui para a India, o +vapor que me levou arribou a Argel. É uma bonita terra.</p> + +<p>—Já vês que não fica muito longe. Carthago era mais para o lado de lá. +Vieram pois os carthaginezes em soccorro dos phenicios, mas gostaram da terra, +pozeram fóra os que vinham soccorrer, e á força de bordoada, porque bons +guerreiros eram elles, sujeitaram ao seu poder tudo.</p> + +<p>—Mas então, tornou o Francisco Artilheiro, vocemecê diz que os nossos eram +tão valentes?...</p> + +<p>—Ora, que outro me fizesse essa pergunta, vá, mas tu que foste militar! +Quem vence é quem tem disciplina. Por mais valentes que os homens sejam, em +combatendo sem ordem, um por aqui, outro por ali, um regimento bem formado dá +logo cabo d'elles.</p> + +<p>—Isso é verdade.</p> + +<p>—Estavam os carthaginezes senhores da Hespanha, e, como tinham posto fóra +os phenicios, queriam tambem pôr fóra os gregos, quando estes se lembraram de +pedir o soccorro dos romanos, que andavam ha muito tempo de rixa velha com os +carthaginezes, e que eram dos povos mais pimpões d'aquelle tempo.</p> + +<p>—Vieram então os romanos? perguntou o Francisco<span class="pn"><a +name="pg_8">{8}</a></span> Artilheiro que estava seguindo com interesse a +narrativa.</p> + +<p>—Não tiveram tempo de vir, porque um tal Annibal, rapasote dos seus vinte e +cinco annos, e que dizem até que era filho de uma lusitana, succedendo no +commando dos carthaginezes a seu pae Amilcar, não esperou que elles viessem, +correu a Sagunto, uma das taes colonias gregas, tomou-a e queimou-a, e depois +sae da Hespanha, atravessa os montes Pyrinéus e mais os montes Alpes, que +parecia que tinha mesmo o diabo no corpo, bate os romanos aqui, derrota-os +acolá, escangalha-os mais alem, e ás duas por tres, se continua assim de vento +em popa, era uma vez Roma. Porém, os romanos, que eram tambem levadinhos da +breca, nunca desanimaram, e, apesar de estarem de corda na garganta, tiveram +artes de mandar para cá um exercito, de fórma que, emquanto Annibal saía por +uma porta, entravam os romanos por outra. O atrevimento ía-lhes saíndo caro, +isso é verdade, mas a fortuna virou, e o que é certo é que d'ahi a pouco tempo +não havia nem um carthaginez na peninsula, e estavam os romanos senhores de +tudo isto.</p> + +<p>—Então os povos de cá estavam a olhar ao signal? perguntou Bartholomeu.</p> + +<p>—Ora ahi é que bate o ponto. Effectivamente, os povos cá das Hespanhas +acharam assim exquisito que os carthaginezes e os romanos andassem<span +class="pn"><a name="pg_9">{9}</a></span> a dispor d'elles, sem ao menos lhes +perguntar a sua opinião, de fórma que, quando os romanos, julgando-se senhores +da Hespanha, começaram a espreguiçar-se, os differentes povos da peninsula +disseram-lhes d'esta maneira: «Ora esperem lá, senhores romanos, que nós somos +duros para colchões!»</p> + +<p>—Ah! boa rapasiada! observou, esfregando as mãos, o Francisco Artilheiro. +</p> + +<p>—Começou a pancadaria, e o povo que andou sempre na frente foram cá os +nossos lusitanos, principalmente os serranos do Herminio (que era assim que se +chamava d'antes a serra da Estrella). Não eram os romanos capazes de metter +dente cá para este lado, até que uma vez um dos seus generaes, chamado Sergio +Galba, apanhou os lusitanos á traição, e fez n'elles uma mortandade de que +poucos escaparam.</p> + +<p>—Ah! grande patife! exclamou o Manoel da Idanha.</p> + +<p>—Isso era, mas alem de patife era tolo, porque isto de excitar muito dá +maus resultados. Os lusitanos, que escaparam, ficaram como uma bicha. Ora um +d'elles era um pastor chamado Viriato, homem decidido e esperto, que disse para +os seus patricios: Façam vocês o que eu mandar, e deixem os romanos comigo. +Assim foi, juntaram-se á roda de Viriato, e, quando appareceu um exercito +romano commandado<span class="pn"><a name="pg_10">{10}</a></span> pelo consul +Vetilio, o nosso homem, que era das bandas de Vizeu, esconde n'uma emboscada +uma parte da sua gente, e com o resto põe-se a fazer fosquinhas aos romanos, +parecendo a modo medroso. O consul percebe que elle está assim com seu susto, e +diz lá de si para si: «Vaes apanhar uma surra mestra.» Corre sobre elle, +Viriato faz tres meia volta, e, pernas para que te quero, elle ahi vae. O +consul Vetilio desata a correr atraz de Viriato, e vae-se mesmo metter na boca +do lobo. Era uma vez um exercito romano. Depois de Vetilio vem outro e outro, e +elle sempre zás, pásada de crear bicho. Em Roma havia terror, diziam que o +luzitano lhes dava mais que fazer que o proprio Annibal. Em Hespanha então era +um enthusiasmo por ahi alem. Se Viriato já nem se contentava em estar nas +montanhas, entrava pelos povoados romanos, levantava contribuições, +revolucionava os povos, era um vivo demonio, e cada novo exercito, que por cá +apparecia, não lhes digo nada, sumia-se n'um abrir e fechar de olhos, até que +emfim o consul Scipião apanha lá dois patifes que Viriato mandára para tratar +de um negocio, e tantas endrominas lhes metteu na cabeça, e tantas promessas +lhes fez que elles, quando voltaram para onde estava o seu chefe, apanharam-n'o +a dormir e mataram-n'o.</p> + +<p>—Oh! que grandes malvados! exclamou Bartholomeu.<span class="pn"><a +name="pg_11">{11}</a></span></p> + +<p>—E assim acabou esse homem que foi o que se póde chamar um homemzarrão! Ó +senhores, eu sou um pateta, que não percebo nada d'estas cousas, mas, quando me +ponho a pensar n'este Viriato, quando me lembro que era apenas um pobre pastor +de cabras, um selvagem que não entendia nada de guerras, nem de manobras, nem +de legiões para aqui, nem de centuriões para ahi, e que, apezar disso, em +defeza da sua terra, fez andar os romanos em papos de aranha, e atarantou +aquella poderosa Roma que mettia medo a todos, quando me lembro que elle era +filho d'esta boa terra; que hoje se chama Portugal, ah! c'o a breca, sinto +assim uns arripios pela espinha, e parece que é até uma vergonha para o paiz +não se lhe ter levantado uma estatua de um tamanho por ahi alem, no alto da +serra da Estrella, que aquillo é que se podia chamar a sentinella da nossa +independencia.</p> + +<p>E o bom do João da Agualva, no impeto do seu enthusiasmo, cerrava os punhos; +faiscavam-lhe os olhos, e dava mostras de querer elle mesmo ir pôr nos +fraguedos da serra da Estrella a estatua do seu heroe.</p> + +<p>—Tem rasão, tem, observou o Bartholomeu, lá que o tal Viriato foi um homem +de truz, isso foi.</p> + +<p>—A morte de Viriato, como podem imaginar, continuou o João da Agualva, +deixou ficar os lusitanos um pouco atrapalhados, mas continuaram<span +class="pn"><a name="pg_12">{12}</a></span> a defender-se, e os romanos viram +uma bruxa com elles. Póde-se dizer que só Roma foi senhora da Lusitania, quando +não ficaram nas nossas montanhas senão as mulheres e as creanças. Mas as +creanças fizeram-se homens, e os homens estavam mortos por jogar as cristas com +os romanos. Não tardou a apparecer-lhes uma boa occasião.</p> + +<p>—Vamos lá a ver isso! exclamou o Bartholomeu, com um orgulho patriotico. +</p> + +<p>—É de saber que em Roma havia umas guerras civis, tal qual como nós tivemos +cá por muito tempo em Portugal, assim umas cousas á moda da <em>Maria da +Fonte</em> ou da guerra dos dois irmãos. Um fulano Sylla e um sicrano Mario +andaram á pancadaria um com o outro, até que venceu um d'elles que foi Sylla. +Era homem de cabellinho na venta este Sylla, e, apenas se viu no poleiro, +começou a chacinar nos que eram do partido contrario, de fórma que parecia que +não queria deixar vivo nem um só. Os amigos de Mario trataram de se escapulir, +e um d'elles, homem desembaraçado, chamado Sertorio, safou-se cá para Hespanha, +para os lados do Oriente. Ahi, n'um instante, revolucionou tudo, arranjou um +exercito, mas os generaes de Sylla espatifaram-lh'o, e o amigo Sertorio +tingou-se para a Africa. Souberam os lusitanos do caso, e disseram comsigo: +«Este maganão é que nos faz conta.» Mettem-se uns poucos n'um barco, vão ali a +Marrocos,<span class="pn"><a name="pg_13">{13}</a></span> por onde o Sertorio +andava aos paus; offerecem-lhe o vir commandal-os. Sertorio saltou logo para +dentro do barco, e d'ahi a pouco estavam os lusitanos em campo com Sertorio á +frente.</p> + +<p>Este, porém, não era, como Viriato, um pastor de cabras, era homem +civilisado, sabendo tudo o que se sabia no seu tempo, e que tratou de arranjar +cá nas nossas terras uma especie de Roma. Pareceu-lhe que Evora servia para o +caso, estabeleceu-se ali, e, como o tinham acompanhado muitos romanos, +conseguiu perfeitamente o seu fim.</p> + +<p>Que o Sertorio era uma grande cabeça, isso é que não tem duvida! Não só poz +o sal na moleirinha dos seus patricios que se quizeram metter com elle, mas +costumou os lusitanos a ser gente civilisada, e a imitar os romanos em tudo, de +fórma que Viriato, se resuscitasse, não os reconhecia. E a final de contas, +vejam como as cousas são! Este Sertorio deu lambada nos romanos por um sarilho! +pois ninguem fez mais serviços a Roma do que elle! Introduziu aqui as artes, os +usos e os costumes de Roma! de fórma que, depois, os nossos começaram a ter +menos repugnancia aos estrangeiros, a confundir-se com elles. Isto de fallar a +mesma lingua, de ter os mesmos habitos, sempre é uma grande cousa! Sertorio foi +assassinado, assassinado tambem por um traidor, um patricio d'elle, um tal +Perpenna! Pois senhores, quando morreu, já isto<span class="pn"><a +name="pg_14">{14}</a></span> por cá era tão romano como a propria Roma; de +fórma que nunca mais houve revoltas, e os lusitanos como o resto dos habitantes +de Hespanha, á excepção dos vasconsos que sempre foram mettidos comsigo, e +nunca se deram com os visinhos, os lusitanos ficaram fazendo parte do grande +imperio que vinha do Mar Negro ao Oceano Atlantico, e da bôca do Rheno até á +foz do Guadalquivir, e ainda mais para baixo, do outro lado do estreito.</p> + +<p>E com isto os não enfado mais, meus amigos, a Margarida já acabou a sua +estriga, a luz do candieiro está assim a modo aos upas como quem se quer ir +embora, e então domingo á noite continuaremos com esta conversa, visto que +vocês parece que vão gostando.</p> + +<p>—Ora se gostamos, sr. João de Agualva! bradaram todos em côro. Venha +depressa o domingo para ouvirmos o resto.</p> + +<p>E despedindo-se de Margarida, e de João, retiraram-se para as suas +casas.<span class="pn"><a name="pg_15">{15}</a></span></p> + + + +<h1>SEGUNDO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">Cesar e os montanhezes do Herminio.—O imperio romano.—O +christianismo.—Os barbaros.—Suevos, alanos e visigodos.—Os mouros.—O reino +das Asturias.—O reino de Leão.—Portucale.—Os condados de Portugal e de +Coimbra.</p> + +<p> </p> + +<p>—Meus amigos, começou o João da Agualva, apenas todos fizeram roda no +domingo immediato, e que a boa da tia Margarida, depois de carregar a sua roca, +principiou a fazer girar o fuso nos seus dedos ageis, deixámos no outro dia os +bons dos nossos lusitanos, depois da morte de Sertorio, costumados já á +civilisação romana, e fallando o latim como se tivesse sido sempre a sua +lingua, gostando de dar as suas passeatas até Roma, e provavelmente chamando +barbaros aos que se lembravam com saudades dos tempos de Viriato. Nas serras +continuavam a refilar o dente aos senhores do mundo, e o proprio Cesar, que +veio a ser depois um grande homem,<span class="pn"><a +name="pg_16">{16}</a></span> estreiou-se nas guerras, tendo cá na Lusitania os +seus dares e tomares com os montanhezes do Herminio, que vieram diante d'elle +em rota batida até aqui ás proximidades de Peniche, pouco mais ou menos, e que, +quando deram de cara com o mar, não estiveram lá com meias medidas, metteram-se +n'umas jangadas, e foram merendar ás Berlengas, deitando a lingua de fóra ao +sr. Cesar, que se foi embora de queixo caído. Mas isso eram barulhos lá de +quando em quando. A verdade é que a Lusitania estava sendo devéras romana, e +então, quando lá em Roma á republica succederam os imperadores, nem mais se +pensou em independencias, nem meias independencias. As cidades com os nomes +romanos ferviam por ahi, as estradas militares cortavam o paiz, e uma pessoa +podia ir de Lisboa até Roma sem perguntar a ninguem. Hoje diz-se: quem tem bôca +vae a Roma. Pois n'aquelle tempo, e com as estradas militares, bastava ter pés +e olhos, ía-se lá direito como um fuso.</p> + +<p>—Havia caminho de ferro? perguntou o Zé Caneira embasbacado.</p> + +<p>—Qual caminho de ferro, bruto! Teu avô ainda nem sabia que vinha isso a +ser, e já tu querias que o teu trigesimo ou quadragesimo avô andasse de wagon! +Não senhor, eram estradas ordinarias, mas feitas com todo o cuidado e limpeza, +e que, partindo de Roma, íam ter aos pontos mais distantes<span class="pn"><a +name="pg_17">{17}</a></span> do imperio! Lá que os taes romanos eram um grande +povo, isso eram!</p> + +<p>—Pois sim! mas regalaram-se de levar tapona cá na nossa terra, interrompeu +o Bartholomeu.</p> + +<p>—Quem vae á guerra dá e leva, respondeu o João da Agualva, e a final quem +vence é quem mais sabe. Se os romanos venceram, não foi nem porque tinham mais +força, nem porque eram mais valentes, foi porque sabiam mais. Tu verás ao +depois. Olha que isto cá no mundo não se leva a poder de bordoada. Queres um +exemplo? Ora ahi tens tu o mundo todo romano. O imperador está em Roma, e tudo +governa. N'isto sáem da Judéa uns homens de bordão na mão, e de pés descalços, +que começam a prégar por esse mundo, a dizer que Deus veiu á terra, que foi +crucificado, que disse que todos os homens eram iguaes, senhores e escravos e +grandes e pequenos, que a gente deve amar não só os seus amigos, mas tambem os +seus inimigos, que ha mais alegria no céu pela volta de um peccador, que se +arrepende, do que pela entrada de noventa e nove justos, e outras cousas assim +que embasbacavam todos, e vae os imperadores romanos começaram a scismar que +esta gente, que lhes fazia mal, que desorganisava tudo, e botam a chacinar +n'esses sujeitos que se diziam christãos, e a queimal-os, e a deital-os ás +feras, e a martyrisal-os, e quanto mais os desbastavam mais elles cresciam, +e<span class="pn"><a name="pg_18">{18}</a></span> tanto e tanto que lhes não +digo nada. Ás duas por tres o mundo romano tinha sido conquistado, sem pau nem +pedra, por esses soldados de Christo. Ora aqui tens tu como quem vence nem +sempre é a força bruta.</p> + +<p>—Essa agora é mais fina! accudiu o Manuel da Idanha. Esses, se venceram, é +porque eram os santos apostolos, e porque prégavam a palavra de Deus.</p> + +<p>—Pois assim é, Manuel, dizes tu muito bem, mas é que isto que se chama +civilisação não é tambem senão a palavra de Deus. A civilisação é o que +concorre para nos fazer melhores, mais dignos de ser homens. Umas vezes +prégam-n'a os santos, outras vezes são os sabios, e ás vezes tambem são os +soldados, porque Deus de todos os meios se serve para chegar aos seus fins. E é +assim que o instrumento d'isto a que eu chamo civilisação umas vezes é o livro, +outras vezes a cruz, e outras vezes a espada.</p> + +<p>Os bons dos saloios ouviam boqui-abertos estas cousas todas, que só o Manuel +da Idanha parecia perceber um bocadinho, por isso o João da Agualva, que não +queria perder a attenção do auditorio, apressou-se a continuar:</p> + +<p>—Isto quer dizer, meus amigos, que foi por este tempo que principiou a +prégar-se no mundo a nossa santa religião, e foi cá a nossa terra uma das<span +class="pn"><a name="pg_19">{19}</a></span> primeiras que se converteram. Dizem +até que veiu aqui o proprio apostolo S. Thiago, mas isso estou que são lérias; +o que é certo, porém, é que ainda quasi não havia bispos por esse mundo de +Christo, e já Braga era bispado, tanto assim que se chama ao arcebispo de Braga +arcebispo primaz das Hespanhas, porque foi o primeiro que na Hespanha houve. +</p> + +<p>Mas, entretanto, meus amigos, grandes cousas se passavam pelo mundo. Fóra +dos limites do imperio, do lado de lá do Rheno, do lado de lá do Danubio, havia +povos que Roma não conseguira conquistar: gente selvagem como os luzitanos do +tempo do Viriato; valentes como elles, e ao mesmo tempo gente inquieta que não +parava n'um sitio e que não podia viver quasi senão de caça e de rapina. Tinham +os romanos um trabalhão em os conter, mas, quando o imperio começou a fraquear, +porque aquillo estava já sendo uma choldra, quando as legiões, que é como quem +hoje diria as divisões e as brigadas, começaram cada uma a apregoar um +imperador pela sua banda, desabam todos aquelles meus amigos sobre o imperio, e +foi como quem diz uma verdadeira inundação. Ahi pelos annos quatrocentos e +tantos caíram em cima de Hespanha, vindos das bandas dos Pyrenéus, nada menos +de tres povos, os Alanos, os Suevos e os Vandalos. Nós, só á nossa parte, +tivemos dois que tomaram conta de<span class="pn"><a +name="pg_20">{20}</a></span> tudo isto, que foram os suevos e os alanos. Mas +aquillo! as florestas de alem do Danubio e do Rheno parece que se não fartavam +de despejar povos que se empurravam uns aos outros. Atraz d'estes tres povos +vieram os visigodos que expulsaram os outros e ficaram senhores da Hespanha +toda. Mas agora ahi têem vocês como nem sempre quem vence é quem conquista. +Julgam por acaso que se fallou na Hespanha o visigodo, e que as leis +visigothicas é que governaram, e que a religião dos visigodos é que triumphou? +Qual carapuça! os vencidos é que conquistaram os vencedores e deram-lhes a sua +lingua, as suas leis e a sua religião. Porque? porque os mais civilisados eram +os vencidos, e quem mais sabe é quem triumpha.</p> + +<p>—Mas então, a final de contas, perguntou o Manuel da Idanha, sempre isto +ficou sendo romano?</p> + +<p>—Não, rapaz, não é assim. Ora dize-me uma cousa, quando tu deitas sal e +carne para dentro de uma pouca de agua, o que é que fica? é agua, é carne ou é +sal?</p> + +<p>—Essa agora é mais fina, não fica nem uma coisa nem outra, o que fica é +caldo.</p> + +<p>—Ora pois ahi tens tu: a agua eram os lusitanos, os romanos foram o sal, e +os visigodos a carne, e de tudo isso saíu uma cousa nova, um povo novo, este +caldo que depois veio a chamar-se portuguez, que é no fundo lusitano, como o +caldo é<span class="pn"><a name="pg_21">{21}</a></span> agua, e a que Roma deu +o sal que foi a idéa, e os visigodos a carne que foi a força.</p> + +<p>Acharam graça á comparação os bons dos saloios e o João da Agualva proseguiu +d'esta maneira:</p> + +<p>—Mas as cousas não ficaram por aqui, porque no anno de 756 appareceu de +repente em Hespanha gente nova. Eram os mouros. Esses, em vez de vir do norte, +vinham do sul. Seguiam uma religião nova, a de Mafoma. Não eram uns selvagens, +como tinham sido os visigodos. Traziam uma civilisação, e das mais apuradas. +Por isso a lucta que se travou foi medonha: civilisação contra civilisação, +Jesus contra Mafoma. Primeiro venceram os mouros. Na batalha do Guadalete foram +os visigodos vencidos, e morto o seu rei Rodrigo. Em pouco tempo tinham os +mouros tomado toda a Hespanha. A nossa terra lá foi tambem para elles. Só nos +montes das Asturias, que são levados de quantos diabos ha, um punhado de +visigodos continuou a resistir, commandados por um tal Pelayo, que foi o +primeiro rei das Asturias. Metteram-se os mouros com elle, levaram para o seu +tabaco. Deixaram-n'o lá estar no seu reino, que era como quem diz um ninho de +aguia, encarapitado no cucuruto das montanhas, e c'o a breca, parece-me que uma +aguia c'o as azas estendidas fazia-lhe sombra a elle todo. A pouco e pouco foi +augmentando. Agora tomava-se<span class="pn"><a name="pg_22">{22}</a></span> +uma cidade, logo outra; a grão e grão, diz o proverbio, enche a gallinha o +papo. D'ahi a duzentos annos já os visigodos tinham tirado aos mouros terras +bastantes para formar não só um reino, mas uns poucos. A moda que havia de se +dividir o reino pelos filhos de um rei que ía para o outro mundo, dava este +resultado. Deixemos, porém, isso, e vamos a saber o que era feito de nós.</p> + +<p>—Isso é que é, acudiu o Bartholomeu, os hespanhoes que tratem de si.</p> + +<p>—Pois nós faziamos parte do reino que se chamou reino de Leão; quando digo +nós, quero dizer de Coimbra para cima, porque, entre Coimbra e Lisboa, umas +vezes era-se mouro e outras vezes christão, mas de Lisboa para baixo não havia +duvida nenhuma, era tudo moirama.</p> + +<p>—Mas então, vamos a saber, isto era já Portugal ou não era Portugal? +perguntou o Zé Caneira.</p> + +<p>—Ora com que tu vens! Sabes o que era Portugal? Era, para assim dizer, o +Minho. Havia Portugal e havia o condado de Coimbra. Portugal chamava-se assim +porque na foz do Douro havia uma terra que se chamava <em>Cale</em>, que depois +se mudou em Gaya, e vae defronte mesmo á beira do rio, começou a levantar-se +outra terra que se chamou <em>Portus Cale</em> ou <em>Porto de Cale</em>. Esta +terra é o que se chama hoje simplesmente <em>Porto</em>, e o nome de <em>Porto +de Cale</em>,<span class="pn"><a name="pg_23">{23}</a></span> que se foi +mudando em Portugal, dava-se a tudo o que ficava para o norte do Douro. E aqui +está, meus amigos, como Portugal deve o seu nome ao Porto, exactamente como +depois lhe veio a dever a liberdade.</p> + +<p>—E então Coimbra já não era Portugal?</p> + +<p>—Não, rapaz. Coimbra era outro condado, tambem christão, mas que tinha +existencia sobre si. Ora o que lhes digo, meus amigos, é que a corneta do +destacamento que chegou hoje está já a tocar a recolher, que são horas de se ir +chegando cada um para suas casas, e que no proximo domingo continuaremos a +nossa historia.<span class="pn"><a name="pg_24">{24}</a><br><a name="pg_25">{25}</a></span></p> + + + +<h1>TERCEIRO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">D. Affonso VI de Leão.—O conde D. Henrique.—D. Thereza.—O +conde de Trava.—Batalha de S. Mamede.—Egas Moniz.—Fundação da monarchia.—D. +Affonso Henriques.—Os cruzados.—D. Sancho I.—D. Affonso II.—D. Sancho +II.—D. Affonso III.</p> + +<p> </p> + +<p>—Viram vocês, meus amigos, tornou o João de Agualva, no domingo immediato, +que o Portugal de agora, ahi pelo anno mil, pouco mais ou menos estava, do +Mondego para baixo, quasi todo em poder dos mouros, e do Mondego para cima +distribuido em dois condados, um que se chamava de Portugal, que era como quem +diz do Porto, e o outro que se chamava de Coimbra, e ambos estes condados +faziam parte do reino de Leão, onde governava um rei de cabellinho na venta, +chamado o sr. D. Affonso VI. Ora, como D. Affonso VI tinha sempre guerra com os +mouros, e como n'esse tempo o grande pratinho para um principe ou para um +fidalgo, era jogar as cristas com elles, tanto que os íam buscar<span +class="pn"><a name="pg_26">{26}</a></span> a casa de seiscentos diabos, só para +lhes dar tapona, aconteceu que dois francezes, chamados um Henrique e outro +Raymundo, ambos primos, e ambos da casa de Borgonha, em vez de ir á Palestina, +vieram aqui a Hespanha, que lhes ficava mais ao pé da porta, pedir para dar +tambem as suas garfadas nos de Mafoma. Não havia duvida, a mesa estava sempre +posta e podiam servir-se á vontade. Deram bordoada de crear bicho, e o D. +Affonso VI, que viu que eram uns valentões, e que lhe podiam prestar para +muito, casou-os com duas filhas que tinha, uma legitima filha do matrimonio, e +outra cousas e tal etc. A primeira chamava-se Urraca e foi para o Raymundo, a +segunda chamava-se Tareja ou Thereza, e dizem até que era uma rapariga de truz, +para o Henrique. Ora ao primeiro, como era casado com a legitima, deu elle o +governo de toda a parte do reino, que ficava á borda do mar, desde os altos da +Galliza até ás proximidades do Tejo, e a D. Henrique deu especialmente os +condados de Portugal e de Coimbra, ficando sempre sujeito ao primo. Ha quem +diga que Portugal veiu como dote de D. Tareja! Tó carocho! N'esse tempo nem os +paes davam dotes ás filhas, os que queriam casar com ellas é que ainda davam +alguma cousa.</p> + +<p>—E acho isso muito bem entendido! exclamou vivamente o Zé Caneira, que +tinha uma filha casadoira.<span class="pn"><a name="pg_27">{27}</a></span></p> + +<p>—Pois sim! redarguiu sorrindo o João da Agualva. O que é certo é que a moda +não pegou. D. Henrique, porém, ficou sendo vassallo de Affonso VI, e +empenhou-se em alargar os seus dominios, dando pancadaria nos mouros. Muito +cedo deixou de ser sujeito a seu primo, e teve a sua capital em Guimarães, que +por isso se chama o <em>berço da monarchia</em>. Mas este D. Henrique parece +que tinha bicho carpinteiro, foi á Palestina, como se não tivesse por cá mouros +com fartura, e, quando o sogro morreu deixando o throno á cunhada D. Urraca, +que já então era viuva, o bom do conde metteu-se em todos os barulhos que lá +íam por Hespanha, para ver se apanhava mais alguma cousa para si. Qual +carapuça! não apanhou nada, e ía perdendo muito, porque os mouros, que se viram +á larga, começaram a fazer-se finos, e já subiam por ahi acima, como quem +estava com desejo de se espreguiçar o seu pedaço nos montes verdes de Coimbra. +</p> + +<p>No meio d'esta azafama toda, morreu em 1114 o honrado conde deixando uma +viuva muito frescalhota ainda, e um filho pequeno que teria os seus tres annos, +e se chamava Affonso Henriques, que é o mesmo que se dissesse Affonso filho de +Henrique, assim como Sanches queria dizer filho de Sancho, Fernandes filho de +Fernando, e Martins filho de Martim.<span class="pn"><a +name="pg_28">{28}</a></span></p> + +<p>—Ora essa! exclamou um que até ahi estivera silencioso, aqui estou eu que +me chamo Antonio Martins, e mais meu pae chamava-se José.</p> + +<p>—Pois isto que eu digo, tornou João, era n'aquelle tempo, depois os nomes +ficaram, mas já sem se lhes saber a significação, como acontece a muitas outras +cousas.</p> + +<p>A mãe de D. Affonso Henriques, que era uma mulher bonita e desembaraçada, +continuou a andar por cercos e batalhas, sempre a ver se isto cá em Portugal +ficava independente, e, emquanto ella assim procedeu, correu tudo bem; mas isto +de mulheres sempre são mulheres—não se zangue, tia Margarida—e D. Thereza lá +teve o seu fatacaz por um conde gallego, Fernão Peres de Trava, que d'ahi a +pouco era quem punha e dispunha em Portugal. Não agradava isso muito aos nossos +fidalgos, e menos ao rapazelho, que era levadinho da bréca, esperto como um +alho, valente como seu pae, e que fôra de mais a mais educado por um fidalgo ás +direitas, um tal Egas Moniz, portuguez dos quatro costados. Já se vê que o aio +não lhe ensinou a revoltar-se contra sua mãe, e até devo dizer que são +verdadeiras patranhas muitas das cousas que a esse respeito se contam. Por +exemplo, diz-se que o rapazote andava ás bulhas com a mãe, e que o rei de Leão, +D. Affonso VII, viera em soccorro da tia contra o primo. Peta! D. Affonso VII +veiu a Portugal,<span class="pn"><a name="pg_29">{29}</a></span> é verdade, mas +foi para obrigar a infanta-rainha (assim lhe chamavam) e o filho e os fidalgos +e todo o povo a reconhecer a sua suzerania. Apanhou o rapaz em Guimarães, +cercou-o, e pôl-o deveras em talas. Egas Moniz foi ter com elle, e disse-lhe +que se fosse embora e que lhe empenhava a sua palavra que a sua suzerania seria +reconhecida. Affonso VII assim o fez, e partiu d'ali contra D. Thereza, que +essa reconheceu-o immediatamente por seu senhor e suzerano. Mas D. Affonso +Henriques, livre do primo, pediu á mãe que fizesse favor de lhe dar o governo a +elle, que sempre era mais portuguez que o conde de Trava. Este disse á rainha +que não tivesse cuidado, que elle iria dar uma duzia de palmatoadas no pequeno. +Foram boas as palmatoadas! Em S. Mamede, ao pé de Guimarães, e no anno de 1128, +o conde gallego levou uma esfrega, e teve de se pôr a andar, levando comsigo D. +Thereza. De fórma que nem D. Affonso Henriques prendeu a mãe, nem fez cousa que +se parecesse com isso. Quiz apenas governar, porque tinha o direito de o fazer, +e porque os barões portuguezes estavam fartos de aturar o gallego. E a +vassallagem que promettera a D. Affonso VII? Boa vae ella! Mesmo agora D. +Affonso Henriques pozera fóra o gallego para se sujeitar ao de Leão! Nem se +pensou em tal. Mas Egas Moniz tinha dado a sua palavra, e não queria que um +patife de um estrangeiro dissesse que<span class="pn"><a +name="pg_30">{30}</a></span> havia portuguezes desleaes. Não contou nada ao seu +querido discipulo, e foi até dos primeiros a aconselhar que se mantivesse a +independencia, mas agarrou em si, na mulher e nos filhos, e foram todos de +corda ao pescoço ter com o rei de Leão, e dizer-lhe: «Para resgatar a minha +palavra, só tenho a minha cabeça e a dos meus! Ellas aqui estão!» O rei ficou +assombrado d'este acto de lealdade e mandou-os embora com palavras de muito +louvor.</p> + +<p>—Homem! isso agora parece-me asneira! acudiu o Zé. Que diabo de culpa tinha +elle que esse D. Affonso Henriques não fizesse o que promettera?</p> + +<p>—Nenhuma, bem sei! mas elle é que ficára por fiador. Outro seria que +dissesse: Eu quiz, mas não pude. Elle foi mais franco e disse: Não pude e não +quiz. O interesse da nação oppunha-se a isso, mas a minha vida ha de resgatar a +minha palavra, e não se fundará n'uma deslealdade a nova monarchia.</p> + +<p>—Aquillo é que eram homens! murmurou o Manuel da Idanha.</p> + +<p>—Espera que tu vaes ver o que era um homem. Este Affonso Henriques digo-te +que foi mesmo fadado para fundador de reino. Não parava um instante. No +principio do governo, andou sempre á bulha com o primo, e com os gallegos, e +tudo era ver se passava o Minho; mas um bello dia olhou para o sul, e percebeu +que para ali é que havia muito que fazer. Os mouros começavam a dar signal de +si, e<span class="pn"><a name="pg_31">{31}</a></span> a romper de novo por ali +acima. Em 1139, Affonso Henriques vae só n'uma galopada até ao Alemtejo, +derrota os mouros em Ourique, e volta para casa. A respeito de Ourique tem +havido mosquitos por cordas. Diz-se que appareceu Nosso Senhor a D. Affonso, +que este foi ali acclamado rei pelos soldados, que aquillo foi uma batalha +formidavel, etc. Eu cá não me metto n'essas cousas. Que Nosso Senhor Jesus +Christo apparecesse crucificado a D. Affonso Henriques, é muito possivel, Deus +póde fazer estes milagres, sempre que lhe aprouver, e milagre de Deus foi a +nossa historia toda. Sem a ajuda de Nosso Senhor mal podia este pequeno povo +fazer o que fez. Que a batalha fosse muito importante, não me parece, pelo +menos não teve consequencias; ficou tudo como d'antes, e o que se não póde +dizer é que o quartel general fosse em Abrantes, porque a Abrantes ainda nós +não tinhamos chegado; que os soldados se lembrassem de acclamar D. Affonso +Henriques rei n'essa occasião tambem me parece historia. Sou capaz de apostar +que rei já lhe chamavam ha muito tempo, como chamavam rainha á mãe; de mais a +mais, esse titulo de rei, que affirmava mais a nossa independencia, onde se +deveria dar era n'uma batalha contra os leonezes, mas n'uma batalha contra os +mouros, que tanto se importavam que Portugal fosse independente, como que fosse +vassallo de Leão, a quem tanto convinha<span class="pn"><a +name="pg_32">{32}</a></span> que Affonso Henriques fosse rei como que fosse +conde, não se percebe. Diz-se tambem que foi nas côrtes de Lamego que o titulo +se confirmou. Ora adeus! Côrtes com clero, nobreza e povo ainda cá se não +faziam. E de mais, quem diz isso parece que imagina que n'aquelle tempo se +passavam as cousas como agora, e que isto de fazer rei um conde soberano era +negocio que se não podia praticar sem grandes ceremonias e ajuntamentos. Boas +noites, meus amigos. Oiçam vocês o que succedia! Morria o rei de Leão, por +exemplo, e dividia os estados pelos filhos, e aqui ficava sendo um rei da +Galliza, o outro rei de Leão e o outro de Castella. E depois juntavam-se os +estados, e já não havia reinos nem em Galliza, nem em Castella, depois +tornavam-se a separar, e assim andavam, sem maior massada. D. Affonso Henriques +fizera-se independente, era o essencial, depois começaram a chamal-o rei, e rei +se ficou chamando. O que elle fez, como era espertalhão, para garantir a +conservação do reino, foi declarar-se vassallo do papa, e mandar-lhe pagar um +pequeno tributo, para que o pontifice lhe valesse. A manha não era má; +n'aquelle tempo quem tinha por si a côrte de Roma tinha tudo.</p> + +<p>Mas o caso não era chamar-se uma pessoa rei, era ter um reino que merecesse +o nome, e esse Portugalsito, que vinha apenas do Minho até ao Mondego, para +fallar a verdade, não parecia lá um grande<span class="pn"><a +name="pg_33">{33}</a></span> reino. E vae D. Affonso Henriques disse então com +os seus botões: Toca a alargal-o! Ora o que faz um de vocês quando se vê com +uma terrola para seu grangeio? Cospe nas mãos, agarra na enchada, começa a +fossar o chão, e ali está desde pela manhã até á noite. D. Affonso Henriques +fez o mesmo, cuspio nas manoplas, arrancou do montante, e elle ahi vae para a +faina em que andou desde pela manhã até á noite, quer dizer, desde que lhe +apontou o buço até que a morte pregou com elle na sepultura. O montante era a +sua enchada, rapazes, e, a cada enchadada, saía do chão sarraceno agora +Santarem, depois Lisboa. Ah! meus amigos, que vida! Aquillo era um lidar +continuado! Elle casou com uma princeza de Saboya, a sr.ª D. Mafalda, mas estou +em dizer que não foram muitas as noites em que dormio muito bem aconchegado com +ella nos seus paços de Coimbra. Alta noite lá ía elle tomar Santarem, de +surpreza, e outra vez constava-lhe que ía uma gente do norte fazer guerra aos +mouros na Palestina, para defender contra elles o sepulchro de Christo, e vae +D. Affonso Henriques ía logo á beira-mar ter com os homens, e pedir-lhes que +descançassem aqui um pedaço, e que o ajudassem ao mesmo tempo na sua tarefa de +todos os dias. Elles não se fizeram rogar, desembarcaram, e d'ahi a pouco +estava Lisboa no poder dos nossos. Muitos d'elles por cá ficaram, porque D. +Affonso Henriques deu-lhes<span class="pn"><a name="pg_34">{34}</a></span> +terras, e até ha por ahi povoações que ainda se chamam com os nomes d'elles, +por exemplo Villa Franca, que é como quem diz villa dos Francos, etc.</p> + +<p>—Então os de Villa Franca são estrangeiros? perguntou o Manuel da Idanha. +</p> + +<p>—Qual carapuça, homem! Tu não te lembras da minha comparação do caldo? Não +é sal, nem agua, nem carne; mas tem carne, agua e sal. A carne eram os godos, a +agua os luzitanos e os romanos o sal; pois tambem no caldo se deita ás vezes o +seu raminho de hortelã ou de segurelha, que sempre lhe dá assim um sabor mais +cousas, tal, etc., pois esses raminhos de segurelha e de hortelã foram os +estrangeiros, que aqui vieram a Portugal e por cá se deixaram ficar. Vieram +tambem contribuir para fazer o nosso bom caldo portuguez.</p> + +<p>—É bem achado, sim senhor, observou a tia Margarida.</p> + +<p>—Pois assim mesmo é que é. Ora já vocês vêem que o pobre do D. Affonso não +podia estar muito tempo socegado. Hoje tomava Cintra, amanhã Mafra, no outro +dia Palmella, no outro Abrantes! Era um vivodemonio. Os mouros com elle andavam +n'um sarilho. Por isso tambem tinham-lhe tomado um medo! Fallarem-lhes no +Ibn-Errik, assim lhe chamavam elles na sua lingua, como quem diz <em>filho de +Henrique</em>, fallarem-lhes em Ibn-Errik, era o mesmo<span class="pn"><a +name="pg_35">{35}</a></span> que fallarem-lhes no diabo. E que gente que elle +tinha! homens como um Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morreu combatendo, +e mais andava já pelos noventa annos, e um que tomou Evora, Giraldo sem Pavor, +e outro que tomou Beja, cada qual por sua conta e risco. Gente levadinha da +bréca, isso é que é fallar a verdade.</p> + +<p>Mas, emfim, meus amigos, ainda que se diz «pedra movediça não cria bolor», +sempre dá o caruncho n'uma pessoa, por mais que ella se mexa e trabalhe. D. +Affonso envelheceu, mas antes d'isso já deitára um filho que era o seu retrato, +valente como elle, e homem de grande talento, D. Sancho, que foi depois rei. +Podia morrer descançado D. Affonso Henriques, deixava a sua espada em boas mãos +e a sua corôa em boa cabeça. E com essa consolação morreu em 1185 el-rei D. +Affonso Henriques, depois de ter não só tornado o reino independente, mas de o +ter alargado até ao meio do Alemtejo, e principalmente de ter tomado Lisboa que +era, como diz o outro, a menina dos olhos dos arabes, a cidade sem a qual não +se podia fazer cá para estas bandas cousa que geito tivesse. Ah! meus amigos, +se algum de vocês fôr alguma vez a Coimbra, e entrar na igreja de Santa Cruz, +suba até á capella mór, e olhe para os dois tumulos que ali se vêem, pergunte +qual é o de D. Affonso Henriques, e depois ajoelhe diante d'elles, porque, com +seiscentos diabos,<span class="pn"><a name="pg_36">{36}</a></span> se nós hoje +não somos para ahi uns gallegos e uns andaluzes, se démos que fallar no mundo, +e praticámos cousas que fazem com que uma pessoa tenha orgulho de se chamar +portuguez, oh! com a bréca, é a elle que o devemos, porque, como lá diz o +outro, de pequenino se torce o pepino», e este reino de Portugal era bem +pequerrucho ainda, quando esse homem de ferro levou a sua vida inteira a +costumal-o a fazer cousas grandes.</p> + +<p>E o bom do João da Agualva limpou o suor, que lhe escorria pela testa com o +enthusiasmo que o inflammava. Os seus companheiros escutavam-n'o silenciosos, e +já não faziam interrupções nem observações. Estavam deveras interessados com a +narrativa.</p> + +<p>—Meus amigos, continuou o João da Agualva, no governo como na lavoura ha +tempo para tudo, agora cava-se e depois semea-se. Primeiro compra-se a terra e +depois é que se amanha. Pois assim foi em Portugal; D. Affonso Henriques ou D. +Affonso I conquistára, D. Sancho tratou de povoar. Por isso a historia chamou +<em>conquistador</em> ao primeiro e <em>povoador</em> ao segundo; e olhem que +isso não quer dizer que D. Sancho não fosse tambem um guerreiro de truz. Tó +carocho! Já na vida do pae elle dera que fallar. Apenas o pae morreu, começou +elle a namorar uma terra do Algarve, que hoje está bem decaída, mas que n'esse +tempo era, por assim dizer,<span class="pn"><a name="pg_37">{37}</a></span> a +Lisboa lá do sul—Silves. Não se lhe mettia dente, porém, com facilidade. Para +ir lá por terra, era custoso como o demonio, para ir por mar, é de saber, meus +rapazes, que o sr. D. Sancho I ainda não se lembrára de comprar nem a fragata +<em>D. Fernando</em>, nem esse navio com que andam por ahi sempre os jornaes +aos tombos, e a que uns chamam o <em>Pimpão</em> e os outros o <em>Vasco da +Gama</em>.</p> + +<p>Uma gargalhada geral mostrou que os bons dos ouvintes tinham apanhado +facilmente o chiste do jovial anachronismo do narrador.</p> + +<p>—Mas, meus amigos, isto de Portugal ficar no caminho da Palestina para os +christãos que vinham lá das terras do norte, foi uma verdadeira pechincha. +Descançavam aqui e sempre havia por cá algum biquinho de obra. Foi o que +succedeu tambem d'esta vez. D. Sancho apanhou uma frota de cruzados...</p> + +<p>—Novos? perguntou o Zé.</p> + +<p>—Novos eram elles, que não costumavam vir para a guerra os carecas como tu; +mas é de saber que se chamavam cruzados aos christãos que tinham ido tirar o +sepulchro de Christo das mãos dos infieis, e que depois o defendiam. D. Sancho +apanhou pois uma frota de cruzados, e disse-lhes d'esta maneira:</p> + +<p>«—Vocemecês é que me podiam fazer um favor.</p> + +<p>«—Se estiver na nossa mão!...</p> + +<p>«—Lá isso está. É simplesmente acompanhar-me<span class="pn"><a +name="pg_38">{38}</a></span> ali a baixo a Silves, e ajudar-me a intimar +mandado de despejo aos mouros que lá estão dentro. Eu fico com a cidade, e os +senhores levam as riquezas que se apanharem.</p> + +<p>«—Vá de feição.</p> + +<p>E foi. Tomou-se Silves, tanto mais que lhes ficava na estrada, e não tinham +de torcer caminho. Mas D. Sancho não poude continuar com essas funçanatas, +porque os mouros cá da peninsula, que começavam a estar assim esmorecidos, +receberam de repente uns reforços da Moirama, e... não lhes digo nada, vieram +outra vez por ahi acima que parecia que tornava a haver invasão. Foi uma +torrente que levou tudo adiante de si. O Tejo tornou a ser a fronteira de +Portugal, e apenas no Alemtejo uma terra ou outra surgia ainda, como uma ilha, +com a bandeira portugueza, d'entre as ondas da mourisma. Então D. Sancho pensou +que primeiro que tudo era necessario tratar do que era seu, e começou n'uma +lida abençoada: elle mandou vir gente do norte da Europa para povoar os nossos +campos desertos, elle edificou, elle fez castellos, elle cuidou emfim de tudo, +e não se esqueceu tambem de mostrar aos bispos que tinha muita contemplação por +elles, emquanto se limitavam ás suas rezas, mas que lhes não permittia metter o +nariz assim de muito perto nos negocios do estado. A final, este bom rei +morreu, menos velho que o pae, em 1212. Tinha sido<span class="pn"><a +name="pg_39">{39}</a></span> casado com uma princeza chamada D. Dulce, filha do +conde de Barcelona. De fórma que aqui temos pois já duas rainhas de Portugal, +D. Mafalda e D. Dulce.</p> + +<p>O filho mais velho de D. Sancho, que veiu a ser rei depois d'elle, não se +parecia muito, valha a verdade, nem com o pae, nem com o avô, mas olhem que nem +por isso foi menos util cá ao nosso paiz. É o que eu digo. Cada qual tem a sua +tarefa. Uns cavam, outros semeam, outros põem fóra os pardaes e arrancam o +joio, que podem dar cabo da ceara. Foi esta a tarefa de D. Affonso II. Ora vêem +perfeitamente que, se este Portugal tão pequeno se começasse a dividir, pedaço +para aqui, pedaço para acolá, ía-se tudo quanto Martha fiou. D. Sancho, que +tivera uma sucia de filhos, pensára mais em os deixar bem arranjados do que em +assegurar a conservação do reino. Por isso no testamento era umas mãos rotas. +Esta e aquella villa para o senhor infante fulano, esta e aquella cidade para +sicrano, e terras para este, e terras para aquelle. D. Affonso II arrebitou a +venta, e disse d'este modo: Então vamos a saber, e eu com que fico? E ahi +começa á bulha com as irmãs e com os fidalgos. Andava tudo em polvorosa com +elle. Os fidalgos, por exemplo, tinham recebido de D. Affonso e de D. Sancho +esta ou aquella terra, mas íam-se fazendo finos, e por sua conta e risco íam +apanhando mais alguma,<span class="pn"><a name="pg_40">{40}</a></span> os +frades então nunca chegaram á cabeceira de um moribundo que não apanhassem +algumas terras de bom rendimento. Isto assim não póde ser, berrava D. Affonso +II, ás duas por tres fico a olhar ao signal. E elle ahi vae por essas +provincias fóra, a obrigar os fidalgos a pôr para ali os titulos das suas +propriedades, declarando que não valiam senão os que elle confirmasse, e foi a +isso que se chamou <em>confirmação</em>. Ao mesmo tempo prohibia ás corporações +religiosas que tivessem mais terras do que as que tinham. Emquanto ao +testamento de D. Sancho I, cumpriu só o que lhe parecia bom, e, como as irmãs +refilassem, houve pancadaria a menos de real.</p> + +<p>—Então, por esse andar, os mouros deviam ter vida folgada com elle? +observou o Francisco Artilheiro.</p> + +<p>—Lá isso é verdade, e tanto assim que, quando se tomou Alcacer do Sal, os +cruzados, que nos ajudaram, e que nunca pozeram a vista em cima do soberano, +imaginaram que era uma rainha que governava em Portugal; mas, meus amigos, +olhem que o nosso paiz não lhe deve menos por isso. Se as infantas começam a +puxar para um lado, os fidalgos a puxar para o outro, e ainda os frades a +arrancar tambem as terras, n'um abrir e fechar d'olhos tinhamos para ahi vinte +reinos, e adeus Portugal. Mas o gordanchudo do Affonso II, apesar de se<span +class="pn"><a name="pg_41">{41}</a></span> não importar para nada com os +mouros, tinha cabellinho na venta; e por isso os frades foram prohibidos de ter +mais terras, as infantas tiveram de pôr para ali as cidades que o pae lhes +tinha deixado, porque D. Affonso II disse-lhes que a respeito de corôa em +Portugal não havia senão uma, e finalmente os fidalgos tiveram de receber +d'elle as terras mas por favor e mercê real. De fórma que, a 25 de março de +1223, quando morreu apenas com trinta e seis annos de idade, Portugal era +pequeno, mas estava todo na mão do rei, o que já era grande façanha.</p> + +<p>—E o filho foi pelo mesmo caminho, sr. João? perguntou o Manuel da Idanha. +</p> + +<p>—Ora, meu amigo, eu te vou dizer o que succedeu ao filho, e por aqui tu +verás se o que eu acabo de dizer não é verdade, e se não ha na historia +exemplos para tudo. O filho era creança, quando subiu ao throno, por +conseguinte foi necessario haver regencia. Chamava-se Sancho o pequenote, +Sancho II, por alcunha o <em>Capello</em>, porque em creança andara com um +capuz de frade, lá por promessa da mãe, ou cousa assim. Quem ficou com o +governo foram os ministros do pae, e, ainda que eram homens de truz, sempre +lhes faltava a auctoridade que tinha um rei. De fórma que toda aquella nobreza +e fradaria, quando se viu assim á solta, livre da mão de ferro de D. Affonso +II, começou<span class="pn"><a name="pg_42">{42}</a></span> a alvorotar-se, e +os ministros, para os terem quietos, íam dando o que elles pediam. As infantas +apanharam as cidades, os frades foram juntando terras ás que já tinham, e +parece que o rei andava umas vezes nas mãos de uns, outras vezes nas mãos de +outros. Pouco se sabe d'aquelle tempo. Ia pelo reino todo uma confusão de +seiscentos demonios. O que é certo é que, quando D. Sancho II chegou á +maioridade, estava já tão costumado a não ser rei que não soube puxar pelos +seus direitos. E não era que elle fosse fraco. Pois não! pelo contrario! Era da +raça do avô, não estava bem senão a cavallo e com os mouros de volta. Tomou uma +boa parte do Alemtejo e do Algarve, mas fidalgos e frades esses faziam o que +queriam e sobrava-lhes tempo. Vêem vocês? Para uma pessoa governar não basta +ser um valentão. Ás vezes um porta-machado, com umas barbaças por ahi alem, +anda em bolandas nas mãos de um creançola, outras vezes uma fraca figura faz +andar um regimento ali direitinho que nem um fuso. D. Affonso não queria nada +com os mouros, o que o não impedia de governar como um homem; para D. Sancho as +batalhas eram o pão nosso de cada dia, e em Portugal todos governavam menos +elle. Cousas da vida! Como os fidalgos faziam o que lhes dava na cabeça, e os +frades tambem, e os bispos a mesma cousa, parecia que deviam estar todos muito +satisfeitos. Mas não succedia assim. Os<span class="pn"><a +name="pg_43">{43}</a></span> bispos queixavam-se dos fidalgos, estes +queixavam-se dos frades, e todos do rei, os frades porque não reprimia os +bispos, os bispos porque não tinha mão nos fidalgos, os fidalgos porque não +puxava as orelhas ao clero. Quando elle saltava nos mouros, ainda as cousas não +corriam mal. A fidalguia gostava d'aquillo, íam todos atrás do rei, e não se +pensava em mais nada. Mas, quando uma hespanholita, chamada D. Mecia Lopes de +Haro, caiu em graça ao rei, que casou com ella, e que passou os dias a namorar +os olhos pretos da rainha, lá se foi tudo quanto Martha fiou. A desordem +excedeu todos os limites, e os bispos foram ter com o papa a fim de lhe pedirem +que tirasse a corôa a D. Sancho II. O papa, que era Innocencio IV, pulou de +contente com o pedido. Era o mesmo que virem-lhe dizer que era elle quem dava e +tirava as corôas n'este mundo, e que vinha a ser portanto o rei dos reis. +Estava em França n'esse tempo um irmão de D. Sancho II, chamado D. Affonso, que +saíra de Portugal para ir correr terras, encontrára em França uma condessa de +Bolonha, viuva, e já durazia, ao que parece, que gostou d'elle e com elle +casou, levando-lhe o condado em dote. Ora o tal condado era uma especie de +reino, sujeito ao rei de França, que n'esse tempo era o rei santo que elles +tiveram, a saber S. Luiz.</p> + +<p>—S. Luiz rei de França, interrompeu a Margarida,<span class="pn"><a +name="pg_44">{44}</a></span> é uma igreja que fica ali para as bandas do Rocio. +</p> + +<p>—Pois é uma igreja e foi um rei, tia Margarida, respondeu o João de +Agualva, como Santa Izabel é uma igreja que fica ali para as bandas da +Estrella, o que a não impediu de ser tambem uma rainha e rainha de Portugal. +</p> + +<p>—Isso é verdade! confirmou a tia Margarida.</p> + +<p>—Pois então, como lhes ía dizendo, reinava S. Luiz em França, e D. Affonso, +seu vassallo, por ser conde de Bolonha, fôra com elle á guerra, e déra provas +de ser homem desembaraçado. Lembraram-se d'elle para rei, e D. Affonso, que era +ambicioso, acceitou. Os bispos e os fidalgos disseram comsigo que um rei feito +por elles havia de ser um creado que tivessem ali no throno, e o papa entendeu +tambem que aquillo era «senhor mandar, preto obedecer». Combinou-se tudo. D. +Affonso prometteu quanto quizeram e ahi vae elle caminho de Portugal, fingindo +que ía para a Terra Santa. Desembarca e principia a guerra civil. Tambem se não +sabe muito do modo como as cousas se passaram. Parece que foi uma guerra levada +do diabo como são sempre as guerras civis, queimaram-se villas e cidades, +arrasaram-se muitas cearas, ficou muita gente na miseria, e o pobre D. Sancho +viu-se abandonado por todos, dizem até que pela mulher, que fôra, a final de +contas, o motivo de todas aquellas cousas.<span class="pn"><a +name="pg_45">{45}</a></span> Houve só um ou outro que se lhe mostrou fiel. D. +Sancho teve de saír do nosso paiz, e foi para Hespanha, onde morreu em Toledo +apenas com trinta e sete annos.</p> + +<p>—Pobre do homem! acudiu compassiva a tia Margarida. Então que mal tinha +elle feito áquella gente toda?</p> + +<p>—Era um rei fraco, e, como se costuma dizer, não era nem para si nem para +os outros. Até a mulher não fez caso d'elle, porque as mulheres são assim: em +estando uma pessoa embasbacada a olhar para ellas, não fazem caso nenhum, e ás +vezes de quem gostam é de quem lhes chega um <em>calor</em> ao corpo, como o +outro que diz.</p> + +<p>—Vae-te excommungado, bradou indignada a tia Margarida. Se um homem me +batesse, eu até parece que era capaz de lhe arrancar os olhos.</p> + +<p>—Pois sim, tia Margarida! não digo menos d'isso. Mas a rainha D. Mecia não +era do mesmo parecer, e pagou bem as pieguices de D. Sancho!... Só de dois +fidalgos se conta que se mostraram fieis ao desgraçado rei. Um foi o alcaide de +Celorico, que até dizem que fez uma partida com graça. Estava-o cercando D. +Affonso, e elle já não tinha nem uma migalha de pão, n'isto passa uma aguia por +cima da praça com uma truta no bico, e deixa-a cair dentro da villa. O alcaide, +em vez de a comer, manda-a cosinhar muito bem, e envia-a de presente aos +cercadores.<span class="pn"><a name="pg_46">{46}</a></span> D. Affonso, vendo +que na praça havia petiscos d'aquelles, entendeu de si, para si que estava +perdendo o tempo e o feitio, e foi-se embora. Póde ser que isto seja patranha, +mas o que é verdadeiro, sem tirar nem pôr, é o caso de Martim de Freitas. Esse +era alcaide de Coimbra, foi cercado tambem, não se rendeu. Disseram-lhe que já +D. Sancho morrera, e que por conseguinte era D. Affonso o seu natural +successor. Não acreditou. Affirmaram-lhe que morrera em Toledo. Pediu para ir +ver. Deram-lhe um salvo conducto, e Martim de Freitas, mettendo na algibeira as +chaves de Coimbra, foi de passeio até Toledo. Mostraram-lhe o tumulo do rei, +mandou-o abrir; mostraram-lhe o caixão, quiz ver o corpo; e ao ver emfim o +pobre cadaver do seu rei, que assim morrera aos trinta e sete annos, longe da +sua terra e longe dos seus, ajoelhou e poz as chaves da cidade nas mãos do rei +que lh'as entregára; depois, tirou-as d'essas mãos já frias que as não podiam +segurar, e partiu para Coimbra, entregando-as ao novo rei, que louvou muito a +acção.</p> + +<p>—E tinha rasão para isso, tornou a tia Margarida, que estava sendo agora a +interruptora, mas com o tal rei novo é que eu não engraço nada. Olhem que +irmão! Sempre tinha uns figados!</p> + +<p>—Não era muito boa rez, não, tia Margarida, mas então n'este mundo não são +só as boas pessoas que servem. Que D. Affonso se importava tanto<span +class="pn"><a name="pg_47">{47}</a></span> com a familia como eu me importo com +a familia do imperador da China, é o que não tem questão, mas que foi um grande +rei, isso tambem é verdade.</p> + +<p>—Era fresco o tal rei, que assim fazia guerra ao irmão sem mais nem menos! +</p> + +<p>—Ha mais exemplos d'isso, tia Margarida, e não vão elles tão longe que uma +pessoa se não possa lembrar. Mas olhe que não param ahi as maldades de D. +Affonso. Tambem não fez caso da mulher, a tal condessa de Bolonha, que nunca +foi capaz de pôr pé em Portugal, e casou, em vida d'ella, com uma filha do rei +de Hespanha.</p> + +<p>—E ainda você o gaba, sr. João? perguntou a tia Margarida. Sabe o que eu +lhe digo? Parece-me que você é tão bom como elle!</p> + +<p>—Olhe, tia Margarida, não me rogue você nunca outra praga, que lá com essa +não me hei de eu dar mal. O que lhe disse é que o sr. D. Affonso III foi um dos +reis que fizeram mais bem ao pobre povo, e sabe vocemecê porque? Porque era +homem de cabeça, e o que succedera com elle não tinha caído em cesto roto. Elle +disse comsigo; Estes patifes d'estes fidalgos e d'estes bispos são capazes de +me fazer a mim o mesmo que fizeram a meu irmão. Ora, eu sósinho não posso com +elles. A quem me hei de encostar? Olhou em torno de si e vio o povo, o povo em +quem ninguem fallava, e que era a final de contas quem pagava<span +class="pn"><a name="pg_48">{48}</a></span> as custas dos barulhos entre os +grandes, o povo que pagava tributos a toda a gente, e que mesmo quando vivia em +seus concelhos governando-se pelos seus foraes, que eram para assim dizer as +suas leis, mesmo então era ralado pela fidalguia. E Affonso III disse comsigo: +Ora ahi está quem me serve. E desata a fazer concelhos, e, quando reuniu côrtes +que até ahi eram só de fidalgos e padres, chamou tambem procuradores do povo, e +favoreceu o mais que poude o seu negocio, e deu-lhes socego e cousas e tal, de +fórma que depois poude dar para baixo nos prelados, que berravam pelos +contractos que tinha diabo, mas D. Affonso III, que era finorio, abanou-lhes as +orelhas. E que os papas tinham deposto não só o rei D. Sancho II, mas tambem um +imperador da Allemanha, de modo que aos chefes dos estados já ía cheirando a +chamusco, e principiaram a fazer parede contra o papa. Assim os bispos, que +levavam tapona de D. Affonso III, íam a Roma fazer queixas ao papa, e o papa +naturalmente respondia-lhes contando-lhes uma fabula que lhes vou contar a +vocês tambem.</p> + +<p>—Conte lá sr. João da Agualva, exclamou o Manel da Idanha, ainda que eu, a +dizer a verdade, não sei lá muito bem o que venha a ser isso de <em>fava</em> +ou <em>fabula</em> ou o que é.</p> + +<p>—Fabula é assim uma historia em que os animaes fallam como se fossem gente, +e pelo que elles dizem tira a gente... sim... é como diz o outro <span +class="pn"><a name="pg_49">{49}</a></span> pelos domingos se tiram os dias +santos... Eu lá, a estas explicações, não se póde dizer que seja um barra, mas +em fim, em eu contando o caso, logo vos apercebem.</p> + +<p>—É isso mesmo, tio João, conte lá, disse o Bartholomeu.</p> + +<p>—Uma vez as rãs foram ter com Deus Nosso Senhor e pediram-lhe um rei, e +Deus Nosso Senhor, que estava de maré, não quiz abusar das pobresinhas, e +atirou-lhes para o charco um cepo; mas o cepo não fazia nada, andava á tona da +agua, para aqui e para acolá, as rãs não lhe tinham respeito nenhum, e saltavam +n'elle, qual debaixo qual de cima, e o cepo sempre um paz d'alma, que tanto +valia terem rei como não o terem. Vae então as rãs voltaram a Deus Nosso +Senhor, e disseram-lhe d'esta maneira: Dê-nos Vossa Divindade um rei que se +veja, um rei que nos governe.—Pois então ahi vae um rei como vocês querem, +respondeu Nosso Senhor, e atirou-lhes para o charco uma serpente, e a serpente, +a primeira cousa que fez, foi engulir as primeiras vassallas que lhe pareceram +mais gordas, e depois outras e outras, de fórma que as pobres rãs já se não +atreviam nem sequer a coaxar para que sua magestade não desse com ellas. +Percebem vocês agora porque é que o papa podia contar esta historia aos bispos +que íam ter com elle?</p> + +<p>—Percebo eu, acudiu logo o Manel da Idanha.<span class="pn"><a +name="pg_50">{50}</a></span> É que elles não descançaram emquanto não pozeram +fóra um rei que era um paz d'alma, um cepo, o D. Sancho II, e foram buscar +outro rei que era uma serpente e que deu cabo d'elles que foi um regalo.</p> + +<p>—Ora, tal qual, sô Manel. Com gente assim é que eu me entendo. D. Affonso +III bem se póde dizer que era uma serpente, porque as serpentes são manhosas, e +elle tinha manha a valer. Mostrou-o em tudo, até no modo como se assenhoreou do +Algarve, que era só o que faltava para Portugal chegar ao mar pelo lado do sul. +Tomou-o aos mouros, e isso foi obra de pouco tempo; mas o rei de Castella +começou a berrar que o Algarve lhe devia pertencer a elle. D. Affonso III nunca +lhe disse o contrario, mas foi arrastando a entrega, e depois aproveitando +tudo, de fórma que ás duas por tres estava senhor do Algarve, e, quando D. +Affonso III morreu, que foi a 16 de fevereiro de 1279, estava Portugal completo +e seguro, e, visto que chegámos ao fim d'esta primeira parte, parece-me que o +melhor é irmos dormir, que para o outro domingo continuaremos.</p> + +<p>—Mas ó sô João, disse o Manel da Idanha, já agora, faça favor, não deixe ir +a gente embora, sem nos explicar uma cousa. Vocemecê diz que o rei, para +esmurrar as ventas aos bispos mais aos fidalgos, começou a fazer concelhos por +dá cá aquella palha, e lá<span class="pn"><a name="pg_51">{51}</a></span> isso +é que eu não percebo muito bem. Então que diabo tinham os fidalgos com o haver +ou o não haver concelhos?</p> + +<p>—Pois tem rasão, sô Manel da Idanha, e bom é que essas cousas fiquem +explicadas, porque a mim parece-me cá no meu modo de ver que o que nos importa +a nós, que somos do povo, não é tanto saber as batalhas que se deram, e mais os +reis que houve; o que nos importa é saber como é que viviam os nossos paes, e +como se governavam e cousas e tal. Ora pois, saibam vocês que muitos dos nossos +paes eram a bem dizer escravos, não como os do tempo dos romanos que podiam ser +vendidos como uns negros, mas faziam parte das terras que cultivavam, e com +ellas passavam de dono para dono. Isto foi melhorando, e os servos passaram a +ser gente livre, mas sem ter terras suas; pagavam foros e foros pesados, os +senhores das terras eram os reis, os nobres, os bispos e os mosteiros. As +terras dos reis chamavam-se <em>terras da corôa</em>, as dos fidalgos e as da +igreja <em>coutos</em>, <em>honras</em> e <em>behetrias</em>. Ora os fidalgos, +que só tinham obrigação de servir o rei na guerra e não pagavam mais nada, ou +por herança de seus paes, ou por doações dos reis em recompensa dos seus +serviços, íam mettendo em si o paiz todo, já se vê de embrulhada com os padres; +e os reis pouco tinham de seu, porque, demais a mais, fidalgos, bispos e +conventos apanhavam tudo quanto<span class="pn"><a name="pg_52">{52}</a></span> +podiam, o que se lhes dava e o que se lhes não dava. Por isso D. Affonso fez as +taes <em>inquirições</em>, quer dizer, obrigou todos a porem para ali os seus +titulos, para se saber se tinham as terras com direito ou sem elle, estabeleceu +mais as famosas confirmações que punham a fidalguia sempre na dependencia da +corôa, porque cada novo rei confirmava ou não confirmava as doações dos outros, +e finalmente prohibiu aos conventos que arranjassem mais terras. E vae o povo o +que fazia? Sempre que se podia livrar dos fidalgos e dos padres por qualquer +modo e feitio, formava-se um concelho. Então continuavam a pagar tributo, e +serviam nas guerras, mas não estavam sujeitos a ninguem, governavam-se elles +por si, e tinham as terras muito suas. Ora, como os reis é que os podiam ajudar +a ver-se livres da fidalguia, chegavam-se para elles, e os reis, que tinham nos +concelhos gente que tambem ía á guerra e que lhes pagava tributos, +encostavam-se para esse lado, para terem quem lhes valesse quando os barões ou +os bispos se faziam finos. Aqui tens tu explicado pela rama como cada concelho, +que se formava, era ao mesmo tempo um asylo de liberdade para o povo e um +auxiliar para o rei contra as ameaças dos fidalgos.</p> + +<p>—Muito obrigado, sô João da Agualva, tornou o Manel; mas sempre lhe digo +que quem não sabe é como quem não vê. Ora quem me <em>havera</em> de dizer +que<span class="pn"><a name="pg_53">{53}</a></span> esta historia de ter uma +terra, um pelourinho no meio da praça, era de tanta vantagem cá para o povo! +Pois até domingo, e tomára eu que passasse depressa a semana porque +divertimentos como este é que ha muito tempo a gente não apanha.<span +class="pn"><a name="pg_54">{54}</a><br><a +name="pg_55">{55}</a></span></p> + + + +<h1>QUARTO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">D. Diniz.—A universidade de Coimbra.—Os Templarios.—Santa +Isabel.—D. Afonso IV.—A batalha do Salado.—Morte de Ignez de Castro.—D. +Pedro I.—D. Fernando I.—Leonor Telles.—Estado de Portugal no fim do reinado +de D. Fernando.</p> + +<p> </p> + +<p>—Meus amigos, principiou o João da Agualva, corriam os annos, e lá por esse +mundo de Christo íam todos abrindo os olhos. Os romanos, como lhes disse, eram +um povo que sabia o nome aos bois. Elles faziam estradas, elles faziam +edificios que ainda hoje, arruinados, deixam ficar uma pessoa embasbacada, +elles tinham escolas, o diabo! Mas, depois, vieram os barbaros dos bosques da +Allemanha e da Russia, e zas, tras, catatras, lá se foi tudo pela agua abaixo. +Por muito tempo não se pensou senão em pancadaria. Tudo era gente rude, os reis +não sabiam ler nem escrever, os povos fallavam uma lingua assaralhopada que nem +era latina, nem deixava de o ser. Mas a pouco e pouco foram-se aclarando +as<span class="pn"><a name="pg_56">{56}</a></span> cousas, foi havendo estudos, +e D. Diniz, que subiu ao throno, depois da morte de D. Affonso III, era já um +sabichão. Elle fazia os seus versos de pé quebrado, que a gente hoje quasi que +não entende, mas que eram já escriptos n'uma lingua com termos, elle emfim vio +que havia escolas por esse mundo onde se ensinava tudo o que então se sabia, e +quiz tambem ter uma que foi a universidade de Coimbra. Depois tratou de fazer +do reino alguma cousa com geito. Já não tinha que pensar em mouros, e então +pensou na lavoura, pensou na marinha, pensou em tudo o diabo do homem! Mandou +vir capitães de navios, de Italia, para ensinarem os nossos, e ajudou os +navegantes do Porto, que sempre foram gente desembaraçada, a crear uma especie +de companhia de seguros, e não se descuidou tambem de dar para baixo na nobreza +e nos padres para elles se não fazerem finos, e dava-lhes de modo que elles não +tinham rasão de queixa, porque era sempre com justiça. Ora, por exemplo, +d'antes havia uma especie de frades que se chamavam freires militares, que +eram, como quem diz, frades e soldados ao mesmo tempo. Em vez de fazerem voto +de rezar e de jejuar, faziam voto mas era de dar bordoada nos mouros. Havia +umas poucas de ordens n'esse gosto, a ordem dos Templarios, a de S. Thiago, a +de Aviz e outras. Ora, como é de ver, esses templarios, por exemplo, que se +fartavam de tomar terras aos mouros,<span class="pn"><a +name="pg_57">{57}</a></span> com algumas haviam de ficar para si. E depois +tinham doações, emfim eram ricos a valer. O que acontecia por cá, tambem +acontecia lá por fóra. Succedeu, pois, que um rei de França e um papa acharam +excellente apanhar para si essas riquezas todas, e acabaram com a ordem dos +Templarios em toda a parte; mas D. Diniz, que era um homem serio, não esteve +pelos ajustes, e entendeu que seria um roubo tirar aos homens o que elles +tinham ganho á custa do seu sangue, e então, como não havia de desobedecer ao +papa, abolio a ordem dos Templarios, mas passou todos os bens para outra que +pediu ao papa que creasse e a que chamou ordem de Christo.</p> + +<p>—Ó sr. João, perguntou o Francisco Artilheiro, esse D. Diniz não era marido +da rainha Santa Isabel?</p> + +<p>—Era sim, rapaz, e já vou fallar n'essa rainha, que foi tambem uma das +bençãos de Portugal n'esse tempo. Era filha do rei de Aragão, e bem se póde +dizer que aquella é que foi uma verdadeira santa. Pobre senhora! Não lhe +faltaram desgostos, não. Primeiro houve grande bulha entre o marido e um +cunhado, D. Affonso Sanches, que embirrou em que lhe pertencia a corôa, apesar +de ser mais novo; depois, e isso foi o peor, o filho, que veio a ser D. Affonso +IV, revoltou-se contra o pae, e porque? Porque el-rei D. Diniz, que era +frecheiro, e que se fartou de<span class="pn"><a name="pg_58">{58}</a></span> +ter filhos bastardos, parecia que olhava mais por elles do que pelos proprios +filhos do matrimonio. Imaginem o desgosto da rainha! Primeiro porque emfim não +havia de gostar muito de ver o marido sempre ao laré com esta e com aquella a +arranjar filhos por fóra de casa, e depois por ver assim a guerra accesa entre +seu marido e seu filho. E ainda por cima o rei desconfiou que ella ía de +accordo com o filho, e chegou até a tratal-a mal, e a mandal-a saír da côrte. +Pobre senhora! aquillo era o que ali estava. Ella tudo supportou com +resignação—as infidelidades e as injustiças do marido, só o que queria era ver +tudo em paz. E sempre o conseguio. Tanto pediu, tanto chorou, que o filho e o +pae vieram ás boas. Mas d'ahi a pouco torna a haver intrigas, e o D. Affonso, +que era um vivo demonio, torna á pancadaria com o pae. Pois senhores, a batalha +estava para ser aqui ao pé de Lisboa, no Campo Grande; mas quando já começavam +á lambada, apparece no meio d'elles a boa rainha, que foi mesmo o anjo da paz, +e depois que ella appareceu ninguem mais se atreveu a levantar uma lança. Oh! +rapazes! digo-lhes que até me parece que não era necessario que o papa a +fizesse santa para que o povo a adorasse! Pois então se aquella não fosse santa +quem é que o havia de ser? Dizem que mudava o ouro em rosas, e rosas em ouro. +Isso creio eu, que aquellas bentas mãos haviam de mudar<span class="pn"><a +name="pg_59">{59}</a></span> em flores tudo em que tocassem, porque eram, como +o outro que diz, mãos puras e boas, como a aragem de maio! Mas milagres maiores +fazia ella ainda, porque as lagrimas que chorava em segredo caíam depois sobre +a cabeça do pai e do filho como orvalho de paz e como chuva de amor! Sim! Sim! +continuou o bom do João da Agualva, com voz tremula, e meio a chorar, digam lá +vocês que ella não mudava tudo em que tocava em rosas, quando agora mesmo, que +diabo! só de fallar n'ella, parece que até as palavras na minha bôca se estão +mudando em flores!</p> + +<p>—Ai! a minha rica Santa Isabel! exclamou a tia Margarida, pondo as mãos, +n'um enlevo. Coitadinha da minha rica santa que foi logo casada com um homem +tão mau!</p> + +<p>—Não era mau, não senhora, tornou o João da Agualva, foi até um dos +melhores reis que nós tivemos, mas como elle ás vezes lá escorregava o seu +pedaço, e nem sempre tratou a santa como ella merecia ser tratada, bastou isso +para que o povo começasse a inventar cousas, que elle que era um sovina, um +desconfiado, um unhas de fome, e até os pintores, quando fazem o quadro do +milagre das rosas, põem-n'o com uma carantonha de metter medo, que ninguem dirá +que está ali o rei poeta, o rei a quem chamavam o pae do povo, o rei que não +quiz roubar os templarios, o rei que fundou a universidade<span class="pn"><a +name="pg_60">{60}</a></span> de Coimbra, o rei que tanto se desvelou pelo bem +do paiz! E que as injustiças, por mais pequenas que sejam, sempre vem a +pagar-se, e D. Diniz, esses peccados que teve, pagou-os bem caro, primeiro com +a revolta de seu filho, depois com a injustiça do futuro, e agora vão vocês ver +como o filho tambem pagou o que fizera ao pae, porque em 1325 morreu el-rei D. +Diniz e subiu ao throno seu filho D. Affonso IV, a quem chamaram o Bravo.</p> + +<p>—Ora vamos lá a ver o que fez esse senhor, disse uma voz.</p> + +<p>—D. Affonso IV, meus amigos, tinha muito boas qualidades. Era, por exemplo, +um homem de muito bons costumes, e foi isso até que o levou a praticar uma +acção... emfim, depois fallaremos. Era homem serio, mas arrebatado e vingativo. +A primeira cousa que fez, assim que subiu ao throno, foi vingar-se dos irmãos, +por cuja causa tivera as bulhas com o pai. D'ahi guerra. Quem acudiu? A rainha +Santa Isabel.</p> + +<p>Casou uma filha com o rei de Castella, Affonso XI. Este, que era do feitio +de D. Diniz, começou a largar a mulher e a metter-se com uma tal D. Leonor de +Gusman. D. Affonso IV, que ficára embirrando deveras com esses arranjos depois +das turras com o pai, começou a criar má vontade ao genro, e zas, toma que te +dou eu, ao primeiro pretexto que teve, ahi começam as bulhas. Foi uma guerra de +cá<span class="pn"><a name="pg_61">{61}</a></span> cá ra cá, que não prestou +para nada, mas que sempre fazia mal ao povo. No mais seguiu á risca o exemplo +do pae. Tratou do povo, teve os fidalgos muito na mão, mais os padres tambem. E +então com esses não foi lá só por causa das terras a que deitavam a unha, foi +tambem por causa dos maus costumes, porque elles gostavam de passar vida airada +e outras cousas que D. Affonso IV lhes não levou a bem. Por isso apanharam uma +vez uma rabecada, n'uma carta que D. Affonso escreveu ao papa, que foi de +ficarem de cara a uma banda.</p> + +<p>—Bem feito! acudiu a tia Margarida. Esse rei sim! esse é que me quadra. Bem +se vê que era filho da rainha Santa Isabel!</p> + +<p>—Espere lá, tia Margarida, não falle antes de tempo que, como diz o outro, +até ao lavar dos cestos é vindima. Houve no reinado de D. Affonso IV duas +cousas famosas: primeiro a batalha do Salado, depois a morte de D. Ignez de +Castro.</p> + +<p>—Foi com os hespanhoes a batalha do Salado?</p> + +<p>—Não homem, foi dada até para os ajudar. Já lhes disse, meus amigos, que +nós desde o reinado de D. Affonso III tinhamos posto os mouros na rua. Mas os +hespanhoes ainda não tinham conseguido o mesmo, os mouros estavam reduzidos +apenas ao reino de Granada, mas sempre isso era alguma cousa. Ora agora ali em +Marrocos estava, como sabem, a moirama toda. Imaginem que um bello dia o tal +miramolim<span class="pn"><a name="pg_62">{62}</a></span> de Marrocos, ou como +diabo se chamava elle, desaba em Hespanha com o poder do mundo e junta-se ao +rei de Granada para darem cabo do rei de Castella. Era este D. Affonso XI, +genro do nosso D. Affonso IV. Aterrado com o perigo, pediu soccorro ao sogro, +apesar de estar mal com elle; mas o nosso rei, homem ajuizado, vio que a +occasião não era para dize tu direi eu, que não era só Castella que estava em +perigo, estava em perigo a Hespanha toda; se Affonso XI levasse uma tareia e +perdesse algumas provincias ficavam aqui os mouros de raiz, e tinha de se +começar outra vez a pôl-os fóra. Por isso não esperou por mais nada, ajuntou +quanta gente poude, e foi em soccorro do genro. O nosso rei era homem de pulso, +os nossos soldados tambem eram pimpões. O soccorro não foi nada mau. Na batalha +do Salado os mouros levaram uma sova de primeira ordem, e nunca mais os de +Marrocos vieram cá metter o nariz d'este lado do mar. D. Affonso IV voltou para +a sua terra sem ter querido acceitar cousa nenhuma da grande preza que fizeram. +</p> + +<p>—E isso de D. Ignez de Castro o que foi, ó sr. João da Agualva? perguntou a +tia Margarida. Não foi essa Ignez de Castro que esteve aqui em Bellas, que até +ali na quinta do marquez ha uma arvore a que chamam de Ignez de Castro?</p> + +<p>—Ora adeus, tia Margarida! esteve agora em<span class="pn"><a +name="pg_63">{63}</a></span> Bellas! quer dizer, eu, como não andei com ella +por toda a parte, não sei se por cá passaria alguma vez, mas onde viveu +principalmente foi em Coimbra. Era uma hespanhola esta Ignez de Castro, linda +como os amores, loura como o sol, e com um pescoço tão bonito, que lhe chamavam +o <em>collo de garça</em>. Veio para Portugal como dama da infanta D. Constança +que foi mulher do principe D. Pedro, filho de D. Affonso IV, mas o principe +parece que gostou mais da dama que da mulher. Tristes amores foram aquelles, +rapazes! Ella tinha pelo seu Pedro um fatacaz lá de dentro, que estou em dizer +que mais gostaria ella de que elle fosse um pastor de cabras do que filho de um +rei. A princeza D. Constança morreu, e para isso não deixaria de concorrer a +paixão do marido, que, por mais que elle a quizesse esconder, rebentava por +todos os lados. Coitada da princeza! tudo fez para arredar o marido d'aquelles +mal-aventurados amores. Mas então! vão lá fugir ao seu destino! Pediu a Ignez +de Castro que fosse madrinha de um filho que ella teve, porque n'esse tempo +haver amores entre compadre e comadre quasi que era maior peccado que havel-os +entre irmãos. Nada! aquillo era como um fogo valente que tanto mais se accende +quanto mais agua lhe deitam. Em fim, morreu a princeza, e D. Pedro e D. Ignez +ficaram á vontade, porque até ahi tinham guardado respeito á pobre senhora. +Casariam?<span class="pn"><a name="pg_64">{64}</a></span> D. Pedro assim o +jurou depois, mas eu estou em dizer que não, porque para casarem era necessaria +dispensa graúda, que o papa não daria assim sem mais nem menos e com tanto +segredo como o principe quereria. Mas, ou casassem ou não, é certo que tiveram +tres filhos, e que o principe D. Pedro não queria saber de mais nada senão da +sua loura Ignez.</p> + +<p>D. Affonso IV não viu isso com bons olhos. Sabem como elle era. Vivia só +para a sua mulher, queria tudo em boa ordem, e não gostava d'essas fraquezas. +Os fidalgos tambem não gostavam, mas esses por outras rasões. Tinha D. Ignez +muita parentella, e diziam comsigo que, apenas D. Affonso IV fechasse os olhos, +eram os Castros que davam as cartas em Portugal. Começaram a ferver as +intrigas, e chegaram a aconselhar o rei que, visto que não havia forças humanas +que arrancassem D. Pedro á sua Ignez, o melhor era darem cabo d'ella. D. +Affonso IV torceu o nariz, mas lá por dentro estava em braza. Ora, imaginem +vocês! D. Affonso, no principio da sua vida, tivera os maiores desgostos por +causa dos bastardos de seu pae. Tambem o tinham feito de fel e vinagre os +amores de seu genro com D. Leonor de Gusman. Morria pelo neto, um rapazinho +bonito como a aurora, que tinha de ser depois D. Fernando o Formoso. Lembrou-se +das amarguras que viriam a causar ao rapazito os filhos da amante<span +class="pn"><a name="pg_65">{65}</a></span> querida, que talvez até lhe +roubassem a corôa. Subiu-lhe a mostarda ao nariz com a teima do filho, e deu +ordem aos seus tres conselheiros, Alvaro Gonçalves, Diogo Lopes Pacheco e Pedro +Coelho para que o livrassem de D. Ignez. Ahi vão todos até Coimbra, onde estava +muito socegada a triste da rapariga. Ella, apenas suspeitou do caso, veiu com +os filhos lançar-se aos pés do rei. O pobre D. Affonso enterneceu-se, mas os +conselheiros é que viram o caso mal parado. «Se elle perdôa, disseram comsigo, +nós é que pagamos as favas.» Não esperaram que D. Affonso resolvesse as cousas +de outro modo. Foram-se á pequena, e, emquanto o diabo esfrega um olho, +ferraram com ella no outro mundo!</p> + +<p>—Ai que malvados! bradaram todos.</p> + +<p>—Isso eram, tornou o João da Agualva. Sim! que eu não desculpo D. Pedro, +nem a desculpo a ella. Se uma mulher, só porque gosta de um homem, não está lá +com mais ceremonias e passa a viver com elle, sem a benção do padre, aonde irá +isto parar? mas tambem matal-a sem mais nem menos, matal-a no meio dos seus +filhos, matar uma pobre menina, que não fazia senão chorar, ah! só uns malvados +eram capazes de fazer similhante cousa. Por isso tambem, vêem vocês? D. Affonso +foi um bom rei, um homem de bons costumes, um valente, tudo quanto quizerem, +mas a final de contas perguntem ahi a um pequeno:—Quem era D, Affonso IV?<span +class="pn"><a name="pg_66">{66}</a></span> Cuidam que elle que lhes responde: +Era um bom rei, isto, aquillo e aquell'outro. Não, senhores, diz logo: Foi o +rei que matou Ignez de Castro. E como assassino é que a gente o conhece, e no +seu manto real não se vê o sangue das batalhas, vê-se mas é o sangue de Ignez! +E esta? Se a não matassem, o que dizia a historia? Foi a amante de um rei. +Olhem que gloria! E assim? Todos choram por ella, como a tia Margarida, que +está ali a limpar os olhos com a ponta do seu avental.</p> + +<p>—E o que fez D. Pedro? perguntou o Manuel da Idanha.</p> + +<p>—O que fez D. Pedro? Ah! com os diabos! Imaginem! Elle ainda tinha peior +genio que o pae. Apenas soube do que succedera, aquillo parecia um leão ferido. +Saltou logo para o campo em som de guerra, e D. Affonso pagou o que fizera ao +pae, porque teve tambem o filho revoltado contra si. Correu muito sangue por +esse reino, até que emfim se fez a paz, mas D. Affonso IV pouco tempo +sobreviveu, morrendo em 1359, dois annos depois da morte de Ignez.</p> + +<p>—Subio ao throno D. Pedro, não é verdade? perguntou com muito interesse o +Manuel da Idanha.</p> + +<p>—É verdade que sim, e, meus amigos, então é que se viu o amor lá de dentro +que elle tinha á sua Ignez. Apenas subio ao throno, os assassinos da<span +class="pn"><a name="pg_67">{67}</a></span> Castro safaram-se para Hespanha, mas +D. Pedro lá fez o seu negocio com o rei de Castella, de fórma que apanhou os +criminosos, menos um, Diogo Lopes, que conseguiu fugir. Assim que os teve em +seu poder, fez-lhes torturas. A um mandou arrancar o coração pelo peito e a +outro pelas costas.</p> + +<p>—Credo! exclamou a tia Margarida.</p> + +<p>—Por isso lhe chamavam D. Pedro o Cruel, assim como tambem lhe deram o nome +de D. Pedro o Justiceiro. Justiça fez elle, porque bradava aos céus a morte de +D. Jgnez, mas uma crueldade assim é de se porem a uma pessoa os cabellos em pé! +Que mais querem? D. Pedro parece que não pensava n'outra cousa senão na sua +Ignez, elle trasladou-a, com um estadão nunca visto, de Coimbra para Alcobaça, +onde lhe mandara fazer um tumulo que era mesmo uma lindeza. Elle declarou que +tinha casado com ella, e até se diz que a sentou, depois de morta, no throno, e +mandou que todos lhe beijassem a mão. Mas isso parece-me patranha, ainda que D. +Pedro era capaz d'essas extravagancias e de muitas mais. Porque effectivamente, +meus amigos, parece que elle tinha endoidecido com a morte de D. Ignez. Tinha +assim de repente umas furias que era livrar quem estivesse diante. Era +justiceiro, é verdade, mas fazia justiça á doida e á bruta. Outras vezes +entrava por essa Lisboa dentro a dançar, muito contente da sua vida. Governava +bem, não ha<span class="pn"><a name="pg_68">{68}</a></span> duvida, punia pelo +povo, abaixava a prôa aos bispos, conservava o reino em paz, e juntava bom +dinheiro nos cofres para uma occasião de apuros, mas era ao mesmo tempo umas +mãos rotas com os fidalgos, que tornaram a fazer-se finos, como se viu depois. +</p> + +<p>Foi em 1367 que D. Pedro morreu, e logo subiu ao throno D. Fernando, a quem +chamavam o Formoso, de bonito que era. Lá que elle tinha telha, isso é que não +padece duvida, porque nunca se viu uma ventoinha assim. Aquillo era mesmo um +gallo de torre de igreja. Primeiro deu-lhe na tonta o querer ser rei de +Castella, de mais a mais não tendo geito nenhum para a guerra, e não gostando +de batalhas. D'ahi, o que resultou? Gastou o que tinha, levou pasada de crear +bicho, e teve de fazer as pazes. Mas vejam vocês que cabecinha! Quando fez +guerra a Castella, alliou-se com o Aragão, mandou-lhe para lá bom dinheiro, e +prometteu casar com a filha do rei, que se chamava D. Leonor. Faz as pazes com +o de Castella, e, sem se lembrar já do primeiro casamento, promette casar com a +filha do rei castelhano, que tambem se chamava Leonor. O de Aragão não fez +caso, metteu o dinheiro portuguez, que lá tinha, nas algibeiras, e nunca mais +deu contas. Mas o peor não é isso, o peor é que D. Fernando tambem não casou +com D. Leonor de Castella, porque n'este meio tempo namorou-se de uma dama +do<span class="pn"><a name="pg_69">{69}</a></span> paço, chamada D. Leonor +Telles, e desposou-a! Ao menos n'uma cousa era elle constante, é que não saía +das Leonores.</p> + +<p>Esta Leonor Telles foi o que se chama uma mulher de truz, bonita como as que +o são, manhosa como a serpente, e dando, como a nossa mãe Eva, o cavaquinho +pelo fructo prohibido. Quando casou com D. Fernando já era casada com um D. +João Lourenço da Cunha, mas lembrou-se á ultima hora de que ainda eram +parentes, e o rei arranjou do papa que desfizesse o casamento. João Lourenço da +Cunha deu graças ao céu por se ver livre da mulher que estava para lh'a pregar +mesmo na menina do olho, e D. Fernando levou D. Leonor Telles para casa. Mas o +povo é que não esteve pelos autos e gritou e berrou e fez tumulto, tanto que +el-rei safou-se de Lisboa. Houve mosquitos por cordas por esse reino todo, e a +final acabou tudo em paz. D. Leonor ficou sendo rainha, os de Lisboa apanharam +para o seu tabaco e D. Fernando não tardou a levar a paga.</p> + +<p>O rei de Castella achou que D. Fernando o tratara com tal ou qual +sem-ceremonia, e quiz-lhe dar uma lição de bem viver. Veio a Portugal, chegou a +Lisboa, entrou por ahi dentro, fez um estrago de seiscentos demonios, e dava +cabo da capital se D. Fernando lhe não vem pedir pazes, que, já se vê, custaram +caras. Aqui ficámos finalmente em socego,<span class="pn"><a +name="pg_70">{70}</a></span> e então D. Fernando parecia outro homem. Sabia +governar aquelle rapazote, quando as mulheres lhe não faziam andar a cabeça á +roda, ou quando se não lembrava de ter outros reinos. Era economico e +arranjado. Sabia pôr as cousas no seu logar. Foi elle que cercou Lisboa de +fortificações, que depois não serviram de pouco ao seu successor.</p> + +<p>Mas, coitado, acertára mal, em todos os sentidos, com a tal D. Leonor +Telles, que era mesmo o demonio em pessoa; quando se enfastiou d'elle, tomou +amores com um gallego que vivia em Portugal, chamado conde Andeiro. El-rei, +entretanto, metteu-se outra vez em guerras com Castella, e pediu auxilio aos +inglezes. Oh! rapazes, que tristes tempos foram aquelles! A vida do paço era um +desaforo. Estava ali aquella mulher, aquella... não sei que diga, a pôr na +cabeça a corôa da rainha Santa Isabel, a corôa que não podéra pôr nos seus +cabellos louros a pobre Ignez de Castro, que, apesar de todos os pezares, era +mil vezes mais capaz do que essa rainha de contrabando, que andou de um para +outro, sem vergonha de qualidade nenhuma! E ainda por cima era malvada! +vingativa! e para ella a vida de um homem valia tanto... como... a honra do +marido, que é o mais que se póde dizer!</p> + +<p>O povo desgraçado, porque tudo se juntava. As guerras com Castella sempre +infelizes! os inglezes,<span class="pn"><a name="pg_71">{71}</a></span> como +sempre, apesar de amigos, muito peores do que se fossem inimigos. Os fidalgos +de Castella, que tinham tomado o partido de D. Fernando, tratados aqui á +grande! e ainda por cima D. Fernando sem ter filhos, e com a filha unica já +casada com D. João I de Castella. D. Fernando, apesar da sua cegueira, já ía +percebendo as cousas, e tinha lá por dentro um desgosto que o ralava. Tambem em +1383, tendo apenas trinta e oito annos de idade, esticou a canella, depois de +um reinado que podia ter sido muito proveitoso, e que assim foi uma desgraça +para todos. E eu tambem me vou chegando para a cama, não sem lhes dizer que +houvera mudança completa no modo de viver da nossa gente n'estes ultimos +reinados. Os fidalgos tinham levado para baixo, e estavam já em grande parte, +por assim dizer, ás sopas dos reis. Os concelhos do povo tinham-se feito +fortes, e batiam o pé á fidalguia, e ao clero, principalmente, nas côrtes, em +que entravam. O resultado de tudo isso é o que vocês hão de ver de hoje a oito +dias.<span class="pn"><a name="pg_72">{72}</a><br><a +name="pg_73">{73}</a></span></p> + + + +<h1>QUINTO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">Interregno.—Regencia de Leonor Telles.—Morte do conde +Andeiro.—O cerco de Lisboa.—Nuno Alvares Pereira e João das Regras.—As +côrtes de Coimbra.—D. João I.—A batalha de Aljubarrota.—Os filhos de D. João +I.—Tomada de Ceuta.—Os descobrimentos.—D. Duarte.—Expedição de +Tanger.—Menoridade de D. Affonso V.—O infante D. Pedro.—Batalha de +Alfarrobeira.—Tomada das praças africanas.—Guerras com Hespanha.—Batalha de +Toro.—Ida de D. Affonso V a França.—Continuação dos descobrimentos.</p> + +<p> </p> + +<p>—Meus amigos, disse o João da Agualva no outro domingo, o que eu agora vou +contar ha de parecer assim a vocês grande patranha, e a todos pareceria se não +houvesse tantas provas da verdade. É caso de uma pessoa ficar pasmada ver o que +fez este paiz só, ao canto do mundo, pequeno como é. Oiçam, pois, rapazes, com +attenção. Apenas morreu el-rei D. Fernando, tratou logo D. Leonor Telles de +fazer proclamar rainha de Portugal a sua filha D. Beatriz, que era uma +pequenota casada com o rei de Castella D. João I, e ao mesmo tempo fez-se +regente. O povo, que não queria ser castelhano, ou hespanhol como hoje +diriamos, nem que o matassem, começou a levantar-se por toda a parte. Mas<span +class="pn"><a name="pg_74">{74}</a></span> o que faltava era um chefe. Os +filhos de D. Ignez de Castro andavam fugidos por fóra de Portugal, um por isto, +outro por aquillo, mas quem estava em Lisboa era um rapaz muito sympathico, +filho bastardo de el-rei D. Pedro, que este fizera mestre de Aviz, e a quem D. +Leonor Telles sempre tivera muito odio. A elle se dirigiram. O mestre vio que +não havia remedio senão fazer o que o povo queria. Toma logo a sua resolução, +vae ao paço e mata elle mesmo o conde Andeiro, põe-se á frente do povo de +Lisboa, põe no meio da rua D. Leonor Telles, e proclama-se <em>defensor do +reino</em>. O povo toma todo, sem excepção, o seu partido, e por todas as +provincias; mas uma grande parte dos fidalgos foram para o rei de Castella. +Entre os que ficaram figurava um rapaz sympathico tambem, valente como as +armas, leal como a sua espada, amigo intimo e dedicado do mestre de Aviz, Nuno +Alvares Pereira.</p> + +<p>Sabedor do que se passava, desce a Portugal o rei de Castella com um +exercito poderoso; mas pára deante de Lisboa já fortificada. Os lisboetas, +commandados pelo mestre de Aviz, defenderam-se como homens, e o rei de Castella +teve de se pôr na pireza; entretanto Nuno Alvares Pereira, que estava no +Alemtejo, ganhava a batalha dos Atoleiros, e começava a estabelecer um systema +de guerra que havia de dar muito de si. Como os concelhos estavam todos com o +mestre de Aviz, a força do exercito<span class="pn"><a +name="pg_75">{75}</a></span> era principalmente infanteria. Pois Nuno Alvares +Pereira aproveitou isso para ensinar os nossos a combaterem a pé. Formava uma +especie de quadrado, ou como é que se chama, com os seus soldados, quadrado +onde a cavallaria fidalga vinha sempre despedaçar-se.</p> + +<p>—Ah! se elles calavam bayoneta, observou o Francisco Artilheiro, não +entrava lá para dentro nem um cavallaria só que fosse.</p> + +<p>—Não calavam bayoneta, respondeu o João da Agualva, porque era cousa que +então não havia, mas fincavam as lanças no chão, e fossem lá entrar com elles. +</p> + +<p>Acabado o cerco de Lisboa, reuniram-se os dois amigos, e foram conquistar +todas as terras de Portugal em que os fidalgos tinham levantado a bandeira de +Castella. Ao mesmo tempo reuniram-se côrtes em Coimbra, para se escolher um +rei. Ahi teve D. João I outro amigo, advogado de mão cheia, fino como um coral, +chamado João das Regras, que foi quem lhe fez ganhar a eleição. Assim, o mestre +de Aviz tinha a felicidade de ter dois amigos particulares que o serviam +excellentemente, e cada um segundo o seu officio. Para cousas de penna e +parlenda João das Regras, para batalhas e mais bordoada correspondente Nuno +Alvares Pereira.</p> + +<p>—Mas então as côrtes é que escolheram quem havia de ser rei? perguntou o +Manuel da Idanha.<span class="pn"><a name="pg_76">{76}</a></span></p> + +<p>—Tal e qual.</p> + +<p>—E eram côrtes como as de agora? acrescentou o Bartholomeu.</p> + +<p>—Não, senhor, havia os tres braços, como então se dizia, clero, nobreza e +povo. Os bispos e os conventos mandavam os seus escolhidos, os fidalgos +mandavam os seus e o povo tambem, quer dizer cada concelho mandava o seu +procurador. Antes de D. Affonso III, íam só os padres e os fidalgos, depois é +que o povo tambem começou a figurar n'essas festas; mas n'estas côrtes, que se +reuniram em Coimbra, como muitos fidalgos estavam mettidos com o rei de +Castella, póde-se dizer que foi o povo quem escolheu, e que o mestre de Aviz, +isto é, D. João I, foi verdadeiramente o eleito do povo.</p> + +<p>—E ahi lhe valeu o João das Regras? acudiu o Manoel da Idanha.</p> + +<p>—Isso mesmo, porque lá para fallar não havia outro como elle. Mas d'ahi a +pouco tornou-se necessario fallar outra lingua, a lingua das espadas, e n'essa, +quem lia de cadeira era Nuno Alvares, que o novo rei fez logo condestavel. Os +castelhanos, que tinham ido de cara á banda, voltaram á carga, e d'essa vez com +um exercito immenso, porque o D. João I de lá tinha resolvido acabar de todo +com o D. João I de cá. Antes de vir o rei com toda a sua fidalguia, já um corpo +hespanhol tinha entrado pela Beira dentro, mas em Trancoso levou uma +tareia<span class="pn"><a name="pg_77">{77}</a></span> de primeira ordem. Não +se emendaram e disseram comsigo: Agora é que vão ser ellas. A fallar a verdade +tinham rasão. D. João I de Portugal teria, quando muito, uns oito ou nove mil +homens, D. João I de Castella não tinha menos de trinta mil, e alem d'isso +trazia comsigo peças de artilheria que era a primeira vez que se viam em +Portugal. Encontraram-se os dois exercitos em Aljubarrota, que fica entre +Alcobaça e Leiria, a 14 de agosto de 1385, grande dia, rapazes! Eu não sei que +diabo tinham os nossos, mas parece que os animava um esforço sobrenatural. E +elles não eram nenhuns fracalhões, os castelhanos, era tudo gente valente e +destemida, mas os nossos estavam todos resolvidos a morrer ali mesmo. Depois +tinham cabos de guerra que sabiam da poda, emquanto os de lá eram valentes, e +mais nada. De lá, eram tudo fidalgos muito bem montados, com as suas espadas a +luzir ao sol; de cá, gente do povo, soldados de pé, mas que todos queriam ser +portuguezes com o seu rei que elles tinham feito, e que tambem com elles queria +vencer ou morrer. E por isso Nuno Alvares dizia: Rapaziada, pé terra! e zás! +lanças no chão, e venha para cá a fidalguia castelhana, mais os traidores +portuguezes que se uniram ao estrangeiro. E não é dizer que não houvesse +fidalgos tambem de cá. Oh! se os havia, e dos bons e dos melhores, porque eram +todos os que tinham preferido morrer com<span class="pn"><a +name="pg_78">{78}</a></span> um rei portuguez a receber do estrangeiro honras e +castellos, gente briosa e valente, e aventurosa, que combatia pelo seu rei, e +pela sua dama, e pela sua honra e pela sua patria. Tambem, não lhes digo nada, +nunca levaram os hespanhoes tão formidavel refrega. Por muito tempo lhes ficou +lembrada, e o rei, que fugio a toda a brida para Santarem e de Santarem para a +sua terra, não se podia consolar de similhante desastre. D. João I mandou +fazer, no sitio da batalha, uma igreja e um convento maravilhoso, a igreja e o +convento da Batalha, para agradecer a Deus a sua victoria,—e rasão tinha para +isso, porque foi Deus decerto quem deu aos portuguezes o esforço e a galhardia +que então mostraram, que, eu, meus amigos, não sou dos que acreditam que Deus +se mette n'estes barulhos dos homens, mas quando um povo combate pela sua +terra, que é como quem diz quando um filho combate pela sua mãe, então, meus +amigos, ha uma cousa cá dentro em nós, que vem a ser a consciencia a bradar-nos +que Deus, que é a justiça e a bondade, ha de querer a victoria do que é justo e +do que é bom.</p> + +<p>—E a padeira de Aljubarrota, sr. João da Agualva? perguntou o Francisco +Artilheiro.</p> + +<p>—Deixemo-nos lá de padeiras. Eu não sou muito amigo de mulheres que se +mettem n'estas danças. A padeira era melhor que amassasse pão. Se é +verdade<span class="pn"><a name="pg_79">{79}</a></span> o que se diz, quando os +castelhanos já íam de rota batida, a padeira foi-lhes no encalço e deu cabo de +sete com a pá do forno. Olhem que grande façanha: matar quem vae fugindo! +Aquillo era mulher de faca e calhau, e eu torço sempre o nariz a essa gentinha. +Vamos adiante. A batalha de Aljubarrota decidio a sorte de Portugal. Ainda +durou a guerra muito tempo, ainda o condestavel deu nova tareia nos hespanhoes +em Valverde, mas a verdade é que estava tudo acabado. D. João I governou então +com socego, casou com uma senhora ingleza muito virtuosa e muito boa, D. +Philippa de Lencastre, teve muitos filhos que educou muito bem, e que foram +todos homens de saber e alguns d'elles grandes homens, chamou muitas vezes as +côrtes para ouvir o que ellas tinham que lhe dizer ácerca dos negocios do +Estado, e governou tão bem, que se lhe chama, com toda a justiça, o rei da +<em>Boa Memoria</em>. Já em idade adiantada, trinta annos depois da batalha de +Aljubarrota, sentiu D. João I um appetite de tentar alguma empreza grande. Quem +o metteu n'isso foram os filhos, tudo rapazes decididos que andavam mortos por +se metter n'alguma cousa que lhes désse gloria. O que haviam de fazer? Foram-se +aos mouros. Passaram o estreito, e tomaram Ceuta que fica ali mesmo defronte de +Gibraltar. Vêem vocês? Aquillo era uma raça que não podia estar quieta. +Emquanto jogavam as cristas com<span class="pn"><a name="pg_80">{80}</a></span> +os visinhos, ía tudo bem, mas depois? Os aragonezes viravam-se para Italia, os +castelhanos lá tinham os mouros granadís, nós o que tinhamos? Os mouros de +Marrocos e as ondas do Oceano. Pois foram as ondas e os mouros que pagaram as +favas. D. João I tomou Ceuta, e D. Henrique, seu filho, deliberou tomar o +desconhecido.</p> + +<p>—Ó sr. João, exclamou o Francisco Artilheiro, devo confessar que lá isso é +que eu não percebo muito bem.</p> + +<p>—Pois eu te explico, rapaz. Julgava-se d'antes que do outro lado do mar não +havia cousa nenhuma, ou antes que as ondas lá para longe eram um verdadeiro +inferno ou um paraizo tambem, porque uns diziam que tudo para alem eram ilhas +de santos e jardins do céu, e outros que eram ilhas do diabo e terras de +maldição; que havia umas estatuas encantadas que não deixavam passar ninguem, e +um mar de pez que engolia os navios. Ora vocês hão de saber que póde uma pessoa +ser muito valente, e ter medo de almas do outro mundo, e de feitiços e do +diabo. Ali está o Francisco Artilheiro, que, quando foi na expedição á Africa, +se atirou ao Bonga como gato a bofes, que é capaz de varrer uma feira, e que, +se lhe disserem que vá de noite ao palacio do marquez, lá ao corredor onde +dizem que falla a voz do Roque...</p> + +<p>—Tarrenego! exclamou o Francisco Artilheiro,<span class="pn"><a +name="pg_81">{81}</a></span> um homem é para um homem, mas lá uma alma do outro +mundo!...</p> + +<p>—Ora ahi está! era o que acontecia aos soldados de D. João I. Com mouros e +castelhanos tudo o que quizessem, mas com as aventesmas do mar... arreda! Pois +imaginem vocês se D. Henrique não fez um milagre conseguindo que os marinheiros +do Algarve, porque elle, desde que poz o fito em querer saber o que o mar +escondia, foi-se estabelecer em Sagres, mesmo na ponta do cabo de S. Vicente, +conseguindo que os marinheiros do Algarve se mettessem ás ondas, sem medo de +phantasmas, nem de avejões. E foram aquelles valentes, que fizeram tão grande +no mundo este paiz tão pequeno, e partiram por esses mares fóra, sem saber o +que por lá havia, e sempre a tremer da perdição da vida e da perdição da alma, +e foram, e encontraram a Madeira e encontraram os Açores, e Gil Eanes dobrou o +cabo Bojador, que era onde diziam que estavam as taes estatuas encantadas, e, +como não encontrou estatuas nenhumas, lá foi tudo atraz d'elle, e, de repente, +Portugal poude desenrolar diante do mundo um outro mundo ignorado, a costa da +Africa toda, com os seus grandes rios, os seus bosques verdes, o seu povo de +pretos, como eu vi, n'um theatro de Lisboa, desenrolar-se diante da platéa +pasmada um panno pintado com cidades e quintas e ilhas e rios, que era de uma +pessoa ficar de boca aberta. Ah! meus<span class="pn"><a +name="pg_82">{82}</a></span> amigos, podem agora não fazer caso de nós, e +podemos nós tambem dizer mal de nós mesmos, mas um povo que assim se atreve a +arcar com o que mette medo aos mais valentes, e abre aos outros as portas de um +mundo maravilhoso, é um grande povo, digam lá o que disserem.</p> + +<p>—E D. João I é que fez tudo isso? perguntou o Manuel da Idanha.</p> + +<p>—Não foi elle, mas foi o filho, D. Henrique, que era um sabio, e que a seu +pae deveu a educação que recebera; e o grande rei, que salvára Portugal do +estrangeiro, teve a gloria, antes de morrer em 1433, de ver começada essa obra +que havia de tornar para sempre grande no mundo o seu nome e o nome de +Portugal.</p> + +<p>Succedeu-lhe seu filho, D. Duarte, a quem chamaram o <em>Eloquente</em>, +pelo bem que fallava e que escrevia, porque tambem fazia livros como o rei D. +Diniz, e livros muito bem feitos. Coitado! não merecia a sorte que teve. Os +irmãos, D. Henrique e D. Fernando, quizeram continuar a obra do pae, e foram +tomar Tanger. Não o conseguiram, perderam muita gente, e para se salvar o +exercito das garras dos mouros, teve de ficar preso na Moirama o infante D. +Fernando. Para o livrar era necessario entregar Ceuta, mas o infante D. +Fernando, que bem mereceu o nome de <em>Santo</em> que lhe pozeram, não quiz +nunca ouvir fallar em similhante cousa, e preferiu<span class="pn"><a +name="pg_83">{83}</a></span> morrer atormentado nas masmorras de Fez a +consentir que dessem por elle aos mouros uma terra, que tanto sangue nos +custára. Tudo isto foram desgostos grandes para o pobre D. Duarte, que morreu, +depois de cinco annos de reinado, em 1438, da peste que então assolou o reino, +porque não houve desgraça que n'esse tempo não acontecesse.</p> + +<p>Succedeu-lhe um filho pequeno que tinha, e que foi D. Affonso V, e, como D. +Duarte era muito amigo da mulher, foi a ella que nomeou regente. Ora, na +verdade, tendo o pequeno uns poucos de tios que seriam todos grandes reis, como +D. Pedro, D. Henrique e mesmo D. João, dar a regencia a uma mulher, e de mais a +mais hespanhola, era tolice graúda, por isso o povo não gostou, e as côrtes +convidaram D. Pedro a tomar conta da regencia. A rainha, que era levada da +bréca, e que nunca podéra ver os cunhados, deu pulo de corça com esta +resolução, a que foi obrigada a ceder, e, com o partido que tinha, agitou o +reino de tal maneira, que D. Pedro não teve remedio senão tomar providencias, e +uma d'ellas foi tirar o filho á rainha, porque o pequeno estava sendo nas mãos +d'ella um instrumento de revolta. A final, a rainha foi para Hespanha, mas eu +estou convencido, rapazes, que o odio que D. Affonso V sempre teve ao tio veio +d'ahi. Ora imaginem vocês! D. Affonso era uma creança n'esse tempo, agarrado á +mãe como são todas as creanças; não percebia cousa nenhuma<span class="pn"><a +name="pg_84">{84}</a></span> de politica nem de meia politica, viu-se arrancado +dos braços da sua mamãsinha, que se agarrava a elle a chorar, e arrancado por +quem? Por seu tio. Depois, quando fosse maior, podia reconhecer que o tio era o +que se podia chamar um grande homem, que lhe tinha governado o reino como +ninguem seria capaz de o governar, que era tão pouco amigo de vaidades, que nem +quizera que lhe fizessem uma estatua, mas o rancor da creança nunca se foi +embora. Pois o tio, apenas elle chegou á maioridade, logo lhe entregou o +governo, sem a mais pequena demora, e foi viver para Coimbra com o maior +socego. Apesar de tudo isso, e apesar de ser muito amigo da mulher que era +filha de D. Pedro, o rei tal odio tinha ao tio e ao sogro que deu ouvidos a +todas as intrigas dos inimigos d'elle, e principalmente ás do primeiro duque de +Bragança, seu tio tambem, filho bastardo de D. João I; chegou o duque a +levantar tropas para ir contra o pobre D. Pedro, que, espicaçado e ralado por +todas as fórmas, teve de tratar da sua defeza. Emquanto o duque de Bragança +levantava tropas por sua conta e risco, achava o rei isso muito bem feito; +apenas o infante D. Pedro juntou alguns soldados para não atravessar esse reino +ao desamparo, logo D. Affonso V entendeu que era caso de rebeldia e traição, e +marchou contra elle. Na Alfarrobeira, ali ao pé de Alverca, se encontraram as +tropas de um e as tropas<span class="pn"><a name="pg_85">{85}</a></span> do +outro. Não houve batalha, mas travaram-se de rasões os soldados, e, quando mal +se precatavam, achou-se tudo embrulhado na bulha, e lá morreu o pobre do +infante D. Pedro, tão sabio, tão bom, tão justiceiro.</p> + +<p>Quem ouvir isto, ha de dizer que D. Affonso V era um malvado, pois não era; +cabeça de vento sim, nunca houve outra igual! Sympathico e bondoso, um +mãos-rotas, principalmente para os fidalgos que apanhavam d'elle quanto +queriam, enthusiasmava-se todo por cousas que já não importavam a ninguem, e +quiz até fazer uma cruzada contra os turcos. Os outros principes christãos não +estiveram pelos autos, e vae elle então voltou-se contra os mouros da Africa, e +é certo que juntou a Ceuta as praças de Tanger, Arzilla e Alcacer Ceguer. Por +isso lhe chamaram o <em>Africano</em>. Emfim, bom seria que nunca tivesse +pensado n'outra cousa, mas deu-lhe na veneta querer tambem ser rei de Hespanha, +e, quando lá houve grande bulha para se saber quem havia de succeder ao rei que +morrera, se havia de ser D. Isabel que era irmã, se D. Joanna que era filha, o +nosso D. Affonso, apezar de já não ser novo, casou com esta, que vinha a ser +tambem sua sobrinha, ao passo que D. Fernando de Aragão casava com a outra. +D'ahi veio uma guerra levada dos demonios; mas, a final, D. Affonso deu a +batalha de Toro, que ficou indecisa, mas foi o mesmo que se<span class="pn"><a +name="pg_86">{86}</a></span> a perdesse, porque não poude continuar a guerra. De +que se ha de lembrar então o nosso D. Affonso V? De ir em pessoa pedir soccorro +ao rei Luiz XI de França, que era o mais manhoso de todos os principes, e que +não fazia nada sem interesse. Luiz XI andou a cassoar com elle, até que D. +Affonso V mandou dizer ao filho, que ficára a governar o reino, que subisse ao +throno, porque elle abdicava, e ía para a Terra Santa; mas depois muda de +tenções, e, quando já ninguem o esperava, apparece em Portugal. O filho é que +não quiz saber de mais nada; entregou-lhe logo a corôa, que D. Affonso +acceitou, morrendo quatro annos depois, em 1431.</p> + +<p>—Ó sr. João, interrompeu o Bartholomeu, e essa historia de descobrir terras +novas tinha parado?</p> + +<p>—Qual tinha parado, homem! Emquanto D. Henrique viveu, e só expirou em +1460, quando já D. Affonso V era homem, não pensou n'outra cousa; todos os +annos se ía descobrindo mais alguma porção da Africa, e já não havia quem +acreditasse em carapetões de estatuas. Os portuguezes, o que faziam era sempre +seguir para baixo, até ver se topavam com a India, ou então se davam com um rei +que diziam que era christão, e a quem chamavam o Prestes João das Indias.</p> + +<p>—E quem era esse rei? perguntou o Manuel.</p> + +<p>—Eu depois lhes digo, rapazes, agora não me fallem á mão. O que é certo é +que estava já descoberta<span class="pn"><a name="pg_87">{87}</a></span> uma +boa porção da Africa, e já por lá se fazia muito bom negocio, tanto que D. +Affonso V, que andava embrulhado com outras cousas, e que não podia cuidar dos +descobrimentos como o tio, arrendou o commercio da costa da Mina a um tal +Fernão Gomes, com a condição d'elle continuar a descobrir terras. Felizmente, +quem ía subir ao throno era um rei de outra laia, que tinha lume no olho, e que +havia de levar as cousas pelo rumo que devia de ser, para gloria do nosso paiz. +</p> + +<p>Foi D. João II esse rei, e com rasão lhe chamaram o principe perfeito, +porque não houve nenhum que entendesse tão bem do seu officio; mas, antes de +fallar n'elle, meus amigos, deixem-me vocês explicar-lhes o que é que se tinha +passado no tempo d'esses tres primeiros reis da dynastia que se chamou de Aviz. +</p> + +<p>Viram vocês como os reis se encostaram ao povo para dar cabo da nobreza e do +clero, e como lhe deram força para que os fidalgos e padres se não fizessem +finos. Por isso tambem se póde dizer que foi o povo quem fez rei D. João I, e +este nunca se esqueceu d'isso. Comtudo, padres e fidalgos, continuavam a ser +muito poderosos, e, se D. Duarte, com a lei chamada mental, e o infante D. +Pedro lhes tinham dado para baixo, D. Affonso V quasi que desfizera tudo, +porque com elle não havia parente pobre, dava aos fidalgos o que elles queriam, +e com<span class="pn"><a name="pg_88">{88}</a></span> rasão dizia o filho que +seu pae o deixára rei das estradas de Portugal, o que, valha a verdade, não +devia ser um grande reino. Ora agora acontecia tambem o seguinte: é que o povo, +nas côrtes, estava sendo mais um servo do rei do que outra cousa. Já não podia +dizer aos reis: «Toma lá, dá cá.» Já não era cada concelho que mandava um +procurador, juntavam-se uns poucos de procuradores para mandar um deputado a +que chamavam definidor, e o rei sempre os podia ter mais na sua mão do que á +turbamulta dos antigos procuradores. Alem d'isso, os doutores, o que aprendiam +nas escolas eram as leis de Roma, o direito romano, e ahi o que se dizia era +que o rei podia fazer o que quizesse. O que resultava? Resultava que o clero e +a nobreza haviam de levar para baixo, mas que o povo depois... esperasse pela +pancada. É o que vocês saberão para o domingo que vem, porque a tia Margarida +está a caír com somno, e eu não quero que digam de mim, como de alguns +prégadores, que sou bom para quem anda com falta de dormir.<span class="pn"><a +name="pg_89">{89}</a></span></p> + + + +<h1>SEXTO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">D. João II.—As côrtes de Évora.—Morte do duque de +Bragança.—Morte do duque de Vizeu.—Continuação dos descobrimentos.—O cabo da +Boa Esperança.—Christovão Colombo.—Entrada dos judeus.—Morte do principe D. +Affonso.—D. Manuel.—Descobrimento da India e do Brazil.—Os conquistadores da +India.—Fernão de Magalhães.—D. João III.—A inquisição e os +jesuitas.—Decadencia do nosso dominio na India.—D. Sebastião.—A batalha de +Alcacer-Kibir.—D. Henrique, o cardeal-rei.—A successão do throno.—D. +Antonio, prior do Crato.—Batalha de Alcantara.—Perda da +independencia:—Causas da decadencia de Portugal.</p> + +<p> </p> + +<p>—Estou morto por saber, porque é que chamaram a D. João II o principe +perfeito, principiou o Manuel da Idanha no domingo immediato, quando estiveram +todos sentados á roda da lareira, porque, emfim, vocemecê já nos fallou n'uns +poucos de reis de quem se não póde dizer mal: D. Diniz, por exemplo, D. João I, +etc.</p> + +<p>—Eu te digo, rapaz, é porque não houve nenhum que percebesse tão bem o seu +tempo, nem soubesse tão bem como é que se governa. Era homem de cabellinho na +venta, mas só dava cabo de quem lhe fazia transtornar os seus planos, era +valente como os que o são, mas, depois de ser rei, nunca mais foi á guerra. +Calculava tudo, combinava tudo,<span class="pn"><a name="pg_90">{90}</a></span> +e, como quem joga bem a bisca, sabia de cór os trunfos, e o que queria era +marcar bons pontos, désse lá por onde désse. Subiu ao throno, na firme +resolução de acabar com os privilegios da nobreza e do clero. Para isso, como +de costume, serviu-se do povo. Chamou côrtes a Evora, ahi entendeu-se com os +procuradores do povo para elles se queixarem dos fidalgos. Então o rei põe-se +no seu logar, e toca a deitar abaixo privilegios. Se vocês querem ver o que é +berraria! O primeiro que se levantou foi o duque de Bragança, e esse então +metteu-se com os castelhanos. D. João II não esteve com ceremonias, mandou-lhe +cortar a cabeça. O duque de Vizeu, seu proprio primo e cunhado, fez-se tambem +chefe de conspiração. O mesmo rei deu cabo d'elle com uma boa punhalada, e +depois foi tudo raso com o diabo do homem. Prendia uns, desterrava outros, +mandava matar este, confiscava os bens áquelle... um inferno.</p> + +<p>—Então por isso é que era principe perfeito? perguntou a tia Margarida +indignada.</p> + +<p>—Ó mulhersinha, espere lá. Diz o proverbio: cada terra com seu uso, cada +roca com seu fuso. Pois eu digo tambem: cada tempo com os seus costumes. O +tempo d'elle não era como o nosso. Hoje matar um homem é, com rasão, uma cousa +por ahi alem. N'aquelle tempo parecia a todos perfeitamente natural que se +castigassem com a morte, mesmo á<span class="pn"><a +name="pg_91">{91}</a></span> punhalada, todas as conspirações. Ora D. João II +só escapou por milagre a muitas que houve contra elle.</p> + +<p>Mas D. João II não era homem que se assustasse. Estreiara-se em Arzilla, ao +lado de seu pae, e logo mostrára um grande esforço; na refrega de Toro, em +Hespanha, foi elle quem ganhou a batalha pelo seu lado, emquanto o pae a perdia +pelo outro. Nas conspirações, que se faziam contra elle, mostrou sempre uma +coragem por ahi alem, mas tambem não perdoava nenhuma. E tanto fez, tanto fez, +que a final todas as cabeças se abaixaram, e quem ficou governando a valer e +devéras foi elle.</p> + +<p>Eu não lhes digo, rapazes, que approvo todas aquellas crueldades, e que acho +bonito que D. João II matasse sem dó nem piedade até os parentes. Conheço que +era preciso ter cabellos no coração para fazer o que elle fez, mas que querem +vocês? É sina que nunca se fizeram as grandes mudanças politicas sem correr +muito sangue. Dizia aquelle engenheiro francez, que aqui esteve em Bellas na +obra da agua, quando ás vezes se punha a conversar commigo: «João, não se faz +omeleta sem se quebrar ovos.» E dizia bem. Aquillo entre D. João II e a nobreza +era guerra de morte. Atiravam á cabeça; eu bem sei que era mais bonito perdoar. +Mas, meus amigos, perdoar aos seus inimigos só o fez Nosso Senhor Jesus +Christo, e isso bastava para<span class="pn"><a name="pg_92">{92}</a></span> +que todos conhecessem que elle era Deus e não homem.</p> + +<p>Em todo o caso, rapazes, sempre lhes quero confessar que, para gostar +deveras de D. João II, preciso de desviar os olhos d'aquella sangueira toda, e +ver o que elle fez por outro lado. Ah! que rei aquelle, rapazes! Nos +descobrimentos foi um segundo infante D. Henrique, porque não foi só dizer aos +pilotos: «Vão vocês andando por ahi abaixo, e quando toparem a India mandem cá +um recado.» Não, senhores! Agarrou em dois judeus que eram homens de sabença, e +mandou-os por terra ao Egypto, para que fossem do Egypto ver se topavam a India +e se sabiam como é que se podia lá ir ter por mar. Foram estes Pedro da Covilhã +e Affonso de Paiva. Ao mesmo tempo não deixára de mandar navios pela Africa +abaixo. Um sujeito, chamado Bartholomeu Dias, tanto andou, tanto andou sempre +com a terra á esquerda, até que um bello dia, por mais que tocasse á esquerda, +não via senão agua: «Mau, disse elle comsigo, o diabo da costa virou de rumo.» +Vira elle tambem e dá com a terra que ía para cima em vez de ir para baixo como +até ahi. «Eu cheguei ao fim da Africa, disse comsigo o Bartholomeu Dias, eu +passei algum cabo sem dar por isso.» E, já todo contente, queria ir seguindo +para diante a ver onde iria dar comsigo. Mas a marinhagem estava cançada e quiz +por força voltar<span class="pn"><a name="pg_93">{93}</a></span> para traz. Não +houve remedio, e á volta effectivamente deram com o tal cabo que vinha a ser a +ponta da Africa, e apanharam tantos temporaes que Bartholomeu Dias chamou a +esse cabo, cabo Tormentorio; mas, quando chegou a Lisboa e contou a D. João II +o que succedera, este, que logo percebeu que estava dado o grande passo na +descoberta da India, não quiz para tamanha descoberta um nome de mau agouro, e +mudou ao cabo Tormentorio o nome em cabo da Boa Esperança, como quem diz: Agora +sim, agora é que me parece que vamos por estrada direita.</p> + +<p>Ora hão de vocês saber, rapazes, que por esta occasião vivia em Portugal um +sujeito genovez chamado Christovão Colombo, que era homem entendido em cousas +de mar, e que se occupava tambem muito de descobrimentos de terras e tal etc. +Foi até por isso que elle veio para Portugal, porque isto aqui era a forja, +onde, para assim dizer, se fabricavam terras novas, e todos os que se +enthusiasmavam com essas cousas vinham para cá assoprar aos folles. Christovão +Colombo estivera na Madeira, ouvira fallar em signaes de terra para os lados do +pôr do sol, e começára a embirrar que, indo atraz do sol, havia de esbarrar com +a India. Fallou n'isso a D. João II, este consultou os sabios, e os sabios +desataram a rir. Colombo então foi-se embora e começou a offerecer os seus +serviços a quem lhe désse<span class="pn"><a name="pg_94">{94}</a></span> uma +casca de noz; acceitou-os a Hespanha, depois de massar muito o pobre do homem. +Christovão Colombo partiu seguindo sempre para o occidente, e a final deu com +uma terra povoada de selvagens, que vinha a ser nem mais nem menos do que a +America, emfim um mundo inteiro muito maior que a Europa toda. Ora, tudo isso +podia ter vindo para nós, e não nos fazia mal nenhum, se D. João II não cáe na +asneira de não acreditar no Colombo, que todos sabiam que era um homem esperto, +e de lhe não querer dar dois ou tres navios para tentar a sua descoberta, elle +que tinha navios a rodo por esses portos todos!</p> + +<p>—Sim! lá isso! acudiu o Manuel da Idanha coçando na cabeça. Vocemecê diz +que o homem era tão espertalhão, mas essa parece-me de cabo de esquadra!</p> + +<p>—Achas, meu palerma? Diz um proverbio: Quem adivinha vae para a casinha. E +eu já te mostro que outro qualquer, no caso de D. João II, fazia o mesmo. Tu +imaginas que Christovão Colombo chegou ao pé de D. João II e lhe disse: Saiba +Vossa Alteza (que então ainda se não dava magestade aos reis) saiba Vossa +Alteza que ali defronte dos Açores está um paiz muito rico, onde ha muito ouro, +e muita prata e muitos diamantes, e, se Vossa Alteza quizer, eu chego ali n'um +instante e cá lh'o trago? Estás tu muito enganado. O proprio Colombo nem +sabia<span class="pn"><a name="pg_95">{95}</a></span> que havia ali similhante +paiz. Toda a sua mania era que, sendo a terra redonda, e n'isso tinha elle +rasão, indo uma pessoa para o occidente, havia de dar volta e chegar ao +oriente. Mas o que elle não sabia é que a terra era tão grande como lhe saíu; +e, se não lhe apparece a America, o homem via-se grego, e ainda tinha de comer +muito pão antes de arribar, onde elle queria ir, tanto que provavelmente não +levava no porão farinha que lhe chegasse. Ora agora, pensem vocês tambem, +rapazes, no seguinte: Havia um bom par de annos que Portugal andava a teimar em +seguir pela Africa abaixo á procura da India. Teimou, teimou, até que a final +chegou ao fim da Africa, e percebeu que a terra seguia para cima, e ía com toda +a certeza parar á India. E é exactamente quando se consegue o que se procurava +havia tanto tempo, quando se descobre o cabo da Boa Esperança, quando se tem a +certeza de que se encontrou o caminho da India, que vem um sujeito ter com o +rei de Portugal, que está todo alegre com a descoberta, e dizer-lhe: Faça favor +de apagar tudo isso, e de começar outra vez a procurar a India por outro lado. +O rei, é claro, mandou-o pentear macacos. Ora agora confesso tambem que se não +põe assim no meio da rua um homem como Christovão Colombo. Procurar a India +pelo occidente não impedia que se continuasse a procurar pelo caminho que até +ahi se seguira, e nós já tinhamos<span class="pn"><a +name="pg_96">{96}</a></span> topado tanta terra que não esperavamos, que não +era cousa do outro mundo que fossem mais duas caravellas a Deus e á ventura ver +o que o mar dava de si.</p> + +<p>Emfim não se fez isso; os hespanhoes ficaram com a America, e principiaram +ao desafio comnosco n'isso de descobrimentos, tanto que foi necessario que o +papa dividisse entre elles os novos mundos ao meio, dizendo: Para aqui +descobrem os hespanhoes, e para aqui descobrem os portuguezes, o que fazia com +que um rei de França dissesse depois: Ora sempre eu queria ver o artigo do +testamento do pai Adão que deixou a terra aos hespanhoes e aos portuguezes!</p> + +<p>Todos se riram, e o João da Agualva continuou:</p> + +<p>—Muito mais provas de juizo deu el-rei D. João II, e felizes seriamos nós +se os reis que se seguiram fossem como elle. Na Africa, tratou de chamar a si +os pretos, de os mandar baptisar, mas ás boas, e de fazer por ali fortalezas +para se assenhorear do commercio. Na Europa então houve uma cousa que mostra +que elle sabia ser rei. Os soberanos de Hespanha, todos devotos, mandaram pôr +fóra do seu paiz os judeus, que eram, como foram sempre, uma raça trabalhadeira +e esperta, que se enriquecia e ía enriquecendo a terra onde vivia. Mas a rainha +de Hespanha, lá por beaterios tolos, não os quiz consentir no seu reino, e +intimou-lhes mandado de despejo.<span class="pn"><a +name="pg_97">{97}</a></span> Sempre quero que vocês me digam porque? Porque +tinham crucificado Jesus Christo? Mas isso foram uns malandrins de Jerusalem, e +nem os filhos tinham culpa do que os paes fizeram, e até os paes de muitos +d'elles talvez nem em Jerusalem estivessem n'esse tempo. Porque não acreditavam +na religião christã? O peor era para elles. Pois se não se póde salvar quem não +for christão, no outro mundo torceriam a orelha, e não era necessario já n'este +mundo ir-lhes torcendo pescoço. Porque não comiam toucinho? Tanto melhor para +os bons christãos, que sempre ficava mais barata a carne de porco. Mas fossem +lá dizer estas cousas n'aquelle tempo aos reis catholicos! Corria uma pessoa +risco de ir parar a uma fogueira. D. João II riu-se da devoção dos visinhos, +recebeu os judeus na sua terra, e tirou proveito do caso, obrigando-os, em +troca do asylo que lhes dava, a pagar-lhe um bom tributo. Elles estavam com a +corda na garganta, pagaram com lingua de palmo, ainda que isso lhes havia de +custar, porque sempre foram sovinas. Mas, como diz o outro, para judeu, judeu e +meio.</p> + +<p>—Olhe lá, ó sr. João de Agualva, e então quem diz que a inquisição cá em +Portugal queimava os judeus? perguntou o Manuel da Idanha.</p> + +<p>—Lá chegaremos, sr. Manuel da Idanha, lá chegaremos. Não ha só muitas +Marias na terra, ha tambem<span class="pn"><a name="pg_98">{98}</a></span> +muitos Joões, e nós então tivemos seis, cada um do seu feitio.</p> + +<p>Tudo se paga, meus amigos, e um homem póde ser principe perfeito; quando +ultraja a lei de Deus, derramando o sangue de seus irmãos, ha de o pagar com +lagrimas que tambem são sangue ás vezes. Tinha D. João II um filho chamado +Affonso, a quem queria como ás meninas dos seus olhos. Casára com a filha dos +reis de Hespanha, e as festas com que se celebrou o casamento tinham sido das +mais pomposas. Morreu, e morreu de um desastre. Quem pôde imaginar a dôr +d'aquelle pae! Chorou esse homem de ferro, que tantas lagrimas tambem fizera +derramar, chorou lagrimas de sangue, do sangue do seu coração, e, lá nas horas +mortas da noite, quando estivesse sósinho a pensar no filho, havia de ver +muitas vezes os espectros d'aquelles que matára sem ter piedade da orphandade +de seus filhos, como Deus não tivera tambem compaixão da orphandade da sua +alma. Morreu quatro annos depois, em 1495, sem poder deixar a corôa a um filho +seu, porque debalde quizera legitimar um bastardo que tinha, e assim, altos +juizos de Deus! quem lhe havia de succeder, e não é só isso, quem havia de +colher para si a gloria de realisar a conquista da India, que D. João II tão +cuidadosamente preparava? Um irmão d'aquelle duque de Vizeu, que elle +assassinára, D. Manuel, o <em>Afortunado</em>.<span class="pn"><a +name="pg_99">{99}</a></span></p> + +<p>Afortunado ou Venturoso lhe chamou a historia, e com rasão, porque não teve +senão bamburrice, o que não quer dizer que fosse um palerma, e que não tivesse +mesmo bastante tino, mas fazia tanta differença de D. João II como uma +larangeira de um carvalho. Encontrou a papinha feita. Estavam preparados os +navios para a descoberta da India, poz á frente d'elles Vasco da Gama, e em +1497 chegava Vasco da Gama á India, que era o paiz mais rico d'esse tempo. +Mandou atraz d'elle Pedro Alvares Cabral, este chega-se mais para o occidente +do que devia ser, e esbarra com o Brazil em 1500; bom! Põe ambos de parte, que +lá ingrato como aquelle não havia nenhum, e manda para a India uma esquadra, +onde ía Duarte Pacheco, homem que parece mesmo um d'aquelles sujeitos da +antiguidade, que eram meios homens, meios deuses, e de quem se contam muitas +patranhas, que foram excedidas pelas verdades d'este nosso patricio. Querem +vocês saber? Na India havia muitos reis, como ainda hoje ha, apesar que estão +agora todos sujeitos aos inglezes. Vasco da Gama tinha chegado a uma terra +chamada Calicut, onde residiam muitos mouros, que eram quem fazia n'esse tempo +o negocio todo da India. Viram a bolsa em perigo, e não descançaram emquanto +não pozeram ao rei de Calicut de mal com os portuguezes. Palavra puxa palavra, +elle matou-nos um homem, apanhou uma lição mestra, e de<span class="pn"><a +name="pg_100">{100}</a></span> vingança em vingança ficámos inimigos para +sempre. Mas havia outro rei, o rei de Cochim, que era e foi sempre nosso amigo. +D'ahi, barulho entre os dois. Como o rei de Calicut era muito mais poderoso, +esperou que não estivessem lá navios nossos, e, sabendo que tinha ficado apenas +Duarte Pacheco e mais uns cincoenta portuguezes, disse comsigo: «Agora é que tu +m'as pagas.» E arranjou um exercito forte, e marchou contra o pobre rei, nosso +amigo. Os soldados de Cochim tinham medo que se pellavam, e fugiam que era um +louvar a Deus; mas Duarte Pacheco, mais os seus cincoenta homens, com a sua +habilidade e a sua valentia, conseguiu tomar o passo ao de Calicut, e dar-lhe +tareias monumentaes. Ó rapazes, pois uma pessoa não se hade ás vezes ufanar de +ser portuguez? Quando é que se viu uma cousa assim? Meia duzia de gatos +bastaram para dar cabo de exercitos immensos! Eu bem sei que era a disciplina, +que eram as armas, que era tambem a fraqueza d'aquelles bananas, que o sol da +India faz uns mollengas, mas era necessario que fossem de aço e de ferro, em +vez de ser de carne e osso, esses valentes que assim viam, sem descorar, +marchar contra elles um exercito formidavel! Era necessario que se tivessem +disposto a morrer para não deixarem que fosse pisada aos pés a bandeira de +Portugal! E, a final de contas, por muito molles que os outros fossem, sempre +eram mil contra<span class="pn"><a name="pg_101">{101}</a></span> um, e, com +certeza, nenhum dos nossos pensava que saíria com vida de similhante combate. +Depois acções d'essas eram mais faceis, não só porque os nossos já tinham +tomado confiança em si, e sentiam-se capazes de levar aos pontapés quantos +indios houvesse na India, mas tambem porque elles tinham-nos tomado medo; mas +isso tudo a quem o devemos senão a Duarte Pacheco? Pois, meus amigos, imaginam +vocês que Duarte Pacheco foi feito governador da India, ou teve algum titulo, +ou alguma recompensa grande? Qual carapuça! D. Manuel nem mais pensou n'elle, e +era tão feliz que logo encontrou para ser primeiro vice-rei da India um homem +como D. Francisco de Almeida, que em toda a parte do mundo seria digno de +exercer os primeiros logares.</p> + +<p>Com effeito, D. Manuel, que primeiro quizera apenas que os seus seus navios +viessem carregados de mercadorias da India, que depois cá se vendiam na Europa, +entendeu que devia tomar raizes, e encarregou D. Francisco de Almeida de +governar os portuguezes que por lá estivessem, fundando ao mesmo tempo +fortalezas. D. Francisco de Almeida entendia, porém, e não deixava de ter +rasão, que Portugal era um paiz muito pequeno para estar assim a mandar +soldados para a India, e o que elle queria era ser senhor do mar para que +ninguem mais ali podesse fazer negocio. Emquanto só teve os indios<span +class="pn"><a name="pg_102">{102}</a></span> pela prôa íam as cousas bem, mas +os turcos, que viam diminuir os seus rendimentos com o novo caminho das Indias, +começaram a metter-se na dança, e os turcos não eram tropa fandanga, eram gente +de quem tremia a Europa. Tambem, quando se encontraram primeiro com os +portuguezes, levaram a melhor e até mataram um filho de D. Francisco de +Almeida, que o vice-rei adorava. Foi a sua perdição, porque D. Francisco de +Almeida não descançou emquanto não vingou a morte do seu estremecido Lourenço. +Os turcos levaram uma sova de primeira qualidade, e na India ficou-se sabendo +de uma vez para sempre que casta de homens eram os portuguezes.</p> + +<p>Pois, rapazes, parecia que d'esta vez D. Manuel se daria por muito feliz em +ter no Oriente um homem como D. Francisco de Almeida, que tinha posto os indios +a pão e laranja, e dado uma esfrega tal nos turcos que se não atreveram por +muito tempo a tornar á India. Enganam-se. Apenas acabou o seu tempo, foi +chamado a Portugal, e naturalmente el-rei nem pensaria mais n'elle, ainda que +não tivesse morrido no caminho. Mas continuava a ser tão feliz que encontrou, +para substituir D. Francisco de Almeida, um homem que ainda valia mais do que +elle, porque era o grande Affonso de Albuquerque. Ah! meus amigos, apparecem de +vez em quando no mundo uns homens, que são capazes de revolver a<span +class="pn"><a name="pg_103">{103}</a></span> terra, como os Napoleões e outros +assim, Affonso de Albuquerque foi um d'esses.</p> + +<p>A respeito das cousas da India não pensava como D. Francisco de Almeida, mas +não era porque visse as cousas de outro modo, era porque achára maneira de as +concertar. Sim, elle bem sabia que Portugal não podia estar a encher a India de +soldados, mas o que elle queria era que os Indios se misturassem com os +portuguezes, e, para o conseguir, ao passo que era cruel com os mouros, com os +indios era tão bom e tão justo que, depois da sua morte, íam elles resar ao seu +tumulo, como quem vae resar ao tumulo de um santo. Escolheu elle tres pontos, +em que estabeleceu, para assim dizer, os seus quarteis generaes, e todos muito +bem escolhidos: Ormuz, ao pé da Persia; Goa, no meio da India; Malaca, para os +lados da China e das ilhas a que se chamava das Especiarias ou das Molucas. +Primeiro tomou Goa, depois Malaca que tinha dente de coelho, porque os malaios +são levadinhos da bréca, depois Ormuz, e, quando acabou de fazer tudo isto, +estava já demittido, e sabendo que ía ser nomeado para o seu logar o seu peor +inimigo! Morreu com esse desgosto.</p> + +<p>Tambem d'essa vez tinha-se acabado o fornecimento de grandes homens, e os +dois ultimos governadores da India, no tempo de D. Manuel, não foram lá grande +cousa, mas tambem não estragaram nada.<span class="pn"><a +name="pg_104">{104}</a></span> Aquillo então ía n'um sino. Os portuguezes +espalhavam-se por toda a parte, de um lado chegavam á China, do outro á Persia, +do outro ás Molucas, do outro a Cambaya. Tinham fortalezas por toda a parte; +elles recebiam a boa canella de Ceylão, o bom cravo das Molucas, a boa pimenta +da India, os bons cavallos da Persia, as sedas da China, o incenso da Arabia, +os diamantes de Golconda, e traziam estas riquezas todas para a Europa e vinham +aqui a Lisboa, que estava sempre cheia de navios, os hollandezes e os inglezes +comprar tudo isto para o vender por esse mundo. Do Brazil não se fazia caso +porque nem valia a pena; na Africa sempre se íam tomando praças, que era para +n'aquellas constantes guerras com os mouros se exercitar a fidalguia, que +depois fazia o diabo a quatro na India. Emfim, quando D. Manuel mandou ao papa +uma embaixada com presentes vindos de todas as suas conquistas, Roma ficou +embasbacada, e não se fallava em todo esse mundo senão na grandeza de Portugal. +Bons tempos, meus amigos, mas que duraram pouco!</p> + +<p>No reino, D. Manuel logo mostrou que, se não era tolo, tambem não tinha o +entendimento de D. João II. Poz fóra os judeus; é verdade que depois, quando em +Lisboa o povo fez uma matança nos que tinham ficado a titulo de se terem +convertido, mostrou-se muito zangado e castigou a cidade. Grande<span +class="pn"><a name="pg_105">{105}</a></span> não foi elle, mas viu-se cercado +de gente que o fez grande, e teve a esperteza de os saber conhecer. Depois, +punha-os de parte com a maior facilidade, mas atinava com elles; só não +percebeu o que podia esperar de Fernão de Magalhães, que, zangando-se com uma +picardia que lhe fez, passou para Hespanha, e assim nos deixou ficar sem a +gloria de termos sido nós os primeiros que deram volta ao mundo, como fizeram +os hespanhoes commandados pelo tal Fernão de Magalhães, porque isso, n'aquelle +tempo, não havia por esses mares uma onda que não marulhasse em portuguez... +</p> + +<p>—Em portuguez porque? perguntou o Francisco Artilheiro. Eu nunca percebi o +que ellas diziam.</p> + +<p>—Então é que têem a cabeça tão dura como tu, porque foi sempre o portuguez +a primeira lingua que ouviram, e até lá para a terra dos bacalhaus, para o +norte, onde faz um frio de rachar, lá mesmo foi Gaspar Cortereal que primeiro +descobriu a Terra Nova. Emfim, meus amigos, depois de ter casado tres vezes, e +sempre com princezas hespanholas, morreu em 1521 el-rei D. Manuel, e, verdade +verdade, com elle se póde dizer que morreu a grandeza de Portugal.</p> + +<p>Succedeu-lhe o filho D. João III, que era o beato mais beato que tem vindo a +este mundo. D. Manuel já lá tinha as suas manias, mas, como eu lhes +contei,<span class="pn"><a name="pg_106">{106}</a></span> quando os de Lisboa +desataram a matar os judeus, ou antes os christaos novos, deu-lhes com o +<em>basta</em>. D. João III, esse, não descançou emquanto não metteu em +Portugal a inquisição. O papa não queria, fazia-se rogado, e D. João III é que +insistiu com elle para apanhar essa prenda. Chegou a gastar rios de dinheiro +para o conseguir!! Ora, realmente, metter cá um tribunal que, apenas um sujeito +se esquecia de ir á missa, ferrava com elle na cadeia, quando não era na +fogueira, só lembrava a D. João III. Até os estrangeiros fugiam, e então o +resto dos judeus, que ainda por cá havia, e que por amor á nossa terra se +tinham feito christãos, com medo da inquisição, se foram safando logo que +poderam. E, não contente com isso, introduziu tambem a companhia de Jesus, que +era uma ordem nova de frades mais disciplinados que um regimento, e que tinham +jurado ser elles que haviam de governar o mundo. Ora, lá para prégar aos +herejes, e aos gentios da India, e aos selvagens do Brazil, eram muito bons, +porque não recuavam nem diante da morte, e houve jesuitas, como S. Francisco +Xavier, que não ficaram a dever nada aos doze apostolos; mas em Portugal +mettiam-se em toda a parte: elles ensinavam, elles confessavam, e estou em +dizer que não podia ser bom. Eu não sou contra os padres, nem contra a +religião, pelo contrario, mas tambem não se hão de metter em tudo. Ora vejam +vocês como<span class="pn"><a name="pg_107">{107}</a></span> havia de viver um +dos nossos avós d'esses tempos! Os jesuitas a apertarem-lhe o freio, e ao mais +pequeno desmando, zás, fogueira da inquisição com elle. Até se fizeram +macambuzios os pobres homens, que eram até ahi gente alegre. Não se podia +escrever cousa nenhuma, que não viessem logo os jesuitas: Corte-se isto porque +parece contra a religião, não se represente aquillo porque se faz troça a um +frade, e porque torna e porque deixa. O que é certo, meu amigos, é que, +emquanto lá por fóra se andava para diante, e se faziam invenções, e se +estudava, nós não passavamos da cepa torta, e o mal que isso fez vão vocês +vêl-o.</p> + +<p>Na India parecia que ía tudo muito bem, mas via-se que não podia durar +muito. Valentes eram os nossos, mas, em vez de fazerem o que Albuquerque +queria, em vez de accommodarem os Indios, e de se porem ás boas com elles, não +senhor, faziam crueldades que era uma cousa por demais, e o que queriam era +apanhar dinheiro. Passavam o tempo, ora em guerra com o rei de Calicut, ora com +o rei de Cambaya, ora com o rei de Achem, ora com o rei de Bintam, ora com o +rei de Kandy, ora com todos ao mesmo tempo. Isto não era vida. Obravam +prodigios de valor, isso é verdade, como por exemplo nos dois cercos de Diu, em +que Antonio da Silveira e D. João de Mascarenhas se defenderam de um modo +maravilhoso, mas, á força de<span class="pn"><a name="pg_108">{108}</a></span> +dar cutiladas, o braço ía cançando, e o paiz estava esfalfado. Não havia nem um +instante de socego. Se apparecia um governador como D. João de Castro, o da +Penha Verde de Cintra, que era honradissimo e justiceiro, os outros não +pensavam senão em roubar. Já se pegavam uns com os outros, como fez Lopo Vaz de +Sampaio com Pedro Mascarenhas, e quando D. João III, o Piedoso, como lhe +chamaram os frades, morreu em 1557, todos previam que isto ía para baixo. O +filho mais velho de D. João III morrera ainda em vida do pae, e quem lhe +succedeu foi um neto, creança de cinco annos, que tinha o nome de D. Sebastião. +Ficou regente a avó, senhora de bastante juizo, que governou bem, mas que em +1562 teve de ceder a regencia ao cunhado, o cardeal D. Henrique, todo dominado +pelos jesuitas, e que cercou de padres o principe. O que resultou d'ahi? +Resultou que D. Sebastião, que gostava de guerras e batalhas, fez-se ao mesmo +tempo beato. Parecia um d'aquelles antigos frades militares, que tinham +concorrido tanto para expulsar os mouros de Portugal. Não quiz casar, e até +fugia das mulheres. Não pensava senão em dar cabo dos mouros. Ora, se nós que +já tinhamos tanto trabalho para nos sustentarmos na India, que fôramos +obrigados a largar umas poucas de praças na Africa, que tinhamos precisado de +um grande esforço para salvar Mazagão, cercada pelos mouros,<span class="pn"><a +name="pg_109">{109}</a></span> nos mettiamos em grandes guerras com elles, +aonde iria isto parar! Pois foi o que succedeu. Na India o trabalho era cada +vez maior; um governador, chamado D. Constantino de Bragança, parente da casa +real, fizera por lá grandes cousas, mas pouco tempo depois juntavam-se quasi +todos os reis da India e vinham sobre nós. O que nos valeu foi termos um novo +Affonso de Albuquerque, um general de mão cheia, D. Luiz de Athayde, que a tudo +acudiu e tudo salvou; mas vocês bem vêem que isto não podia continuar assim. +Quando as cousas estavam n'este bonito estado, quando nós tinhamos ás costas a +India, o Brazil para que D. João III principiára a olhar, onde precisávamos de +nos defender contra os aventureiros francezes que achavam a terra a seu gosto, +de que se ha de lembrar el-rei D. Sebastião? De ir conquistar Marrocos! Eu já +tenho ouvido dizer que mais valia termos conquistado Marrocos, que nos ficava á +porta, do que irmos á India que ficava tão longe. Pois sim, mas o que era +necessario era escolher. Ou uma cousa ou outra. Mas D. Sebastião, com aquella +embrulhada, que elle tinha na cabeça, de idéas religiosas e de idéas +guerreiras, não attendia a cousa nenhuma, nem fazia calculos nenhuns. O que +elle queria era dar lambada nos mouros, e, apesar dos conselhos de toda a +gente, levanta um pequeno exercito, e para o levantar custou-lhe, porque já não +havia braços no<span class="pn"><a name="pg_110">{110}</a></span> paiz... co'a +breca, que elles não chegavam para tudo! e abala-se para a Africa a pretexto de +ir soccorrer um principe mouro que tinha sido expulso do throno por seu tio! +</p> + +<p>Ah! meus amigos, aquillo era mesmo um doido que ali ía. A gente gosta de ver +um rapaz que tem o sangue na guelra, e que se atira para diante, embora faça +asneira, mas é que D. Sebastião estava perfeitamente maluco. Era maluquice a +empreza, foi maluquice o modo como a preparou, foi maluquice o modo como a +dirigiu. Parecia que Deus, por umas poucas de vezes, o quizera salvar, e elle +sempre a atirar comsigo de cabeça para baixo. Emfim, no dia 4 de agosto de +1578, deu-se a batalha á moda de seiscentos diabos, porque nem houve commando, +nem houve nada. D. Sebastião atirou-se aos mouros e não quiz saber de exercito, +nem de cousa nenhuma. Emquanto poude dar cutilada, deu. A flor da fidalguia +portugueza ali morreu, a que não morreu ficou prisioneira. Os soldados fugiram, +uns por aqui outros por ali, e, quando a noticia chegou ao reino, imaginem que +afflicção! Não se perdera só um rei, perdera-se a corôa, porque não havia +herdeiros, e quem subiu ao throno foi o velho cardeal D. Henrique, tio avô do +fallecido, que nunca fôra esperto e que estava então meio apatetado. Ainda +houve quem dissesse que D. Sebastião não morrera, porque ninguem o vira caír +morto, e o cadaver que<span class="pn"><a name="pg_111">{111}</a></span> +appareceu, e que se disse que era d'elle, estava tão desfigurado que se não +podia conhecer. Assim lá ficou D. Henrique a governar, mas para que? Todos +sabiam que a corôa era herança que não tardava. Quem a havia de apanhar? Quem +tinha direito verdadeiro era a duqueza de Bragança, por ser filha de um irmão +de D. João III, D. Duarte; quem era mais sympathico ao povo era D. Antonio, +filho bastardo de outro irmão de D. João III, D. Luiz; quem tinha mais força +era D. Filippe II, rei de Hespanha, filho de uma irmã de D. João III, D. +Isabel. Ainda havia outros que se diziam herdeiros, mas entre aquelles tres é +que a lucta era séria. Ferviam as intrigas. D. Filippe tinha em Portugal um +embaixador, e até por signal era portuguez, D. Christovão de Moura, que +comprava todos quantos se queriam vender, e bem parvos eram os que não íam ao +mercado. As côrtes, chamadas por D. Henrique para decidir a questão, estavam já +tão pouco costumadas a metter o seu bedelho n'essas questões, que disseram ao +rei que decidisse como quizesse, apesar de berrar muito contra isso um +portuguez ás direitas, procurador de Lisboa, e que se chamava Phebo Moniz. O +rei não decidiu cousa alguma. Morreu em 1580, e deixou o quartel general em +Abrantes, tudo como d'antes. Nomeou governadores do reino uns sujeitos que se +tinham já vendido aos hespanhoes, e que de certo íam escolher D. Filippe +II.<span class="pn"><a name="pg_112">{112}</a></span> Mas, como se demorassem, +este não esteve para os aturar, e mandou-nos cá um exercito commandado pelo +duque de Alba. Vendo os hespanhoes, o povo virou-se para D. Antonio, prior do +Crato e bastardo do infante D. Luiz, e acclamou-o rei. Valente era elle, mas +não era mais nada. Quiz resistir aos hespanhoes com um punhado de gente que +nunca pegára em armas. Batido em Alcantara, ás portas de Lisboa, depois de +algumas horas de combate, fugiu para o Minho, por onde andou escondido, até que +poude safar-se para o estrangeiro. Filippe II entrou socegadamente em Lisboa, e +era uma vez a independencia de Portugal.</p> + +<p>—O que! estavamos hespanhoes? perguntou furioso o Bartholomeu.</p> + +<p>—Estavamos hespanhoes, sim, meu amigo, e eu te vou explicar como é que +tinhamos chegado a isso em tão pouco tempo. Em primeiro logar, creio que já +sabem que D. João II abaixára a prôa de todo á nobreza, e d'ahi por diante os +fidalgos ficaram sendo simplesmente criados do paço. O povo ajudára o rei a +fazer essa obra necessaria, mas o rei, apenas se viu servido, deu-lhe para +baixo, e el-rei D. Manuel começou a dizer que os foraes, que eram as leis por +que se governavam os concelhos, não estavam muito claros, e para os aclarar, +reformou-os, quer dizer, deu cabo d'elles. Em côrtes já se não fallava senão de +longe a longe. D'antes, pelo menos,<span class="pn"><a +name="pg_113">{113}</a></span> para se lançarem tributos novos, sempre se +reuniam as côrtes. D. Manuel não quiz que ellas se incommodassem por tão pouco, +e, para lhes poupar trabalho, começou elle a deitar os tributos por sua conta. +Ora isto é muito bom, emquanto as cousas vão correndo bem. O rei tem ali o seu +povo manso como um leão domesticado, com as unhas cortadas e os dentes limados, +mas, quando vem as occasiões, o povo mette o rabinho nas pernas e não tuge nem +muge. Para mais ajuda, a inquisição concorria para terem todos pouca vontade de +se mexer. Os jesuitas, que tanto podiam fazer pela influencia que possuiam, não +se importaram para nada com isso. Frades como elles eram, muito ligados entre +si, e muito escravos do seu geral que estava em Roma, não tinham patria, a sua +patria era a Companhia. Depois, vocês bem vêem que o reino não podia deixar de +estar sem forças. Era um saír de gente todos os annos para a Africa, para a +India, para o Brazil, que era uma cousa por demais. No meio de tantas riquezas +o paiz achava-se pobre. Havia muita gente rica e vadia, mas não havia lavoura, +não havia fabricas, não havia nada, o dinheiro entrava por um lado para saír +pelo outro. Demais a mais tudo era pandiga rasgada. Os portuguezes vinham do +Oriente descançar das suas fadigas. Tinham escravos para o serviço, passavam os +dias na amante vadiagem. Não ha cousa que mais deite a perder os<span +class="pn"><a name="pg_114">{114}</a></span> homens. Por isso D. Filippe e o +seu embaixador Christovão de Moura encontraram tudo podre.</p> + +<p>Hão de vocês dizer: Pois então, só porque um rei morreu, e só porque se +perdeu um exercito, que não era grande cousa, perdeu-se Portugal? É assim +mesmo. Faltou o rei, faltou tudo, porque o povo nem já sabia de si, e as +côrtes, quando não havia quem mandasse alguma cousa, nem sabiam o que haviam de +fazer. Soldados portuguezes, os bons, estavam na India, e não bastavam; os que +tinham voltado não pensavam senão na pandiga. Tudo estava alluido na nação +portugueza, veio o empurrão de Alcacer-Kibir, foi tudo abaixo, e eu, meus +amigos, não vou para baixo, vou para cima que são horas de me ir chegando ao +pouso. Domingo continuaremos, porque já agora havemos de acabar, que lá dizer +que eu tenho muita vontade de lhes contar a historia do que se passou no tempo +dos Filippes, isso não tenho. Então é que Portugal perdeu a esperança de se +levantar.<span class="pn"><a name="pg_115">{115}</a></span></p> + + + +<h1>SETIMO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">Portugal durante o dominio hespanhol.—Filippe I.—Os falsos +D. Sebastião.—Ultimos esforços do prior do Crato.—Os inglezes e hollandezes +no ultramar.—A invencivel armada.—D. Filippe II.—Perda e restauração da +Bahia.—Filippe III.—O conde-duque de Olivares e os privilegios das +provincias.—Perda de Pernambuco.—Tumultos de Evora.—O duque de Bragança.—A +conspiração dos fidalgos.—Revolução de 1 de dezembro de 1640.</p> + +<p> </p> + +<p>—Meus amigos, disse o João da Agualva no domingo immediato, demorei-me e o +resultado foi apanhar uma constipação, que ainda mal me deixa fallar. Não quiz +comtudo deixar de vir para se não perder este bom costume dos domingos, mas +pouco tempo me demoro, e não farei mais do que contar-lhes a historia do que +passou Portugal com o dominio dos hespanhoes.</p> + +<p>Se nós ao menos tivessemos passado para uma nação forte, com vida e com +sangue, alguma cousa lucrariamos, mas a Hespanha estava peor do que nós. +Parecia muito poderosa por fóra, mas só havia podridão lá dentro. Depois andava +em guerra com<span class="pn"><a name="pg_116">{116}</a></span> a Europa toda, +e n'essa guerra nos embrulhou para nossa desgraça.</p> + +<p>Apesar dos pesares, não cuidem vocês que tudo foram rosas para o nosso rei +Filippe I, que era em Hespanha Filippe II. Elle veio com pésinhos de lã, +prometteu respeitar as liberdades portuguezas, nunca nos dar por governadores +senão portuguezes ou principes da familia real, jurou quanto quizeram, mas o +povo não andava satisfeito, e, como não tinha a quem se encostar, pensava em D. +Sebastião, o <em>Desejado</em>, como lhe chamam. Assim que apparecia um homem +que tinha alguma parecença com o rei fallecido, diziam logo que era elle, de +fórma que os hespanhoes estavam sempre em sobresalto. Por isso o rei de +Penamacor e o rei da Ericeira, uns pobres homens que o povo embirrou em querer +que fosse cada um d'elles D. Sebastião, e que tomaram o caso a serio, +provocaram os seus tumultos, sendo os da Ericeira um poucochinho graves. +Passados tempos, ainda appareceram lá fora, em Hespanha e em Italia, dois +homens que diziam ser D. Sebastião, e que lograram muita gente, mas esses eram +verdadeiros intrujões que nem mesmo pensavam senão em comer á barba-longa, á +custa dos freguezes. O tal amor ao D. Sebastião foi-se pegando a ponto que +começou a formar-se uma seita que ainda ha pouco tempo durava, a seita dos +sebastianistas, que acreditavam que D. Sebastião havia de apparecer<span +class="pn"><a name="pg_117">{117}</a></span> n'um dia de nevoeiro para governar +em Portugal. Eu ainda conheci um sebastianista.</p> + +<p>—E eu tambem, acudiu o Bartholomeu.</p> + +<p>—Já vêem que não minto. Mas d'esse D. Sebastião não ha de vir mal ao mundo, +nem bem que é o peor. D. Antonio tambem trabalhava pela sua banda, e, como a +ilha Terceira o acclamára rei, foi-se lá metter e arranjou soccorro de França, +mas os hespanhoes bateram a esquadra franceza, e tomaram a ilha. Depois +arranjou soccorros da rainha de Inglaterra, que mandou uma esquadra a Lisboa, +mas os inglezes foram repellidos, e D. Antonio, descoroçoado de todo, foi +morrer a Paris em 1595.</p> + +<p>Mas querem vocês ver o que nós ganhámos com o estar juntos á Hespanha? Foi +termos á perna os inglezes e os hollandezes, que principiaram a sacudir-nos da +India, e que então aos nossos navios faziam guerra mortal. Ia tudo pela agua +abaixo, e, para mais desventura, Filippe lembra-se de mandar contra a +Inglaterra uma esquadra immensa, a que chamou «a invencivel armada», e que saíu +do porto de Lisboa. A armada perdeu-se e lá se foram os nossos melhores navios. +Filippe morria em 1598, e succedia-lhe Filippe II aqui e III em Hespanha. Se as +cousas tinham ido mal até ahi, então foram peor. A Hespanha ía a Deus e á +ventura, e nós atraz d'ella. O governo hespanhol, que mal cuidava de si, não +cuidava nada de nós. Os inglezes e os hollandezes<span class="pn"><a +name="pg_118">{118}</a></span> tomavam-nos quasi tudo o que tinhamos na India, +e estes ultimos tambem se mettiam no Brazil comnosco. Grandes façanhas ainda se +faziam, é verdade, e da Bahia, por exemplo, foram os hollandezes expulsos, mas, +quando Filippe II morreu em 1621, já o nosso poder não era nem a sombra do que +tinha sido.</p> + +<p>Succedeu-lhe Filippe III, e esse tinha um primeiro ministro chamado +conde-duque de Olivares, que imaginou que havia de acabar com os privilegios +das provincias, principalmente com os de Portugal. Não pensava n'outra cousa, +de fórma que deixava ir as colonias, e no Brazil já os hollandezes tinham +tomado raizes, e estavam senhores de Pernambuco. Mas os portuguezes começaram a +achar a brincadeira pesada e a refilar ao Olivares. Em 1637 rebentou uma +revolta em Evora, foi logo apagada, mas com muito sangue. Peor para o caso. Os +fidalgos, que andavam tambem damnados, principiavam a conversar com o duque de +Bragança, D. João, e a apalpal-o para ver se elle quereria a corôa. O duque não +dizia nem que sim, nem que não. Mas n'isto a Catalunha, que tambem não perdoava +ao Olivares a sem-ceremonia com que elle lhe queria tirar os seus antigos +privilegios, revolta-se. Boa occasião! Os fidalgos, em Lisboa, sentiam-se cada +vez mais dispostos a mandar os hespanhoes para o diabo. O Olivares não fazia +senão<span class="pn"><a name="pg_119">{119}</a></span> desesperal-os e +atiçal-os. Tinha-lhes dado por governador a duqueza de Mantua, e para +secretario do governo um portuguez, Miguel de Vasconcellos, que era mais +damnado contra os seus patricios do que se fosse hespanhol. Emquanto deixava +perder as colonias portuguezas, Olivares levava os nossos fidalgos e os nossos +soldados para as guerras de Flandres e da Catalunha. Lembra-se emfim de dar +ordem ao duque de Bragança para que vá para Madrid. Então é que já se não podia +estar com pannos quentes. Os fidalgos dizem ao duque de Bragança: Ou acceita a +corôa, ou nós pomo-nos em republica. O duque, a final, disse que sim. Com a +bréca! aquillo foi um momento. Era um punhado de homens, os que andavam assim a +conspirar; elles não sabiam se podiam contar com o povo, nem se não podiam, +conspiravam ás claras, que parece que em Lisboa todos sabiam da conspiração +menos os hespanhoes; reuniam-se umas vezes em casa de João Pinto Ribeiro, +outras vezes em casa de D. Antão de Almada, no jardim. No dia 1 de dezembro de +1640 saem todos para o meio da rua. Eram quarenta, pouco mais ou menos. Chegam +ao paço, matam o Miguel de Vasconcellos, agarram na duqueza de Mantua e +fecham-n'a á chave, desarmam a guarda, abrem as janellas, e dizem a quem ía +passando: Viva o duque de Bragança, rei de Portugal! viva o sr. D. João IV! O +povo diz-lhes cá de baixo: Viva!<span class="pn"><a +name="pg_120">{120}</a></span> e viva, e viva! e eram uma vez os hespanhoes, e +d'ahi a pedaço estava tudo tão socegado como se não tivesse havido cousa +nenhuma, e os hespanhoes tinham desapparecido; e aqui têem vocês como se faz +uma revolução quando ella está na vontade de todos. Digo-lhes, rapazes, que +este dia 1 de dezembro consola uma pessoa. Parecia que o paiz não tinha feito +senão acordar de um pesadello. Aquillo foi só saltar da cama abaixo, e elle ahi +estava de pé, todo pimpão como em outros tempos. E sabem vocês porque isto foi? +É porque as nações são como as espadas, onde enrijam é na bigorna.<span +class="pn"><a name="pg_121">{121}</a></span></p> + + + +<h1>OITAVO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">Unanimidade da revolução.—Preparativos de +resistencia.—Organisação militar do paiz.—As allianças.—Relações de Portugal +com a Hollanda.—Restauração de Pernambuco e de Angola, e perda de +Ceylão.—Conspirações contra D. João IV.—Guerra da Restauração.—Batalhas de +Montijo e de Telena.—D. Affonso VI.—A sua educação e a sua indole.—Regencia +da rainha D. Luiza.—Antonio Conti.—O conde de Castello Melhor.—Continuação +da guerra.—Cerco de Badajoz.—Batalha das Linhas de Elvas.—Paz entre a +Hespanha e a França.—Campanhas de D. João de Austria.—Schomberg.—Victorias +do Ameixial, Castello Rodrigo e Montes Claros.—Planos do conde de Castello +Melhor.—Intrigas do Paço.—Casamento, desthronamento e divorcio vergonhoso de +D. Affonso VI.—Regencia do infante D. Pedro.—Casamento com a +cunhada.—Tratado de Methwen.—Guerra da successão de Hespanha.—D. João V.—As +minas do Brazil.—Desperdicios, beaterio e immoralidades.</p> + +<p> </p> + +<p>—Meus amigos, principiou no outro domingo o João da Agualva, e já ninguem o +interrompia, tal era o interesse com que todos seguiam a sua narrativa; o que +succedeu na capital, succedeu no reino todo. Aquillo foi chegar a noticia do +que se passava em Lisboa, e de um momento para o outro desappareciam os +hespanhoes, e tornava tudo a ser Portugal. Poupámos-lhes muita despeza em +correios, porque logo souberam pelo primeiro que Lisboa se tinha revoltado, que +tinha vencido, que reinava em Portugal D. João IV, e que a Hespanha,<span +class="pn"><a name="pg_122">{122}</a></span> do Minho para baixo e do Caya para +o occidente, já não possuia nem um palmo de terra. Querem vocês saber como o +conde-duque de Olivares deu a noticia ao patrão? Foi d'esta maneira:—Dou os +parabens a Vossa Magestade; acabam de lhe entrar uns poucos de milhões no +bolso.—Como assim? perguntou o rei que estava a jogar, e que não desgostaria +de que lhe saisse d'essa maneira a sorte grande de Hespanha.—Porque o duque de +Bragança, tornou o ministro, acaba de se revoltar, e de se fazer rei de +Portugal, e, como temos de lhe tirar os bens e de lhe cortar a cabeça, fica +Vossa Magestade mais rico. O rei não gostou muito d'esse modo de enriquecer, e +ainda olhou para os parceiros a ver se algum lhe dava quatro vintens pela +herança. Nenhum caíu n'essa.</p> + +<p>Isso era muito bom, mas Portugal é que não vivia de cantigas. A Hespanha era +então ainda maior do que hoje é, e, se ella nos caísse em cima, estavamos +promptos. De que precisavamos nós? De dinheiro, de soldados e de allianças. +Tratou-se logo de tudo. Dinheiro votaram as côrtes quanto se quiz; para +arranjar soldados fez-se uma obra fina que nunca ninguem até ahi tinha feito, e +que foi pôr toda a gente em armas. E como? dividiu-se o reino em tres linhas; a +primeira de soldados, que se chamavam pagos, a segunda de milicianos, e a +terceira, que era a dos velhotes, de ordenanças. Uns íam<span class="pn"><a +name="pg_123">{123}</a></span> á guerra, os outros ajudavam-nos em sendo +preciso, saíndo, o menos que podesse ser, dos seus sitios, e finalmente os +ultimos defendiam as suas terras, porque isso, atraz de um muro, todos fazem +figura. Digo-lhes, rapazes, que aquillo é que foi uma idéa, e olhem que não nos +serviu só então, tambem na guerra da peninsula foi o que nos valeu, e, aqui +para nós, não me parece que fizessem muito bem em deitar abaixo aquella +historia. Estava já tudo costumado, e quando vinha uma guerra, saltava toda a +gente para o meio da rua; e olhem que isto de estar um homem dentro de casa, de +espingarda na mão, dá que fazer aos mais pintados. E logo se viu.</p> + +<p>Emquanto a allianças tambem não faltaram; é verdade que não serviram de +muito, porque cada um cuidava de si. A França, prompta, o que ella queria era +abaixar a prôa á Hespanha, mas, como tambem lá andava em guerra com os +hespanhoes, o mais que fez foi consentir que arranjassemos officiaes francezes +pelo nosso dinheiro; a Inglaterra, a mesma cousa, muita festa para a festa, mas +andava embrulhada em guerras civís, não mandou para cá nem um navio. Então a +Hollanda ainda foi peor, isso... recebeu o nosso embaixador de braços abertos, +poz luminarias, achou que tinhamos feito muito bem, mas, quando o embaixador +lhe disse: «Então agora que estamos amigos, venham para cá as<span +class="pn"><a name="pg_124">{124}</a></span> nossas colonias, que são nossas e +não dos hespanhoes», a Hollanda exclamou: «As colonias! ah! sim! nós somos tão +amigos d'ellas! Estão já acostumadas comnosco! até tinhamos pena de as deixar». +E acrescentava o embaixador: «Mas então, c'os diabos, ao menos não nos tomem +mais nenhuma».—«Não tomamos, dizia a Hollanda, isso nunca. Ora agora sabem +vocês? as colonias são como as cerejas. O caso é apanhar uma». Ah! elle é isso! +disseram os portuguezes comsigo, pois então vamos a ellas. E, zás, rebenta uma +revolta em Pernambuco, e os brazileiros a berrarem: Viva D. João IV! A Hollanda +chamou o nosso embaixador: «Então que diabo é isso? nós somos amigos e +fazem-nos uma partida d'estas!»—«Patifes! dizia o embaixador. Aquillo é do +sol! esquenta-lhes a cabeça, e dão por paus e por pedras. Mas, aqui para nós, +se elles dizem: Viva D. João IV, não havemos de lhes ir dizer: Morra D. João +IV! Não nos ficava bem.»—«Pois sim, mas digam-lhes que estejam +quietos.»—«Pois isso dizemos nós.» E D. João IV mandava para lá armas e +officiaes, e dizia-lhes: «Ahi vae isso, que é para vocês estarem quietos.» E em +poucos annos estavamos senhores de Pernambuco, e os hollandezes na rua.</p> + +<p>D'ahi a tempos, Salvador Correia de Sá ía a Angola e punha fóra os +hollandezes que nos tinham tomado esse reino.—«Então isto que vem a ser?<span +class="pn"><a name="pg_125">{125}</a></span> bradaram os hollandezes, então os +senhores vão de proposito do Brazil a Angola para nos sacudir!»—«Quem é que +fez isso?» perguntava o embaixador.—«Salvador Correia de Sá.»—«Sim! pois +estejam vocês descançados, que lhe vamos já perguntar pelo correio, que diabo +de lembrança foi essa. Em vindo resposta cá lh'a mandamos. E a proposito, sr.ª +Hollanda, vocês tomaram-nos Ceylão?»—«Tomámos Ceylão, mas que defeza! Antonio +de Sousa Coutinho defendeu-se maravilhosamente. Os nossos generaes são todos +accordes que nunca encontraram resistencia tão desesperada! Quando escreverem +para lá, mandem os nossos parabens ao sr. Antonio de Sousa Coutinho e +recommendações aos amigos.»</p> + +<p>E era assim que nós estávamos com a Hollanda: abraços na Europa e lambada lá +por fóra.</p> + +<p>Houve só duas côrtes que não quizeram nunca reconhecer a independencia de +Portugal; uma foi a côrte de Roma que estava toda nas mãos dos hespanhoes, e a +outra a da Allemanha, cujo imperador era da mesma familia que a do rei Filippe. +E fizeram-nos transtorno: a primeira porque estávamos assim a modo +excommungados, a segunda por uma patifaria que praticou o imperador, mandando +prender sem mais nem menos o principe D. Duarte de Bragança, irmão de D. João +IV, que andava por lá na guerra contra os turcos, e que tanta conta nos<span +class="pn"><a name="pg_126">{126}</a></span> faria em Portugal. Morreu na +cadeia o pobre rapaz por causa de nós e da traição do tal imperador.</p> + +<p>Em Portugal, ao principio, tinha ido tudo bem, mas, assim que passou aquelle +primeiro fogo, houve muitos que começaram a pensar no caso e que disseram +comsigo: «Isto foi uma grande asneira. Vem ahi os hespanhoes e dão cabo de +todos nós. O melhor é pormos as costas no seguro, e, antes que elles venham ter +comnosco, vamos nós ao encontro d'elles, que sempre apanharemos alguma cousa.» +E n'isto desatam a conspirar contra D. João IV. Foram castigados cruelmente. +Morreram muitos com a cabeça cortada, e mais nem todos eram culpados. Mas que +querem vocês? A mania de D. João IV era que o não tomariam a sério como rei em +Madrid, emquanto não mandasse cortar a cabeça a alguem.</p> + +<p>Pois em primeiro logar visse bem a quem matava, e em segundo logar eu sempre +ouvi que os reis, quando são mais reis, é quando perdôam. E, alem d'isso, os +hespanhoes quando tomaram a sério D. João IV não foi quando elle mandou cortar +a cabeça a fidalgos portuguezes, mas quando os soldados portuguezes lhes +começaram a esfregar as costas a elles.</p> + +<p>Lá que os taes conspiradores tinham rasão em estar com medo, isso tinham, +porque parecia mesmo<span class="pn"><a name="pg_127">{127}</a></span> +impossivel que Portugal resistisse. Tambem o que nos valeu foi a asneira dos +hespanhoes, que nos primeiros dois annos não fizeram senão dar um rebate falso +a uma praça, atacar outra, escaramuçar aqui, disparar uns tiros alem. Parecia +que estavam incumbidos por D. João IV de fazer andar os nossos soldados na +recruta. Em 1644 é que, pela primeira vez, fizeram assim movimento mais serio, +mas já tinhamos então soldados velhos, commandados por um bom general, Mathias +de Albuquerque, e os amigos hespanhoes levaram a primeira sova mesmo lá na sua +terra, em Montijo; em 1646 nova batalha em Telena, mas n'essa perdemos nós mais +do que lucrámos, ainda que os hespanhoes com isso nada ganharam tambem, porque +voltaram á costumeira antiga. Emfim, para encurtar rasões, quando D. João IV +morreu, em 1656, estavamos havia dezeseis annos n'aquella brincadeira, hoje +íamos nós á Hespanha e apanhavamos gado, ámanhã vinham elles cá e levavam-nos o +nosso. Mas quem lucrava com isso? Éramos nós, porque os nossos milicianos, e as +nossas ordenanças íam-se costumando á guerra, e cada vez este bocadinho de +Portugal se ía tornando para a Hespanha mais duro de roer.</p> + +<p>Em 1656 morreu pois D. João IV, como eu lhes disse, e succedeu-lhe seu filho +D. Affonso VI, a quem chamaram o <em>Victorioso</em>, como chamaram a D.<span +class="pn"><a name="pg_128">{128}</a></span> João IV o <em>Restaurador</em>, +mas emfim a este com mais um bocadinho de rasão.</p> + +<p>D. Affonso VI não era o filho mais velho, mas o mais velho, um rapazito que +dava esperanças, Theodosio, morrera em 1653. D. Affonso VI fôra desde creança +muito doente, nunca podéra aprender cousa nenhuma e tivera uma educação muito +descuidada. O seu gosto era brincar com os garotos que íam para debaixo das +janellas do paço, e, quando foi homem, andava em pandigas pela cidade, com uma +roda de facinoras que faziam tudo o que queriam á sombra d'elle, a ponto que +até havia mortes nas ruas de Lisboa! Como ainda era pequeno quando seu pae +morreu, ficou regendo o reino sua mãe D. Luiza de Gusmão, uma hespanhola muito +decidida, que diziam até que fôra quem mais concorrera para o marido acceitar a +corôa. A regente lá foi governando com acerto, emquanto o rapazote andava ao +laré com um tal Antonio Conti, que lhe soubera conquistar a amisade. A rainha +um dia pegou n'esse Antonio Conti, e ferrou com elle desterrado no Brazil. Ó +diabo que tal fizeste! o pequeno zanga-se, e, quando o conde de Castello Melhor +lhe disse que era bom que começasse a governar por si, porque tinha já chegado +á maioridade, D. Affonso, para pregar pirraça á mãe, acceitou; eu não louvo o +conde de Castello Melhor por ter aconselhado esta acção, mas a verdade é que D. +Affonso<span class="pn"><a name="pg_129">{129}</a></span> VI já estava em idade +de governar, e que, se não podia dirigir os negocios, sempre era melhor que por +elle os dirigisse um homem como o conde de Castello Melhor, que tinha uma +excellente cachimonia, do que a rainha, que, apezar de ser esperta, sempre era +senhora, e por isso menos capaz de governar o reino em tempo de guerra.</p> + +<p>Bem conheço que D. Affonso VI era um mau rei, que não tinha juizo, que se +entregava a divertimentos indecentes e até criminosos, mas uma qualidade tinha +elle, percebia perfeitamente que não sabia cuidar do reino, e deixava o +Castello Melhor fazer tudo quanto queria. Ora o Castello Melhor era uma das +melhores cabeças que têem governado o nosso paiz, como vocês vão ver, porque é +bom que saibam o que se passára na guerra.</p> + +<p>Logo depois da morte de D. João IV, um general portuguez, João Mendes de +Vasconcellos, fizera grande asneira. Vendo que os hespanhoes andavam só a fazer +fosquinhas, disse comsigo: Não nos hão de conquistar, e havemos de ser nós que +os conquistaremos a elles. Junta um exercito magnifico, e vae cercar Badajoz. +Ainda ali ganhámos uma batalha, que foi a do Forte de S. Miguel, mas a final +tivemos de levantar o cerco, depois de havermos perdido inutilmente a flor dos +nossos soldados. Ora o que succedeu? Foi que, no anno seguinte, quer dizer em +1659, os hespanhoes, picados<span class="pn"><a name="pg_130">{130}</a></span> +com o nosso atrevimento, saíram da sua pachorra, juntaram um exercito +formidavel commandado pelo proprio ministro do rei, D. Luiz de Haro, vieram +sobre Portugal e cercaram Elvas. A cousa esteve phosphorica, porque os nossos +melhores soldados tinham ficado estendidos diante de Badajoz, e andava isto por +cá muito desarranjado. Mas para alguma cousa haviam de servir os dezenove annos +de guerra. Em primeiro logar Elvas, governada por D. Sancho Manuel que foi +depois conde de Villa Flor, defendeu-se admiravelmente, em segundo logar o +conde de Cantanhede, depois marquez de Marialva, como não tinha outra gente, +reuniu um exercito quasi todo de milicianos e saltou nos hespanhoes que +cercavam Elvas. Foi no dia 14 de janeiro de 1659 que se deu a batalha, +conhecida pelo nome de batalha das linhas de Elvas, e nunca os hespanhoes +apanharam tamanha pilota. Os prisioneiros foram aos milhares, artilheria, +bagagens, tudo nos caío nas mãos, e o proprio D. Luiz de Haro escapou-se por um +fio. Tambem nunca mais nos perdoou aquella sova, e, quando n'esse mesmo anno +foi fazer a paz com a França, deu aos francezes tudo quanto elles quizeram, só +com uma condição—a de se não fallar em Portugal. Era patifaria graúda do +ministro francez, um padre, um tal cardeal Mazarino, porque as tareias que +davamos nos hespanhoes tinham feito muita conta aos francezes.<span +class="pn"><a name="pg_131">{131}</a></span> Mas o Mazarino foi apanhando o que +poude, e pouco lhe importou mandar-nos á fava.</p> + +<p>Vêem vocês a situação em que ficámos. Quando começámos a guerra com a +Hespanha, estava ella em guerra tambem com quasi toda a Europa, o que não era +mau para nós. Em 1648 fez a paz com muitas nações, e isso não foi lá muito bom, +porém, como a França continuava em guerra, e essa só por si dava mais que fazer +á Hespanha do que todas as outras juntas, ainda a cousa não ía mal; mas agora? +A França fazia a paz, quasi que se alliava com os hespanhoes, porque o rei de +França, Luiz XIV, casava com uma princeza hespanhola, e nós é que ficavamos em +campo, com a Hespanha ás costas. Ella ainda esteve dois annos a apalpar-nos, +mas em 1662 rompeu o fogo com alma. Poz um dos seus melhores generaes, D. João +de Austria, filho bastardo do rei, á frente dos seus exercitos, e caíu em cima +de nós com todo o seu peso.</p> + +<p>Ora foi exactamente em 1662 que entrou no poder o conde de Castello Melhor, +e foi sobre elle que desabou esse temporal desfeito. Nunca Portugal se vira em +tão maus lençoes. D. João de Austria tomava praças sobre praças, e na campanha +do anno immediato, 1663, quasi que chegava ás portas de Lisboa. Mas o ministro +fizera o diabo, parece que até das pedras tinha feito soldados. Depois, como +Mazarino era um finorio, que não desgostava<span class="pn"><a +name="pg_132">{132}</a></span> de jogar com pau de dois bicos, ao passo que +contentava a Hespanha, mandava-nos para cá os officiaes que podia, entre elles +o conde de Schomberg, que era um general de mão cheia. Não commandou nunca em +chefe, porque os nossos não gostavam, e tinham rasão, que elles já haviam dado +provas de que não precisavam de tutores; mas foi um excellente conselheiro. O +que é certo, meus amigos, é que, em tres annos successivos, em que os +hespanhoes fizeram todos os esforços para dar cabo de nós, levaram tres sovas +mestras; a primeira deu-lh'a em 1663 o conde de Villa Flor na batalha do +Ameixial, a segunda em 1664 Pedro Jacques de Magalhães na batalha de Castello +Rodrigo, a terceira em 1665 na batalha de Montes Claros o marquez de Marialva. +D'ahi por diante nunca os hespanhoes levantaram cabeça, e não pensaram mais em +tomar conta outra vez de Portugal.</p> + +<p>Ora o conde de Castello Melhor tinha uma grande idéa; dizia elle comsigo: os +hespanhoes levaram tanta pancadaria, que, se fazemos a paz com elles, ficando +nós simplesmente com o que tinhamos ao principio, póde-se dizer que fomos +logrados. Demais a mais Portugal é pequeno, a Hespanha é grande; em qualquer +bulha que tivermos estamos de mau partido. É necessario fazer Portugal maior e +a Hespanha mais pequena. E toda a sua tineta era obrigar os hespanhoes a +dar-nos a Galliza. E o<span class="pn"><a name="pg_133">{133}</a></span> que +fazia elle então? Encostava-se a Luiz XIV, rei de França, que andava namorando +umas provincias hespanholas lá de Flandres. Casava D. Affonso VI com uma +princeza franceza, e dizia comsigo: Mais dia menos dia, Luiz XIV pega-se com a +Hespanha. Nós vamos com elle. A Hespanha leva para o seu tabaco a valer. Elle +fica com as provincias que quizer, até com a Flandres toda, se isso lhe fizer +conta, e nós com a Galliza, e com mais alguma cousa se podér ser.</p> + +<p>—E era bem pensado, sr. João da Agualva, observou o Bartholomeu, porque é +que não havia de ser nossa a Galliza?</p> + +<p>—Tens rasão, e já vês que, se nós tivessemos a Galliza tambem, não +estavamos sempre com medo de ser engulidos pelos visinhos. Mas que queres tu? +Entretanto íam grandes intrigas no paço. A rainha, que era uma princeza toda +<em>liró</em> e toda costumada ás janotices da côrte de Luiz XIV, achando-se +casada com um homem que só se dava bem com moços de cavallariça, e que de mais +a mais era tão doente que nem marido podia ser, principiou a desgostar-se, e ao +mesmo tempo a agradar-se do infante D. Pedro, rapaz desempennado, que tambem +não desgostava da francezita. Pensaram em se juntar e governar o paiz. +Principiaram as intrigas. Tanto fizeram que conseguiram pôr fóra o conde de +Castello Melhor. Desamparado, o pobre D. Affonso VI não<span class="pn"><a +name="pg_134">{134}</a></span> tardou a ser expulso do throno, e até o +descasaram, coitado! Foi necessario para isso um processo que é uma vergonha, e +realmente não posso perceber como foi que uma rainha se deixou assim andar nas +bôcas do mundo!... Emfim, o que é certo é que desterraram o pobre D. Affonso +VI, mandando-o para a ilha Terceira; prenderam-n'o depois em Cintra, onde +morreu, e a rainha casou com o cunhado, e este ficou a governar o reino. Eu já +lhes disse, rapazes, que bem conheço os defeitos de D. Affonso VI; mas o pobre +homem, que era mesmo uma creança, que se não importava para nada com a +politica, que tivera a fortuna de acertar com um bom ministro que governava por +elle e governava bem, não merecia que lhe fizessem similhante entrega! Mette +dó, porque elle nem sabia defender-se, andava ali como o menino nas mãos das +bruxas.</p> + +<p>E o irmão, que lhe tirára a corôa, e que lhe tirára a mulher, nem ao menos +lhe dava a sua liberdade, nem lhe consentia que espairecesse. Tinha-o preso +n'um quarto em Cintra, e ali o deixou morrer de aborrecimento e de desgosto, a +elle que nunca fizera mal a ninguem senão com as suas tolas rapaziadas!</p> + +<p>Emfim, passemos adiante! O que é certo é que isto succedeu em 1667, e logo +no anno seguinte de 1668 fazia-se a paz com a Hespanha, sem lucro nenhum para +nós, porque nem ao menos apanhavamos<span class="pn"><a +name="pg_135">{135}</a></span> a praça africana de Ceuta, que era tão nossa, +por causa da qual morreu no captiveiro o infante santo, e que em 1640 não +conseguira livrar-se dos hespanhoes.</p> + +<p>Tanto se empenhára em governar o reino o sr. D. Pedro II, que desde 1667 até +1683, anno em que morreu D. Affonso VI, só tomou o titulo de regente, e a final +de contas não fez senão tolices. Demais a mais algumas cousas boas que deixou +fazer, logo as desmanchou. Um ministro que elle teve, o conde da Ericeira, quiz +ver se fundava fabricas em Portugal, mas em 1703 um tratado com a Inglaterra, +conhecido pelo nome de tratado de Methwen, que este era o nome do embaixador +que o assignou, deu cabo da nossa industria. Conservou-se em paz, tanto que lhe +deram o nome de <em>Pacifico</em>, e vae no fim do seu reinado mette-se sem +mais nem menos na guerra da successão de Hespanha, favorecendo D. Carlos da +casa de Austria contra D. Filippe da casa de Bourbon. Como tinhamos então um +excellente general, que era o marquez das Minas, deu-nos este o gostinho de +entrar victorioso em Madrid, e de proclamar ali D. Carlos rei de Hespanha; mas +esse gostinho não tardámos a amargal-o, porque, morrendo D. Pedro II no dia 1 +de dezembro de 1706, logo no dia 25 de abril de 1707 era o marquez das Minas +batido na batalha de Almanza com graves perdas para nós, tanto que até ao fim +da guerra<span class="pn"><a name="pg_136">{136}</a></span> póde-se dizer que +nunca mais levantámos cabeça.</p> + +<p>Subio ao throno D. João V, e eu, para lhes dizer a verdade, o que não posso +perceber é como ha historiadores que gabam aquelle rei. Cá para mim foi um dos +peores que nós tivemos. Possuia algumas qualidades que não eram de todo más, +era porém o mesmo que se as não tivesse, porque não pensava senão no beaterio, +e em obras grandes e magnificas, que a maior parte das vezes para nada serviam. +Logo por desgraça foi n'esse reinado que começaram a render rios e rios de +dinheiro as minas do Brazil, e tudo era pouco para o rei que não cuidava senão +de si e nada do reino. Por exemplo, achou-se embrulhado com a Hespanha e com a +França n'uma guerra que no seu tempo não foi senão desastrosa. Uns corsarios +francezes deram-nos cabo do Rio de Janeiro e levaram-nos umas riquezas +espantosas. Pois não encontrou aquelle homem uns poucos de navios para saltarem +tambem nas colonias francezas, ou para protegerem as nossas! Emfim! se os não +tinhamos, paciencia! Mas d'ahi a pouco saíu de Lisboa uma excellente esquadra +em soccorro do papa, commandada pelo conde do Rio Grande, esquadra que foi +bater os turcos no cabo Matapan! Ora vejam se ha um patarata assim! Annos +depois, por causa de uns insultos feitos em Madrid ao nosso embaixador, está +para rebentar a guerra com a<span class="pn"><a name="pg_137">{137}</a></span> +Hespanha. Fazem-se preparativos, e vê-se que não temos nem exercito, nem +marinha. De que tratou logo D. João V? De comprar armamento? Qual historia! De +mandar fazer em Paris, para si, uma barraca de campanha muito rica, e tão +luxuosa que toda a gente a ía ver!!</p> + +<p>Não tinhamos estradas, não tinhamos rios canalisados, não tinhamos +desentulhados os portos, não tinhamos nada do que nos era necessario, mas +tinhamos aquella monstruosidade do convento de Mafra que custou 120 milhões de +cruzados, que não serve para cousa nenhuma, e que nem ao menos é bonito. Dizem +que gostava muito de imitar Luiz XIV, mas o que me dizia o engenheiro francez +que esteve aqui em Bellas, é que Luiz XIV mandava ir sabios para França, dava +pensões aos sabios estrangeiros, e este o que dava era dinheiro para igrejas, e +o que mandava vir era de Roma bullas e capellas. Dizem que nunca deixou ás +nações estrangeiras pôr pé em ramo verde comnosco. Quem lhe valeu para isso +foram os diplomatas que teve, que nunca em Portugal os houve tão bons, e tambem +o ser tão orgulhoso que ía aos ares só com a idéa de que mangavam com elle.</p> + +<p>Mas no mais não me fallem em D. João V, que até me sobe o sangue á cabeça. +Pois vocês conhecem cousa que mais indigne do que ir um homem ali para Lisboa, +no campo da Lã, ver os inquisidores<span class="pn"><a +name="pg_138">{138}</a></span> queimarem gente de bem, ou porque não gostavam +de toucinho, ou porque nem sempre íam á missa, e depois montar a cavallo, para +se metter em Odivellas na cella de uma freira e passar ali a noite? Eu digo que +me chega a parecer nem sei o que uma malvadez assim.</p> + +<p>Morreu em 1750 esse rei que não fez nada bom em Portugal, a não ser as +Aguas-Livres. Pouco mais dinheiro gastou que se podesse dizer que fosse bem +gasto. E digo-lhes que, se vocês olharem para o paiz, até lhes ha de fazer +pena. A nobreza já não se compunha senão simplesmente de criados do paço, o +clero immenso e corrompido enchia o reino com os seus padres e os seus +conventos, e conservava o povo n'uma ignorancia completa, o povo, miseravel, +vadio, ou emigrava para o Brazil, ou pedia esmola ás portarias dos conventos, +ou sentava-se ao sol. Tinhamos chegado ao mais baixo a que podiamos chegar. +Felizmente, quando uma nação desce a tal ponto, sempre apparece alguem que a +levante e esse, eu, para o outro domingo, lhes direi quem foi. Por hoje basta. +Quando fallo no sr. D. João V, o <em>Magnifico</em>, e penso no mal que elle +fez ao paiz, fico sempre macambusio, e então o melhor é ir-me deitar.<span +class="pn"><a name="pg_139">{139}</a></span></p> + + + +<h1>NONO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">D. José I.—As transformações sociaes.—O marquez de Pombal +e a revolução.—Terramoto de 1 de novembro de 1755.—As grandes reformas de +Sebastião de Carvalho.—Expulsão dos jesuitas.—Reforma da +universidade.—Reorganisação do +exercito.—Agricultura.—Industria.—Inquisição.—Christãos novos e christãos +velhos.—Politica estrangeira.—Energia com Roma e com +Inglaterra.—Reconstrucção de Lisboa.—Estatua de D. José.—Attentado contra o +rei.—Supplicio dos Tavoras.—D. Maria I.—Reacção contra as medidas do marquez +de Pombal.—Processo do grande ministro.—Pina Manique, Francisco de +Almada.—Martinho de Mello.—Loucura da rainha.—Regencia do principe D. +João.—A republica franceza.—Campanha do Roussillon.—Campanha de +1801.—Napoleão e o tratado de Fontainebleau.—Fuga da familia real para o +Brazil.—Guerra peninsular.—Congresso de Vienna.—D. João VI.—Conspiração de +1817.—Revolta de Pernambuco.—Revolução de 1820.</p> + +<p> </p> + +<p>Hão de vocês notar, rapazes, observou o João da Agualva mal todos se +sentaram no domingo seguinte em torno da lareira, que, em estando para haver +uma grande mudança na sorte dos homens, parece que todos, sem o querer e sem o +saber, trabalham para essa mudança, desejando fazer muitas vezes exactamente o +contrario. Por exemplo, lembram-se vocês que ali por 1500 é que os reis se +fizeram senhores absolutos, porque acabaram com os privilegios da nobreza, e +com os foraes do povo. Quem<span class="pn"><a name="pg_140">{140}</a></span> é +que contribuiu para isso? O povo, que ajudou o rei a dar cabo dos nobres. Agora +encaminha-se tudo para a liberdade e para a igualdade, e quem é que no nosso +paiz vae concorrer mais para similhante cousa? O marquez de Pombal. Dir-me-hão +vocês: Então o marquez de Pombal era algum liberalão por ahi alem como os de +vinte? Qual historia! Era um tyranno e dos mais ferozes que nunca houve, mas, +sem o querer e sem o saber, ninguem mais do que elle trabalhou pela liberdade. +</p> + +<p>Em primeiro logar hão de vocês saber que o rei D. José, que subiu ao throno +por morte de seu pae D. João V, quasi que nem conhecia o marquez de Pombal, que +já era homem dos seus cincoenta annos, e que tinha andado por fóra como +embaixador, ora em Londres, ora em Vienna de Austria, onde casára com a filha +de um figurão austriaco. Quem metteu empenhos para que elle fosse ministro foi +a mãe de D. José, D. Marianna se chamava ella, archiduqueza de Austria, e por +isso amiga da mulher do marquez, que então se chamava simplesmente Sebastião +José de Carvalho e Mello. Era um ministro como os outros, e o rei não fazia +mais caso d'elle do que fazia dos seus collegas, quando de repente acontece uma +grande desgraça em Lisboa, que veio a ser o terramoto do dia 1 de novembro de +1755. A cidade foi quasi toda a terra, morreram muitas mil pessoas, outras +ficaram a pedir esmola,<span class="pn"><a name="pg_141">{141}</a></span> e +sobretudo reinava um terror tamanho que ninguem sabia o que havia de fazer nem +para onde se havia de virar. O Sebastião de Carvalho não perdeu a tramontana. +Toma elle a direcção de tudo, arranja sustento, enforca ás portas da cidade +quantos ladrões apanha, porque isso então era uma praga, trata do desentulho, e +logo em seguida de reconstruir a cidade, isto com uma actividade, com um +desembaraço, com um acerto, que D. José disse comsigo: Temos homem! D'ahi por +diante quem governou foi elle, e é de uma pessoa pasmar ver o que fez. Até ahi +os governos, para fallar a verdade, em quem menos pensavam era no povo e no +paiz. O dinheiro do estado não servia senão para elles fazerem o que lhes +agradava, e por felizes se podiam dar os povos quando lhes dava o capricho para +cousas uteis. Sebastião José de Carvalho e Mello tratou do paiz e mais nada. +Ora de que é que o paiz precisava?</p> + +<p>Precisava, primeiro que tudo, de acabar com as despezas no gosto das que +fazia el-rei D. João V, que era umas mãos rotas com fidalgos e com igrejas.</p> + +<p>Precisava de poder pensar e estudar, sem ser sempre debaixo da palmatoria +dos frades e dos jesuitas.</p> + +<p>Precisava de acabar com a inquisição, porque era uma vergonha que ainda se +queimasse gente em Portugal só porque não ía á missa.<span class="pn"><a +name="pg_142">{142}</a></span></p> + +<p>Precisava de ter exercito e de ter marinha.</p> + +<p>Precisava de ter industria.</p> + +<p>Precisava de ter lavoura.</p> + +<p>E nada d'isto elle tinha.</p> + +<p>Sebastião de Carvalho via estas cousas e disse comsigo: Mãos á obra. Ora +digam-me vocês: Quando chegam a uma quintarola que compraram e vêem tudo +estragado: os pardaes a darem cabo da fructa, as cearas a morrerem á sede, a +terra fraca por falta de estrume, as hervas ruins a afogarem o trigo, o que é +que fazem? Arregaçam as mangas e dizem: Vamos a isto. E sacham as hervas, sem +dó nem piedade, e saltam ao tiro nos pardaes até os pôrem fóra, e deitam +estrume na terra, e levam a agua da rega para as cearas, e levantam os muros +arrasados, e enxotam os porcos que lhes vinham fossar nas batatas, e sacodem as +gallinhas que lhes depinicavam tudo, e até vocês se riam se os accusassem de +crueldade porque matavam os pardaes, ou porque arrancavam e deitavam fóra as +hervas ruins.</p> + +<p>Pois Sebastião José de Carvalho e Mello tratou Portugal exactamente como +vocês tratariam a tal quintarola. Olhou para tudo e disse comsigo: Eh! com os +diabos, como isto está. No paço ha um bando de pardaes que dá cabo da melhor +fructa dos pomares da nação. Toca a enxotar os pardaes, e, como os pardaes +refilaram, saltou ao tiro n'elles. As cearas<span class="pn"><a +name="pg_143">{143}</a></span> da intelligencia, que tambem são trigo porque +dão o pão do espirito, não podiam medrar porque os affogava por toda a parte o +joio do jesuitismo. Toca a sachar os jesuitas. Os muros da quinta estavam +arrasados, quer dizer, estavam as fronteiras a descoberto, e em vez de haver +fortes o que havia era igrejas, e elle mandou fazer o forte da Graça em Elvas, +e poz o exercito a direito, mandando vir para isso um militar estrangeiro, o +principe de Lippe, que era da escola de um rei da Prussia que foi o primeiro +militar do seu tempo. Não havia lavoura nem havia industria, porque ninguem lhe +dava a protecção da rega e do adubo, e Pombal deu-lhe tudo isso á moda do seu +tempo, que elle tambem não podia adivinhar o que hoje se sabe. Elle reformou os +estudos e a universidade, elle fundou companhias e fabricas, elle partiu os +dentes á inquisição, elle poz fóra os jesuitas, elle tirou a censura dos livros +aos padres, elle acabou com distincções de christãos-novos e christãos-velhos, +e na India e no Brazil acabou tambem com todas as tolices das raças, elle +arreganhou os dentes a Roma, e soube pôr o papa no seu logar, elle bateu o pé á +Hespanha, elle fez-se respeitar da Inglaterra, elle acabou com os morgados +pequenos que só faziam mal á lavoura, elle não deixou que entrassem para padres +e frades todos quantos o queriam ser, porque, se as cousas continuassem assim, +ás duas por tres não<span class="pn"><a name="pg_144">{144}</a></span> havia +senão cabeças rapadas em Portugal, emfim, meus amigos, é de uma pessoa pasmar +ver que aquelle diabo de homem, que ao mesmo tempo fazia de Lisboa uma cidade +nova e levantava uma estatua ao seu rei no Terreiro do Paço, em tudo poz a mão, +tudo melhorou, tudo reformou, tudo arranjou, e póde-se dizer que virou a nação +de dentro para fóra. Já se vê que fez tudo isto com o «posso, quero e mando.» +Mas a quem é que prestou verdadeiros serviços? Foi á liberdade, porque tirou o +povo da miseria e da ignorancia em que vivia, porque o livrou de ter os +jesuitas por tutores, e assim o animou a cuidar dos seus direitos, e o preparou +para um bello dia reclamar a liberdade. Foi cruel, bem sei, não digo menos +d'isso. Tratou os homens como se fossem pardaes, e praticou mesmo barbaridades +escusadas; mas que diabo! não sei que sina é esta: reforma graúda sem muito +sangue parece que não ha modo de se fazer; uma vez são os reformadores que +derramam o seu proprio sangue, e então é que a reforma vem de Deus, como +acontece com o christianismo; outras vezes os reformadores derramam o sangue +dos outros, e então é que a reforma vem dos homens, como aconteceu com a +revolução franceza; porque lá isso de regar as arvores do bem com o sangue das +nossas proprias veias, Deus é que o ensina, que os homens só por si não são +capazes de chegar a tanto.<span class="pn"><a name="pg_145">{145}</a></span> +</p> + +<p>—Ó sr. João, exclamou o Bartholomeu, mas parece-me que tenho ouvido dizer +que os Tavoras, o duque de Aveiro e os mais fidalgos soffreram tormentos do +diabo ali na praça de Belem. Ora, ainda que fosse necessario dar cabo d'elles, +acho que não era preciso atormental-os, e que o marquez de Pombal tinha na +verdade cabellos no coração.</p> + +<p>—Não digo menos d'isso, Bartholomeu, mas ouve lá uma cousa: tu sabes porque +é que os fidalgos foram executados, não sabes? Foi por darem uns tiros no rei. +Elles queriam livrar-se do ministro, o rei não largava o ministro, cada vez se +lhe agarrava mais, como depois mostrou, fazendo-o conde de Oeiras e marquez de +Pombal, e então lembraram-se de dar cabo de D. José. Ora sabes tu como fôra +castigado em França, pouco tempo antes, um homem que tinha querido matar o rei +Luiz XV? Foi posto a tormentos, depois nas feridas abertas deitaram-lhe chumbo +a ferver, e a final ataram-n'o aos rabos de quatro cavallos, e +esquartejaram-n'o. E comtudo ninguem diz que Luiz XV tivesse cabellos no +coração. As cousas faziam-se assim no seu tempo, não foi o marquez de Pombal +que as inventou.</p> + +<p>Hão de vocês dizer: Este diabo gaba sempre as tyrannias por toda a parte. Já +defendeu D. João II, agora defende o marquez de Pombal. Eu não as louvo, +rapazes. Se vivesse n'esses tempos e podesse, havia de berrar contra ellas; mas +cá de longe, vendo<span class="pn"><a name="pg_146">{146}</a></span> as cousas +com socego, digo que ninguem é perfeito, e que todos os homens têem, como dizia +o tal engenheiro francez que esteve em Bellas, os defeitos das suas qualidades. +Ali está o Francisco Artilheiro que foi soldado: havia de ter servido com +muitos coroneis. Encontrou algum que fosse teso a valer e que ao mesmo tempo +desatasse a chorar, no tempo das varadas, quando tinha de mandar chibatar algum +soldado? Não póde ser. Estes pimpões que quebram todos os abusos, que põem um +joelho de ferro em cima de todas as revoltas, fazem aos homens o mesmo que +fazem ás cousas, e o dever de quem depois conta a historia é perceber isso +tudo, e não estar a berrar contra aquelles que fizeram serviços ao seu paiz, só +porque nem sempre paravam onde seria melhor que tivessem parado.</p> + +<p>Mas vamos nós ao resto da historia que d'aqui a pouco já as noites são mais +pequenas, e mal chega o tempo para dormir a quem tem de se levantar com o sol. +D. José morreu em 1777, e, apenas elle fechou os olhos, rebentou o odio que +havia contra o grande ministro; ninguem quiz lá pensar no bem que elle tinha +feito, e todos clamaram contra as suas crueldades. Demais a mais quem succedia +a D. José era sua filha a rainha D. Maria I, muito beata, embirrando muito com +o marquez, porque desconfiava que elle quizera fazer passar o throno para o +filho<span class="pn"><a name="pg_147">{147}</a></span> d'ella, um rapazito +muito esperto, chamado D. José; e então o rei a morrer hoje e o ministro a ser +demittido ámanhã. Não houve picardia que lhe não fizessem. Mandaram-n'o para a +sua quinta do Pombal, e, estando elle já doente e amargurado, moeram-n'o com +perguntas porque lhe armaram um processo. Se podessem desfazer tudo o que elle +fizera, desfaziam, mas a final só soltaram os presos, porque emquanto ao mais +tiveram medo de dar bordoada no finado rei, que a final de contas respondia +pelos actos do ministro, porque elle é que assignava as ordens. Tiraram o +retrato do marquez da memoria do Terreiro do Paço, qué só em 1834 se tornou a +pôr como era justo; em vez do retrato pozeram as armas de Lisboa que são um +navio á véla, e foi então que o marquez de Pombal disse, ao saber do caso: Ai! +Portugal que vaes a véla!</p> + +<p>Bem quizera D. Maria I admittir os jesuitas outra vez, mas não podia ser, +porque o marquez de Pombal não só os expulsára de Portugal, mas fizera uma liga +contra elles em toda a Europa, e conseguira que o papa Clemente XIV acabasse +com a Ordem. Muito trabalharam os parentes dos Tavoras para conseguir que se +désse uma sentença a declarar que era peta o que se dissera a seu respeito, e +injusta a sentença que os condemnava; mas a final não conseguiram isso, porque +a rainha percebeu que, condemnando o marquez de Pombal, a quem condemnava era +ao pae.<span class="pn"><a name="pg_148">{148}</a></span></p> + +<p>No mais tudo andou para traz, a não ser na marinha, que teve um bom +ministro, Martinho de Mello, e n'isto de escolas que sempre se foram +desenvolvendo. Houve alem d'isso dois homens que fizeram muito bem a Lisboa e +ao Porto, a saber, o intendente da policia Pina Manique e o corregedor do Porto +Francisco de Almada. É que já se não podia deixar de cuidar de melhoramentos; +mas o que deu cabo de nós foi a birra que tivemos em nos metter na bulha contra +a republica franceza. Isso, fallar em Portugal nas idéas novas, era o mesmo que +fallar no diabo, e D. Maria I, em vez de tratar da sua vida, seguio o caminho +de D. João V. Este ía-se metter com os turcos que lhe não faziam mal nenhum, D. +Maria I foi-se metter com a republica franceza, que estava lá tão longe e que +nada tinha com Portugal.</p> + +<p>O que resultou d'aqui é que mandámos uma divisão ao Russilhão a ajudar os +hespanhoes, e uma esquadra a Toulon a ajudar os inglezes. A divisão do +Russilhão portou-se o que se chama bem, mas depois? A Hespanha fez a paz com a +França, e nós ficámos a olhar ao signal, a Inglaterra mettia-nos na dança, e +depois punha-se de palanque. Tivemos de andar a pedir a paz á republica +franceza, quasi de joelhos, e o Napoleão, que já n'esse tempo começava a +governar em França, e que nos tinha jurado pela pelle, teve a habilidade de +açudar a Hespanha<span class="pn"><a name="pg_149">{149}</a></span> contra nós, +resultando d'ahi a guerra de 1801. Foi uma guerra vergonhosa. Tinhamos o +exercito escangalhado, não fizemos senão levar bordoada, e, para alcançarmos +paz, tivemos de pagar bom dinheiro, e de dar aos hespanhoes Olivença que nunca +mais apanhámos. De nada nos valeram todas as humilhações. Em 1807, Napoleão, +que já era imperador, e que andava n'uma lucta de morte com a Inglaterra, quiz +que fechassemos os portos aos nossos antigos alliados. Andámos a hesitar, até +que Napoleão, que não gostava de perder tempo, declara que a casa de Bragança +deixára de reinar, e mette-nos cá dentro um exercito commandado pelo Junot. A +familia real não teve senão tempo de fazer as malas e de partir para o Brazil, +por conselho dos inglezes. Devo-lhes dizer uma cousa: a rainha D. Maria I +endoidecera havia muito tempo, e quem governava em seu nome como principe +regente desde 1792, era o principe D. João, seu filho mais velho, porque +aquelle D. José, de quem lhes fallei, e que dava tantas esperanças, tinha +morrido em 1788.</p> + +<p>Imaginem vocês como ficaria o povo com esta <em>partida</em>, e agora é que +é o caso de se lhe chamar <em>partida</em>.</p> + +<p>Abandonado pela familia real, viu o Junot tomar conta do governo, agarrar no +exercito portuguez, que não tinha ordem para resistir, e mandal-o para França +servir no exercito de Napoleão, lançar contribuições<span class="pn"><a +name="pg_150">{150}</a></span> pesadas como o diabo, e emfim tratar isto como +terra conquistada. E, para maior vergonha, Junot invadira o paiz, no coração do +inverno, com meia duzia de gatos, e entrára em Lisboa á frente de quatro +soldados estropiados e esfarrapados. A vergonha de todas estas humilhações +começou a fazer ferver o sangue aos portuguezes, e um bello dia rebentou a +revolta no Porto. Foi como quem diz um rastilho de polvora. Desde o Minho até +ao Algarve, não houve terra em que se não pegasse em armas contra os francezes. +O Junot mandou as suas tropas esmagar as revoltas, e os francezes fizeram então +cousas do arco da velha, mataram, roubaram, queimaram...</p> + +<p>—Ah! pae do céu! exclamou a tia Margarida, eu era bem pequenina então, +havia de ter sete ou oito annos, mas lembra-me do que minha mãe me contava. +Havia um que ella chamava o <em>Maneta</em>, que isso parece que era o diabo em +pessoa.</p> + +<p>—Era o general Loison, que não tinha um braço. Em Evora fez elle o demonio, +mas, por mais que fizessem, não conseguiam acabar com a revolta. Era pobre +gente do povo, sem armas, sem disciplina, sem chefe, que assim se levantava +contra os francezes, e estes davam-lhe para baixo facilmente, mas a gente +levava aqui em Bellas, levantava-se em Cintra, íam os francezes a Cintra, +levantavam-se os de Bellas. Demais a mais, cada qual faz a guerra<span +class="pn"><a name="pg_151">{151}</a></span> como póde. Lá em batalha não +podiam os nossos medir-se com os soldados de Napoleão. O que faziam? Davam-lhes +caça; em os apanhando separados, carga para cima d'elles. Era facada, era +paulada, era tiro de bacamarte, era o que podia ser, com os diabos! que um povo +é como uma pessoa, quando o querem pisar aos pés, defende-se com unhas e +dentes. Mas n'isto os inglezes, que andavam á tóca de ver se podiam saír da sua +ilha e desembarcar n'algum sitio onde podessem incommodar Napoleão, assim que +viram que Portugal estava revoltado, desembarcaram aqui um exercito commandado +por um sugeito chamado Wellington, que, se não era tão bom general como +Napoleão, pelo menos parece-me que ainda seria mais feliz do que elle. O Junot, +que não passava de ser um valentão, foi batido pelos inglezes na Roliça e +Vimeiro, onde os nossos, já se vê, tambem combateram ao lado das fardas +vermelhas, que é, como vocês sabem, o uniforme inglez, e, para se safar de +Portugal, teve de capitular. É verdade que o patife apanhou uma capitulação, +que a não podia ter melhor se fosse elle que houvesse dado a tunda nos +inglezes. Levou-nos tudo o que nos tinha roubado, e nem se fallou nos nossos +soldados que lá andaram, contra vontade sua, a servir no exercito de Napoleão. +</p> + +<p>—Ó sr. João, acudiu o Manuel da Idanha, vocemecê<span class="pn"><a +name="pg_152">{152}</a></span> ha de desculpar uma pergunta, mas parece-me que +ninguem póde vir por terra de França a Portugal, sem passar pela Hespanha, não +é verdade?</p> + +<p>—É sim, rapaz; mas que queres tu dizer com isso?</p> + +<p>—Quero dizer que não percebo como foi que o Junot cá veio. Então os +hespanhoes deixaram-n'o passar?</p> + +<p>—Fizeram mais alguma cousa, vieram com elle, porque n'esse tempo estavam +ainda muito manos com os francezes, tanto que repartiram entre si Portugal como +quem reparte um melão, uma talhada para este, outra talhada para aquelle, etc. +Mas o Napoleão surripiou aos hespanhoes a sua familia real, e fez rei de +Hespanha um seu irmão chamado José, de fórma que, quando nós nos revoltámos, +revoltaram-se elles tambem, e começámos uns e outros á lambada aos francezes. +</p> + +<p>Entretanto cá se arranjára um governo; tratou elle de organisar o exercito, +que ainda era á moda de 1640, e que só precisava de um general como o principe +de Lippe para ficar uma joia. Esse general appareceu, foi um inglez chamado +Beresford, que n'um abrir e fechar de olhos poz tudo a direito. O que é certo, +meus amigos, é que na guerra da Peninsula, que durou seis annos, os nossos +soldados, combatendo ao lado dos soldados inglezes, passavam<span class="pn"><a +name="pg_153">{153}</a></span> por ser tão bons como elles e talvez melhores. +Já se vê que tinha sido necessario virem muitos officiaes inglezes para os +nossos regimentos, porque a officialidade portugueza estava toda dispersa, uns +tinham ido para França, outros para o Brazil, e outros, diga-se a verdade, não +prestavam para nada.</p> + +<p>—Ó sr. João, dá licença que lhe faça uma pergunta? interrompeu de novo o +Manuel da Idanha.</p> + +<p>—Faze, rapaz, podéra! Pois então para que estou eu aqui?</p> + +<p>—Porque é que se chamou a essa guerra a guerra da Peninsula?</p> + +<p>—Não te disse eu, rapaz, no principio d'esta conversa, que Portugal e a +Hespanha juntos formavam uma peninsula, quer dizer quasi uma ilha, porque a +cérca o mar por toda a parte menos por um lado, que é onde pega com a França +pelos Pyrenéus?</p> + +<p>—Disse, sim senhor.</p> + +<p>—E não te acabei de dizer que, quando nos revoltámos contra Napoleão, +revoltaram-se tambem os hespanhoes, e que desatámos uns e outros á pancada aos +francezes?</p> + +<p>—Tambem é verdade.</p> + +<p>—Pois então ahi tens tu: a guerra era de Hespanha e de Portugal, por +conseguinte era a guerra da Peninsula.<span class="pn"><a +name="pg_154">{154}</a></span></p> + +<p>—Ora tambem quero fazer uma pergunta, disse a tia Margarida.</p> + +<p>—Pois então, tia Margarida! Era o que faltava era que as mulheres não +tivessem a palavra.</p> + +<p>—O que você precisava era de um puxão de orelhas, mas emfim lá vae a +pergunta. Eu, sempre que minha mãe fallava n'essas cousas, ouvia-lhe dizer que +os francezes eram muito maus, mas que os inglezes talvez ainda fossem peores. +Ora você diz que os inglezes vieram ajudar-nos...</p> + +<p>—Dizia muito bem a sua mãe, tia Margarida, mas eu tambem não digo mal. +Soldados inglezes sempre foram abrutados, principalmente em estando com o +vinho. Nunca vieram a Portugal senão ajudar-nos, e nunca tambem cá vieram que +não ficasse tudo a berrar contra elles. Olhem no tempo de D. Fernando. +Parece-me que lhes contei que, vindo elles combater ao nosso lado contra os +hespanhoes, fizeram o que o demonio não fez. E, agora que já respondi ás suas +perguntas, vou continuar a minha historia.</p> + +<p>O Junot foi posto fóra em 1808, os inglezes então viraram-se contra os +francezes que estavam na Hespanha, e metteram-se pela Galliza dentro, mas o +Soult, apanhando-os lá, deu-lhes uma tareia formidavel, e depois veio sobre +Portugal e entrou no Porto. A gente do Porto, a fugir dos francezes, metteu-se +na ponte de barcas que então havia sobre o<span class="pn"><a +name="pg_155">{155}</a></span> Douro, para passar para o outro lado; a ponte +abateu e morreram milhares de pessoas.</p> + +<p>—Ah! bem sei! interrompeu a tia Margarida, diz que foi o dia de juizo.</p> + +<p>—Ora se foi! os francezes pararam no Porto, mas nós e os inglezes fomo-nos +a elles d'ahi a tempo e pozemol-os fóra. O Napoleão, embirrando com o caso, +mandou um exercito commandado pelo marechal Masséna, um dos seus melhores +generaes, com ordem de atirar o Wellington ao mar; mas o Wellington, que era +homem avisado, e que não gostava de tomar banhos de choque, aproveitára o tempo +a arranjar as linhas de Torres Vedras, de traz das quaes se metteu. O Masséna +bateu com as ventas nas linhas, vio que não podia fazer nada, foi-se embora, e +nós logo atraz d'elle.</p> + +<p>Para encurtar rasões, em quatro annos de campanha, fomos a pouco e pouco +empurrando os francezes pela Hespanha fóra, em 1814 entrámos em França de +embrulhada, e, como os russos, os austriacos e os prussianos tambem entraram +por outro lado, levando o Napoleão adiante de si, caíu aquella caranguejola +toda, o Napoleão teve de dar a sua demissão de imperador, e nós ficámos livres +dos francezes.</p> + +<p>Dois annos depois, em 1816, morreu a rainha D. Maria I no Brazil, sem que +ninguem, por assim dizer, désse por isso. O principe regente tomou o<span +class="pn"><a name="pg_156">{156}</a></span> nome de D. João VI e continuou +tudo como até ahi.</p> + +<p>Entretanto em Portugal estava tudo descontente. O povo levantára-se contra +os francezes por sua conta e risco, e parecia-lhe historia que o rei, que +fugira, continuasse a não fazer caso nenhum d'elle.</p> + +<p>Em Hespanha tinham-se reunido côrtes e arranjára-se uma constituição pela +qual se acabava com o poder absoluto dos reis. Em Portugal, se não se fizera o +mesmo, não fôra por falta de vontade, mas os inglezes não deixavam. Todos +percebiam, porém, que se não podia voltar á antiga, como se não se tivesse +passado cousa nenhuma no intervallo. Por outro lado a teima do rei em ficar no +Brazil já nos ía fazendo chegar a mostarda ao nariz, tanto mais que, ao passo +que havia por cá muita miseria, estava sempre a ir dinheiro para o Brazil, e +não só dinheiro mas tropa tambem, porque D. João VI, em 1817, lembrára-se de +juntar Montevideu ao Brazil, como se o Brazil ainda fosse pequeno, aproveitando +para isso a revolta das colonias hespanholas. Emfim, a conservação de Beresford +e dos coroneis inglezes no quadro do exercito portuguez incommodava os nossos +officiaes, e descontentava a nação.</p> + +<p>Em 1817, descobre-se ainda por cima uma conspiração liberal, dão como +implicado n'ella, com provas<span class="pn"><a name="pg_157">{157}</a></span> +de cá cá rá cá, um general muito estimado, Gomes Freire de Andrade, de quem +diziam que Beresford tinha ciumes, e enforcam-n'o. Tudo isto ía fazendo ferver +o sangue aos portuguezes, e, quando em 1820 começou a haver revoluções liberaes +por toda a parte, rebenta tambem uma revolução liberal no Porto, espalha-se +logo por todo o reino, chega a Lisboa, e pega-se ao Brazil. D. João VI é +obrigado a acceital-a, e a vir para Portugal, a mandar embora os officiaes +inglezes, e a assignar uma constituição que as côrtes fizeram; mas os governos +lá de fóra, e logo os mais poderosos, acharam perigoso que se tornasse a fallar +em liberdade e constituições, e decidiram que viesse um exercito francez pôr a +mordaça na boca aos liberaes da Hespanha, emquanto um exercito austriaco ía +fazer o mesmo aos da Italia. Apenas cá chegou a noticia, os amigos do +absolutismo, que tinham por chefe o infante D. Miguel, segundo filho do rei, +levam este para Villa Franca, e deitam abaixo a constituição. Mas o que a fez +caír não foram elles, foram os passos dos soldados francezes que já a essas +horas andavam por Hespanha.</p> + +<p>Entretanto o Brazil, onde ficára governando o principe D. Pedro, que era o +filho mais velho do rei, fazia-se independente. Antes d'elle tinham feito o +mesmo as colonias visinhas que pertenciam á Hespanha, e cincoenta annos antes +as que pertenciam<span class="pn"><a name="pg_158">{158}</a></span> á +Inglaterra. No Brazil já houvera duas tentativas de revolta, e ambas tinham +sido afogadas em sangue, uma em 1789, outra em 1817. A final venceram. Accusam +muito D. Pedro de se ter feito imperador do Brazil, e de se haver revoltado +contra seu pae. Elle não se revoltou, mas só podia fazer uma de duas cousas, ou +ir com os brazileiros, ou pôr-se no andar da rua. Então esses figurões +imaginavam que um paiz rico, grande e forte, está agora para receber ordens de +outro mais pequeno, ou maior que elle seja, e que fica de mais a mais do outro +lado do mar? Ora, historias da vida! e não se queixem d'isso. É ordem das +cousas. As colonias são como os filhos. A gente educa-os, trata-os, deixa-os ir +crescendo. Quando são maiores emancipam-se. E ninguem tem que estranhar. Foi o +que aconteceu com o Brazil. Estava maior, emancipou-se. Perdemos o Brazil em +1825, em 1826 morreu D. João VI. Os seus ultimos dias foram amargurados. Tivera +guerra com o filho mais velho que se revoltára com o Brazil; estivera para ser +desthronado pelo filho mais novo, D. Miguel, que o chegára a prender na +Bemposta, e que elle depois tivera que mandar para fóra do reino; a mulher, D. +Carlota Joaquina, que estava sempre ás turras com elle, nunca lhe déra senão +desgostos. Falleceu ralado o pobre do rei, que era uma excellente pessoa, amigo +de tomar o seu rapé com socego, e que para sua desgraça governára no tempo<span +class="pn"><a name="pg_159">{159}</a></span> da revolução franceza, no tempo de +Napoleão, e no tempo da revolução de 1820. E ha de a gente acreditar no rifão: +Dá Deus o frio conforme a roupa.</p> + +<p>E, como eu tambem estou com frio, rapazes, vou até casa á procura de roupa, +e no proximo domingo acabaremos com isto.<span class="pn"><a +name="pg_160">{160}</a><br><a +name="pg_161">{161}</a></span></p> + + + +<h1>DECIMO SERÃO</h1> + +<p class="sinopse">Historia contemporanea.—D. Pedro IV.—A Carta +Constitucional.—Regencia da infanta D. Izabel Maria.—D. Miguel, rei +absoluto.—Sublevação do Porto.—Emigração.—A ilha Terceira.—O conde de +Villa Flor.—Perseguição aos liberaes.—A esquadra franceza no Tejo.—D. Pedro +IV põe-se á frente dos liberaes.—Desembarque no Mindello.—Cêrco do +Porto.—Expedição do Algarve.—Batalha do Cabo de S. Vicente.—Entrada das +tropas do duque da Terceira em Lisboa, a 24 de julho.—Cêrco de +Lisboa.—Batalhas de Asseiceira e Almoster.—Convenção de Evora Monte.—Reinado +de D. Maria II.—Revolução de Setembro.—Constituição de 1838.—Restauração da +Carta.—A Maria da Fonte.—A Junta do Porto.—A intervenção estrangeira.—A +Regeneração.—Reinado de D. Pedro V.—A febre amarella.—Reinado de D. +Luiz.—Conclusão.</p> + +<p> </p> + +<p>—Vocês percebem, meus amigos, principiou o João da Agualva, que, tendo de +lhes contar agora acontecimentos em que tomou parte muita gente que ainda está +viva e sã, e não querendo offender ninguem, não posso estar com muitas +reflexões. Quem succedeu a D. João VI foi D. Pedro IV, já então imperador do +Brazil. Este, que era um principe que percebia as cousas, vio bem que o nosso +tempo já<span class="pn"><a name="pg_162">{162}</a></span> não era tempo para +absolutismos, e antes quiz dar elle uma constituição do que ir o povo +arrancar-lh'a. Mandou portanto para Portugal a Carta, dizendo ao mesmo tempo +que abdicava em sua filha D. Maria, a qual havia de casar com seu tio o infante +D. Miguel, e, emquanto D. Miguel não voltava para Portugal, nomeou regente a +infanta D. Izabel Maria, que vocês haviam de conhecer muito bem.</p> + +<p>—Ora se conhecemos! morava ali em Bemfica!</p> + +<p>—Tal qual! morreu ha cousa de tres ou quatro annos. A Carta Constitucional +ficou sendo lei do reino, apezar de algumas revoltas, mas o infante D. Miguel, +apenas chegou a Lisboa em 1828, fecha as côrtes, atira com a Carta de pernas ao +ar e faz-se proclamar rei absoluto. A guarnição do Porto não está pelos +ajustes, e revolta-se, mas tem de fugir para Hespanha. Tudo o que eram +liberaes, e que poderam safar-se, emigraram uns para França, outros para +Inglaterra. Mas o que é certo é que o povo todo estava com D. Miguel. Porque? +Como póde haver um povo que não goste de liberdade? Vão lá explical-o! Os +padres e os frades estavam quasi todos ao lado de D. Miguel, e levavam comsigo +muita gente.</p> + +<p>Mas a ilha Terceira não esteve pelos autos, e não acceitou o absolutismo. +Apenas isso constou, correram os emigrados para essa ilha, o conde de Villa +Flor tomou conta do governo, e ali resistio ás esquadras<span class="pn"><a +name="pg_163">{163}</a></span> de D. Miguel. Este, entretanto, com o devido +respeito, fazia tolices graúdas, e a maior era perseguir os liberaes a ferro e +fogo. A forca estava sempre armada, as prisões sempre atulhadas, e os +caceteiros não deixavam ninguem socegado. Isto de fazer martyres é o diabo. +Para a arvore da liberdade não ha rega como o sangue dos seus filhos.</p> + +<p>Ora, além d'isso, emquanto o governo francez se mostrava pouco amigo da +liberdade, tinha D. Miguel as sympathias da França, mas depois da revolução de +1830 aconteceu o contrario. O governo de D. Miguel caíu na asneira de perseguir +uns francezes. D'ahi resultou vir uma esquadra franceza ao Tejo e levar os +navios que ahi estavam. Ao mesmo tempo D. Pedro, que tivera os seus dares e +tomares com os brazileiros, abdicou a corôa imperial do Brazil, e veio tomar o +commando dos defensores de sua filha. Põe-se á frente d'elles, que não eram +muitos, eram 7:500, desembarca no Mindello a 8 de julho de 1832, mette-se no +Porto, e ahi resiste mais de um anno aos soldados de D. Miguel, que eram muito +valentes, mas mal commandados. Envia ao Algarve em 1833 meia duzia de gatos, +debaixo das ordens do conde de Villa Flor, já então duque da Terceira, n'uma +pequena esquadra, que primeiro fôra commandada por um inglez chamado Sertorius, +que ainda vive, e que o estava sendo por outro inglez chamado Napier. Este +desembarca o duque<span class="pn"><a name="pg_164">{164}</a></span> da +Terceira no Algarve; depois vae-se á esquadra miguelista e derrota-a no cabo de +S. Vicente. O duque da Terceira marcha sobre Lisboa, bate na cova da Piedade os +miguelistas, commandados pelo Telles Jordão, que tinha sido um tyranno para os +presos liberaes, e que ali morreu, e entrou em Lisboa no dia 24 de julho de +1833. D. Pedro vem para Lisboa que os miguelistas cercam. Elle e os seus dois +marechaes, duques da Terceira e de Saldanha, obrigam os miguelistas a retirar +para Santarem. Depois o duque de Saldanha por um lado bate os miguelistas em +Almoster, o duque da Terceira por outro bate-os na Asseiceira, e D. Miguel +assigna a 25 de maio de 1834 a convenção de Evora Monte, pela qual o seu +exercito depunha as armas, e elle abandonava Portugal. Como se esperasse +unicamente o fim da sua empreza para terminar tambem a sua vida, D. Pedro IV +veiu aqui morrer a Queluz no dia 24 de setembro de 1834. Podem para ahi pensar +d'elle o que quizerem, meus amigos, mas o homem que, tendo nascido no throno, +passou a sua vida a regeitar corôas, e a combater, como um soldado valente, +pela liberdade dos povos, merece bem as tres estatuas que no Porto, em Lisboa e +no Rio de Janeiro, mostram que, ao menos depois da sua morte, não foram +ingratos com elle os portuguezes e os brazileiros.</p> + +<p>Succedia-lhe a senhora D. Maria II, que viveu<span class="pn"><a +name="pg_165">{165}</a></span> bem pouco tempo, e teve uma vida bem +atormentada. Logo em 1836 um partido, que queria mais liberdades que as da +Carta fez a revolução de setembro, e em 1838 veiu uma nova constituição. Contra +ella se fazem muitas revoltas, até que em janeiro de 1842 Costa Cabral, depois +conde de Thomar, deita abaixo a constituição de 1838, e põe outra vez a Carta +de pé. Governou elle muito tempo, mas, diga-se a verdade, um poucochinho á +bruta. D'ahi vieram mais revoluções, e a maior de todas que foi a da Maria da +Fonte, em 1846, em que metade do reino obedecia á Junta do Porto, e a outra +metade ao governo nomeado pela rainha. Batidos em Val-Passos, em Torres Vedras, +e no Alto do Viso, os <em>patuléas</em>, como se chamava aos partidarios da +junta, são obrigados a depor as armas pelos inglezes e pelos hespanhoes que +mandaram uns uma esquadra, os outros um exercito para restabelecerem aqui o +socego. Mas no fundo estava tudo em braza, e quando em 1851 o duque de Saldanha +se levantou contra o conde, hoje marquez de Thomar, foi tudo atraz d'elle. +Reuniram-se côrtes que introduziram umas mudanças na Carta, e d'ahi por diante +nunca mais houve revoltas de consideração. Pegaram os governos a fazer estradas +e caminhos de ferro, e lá de partidos é que eu não entendo. Em 1853 morria a +senhora D. Maria II, considerada por todos como uma santa senhora, e uma santa +mãe, e succedeu-lhe<span class="pn"><a name="pg_166">{166}</a></span> seu +filho, o senhor D. Pedro V, sendo regente nos primeiros dois annos o senhor D. +Fernando que vocês todos conhecem. O sr. D. Pedro V era uma joia, como sabem. +Quando em 1857 veio a febre amarella a Lisboa, andou elle pelos hospitaes, a +consolar os doentes, e a dar coragem e exemplo a todos. Tambem quando em 1859 +morreu a boa rainha Estephania, sua mulher não houve portuguez que a não +chorasse com elle, e quando em 1861 morreu elle tambem quasi de repente, com os +seus dois irmãos, o senhor D. Fernando e o senhor D. João, a dôr do povo foi +tamanha que chegou a haver tumultos, porque até se desconfiava que aquillo não +fosse natural. Subio ao throno o senhor D. Luiz que hoje reina, e aqui portanto +acaba a historia. Sempre direi, com tudo, que não são muitos os paizes por esse +mundo onde os povos ainda hoje chorem pelos reis, e que isso vem de serem os +nossos tão amigos da liberdade como são e tem sido, graças a Deus. E aqui, meus +amigos, acabo a minha tarefa; o que eu desejo, rapazes, é que vocês achem que +não os massou muito o pobre do João da Agualva, e que entendam que empregaram +melhor o seu tempo a ouvir as minhas historias, do que a beber decilitros na +taverna do Funileiro.</p> + +<p style="text-align:center;">FIM</p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Historia alegre de Portugal, by +Manuel Pinheiro Chagas + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL *** + +***** This file should be named 29394-h.htm or 29394-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/2/9/3/9/29394/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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