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+Project Gutenberg's Historia alegre de Portugal, by Manuel Pinheiro Chagas
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Historia alegre de Portugal
+ leitura para o povo e para as escolas
+
+Author: Manuel Pinheiro Chagas
+
+Release Date: July 13, 2009 [EBook #29394]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
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+
+ HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL
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+
+
+
+ HISTORIA ALEGRE
+
+ DE
+
+ PORTUGAL
+
+ LEITURA PARA O POVO E PARA AS ESCOLAS
+
+ POR
+
+ M. PINHEIRO CHAGAS
+
+
+
+
+ DAVID CORAZZI--EDITOR
+ EMPREZA HORAS ROMANTICAS
+ Lisboa--Rua da Atalaya--40 a 52
+ 1880
+
+
+
+
+Ao Ill.mo e Ex.mo Sr.
+
+CONSELHEIRO
+
+MIGUEL MARTINS DANTAS
+
+Ministro de Portugal em Londres
+
+
+
+
+ Ill.mo e Ex.mo Am.o e Sr.
+
+Ha dois ou tres annos, desejando eu obter de Inglaterra um livro que
+fôra citado no parlamento por um deputado da opposição ao ministerio
+Beaconsfield, dirigi-me a v. ex.ª, meu collega na Academia,
+perguntando-lhe se seria possivel alcançal-o. A resposta de v. ex.ª não
+se fez esperar. Enviou-me o livro pedido, que obtivera com summa
+difficuldade, e juntamente com elle quantos documentos officiaes se
+referiam á questão da escravatura, questão de que esse livro se
+occupava, e que então me captivava mais particularmente a attenção. Foi
+mais longe ainda a amabilidade de v. ex.ª; enviou-me um livrinho
+francez, de que eu não tinha conhecimento, intitulado _Entretiens
+populaires sur l'histoire de France_, perguntando-me se não seria
+possivel fazer, com relação á historia portugueza, um livro n'esse
+genero.
+
+Li o livro e achei-o encantador. Tempos depois, encontrei-me com v. ex.ª
+em Lisboa, e disse-lhe que ía tentar o emprehendimento a que v. ex.ª me
+incitára, e pedi-lhe licença para lhe dedicar o livro, que fosse o
+fructo d'essa tentativa. É o que faço agora. Como v. ex.ª verá, o plano
+da _Historia alegre de Portugal_ é diversissimo do dos _Entretiens
+populaires sur l'histoire de France_, mas a _Historia alegre_ vae
+escripta tambem no tom faceto, folgazão, singelo e popular que achei
+original, picante e util no livro francez que v. ex.ª me recommendava.
+
+Folgo de ter ensejo de mostrar publicamente a minha gratidão a v. ex.ª
+pelas provas de estima e de consideração que me dispensou n'esta e
+n'outras occasiões, e o alto apreço em que tenho o talento e o saber
+do escriptor distinctissimo, que renovou completamente, com os seus
+_Faux Don Sébastien_, o estudo de uma época interessante da historia
+portugueza, que nos deu emfim n'esse primoroso livro um estudo
+profundamente moderno, um estudo, como Gachard os sabe fazer, de um dos
+episodios mais curiosos e mais romanescos da nossa vida nacional.
+
+ De v. ex.ª
+
+Cruz Quebrada, 25 de outubro de 1880.
+
+ Att.o v.or e ob.o
+
+ _Pinheiro Chagas_.
+
+
+
+
+INTRODUCÇÃO
+
+
+O sr. João Martins, mais conhecido pelo nome de João da Agualva, porque
+morava na pequena aldeia d'este nome, que fica entre Bellas e o Cacem
+n'um sitio árido e feio, fôra mestre de instrucção primaria numa das
+freguezias do concelho de Cintra. Conseguira a sua aposentação, e viera
+para a sua aldeia natal amanhar umas terras que ali possuia, e cujo
+rendimento o impedira já de morrer de fome nos tempos, em que o Estado
+lhe pagava munificentemente os noventa mil réis annuaes, com que
+remunerava n'essa época os primeiros guias do homem nos ásperos caminhos
+da instrucção. Mas o João da Agualva era homem de uma illustração
+excepcional. Convivera muito tempo com o prior de Monte-lavar, padre
+instruido que emprestára ao bom do professor os livros da sua
+limitada bibliotheca; em Bellas tambem se relacionára com um engenheiro
+francez, empregado nas obras de agua de Valle de Lobos, de Broco e de
+Valle de Figueira, o qual tomára gosto em desenvolver o espirito
+intelligente e ávido de saber do velho professor. Apezar d'isto vivia
+modestamente na sua pobre casa, lidando com os saloios que o tratavam
+com verdadeiro respeito, e tinham por elle um affecto em que entrava um
+pouco de veneração.
+
+Era no inverno, e o João da Agualva estava passando a noite em casa de
+uma boa velha, a tia Margarida, viuva de um caseiro do marquez de
+Bellas, e mãe do Francisco Artilheiro, que, depois de ter servido cinco
+annos em artilheria, como indicava o seu sobre-nome, viera para Bellas
+ajudar a mãe a cuidar de umas leiras de terra, que a velhinha herdára do
+marido. Um grupo de saloios de Bellas e das aldeias proximas, sabendo
+que o João da Agualva viera para ali seroar, tinham vindo tambem,
+desejosos de ouvir algumas das historias que o velho ás vezes contava e
+que entretinham agradavelmente a noite. N'essa occasião, porém, o
+professor estava macambusio, e, quando o velho Bartholomeu, irmão da tia
+Margarida, que era dos que mais gostavam de o ouvir, lhe pediu que
+contasse alguma das suas historias, o bom do João da Agualva abanou
+negativamente a cabeça.
+
+--Não estou hoje com disposição para historias da carochinha,
+disse elle, e sabem vocês? Tenho andado a matutar n'uma cousa. Não é uma
+vergonha que vocês saibam de cór as alteiadas historias de cousas que
+nunca succederam, nem podiam succeder, e não saibam ao mesmo tempo nem o
+que foram seus paes nem os seus avós, nem o que fizeram, nem como elles
+viveram, nem o que succedeu n'esta boa terra de Portugal, que nós todos
+regamos com o nosso suor, que hoje nada vale, mas que deu brado no mundo
+pelas façanhas que os nossos praticaram?
+
+--Tomára eu saber tudo isso, sr. João da Agualva, disse o Manuel da
+Idanha, rapazote de cara esperta, moço de lavoura do sr. Garignan, o
+antigo dono de collegio, que hoje reside na aldeia da Idanha, a cousa de
+quinhentos metros de Bellas, tomára eu saber tudo isso, mas como ha de
+ser!? É verdade que, graças a Deus, sei ler e escrever, e lá o patrão
+emprestou-me uma vez uns livros de historia que eu lhe pedi, mas, mal os
+comecei a ler, deu-me o somno. Diziam á gente os nomes dos reis e os
+filhos que tinham tido, e as batalhas que tinham ganho, e mais umas
+lenga-lengas de que não percebi patavina. Ora, sr. João da Agualva, eu,
+para dormir, graças a Deus, ainda não preciso de ler historia.
+
+--Mas que diriam vocês, tornou o velho professor, se eu, n'estes nossos
+serões, lhes contasse, em vez de contos de fadas, e de historias de
+Carlos Magno, a historia do que succedeu em Portugal? Talvez vocês
+me entendessem, quer-me parecer que se não aborreceriam muito, e,
+em todo o caso, se se enfastiassem, diziam-m'o francamente, e eu não
+continuava, porque lá para massador é que não sirvo.
+
+--Ah! sr. João, exclamou o Manuel da Idanha, isso é que era um regalo!
+
+Os outros não disseram palavra, e o João, que os percebeu, riu-se para
+dentro, e fingiu-se desentendido.
+
+--Pois então, vá feito, eu hoje estou cançado, porque já fui a pé ao
+Sabugo tratar da compra de um boi, mas amanhã é domingo. Venham vocês á
+noite aqui para casa da tia Margarida, e eu começarei a minha historia.
+
+No domingo á noite ninguem faltou; mas, se vieram, foi pelo respeito que
+tinham ao João da Agualva, não porque esperassem divertir-se muito. O
+Bartholomeu já abria a bôca ainda antes do João da Agualva principiar.
+Mas o João chegou-se mais para o lume, porque a noite estava fria a
+valer, sorriu-se, e principiou como o leitor verá no capitulo immediato.
+
+
+
+
+PRIMEIRO SERÃO
+
+O que era Portugal.--Os seus primeiros habitantes.--As colonias
+estrangeiras.--Os phenicios.--Os gregos.--Os carthaginezes.--Os
+romanos.--Viriato.--Sertorio.
+
+
+--Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra em
+que nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguem se lembrasse de
+fallar, aqui ha cousa de uns tres ou quatro mil annos ou mesmo só de mil
+annos, em Portugal e em portuguezes, havia de ver como todos ficavam
+embasbacados sem perceber patavina. Isto lá para os antigos era tudo
+Hespanha, desde os cocurutos dos Pyrinéus, que são uns montes que
+separam a Hespanha da França, até essas aguas do mar que cercam por
+todos os lados a nossa terra, mais a dos hespanhoes, e até por estar
+este pedação de terra cercado de agua por toda a parte, menos pela banda
+dos Pyrinéus, é que se chama a isto _peninsula_, que quer dizer uma
+cousa que é quasi uma ilha, mas que o não vem a ser de todo.
+
+--Bem sei, bem sei! peninsula é onde houve uma guerra em que entrou meu
+avô! exclamou o fallador do Manuel da Idanha.
+
+--Mette a viola no sacco, Manuel, quem muito falla pouco acerta. Lá
+chegaremos á guerra da peninsula. Roma e Pavia não se fez n'um dia.
+
+--Pois então, vá lá vocemecê contando a sua historia.
+
+--Como eu ía dizendo, esta peninsula, a que se chama Hespanha e
+Portugal, era então só Hespanha. Hespanhoes éramos nós todos...
+
+--Menos eu! acudiu o Bartholomeu, levantando-se todo furioso, hespanhol
+é que nunca fui, nem sou, nem serei. Vae aqui tudo raso, se...
+
+--Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse hespanhol se nunca
+mais o ha de ser? Tambem a Hespanha, e a França, e a Inglaterra, e a
+Italia, e a Grecia, e o Egypto foi tudo imperio romano, e vae lá dizer
+agora a essas nações todas que se sujeitem ao mesmo governo! Tambem a
+França d'antes se chamava Gallia e estendia-se pela Belgica fóra, e mais
+pela Suissa, e, se o Gambetta, ou quem é que governa lá na França,
+quizesse por isso empolgar a Suissa e a Belgica, ía ahi em toda a Europa
+uma berraria de seiscentos demonios.
+
+--Pois sim, resmungou o Bartholomeu sentando-se de mau humor, mas não me
+digam a mim que eu fui hespanhol.
+
+--Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram cá n'este canto
+de terra é que ninguem sabe. Seriam uns iberos, que fallavam uma lingua
+arrevesada, assim a modo similhante á que fallam hoje os hespanhoes das
+Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O
+que sei é que, quando a Hespanha começou a ser conhecida, havia aqui uma
+sucia de povos que era uma cousa por demais, turdetanos para um lado,
+celtiberos para outro, ilergetas para aqui, bastetanos para acolá.
+Estava até ámanhã a dizer-lhes nomes estramboticos, se não preferisse
+fallar-lhes só nos nossos avós, cá nos que moraram na nossa terra.
+
+--Isso é que é! bradaram todos em côro.
+
+--Pois muito bem! Saibam vocês que não era um povo só. No Algarve e n'um
+pedaço do Alemtejo havia os _cuneenses_, no resto do Alemtejo, na
+Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o
+Douro, para o Minho e mais para Traz-os-Montes moravam os gallegos.
+
+--Os gallegos! exclamou o irritavel Bartholomeu, veja lá como falla, sr.
+João da Agualva, olhe que o pae de minha mulher veiu de Traz-os-Montes,
+e meus sogro não era nenhum gallego, ouviu?
+
+--Valha-te Deus, Bartholomeu, então tu cuidas que os gallegos andam
+todos com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os
+aguadeiros dos chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e depois t'o
+mostrarei, que de todos os povos lá das Hespanhas foram os gallegos os
+que mais depressa se poliram. Mas, cala-te bôca, não vá o carro adiante
+dos bois, e, como tu não queres ser genro de um gallego, sempre te direi
+que os que moravam para cá do Minho não eram da mesma casta que os de
+lá. Os nossos chamavam-se _Bracharos_ e os gallegos da Galliza
+chamavam-se _Lucenses_.
+
+--Ainda bem! murmurou o Bartholomeu, isso de _Bracharos_ até parece que
+dá idéa de _Braga_.
+
+--E é verdade que dá, sr. Bartholomeu, lavre lá dois tentos.
+
+Todos se riram, e o João da Agualva continuou:
+
+--Mas não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que
+viviam em cidades, villas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á
+cabeça, que tinham espingardas para a caça e para a guerra. Qual
+carapuça! Eram uns selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de
+cobre, e o amante pedregulho, mais uns dardos e uma especie de escudo
+para se defenderem; fato pouco havia, cabello comprido como o das
+mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de ir para a guerra.
+As mulheres é que tinham os seus enfeites e os seus bordados, os seus
+vestidos compridos, etc.
+
+--Pois já se vê que lá as meninas nunca podem passar sem arrebiques!
+disse o Zé Caneira, relanceando um olhar malicioso para a boa tia
+Margarida que fiava na sua roca ao pé da lareira.
+
+--Melhor para ellas, ouviu! redarguiu a velha. Que pena que não vivesses
+n'esse tempo para atares os cabellos com uma fita, quando fosses para a
+guerra!
+
+Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação
+da tia Margarida.
+
+--Em comidas não eram muito requintados, de carne de cabra é que elles
+principalmente se alimentavam, e o seu pão era cousa de pouca
+substancia. Bebiam agua, dormiam no chão, os seus barcos eram de couro,
+matavam gente em sacrificio aos seus deuses, quando tinham algum doente
+punham-n'o á beira da estrada, quem fazia algum roubo ou outro crime
+grave era apedrejado. Não passavam de ser uns selvagens. Então que
+querem? nem os homens nem os povos nascem ensinados. Todos começam
+assim. Valentes eram elles, isso sim, valentes como touros. Tiveram
+occasião de a mostrar, porque esta nossa terra foi na antiguidade uma
+espécie de California.
+
+Por muito tempo ninguem soube d'ella, e os navios da gente civilisada
+que vivia lá para o Oriente nunca passavam para cá do estreito de
+Gibraltar, até que um dia passaram os phenicios, gente atrevida, que
+queriam metter o nariz em toda a parte, e que sobretudo procuravam
+terras novas para commerciar. Acharam que lhes convinham a Andaluzia e o
+Algarve, e aqui fundaram algumas colonias, sendo Cadiz a principal. Como
+tinhamos por cá muitas minas de ouro, e os homens deram sempre o
+cavaquinho por este metal, estavam os phenicios nas suas sete quintas.
+Ao mesmo tempo outro povo civilisado do Oriente, os gregos, vieram na
+piugada dos phenicios, mas esses estabeleceram-se principalmente na
+Hespanha do lado de lá, onde hoje é a Catalunha, e o Aragão e Valencia,
+etc.
+
+Os indigenas de cá não se deram mal com os phenicios, emquanto elles se
+limitaram a trocar as suas fazendas pelo nosso ouro e outras producções,
+mas, quando viram que os taes estrangeiros começavam a fazer casa,
+acabaram com o negocio, foram aos gaditanos e deram-lhes uma tareia real.
+
+--Foi bem feito! observou Bartholomeu.
+
+--Mas os phenicios, que estavam muito longe da sua terra, chamaram em
+seu soccorro os carthaginezes, que eram tambem uns phenicios, quer dizer
+tinham assim com os phenicios o mesmo parentesco que os brazileiros têem
+comnosco. Ora os cartagineses viviam aqui mais proximo, ali na Africa,
+ao pé de Tunis, não muito longe de Argel.
+
+--Argel! exclamou o Francisco Artilheiro, já lá estive.
+
+--Já lá estiveste?
+
+--Já, sim senhor. Quando eu andava ao serviço, e que fui para a India, o
+vapor que me levou arribou a Argel. É uma bonita terra.
+
+--Já vês que não fica muito longe. Carthago era mais para o lado de lá.
+Vieram pois os carthaginezes em soccorro dos phenicios, mas gostaram da
+terra, pozeram fóra os que vinham soccorrer, e á força de bordoada,
+porque bons guerreiros eram elles, sujeitaram ao seu poder tudo.
+
+--Mas então, tornou o Francisco Artilheiro, vocemecê diz que os nossos
+eram tão valentes?...
+
+--Ora, que outro me fizesse essa pergunta, vá, mas tu que foste militar!
+Quem vence é quem tem disciplina. Por mais valentes que os homens sejam,
+em combatendo sem ordem, um por aqui, outro por ali, um regimento bem
+formado dá logo cabo d'elles.
+
+--Isso é verdade.
+
+--Estavam os carthaginezes senhores da Hespanha, e, como tinham posto
+fóra os phenicios, queriam tambem pôr fóra os gregos, quando estes se
+lembraram de pedir o soccorro dos romanos, que andavam ha muito tempo de
+rixa velha com os carthaginezes, e que eram dos povos mais pimpões
+d'aquelle tempo.
+
+--Vieram então os romanos? perguntou o Francisco Artilheiro que
+estava seguindo com interesse a narrativa.
+
+--Não tiveram tempo de vir, porque um tal Annibal, rapasote dos seus
+vinte e cinco annos, e que dizem até que era filho de uma lusitana,
+succedendo no commando dos carthaginezes a seu pae Amilcar, não esperou
+que elles viessem, correu a Sagunto, uma das taes colonias gregas,
+tomou-a e queimou-a, e depois sae da Hespanha, atravessa os montes
+Pyrinéus e mais os montes Alpes, que parecia que tinha mesmo o diabo no
+corpo, bate os romanos aqui, derrota-os acolá, escangalha-os mais alem,
+e ás duas por tres, se continua assim de vento em popa, era uma vez
+Roma. Porém, os romanos, que eram tambem levadinhos da breca, nunca
+desanimaram, e, apesar de estarem de corda na garganta, tiveram artes de
+mandar para cá um exercito, de fórma que, emquanto Annibal saía por uma
+porta, entravam os romanos por outra. O atrevimento ía-lhes saíndo caro,
+isso é verdade, mas a fortuna virou, e o que é certo é que d'ahi a pouco
+tempo não havia nem um carthaginez na peninsula, e estavam os romanos
+senhores de tudo isto.
+
+--Então os povos de cá estavam a olhar ao signal? perguntou Bartholomeu.
+
+--Ora ahi é que bate o ponto. Effectivamente, os povos cá das Hespanhas
+acharam assim exquisito que os carthaginezes e os romanos andassem a
+dispor d'elles, sem ao menos lhes perguntar a sua opinião, de fórma que,
+quando os romanos, julgando-se senhores da Hespanha, começaram a
+espreguiçar-se, os differentes povos da peninsula disseram-lhes d'esta
+maneira: «Ora esperem lá, senhores romanos, que nós somos duros para
+colchões!»
+
+--Ah! boa rapasiada! observou, esfregando as mãos, o Francisco Artilheiro.
+
+--Começou a pancadaria, e o povo que andou sempre na frente foram cá os
+nossos lusitanos, principalmente os serranos do Herminio (que era assim
+que se chamava d'antes a serra da Estrella). Não eram os romanos capazes
+de metter dente cá para este lado, até que uma vez um dos seus generaes,
+chamado Sergio Galba, apanhou os lusitanos á traição, e fez n'elles uma
+mortandade de que poucos escaparam.
+
+--Ah! grande patife! exclamou o Manoel da Idanha.
+
+--Isso era, mas alem de patife era tolo, porque isto de excitar muito dá
+maus resultados. Os lusitanos, que escaparam, ficaram como uma bicha.
+Ora um d'elles era um pastor chamado Viriato, homem decidido e esperto,
+que disse para os seus patricios: Façam vocês o que eu mandar, e deixem
+os romanos comigo. Assim foi, juntaram-se á roda de Viriato, e, quando
+appareceu um exercito romano commandado pelo consul Vetilio, o nosso
+homem, que era das bandas de Vizeu, esconde n'uma emboscada uma parte da
+sua gente, e com o resto põe-se a fazer fosquinhas aos romanos,
+parecendo a modo medroso. O consul percebe que elle está assim com seu
+susto, e diz lá de si para si: «Vaes apanhar uma surra mestra.» Corre
+sobre elle, Viriato faz tres meia volta, e, pernas para que te quero,
+elle ahi vae. O consul Vetilio desata a correr atraz de Viriato, e
+vae-se mesmo metter na boca do lobo. Era uma vez um exercito romano.
+Depois de Vetilio vem outro e outro, e elle sempre zás, pásada de crear
+bicho. Em Roma havia terror, diziam que o luzitano lhes dava mais que
+fazer que o proprio Annibal. Em Hespanha então era um enthusiasmo por
+ahi alem. Se Viriato já nem se contentava em estar nas montanhas,
+entrava pelos povoados romanos, levantava contribuições, revolucionava
+os povos, era um vivo demonio, e cada novo exercito, que por cá
+apparecia, não lhes digo nada, sumia-se n'um abrir e fechar de olhos,
+até que emfim o consul Scipião apanha lá dois patifes que Viriato
+mandára para tratar de um negocio, e tantas endrominas lhes metteu na
+cabeça, e tantas promessas lhes fez que elles, quando voltaram para onde
+estava o seu chefe, apanharam-n'o a dormir e mataram-n'o.
+
+--Oh! que grandes malvados! exclamou Bartholomeu.
+
+--E assim acabou esse homem que foi o que se póde chamar um homemzarrão!
+Ó senhores, eu sou um pateta, que não percebo nada d'estas cousas, mas,
+quando me ponho a pensar n'este Viriato, quando me lembro que era apenas
+um pobre pastor de cabras, um selvagem que não entendia nada de guerras,
+nem de manobras, nem de legiões para aqui, nem de centuriões para ahi, e
+que, apezar disso, em defeza da sua terra, fez andar os romanos em papos
+de aranha, e atarantou aquella poderosa Roma que mettia medo a todos,
+quando me lembro que elle era filho d'esta boa terra; que hoje se chama
+Portugal, ah! c'o a breca, sinto assim uns arripios pela espinha, e
+parece que é até uma vergonha para o paiz não se lhe ter levantado uma
+estatua de um tamanho por ahi alem, no alto da serra da Estrella, que
+aquillo é que se podia chamar a sentinella da nossa independencia.
+
+E o bom do João da Agualva, no impeto do seu enthusiasmo, cerrava os
+punhos; faiscavam-lhe os olhos, e dava mostras de querer elle mesmo ir
+pôr nos fraguedos da serra da Estrella a estatua do seu heroe.
+
+--Tem rasão, tem, observou o Bartholomeu, lá que o tal Viriato foi um
+homem de truz, isso foi.
+
+--A morte de Viriato, como podem imaginar, continuou o João da Agualva,
+deixou ficar os lusitanos um pouco atrapalhados, mas continuaram a
+defender-se, e os romanos viram uma bruxa com elles. Póde-se dizer que
+só Roma foi senhora da Lusitania, quando não ficaram nas nossas
+montanhas senão as mulheres e as creanças. Mas as creanças fizeram-se
+homens, e os homens estavam mortos por jogar as cristas com os romanos.
+Não tardou a apparecer-lhes uma boa occasião.
+
+--Vamos lá a ver isso! exclamou o Bartholomeu, com um orgulho patriotico.
+
+--É de saber que em Roma havia umas guerras civis, tal qual como nós
+tivemos cá por muito tempo em Portugal, assim umas cousas á moda da
+_Maria da Fonte_ ou da guerra dos dois irmãos. Um fulano Sylla e um
+sicrano Mario andaram á pancadaria um com o outro, até que venceu um
+d'elles que foi Sylla. Era homem de cabellinho na venta este Sylla, e,
+apenas se viu no poleiro, começou a chacinar nos que eram do partido
+contrario, de fórma que parecia que não queria deixar vivo nem um só. Os
+amigos de Mario trataram de se escapulir, e um d'elles, homem
+desembaraçado, chamado Sertorio, safou-se cá para Hespanha, para os
+lados do Oriente. Ahi, n'um instante, revolucionou tudo, arranjou um
+exercito, mas os generaes de Sylla espatifaram-lh'o, e o amigo Sertorio
+tingou-se para a Africa. Souberam os lusitanos do caso, e disseram
+comsigo: «Este maganão é que nos faz conta.» Mettem-se uns poucos n'um
+barco, vão ali a Marrocos, por onde o Sertorio andava aos paus;
+offerecem-lhe o vir commandal-os. Sertorio saltou logo para dentro do
+barco, e d'ahi a pouco estavam os lusitanos em campo com Sertorio á frente.
+
+Este, porém, não era, como Viriato, um pastor de cabras, era homem
+civilisado, sabendo tudo o que se sabia no seu tempo, e que tratou de
+arranjar cá nas nossas terras uma especie de Roma. Pareceu-lhe que Evora
+servia para o caso, estabeleceu-se ali, e, como o tinham acompanhado
+muitos romanos, conseguiu perfeitamente o seu fim.
+
+Que o Sertorio era uma grande cabeça, isso é que não tem duvida! Não só
+poz o sal na moleirinha dos seus patricios que se quizeram metter com
+elle, mas costumou os lusitanos a ser gente civilisada, e a imitar os
+romanos em tudo, de fórma que Viriato, se resuscitasse, não os
+reconhecia. E a final de contas, vejam como as cousas são! Este Sertorio
+deu lambada nos romanos por um sarilho! pois ninguem fez mais serviços a
+Roma do que elle! Introduziu aqui as artes, os usos e os costumes de
+Roma! de fórma que, depois, os nossos começaram a ter menos repugnancia
+aos estrangeiros, a confundir-se com elles. Isto de fallar a mesma
+lingua, de ter os mesmos habitos, sempre é uma grande cousa! Sertorio
+foi assassinado, assassinado tambem por um traidor, um patricio d'elle,
+um tal Perpenna! Pois senhores, quando morreu, já isto por cá era
+tão romano como a propria Roma; de fórma que nunca mais houve revoltas,
+e os lusitanos como o resto dos habitantes de Hespanha, á excepção dos
+vasconsos que sempre foram mettidos comsigo, e nunca se deram com os
+visinhos, os lusitanos ficaram fazendo parte do grande imperio que vinha
+do Mar Negro ao Oceano Atlantico, e da bôca do Rheno até á foz do
+Guadalquivir, e ainda mais para baixo, do outro lado do estreito.
+
+E com isto os não enfado mais, meus amigos, a Margarida já acabou a sua
+estriga, a luz do candieiro está assim a modo aos upas como quem se quer
+ir embora, e então domingo á noite continuaremos com esta conversa,
+visto que vocês parece que vão gostando.
+
+--Ora se gostamos, sr. João de Agualva! bradaram todos em côro. Venha
+depressa o domingo para ouvirmos o resto.
+
+E despedindo-se de Margarida, e de João, retiraram-se para as suas
+casas.
+
+
+
+
+SEGUNDO SERÃO
+
+Cesar e os montanhezes do Herminio.--O imperio romano.--O
+christianismo.--Os barbaros.--Suevos, alanos e visigodos.--Os mouros.--O
+reino das Asturias.--O reino de Leão.--Portucale.--Os condados de
+Portugal e de Coimbra.
+
+
+--Meus amigos, começou o João da Agualva, apenas todos fizeram roda no
+domingo immediato, e que a boa da tia Margarida, depois de carregar a
+sua roca, principiou a fazer girar o fuso nos seus dedos ageis, deixámos
+no outro dia os bons dos nossos lusitanos, depois da morte de Sertorio,
+costumados já á civilisação romana, e fallando o latim como se tivesse
+sido sempre a sua lingua, gostando de dar as suas passeatas até Roma, e
+provavelmente chamando barbaros aos que se lembravam com saudades dos
+tempos de Viriato. Nas serras continuavam a refilar o dente aos senhores
+do mundo, e o proprio Cesar, que veio a ser depois um grande homem,
+estreiou-se nas guerras, tendo cá na Lusitania os seus dares e tomares
+com os montanhezes do Herminio, que vieram diante d'elle em rota batida
+até aqui ás proximidades de Peniche, pouco mais ou menos, e que, quando
+deram de cara com o mar, não estiveram lá com meias medidas, metteram-se
+n'umas jangadas, e foram merendar ás Berlengas, deitando a lingua de
+fóra ao sr. Cesar, que se foi embora de queixo caído. Mas isso eram
+barulhos lá de quando em quando. A verdade é que a Lusitania estava
+sendo devéras romana, e então, quando lá em Roma á republica succederam
+os imperadores, nem mais se pensou em independencias, nem meias
+independencias. As cidades com os nomes romanos ferviam por ahi, as
+estradas militares cortavam o paiz, e uma pessoa podia ir de Lisboa até
+Roma sem perguntar a ninguem. Hoje diz-se: quem tem bôca vae a Roma.
+Pois n'aquelle tempo, e com as estradas militares, bastava ter pés e
+olhos, ía-se lá direito como um fuso.
+
+--Havia caminho de ferro? perguntou o Zé Caneira embasbacado.
+
+--Qual caminho de ferro, bruto! Teu avô ainda nem sabia que vinha isso a
+ser, e já tu querias que o teu trigesimo ou quadragesimo avô andasse de
+wagon! Não senhor, eram estradas ordinarias, mas feitas com todo o
+cuidado e limpeza, e que, partindo de Roma, íam ter aos pontos mais
+distantes do imperio! Lá que os taes romanos eram um grande povo,
+isso eram!
+
+--Pois sim! mas regalaram-se de levar tapona cá na nossa terra,
+interrompeu o Bartholomeu.
+
+--Quem vae á guerra dá e leva, respondeu o João da Agualva, e a final
+quem vence é quem mais sabe. Se os romanos venceram, não foi nem porque
+tinham mais força, nem porque eram mais valentes, foi porque sabiam
+mais. Tu verás ao depois. Olha que isto cá no mundo não se leva a poder
+de bordoada. Queres um exemplo? Ora ahi tens tu o mundo todo romano. O
+imperador está em Roma, e tudo governa. N'isto sáem da Judéa uns homens
+de bordão na mão, e de pés descalços, que começam a prégar por esse
+mundo, a dizer que Deus veiu á terra, que foi crucificado, que disse que
+todos os homens eram iguaes, senhores e escravos e grandes e pequenos,
+que a gente deve amar não só os seus amigos, mas tambem os seus
+inimigos, que ha mais alegria no céu pela volta de um peccador, que se
+arrepende, do que pela entrada de noventa e nove justos, e outras cousas
+assim que embasbacavam todos, e vae os imperadores romanos começaram a
+scismar que esta gente, que lhes fazia mal, que desorganisava tudo, e
+botam a chacinar n'esses sujeitos que se diziam christãos, e a
+queimal-os, e a deital-os ás feras, e a martyrisal-os, e quanto mais os
+desbastavam mais elles cresciam, e tanto e tanto que lhes não digo
+nada. Ás duas por tres o mundo romano tinha sido conquistado, sem pau
+nem pedra, por esses soldados de Christo. Ora aqui tens tu como quem
+vence nem sempre é a força bruta.
+
+--Essa agora é mais fina! accudiu o Manuel da Idanha. Esses, se
+venceram, é porque eram os santos apostolos, e porque prégavam a palavra
+de Deus.
+
+--Pois assim é, Manuel, dizes tu muito bem, mas é que isto que se chama
+civilisação não é tambem senão a palavra de Deus. A civilisação é o que
+concorre para nos fazer melhores, mais dignos de ser homens. Umas vezes
+prégam-n'a os santos, outras vezes são os sabios, e ás vezes tambem são
+os soldados, porque Deus de todos os meios se serve para chegar aos seus
+fins. E é assim que o instrumento d'isto a que eu chamo civilisação umas
+vezes é o livro, outras vezes a cruz, e outras vezes a espada.
+
+Os bons dos saloios ouviam boqui-abertos estas cousas todas, que só o
+Manuel da Idanha parecia perceber um bocadinho, por isso o João da
+Agualva, que não queria perder a attenção do auditorio, apressou-se a
+continuar:
+
+--Isto quer dizer, meus amigos, que foi por este tempo que principiou a
+prégar-se no mundo a nossa santa religião, e foi cá a nossa terra uma
+das primeiras que se converteram. Dizem até que veiu aqui o proprio
+apostolo S. Thiago, mas isso estou que são lérias; o que é certo, porém,
+é que ainda quasi não havia bispos por esse mundo de Christo, e já Braga
+era bispado, tanto assim que se chama ao arcebispo de Braga arcebispo
+primaz das Hespanhas, porque foi o primeiro que na Hespanha houve.
+
+Mas, entretanto, meus amigos, grandes cousas se passavam pelo mundo.
+Fóra dos limites do imperio, do lado de lá do Rheno, do lado de lá do
+Danubio, havia povos que Roma não conseguira conquistar: gente selvagem
+como os luzitanos do tempo do Viriato; valentes como elles, e ao mesmo
+tempo gente inquieta que não parava n'um sitio e que não podia viver
+quasi senão de caça e de rapina. Tinham os romanos um trabalhão em os
+conter, mas, quando o imperio começou a fraquear, porque aquillo estava
+já sendo uma choldra, quando as legiões, que é como quem hoje diria as
+divisões e as brigadas, começaram cada uma a apregoar um imperador pela
+sua banda, desabam todos aquelles meus amigos sobre o imperio, e foi
+como quem diz uma verdadeira inundação. Ahi pelos annos quatrocentos e
+tantos caíram em cima de Hespanha, vindos das bandas dos Pyrenéus, nada
+menos de tres povos, os Alanos, os Suevos e os Vandalos. Nós, só á nossa
+parte, tivemos dois que tomaram conta de tudo isto, que foram os
+suevos e os alanos. Mas aquillo! as florestas de alem do Danubio e do
+Rheno parece que se não fartavam de despejar povos que se empurravam uns
+aos outros. Atraz d'estes tres povos vieram os visigodos que expulsaram
+os outros e ficaram senhores da Hespanha toda. Mas agora ahi têem vocês
+como nem sempre quem vence é quem conquista. Julgam por acaso que se
+fallou na Hespanha o visigodo, e que as leis visigothicas é que
+governaram, e que a religião dos visigodos é que triumphou? Qual
+carapuça! os vencidos é que conquistaram os vencedores e deram-lhes a
+sua lingua, as suas leis e a sua religião. Porque? porque os mais
+civilisados eram os vencidos, e quem mais sabe é quem triumpha.
+
+--Mas então, a final de contas, perguntou o Manuel da Idanha, sempre
+isto ficou sendo romano?
+
+--Não, rapaz, não é assim. Ora dize-me uma cousa, quando tu deitas sal e
+carne para dentro de uma pouca de agua, o que é que fica? é agua, é
+carne ou é sal?
+
+--Essa agora é mais fina, não fica nem uma coisa nem outra, o que fica é
+caldo.
+
+--Ora pois ahi tens tu: a agua eram os lusitanos, os romanos foram o
+sal, e os visigodos a carne, e de tudo isso saíu uma cousa nova, um povo
+novo, este caldo que depois veio a chamar-se portuguez, que é no fundo
+lusitano, como o caldo é agua, e a que Roma deu o sal que foi a
+idéa, e os visigodos a carne que foi a força.
+
+Acharam graça á comparação os bons dos saloios e o João da Agualva
+proseguiu d'esta maneira:
+
+--Mas as cousas não ficaram por aqui, porque no anno de 756 appareceu de
+repente em Hespanha gente nova. Eram os mouros. Esses, em vez de vir do
+norte, vinham do sul. Seguiam uma religião nova, a de Mafoma. Não eram
+uns selvagens, como tinham sido os visigodos. Traziam uma civilisação, e
+das mais apuradas. Por isso a lucta que se travou foi medonha:
+civilisação contra civilisação, Jesus contra Mafoma. Primeiro venceram
+os mouros. Na batalha do Guadalete foram os visigodos vencidos, e morto
+o seu rei Rodrigo. Em pouco tempo tinham os mouros tomado toda a
+Hespanha. A nossa terra lá foi tambem para elles. Só nos montes das
+Asturias, que são levados de quantos diabos ha, um punhado de visigodos
+continuou a resistir, commandados por um tal Pelayo, que foi o primeiro
+rei das Asturias. Metteram-se os mouros com elle, levaram para o seu
+tabaco. Deixaram-n'o lá estar no seu reino, que era como quem diz um
+ninho de aguia, encarapitado no cucuruto das montanhas, e c'o a breca,
+parece-me que uma aguia c'o as azas estendidas fazia-lhe sombra a elle
+todo. A pouco e pouco foi augmentando. Agora tomava-se uma cidade,
+logo outra; a grão e grão, diz o proverbio, enche a gallinha o papo.
+D'ahi a duzentos annos já os visigodos tinham tirado aos mouros terras
+bastantes para formar não só um reino, mas uns poucos. A moda que havia
+de se dividir o reino pelos filhos de um rei que ía para o outro mundo,
+dava este resultado. Deixemos, porém, isso, e vamos a saber o que era
+feito de nós.
+
+--Isso é que é, acudiu o Bartholomeu, os hespanhoes que tratem de si.
+
+--Pois nós faziamos parte do reino que se chamou reino de Leão; quando
+digo nós, quero dizer de Coimbra para cima, porque, entre Coimbra e
+Lisboa, umas vezes era-se mouro e outras vezes christão, mas de Lisboa
+para baixo não havia duvida nenhuma, era tudo moirama.
+
+--Mas então, vamos a saber, isto era já Portugal ou não era Portugal?
+perguntou o Zé Caneira.
+
+--Ora com que tu vens! Sabes o que era Portugal? Era, para assim dizer,
+o Minho. Havia Portugal e havia o condado de Coimbra. Portugal
+chamava-se assim porque na foz do Douro havia uma terra que se chamava
+_Cale_, que depois se mudou em Gaya, e vae defronte mesmo á beira do
+rio, começou a levantar-se outra terra que se chamou _Portus Cale_ ou
+_Porto de Cale_. Esta terra é o que se chama hoje simplesmente _Porto_,
+e o nome de _Porto de Cale_, que se foi mudando em Portugal, dava-se
+a tudo o que ficava para o norte do Douro. E aqui está, meus amigos,
+como Portugal deve o seu nome ao Porto, exactamente como depois lhe veio
+a dever a liberdade.
+
+--E então Coimbra já não era Portugal?
+
+--Não, rapaz. Coimbra era outro condado, tambem christão, mas que tinha
+existencia sobre si. Ora o que lhes digo, meus amigos, é que a corneta
+do destacamento que chegou hoje está já a tocar a recolher, que são
+horas de se ir chegando cada um para suas casas, e que no proximo
+domingo continuaremos a nossa historia.
+
+
+
+
+TERCEIRO SERÃO
+
+D. Affonso VI de Leão.--O conde D. Henrique.--D. Thereza.--O conde de
+Trava.--Batalha de S. Mamede.--Egas Moniz.--Fundação da monarchia.--D.
+Affonso Henriques.--Os cruzados.--D. Sancho I.--D. Affonso II.--D.
+Sancho II.--D. Affonso III.
+
+
+--Viram vocês, meus amigos, tornou o João de Agualva, no domingo
+immediato, que o Portugal de agora, ahi pelo anno mil, pouco mais ou
+menos estava, do Mondego para baixo, quasi todo em poder dos mouros, e
+do Mondego para cima distribuido em dois condados, um que se chamava de
+Portugal, que era como quem diz do Porto, e o outro que se chamava de
+Coimbra, e ambos estes condados faziam parte do reino de Leão, onde
+governava um rei de cabellinho na venta, chamado o sr. D. Affonso VI.
+Ora, como D. Affonso VI tinha sempre guerra com os mouros, e como n'esse
+tempo o grande pratinho para um principe ou para um fidalgo, era jogar
+as cristas com elles, tanto que os íam buscar a casa de seiscentos
+diabos, só para lhes dar tapona, aconteceu que dois francezes, chamados
+um Henrique e outro Raymundo, ambos primos, e ambos da casa de Borgonha,
+em vez de ir á Palestina, vieram aqui a Hespanha, que lhes ficava mais
+ao pé da porta, pedir para dar tambem as suas garfadas nos de Mafoma.
+Não havia duvida, a mesa estava sempre posta e podiam servir-se á
+vontade. Deram bordoada de crear bicho, e o D. Affonso VI, que viu que
+eram uns valentões, e que lhe podiam prestar para muito, casou-os com
+duas filhas que tinha, uma legitima filha do matrimonio, e outra cousas
+e tal etc. A primeira chamava-se Urraca e foi para o Raymundo, a segunda
+chamava-se Tareja ou Thereza, e dizem até que era uma rapariga de truz,
+para o Henrique. Ora ao primeiro, como era casado com a legitima, deu
+elle o governo de toda a parte do reino, que ficava á borda do mar,
+desde os altos da Galliza até ás proximidades do Tejo, e a D. Henrique
+deu especialmente os condados de Portugal e de Coimbra, ficando sempre
+sujeito ao primo. Ha quem diga que Portugal veiu como dote de D. Tareja!
+Tó carocho! N'esse tempo nem os paes davam dotes ás filhas, os que
+queriam casar com ellas é que ainda davam alguma cousa.
+
+--E acho isso muito bem entendido! exclamou vivamente o Zé Caneira, que
+tinha uma filha casadoira.
+
+--Pois sim! redarguiu sorrindo o João da Agualva. O que é certo é que a
+moda não pegou. D. Henrique, porém, ficou sendo vassallo de Affonso VI,
+e empenhou-se em alargar os seus dominios, dando pancadaria nos mouros.
+Muito cedo deixou de ser sujeito a seu primo, e teve a sua capital em
+Guimarães, que por isso se chama o _berço da monarchia_. Mas este D.
+Henrique parece que tinha bicho carpinteiro, foi á Palestina, como se
+não tivesse por cá mouros com fartura, e, quando o sogro morreu deixando
+o throno á cunhada D. Urraca, que já então era viuva, o bom do conde
+metteu-se em todos os barulhos que lá íam por Hespanha, para ver se
+apanhava mais alguma cousa para si. Qual carapuça! não apanhou nada, e
+ía perdendo muito, porque os mouros, que se viram á larga, começaram a
+fazer-se finos, e já subiam por ahi acima, como quem estava com desejo
+de se espreguiçar o seu pedaço nos montes verdes de Coimbra.
+
+No meio d'esta azafama toda, morreu em 1114 o honrado conde deixando uma
+viuva muito frescalhota ainda, e um filho pequeno que teria os seus tres
+annos, e se chamava Affonso Henriques, que é o mesmo que se dissesse
+Affonso filho de Henrique, assim como Sanches queria dizer filho de
+Sancho, Fernandes filho de Fernando, e Martins filho de Martim.
+
+--Ora essa! exclamou um que até ahi estivera silencioso, aqui estou eu
+que me chamo Antonio Martins, e mais meu pae chamava-se José.
+
+--Pois isto que eu digo, tornou João, era n'aquelle tempo, depois os
+nomes ficaram, mas já sem se lhes saber a significação, como acontece a
+muitas outras cousas.
+
+A mãe de D. Affonso Henriques, que era uma mulher bonita e
+desembaraçada, continuou a andar por cercos e batalhas, sempre a ver se
+isto cá em Portugal ficava independente, e, emquanto ella assim
+procedeu, correu tudo bem; mas isto de mulheres sempre são mulheres--não
+se zangue, tia Margarida--e D. Thereza lá teve o seu fatacaz por um
+conde gallego, Fernão Peres de Trava, que d'ahi a pouco era quem punha e
+dispunha em Portugal. Não agradava isso muito aos nossos fidalgos, e
+menos ao rapazelho, que era levadinho da bréca, esperto como um alho,
+valente como seu pae, e que fôra de mais a mais educado por um fidalgo
+ás direitas, um tal Egas Moniz, portuguez dos quatro costados. Já se vê
+que o aio não lhe ensinou a revoltar-se contra sua mãe, e até devo dizer
+que são verdadeiras patranhas muitas das cousas que a esse respeito se
+contam. Por exemplo, diz-se que o rapazote andava ás bulhas com a mãe, e
+que o rei de Leão, D. Affonso VII, viera em soccorro da tia contra o
+primo. Peta! D. Affonso VII veiu a Portugal, é verdade, mas foi para
+obrigar a infanta-rainha (assim lhe chamavam) e o filho e os fidalgos e
+todo o povo a reconhecer a sua suzerania. Apanhou o rapaz em Guimarães,
+cercou-o, e pôl-o deveras em talas. Egas Moniz foi ter com elle, e
+disse-lhe que se fosse embora e que lhe empenhava a sua palavra que a
+sua suzerania seria reconhecida. Affonso VII assim o fez, e partiu d'ali
+contra D. Thereza, que essa reconheceu-o immediatamente por seu senhor e
+suzerano. Mas D. Affonso Henriques, livre do primo, pediu á mãe que
+fizesse favor de lhe dar o governo a elle, que sempre era mais portuguez
+que o conde de Trava. Este disse á rainha que não tivesse cuidado, que
+elle iria dar uma duzia de palmatoadas no pequeno. Foram boas as
+palmatoadas! Em S. Mamede, ao pé de Guimarães, e no anno de 1128, o
+conde gallego levou uma esfrega, e teve de se pôr a andar, levando
+comsigo D. Thereza. De fórma que nem D. Affonso Henriques prendeu a mãe,
+nem fez cousa que se parecesse com isso. Quiz apenas governar, porque
+tinha o direito de o fazer, e porque os barões portuguezes estavam
+fartos de aturar o gallego. E a vassallagem que promettera a D. Affonso
+VII? Boa vae ella! Mesmo agora D. Affonso Henriques pozera fóra o
+gallego para se sujeitar ao de Leão! Nem se pensou em tal. Mas Egas
+Moniz tinha dado a sua palavra, e não queria que um patife de um
+estrangeiro dissesse que havia portuguezes desleaes. Não contou nada
+ao seu querido discipulo, e foi até dos primeiros a aconselhar que se
+mantivesse a independencia, mas agarrou em si, na mulher e nos filhos, e
+foram todos de corda ao pescoço ter com o rei de Leão, e dizer-lhe:
+«Para resgatar a minha palavra, só tenho a minha cabeça e a dos meus!
+Ellas aqui estão!» O rei ficou assombrado d'este acto de lealdade e
+mandou-os embora com palavras de muito louvor.
+
+--Homem! isso agora parece-me asneira! acudiu o Zé. Que diabo de culpa
+tinha elle que esse D. Affonso Henriques não fizesse o que promettera?
+
+--Nenhuma, bem sei! mas elle é que ficára por fiador. Outro seria que
+dissesse: Eu quiz, mas não pude. Elle foi mais franco e disse: Não pude
+e não quiz. O interesse da nação oppunha-se a isso, mas a minha vida ha
+de resgatar a minha palavra, e não se fundará n'uma deslealdade a nova
+monarchia.
+
+--Aquillo é que eram homens! murmurou o Manuel da Idanha.
+
+--Espera que tu vaes ver o que era um homem. Este Affonso Henriques
+digo-te que foi mesmo fadado para fundador de reino. Não parava um
+instante. No principio do governo, andou sempre á bulha com o primo, e
+com os gallegos, e tudo era ver se passava o Minho; mas um bello dia
+olhou para o sul, e percebeu que para ali é que havia muito que fazer.
+Os mouros começavam a dar signal de si, e a romper de novo por ali
+acima. Em 1139, Affonso Henriques vae só n'uma galopada até ao Alemtejo,
+derrota os mouros em Ourique, e volta para casa. A respeito de Ourique
+tem havido mosquitos por cordas. Diz-se que appareceu Nosso Senhor a D.
+Affonso, que este foi ali acclamado rei pelos soldados, que aquillo foi
+uma batalha formidavel, etc. Eu cá não me metto n'essas cousas. Que
+Nosso Senhor Jesus Christo apparecesse crucificado a D. Affonso
+Henriques, é muito possivel, Deus póde fazer estes milagres, sempre que
+lhe aprouver, e milagre de Deus foi a nossa historia toda. Sem a ajuda
+de Nosso Senhor mal podia este pequeno povo fazer o que fez. Que a
+batalha fosse muito importante, não me parece, pelo menos não teve
+consequencias; ficou tudo como d'antes, e o que se não póde dizer é que
+o quartel general fosse em Abrantes, porque a Abrantes ainda nós não
+tinhamos chegado; que os soldados se lembrassem de acclamar D. Affonso
+Henriques rei n'essa occasião tambem me parece historia. Sou capaz de
+apostar que rei já lhe chamavam ha muito tempo, como chamavam rainha á
+mãe; de mais a mais, esse titulo de rei, que affirmava mais a nossa
+independencia, onde se deveria dar era n'uma batalha contra os leonezes,
+mas n'uma batalha contra os mouros, que tanto se importavam que Portugal
+fosse independente, como que fosse vassallo de Leão, a quem tanto
+convinha que Affonso Henriques fosse rei como que fosse conde, não
+se percebe. Diz-se tambem que foi nas côrtes de Lamego que o titulo se
+confirmou. Ora adeus! Côrtes com clero, nobreza e povo ainda cá se não
+faziam. E de mais, quem diz isso parece que imagina que n'aquelle tempo
+se passavam as cousas como agora, e que isto de fazer rei um conde
+soberano era negocio que se não podia praticar sem grandes ceremonias e
+ajuntamentos. Boas noites, meus amigos. Oiçam vocês o que succedia!
+Morria o rei de Leão, por exemplo, e dividia os estados pelos filhos, e
+aqui ficava sendo um rei da Galliza, o outro rei de Leão e o outro de
+Castella. E depois juntavam-se os estados, e já não havia reinos nem em
+Galliza, nem em Castella, depois tornavam-se a separar, e assim andavam,
+sem maior massada. D. Affonso Henriques fizera-se independente, era o
+essencial, depois começaram a chamal-o rei, e rei se ficou chamando. O
+que elle fez, como era espertalhão, para garantir a conservação do
+reino, foi declarar-se vassallo do papa, e mandar-lhe pagar um pequeno
+tributo, para que o pontifice lhe valesse. A manha não era má; n'aquelle
+tempo quem tinha por si a côrte de Roma tinha tudo.
+
+Mas o caso não era chamar-se uma pessoa rei, era ter um reino que
+merecesse o nome, e esse Portugalsito, que vinha apenas do Minho até ao
+Mondego, para fallar a verdade, não parecia lá um grande reino. E
+vae D. Affonso Henriques disse então com os seus botões: Toca a
+alargal-o! Ora o que faz um de vocês quando se vê com uma terrola para
+seu grangeio? Cospe nas mãos, agarra na enchada, começa a fossar o chão,
+e ali está desde pela manhã até á noite. D. Affonso Henriques fez o
+mesmo, cuspio nas manoplas, arrancou do montante, e elle ahi vae para a
+faina em que andou desde pela manhã até á noite, quer dizer, desde que
+lhe apontou o buço até que a morte pregou com elle na sepultura. O
+montante era a sua enchada, rapazes, e, a cada enchadada, saía do chão
+sarraceno agora Santarem, depois Lisboa. Ah! meus amigos, que vida!
+Aquillo era um lidar continuado! Elle casou com uma princeza de Saboya,
+a sr.ª D. Mafalda, mas estou em dizer que não foram muitas as noites em
+que dormio muito bem aconchegado com ella nos seus paços de Coimbra.
+Alta noite lá ía elle tomar Santarem, de surpreza, e outra vez
+constava-lhe que ía uma gente do norte fazer guerra aos mouros na
+Palestina, para defender contra elles o sepulchro de Christo, e vae D.
+Affonso Henriques ía logo á beira-mar ter com os homens, e pedir-lhes
+que descançassem aqui um pedaço, e que o ajudassem ao mesmo tempo na sua
+tarefa de todos os dias. Elles não se fizeram rogar, desembarcaram, e
+d'ahi a pouco estava Lisboa no poder dos nossos. Muitos d'elles por cá
+ficaram, porque D. Affonso Henriques deu-lhes terras, e até ha por
+ahi povoações que ainda se chamam com os nomes d'elles, por exemplo
+Villa Franca, que é como quem diz villa dos Francos, etc.
+
+--Então os de Villa Franca são estrangeiros? perguntou o Manuel da Idanha.
+
+--Qual carapuça, homem! Tu não te lembras da minha comparação do caldo?
+Não é sal, nem agua, nem carne; mas tem carne, agua e sal. A carne eram
+os godos, a agua os luzitanos e os romanos o sal; pois tambem no caldo
+se deita ás vezes o seu raminho de hortelã ou de segurelha, que sempre
+lhe dá assim um sabor mais cousas, tal, etc., pois esses raminhos de
+segurelha e de hortelã foram os estrangeiros, que aqui vieram a Portugal
+e por cá se deixaram ficar. Vieram tambem contribuir para fazer o nosso
+bom caldo portuguez.
+
+--É bem achado, sim senhor, observou a tia Margarida.
+
+--Pois assim mesmo é que é. Ora já vocês vêem que o pobre do D. Affonso
+não podia estar muito tempo socegado. Hoje tomava Cintra, amanhã Mafra,
+no outro dia Palmella, no outro Abrantes! Era um vivodemonio. Os mouros
+com elle andavam n'um sarilho. Por isso tambem tinham-lhe tomado um
+medo! Fallarem-lhes no Ibn-Errik, assim lhe chamavam elles na sua
+lingua, como quem diz _filho de Henrique_, fallarem-lhes em Ibn-Errik,
+era o mesmo que fallarem-lhes no diabo. E que gente que elle tinha!
+homens como um Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morreu combatendo,
+e mais andava já pelos noventa annos, e um que tomou Evora, Giraldo sem
+Pavor, e outro que tomou Beja, cada qual por sua conta e risco. Gente
+levadinha da bréca, isso é que é fallar a verdade.
+
+Mas, emfim, meus amigos, ainda que se diz «pedra movediça não cria
+bolor», sempre dá o caruncho n'uma pessoa, por mais que ella se mexa e
+trabalhe. D. Affonso envelheceu, mas antes d'isso já deitára um filho
+que era o seu retrato, valente como elle, e homem de grande talento, D.
+Sancho, que foi depois rei. Podia morrer descançado D. Affonso
+Henriques, deixava a sua espada em boas mãos e a sua corôa em boa
+cabeça. E com essa consolação morreu em 1185 el-rei D. Affonso
+Henriques, depois de ter não só tornado o reino independente, mas de o
+ter alargado até ao meio do Alemtejo, e principalmente de ter tomado
+Lisboa que era, como diz o outro, a menina dos olhos dos arabes, a
+cidade sem a qual não se podia fazer cá para estas bandas cousa que
+geito tivesse. Ah! meus amigos, se algum de vocês fôr alguma vez a
+Coimbra, e entrar na igreja de Santa Cruz, suba até á capella mór, e
+olhe para os dois tumulos que ali se vêem, pergunte qual é o de D.
+Affonso Henriques, e depois ajoelhe diante d'elles, porque, com
+seiscentos diabos, se nós hoje não somos para ahi uns gallegos e uns
+andaluzes, se démos que fallar no mundo, e praticámos cousas que fazem
+com que uma pessoa tenha orgulho de se chamar portuguez, oh! com a
+bréca, é a elle que o devemos, porque, como lá diz o outro, de pequenino
+se torce o pepino», e este reino de Portugal era bem pequerrucho ainda,
+quando esse homem de ferro levou a sua vida inteira a costumal-o a fazer
+cousas grandes.
+
+E o bom do João da Agualva limpou o suor, que lhe escorria pela testa
+com o enthusiasmo que o inflammava. Os seus companheiros escutavam-n'o
+silenciosos, e já não faziam interrupções nem observações. Estavam
+deveras interessados com a narrativa.
+
+--Meus amigos, continuou o João da Agualva, no governo como na lavoura
+ha tempo para tudo, agora cava-se e depois semea-se. Primeiro compra-se
+a terra e depois é que se amanha. Pois assim foi em Portugal; D. Affonso
+Henriques ou D. Affonso I conquistára, D. Sancho tratou de povoar. Por
+isso a historia chamou _conquistador_ ao primeiro e _povoador_ ao
+segundo; e olhem que isso não quer dizer que D. Sancho não fosse tambem
+um guerreiro de truz. Tó carocho! Já na vida do pae elle dera que
+fallar. Apenas o pae morreu, começou elle a namorar uma terra do
+Algarve, que hoje está bem decaída, mas que n'esse tempo era, por assim
+dizer, a Lisboa lá do sul--Silves. Não se lhe mettia dente, porém,
+com facilidade. Para ir lá por terra, era custoso como o demonio, para
+ir por mar, é de saber, meus rapazes, que o sr. D. Sancho I ainda não se
+lembrára de comprar nem a fragata _D. Fernando_, nem esse navio com que
+andam por ahi sempre os jornaes aos tombos, e a que uns chamam o
+_Pimpão_ e os outros o _Vasco da Gama_.
+
+Uma gargalhada geral mostrou que os bons dos ouvintes tinham apanhado
+facilmente o chiste do jovial anachronismo do narrador.
+
+--Mas, meus amigos, isto de Portugal ficar no caminho da Palestina para
+os christãos que vinham lá das terras do norte, foi uma verdadeira
+pechincha. Descançavam aqui e sempre havia por cá algum biquinho de
+obra. Foi o que succedeu tambem d'esta vez. D. Sancho apanhou uma frota
+de cruzados...
+
+--Novos? perguntou o Zé.
+
+--Novos eram elles, que não costumavam vir para a guerra os carecas como
+tu; mas é de saber que se chamavam cruzados aos christãos que tinham ido
+tirar o sepulchro de Christo das mãos dos infieis, e que depois o
+defendiam. D. Sancho apanhou pois uma frota de cruzados, e disse-lhes
+d'esta maneira:
+
+«--Vocemecês é que me podiam fazer um favor.
+
+«--Se estiver na nossa mão!...
+
+«--Lá isso está. É simplesmente acompanhar-me ali a baixo a Silves,
+e ajudar-me a intimar mandado de despejo aos mouros que lá estão dentro.
+Eu fico com a cidade, e os senhores levam as riquezas que se apanharem.
+
+«--Vá de feição.
+
+E foi. Tomou-se Silves, tanto mais que lhes ficava na estrada, e não
+tinham de torcer caminho. Mas D. Sancho não poude continuar com essas
+funçanatas, porque os mouros cá da peninsula, que começavam a estar
+assim esmorecidos, receberam de repente uns reforços da Moirama, e...
+não lhes digo nada, vieram outra vez por ahi acima que parecia que
+tornava a haver invasão. Foi uma torrente que levou tudo adiante de si.
+O Tejo tornou a ser a fronteira de Portugal, e apenas no Alemtejo uma
+terra ou outra surgia ainda, como uma ilha, com a bandeira portugueza,
+d'entre as ondas da mourisma. Então D. Sancho pensou que primeiro que
+tudo era necessario tratar do que era seu, e começou n'uma lida
+abençoada: elle mandou vir gente do norte da Europa para povoar os
+nossos campos desertos, elle edificou, elle fez castellos, elle cuidou
+emfim de tudo, e não se esqueceu tambem de mostrar aos bispos que tinha
+muita contemplação por elles, emquanto se limitavam ás suas rezas, mas
+que lhes não permittia metter o nariz assim de muito perto nos negocios
+do estado. A final, este bom rei morreu, menos velho que o pae, em 1212.
+Tinha sido casado com uma princeza chamada D. Dulce, filha do conde
+de Barcelona. De fórma que aqui temos pois já duas rainhas de Portugal,
+D. Mafalda e D. Dulce.
+
+O filho mais velho de D. Sancho, que veiu a ser rei depois d'elle, não
+se parecia muito, valha a verdade, nem com o pae, nem com o avô, mas
+olhem que nem por isso foi menos util cá ao nosso paiz. É o que eu digo.
+Cada qual tem a sua tarefa. Uns cavam, outros semeam, outros põem fóra
+os pardaes e arrancam o joio, que podem dar cabo da ceara. Foi esta a
+tarefa de D. Affonso II. Ora vêem perfeitamente que, se este Portugal
+tão pequeno se começasse a dividir, pedaço para aqui, pedaço para acolá,
+ía-se tudo quanto Martha fiou. D. Sancho, que tivera uma sucia de
+filhos, pensára mais em os deixar bem arranjados do que em assegurar a
+conservação do reino. Por isso no testamento era umas mãos rotas. Esta e
+aquella villa para o senhor infante fulano, esta e aquella cidade para
+sicrano, e terras para este, e terras para aquelle. D. Affonso II
+arrebitou a venta, e disse d'este modo: Então vamos a saber, e eu com
+que fico? E ahi começa á bulha com as irmãs e com os fidalgos. Andava
+tudo em polvorosa com elle. Os fidalgos, por exemplo, tinham recebido de
+D. Affonso e de D. Sancho esta ou aquella terra, mas íam-se fazendo
+finos, e por sua conta e risco íam apanhando mais alguma, os frades
+então nunca chegaram á cabeceira de um moribundo que não apanhassem
+algumas terras de bom rendimento. Isto assim não póde ser, berrava D.
+Affonso II, ás duas por tres fico a olhar ao signal. E elle ahi vae por
+essas provincias fóra, a obrigar os fidalgos a pôr para ali os titulos
+das suas propriedades, declarando que não valiam senão os que elle
+confirmasse, e foi a isso que se chamou _confirmação_. Ao mesmo tempo
+prohibia ás corporações religiosas que tivessem mais terras do que as
+que tinham. Emquanto ao testamento de D. Sancho I, cumpriu só o que lhe
+parecia bom, e, como as irmãs refilassem, houve pancadaria a menos de real.
+
+--Então, por esse andar, os mouros deviam ter vida folgada com elle?
+observou o Francisco Artilheiro.
+
+--Lá isso é verdade, e tanto assim que, quando se tomou Alcacer do Sal,
+os cruzados, que nos ajudaram, e que nunca pozeram a vista em cima do
+soberano, imaginaram que era uma rainha que governava em Portugal; mas,
+meus amigos, olhem que o nosso paiz não lhe deve menos por isso. Se as
+infantas começam a puxar para um lado, os fidalgos a puxar para o outro,
+e ainda os frades a arrancar tambem as terras, n'um abrir e fechar
+d'olhos tinhamos para ahi vinte reinos, e adeus Portugal. Mas o
+gordanchudo do Affonso II, apesar de se não importar para nada com
+os mouros, tinha cabellinho na venta; e por isso os frades foram
+prohibidos de ter mais terras, as infantas tiveram de pôr para ali as
+cidades que o pae lhes tinha deixado, porque D. Affonso II disse-lhes
+que a respeito de corôa em Portugal não havia senão uma, e finalmente os
+fidalgos tiveram de receber d'elle as terras mas por favor e mercê real.
+De fórma que, a 25 de março de 1223, quando morreu apenas com trinta e
+seis annos de idade, Portugal era pequeno, mas estava todo na mão do
+rei, o que já era grande façanha.
+
+--E o filho foi pelo mesmo caminho, sr. João? perguntou o Manuel da Idanha.
+
+--Ora, meu amigo, eu te vou dizer o que succedeu ao filho, e por aqui tu
+verás se o que eu acabo de dizer não é verdade, e se não ha na historia
+exemplos para tudo. O filho era creança, quando subiu ao throno, por
+conseguinte foi necessario haver regencia. Chamava-se Sancho o
+pequenote, Sancho II, por alcunha o _Capello_, porque em creança andara
+com um capuz de frade, lá por promessa da mãe, ou cousa assim. Quem
+ficou com o governo foram os ministros do pae, e, ainda que eram homens
+de truz, sempre lhes faltava a auctoridade que tinha um rei. De fórma
+que toda aquella nobreza e fradaria, quando se viu assim á solta, livre
+da mão de ferro de D. Affonso II, começou a alvorotar-se, e os
+ministros, para os terem quietos, íam dando o que elles pediam. As
+infantas apanharam as cidades, os frades foram juntando terras ás que já
+tinham, e parece que o rei andava umas vezes nas mãos de uns, outras
+vezes nas mãos de outros. Pouco se sabe d'aquelle tempo. Ia pelo reino
+todo uma confusão de seiscentos demonios. O que é certo é que, quando D.
+Sancho II chegou á maioridade, estava já tão costumado a não ser rei que
+não soube puxar pelos seus direitos. E não era que elle fosse fraco.
+Pois não! pelo contrario! Era da raça do avô, não estava bem senão a
+cavallo e com os mouros de volta. Tomou uma boa parte do Alemtejo e do
+Algarve, mas fidalgos e frades esses faziam o que queriam e sobrava-lhes
+tempo. Vêem vocês? Para uma pessoa governar não basta ser um valentão.
+Ás vezes um porta-machado, com umas barbaças por ahi alem, anda em
+bolandas nas mãos de um creançola, outras vezes uma fraca figura faz
+andar um regimento ali direitinho que nem um fuso. D. Affonso não queria
+nada com os mouros, o que o não impedia de governar como um homem; para
+D. Sancho as batalhas eram o pão nosso de cada dia, e em Portugal todos
+governavam menos elle. Cousas da vida! Como os fidalgos faziam o que
+lhes dava na cabeça, e os frades tambem, e os bispos a mesma cousa,
+parecia que deviam estar todos muito satisfeitos. Mas não succedia
+assim. Os bispos queixavam-se dos fidalgos, estes queixavam-se dos
+frades, e todos do rei, os frades porque não reprimia os bispos, os
+bispos porque não tinha mão nos fidalgos, os fidalgos porque não puxava
+as orelhas ao clero. Quando elle saltava nos mouros, ainda as cousas não
+corriam mal. A fidalguia gostava d'aquillo, íam todos atrás do rei, e
+não se pensava em mais nada. Mas, quando uma hespanholita, chamada D.
+Mecia Lopes de Haro, caiu em graça ao rei, que casou com ella, e que
+passou os dias a namorar os olhos pretos da rainha, lá se foi tudo
+quanto Martha fiou. A desordem excedeu todos os limites, e os bispos
+foram ter com o papa a fim de lhe pedirem que tirasse a corôa a D.
+Sancho II. O papa, que era Innocencio IV, pulou de contente com o
+pedido. Era o mesmo que virem-lhe dizer que era elle quem dava e tirava
+as corôas n'este mundo, e que vinha a ser portanto o rei dos reis.
+Estava em França n'esse tempo um irmão de D. Sancho II, chamado D.
+Affonso, que saíra de Portugal para ir correr terras, encontrára em
+França uma condessa de Bolonha, viuva, e já durazia, ao que parece, que
+gostou d'elle e com elle casou, levando-lhe o condado em dote. Ora o tal
+condado era uma especie de reino, sujeito ao rei de França, que n'esse
+tempo era o rei santo que elles tiveram, a saber S. Luiz.
+
+--S. Luiz rei de França, interrompeu a Margarida, é uma igreja que
+fica ali para as bandas do Rocio.
+
+--Pois é uma igreja e foi um rei, tia Margarida, respondeu o João de
+Agualva, como Santa Izabel é uma igreja que fica ali para as bandas da
+Estrella, o que a não impediu de ser tambem uma rainha e rainha de
+Portugal.
+
+--Isso é verdade! confirmou a tia Margarida.
+
+--Pois então, como lhes ía dizendo, reinava S. Luiz em França, e D.
+Affonso, seu vassallo, por ser conde de Bolonha, fôra com elle á guerra,
+e déra provas de ser homem desembaraçado. Lembraram-se d'elle para rei,
+e D. Affonso, que era ambicioso, acceitou. Os bispos e os fidalgos
+disseram comsigo que um rei feito por elles havia de ser um creado que
+tivessem ali no throno, e o papa entendeu tambem que aquillo era «senhor
+mandar, preto obedecer». Combinou-se tudo. D. Affonso prometteu quanto
+quizeram e ahi vae elle caminho de Portugal, fingindo que ía para a
+Terra Santa. Desembarca e principia a guerra civil. Tambem se não sabe
+muito do modo como as cousas se passaram. Parece que foi uma guerra
+levada do diabo como são sempre as guerras civis, queimaram-se villas e
+cidades, arrasaram-se muitas cearas, ficou muita gente na miseria, e o
+pobre D. Sancho viu-se abandonado por todos, dizem até que pela mulher,
+que fôra, a final de contas, o motivo de todas aquellas cousas.
+Houve só um ou outro que se lhe mostrou fiel. D. Sancho teve de saír do
+nosso paiz, e foi para Hespanha, onde morreu em Toledo apenas com trinta
+e sete annos.
+
+--Pobre do homem! acudiu compassiva a tia Margarida. Então que mal tinha
+elle feito áquella gente toda?
+
+--Era um rei fraco, e, como se costuma dizer, não era nem para si nem
+para os outros. Até a mulher não fez caso d'elle, porque as mulheres são
+assim: em estando uma pessoa embasbacada a olhar para ellas, não fazem
+caso nenhum, e ás vezes de quem gostam é de quem lhes chega um _calor_
+ao corpo, como o outro que diz.
+
+--Vae-te excommungado, bradou indignada a tia Margarida. Se um homem me
+batesse, eu até parece que era capaz de lhe arrancar os olhos.
+
+--Pois sim, tia Margarida! não digo menos d'isso. Mas a rainha D. Mecia
+não era do mesmo parecer, e pagou bem as pieguices de D. Sancho!... Só
+de dois fidalgos se conta que se mostraram fieis ao desgraçado rei. Um
+foi o alcaide de Celorico, que até dizem que fez uma partida com graça.
+Estava-o cercando D. Affonso, e elle já não tinha nem uma migalha de
+pão, n'isto passa uma aguia por cima da praça com uma truta no bico, e
+deixa-a cair dentro da villa. O alcaide, em vez de a comer, manda-a
+cosinhar muito bem, e envia-a de presente aos cercadores. D.
+Affonso, vendo que na praça havia petiscos d'aquelles, entendeu de si,
+para si que estava perdendo o tempo e o feitio, e foi-se embora. Póde
+ser que isto seja patranha, mas o que é verdadeiro, sem tirar nem pôr, é
+o caso de Martim de Freitas. Esse era alcaide de Coimbra, foi cercado
+tambem, não se rendeu. Disseram-lhe que já D. Sancho morrera, e que por
+conseguinte era D. Affonso o seu natural successor. Não acreditou.
+Affirmaram-lhe que morrera em Toledo. Pediu para ir ver. Deram-lhe um
+salvo conducto, e Martim de Freitas, mettendo na algibeira as chaves de
+Coimbra, foi de passeio até Toledo. Mostraram-lhe o tumulo do rei,
+mandou-o abrir; mostraram-lhe o caixão, quiz ver o corpo; e ao ver emfim
+o pobre cadaver do seu rei, que assim morrera aos trinta e sete annos,
+longe da sua terra e longe dos seus, ajoelhou e poz as chaves da cidade
+nas mãos do rei que lh'as entregára; depois, tirou-as d'essas mãos já
+frias que as não podiam segurar, e partiu para Coimbra, entregando-as ao
+novo rei, que louvou muito a acção.
+
+--E tinha rasão para isso, tornou a tia Margarida, que estava sendo
+agora a interruptora, mas com o tal rei novo é que eu não engraço nada.
+Olhem que irmão! Sempre tinha uns figados!
+
+--Não era muito boa rez, não, tia Margarida, mas então n'este mundo não
+são só as boas pessoas que servem. Que D. Affonso se importava tanto
+com a familia como eu me importo com a familia do imperador da China, é
+o que não tem questão, mas que foi um grande rei, isso tambem é verdade.
+
+--Era fresco o tal rei, que assim fazia guerra ao irmão sem mais nem menos!
+
+--Ha mais exemplos d'isso, tia Margarida, e não vão elles tão longe que
+uma pessoa se não possa lembrar. Mas olhe que não param ahi as maldades
+de D. Affonso. Tambem não fez caso da mulher, a tal condessa de Bolonha,
+que nunca foi capaz de pôr pé em Portugal, e casou, em vida d'ella, com
+uma filha do rei de Hespanha.
+
+--E ainda você o gaba, sr. João? perguntou a tia Margarida. Sabe o que
+eu lhe digo? Parece-me que você é tão bom como elle!
+
+--Olhe, tia Margarida, não me rogue você nunca outra praga, que lá com
+essa não me hei de eu dar mal. O que lhe disse é que o sr. D. Affonso
+III foi um dos reis que fizeram mais bem ao pobre povo, e sabe vocemecê
+porque? Porque era homem de cabeça, e o que succedera com elle não tinha
+caído em cesto roto. Elle disse comsigo; Estes patifes d'estes fidalgos
+e d'estes bispos são capazes de me fazer a mim o mesmo que fizeram a meu
+irmão. Ora, eu sósinho não posso com elles. A quem me hei de encostar?
+Olhou em torno de si e vio o povo, o povo em quem ninguem fallava, e que
+era a final de contas quem pagava as custas dos barulhos entre os
+grandes, o povo que pagava tributos a toda a gente, e que mesmo quando
+vivia em seus concelhos governando-se pelos seus foraes, que eram para
+assim dizer as suas leis, mesmo então era ralado pela fidalguia. E
+Affonso III disse comsigo: Ora ahi está quem me serve. E desata a fazer
+concelhos, e, quando reuniu côrtes que até ahi eram só de fidalgos e
+padres, chamou tambem procuradores do povo, e favoreceu o mais que poude
+o seu negocio, e deu-lhes socego e cousas e tal, de fórma que depois
+poude dar para baixo nos prelados, que berravam pelos contractos que
+tinha diabo, mas D. Affonso III, que era finorio, abanou-lhes as
+orelhas. E que os papas tinham deposto não só o rei D. Sancho II, mas
+tambem um imperador da Allemanha, de modo que aos chefes dos estados já
+ía cheirando a chamusco, e principiaram a fazer parede contra o papa.
+Assim os bispos, que levavam tapona de D. Affonso III, íam a Roma fazer
+queixas ao papa, e o papa naturalmente respondia-lhes contando-lhes uma
+fabula que lhes vou contar a vocês tambem.
+
+--Conte lá sr. João da Agualva, exclamou o Manel da Idanha, ainda que
+eu, a dizer a verdade, não sei lá muito bem o que venha a ser isso de
+_fava_ ou _fabula_ ou o que é.
+
+--Fabula é assim uma historia em que os animaes fallam como se fossem
+gente, e pelo que elles dizem tira a gente... sim... é como diz o outro
+pelos domingos se tiram os dias santos... Eu lá, a estas
+explicações, não se póde dizer que seja um barra, mas em fim, em eu
+contando o caso, logo vos apercebem.
+
+--É isso mesmo, tio João, conte lá, disse o Bartholomeu.
+
+--Uma vez as rãs foram ter com Deus Nosso Senhor e pediram-lhe um rei, e
+Deus Nosso Senhor, que estava de maré, não quiz abusar das pobresinhas,
+e atirou-lhes para o charco um cepo; mas o cepo não fazia nada, andava á
+tona da agua, para aqui e para acolá, as rãs não lhe tinham respeito
+nenhum, e saltavam n'elle, qual debaixo qual de cima, e o cepo sempre um
+paz d'alma, que tanto valia terem rei como não o terem. Vae então as rãs
+voltaram a Deus Nosso Senhor, e disseram-lhe d'esta maneira: Dê-nos
+Vossa Divindade um rei que se veja, um rei que nos governe.--Pois então
+ahi vae um rei como vocês querem, respondeu Nosso Senhor, e atirou-lhes
+para o charco uma serpente, e a serpente, a primeira cousa que fez, foi
+engulir as primeiras vassallas que lhe pareceram mais gordas, e depois
+outras e outras, de fórma que as pobres rãs já se não atreviam nem
+sequer a coaxar para que sua magestade não desse com ellas. Percebem
+vocês agora porque é que o papa podia contar esta historia aos bispos
+que íam ter com elle?
+
+--Percebo eu, acudiu logo o Manel da Idanha. É que elles não
+descançaram emquanto não pozeram fóra um rei que era um paz d'alma, um
+cepo, o D. Sancho II, e foram buscar outro rei que era uma serpente e
+que deu cabo d'elles que foi um regalo.
+
+--Ora, tal qual, sô Manel. Com gente assim é que eu me entendo. D.
+Affonso III bem se póde dizer que era uma serpente, porque as serpentes
+são manhosas, e elle tinha manha a valer. Mostrou-o em tudo, até no modo
+como se assenhoreou do Algarve, que era só o que faltava para Portugal
+chegar ao mar pelo lado do sul. Tomou-o aos mouros, e isso foi obra de
+pouco tempo; mas o rei de Castella começou a berrar que o Algarve lhe
+devia pertencer a elle. D. Affonso III nunca lhe disse o contrario, mas
+foi arrastando a entrega, e depois aproveitando tudo, de fórma que ás
+duas por tres estava senhor do Algarve, e, quando D. Affonso III morreu,
+que foi a 16 de fevereiro de 1279, estava Portugal completo e seguro, e,
+visto que chegámos ao fim d'esta primeira parte, parece-me que o melhor
+é irmos dormir, que para o outro domingo continuaremos.
+
+--Mas ó sô João, disse o Manel da Idanha, já agora, faça favor, não
+deixe ir a gente embora, sem nos explicar uma cousa. Vocemecê diz que o
+rei, para esmurrar as ventas aos bispos mais aos fidalgos, começou a
+fazer concelhos por dá cá aquella palha, e lá isso é que eu não
+percebo muito bem. Então que diabo tinham os fidalgos com o haver ou o
+não haver concelhos?
+
+--Pois tem rasão, sô Manel da Idanha, e bom é que essas cousas fiquem
+explicadas, porque a mim parece-me cá no meu modo de ver que o que nos
+importa a nós, que somos do povo, não é tanto saber as batalhas que se
+deram, e mais os reis que houve; o que nos importa é saber como é que
+viviam os nossos paes, e como se governavam e cousas e tal. Ora pois,
+saibam vocês que muitos dos nossos paes eram a bem dizer escravos, não
+como os do tempo dos romanos que podiam ser vendidos como uns negros,
+mas faziam parte das terras que cultivavam, e com ellas passavam de dono
+para dono. Isto foi melhorando, e os servos passaram a ser gente livre,
+mas sem ter terras suas; pagavam foros e foros pesados, os senhores das
+terras eram os reis, os nobres, os bispos e os mosteiros. As terras dos
+reis chamavam-se _terras da corôa_, as dos fidalgos e as da igreja
+_coutos_, _honras_ e _behetrias_. Ora os fidalgos, que só tinham
+obrigação de servir o rei na guerra e não pagavam mais nada, ou por
+herança de seus paes, ou por doações dos reis em recompensa dos seus
+serviços, íam mettendo em si o paiz todo, já se vê de embrulhada com os
+padres; e os reis pouco tinham de seu, porque, demais a mais, fidalgos,
+bispos e conventos apanhavam tudo quanto podiam, o que se lhes dava
+e o que se lhes não dava. Por isso D. Affonso fez as taes _inquirições_,
+quer dizer, obrigou todos a porem para ali os seus titulos, para se
+saber se tinham as terras com direito ou sem elle, estabeleceu mais as
+famosas confirmações que punham a fidalguia sempre na dependencia da
+corôa, porque cada novo rei confirmava ou não confirmava as doações dos
+outros, e finalmente prohibiu aos conventos que arranjassem mais terras.
+E vae o povo o que fazia? Sempre que se podia livrar dos fidalgos e dos
+padres por qualquer modo e feitio, formava-se um concelho. Então
+continuavam a pagar tributo, e serviam nas guerras, mas não estavam
+sujeitos a ninguem, governavam-se elles por si, e tinham as terras muito
+suas. Ora, como os reis é que os podiam ajudar a ver-se livres da
+fidalguia, chegavam-se para elles, e os reis, que tinham nos concelhos
+gente que tambem ía á guerra e que lhes pagava tributos, encostavam-se
+para esse lado, para terem quem lhes valesse quando os barões ou os
+bispos se faziam finos. Aqui tens tu explicado pela rama como cada
+concelho, que se formava, era ao mesmo tempo um asylo de liberdade para
+o povo e um auxiliar para o rei contra as ameaças dos fidalgos.
+
+--Muito obrigado, sô João da Agualva, tornou o Manel; mas sempre lhe
+digo que quem não sabe é como quem não vê. Ora quem me _havera_ de dizer
+que esta historia de ter uma terra, um pelourinho no meio da praça,
+era de tanta vantagem cá para o povo! Pois até domingo, e tomára eu que
+passasse depressa a semana porque divertimentos como este é que ha muito
+tempo a gente não apanha.
+
+
+
+
+QUARTO SERÃO
+
+D. Diniz.--A universidade de Coimbra.--Os Templarios.--Santa Isabel.--D.
+Afonso IV.--A batalha do Salado.--Morte de Ignez de Castro.--D. Pedro
+I.--D. Fernando I.--Leonor Telles.--Estado de Portugal no fim do reinado
+de D. Fernando.
+
+
+--Meus amigos, principiou o João da Agualva, corriam os annos, e lá por
+esse mundo de Christo íam todos abrindo os olhos. Os romanos, como lhes
+disse, eram um povo que sabia o nome aos bois. Elles faziam estradas,
+elles faziam edificios que ainda hoje, arruinados, deixam ficar uma
+pessoa embasbacada, elles tinham escolas, o diabo! Mas, depois, vieram
+os barbaros dos bosques da Allemanha e da Russia, e zas, tras, catatras,
+lá se foi tudo pela agua abaixo. Por muito tempo não se pensou senão em
+pancadaria. Tudo era gente rude, os reis não sabiam ler nem escrever, os
+povos fallavam uma lingua assaralhopada que nem era latina, nem deixava
+de o ser. Mas a pouco e pouco foram-se aclarando as cousas, foi
+havendo estudos, e D. Diniz, que subiu ao throno, depois da morte de D.
+Affonso III, era já um sabichão. Elle fazia os seus versos de pé
+quebrado, que a gente hoje quasi que não entende, mas que eram já
+escriptos n'uma lingua com termos, elle emfim vio que havia escolas por
+esse mundo onde se ensinava tudo o que então se sabia, e quiz tambem ter
+uma que foi a universidade de Coimbra. Depois tratou de fazer do reino
+alguma cousa com geito. Já não tinha que pensar em mouros, e então
+pensou na lavoura, pensou na marinha, pensou em tudo o diabo do homem!
+Mandou vir capitães de navios, de Italia, para ensinarem os nossos, e
+ajudou os navegantes do Porto, que sempre foram gente desembaraçada, a
+crear uma especie de companhia de seguros, e não se descuidou tambem de
+dar para baixo na nobreza e nos padres para elles se não fazerem finos,
+e dava-lhes de modo que elles não tinham rasão de queixa, porque era
+sempre com justiça. Ora, por exemplo, d'antes havia uma especie de
+frades que se chamavam freires militares, que eram, como quem diz,
+frades e soldados ao mesmo tempo. Em vez de fazerem voto de rezar e de
+jejuar, faziam voto mas era de dar bordoada nos mouros. Havia umas
+poucas de ordens n'esse gosto, a ordem dos Templarios, a de S. Thiago, a
+de Aviz e outras. Ora, como é de ver, esses templarios, por exemplo, que
+se fartavam de tomar terras aos mouros, com algumas haviam de ficar
+para si. E depois tinham doações, emfim eram ricos a valer. O que
+acontecia por cá, tambem acontecia lá por fóra. Succedeu, pois, que um
+rei de França e um papa acharam excellente apanhar para si essas
+riquezas todas, e acabaram com a ordem dos Templarios em toda a parte;
+mas D. Diniz, que era um homem serio, não esteve pelos ajustes, e
+entendeu que seria um roubo tirar aos homens o que elles tinham ganho á
+custa do seu sangue, e então, como não havia de desobedecer ao papa,
+abolio a ordem dos Templarios, mas passou todos os bens para outra que
+pediu ao papa que creasse e a que chamou ordem de Christo.
+
+--Ó sr. João, perguntou o Francisco Artilheiro, esse D. Diniz não era
+marido da rainha Santa Isabel?
+
+--Era sim, rapaz, e já vou fallar n'essa rainha, que foi tambem uma das
+bençãos de Portugal n'esse tempo. Era filha do rei de Aragão, e bem se
+póde dizer que aquella é que foi uma verdadeira santa. Pobre senhora!
+Não lhe faltaram desgostos, não. Primeiro houve grande bulha entre o
+marido e um cunhado, D. Affonso Sanches, que embirrou em que lhe
+pertencia a corôa, apesar de ser mais novo; depois, e isso foi o peor, o
+filho, que veio a ser D. Affonso IV, revoltou-se contra o pae, e porque?
+Porque el-rei D. Diniz, que era frecheiro, e que se fartou de ter
+filhos bastardos, parecia que olhava mais por elles do que pelos
+proprios filhos do matrimonio. Imaginem o desgosto da rainha! Primeiro
+porque emfim não havia de gostar muito de ver o marido sempre ao laré
+com esta e com aquella a arranjar filhos por fóra de casa, e depois por
+ver assim a guerra accesa entre seu marido e seu filho. E ainda por cima
+o rei desconfiou que ella ía de accordo com o filho, e chegou até a
+tratal-a mal, e a mandal-a saír da côrte. Pobre senhora! aquillo era o
+que ali estava. Ella tudo supportou com resignação--as infidelidades e
+as injustiças do marido, só o que queria era ver tudo em paz. E sempre o
+conseguio. Tanto pediu, tanto chorou, que o filho e o pae vieram ás
+boas. Mas d'ahi a pouco torna a haver intrigas, e o D. Affonso, que era
+um vivo demonio, torna á pancadaria com o pae. Pois senhores, a batalha
+estava para ser aqui ao pé de Lisboa, no Campo Grande; mas quando já
+começavam á lambada, apparece no meio d'elles a boa rainha, que foi
+mesmo o anjo da paz, e depois que ella appareceu ninguem mais se atreveu
+a levantar uma lança. Oh! rapazes! digo-lhes que até me parece que não
+era necessario que o papa a fizesse santa para que o povo a adorasse!
+Pois então se aquella não fosse santa quem é que o havia de ser? Dizem
+que mudava o ouro em rosas, e rosas em ouro. Isso creio eu, que aquellas
+bentas mãos haviam de mudar em flores tudo em que tocassem, porque
+eram, como o outro que diz, mãos puras e boas, como a aragem de maio!
+Mas milagres maiores fazia ella ainda, porque as lagrimas que chorava em
+segredo caíam depois sobre a cabeça do pai e do filho como orvalho de
+paz e como chuva de amor! Sim! Sim! continuou o bom do João da Agualva,
+com voz tremula, e meio a chorar, digam lá vocês que ella não mudava
+tudo em que tocava em rosas, quando agora mesmo, que diabo! só de fallar
+n'ella, parece que até as palavras na minha bôca se estão mudando em
+flores!
+
+--Ai! a minha rica Santa Isabel! exclamou a tia Margarida, pondo as
+mãos, n'um enlevo. Coitadinha da minha rica santa que foi logo casada
+com um homem tão mau!
+
+--Não era mau, não senhora, tornou o João da Agualva, foi até um dos
+melhores reis que nós tivemos, mas como elle ás vezes lá escorregava o
+seu pedaço, e nem sempre tratou a santa como ella merecia ser tratada,
+bastou isso para que o povo começasse a inventar cousas, que elle que
+era um sovina, um desconfiado, um unhas de fome, e até os pintores,
+quando fazem o quadro do milagre das rosas, põem-n'o com uma carantonha
+de metter medo, que ninguem dirá que está ali o rei poeta, o rei a quem
+chamavam o pae do povo, o rei que não quiz roubar os templarios, o rei
+que fundou a universidade de Coimbra, o rei que tanto se desvelou
+pelo bem do paiz! E que as injustiças, por mais pequenas que sejam,
+sempre vem a pagar-se, e D. Diniz, esses peccados que teve, pagou-os bem
+caro, primeiro com a revolta de seu filho, depois com a injustiça do
+futuro, e agora vão vocês ver como o filho tambem pagou o que fizera ao
+pae, porque em 1325 morreu el-rei D. Diniz e subiu ao throno seu filho
+D. Affonso IV, a quem chamaram o Bravo.
+
+--Ora vamos lá a ver o que fez esse senhor, disse uma voz.
+
+--D. Affonso IV, meus amigos, tinha muito boas qualidades. Era, por
+exemplo, um homem de muito bons costumes, e foi isso até que o levou a
+praticar uma acção... emfim, depois fallaremos. Era homem serio, mas
+arrebatado e vingativo. A primeira cousa que fez, assim que subiu ao
+throno, foi vingar-se dos irmãos, por cuja causa tivera as bulhas com o
+pai. D'ahi guerra. Quem acudiu? A rainha Santa Isabel.
+
+Casou uma filha com o rei de Castella, Affonso XI. Este, que era do
+feitio de D. Diniz, começou a largar a mulher e a metter-se com uma tal
+D. Leonor de Gusman. D. Affonso IV, que ficára embirrando deveras com
+esses arranjos depois das turras com o pai, começou a criar má vontade
+ao genro, e zas, toma que te dou eu, ao primeiro pretexto que teve, ahi
+começam as bulhas. Foi uma guerra de cá cá ra cá, que não prestou
+para nada, mas que sempre fazia mal ao povo. No mais seguiu á risca o
+exemplo do pae. Tratou do povo, teve os fidalgos muito na mão, mais os
+padres tambem. E então com esses não foi lá só por causa das terras a
+que deitavam a unha, foi tambem por causa dos maus costumes, porque
+elles gostavam de passar vida airada e outras cousas que D. Affonso IV
+lhes não levou a bem. Por isso apanharam uma vez uma rabecada, n'uma
+carta que D. Affonso escreveu ao papa, que foi de ficarem de cara a uma
+banda.
+
+--Bem feito! acudiu a tia Margarida. Esse rei sim! esse é que me quadra.
+Bem se vê que era filho da rainha Santa Isabel!
+
+--Espere lá, tia Margarida, não falle antes de tempo que, como diz o
+outro, até ao lavar dos cestos é vindima. Houve no reinado de D. Affonso
+IV duas cousas famosas: primeiro a batalha do Salado, depois a morte de
+D. Ignez de Castro.
+
+--Foi com os hespanhoes a batalha do Salado?
+
+--Não homem, foi dada até para os ajudar. Já lhes disse, meus amigos,
+que nós desde o reinado de D. Affonso III tinhamos posto os mouros na
+rua. Mas os hespanhoes ainda não tinham conseguido o mesmo, os mouros
+estavam reduzidos apenas ao reino de Granada, mas sempre isso era alguma
+cousa. Ora agora ali em Marrocos estava, como sabem, a moirama toda.
+Imaginem que um bello dia o tal miramolim de Marrocos, ou como diabo
+se chamava elle, desaba em Hespanha com o poder do mundo e junta-se ao
+rei de Granada para darem cabo do rei de Castella. Era este D. Affonso
+XI, genro do nosso D. Affonso IV. Aterrado com o perigo, pediu soccorro
+ao sogro, apesar de estar mal com elle; mas o nosso rei, homem ajuizado,
+vio que a occasião não era para dize tu direi eu, que não era só
+Castella que estava em perigo, estava em perigo a Hespanha toda; se
+Affonso XI levasse uma tareia e perdesse algumas provincias ficavam aqui
+os mouros de raiz, e tinha de se começar outra vez a pôl-os fóra. Por
+isso não esperou por mais nada, ajuntou quanta gente poude, e foi em
+soccorro do genro. O nosso rei era homem de pulso, os nossos soldados
+tambem eram pimpões. O soccorro não foi nada mau. Na batalha do Salado
+os mouros levaram uma sova de primeira ordem, e nunca mais os de
+Marrocos vieram cá metter o nariz d'este lado do mar. D. Affonso IV
+voltou para a sua terra sem ter querido acceitar cousa nenhuma da grande
+preza que fizeram.
+
+--E isso de D. Ignez de Castro o que foi, ó sr. João da Agualva?
+perguntou a tia Margarida. Não foi essa Ignez de Castro que esteve aqui
+em Bellas, que até ali na quinta do marquez ha uma arvore a que chamam
+de Ignez de Castro?
+
+--Ora adeus, tia Margarida! esteve agora em Bellas! quer dizer, eu,
+como não andei com ella por toda a parte, não sei se por cá passaria
+alguma vez, mas onde viveu principalmente foi em Coimbra. Era uma
+hespanhola esta Ignez de Castro, linda como os amores, loura como o sol,
+e com um pescoço tão bonito, que lhe chamavam o _collo de garça_. Veio
+para Portugal como dama da infanta D. Constança que foi mulher do
+principe D. Pedro, filho de D. Affonso IV, mas o principe parece que
+gostou mais da dama que da mulher. Tristes amores foram aquelles,
+rapazes! Ella tinha pelo seu Pedro um fatacaz lá de dentro, que estou em
+dizer que mais gostaria ella de que elle fosse um pastor de cabras do
+que filho de um rei. A princeza D. Constança morreu, e para isso não
+deixaria de concorrer a paixão do marido, que, por mais que elle a
+quizesse esconder, rebentava por todos os lados. Coitada da princeza!
+tudo fez para arredar o marido d'aquelles mal-aventurados amores. Mas
+então! vão lá fugir ao seu destino! Pediu a Ignez de Castro que fosse
+madrinha de um filho que ella teve, porque n'esse tempo haver amores
+entre compadre e comadre quasi que era maior peccado que havel-os entre
+irmãos. Nada! aquillo era como um fogo valente que tanto mais se accende
+quanto mais agua lhe deitam. Em fim, morreu a princeza, e D. Pedro e D.
+Ignez ficaram á vontade, porque até ahi tinham guardado respeito á pobre
+senhora. Casariam? D. Pedro assim o jurou depois, mas eu estou em
+dizer que não, porque para casarem era necessaria dispensa graúda, que o
+papa não daria assim sem mais nem menos e com tanto segredo como o
+principe quereria. Mas, ou casassem ou não, é certo que tiveram tres
+filhos, e que o principe D. Pedro não queria saber de mais nada senão da
+sua loura Ignez.
+
+D. Affonso IV não viu isso com bons olhos. Sabem como elle era. Vivia só
+para a sua mulher, queria tudo em boa ordem, e não gostava d'essas
+fraquezas. Os fidalgos tambem não gostavam, mas esses por outras rasões.
+Tinha D. Ignez muita parentella, e diziam comsigo que, apenas D. Affonso
+IV fechasse os olhos, eram os Castros que davam as cartas em Portugal.
+Começaram a ferver as intrigas, e chegaram a aconselhar o rei que, visto
+que não havia forças humanas que arrancassem D. Pedro á sua Ignez, o
+melhor era darem cabo d'ella. D. Affonso IV torceu o nariz, mas lá por
+dentro estava em braza. Ora, imaginem vocês! D. Affonso, no principio da
+sua vida, tivera os maiores desgostos por causa dos bastardos de seu
+pae. Tambem o tinham feito de fel e vinagre os amores de seu genro com
+D. Leonor de Gusman. Morria pelo neto, um rapazinho bonito como a
+aurora, que tinha de ser depois D. Fernando o Formoso. Lembrou-se das
+amarguras que viriam a causar ao rapazito os filhos da amante
+querida, que talvez até lhe roubassem a corôa. Subiu-lhe a mostarda ao
+nariz com a teima do filho, e deu ordem aos seus tres conselheiros,
+Alvaro Gonçalves, Diogo Lopes Pacheco e Pedro Coelho para que o
+livrassem de D. Ignez. Ahi vão todos até Coimbra, onde estava muito
+socegada a triste da rapariga. Ella, apenas suspeitou do caso, veiu com
+os filhos lançar-se aos pés do rei. O pobre D. Affonso enterneceu-se,
+mas os conselheiros é que viram o caso mal parado. «Se elle perdôa,
+disseram comsigo, nós é que pagamos as favas.» Não esperaram que D.
+Affonso resolvesse as cousas de outro modo. Foram-se á pequena, e,
+emquanto o diabo esfrega um olho, ferraram com ella no outro mundo!
+
+--Ai que malvados! bradaram todos.
+
+--Isso eram, tornou o João da Agualva. Sim! que eu não desculpo D.
+Pedro, nem a desculpo a ella. Se uma mulher, só porque gosta de um
+homem, não está lá com mais ceremonias e passa a viver com elle, sem a
+benção do padre, aonde irá isto parar? mas tambem matal-a sem mais nem
+menos, matal-a no meio dos seus filhos, matar uma pobre menina, que não
+fazia senão chorar, ah! só uns malvados eram capazes de fazer similhante
+cousa. Por isso tambem, vêem vocês? D. Affonso foi um bom rei, um homem
+de bons costumes, um valente, tudo quanto quizerem, mas a final de
+contas perguntem ahi a um pequeno:--Quem era D, Affonso IV? Cuidam
+que elle que lhes responde: Era um bom rei, isto, aquillo e
+aquell'outro. Não, senhores, diz logo: Foi o rei que matou Ignez de
+Castro. E como assassino é que a gente o conhece, e no seu manto real
+não se vê o sangue das batalhas, vê-se mas é o sangue de Ignez! E esta?
+Se a não matassem, o que dizia a historia? Foi a amante de um rei. Olhem
+que gloria! E assim? Todos choram por ella, como a tia Margarida, que
+está ali a limpar os olhos com a ponta do seu avental.
+
+--E o que fez D. Pedro? perguntou o Manuel da Idanha.
+
+--O que fez D. Pedro? Ah! com os diabos! Imaginem! Elle ainda tinha
+peior genio que o pae. Apenas soube do que succedera, aquillo parecia um
+leão ferido. Saltou logo para o campo em som de guerra, e D. Affonso
+pagou o que fizera ao pae, porque teve tambem o filho revoltado contra
+si. Correu muito sangue por esse reino, até que emfim se fez a paz, mas
+D. Affonso IV pouco tempo sobreviveu, morrendo em 1359, dois annos
+depois da morte de Ignez.
+
+--Subio ao throno D. Pedro, não é verdade? perguntou com muito interesse
+o Manuel da Idanha.
+
+--É verdade que sim, e, meus amigos, então é que se viu o amor lá de
+dentro que elle tinha á sua Ignez. Apenas subio ao throno, os assassinos
+da Castro safaram-se para Hespanha, mas D. Pedro lá fez o seu
+negocio com o rei de Castella, de fórma que apanhou os criminosos, menos
+um, Diogo Lopes, que conseguiu fugir. Assim que os teve em seu poder,
+fez-lhes torturas. A um mandou arrancar o coração pelo peito e a outro
+pelas costas.
+
+--Credo! exclamou a tia Margarida.
+
+--Por isso lhe chamavam D. Pedro o Cruel, assim como tambem lhe deram o
+nome de D. Pedro o Justiceiro. Justiça fez elle, porque bradava aos céus
+a morte de D. Jgnez, mas uma crueldade assim é de se porem a uma pessoa
+os cabellos em pé! Que mais querem? D. Pedro parece que não pensava
+n'outra cousa senão na sua Ignez, elle trasladou-a, com um estadão nunca
+visto, de Coimbra para Alcobaça, onde lhe mandara fazer um tumulo que
+era mesmo uma lindeza. Elle declarou que tinha casado com ella, e até se
+diz que a sentou, depois de morta, no throno, e mandou que todos lhe
+beijassem a mão. Mas isso parece-me patranha, ainda que D. Pedro era
+capaz d'essas extravagancias e de muitas mais. Porque effectivamente,
+meus amigos, parece que elle tinha endoidecido com a morte de D. Ignez.
+Tinha assim de repente umas furias que era livrar quem estivesse diante.
+Era justiceiro, é verdade, mas fazia justiça á doida e á bruta. Outras
+vezes entrava por essa Lisboa dentro a dançar, muito contente da sua
+vida. Governava bem, não ha duvida, punia pelo povo, abaixava a prôa
+aos bispos, conservava o reino em paz, e juntava bom dinheiro nos cofres
+para uma occasião de apuros, mas era ao mesmo tempo umas mãos rotas com
+os fidalgos, que tornaram a fazer-se finos, como se viu depois.
+
+Foi em 1367 que D. Pedro morreu, e logo subiu ao throno D. Fernando, a
+quem chamavam o Formoso, de bonito que era. Lá que elle tinha telha,
+isso é que não padece duvida, porque nunca se viu uma ventoinha assim.
+Aquillo era mesmo um gallo de torre de igreja. Primeiro deu-lhe na tonta
+o querer ser rei de Castella, de mais a mais não tendo geito nenhum para
+a guerra, e não gostando de batalhas. D'ahi, o que resultou? Gastou o
+que tinha, levou pasada de crear bicho, e teve de fazer as pazes. Mas
+vejam vocês que cabecinha! Quando fez guerra a Castella, alliou-se com o
+Aragão, mandou-lhe para lá bom dinheiro, e prometteu casar com a filha
+do rei, que se chamava D. Leonor. Faz as pazes com o de Castella, e, sem
+se lembrar já do primeiro casamento, promette casar com a filha do rei
+castelhano, que tambem se chamava Leonor. O de Aragão não fez caso,
+metteu o dinheiro portuguez, que lá tinha, nas algibeiras, e nunca mais
+deu contas. Mas o peor não é isso, o peor é que D. Fernando tambem não
+casou com D. Leonor de Castella, porque n'este meio tempo namorou-se de
+uma dama do paço, chamada D. Leonor Telles, e desposou-a! Ao menos
+n'uma cousa era elle constante, é que não saía das Leonores.
+
+Esta Leonor Telles foi o que se chama uma mulher de truz, bonita como as
+que o são, manhosa como a serpente, e dando, como a nossa mãe Eva, o
+cavaquinho pelo fructo prohibido. Quando casou com D. Fernando já era
+casada com um D. João Lourenço da Cunha, mas lembrou-se á ultima hora de
+que ainda eram parentes, e o rei arranjou do papa que desfizesse o
+casamento. João Lourenço da Cunha deu graças ao céu por se ver livre da
+mulher que estava para lh'a pregar mesmo na menina do olho, e D.
+Fernando levou D. Leonor Telles para casa. Mas o povo é que não esteve
+pelos autos e gritou e berrou e fez tumulto, tanto que el-rei safou-se
+de Lisboa. Houve mosquitos por cordas por esse reino todo, e a final
+acabou tudo em paz. D. Leonor ficou sendo rainha, os de Lisboa apanharam
+para o seu tabaco e D. Fernando não tardou a levar a paga.
+
+O rei de Castella achou que D. Fernando o tratara com tal ou qual
+sem-ceremonia, e quiz-lhe dar uma lição de bem viver. Veio a Portugal,
+chegou a Lisboa, entrou por ahi dentro, fez um estrago de seiscentos
+demonios, e dava cabo da capital se D. Fernando lhe não vem pedir pazes,
+que, já se vê, custaram caras. Aqui ficámos finalmente em socego, e
+então D. Fernando parecia outro homem. Sabia governar aquelle rapazote,
+quando as mulheres lhe não faziam andar a cabeça á roda, ou quando se
+não lembrava de ter outros reinos. Era economico e arranjado. Sabia pôr
+as cousas no seu logar. Foi elle que cercou Lisboa de fortificações, que
+depois não serviram de pouco ao seu successor.
+
+Mas, coitado, acertára mal, em todos os sentidos, com a tal D. Leonor
+Telles, que era mesmo o demonio em pessoa; quando se enfastiou d'elle,
+tomou amores com um gallego que vivia em Portugal, chamado conde
+Andeiro. El-rei, entretanto, metteu-se outra vez em guerras com
+Castella, e pediu auxilio aos inglezes. Oh! rapazes, que tristes tempos
+foram aquelles! A vida do paço era um desaforo. Estava ali aquella
+mulher, aquella... não sei que diga, a pôr na cabeça a corôa da rainha
+Santa Isabel, a corôa que não podéra pôr nos seus cabellos louros a
+pobre Ignez de Castro, que, apesar de todos os pezares, era mil vezes
+mais capaz do que essa rainha de contrabando, que andou de um para
+outro, sem vergonha de qualidade nenhuma! E ainda por cima era malvada!
+vingativa! e para ella a vida de um homem valia tanto... como... a honra
+do marido, que é o mais que se póde dizer!
+
+O povo desgraçado, porque tudo se juntava. As guerras com Castella
+sempre infelizes! os inglezes, como sempre, apesar de amigos, muito
+peores do que se fossem inimigos. Os fidalgos de Castella, que tinham
+tomado o partido de D. Fernando, tratados aqui á grande! e ainda por
+cima D. Fernando sem ter filhos, e com a filha unica já casada com D.
+João I de Castella. D. Fernando, apesar da sua cegueira, já ía
+percebendo as cousas, e tinha lá por dentro um desgosto que o ralava.
+Tambem em 1383, tendo apenas trinta e oito annos de idade, esticou a
+canella, depois de um reinado que podia ter sido muito proveitoso, e que
+assim foi uma desgraça para todos. E eu tambem me vou chegando para a
+cama, não sem lhes dizer que houvera mudança completa no modo de viver
+da nossa gente n'estes ultimos reinados. Os fidalgos tinham levado para
+baixo, e estavam já em grande parte, por assim dizer, ás sopas dos reis.
+Os concelhos do povo tinham-se feito fortes, e batiam o pé á fidalguia,
+e ao clero, principalmente, nas côrtes, em que entravam. O resultado de
+tudo isso é o que vocês hão de ver de hoje a oito dias.
+
+
+
+
+QUINTO SERÃO
+
+Interregno.--Regencia de Leonor Telles.--Morte do conde Andeiro.--O
+cerco de Lisboa.--Nuno Alvares Pereira e João das Regras.--As côrtes de
+Coimbra.--D. João I.--A batalha de Aljubarrota.--Os filhos de D. João
+I.--Tomada de Ceuta.--Os descobrimentos.--D. Duarte.--Expedição de
+Tanger.--Menoridade de D. Affonso V.--O infante D. Pedro.--Batalha de
+Alfarrobeira.--Tomada das praças africanas.--Guerras com
+Hespanha.--Batalha de Toro.--Ida de D. Affonso V a França.--Continuação
+dos descobrimentos.
+
+
+--Meus amigos, disse o João da Agualva no outro domingo, o que eu agora
+vou contar ha de parecer assim a vocês grande patranha, e a todos
+pareceria se não houvesse tantas provas da verdade. É caso de uma pessoa
+ficar pasmada ver o que fez este paiz só, ao canto do mundo, pequeno
+como é. Oiçam, pois, rapazes, com attenção. Apenas morreu el-rei D.
+Fernando, tratou logo D. Leonor Telles de fazer proclamar rainha de
+Portugal a sua filha D. Beatriz, que era uma pequenota casada com o rei
+de Castella D. João I, e ao mesmo tempo fez-se regente. O povo, que não
+queria ser castelhano, ou hespanhol como hoje diriamos, nem que o
+matassem, começou a levantar-se por toda a parte. Mas o que faltava
+era um chefe. Os filhos de D. Ignez de Castro andavam fugidos por fóra
+de Portugal, um por isto, outro por aquillo, mas quem estava em Lisboa
+era um rapaz muito sympathico, filho bastardo de el-rei D. Pedro, que
+este fizera mestre de Aviz, e a quem D. Leonor Telles sempre tivera
+muito odio. A elle se dirigiram. O mestre vio que não havia remedio
+senão fazer o que o povo queria. Toma logo a sua resolução, vae ao paço
+e mata elle mesmo o conde Andeiro, põe-se á frente do povo de Lisboa,
+põe no meio da rua D. Leonor Telles, e proclama-se _defensor do reino_.
+O povo toma todo, sem excepção, o seu partido, e por todas as
+provincias; mas uma grande parte dos fidalgos foram para o rei de
+Castella. Entre os que ficaram figurava um rapaz sympathico tambem,
+valente como as armas, leal como a sua espada, amigo intimo e dedicado
+do mestre de Aviz, Nuno Alvares Pereira.
+
+Sabedor do que se passava, desce a Portugal o rei de Castella com um
+exercito poderoso; mas pára deante de Lisboa já fortificada. Os
+lisboetas, commandados pelo mestre de Aviz, defenderam-se como homens, e
+o rei de Castella teve de se pôr na pireza; entretanto Nuno Alvares
+Pereira, que estava no Alemtejo, ganhava a batalha dos Atoleiros, e
+começava a estabelecer um systema de guerra que havia de dar muito de
+si. Como os concelhos estavam todos com o mestre de Aviz, a força do
+exercito era principalmente infanteria. Pois Nuno Alvares Pereira
+aproveitou isso para ensinar os nossos a combaterem a pé. Formava uma
+especie de quadrado, ou como é que se chama, com os seus soldados,
+quadrado onde a cavallaria fidalga vinha sempre despedaçar-se.
+
+--Ah! se elles calavam bayoneta, observou o Francisco Artilheiro, não
+entrava lá para dentro nem um cavallaria só que fosse.
+
+--Não calavam bayoneta, respondeu o João da Agualva, porque era cousa
+que então não havia, mas fincavam as lanças no chão, e fossem lá entrar
+com elles.
+
+Acabado o cerco de Lisboa, reuniram-se os dois amigos, e foram
+conquistar todas as terras de Portugal em que os fidalgos tinham
+levantado a bandeira de Castella. Ao mesmo tempo reuniram-se côrtes em
+Coimbra, para se escolher um rei. Ahi teve D. João I outro amigo,
+advogado de mão cheia, fino como um coral, chamado João das Regras, que
+foi quem lhe fez ganhar a eleição. Assim, o mestre de Aviz tinha a
+felicidade de ter dois amigos particulares que o serviam
+excellentemente, e cada um segundo o seu officio. Para cousas de penna e
+parlenda João das Regras, para batalhas e mais bordoada correspondente
+Nuno Alvares Pereira.
+
+--Mas então as côrtes é que escolheram quem havia de ser rei? perguntou
+o Manuel da Idanha.
+
+--Tal e qual.
+
+--E eram côrtes como as de agora? acrescentou o Bartholomeu.
+
+--Não, senhor, havia os tres braços, como então se dizia, clero, nobreza
+e povo. Os bispos e os conventos mandavam os seus escolhidos, os
+fidalgos mandavam os seus e o povo tambem, quer dizer cada concelho
+mandava o seu procurador. Antes de D. Affonso III, íam só os padres e os
+fidalgos, depois é que o povo tambem começou a figurar n'essas festas;
+mas n'estas côrtes, que se reuniram em Coimbra, como muitos fidalgos
+estavam mettidos com o rei de Castella, póde-se dizer que foi o povo
+quem escolheu, e que o mestre de Aviz, isto é, D. João I, foi
+verdadeiramente o eleito do povo.
+
+--E ahi lhe valeu o João das Regras? acudiu o Manoel da Idanha.
+
+--Isso mesmo, porque lá para fallar não havia outro como elle. Mas d'ahi
+a pouco tornou-se necessario fallar outra lingua, a lingua das espadas,
+e n'essa, quem lia de cadeira era Nuno Alvares, que o novo rei fez logo
+condestavel. Os castelhanos, que tinham ido de cara á banda, voltaram á
+carga, e d'essa vez com um exercito immenso, porque o D. João I de lá
+tinha resolvido acabar de todo com o D. João I de cá. Antes de vir o rei
+com toda a sua fidalguia, já um corpo hespanhol tinha entrado pela Beira
+dentro, mas em Trancoso levou uma tareia de primeira ordem. Não se
+emendaram e disseram comsigo: Agora é que vão ser ellas. A fallar a
+verdade tinham rasão. D. João I de Portugal teria, quando muito, uns
+oito ou nove mil homens, D. João I de Castella não tinha menos de trinta
+mil, e alem d'isso trazia comsigo peças de artilheria que era a primeira
+vez que se viam em Portugal. Encontraram-se os dois exercitos em
+Aljubarrota, que fica entre Alcobaça e Leiria, a 14 de agosto de 1385,
+grande dia, rapazes! Eu não sei que diabo tinham os nossos, mas parece
+que os animava um esforço sobrenatural. E elles não eram nenhuns
+fracalhões, os castelhanos, era tudo gente valente e destemida, mas os
+nossos estavam todos resolvidos a morrer ali mesmo. Depois tinham cabos
+de guerra que sabiam da poda, emquanto os de lá eram valentes, e mais
+nada. De lá, eram tudo fidalgos muito bem montados, com as suas espadas
+a luzir ao sol; de cá, gente do povo, soldados de pé, mas que todos
+queriam ser portuguezes com o seu rei que elles tinham feito, e que
+tambem com elles queria vencer ou morrer. E por isso Nuno Alvares dizia:
+Rapaziada, pé terra! e zás! lanças no chão, e venha para cá a fidalguia
+castelhana, mais os traidores portuguezes que se uniram ao estrangeiro.
+E não é dizer que não houvesse fidalgos tambem de cá. Oh! se os havia, e
+dos bons e dos melhores, porque eram todos os que tinham preferido
+morrer com um rei portuguez a receber do estrangeiro honras e
+castellos, gente briosa e valente, e aventurosa, que combatia pelo seu
+rei, e pela sua dama, e pela sua honra e pela sua patria. Tambem, não
+lhes digo nada, nunca levaram os hespanhoes tão formidavel refrega. Por
+muito tempo lhes ficou lembrada, e o rei, que fugio a toda a brida para
+Santarem e de Santarem para a sua terra, não se podia consolar de
+similhante desastre. D. João I mandou fazer, no sitio da batalha, uma
+igreja e um convento maravilhoso, a igreja e o convento da Batalha, para
+agradecer a Deus a sua victoria,--e rasão tinha para isso, porque foi
+Deus decerto quem deu aos portuguezes o esforço e a galhardia que então
+mostraram, que, eu, meus amigos, não sou dos que acreditam que Deus se
+mette n'estes barulhos dos homens, mas quando um povo combate pela sua
+terra, que é como quem diz quando um filho combate pela sua mãe, então,
+meus amigos, ha uma cousa cá dentro em nós, que vem a ser a consciencia
+a bradar-nos que Deus, que é a justiça e a bondade, ha de querer a
+victoria do que é justo e do que é bom.
+
+--E a padeira de Aljubarrota, sr. João da Agualva? perguntou o Francisco
+Artilheiro.
+
+--Deixemo-nos lá de padeiras. Eu não sou muito amigo de mulheres que se
+mettem n'estas danças. A padeira era melhor que amassasse pão. Se é
+verdade o que se diz, quando os castelhanos já íam de rota batida, a
+padeira foi-lhes no encalço e deu cabo de sete com a pá do forno. Olhem
+que grande façanha: matar quem vae fugindo! Aquillo era mulher de faca e
+calhau, e eu torço sempre o nariz a essa gentinha. Vamos adiante. A
+batalha de Aljubarrota decidio a sorte de Portugal. Ainda durou a guerra
+muito tempo, ainda o condestavel deu nova tareia nos hespanhoes em
+Valverde, mas a verdade é que estava tudo acabado. D. João I governou
+então com socego, casou com uma senhora ingleza muito virtuosa e muito
+boa, D. Philippa de Lencastre, teve muitos filhos que educou muito bem,
+e que foram todos homens de saber e alguns d'elles grandes homens,
+chamou muitas vezes as côrtes para ouvir o que ellas tinham que lhe
+dizer ácerca dos negocios do Estado, e governou tão bem, que se lhe
+chama, com toda a justiça, o rei da _Boa Memoria_. Já em idade
+adiantada, trinta annos depois da batalha de Aljubarrota, sentiu D. João
+I um appetite de tentar alguma empreza grande. Quem o metteu n'isso
+foram os filhos, tudo rapazes decididos que andavam mortos por se metter
+n'alguma cousa que lhes désse gloria. O que haviam de fazer? Foram-se
+aos mouros. Passaram o estreito, e tomaram Ceuta que fica ali mesmo
+defronte de Gibraltar. Vêem vocês? Aquillo era uma raça que não podia
+estar quieta. Emquanto jogavam as cristas com os visinhos, ía tudo
+bem, mas depois? Os aragonezes viravam-se para Italia, os castelhanos lá
+tinham os mouros granadís, nós o que tinhamos? Os mouros de Marrocos e
+as ondas do Oceano. Pois foram as ondas e os mouros que pagaram as
+favas. D. João I tomou Ceuta, e D. Henrique, seu filho, deliberou tomar
+o desconhecido.
+
+--Ó sr. João, exclamou o Francisco Artilheiro, devo confessar que lá
+isso é que eu não percebo muito bem.
+
+--Pois eu te explico, rapaz. Julgava-se d'antes que do outro lado do mar
+não havia cousa nenhuma, ou antes que as ondas lá para longe eram um
+verdadeiro inferno ou um paraizo tambem, porque uns diziam que tudo para
+alem eram ilhas de santos e jardins do céu, e outros que eram ilhas do
+diabo e terras de maldição; que havia umas estatuas encantadas que não
+deixavam passar ninguem, e um mar de pez que engolia os navios. Ora
+vocês hão de saber que póde uma pessoa ser muito valente, e ter medo de
+almas do outro mundo, e de feitiços e do diabo. Ali está o Francisco
+Artilheiro, que, quando foi na expedição á Africa, se atirou ao Bonga
+como gato a bofes, que é capaz de varrer uma feira, e que, se lhe
+disserem que vá de noite ao palacio do marquez, lá ao corredor onde
+dizem que falla a voz do Roque...
+
+--Tarrenego! exclamou o Francisco Artilheiro, um homem é para um
+homem, mas lá uma alma do outro mundo!...
+
+--Ora ahi está! era o que acontecia aos soldados de D. João I. Com
+mouros e castelhanos tudo o que quizessem, mas com as aventesmas do
+mar... arreda! Pois imaginem vocês se D. Henrique não fez um milagre
+conseguindo que os marinheiros do Algarve, porque elle, desde que poz o
+fito em querer saber o que o mar escondia, foi-se estabelecer em Sagres,
+mesmo na ponta do cabo de S. Vicente, conseguindo que os marinheiros do
+Algarve se mettessem ás ondas, sem medo de phantasmas, nem de avejões. E
+foram aquelles valentes, que fizeram tão grande no mundo este paiz tão
+pequeno, e partiram por esses mares fóra, sem saber o que por lá havia,
+e sempre a tremer da perdição da vida e da perdição da alma, e foram, e
+encontraram a Madeira e encontraram os Açores, e Gil Eanes dobrou o cabo
+Bojador, que era onde diziam que estavam as taes estatuas encantadas, e,
+como não encontrou estatuas nenhumas, lá foi tudo atraz d'elle, e, de
+repente, Portugal poude desenrolar diante do mundo um outro mundo
+ignorado, a costa da Africa toda, com os seus grandes rios, os seus
+bosques verdes, o seu povo de pretos, como eu vi, n'um theatro de
+Lisboa, desenrolar-se diante da platéa pasmada um panno pintado com
+cidades e quintas e ilhas e rios, que era de uma pessoa ficar de boca
+aberta. Ah! meus amigos, podem agora não fazer caso de nós, e
+podemos nós tambem dizer mal de nós mesmos, mas um povo que assim se
+atreve a arcar com o que mette medo aos mais valentes, e abre aos outros
+as portas de um mundo maravilhoso, é um grande povo, digam lá o que
+disserem.
+
+--E D. João I é que fez tudo isso? perguntou o Manuel da Idanha.
+
+--Não foi elle, mas foi o filho, D. Henrique, que era um sabio, e que a
+seu pae deveu a educação que recebera; e o grande rei, que salvára
+Portugal do estrangeiro, teve a gloria, antes de morrer em 1433, de ver
+começada essa obra que havia de tornar para sempre grande no mundo o seu
+nome e o nome de Portugal.
+
+Succedeu-lhe seu filho, D. Duarte, a quem chamaram o _Eloquente_, pelo
+bem que fallava e que escrevia, porque tambem fazia livros como o rei D.
+Diniz, e livros muito bem feitos. Coitado! não merecia a sorte que teve.
+Os irmãos, D. Henrique e D. Fernando, quizeram continuar a obra do pae,
+e foram tomar Tanger. Não o conseguiram, perderam muita gente, e para se
+salvar o exercito das garras dos mouros, teve de ficar preso na Moirama
+o infante D. Fernando. Para o livrar era necessario entregar Ceuta, mas
+o infante D. Fernando, que bem mereceu o nome de _Santo_ que lhe
+pozeram, não quiz nunca ouvir fallar em similhante cousa, e preferiu
+morrer atormentado nas masmorras de Fez a consentir que dessem por elle
+aos mouros uma terra, que tanto sangue nos custára. Tudo isto foram
+desgostos grandes para o pobre D. Duarte, que morreu, depois de cinco
+annos de reinado, em 1438, da peste que então assolou o reino, porque
+não houve desgraça que n'esse tempo não acontecesse.
+
+Succedeu-lhe um filho pequeno que tinha, e que foi D. Affonso V, e, como
+D. Duarte era muito amigo da mulher, foi a ella que nomeou regente. Ora,
+na verdade, tendo o pequeno uns poucos de tios que seriam todos grandes
+reis, como D. Pedro, D. Henrique e mesmo D. João, dar a regencia a uma
+mulher, e de mais a mais hespanhola, era tolice graúda, por isso o povo
+não gostou, e as côrtes convidaram D. Pedro a tomar conta da regencia. A
+rainha, que era levada da bréca, e que nunca podéra ver os cunhados, deu
+pulo de corça com esta resolução, a que foi obrigada a ceder, e, com o
+partido que tinha, agitou o reino de tal maneira, que D. Pedro não teve
+remedio senão tomar providencias, e uma d'ellas foi tirar o filho á
+rainha, porque o pequeno estava sendo nas mãos d'ella um instrumento de
+revolta. A final, a rainha foi para Hespanha, mas eu estou convencido,
+rapazes, que o odio que D. Affonso V sempre teve ao tio veio d'ahi. Ora
+imaginem vocês! D. Affonso era uma creança n'esse tempo, agarrado á mãe
+como são todas as creanças; não percebia cousa nenhuma de politica
+nem de meia politica, viu-se arrancado dos braços da sua mamãsinha, que
+se agarrava a elle a chorar, e arrancado por quem? Por seu tio. Depois,
+quando fosse maior, podia reconhecer que o tio era o que se podia chamar
+um grande homem, que lhe tinha governado o reino como ninguem seria
+capaz de o governar, que era tão pouco amigo de vaidades, que nem
+quizera que lhe fizessem uma estatua, mas o rancor da creança nunca se
+foi embora. Pois o tio, apenas elle chegou á maioridade, logo lhe
+entregou o governo, sem a mais pequena demora, e foi viver para Coimbra
+com o maior socego. Apesar de tudo isso, e apesar de ser muito amigo da
+mulher que era filha de D. Pedro, o rei tal odio tinha ao tio e ao sogro
+que deu ouvidos a todas as intrigas dos inimigos d'elle, e
+principalmente ás do primeiro duque de Bragança, seu tio tambem, filho
+bastardo de D. João I; chegou o duque a levantar tropas para ir contra o
+pobre D. Pedro, que, espicaçado e ralado por todas as fórmas, teve de
+tratar da sua defeza. Emquanto o duque de Bragança levantava tropas por
+sua conta e risco, achava o rei isso muito bem feito; apenas o infante
+D. Pedro juntou alguns soldados para não atravessar esse reino ao
+desamparo, logo D. Affonso V entendeu que era caso de rebeldia e
+traição, e marchou contra elle. Na Alfarrobeira, ali ao pé de Alverca,
+se encontraram as tropas de um e as tropas do outro. Não houve
+batalha, mas travaram-se de rasões os soldados, e, quando mal se
+precatavam, achou-se tudo embrulhado na bulha, e lá morreu o pobre do
+infante D. Pedro, tão sabio, tão bom, tão justiceiro.
+
+Quem ouvir isto, ha de dizer que D. Affonso V era um malvado, pois não
+era; cabeça de vento sim, nunca houve outra igual! Sympathico e bondoso,
+um mãos-rotas, principalmente para os fidalgos que apanhavam d'elle
+quanto queriam, enthusiasmava-se todo por cousas que já não importavam a
+ninguem, e quiz até fazer uma cruzada contra os turcos. Os outros
+principes christãos não estiveram pelos autos, e vae elle então
+voltou-se contra os mouros da Africa, e é certo que juntou a Ceuta as
+praças de Tanger, Arzilla e Alcacer Ceguer. Por isso lhe chamaram o
+_Africano_. Emfim, bom seria que nunca tivesse pensado n'outra cousa,
+mas deu-lhe na veneta querer tambem ser rei de Hespanha, e, quando lá
+houve grande bulha para se saber quem havia de succeder ao rei que
+morrera, se havia de ser D. Isabel que era irmã, se D. Joanna que era
+filha, o nosso D. Affonso, apezar de já não ser novo, casou com esta,
+que vinha a ser tambem sua sobrinha, ao passo que D. Fernando de Aragão
+casava com a outra. D'ahi veio uma guerra levada dos demonios; mas, a
+final, D. Affonso deu a batalha de Toro, que ficou indecisa, mas foi o
+mesmo que se a perdesse, porque não poude continuar a guerra. De que
+se ha de lembrar então o nosso D. Affonso V? De ir em pessoa pedir
+soccorro ao rei Luiz XI de França, que era o mais manhoso de todos os
+principes, e que não fazia nada sem interesse. Luiz XI andou a cassoar
+com elle, até que D. Affonso V mandou dizer ao filho, que ficára a
+governar o reino, que subisse ao throno, porque elle abdicava, e ía para
+a Terra Santa; mas depois muda de tenções, e, quando já ninguem o
+esperava, apparece em Portugal. O filho é que não quiz saber de mais
+nada; entregou-lhe logo a corôa, que D. Affonso acceitou, morrendo
+quatro annos depois, em 1431.
+
+--Ó sr. João, interrompeu o Bartholomeu, e essa historia de descobrir
+terras novas tinha parado?
+
+--Qual tinha parado, homem! Emquanto D. Henrique viveu, e só expirou em
+1460, quando já D. Affonso V era homem, não pensou n'outra cousa; todos
+os annos se ía descobrindo mais alguma porção da Africa, e já não havia
+quem acreditasse em carapetões de estatuas. Os portuguezes, o que faziam
+era sempre seguir para baixo, até ver se topavam com a India, ou então
+se davam com um rei que diziam que era christão, e a quem chamavam o
+Prestes João das Indias.
+
+--E quem era esse rei? perguntou o Manuel.
+
+--Eu depois lhes digo, rapazes, agora não me fallem á mão. O que é certo
+é que estava já descoberta uma boa porção da Africa, e já por lá se
+fazia muito bom negocio, tanto que D. Affonso V, que andava embrulhado
+com outras cousas, e que não podia cuidar dos descobrimentos como o tio,
+arrendou o commercio da costa da Mina a um tal Fernão Gomes, com a
+condição d'elle continuar a descobrir terras. Felizmente, quem ía subir
+ao throno era um rei de outra laia, que tinha lume no olho, e que havia
+de levar as cousas pelo rumo que devia de ser, para gloria do nosso paiz.
+
+Foi D. João II esse rei, e com rasão lhe chamaram o principe perfeito,
+porque não houve nenhum que entendesse tão bem do seu officio; mas,
+antes de fallar n'elle, meus amigos, deixem-me vocês explicar-lhes o que
+é que se tinha passado no tempo d'esses tres primeiros reis da dynastia
+que se chamou de Aviz.
+
+Viram vocês como os reis se encostaram ao povo para dar cabo da nobreza
+e do clero, e como lhe deram força para que os fidalgos e padres se não
+fizessem finos. Por isso tambem se póde dizer que foi o povo quem fez
+rei D. João I, e este nunca se esqueceu d'isso. Comtudo, padres e
+fidalgos, continuavam a ser muito poderosos, e, se D. Duarte, com a lei
+chamada mental, e o infante D. Pedro lhes tinham dado para baixo, D.
+Affonso V quasi que desfizera tudo, porque com elle não havia parente
+pobre, dava aos fidalgos o que elles queriam, e com rasão dizia o
+filho que seu pae o deixára rei das estradas de Portugal, o que, valha a
+verdade, não devia ser um grande reino. Ora agora acontecia tambem o
+seguinte: é que o povo, nas côrtes, estava sendo mais um servo do rei do
+que outra cousa. Já não podia dizer aos reis: «Toma lá, dá cá.» Já não
+era cada concelho que mandava um procurador, juntavam-se uns poucos de
+procuradores para mandar um deputado a que chamavam definidor, e o rei
+sempre os podia ter mais na sua mão do que á turbamulta dos antigos
+procuradores. Alem d'isso, os doutores, o que aprendiam nas escolas eram
+as leis de Roma, o direito romano, e ahi o que se dizia era que o rei
+podia fazer o que quizesse. O que resultava? Resultava que o clero e a
+nobreza haviam de levar para baixo, mas que o povo depois... esperasse
+pela pancada. É o que vocês saberão para o domingo que vem, porque a tia
+Margarida está a caír com somno, e eu não quero que digam de mim, como
+de alguns prégadores, que sou bom para quem anda com falta de dormir.
+
+
+
+
+SEXTO SERÃO
+
+D. João II.--As côrtes de Évora.--Morte do duque de Bragança.--Morte do
+duque de Vizeu.--Continuação dos descobrimentos.--O cabo da Boa
+Esperança.--Christovão Colombo.--Entrada dos judeus.--Morte do principe
+D. Affonso.--D. Manuel.--Descobrimento da India e do Brazil.--Os
+conquistadores da India.--Fernão de Magalhães.--D. João III.--A
+inquisição e os jesuitas.--Decadencia do nosso dominio na India.--D.
+Sebastião.--A batalha de Alcacer-Kibir.--D. Henrique, o cardeal-rei.--A
+successão do throno.--D. Antonio, prior do Crato.--Batalha de
+Alcantara.--Perda da independencia:--Causas da decadencia de Portugal.
+
+
+--Estou morto por saber, porque é que chamaram a D. João II o principe
+perfeito, principiou o Manuel da Idanha no domingo immediato, quando
+estiveram todos sentados á roda da lareira, porque, emfim, vocemecê já
+nos fallou n'uns poucos de reis de quem se não póde dizer mal: D. Diniz,
+por exemplo, D. João I, etc.
+
+--Eu te digo, rapaz, é porque não houve nenhum que percebesse tão bem o
+seu tempo, nem soubesse tão bem como é que se governa. Era homem de
+cabellinho na venta, mas só dava cabo de quem lhe fazia transtornar os
+seus planos, era valente como os que o são, mas, depois de ser rei,
+nunca mais foi á guerra. Calculava tudo, combinava tudo, e, como
+quem joga bem a bisca, sabia de cór os trunfos, e o que queria era
+marcar bons pontos, désse lá por onde désse. Subiu ao throno, na firme
+resolução de acabar com os privilegios da nobreza e do clero. Para isso,
+como de costume, serviu-se do povo. Chamou côrtes a Evora, ahi
+entendeu-se com os procuradores do povo para elles se queixarem dos
+fidalgos. Então o rei põe-se no seu logar, e toca a deitar abaixo
+privilegios. Se vocês querem ver o que é berraria! O primeiro que se
+levantou foi o duque de Bragança, e esse então metteu-se com os
+castelhanos. D. João II não esteve com ceremonias, mandou-lhe cortar a
+cabeça. O duque de Vizeu, seu proprio primo e cunhado, fez-se tambem
+chefe de conspiração. O mesmo rei deu cabo d'elle com uma boa punhalada,
+e depois foi tudo raso com o diabo do homem. Prendia uns, desterrava
+outros, mandava matar este, confiscava os bens áquelle... um inferno.
+
+--Então por isso é que era principe perfeito? perguntou a tia Margarida
+indignada.
+
+--Ó mulhersinha, espere lá. Diz o proverbio: cada terra com seu uso,
+cada roca com seu fuso. Pois eu digo tambem: cada tempo com os seus
+costumes. O tempo d'elle não era como o nosso. Hoje matar um homem é,
+com rasão, uma cousa por ahi alem. N'aquelle tempo parecia a todos
+perfeitamente natural que se castigassem com a morte, mesmo á
+punhalada, todas as conspirações. Ora D. João II só escapou por milagre
+a muitas que houve contra elle.
+
+Mas D. João II não era homem que se assustasse. Estreiara-se em Arzilla,
+ao lado de seu pae, e logo mostrára um grande esforço; na refrega de
+Toro, em Hespanha, foi elle quem ganhou a batalha pelo seu lado,
+emquanto o pae a perdia pelo outro. Nas conspirações, que se faziam
+contra elle, mostrou sempre uma coragem por ahi alem, mas tambem não
+perdoava nenhuma. E tanto fez, tanto fez, que a final todas as cabeças
+se abaixaram, e quem ficou governando a valer e devéras foi elle.
+
+Eu não lhes digo, rapazes, que approvo todas aquellas crueldades, e que
+acho bonito que D. João II matasse sem dó nem piedade até os parentes.
+Conheço que era preciso ter cabellos no coração para fazer o que elle
+fez, mas que querem vocês? É sina que nunca se fizeram as grandes
+mudanças politicas sem correr muito sangue. Dizia aquelle engenheiro
+francez, que aqui esteve em Bellas na obra da agua, quando ás vezes se
+punha a conversar commigo: «João, não se faz omeleta sem se quebrar
+ovos.» E dizia bem. Aquillo entre D. João II e a nobreza era guerra de
+morte. Atiravam á cabeça; eu bem sei que era mais bonito perdoar. Mas,
+meus amigos, perdoar aos seus inimigos só o fez Nosso Senhor Jesus
+Christo, e isso bastava para que todos conhecessem que elle era Deus
+e não homem.
+
+Em todo o caso, rapazes, sempre lhes quero confessar que, para gostar
+deveras de D. João II, preciso de desviar os olhos d'aquella sangueira
+toda, e ver o que elle fez por outro lado. Ah! que rei aquelle, rapazes!
+Nos descobrimentos foi um segundo infante D. Henrique, porque não foi só
+dizer aos pilotos: «Vão vocês andando por ahi abaixo, e quando toparem a
+India mandem cá um recado.» Não, senhores! Agarrou em dois judeus que
+eram homens de sabença, e mandou-os por terra ao Egypto, para que fossem
+do Egypto ver se topavam a India e se sabiam como é que se podia lá ir
+ter por mar. Foram estes Pedro da Covilhã e Affonso de Paiva. Ao mesmo
+tempo não deixára de mandar navios pela Africa abaixo. Um sujeito,
+chamado Bartholomeu Dias, tanto andou, tanto andou sempre com a terra á
+esquerda, até que um bello dia, por mais que tocasse á esquerda, não via
+senão agua: «Mau, disse elle comsigo, o diabo da costa virou de rumo.»
+Vira elle tambem e dá com a terra que ía para cima em vez de ir para
+baixo como até ahi. «Eu cheguei ao fim da Africa, disse comsigo o
+Bartholomeu Dias, eu passei algum cabo sem dar por isso.» E, já todo
+contente, queria ir seguindo para diante a ver onde iria dar comsigo.
+Mas a marinhagem estava cançada e quiz por força voltar para traz.
+Não houve remedio, e á volta effectivamente deram com o tal cabo que
+vinha a ser a ponta da Africa, e apanharam tantos temporaes que
+Bartholomeu Dias chamou a esse cabo, cabo Tormentorio; mas, quando
+chegou a Lisboa e contou a D. João II o que succedera, este, que logo
+percebeu que estava dado o grande passo na descoberta da India, não quiz
+para tamanha descoberta um nome de mau agouro, e mudou ao cabo
+Tormentorio o nome em cabo da Boa Esperança, como quem diz: Agora sim,
+agora é que me parece que vamos por estrada direita.
+
+Ora hão de vocês saber, rapazes, que por esta occasião vivia em Portugal
+um sujeito genovez chamado Christovão Colombo, que era homem entendido
+em cousas de mar, e que se occupava tambem muito de descobrimentos de
+terras e tal etc. Foi até por isso que elle veio para Portugal, porque
+isto aqui era a forja, onde, para assim dizer, se fabricavam terras
+novas, e todos os que se enthusiasmavam com essas cousas vinham para cá
+assoprar aos folles. Christovão Colombo estivera na Madeira, ouvira
+fallar em signaes de terra para os lados do pôr do sol, e começára a
+embirrar que, indo atraz do sol, havia de esbarrar com a India. Fallou
+n'isso a D. João II, este consultou os sabios, e os sabios desataram a
+rir. Colombo então foi-se embora e começou a offerecer os seus serviços
+a quem lhe désse uma casca de noz; acceitou-os a Hespanha, depois de
+massar muito o pobre do homem. Christovão Colombo partiu seguindo sempre
+para o occidente, e a final deu com uma terra povoada de selvagens, que
+vinha a ser nem mais nem menos do que a America, emfim um mundo inteiro
+muito maior que a Europa toda. Ora, tudo isso podia ter vindo para nós,
+e não nos fazia mal nenhum, se D. João II não cáe na asneira de não
+acreditar no Colombo, que todos sabiam que era um homem esperto, e de
+lhe não querer dar dois ou tres navios para tentar a sua descoberta,
+elle que tinha navios a rodo por esses portos todos!
+
+--Sim! lá isso! acudiu o Manuel da Idanha coçando na cabeça. Vocemecê
+diz que o homem era tão espertalhão, mas essa parece-me de cabo de
+esquadra!
+
+--Achas, meu palerma? Diz um proverbio: Quem adivinha vae para a
+casinha. E eu já te mostro que outro qualquer, no caso de D. João II,
+fazia o mesmo. Tu imaginas que Christovão Colombo chegou ao pé de D.
+João II e lhe disse: Saiba Vossa Alteza (que então ainda se não dava
+magestade aos reis) saiba Vossa Alteza que ali defronte dos Açores está
+um paiz muito rico, onde ha muito ouro, e muita prata e muitos
+diamantes, e, se Vossa Alteza quizer, eu chego ali n'um instante e cá
+lh'o trago? Estás tu muito enganado. O proprio Colombo nem sabia que
+havia ali similhante paiz. Toda a sua mania era que, sendo a terra
+redonda, e n'isso tinha elle rasão, indo uma pessoa para o occidente,
+havia de dar volta e chegar ao oriente. Mas o que elle não sabia é que a
+terra era tão grande como lhe saíu; e, se não lhe apparece a America, o
+homem via-se grego, e ainda tinha de comer muito pão antes de arribar,
+onde elle queria ir, tanto que provavelmente não levava no porão farinha
+que lhe chegasse. Ora agora, pensem vocês tambem, rapazes, no seguinte:
+Havia um bom par de annos que Portugal andava a teimar em seguir pela
+Africa abaixo á procura da India. Teimou, teimou, até que a final chegou
+ao fim da Africa, e percebeu que a terra seguia para cima, e ía com toda
+a certeza parar á India. E é exactamente quando se consegue o que se
+procurava havia tanto tempo, quando se descobre o cabo da Boa Esperança,
+quando se tem a certeza de que se encontrou o caminho da India, que vem
+um sujeito ter com o rei de Portugal, que está todo alegre com a
+descoberta, e dizer-lhe: Faça favor de apagar tudo isso, e de começar
+outra vez a procurar a India por outro lado. O rei, é claro, mandou-o
+pentear macacos. Ora agora confesso tambem que se não põe assim no meio
+da rua um homem como Christovão Colombo. Procurar a India pelo occidente
+não impedia que se continuasse a procurar pelo caminho que até ahi se
+seguira, e nós já tinhamos topado tanta terra que não esperavamos,
+que não era cousa do outro mundo que fossem mais duas caravellas a Deus
+e á ventura ver o que o mar dava de si.
+
+Emfim não se fez isso; os hespanhoes ficaram com a America, e
+principiaram ao desafio comnosco n'isso de descobrimentos, tanto que foi
+necessario que o papa dividisse entre elles os novos mundos ao meio,
+dizendo: Para aqui descobrem os hespanhoes, e para aqui descobrem os
+portuguezes, o que fazia com que um rei de França dissesse depois: Ora
+sempre eu queria ver o artigo do testamento do pai Adão que deixou a
+terra aos hespanhoes e aos portuguezes!
+
+Todos se riram, e o João da Agualva continuou:
+
+--Muito mais provas de juizo deu el-rei D. João II, e felizes seriamos
+nós se os reis que se seguiram fossem como elle. Na Africa, tratou de
+chamar a si os pretos, de os mandar baptisar, mas ás boas, e de fazer
+por ali fortalezas para se assenhorear do commercio. Na Europa então
+houve uma cousa que mostra que elle sabia ser rei. Os soberanos de
+Hespanha, todos devotos, mandaram pôr fóra do seu paiz os judeus, que
+eram, como foram sempre, uma raça trabalhadeira e esperta, que se
+enriquecia e ía enriquecendo a terra onde vivia. Mas a rainha de
+Hespanha, lá por beaterios tolos, não os quiz consentir no seu reino, e
+intimou-lhes mandado de despejo. Sempre quero que vocês me digam
+porque? Porque tinham crucificado Jesus Christo? Mas isso foram uns
+malandrins de Jerusalem, e nem os filhos tinham culpa do que os paes
+fizeram, e até os paes de muitos d'elles talvez nem em Jerusalem
+estivessem n'esse tempo. Porque não acreditavam na religião christã? O
+peor era para elles. Pois se não se póde salvar quem não for christão,
+no outro mundo torceriam a orelha, e não era necessario já n'este mundo
+ir-lhes torcendo pescoço. Porque não comiam toucinho? Tanto melhor para
+os bons christãos, que sempre ficava mais barata a carne de porco. Mas
+fossem lá dizer estas cousas n'aquelle tempo aos reis catholicos! Corria
+uma pessoa risco de ir parar a uma fogueira. D. João II riu-se da
+devoção dos visinhos, recebeu os judeus na sua terra, e tirou proveito
+do caso, obrigando-os, em troca do asylo que lhes dava, a pagar-lhe um
+bom tributo. Elles estavam com a corda na garganta, pagaram com lingua
+de palmo, ainda que isso lhes havia de custar, porque sempre foram
+sovinas. Mas, como diz o outro, para judeu, judeu e meio.
+
+--Olhe lá, ó sr. João de Agualva, e então quem diz que a inquisição cá
+em Portugal queimava os judeus? perguntou o Manuel da Idanha.
+
+--Lá chegaremos, sr. Manuel da Idanha, lá chegaremos. Não ha só muitas
+Marias na terra, ha tambem muitos Joões, e nós então tivemos seis,
+cada um do seu feitio.
+
+Tudo se paga, meus amigos, e um homem póde ser principe perfeito; quando
+ultraja a lei de Deus, derramando o sangue de seus irmãos, ha de o pagar
+com lagrimas que tambem são sangue ás vezes. Tinha D. João II um filho
+chamado Affonso, a quem queria como ás meninas dos seus olhos. Casára
+com a filha dos reis de Hespanha, e as festas com que se celebrou o
+casamento tinham sido das mais pomposas. Morreu, e morreu de um
+desastre. Quem pôde imaginar a dôr d'aquelle pae! Chorou esse homem de
+ferro, que tantas lagrimas tambem fizera derramar, chorou lagrimas de
+sangue, do sangue do seu coração, e, lá nas horas mortas da noite,
+quando estivesse sósinho a pensar no filho, havia de ver muitas vezes os
+espectros d'aquelles que matára sem ter piedade da orphandade de seus
+filhos, como Deus não tivera tambem compaixão da orphandade da sua alma.
+Morreu quatro annos depois, em 1495, sem poder deixar a corôa a um filho
+seu, porque debalde quizera legitimar um bastardo que tinha, e assim,
+altos juizos de Deus! quem lhe havia de succeder, e não é só isso, quem
+havia de colher para si a gloria de realisar a conquista da India, que
+D. João II tão cuidadosamente preparava? Um irmão d'aquelle duque de
+Vizeu, que elle assassinára, D. Manuel, o _Afortunado_.
+
+Afortunado ou Venturoso lhe chamou a historia, e com rasão, porque não
+teve senão bamburrice, o que não quer dizer que fosse um palerma, e que
+não tivesse mesmo bastante tino, mas fazia tanta differença de D. João
+II como uma larangeira de um carvalho. Encontrou a papinha feita.
+Estavam preparados os navios para a descoberta da India, poz á frente
+d'elles Vasco da Gama, e em 1497 chegava Vasco da Gama á India, que era
+o paiz mais rico d'esse tempo. Mandou atraz d'elle Pedro Alvares Cabral,
+este chega-se mais para o occidente do que devia ser, e esbarra com o
+Brazil em 1500; bom! Põe ambos de parte, que lá ingrato como aquelle não
+havia nenhum, e manda para a India uma esquadra, onde ía Duarte Pacheco,
+homem que parece mesmo um d'aquelles sujeitos da antiguidade, que eram
+meios homens, meios deuses, e de quem se contam muitas patranhas, que
+foram excedidas pelas verdades d'este nosso patricio. Querem vocês
+saber? Na India havia muitos reis, como ainda hoje ha, apesar que estão
+agora todos sujeitos aos inglezes. Vasco da Gama tinha chegado a uma
+terra chamada Calicut, onde residiam muitos mouros, que eram quem fazia
+n'esse tempo o negocio todo da India. Viram a bolsa em perigo, e não
+descançaram emquanto não pozeram ao rei de Calicut de mal com os
+portuguezes. Palavra puxa palavra, elle matou-nos um homem, apanhou uma
+lição mestra, e de vingança em vingança ficámos inimigos para
+sempre. Mas havia outro rei, o rei de Cochim, que era e foi sempre nosso
+amigo. D'ahi, barulho entre os dois. Como o rei de Calicut era muito
+mais poderoso, esperou que não estivessem lá navios nossos, e, sabendo
+que tinha ficado apenas Duarte Pacheco e mais uns cincoenta portuguezes,
+disse comsigo: «Agora é que tu m'as pagas.» E arranjou um exercito
+forte, e marchou contra o pobre rei, nosso amigo. Os soldados de Cochim
+tinham medo que se pellavam, e fugiam que era um louvar a Deus; mas
+Duarte Pacheco, mais os seus cincoenta homens, com a sua habilidade e a
+sua valentia, conseguiu tomar o passo ao de Calicut, e dar-lhe tareias
+monumentaes. Ó rapazes, pois uma pessoa não se hade ás vezes ufanar de
+ser portuguez? Quando é que se viu uma cousa assim? Meia duzia de gatos
+bastaram para dar cabo de exercitos immensos! Eu bem sei que era a
+disciplina, que eram as armas, que era tambem a fraqueza d'aquelles
+bananas, que o sol da India faz uns mollengas, mas era necessario que
+fossem de aço e de ferro, em vez de ser de carne e osso, esses valentes
+que assim viam, sem descorar, marchar contra elles um exercito
+formidavel! Era necessario que se tivessem disposto a morrer para não
+deixarem que fosse pisada aos pés a bandeira de Portugal! E, a final de
+contas, por muito molles que os outros fossem, sempre eram mil
+contra um, e, com certeza, nenhum dos nossos pensava que saíria com
+vida de similhante combate. Depois acções d'essas eram mais faceis, não
+só porque os nossos já tinham tomado confiança em si, e sentiam-se
+capazes de levar aos pontapés quantos indios houvesse na India, mas
+tambem porque elles tinham-nos tomado medo; mas isso tudo a quem o
+devemos senão a Duarte Pacheco? Pois, meus amigos, imaginam vocês que
+Duarte Pacheco foi feito governador da India, ou teve algum titulo, ou
+alguma recompensa grande? Qual carapuça! D. Manuel nem mais pensou
+n'elle, e era tão feliz que logo encontrou para ser primeiro vice-rei da
+India um homem como D. Francisco de Almeida, que em toda a parte do
+mundo seria digno de exercer os primeiros logares.
+
+Com effeito, D. Manuel, que primeiro quizera apenas que os seus seus
+navios viessem carregados de mercadorias da India, que depois cá se
+vendiam na Europa, entendeu que devia tomar raizes, e encarregou D.
+Francisco de Almeida de governar os portuguezes que por lá estivessem,
+fundando ao mesmo tempo fortalezas. D. Francisco de Almeida entendia,
+porém, e não deixava de ter rasão, que Portugal era um paiz muito
+pequeno para estar assim a mandar soldados para a India, e o que elle
+queria era ser senhor do mar para que ninguem mais ali podesse fazer
+negocio. Emquanto só teve os indios pela prôa íam as cousas bem,
+mas os turcos, que viam diminuir os seus rendimentos com o novo caminho
+das Indias, começaram a metter-se na dança, e os turcos não eram tropa
+fandanga, eram gente de quem tremia a Europa. Tambem, quando se
+encontraram primeiro com os portuguezes, levaram a melhor e até mataram
+um filho de D. Francisco de Almeida, que o vice-rei adorava. Foi a sua
+perdição, porque D. Francisco de Almeida não descançou emquanto não
+vingou a morte do seu estremecido Lourenço. Os turcos levaram uma sova
+de primeira qualidade, e na India ficou-se sabendo de uma vez para
+sempre que casta de homens eram os portuguezes.
+
+Pois, rapazes, parecia que d'esta vez D. Manuel se daria por muito feliz
+em ter no Oriente um homem como D. Francisco de Almeida, que tinha posto
+os indios a pão e laranja, e dado uma esfrega tal nos turcos que se não
+atreveram por muito tempo a tornar á India. Enganam-se. Apenas acabou o
+seu tempo, foi chamado a Portugal, e naturalmente el-rei nem pensaria
+mais n'elle, ainda que não tivesse morrido no caminho. Mas continuava a
+ser tão feliz que encontrou, para substituir D. Francisco de Almeida, um
+homem que ainda valia mais do que elle, porque era o grande Affonso de
+Albuquerque. Ah! meus amigos, apparecem de vez em quando no mundo uns
+homens, que são capazes de revolver a terra, como os Napoleões e
+outros assim, Affonso de Albuquerque foi um d'esses.
+
+A respeito das cousas da India não pensava como D. Francisco de Almeida,
+mas não era porque visse as cousas de outro modo, era porque achára
+maneira de as concertar. Sim, elle bem sabia que Portugal não podia
+estar a encher a India de soldados, mas o que elle queria era que os
+Indios se misturassem com os portuguezes, e, para o conseguir, ao passo
+que era cruel com os mouros, com os indios era tão bom e tão justo que,
+depois da sua morte, íam elles resar ao seu tumulo, como quem vae resar
+ao tumulo de um santo. Escolheu elle tres pontos, em que estabeleceu,
+para assim dizer, os seus quarteis generaes, e todos muito bem
+escolhidos: Ormuz, ao pé da Persia; Goa, no meio da India; Malaca, para
+os lados da China e das ilhas a que se chamava das Especiarias ou das
+Molucas. Primeiro tomou Goa, depois Malaca que tinha dente de coelho,
+porque os malaios são levadinhos da bréca, depois Ormuz, e, quando
+acabou de fazer tudo isto, estava já demittido, e sabendo que ía ser
+nomeado para o seu logar o seu peor inimigo! Morreu com esse desgosto.
+
+Tambem d'essa vez tinha-se acabado o fornecimento de grandes homens, e
+os dois ultimos governadores da India, no tempo de D. Manuel, não foram
+lá grande cousa, mas tambem não estragaram nada. Aquillo então ía
+n'um sino. Os portuguezes espalhavam-se por toda a parte, de um lado
+chegavam á China, do outro á Persia, do outro ás Molucas, do outro a
+Cambaya. Tinham fortalezas por toda a parte; elles recebiam a boa
+canella de Ceylão, o bom cravo das Molucas, a boa pimenta da India, os
+bons cavallos da Persia, as sedas da China, o incenso da Arabia, os
+diamantes de Golconda, e traziam estas riquezas todas para a Europa e
+vinham aqui a Lisboa, que estava sempre cheia de navios, os hollandezes
+e os inglezes comprar tudo isto para o vender por esse mundo. Do Brazil
+não se fazia caso porque nem valia a pena; na Africa sempre se íam
+tomando praças, que era para n'aquellas constantes guerras com os mouros
+se exercitar a fidalguia, que depois fazia o diabo a quatro na India.
+Emfim, quando D. Manuel mandou ao papa uma embaixada com presentes
+vindos de todas as suas conquistas, Roma ficou embasbacada, e não se
+fallava em todo esse mundo senão na grandeza de Portugal. Bons tempos,
+meus amigos, mas que duraram pouco!
+
+No reino, D. Manuel logo mostrou que, se não era tolo, tambem não tinha
+o entendimento de D. João II. Poz fóra os judeus; é verdade que depois,
+quando em Lisboa o povo fez uma matança nos que tinham ficado a titulo
+de se terem convertido, mostrou-se muito zangado e castigou a cidade.
+Grande não foi elle, mas viu-se cercado de gente que o fez grande,
+e teve a esperteza de os saber conhecer. Depois, punha-os de parte com a
+maior facilidade, mas atinava com elles; só não percebeu o que podia
+esperar de Fernão de Magalhães, que, zangando-se com uma picardia que
+lhe fez, passou para Hespanha, e assim nos deixou ficar sem a gloria de
+termos sido nós os primeiros que deram volta ao mundo, como fizeram os
+hespanhoes commandados pelo tal Fernão de Magalhães, porque isso,
+n'aquelle tempo, não havia por esses mares uma onda que não marulhasse
+em portuguez...
+
+--Em portuguez porque? perguntou o Francisco Artilheiro. Eu nunca
+percebi o que ellas diziam.
+
+--Então é que têem a cabeça tão dura como tu, porque foi sempre o
+portuguez a primeira lingua que ouviram, e até lá para a terra dos
+bacalhaus, para o norte, onde faz um frio de rachar, lá mesmo foi Gaspar
+Cortereal que primeiro descobriu a Terra Nova. Emfim, meus amigos,
+depois de ter casado tres vezes, e sempre com princezas hespanholas,
+morreu em 1521 el-rei D. Manuel, e, verdade verdade, com elle se póde
+dizer que morreu a grandeza de Portugal.
+
+Succedeu-lhe o filho D. João III, que era o beato mais beato que tem
+vindo a este mundo. D. Manuel já lá tinha as suas manias, mas, como eu
+lhes contei, quando os de Lisboa desataram a matar os judeus, ou
+antes os christaos novos, deu-lhes com o _basta_. D. João III, esse, não
+descançou emquanto não metteu em Portugal a inquisição. O papa não
+queria, fazia-se rogado, e D. João III é que insistiu com elle para
+apanhar essa prenda. Chegou a gastar rios de dinheiro para o conseguir!!
+Ora, realmente, metter cá um tribunal que, apenas um sujeito se esquecia
+de ir á missa, ferrava com elle na cadeia, quando não era na fogueira,
+só lembrava a D. João III. Até os estrangeiros fugiam, e então o resto
+dos judeus, que ainda por cá havia, e que por amor á nossa terra se
+tinham feito christãos, com medo da inquisição, se foram safando logo
+que poderam. E, não contente com isso, introduziu tambem a companhia de
+Jesus, que era uma ordem nova de frades mais disciplinados que um
+regimento, e que tinham jurado ser elles que haviam de governar o mundo.
+Ora, lá para prégar aos herejes, e aos gentios da India, e aos selvagens
+do Brazil, eram muito bons, porque não recuavam nem diante da morte, e
+houve jesuitas, como S. Francisco Xavier, que não ficaram a dever nada
+aos doze apostolos; mas em Portugal mettiam-se em toda a parte: elles
+ensinavam, elles confessavam, e estou em dizer que não podia ser bom. Eu
+não sou contra os padres, nem contra a religião, pelo contrario, mas
+tambem não se hão de metter em tudo. Ora vejam vocês como havia de
+viver um dos nossos avós d'esses tempos! Os jesuitas a apertarem-lhe o
+freio, e ao mais pequeno desmando, zás, fogueira da inquisição com elle.
+Até se fizeram macambuzios os pobres homens, que eram até ahi gente
+alegre. Não se podia escrever cousa nenhuma, que não viessem logo os
+jesuitas: Corte-se isto porque parece contra a religião, não se
+represente aquillo porque se faz troça a um frade, e porque torna e
+porque deixa. O que é certo, meu amigos, é que, emquanto lá por fóra se
+andava para diante, e se faziam invenções, e se estudava, nós não
+passavamos da cepa torta, e o mal que isso fez vão vocês vêl-o.
+
+Na India parecia que ía tudo muito bem, mas via-se que não podia durar
+muito. Valentes eram os nossos, mas, em vez de fazerem o que Albuquerque
+queria, em vez de accommodarem os Indios, e de se porem ás boas com
+elles, não senhor, faziam crueldades que era uma cousa por demais, e o
+que queriam era apanhar dinheiro. Passavam o tempo, ora em guerra com o
+rei de Calicut, ora com o rei de Cambaya, ora com o rei de Achem, ora
+com o rei de Bintam, ora com o rei de Kandy, ora com todos ao mesmo
+tempo. Isto não era vida. Obravam prodigios de valor, isso é verdade,
+como por exemplo nos dois cercos de Diu, em que Antonio da Silveira e D.
+João de Mascarenhas se defenderam de um modo maravilhoso, mas, á força
+de dar cutiladas, o braço ía cançando, e o paiz estava esfalfado.
+Não havia nem um instante de socego. Se apparecia um governador como D.
+João de Castro, o da Penha Verde de Cintra, que era honradissimo e
+justiceiro, os outros não pensavam senão em roubar. Já se pegavam uns
+com os outros, como fez Lopo Vaz de Sampaio com Pedro Mascarenhas, e
+quando D. João III, o Piedoso, como lhe chamaram os frades, morreu em
+1557, todos previam que isto ía para baixo. O filho mais velho de D.
+João III morrera ainda em vida do pae, e quem lhe succedeu foi um neto,
+creança de cinco annos, que tinha o nome de D. Sebastião. Ficou regente
+a avó, senhora de bastante juizo, que governou bem, mas que em 1562 teve
+de ceder a regencia ao cunhado, o cardeal D. Henrique, todo dominado
+pelos jesuitas, e que cercou de padres o principe. O que resultou d'ahi?
+Resultou que D. Sebastião, que gostava de guerras e batalhas, fez-se ao
+mesmo tempo beato. Parecia um d'aquelles antigos frades militares, que
+tinham concorrido tanto para expulsar os mouros de Portugal. Não quiz
+casar, e até fugia das mulheres. Não pensava senão em dar cabo dos
+mouros. Ora, se nós que já tinhamos tanto trabalho para nos sustentarmos
+na India, que fôramos obrigados a largar umas poucas de praças na
+Africa, que tinhamos precisado de um grande esforço para salvar Mazagão,
+cercada pelos mouros, nos mettiamos em grandes guerras com elles,
+aonde iria isto parar! Pois foi o que succedeu. Na India o trabalho era
+cada vez maior; um governador, chamado D. Constantino de Bragança,
+parente da casa real, fizera por lá grandes cousas, mas pouco tempo
+depois juntavam-se quasi todos os reis da India e vinham sobre nós. O
+que nos valeu foi termos um novo Affonso de Albuquerque, um general de
+mão cheia, D. Luiz de Athayde, que a tudo acudiu e tudo salvou; mas
+vocês bem vêem que isto não podia continuar assim. Quando as cousas
+estavam n'este bonito estado, quando nós tinhamos ás costas a India, o
+Brazil para que D. João III principiára a olhar, onde precisávamos de
+nos defender contra os aventureiros francezes que achavam a terra a seu
+gosto, de que se ha de lembrar el-rei D. Sebastião? De ir conquistar
+Marrocos! Eu já tenho ouvido dizer que mais valia termos conquistado
+Marrocos, que nos ficava á porta, do que irmos á India que ficava tão
+longe. Pois sim, mas o que era necessario era escolher. Ou uma cousa ou
+outra. Mas D. Sebastião, com aquella embrulhada, que elle tinha na
+cabeça, de idéas religiosas e de idéas guerreiras, não attendia a cousa
+nenhuma, nem fazia calculos nenhuns. O que elle queria era dar lambada
+nos mouros, e, apesar dos conselhos de toda a gente, levanta um pequeno
+exercito, e para o levantar custou-lhe, porque já não havia braços
+no paiz... co'a breca, que elles não chegavam para tudo! e abala-se
+para a Africa a pretexto de ir soccorrer um principe mouro que tinha
+sido expulso do throno por seu tio!
+
+Ah! meus amigos, aquillo era mesmo um doido que ali ía. A gente gosta de
+ver um rapaz que tem o sangue na guelra, e que se atira para diante,
+embora faça asneira, mas é que D. Sebastião estava perfeitamente maluco.
+Era maluquice a empreza, foi maluquice o modo como a preparou, foi
+maluquice o modo como a dirigiu. Parecia que Deus, por umas poucas de
+vezes, o quizera salvar, e elle sempre a atirar comsigo de cabeça para
+baixo. Emfim, no dia 4 de agosto de 1578, deu-se a batalha á moda de
+seiscentos diabos, porque nem houve commando, nem houve nada. D.
+Sebastião atirou-se aos mouros e não quiz saber de exercito, nem de
+cousa nenhuma. Emquanto poude dar cutilada, deu. A flor da fidalguia
+portugueza ali morreu, a que não morreu ficou prisioneira. Os soldados
+fugiram, uns por aqui outros por ali, e, quando a noticia chegou ao
+reino, imaginem que afflicção! Não se perdera só um rei, perdera-se a
+corôa, porque não havia herdeiros, e quem subiu ao throno foi o velho
+cardeal D. Henrique, tio avô do fallecido, que nunca fôra esperto e que
+estava então meio apatetado. Ainda houve quem dissesse que D. Sebastião
+não morrera, porque ninguem o vira caír morto, e o cadaver que
+appareceu, e que se disse que era d'elle, estava tão desfigurado que se
+não podia conhecer. Assim lá ficou D. Henrique a governar, mas para que?
+Todos sabiam que a corôa era herança que não tardava. Quem a havia de
+apanhar? Quem tinha direito verdadeiro era a duqueza de Bragança, por
+ser filha de um irmão de D. João III, D. Duarte; quem era mais
+sympathico ao povo era D. Antonio, filho bastardo de outro irmão de D.
+João III, D. Luiz; quem tinha mais força era D. Filippe II, rei de
+Hespanha, filho de uma irmã de D. João III, D. Isabel. Ainda havia
+outros que se diziam herdeiros, mas entre aquelles tres é que a lucta
+era séria. Ferviam as intrigas. D. Filippe tinha em Portugal um
+embaixador, e até por signal era portuguez, D. Christovão de Moura, que
+comprava todos quantos se queriam vender, e bem parvos eram os que não
+íam ao mercado. As côrtes, chamadas por D. Henrique para decidir a
+questão, estavam já tão pouco costumadas a metter o seu bedelho n'essas
+questões, que disseram ao rei que decidisse como quizesse, apesar de
+berrar muito contra isso um portuguez ás direitas, procurador de Lisboa,
+e que se chamava Phebo Moniz. O rei não decidiu cousa alguma. Morreu em
+1580, e deixou o quartel general em Abrantes, tudo como d'antes. Nomeou
+governadores do reino uns sujeitos que se tinham já vendido aos
+hespanhoes, e que de certo íam escolher D. Filippe II. Mas, como se
+demorassem, este não esteve para os aturar, e mandou-nos cá um exercito
+commandado pelo duque de Alba. Vendo os hespanhoes, o povo virou-se para
+D. Antonio, prior do Crato e bastardo do infante D. Luiz, e acclamou-o
+rei. Valente era elle, mas não era mais nada. Quiz resistir aos
+hespanhoes com um punhado de gente que nunca pegára em armas. Batido em
+Alcantara, ás portas de Lisboa, depois de algumas horas de combate,
+fugiu para o Minho, por onde andou escondido, até que poude safar-se
+para o estrangeiro. Filippe II entrou socegadamente em Lisboa, e era uma
+vez a independencia de Portugal.
+
+--O que! estavamos hespanhoes? perguntou furioso o Bartholomeu.
+
+--Estavamos hespanhoes, sim, meu amigo, e eu te vou explicar como é que
+tinhamos chegado a isso em tão pouco tempo. Em primeiro logar, creio que
+já sabem que D. João II abaixára a prôa de todo á nobreza, e d'ahi por
+diante os fidalgos ficaram sendo simplesmente criados do paço. O povo
+ajudára o rei a fazer essa obra necessaria, mas o rei, apenas se viu
+servido, deu-lhe para baixo, e el-rei D. Manuel começou a dizer que os
+foraes, que eram as leis por que se governavam os concelhos, não estavam
+muito claros, e para os aclarar, reformou-os, quer dizer, deu cabo
+d'elles. Em côrtes já se não fallava senão de longe a longe. D'antes,
+pelo menos, para se lançarem tributos novos, sempre se reuniam as
+côrtes. D. Manuel não quiz que ellas se incommodassem por tão pouco, e,
+para lhes poupar trabalho, começou elle a deitar os tributos por sua
+conta. Ora isto é muito bom, emquanto as cousas vão correndo bem. O rei
+tem ali o seu povo manso como um leão domesticado, com as unhas cortadas
+e os dentes limados, mas, quando vem as occasiões, o povo mette o
+rabinho nas pernas e não tuge nem muge. Para mais ajuda, a inquisição
+concorria para terem todos pouca vontade de se mexer. Os jesuitas, que
+tanto podiam fazer pela influencia que possuiam, não se importaram para
+nada com isso. Frades como elles eram, muito ligados entre si, e muito
+escravos do seu geral que estava em Roma, não tinham patria, a sua
+patria era a Companhia. Depois, vocês bem vêem que o reino não podia
+deixar de estar sem forças. Era um saír de gente todos os annos para a
+Africa, para a India, para o Brazil, que era uma cousa por demais. No
+meio de tantas riquezas o paiz achava-se pobre. Havia muita gente rica e
+vadia, mas não havia lavoura, não havia fabricas, não havia nada, o
+dinheiro entrava por um lado para saír pelo outro. Demais a mais tudo
+era pandiga rasgada. Os portuguezes vinham do Oriente descançar das suas
+fadigas. Tinham escravos para o serviço, passavam os dias na amante
+vadiagem. Não ha cousa que mais deite a perder os homens. Por isso
+D. Filippe e o seu embaixador Christovão de Moura encontraram tudo podre.
+
+Hão de vocês dizer: Pois então, só porque um rei morreu, e só porque se
+perdeu um exercito, que não era grande cousa, perdeu-se Portugal? É
+assim mesmo. Faltou o rei, faltou tudo, porque o povo nem já sabia de
+si, e as côrtes, quando não havia quem mandasse alguma cousa, nem sabiam
+o que haviam de fazer. Soldados portuguezes, os bons, estavam na India,
+e não bastavam; os que tinham voltado não pensavam senão na pandiga.
+Tudo estava alluido na nação portugueza, veio o empurrão de
+Alcacer-Kibir, foi tudo abaixo, e eu, meus amigos, não vou para baixo,
+vou para cima que são horas de me ir chegando ao pouso. Domingo
+continuaremos, porque já agora havemos de acabar, que lá dizer que eu
+tenho muita vontade de lhes contar a historia do que se passou no tempo
+dos Filippes, isso não tenho. Então é que Portugal perdeu a esperança de
+se levantar.
+
+
+
+
+SETIMO SERÃO
+
+Portugal durante o dominio hespanhol.--Filippe I.--Os falsos D.
+Sebastião.--Ultimos esforços do prior do Crato.--Os inglezes e
+hollandezes no ultramar.--A invencivel armada.--D. Filippe II.--Perda e
+restauração da Bahia.--Filippe III.--O conde-duque de Olivares e os
+privilegios das provincias.--Perda de Pernambuco.--Tumultos de Evora.--O
+duque de Bragança.--A conspiração dos fidalgos.--Revolução de 1 de
+dezembro de 1640.
+
+
+--Meus amigos, disse o João da Agualva no domingo immediato, demorei-me
+e o resultado foi apanhar uma constipação, que ainda mal me deixa
+fallar. Não quiz comtudo deixar de vir para se não perder este bom
+costume dos domingos, mas pouco tempo me demoro, e não farei mais do que
+contar-lhes a historia do que passou Portugal com o dominio dos hespanhoes.
+
+Se nós ao menos tivessemos passado para uma nação forte, com vida e com
+sangue, alguma cousa lucrariamos, mas a Hespanha estava peor do que nós.
+Parecia muito poderosa por fóra, mas só havia podridão lá dentro. Depois
+andava em guerra com a Europa toda, e n'essa guerra nos embrulhou
+para nossa desgraça.
+
+Apesar dos pesares, não cuidem vocês que tudo foram rosas para o nosso
+rei Filippe I, que era em Hespanha Filippe II. Elle veio com pésinhos de
+lã, prometteu respeitar as liberdades portuguezas, nunca nos dar por
+governadores senão portuguezes ou principes da familia real, jurou
+quanto quizeram, mas o povo não andava satisfeito, e, como não tinha a
+quem se encostar, pensava em D. Sebastião, o _Desejado_, como lhe
+chamam. Assim que apparecia um homem que tinha alguma parecença com o
+rei fallecido, diziam logo que era elle, de fórma que os hespanhoes
+estavam sempre em sobresalto. Por isso o rei de Penamacor e o rei da
+Ericeira, uns pobres homens que o povo embirrou em querer que fosse cada
+um d'elles D. Sebastião, e que tomaram o caso a serio, provocaram os
+seus tumultos, sendo os da Ericeira um poucochinho graves. Passados
+tempos, ainda appareceram lá fora, em Hespanha e em Italia, dois homens
+que diziam ser D. Sebastião, e que lograram muita gente, mas esses eram
+verdadeiros intrujões que nem mesmo pensavam senão em comer á
+barba-longa, á custa dos freguezes. O tal amor ao D. Sebastião foi-se
+pegando a ponto que começou a formar-se uma seita que ainda ha pouco
+tempo durava, a seita dos sebastianistas, que acreditavam que D.
+Sebastião havia de apparecer n'um dia de nevoeiro para governar em
+Portugal. Eu ainda conheci um sebastianista.
+
+--E eu tambem, acudiu o Bartholomeu.
+
+--Já vêem que não minto. Mas d'esse D. Sebastião não ha de vir mal ao
+mundo, nem bem que é o peor. D. Antonio tambem trabalhava pela sua
+banda, e, como a ilha Terceira o acclamára rei, foi-se lá metter e
+arranjou soccorro de França, mas os hespanhoes bateram a esquadra
+franceza, e tomaram a ilha. Depois arranjou soccorros da rainha de
+Inglaterra, que mandou uma esquadra a Lisboa, mas os inglezes foram
+repellidos, e D. Antonio, descoroçoado de todo, foi morrer a Paris em 1595.
+
+Mas querem vocês ver o que nós ganhámos com o estar juntos á Hespanha?
+Foi termos á perna os inglezes e os hollandezes, que principiaram a
+sacudir-nos da India, e que então aos nossos navios faziam guerra
+mortal. Ia tudo pela agua abaixo, e, para mais desventura, Filippe
+lembra-se de mandar contra a Inglaterra uma esquadra immensa, a que
+chamou «a invencivel armada», e que saíu do porto de Lisboa. A armada
+perdeu-se e lá se foram os nossos melhores navios. Filippe morria em
+1598, e succedia-lhe Filippe II aqui e III em Hespanha. Se as cousas
+tinham ido mal até ahi, então foram peor. A Hespanha ía a Deus e á
+ventura, e nós atraz d'ella. O governo hespanhol, que mal cuidava de si,
+não cuidava nada de nós. Os inglezes e os hollandezes tomavam-nos
+quasi tudo o que tinhamos na India, e estes ultimos tambem se mettiam no
+Brazil comnosco. Grandes façanhas ainda se faziam, é verdade, e da
+Bahia, por exemplo, foram os hollandezes expulsos, mas, quando Filippe
+II morreu em 1621, já o nosso poder não era nem a sombra do que tinha sido.
+
+Succedeu-lhe Filippe III, e esse tinha um primeiro ministro chamado
+conde-duque de Olivares, que imaginou que havia de acabar com os
+privilegios das provincias, principalmente com os de Portugal. Não
+pensava n'outra cousa, de fórma que deixava ir as colonias, e no Brazil
+já os hollandezes tinham tomado raizes, e estavam senhores de
+Pernambuco. Mas os portuguezes começaram a achar a brincadeira pesada e
+a refilar ao Olivares. Em 1637 rebentou uma revolta em Evora, foi logo
+apagada, mas com muito sangue. Peor para o caso. Os fidalgos, que
+andavam tambem damnados, principiavam a conversar com o duque de
+Bragança, D. João, e a apalpal-o para ver se elle quereria a corôa. O
+duque não dizia nem que sim, nem que não. Mas n'isto a Catalunha, que
+tambem não perdoava ao Olivares a sem-ceremonia com que elle lhe queria
+tirar os seus antigos privilegios, revolta-se. Boa occasião! Os
+fidalgos, em Lisboa, sentiam-se cada vez mais dispostos a mandar os
+hespanhoes para o diabo. O Olivares não fazia senão desesperal-os e
+atiçal-os. Tinha-lhes dado por governador a duqueza de Mantua, e para
+secretario do governo um portuguez, Miguel de Vasconcellos, que era mais
+damnado contra os seus patricios do que se fosse hespanhol. Emquanto
+deixava perder as colonias portuguezas, Olivares levava os nossos
+fidalgos e os nossos soldados para as guerras de Flandres e da
+Catalunha. Lembra-se emfim de dar ordem ao duque de Bragança para que vá
+para Madrid. Então é que já se não podia estar com pannos quentes. Os
+fidalgos dizem ao duque de Bragança: Ou acceita a corôa, ou nós pomo-nos
+em republica. O duque, a final, disse que sim. Com a bréca! aquillo foi
+um momento. Era um punhado de homens, os que andavam assim a conspirar;
+elles não sabiam se podiam contar com o povo, nem se não podiam,
+conspiravam ás claras, que parece que em Lisboa todos sabiam da
+conspiração menos os hespanhoes; reuniam-se umas vezes em casa de João
+Pinto Ribeiro, outras vezes em casa de D. Antão de Almada, no jardim. No
+dia 1 de dezembro de 1640 saem todos para o meio da rua. Eram quarenta,
+pouco mais ou menos. Chegam ao paço, matam o Miguel de Vasconcellos,
+agarram na duqueza de Mantua e fecham-n'a á chave, desarmam a guarda,
+abrem as janellas, e dizem a quem ía passando: Viva o duque de Bragança,
+rei de Portugal! viva o sr. D. João IV! O povo diz-lhes cá de baixo:
+Viva! e viva, e viva! e eram uma vez os hespanhoes, e d'ahi a
+pedaço estava tudo tão socegado como se não tivesse havido cousa
+nenhuma, e os hespanhoes tinham desapparecido; e aqui têem vocês como se
+faz uma revolução quando ella está na vontade de todos. Digo-lhes,
+rapazes, que este dia 1 de dezembro consola uma pessoa. Parecia que o
+paiz não tinha feito senão acordar de um pesadello. Aquillo foi só
+saltar da cama abaixo, e elle ahi estava de pé, todo pimpão como em
+outros tempos. E sabem vocês porque isto foi? É porque as nações são
+como as espadas, onde enrijam é na bigorna.
+
+
+
+
+OITAVO SERÃO
+
+Unanimidade da revolução.--Preparativos de resistencia.--Organisação
+militar do paiz.--As allianças.--Relações de Portugal com
+a Hollanda.--Restauração de Pernambuco e de Angola, e perda
+de Ceylão.--Conspirações contra D. João IV.--Guerra da
+Restauração.--Batalhas de Montijo e de Telena.--D. Affonso VI.--A sua
+educação e a sua indole.--Regencia da rainha D. Luiza.--Antonio
+Conti.--O conde de Castello Melhor.--Continuação da guerra.--Cerco de
+Badajoz.--Batalha das Linhas de Elvas.--Paz entre a Hespanha e a
+França.--Campanhas de D. João de Austria.--Schomberg.--Victorias do
+Ameixial, Castello Rodrigo e Montes Claros.--Planos do conde de Castello
+Melhor.--Intrigas do Paço.--Casamento, desthronamento e divorcio
+vergonhoso de D. Affonso VI.--Regencia do infante D. Pedro.--Casamento
+com a cunhada.--Tratado de Methwen.--Guerra da successão de
+Hespanha.--D. João V.--As minas do Brazil.--Desperdicios, beaterio e
+immoralidades.
+
+
+--Meus amigos, principiou no outro domingo o João da Agualva, e já
+ninguem o interrompia, tal era o interesse com que todos seguiam a sua
+narrativa; o que succedeu na capital, succedeu no reino todo. Aquillo
+foi chegar a noticia do que se passava em Lisboa, e de um momento para o
+outro desappareciam os hespanhoes, e tornava tudo a ser Portugal.
+Poupámos-lhes muita despeza em correios, porque logo souberam pelo
+primeiro que Lisboa se tinha revoltado, que tinha vencido, que reinava
+em Portugal D. João IV, e que a Hespanha, do Minho para baixo e do
+Caya para o occidente, já não possuia nem um palmo de terra. Querem
+vocês saber como o conde-duque de Olivares deu a noticia ao patrão? Foi
+d'esta maneira:--Dou os parabens a Vossa Magestade; acabam de lhe entrar
+uns poucos de milhões no bolso.--Como assim? perguntou o rei que estava
+a jogar, e que não desgostaria de que lhe saisse d'essa maneira a sorte
+grande de Hespanha.--Porque o duque de Bragança, tornou o ministro,
+acaba de se revoltar, e de se fazer rei de Portugal, e, como temos de
+lhe tirar os bens e de lhe cortar a cabeça, fica Vossa Magestade mais
+rico. O rei não gostou muito d'esse modo de enriquecer, e ainda olhou
+para os parceiros a ver se algum lhe dava quatro vintens pela herança.
+Nenhum caíu n'essa.
+
+Isso era muito bom, mas Portugal é que não vivia de cantigas. A Hespanha
+era então ainda maior do que hoje é, e, se ella nos caísse em cima,
+estavamos promptos. De que precisavamos nós? De dinheiro, de soldados e
+de allianças. Tratou-se logo de tudo. Dinheiro votaram as côrtes quanto
+se quiz; para arranjar soldados fez-se uma obra fina que nunca ninguem
+até ahi tinha feito, e que foi pôr toda a gente em armas. E como?
+dividiu-se o reino em tres linhas; a primeira de soldados, que se
+chamavam pagos, a segunda de milicianos, e a terceira, que era a dos
+velhotes, de ordenanças. Uns íam á guerra, os outros ajudavam-nos
+em sendo preciso, saíndo, o menos que podesse ser, dos seus sitios, e
+finalmente os ultimos defendiam as suas terras, porque isso, atraz de um
+muro, todos fazem figura. Digo-lhes, rapazes, que aquillo é que foi uma
+idéa, e olhem que não nos serviu só então, tambem na guerra da peninsula
+foi o que nos valeu, e, aqui para nós, não me parece que fizessem muito
+bem em deitar abaixo aquella historia. Estava já tudo costumado, e
+quando vinha uma guerra, saltava toda a gente para o meio da rua; e
+olhem que isto de estar um homem dentro de casa, de espingarda na mão,
+dá que fazer aos mais pintados. E logo se viu.
+
+Emquanto a allianças tambem não faltaram; é verdade que não serviram de
+muito, porque cada um cuidava de si. A França, prompta, o que ella
+queria era abaixar a prôa á Hespanha, mas, como tambem lá andava em
+guerra com os hespanhoes, o mais que fez foi consentir que arranjassemos
+officiaes francezes pelo nosso dinheiro; a Inglaterra, a mesma cousa,
+muita festa para a festa, mas andava embrulhada em guerras civís, não
+mandou para cá nem um navio. Então a Hollanda ainda foi peor, isso...
+recebeu o nosso embaixador de braços abertos, poz luminarias, achou que
+tinhamos feito muito bem, mas, quando o embaixador lhe disse: «Então
+agora que estamos amigos, venham para cá as nossas colonias, que
+são nossas e não dos hespanhoes», a Hollanda exclamou: «As colonias! ah!
+sim! nós somos tão amigos d'ellas! Estão já acostumadas comnosco! até
+tinhamos pena de as deixar». E acrescentava o embaixador: «Mas então,
+c'os diabos, ao menos não nos tomem mais nenhuma».--«Não tomamos, dizia
+a Hollanda, isso nunca. Ora agora sabem vocês? as colonias são como as
+cerejas. O caso é apanhar uma». Ah! elle é isso! disseram os portuguezes
+comsigo, pois então vamos a ellas. E, zás, rebenta uma revolta em
+Pernambuco, e os brazileiros a berrarem: Viva D. João IV! A Hollanda
+chamou o nosso embaixador: «Então que diabo é isso? nós somos amigos e
+fazem-nos uma partida d'estas!»--«Patifes! dizia o embaixador. Aquillo é
+do sol! esquenta-lhes a cabeça, e dão por paus e por pedras. Mas, aqui
+para nós, se elles dizem: Viva D. João IV, não havemos de lhes ir dizer:
+Morra D. João IV! Não nos ficava bem.»--«Pois sim, mas digam-lhes que
+estejam quietos.»--«Pois isso dizemos nós.» E D. João IV mandava para lá
+armas e officiaes, e dizia-lhes: «Ahi vae isso, que é para vocês estarem
+quietos.» E em poucos annos estavamos senhores de Pernambuco, e os
+hollandezes na rua.
+
+D'ahi a tempos, Salvador Correia de Sá ía a Angola e punha fóra os
+hollandezes que nos tinham tomado esse reino.--«Então isto que vem a
+ser? bradaram os hollandezes, então os senhores vão de proposito do
+Brazil a Angola para nos sacudir!»--«Quem é que fez isso?» perguntava o
+embaixador.--«Salvador Correia de Sá.»--«Sim! pois estejam vocês
+descançados, que lhe vamos já perguntar pelo correio, que diabo de
+lembrança foi essa. Em vindo resposta cá lh'a mandamos. E a proposito,
+sr.ª Hollanda, vocês tomaram-nos Ceylão?»--«Tomámos Ceylão, mas que
+defeza! Antonio de Sousa Coutinho defendeu-se maravilhosamente. Os
+nossos generaes são todos accordes que nunca encontraram resistencia tão
+desesperada! Quando escreverem para lá, mandem os nossos parabens ao sr.
+Antonio de Sousa Coutinho e recommendações aos amigos.»
+
+E era assim que nós estávamos com a Hollanda: abraços na Europa e
+lambada lá por fóra.
+
+Houve só duas côrtes que não quizeram nunca reconhecer a independencia
+de Portugal; uma foi a côrte de Roma que estava toda nas mãos dos
+hespanhoes, e a outra a da Allemanha, cujo imperador era da mesma
+familia que a do rei Filippe. E fizeram-nos transtorno: a primeira
+porque estávamos assim a modo excommungados, a segunda por uma patifaria
+que praticou o imperador, mandando prender sem mais nem menos o principe
+D. Duarte de Bragança, irmão de D. João IV, que andava por lá na guerra
+contra os turcos, e que tanta conta nos faria em Portugal. Morreu
+na cadeia o pobre rapaz por causa de nós e da traição do tal imperador.
+
+Em Portugal, ao principio, tinha ido tudo bem, mas, assim que passou
+aquelle primeiro fogo, houve muitos que começaram a pensar no caso e que
+disseram comsigo: «Isto foi uma grande asneira. Vem ahi os hespanhoes e
+dão cabo de todos nós. O melhor é pormos as costas no seguro, e, antes
+que elles venham ter comnosco, vamos nós ao encontro d'elles, que sempre
+apanharemos alguma cousa.» E n'isto desatam a conspirar contra D. João
+IV. Foram castigados cruelmente. Morreram muitos com a cabeça cortada, e
+mais nem todos eram culpados. Mas que querem vocês? A mania de D. João
+IV era que o não tomariam a sério como rei em Madrid, emquanto não
+mandasse cortar a cabeça a alguem.
+
+Pois em primeiro logar visse bem a quem matava, e em segundo logar eu
+sempre ouvi que os reis, quando são mais reis, é quando perdôam. E, alem
+d'isso, os hespanhoes quando tomaram a sério D. João IV não foi quando
+elle mandou cortar a cabeça a fidalgos portuguezes, mas quando os
+soldados portuguezes lhes começaram a esfregar as costas a elles.
+
+Lá que os taes conspiradores tinham rasão em estar com medo, isso
+tinham, porque parecia mesmo impossivel que Portugal resistisse.
+Tambem o que nos valeu foi a asneira dos hespanhoes, que nos primeiros
+dois annos não fizeram senão dar um rebate falso a uma praça, atacar
+outra, escaramuçar aqui, disparar uns tiros alem. Parecia que estavam
+incumbidos por D. João IV de fazer andar os nossos soldados na recruta.
+Em 1644 é que, pela primeira vez, fizeram assim movimento mais serio,
+mas já tinhamos então soldados velhos, commandados por um bom general,
+Mathias de Albuquerque, e os amigos hespanhoes levaram a primeira sova
+mesmo lá na sua terra, em Montijo; em 1646 nova batalha em Telena, mas
+n'essa perdemos nós mais do que lucrámos, ainda que os hespanhoes com
+isso nada ganharam tambem, porque voltaram á costumeira antiga. Emfim,
+para encurtar rasões, quando D. João IV morreu, em 1656, estavamos havia
+dezeseis annos n'aquella brincadeira, hoje íamos nós á Hespanha e
+apanhavamos gado, ámanhã vinham elles cá e levavam-nos o nosso. Mas quem
+lucrava com isso? Éramos nós, porque os nossos milicianos, e as nossas
+ordenanças íam-se costumando á guerra, e cada vez este bocadinho de
+Portugal se ía tornando para a Hespanha mais duro de roer.
+
+Em 1656 morreu pois D. João IV, como eu lhes disse, e succedeu-lhe seu
+filho D. Affonso VI, a quem chamaram o _Victorioso_, como chamaram a
+D. João IV o _Restaurador_, mas emfim a este com mais um bocadinho
+de rasão.
+
+D. Affonso VI não era o filho mais velho, mas o mais velho, um rapazito
+que dava esperanças, Theodosio, morrera em 1653. D. Affonso VI fôra
+desde creança muito doente, nunca podéra aprender cousa nenhuma e tivera
+uma educação muito descuidada. O seu gosto era brincar com os garotos
+que íam para debaixo das janellas do paço, e, quando foi homem, andava
+em pandigas pela cidade, com uma roda de facinoras que faziam tudo o que
+queriam á sombra d'elle, a ponto que até havia mortes nas ruas de
+Lisboa! Como ainda era pequeno quando seu pae morreu, ficou regendo o
+reino sua mãe D. Luiza de Gusmão, uma hespanhola muito decidida, que
+diziam até que fôra quem mais concorrera para o marido acceitar a corôa.
+A regente lá foi governando com acerto, emquanto o rapazote andava ao
+laré com um tal Antonio Conti, que lhe soubera conquistar a amisade. A
+rainha um dia pegou n'esse Antonio Conti, e ferrou com elle desterrado
+no Brazil. Ó diabo que tal fizeste! o pequeno zanga-se, e, quando o
+conde de Castello Melhor lhe disse que era bom que começasse a governar
+por si, porque tinha já chegado á maioridade, D. Affonso, para pregar
+pirraça á mãe, acceitou; eu não louvo o conde de Castello Melhor por ter
+aconselhado esta acção, mas a verdade é que D. Affonso VI já estava
+em idade de governar, e que, se não podia dirigir os negocios, sempre
+era melhor que por elle os dirigisse um homem como o conde de Castello
+Melhor, que tinha uma excellente cachimonia, do que a rainha, que,
+apezar de ser esperta, sempre era senhora, e por isso menos capaz de
+governar o reino em tempo de guerra.
+
+Bem conheço que D. Affonso VI era um mau rei, que não tinha juizo, que
+se entregava a divertimentos indecentes e até criminosos, mas uma
+qualidade tinha elle, percebia perfeitamente que não sabia cuidar do
+reino, e deixava o Castello Melhor fazer tudo quanto queria. Ora o
+Castello Melhor era uma das melhores cabeças que têem governado o nosso
+paiz, como vocês vão ver, porque é bom que saibam o que se passára na
+guerra.
+
+Logo depois da morte de D. João IV, um general portuguez, João Mendes de
+Vasconcellos, fizera grande asneira. Vendo que os hespanhoes andavam só
+a fazer fosquinhas, disse comsigo: Não nos hão de conquistar, e havemos
+de ser nós que os conquistaremos a elles. Junta um exercito magnifico, e
+vae cercar Badajoz. Ainda ali ganhámos uma batalha, que foi a do Forte
+de S. Miguel, mas a final tivemos de levantar o cerco, depois de
+havermos perdido inutilmente a flor dos nossos soldados. Ora o que
+succedeu? Foi que, no anno seguinte, quer dizer em 1659, os hespanhoes,
+picados com o nosso atrevimento, saíram da sua pachorra, juntaram
+um exercito formidavel commandado pelo proprio ministro do rei, D. Luiz
+de Haro, vieram sobre Portugal e cercaram Elvas. A cousa esteve
+phosphorica, porque os nossos melhores soldados tinham ficado estendidos
+diante de Badajoz, e andava isto por cá muito desarranjado. Mas para
+alguma cousa haviam de servir os dezenove annos de guerra. Em primeiro
+logar Elvas, governada por D. Sancho Manuel que foi depois conde de
+Villa Flor, defendeu-se admiravelmente, em segundo logar o conde de
+Cantanhede, depois marquez de Marialva, como não tinha outra gente,
+reuniu um exercito quasi todo de milicianos e saltou nos hespanhoes que
+cercavam Elvas. Foi no dia 14 de janeiro de 1659 que se deu a batalha,
+conhecida pelo nome de batalha das linhas de Elvas, e nunca os
+hespanhoes apanharam tamanha pilota. Os prisioneiros foram aos milhares,
+artilheria, bagagens, tudo nos caío nas mãos, e o proprio D. Luiz de
+Haro escapou-se por um fio. Tambem nunca mais nos perdoou aquella sova,
+e, quando n'esse mesmo anno foi fazer a paz com a França, deu aos
+francezes tudo quanto elles quizeram, só com uma condição--a de se não
+fallar em Portugal. Era patifaria graúda do ministro francez, um padre,
+um tal cardeal Mazarino, porque as tareias que davamos nos hespanhoes
+tinham feito muita conta aos francezes. Mas o Mazarino foi
+apanhando o que poude, e pouco lhe importou mandar-nos á fava.
+
+Vêem vocês a situação em que ficámos. Quando começámos a guerra com a
+Hespanha, estava ella em guerra tambem com quasi toda a Europa, o que
+não era mau para nós. Em 1648 fez a paz com muitas nações, e isso não
+foi lá muito bom, porém, como a França continuava em guerra, e essa só
+por si dava mais que fazer á Hespanha do que todas as outras juntas,
+ainda a cousa não ía mal; mas agora? A França fazia a paz, quasi que se
+alliava com os hespanhoes, porque o rei de França, Luiz XIV, casava com
+uma princeza hespanhola, e nós é que ficavamos em campo, com a Hespanha
+ás costas. Ella ainda esteve dois annos a apalpar-nos, mas em 1662
+rompeu o fogo com alma. Poz um dos seus melhores generaes, D. João de
+Austria, filho bastardo do rei, á frente dos seus exercitos, e caíu em
+cima de nós com todo o seu peso.
+
+Ora foi exactamente em 1662 que entrou no poder o conde de Castello
+Melhor, e foi sobre elle que desabou esse temporal desfeito. Nunca
+Portugal se vira em tão maus lençoes. D. João de Austria tomava praças
+sobre praças, e na campanha do anno immediato, 1663, quasi que chegava
+ás portas de Lisboa. Mas o ministro fizera o diabo, parece que até das
+pedras tinha feito soldados. Depois, como Mazarino era um finorio, que
+não desgostava de jogar com pau de dois bicos, ao passo que
+contentava a Hespanha, mandava-nos para cá os officiaes que podia, entre
+elles o conde de Schomberg, que era um general de mão cheia. Não
+commandou nunca em chefe, porque os nossos não gostavam, e tinham rasão,
+que elles já haviam dado provas de que não precisavam de tutores; mas
+foi um excellente conselheiro. O que é certo, meus amigos, é que, em
+tres annos successivos, em que os hespanhoes fizeram todos os esforços
+para dar cabo de nós, levaram tres sovas mestras; a primeira deu-lh'a em
+1663 o conde de Villa Flor na batalha do Ameixial, a segunda em 1664
+Pedro Jacques de Magalhães na batalha de Castello Rodrigo, a terceira em
+1665 na batalha de Montes Claros o marquez de Marialva. D'ahi por diante
+nunca os hespanhoes levantaram cabeça, e não pensaram mais em tomar
+conta outra vez de Portugal.
+
+Ora o conde de Castello Melhor tinha uma grande idéa; dizia elle
+comsigo: os hespanhoes levaram tanta pancadaria, que, se fazemos a paz
+com elles, ficando nós simplesmente com o que tinhamos ao principio,
+póde-se dizer que fomos logrados. Demais a mais Portugal é pequeno, a
+Hespanha é grande; em qualquer bulha que tivermos estamos de mau
+partido. É necessario fazer Portugal maior e a Hespanha mais pequena. E
+toda a sua tineta era obrigar os hespanhoes a dar-nos a Galliza. E
+o que fazia elle então? Encostava-se a Luiz XIV, rei de França, que
+andava namorando umas provincias hespanholas lá de Flandres. Casava D.
+Affonso VI com uma princeza franceza, e dizia comsigo: Mais dia menos
+dia, Luiz XIV pega-se com a Hespanha. Nós vamos com elle. A Hespanha
+leva para o seu tabaco a valer. Elle fica com as provincias que quizer,
+até com a Flandres toda, se isso lhe fizer conta, e nós com a Galliza, e
+com mais alguma cousa se podér ser.
+
+--E era bem pensado, sr. João da Agualva, observou o Bartholomeu, porque
+é que não havia de ser nossa a Galliza?
+
+--Tens rasão, e já vês que, se nós tivessemos a Galliza tambem, não
+estavamos sempre com medo de ser engulidos pelos visinhos. Mas que
+queres tu? Entretanto íam grandes intrigas no paço. A rainha, que era
+uma princeza toda _liró_ e toda costumada ás janotices da côrte de Luiz
+XIV, achando-se casada com um homem que só se dava bem com moços de
+cavallariça, e que de mais a mais era tão doente que nem marido podia
+ser, principiou a desgostar-se, e ao mesmo tempo a agradar-se do infante
+D. Pedro, rapaz desempennado, que tambem não desgostava da francezita.
+Pensaram em se juntar e governar o paiz. Principiaram as intrigas. Tanto
+fizeram que conseguiram pôr fóra o conde de Castello Melhor.
+Desamparado, o pobre D. Affonso VI não tardou a ser expulso do
+throno, e até o descasaram, coitado! Foi necessario para isso um
+processo que é uma vergonha, e realmente não posso perceber como foi que
+uma rainha se deixou assim andar nas bôcas do mundo!... Emfim, o que é
+certo é que desterraram o pobre D. Affonso VI, mandando-o para a ilha
+Terceira; prenderam-n'o depois em Cintra, onde morreu, e a rainha casou
+com o cunhado, e este ficou a governar o reino. Eu já lhes disse,
+rapazes, que bem conheço os defeitos de D. Affonso VI; mas o pobre
+homem, que era mesmo uma creança, que se não importava para nada com a
+politica, que tivera a fortuna de acertar com um bom ministro que
+governava por elle e governava bem, não merecia que lhe fizessem
+similhante entrega! Mette dó, porque elle nem sabia defender-se, andava
+ali como o menino nas mãos das bruxas.
+
+E o irmão, que lhe tirára a corôa, e que lhe tirára a mulher, nem ao
+menos lhe dava a sua liberdade, nem lhe consentia que espairecesse.
+Tinha-o preso n'um quarto em Cintra, e ali o deixou morrer de
+aborrecimento e de desgosto, a elle que nunca fizera mal a ninguem senão
+com as suas tolas rapaziadas!
+
+Emfim, passemos adiante! O que é certo é que isto succedeu em 1667, e
+logo no anno seguinte de 1668 fazia-se a paz com a Hespanha, sem lucro
+nenhum para nós, porque nem ao menos apanhavamos a praça africana
+de Ceuta, que era tão nossa, por causa da qual morreu no captiveiro o
+infante santo, e que em 1640 não conseguira livrar-se dos hespanhoes.
+
+Tanto se empenhára em governar o reino o sr. D. Pedro II, que desde 1667
+até 1683, anno em que morreu D. Affonso VI, só tomou o titulo de
+regente, e a final de contas não fez senão tolices. Demais a mais
+algumas cousas boas que deixou fazer, logo as desmanchou. Um ministro
+que elle teve, o conde da Ericeira, quiz ver se fundava fabricas em
+Portugal, mas em 1703 um tratado com a Inglaterra, conhecido pelo nome
+de tratado de Methwen, que este era o nome do embaixador que o assignou,
+deu cabo da nossa industria. Conservou-se em paz, tanto que lhe deram o
+nome de _Pacifico_, e vae no fim do seu reinado mette-se sem mais nem
+menos na guerra da successão de Hespanha, favorecendo D. Carlos da casa
+de Austria contra D. Filippe da casa de Bourbon. Como tinhamos então um
+excellente general, que era o marquez das Minas, deu-nos este o gostinho
+de entrar victorioso em Madrid, e de proclamar ali D. Carlos rei de
+Hespanha; mas esse gostinho não tardámos a amargal-o, porque, morrendo
+D. Pedro II no dia 1 de dezembro de 1706, logo no dia 25 de abril de
+1707 era o marquez das Minas batido na batalha de Almanza com graves
+perdas para nós, tanto que até ao fim da guerra póde-se dizer que
+nunca mais levantámos cabeça.
+
+Subio ao throno D. João V, e eu, para lhes dizer a verdade, o que não
+posso perceber é como ha historiadores que gabam aquelle rei. Cá para
+mim foi um dos peores que nós tivemos. Possuia algumas qualidades que
+não eram de todo más, era porém o mesmo que se as não tivesse, porque
+não pensava senão no beaterio, e em obras grandes e magnificas, que a
+maior parte das vezes para nada serviam. Logo por desgraça foi n'esse
+reinado que começaram a render rios e rios de dinheiro as minas do
+Brazil, e tudo era pouco para o rei que não cuidava senão de si e nada
+do reino. Por exemplo, achou-se embrulhado com a Hespanha e com a França
+n'uma guerra que no seu tempo não foi senão desastrosa. Uns corsarios
+francezes deram-nos cabo do Rio de Janeiro e levaram-nos umas riquezas
+espantosas. Pois não encontrou aquelle homem uns poucos de navios para
+saltarem tambem nas colonias francezas, ou para protegerem as nossas!
+Emfim! se os não tinhamos, paciencia! Mas d'ahi a pouco saíu de Lisboa
+uma excellente esquadra em soccorro do papa, commandada pelo conde do
+Rio Grande, esquadra que foi bater os turcos no cabo Matapan! Ora vejam
+se ha um patarata assim! Annos depois, por causa de uns insultos feitos
+em Madrid ao nosso embaixador, está para rebentar a guerra com a
+Hespanha. Fazem-se preparativos, e vê-se que não temos nem exercito, nem
+marinha. De que tratou logo D. João V? De comprar armamento? Qual
+historia! De mandar fazer em Paris, para si, uma barraca de campanha
+muito rica, e tão luxuosa que toda a gente a ía ver!!
+
+Não tinhamos estradas, não tinhamos rios canalisados, não tinhamos
+desentulhados os portos, não tinhamos nada do que nos era necessario,
+mas tinhamos aquella monstruosidade do convento de Mafra que custou 120
+milhões de cruzados, que não serve para cousa nenhuma, e que nem ao
+menos é bonito. Dizem que gostava muito de imitar Luiz XIV, mas o que me
+dizia o engenheiro francez que esteve aqui em Bellas, é que Luiz XIV
+mandava ir sabios para França, dava pensões aos sabios estrangeiros, e
+este o que dava era dinheiro para igrejas, e o que mandava vir era de
+Roma bullas e capellas. Dizem que nunca deixou ás nações estrangeiras
+pôr pé em ramo verde comnosco. Quem lhe valeu para isso foram os
+diplomatas que teve, que nunca em Portugal os houve tão bons, e tambem o
+ser tão orgulhoso que ía aos ares só com a idéa de que mangavam com elle.
+
+Mas no mais não me fallem em D. João V, que até me sobe o sangue á
+cabeça. Pois vocês conhecem cousa que mais indigne do que ir um homem
+ali para Lisboa, no campo da Lã, ver os inquisidores queimarem
+gente de bem, ou porque não gostavam de toucinho, ou porque nem sempre
+íam á missa, e depois montar a cavallo, para se metter em Odivellas na
+cella de uma freira e passar ali a noite? Eu digo que me chega a parecer
+nem sei o que uma malvadez assim.
+
+Morreu em 1750 esse rei que não fez nada bom em Portugal, a não ser as
+Aguas-Livres. Pouco mais dinheiro gastou que se podesse dizer que fosse
+bem gasto. E digo-lhes que, se vocês olharem para o paiz, até lhes ha de
+fazer pena. A nobreza já não se compunha senão simplesmente de criados
+do paço, o clero immenso e corrompido enchia o reino com os seus padres
+e os seus conventos, e conservava o povo n'uma ignorancia completa, o
+povo, miseravel, vadio, ou emigrava para o Brazil, ou pedia esmola ás
+portarias dos conventos, ou sentava-se ao sol. Tinhamos chegado ao mais
+baixo a que podiamos chegar. Felizmente, quando uma nação desce a tal
+ponto, sempre apparece alguem que a levante e esse, eu, para o outro
+domingo, lhes direi quem foi. Por hoje basta. Quando fallo no sr. D.
+João V, o _Magnifico_, e penso no mal que elle fez ao paiz, fico sempre
+macambusio, e então o melhor é ir-me deitar.
+
+
+
+
+NONO SERÃO
+
+D. José I.--As transformações sociaes.--O marquez de Pombal
+e a revolução.--Terramoto de 1 de novembro de 1755.--As
+grandes reformas de Sebastião de Carvalho.--Expulsão dos
+jesuitas.--Reforma da universidade.--Reorganisação do
+exercito.--Agricultura.--Industria.--Inquisição.--Christãos novos e
+christãos velhos.--Politica estrangeira.--Energia com Roma e com
+Inglaterra.--Reconstrucção de Lisboa.--Estatua de D. José.--Attentado
+contra o rei.--Supplicio dos Tavoras.--D. Maria I.--Reacção contra as
+medidas do marquez de Pombal.--Processo do grande ministro.--Pina
+Manique, Francisco de Almada.--Martinho de Mello.--Loucura da
+rainha.--Regencia do principe D. João.--A republica franceza.--Campanha
+do Roussillon.--Campanha de 1801.--Napoleão e o tratado de
+Fontainebleau.--Fuga da familia real para o Brazil.--Guerra
+peninsular.--Congresso de Vienna.--D. João VI.--Conspiração de
+1817.--Revolta de Pernambuco.--Revolução de 1820.
+
+
+Hão de vocês notar, rapazes, observou o João da Agualva mal todos se
+sentaram no domingo seguinte em torno da lareira, que, em estando para
+haver uma grande mudança na sorte dos homens, parece que todos, sem o
+querer e sem o saber, trabalham para essa mudança, desejando fazer
+muitas vezes exactamente o contrario. Por exemplo, lembram-se vocês que
+ali por 1500 é que os reis se fizeram senhores absolutos, porque
+acabaram com os privilegios da nobreza, e com os foraes do povo.
+Quem é que contribuiu para isso? O povo, que ajudou o rei a dar
+cabo dos nobres. Agora encaminha-se tudo para a liberdade e para a
+igualdade, e quem é que no nosso paiz vae concorrer mais para similhante
+cousa? O marquez de Pombal. Dir-me-hão vocês: Então o marquez de Pombal
+era algum liberalão por ahi alem como os de vinte? Qual historia! Era um
+tyranno e dos mais ferozes que nunca houve, mas, sem o querer e sem o
+saber, ninguem mais do que elle trabalhou pela liberdade.
+
+Em primeiro logar hão de vocês saber que o rei D. José, que subiu ao
+throno por morte de seu pae D. João V, quasi que nem conhecia o marquez
+de Pombal, que já era homem dos seus cincoenta annos, e que tinha andado
+por fóra como embaixador, ora em Londres, ora em Vienna de Austria, onde
+casára com a filha de um figurão austriaco. Quem metteu empenhos para
+que elle fosse ministro foi a mãe de D. José, D. Marianna se chamava
+ella, archiduqueza de Austria, e por isso amiga da mulher do marquez,
+que então se chamava simplesmente Sebastião José de Carvalho e Mello.
+Era um ministro como os outros, e o rei não fazia mais caso d'elle do
+que fazia dos seus collegas, quando de repente acontece uma grande
+desgraça em Lisboa, que veio a ser o terramoto do dia 1 de novembro de
+1755. A cidade foi quasi toda a terra, morreram muitas mil pessoas,
+outras ficaram a pedir esmola, e sobretudo reinava um terror
+tamanho que ninguem sabia o que havia de fazer nem para onde se havia de
+virar. O Sebastião de Carvalho não perdeu a tramontana. Toma elle a
+direcção de tudo, arranja sustento, enforca ás portas da cidade quantos
+ladrões apanha, porque isso então era uma praga, trata do desentulho, e
+logo em seguida de reconstruir a cidade, isto com uma actividade, com um
+desembaraço, com um acerto, que D. José disse comsigo: Temos homem!
+D'ahi por diante quem governou foi elle, e é de uma pessoa pasmar ver o
+que fez. Até ahi os governos, para fallar a verdade, em quem menos
+pensavam era no povo e no paiz. O dinheiro do estado não servia senão
+para elles fazerem o que lhes agradava, e por felizes se podiam dar os
+povos quando lhes dava o capricho para cousas uteis. Sebastião José de
+Carvalho e Mello tratou do paiz e mais nada. Ora de que é que o paiz
+precisava?
+
+Precisava, primeiro que tudo, de acabar com as despezas no gosto das que
+fazia el-rei D. João V, que era umas mãos rotas com fidalgos e com igrejas.
+
+Precisava de poder pensar e estudar, sem ser sempre debaixo da
+palmatoria dos frades e dos jesuitas.
+
+Precisava de acabar com a inquisição, porque era uma vergonha que ainda
+se queimasse gente em Portugal só porque não ía á missa.
+
+Precisava de ter exercito e de ter marinha.
+
+Precisava de ter industria.
+
+Precisava de ter lavoura.
+
+E nada d'isto elle tinha.
+
+Sebastião de Carvalho via estas cousas e disse comsigo: Mãos á obra. Ora
+digam-me vocês: Quando chegam a uma quintarola que compraram e vêem tudo
+estragado: os pardaes a darem cabo da fructa, as cearas a morrerem á
+sede, a terra fraca por falta de estrume, as hervas ruins a afogarem o
+trigo, o que é que fazem? Arregaçam as mangas e dizem: Vamos a isto. E
+sacham as hervas, sem dó nem piedade, e saltam ao tiro nos pardaes até
+os pôrem fóra, e deitam estrume na terra, e levam a agua da rega para as
+cearas, e levantam os muros arrasados, e enxotam os porcos que lhes
+vinham fossar nas batatas, e sacodem as gallinhas que lhes depinicavam
+tudo, e até vocês se riam se os accusassem de crueldade porque matavam
+os pardaes, ou porque arrancavam e deitavam fóra as hervas ruins.
+
+Pois Sebastião José de Carvalho e Mello tratou Portugal exactamente como
+vocês tratariam a tal quintarola. Olhou para tudo e disse comsigo: Eh!
+com os diabos, como isto está. No paço ha um bando de pardaes que dá
+cabo da melhor fructa dos pomares da nação. Toca a enxotar os pardaes,
+e, como os pardaes refilaram, saltou ao tiro n'elles. As cearas da
+intelligencia, que tambem são trigo porque dão o pão do espirito, não
+podiam medrar porque os affogava por toda a parte o joio do jesuitismo.
+Toca a sachar os jesuitas. Os muros da quinta estavam arrasados, quer
+dizer, estavam as fronteiras a descoberto, e em vez de haver fortes o
+que havia era igrejas, e elle mandou fazer o forte da Graça em Elvas, e
+poz o exercito a direito, mandando vir para isso um militar estrangeiro,
+o principe de Lippe, que era da escola de um rei da Prussia que foi o
+primeiro militar do seu tempo. Não havia lavoura nem havia industria,
+porque ninguem lhe dava a protecção da rega e do adubo, e Pombal deu-lhe
+tudo isso á moda do seu tempo, que elle tambem não podia adivinhar o que
+hoje se sabe. Elle reformou os estudos e a universidade, elle fundou
+companhias e fabricas, elle partiu os dentes á inquisição, elle poz fóra
+os jesuitas, elle tirou a censura dos livros aos padres, elle acabou com
+distincções de christãos-novos e christãos-velhos, e na India e no
+Brazil acabou tambem com todas as tolices das raças, elle arreganhou os
+dentes a Roma, e soube pôr o papa no seu logar, elle bateu o pé á
+Hespanha, elle fez-se respeitar da Inglaterra, elle acabou com os
+morgados pequenos que só faziam mal á lavoura, elle não deixou que
+entrassem para padres e frades todos quantos o queriam ser, porque, se
+as cousas continuassem assim, ás duas por tres não havia senão
+cabeças rapadas em Portugal, emfim, meus amigos, é de uma pessoa pasmar
+ver que aquelle diabo de homem, que ao mesmo tempo fazia de Lisboa uma
+cidade nova e levantava uma estatua ao seu rei no Terreiro do Paço, em
+tudo poz a mão, tudo melhorou, tudo reformou, tudo arranjou, e póde-se
+dizer que virou a nação de dentro para fóra. Já se vê que fez tudo isto
+com o «posso, quero e mando.» Mas a quem é que prestou verdadeiros
+serviços? Foi á liberdade, porque tirou o povo da miseria e da
+ignorancia em que vivia, porque o livrou de ter os jesuitas por tutores,
+e assim o animou a cuidar dos seus direitos, e o preparou para um bello
+dia reclamar a liberdade. Foi cruel, bem sei, não digo menos d'isso.
+Tratou os homens como se fossem pardaes, e praticou mesmo barbaridades
+escusadas; mas que diabo! não sei que sina é esta: reforma graúda sem
+muito sangue parece que não ha modo de se fazer; uma vez são os
+reformadores que derramam o seu proprio sangue, e então é que a reforma
+vem de Deus, como acontece com o christianismo; outras vezes os
+reformadores derramam o sangue dos outros, e então é que a reforma vem
+dos homens, como aconteceu com a revolução franceza; porque lá isso de
+regar as arvores do bem com o sangue das nossas proprias veias, Deus é
+que o ensina, que os homens só por si não são capazes de chegar a
+tanto.
+
+--Ó sr. João, exclamou o Bartholomeu, mas parece-me que tenho ouvido
+dizer que os Tavoras, o duque de Aveiro e os mais fidalgos soffreram
+tormentos do diabo ali na praça de Belem. Ora, ainda que fosse
+necessario dar cabo d'elles, acho que não era preciso atormental-os, e
+que o marquez de Pombal tinha na verdade cabellos no coração.
+
+--Não digo menos d'isso, Bartholomeu, mas ouve lá uma cousa: tu sabes
+porque é que os fidalgos foram executados, não sabes? Foi por darem uns
+tiros no rei. Elles queriam livrar-se do ministro, o rei não largava o
+ministro, cada vez se lhe agarrava mais, como depois mostrou, fazendo-o
+conde de Oeiras e marquez de Pombal, e então lembraram-se de dar cabo de
+D. José. Ora sabes tu como fôra castigado em França, pouco tempo antes,
+um homem que tinha querido matar o rei Luiz XV? Foi posto a tormentos,
+depois nas feridas abertas deitaram-lhe chumbo a ferver, e a final
+ataram-n'o aos rabos de quatro cavallos, e esquartejaram-n'o. E comtudo
+ninguem diz que Luiz XV tivesse cabellos no coração. As cousas faziam-se
+assim no seu tempo, não foi o marquez de Pombal que as inventou.
+
+Hão de vocês dizer: Este diabo gaba sempre as tyrannias por toda a
+parte. Já defendeu D. João II, agora defende o marquez de Pombal. Eu não
+as louvo, rapazes. Se vivesse n'esses tempos e podesse, havia de berrar
+contra ellas; mas cá de longe, vendo as cousas com socego, digo que
+ninguem é perfeito, e que todos os homens têem, como dizia o tal
+engenheiro francez que esteve em Bellas, os defeitos das suas
+qualidades. Ali está o Francisco Artilheiro que foi soldado: havia de
+ter servido com muitos coroneis. Encontrou algum que fosse teso a valer
+e que ao mesmo tempo desatasse a chorar, no tempo das varadas, quando
+tinha de mandar chibatar algum soldado? Não póde ser. Estes pimpões que
+quebram todos os abusos, que põem um joelho de ferro em cima de todas as
+revoltas, fazem aos homens o mesmo que fazem ás cousas, e o dever de
+quem depois conta a historia é perceber isso tudo, e não estar a berrar
+contra aquelles que fizeram serviços ao seu paiz, só porque nem sempre
+paravam onde seria melhor que tivessem parado.
+
+Mas vamos nós ao resto da historia que d'aqui a pouco já as noites são
+mais pequenas, e mal chega o tempo para dormir a quem tem de se levantar
+com o sol. D. José morreu em 1777, e, apenas elle fechou os olhos,
+rebentou o odio que havia contra o grande ministro; ninguem quiz lá
+pensar no bem que elle tinha feito, e todos clamaram contra as suas
+crueldades. Demais a mais quem succedia a D. José era sua filha a rainha
+D. Maria I, muito beata, embirrando muito com o marquez, porque
+desconfiava que elle quizera fazer passar o throno para o filho
+d'ella, um rapazito muito esperto, chamado D. José; e então o rei a
+morrer hoje e o ministro a ser demittido ámanhã. Não houve picardia que
+lhe não fizessem. Mandaram-n'o para a sua quinta do Pombal, e, estando
+elle já doente e amargurado, moeram-n'o com perguntas porque lhe armaram
+um processo. Se podessem desfazer tudo o que elle fizera, desfaziam, mas
+a final só soltaram os presos, porque emquanto ao mais tiveram medo de
+dar bordoada no finado rei, que a final de contas respondia pelos actos
+do ministro, porque elle é que assignava as ordens. Tiraram o retrato do
+marquez da memoria do Terreiro do Paço, qué só em 1834 se tornou a pôr
+como era justo; em vez do retrato pozeram as armas de Lisboa que são um
+navio á véla, e foi então que o marquez de Pombal disse, ao saber do
+caso: Ai! Portugal que vaes a véla!
+
+Bem quizera D. Maria I admittir os jesuitas outra vez, mas não podia
+ser, porque o marquez de Pombal não só os expulsára de Portugal, mas
+fizera uma liga contra elles em toda a Europa, e conseguira que o papa
+Clemente XIV acabasse com a Ordem. Muito trabalharam os parentes dos
+Tavoras para conseguir que se désse uma sentença a declarar que era peta
+o que se dissera a seu respeito, e injusta a sentença que os condemnava;
+mas a final não conseguiram isso, porque a rainha percebeu que,
+condemnando o marquez de Pombal, a quem condemnava era ao pae.
+
+No mais tudo andou para traz, a não ser na marinha, que teve um bom
+ministro, Martinho de Mello, e n'isto de escolas que sempre se foram
+desenvolvendo. Houve alem d'isso dois homens que fizeram muito bem a
+Lisboa e ao Porto, a saber, o intendente da policia Pina Manique e o
+corregedor do Porto Francisco de Almada. É que já se não podia deixar de
+cuidar de melhoramentos; mas o que deu cabo de nós foi a birra que
+tivemos em nos metter na bulha contra a republica franceza. Isso, fallar
+em Portugal nas idéas novas, era o mesmo que fallar no diabo, e D. Maria
+I, em vez de tratar da sua vida, seguio o caminho de D. João V. Este
+ía-se metter com os turcos que lhe não faziam mal nenhum, D. Maria I
+foi-se metter com a republica franceza, que estava lá tão longe e que
+nada tinha com Portugal.
+
+O que resultou d'aqui é que mandámos uma divisão ao Russilhão a ajudar
+os hespanhoes, e uma esquadra a Toulon a ajudar os inglezes. A divisão
+do Russilhão portou-se o que se chama bem, mas depois? A Hespanha fez a
+paz com a França, e nós ficámos a olhar ao signal, a Inglaterra
+mettia-nos na dança, e depois punha-se de palanque. Tivemos de andar a
+pedir a paz á republica franceza, quasi de joelhos, e o Napoleão, que já
+n'esse tempo começava a governar em França, e que nos tinha jurado pela
+pelle, teve a habilidade de açudar a Hespanha contra nós,
+resultando d'ahi a guerra de 1801. Foi uma guerra vergonhosa. Tinhamos o
+exercito escangalhado, não fizemos senão levar bordoada, e, para
+alcançarmos paz, tivemos de pagar bom dinheiro, e de dar aos hespanhoes
+Olivença que nunca mais apanhámos. De nada nos valeram todas as
+humilhações. Em 1807, Napoleão, que já era imperador, e que andava n'uma
+lucta de morte com a Inglaterra, quiz que fechassemos os portos aos
+nossos antigos alliados. Andámos a hesitar, até que Napoleão, que não
+gostava de perder tempo, declara que a casa de Bragança deixára de
+reinar, e mette-nos cá dentro um exercito commandado pelo Junot. A
+familia real não teve senão tempo de fazer as malas e de partir para o
+Brazil, por conselho dos inglezes. Devo-lhes dizer uma cousa: a rainha
+D. Maria I endoidecera havia muito tempo, e quem governava em seu nome
+como principe regente desde 1792, era o principe D. João, seu filho mais
+velho, porque aquelle D. José, de quem lhes fallei, e que dava tantas
+esperanças, tinha morrido em 1788.
+
+Imaginem vocês como ficaria o povo com esta _partida_, e agora é que é o
+caso de se lhe chamar _partida_.
+
+Abandonado pela familia real, viu o Junot tomar conta do governo,
+agarrar no exercito portuguez, que não tinha ordem para resistir, e
+mandal-o para França servir no exercito de Napoleão, lançar
+contribuições pesadas como o diabo, e emfim tratar isto como terra
+conquistada. E, para maior vergonha, Junot invadira o paiz, no coração
+do inverno, com meia duzia de gatos, e entrára em Lisboa á frente de
+quatro soldados estropiados e esfarrapados. A vergonha de todas estas
+humilhações começou a fazer ferver o sangue aos portuguezes, e um bello
+dia rebentou a revolta no Porto. Foi como quem diz um rastilho de
+polvora. Desde o Minho até ao Algarve, não houve terra em que se não
+pegasse em armas contra os francezes. O Junot mandou as suas tropas
+esmagar as revoltas, e os francezes fizeram então cousas do arco da
+velha, mataram, roubaram, queimaram...
+
+--Ah! pae do céu! exclamou a tia Margarida, eu era bem pequenina então,
+havia de ter sete ou oito annos, mas lembra-me do que minha mãe me
+contava. Havia um que ella chamava o _Maneta_, que isso parece que era o
+diabo em pessoa.
+
+--Era o general Loison, que não tinha um braço. Em Evora fez elle o
+demonio, mas, por mais que fizessem, não conseguiam acabar com a
+revolta. Era pobre gente do povo, sem armas, sem disciplina, sem chefe,
+que assim se levantava contra os francezes, e estes davam-lhe para baixo
+facilmente, mas a gente levava aqui em Bellas, levantava-se em Cintra,
+íam os francezes a Cintra, levantavam-se os de Bellas. Demais a mais,
+cada qual faz a guerra como póde. Lá em batalha não podiam os
+nossos medir-se com os soldados de Napoleão. O que faziam? Davam-lhes
+caça; em os apanhando separados, carga para cima d'elles. Era facada,
+era paulada, era tiro de bacamarte, era o que podia ser, com os diabos!
+que um povo é como uma pessoa, quando o querem pisar aos pés, defende-se
+com unhas e dentes. Mas n'isto os inglezes, que andavam á tóca de ver se
+podiam saír da sua ilha e desembarcar n'algum sitio onde podessem
+incommodar Napoleão, assim que viram que Portugal estava revoltado,
+desembarcaram aqui um exercito commandado por um sugeito chamado
+Wellington, que, se não era tão bom general como Napoleão, pelo menos
+parece-me que ainda seria mais feliz do que elle. O Junot, que não
+passava de ser um valentão, foi batido pelos inglezes na Roliça e
+Vimeiro, onde os nossos, já se vê, tambem combateram ao lado das fardas
+vermelhas, que é, como vocês sabem, o uniforme inglez, e, para se safar
+de Portugal, teve de capitular. É verdade que o patife apanhou uma
+capitulação, que a não podia ter melhor se fosse elle que houvesse dado
+a tunda nos inglezes. Levou-nos tudo o que nos tinha roubado, e nem se
+fallou nos nossos soldados que lá andaram, contra vontade sua, a servir
+no exercito de Napoleão.
+
+--Ó sr. João, acudiu o Manuel da Idanha, vocemecê ha de desculpar
+uma pergunta, mas parece-me que ninguem póde vir por terra de França a
+Portugal, sem passar pela Hespanha, não é verdade?
+
+--É sim, rapaz; mas que queres tu dizer com isso?
+
+--Quero dizer que não percebo como foi que o Junot cá veio. Então os
+hespanhoes deixaram-n'o passar?
+
+--Fizeram mais alguma cousa, vieram com elle, porque n'esse tempo
+estavam ainda muito manos com os francezes, tanto que repartiram entre
+si Portugal como quem reparte um melão, uma talhada para este, outra
+talhada para aquelle, etc. Mas o Napoleão surripiou aos hespanhoes a sua
+familia real, e fez rei de Hespanha um seu irmão chamado José, de fórma
+que, quando nós nos revoltámos, revoltaram-se elles tambem, e começámos
+uns e outros á lambada aos francezes.
+
+Entretanto cá se arranjára um governo; tratou elle de organisar o
+exercito, que ainda era á moda de 1640, e que só precisava de um general
+como o principe de Lippe para ficar uma joia. Esse general appareceu,
+foi um inglez chamado Beresford, que n'um abrir e fechar de olhos poz
+tudo a direito. O que é certo, meus amigos, é que na guerra da
+Peninsula, que durou seis annos, os nossos soldados, combatendo ao lado
+dos soldados inglezes, passavam por ser tão bons como elles e
+talvez melhores. Já se vê que tinha sido necessario virem muitos
+officiaes inglezes para os nossos regimentos, porque a officialidade
+portugueza estava toda dispersa, uns tinham ido para França, outros para
+o Brazil, e outros, diga-se a verdade, não prestavam para nada.
+
+--Ó sr. João, dá licença que lhe faça uma pergunta? interrompeu de novo
+o Manuel da Idanha.
+
+--Faze, rapaz, podéra! Pois então para que estou eu aqui?
+
+--Porque é que se chamou a essa guerra a guerra da Peninsula?
+
+--Não te disse eu, rapaz, no principio d'esta conversa, que Portugal e a
+Hespanha juntos formavam uma peninsula, quer dizer quasi uma ilha,
+porque a cérca o mar por toda a parte menos por um lado, que é onde pega
+com a França pelos Pyrenéus?
+
+--Disse, sim senhor.
+
+--E não te acabei de dizer que, quando nos revoltámos contra Napoleão,
+revoltaram-se tambem os hespanhoes, e que desatámos uns e outros á
+pancada aos francezes?
+
+--Tambem é verdade.
+
+--Pois então ahi tens tu: a guerra era de Hespanha e de Portugal, por
+conseguinte era a guerra da Peninsula.
+
+--Ora tambem quero fazer uma pergunta, disse a tia Margarida.
+
+--Pois então, tia Margarida! Era o que faltava era que as mulheres não
+tivessem a palavra.
+
+--O que você precisava era de um puxão de orelhas, mas emfim lá vae a
+pergunta. Eu, sempre que minha mãe fallava n'essas cousas, ouvia-lhe
+dizer que os francezes eram muito maus, mas que os inglezes talvez ainda
+fossem peores. Ora você diz que os inglezes vieram ajudar-nos...
+
+--Dizia muito bem a sua mãe, tia Margarida, mas eu tambem não digo mal.
+Soldados inglezes sempre foram abrutados, principalmente em estando com
+o vinho. Nunca vieram a Portugal senão ajudar-nos, e nunca tambem cá
+vieram que não ficasse tudo a berrar contra elles. Olhem no tempo de D.
+Fernando. Parece-me que lhes contei que, vindo elles combater ao nosso
+lado contra os hespanhoes, fizeram o que o demonio não fez. E, agora que
+já respondi ás suas perguntas, vou continuar a minha historia.
+
+O Junot foi posto fóra em 1808, os inglezes então viraram-se contra os
+francezes que estavam na Hespanha, e metteram-se pela Galliza dentro,
+mas o Soult, apanhando-os lá, deu-lhes uma tareia formidavel, e depois
+veio sobre Portugal e entrou no Porto. A gente do Porto, a fugir dos
+francezes, metteu-se na ponte de barcas que então havia sobre o
+Douro, para passar para o outro lado; a ponte abateu e morreram milhares
+de pessoas.
+
+--Ah! bem sei! interrompeu a tia Margarida, diz que foi o dia de juizo.
+
+--Ora se foi! os francezes pararam no Porto, mas nós e os inglezes
+fomo-nos a elles d'ahi a tempo e pozemol-os fóra. O Napoleão, embirrando
+com o caso, mandou um exercito commandado pelo marechal Masséna, um dos
+seus melhores generaes, com ordem de atirar o Wellington ao mar; mas o
+Wellington, que era homem avisado, e que não gostava de tomar banhos de
+choque, aproveitára o tempo a arranjar as linhas de Torres Vedras, de
+traz das quaes se metteu. O Masséna bateu com as ventas nas linhas, vio
+que não podia fazer nada, foi-se embora, e nós logo atraz d'elle.
+
+Para encurtar rasões, em quatro annos de campanha, fomos a pouco e pouco
+empurrando os francezes pela Hespanha fóra, em 1814 entrámos em França
+de embrulhada, e, como os russos, os austriacos e os prussianos tambem
+entraram por outro lado, levando o Napoleão adiante de si, caíu aquella
+caranguejola toda, o Napoleão teve de dar a sua demissão de imperador, e
+nós ficámos livres dos francezes.
+
+Dois annos depois, em 1816, morreu a rainha D. Maria I no Brazil, sem
+que ninguem, por assim dizer, désse por isso. O principe regente tomou
+o nome de D. João VI e continuou tudo como até ahi.
+
+Entretanto em Portugal estava tudo descontente. O povo levantára-se
+contra os francezes por sua conta e risco, e parecia-lhe historia que o
+rei, que fugira, continuasse a não fazer caso nenhum d'elle.
+
+Em Hespanha tinham-se reunido côrtes e arranjára-se uma constituição
+pela qual se acabava com o poder absoluto dos reis. Em Portugal, se não
+se fizera o mesmo, não fôra por falta de vontade, mas os inglezes não
+deixavam. Todos percebiam, porém, que se não podia voltar á antiga, como
+se não se tivesse passado cousa nenhuma no intervallo. Por outro lado a
+teima do rei em ficar no Brazil já nos ía fazendo chegar a mostarda ao
+nariz, tanto mais que, ao passo que havia por cá muita miseria, estava
+sempre a ir dinheiro para o Brazil, e não só dinheiro mas tropa tambem,
+porque D. João VI, em 1817, lembrára-se de juntar Montevideu ao Brazil,
+como se o Brazil ainda fosse pequeno, aproveitando para isso a revolta
+das colonias hespanholas. Emfim, a conservação de Beresford e dos
+coroneis inglezes no quadro do exercito portuguez incommodava os nossos
+officiaes, e descontentava a nação.
+
+Em 1817, descobre-se ainda por cima uma conspiração liberal, dão como
+implicado n'ella, com provas de cá cá rá cá, um general muito
+estimado, Gomes Freire de Andrade, de quem diziam que Beresford tinha
+ciumes, e enforcam-n'o. Tudo isto ía fazendo ferver o sangue aos
+portuguezes, e, quando em 1820 começou a haver revoluções liberaes por
+toda a parte, rebenta tambem uma revolução liberal no Porto, espalha-se
+logo por todo o reino, chega a Lisboa, e pega-se ao Brazil. D. João VI é
+obrigado a acceital-a, e a vir para Portugal, a mandar embora os
+officiaes inglezes, e a assignar uma constituição que as côrtes fizeram;
+mas os governos lá de fóra, e logo os mais poderosos, acharam perigoso
+que se tornasse a fallar em liberdade e constituições, e decidiram que
+viesse um exercito francez pôr a mordaça na boca aos liberaes da
+Hespanha, emquanto um exercito austriaco ía fazer o mesmo aos da Italia.
+Apenas cá chegou a noticia, os amigos do absolutismo, que tinham por
+chefe o infante D. Miguel, segundo filho do rei, levam este para Villa
+Franca, e deitam abaixo a constituição. Mas o que a fez caír não foram
+elles, foram os passos dos soldados francezes que já a essas horas
+andavam por Hespanha.
+
+Entretanto o Brazil, onde ficára governando o principe D. Pedro, que era
+o filho mais velho do rei, fazia-se independente. Antes d'elle tinham
+feito o mesmo as colonias visinhas que pertenciam á Hespanha, e
+cincoenta annos antes as que pertenciam á Inglaterra. No Brazil já
+houvera duas tentativas de revolta, e ambas tinham sido afogadas em
+sangue, uma em 1789, outra em 1817. A final venceram. Accusam muito D.
+Pedro de se ter feito imperador do Brazil, e de se haver revoltado
+contra seu pae. Elle não se revoltou, mas só podia fazer uma de duas
+cousas, ou ir com os brazileiros, ou pôr-se no andar da rua. Então esses
+figurões imaginavam que um paiz rico, grande e forte, está agora para
+receber ordens de outro mais pequeno, ou maior que elle seja, e que fica
+de mais a mais do outro lado do mar? Ora, historias da vida! e não se
+queixem d'isso. É ordem das cousas. As colonias são como os filhos. A
+gente educa-os, trata-os, deixa-os ir crescendo. Quando são maiores
+emancipam-se. E ninguem tem que estranhar. Foi o que aconteceu com o
+Brazil. Estava maior, emancipou-se. Perdemos o Brazil em 1825, em 1826
+morreu D. João VI. Os seus ultimos dias foram amargurados. Tivera guerra
+com o filho mais velho que se revoltára com o Brazil; estivera para ser
+desthronado pelo filho mais novo, D. Miguel, que o chegára a prender na
+Bemposta, e que elle depois tivera que mandar para fóra do reino; a
+mulher, D. Carlota Joaquina, que estava sempre ás turras com elle, nunca
+lhe déra senão desgostos. Falleceu ralado o pobre do rei, que era uma
+excellente pessoa, amigo de tomar o seu rapé com socego, e que para sua
+desgraça governára no tempo da revolução franceza, no tempo de
+Napoleão, e no tempo da revolução de 1820. E ha de a gente acreditar no
+rifão: Dá Deus o frio conforme a roupa.
+
+E, como eu tambem estou com frio, rapazes, vou até casa á procura de
+roupa, e no proximo domingo acabaremos com isto.
+
+
+
+
+DECIMO SERÃO
+
+Historia contemporanea.--D. Pedro IV.--A Carta Constitucional.--Regencia
+da infanta D. Izabel Maria.--D. Miguel, rei absoluto.--Sublevação do
+Porto.--Emigração.--A ilha Terceira.--O conde de Villa
+Flor.--Perseguição aos liberaes.--A esquadra franceza no Tejo.--D. Pedro
+IV põe-se á frente dos liberaes.--Desembarque no Mindello.--Cêrco do
+Porto.--Expedição do Algarve.--Batalha do Cabo de S. Vicente.--Entrada
+das tropas do duque da Terceira em Lisboa, a 24 de julho.--Cêrco de
+Lisboa.--Batalhas de Asseiceira e Almoster.--Convenção de Evora
+Monte.--Reinado de D. Maria II.--Revolução de Setembro.--Constituição de
+1838.--Restauração da Carta.--A Maria da Fonte.--A Junta do Porto.--A
+intervenção estrangeira.--A Regeneração.--Reinado de D. Pedro V.--A
+febre amarella.--Reinado de D. Luiz.--Conclusão.
+
+
+--Vocês percebem, meus amigos, principiou o João da Agualva, que, tendo
+de lhes contar agora acontecimentos em que tomou parte muita gente que
+ainda está viva e sã, e não querendo offender ninguem, não posso estar
+com muitas reflexões. Quem succedeu a D. João VI foi D. Pedro IV, já
+então imperador do Brazil. Este, que era um principe que percebia as
+cousas, vio bem que o nosso tempo já não era tempo para
+absolutismos, e antes quiz dar elle uma constituição do que ir o povo
+arrancar-lh'a. Mandou portanto para Portugal a Carta, dizendo ao mesmo
+tempo que abdicava em sua filha D. Maria, a qual havia de casar com seu
+tio o infante D. Miguel, e, emquanto D. Miguel não voltava para
+Portugal, nomeou regente a infanta D. Izabel Maria, que vocês haviam de
+conhecer muito bem.
+
+--Ora se conhecemos! morava ali em Bemfica!
+
+--Tal qual! morreu ha cousa de tres ou quatro annos. A Carta
+Constitucional ficou sendo lei do reino, apezar de algumas revoltas, mas
+o infante D. Miguel, apenas chegou a Lisboa em 1828, fecha as côrtes,
+atira com a Carta de pernas ao ar e faz-se proclamar rei absoluto. A
+guarnição do Porto não está pelos ajustes, e revolta-se, mas tem de
+fugir para Hespanha. Tudo o que eram liberaes, e que poderam safar-se,
+emigraram uns para França, outros para Inglaterra. Mas o que é certo é
+que o povo todo estava com D. Miguel. Porque? Como póde haver um povo
+que não goste de liberdade? Vão lá explical-o! Os padres e os frades
+estavam quasi todos ao lado de D. Miguel, e levavam comsigo muita gente.
+
+Mas a ilha Terceira não esteve pelos autos, e não acceitou o
+absolutismo. Apenas isso constou, correram os emigrados para essa ilha,
+o conde de Villa Flor tomou conta do governo, e ali resistio ás
+esquadras de D. Miguel. Este, entretanto, com o devido respeito,
+fazia tolices graúdas, e a maior era perseguir os liberaes a ferro e
+fogo. A forca estava sempre armada, as prisões sempre atulhadas, e os
+caceteiros não deixavam ninguem socegado. Isto de fazer martyres é o
+diabo. Para a arvore da liberdade não ha rega como o sangue dos seus
+filhos.
+
+Ora, além d'isso, emquanto o governo francez se mostrava pouco amigo da
+liberdade, tinha D. Miguel as sympathias da França, mas depois da
+revolução de 1830 aconteceu o contrario. O governo de D. Miguel caíu na
+asneira de perseguir uns francezes. D'ahi resultou vir uma esquadra
+franceza ao Tejo e levar os navios que ahi estavam. Ao mesmo tempo D.
+Pedro, que tivera os seus dares e tomares com os brazileiros, abdicou a
+corôa imperial do Brazil, e veio tomar o commando dos defensores de sua
+filha. Põe-se á frente d'elles, que não eram muitos, eram 7:500,
+desembarca no Mindello a 8 de julho de 1832, mette-se no Porto, e ahi
+resiste mais de um anno aos soldados de D. Miguel, que eram muito
+valentes, mas mal commandados. Envia ao Algarve em 1833 meia duzia de
+gatos, debaixo das ordens do conde de Villa Flor, já então duque da
+Terceira, n'uma pequena esquadra, que primeiro fôra commandada por um
+inglez chamado Sertorius, que ainda vive, e que o estava sendo por outro
+inglez chamado Napier. Este desembarca o duque da Terceira no
+Algarve; depois vae-se á esquadra miguelista e derrota-a no cabo de S.
+Vicente. O duque da Terceira marcha sobre Lisboa, bate na cova da
+Piedade os miguelistas, commandados pelo Telles Jordão, que tinha sido
+um tyranno para os presos liberaes, e que ali morreu, e entrou em Lisboa
+no dia 24 de julho de 1833. D. Pedro vem para Lisboa que os miguelistas
+cercam. Elle e os seus dois marechaes, duques da Terceira e de Saldanha,
+obrigam os miguelistas a retirar para Santarem. Depois o duque de
+Saldanha por um lado bate os miguelistas em Almoster, o duque da
+Terceira por outro bate-os na Asseiceira, e D. Miguel assigna a 25 de
+maio de 1834 a convenção de Evora Monte, pela qual o seu exercito
+depunha as armas, e elle abandonava Portugal. Como se esperasse
+unicamente o fim da sua empreza para terminar tambem a sua vida, D.
+Pedro IV veiu aqui morrer a Queluz no dia 24 de setembro de 1834. Podem
+para ahi pensar d'elle o que quizerem, meus amigos, mas o homem que,
+tendo nascido no throno, passou a sua vida a regeitar corôas, e a
+combater, como um soldado valente, pela liberdade dos povos, merece bem
+as tres estatuas que no Porto, em Lisboa e no Rio de Janeiro, mostram
+que, ao menos depois da sua morte, não foram ingratos com elle os
+portuguezes e os brazileiros.
+
+Succedia-lhe a senhora D. Maria II, que viveu bem pouco tempo, e
+teve uma vida bem atormentada. Logo em 1836 um partido, que queria mais
+liberdades que as da Carta fez a revolução de setembro, e em 1838 veiu
+uma nova constituição. Contra ella se fazem muitas revoltas, até que em
+janeiro de 1842 Costa Cabral, depois conde de Thomar, deita abaixo a
+constituição de 1838, e põe outra vez a Carta de pé. Governou elle muito
+tempo, mas, diga-se a verdade, um poucochinho á bruta. D'ahi vieram mais
+revoluções, e a maior de todas que foi a da Maria da Fonte, em 1846, em
+que metade do reino obedecia á Junta do Porto, e a outra metade ao
+governo nomeado pela rainha. Batidos em Val-Passos, em Torres Vedras, e
+no Alto do Viso, os _patuléas_, como se chamava aos partidarios da
+junta, são obrigados a depor as armas pelos inglezes e pelos hespanhoes
+que mandaram uns uma esquadra, os outros um exercito para restabelecerem
+aqui o socego. Mas no fundo estava tudo em braza, e quando em 1851 o
+duque de Saldanha se levantou contra o conde, hoje marquez de Thomar,
+foi tudo atraz d'elle. Reuniram-se côrtes que introduziram umas mudanças
+na Carta, e d'ahi por diante nunca mais houve revoltas de consideração.
+Pegaram os governos a fazer estradas e caminhos de ferro, e lá de
+partidos é que eu não entendo. Em 1853 morria a senhora D. Maria II,
+considerada por todos como uma santa senhora, e uma santa mãe, e
+succedeu-lhe seu filho, o senhor D. Pedro V, sendo regente nos
+primeiros dois annos o senhor D. Fernando que vocês todos conhecem. O
+sr. D. Pedro V era uma joia, como sabem. Quando em 1857 veio a febre
+amarella a Lisboa, andou elle pelos hospitaes, a consolar os doentes, e
+a dar coragem e exemplo a todos. Tambem quando em 1859 morreu a boa
+rainha Estephania, sua mulher não houve portuguez que a não chorasse com
+elle, e quando em 1861 morreu elle tambem quasi de repente, com os seus
+dois irmãos, o senhor D. Fernando e o senhor D. João, a dôr do povo foi
+tamanha que chegou a haver tumultos, porque até se desconfiava que
+aquillo não fosse natural. Subio ao throno o senhor D. Luiz que hoje
+reina, e aqui portanto acaba a historia. Sempre direi, com tudo, que não
+são muitos os paizes por esse mundo onde os povos ainda hoje chorem
+pelos reis, e que isso vem de serem os nossos tão amigos da liberdade
+como são e tem sido, graças a Deus. E aqui, meus amigos, acabo a minha
+tarefa; o que eu desejo, rapazes, é que vocês achem que não os massou
+muito o pobre do João da Agualva, e que entendam que empregaram melhor o
+seu tempo a ouvir as minhas historias, do que a beber decilitros na
+taverna do Funileiro.
+
+FIM
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Historia alegre de Portugal, by
+Manuel Pinheiro Chagas
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL ***
+
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+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+ <title>Historia Alegre de Portugal, por Pinheiro Chagas</title>
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+Project Gutenberg's Historia alegre de Portugal, by Manuel Pinheiro Chagas
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+
+Title: Historia alegre de Portugal
+ leitura para o povo e para as escolas
+
+Author: Manuel Pinheiro Chagas
+
+Release Date: July 13, 2009 [EBook #29394]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL ***
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+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
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+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 2em;">HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.5em;">HISTORIA ALEGRE</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">DE</p>
+
+<p style="font-size: 2.5em;">PORTUGAL</p>
+
+<p>LEITURA PARA O POVO E PARA AS ESCOLAS</p>
+
+<p style="font-size: 0.8em;">POR</p>
+
+<p>M. PINHEIRO CHAGAS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p style="font-size: 0.8em;"><small>DAVID CORAZZI&mdash;EDITOR</small><br>
+
+EMPREZA HORAS ROMANTICAS<br>
+
+<small>Lisboa&mdash;Rua da Atalaya&mdash;40 a 52</small><br>
+
+1880</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<p style="text-align:center;">Ao Ill.<sup>mo</sup> e Ex.<sup>mo</sup> Sr.</p>
+
+<p style="text-align:center;">CONSELHEIRO</p>
+
+<p style="text-align:center;">MIGUEL MARTINS DANTAS</p>
+
+<p style="text-align:center;">Ministro de Portugal em Londres<span
+class="pn"><a name="pg_VI">{VI}</a></span></p>
+
+<p><span class="pn"><a name="pg_VII">{VII}</a></span></p>
+
+<p style="text-align:right;">
+Ill.<sup>mo</sup> e Ex.<sup>mo</sup> Am.<sup>o</sup> e Sr.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Ha dois ou tres annos, desejando eu obter de Inglaterra um livro que fôra
+citado no parlamento por um deputado da opposição ao ministerio Beaconsfield,
+dirigi-me a v. ex.ª, meu collega na Academia, perguntando-lhe se seria possivel
+alcançal-o. A resposta de v. ex.ª não se fez esperar. Enviou-me o livro pedido,
+que obtivera com summa difficuldade, e juntamente com elle quantos documentos
+officiaes se referiam á questão da escravatura, questão de que esse livro se
+occupava, e que então me captivava mais particularmente a attenção. Foi mais
+longe ainda a amabilidade de v. ex.ª; enviou-me um livrinho francez, de que eu
+não tinha conhecimento, intitulado <em>Entretiens populaires sur l'histoire de
+France</em>, perguntando-me se não seria possivel fazer, com relação<span
+class="pn"><a name="pg_VIII">{VIII}</a></span> á historia portugueza, um livro
+n'esse genero.</p>
+
+<p>Li o livro e achei-o encantador. Tempos depois, encontrei-me com v. ex.ª em
+Lisboa, e disse-lhe que ía tentar o emprehendimento a que v. ex.ª me incitára,
+e pedi-lhe licença para lhe dedicar o livro, que fosse o fructo d'essa
+tentativa. É o que faço agora. Como v. ex.ª verá, o plano da <em>Historia
+alegre de Portugal</em> é diversissimo do dos <em>Entretiens populaires sur
+l'histoire de France</em>, mas a <em>Historia alegre</em> vae escripta tambem
+no tom faceto, folgazão, singelo e popular que achei original, picante e util
+no livro francez que v. ex.ª me recommendava.</p>
+
+<p>Folgo de ter ensejo de mostrar publicamente a minha gratidão a v. ex.ª pelas
+provas de estima e de consideração que me dispensou n'esta e n'outras<span
+class="pn"><a name="pg_IX">{IX}</a></span> occasiões, e o alto apreço em que
+tenho o talento e o saber do escriptor distinctissimo, que renovou
+completamente, com os seus <em>Faux Don Sébastien</em>, o estudo de uma época
+interessante da historia portugueza, que nos deu emfim n'esse primoroso livro
+um estudo profundamente moderno, um estudo, como Gachard os sabe fazer, de um
+dos episodios mais curiosos e mais romanescos da nossa vida nacional.</p>
+
+<p style="text-align:right;">De v. ex.ª</p>
+
+<p>Cruz Quebrada, 25 de outubro de 1880.</p>
+
+<p style="text-align:right;">Att.<sup>o</sup> v.<sup>or</sup> e
+ob.<sup>o</sup></p>
+
+<p style="text-align:right;"><em>Pinheiro Chagas</em>.<span class="pn"><a
+name="pg_X">{X}</a><br><a name="pg_XI">{XI}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1>INTRODUCÇÃO</h1>
+
+<p>O sr. João Martins, mais conhecido pelo nome de João da Agualva, porque
+morava na pequena aldeia d'este nome, que fica entre Bellas e o Cacem n'um
+sitio árido e feio, fôra mestre de instrucção primaria numa das freguezias do
+concelho de Cintra. Conseguira a sua aposentação, e viera para a sua aldeia
+natal amanhar umas terras que ali possuia, e cujo rendimento o impedira já de
+morrer de fome nos tempos, em que o Estado lhe pagava munificentemente os
+noventa mil réis annuaes, com que remunerava n'essa época os primeiros guias do
+homem nos ásperos caminhos da instrucção. Mas o João da Agualva era homem de
+uma illustração excepcional. Convivera muito tempo com o prior de Monte-lavar,
+padre instruido que emprestára<span class="pn"><a
+name="pg_XII">{XII}</a></span> ao bom do professor os livros da sua limitada
+bibliotheca; em Bellas tambem se relacionára com um engenheiro francez,
+empregado nas obras de agua de Valle de Lobos, de Broco e de Valle de Figueira,
+o qual tomára gosto em desenvolver o espirito intelligente e ávido de saber do
+velho professor. Apezar d'isto vivia modestamente na sua pobre casa, lidando
+com os saloios que o tratavam com verdadeiro respeito, e tinham por elle um
+affecto em que entrava um pouco de veneração.</p>
+
+<p>Era no inverno, e o João da Agualva estava passando a noite em casa de uma
+boa velha, a tia Margarida, viuva de um caseiro do marquez de Bellas, e mãe do
+Francisco Artilheiro, que, depois de ter servido cinco annos em artilheria,
+como indicava o seu sobre-nome, viera para Bellas ajudar a mãe a cuidar de umas
+leiras de terra, que a velhinha herdára do marido. Um grupo de saloios de
+Bellas e das aldeias proximas, sabendo que o João da Agualva viera para ali
+seroar, tinham vindo tambem, desejosos de ouvir algumas das historias que o
+velho ás vezes contava e que entretinham agradavelmente a noite. N'essa
+occasião, porém, o professor estava macambusio, e, quando o velho Bartholomeu,
+irmão da tia Margarida, que era dos que mais gostavam de o ouvir, lhe pediu que
+contasse alguma das suas historias, o bom do João da Agualva abanou
+negativamente a cabeça.</p>
+
+<p>&mdash;Não estou hoje com disposição para historias da<span class="pn"><a
+name="pg_XIII">{XIII}</a></span> carochinha, disse elle, e sabem vocês? Tenho
+andado a matutar n'uma cousa. Não é uma vergonha que vocês saibam de cór as
+alteiadas historias de cousas que nunca succederam, nem podiam succeder, e não
+saibam ao mesmo tempo nem o que foram seus paes nem os seus avós, nem o que
+fizeram, nem como elles viveram, nem o que succedeu n'esta boa terra de
+Portugal, que nós todos regamos com o nosso suor, que hoje nada vale, mas que
+deu brado no mundo pelas façanhas que os nossos praticaram?</p>
+
+<p>&mdash;Tomára eu saber tudo isso, sr. João da Agualva, disse o Manuel da Idanha,
+rapazote de cara esperta, moço de lavoura do sr. Garignan, o antigo dono de
+collegio, que hoje reside na aldeia da Idanha, a cousa de quinhentos metros de
+Bellas, tomára eu saber tudo isso, mas como ha de ser!? É verdade que, graças a
+Deus, sei ler e escrever, e lá o patrão emprestou-me uma vez uns livros de
+historia que eu lhe pedi, mas, mal os comecei a ler, deu-me o somno. Diziam á
+gente os nomes dos reis e os filhos que tinham tido, e as batalhas que tinham
+ganho, e mais umas lenga-lengas de que não percebi patavina. Ora, sr. João da
+Agualva, eu, para dormir, graças a Deus, ainda não preciso de ler historia.</p>
+
+<p>&mdash;Mas que diriam vocês, tornou o velho professor, se eu, n'estes nossos
+serões, lhes contasse, em vez de contos de fadas, e de historias de Carlos
+Magno, a historia do que succedeu em Portugal? Talvez vocês me<span
+class="pn"><a name="pg_XIV">{XIV}</a></span> entendessem, quer-me parecer que
+se não aborreceriam muito, e, em todo o caso, se se enfastiassem, diziam-m'o
+francamente, e eu não continuava, porque lá para massador é que não sirvo.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! sr. João, exclamou o Manuel da Idanha, isso é que era um regalo!</p>
+
+<p>Os outros não disseram palavra, e o João, que os percebeu, riu-se para
+dentro, e fingiu-se desentendido.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, vá feito, eu hoje estou cançado, porque já fui a pé ao Sabugo
+tratar da compra de um boi, mas amanhã é domingo. Venham vocês á noite aqui
+para casa da tia Margarida, e eu começarei a minha historia.</p>
+
+<p>No domingo á noite ninguem faltou; mas, se vieram, foi pelo respeito que
+tinham ao João da Agualva, não porque esperassem divertir-se muito. O
+Bartholomeu já abria a bôca ainda antes do João da Agualva principiar. Mas o
+João chegou-se mais para o lume, porque a noite estava fria a valer, sorriu-se,
+e principiou como o leitor verá no capitulo immediato.<span class="pn"><a
+name="pg_1">{1}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>PRIMEIRO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">O que era Portugal.&mdash;Os seus primeiros habitantes.&mdash;As
+colonias estrangeiras.&mdash;Os phenicios.&mdash;Os gregos.&mdash;Os carthaginezes.&mdash;Os
+romanos.&mdash;Viriato.&mdash;Sertorio.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, começou o João da Agualva, é de saber que esta terra em que
+nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se alguem se lembrasse de fallar, aqui
+ha cousa de uns tres ou quatro mil annos ou mesmo só de mil annos, em Portugal
+e em portuguezes, havia de ver como todos ficavam embasbacados sem perceber
+patavina. Isto lá para os antigos era tudo Hespanha, desde os cocurutos dos
+Pyrinéus, que são uns montes que separam a Hespanha da França, até essas aguas
+do mar que cercam por todos os lados a nossa terra, mais a dos hespanhoes, e
+até por estar este pedação de terra cercado de agua por toda a parte, menos
+pela banda dos Pyrinéus, é que se chama a isto <em>peninsula</em>,<span
+class="pn"><a name="pg_2">{2}</a></span> que quer dizer uma cousa que é quasi
+uma ilha, mas que o não vem a ser de todo.</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei, bem sei! peninsula é onde houve uma guerra em que entrou meu avô!
+exclamou o fallador do Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Mette a viola no sacco, Manuel, quem muito falla pouco acerta. Lá
+chegaremos á guerra da peninsula. Roma e Pavia não se fez n'um dia.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, vá lá vocemecê contando a sua historia.</p>
+
+<p>&mdash;Como eu ía dizendo, esta peninsula, a que se chama Hespanha e Portugal,
+era então só Hespanha. Hespanhoes éramos nós todos...</p>
+
+<p>&mdash;Menos eu! acudiu o Bartholomeu, levantando-se todo furioso, hespanhol é
+que nunca fui, nem sou, nem serei. Vae aqui tudo raso, se...</p>
+
+<p>&mdash;Espera, homem de Deus! Que tem que tudo isto fosse hespanhol se nunca mais
+o ha de ser? Tambem a Hespanha, e a França, e a Inglaterra, e a Italia, e a
+Grecia, e o Egypto foi tudo imperio romano, e vae lá dizer agora a essas nações
+todas que se sujeitem ao mesmo governo! Tambem a França d'antes se chamava
+Gallia e estendia-se pela Belgica fóra, e mais pela Suissa, e, se o Gambetta,
+ou quem é que governa lá na França, quizesse por isso empolgar a Suissa e a
+Belgica, ía ahi em toda a Europa uma berraria de seiscentos demonios.<span
+class="pn"><a name="pg_3">{3}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, resmungou o Bartholomeu sentando-se de mau humor, mas não me
+digam a mim que eu fui hespanhol.</p>
+
+<p>&mdash;Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram cá n'este canto de
+terra é que ninguem sabe. Seriam uns iberos, que fallavam uma lingua
+arrevesada, assim a modo similhante á que fallam hoje os hespanhoes das
+Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não posso dizer. O que sei
+é que, quando a Hespanha começou a ser conhecida, havia aqui uma sucia de povos
+que era uma cousa por demais, turdetanos para um lado, celtiberos para outro,
+ilergetas para aqui, bastetanos para acolá. Estava até ámanhã a dizer-lhes
+nomes estramboticos, se não preferisse fallar-lhes só nos nossos avós, cá nos
+que moraram na nossa terra.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que é! bradaram todos em côro.</p>
+
+<p>&mdash;Pois muito bem! Saibam vocês que não era um povo só. No Algarve e n'um
+pedaço do Alemtejo havia os <em>cuneenses</em>, no resto do Alemtejo, na
+Estremadura e na Beira moravam os lusitanos, e lá para cima para o Douro, para
+o Minho e mais para Traz-os-Montes moravam os gallegos.</p>
+
+<p>&mdash;Os gallegos! exclamou o irritavel Bartholomeu, veja lá como falla, sr.
+João da Agualva, olhe que o pae de minha mulher veiu de Traz-os-Montes, e meus
+sogro não era nenhum gallego, ouviu?<span class="pn"><a
+name="pg_4">{4}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Valha-te Deus, Bartholomeu, então tu cuidas que os gallegos andam todos
+com o barril ás costas, e são todos uns grosseirões como os aguadeiros dos
+chafarizes de Lisboa? Pois digo-te, e depois t'o mostrarei, que de todos os
+povos lá das Hespanhas foram os gallegos os que mais depressa se poliram. Mas,
+cala-te bôca, não vá o carro adiante dos bois, e, como tu não queres ser genro
+de um gallego, sempre te direi que os que moravam para cá do Minho não eram da
+mesma casta que os de lá. Os nossos chamavam-se <em>Bracharos</em> e os
+gallegos da Galliza chamavam-se <em>Lucenses</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda bem! murmurou o Bartholomeu, isso de <em>Bracharos</em> até parece
+que dá idéa de <em>Braga</em>.</p>
+
+<p>&mdash;E é verdade que dá, sr. Bartholomeu, lavre lá dois tentos.</p>
+
+<p>Todos se riram, e o João da Agualva continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Mas não imaginem que os nossos antepassados eram assim como nós, que
+viviam em cidades, villas e aldeias, que andavam vestidos dos pés até á cabeça,
+que tinham espingardas para a caça e para a guerra. Qual carapuça! Eram uns
+selvagens, uns lapuzes. As armas eram lanças de cobre, e o amante pedregulho,
+mais uns dardos e uma especie de escudo para se defenderem; fato pouco havia,
+cabello comprido como o das mulheres, que atavam com uma fita quando tinham de
+ir para a guerra.<span class="pn"><a name="pg_5">{5}</a></span> As mulheres é
+que tinham os seus enfeites e os seus bordados, os seus vestidos compridos,
+etc.</p>
+
+<p>&mdash;Pois já se vê que lá as meninas nunca podem passar sem arrebiques! disse o
+Zé Caneira, relanceando um olhar malicioso para a boa tia Margarida que fiava
+na sua roca ao pé da lareira.</p>
+
+<p>&mdash;Melhor para ellas, ouviu! redarguiu a velha. Que pena que não vivesses
+n'esse tempo para atares os cabellos com uma fita, quando fosses para a guerra!
+</p>
+
+<p>Como o Zé Caneira era calvo, uma gargalhada geral acolheu a observação da
+tia Margarida.</p>
+
+<p>&mdash;Em comidas não eram muito requintados, de carne de cabra é que elles
+principalmente se alimentavam, e o seu pão era cousa de pouca substancia.
+Bebiam agua, dormiam no chão, os seus barcos eram de couro, matavam gente em
+sacrificio aos seus deuses, quando tinham algum doente punham-n'o á beira da
+estrada, quem fazia algum roubo ou outro crime grave era apedrejado. Não
+passavam de ser uns selvagens. Então que querem? nem os homens nem os povos
+nascem ensinados. Todos começam assim. Valentes eram elles, isso sim, valentes
+como touros. Tiveram occasião de a mostrar, porque esta nossa terra foi na
+antiguidade uma espécie de California.</p>
+
+<p>Por muito tempo ninguem soube d'ella, e os navios da gente civilisada que
+vivia lá para o Oriente<span class="pn"><a name="pg_6">{6}</a></span> nunca
+passavam para cá do estreito de Gibraltar, até que um dia passaram os
+phenicios, gente atrevida, que queriam metter o nariz em toda a parte, e que
+sobretudo procuravam terras novas para commerciar. Acharam que lhes convinham a
+Andaluzia e o Algarve, e aqui fundaram algumas colonias, sendo Cadiz a
+principal. Como tinhamos por cá muitas minas de ouro, e os homens deram sempre
+o cavaquinho por este metal, estavam os phenicios nas suas sete quintas. Ao
+mesmo tempo outro povo civilisado do Oriente, os gregos, vieram na piugada dos
+phenicios, mas esses estabeleceram-se principalmente na Hespanha do lado de lá,
+onde hoje é a Catalunha, e o Aragão e Valencia, etc.</p>
+
+<p>Os indigenas de cá não se deram mal com os phenicios, emquanto elles se
+limitaram a trocar as suas fazendas pelo nosso ouro e outras producções, mas,
+quando viram que os taes estrangeiros começavam a fazer casa, acabaram com o
+negocio, foram aos gaditanos e deram-lhes uma tareia real.</p>
+
+<p>&mdash;Foi bem feito! observou Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Mas os phenicios, que estavam muito longe da sua terra, chamaram em seu
+soccorro os carthaginezes, que eram tambem uns phenicios, quer dizer tinham
+assim com os phenicios o mesmo parentesco que os brazileiros têem comnosco. Ora
+os cartagineses viviam aqui mais proximo, ali na Africa, ao pé de Tunis, não
+muito longe de Argel.<span class="pn"><a name="pg_7">{7}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Argel! exclamou o Francisco Artilheiro, já lá estive.</p>
+
+<p>&mdash;Já lá estiveste?</p>
+
+<p>&mdash;Já, sim senhor. Quando eu andava ao serviço, e que fui para a India, o
+vapor que me levou arribou a Argel. É uma bonita terra.</p>
+
+<p>&mdash;Já vês que não fica muito longe. Carthago era mais para o lado de lá.
+Vieram pois os carthaginezes em soccorro dos phenicios, mas gostaram da terra,
+pozeram fóra os que vinham soccorrer, e á força de bordoada, porque bons
+guerreiros eram elles, sujeitaram ao seu poder tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Mas então, tornou o Francisco Artilheiro, vocemecê diz que os nossos eram
+tão valentes?...</p>
+
+<p>&mdash;Ora, que outro me fizesse essa pergunta, vá, mas tu que foste militar!
+Quem vence é quem tem disciplina. Por mais valentes que os homens sejam, em
+combatendo sem ordem, um por aqui, outro por ali, um regimento bem formado dá
+logo cabo d'elles.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é verdade.</p>
+
+<p>&mdash;Estavam os carthaginezes senhores da Hespanha, e, como tinham posto fóra
+os phenicios, queriam tambem pôr fóra os gregos, quando estes se lembraram de
+pedir o soccorro dos romanos, que andavam ha muito tempo de rixa velha com os
+carthaginezes, e que eram dos povos mais pimpões d'aquelle tempo.</p>
+
+<p>&mdash;Vieram então os romanos? perguntou o Francisco<span class="pn"><a
+name="pg_8">{8}</a></span> Artilheiro que estava seguindo com interesse a
+narrativa.</p>
+
+<p>&mdash;Não tiveram tempo de vir, porque um tal Annibal, rapasote dos seus vinte e
+cinco annos, e que dizem até que era filho de uma lusitana, succedendo no
+commando dos carthaginezes a seu pae Amilcar, não esperou que elles viessem,
+correu a Sagunto, uma das taes colonias gregas, tomou-a e queimou-a, e depois
+sae da Hespanha, atravessa os montes Pyrinéus e mais os montes Alpes, que
+parecia que tinha mesmo o diabo no corpo, bate os romanos aqui, derrota-os
+acolá, escangalha-os mais alem, e ás duas por tres, se continua assim de vento
+em popa, era uma vez Roma. Porém, os romanos, que eram tambem levadinhos da
+breca, nunca desanimaram, e, apesar de estarem de corda na garganta, tiveram
+artes de mandar para cá um exercito, de fórma que, emquanto Annibal saía por
+uma porta, entravam os romanos por outra. O atrevimento ía-lhes saíndo caro,
+isso é verdade, mas a fortuna virou, e o que é certo é que d'ahi a pouco tempo
+não havia nem um carthaginez na peninsula, e estavam os romanos senhores de
+tudo isto.</p>
+
+<p>&mdash;Então os povos de cá estavam a olhar ao signal? perguntou Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Ora ahi é que bate o ponto. Effectivamente, os povos cá das Hespanhas
+acharam assim exquisito que os carthaginezes e os romanos andassem<span
+class="pn"><a name="pg_9">{9}</a></span> a dispor d'elles, sem ao menos lhes
+perguntar a sua opinião, de fórma que, quando os romanos, julgando-se senhores
+da Hespanha, começaram a espreguiçar-se, os differentes povos da peninsula
+disseram-lhes d'esta maneira: «Ora esperem lá, senhores romanos, que nós somos
+duros para colchões!»</p>
+
+<p>&mdash;Ah! boa rapasiada! observou, esfregando as mãos, o Francisco Artilheiro.
+</p>
+
+<p>&mdash;Começou a pancadaria, e o povo que andou sempre na frente foram cá os
+nossos lusitanos, principalmente os serranos do Herminio (que era assim que se
+chamava d'antes a serra da Estrella). Não eram os romanos capazes de metter
+dente cá para este lado, até que uma vez um dos seus generaes, chamado Sergio
+Galba, apanhou os lusitanos á traição, e fez n'elles uma mortandade de que
+poucos escaparam.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! grande patife! exclamou o Manoel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Isso era, mas alem de patife era tolo, porque isto de excitar muito dá
+maus resultados. Os lusitanos, que escaparam, ficaram como uma bicha. Ora um
+d'elles era um pastor chamado Viriato, homem decidido e esperto, que disse para
+os seus patricios: Façam vocês o que eu mandar, e deixem os romanos comigo.
+Assim foi, juntaram-se á roda de Viriato, e, quando appareceu um exercito
+romano commandado<span class="pn"><a name="pg_10">{10}</a></span> pelo consul
+Vetilio, o nosso homem, que era das bandas de Vizeu, esconde n'uma emboscada
+uma parte da sua gente, e com o resto põe-se a fazer fosquinhas aos romanos,
+parecendo a modo medroso. O consul percebe que elle está assim com seu susto, e
+diz lá de si para si: «Vaes apanhar uma surra mestra.» Corre sobre elle,
+Viriato faz tres meia volta, e, pernas para que te quero, elle ahi vae. O
+consul Vetilio desata a correr atraz de Viriato, e vae-se mesmo metter na boca
+do lobo. Era uma vez um exercito romano. Depois de Vetilio vem outro e outro, e
+elle sempre zás, pásada de crear bicho. Em Roma havia terror, diziam que o
+luzitano lhes dava mais que fazer que o proprio Annibal. Em Hespanha então era
+um enthusiasmo por ahi alem. Se Viriato já nem se contentava em estar nas
+montanhas, entrava pelos povoados romanos, levantava contribuições,
+revolucionava os povos, era um vivo demonio, e cada novo exercito, que por cá
+apparecia, não lhes digo nada, sumia-se n'um abrir e fechar de olhos, até que
+emfim o consul Scipião apanha lá dois patifes que Viriato mandára para tratar
+de um negocio, e tantas endrominas lhes metteu na cabeça, e tantas promessas
+lhes fez que elles, quando voltaram para onde estava o seu chefe, apanharam-n'o
+a dormir e mataram-n'o.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! que grandes malvados! exclamou Bartholomeu.<span class="pn"><a
+name="pg_11">{11}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;E assim acabou esse homem que foi o que se póde chamar um homemzarrão! Ó
+senhores, eu sou um pateta, que não percebo nada d'estas cousas, mas, quando me
+ponho a pensar n'este Viriato, quando me lembro que era apenas um pobre pastor
+de cabras, um selvagem que não entendia nada de guerras, nem de manobras, nem
+de legiões para aqui, nem de centuriões para ahi, e que, apezar disso, em
+defeza da sua terra, fez andar os romanos em papos de aranha, e atarantou
+aquella poderosa Roma que mettia medo a todos, quando me lembro que elle era
+filho d'esta boa terra; que hoje se chama Portugal, ah! c'o a breca, sinto
+assim uns arripios pela espinha, e parece que é até uma vergonha para o paiz
+não se lhe ter levantado uma estatua de um tamanho por ahi alem, no alto da
+serra da Estrella, que aquillo é que se podia chamar a sentinella da nossa
+independencia.</p>
+
+<p>E o bom do João da Agualva, no impeto do seu enthusiasmo, cerrava os punhos;
+faiscavam-lhe os olhos, e dava mostras de querer elle mesmo ir pôr nos
+fraguedos da serra da Estrella a estatua do seu heroe.</p>
+
+<p>&mdash;Tem rasão, tem, observou o Bartholomeu, lá que o tal Viriato foi um homem
+de truz, isso foi.</p>
+
+<p>&mdash;A morte de Viriato, como podem imaginar, continuou o João da Agualva,
+deixou ficar os lusitanos um pouco atrapalhados, mas continuaram<span
+class="pn"><a name="pg_12">{12}</a></span> a defender-se, e os romanos viram
+uma bruxa com elles. Póde-se dizer que só Roma foi senhora da Lusitania, quando
+não ficaram nas nossas montanhas senão as mulheres e as creanças. Mas as
+creanças fizeram-se homens, e os homens estavam mortos por jogar as cristas com
+os romanos. Não tardou a apparecer-lhes uma boa occasião.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos lá a ver isso! exclamou o Bartholomeu, com um orgulho patriotico.
+</p>
+
+<p>&mdash;É de saber que em Roma havia umas guerras civis, tal qual como nós tivemos
+cá por muito tempo em Portugal, assim umas cousas á moda da <em>Maria da
+Fonte</em> ou da guerra dos dois irmãos. Um fulano Sylla e um sicrano Mario
+andaram á pancadaria um com o outro, até que venceu um d'elles que foi Sylla.
+Era homem de cabellinho na venta este Sylla, e, apenas se viu no poleiro,
+começou a chacinar nos que eram do partido contrario, de fórma que parecia que
+não queria deixar vivo nem um só. Os amigos de Mario trataram de se escapulir,
+e um d'elles, homem desembaraçado, chamado Sertorio, safou-se cá para Hespanha,
+para os lados do Oriente. Ahi, n'um instante, revolucionou tudo, arranjou um
+exercito, mas os generaes de Sylla espatifaram-lh'o, e o amigo Sertorio
+tingou-se para a Africa. Souberam os lusitanos do caso, e disseram comsigo:
+«Este maganão é que nos faz conta.» Mettem-se uns poucos n'um barco, vão ali a
+Marrocos,<span class="pn"><a name="pg_13">{13}</a></span> por onde o Sertorio
+andava aos paus; offerecem-lhe o vir commandal-os. Sertorio saltou logo para
+dentro do barco, e d'ahi a pouco estavam os lusitanos em campo com Sertorio á
+frente.</p>
+
+<p>Este, porém, não era, como Viriato, um pastor de cabras, era homem
+civilisado, sabendo tudo o que se sabia no seu tempo, e que tratou de arranjar
+cá nas nossas terras uma especie de Roma. Pareceu-lhe que Evora servia para o
+caso, estabeleceu-se ali, e, como o tinham acompanhado muitos romanos,
+conseguiu perfeitamente o seu fim.</p>
+
+<p>Que o Sertorio era uma grande cabeça, isso é que não tem duvida! Não só poz
+o sal na moleirinha dos seus patricios que se quizeram metter com elle, mas
+costumou os lusitanos a ser gente civilisada, e a imitar os romanos em tudo, de
+fórma que Viriato, se resuscitasse, não os reconhecia. E a final de contas,
+vejam como as cousas são! Este Sertorio deu lambada nos romanos por um sarilho!
+pois ninguem fez mais serviços a Roma do que elle! Introduziu aqui as artes, os
+usos e os costumes de Roma! de fórma que, depois, os nossos começaram a ter
+menos repugnancia aos estrangeiros, a confundir-se com elles. Isto de fallar a
+mesma lingua, de ter os mesmos habitos, sempre é uma grande cousa! Sertorio foi
+assassinado, assassinado tambem por um traidor, um patricio d'elle, um tal
+Perpenna! Pois senhores, quando morreu, já isto<span class="pn"><a
+name="pg_14">{14}</a></span> por cá era tão romano como a propria Roma; de
+fórma que nunca mais houve revoltas, e os lusitanos como o resto dos habitantes
+de Hespanha, á excepção dos vasconsos que sempre foram mettidos comsigo, e
+nunca se deram com os visinhos, os lusitanos ficaram fazendo parte do grande
+imperio que vinha do Mar Negro ao Oceano Atlantico, e da bôca do Rheno até á
+foz do Guadalquivir, e ainda mais para baixo, do outro lado do estreito.</p>
+
+<p>E com isto os não enfado mais, meus amigos, a Margarida já acabou a sua
+estriga, a luz do candieiro está assim a modo aos upas como quem se quer ir
+embora, e então domingo á noite continuaremos com esta conversa, visto que
+vocês parece que vão gostando.</p>
+
+<p>&mdash;Ora se gostamos, sr. João de Agualva! bradaram todos em côro. Venha
+depressa o domingo para ouvirmos o resto.</p>
+
+<p>E despedindo-se de Margarida, e de João, retiraram-se para as suas
+casas.<span class="pn"><a name="pg_15">{15}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>SEGUNDO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">Cesar e os montanhezes do Herminio.&mdash;O imperio romano.&mdash;O
+christianismo.&mdash;Os barbaros.&mdash;Suevos, alanos e visigodos.&mdash;Os mouros.&mdash;O reino
+das Asturias.&mdash;O reino de Leão.&mdash;Portucale.&mdash;Os condados de Portugal e de
+Coimbra.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, começou o João da Agualva, apenas todos fizeram roda no
+domingo immediato, e que a boa da tia Margarida, depois de carregar a sua roca,
+principiou a fazer girar o fuso nos seus dedos ageis, deixámos no outro dia os
+bons dos nossos lusitanos, depois da morte de Sertorio, costumados já á
+civilisação romana, e fallando o latim como se tivesse sido sempre a sua
+lingua, gostando de dar as suas passeatas até Roma, e provavelmente chamando
+barbaros aos que se lembravam com saudades dos tempos de Viriato. Nas serras
+continuavam a refilar o dente aos senhores do mundo, e o proprio Cesar, que
+veio a ser depois um grande homem,<span class="pn"><a
+name="pg_16">{16}</a></span> estreiou-se nas guerras, tendo cá na Lusitania os
+seus dares e tomares com os montanhezes do Herminio, que vieram diante d'elle
+em rota batida até aqui ás proximidades de Peniche, pouco mais ou menos, e que,
+quando deram de cara com o mar, não estiveram lá com meias medidas, metteram-se
+n'umas jangadas, e foram merendar ás Berlengas, deitando a lingua de fóra ao
+sr. Cesar, que se foi embora de queixo caído. Mas isso eram barulhos lá de
+quando em quando. A verdade é que a Lusitania estava sendo devéras romana, e
+então, quando lá em Roma á republica succederam os imperadores, nem mais se
+pensou em independencias, nem meias independencias. As cidades com os nomes
+romanos ferviam por ahi, as estradas militares cortavam o paiz, e uma pessoa
+podia ir de Lisboa até Roma sem perguntar a ninguem. Hoje diz-se: quem tem bôca
+vae a Roma. Pois n'aquelle tempo, e com as estradas militares, bastava ter pés
+e olhos, ía-se lá direito como um fuso.</p>
+
+<p>&mdash;Havia caminho de ferro? perguntou o Zé Caneira embasbacado.</p>
+
+<p>&mdash;Qual caminho de ferro, bruto! Teu avô ainda nem sabia que vinha isso a
+ser, e já tu querias que o teu trigesimo ou quadragesimo avô andasse de wagon!
+Não senhor, eram estradas ordinarias, mas feitas com todo o cuidado e limpeza,
+e que, partindo de Roma, íam ter aos pontos mais distantes<span class="pn"><a
+name="pg_17">{17}</a></span> do imperio! Lá que os taes romanos eram um grande
+povo, isso eram!</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim! mas regalaram-se de levar tapona cá na nossa terra, interrompeu
+o Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Quem vae á guerra dá e leva, respondeu o João da Agualva, e a final quem
+vence é quem mais sabe. Se os romanos venceram, não foi nem porque tinham mais
+força, nem porque eram mais valentes, foi porque sabiam mais. Tu verás ao
+depois. Olha que isto cá no mundo não se leva a poder de bordoada. Queres um
+exemplo? Ora ahi tens tu o mundo todo romano. O imperador está em Roma, e tudo
+governa. N'isto sáem da Judéa uns homens de bordão na mão, e de pés descalços,
+que começam a prégar por esse mundo, a dizer que Deus veiu á terra, que foi
+crucificado, que disse que todos os homens eram iguaes, senhores e escravos e
+grandes e pequenos, que a gente deve amar não só os seus amigos, mas tambem os
+seus inimigos, que ha mais alegria no céu pela volta de um peccador, que se
+arrepende, do que pela entrada de noventa e nove justos, e outras cousas assim
+que embasbacavam todos, e vae os imperadores romanos começaram a scismar que
+esta gente, que lhes fazia mal, que desorganisava tudo, e botam a chacinar
+n'esses sujeitos que se diziam christãos, e a queimal-os, e a deital-os ás
+feras, e a martyrisal-os, e quanto mais os desbastavam mais elles cresciam,
+e<span class="pn"><a name="pg_18">{18}</a></span> tanto e tanto que lhes não
+digo nada. Ás duas por tres o mundo romano tinha sido conquistado, sem pau nem
+pedra, por esses soldados de Christo. Ora aqui tens tu como quem vence nem
+sempre é a força bruta.</p>
+
+<p>&mdash;Essa agora é mais fina! accudiu o Manuel da Idanha. Esses, se venceram, é
+porque eram os santos apostolos, e porque prégavam a palavra de Deus.</p>
+
+<p>&mdash;Pois assim é, Manuel, dizes tu muito bem, mas é que isto que se chama
+civilisação não é tambem senão a palavra de Deus. A civilisação é o que
+concorre para nos fazer melhores, mais dignos de ser homens. Umas vezes
+prégam-n'a os santos, outras vezes são os sabios, e ás vezes tambem são os
+soldados, porque Deus de todos os meios se serve para chegar aos seus fins. E é
+assim que o instrumento d'isto a que eu chamo civilisação umas vezes é o livro,
+outras vezes a cruz, e outras vezes a espada.</p>
+
+<p>Os bons dos saloios ouviam boqui-abertos estas cousas todas, que só o Manuel
+da Idanha parecia perceber um bocadinho, por isso o João da Agualva, que não
+queria perder a attenção do auditorio, apressou-se a continuar:</p>
+
+<p>&mdash;Isto quer dizer, meus amigos, que foi por este tempo que principiou a
+prégar-se no mundo a nossa santa religião, e foi cá a nossa terra uma das<span
+class="pn"><a name="pg_19">{19}</a></span> primeiras que se converteram. Dizem
+até que veiu aqui o proprio apostolo S. Thiago, mas isso estou que são lérias;
+o que é certo, porém, é que ainda quasi não havia bispos por esse mundo de
+Christo, e já Braga era bispado, tanto assim que se chama ao arcebispo de Braga
+arcebispo primaz das Hespanhas, porque foi o primeiro que na Hespanha houve.
+</p>
+
+<p>Mas, entretanto, meus amigos, grandes cousas se passavam pelo mundo. Fóra
+dos limites do imperio, do lado de lá do Rheno, do lado de lá do Danubio, havia
+povos que Roma não conseguira conquistar: gente selvagem como os luzitanos do
+tempo do Viriato; valentes como elles, e ao mesmo tempo gente inquieta que não
+parava n'um sitio e que não podia viver quasi senão de caça e de rapina. Tinham
+os romanos um trabalhão em os conter, mas, quando o imperio começou a fraquear,
+porque aquillo estava já sendo uma choldra, quando as legiões, que é como quem
+hoje diria as divisões e as brigadas, começaram cada uma a apregoar um
+imperador pela sua banda, desabam todos aquelles meus amigos sobre o imperio, e
+foi como quem diz uma verdadeira inundação. Ahi pelos annos quatrocentos e
+tantos caíram em cima de Hespanha, vindos das bandas dos Pyrenéus, nada menos
+de tres povos, os Alanos, os Suevos e os Vandalos. Nós, só á nossa parte,
+tivemos dois que tomaram conta de<span class="pn"><a
+name="pg_20">{20}</a></span> tudo isto, que foram os suevos e os alanos. Mas
+aquillo! as florestas de alem do Danubio e do Rheno parece que se não fartavam
+de despejar povos que se empurravam uns aos outros. Atraz d'estes tres povos
+vieram os visigodos que expulsaram os outros e ficaram senhores da Hespanha
+toda. Mas agora ahi têem vocês como nem sempre quem vence é quem conquista.
+Julgam por acaso que se fallou na Hespanha o visigodo, e que as leis
+visigothicas é que governaram, e que a religião dos visigodos é que triumphou?
+Qual carapuça! os vencidos é que conquistaram os vencedores e deram-lhes a sua
+lingua, as suas leis e a sua religião. Porque? porque os mais civilisados eram
+os vencidos, e quem mais sabe é quem triumpha.</p>
+
+<p>&mdash;Mas então, a final de contas, perguntou o Manuel da Idanha, sempre isto
+ficou sendo romano?</p>
+
+<p>&mdash;Não, rapaz, não é assim. Ora dize-me uma cousa, quando tu deitas sal e
+carne para dentro de uma pouca de agua, o que é que fica? é agua, é carne ou é
+sal?</p>
+
+<p>&mdash;Essa agora é mais fina, não fica nem uma coisa nem outra, o que fica é
+caldo.</p>
+
+<p>&mdash;Ora pois ahi tens tu: a agua eram os lusitanos, os romanos foram o sal, e
+os visigodos a carne, e de tudo isso saíu uma cousa nova, um povo novo, este
+caldo que depois veio a chamar-se portuguez, que é no fundo lusitano, como o
+caldo é<span class="pn"><a name="pg_21">{21}</a></span> agua, e a que Roma deu
+o sal que foi a idéa, e os visigodos a carne que foi a força.</p>
+
+<p>Acharam graça á comparação os bons dos saloios e o João da Agualva proseguiu
+d'esta maneira:</p>
+
+<p>&mdash;Mas as cousas não ficaram por aqui, porque no anno de 756 appareceu de
+repente em Hespanha gente nova. Eram os mouros. Esses, em vez de vir do norte,
+vinham do sul. Seguiam uma religião nova, a de Mafoma. Não eram uns selvagens,
+como tinham sido os visigodos. Traziam uma civilisação, e das mais apuradas.
+Por isso a lucta que se travou foi medonha: civilisação contra civilisação,
+Jesus contra Mafoma. Primeiro venceram os mouros. Na batalha do Guadalete foram
+os visigodos vencidos, e morto o seu rei Rodrigo. Em pouco tempo tinham os
+mouros tomado toda a Hespanha. A nossa terra lá foi tambem para elles. Só nos
+montes das Asturias, que são levados de quantos diabos ha, um punhado de
+visigodos continuou a resistir, commandados por um tal Pelayo, que foi o
+primeiro rei das Asturias. Metteram-se os mouros com elle, levaram para o seu
+tabaco. Deixaram-n'o lá estar no seu reino, que era como quem diz um ninho de
+aguia, encarapitado no cucuruto das montanhas, e c'o a breca, parece-me que uma
+aguia c'o as azas estendidas fazia-lhe sombra a elle todo. A pouco e pouco foi
+augmentando. Agora tomava-se<span class="pn"><a name="pg_22">{22}</a></span>
+uma cidade, logo outra; a grão e grão, diz o proverbio, enche a gallinha o
+papo. D'ahi a duzentos annos já os visigodos tinham tirado aos mouros terras
+bastantes para formar não só um reino, mas uns poucos. A moda que havia de se
+dividir o reino pelos filhos de um rei que ía para o outro mundo, dava este
+resultado. Deixemos, porém, isso, e vamos a saber o que era feito de nós.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é que é, acudiu o Bartholomeu, os hespanhoes que tratem de si.</p>
+
+<p>&mdash;Pois nós faziamos parte do reino que se chamou reino de Leão; quando digo
+nós, quero dizer de Coimbra para cima, porque, entre Coimbra e Lisboa, umas
+vezes era-se mouro e outras vezes christão, mas de Lisboa para baixo não havia
+duvida nenhuma, era tudo moirama.</p>
+
+<p>&mdash;Mas então, vamos a saber, isto era já Portugal ou não era Portugal?
+perguntou o Zé Caneira.</p>
+
+<p>&mdash;Ora com que tu vens! Sabes o que era Portugal? Era, para assim dizer, o
+Minho. Havia Portugal e havia o condado de Coimbra. Portugal chamava-se assim
+porque na foz do Douro havia uma terra que se chamava <em>Cale</em>, que depois
+se mudou em Gaya, e vae defronte mesmo á beira do rio, começou a levantar-se
+outra terra que se chamou <em>Portus Cale</em> ou <em>Porto de Cale</em>. Esta
+terra é o que se chama hoje simplesmente <em>Porto</em>, e o nome de <em>Porto
+de Cale</em>,<span class="pn"><a name="pg_23">{23}</a></span> que se foi
+mudando em Portugal, dava-se a tudo o que ficava para o norte do Douro. E aqui
+está, meus amigos, como Portugal deve o seu nome ao Porto, exactamente como
+depois lhe veio a dever a liberdade.</p>
+
+<p>&mdash;E então Coimbra já não era Portugal?</p>
+
+<p>&mdash;Não, rapaz. Coimbra era outro condado, tambem christão, mas que tinha
+existencia sobre si. Ora o que lhes digo, meus amigos, é que a corneta do
+destacamento que chegou hoje está já a tocar a recolher, que são horas de se ir
+chegando cada um para suas casas, e que no proximo domingo continuaremos a
+nossa historia.<span class="pn"><a name="pg_24">{24}</a><br><a name="pg_25">{25}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>TERCEIRO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">D. Affonso VI de Leão.&mdash;O conde D. Henrique.&mdash;D. Thereza.&mdash;O
+conde de Trava.&mdash;Batalha de S. Mamede.&mdash;Egas Moniz.&mdash;Fundação da monarchia.&mdash;D.
+Affonso Henriques.&mdash;Os cruzados.&mdash;D. Sancho I.&mdash;D. Affonso II.&mdash;D. Sancho
+II.&mdash;D. Affonso III.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Viram vocês, meus amigos, tornou o João de Agualva, no domingo immediato,
+que o Portugal de agora, ahi pelo anno mil, pouco mais ou menos estava, do
+Mondego para baixo, quasi todo em poder dos mouros, e do Mondego para cima
+distribuido em dois condados, um que se chamava de Portugal, que era como quem
+diz do Porto, e o outro que se chamava de Coimbra, e ambos estes condados
+faziam parte do reino de Leão, onde governava um rei de cabellinho na venta,
+chamado o sr. D. Affonso VI. Ora, como D. Affonso VI tinha sempre guerra com os
+mouros, e como n'esse tempo o grande pratinho para um principe ou para um
+fidalgo, era jogar as cristas com elles, tanto que os íam buscar<span
+class="pn"><a name="pg_26">{26}</a></span> a casa de seiscentos diabos, só para
+lhes dar tapona, aconteceu que dois francezes, chamados um Henrique e outro
+Raymundo, ambos primos, e ambos da casa de Borgonha, em vez de ir á Palestina,
+vieram aqui a Hespanha, que lhes ficava mais ao pé da porta, pedir para dar
+tambem as suas garfadas nos de Mafoma. Não havia duvida, a mesa estava sempre
+posta e podiam servir-se á vontade. Deram bordoada de crear bicho, e o D.
+Affonso VI, que viu que eram uns valentões, e que lhe podiam prestar para
+muito, casou-os com duas filhas que tinha, uma legitima filha do matrimonio, e
+outra cousas e tal etc. A primeira chamava-se Urraca e foi para o Raymundo, a
+segunda chamava-se Tareja ou Thereza, e dizem até que era uma rapariga de truz,
+para o Henrique. Ora ao primeiro, como era casado com a legitima, deu elle o
+governo de toda a parte do reino, que ficava á borda do mar, desde os altos da
+Galliza até ás proximidades do Tejo, e a D. Henrique deu especialmente os
+condados de Portugal e de Coimbra, ficando sempre sujeito ao primo. Ha quem
+diga que Portugal veiu como dote de D. Tareja! Tó carocho! N'esse tempo nem os
+paes davam dotes ás filhas, os que queriam casar com ellas é que ainda davam
+alguma cousa.</p>
+
+<p>&mdash;E acho isso muito bem entendido! exclamou vivamente o Zé Caneira, que
+tinha uma filha casadoira.<span class="pn"><a name="pg_27">{27}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Pois sim! redarguiu sorrindo o João da Agualva. O que é certo é que a moda
+não pegou. D. Henrique, porém, ficou sendo vassallo de Affonso VI, e
+empenhou-se em alargar os seus dominios, dando pancadaria nos mouros. Muito
+cedo deixou de ser sujeito a seu primo, e teve a sua capital em Guimarães, que
+por isso se chama o <em>berço da monarchia</em>. Mas este D. Henrique parece
+que tinha bicho carpinteiro, foi á Palestina, como se não tivesse por cá mouros
+com fartura, e, quando o sogro morreu deixando o throno á cunhada D. Urraca,
+que já então era viuva, o bom do conde metteu-se em todos os barulhos que lá
+íam por Hespanha, para ver se apanhava mais alguma cousa para si. Qual
+carapuça! não apanhou nada, e ía perdendo muito, porque os mouros, que se viram
+á larga, começaram a fazer-se finos, e já subiam por ahi acima, como quem
+estava com desejo de se espreguiçar o seu pedaço nos montes verdes de Coimbra.
+</p>
+
+<p>No meio d'esta azafama toda, morreu em 1114 o honrado conde deixando uma
+viuva muito frescalhota ainda, e um filho pequeno que teria os seus tres annos,
+e se chamava Affonso Henriques, que é o mesmo que se dissesse Affonso filho de
+Henrique, assim como Sanches queria dizer filho de Sancho, Fernandes filho de
+Fernando, e Martins filho de Martim.<span class="pn"><a
+name="pg_28">{28}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Ora essa! exclamou um que até ahi estivera silencioso, aqui estou eu que
+me chamo Antonio Martins, e mais meu pae chamava-se José.</p>
+
+<p>&mdash;Pois isto que eu digo, tornou João, era n'aquelle tempo, depois os nomes
+ficaram, mas já sem se lhes saber a significação, como acontece a muitas outras
+cousas.</p>
+
+<p>A mãe de D. Affonso Henriques, que era uma mulher bonita e desembaraçada,
+continuou a andar por cercos e batalhas, sempre a ver se isto cá em Portugal
+ficava independente, e, emquanto ella assim procedeu, correu tudo bem; mas isto
+de mulheres sempre são mulheres&mdash;não se zangue, tia Margarida&mdash;e D. Thereza lá
+teve o seu fatacaz por um conde gallego, Fernão Peres de Trava, que d'ahi a
+pouco era quem punha e dispunha em Portugal. Não agradava isso muito aos nossos
+fidalgos, e menos ao rapazelho, que era levadinho da bréca, esperto como um
+alho, valente como seu pae, e que fôra de mais a mais educado por um fidalgo ás
+direitas, um tal Egas Moniz, portuguez dos quatro costados. Já se vê que o aio
+não lhe ensinou a revoltar-se contra sua mãe, e até devo dizer que são
+verdadeiras patranhas muitas das cousas que a esse respeito se contam. Por
+exemplo, diz-se que o rapazote andava ás bulhas com a mãe, e que o rei de Leão,
+D. Affonso VII, viera em soccorro da tia contra o primo. Peta! D. Affonso VII
+veiu a Portugal,<span class="pn"><a name="pg_29">{29}</a></span> é verdade, mas
+foi para obrigar a infanta-rainha (assim lhe chamavam) e o filho e os fidalgos
+e todo o povo a reconhecer a sua suzerania. Apanhou o rapaz em Guimarães,
+cercou-o, e pôl-o deveras em talas. Egas Moniz foi ter com elle, e disse-lhe
+que se fosse embora e que lhe empenhava a sua palavra que a sua suzerania seria
+reconhecida. Affonso VII assim o fez, e partiu d'ali contra D. Thereza, que
+essa reconheceu-o immediatamente por seu senhor e suzerano. Mas D. Affonso
+Henriques, livre do primo, pediu á mãe que fizesse favor de lhe dar o governo a
+elle, que sempre era mais portuguez que o conde de Trava. Este disse á rainha
+que não tivesse cuidado, que elle iria dar uma duzia de palmatoadas no pequeno.
+Foram boas as palmatoadas! Em S. Mamede, ao pé de Guimarães, e no anno de 1128,
+o conde gallego levou uma esfrega, e teve de se pôr a andar, levando comsigo D.
+Thereza. De fórma que nem D. Affonso Henriques prendeu a mãe, nem fez cousa que
+se parecesse com isso. Quiz apenas governar, porque tinha o direito de o fazer,
+e porque os barões portuguezes estavam fartos de aturar o gallego. E a
+vassallagem que promettera a D. Affonso VII? Boa vae ella! Mesmo agora D.
+Affonso Henriques pozera fóra o gallego para se sujeitar ao de Leão! Nem se
+pensou em tal. Mas Egas Moniz tinha dado a sua palavra, e não queria que um
+patife de um estrangeiro dissesse que<span class="pn"><a
+name="pg_30">{30}</a></span> havia portuguezes desleaes. Não contou nada ao seu
+querido discipulo, e foi até dos primeiros a aconselhar que se mantivesse a
+independencia, mas agarrou em si, na mulher e nos filhos, e foram todos de
+corda ao pescoço ter com o rei de Leão, e dizer-lhe: «Para resgatar a minha
+palavra, só tenho a minha cabeça e a dos meus! Ellas aqui estão!» O rei ficou
+assombrado d'este acto de lealdade e mandou-os embora com palavras de muito
+louvor.</p>
+
+<p>&mdash;Homem! isso agora parece-me asneira! acudiu o Zé. Que diabo de culpa tinha
+elle que esse D. Affonso Henriques não fizesse o que promettera?</p>
+
+<p>&mdash;Nenhuma, bem sei! mas elle é que ficára por fiador. Outro seria que
+dissesse: Eu quiz, mas não pude. Elle foi mais franco e disse: Não pude e não
+quiz. O interesse da nação oppunha-se a isso, mas a minha vida ha de resgatar a
+minha palavra, e não se fundará n'uma deslealdade a nova monarchia.</p>
+
+<p>&mdash;Aquillo é que eram homens! murmurou o Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Espera que tu vaes ver o que era um homem. Este Affonso Henriques digo-te
+que foi mesmo fadado para fundador de reino. Não parava um instante. No
+principio do governo, andou sempre á bulha com o primo, e com os gallegos, e
+tudo era ver se passava o Minho; mas um bello dia olhou para o sul, e percebeu
+que para ali é que havia muito que fazer. Os mouros começavam a dar signal de
+si, e<span class="pn"><a name="pg_31">{31}</a></span> a romper de novo por ali
+acima. Em 1139, Affonso Henriques vae só n'uma galopada até ao Alemtejo,
+derrota os mouros em Ourique, e volta para casa. A respeito de Ourique tem
+havido mosquitos por cordas. Diz-se que appareceu Nosso Senhor a D. Affonso,
+que este foi ali acclamado rei pelos soldados, que aquillo foi uma batalha
+formidavel, etc. Eu cá não me metto n'essas cousas. Que Nosso Senhor Jesus
+Christo apparecesse crucificado a D. Affonso Henriques, é muito possivel, Deus
+póde fazer estes milagres, sempre que lhe aprouver, e milagre de Deus foi a
+nossa historia toda. Sem a ajuda de Nosso Senhor mal podia este pequeno povo
+fazer o que fez. Que a batalha fosse muito importante, não me parece, pelo
+menos não teve consequencias; ficou tudo como d'antes, e o que se não póde
+dizer é que o quartel general fosse em Abrantes, porque a Abrantes ainda nós
+não tinhamos chegado; que os soldados se lembrassem de acclamar D. Affonso
+Henriques rei n'essa occasião tambem me parece historia. Sou capaz de apostar
+que rei já lhe chamavam ha muito tempo, como chamavam rainha á mãe; de mais a
+mais, esse titulo de rei, que affirmava mais a nossa independencia, onde se
+deveria dar era n'uma batalha contra os leonezes, mas n'uma batalha contra os
+mouros, que tanto se importavam que Portugal fosse independente, como que fosse
+vassallo de Leão, a quem tanto convinha<span class="pn"><a
+name="pg_32">{32}</a></span> que Affonso Henriques fosse rei como que fosse
+conde, não se percebe. Diz-se tambem que foi nas côrtes de Lamego que o titulo
+se confirmou. Ora adeus! Côrtes com clero, nobreza e povo ainda cá se não
+faziam. E de mais, quem diz isso parece que imagina que n'aquelle tempo se
+passavam as cousas como agora, e que isto de fazer rei um conde soberano era
+negocio que se não podia praticar sem grandes ceremonias e ajuntamentos. Boas
+noites, meus amigos. Oiçam vocês o que succedia! Morria o rei de Leão, por
+exemplo, e dividia os estados pelos filhos, e aqui ficava sendo um rei da
+Galliza, o outro rei de Leão e o outro de Castella. E depois juntavam-se os
+estados, e já não havia reinos nem em Galliza, nem em Castella, depois
+tornavam-se a separar, e assim andavam, sem maior massada. D. Affonso Henriques
+fizera-se independente, era o essencial, depois começaram a chamal-o rei, e rei
+se ficou chamando. O que elle fez, como era espertalhão, para garantir a
+conservação do reino, foi declarar-se vassallo do papa, e mandar-lhe pagar um
+pequeno tributo, para que o pontifice lhe valesse. A manha não era má;
+n'aquelle tempo quem tinha por si a côrte de Roma tinha tudo.</p>
+
+<p>Mas o caso não era chamar-se uma pessoa rei, era ter um reino que merecesse
+o nome, e esse Portugalsito, que vinha apenas do Minho até ao Mondego, para
+fallar a verdade, não parecia lá um grande<span class="pn"><a
+name="pg_33">{33}</a></span> reino. E vae D. Affonso Henriques disse então com
+os seus botões: Toca a alargal-o! Ora o que faz um de vocês quando se vê com
+uma terrola para seu grangeio? Cospe nas mãos, agarra na enchada, começa a
+fossar o chão, e ali está desde pela manhã até á noite. D. Affonso Henriques
+fez o mesmo, cuspio nas manoplas, arrancou do montante, e elle ahi vae para a
+faina em que andou desde pela manhã até á noite, quer dizer, desde que lhe
+apontou o buço até que a morte pregou com elle na sepultura. O montante era a
+sua enchada, rapazes, e, a cada enchadada, saía do chão sarraceno agora
+Santarem, depois Lisboa. Ah! meus amigos, que vida! Aquillo era um lidar
+continuado! Elle casou com uma princeza de Saboya, a sr.ª D. Mafalda, mas estou
+em dizer que não foram muitas as noites em que dormio muito bem aconchegado com
+ella nos seus paços de Coimbra. Alta noite lá ía elle tomar Santarem, de
+surpreza, e outra vez constava-lhe que ía uma gente do norte fazer guerra aos
+mouros na Palestina, para defender contra elles o sepulchro de Christo, e vae
+D. Affonso Henriques ía logo á beira-mar ter com os homens, e pedir-lhes que
+descançassem aqui um pedaço, e que o ajudassem ao mesmo tempo na sua tarefa de
+todos os dias. Elles não se fizeram rogar, desembarcaram, e d'ahi a pouco
+estava Lisboa no poder dos nossos. Muitos d'elles por cá ficaram, porque D.
+Affonso Henriques deu-lhes<span class="pn"><a name="pg_34">{34}</a></span>
+terras, e até ha por ahi povoações que ainda se chamam com os nomes d'elles,
+por exemplo Villa Franca, que é como quem diz villa dos Francos, etc.</p>
+
+<p>&mdash;Então os de Villa Franca são estrangeiros? perguntou o Manuel da Idanha.
+</p>
+
+<p>&mdash;Qual carapuça, homem! Tu não te lembras da minha comparação do caldo? Não
+é sal, nem agua, nem carne; mas tem carne, agua e sal. A carne eram os godos, a
+agua os luzitanos e os romanos o sal; pois tambem no caldo se deita ás vezes o
+seu raminho de hortelã ou de segurelha, que sempre lhe dá assim um sabor mais
+cousas, tal, etc., pois esses raminhos de segurelha e de hortelã foram os
+estrangeiros, que aqui vieram a Portugal e por cá se deixaram ficar. Vieram
+tambem contribuir para fazer o nosso bom caldo portuguez.</p>
+
+<p>&mdash;É bem achado, sim senhor, observou a tia Margarida.</p>
+
+<p>&mdash;Pois assim mesmo é que é. Ora já vocês vêem que o pobre do D. Affonso não
+podia estar muito tempo socegado. Hoje tomava Cintra, amanhã Mafra, no outro
+dia Palmella, no outro Abrantes! Era um vivodemonio. Os mouros com elle andavam
+n'um sarilho. Por isso tambem tinham-lhe tomado um medo! Fallarem-lhes no
+Ibn-Errik, assim lhe chamavam elles na sua lingua, como quem diz <em>filho de
+Henrique</em>, fallarem-lhes em Ibn-Errik, era o mesmo<span class="pn"><a
+name="pg_35">{35}</a></span> que fallarem-lhes no diabo. E que gente que elle
+tinha! homens como um Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que morreu combatendo,
+e mais andava já pelos noventa annos, e um que tomou Evora, Giraldo sem Pavor,
+e outro que tomou Beja, cada qual por sua conta e risco. Gente levadinha da
+bréca, isso é que é fallar a verdade.</p>
+
+<p>Mas, emfim, meus amigos, ainda que se diz «pedra movediça não cria bolor»,
+sempre dá o caruncho n'uma pessoa, por mais que ella se mexa e trabalhe. D.
+Affonso envelheceu, mas antes d'isso já deitára um filho que era o seu retrato,
+valente como elle, e homem de grande talento, D. Sancho, que foi depois rei.
+Podia morrer descançado D. Affonso Henriques, deixava a sua espada em boas mãos
+e a sua corôa em boa cabeça. E com essa consolação morreu em 1185 el-rei D.
+Affonso Henriques, depois de ter não só tornado o reino independente, mas de o
+ter alargado até ao meio do Alemtejo, e principalmente de ter tomado Lisboa que
+era, como diz o outro, a menina dos olhos dos arabes, a cidade sem a qual não
+se podia fazer cá para estas bandas cousa que geito tivesse. Ah! meus amigos,
+se algum de vocês fôr alguma vez a Coimbra, e entrar na igreja de Santa Cruz,
+suba até á capella mór, e olhe para os dois tumulos que ali se vêem, pergunte
+qual é o de D. Affonso Henriques, e depois ajoelhe diante d'elles, porque, com
+seiscentos diabos,<span class="pn"><a name="pg_36">{36}</a></span> se nós hoje
+não somos para ahi uns gallegos e uns andaluzes, se démos que fallar no mundo,
+e praticámos cousas que fazem com que uma pessoa tenha orgulho de se chamar
+portuguez, oh! com a bréca, é a elle que o devemos, porque, como lá diz o
+outro, de pequenino se torce o pepino», e este reino de Portugal era bem
+pequerrucho ainda, quando esse homem de ferro levou a sua vida inteira a
+costumal-o a fazer cousas grandes.</p>
+
+<p>E o bom do João da Agualva limpou o suor, que lhe escorria pela testa com o
+enthusiasmo que o inflammava. Os seus companheiros escutavam-n'o silenciosos, e
+já não faziam interrupções nem observações. Estavam deveras interessados com a
+narrativa.</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, continuou o João da Agualva, no governo como na lavoura ha
+tempo para tudo, agora cava-se e depois semea-se. Primeiro compra-se a terra e
+depois é que se amanha. Pois assim foi em Portugal; D. Affonso Henriques ou D.
+Affonso I conquistára, D. Sancho tratou de povoar. Por isso a historia chamou
+<em>conquistador</em> ao primeiro e <em>povoador</em> ao segundo; e olhem que
+isso não quer dizer que D. Sancho não fosse tambem um guerreiro de truz. Tó
+carocho! Já na vida do pae elle dera que fallar. Apenas o pae morreu, começou
+elle a namorar uma terra do Algarve, que hoje está bem decaída, mas que n'esse
+tempo era, por assim dizer,<span class="pn"><a name="pg_37">{37}</a></span> a
+Lisboa lá do sul&mdash;Silves. Não se lhe mettia dente, porém, com facilidade. Para
+ir lá por terra, era custoso como o demonio, para ir por mar, é de saber, meus
+rapazes, que o sr. D. Sancho I ainda não se lembrára de comprar nem a fragata
+<em>D. Fernando</em>, nem esse navio com que andam por ahi sempre os jornaes
+aos tombos, e a que uns chamam o <em>Pimpão</em> e os outros o <em>Vasco da
+Gama</em>.</p>
+
+<p>Uma gargalhada geral mostrou que os bons dos ouvintes tinham apanhado
+facilmente o chiste do jovial anachronismo do narrador.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, meus amigos, isto de Portugal ficar no caminho da Palestina para os
+christãos que vinham lá das terras do norte, foi uma verdadeira pechincha.
+Descançavam aqui e sempre havia por cá algum biquinho de obra. Foi o que
+succedeu tambem d'esta vez. D. Sancho apanhou uma frota de cruzados...</p>
+
+<p>&mdash;Novos? perguntou o Zé.</p>
+
+<p>&mdash;Novos eram elles, que não costumavam vir para a guerra os carecas como tu;
+mas é de saber que se chamavam cruzados aos christãos que tinham ido tirar o
+sepulchro de Christo das mãos dos infieis, e que depois o defendiam. D. Sancho
+apanhou pois uma frota de cruzados, e disse-lhes d'esta maneira:</p>
+
+<p>«&mdash;Vocemecês é que me podiam fazer um favor.</p>
+
+<p>«&mdash;Se estiver na nossa mão!...</p>
+
+<p>«&mdash;Lá isso está. É simplesmente acompanhar-me<span class="pn"><a
+name="pg_38">{38}</a></span> ali a baixo a Silves, e ajudar-me a intimar
+mandado de despejo aos mouros que lá estão dentro. Eu fico com a cidade, e os
+senhores levam as riquezas que se apanharem.</p>
+
+<p>«&mdash;Vá de feição.</p>
+
+<p>E foi. Tomou-se Silves, tanto mais que lhes ficava na estrada, e não tinham
+de torcer caminho. Mas D. Sancho não poude continuar com essas funçanatas,
+porque os mouros cá da peninsula, que começavam a estar assim esmorecidos,
+receberam de repente uns reforços da Moirama, e... não lhes digo nada, vieram
+outra vez por ahi acima que parecia que tornava a haver invasão. Foi uma
+torrente que levou tudo adiante de si. O Tejo tornou a ser a fronteira de
+Portugal, e apenas no Alemtejo uma terra ou outra surgia ainda, como uma ilha,
+com a bandeira portugueza, d'entre as ondas da mourisma. Então D. Sancho pensou
+que primeiro que tudo era necessario tratar do que era seu, e começou n'uma
+lida abençoada: elle mandou vir gente do norte da Europa para povoar os nossos
+campos desertos, elle edificou, elle fez castellos, elle cuidou emfim de tudo,
+e não se esqueceu tambem de mostrar aos bispos que tinha muita contemplação por
+elles, emquanto se limitavam ás suas rezas, mas que lhes não permittia metter o
+nariz assim de muito perto nos negocios do estado. A final, este bom rei
+morreu, menos velho que o pae, em 1212. Tinha sido<span class="pn"><a
+name="pg_39">{39}</a></span> casado com uma princeza chamada D. Dulce, filha do
+conde de Barcelona. De fórma que aqui temos pois já duas rainhas de Portugal,
+D. Mafalda e D. Dulce.</p>
+
+<p>O filho mais velho de D. Sancho, que veiu a ser rei depois d'elle, não se
+parecia muito, valha a verdade, nem com o pae, nem com o avô, mas olhem que nem
+por isso foi menos util cá ao nosso paiz. É o que eu digo. Cada qual tem a sua
+tarefa. Uns cavam, outros semeam, outros põem fóra os pardaes e arrancam o
+joio, que podem dar cabo da ceara. Foi esta a tarefa de D. Affonso II. Ora vêem
+perfeitamente que, se este Portugal tão pequeno se começasse a dividir, pedaço
+para aqui, pedaço para acolá, ía-se tudo quanto Martha fiou. D. Sancho, que
+tivera uma sucia de filhos, pensára mais em os deixar bem arranjados do que em
+assegurar a conservação do reino. Por isso no testamento era umas mãos rotas.
+Esta e aquella villa para o senhor infante fulano, esta e aquella cidade para
+sicrano, e terras para este, e terras para aquelle. D. Affonso II arrebitou a
+venta, e disse d'este modo: Então vamos a saber, e eu com que fico? E ahi
+começa á bulha com as irmãs e com os fidalgos. Andava tudo em polvorosa com
+elle. Os fidalgos, por exemplo, tinham recebido de D. Affonso e de D. Sancho
+esta ou aquella terra, mas íam-se fazendo finos, e por sua conta e risco íam
+apanhando mais alguma,<span class="pn"><a name="pg_40">{40}</a></span> os
+frades então nunca chegaram á cabeceira de um moribundo que não apanhassem
+algumas terras de bom rendimento. Isto assim não póde ser, berrava D. Affonso
+II, ás duas por tres fico a olhar ao signal. E elle ahi vae por essas
+provincias fóra, a obrigar os fidalgos a pôr para ali os titulos das suas
+propriedades, declarando que não valiam senão os que elle confirmasse, e foi a
+isso que se chamou <em>confirmação</em>. Ao mesmo tempo prohibia ás corporações
+religiosas que tivessem mais terras do que as que tinham. Emquanto ao
+testamento de D. Sancho I, cumpriu só o que lhe parecia bom, e, como as irmãs
+refilassem, houve pancadaria a menos de real.</p>
+
+<p>&mdash;Então, por esse andar, os mouros deviam ter vida folgada com elle?
+observou o Francisco Artilheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Lá isso é verdade, e tanto assim que, quando se tomou Alcacer do Sal, os
+cruzados, que nos ajudaram, e que nunca pozeram a vista em cima do soberano,
+imaginaram que era uma rainha que governava em Portugal; mas, meus amigos,
+olhem que o nosso paiz não lhe deve menos por isso. Se as infantas começam a
+puxar para um lado, os fidalgos a puxar para o outro, e ainda os frades a
+arrancar tambem as terras, n'um abrir e fechar d'olhos tinhamos para ahi vinte
+reinos, e adeus Portugal. Mas o gordanchudo do Affonso II, apesar de se<span
+class="pn"><a name="pg_41">{41}</a></span> não importar para nada com os
+mouros, tinha cabellinho na venta; e por isso os frades foram prohibidos de ter
+mais terras, as infantas tiveram de pôr para ali as cidades que o pae lhes
+tinha deixado, porque D. Affonso II disse-lhes que a respeito de corôa em
+Portugal não havia senão uma, e finalmente os fidalgos tiveram de receber
+d'elle as terras mas por favor e mercê real. De fórma que, a 25 de março de
+1223, quando morreu apenas com trinta e seis annos de idade, Portugal era
+pequeno, mas estava todo na mão do rei, o que já era grande façanha.</p>
+
+<p>&mdash;E o filho foi pelo mesmo caminho, sr. João? perguntou o Manuel da Idanha.
+</p>
+
+<p>&mdash;Ora, meu amigo, eu te vou dizer o que succedeu ao filho, e por aqui tu
+verás se o que eu acabo de dizer não é verdade, e se não ha na historia
+exemplos para tudo. O filho era creança, quando subiu ao throno, por
+conseguinte foi necessario haver regencia. Chamava-se Sancho o pequenote,
+Sancho II, por alcunha o <em>Capello</em>, porque em creança andara com um
+capuz de frade, lá por promessa da mãe, ou cousa assim. Quem ficou com o
+governo foram os ministros do pae, e, ainda que eram homens de truz, sempre
+lhes faltava a auctoridade que tinha um rei. De fórma que toda aquella nobreza
+e fradaria, quando se viu assim á solta, livre da mão de ferro de D. Affonso
+II, começou<span class="pn"><a name="pg_42">{42}</a></span> a alvorotar-se, e
+os ministros, para os terem quietos, íam dando o que elles pediam. As infantas
+apanharam as cidades, os frades foram juntando terras ás que já tinham, e
+parece que o rei andava umas vezes nas mãos de uns, outras vezes nas mãos de
+outros. Pouco se sabe d'aquelle tempo. Ia pelo reino todo uma confusão de
+seiscentos demonios. O que é certo é que, quando D. Sancho II chegou á
+maioridade, estava já tão costumado a não ser rei que não soube puxar pelos
+seus direitos. E não era que elle fosse fraco. Pois não! pelo contrario! Era da
+raça do avô, não estava bem senão a cavallo e com os mouros de volta. Tomou uma
+boa parte do Alemtejo e do Algarve, mas fidalgos e frades esses faziam o que
+queriam e sobrava-lhes tempo. Vêem vocês? Para uma pessoa governar não basta
+ser um valentão. Ás vezes um porta-machado, com umas barbaças por ahi alem,
+anda em bolandas nas mãos de um creançola, outras vezes uma fraca figura faz
+andar um regimento ali direitinho que nem um fuso. D. Affonso não queria nada
+com os mouros, o que o não impedia de governar como um homem; para D. Sancho as
+batalhas eram o pão nosso de cada dia, e em Portugal todos governavam menos
+elle. Cousas da vida! Como os fidalgos faziam o que lhes dava na cabeça, e os
+frades tambem, e os bispos a mesma cousa, parecia que deviam estar todos muito
+satisfeitos. Mas não succedia assim. Os<span class="pn"><a
+name="pg_43">{43}</a></span> bispos queixavam-se dos fidalgos, estes
+queixavam-se dos frades, e todos do rei, os frades porque não reprimia os
+bispos, os bispos porque não tinha mão nos fidalgos, os fidalgos porque não
+puxava as orelhas ao clero. Quando elle saltava nos mouros, ainda as cousas não
+corriam mal. A fidalguia gostava d'aquillo, íam todos atrás do rei, e não se
+pensava em mais nada. Mas, quando uma hespanholita, chamada D. Mecia Lopes de
+Haro, caiu em graça ao rei, que casou com ella, e que passou os dias a namorar
+os olhos pretos da rainha, lá se foi tudo quanto Martha fiou. A desordem
+excedeu todos os limites, e os bispos foram ter com o papa a fim de lhe pedirem
+que tirasse a corôa a D. Sancho II. O papa, que era Innocencio IV, pulou de
+contente com o pedido. Era o mesmo que virem-lhe dizer que era elle quem dava e
+tirava as corôas n'este mundo, e que vinha a ser portanto o rei dos reis.
+Estava em França n'esse tempo um irmão de D. Sancho II, chamado D. Affonso, que
+saíra de Portugal para ir correr terras, encontrára em França uma condessa de
+Bolonha, viuva, e já durazia, ao que parece, que gostou d'elle e com elle
+casou, levando-lhe o condado em dote. Ora o tal condado era uma especie de
+reino, sujeito ao rei de França, que n'esse tempo era o rei santo que elles
+tiveram, a saber S. Luiz.</p>
+
+<p>&mdash;S. Luiz rei de França, interrompeu a Margarida,<span class="pn"><a
+name="pg_44">{44}</a></span> é uma igreja que fica ali para as bandas do Rocio.
+</p>
+
+<p>&mdash;Pois é uma igreja e foi um rei, tia Margarida, respondeu o João de
+Agualva, como Santa Izabel é uma igreja que fica ali para as bandas da
+Estrella, o que a não impediu de ser tambem uma rainha e rainha de Portugal.
+</p>
+
+<p>&mdash;Isso é verdade! confirmou a tia Margarida.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, como lhes ía dizendo, reinava S. Luiz em França, e D. Affonso,
+seu vassallo, por ser conde de Bolonha, fôra com elle á guerra, e déra provas
+de ser homem desembaraçado. Lembraram-se d'elle para rei, e D. Affonso, que era
+ambicioso, acceitou. Os bispos e os fidalgos disseram comsigo que um rei feito
+por elles havia de ser um creado que tivessem ali no throno, e o papa entendeu
+tambem que aquillo era «senhor mandar, preto obedecer». Combinou-se tudo. D.
+Affonso prometteu quanto quizeram e ahi vae elle caminho de Portugal, fingindo
+que ía para a Terra Santa. Desembarca e principia a guerra civil. Tambem se não
+sabe muito do modo como as cousas se passaram. Parece que foi uma guerra levada
+do diabo como são sempre as guerras civis, queimaram-se villas e cidades,
+arrasaram-se muitas cearas, ficou muita gente na miseria, e o pobre D. Sancho
+viu-se abandonado por todos, dizem até que pela mulher, que fôra, a final de
+contas, o motivo de todas aquellas cousas.<span class="pn"><a
+name="pg_45">{45}</a></span> Houve só um ou outro que se lhe mostrou fiel. D.
+Sancho teve de saír do nosso paiz, e foi para Hespanha, onde morreu em Toledo
+apenas com trinta e sete annos.</p>
+
+<p>&mdash;Pobre do homem! acudiu compassiva a tia Margarida. Então que mal tinha
+elle feito áquella gente toda?</p>
+
+<p>&mdash;Era um rei fraco, e, como se costuma dizer, não era nem para si nem para
+os outros. Até a mulher não fez caso d'elle, porque as mulheres são assim: em
+estando uma pessoa embasbacada a olhar para ellas, não fazem caso nenhum, e ás
+vezes de quem gostam é de quem lhes chega um <em>calor</em> ao corpo, como o
+outro que diz.</p>
+
+<p>&mdash;Vae-te excommungado, bradou indignada a tia Margarida. Se um homem me
+batesse, eu até parece que era capaz de lhe arrancar os olhos.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, tia Margarida! não digo menos d'isso. Mas a rainha D. Mecia não
+era do mesmo parecer, e pagou bem as pieguices de D. Sancho!... Só de dois
+fidalgos se conta que se mostraram fieis ao desgraçado rei. Um foi o alcaide de
+Celorico, que até dizem que fez uma partida com graça. Estava-o cercando D.
+Affonso, e elle já não tinha nem uma migalha de pão, n'isto passa uma aguia por
+cima da praça com uma truta no bico, e deixa-a cair dentro da villa. O alcaide,
+em vez de a comer, manda-a cosinhar muito bem, e envia-a de presente aos
+cercadores.<span class="pn"><a name="pg_46">{46}</a></span> D. Affonso, vendo
+que na praça havia petiscos d'aquelles, entendeu de si, para si que estava
+perdendo o tempo e o feitio, e foi-se embora. Póde ser que isto seja patranha,
+mas o que é verdadeiro, sem tirar nem pôr, é o caso de Martim de Freitas. Esse
+era alcaide de Coimbra, foi cercado tambem, não se rendeu. Disseram-lhe que já
+D. Sancho morrera, e que por conseguinte era D. Affonso o seu natural
+successor. Não acreditou. Affirmaram-lhe que morrera em Toledo. Pediu para ir
+ver. Deram-lhe um salvo conducto, e Martim de Freitas, mettendo na algibeira as
+chaves de Coimbra, foi de passeio até Toledo. Mostraram-lhe o tumulo do rei,
+mandou-o abrir; mostraram-lhe o caixão, quiz ver o corpo; e ao ver emfim o
+pobre cadaver do seu rei, que assim morrera aos trinta e sete annos, longe da
+sua terra e longe dos seus, ajoelhou e poz as chaves da cidade nas mãos do rei
+que lh'as entregára; depois, tirou-as d'essas mãos já frias que as não podiam
+segurar, e partiu para Coimbra, entregando-as ao novo rei, que louvou muito a
+acção.</p>
+
+<p>&mdash;E tinha rasão para isso, tornou a tia Margarida, que estava sendo agora a
+interruptora, mas com o tal rei novo é que eu não engraço nada. Olhem que
+irmão! Sempre tinha uns figados!</p>
+
+<p>&mdash;Não era muito boa rez, não, tia Margarida, mas então n'este mundo não são
+só as boas pessoas que servem. Que D. Affonso se importava tanto<span
+class="pn"><a name="pg_47">{47}</a></span> com a familia como eu me importo com
+a familia do imperador da China, é o que não tem questão, mas que foi um grande
+rei, isso tambem é verdade.</p>
+
+<p>&mdash;Era fresco o tal rei, que assim fazia guerra ao irmão sem mais nem menos!
+</p>
+
+<p>&mdash;Ha mais exemplos d'isso, tia Margarida, e não vão elles tão longe que uma
+pessoa se não possa lembrar. Mas olhe que não param ahi as maldades de D.
+Affonso. Tambem não fez caso da mulher, a tal condessa de Bolonha, que nunca
+foi capaz de pôr pé em Portugal, e casou, em vida d'ella, com uma filha do rei
+de Hespanha.</p>
+
+<p>&mdash;E ainda você o gaba, sr. João? perguntou a tia Margarida. Sabe o que eu
+lhe digo? Parece-me que você é tão bom como elle!</p>
+
+<p>&mdash;Olhe, tia Margarida, não me rogue você nunca outra praga, que lá com essa
+não me hei de eu dar mal. O que lhe disse é que o sr. D. Affonso III foi um dos
+reis que fizeram mais bem ao pobre povo, e sabe vocemecê porque? Porque era
+homem de cabeça, e o que succedera com elle não tinha caído em cesto roto. Elle
+disse comsigo; Estes patifes d'estes fidalgos e d'estes bispos são capazes de
+me fazer a mim o mesmo que fizeram a meu irmão. Ora, eu sósinho não posso com
+elles. A quem me hei de encostar? Olhou em torno de si e vio o povo, o povo em
+quem ninguem fallava, e que era a final de contas quem pagava<span
+class="pn"><a name="pg_48">{48}</a></span> as custas dos barulhos entre os
+grandes, o povo que pagava tributos a toda a gente, e que mesmo quando vivia em
+seus concelhos governando-se pelos seus foraes, que eram para assim dizer as
+suas leis, mesmo então era ralado pela fidalguia. E Affonso III disse comsigo:
+Ora ahi está quem me serve. E desata a fazer concelhos, e, quando reuniu côrtes
+que até ahi eram só de fidalgos e padres, chamou tambem procuradores do povo, e
+favoreceu o mais que poude o seu negocio, e deu-lhes socego e cousas e tal, de
+fórma que depois poude dar para baixo nos prelados, que berravam pelos
+contractos que tinha diabo, mas D. Affonso III, que era finorio, abanou-lhes as
+orelhas. E que os papas tinham deposto não só o rei D. Sancho II, mas tambem um
+imperador da Allemanha, de modo que aos chefes dos estados já ía cheirando a
+chamusco, e principiaram a fazer parede contra o papa. Assim os bispos, que
+levavam tapona de D. Affonso III, íam a Roma fazer queixas ao papa, e o papa
+naturalmente respondia-lhes contando-lhes uma fabula que lhes vou contar a
+vocês tambem.</p>
+
+<p>&mdash;Conte lá sr. João da Agualva, exclamou o Manel da Idanha, ainda que eu, a
+dizer a verdade, não sei lá muito bem o que venha a ser isso de <em>fava</em>
+ou <em>fabula</em> ou o que é.</p>
+
+<p>&mdash;Fabula é assim uma historia em que os animaes fallam como se fossem gente,
+e pelo que elles dizem tira a gente... sim... é como diz o outro <span
+class="pn"><a name="pg_49">{49}</a></span> pelos domingos se tiram os dias
+santos... Eu lá, a estas explicações, não se póde dizer que seja um barra, mas
+em fim, em eu contando o caso, logo vos apercebem.</p>
+
+<p>&mdash;É isso mesmo, tio João, conte lá, disse o Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Uma vez as rãs foram ter com Deus Nosso Senhor e pediram-lhe um rei, e
+Deus Nosso Senhor, que estava de maré, não quiz abusar das pobresinhas, e
+atirou-lhes para o charco um cepo; mas o cepo não fazia nada, andava á tona da
+agua, para aqui e para acolá, as rãs não lhe tinham respeito nenhum, e saltavam
+n'elle, qual debaixo qual de cima, e o cepo sempre um paz d'alma, que tanto
+valia terem rei como não o terem. Vae então as rãs voltaram a Deus Nosso
+Senhor, e disseram-lhe d'esta maneira: Dê-nos Vossa Divindade um rei que se
+veja, um rei que nos governe.&mdash;Pois então ahi vae um rei como vocês querem,
+respondeu Nosso Senhor, e atirou-lhes para o charco uma serpente, e a serpente,
+a primeira cousa que fez, foi engulir as primeiras vassallas que lhe pareceram
+mais gordas, e depois outras e outras, de fórma que as pobres rãs já se não
+atreviam nem sequer a coaxar para que sua magestade não desse com ellas.
+Percebem vocês agora porque é que o papa podia contar esta historia aos bispos
+que íam ter com elle?</p>
+
+<p>&mdash;Percebo eu, acudiu logo o Manel da Idanha.<span class="pn"><a
+name="pg_50">{50}</a></span> É que elles não descançaram emquanto não pozeram
+fóra um rei que era um paz d'alma, um cepo, o D. Sancho II, e foram buscar
+outro rei que era uma serpente e que deu cabo d'elles que foi um regalo.</p>
+
+<p>&mdash;Ora, tal qual, sô Manel. Com gente assim é que eu me entendo. D. Affonso
+III bem se póde dizer que era uma serpente, porque as serpentes são manhosas, e
+elle tinha manha a valer. Mostrou-o em tudo, até no modo como se assenhoreou do
+Algarve, que era só o que faltava para Portugal chegar ao mar pelo lado do sul.
+Tomou-o aos mouros, e isso foi obra de pouco tempo; mas o rei de Castella
+começou a berrar que o Algarve lhe devia pertencer a elle. D. Affonso III nunca
+lhe disse o contrario, mas foi arrastando a entrega, e depois aproveitando
+tudo, de fórma que ás duas por tres estava senhor do Algarve, e, quando D.
+Affonso III morreu, que foi a 16 de fevereiro de 1279, estava Portugal completo
+e seguro, e, visto que chegámos ao fim d'esta primeira parte, parece-me que o
+melhor é irmos dormir, que para o outro domingo continuaremos.</p>
+
+<p>&mdash;Mas ó sô João, disse o Manel da Idanha, já agora, faça favor, não deixe ir
+a gente embora, sem nos explicar uma cousa. Vocemecê diz que o rei, para
+esmurrar as ventas aos bispos mais aos fidalgos, começou a fazer concelhos por
+dá cá aquella palha, e lá<span class="pn"><a name="pg_51">{51}</a></span> isso
+é que eu não percebo muito bem. Então que diabo tinham os fidalgos com o haver
+ou o não haver concelhos?</p>
+
+<p>&mdash;Pois tem rasão, sô Manel da Idanha, e bom é que essas cousas fiquem
+explicadas, porque a mim parece-me cá no meu modo de ver que o que nos importa
+a nós, que somos do povo, não é tanto saber as batalhas que se deram, e mais os
+reis que houve; o que nos importa é saber como é que viviam os nossos paes, e
+como se governavam e cousas e tal. Ora pois, saibam vocês que muitos dos nossos
+paes eram a bem dizer escravos, não como os do tempo dos romanos que podiam ser
+vendidos como uns negros, mas faziam parte das terras que cultivavam, e com
+ellas passavam de dono para dono. Isto foi melhorando, e os servos passaram a
+ser gente livre, mas sem ter terras suas; pagavam foros e foros pesados, os
+senhores das terras eram os reis, os nobres, os bispos e os mosteiros. As
+terras dos reis chamavam-se <em>terras da corôa</em>, as dos fidalgos e as da
+igreja <em>coutos</em>, <em>honras</em> e <em>behetrias</em>. Ora os fidalgos,
+que só tinham obrigação de servir o rei na guerra e não pagavam mais nada, ou
+por herança de seus paes, ou por doações dos reis em recompensa dos seus
+serviços, íam mettendo em si o paiz todo, já se vê de embrulhada com os padres;
+e os reis pouco tinham de seu, porque, demais a mais, fidalgos, bispos e
+conventos apanhavam tudo quanto<span class="pn"><a name="pg_52">{52}</a></span>
+podiam, o que se lhes dava e o que se lhes não dava. Por isso D. Affonso fez as
+taes <em>inquirições</em>, quer dizer, obrigou todos a porem para ali os seus
+titulos, para se saber se tinham as terras com direito ou sem elle, estabeleceu
+mais as famosas confirmações que punham a fidalguia sempre na dependencia da
+corôa, porque cada novo rei confirmava ou não confirmava as doações dos outros,
+e finalmente prohibiu aos conventos que arranjassem mais terras. E vae o povo o
+que fazia? Sempre que se podia livrar dos fidalgos e dos padres por qualquer
+modo e feitio, formava-se um concelho. Então continuavam a pagar tributo, e
+serviam nas guerras, mas não estavam sujeitos a ninguem, governavam-se elles
+por si, e tinham as terras muito suas. Ora, como os reis é que os podiam ajudar
+a ver-se livres da fidalguia, chegavam-se para elles, e os reis, que tinham nos
+concelhos gente que tambem ía á guerra e que lhes pagava tributos,
+encostavam-se para esse lado, para terem quem lhes valesse quando os barões ou
+os bispos se faziam finos. Aqui tens tu explicado pela rama como cada concelho,
+que se formava, era ao mesmo tempo um asylo de liberdade para o povo e um
+auxiliar para o rei contra as ameaças dos fidalgos.</p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigado, sô João da Agualva, tornou o Manel; mas sempre lhe digo
+que quem não sabe é como quem não vê. Ora quem me <em>havera</em> de dizer
+que<span class="pn"><a name="pg_53">{53}</a></span> esta historia de ter uma
+terra, um pelourinho no meio da praça, era de tanta vantagem cá para o povo!
+Pois até domingo, e tomára eu que passasse depressa a semana porque
+divertimentos como este é que ha muito tempo a gente não apanha.<span
+class="pn"><a name="pg_54">{54}</a><br><a
+name="pg_55">{55}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>QUARTO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">D. Diniz.&mdash;A universidade de Coimbra.&mdash;Os Templarios.&mdash;Santa
+Isabel.&mdash;D. Afonso IV.&mdash;A batalha do Salado.&mdash;Morte de Ignez de Castro.&mdash;D.
+Pedro I.&mdash;D. Fernando I.&mdash;Leonor Telles.&mdash;Estado de Portugal no fim do reinado
+de D. Fernando.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, principiou o João da Agualva, corriam os annos, e lá por esse
+mundo de Christo íam todos abrindo os olhos. Os romanos, como lhes disse, eram
+um povo que sabia o nome aos bois. Elles faziam estradas, elles faziam
+edificios que ainda hoje, arruinados, deixam ficar uma pessoa embasbacada,
+elles tinham escolas, o diabo! Mas, depois, vieram os barbaros dos bosques da
+Allemanha e da Russia, e zas, tras, catatras, lá se foi tudo pela agua abaixo.
+Por muito tempo não se pensou senão em pancadaria. Tudo era gente rude, os reis
+não sabiam ler nem escrever, os povos fallavam uma lingua assaralhopada que nem
+era latina, nem deixava de o ser. Mas a pouco e pouco foram-se aclarando
+as<span class="pn"><a name="pg_56">{56}</a></span> cousas, foi havendo estudos,
+e D. Diniz, que subiu ao throno, depois da morte de D. Affonso III, era já um
+sabichão. Elle fazia os seus versos de pé quebrado, que a gente hoje quasi que
+não entende, mas que eram já escriptos n'uma lingua com termos, elle emfim vio
+que havia escolas por esse mundo onde se ensinava tudo o que então se sabia, e
+quiz tambem ter uma que foi a universidade de Coimbra. Depois tratou de fazer
+do reino alguma cousa com geito. Já não tinha que pensar em mouros, e então
+pensou na lavoura, pensou na marinha, pensou em tudo o diabo do homem! Mandou
+vir capitães de navios, de Italia, para ensinarem os nossos, e ajudou os
+navegantes do Porto, que sempre foram gente desembaraçada, a crear uma especie
+de companhia de seguros, e não se descuidou tambem de dar para baixo na nobreza
+e nos padres para elles se não fazerem finos, e dava-lhes de modo que elles não
+tinham rasão de queixa, porque era sempre com justiça. Ora, por exemplo,
+d'antes havia uma especie de frades que se chamavam freires militares, que
+eram, como quem diz, frades e soldados ao mesmo tempo. Em vez de fazerem voto
+de rezar e de jejuar, faziam voto mas era de dar bordoada nos mouros. Havia
+umas poucas de ordens n'esse gosto, a ordem dos Templarios, a de S. Thiago, a
+de Aviz e outras. Ora, como é de ver, esses templarios, por exemplo, que se
+fartavam de tomar terras aos mouros,<span class="pn"><a
+name="pg_57">{57}</a></span> com algumas haviam de ficar para si. E depois
+tinham doações, emfim eram ricos a valer. O que acontecia por cá, tambem
+acontecia lá por fóra. Succedeu, pois, que um rei de França e um papa acharam
+excellente apanhar para si essas riquezas todas, e acabaram com a ordem dos
+Templarios em toda a parte; mas D. Diniz, que era um homem serio, não esteve
+pelos ajustes, e entendeu que seria um roubo tirar aos homens o que elles
+tinham ganho á custa do seu sangue, e então, como não havia de desobedecer ao
+papa, abolio a ordem dos Templarios, mas passou todos os bens para outra que
+pediu ao papa que creasse e a que chamou ordem de Christo.</p>
+
+<p>&mdash;Ó sr. João, perguntou o Francisco Artilheiro, esse D. Diniz não era marido
+da rainha Santa Isabel?</p>
+
+<p>&mdash;Era sim, rapaz, e já vou fallar n'essa rainha, que foi tambem uma das
+bençãos de Portugal n'esse tempo. Era filha do rei de Aragão, e bem se póde
+dizer que aquella é que foi uma verdadeira santa. Pobre senhora! Não lhe
+faltaram desgostos, não. Primeiro houve grande bulha entre o marido e um
+cunhado, D. Affonso Sanches, que embirrou em que lhe pertencia a corôa, apesar
+de ser mais novo; depois, e isso foi o peor, o filho, que veio a ser D. Affonso
+IV, revoltou-se contra o pae, e porque? Porque el-rei D. Diniz, que era
+frecheiro, e que se fartou de<span class="pn"><a name="pg_58">{58}</a></span>
+ter filhos bastardos, parecia que olhava mais por elles do que pelos proprios
+filhos do matrimonio. Imaginem o desgosto da rainha! Primeiro porque emfim não
+havia de gostar muito de ver o marido sempre ao laré com esta e com aquella a
+arranjar filhos por fóra de casa, e depois por ver assim a guerra accesa entre
+seu marido e seu filho. E ainda por cima o rei desconfiou que ella ía de
+accordo com o filho, e chegou até a tratal-a mal, e a mandal-a saír da côrte.
+Pobre senhora! aquillo era o que ali estava. Ella tudo supportou com
+resignação&mdash;as infidelidades e as injustiças do marido, só o que queria era ver
+tudo em paz. E sempre o conseguio. Tanto pediu, tanto chorou, que o filho e o
+pae vieram ás boas. Mas d'ahi a pouco torna a haver intrigas, e o D. Affonso,
+que era um vivo demonio, torna á pancadaria com o pae. Pois senhores, a batalha
+estava para ser aqui ao pé de Lisboa, no Campo Grande; mas quando já começavam
+á lambada, apparece no meio d'elles a boa rainha, que foi mesmo o anjo da paz,
+e depois que ella appareceu ninguem mais se atreveu a levantar uma lança. Oh!
+rapazes! digo-lhes que até me parece que não era necessario que o papa a
+fizesse santa para que o povo a adorasse! Pois então se aquella não fosse santa
+quem é que o havia de ser? Dizem que mudava o ouro em rosas, e rosas em ouro.
+Isso creio eu, que aquellas bentas mãos haviam de mudar<span class="pn"><a
+name="pg_59">{59}</a></span> em flores tudo em que tocassem, porque eram, como
+o outro que diz, mãos puras e boas, como a aragem de maio! Mas milagres maiores
+fazia ella ainda, porque as lagrimas que chorava em segredo caíam depois sobre
+a cabeça do pai e do filho como orvalho de paz e como chuva de amor! Sim! Sim!
+continuou o bom do João da Agualva, com voz tremula, e meio a chorar, digam lá
+vocês que ella não mudava tudo em que tocava em rosas, quando agora mesmo, que
+diabo! só de fallar n'ella, parece que até as palavras na minha bôca se estão
+mudando em flores!</p>
+
+<p>&mdash;Ai! a minha rica Santa Isabel! exclamou a tia Margarida, pondo as mãos,
+n'um enlevo. Coitadinha da minha rica santa que foi logo casada com um homem
+tão mau!</p>
+
+<p>&mdash;Não era mau, não senhora, tornou o João da Agualva, foi até um dos
+melhores reis que nós tivemos, mas como elle ás vezes lá escorregava o seu
+pedaço, e nem sempre tratou a santa como ella merecia ser tratada, bastou isso
+para que o povo começasse a inventar cousas, que elle que era um sovina, um
+desconfiado, um unhas de fome, e até os pintores, quando fazem o quadro do
+milagre das rosas, põem-n'o com uma carantonha de metter medo, que ninguem dirá
+que está ali o rei poeta, o rei a quem chamavam o pae do povo, o rei que não
+quiz roubar os templarios, o rei que fundou a universidade<span class="pn"><a
+name="pg_60">{60}</a></span> de Coimbra, o rei que tanto se desvelou pelo bem
+do paiz! E que as injustiças, por mais pequenas que sejam, sempre vem a
+pagar-se, e D. Diniz, esses peccados que teve, pagou-os bem caro, primeiro com
+a revolta de seu filho, depois com a injustiça do futuro, e agora vão vocês ver
+como o filho tambem pagou o que fizera ao pae, porque em 1325 morreu el-rei D.
+Diniz e subiu ao throno seu filho D. Affonso IV, a quem chamaram o Bravo.</p>
+
+<p>&mdash;Ora vamos lá a ver o que fez esse senhor, disse uma voz.</p>
+
+<p>&mdash;D. Affonso IV, meus amigos, tinha muito boas qualidades. Era, por exemplo,
+um homem de muito bons costumes, e foi isso até que o levou a praticar uma
+acção... emfim, depois fallaremos. Era homem serio, mas arrebatado e vingativo.
+A primeira cousa que fez, assim que subiu ao throno, foi vingar-se dos irmãos,
+por cuja causa tivera as bulhas com o pai. D'ahi guerra. Quem acudiu? A rainha
+Santa Isabel.</p>
+
+<p>Casou uma filha com o rei de Castella, Affonso XI. Este, que era do feitio
+de D. Diniz, começou a largar a mulher e a metter-se com uma tal D. Leonor de
+Gusman. D. Affonso IV, que ficára embirrando deveras com esses arranjos depois
+das turras com o pai, começou a criar má vontade ao genro, e zas, toma que te
+dou eu, ao primeiro pretexto que teve, ahi começam as bulhas. Foi uma guerra de
+cá<span class="pn"><a name="pg_61">{61}</a></span> cá ra cá, que não prestou
+para nada, mas que sempre fazia mal ao povo. No mais seguiu á risca o exemplo
+do pae. Tratou do povo, teve os fidalgos muito na mão, mais os padres tambem. E
+então com esses não foi lá só por causa das terras a que deitavam a unha, foi
+tambem por causa dos maus costumes, porque elles gostavam de passar vida airada
+e outras cousas que D. Affonso IV lhes não levou a bem. Por isso apanharam uma
+vez uma rabecada, n'uma carta que D. Affonso escreveu ao papa, que foi de
+ficarem de cara a uma banda.</p>
+
+<p>&mdash;Bem feito! acudiu a tia Margarida. Esse rei sim! esse é que me quadra. Bem
+se vê que era filho da rainha Santa Isabel!</p>
+
+<p>&mdash;Espere lá, tia Margarida, não falle antes de tempo que, como diz o outro,
+até ao lavar dos cestos é vindima. Houve no reinado de D. Affonso IV duas
+cousas famosas: primeiro a batalha do Salado, depois a morte de D. Ignez de
+Castro.</p>
+
+<p>&mdash;Foi com os hespanhoes a batalha do Salado?</p>
+
+<p>&mdash;Não homem, foi dada até para os ajudar. Já lhes disse, meus amigos, que
+nós desde o reinado de D. Affonso III tinhamos posto os mouros na rua. Mas os
+hespanhoes ainda não tinham conseguido o mesmo, os mouros estavam reduzidos
+apenas ao reino de Granada, mas sempre isso era alguma cousa. Ora agora ali em
+Marrocos estava, como sabem, a moirama toda. Imaginem que um bello dia o tal
+miramolim<span class="pn"><a name="pg_62">{62}</a></span> de Marrocos, ou como
+diabo se chamava elle, desaba em Hespanha com o poder do mundo e junta-se ao
+rei de Granada para darem cabo do rei de Castella. Era este D. Affonso XI,
+genro do nosso D. Affonso IV. Aterrado com o perigo, pediu soccorro ao sogro,
+apesar de estar mal com elle; mas o nosso rei, homem ajuizado, vio que a
+occasião não era para dize tu direi eu, que não era só Castella que estava em
+perigo, estava em perigo a Hespanha toda; se Affonso XI levasse uma tareia e
+perdesse algumas provincias ficavam aqui os mouros de raiz, e tinha de se
+começar outra vez a pôl-os fóra. Por isso não esperou por mais nada, ajuntou
+quanta gente poude, e foi em soccorro do genro. O nosso rei era homem de pulso,
+os nossos soldados tambem eram pimpões. O soccorro não foi nada mau. Na batalha
+do Salado os mouros levaram uma sova de primeira ordem, e nunca mais os de
+Marrocos vieram cá metter o nariz d'este lado do mar. D. Affonso IV voltou para
+a sua terra sem ter querido acceitar cousa nenhuma da grande preza que fizeram.
+</p>
+
+<p>&mdash;E isso de D. Ignez de Castro o que foi, ó sr. João da Agualva? perguntou a
+tia Margarida. Não foi essa Ignez de Castro que esteve aqui em Bellas, que até
+ali na quinta do marquez ha uma arvore a que chamam de Ignez de Castro?</p>
+
+<p>&mdash;Ora adeus, tia Margarida! esteve agora em<span class="pn"><a
+name="pg_63">{63}</a></span> Bellas! quer dizer, eu, como não andei com ella
+por toda a parte, não sei se por cá passaria alguma vez, mas onde viveu
+principalmente foi em Coimbra. Era uma hespanhola esta Ignez de Castro, linda
+como os amores, loura como o sol, e com um pescoço tão bonito, que lhe chamavam
+o <em>collo de garça</em>. Veio para Portugal como dama da infanta D. Constança
+que foi mulher do principe D. Pedro, filho de D. Affonso IV, mas o principe
+parece que gostou mais da dama que da mulher. Tristes amores foram aquelles,
+rapazes! Ella tinha pelo seu Pedro um fatacaz lá de dentro, que estou em dizer
+que mais gostaria ella de que elle fosse um pastor de cabras do que filho de um
+rei. A princeza D. Constança morreu, e para isso não deixaria de concorrer a
+paixão do marido, que, por mais que elle a quizesse esconder, rebentava por
+todos os lados. Coitada da princeza! tudo fez para arredar o marido d'aquelles
+mal-aventurados amores. Mas então! vão lá fugir ao seu destino! Pediu a Ignez
+de Castro que fosse madrinha de um filho que ella teve, porque n'esse tempo
+haver amores entre compadre e comadre quasi que era maior peccado que havel-os
+entre irmãos. Nada! aquillo era como um fogo valente que tanto mais se accende
+quanto mais agua lhe deitam. Em fim, morreu a princeza, e D. Pedro e D. Ignez
+ficaram á vontade, porque até ahi tinham guardado respeito á pobre senhora.
+Casariam?<span class="pn"><a name="pg_64">{64}</a></span> D. Pedro assim o
+jurou depois, mas eu estou em dizer que não, porque para casarem era necessaria
+dispensa graúda, que o papa não daria assim sem mais nem menos e com tanto
+segredo como o principe quereria. Mas, ou casassem ou não, é certo que tiveram
+tres filhos, e que o principe D. Pedro não queria saber de mais nada senão da
+sua loura Ignez.</p>
+
+<p>D. Affonso IV não viu isso com bons olhos. Sabem como elle era. Vivia só
+para a sua mulher, queria tudo em boa ordem, e não gostava d'essas fraquezas.
+Os fidalgos tambem não gostavam, mas esses por outras rasões. Tinha D. Ignez
+muita parentella, e diziam comsigo que, apenas D. Affonso IV fechasse os olhos,
+eram os Castros que davam as cartas em Portugal. Começaram a ferver as
+intrigas, e chegaram a aconselhar o rei que, visto que não havia forças humanas
+que arrancassem D. Pedro á sua Ignez, o melhor era darem cabo d'ella. D.
+Affonso IV torceu o nariz, mas lá por dentro estava em braza. Ora, imaginem
+vocês! D. Affonso, no principio da sua vida, tivera os maiores desgostos por
+causa dos bastardos de seu pae. Tambem o tinham feito de fel e vinagre os
+amores de seu genro com D. Leonor de Gusman. Morria pelo neto, um rapazinho
+bonito como a aurora, que tinha de ser depois D. Fernando o Formoso. Lembrou-se
+das amarguras que viriam a causar ao rapazito os filhos da amante<span
+class="pn"><a name="pg_65">{65}</a></span> querida, que talvez até lhe
+roubassem a corôa. Subiu-lhe a mostarda ao nariz com a teima do filho, e deu
+ordem aos seus tres conselheiros, Alvaro Gonçalves, Diogo Lopes Pacheco e Pedro
+Coelho para que o livrassem de D. Ignez. Ahi vão todos até Coimbra, onde estava
+muito socegada a triste da rapariga. Ella, apenas suspeitou do caso, veiu com
+os filhos lançar-se aos pés do rei. O pobre D. Affonso enterneceu-se, mas os
+conselheiros é que viram o caso mal parado. «Se elle perdôa, disseram comsigo,
+nós é que pagamos as favas.» Não esperaram que D. Affonso resolvesse as cousas
+de outro modo. Foram-se á pequena, e, emquanto o diabo esfrega um olho,
+ferraram com ella no outro mundo!</p>
+
+<p>&mdash;Ai que malvados! bradaram todos.</p>
+
+<p>&mdash;Isso eram, tornou o João da Agualva. Sim! que eu não desculpo D. Pedro,
+nem a desculpo a ella. Se uma mulher, só porque gosta de um homem, não está lá
+com mais ceremonias e passa a viver com elle, sem a benção do padre, aonde irá
+isto parar? mas tambem matal-a sem mais nem menos, matal-a no meio dos seus
+filhos, matar uma pobre menina, que não fazia senão chorar, ah! só uns malvados
+eram capazes de fazer similhante cousa. Por isso tambem, vêem vocês? D. Affonso
+foi um bom rei, um homem de bons costumes, um valente, tudo quanto quizerem,
+mas a final de contas perguntem ahi a um pequeno:&mdash;Quem era D, Affonso IV?<span
+class="pn"><a name="pg_66">{66}</a></span> Cuidam que elle que lhes responde:
+Era um bom rei, isto, aquillo e aquell'outro. Não, senhores, diz logo: Foi o
+rei que matou Ignez de Castro. E como assassino é que a gente o conhece, e no
+seu manto real não se vê o sangue das batalhas, vê-se mas é o sangue de Ignez!
+E esta? Se a não matassem, o que dizia a historia? Foi a amante de um rei.
+Olhem que gloria! E assim? Todos choram por ella, como a tia Margarida, que
+está ali a limpar os olhos com a ponta do seu avental.</p>
+
+<p>&mdash;E o que fez D. Pedro? perguntou o Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;O que fez D. Pedro? Ah! com os diabos! Imaginem! Elle ainda tinha peior
+genio que o pae. Apenas soube do que succedera, aquillo parecia um leão ferido.
+Saltou logo para o campo em som de guerra, e D. Affonso pagou o que fizera ao
+pae, porque teve tambem o filho revoltado contra si. Correu muito sangue por
+esse reino, até que emfim se fez a paz, mas D. Affonso IV pouco tempo
+sobreviveu, morrendo em 1359, dois annos depois da morte de Ignez.</p>
+
+<p>&mdash;Subio ao throno D. Pedro, não é verdade? perguntou com muito interesse o
+Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade que sim, e, meus amigos, então é que se viu o amor lá de dentro
+que elle tinha á sua Ignez. Apenas subio ao throno, os assassinos da<span
+class="pn"><a name="pg_67">{67}</a></span> Castro safaram-se para Hespanha, mas
+D. Pedro lá fez o seu negocio com o rei de Castella, de fórma que apanhou os
+criminosos, menos um, Diogo Lopes, que conseguiu fugir. Assim que os teve em
+seu poder, fez-lhes torturas. A um mandou arrancar o coração pelo peito e a
+outro pelas costas.</p>
+
+<p>&mdash;Credo! exclamou a tia Margarida.</p>
+
+<p>&mdash;Por isso lhe chamavam D. Pedro o Cruel, assim como tambem lhe deram o nome
+de D. Pedro o Justiceiro. Justiça fez elle, porque bradava aos céus a morte de
+D. Jgnez, mas uma crueldade assim é de se porem a uma pessoa os cabellos em pé!
+Que mais querem? D. Pedro parece que não pensava n'outra cousa senão na sua
+Ignez, elle trasladou-a, com um estadão nunca visto, de Coimbra para Alcobaça,
+onde lhe mandara fazer um tumulo que era mesmo uma lindeza. Elle declarou que
+tinha casado com ella, e até se diz que a sentou, depois de morta, no throno, e
+mandou que todos lhe beijassem a mão. Mas isso parece-me patranha, ainda que D.
+Pedro era capaz d'essas extravagancias e de muitas mais. Porque effectivamente,
+meus amigos, parece que elle tinha endoidecido com a morte de D. Ignez. Tinha
+assim de repente umas furias que era livrar quem estivesse diante. Era
+justiceiro, é verdade, mas fazia justiça á doida e á bruta. Outras vezes
+entrava por essa Lisboa dentro a dançar, muito contente da sua vida. Governava
+bem, não ha<span class="pn"><a name="pg_68">{68}</a></span> duvida, punia pelo
+povo, abaixava a prôa aos bispos, conservava o reino em paz, e juntava bom
+dinheiro nos cofres para uma occasião de apuros, mas era ao mesmo tempo umas
+mãos rotas com os fidalgos, que tornaram a fazer-se finos, como se viu depois.
+</p>
+
+<p>Foi em 1367 que D. Pedro morreu, e logo subiu ao throno D. Fernando, a quem
+chamavam o Formoso, de bonito que era. Lá que elle tinha telha, isso é que não
+padece duvida, porque nunca se viu uma ventoinha assim. Aquillo era mesmo um
+gallo de torre de igreja. Primeiro deu-lhe na tonta o querer ser rei de
+Castella, de mais a mais não tendo geito nenhum para a guerra, e não gostando
+de batalhas. D'ahi, o que resultou? Gastou o que tinha, levou pasada de crear
+bicho, e teve de fazer as pazes. Mas vejam vocês que cabecinha! Quando fez
+guerra a Castella, alliou-se com o Aragão, mandou-lhe para lá bom dinheiro, e
+prometteu casar com a filha do rei, que se chamava D. Leonor. Faz as pazes com
+o de Castella, e, sem se lembrar já do primeiro casamento, promette casar com a
+filha do rei castelhano, que tambem se chamava Leonor. O de Aragão não fez
+caso, metteu o dinheiro portuguez, que lá tinha, nas algibeiras, e nunca mais
+deu contas. Mas o peor não é isso, o peor é que D. Fernando tambem não casou
+com D. Leonor de Castella, porque n'este meio tempo namorou-se de uma dama
+do<span class="pn"><a name="pg_69">{69}</a></span> paço, chamada D. Leonor
+Telles, e desposou-a! Ao menos n'uma cousa era elle constante, é que não saía
+das Leonores.</p>
+
+<p>Esta Leonor Telles foi o que se chama uma mulher de truz, bonita como as que
+o são, manhosa como a serpente, e dando, como a nossa mãe Eva, o cavaquinho
+pelo fructo prohibido. Quando casou com D. Fernando já era casada com um D.
+João Lourenço da Cunha, mas lembrou-se á ultima hora de que ainda eram
+parentes, e o rei arranjou do papa que desfizesse o casamento. João Lourenço da
+Cunha deu graças ao céu por se ver livre da mulher que estava para lh'a pregar
+mesmo na menina do olho, e D. Fernando levou D. Leonor Telles para casa. Mas o
+povo é que não esteve pelos autos e gritou e berrou e fez tumulto, tanto que
+el-rei safou-se de Lisboa. Houve mosquitos por cordas por esse reino todo, e a
+final acabou tudo em paz. D. Leonor ficou sendo rainha, os de Lisboa apanharam
+para o seu tabaco e D. Fernando não tardou a levar a paga.</p>
+
+<p>O rei de Castella achou que D. Fernando o tratara com tal ou qual
+sem-ceremonia, e quiz-lhe dar uma lição de bem viver. Veio a Portugal, chegou a
+Lisboa, entrou por ahi dentro, fez um estrago de seiscentos demonios, e dava
+cabo da capital se D. Fernando lhe não vem pedir pazes, que, já se vê, custaram
+caras. Aqui ficámos finalmente em socego,<span class="pn"><a
+name="pg_70">{70}</a></span> e então D. Fernando parecia outro homem. Sabia
+governar aquelle rapazote, quando as mulheres lhe não faziam andar a cabeça á
+roda, ou quando se não lembrava de ter outros reinos. Era economico e
+arranjado. Sabia pôr as cousas no seu logar. Foi elle que cercou Lisboa de
+fortificações, que depois não serviram de pouco ao seu successor.</p>
+
+<p>Mas, coitado, acertára mal, em todos os sentidos, com a tal D. Leonor
+Telles, que era mesmo o demonio em pessoa; quando se enfastiou d'elle, tomou
+amores com um gallego que vivia em Portugal, chamado conde Andeiro. El-rei,
+entretanto, metteu-se outra vez em guerras com Castella, e pediu auxilio aos
+inglezes. Oh! rapazes, que tristes tempos foram aquelles! A vida do paço era um
+desaforo. Estava ali aquella mulher, aquella... não sei que diga, a pôr na
+cabeça a corôa da rainha Santa Isabel, a corôa que não podéra pôr nos seus
+cabellos louros a pobre Ignez de Castro, que, apesar de todos os pezares, era
+mil vezes mais capaz do que essa rainha de contrabando, que andou de um para
+outro, sem vergonha de qualidade nenhuma! E ainda por cima era malvada!
+vingativa! e para ella a vida de um homem valia tanto... como... a honra do
+marido, que é o mais que se póde dizer!</p>
+
+<p>O povo desgraçado, porque tudo se juntava. As guerras com Castella sempre
+infelizes! os inglezes,<span class="pn"><a name="pg_71">{71}</a></span> como
+sempre, apesar de amigos, muito peores do que se fossem inimigos. Os fidalgos
+de Castella, que tinham tomado o partido de D. Fernando, tratados aqui á
+grande! e ainda por cima D. Fernando sem ter filhos, e com a filha unica já
+casada com D. João I de Castella. D. Fernando, apesar da sua cegueira, já ía
+percebendo as cousas, e tinha lá por dentro um desgosto que o ralava. Tambem em
+1383, tendo apenas trinta e oito annos de idade, esticou a canella, depois de
+um reinado que podia ter sido muito proveitoso, e que assim foi uma desgraça
+para todos. E eu tambem me vou chegando para a cama, não sem lhes dizer que
+houvera mudança completa no modo de viver da nossa gente n'estes ultimos
+reinados. Os fidalgos tinham levado para baixo, e estavam já em grande parte,
+por assim dizer, ás sopas dos reis. Os concelhos do povo tinham-se feito
+fortes, e batiam o pé á fidalguia, e ao clero, principalmente, nas côrtes, em
+que entravam. O resultado de tudo isso é o que vocês hão de ver de hoje a oito
+dias.<span class="pn"><a name="pg_72">{72}</a><br><a
+name="pg_73">{73}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>QUINTO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">Interregno.&mdash;Regencia de Leonor Telles.&mdash;Morte do conde
+Andeiro.&mdash;O cerco de Lisboa.&mdash;Nuno Alvares Pereira e João das Regras.&mdash;As
+côrtes de Coimbra.&mdash;D. João I.&mdash;A batalha de Aljubarrota.&mdash;Os filhos de D. João
+I.&mdash;Tomada de Ceuta.&mdash;Os descobrimentos.&mdash;D. Duarte.&mdash;Expedição de
+Tanger.&mdash;Menoridade de D. Affonso V.&mdash;O infante D. Pedro.&mdash;Batalha de
+Alfarrobeira.&mdash;Tomada das praças africanas.&mdash;Guerras com Hespanha.&mdash;Batalha de
+Toro.&mdash;Ida de D. Affonso V a França.&mdash;Continuação dos descobrimentos.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, disse o João da Agualva no outro domingo, o que eu agora vou
+contar ha de parecer assim a vocês grande patranha, e a todos pareceria se não
+houvesse tantas provas da verdade. É caso de uma pessoa ficar pasmada ver o que
+fez este paiz só, ao canto do mundo, pequeno como é. Oiçam, pois, rapazes, com
+attenção. Apenas morreu el-rei D. Fernando, tratou logo D. Leonor Telles de
+fazer proclamar rainha de Portugal a sua filha D. Beatriz, que era uma
+pequenota casada com o rei de Castella D. João I, e ao mesmo tempo fez-se
+regente. O povo, que não queria ser castelhano, ou hespanhol como hoje
+diriamos, nem que o matassem, começou a levantar-se por toda a parte. Mas<span
+class="pn"><a name="pg_74">{74}</a></span> o que faltava era um chefe. Os
+filhos de D. Ignez de Castro andavam fugidos por fóra de Portugal, um por isto,
+outro por aquillo, mas quem estava em Lisboa era um rapaz muito sympathico,
+filho bastardo de el-rei D. Pedro, que este fizera mestre de Aviz, e a quem D.
+Leonor Telles sempre tivera muito odio. A elle se dirigiram. O mestre vio que
+não havia remedio senão fazer o que o povo queria. Toma logo a sua resolução,
+vae ao paço e mata elle mesmo o conde Andeiro, põe-se á frente do povo de
+Lisboa, põe no meio da rua D. Leonor Telles, e proclama-se <em>defensor do
+reino</em>. O povo toma todo, sem excepção, o seu partido, e por todas as
+provincias; mas uma grande parte dos fidalgos foram para o rei de Castella.
+Entre os que ficaram figurava um rapaz sympathico tambem, valente como as
+armas, leal como a sua espada, amigo intimo e dedicado do mestre de Aviz, Nuno
+Alvares Pereira.</p>
+
+<p>Sabedor do que se passava, desce a Portugal o rei de Castella com um
+exercito poderoso; mas pára deante de Lisboa já fortificada. Os lisboetas,
+commandados pelo mestre de Aviz, defenderam-se como homens, e o rei de Castella
+teve de se pôr na pireza; entretanto Nuno Alvares Pereira, que estava no
+Alemtejo, ganhava a batalha dos Atoleiros, e começava a estabelecer um systema
+de guerra que havia de dar muito de si. Como os concelhos estavam todos com o
+mestre de Aviz, a força do exercito<span class="pn"><a
+name="pg_75">{75}</a></span> era principalmente infanteria. Pois Nuno Alvares
+Pereira aproveitou isso para ensinar os nossos a combaterem a pé. Formava uma
+especie de quadrado, ou como é que se chama, com os seus soldados, quadrado
+onde a cavallaria fidalga vinha sempre despedaçar-se.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! se elles calavam bayoneta, observou o Francisco Artilheiro, não
+entrava lá para dentro nem um cavallaria só que fosse.</p>
+
+<p>&mdash;Não calavam bayoneta, respondeu o João da Agualva, porque era cousa que
+então não havia, mas fincavam as lanças no chão, e fossem lá entrar com elles.
+</p>
+
+<p>Acabado o cerco de Lisboa, reuniram-se os dois amigos, e foram conquistar
+todas as terras de Portugal em que os fidalgos tinham levantado a bandeira de
+Castella. Ao mesmo tempo reuniram-se côrtes em Coimbra, para se escolher um
+rei. Ahi teve D. João I outro amigo, advogado de mão cheia, fino como um coral,
+chamado João das Regras, que foi quem lhe fez ganhar a eleição. Assim, o mestre
+de Aviz tinha a felicidade de ter dois amigos particulares que o serviam
+excellentemente, e cada um segundo o seu officio. Para cousas de penna e
+parlenda João das Regras, para batalhas e mais bordoada correspondente Nuno
+Alvares Pereira.</p>
+
+<p>&mdash;Mas então as côrtes é que escolheram quem havia de ser rei? perguntou o
+Manuel da Idanha.<span class="pn"><a name="pg_76">{76}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Tal e qual.</p>
+
+<p>&mdash;E eram côrtes como as de agora? acrescentou o Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Não, senhor, havia os tres braços, como então se dizia, clero, nobreza e
+povo. Os bispos e os conventos mandavam os seus escolhidos, os fidalgos
+mandavam os seus e o povo tambem, quer dizer cada concelho mandava o seu
+procurador. Antes de D. Affonso III, íam só os padres e os fidalgos, depois é
+que o povo tambem começou a figurar n'essas festas; mas n'estas côrtes, que se
+reuniram em Coimbra, como muitos fidalgos estavam mettidos com o rei de
+Castella, póde-se dizer que foi o povo quem escolheu, e que o mestre de Aviz,
+isto é, D. João I, foi verdadeiramente o eleito do povo.</p>
+
+<p>&mdash;E ahi lhe valeu o João das Regras? acudiu o Manoel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Isso mesmo, porque lá para fallar não havia outro como elle. Mas d'ahi a
+pouco tornou-se necessario fallar outra lingua, a lingua das espadas, e n'essa,
+quem lia de cadeira era Nuno Alvares, que o novo rei fez logo condestavel. Os
+castelhanos, que tinham ido de cara á banda, voltaram á carga, e d'essa vez com
+um exercito immenso, porque o D. João I de lá tinha resolvido acabar de todo
+com o D. João I de cá. Antes de vir o rei com toda a sua fidalguia, já um corpo
+hespanhol tinha entrado pela Beira dentro, mas em Trancoso levou uma
+tareia<span class="pn"><a name="pg_77">{77}</a></span> de primeira ordem. Não
+se emendaram e disseram comsigo: Agora é que vão ser ellas. A fallar a verdade
+tinham rasão. D. João I de Portugal teria, quando muito, uns oito ou nove mil
+homens, D. João I de Castella não tinha menos de trinta mil, e alem d'isso
+trazia comsigo peças de artilheria que era a primeira vez que se viam em
+Portugal. Encontraram-se os dois exercitos em Aljubarrota, que fica entre
+Alcobaça e Leiria, a 14 de agosto de 1385, grande dia, rapazes! Eu não sei que
+diabo tinham os nossos, mas parece que os animava um esforço sobrenatural. E
+elles não eram nenhuns fracalhões, os castelhanos, era tudo gente valente e
+destemida, mas os nossos estavam todos resolvidos a morrer ali mesmo. Depois
+tinham cabos de guerra que sabiam da poda, emquanto os de lá eram valentes, e
+mais nada. De lá, eram tudo fidalgos muito bem montados, com as suas espadas a
+luzir ao sol; de cá, gente do povo, soldados de pé, mas que todos queriam ser
+portuguezes com o seu rei que elles tinham feito, e que tambem com elles queria
+vencer ou morrer. E por isso Nuno Alvares dizia: Rapaziada, pé terra! e zás!
+lanças no chão, e venha para cá a fidalguia castelhana, mais os traidores
+portuguezes que se uniram ao estrangeiro. E não é dizer que não houvesse
+fidalgos tambem de cá. Oh! se os havia, e dos bons e dos melhores, porque eram
+todos os que tinham preferido morrer com<span class="pn"><a
+name="pg_78">{78}</a></span> um rei portuguez a receber do estrangeiro honras e
+castellos, gente briosa e valente, e aventurosa, que combatia pelo seu rei, e
+pela sua dama, e pela sua honra e pela sua patria. Tambem, não lhes digo nada,
+nunca levaram os hespanhoes tão formidavel refrega. Por muito tempo lhes ficou
+lembrada, e o rei, que fugio a toda a brida para Santarem e de Santarem para a
+sua terra, não se podia consolar de similhante desastre. D. João I mandou
+fazer, no sitio da batalha, uma igreja e um convento maravilhoso, a igreja e o
+convento da Batalha, para agradecer a Deus a sua victoria,&mdash;e rasão tinha para
+isso, porque foi Deus decerto quem deu aos portuguezes o esforço e a galhardia
+que então mostraram, que, eu, meus amigos, não sou dos que acreditam que Deus
+se mette n'estes barulhos dos homens, mas quando um povo combate pela sua
+terra, que é como quem diz quando um filho combate pela sua mãe, então, meus
+amigos, ha uma cousa cá dentro em nós, que vem a ser a consciencia a bradar-nos
+que Deus, que é a justiça e a bondade, ha de querer a victoria do que é justo e
+do que é bom.</p>
+
+<p>&mdash;E a padeira de Aljubarrota, sr. João da Agualva? perguntou o Francisco
+Artilheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Deixemo-nos lá de padeiras. Eu não sou muito amigo de mulheres que se
+mettem n'estas danças. A padeira era melhor que amassasse pão. Se é
+verdade<span class="pn"><a name="pg_79">{79}</a></span> o que se diz, quando os
+castelhanos já íam de rota batida, a padeira foi-lhes no encalço e deu cabo de
+sete com a pá do forno. Olhem que grande façanha: matar quem vae fugindo!
+Aquillo era mulher de faca e calhau, e eu torço sempre o nariz a essa gentinha.
+Vamos adiante. A batalha de Aljubarrota decidio a sorte de Portugal. Ainda
+durou a guerra muito tempo, ainda o condestavel deu nova tareia nos hespanhoes
+em Valverde, mas a verdade é que estava tudo acabado. D. João I governou então
+com socego, casou com uma senhora ingleza muito virtuosa e muito boa, D.
+Philippa de Lencastre, teve muitos filhos que educou muito bem, e que foram
+todos homens de saber e alguns d'elles grandes homens, chamou muitas vezes as
+côrtes para ouvir o que ellas tinham que lhe dizer ácerca dos negocios do
+Estado, e governou tão bem, que se lhe chama, com toda a justiça, o rei da
+<em>Boa Memoria</em>. Já em idade adiantada, trinta annos depois da batalha de
+Aljubarrota, sentiu D. João I um appetite de tentar alguma empreza grande. Quem
+o metteu n'isso foram os filhos, tudo rapazes decididos que andavam mortos por
+se metter n'alguma cousa que lhes désse gloria. O que haviam de fazer? Foram-se
+aos mouros. Passaram o estreito, e tomaram Ceuta que fica ali mesmo defronte de
+Gibraltar. Vêem vocês? Aquillo era uma raça que não podia estar quieta.
+Emquanto jogavam as cristas com<span class="pn"><a name="pg_80">{80}</a></span>
+os visinhos, ía tudo bem, mas depois? Os aragonezes viravam-se para Italia, os
+castelhanos lá tinham os mouros granadís, nós o que tinhamos? Os mouros de
+Marrocos e as ondas do Oceano. Pois foram as ondas e os mouros que pagaram as
+favas. D. João I tomou Ceuta, e D. Henrique, seu filho, deliberou tomar o
+desconhecido.</p>
+
+<p>&mdash;Ó sr. João, exclamou o Francisco Artilheiro, devo confessar que lá isso é
+que eu não percebo muito bem.</p>
+
+<p>&mdash;Pois eu te explico, rapaz. Julgava-se d'antes que do outro lado do mar não
+havia cousa nenhuma, ou antes que as ondas lá para longe eram um verdadeiro
+inferno ou um paraizo tambem, porque uns diziam que tudo para alem eram ilhas
+de santos e jardins do céu, e outros que eram ilhas do diabo e terras de
+maldição; que havia umas estatuas encantadas que não deixavam passar ninguem, e
+um mar de pez que engolia os navios. Ora vocês hão de saber que póde uma pessoa
+ser muito valente, e ter medo de almas do outro mundo, e de feitiços e do
+diabo. Ali está o Francisco Artilheiro, que, quando foi na expedição á Africa,
+se atirou ao Bonga como gato a bofes, que é capaz de varrer uma feira, e que,
+se lhe disserem que vá de noite ao palacio do marquez, lá ao corredor onde
+dizem que falla a voz do Roque...</p>
+
+<p>&mdash;Tarrenego! exclamou o Francisco Artilheiro,<span class="pn"><a
+name="pg_81">{81}</a></span> um homem é para um homem, mas lá uma alma do outro
+mundo!...</p>
+
+<p>&mdash;Ora ahi está! era o que acontecia aos soldados de D. João I. Com mouros e
+castelhanos tudo o que quizessem, mas com as aventesmas do mar... arreda! Pois
+imaginem vocês se D. Henrique não fez um milagre conseguindo que os marinheiros
+do Algarve, porque elle, desde que poz o fito em querer saber o que o mar
+escondia, foi-se estabelecer em Sagres, mesmo na ponta do cabo de S. Vicente,
+conseguindo que os marinheiros do Algarve se mettessem ás ondas, sem medo de
+phantasmas, nem de avejões. E foram aquelles valentes, que fizeram tão grande
+no mundo este paiz tão pequeno, e partiram por esses mares fóra, sem saber o
+que por lá havia, e sempre a tremer da perdição da vida e da perdição da alma,
+e foram, e encontraram a Madeira e encontraram os Açores, e Gil Eanes dobrou o
+cabo Bojador, que era onde diziam que estavam as taes estatuas encantadas, e,
+como não encontrou estatuas nenhumas, lá foi tudo atraz d'elle, e, de repente,
+Portugal poude desenrolar diante do mundo um outro mundo ignorado, a costa da
+Africa toda, com os seus grandes rios, os seus bosques verdes, o seu povo de
+pretos, como eu vi, n'um theatro de Lisboa, desenrolar-se diante da platéa
+pasmada um panno pintado com cidades e quintas e ilhas e rios, que era de uma
+pessoa ficar de boca aberta. Ah! meus<span class="pn"><a
+name="pg_82">{82}</a></span> amigos, podem agora não fazer caso de nós, e
+podemos nós tambem dizer mal de nós mesmos, mas um povo que assim se atreve a
+arcar com o que mette medo aos mais valentes, e abre aos outros as portas de um
+mundo maravilhoso, é um grande povo, digam lá o que disserem.</p>
+
+<p>&mdash;E D. João I é que fez tudo isso? perguntou o Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Não foi elle, mas foi o filho, D. Henrique, que era um sabio, e que a seu
+pae deveu a educação que recebera; e o grande rei, que salvára Portugal do
+estrangeiro, teve a gloria, antes de morrer em 1433, de ver começada essa obra
+que havia de tornar para sempre grande no mundo o seu nome e o nome de
+Portugal.</p>
+
+<p>Succedeu-lhe seu filho, D. Duarte, a quem chamaram o <em>Eloquente</em>,
+pelo bem que fallava e que escrevia, porque tambem fazia livros como o rei D.
+Diniz, e livros muito bem feitos. Coitado! não merecia a sorte que teve. Os
+irmãos, D. Henrique e D. Fernando, quizeram continuar a obra do pae, e foram
+tomar Tanger. Não o conseguiram, perderam muita gente, e para se salvar o
+exercito das garras dos mouros, teve de ficar preso na Moirama o infante D.
+Fernando. Para o livrar era necessario entregar Ceuta, mas o infante D.
+Fernando, que bem mereceu o nome de <em>Santo</em> que lhe pozeram, não quiz
+nunca ouvir fallar em similhante cousa, e preferiu<span class="pn"><a
+name="pg_83">{83}</a></span> morrer atormentado nas masmorras de Fez a
+consentir que dessem por elle aos mouros uma terra, que tanto sangue nos
+custára. Tudo isto foram desgostos grandes para o pobre D. Duarte, que morreu,
+depois de cinco annos de reinado, em 1438, da peste que então assolou o reino,
+porque não houve desgraça que n'esse tempo não acontecesse.</p>
+
+<p>Succedeu-lhe um filho pequeno que tinha, e que foi D. Affonso V, e, como D.
+Duarte era muito amigo da mulher, foi a ella que nomeou regente. Ora, na
+verdade, tendo o pequeno uns poucos de tios que seriam todos grandes reis, como
+D. Pedro, D. Henrique e mesmo D. João, dar a regencia a uma mulher, e de mais a
+mais hespanhola, era tolice graúda, por isso o povo não gostou, e as côrtes
+convidaram D. Pedro a tomar conta da regencia. A rainha, que era levada da
+bréca, e que nunca podéra ver os cunhados, deu pulo de corça com esta
+resolução, a que foi obrigada a ceder, e, com o partido que tinha, agitou o
+reino de tal maneira, que D. Pedro não teve remedio senão tomar providencias, e
+uma d'ellas foi tirar o filho á rainha, porque o pequeno estava sendo nas mãos
+d'ella um instrumento de revolta. A final, a rainha foi para Hespanha, mas eu
+estou convencido, rapazes, que o odio que D. Affonso V sempre teve ao tio veio
+d'ahi. Ora imaginem vocês! D. Affonso era uma creança n'esse tempo, agarrado á
+mãe como são todas as creanças; não percebia cousa nenhuma<span class="pn"><a
+name="pg_84">{84}</a></span> de politica nem de meia politica, viu-se arrancado
+dos braços da sua mamãsinha, que se agarrava a elle a chorar, e arrancado por
+quem? Por seu tio. Depois, quando fosse maior, podia reconhecer que o tio era o
+que se podia chamar um grande homem, que lhe tinha governado o reino como
+ninguem seria capaz de o governar, que era tão pouco amigo de vaidades, que nem
+quizera que lhe fizessem uma estatua, mas o rancor da creança nunca se foi
+embora. Pois o tio, apenas elle chegou á maioridade, logo lhe entregou o
+governo, sem a mais pequena demora, e foi viver para Coimbra com o maior
+socego. Apesar de tudo isso, e apesar de ser muito amigo da mulher que era
+filha de D. Pedro, o rei tal odio tinha ao tio e ao sogro que deu ouvidos a
+todas as intrigas dos inimigos d'elle, e principalmente ás do primeiro duque de
+Bragança, seu tio tambem, filho bastardo de D. João I; chegou o duque a
+levantar tropas para ir contra o pobre D. Pedro, que, espicaçado e ralado por
+todas as fórmas, teve de tratar da sua defeza. Emquanto o duque de Bragança
+levantava tropas por sua conta e risco, achava o rei isso muito bem feito;
+apenas o infante D. Pedro juntou alguns soldados para não atravessar esse reino
+ao desamparo, logo D. Affonso V entendeu que era caso de rebeldia e traição, e
+marchou contra elle. Na Alfarrobeira, ali ao pé de Alverca, se encontraram as
+tropas de um e as tropas<span class="pn"><a name="pg_85">{85}</a></span> do
+outro. Não houve batalha, mas travaram-se de rasões os soldados, e, quando mal
+se precatavam, achou-se tudo embrulhado na bulha, e lá morreu o pobre do
+infante D. Pedro, tão sabio, tão bom, tão justiceiro.</p>
+
+<p>Quem ouvir isto, ha de dizer que D. Affonso V era um malvado, pois não era;
+cabeça de vento sim, nunca houve outra igual! Sympathico e bondoso, um
+mãos-rotas, principalmente para os fidalgos que apanhavam d'elle quanto
+queriam, enthusiasmava-se todo por cousas que já não importavam a ninguem, e
+quiz até fazer uma cruzada contra os turcos. Os outros principes christãos não
+estiveram pelos autos, e vae elle então voltou-se contra os mouros da Africa, e
+é certo que juntou a Ceuta as praças de Tanger, Arzilla e Alcacer Ceguer. Por
+isso lhe chamaram o <em>Africano</em>. Emfim, bom seria que nunca tivesse
+pensado n'outra cousa, mas deu-lhe na veneta querer tambem ser rei de Hespanha,
+e, quando lá houve grande bulha para se saber quem havia de succeder ao rei que
+morrera, se havia de ser D. Isabel que era irmã, se D. Joanna que era filha, o
+nosso D. Affonso, apezar de já não ser novo, casou com esta, que vinha a ser
+tambem sua sobrinha, ao passo que D. Fernando de Aragão casava com a outra.
+D'ahi veio uma guerra levada dos demonios; mas, a final, D. Affonso deu a
+batalha de Toro, que ficou indecisa, mas foi o mesmo que se<span class="pn"><a
+name="pg_86">{86}</a></span> a perdesse, porque não poude continuar a guerra. De
+que se ha de lembrar então o nosso D. Affonso V? De ir em pessoa pedir soccorro
+ao rei Luiz XI de França, que era o mais manhoso de todos os principes, e que
+não fazia nada sem interesse. Luiz XI andou a cassoar com elle, até que D.
+Affonso V mandou dizer ao filho, que ficára a governar o reino, que subisse ao
+throno, porque elle abdicava, e ía para a Terra Santa; mas depois muda de
+tenções, e, quando já ninguem o esperava, apparece em Portugal. O filho é que
+não quiz saber de mais nada; entregou-lhe logo a corôa, que D. Affonso
+acceitou, morrendo quatro annos depois, em 1431.</p>
+
+<p>&mdash;Ó sr. João, interrompeu o Bartholomeu, e essa historia de descobrir terras
+novas tinha parado?</p>
+
+<p>&mdash;Qual tinha parado, homem! Emquanto D. Henrique viveu, e só expirou em
+1460, quando já D. Affonso V era homem, não pensou n'outra cousa; todos os
+annos se ía descobrindo mais alguma porção da Africa, e já não havia quem
+acreditasse em carapetões de estatuas. Os portuguezes, o que faziam era sempre
+seguir para baixo, até ver se topavam com a India, ou então se davam com um rei
+que diziam que era christão, e a quem chamavam o Prestes João das Indias.</p>
+
+<p>&mdash;E quem era esse rei? perguntou o Manuel.</p>
+
+<p>&mdash;Eu depois lhes digo, rapazes, agora não me fallem á mão. O que é certo é
+que estava já descoberta<span class="pn"><a name="pg_87">{87}</a></span> uma
+boa porção da Africa, e já por lá se fazia muito bom negocio, tanto que D.
+Affonso V, que andava embrulhado com outras cousas, e que não podia cuidar dos
+descobrimentos como o tio, arrendou o commercio da costa da Mina a um tal
+Fernão Gomes, com a condição d'elle continuar a descobrir terras. Felizmente,
+quem ía subir ao throno era um rei de outra laia, que tinha lume no olho, e que
+havia de levar as cousas pelo rumo que devia de ser, para gloria do nosso paiz.
+</p>
+
+<p>Foi D. João II esse rei, e com rasão lhe chamaram o principe perfeito,
+porque não houve nenhum que entendesse tão bem do seu officio; mas, antes de
+fallar n'elle, meus amigos, deixem-me vocês explicar-lhes o que é que se tinha
+passado no tempo d'esses tres primeiros reis da dynastia que se chamou de Aviz.
+</p>
+
+<p>Viram vocês como os reis se encostaram ao povo para dar cabo da nobreza e do
+clero, e como lhe deram força para que os fidalgos e padres se não fizessem
+finos. Por isso tambem se póde dizer que foi o povo quem fez rei D. João I, e
+este nunca se esqueceu d'isso. Comtudo, padres e fidalgos, continuavam a ser
+muito poderosos, e, se D. Duarte, com a lei chamada mental, e o infante D.
+Pedro lhes tinham dado para baixo, D. Affonso V quasi que desfizera tudo,
+porque com elle não havia parente pobre, dava aos fidalgos o que elles queriam,
+e com<span class="pn"><a name="pg_88">{88}</a></span> rasão dizia o filho que
+seu pae o deixára rei das estradas de Portugal, o que, valha a verdade, não
+devia ser um grande reino. Ora agora acontecia tambem o seguinte: é que o povo,
+nas côrtes, estava sendo mais um servo do rei do que outra cousa. Já não podia
+dizer aos reis: «Toma lá, dá cá.» Já não era cada concelho que mandava um
+procurador, juntavam-se uns poucos de procuradores para mandar um deputado a
+que chamavam definidor, e o rei sempre os podia ter mais na sua mão do que á
+turbamulta dos antigos procuradores. Alem d'isso, os doutores, o que aprendiam
+nas escolas eram as leis de Roma, o direito romano, e ahi o que se dizia era
+que o rei podia fazer o que quizesse. O que resultava? Resultava que o clero e
+a nobreza haviam de levar para baixo, mas que o povo depois... esperasse pela
+pancada. É o que vocês saberão para o domingo que vem, porque a tia Margarida
+está a caír com somno, e eu não quero que digam de mim, como de alguns
+prégadores, que sou bom para quem anda com falta de dormir.<span class="pn"><a
+name="pg_89">{89}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>SEXTO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">D. João II.&mdash;As côrtes de Évora.&mdash;Morte do duque de
+Bragança.&mdash;Morte do duque de Vizeu.&mdash;Continuação dos descobrimentos.&mdash;O cabo da
+Boa Esperança.&mdash;Christovão Colombo.&mdash;Entrada dos judeus.&mdash;Morte do principe D.
+Affonso.&mdash;D. Manuel.&mdash;Descobrimento da India e do Brazil.&mdash;Os conquistadores da
+India.&mdash;Fernão de Magalhães.&mdash;D. João III.&mdash;A inquisição e os
+jesuitas.&mdash;Decadencia do nosso dominio na India.&mdash;D. Sebastião.&mdash;A batalha de
+Alcacer-Kibir.&mdash;D. Henrique, o cardeal-rei.&mdash;A successão do throno.&mdash;D.
+Antonio, prior do Crato.&mdash;Batalha de Alcantara.&mdash;Perda da
+independencia:&mdash;Causas da decadencia de Portugal.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Estou morto por saber, porque é que chamaram a D. João II o principe
+perfeito, principiou o Manuel da Idanha no domingo immediato, quando estiveram
+todos sentados á roda da lareira, porque, emfim, vocemecê já nos fallou n'uns
+poucos de reis de quem se não póde dizer mal: D. Diniz, por exemplo, D. João I,
+etc.</p>
+
+<p>&mdash;Eu te digo, rapaz, é porque não houve nenhum que percebesse tão bem o seu
+tempo, nem soubesse tão bem como é que se governa. Era homem de cabellinho na
+venta, mas só dava cabo de quem lhe fazia transtornar os seus planos, era
+valente como os que o são, mas, depois de ser rei, nunca mais foi á guerra.
+Calculava tudo, combinava tudo,<span class="pn"><a name="pg_90">{90}</a></span>
+e, como quem joga bem a bisca, sabia de cór os trunfos, e o que queria era
+marcar bons pontos, désse lá por onde désse. Subiu ao throno, na firme
+resolução de acabar com os privilegios da nobreza e do clero. Para isso, como
+de costume, serviu-se do povo. Chamou côrtes a Evora, ahi entendeu-se com os
+procuradores do povo para elles se queixarem dos fidalgos. Então o rei põe-se
+no seu logar, e toca a deitar abaixo privilegios. Se vocês querem ver o que é
+berraria! O primeiro que se levantou foi o duque de Bragança, e esse então
+metteu-se com os castelhanos. D. João II não esteve com ceremonias, mandou-lhe
+cortar a cabeça. O duque de Vizeu, seu proprio primo e cunhado, fez-se tambem
+chefe de conspiração. O mesmo rei deu cabo d'elle com uma boa punhalada, e
+depois foi tudo raso com o diabo do homem. Prendia uns, desterrava outros,
+mandava matar este, confiscava os bens áquelle... um inferno.</p>
+
+<p>&mdash;Então por isso é que era principe perfeito? perguntou a tia Margarida
+indignada.</p>
+
+<p>&mdash;Ó mulhersinha, espere lá. Diz o proverbio: cada terra com seu uso, cada
+roca com seu fuso. Pois eu digo tambem: cada tempo com os seus costumes. O
+tempo d'elle não era como o nosso. Hoje matar um homem é, com rasão, uma cousa
+por ahi alem. N'aquelle tempo parecia a todos perfeitamente natural que se
+castigassem com a morte, mesmo á<span class="pn"><a
+name="pg_91">{91}</a></span> punhalada, todas as conspirações. Ora D. João II
+só escapou por milagre a muitas que houve contra elle.</p>
+
+<p>Mas D. João II não era homem que se assustasse. Estreiara-se em Arzilla, ao
+lado de seu pae, e logo mostrára um grande esforço; na refrega de Toro, em
+Hespanha, foi elle quem ganhou a batalha pelo seu lado, emquanto o pae a perdia
+pelo outro. Nas conspirações, que se faziam contra elle, mostrou sempre uma
+coragem por ahi alem, mas tambem não perdoava nenhuma. E tanto fez, tanto fez,
+que a final todas as cabeças se abaixaram, e quem ficou governando a valer e
+devéras foi elle.</p>
+
+<p>Eu não lhes digo, rapazes, que approvo todas aquellas crueldades, e que acho
+bonito que D. João II matasse sem dó nem piedade até os parentes. Conheço que
+era preciso ter cabellos no coração para fazer o que elle fez, mas que querem
+vocês? É sina que nunca se fizeram as grandes mudanças politicas sem correr
+muito sangue. Dizia aquelle engenheiro francez, que aqui esteve em Bellas na
+obra da agua, quando ás vezes se punha a conversar commigo: «João, não se faz
+omeleta sem se quebrar ovos.» E dizia bem. Aquillo entre D. João II e a nobreza
+era guerra de morte. Atiravam á cabeça; eu bem sei que era mais bonito perdoar.
+Mas, meus amigos, perdoar aos seus inimigos só o fez Nosso Senhor Jesus
+Christo, e isso bastava para<span class="pn"><a name="pg_92">{92}</a></span>
+que todos conhecessem que elle era Deus e não homem.</p>
+
+<p>Em todo o caso, rapazes, sempre lhes quero confessar que, para gostar
+deveras de D. João II, preciso de desviar os olhos d'aquella sangueira toda, e
+ver o que elle fez por outro lado. Ah! que rei aquelle, rapazes! Nos
+descobrimentos foi um segundo infante D. Henrique, porque não foi só dizer aos
+pilotos: «Vão vocês andando por ahi abaixo, e quando toparem a India mandem cá
+um recado.» Não, senhores! Agarrou em dois judeus que eram homens de sabença, e
+mandou-os por terra ao Egypto, para que fossem do Egypto ver se topavam a India
+e se sabiam como é que se podia lá ir ter por mar. Foram estes Pedro da Covilhã
+e Affonso de Paiva. Ao mesmo tempo não deixára de mandar navios pela Africa
+abaixo. Um sujeito, chamado Bartholomeu Dias, tanto andou, tanto andou sempre
+com a terra á esquerda, até que um bello dia, por mais que tocasse á esquerda,
+não via senão agua: «Mau, disse elle comsigo, o diabo da costa virou de rumo.»
+Vira elle tambem e dá com a terra que ía para cima em vez de ir para baixo como
+até ahi. «Eu cheguei ao fim da Africa, disse comsigo o Bartholomeu Dias, eu
+passei algum cabo sem dar por isso.» E, já todo contente, queria ir seguindo
+para diante a ver onde iria dar comsigo. Mas a marinhagem estava cançada e quiz
+por força voltar<span class="pn"><a name="pg_93">{93}</a></span> para traz. Não
+houve remedio, e á volta effectivamente deram com o tal cabo que vinha a ser a
+ponta da Africa, e apanharam tantos temporaes que Bartholomeu Dias chamou a
+esse cabo, cabo Tormentorio; mas, quando chegou a Lisboa e contou a D. João II
+o que succedera, este, que logo percebeu que estava dado o grande passo na
+descoberta da India, não quiz para tamanha descoberta um nome de mau agouro, e
+mudou ao cabo Tormentorio o nome em cabo da Boa Esperança, como quem diz: Agora
+sim, agora é que me parece que vamos por estrada direita.</p>
+
+<p>Ora hão de vocês saber, rapazes, que por esta occasião vivia em Portugal um
+sujeito genovez chamado Christovão Colombo, que era homem entendido em cousas
+de mar, e que se occupava tambem muito de descobrimentos de terras e tal etc.
+Foi até por isso que elle veio para Portugal, porque isto aqui era a forja,
+onde, para assim dizer, se fabricavam terras novas, e todos os que se
+enthusiasmavam com essas cousas vinham para cá assoprar aos folles. Christovão
+Colombo estivera na Madeira, ouvira fallar em signaes de terra para os lados do
+pôr do sol, e começára a embirrar que, indo atraz do sol, havia de esbarrar com
+a India. Fallou n'isso a D. João II, este consultou os sabios, e os sabios
+desataram a rir. Colombo então foi-se embora e começou a offerecer os seus
+serviços a quem lhe désse<span class="pn"><a name="pg_94">{94}</a></span> uma
+casca de noz; acceitou-os a Hespanha, depois de massar muito o pobre do homem.
+Christovão Colombo partiu seguindo sempre para o occidente, e a final deu com
+uma terra povoada de selvagens, que vinha a ser nem mais nem menos do que a
+America, emfim um mundo inteiro muito maior que a Europa toda. Ora, tudo isso
+podia ter vindo para nós, e não nos fazia mal nenhum, se D. João II não cáe na
+asneira de não acreditar no Colombo, que todos sabiam que era um homem esperto,
+e de lhe não querer dar dois ou tres navios para tentar a sua descoberta, elle
+que tinha navios a rodo por esses portos todos!</p>
+
+<p>&mdash;Sim! lá isso! acudiu o Manuel da Idanha coçando na cabeça. Vocemecê diz
+que o homem era tão espertalhão, mas essa parece-me de cabo de esquadra!</p>
+
+<p>&mdash;Achas, meu palerma? Diz um proverbio: Quem adivinha vae para a casinha. E
+eu já te mostro que outro qualquer, no caso de D. João II, fazia o mesmo. Tu
+imaginas que Christovão Colombo chegou ao pé de D. João II e lhe disse: Saiba
+Vossa Alteza (que então ainda se não dava magestade aos reis) saiba Vossa
+Alteza que ali defronte dos Açores está um paiz muito rico, onde ha muito ouro,
+e muita prata e muitos diamantes, e, se Vossa Alteza quizer, eu chego ali n'um
+instante e cá lh'o trago? Estás tu muito enganado. O proprio Colombo nem
+sabia<span class="pn"><a name="pg_95">{95}</a></span> que havia ali similhante
+paiz. Toda a sua mania era que, sendo a terra redonda, e n'isso tinha elle
+rasão, indo uma pessoa para o occidente, havia de dar volta e chegar ao
+oriente. Mas o que elle não sabia é que a terra era tão grande como lhe saíu;
+e, se não lhe apparece a America, o homem via-se grego, e ainda tinha de comer
+muito pão antes de arribar, onde elle queria ir, tanto que provavelmente não
+levava no porão farinha que lhe chegasse. Ora agora, pensem vocês tambem,
+rapazes, no seguinte: Havia um bom par de annos que Portugal andava a teimar em
+seguir pela Africa abaixo á procura da India. Teimou, teimou, até que a final
+chegou ao fim da Africa, e percebeu que a terra seguia para cima, e ía com toda
+a certeza parar á India. E é exactamente quando se consegue o que se procurava
+havia tanto tempo, quando se descobre o cabo da Boa Esperança, quando se tem a
+certeza de que se encontrou o caminho da India, que vem um sujeito ter com o
+rei de Portugal, que está todo alegre com a descoberta, e dizer-lhe: Faça favor
+de apagar tudo isso, e de começar outra vez a procurar a India por outro lado.
+O rei, é claro, mandou-o pentear macacos. Ora agora confesso tambem que se não
+põe assim no meio da rua um homem como Christovão Colombo. Procurar a India
+pelo occidente não impedia que se continuasse a procurar pelo caminho que até
+ahi se seguira, e nós já tinhamos<span class="pn"><a
+name="pg_96">{96}</a></span> topado tanta terra que não esperavamos, que não
+era cousa do outro mundo que fossem mais duas caravellas a Deus e á ventura ver
+o que o mar dava de si.</p>
+
+<p>Emfim não se fez isso; os hespanhoes ficaram com a America, e principiaram
+ao desafio comnosco n'isso de descobrimentos, tanto que foi necessario que o
+papa dividisse entre elles os novos mundos ao meio, dizendo: Para aqui
+descobrem os hespanhoes, e para aqui descobrem os portuguezes, o que fazia com
+que um rei de França dissesse depois: Ora sempre eu queria ver o artigo do
+testamento do pai Adão que deixou a terra aos hespanhoes e aos portuguezes!</p>
+
+<p>Todos se riram, e o João da Agualva continuou:</p>
+
+<p>&mdash;Muito mais provas de juizo deu el-rei D. João II, e felizes seriamos nós
+se os reis que se seguiram fossem como elle. Na Africa, tratou de chamar a si
+os pretos, de os mandar baptisar, mas ás boas, e de fazer por ali fortalezas
+para se assenhorear do commercio. Na Europa então houve uma cousa que mostra
+que elle sabia ser rei. Os soberanos de Hespanha, todos devotos, mandaram pôr
+fóra do seu paiz os judeus, que eram, como foram sempre, uma raça trabalhadeira
+e esperta, que se enriquecia e ía enriquecendo a terra onde vivia. Mas a rainha
+de Hespanha, lá por beaterios tolos, não os quiz consentir no seu reino, e
+intimou-lhes mandado de despejo.<span class="pn"><a
+name="pg_97">{97}</a></span> Sempre quero que vocês me digam porque? Porque
+tinham crucificado Jesus Christo? Mas isso foram uns malandrins de Jerusalem, e
+nem os filhos tinham culpa do que os paes fizeram, e até os paes de muitos
+d'elles talvez nem em Jerusalem estivessem n'esse tempo. Porque não acreditavam
+na religião christã? O peor era para elles. Pois se não se póde salvar quem não
+for christão, no outro mundo torceriam a orelha, e não era necessario já n'este
+mundo ir-lhes torcendo pescoço. Porque não comiam toucinho? Tanto melhor para
+os bons christãos, que sempre ficava mais barata a carne de porco. Mas fossem
+lá dizer estas cousas n'aquelle tempo aos reis catholicos! Corria uma pessoa
+risco de ir parar a uma fogueira. D. João II riu-se da devoção dos visinhos,
+recebeu os judeus na sua terra, e tirou proveito do caso, obrigando-os, em
+troca do asylo que lhes dava, a pagar-lhe um bom tributo. Elles estavam com a
+corda na garganta, pagaram com lingua de palmo, ainda que isso lhes havia de
+custar, porque sempre foram sovinas. Mas, como diz o outro, para judeu, judeu e
+meio.</p>
+
+<p>&mdash;Olhe lá, ó sr. João de Agualva, e então quem diz que a inquisição cá em
+Portugal queimava os judeus? perguntou o Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Lá chegaremos, sr. Manuel da Idanha, lá chegaremos. Não ha só muitas
+Marias na terra, ha tambem<span class="pn"><a name="pg_98">{98}</a></span>
+muitos Joões, e nós então tivemos seis, cada um do seu feitio.</p>
+
+<p>Tudo se paga, meus amigos, e um homem póde ser principe perfeito; quando
+ultraja a lei de Deus, derramando o sangue de seus irmãos, ha de o pagar com
+lagrimas que tambem são sangue ás vezes. Tinha D. João II um filho chamado
+Affonso, a quem queria como ás meninas dos seus olhos. Casára com a filha dos
+reis de Hespanha, e as festas com que se celebrou o casamento tinham sido das
+mais pomposas. Morreu, e morreu de um desastre. Quem pôde imaginar a dôr
+d'aquelle pae! Chorou esse homem de ferro, que tantas lagrimas tambem fizera
+derramar, chorou lagrimas de sangue, do sangue do seu coração, e, lá nas horas
+mortas da noite, quando estivesse sósinho a pensar no filho, havia de ver
+muitas vezes os espectros d'aquelles que matára sem ter piedade da orphandade
+de seus filhos, como Deus não tivera tambem compaixão da orphandade da sua
+alma. Morreu quatro annos depois, em 1495, sem poder deixar a corôa a um filho
+seu, porque debalde quizera legitimar um bastardo que tinha, e assim, altos
+juizos de Deus! quem lhe havia de succeder, e não é só isso, quem havia de
+colher para si a gloria de realisar a conquista da India, que D. João II tão
+cuidadosamente preparava? Um irmão d'aquelle duque de Vizeu, que elle
+assassinára, D. Manuel, o <em>Afortunado</em>.<span class="pn"><a
+name="pg_99">{99}</a></span></p>
+
+<p>Afortunado ou Venturoso lhe chamou a historia, e com rasão, porque não teve
+senão bamburrice, o que não quer dizer que fosse um palerma, e que não tivesse
+mesmo bastante tino, mas fazia tanta differença de D. João II como uma
+larangeira de um carvalho. Encontrou a papinha feita. Estavam preparados os
+navios para a descoberta da India, poz á frente d'elles Vasco da Gama, e em
+1497 chegava Vasco da Gama á India, que era o paiz mais rico d'esse tempo.
+Mandou atraz d'elle Pedro Alvares Cabral, este chega-se mais para o occidente
+do que devia ser, e esbarra com o Brazil em 1500; bom! Põe ambos de parte, que
+lá ingrato como aquelle não havia nenhum, e manda para a India uma esquadra,
+onde ía Duarte Pacheco, homem que parece mesmo um d'aquelles sujeitos da
+antiguidade, que eram meios homens, meios deuses, e de quem se contam muitas
+patranhas, que foram excedidas pelas verdades d'este nosso patricio. Querem
+vocês saber? Na India havia muitos reis, como ainda hoje ha, apesar que estão
+agora todos sujeitos aos inglezes. Vasco da Gama tinha chegado a uma terra
+chamada Calicut, onde residiam muitos mouros, que eram quem fazia n'esse tempo
+o negocio todo da India. Viram a bolsa em perigo, e não descançaram emquanto
+não pozeram ao rei de Calicut de mal com os portuguezes. Palavra puxa palavra,
+elle matou-nos um homem, apanhou uma lição mestra, e de<span class="pn"><a
+name="pg_100">{100}</a></span> vingança em vingança ficámos inimigos para
+sempre. Mas havia outro rei, o rei de Cochim, que era e foi sempre nosso amigo.
+D'ahi, barulho entre os dois. Como o rei de Calicut era muito mais poderoso,
+esperou que não estivessem lá navios nossos, e, sabendo que tinha ficado apenas
+Duarte Pacheco e mais uns cincoenta portuguezes, disse comsigo: «Agora é que tu
+m'as pagas.» E arranjou um exercito forte, e marchou contra o pobre rei, nosso
+amigo. Os soldados de Cochim tinham medo que se pellavam, e fugiam que era um
+louvar a Deus; mas Duarte Pacheco, mais os seus cincoenta homens, com a sua
+habilidade e a sua valentia, conseguiu tomar o passo ao de Calicut, e dar-lhe
+tareias monumentaes. Ó rapazes, pois uma pessoa não se hade ás vezes ufanar de
+ser portuguez? Quando é que se viu uma cousa assim? Meia duzia de gatos
+bastaram para dar cabo de exercitos immensos! Eu bem sei que era a disciplina,
+que eram as armas, que era tambem a fraqueza d'aquelles bananas, que o sol da
+India faz uns mollengas, mas era necessario que fossem de aço e de ferro, em
+vez de ser de carne e osso, esses valentes que assim viam, sem descorar,
+marchar contra elles um exercito formidavel! Era necessario que se tivessem
+disposto a morrer para não deixarem que fosse pisada aos pés a bandeira de
+Portugal! E, a final de contas, por muito molles que os outros fossem, sempre
+eram mil contra<span class="pn"><a name="pg_101">{101}</a></span> um, e, com
+certeza, nenhum dos nossos pensava que saíria com vida de similhante combate.
+Depois acções d'essas eram mais faceis, não só porque os nossos já tinham
+tomado confiança em si, e sentiam-se capazes de levar aos pontapés quantos
+indios houvesse na India, mas tambem porque elles tinham-nos tomado medo; mas
+isso tudo a quem o devemos senão a Duarte Pacheco? Pois, meus amigos, imaginam
+vocês que Duarte Pacheco foi feito governador da India, ou teve algum titulo,
+ou alguma recompensa grande? Qual carapuça! D. Manuel nem mais pensou n'elle, e
+era tão feliz que logo encontrou para ser primeiro vice-rei da India um homem
+como D. Francisco de Almeida, que em toda a parte do mundo seria digno de
+exercer os primeiros logares.</p>
+
+<p>Com effeito, D. Manuel, que primeiro quizera apenas que os seus seus navios
+viessem carregados de mercadorias da India, que depois cá se vendiam na Europa,
+entendeu que devia tomar raizes, e encarregou D. Francisco de Almeida de
+governar os portuguezes que por lá estivessem, fundando ao mesmo tempo
+fortalezas. D. Francisco de Almeida entendia, porém, e não deixava de ter
+rasão, que Portugal era um paiz muito pequeno para estar assim a mandar
+soldados para a India, e o que elle queria era ser senhor do mar para que
+ninguem mais ali podesse fazer negocio. Emquanto só teve os indios<span
+class="pn"><a name="pg_102">{102}</a></span> pela prôa íam as cousas bem, mas
+os turcos, que viam diminuir os seus rendimentos com o novo caminho das Indias,
+começaram a metter-se na dança, e os turcos não eram tropa fandanga, eram gente
+de quem tremia a Europa. Tambem, quando se encontraram primeiro com os
+portuguezes, levaram a melhor e até mataram um filho de D. Francisco de
+Almeida, que o vice-rei adorava. Foi a sua perdição, porque D. Francisco de
+Almeida não descançou emquanto não vingou a morte do seu estremecido Lourenço.
+Os turcos levaram uma sova de primeira qualidade, e na India ficou-se sabendo
+de uma vez para sempre que casta de homens eram os portuguezes.</p>
+
+<p>Pois, rapazes, parecia que d'esta vez D. Manuel se daria por muito feliz em
+ter no Oriente um homem como D. Francisco de Almeida, que tinha posto os indios
+a pão e laranja, e dado uma esfrega tal nos turcos que se não atreveram por
+muito tempo a tornar á India. Enganam-se. Apenas acabou o seu tempo, foi
+chamado a Portugal, e naturalmente el-rei nem pensaria mais n'elle, ainda que
+não tivesse morrido no caminho. Mas continuava a ser tão feliz que encontrou,
+para substituir D. Francisco de Almeida, um homem que ainda valia mais do que
+elle, porque era o grande Affonso de Albuquerque. Ah! meus amigos, apparecem de
+vez em quando no mundo uns homens, que são capazes de revolver a<span
+class="pn"><a name="pg_103">{103}</a></span> terra, como os Napoleões e outros
+assim, Affonso de Albuquerque foi um d'esses.</p>
+
+<p>A respeito das cousas da India não pensava como D. Francisco de Almeida, mas
+não era porque visse as cousas de outro modo, era porque achára maneira de as
+concertar. Sim, elle bem sabia que Portugal não podia estar a encher a India de
+soldados, mas o que elle queria era que os Indios se misturassem com os
+portuguezes, e, para o conseguir, ao passo que era cruel com os mouros, com os
+indios era tão bom e tão justo que, depois da sua morte, íam elles resar ao seu
+tumulo, como quem vae resar ao tumulo de um santo. Escolheu elle tres pontos,
+em que estabeleceu, para assim dizer, os seus quarteis generaes, e todos muito
+bem escolhidos: Ormuz, ao pé da Persia; Goa, no meio da India; Malaca, para os
+lados da China e das ilhas a que se chamava das Especiarias ou das Molucas.
+Primeiro tomou Goa, depois Malaca que tinha dente de coelho, porque os malaios
+são levadinhos da bréca, depois Ormuz, e, quando acabou de fazer tudo isto,
+estava já demittido, e sabendo que ía ser nomeado para o seu logar o seu peor
+inimigo! Morreu com esse desgosto.</p>
+
+<p>Tambem d'essa vez tinha-se acabado o fornecimento de grandes homens, e os
+dois ultimos governadores da India, no tempo de D. Manuel, não foram lá grande
+cousa, mas tambem não estragaram nada.<span class="pn"><a
+name="pg_104">{104}</a></span> Aquillo então ía n'um sino. Os portuguezes
+espalhavam-se por toda a parte, de um lado chegavam á China, do outro á Persia,
+do outro ás Molucas, do outro a Cambaya. Tinham fortalezas por toda a parte;
+elles recebiam a boa canella de Ceylão, o bom cravo das Molucas, a boa pimenta
+da India, os bons cavallos da Persia, as sedas da China, o incenso da Arabia,
+os diamantes de Golconda, e traziam estas riquezas todas para a Europa e vinham
+aqui a Lisboa, que estava sempre cheia de navios, os hollandezes e os inglezes
+comprar tudo isto para o vender por esse mundo. Do Brazil não se fazia caso
+porque nem valia a pena; na Africa sempre se íam tomando praças, que era para
+n'aquellas constantes guerras com os mouros se exercitar a fidalguia, que
+depois fazia o diabo a quatro na India. Emfim, quando D. Manuel mandou ao papa
+uma embaixada com presentes vindos de todas as suas conquistas, Roma ficou
+embasbacada, e não se fallava em todo esse mundo senão na grandeza de Portugal.
+Bons tempos, meus amigos, mas que duraram pouco!</p>
+
+<p>No reino, D. Manuel logo mostrou que, se não era tolo, tambem não tinha o
+entendimento de D. João II. Poz fóra os judeus; é verdade que depois, quando em
+Lisboa o povo fez uma matança nos que tinham ficado a titulo de se terem
+convertido, mostrou-se muito zangado e castigou a cidade. Grande<span
+class="pn"><a name="pg_105">{105}</a></span> não foi elle, mas viu-se cercado
+de gente que o fez grande, e teve a esperteza de os saber conhecer. Depois,
+punha-os de parte com a maior facilidade, mas atinava com elles; só não
+percebeu o que podia esperar de Fernão de Magalhães, que, zangando-se com uma
+picardia que lhe fez, passou para Hespanha, e assim nos deixou ficar sem a
+gloria de termos sido nós os primeiros que deram volta ao mundo, como fizeram
+os hespanhoes commandados pelo tal Fernão de Magalhães, porque isso, n'aquelle
+tempo, não havia por esses mares uma onda que não marulhasse em portuguez...
+</p>
+
+<p>&mdash;Em portuguez porque? perguntou o Francisco Artilheiro. Eu nunca percebi o
+que ellas diziam.</p>
+
+<p>&mdash;Então é que têem a cabeça tão dura como tu, porque foi sempre o portuguez
+a primeira lingua que ouviram, e até lá para a terra dos bacalhaus, para o
+norte, onde faz um frio de rachar, lá mesmo foi Gaspar Cortereal que primeiro
+descobriu a Terra Nova. Emfim, meus amigos, depois de ter casado tres vezes, e
+sempre com princezas hespanholas, morreu em 1521 el-rei D. Manuel, e, verdade
+verdade, com elle se póde dizer que morreu a grandeza de Portugal.</p>
+
+<p>Succedeu-lhe o filho D. João III, que era o beato mais beato que tem vindo a
+este mundo. D. Manuel já lá tinha as suas manias, mas, como eu lhes
+contei,<span class="pn"><a name="pg_106">{106}</a></span> quando os de Lisboa
+desataram a matar os judeus, ou antes os christaos novos, deu-lhes com o
+<em>basta</em>. D. João III, esse, não descançou emquanto não metteu em
+Portugal a inquisição. O papa não queria, fazia-se rogado, e D. João III é que
+insistiu com elle para apanhar essa prenda. Chegou a gastar rios de dinheiro
+para o conseguir!! Ora, realmente, metter cá um tribunal que, apenas um sujeito
+se esquecia de ir á missa, ferrava com elle na cadeia, quando não era na
+fogueira, só lembrava a D. João III. Até os estrangeiros fugiam, e então o
+resto dos judeus, que ainda por cá havia, e que por amor á nossa terra se
+tinham feito christãos, com medo da inquisição, se foram safando logo que
+poderam. E, não contente com isso, introduziu tambem a companhia de Jesus, que
+era uma ordem nova de frades mais disciplinados que um regimento, e que tinham
+jurado ser elles que haviam de governar o mundo. Ora, lá para prégar aos
+herejes, e aos gentios da India, e aos selvagens do Brazil, eram muito bons,
+porque não recuavam nem diante da morte, e houve jesuitas, como S. Francisco
+Xavier, que não ficaram a dever nada aos doze apostolos; mas em Portugal
+mettiam-se em toda a parte: elles ensinavam, elles confessavam, e estou em
+dizer que não podia ser bom. Eu não sou contra os padres, nem contra a
+religião, pelo contrario, mas tambem não se hão de metter em tudo. Ora vejam
+vocês como<span class="pn"><a name="pg_107">{107}</a></span> havia de viver um
+dos nossos avós d'esses tempos! Os jesuitas a apertarem-lhe o freio, e ao mais
+pequeno desmando, zás, fogueira da inquisição com elle. Até se fizeram
+macambuzios os pobres homens, que eram até ahi gente alegre. Não se podia
+escrever cousa nenhuma, que não viessem logo os jesuitas: Corte-se isto porque
+parece contra a religião, não se represente aquillo porque se faz troça a um
+frade, e porque torna e porque deixa. O que é certo, meu amigos, é que,
+emquanto lá por fóra se andava para diante, e se faziam invenções, e se
+estudava, nós não passavamos da cepa torta, e o mal que isso fez vão vocês
+vêl-o.</p>
+
+<p>Na India parecia que ía tudo muito bem, mas via-se que não podia durar
+muito. Valentes eram os nossos, mas, em vez de fazerem o que Albuquerque
+queria, em vez de accommodarem os Indios, e de se porem ás boas com elles, não
+senhor, faziam crueldades que era uma cousa por demais, e o que queriam era
+apanhar dinheiro. Passavam o tempo, ora em guerra com o rei de Calicut, ora com
+o rei de Cambaya, ora com o rei de Achem, ora com o rei de Bintam, ora com o
+rei de Kandy, ora com todos ao mesmo tempo. Isto não era vida. Obravam
+prodigios de valor, isso é verdade, como por exemplo nos dois cercos de Diu, em
+que Antonio da Silveira e D. João de Mascarenhas se defenderam de um modo
+maravilhoso, mas, á força de<span class="pn"><a name="pg_108">{108}</a></span>
+dar cutiladas, o braço ía cançando, e o paiz estava esfalfado. Não havia nem um
+instante de socego. Se apparecia um governador como D. João de Castro, o da
+Penha Verde de Cintra, que era honradissimo e justiceiro, os outros não
+pensavam senão em roubar. Já se pegavam uns com os outros, como fez Lopo Vaz de
+Sampaio com Pedro Mascarenhas, e quando D. João III, o Piedoso, como lhe
+chamaram os frades, morreu em 1557, todos previam que isto ía para baixo. O
+filho mais velho de D. João III morrera ainda em vida do pae, e quem lhe
+succedeu foi um neto, creança de cinco annos, que tinha o nome de D. Sebastião.
+Ficou regente a avó, senhora de bastante juizo, que governou bem, mas que em
+1562 teve de ceder a regencia ao cunhado, o cardeal D. Henrique, todo dominado
+pelos jesuitas, e que cercou de padres o principe. O que resultou d'ahi?
+Resultou que D. Sebastião, que gostava de guerras e batalhas, fez-se ao mesmo
+tempo beato. Parecia um d'aquelles antigos frades militares, que tinham
+concorrido tanto para expulsar os mouros de Portugal. Não quiz casar, e até
+fugia das mulheres. Não pensava senão em dar cabo dos mouros. Ora, se nós que
+já tinhamos tanto trabalho para nos sustentarmos na India, que fôramos
+obrigados a largar umas poucas de praças na Africa, que tinhamos precisado de
+um grande esforço para salvar Mazagão, cercada pelos mouros,<span class="pn"><a
+name="pg_109">{109}</a></span> nos mettiamos em grandes guerras com elles,
+aonde iria isto parar! Pois foi o que succedeu. Na India o trabalho era cada
+vez maior; um governador, chamado D. Constantino de Bragança, parente da casa
+real, fizera por lá grandes cousas, mas pouco tempo depois juntavam-se quasi
+todos os reis da India e vinham sobre nós. O que nos valeu foi termos um novo
+Affonso de Albuquerque, um general de mão cheia, D. Luiz de Athayde, que a tudo
+acudiu e tudo salvou; mas vocês bem vêem que isto não podia continuar assim.
+Quando as cousas estavam n'este bonito estado, quando nós tinhamos ás costas a
+India, o Brazil para que D. João III principiára a olhar, onde precisávamos de
+nos defender contra os aventureiros francezes que achavam a terra a seu gosto,
+de que se ha de lembrar el-rei D. Sebastião? De ir conquistar Marrocos! Eu já
+tenho ouvido dizer que mais valia termos conquistado Marrocos, que nos ficava á
+porta, do que irmos á India que ficava tão longe. Pois sim, mas o que era
+necessario era escolher. Ou uma cousa ou outra. Mas D. Sebastião, com aquella
+embrulhada, que elle tinha na cabeça, de idéas religiosas e de idéas
+guerreiras, não attendia a cousa nenhuma, nem fazia calculos nenhuns. O que
+elle queria era dar lambada nos mouros, e, apesar dos conselhos de toda a
+gente, levanta um pequeno exercito, e para o levantar custou-lhe, porque já não
+havia braços no<span class="pn"><a name="pg_110">{110}</a></span> paiz... co'a
+breca, que elles não chegavam para tudo! e abala-se para a Africa a pretexto de
+ir soccorrer um principe mouro que tinha sido expulso do throno por seu tio!
+</p>
+
+<p>Ah! meus amigos, aquillo era mesmo um doido que ali ía. A gente gosta de ver
+um rapaz que tem o sangue na guelra, e que se atira para diante, embora faça
+asneira, mas é que D. Sebastião estava perfeitamente maluco. Era maluquice a
+empreza, foi maluquice o modo como a preparou, foi maluquice o modo como a
+dirigiu. Parecia que Deus, por umas poucas de vezes, o quizera salvar, e elle
+sempre a atirar comsigo de cabeça para baixo. Emfim, no dia 4 de agosto de
+1578, deu-se a batalha á moda de seiscentos diabos, porque nem houve commando,
+nem houve nada. D. Sebastião atirou-se aos mouros e não quiz saber de exercito,
+nem de cousa nenhuma. Emquanto poude dar cutilada, deu. A flor da fidalguia
+portugueza ali morreu, a que não morreu ficou prisioneira. Os soldados fugiram,
+uns por aqui outros por ali, e, quando a noticia chegou ao reino, imaginem que
+afflicção! Não se perdera só um rei, perdera-se a corôa, porque não havia
+herdeiros, e quem subiu ao throno foi o velho cardeal D. Henrique, tio avô do
+fallecido, que nunca fôra esperto e que estava então meio apatetado. Ainda
+houve quem dissesse que D. Sebastião não morrera, porque ninguem o vira caír
+morto, e o cadaver que<span class="pn"><a name="pg_111">{111}</a></span>
+appareceu, e que se disse que era d'elle, estava tão desfigurado que se não
+podia conhecer. Assim lá ficou D. Henrique a governar, mas para que? Todos
+sabiam que a corôa era herança que não tardava. Quem a havia de apanhar? Quem
+tinha direito verdadeiro era a duqueza de Bragança, por ser filha de um irmão
+de D. João III, D. Duarte; quem era mais sympathico ao povo era D. Antonio,
+filho bastardo de outro irmão de D. João III, D. Luiz; quem tinha mais força
+era D. Filippe II, rei de Hespanha, filho de uma irmã de D. João III, D.
+Isabel. Ainda havia outros que se diziam herdeiros, mas entre aquelles tres é
+que a lucta era séria. Ferviam as intrigas. D. Filippe tinha em Portugal um
+embaixador, e até por signal era portuguez, D. Christovão de Moura, que
+comprava todos quantos se queriam vender, e bem parvos eram os que não íam ao
+mercado. As côrtes, chamadas por D. Henrique para decidir a questão, estavam já
+tão pouco costumadas a metter o seu bedelho n'essas questões, que disseram ao
+rei que decidisse como quizesse, apesar de berrar muito contra isso um
+portuguez ás direitas, procurador de Lisboa, e que se chamava Phebo Moniz. O
+rei não decidiu cousa alguma. Morreu em 1580, e deixou o quartel general em
+Abrantes, tudo como d'antes. Nomeou governadores do reino uns sujeitos que se
+tinham já vendido aos hespanhoes, e que de certo íam escolher D. Filippe
+II.<span class="pn"><a name="pg_112">{112}</a></span> Mas, como se demorassem,
+este não esteve para os aturar, e mandou-nos cá um exercito commandado pelo
+duque de Alba. Vendo os hespanhoes, o povo virou-se para D. Antonio, prior do
+Crato e bastardo do infante D. Luiz, e acclamou-o rei. Valente era elle, mas
+não era mais nada. Quiz resistir aos hespanhoes com um punhado de gente que
+nunca pegára em armas. Batido em Alcantara, ás portas de Lisboa, depois de
+algumas horas de combate, fugiu para o Minho, por onde andou escondido, até que
+poude safar-se para o estrangeiro. Filippe II entrou socegadamente em Lisboa, e
+era uma vez a independencia de Portugal.</p>
+
+<p>&mdash;O que! estavamos hespanhoes? perguntou furioso o Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Estavamos hespanhoes, sim, meu amigo, e eu te vou explicar como é que
+tinhamos chegado a isso em tão pouco tempo. Em primeiro logar, creio que já
+sabem que D. João II abaixára a prôa de todo á nobreza, e d'ahi por diante os
+fidalgos ficaram sendo simplesmente criados do paço. O povo ajudára o rei a
+fazer essa obra necessaria, mas o rei, apenas se viu servido, deu-lhe para
+baixo, e el-rei D. Manuel começou a dizer que os foraes, que eram as leis por
+que se governavam os concelhos, não estavam muito claros, e para os aclarar,
+reformou-os, quer dizer, deu cabo d'elles. Em côrtes já se não fallava senão de
+longe a longe. D'antes, pelo menos,<span class="pn"><a
+name="pg_113">{113}</a></span> para se lançarem tributos novos, sempre se
+reuniam as côrtes. D. Manuel não quiz que ellas se incommodassem por tão pouco,
+e, para lhes poupar trabalho, começou elle a deitar os tributos por sua conta.
+Ora isto é muito bom, emquanto as cousas vão correndo bem. O rei tem ali o seu
+povo manso como um leão domesticado, com as unhas cortadas e os dentes limados,
+mas, quando vem as occasiões, o povo mette o rabinho nas pernas e não tuge nem
+muge. Para mais ajuda, a inquisição concorria para terem todos pouca vontade de
+se mexer. Os jesuitas, que tanto podiam fazer pela influencia que possuiam, não
+se importaram para nada com isso. Frades como elles eram, muito ligados entre
+si, e muito escravos do seu geral que estava em Roma, não tinham patria, a sua
+patria era a Companhia. Depois, vocês bem vêem que o reino não podia deixar de
+estar sem forças. Era um saír de gente todos os annos para a Africa, para a
+India, para o Brazil, que era uma cousa por demais. No meio de tantas riquezas
+o paiz achava-se pobre. Havia muita gente rica e vadia, mas não havia lavoura,
+não havia fabricas, não havia nada, o dinheiro entrava por um lado para saír
+pelo outro. Demais a mais tudo era pandiga rasgada. Os portuguezes vinham do
+Oriente descançar das suas fadigas. Tinham escravos para o serviço, passavam os
+dias na amante vadiagem. Não ha cousa que mais deite a perder os<span
+class="pn"><a name="pg_114">{114}</a></span> homens. Por isso D. Filippe e o
+seu embaixador Christovão de Moura encontraram tudo podre.</p>
+
+<p>Hão de vocês dizer: Pois então, só porque um rei morreu, e só porque se
+perdeu um exercito, que não era grande cousa, perdeu-se Portugal? É assim
+mesmo. Faltou o rei, faltou tudo, porque o povo nem já sabia de si, e as
+côrtes, quando não havia quem mandasse alguma cousa, nem sabiam o que haviam de
+fazer. Soldados portuguezes, os bons, estavam na India, e não bastavam; os que
+tinham voltado não pensavam senão na pandiga. Tudo estava alluido na nação
+portugueza, veio o empurrão de Alcacer-Kibir, foi tudo abaixo, e eu, meus
+amigos, não vou para baixo, vou para cima que são horas de me ir chegando ao
+pouso. Domingo continuaremos, porque já agora havemos de acabar, que lá dizer
+que eu tenho muita vontade de lhes contar a historia do que se passou no tempo
+dos Filippes, isso não tenho. Então é que Portugal perdeu a esperança de se
+levantar.<span class="pn"><a name="pg_115">{115}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>SETIMO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">Portugal durante o dominio hespanhol.&mdash;Filippe I.&mdash;Os falsos
+D. Sebastião.&mdash;Ultimos esforços do prior do Crato.&mdash;Os inglezes e hollandezes
+no ultramar.&mdash;A invencivel armada.&mdash;D. Filippe II.&mdash;Perda e restauração da
+Bahia.&mdash;Filippe III.&mdash;O conde-duque de Olivares e os privilegios das
+provincias.&mdash;Perda de Pernambuco.&mdash;Tumultos de Evora.&mdash;O duque de Bragança.&mdash;A
+conspiração dos fidalgos.&mdash;Revolução de 1 de dezembro de 1640.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, disse o João da Agualva no domingo immediato, demorei-me e o
+resultado foi apanhar uma constipação, que ainda mal me deixa fallar. Não quiz
+comtudo deixar de vir para se não perder este bom costume dos domingos, mas
+pouco tempo me demoro, e não farei mais do que contar-lhes a historia do que
+passou Portugal com o dominio dos hespanhoes.</p>
+
+<p>Se nós ao menos tivessemos passado para uma nação forte, com vida e com
+sangue, alguma cousa lucrariamos, mas a Hespanha estava peor do que nós.
+Parecia muito poderosa por fóra, mas só havia podridão lá dentro. Depois andava
+em guerra com<span class="pn"><a name="pg_116">{116}</a></span> a Europa toda,
+e n'essa guerra nos embrulhou para nossa desgraça.</p>
+
+<p>Apesar dos pesares, não cuidem vocês que tudo foram rosas para o nosso rei
+Filippe I, que era em Hespanha Filippe II. Elle veio com pésinhos de lã,
+prometteu respeitar as liberdades portuguezas, nunca nos dar por governadores
+senão portuguezes ou principes da familia real, jurou quanto quizeram, mas o
+povo não andava satisfeito, e, como não tinha a quem se encostar, pensava em D.
+Sebastião, o <em>Desejado</em>, como lhe chamam. Assim que apparecia um homem
+que tinha alguma parecença com o rei fallecido, diziam logo que era elle, de
+fórma que os hespanhoes estavam sempre em sobresalto. Por isso o rei de
+Penamacor e o rei da Ericeira, uns pobres homens que o povo embirrou em querer
+que fosse cada um d'elles D. Sebastião, e que tomaram o caso a serio,
+provocaram os seus tumultos, sendo os da Ericeira um poucochinho graves.
+Passados tempos, ainda appareceram lá fora, em Hespanha e em Italia, dois
+homens que diziam ser D. Sebastião, e que lograram muita gente, mas esses eram
+verdadeiros intrujões que nem mesmo pensavam senão em comer á barba-longa, á
+custa dos freguezes. O tal amor ao D. Sebastião foi-se pegando a ponto que
+começou a formar-se uma seita que ainda ha pouco tempo durava, a seita dos
+sebastianistas, que acreditavam que D. Sebastião havia de apparecer<span
+class="pn"><a name="pg_117">{117}</a></span> n'um dia de nevoeiro para governar
+em Portugal. Eu ainda conheci um sebastianista.</p>
+
+<p>&mdash;E eu tambem, acudiu o Bartholomeu.</p>
+
+<p>&mdash;Já vêem que não minto. Mas d'esse D. Sebastião não ha de vir mal ao mundo,
+nem bem que é o peor. D. Antonio tambem trabalhava pela sua banda, e, como a
+ilha Terceira o acclamára rei, foi-se lá metter e arranjou soccorro de França,
+mas os hespanhoes bateram a esquadra franceza, e tomaram a ilha. Depois
+arranjou soccorros da rainha de Inglaterra, que mandou uma esquadra a Lisboa,
+mas os inglezes foram repellidos, e D. Antonio, descoroçoado de todo, foi
+morrer a Paris em 1595.</p>
+
+<p>Mas querem vocês ver o que nós ganhámos com o estar juntos á Hespanha? Foi
+termos á perna os inglezes e os hollandezes, que principiaram a sacudir-nos da
+India, e que então aos nossos navios faziam guerra mortal. Ia tudo pela agua
+abaixo, e, para mais desventura, Filippe lembra-se de mandar contra a
+Inglaterra uma esquadra immensa, a que chamou «a invencivel armada», e que saíu
+do porto de Lisboa. A armada perdeu-se e lá se foram os nossos melhores navios.
+Filippe morria em 1598, e succedia-lhe Filippe II aqui e III em Hespanha. Se as
+cousas tinham ido mal até ahi, então foram peor. A Hespanha ía a Deus e á
+ventura, e nós atraz d'ella. O governo hespanhol, que mal cuidava de si, não
+cuidava nada de nós. Os inglezes e os hollandezes<span class="pn"><a
+name="pg_118">{118}</a></span> tomavam-nos quasi tudo o que tinhamos na India,
+e estes ultimos tambem se mettiam no Brazil comnosco. Grandes façanhas ainda se
+faziam, é verdade, e da Bahia, por exemplo, foram os hollandezes expulsos, mas,
+quando Filippe II morreu em 1621, já o nosso poder não era nem a sombra do que
+tinha sido.</p>
+
+<p>Succedeu-lhe Filippe III, e esse tinha um primeiro ministro chamado
+conde-duque de Olivares, que imaginou que havia de acabar com os privilegios
+das provincias, principalmente com os de Portugal. Não pensava n'outra cousa,
+de fórma que deixava ir as colonias, e no Brazil já os hollandezes tinham
+tomado raizes, e estavam senhores de Pernambuco. Mas os portuguezes começaram a
+achar a brincadeira pesada e a refilar ao Olivares. Em 1637 rebentou uma
+revolta em Evora, foi logo apagada, mas com muito sangue. Peor para o caso. Os
+fidalgos, que andavam tambem damnados, principiavam a conversar com o duque de
+Bragança, D. João, e a apalpal-o para ver se elle quereria a corôa. O duque não
+dizia nem que sim, nem que não. Mas n'isto a Catalunha, que tambem não perdoava
+ao Olivares a sem-ceremonia com que elle lhe queria tirar os seus antigos
+privilegios, revolta-se. Boa occasião! Os fidalgos, em Lisboa, sentiam-se cada
+vez mais dispostos a mandar os hespanhoes para o diabo. O Olivares não fazia
+senão<span class="pn"><a name="pg_119">{119}</a></span> desesperal-os e
+atiçal-os. Tinha-lhes dado por governador a duqueza de Mantua, e para
+secretario do governo um portuguez, Miguel de Vasconcellos, que era mais
+damnado contra os seus patricios do que se fosse hespanhol. Emquanto deixava
+perder as colonias portuguezas, Olivares levava os nossos fidalgos e os nossos
+soldados para as guerras de Flandres e da Catalunha. Lembra-se emfim de dar
+ordem ao duque de Bragança para que vá para Madrid. Então é que já se não podia
+estar com pannos quentes. Os fidalgos dizem ao duque de Bragança: Ou acceita a
+corôa, ou nós pomo-nos em republica. O duque, a final, disse que sim. Com a
+bréca! aquillo foi um momento. Era um punhado de homens, os que andavam assim a
+conspirar; elles não sabiam se podiam contar com o povo, nem se não podiam,
+conspiravam ás claras, que parece que em Lisboa todos sabiam da conspiração
+menos os hespanhoes; reuniam-se umas vezes em casa de João Pinto Ribeiro,
+outras vezes em casa de D. Antão de Almada, no jardim. No dia 1 de dezembro de
+1640 saem todos para o meio da rua. Eram quarenta, pouco mais ou menos. Chegam
+ao paço, matam o Miguel de Vasconcellos, agarram na duqueza de Mantua e
+fecham-n'a á chave, desarmam a guarda, abrem as janellas, e dizem a quem ía
+passando: Viva o duque de Bragança, rei de Portugal! viva o sr. D. João IV! O
+povo diz-lhes cá de baixo: Viva!<span class="pn"><a
+name="pg_120">{120}</a></span> e viva, e viva! e eram uma vez os hespanhoes, e
+d'ahi a pedaço estava tudo tão socegado como se não tivesse havido cousa
+nenhuma, e os hespanhoes tinham desapparecido; e aqui têem vocês como se faz
+uma revolução quando ella está na vontade de todos. Digo-lhes, rapazes, que
+este dia 1 de dezembro consola uma pessoa. Parecia que o paiz não tinha feito
+senão acordar de um pesadello. Aquillo foi só saltar da cama abaixo, e elle ahi
+estava de pé, todo pimpão como em outros tempos. E sabem vocês porque isto foi?
+É porque as nações são como as espadas, onde enrijam é na bigorna.<span
+class="pn"><a name="pg_121">{121}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>OITAVO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">Unanimidade da revolução.&mdash;Preparativos de
+resistencia.&mdash;Organisação militar do paiz.&mdash;As allianças.&mdash;Relações de Portugal
+com a Hollanda.&mdash;Restauração de Pernambuco e de Angola, e perda de
+Ceylão.&mdash;Conspirações contra D. João IV.&mdash;Guerra da Restauração.&mdash;Batalhas de
+Montijo e de Telena.&mdash;D. Affonso VI.&mdash;A sua educação e a sua indole.&mdash;Regencia
+da rainha D. Luiza.&mdash;Antonio Conti.&mdash;O conde de Castello Melhor.&mdash;Continuação
+da guerra.&mdash;Cerco de Badajoz.&mdash;Batalha das Linhas de Elvas.&mdash;Paz entre a
+Hespanha e a França.&mdash;Campanhas de D. João de Austria.&mdash;Schomberg.&mdash;Victorias
+do Ameixial, Castello Rodrigo e Montes Claros.&mdash;Planos do conde de Castello
+Melhor.&mdash;Intrigas do Paço.&mdash;Casamento, desthronamento e divorcio vergonhoso de
+D. Affonso VI.&mdash;Regencia do infante D. Pedro.&mdash;Casamento com a
+cunhada.&mdash;Tratado de Methwen.&mdash;Guerra da successão de Hespanha.&mdash;D. João V.&mdash;As
+minas do Brazil.&mdash;Desperdicios, beaterio e immoralidades.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Meus amigos, principiou no outro domingo o João da Agualva, e já ninguem o
+interrompia, tal era o interesse com que todos seguiam a sua narrativa; o que
+succedeu na capital, succedeu no reino todo. Aquillo foi chegar a noticia do
+que se passava em Lisboa, e de um momento para o outro desappareciam os
+hespanhoes, e tornava tudo a ser Portugal. Poupámos-lhes muita despeza em
+correios, porque logo souberam pelo primeiro que Lisboa se tinha revoltado, que
+tinha vencido, que reinava em Portugal D. João IV, e que a Hespanha,<span
+class="pn"><a name="pg_122">{122}</a></span> do Minho para baixo e do Caya para
+o occidente, já não possuia nem um palmo de terra. Querem vocês saber como o
+conde-duque de Olivares deu a noticia ao patrão? Foi d'esta maneira:&mdash;Dou os
+parabens a Vossa Magestade; acabam de lhe entrar uns poucos de milhões no
+bolso.&mdash;Como assim? perguntou o rei que estava a jogar, e que não desgostaria
+de que lhe saisse d'essa maneira a sorte grande de Hespanha.&mdash;Porque o duque de
+Bragança, tornou o ministro, acaba de se revoltar, e de se fazer rei de
+Portugal, e, como temos de lhe tirar os bens e de lhe cortar a cabeça, fica
+Vossa Magestade mais rico. O rei não gostou muito d'esse modo de enriquecer, e
+ainda olhou para os parceiros a ver se algum lhe dava quatro vintens pela
+herança. Nenhum caíu n'essa.</p>
+
+<p>Isso era muito bom, mas Portugal é que não vivia de cantigas. A Hespanha era
+então ainda maior do que hoje é, e, se ella nos caísse em cima, estavamos
+promptos. De que precisavamos nós? De dinheiro, de soldados e de allianças.
+Tratou-se logo de tudo. Dinheiro votaram as côrtes quanto se quiz; para
+arranjar soldados fez-se uma obra fina que nunca ninguem até ahi tinha feito, e
+que foi pôr toda a gente em armas. E como? dividiu-se o reino em tres linhas; a
+primeira de soldados, que se chamavam pagos, a segunda de milicianos, e a
+terceira, que era a dos velhotes, de ordenanças. Uns íam<span class="pn"><a
+name="pg_123">{123}</a></span> á guerra, os outros ajudavam-nos em sendo
+preciso, saíndo, o menos que podesse ser, dos seus sitios, e finalmente os
+ultimos defendiam as suas terras, porque isso, atraz de um muro, todos fazem
+figura. Digo-lhes, rapazes, que aquillo é que foi uma idéa, e olhem que não nos
+serviu só então, tambem na guerra da peninsula foi o que nos valeu, e, aqui
+para nós, não me parece que fizessem muito bem em deitar abaixo aquella
+historia. Estava já tudo costumado, e quando vinha uma guerra, saltava toda a
+gente para o meio da rua; e olhem que isto de estar um homem dentro de casa, de
+espingarda na mão, dá que fazer aos mais pintados. E logo se viu.</p>
+
+<p>Emquanto a allianças tambem não faltaram; é verdade que não serviram de
+muito, porque cada um cuidava de si. A França, prompta, o que ella queria era
+abaixar a prôa á Hespanha, mas, como tambem lá andava em guerra com os
+hespanhoes, o mais que fez foi consentir que arranjassemos officiaes francezes
+pelo nosso dinheiro; a Inglaterra, a mesma cousa, muita festa para a festa, mas
+andava embrulhada em guerras civís, não mandou para cá nem um navio. Então a
+Hollanda ainda foi peor, isso... recebeu o nosso embaixador de braços abertos,
+poz luminarias, achou que tinhamos feito muito bem, mas, quando o embaixador
+lhe disse: «Então agora que estamos amigos, venham para cá as<span
+class="pn"><a name="pg_124">{124}</a></span> nossas colonias, que são nossas e
+não dos hespanhoes», a Hollanda exclamou: «As colonias! ah! sim! nós somos tão
+amigos d'ellas! Estão já acostumadas comnosco! até tinhamos pena de as deixar».
+E acrescentava o embaixador: «Mas então, c'os diabos, ao menos não nos tomem
+mais nenhuma».&mdash;«Não tomamos, dizia a Hollanda, isso nunca. Ora agora sabem
+vocês? as colonias são como as cerejas. O caso é apanhar uma». Ah! elle é isso!
+disseram os portuguezes comsigo, pois então vamos a ellas. E, zás, rebenta uma
+revolta em Pernambuco, e os brazileiros a berrarem: Viva D. João IV! A Hollanda
+chamou o nosso embaixador: «Então que diabo é isso? nós somos amigos e
+fazem-nos uma partida d'estas!»&mdash;«Patifes! dizia o embaixador. Aquillo é do
+sol! esquenta-lhes a cabeça, e dão por paus e por pedras. Mas, aqui para nós,
+se elles dizem: Viva D. João IV, não havemos de lhes ir dizer: Morra D. João
+IV! Não nos ficava bem.»&mdash;«Pois sim, mas digam-lhes que estejam
+quietos.»&mdash;«Pois isso dizemos nós.» E D. João IV mandava para lá armas e
+officiaes, e dizia-lhes: «Ahi vae isso, que é para vocês estarem quietos.» E em
+poucos annos estavamos senhores de Pernambuco, e os hollandezes na rua.</p>
+
+<p>D'ahi a tempos, Salvador Correia de Sá ía a Angola e punha fóra os
+hollandezes que nos tinham tomado esse reino.&mdash;«Então isto que vem a ser?<span
+class="pn"><a name="pg_125">{125}</a></span> bradaram os hollandezes, então os
+senhores vão de proposito do Brazil a Angola para nos sacudir!»&mdash;«Quem é que
+fez isso?» perguntava o embaixador.&mdash;«Salvador Correia de Sá.»&mdash;«Sim! pois
+estejam vocês descançados, que lhe vamos já perguntar pelo correio, que diabo
+de lembrança foi essa. Em vindo resposta cá lh'a mandamos. E a proposito, sr.ª
+Hollanda, vocês tomaram-nos Ceylão?»&mdash;«Tomámos Ceylão, mas que defeza! Antonio
+de Sousa Coutinho defendeu-se maravilhosamente. Os nossos generaes são todos
+accordes que nunca encontraram resistencia tão desesperada! Quando escreverem
+para lá, mandem os nossos parabens ao sr. Antonio de Sousa Coutinho e
+recommendações aos amigos.»</p>
+
+<p>E era assim que nós estávamos com a Hollanda: abraços na Europa e lambada lá
+por fóra.</p>
+
+<p>Houve só duas côrtes que não quizeram nunca reconhecer a independencia de
+Portugal; uma foi a côrte de Roma que estava toda nas mãos dos hespanhoes, e a
+outra a da Allemanha, cujo imperador era da mesma familia que a do rei Filippe.
+E fizeram-nos transtorno: a primeira porque estávamos assim a modo
+excommungados, a segunda por uma patifaria que praticou o imperador, mandando
+prender sem mais nem menos o principe D. Duarte de Bragança, irmão de D. João
+IV, que andava por lá na guerra contra os turcos, e que tanta conta nos<span
+class="pn"><a name="pg_126">{126}</a></span> faria em Portugal. Morreu na
+cadeia o pobre rapaz por causa de nós e da traição do tal imperador.</p>
+
+<p>Em Portugal, ao principio, tinha ido tudo bem, mas, assim que passou aquelle
+primeiro fogo, houve muitos que começaram a pensar no caso e que disseram
+comsigo: «Isto foi uma grande asneira. Vem ahi os hespanhoes e dão cabo de
+todos nós. O melhor é pormos as costas no seguro, e, antes que elles venham ter
+comnosco, vamos nós ao encontro d'elles, que sempre apanharemos alguma cousa.»
+E n'isto desatam a conspirar contra D. João IV. Foram castigados cruelmente.
+Morreram muitos com a cabeça cortada, e mais nem todos eram culpados. Mas que
+querem vocês? A mania de D. João IV era que o não tomariam a sério como rei em
+Madrid, emquanto não mandasse cortar a cabeça a alguem.</p>
+
+<p>Pois em primeiro logar visse bem a quem matava, e em segundo logar eu sempre
+ouvi que os reis, quando são mais reis, é quando perdôam. E, alem d'isso, os
+hespanhoes quando tomaram a sério D. João IV não foi quando elle mandou cortar
+a cabeça a fidalgos portuguezes, mas quando os soldados portuguezes lhes
+começaram a esfregar as costas a elles.</p>
+
+<p>Lá que os taes conspiradores tinham rasão em estar com medo, isso tinham,
+porque parecia mesmo<span class="pn"><a name="pg_127">{127}</a></span>
+impossivel que Portugal resistisse. Tambem o que nos valeu foi a asneira dos
+hespanhoes, que nos primeiros dois annos não fizeram senão dar um rebate falso
+a uma praça, atacar outra, escaramuçar aqui, disparar uns tiros alem. Parecia
+que estavam incumbidos por D. João IV de fazer andar os nossos soldados na
+recruta. Em 1644 é que, pela primeira vez, fizeram assim movimento mais serio,
+mas já tinhamos então soldados velhos, commandados por um bom general, Mathias
+de Albuquerque, e os amigos hespanhoes levaram a primeira sova mesmo lá na sua
+terra, em Montijo; em 1646 nova batalha em Telena, mas n'essa perdemos nós mais
+do que lucrámos, ainda que os hespanhoes com isso nada ganharam tambem, porque
+voltaram á costumeira antiga. Emfim, para encurtar rasões, quando D. João IV
+morreu, em 1656, estavamos havia dezeseis annos n'aquella brincadeira, hoje
+íamos nós á Hespanha e apanhavamos gado, ámanhã vinham elles cá e levavam-nos o
+nosso. Mas quem lucrava com isso? Éramos nós, porque os nossos milicianos, e as
+nossas ordenanças íam-se costumando á guerra, e cada vez este bocadinho de
+Portugal se ía tornando para a Hespanha mais duro de roer.</p>
+
+<p>Em 1656 morreu pois D. João IV, como eu lhes disse, e succedeu-lhe seu filho
+D. Affonso VI, a quem chamaram o <em>Victorioso</em>, como chamaram a D.<span
+class="pn"><a name="pg_128">{128}</a></span> João IV o <em>Restaurador</em>,
+mas emfim a este com mais um bocadinho de rasão.</p>
+
+<p>D. Affonso VI não era o filho mais velho, mas o mais velho, um rapazito que
+dava esperanças, Theodosio, morrera em 1653. D. Affonso VI fôra desde creança
+muito doente, nunca podéra aprender cousa nenhuma e tivera uma educação muito
+descuidada. O seu gosto era brincar com os garotos que íam para debaixo das
+janellas do paço, e, quando foi homem, andava em pandigas pela cidade, com uma
+roda de facinoras que faziam tudo o que queriam á sombra d'elle, a ponto que
+até havia mortes nas ruas de Lisboa! Como ainda era pequeno quando seu pae
+morreu, ficou regendo o reino sua mãe D. Luiza de Gusmão, uma hespanhola muito
+decidida, que diziam até que fôra quem mais concorrera para o marido acceitar a
+corôa. A regente lá foi governando com acerto, emquanto o rapazote andava ao
+laré com um tal Antonio Conti, que lhe soubera conquistar a amisade. A rainha
+um dia pegou n'esse Antonio Conti, e ferrou com elle desterrado no Brazil. Ó
+diabo que tal fizeste! o pequeno zanga-se, e, quando o conde de Castello Melhor
+lhe disse que era bom que começasse a governar por si, porque tinha já chegado
+á maioridade, D. Affonso, para pregar pirraça á mãe, acceitou; eu não louvo o
+conde de Castello Melhor por ter aconselhado esta acção, mas a verdade é que D.
+Affonso<span class="pn"><a name="pg_129">{129}</a></span> VI já estava em idade
+de governar, e que, se não podia dirigir os negocios, sempre era melhor que por
+elle os dirigisse um homem como o conde de Castello Melhor, que tinha uma
+excellente cachimonia, do que a rainha, que, apezar de ser esperta, sempre era
+senhora, e por isso menos capaz de governar o reino em tempo de guerra.</p>
+
+<p>Bem conheço que D. Affonso VI era um mau rei, que não tinha juizo, que se
+entregava a divertimentos indecentes e até criminosos, mas uma qualidade tinha
+elle, percebia perfeitamente que não sabia cuidar do reino, e deixava o
+Castello Melhor fazer tudo quanto queria. Ora o Castello Melhor era uma das
+melhores cabeças que têem governado o nosso paiz, como vocês vão ver, porque é
+bom que saibam o que se passára na guerra.</p>
+
+<p>Logo depois da morte de D. João IV, um general portuguez, João Mendes de
+Vasconcellos, fizera grande asneira. Vendo que os hespanhoes andavam só a fazer
+fosquinhas, disse comsigo: Não nos hão de conquistar, e havemos de ser nós que
+os conquistaremos a elles. Junta um exercito magnifico, e vae cercar Badajoz.
+Ainda ali ganhámos uma batalha, que foi a do Forte de S. Miguel, mas a final
+tivemos de levantar o cerco, depois de havermos perdido inutilmente a flor dos
+nossos soldados. Ora o que succedeu? Foi que, no anno seguinte, quer dizer em
+1659, os hespanhoes, picados<span class="pn"><a name="pg_130">{130}</a></span>
+com o nosso atrevimento, saíram da sua pachorra, juntaram um exercito
+formidavel commandado pelo proprio ministro do rei, D. Luiz de Haro, vieram
+sobre Portugal e cercaram Elvas. A cousa esteve phosphorica, porque os nossos
+melhores soldados tinham ficado estendidos diante de Badajoz, e andava isto por
+cá muito desarranjado. Mas para alguma cousa haviam de servir os dezenove annos
+de guerra. Em primeiro logar Elvas, governada por D. Sancho Manuel que foi
+depois conde de Villa Flor, defendeu-se admiravelmente, em segundo logar o
+conde de Cantanhede, depois marquez de Marialva, como não tinha outra gente,
+reuniu um exercito quasi todo de milicianos e saltou nos hespanhoes que
+cercavam Elvas. Foi no dia 14 de janeiro de 1659 que se deu a batalha,
+conhecida pelo nome de batalha das linhas de Elvas, e nunca os hespanhoes
+apanharam tamanha pilota. Os prisioneiros foram aos milhares, artilheria,
+bagagens, tudo nos caío nas mãos, e o proprio D. Luiz de Haro escapou-se por um
+fio. Tambem nunca mais nos perdoou aquella sova, e, quando n'esse mesmo anno
+foi fazer a paz com a França, deu aos francezes tudo quanto elles quizeram, só
+com uma condição&mdash;a de se não fallar em Portugal. Era patifaria graúda do
+ministro francez, um padre, um tal cardeal Mazarino, porque as tareias que
+davamos nos hespanhoes tinham feito muita conta aos francezes.<span
+class="pn"><a name="pg_131">{131}</a></span> Mas o Mazarino foi apanhando o que
+poude, e pouco lhe importou mandar-nos á fava.</p>
+
+<p>Vêem vocês a situação em que ficámos. Quando começámos a guerra com a
+Hespanha, estava ella em guerra tambem com quasi toda a Europa, o que não era
+mau para nós. Em 1648 fez a paz com muitas nações, e isso não foi lá muito bom,
+porém, como a França continuava em guerra, e essa só por si dava mais que fazer
+á Hespanha do que todas as outras juntas, ainda a cousa não ía mal; mas agora?
+A França fazia a paz, quasi que se alliava com os hespanhoes, porque o rei de
+França, Luiz XIV, casava com uma princeza hespanhola, e nós é que ficavamos em
+campo, com a Hespanha ás costas. Ella ainda esteve dois annos a apalpar-nos,
+mas em 1662 rompeu o fogo com alma. Poz um dos seus melhores generaes, D. João
+de Austria, filho bastardo do rei, á frente dos seus exercitos, e caíu em cima
+de nós com todo o seu peso.</p>
+
+<p>Ora foi exactamente em 1662 que entrou no poder o conde de Castello Melhor,
+e foi sobre elle que desabou esse temporal desfeito. Nunca Portugal se vira em
+tão maus lençoes. D. João de Austria tomava praças sobre praças, e na campanha
+do anno immediato, 1663, quasi que chegava ás portas de Lisboa. Mas o ministro
+fizera o diabo, parece que até das pedras tinha feito soldados. Depois, como
+Mazarino era um finorio, que não desgostava<span class="pn"><a
+name="pg_132">{132}</a></span> de jogar com pau de dois bicos, ao passo que
+contentava a Hespanha, mandava-nos para cá os officiaes que podia, entre elles
+o conde de Schomberg, que era um general de mão cheia. Não commandou nunca em
+chefe, porque os nossos não gostavam, e tinham rasão, que elles já haviam dado
+provas de que não precisavam de tutores; mas foi um excellente conselheiro. O
+que é certo, meus amigos, é que, em tres annos successivos, em que os
+hespanhoes fizeram todos os esforços para dar cabo de nós, levaram tres sovas
+mestras; a primeira deu-lh'a em 1663 o conde de Villa Flor na batalha do
+Ameixial, a segunda em 1664 Pedro Jacques de Magalhães na batalha de Castello
+Rodrigo, a terceira em 1665 na batalha de Montes Claros o marquez de Marialva.
+D'ahi por diante nunca os hespanhoes levantaram cabeça, e não pensaram mais em
+tomar conta outra vez de Portugal.</p>
+
+<p>Ora o conde de Castello Melhor tinha uma grande idéa; dizia elle comsigo: os
+hespanhoes levaram tanta pancadaria, que, se fazemos a paz com elles, ficando
+nós simplesmente com o que tinhamos ao principio, póde-se dizer que fomos
+logrados. Demais a mais Portugal é pequeno, a Hespanha é grande; em qualquer
+bulha que tivermos estamos de mau partido. É necessario fazer Portugal maior e
+a Hespanha mais pequena. E toda a sua tineta era obrigar os hespanhoes a
+dar-nos a Galliza. E o<span class="pn"><a name="pg_133">{133}</a></span> que
+fazia elle então? Encostava-se a Luiz XIV, rei de França, que andava namorando
+umas provincias hespanholas lá de Flandres. Casava D. Affonso VI com uma
+princeza franceza, e dizia comsigo: Mais dia menos dia, Luiz XIV pega-se com a
+Hespanha. Nós vamos com elle. A Hespanha leva para o seu tabaco a valer. Elle
+fica com as provincias que quizer, até com a Flandres toda, se isso lhe fizer
+conta, e nós com a Galliza, e com mais alguma cousa se podér ser.</p>
+
+<p>&mdash;E era bem pensado, sr. João da Agualva, observou o Bartholomeu, porque é
+que não havia de ser nossa a Galliza?</p>
+
+<p>&mdash;Tens rasão, e já vês que, se nós tivessemos a Galliza tambem, não
+estavamos sempre com medo de ser engulidos pelos visinhos. Mas que queres tu?
+Entretanto íam grandes intrigas no paço. A rainha, que era uma princeza toda
+<em>liró</em> e toda costumada ás janotices da côrte de Luiz XIV, achando-se
+casada com um homem que só se dava bem com moços de cavallariça, e que de mais
+a mais era tão doente que nem marido podia ser, principiou a desgostar-se, e ao
+mesmo tempo a agradar-se do infante D. Pedro, rapaz desempennado, que tambem
+não desgostava da francezita. Pensaram em se juntar e governar o paiz.
+Principiaram as intrigas. Tanto fizeram que conseguiram pôr fóra o conde de
+Castello Melhor. Desamparado, o pobre D. Affonso VI não<span class="pn"><a
+name="pg_134">{134}</a></span> tardou a ser expulso do throno, e até o
+descasaram, coitado! Foi necessario para isso um processo que é uma vergonha, e
+realmente não posso perceber como foi que uma rainha se deixou assim andar nas
+bôcas do mundo!... Emfim, o que é certo é que desterraram o pobre D. Affonso
+VI, mandando-o para a ilha Terceira; prenderam-n'o depois em Cintra, onde
+morreu, e a rainha casou com o cunhado, e este ficou a governar o reino. Eu já
+lhes disse, rapazes, que bem conheço os defeitos de D. Affonso VI; mas o pobre
+homem, que era mesmo uma creança, que se não importava para nada com a
+politica, que tivera a fortuna de acertar com um bom ministro que governava por
+elle e governava bem, não merecia que lhe fizessem similhante entrega! Mette
+dó, porque elle nem sabia defender-se, andava ali como o menino nas mãos das
+bruxas.</p>
+
+<p>E o irmão, que lhe tirára a corôa, e que lhe tirára a mulher, nem ao menos
+lhe dava a sua liberdade, nem lhe consentia que espairecesse. Tinha-o preso
+n'um quarto em Cintra, e ali o deixou morrer de aborrecimento e de desgosto, a
+elle que nunca fizera mal a ninguem senão com as suas tolas rapaziadas!</p>
+
+<p>Emfim, passemos adiante! O que é certo é que isto succedeu em 1667, e logo
+no anno seguinte de 1668 fazia-se a paz com a Hespanha, sem lucro nenhum para
+nós, porque nem ao menos apanhavamos<span class="pn"><a
+name="pg_135">{135}</a></span> a praça africana de Ceuta, que era tão nossa,
+por causa da qual morreu no captiveiro o infante santo, e que em 1640 não
+conseguira livrar-se dos hespanhoes.</p>
+
+<p>Tanto se empenhára em governar o reino o sr. D. Pedro II, que desde 1667 até
+1683, anno em que morreu D. Affonso VI, só tomou o titulo de regente, e a final
+de contas não fez senão tolices. Demais a mais algumas cousas boas que deixou
+fazer, logo as desmanchou. Um ministro que elle teve, o conde da Ericeira, quiz
+ver se fundava fabricas em Portugal, mas em 1703 um tratado com a Inglaterra,
+conhecido pelo nome de tratado de Methwen, que este era o nome do embaixador
+que o assignou, deu cabo da nossa industria. Conservou-se em paz, tanto que lhe
+deram o nome de <em>Pacifico</em>, e vae no fim do seu reinado mette-se sem
+mais nem menos na guerra da successão de Hespanha, favorecendo D. Carlos da
+casa de Austria contra D. Filippe da casa de Bourbon. Como tinhamos então um
+excellente general, que era o marquez das Minas, deu-nos este o gostinho de
+entrar victorioso em Madrid, e de proclamar ali D. Carlos rei de Hespanha; mas
+esse gostinho não tardámos a amargal-o, porque, morrendo D. Pedro II no dia 1
+de dezembro de 1706, logo no dia 25 de abril de 1707 era o marquez das Minas
+batido na batalha de Almanza com graves perdas para nós, tanto que até ao fim
+da guerra<span class="pn"><a name="pg_136">{136}</a></span> póde-se dizer que
+nunca mais levantámos cabeça.</p>
+
+<p>Subio ao throno D. João V, e eu, para lhes dizer a verdade, o que não posso
+perceber é como ha historiadores que gabam aquelle rei. Cá para mim foi um dos
+peores que nós tivemos. Possuia algumas qualidades que não eram de todo más,
+era porém o mesmo que se as não tivesse, porque não pensava senão no beaterio,
+e em obras grandes e magnificas, que a maior parte das vezes para nada serviam.
+Logo por desgraça foi n'esse reinado que começaram a render rios e rios de
+dinheiro as minas do Brazil, e tudo era pouco para o rei que não cuidava senão
+de si e nada do reino. Por exemplo, achou-se embrulhado com a Hespanha e com a
+França n'uma guerra que no seu tempo não foi senão desastrosa. Uns corsarios
+francezes deram-nos cabo do Rio de Janeiro e levaram-nos umas riquezas
+espantosas. Pois não encontrou aquelle homem uns poucos de navios para saltarem
+tambem nas colonias francezas, ou para protegerem as nossas! Emfim! se os não
+tinhamos, paciencia! Mas d'ahi a pouco saíu de Lisboa uma excellente esquadra
+em soccorro do papa, commandada pelo conde do Rio Grande, esquadra que foi
+bater os turcos no cabo Matapan! Ora vejam se ha um patarata assim! Annos
+depois, por causa de uns insultos feitos em Madrid ao nosso embaixador, está
+para rebentar a guerra com a<span class="pn"><a name="pg_137">{137}</a></span>
+Hespanha. Fazem-se preparativos, e vê-se que não temos nem exercito, nem
+marinha. De que tratou logo D. João V? De comprar armamento? Qual historia! De
+mandar fazer em Paris, para si, uma barraca de campanha muito rica, e tão
+luxuosa que toda a gente a ía ver!!</p>
+
+<p>Não tinhamos estradas, não tinhamos rios canalisados, não tinhamos
+desentulhados os portos, não tinhamos nada do que nos era necessario, mas
+tinhamos aquella monstruosidade do convento de Mafra que custou 120 milhões de
+cruzados, que não serve para cousa nenhuma, e que nem ao menos é bonito. Dizem
+que gostava muito de imitar Luiz XIV, mas o que me dizia o engenheiro francez
+que esteve aqui em Bellas, é que Luiz XIV mandava ir sabios para França, dava
+pensões aos sabios estrangeiros, e este o que dava era dinheiro para igrejas, e
+o que mandava vir era de Roma bullas e capellas. Dizem que nunca deixou ás
+nações estrangeiras pôr pé em ramo verde comnosco. Quem lhe valeu para isso
+foram os diplomatas que teve, que nunca em Portugal os houve tão bons, e tambem
+o ser tão orgulhoso que ía aos ares só com a idéa de que mangavam com elle.</p>
+
+<p>Mas no mais não me fallem em D. João V, que até me sobe o sangue á cabeça.
+Pois vocês conhecem cousa que mais indigne do que ir um homem ali para Lisboa,
+no campo da Lã, ver os inquisidores<span class="pn"><a
+name="pg_138">{138}</a></span> queimarem gente de bem, ou porque não gostavam
+de toucinho, ou porque nem sempre íam á missa, e depois montar a cavallo, para
+se metter em Odivellas na cella de uma freira e passar ali a noite? Eu digo que
+me chega a parecer nem sei o que uma malvadez assim.</p>
+
+<p>Morreu em 1750 esse rei que não fez nada bom em Portugal, a não ser as
+Aguas-Livres. Pouco mais dinheiro gastou que se podesse dizer que fosse bem
+gasto. E digo-lhes que, se vocês olharem para o paiz, até lhes ha de fazer
+pena. A nobreza já não se compunha senão simplesmente de criados do paço, o
+clero immenso e corrompido enchia o reino com os seus padres e os seus
+conventos, e conservava o povo n'uma ignorancia completa, o povo, miseravel,
+vadio, ou emigrava para o Brazil, ou pedia esmola ás portarias dos conventos,
+ou sentava-se ao sol. Tinhamos chegado ao mais baixo a que podiamos chegar.
+Felizmente, quando uma nação desce a tal ponto, sempre apparece alguem que a
+levante e esse, eu, para o outro domingo, lhes direi quem foi. Por hoje basta.
+Quando fallo no sr. D. João V, o <em>Magnifico</em>, e penso no mal que elle
+fez ao paiz, fico sempre macambusio, e então o melhor é ir-me deitar.<span
+class="pn"><a name="pg_139">{139}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>NONO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">D. José I.&mdash;As transformações sociaes.&mdash;O marquez de Pombal
+e a revolução.&mdash;Terramoto de 1 de novembro de 1755.&mdash;As grandes reformas de
+Sebastião de Carvalho.&mdash;Expulsão dos jesuitas.&mdash;Reforma da
+universidade.&mdash;Reorganisação do
+exercito.&mdash;Agricultura.&mdash;Industria.&mdash;Inquisição.&mdash;Christãos novos e christãos
+velhos.&mdash;Politica estrangeira.&mdash;Energia com Roma e com
+Inglaterra.&mdash;Reconstrucção de Lisboa.&mdash;Estatua de D. José.&mdash;Attentado contra o
+rei.&mdash;Supplicio dos Tavoras.&mdash;D. Maria I.&mdash;Reacção contra as medidas do marquez
+de Pombal.&mdash;Processo do grande ministro.&mdash;Pina Manique, Francisco de
+Almada.&mdash;Martinho de Mello.&mdash;Loucura da rainha.&mdash;Regencia do principe D.
+João.&mdash;A republica franceza.&mdash;Campanha do Roussillon.&mdash;Campanha de
+1801.&mdash;Napoleão e o tratado de Fontainebleau.&mdash;Fuga da familia real para o
+Brazil.&mdash;Guerra peninsular.&mdash;Congresso de Vienna.&mdash;D. João VI.&mdash;Conspiração de
+1817.&mdash;Revolta de Pernambuco.&mdash;Revolução de 1820.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Hão de vocês notar, rapazes, observou o João da Agualva mal todos se
+sentaram no domingo seguinte em torno da lareira, que, em estando para haver
+uma grande mudança na sorte dos homens, parece que todos, sem o querer e sem o
+saber, trabalham para essa mudança, desejando fazer muitas vezes exactamente o
+contrario. Por exemplo, lembram-se vocês que ali por 1500 é que os reis se
+fizeram senhores absolutos, porque acabaram com os privilegios da nobreza, e
+com os foraes do povo. Quem<span class="pn"><a name="pg_140">{140}</a></span> é
+que contribuiu para isso? O povo, que ajudou o rei a dar cabo dos nobres. Agora
+encaminha-se tudo para a liberdade e para a igualdade, e quem é que no nosso
+paiz vae concorrer mais para similhante cousa? O marquez de Pombal. Dir-me-hão
+vocês: Então o marquez de Pombal era algum liberalão por ahi alem como os de
+vinte? Qual historia! Era um tyranno e dos mais ferozes que nunca houve, mas,
+sem o querer e sem o saber, ninguem mais do que elle trabalhou pela liberdade.
+</p>
+
+<p>Em primeiro logar hão de vocês saber que o rei D. José, que subiu ao throno
+por morte de seu pae D. João V, quasi que nem conhecia o marquez de Pombal, que
+já era homem dos seus cincoenta annos, e que tinha andado por fóra como
+embaixador, ora em Londres, ora em Vienna de Austria, onde casára com a filha
+de um figurão austriaco. Quem metteu empenhos para que elle fosse ministro foi
+a mãe de D. José, D. Marianna se chamava ella, archiduqueza de Austria, e por
+isso amiga da mulher do marquez, que então se chamava simplesmente Sebastião
+José de Carvalho e Mello. Era um ministro como os outros, e o rei não fazia
+mais caso d'elle do que fazia dos seus collegas, quando de repente acontece uma
+grande desgraça em Lisboa, que veio a ser o terramoto do dia 1 de novembro de
+1755. A cidade foi quasi toda a terra, morreram muitas mil pessoas, outras
+ficaram a pedir esmola,<span class="pn"><a name="pg_141">{141}</a></span> e
+sobretudo reinava um terror tamanho que ninguem sabia o que havia de fazer nem
+para onde se havia de virar. O Sebastião de Carvalho não perdeu a tramontana.
+Toma elle a direcção de tudo, arranja sustento, enforca ás portas da cidade
+quantos ladrões apanha, porque isso então era uma praga, trata do desentulho, e
+logo em seguida de reconstruir a cidade, isto com uma actividade, com um
+desembaraço, com um acerto, que D. José disse comsigo: Temos homem! D'ahi por
+diante quem governou foi elle, e é de uma pessoa pasmar ver o que fez. Até ahi
+os governos, para fallar a verdade, em quem menos pensavam era no povo e no
+paiz. O dinheiro do estado não servia senão para elles fazerem o que lhes
+agradava, e por felizes se podiam dar os povos quando lhes dava o capricho para
+cousas uteis. Sebastião José de Carvalho e Mello tratou do paiz e mais nada.
+Ora de que é que o paiz precisava?</p>
+
+<p>Precisava, primeiro que tudo, de acabar com as despezas no gosto das que
+fazia el-rei D. João V, que era umas mãos rotas com fidalgos e com igrejas.</p>
+
+<p>Precisava de poder pensar e estudar, sem ser sempre debaixo da palmatoria
+dos frades e dos jesuitas.</p>
+
+<p>Precisava de acabar com a inquisição, porque era uma vergonha que ainda se
+queimasse gente em Portugal só porque não ía á missa.<span class="pn"><a
+name="pg_142">{142}</a></span></p>
+
+<p>Precisava de ter exercito e de ter marinha.</p>
+
+<p>Precisava de ter industria.</p>
+
+<p>Precisava de ter lavoura.</p>
+
+<p>E nada d'isto elle tinha.</p>
+
+<p>Sebastião de Carvalho via estas cousas e disse comsigo: Mãos á obra. Ora
+digam-me vocês: Quando chegam a uma quintarola que compraram e vêem tudo
+estragado: os pardaes a darem cabo da fructa, as cearas a morrerem á sede, a
+terra fraca por falta de estrume, as hervas ruins a afogarem o trigo, o que é
+que fazem? Arregaçam as mangas e dizem: Vamos a isto. E sacham as hervas, sem
+dó nem piedade, e saltam ao tiro nos pardaes até os pôrem fóra, e deitam
+estrume na terra, e levam a agua da rega para as cearas, e levantam os muros
+arrasados, e enxotam os porcos que lhes vinham fossar nas batatas, e sacodem as
+gallinhas que lhes depinicavam tudo, e até vocês se riam se os accusassem de
+crueldade porque matavam os pardaes, ou porque arrancavam e deitavam fóra as
+hervas ruins.</p>
+
+<p>Pois Sebastião José de Carvalho e Mello tratou Portugal exactamente como
+vocês tratariam a tal quintarola. Olhou para tudo e disse comsigo: Eh! com os
+diabos, como isto está. No paço ha um bando de pardaes que dá cabo da melhor
+fructa dos pomares da nação. Toca a enxotar os pardaes, e, como os pardaes
+refilaram, saltou ao tiro n'elles. As cearas<span class="pn"><a
+name="pg_143">{143}</a></span> da intelligencia, que tambem são trigo porque
+dão o pão do espirito, não podiam medrar porque os affogava por toda a parte o
+joio do jesuitismo. Toca a sachar os jesuitas. Os muros da quinta estavam
+arrasados, quer dizer, estavam as fronteiras a descoberto, e em vez de haver
+fortes o que havia era igrejas, e elle mandou fazer o forte da Graça em Elvas,
+e poz o exercito a direito, mandando vir para isso um militar estrangeiro, o
+principe de Lippe, que era da escola de um rei da Prussia que foi o primeiro
+militar do seu tempo. Não havia lavoura nem havia industria, porque ninguem lhe
+dava a protecção da rega e do adubo, e Pombal deu-lhe tudo isso á moda do seu
+tempo, que elle tambem não podia adivinhar o que hoje se sabe. Elle reformou os
+estudos e a universidade, elle fundou companhias e fabricas, elle partiu os
+dentes á inquisição, elle poz fóra os jesuitas, elle tirou a censura dos livros
+aos padres, elle acabou com distincções de christãos-novos e christãos-velhos,
+e na India e no Brazil acabou tambem com todas as tolices das raças, elle
+arreganhou os dentes a Roma, e soube pôr o papa no seu logar, elle bateu o pé á
+Hespanha, elle fez-se respeitar da Inglaterra, elle acabou com os morgados
+pequenos que só faziam mal á lavoura, elle não deixou que entrassem para padres
+e frades todos quantos o queriam ser, porque, se as cousas continuassem assim,
+ás duas por tres não<span class="pn"><a name="pg_144">{144}</a></span> havia
+senão cabeças rapadas em Portugal, emfim, meus amigos, é de uma pessoa pasmar
+ver que aquelle diabo de homem, que ao mesmo tempo fazia de Lisboa uma cidade
+nova e levantava uma estatua ao seu rei no Terreiro do Paço, em tudo poz a mão,
+tudo melhorou, tudo reformou, tudo arranjou, e póde-se dizer que virou a nação
+de dentro para fóra. Já se vê que fez tudo isto com o «posso, quero e mando.»
+Mas a quem é que prestou verdadeiros serviços? Foi á liberdade, porque tirou o
+povo da miseria e da ignorancia em que vivia, porque o livrou de ter os
+jesuitas por tutores, e assim o animou a cuidar dos seus direitos, e o preparou
+para um bello dia reclamar a liberdade. Foi cruel, bem sei, não digo menos
+d'isso. Tratou os homens como se fossem pardaes, e praticou mesmo barbaridades
+escusadas; mas que diabo! não sei que sina é esta: reforma graúda sem muito
+sangue parece que não ha modo de se fazer; uma vez são os reformadores que
+derramam o seu proprio sangue, e então é que a reforma vem de Deus, como
+acontece com o christianismo; outras vezes os reformadores derramam o sangue
+dos outros, e então é que a reforma vem dos homens, como aconteceu com a
+revolução franceza; porque lá isso de regar as arvores do bem com o sangue das
+nossas proprias veias, Deus é que o ensina, que os homens só por si não são
+capazes de chegar a tanto.<span class="pn"><a name="pg_145">{145}</a></span>
+</p>
+
+<p>&mdash;Ó sr. João, exclamou o Bartholomeu, mas parece-me que tenho ouvido dizer
+que os Tavoras, o duque de Aveiro e os mais fidalgos soffreram tormentos do
+diabo ali na praça de Belem. Ora, ainda que fosse necessario dar cabo d'elles,
+acho que não era preciso atormental-os, e que o marquez de Pombal tinha na
+verdade cabellos no coração.</p>
+
+<p>&mdash;Não digo menos d'isso, Bartholomeu, mas ouve lá uma cousa: tu sabes porque
+é que os fidalgos foram executados, não sabes? Foi por darem uns tiros no rei.
+Elles queriam livrar-se do ministro, o rei não largava o ministro, cada vez se
+lhe agarrava mais, como depois mostrou, fazendo-o conde de Oeiras e marquez de
+Pombal, e então lembraram-se de dar cabo de D. José. Ora sabes tu como fôra
+castigado em França, pouco tempo antes, um homem que tinha querido matar o rei
+Luiz XV? Foi posto a tormentos, depois nas feridas abertas deitaram-lhe chumbo
+a ferver, e a final ataram-n'o aos rabos de quatro cavallos, e
+esquartejaram-n'o. E comtudo ninguem diz que Luiz XV tivesse cabellos no
+coração. As cousas faziam-se assim no seu tempo, não foi o marquez de Pombal
+que as inventou.</p>
+
+<p>Hão de vocês dizer: Este diabo gaba sempre as tyrannias por toda a parte. Já
+defendeu D. João II, agora defende o marquez de Pombal. Eu não as louvo,
+rapazes. Se vivesse n'esses tempos e podesse, havia de berrar contra ellas; mas
+cá de longe, vendo<span class="pn"><a name="pg_146">{146}</a></span> as cousas
+com socego, digo que ninguem é perfeito, e que todos os homens têem, como dizia
+o tal engenheiro francez que esteve em Bellas, os defeitos das suas qualidades.
+Ali está o Francisco Artilheiro que foi soldado: havia de ter servido com
+muitos coroneis. Encontrou algum que fosse teso a valer e que ao mesmo tempo
+desatasse a chorar, no tempo das varadas, quando tinha de mandar chibatar algum
+soldado? Não póde ser. Estes pimpões que quebram todos os abusos, que põem um
+joelho de ferro em cima de todas as revoltas, fazem aos homens o mesmo que
+fazem ás cousas, e o dever de quem depois conta a historia é perceber isso
+tudo, e não estar a berrar contra aquelles que fizeram serviços ao seu paiz, só
+porque nem sempre paravam onde seria melhor que tivessem parado.</p>
+
+<p>Mas vamos nós ao resto da historia que d'aqui a pouco já as noites são mais
+pequenas, e mal chega o tempo para dormir a quem tem de se levantar com o sol.
+D. José morreu em 1777, e, apenas elle fechou os olhos, rebentou o odio que
+havia contra o grande ministro; ninguem quiz lá pensar no bem que elle tinha
+feito, e todos clamaram contra as suas crueldades. Demais a mais quem succedia
+a D. José era sua filha a rainha D. Maria I, muito beata, embirrando muito com
+o marquez, porque desconfiava que elle quizera fazer passar o throno para o
+filho<span class="pn"><a name="pg_147">{147}</a></span> d'ella, um rapazito
+muito esperto, chamado D. José; e então o rei a morrer hoje e o ministro a ser
+demittido ámanhã. Não houve picardia que lhe não fizessem. Mandaram-n'o para a
+sua quinta do Pombal, e, estando elle já doente e amargurado, moeram-n'o com
+perguntas porque lhe armaram um processo. Se podessem desfazer tudo o que elle
+fizera, desfaziam, mas a final só soltaram os presos, porque emquanto ao mais
+tiveram medo de dar bordoada no finado rei, que a final de contas respondia
+pelos actos do ministro, porque elle é que assignava as ordens. Tiraram o
+retrato do marquez da memoria do Terreiro do Paço, qué só em 1834 se tornou a
+pôr como era justo; em vez do retrato pozeram as armas de Lisboa que são um
+navio á véla, e foi então que o marquez de Pombal disse, ao saber do caso: Ai!
+Portugal que vaes a véla!</p>
+
+<p>Bem quizera D. Maria I admittir os jesuitas outra vez, mas não podia ser,
+porque o marquez de Pombal não só os expulsára de Portugal, mas fizera uma liga
+contra elles em toda a Europa, e conseguira que o papa Clemente XIV acabasse
+com a Ordem. Muito trabalharam os parentes dos Tavoras para conseguir que se
+désse uma sentença a declarar que era peta o que se dissera a seu respeito, e
+injusta a sentença que os condemnava; mas a final não conseguiram isso, porque
+a rainha percebeu que, condemnando o marquez de Pombal, a quem condemnava era
+ao pae.<span class="pn"><a name="pg_148">{148}</a></span></p>
+
+<p>No mais tudo andou para traz, a não ser na marinha, que teve um bom
+ministro, Martinho de Mello, e n'isto de escolas que sempre se foram
+desenvolvendo. Houve alem d'isso dois homens que fizeram muito bem a Lisboa e
+ao Porto, a saber, o intendente da policia Pina Manique e o corregedor do Porto
+Francisco de Almada. É que já se não podia deixar de cuidar de melhoramentos;
+mas o que deu cabo de nós foi a birra que tivemos em nos metter na bulha contra
+a republica franceza. Isso, fallar em Portugal nas idéas novas, era o mesmo que
+fallar no diabo, e D. Maria I, em vez de tratar da sua vida, seguio o caminho
+de D. João V. Este ía-se metter com os turcos que lhe não faziam mal nenhum, D.
+Maria I foi-se metter com a republica franceza, que estava lá tão longe e que
+nada tinha com Portugal.</p>
+
+<p>O que resultou d'aqui é que mandámos uma divisão ao Russilhão a ajudar os
+hespanhoes, e uma esquadra a Toulon a ajudar os inglezes. A divisão do
+Russilhão portou-se o que se chama bem, mas depois? A Hespanha fez a paz com a
+França, e nós ficámos a olhar ao signal, a Inglaterra mettia-nos na dança, e
+depois punha-se de palanque. Tivemos de andar a pedir a paz á republica
+franceza, quasi de joelhos, e o Napoleão, que já n'esse tempo começava a
+governar em França, e que nos tinha jurado pela pelle, teve a habilidade de
+açudar a Hespanha<span class="pn"><a name="pg_149">{149}</a></span> contra nós,
+resultando d'ahi a guerra de 1801. Foi uma guerra vergonhosa. Tinhamos o
+exercito escangalhado, não fizemos senão levar bordoada, e, para alcançarmos
+paz, tivemos de pagar bom dinheiro, e de dar aos hespanhoes Olivença que nunca
+mais apanhámos. De nada nos valeram todas as humilhações. Em 1807, Napoleão,
+que já era imperador, e que andava n'uma lucta de morte com a Inglaterra, quiz
+que fechassemos os portos aos nossos antigos alliados. Andámos a hesitar, até
+que Napoleão, que não gostava de perder tempo, declara que a casa de Bragança
+deixára de reinar, e mette-nos cá dentro um exercito commandado pelo Junot. A
+familia real não teve senão tempo de fazer as malas e de partir para o Brazil,
+por conselho dos inglezes. Devo-lhes dizer uma cousa: a rainha D. Maria I
+endoidecera havia muito tempo, e quem governava em seu nome como principe
+regente desde 1792, era o principe D. João, seu filho mais velho, porque
+aquelle D. José, de quem lhes fallei, e que dava tantas esperanças, tinha
+morrido em 1788.</p>
+
+<p>Imaginem vocês como ficaria o povo com esta <em>partida</em>, e agora é que
+é o caso de se lhe chamar <em>partida</em>.</p>
+
+<p>Abandonado pela familia real, viu o Junot tomar conta do governo, agarrar no
+exercito portuguez, que não tinha ordem para resistir, e mandal-o para França
+servir no exercito de Napoleão, lançar contribuições<span class="pn"><a
+name="pg_150">{150}</a></span> pesadas como o diabo, e emfim tratar isto como
+terra conquistada. E, para maior vergonha, Junot invadira o paiz, no coração do
+inverno, com meia duzia de gatos, e entrára em Lisboa á frente de quatro
+soldados estropiados e esfarrapados. A vergonha de todas estas humilhações
+começou a fazer ferver o sangue aos portuguezes, e um bello dia rebentou a
+revolta no Porto. Foi como quem diz um rastilho de polvora. Desde o Minho até
+ao Algarve, não houve terra em que se não pegasse em armas contra os francezes.
+O Junot mandou as suas tropas esmagar as revoltas, e os francezes fizeram então
+cousas do arco da velha, mataram, roubaram, queimaram...</p>
+
+<p>&mdash;Ah! pae do céu! exclamou a tia Margarida, eu era bem pequenina então,
+havia de ter sete ou oito annos, mas lembra-me do que minha mãe me contava.
+Havia um que ella chamava o <em>Maneta</em>, que isso parece que era o diabo em
+pessoa.</p>
+
+<p>&mdash;Era o general Loison, que não tinha um braço. Em Evora fez elle o demonio,
+mas, por mais que fizessem, não conseguiam acabar com a revolta. Era pobre
+gente do povo, sem armas, sem disciplina, sem chefe, que assim se levantava
+contra os francezes, e estes davam-lhe para baixo facilmente, mas a gente
+levava aqui em Bellas, levantava-se em Cintra, íam os francezes a Cintra,
+levantavam-se os de Bellas. Demais a mais, cada qual faz a guerra<span
+class="pn"><a name="pg_151">{151}</a></span> como póde. Lá em batalha não
+podiam os nossos medir-se com os soldados de Napoleão. O que faziam? Davam-lhes
+caça; em os apanhando separados, carga para cima d'elles. Era facada, era
+paulada, era tiro de bacamarte, era o que podia ser, com os diabos! que um povo
+é como uma pessoa, quando o querem pisar aos pés, defende-se com unhas e
+dentes. Mas n'isto os inglezes, que andavam á tóca de ver se podiam saír da sua
+ilha e desembarcar n'algum sitio onde podessem incommodar Napoleão, assim que
+viram que Portugal estava revoltado, desembarcaram aqui um exercito commandado
+por um sugeito chamado Wellington, que, se não era tão bom general como
+Napoleão, pelo menos parece-me que ainda seria mais feliz do que elle. O Junot,
+que não passava de ser um valentão, foi batido pelos inglezes na Roliça e
+Vimeiro, onde os nossos, já se vê, tambem combateram ao lado das fardas
+vermelhas, que é, como vocês sabem, o uniforme inglez, e, para se safar de
+Portugal, teve de capitular. É verdade que o patife apanhou uma capitulação,
+que a não podia ter melhor se fosse elle que houvesse dado a tunda nos
+inglezes. Levou-nos tudo o que nos tinha roubado, e nem se fallou nos nossos
+soldados que lá andaram, contra vontade sua, a servir no exercito de Napoleão.
+</p>
+
+<p>&mdash;Ó sr. João, acudiu o Manuel da Idanha, vocemecê<span class="pn"><a
+name="pg_152">{152}</a></span> ha de desculpar uma pergunta, mas parece-me que
+ninguem póde vir por terra de França a Portugal, sem passar pela Hespanha, não
+é verdade?</p>
+
+<p>&mdash;É sim, rapaz; mas que queres tu dizer com isso?</p>
+
+<p>&mdash;Quero dizer que não percebo como foi que o Junot cá veio. Então os
+hespanhoes deixaram-n'o passar?</p>
+
+<p>&mdash;Fizeram mais alguma cousa, vieram com elle, porque n'esse tempo estavam
+ainda muito manos com os francezes, tanto que repartiram entre si Portugal como
+quem reparte um melão, uma talhada para este, outra talhada para aquelle, etc.
+Mas o Napoleão surripiou aos hespanhoes a sua familia real, e fez rei de
+Hespanha um seu irmão chamado José, de fórma que, quando nós nos revoltámos,
+revoltaram-se elles tambem, e começámos uns e outros á lambada aos francezes.
+</p>
+
+<p>Entretanto cá se arranjára um governo; tratou elle de organisar o exercito,
+que ainda era á moda de 1640, e que só precisava de um general como o principe
+de Lippe para ficar uma joia. Esse general appareceu, foi um inglez chamado
+Beresford, que n'um abrir e fechar de olhos poz tudo a direito. O que é certo,
+meus amigos, é que na guerra da Peninsula, que durou seis annos, os nossos
+soldados, combatendo ao lado dos soldados inglezes, passavam<span class="pn"><a
+name="pg_153">{153}</a></span> por ser tão bons como elles e talvez melhores.
+Já se vê que tinha sido necessario virem muitos officiaes inglezes para os
+nossos regimentos, porque a officialidade portugueza estava toda dispersa, uns
+tinham ido para França, outros para o Brazil, e outros, diga-se a verdade, não
+prestavam para nada.</p>
+
+<p>&mdash;Ó sr. João, dá licença que lhe faça uma pergunta? interrompeu de novo o
+Manuel da Idanha.</p>
+
+<p>&mdash;Faze, rapaz, podéra! Pois então para que estou eu aqui?</p>
+
+<p>&mdash;Porque é que se chamou a essa guerra a guerra da Peninsula?</p>
+
+<p>&mdash;Não te disse eu, rapaz, no principio d'esta conversa, que Portugal e a
+Hespanha juntos formavam uma peninsula, quer dizer quasi uma ilha, porque a
+cérca o mar por toda a parte menos por um lado, que é onde pega com a França
+pelos Pyrenéus?</p>
+
+<p>&mdash;Disse, sim senhor.</p>
+
+<p>&mdash;E não te acabei de dizer que, quando nos revoltámos contra Napoleão,
+revoltaram-se tambem os hespanhoes, e que desatámos uns e outros á pancada aos
+francezes?</p>
+
+<p>&mdash;Tambem é verdade.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então ahi tens tu: a guerra era de Hespanha e de Portugal, por
+conseguinte era a guerra da Peninsula.<span class="pn"><a
+name="pg_154">{154}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Ora tambem quero fazer uma pergunta, disse a tia Margarida.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, tia Margarida! Era o que faltava era que as mulheres não
+tivessem a palavra.</p>
+
+<p>&mdash;O que você precisava era de um puxão de orelhas, mas emfim lá vae a
+pergunta. Eu, sempre que minha mãe fallava n'essas cousas, ouvia-lhe dizer que
+os francezes eram muito maus, mas que os inglezes talvez ainda fossem peores.
+Ora você diz que os inglezes vieram ajudar-nos...</p>
+
+<p>&mdash;Dizia muito bem a sua mãe, tia Margarida, mas eu tambem não digo mal.
+Soldados inglezes sempre foram abrutados, principalmente em estando com o
+vinho. Nunca vieram a Portugal senão ajudar-nos, e nunca tambem cá vieram que
+não ficasse tudo a berrar contra elles. Olhem no tempo de D. Fernando.
+Parece-me que lhes contei que, vindo elles combater ao nosso lado contra os
+hespanhoes, fizeram o que o demonio não fez. E, agora que já respondi ás suas
+perguntas, vou continuar a minha historia.</p>
+
+<p>O Junot foi posto fóra em 1808, os inglezes então viraram-se contra os
+francezes que estavam na Hespanha, e metteram-se pela Galliza dentro, mas o
+Soult, apanhando-os lá, deu-lhes uma tareia formidavel, e depois veio sobre
+Portugal e entrou no Porto. A gente do Porto, a fugir dos francezes, metteu-se
+na ponte de barcas que então havia sobre o<span class="pn"><a
+name="pg_155">{155}</a></span> Douro, para passar para o outro lado; a ponte
+abateu e morreram milhares de pessoas.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! bem sei! interrompeu a tia Margarida, diz que foi o dia de juizo.</p>
+
+<p>&mdash;Ora se foi! os francezes pararam no Porto, mas nós e os inglezes fomo-nos
+a elles d'ahi a tempo e pozemol-os fóra. O Napoleão, embirrando com o caso,
+mandou um exercito commandado pelo marechal Masséna, um dos seus melhores
+generaes, com ordem de atirar o Wellington ao mar; mas o Wellington, que era
+homem avisado, e que não gostava de tomar banhos de choque, aproveitára o tempo
+a arranjar as linhas de Torres Vedras, de traz das quaes se metteu. O Masséna
+bateu com as ventas nas linhas, vio que não podia fazer nada, foi-se embora, e
+nós logo atraz d'elle.</p>
+
+<p>Para encurtar rasões, em quatro annos de campanha, fomos a pouco e pouco
+empurrando os francezes pela Hespanha fóra, em 1814 entrámos em França de
+embrulhada, e, como os russos, os austriacos e os prussianos tambem entraram
+por outro lado, levando o Napoleão adiante de si, caíu aquella caranguejola
+toda, o Napoleão teve de dar a sua demissão de imperador, e nós ficámos livres
+dos francezes.</p>
+
+<p>Dois annos depois, em 1816, morreu a rainha D. Maria I no Brazil, sem que
+ninguem, por assim dizer, désse por isso. O principe regente tomou o<span
+class="pn"><a name="pg_156">{156}</a></span> nome de D. João VI e continuou
+tudo como até ahi.</p>
+
+<p>Entretanto em Portugal estava tudo descontente. O povo levantára-se contra
+os francezes por sua conta e risco, e parecia-lhe historia que o rei, que
+fugira, continuasse a não fazer caso nenhum d'elle.</p>
+
+<p>Em Hespanha tinham-se reunido côrtes e arranjára-se uma constituição pela
+qual se acabava com o poder absoluto dos reis. Em Portugal, se não se fizera o
+mesmo, não fôra por falta de vontade, mas os inglezes não deixavam. Todos
+percebiam, porém, que se não podia voltar á antiga, como se não se tivesse
+passado cousa nenhuma no intervallo. Por outro lado a teima do rei em ficar no
+Brazil já nos ía fazendo chegar a mostarda ao nariz, tanto mais que, ao passo
+que havia por cá muita miseria, estava sempre a ir dinheiro para o Brazil, e
+não só dinheiro mas tropa tambem, porque D. João VI, em 1817, lembrára-se de
+juntar Montevideu ao Brazil, como se o Brazil ainda fosse pequeno, aproveitando
+para isso a revolta das colonias hespanholas. Emfim, a conservação de Beresford
+e dos coroneis inglezes no quadro do exercito portuguez incommodava os nossos
+officiaes, e descontentava a nação.</p>
+
+<p>Em 1817, descobre-se ainda por cima uma conspiração liberal, dão como
+implicado n'ella, com provas<span class="pn"><a name="pg_157">{157}</a></span>
+de cá cá rá cá, um general muito estimado, Gomes Freire de Andrade, de quem
+diziam que Beresford tinha ciumes, e enforcam-n'o. Tudo isto ía fazendo ferver
+o sangue aos portuguezes, e, quando em 1820 começou a haver revoluções liberaes
+por toda a parte, rebenta tambem uma revolução liberal no Porto, espalha-se
+logo por todo o reino, chega a Lisboa, e pega-se ao Brazil. D. João VI é
+obrigado a acceital-a, e a vir para Portugal, a mandar embora os officiaes
+inglezes, e a assignar uma constituição que as côrtes fizeram; mas os governos
+lá de fóra, e logo os mais poderosos, acharam perigoso que se tornasse a fallar
+em liberdade e constituições, e decidiram que viesse um exercito francez pôr a
+mordaça na boca aos liberaes da Hespanha, emquanto um exercito austriaco ía
+fazer o mesmo aos da Italia. Apenas cá chegou a noticia, os amigos do
+absolutismo, que tinham por chefe o infante D. Miguel, segundo filho do rei,
+levam este para Villa Franca, e deitam abaixo a constituição. Mas o que a fez
+caír não foram elles, foram os passos dos soldados francezes que já a essas
+horas andavam por Hespanha.</p>
+
+<p>Entretanto o Brazil, onde ficára governando o principe D. Pedro, que era o
+filho mais velho do rei, fazia-se independente. Antes d'elle tinham feito o
+mesmo as colonias visinhas que pertenciam á Hespanha, e cincoenta annos antes
+as que pertenciam<span class="pn"><a name="pg_158">{158}</a></span> á
+Inglaterra. No Brazil já houvera duas tentativas de revolta, e ambas tinham
+sido afogadas em sangue, uma em 1789, outra em 1817. A final venceram. Accusam
+muito D. Pedro de se ter feito imperador do Brazil, e de se haver revoltado
+contra seu pae. Elle não se revoltou, mas só podia fazer uma de duas cousas, ou
+ir com os brazileiros, ou pôr-se no andar da rua. Então esses figurões
+imaginavam que um paiz rico, grande e forte, está agora para receber ordens de
+outro mais pequeno, ou maior que elle seja, e que fica de mais a mais do outro
+lado do mar? Ora, historias da vida! e não se queixem d'isso. É ordem das
+cousas. As colonias são como os filhos. A gente educa-os, trata-os, deixa-os ir
+crescendo. Quando são maiores emancipam-se. E ninguem tem que estranhar. Foi o
+que aconteceu com o Brazil. Estava maior, emancipou-se. Perdemos o Brazil em
+1825, em 1826 morreu D. João VI. Os seus ultimos dias foram amargurados. Tivera
+guerra com o filho mais velho que se revoltára com o Brazil; estivera para ser
+desthronado pelo filho mais novo, D. Miguel, que o chegára a prender na
+Bemposta, e que elle depois tivera que mandar para fóra do reino; a mulher, D.
+Carlota Joaquina, que estava sempre ás turras com elle, nunca lhe déra senão
+desgostos. Falleceu ralado o pobre do rei, que era uma excellente pessoa, amigo
+de tomar o seu rapé com socego, e que para sua desgraça governára no tempo<span
+class="pn"><a name="pg_159">{159}</a></span> da revolução franceza, no tempo de
+Napoleão, e no tempo da revolução de 1820. E ha de a gente acreditar no rifão:
+Dá Deus o frio conforme a roupa.</p>
+
+<p>E, como eu tambem estou com frio, rapazes, vou até casa á procura de roupa,
+e no proximo domingo acabaremos com isto.<span class="pn"><a
+name="pg_160">{160}</a><br><a
+name="pg_161">{161}</a></span></p>
+
+
+
+<h1>DECIMO SERÃO</h1>
+
+<p class="sinopse">Historia contemporanea.&mdash;D. Pedro IV.&mdash;A Carta
+Constitucional.&mdash;Regencia da infanta D. Izabel Maria.&mdash;D. Miguel, rei
+absoluto.&mdash;Sublevação do Porto.&mdash;Emigração.&mdash;A ilha Terceira.&mdash;O conde de
+Villa Flor.&mdash;Perseguição aos liberaes.&mdash;A esquadra franceza no Tejo.&mdash;D. Pedro
+IV põe-se á frente dos liberaes.&mdash;Desembarque no Mindello.&mdash;Cêrco do
+Porto.&mdash;Expedição do Algarve.&mdash;Batalha do Cabo de S. Vicente.&mdash;Entrada das
+tropas do duque da Terceira em Lisboa, a 24 de julho.&mdash;Cêrco de
+Lisboa.&mdash;Batalhas de Asseiceira e Almoster.&mdash;Convenção de Evora Monte.&mdash;Reinado
+de D. Maria II.&mdash;Revolução de Setembro.&mdash;Constituição de 1838.&mdash;Restauração da
+Carta.&mdash;A Maria da Fonte.&mdash;A Junta do Porto.&mdash;A intervenção estrangeira.&mdash;A
+Regeneração.&mdash;Reinado de D. Pedro V.&mdash;A febre amarella.&mdash;Reinado de D.
+Luiz.&mdash;Conclusão.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Vocês percebem, meus amigos, principiou o João da Agualva, que, tendo de
+lhes contar agora acontecimentos em que tomou parte muita gente que ainda está
+viva e sã, e não querendo offender ninguem, não posso estar com muitas
+reflexões. Quem succedeu a D. João VI foi D. Pedro IV, já então imperador do
+Brazil. Este, que era um principe que percebia as cousas, vio bem que o nosso
+tempo já<span class="pn"><a name="pg_162">{162}</a></span> não era tempo para
+absolutismos, e antes quiz dar elle uma constituição do que ir o povo
+arrancar-lh'a. Mandou portanto para Portugal a Carta, dizendo ao mesmo tempo
+que abdicava em sua filha D. Maria, a qual havia de casar com seu tio o infante
+D. Miguel, e, emquanto D. Miguel não voltava para Portugal, nomeou regente a
+infanta D. Izabel Maria, que vocês haviam de conhecer muito bem.</p>
+
+<p>&mdash;Ora se conhecemos! morava ali em Bemfica!</p>
+
+<p>&mdash;Tal qual! morreu ha cousa de tres ou quatro annos. A Carta Constitucional
+ficou sendo lei do reino, apezar de algumas revoltas, mas o infante D. Miguel,
+apenas chegou a Lisboa em 1828, fecha as côrtes, atira com a Carta de pernas ao
+ar e faz-se proclamar rei absoluto. A guarnição do Porto não está pelos
+ajustes, e revolta-se, mas tem de fugir para Hespanha. Tudo o que eram
+liberaes, e que poderam safar-se, emigraram uns para França, outros para
+Inglaterra. Mas o que é certo é que o povo todo estava com D. Miguel. Porque?
+Como póde haver um povo que não goste de liberdade? Vão lá explical-o! Os
+padres e os frades estavam quasi todos ao lado de D. Miguel, e levavam comsigo
+muita gente.</p>
+
+<p>Mas a ilha Terceira não esteve pelos autos, e não acceitou o absolutismo.
+Apenas isso constou, correram os emigrados para essa ilha, o conde de Villa
+Flor tomou conta do governo, e ali resistio ás esquadras<span class="pn"><a
+name="pg_163">{163}</a></span> de D. Miguel. Este, entretanto, com o devido
+respeito, fazia tolices graúdas, e a maior era perseguir os liberaes a ferro e
+fogo. A forca estava sempre armada, as prisões sempre atulhadas, e os
+caceteiros não deixavam ninguem socegado. Isto de fazer martyres é o diabo.
+Para a arvore da liberdade não ha rega como o sangue dos seus filhos.</p>
+
+<p>Ora, além d'isso, emquanto o governo francez se mostrava pouco amigo da
+liberdade, tinha D. Miguel as sympathias da França, mas depois da revolução de
+1830 aconteceu o contrario. O governo de D. Miguel caíu na asneira de perseguir
+uns francezes. D'ahi resultou vir uma esquadra franceza ao Tejo e levar os
+navios que ahi estavam. Ao mesmo tempo D. Pedro, que tivera os seus dares e
+tomares com os brazileiros, abdicou a corôa imperial do Brazil, e veio tomar o
+commando dos defensores de sua filha. Põe-se á frente d'elles, que não eram
+muitos, eram 7:500, desembarca no Mindello a 8 de julho de 1832, mette-se no
+Porto, e ahi resiste mais de um anno aos soldados de D. Miguel, que eram muito
+valentes, mas mal commandados. Envia ao Algarve em 1833 meia duzia de gatos,
+debaixo das ordens do conde de Villa Flor, já então duque da Terceira, n'uma
+pequena esquadra, que primeiro fôra commandada por um inglez chamado Sertorius,
+que ainda vive, e que o estava sendo por outro inglez chamado Napier. Este
+desembarca o duque<span class="pn"><a name="pg_164">{164}</a></span> da
+Terceira no Algarve; depois vae-se á esquadra miguelista e derrota-a no cabo de
+S. Vicente. O duque da Terceira marcha sobre Lisboa, bate na cova da Piedade os
+miguelistas, commandados pelo Telles Jordão, que tinha sido um tyranno para os
+presos liberaes, e que ali morreu, e entrou em Lisboa no dia 24 de julho de
+1833. D. Pedro vem para Lisboa que os miguelistas cercam. Elle e os seus dois
+marechaes, duques da Terceira e de Saldanha, obrigam os miguelistas a retirar
+para Santarem. Depois o duque de Saldanha por um lado bate os miguelistas em
+Almoster, o duque da Terceira por outro bate-os na Asseiceira, e D. Miguel
+assigna a 25 de maio de 1834 a convenção de Evora Monte, pela qual o seu
+exercito depunha as armas, e elle abandonava Portugal. Como se esperasse
+unicamente o fim da sua empreza para terminar tambem a sua vida, D. Pedro IV
+veiu aqui morrer a Queluz no dia 24 de setembro de 1834. Podem para ahi pensar
+d'elle o que quizerem, meus amigos, mas o homem que, tendo nascido no throno,
+passou a sua vida a regeitar corôas, e a combater, como um soldado valente,
+pela liberdade dos povos, merece bem as tres estatuas que no Porto, em Lisboa e
+no Rio de Janeiro, mostram que, ao menos depois da sua morte, não foram
+ingratos com elle os portuguezes e os brazileiros.</p>
+
+<p>Succedia-lhe a senhora D. Maria II, que viveu<span class="pn"><a
+name="pg_165">{165}</a></span> bem pouco tempo, e teve uma vida bem
+atormentada. Logo em 1836 um partido, que queria mais liberdades que as da
+Carta fez a revolução de setembro, e em 1838 veiu uma nova constituição. Contra
+ella se fazem muitas revoltas, até que em janeiro de 1842 Costa Cabral, depois
+conde de Thomar, deita abaixo a constituição de 1838, e põe outra vez a Carta
+de pé. Governou elle muito tempo, mas, diga-se a verdade, um poucochinho á
+bruta. D'ahi vieram mais revoluções, e a maior de todas que foi a da Maria da
+Fonte, em 1846, em que metade do reino obedecia á Junta do Porto, e a outra
+metade ao governo nomeado pela rainha. Batidos em Val-Passos, em Torres Vedras,
+e no Alto do Viso, os <em>patuléas</em>, como se chamava aos partidarios da
+junta, são obrigados a depor as armas pelos inglezes e pelos hespanhoes que
+mandaram uns uma esquadra, os outros um exercito para restabelecerem aqui o
+socego. Mas no fundo estava tudo em braza, e quando em 1851 o duque de Saldanha
+se levantou contra o conde, hoje marquez de Thomar, foi tudo atraz d'elle.
+Reuniram-se côrtes que introduziram umas mudanças na Carta, e d'ahi por diante
+nunca mais houve revoltas de consideração. Pegaram os governos a fazer estradas
+e caminhos de ferro, e lá de partidos é que eu não entendo. Em 1853 morria a
+senhora D. Maria II, considerada por todos como uma santa senhora, e uma santa
+mãe, e succedeu-lhe<span class="pn"><a name="pg_166">{166}</a></span> seu
+filho, o senhor D. Pedro V, sendo regente nos primeiros dois annos o senhor D.
+Fernando que vocês todos conhecem. O sr. D. Pedro V era uma joia, como sabem.
+Quando em 1857 veio a febre amarella a Lisboa, andou elle pelos hospitaes, a
+consolar os doentes, e a dar coragem e exemplo a todos. Tambem quando em 1859
+morreu a boa rainha Estephania, sua mulher não houve portuguez que a não
+chorasse com elle, e quando em 1861 morreu elle tambem quasi de repente, com os
+seus dois irmãos, o senhor D. Fernando e o senhor D. João, a dôr do povo foi
+tamanha que chegou a haver tumultos, porque até se desconfiava que aquillo não
+fosse natural. Subio ao throno o senhor D. Luiz que hoje reina, e aqui portanto
+acaba a historia. Sempre direi, com tudo, que não são muitos os paizes por esse
+mundo onde os povos ainda hoje chorem pelos reis, e que isso vem de serem os
+nossos tão amigos da liberdade como são e tem sido, graças a Deus. E aqui, meus
+amigos, acabo a minha tarefa; o que eu desejo, rapazes, é que vocês achem que
+não os massou muito o pobre do João da Agualva, e que entendam que empregaram
+melhor o seu tempo a ouvir as minhas historias, do que a beber decilitros na
+taverna do Funileiro.</p>
+
+<p style="text-align:center;">FIM</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Historia alegre de Portugal, by
+Manuel Pinheiro Chagas
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA ALEGRE DE PORTUGAL ***
+
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+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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+
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+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
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+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
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+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
+metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be
+in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES.
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+Procedures for determining public domain status are described in
+the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org.
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+No investigation has been made concerning possible copyrights in
+jurisdictions other than the United States. Anyone seeking to utilize
+this eBook outside of the United States should confirm copyright
+status under the laws that apply to them.
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+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
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