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MARQUES DE CARVALHO + + CONTOS + + PARAENSES + + + + + PARÁ + + PINTO BARBOSA & C.--Editores + Rua 13 de Maio + 1889 + + + + +Obras de Marques de Carvalho + +VI + +CONTOS PARAENSES + + + + +DO MESMO AUCTOR + + O SONHO DO MONARCHA,--poemeto, 1886, Opusculo + + LAVAS, poemeto, 1886, Opusculo + + PAULINO DE BRITO, perfil, com _fac-simile_ e retrato do biographado, + 1887, 1 vol. + + HORTENCIA,--romance naturalista, 1888, 1 vol. + + O LIVRO DE JUDITH,--versos e contos para creanças, 1889, 1 vol + + + A PUBLICAR + + HISTORIAS D'AMOR,--contos, 1 vol. + + SOROR MARIA,--romance, 1 vol. + + THEODORICO MAGNO,--perfil, 1 vol. + + + + +J. MARQUES DE CARVALHO + +CONTOS PARAENSES + + + + +PARÁ + +PINTO BARBOSA & C.--Editores +Rua 13 de Maio +1889 + + + + +------------------------------------------------------------------------ + Pará--Typ. dos Editores, rua 13 de Maio.--1889. +------------------------------------------------------------------------ + + + + +A MEU IRMÂO + +Antonio de Carvalho + + + + +AO EXM.º SR. COMMENDADOR + +Domingos José Dias + +Reconhecimento, Amizade, Veneração. + + + + +Alegria gauleza + + A José Veríssimo + + +Emquanto esperavamos o almoço,--aquelle almoço ás pressas encommendado +no mais que modesto _hotel_ do Pinheiro, fômos dar um passeio pela matta, +sob a sombra das grandes arvores copadas. + +As senhoras haviam ficado na sala do _hotel_, aguçando o appetite no bom +cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha. + +O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto +quadrado, de longas suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da +America. + +Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade +nos transportara ao Pinheiro. + +Ainda não havia duas horas que nos conheciamos, e já grande +familiaridade se estabelecera entre nós,--essa familiaridade facil, +intima, passageira, das pessoas que viajam. + +Estavamos ainda a bordo, e já o meu sympathico companheiro, sentado á +amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia +do Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida. + +Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja +existencia eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por +motivos que eu não tratava de saber, tão vivamente me attraía a +curiosidade. + +Quando saltamos para terra,--emquanto subiamos pela escada da +ponte,--convidei-o para almoçar comnosco, e elle acceitara rindo,--com +um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem duplicidade. + +Fôra elle quem me propuzéra aquella excursão á matta, para darmos tempo +a que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já prevía frugal e +triste, attendendo ás condições da terra em que nos achavamos. + +Acceitei-lhe de boamente a proposta, com aquella vivacidade alegre de +quem vive mezes inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e +toma, de tempos a tempos, um bello dia para descançar um pouco, em a paz +d'uma povoação de arrabalde, refestelando-se preguiçosamente na relva +odorífera dos nossos grandes e soberbos mattagaes. + +E fômos por ali fóra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de +farfalhante cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja +uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo +branco das varias flôres sylvestres, cujas pétalas encolhiam-se um +pouco, meio-fanadas pelos raios do sol. + +Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por +onde a vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O +cheiro acre da marezia andava no espaço, casado ao perfume subtil e +excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e +velhos galhos d'aquellas arvores seculares. Pássaros voavam céleres, +n'um brando ruflar d'azas, soltando pequeninos gritos estrídulos e +alegres. De momento a momento, a curta distancia de nós, lagartos +cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo sêcco +que juncava o sólo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços de ceu +de um azul deslavado, que nós entreviamos pelos interstícios das ramas, +urubús recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos +seus vôos arredondados, pairando como n'uma contemplação enamorada da +terra que os sustenta com suas putrefacções, com seus resíduos infames e +nojentos. + +De repente, o meu companheiro disse-me: + +--Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar cançado d'esta longa caminhada. + +Não tinha a minima accentuação estrangeira; fallava como um verdadeiro +paraense. + +Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de +bruços, com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a +descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle. + +Ficamos calados por alguns minutos. + +Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos +haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra +exhalava. + +Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe: + +--O sr. é casado? + +Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de +quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois +respondeu: + +--Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo. + +--Ah! + +--É verdade. Sou viuvo e tenho-me dado muito bem n'este novo estado de +quem vive sem as preoccupações do homem casado, que tem uma familia a +sustentar. Bem tolo é quem se casa... + +Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos. + +Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traçando nas +duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, +partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das +suissas. + +Eu não comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim +sublinhadas por similhante sorriso. + +Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, +apertando-me as costas da mão direita, como para chamar para si toda a +minha attenção: + +--Está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de +arribação que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no +coração, no rosto,--nos labios e no olhar? É uma historia muito longa a +minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? Não perderá +nada com isso; pelo contrario, creio aproveitará alguma coisa com a +moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razão nos +actos que pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificará que é muito +certo o rifão: _Tristezas não pagam dividas_, e adquirirá a certeza de +que, n'este mundo, o melhor meio de se gosar saúde e viver tranquillo, é +ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do +dezembargador Delfino. Ora vire p'ra cá as oiças e preste attenção. + +Sentei-me. Elle fez o mesmo e começou, sorrindo sempre: + + +--"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de réis, +herança de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando +logo um socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de +dinheiro, que o meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma +hispanhola réles e velhaca de um hotel da cidade. + +"Um bello dia fallimos,--por causa dessas extraordinarias despezas +capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crésus. Cuida que +apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, +sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu +espirito é refractario a tristezas,--o meu coração grande de mais para +fazer-se pequenino e mirrado por tão pouca cousa. Um ou dois contos de +réis que pude ganhar em certo negocio, após o naufragio a que fôra +conduzido pela doidice de meu socio, empreguei-os em comprar algumas +joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso +carregamento barato, segui para o rio Madeira, afim de explorar em meu +unico proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros. + +"Não me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Pará, e adquiri +maior carregamento, que fui de novo impingir ás remotas regiões do alto +Madeira, onde os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada +posição de inoffensivo estrangeiro, que carece de protecção, que não +deve ser offendido nunca em um paiz amigo!" + +Calou-se. Em sua larga bôcca de expressão franca e descuidosa estava o +eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraía +para esse homem com toda a enorme força de um robusto affecto nascente. + + +Accendeu um charuto e continuou: + +--"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu +regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma solida fortuna amoedada +em bons contos de réis palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da +mala. Tratei logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos +os crédores da massa fallida, sem excepção de um só! Uma d'essas dividas +da firma era uma anquinha,--uma anquinha!--que meu socio havia comprado +para a sua Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que +estabeleci-me pela segunda vez,--d'essa feita sem socio, para não mais +ser prejudicado por ninguem. + +"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga +paraense,--farta carnação morenamente excitante e grandes quadris +arredondados, divinos,--filha de um subdelegado de policia. Casei-me com +ella alguns mezes depois de a ver. Não tinha educação, era estupida, mas +possuía a convicção da belleza nas fórmas, a imponencia da sensualidade +no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto? + +"Dois annos vivi eu nos braços de uma felicidade illimitada. Luiza, a +minha captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em +minha infinita affeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um +esplendido segredo de sua magnifica belleza de crioula! Era um delirio, +uma loucura dulcíssima e purificadora, aquelle amor que eu lhe votava +com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina +casa em que viviamos era para mim uma Capua desejada, onde a minha +languidez encontrava tranquillo bem estar, nos braços da seductora +Luiza. O dia seguinte, que para muitos é um enigma atterrador, +apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproducção +inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor +intenso e bom, como fostes amadas pela piéguice da ingenuidade do meu +espirito!" + +Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisação +prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a +arregaçar-lhe a rubra ponta do labio grosso e varonil. + +E proseguiu, após haver accendido o charuto que se apagara: + + +--Eu tinha inteira confiança em Luiza. Jámais a idéa de uma perfidia de +sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como +poderiam enganar-me aquelles olhos tão bellamente claros e brilhantes, +aquella bocca de perfumosos labios que davam beijos tão doces, tão +sensuaes, tão irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O +meu espirito era o espelho onde se reflectia o meu coração e onde eu +suppunha ver a alma de Luiza, estava realmente a minha, a minha que em +breve tinha de ser tão rudemente ferida pelos factos! + +"É como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a +phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginação +creadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que +viera á cidade, e um bello dia, quando, ao caír da tarde, regressei a +casa para jantar, não mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro +que eu tinha em casa e fugira com o sobredito _cujo_ mencionado +vaqueiro, como vim logo a saber, por informações ministradas pela +visinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto, +completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz para +o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e +voluptuosa. + +"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as +leis do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de +Marajó, onde, por certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos +braços do cyclopico vaqueiro? Que expuz á irrisão publica, ás chufas da +plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparavel deshonra do +meu nome? Nada d'isso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, +mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas de que se esquecera com a +precipitação da fuga! Veja até que ponto fui complacente. Veja que santa +bondade a minha! + +"A desgraçada morreu um anno depois, victima de béri-béri; pois bem; +para mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha +mulher resar, na egreja do Carmo, uma triste missa de _requiem_, a que +assisti com respeito e piedade." + +Calou-se, sem uma commoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse +do tempo ou da côr do céu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E +logo o seu velhaco risinho sarcastico saltou-lhe da bôcca e veiu +espreitar-me de sobre o labio superior,--como se fosse um depoimento +vivo da tranquillidade d'aquella alma em face de todos os +extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella haviam passado, sem +conseguirem emocional-a. + + +O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me +para que acompanhasse-o, seguiu em direcção ao povoado, cantarolando +esta pandega quadra do _Dia e a Noite_, de Lecocq: + + _Minha mulher, que Deus levou,_ + _Foi-me infiel constantemente;_ + _Nada d'isso me acabrunhou:_ + _Levei o caso alegremente!_ + + + + +A convalescente + + Ao dr. Alvares da Costa + + +Estava pallida e triste, encostada levemente á grade do camarote, +n'aquella noite de estréa. + +Os seus olhos, negros como a sêda que o seu delicado corpo vestia, +divagavam pela platéa, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia +uma d'essas melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e +idéaes, bellas, todavia, mesmo na falsidade da sua creação,--vivificada +por um mysterio e conduzida áquella sala d'espectaculo, onde +ostentavam-se as formosuras das moças da moda e as austeras sobrecasacas +dos burguezes, sob a intensa luz do gaz. + +E ella estava sempre pallida, encostada levemente á grade do camarote. + +Nos labios tinha ingênuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expressão da +sympathica physionomia. + +Um engraçado diabrête, primo d'ella, brincava-lhe com o leque. + +Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da +alma uma commoção de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada +d'esse logar, d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para +a platéa, cujo ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos +lenços rendados, dos perfumosos lenços discretos das jovens damas.... + +E aquella encantadora creança que, sempre triste, encostava-se á grade +do camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do +soffrimento, que tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia +austeramente séria sob a luz intensa do lustre..... + + + + +Desillusão + + A Fontes de Carvalho + + +A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem +sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente +zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção. + +Tinha ella a tez,--enrugada e molle como a casca do janipapo +maduro,--salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; +encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, +comprado sempre na _Loja Mariposa_, da qual o co-proprietario +Affonso,--o sympathico Affonso,--vendia-lh'o com muita dóse de +_réclames_ e chamadas de attenção para a superioridade da fazenda. + +Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos +quaes primavam os enfeites vistosos,--uma garridice da sra. d. Joaquina. + +O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da +engelhada epiderme,--posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a +cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos +edade. + +As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco +lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna +do direito de aspirar a um bom casamento"--como ella pensava e dizia mui +confidencialmente a certas amigas particulares. + +Sempre houve maledicentes no mundo (salve a _chapa_!): foi por isso que +uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de +seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa +personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente +os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar +soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, +suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente +inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente. + +A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente +para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação +moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços +prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres +namorados que tivera antigamente. + +Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu _spleen_ de +senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de _tia_. Ai! A +pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade +casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente +por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, +escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara +o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante, +como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O +barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o +Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e +economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, +mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de +faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas +de compotas de delicioso bacury, á sobremesa. + +Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações +exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se +vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, +talvez pela seducção d'alguma _yára_ encantadora. Do outro constava +apenas que partira para seu paiz natal,--Portugal,--afim de ir saborear +á lareira, nos longos serões de inverno,--quando o suão sibila em as +grandes chaminés ennegrecidas,--os succulentos nácos de paios da +Beira,--d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta +João Penha. + +Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a +dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas +e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da +Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos +Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, +porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem +pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe +ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas +de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á +casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos, +roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão. + +Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente +contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria +rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus +actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor. + +Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade +apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal. + +A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, +attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com +elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga +sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero." + +Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, +desfazia-se nas mais requintadas delicadezas. + +Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a +amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o +Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas +manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o +parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever. +Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora. + + ---- + +Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já +no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, +perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma +suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes +communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, +curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo. + +--Santo Deus, que vejo?!--exclamou o tio, assustado.--Já, um medico, +depressa! continuou, a correr attonito pela sala.... + +O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou +o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações +sobre o tratamento. + +Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, +teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar +novamente o doutor. + +Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que +habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que +podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso +Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete +que do Pará saíu seis dias depois. + +No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando +verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta +lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe: + +--Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que +lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus! + +--Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus! + +Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de +restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, +resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis +entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina. + + ---- + +Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os +medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar +emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se +caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer +cobranças pelas provincias. + +Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,--ao +Alemtejo,--estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão +no bolso d'um _paletot_ que só vestia em viagem, encontraram seus dedos +um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda +amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. +Joaquina. + +--Ah! que esquecimento o meu!--exclamou.--Que juizo não terá feito a meu +respeito a impagavel senhora.... + +E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto. + +"Meu bom amigo,--leu.--Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito +_afflue-me_ aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: +amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! +(Isto copiou ella do romance _A Caridade Christã_, de Escrich,--pensou +Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se _fui_ por si acolhido +o meu amor. (Aquelle _fui_ é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o +Raul bem o conheceu). Espero _ancioza_ a sua resposta, com a qual o meu +amigo _remeter-me-á_ meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de +presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua +eternamente,--JOAQUINA." + + +Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle +_modelo_ d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo +fez-se mais serio e: + +--Ora bolas!--disse.--Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos +e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!.... + + + + +A "Serenata" de Schubert + + Ao dr. Augusto Meira + + +I + +No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na +rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma +vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do +Capibaribe, na Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de +tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo +dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte, que vinha de +Olinda, entrava na sala, e d'esta seguia para o quarto de João, agitando +a luz dentro do _photo-mobile_. + +Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na +visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou +attenção. Eram as primeiras notas da _Serenata_ de Schubert, esse +magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De +um pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das +janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o +rosto descançado na mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta. + +Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, +como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava +no azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes, +uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes +montões de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima +saíam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas +janellas abertas. + +Como todas as musicas sentimentaes, a _Serenata_ de Schubert possue isto +de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro +da meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são +sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma. + +Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em +seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e +redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu +querido Pará, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella +que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moço +estudante de direito recordou-se,--e com quantas saudades!--da magistral +execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro +allemão,--uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos, +com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao +espirito e suaves langores ao corpo. + +Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida +companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta, +extasiado na audição d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma +transformação imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos +ouvidos d'elle um som particular, intimo, que o commovia todo, +chamando-lhe duas lágrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa +tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa +fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual déra-lhe outrora +tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão poetica, porém +saudosíssima, de uma tela de Watteau.... + +Esse quadro, eil-o: + + [1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata + está hoje casada com o heroe da presente narração e póde gabar-se + de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais + leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga + de todas as mães. + + +II + +Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda. +Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a +familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá. +Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas +e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de +transeuntes. A espaços, uma voz, um grito chegava até á sala, revelando +que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario +do nascimento de Christo. + +Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora +sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua +virtuosa mãe, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, não +afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um +lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal. + +Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do +lar,--elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do +amor!--emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle, +falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã, +recebera de suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os +filhinhos. E dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão +suavíssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente +lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas +sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moço, ao Theodoro, +aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir +várias scenas a que assistira em sua passada vida commercial. + +Uma exhalação de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a +tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe +muitas confianças no futuro. + +De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz +ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra: + + Folguem todos n'esta noite, + Venha a festa sem egual: + --Hoje em nada se repara, + Porque é noite de Natal. + Hoje em nada se repara, + Porque é noite de Natal. + +E a guitarra chorava em _tom menor_, fazendo côro ao _ritornello_. A voz +de um agradavel _tenor_ prendeu logo a attenção dos que estavam na sala: + + Esta noite abençoada + Pertence aos que têm amor; + No presepe bethlemita + Veiu ao mundo o Deus-Senhor. + +Novo _ritornello_ choroso na guitarra. + + Por isso, moços e moças, + Entregae-vos ao prazer, + Emquanto não vem a edade + Vossa fronte encanecer! + +Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra. + +Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n'uma +energia de movimento, com as narinas afflantes, os anneis da cabeça +tremendo-lhe sobre os hombros. + +--Tôlo!--exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao +longe, na extremidade da rua.--Pois que venha cá, a ver se os velhos não +têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dirá ao +depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o +meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!.. + +Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a +encarnação do carinho e, muito piedosa e pura,--qual um raio de sol +illuminando a face de uma estatua antiga,--foi beijar amoravelmente a +fronte do ancião.... + +Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;--que não désse importancia +a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade +elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E +demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, +não valia a pena entristecer-se.... + +--Para o lado os pezares!--terminou sorrindo.--Como distracção agradavel +a todos, vou tocar ao piano a _Serenata_ de Schubert. + +Já se tinha João levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano, +abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas, +sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar. + + +III + +E começaram então as primeiras melodias da _Serenata_. + +João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça, +tão bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica +comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma +figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, +apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginação do +moço. E surgiu então um joven de bandolim em punho, debaixo dos balcões +floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem +germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos lagos tranquillos, +sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes, ruflando as +brancas pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um +canto magico de yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal, +doce como um beijo apaixonado. De seus labios côr de papoula +distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade +de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castellã formosa, occulta +entre os refólhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador +tinha um não sei quê de melancholico, um tal cunho de poesia dolente, +que João emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginação lhe +descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com um meio +sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia: + + _"O Châtelaine,_ + _Entend ma peine!.._" + ................... + ................... + +Dhalia executou o _morendo_ final da Serenata. João acordou da sua +_rêverie_, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico +bailava um risinho engraçado. + +De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante +illuminado n'uma expressão de ineffavel ventura. Dos labios entreabertos +parecia escapar-se-lhe uma benção muda, que se completava pelo gesto das +mãos erguidas e espalmadas no espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro +feliz dos filhos idolatrados! + +......................................................................... + + +IV + +Estava n'este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella +do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano +da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da _Serenata_. + +João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe +avivára tão grata lembrança de seu venturoso passado,--agora que elle +estava ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que +possuiam-lhe a flôr do affecto. Ergueu os olhos ao céo, n'uma +necessidade de soltar livremente o espirito pela amplidão infinita do +vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilações, o crescente de +lua vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flócos de +nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço adeante, +projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da +margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se +bradando--_alerta!_--á sentinella. + +Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo +infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi +ajoelhar-se piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo +venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva. + + + + +Que bom marido! + + A Juvenal Tavares + + + _Não desejarás a mulher do teu proximo._ + MANDAMENTO DE DEUS. + +Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam +felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente +pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas +scintillações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante +que para ella dirigisse escrutador olhar. + +Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, +de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que +tivéra,--tempestuosa e poída nas orgias,--encanecera-lhe completamente +os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se +numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja. + +Ella tinha dezoito primavéras,--para me servir d'uma velha expressão do +romantismo;--ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e +marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador +descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais +alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste +da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam +bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,--d'esses +namoradores enfatuados que abundam por toda a parte. + +O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, +depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a +manga da sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um _chôcho_ á mulher e +saía para a repartição com o passo do empregado publico:--impassivel e +cadenciado. + +Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena +caricia e voltava á varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do +jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á +machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas +diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio +formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de +tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a +_bond_ em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth, +algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras +regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora +esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher +bonita e nova. + +Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha +seus adoradores,--rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, +não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente +a requestava era um tal Jacyntho,--um _leão_ conquistador que falava +pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do +namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias +depois do casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde +essa época, o pobre _namorado sem ventura_ passava todas as tardes pela +casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella, emquanto o marido, +na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da +direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um +cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e +conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquelle. +Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á +entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não +deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, +o taberneiro e o vizinho começavam no _passo_ e no _bólo_. É que a +interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não +podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho +Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se +áquillo a que chamava "uma distracção", mais para satisfazer uma vaga +curiosidade do que para commetter um crime. + + ---- + +Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo +a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em +pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que +resolvería, com vantagem,--aquelle interessante problema de amor. + +Uma tarde,--era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado +por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados +da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a +apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via. + +Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha +mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou: + +--Onde está a d. Elvira, minha filha? + +A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu +na bocca o index da mão direita, conservando-se calada. + +--Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?--insistía o +_leão_ fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena. + +Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da +fregueza e disse, ainda meio acanhada: + +--Está lá dentro.... + +--E o sr. Bonifacio? + +--Saíu. + +--Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres? + +--Eu quero.... + +Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, +por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e +conjuntamente outro tostão. + +Depois seguiu pela estrada adeante. + + +Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor +que por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de +passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, +seguindo pelo passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova +epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não +pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda +receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente, +mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua "posição de +mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades." + +D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a +passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para +os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a +confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto +e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa á +correspondencia criminosa. + +Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões +além d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais +exigente. + +Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, +de volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o +limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, +escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a +attenção de velho curioso. + +--Que levas ahi?--perguntou. + +--Não é nada....--respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos +paraenses. + +--Não mintas! Eu vi não sei quê!--bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo +braço e apoderando-se do objecto. + +Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu: + + +"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a _missa +do gallo_ em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de +conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha +á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja. + + ELVIRA." + +O Bonifacio _subiu ao arame_; ficou da côr da purpura e sentiu uma +violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a +esposa infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe +appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria +vingança. + +--Toma, leva,--disse entregando a carta á rapariga. + +E entrou. + + ---- + +Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços +d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes +egrejas onde se deve rezar a _missa do gallo_. + +O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para +a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...." + +Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos +ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o +Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. +Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de +contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de +Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado. + +Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde +occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a +lembrança de namorar-lhe a mulher. + +Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á +pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o +fortemente, n'uma agitação febril.... + +O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os +vizinhos haviam saído para a _missa do gallo_. + +Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado +amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao +Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos: + +--Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na +asneira de namorar moças casadas! + +E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida +de medo. + + + + +Noite de finados + + A Manoel P. de Carvalho + + +O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos +de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. +Eram oito horas da noite sob um céo trevoso como a tristeza d'aquellas +pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos parentes e +amigos para sempre occultos debaixo da terra, sobre a qual compridas +filas de vélas accêsas lançavam uma claridade intensa, que ia esbater-se +ao fundo, na escuridão do mattagal. + +O ar estava impregnado do perfume das flôres--piedosamente depostas em +cima das sepulturas por mãos amigas,--e do cheiro mystico da cêra queimada. + +Ao longe, á direita da ermida, uma banda de musica executava +plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades +lugubres faziam suspirar as velhas beatas,--aspirando a uma outra vida +desconhecida, além d'aquelle firmamento negro, no logar onde a +omnipotencia incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a +sua magestade. + +Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o +cemiterio. Este, áquella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas +que receiavam um atropello, saíam enfadadas, murmurando indecencias. + +Á porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente +com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas +lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de +vestes sujas e mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em +seu favor a caridade dos visitantes piedosos. + +Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam +olhares torpemente libidinosos ás moças que entravam seguidas de suas +mamães, n'um andar assustadiço e saudando um ou outro conhecido com um +meneio de cabeça. Mais adeante, n'um canto escuro, uma roliça mulata, +com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de +physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e com a cabeça coberta +por um descommunal chapéu alto. Como contraste, não muito longe, estava +uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados á grade +ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vélas em castiçaes de +vidro. + +Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma corôa de perpetuas rôxas, +corriam lágrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas +do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados.... + +Era sem duvida alguma viuva que pagava á memoria do finado marido alguns +annos de amorosa e suavíssima coabitação na terra... + +Á esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em +negro caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e +toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma +senhora de cabellos grisalhos, immovel, calada--como evocando passadas +scenas de prazer--sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia +no funeral tristonho.... + +O céo, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiçada. Grandes +nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as +bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço d'almas +penadas fazia farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar +ás supersticiosas moças que estavam no cemiterio.... Agora calára-se a +orchestra. + +Subira um prégador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de +grande côma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos +tragicos, uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade +mundana e a perenne bemaventurança celestial. + +As mulheres,--mães, filhas, esposas,--que o ouviam, ficavam caladas, +muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto +bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciencia, levantavam um +brado de maldição áquella felicidade que lhes roubára a companhia dos +entes queridos e amoraveis. + +Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma creança +de tenra edade,--um lindo e pallido orphãosinho,--voltou-lhe costas +nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre tumulo +tranquillo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma só +phrase:--_Á minha esposa...._ + +No céo, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como alegrias fugitivas ou +prazeres expulsos, erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de +miragens variadas. + +A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena +magestade tumular, que impoz vago soffrimento ao coração de todos. Os +brandões e vélas perderam o brilho, ficaram como pyrilampos +lantejoulando os sepulchros sob o luar diaphano, a cuja claridade +continuava o pregador a recordar a omnipotencia de Deus. + +Os _bonds_ estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos +depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de +senhoras tristes, com physionomias de soffrimento. + +Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava +illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a +penultima da festa annual. + +Então, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma +saudade á memoria de um amigo, d'um irmão, d'um pae, desciam agora ao +centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as +casas de jogo,--propellidos pela fascinação demoniaca e terrivel da roleta! + + + + +Rio abaixo + + (Ao dr. Gaspar Costa) + + +A canôa seguia mansamente, per si só, impellida pela correnteza. + +Sentado á prôa, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava +com o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas +das bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do +sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças. + +Na pôpa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o _senhor moço_, +abanando-se com uma ventarola de pennas vermelhas, ao lado da _senhora +moça_, que espreitava para fóra, por um dos pequenos postigos lateraes. +A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de lingua escarlate +caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visiveis. + +O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos +mattagaes da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam até á +embarcação, n'uma suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de +alegre ternura os dois viajantes. + +--Que bonita paizagem, Antonio! + +--É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da viagem. + +--Quando chegamos ao _sitio_? + +--Ás 9 horas, isto é, d'aqui a tres ou quatro. + +--É pena chegarmos tão cedo! + +--Dizes bem: vamos tão contentes.... + +E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario. + +O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns +momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas +faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo +demorada _fumaça_, para tranquillisar-se. + +Os outros, os dois recem-casados,--porque Antonio e Luiza eram noivos: +tinham-se matrimoniado quinze dias antes,--experimentavam, debaixo da +tolda, uma sensação de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle +magestoso socego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação. +Felicitavam-se mutuamente,--com o olhar cheio de caricias,--por haverem +podido esquivar-se á vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados +de visitas, cujas conversações banaes, nullas, pouco interesse lhes +davam. Mas agora,--como iriam viver felizes durante aquella quinzena de +fuga, em a tranquillidade bucolica da roça, sosinhos, passeiando sem +companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, +lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos +igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos +pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas +mattas do _sitio_?!.... + +Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, +estas idéas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem +attenderem a que o sol não mais vibrava os lategos luminosos no dorso da +corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canôa, afim de +gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava n'um movimento +descompassado as velas mal colhidas ao mastro. + +Sempre assentado á prôa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o +caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com +o sol, que deixára um rastro avermelhado no céo, onde agrupavam-se em +desordem nuvemzinhas côr de nácar, violetas, azuladas, plumbeas, côr de +perola. Do lado opposto, levantava-se a noite, n'um andar manso, +mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo bruxoleante. + +O gorgeio dos passaros cessára na ilha das Onças, que já tinha ficado +atraz, a longa distancia; só chegavam á canôa os compassos em _andante_ +do canto de um carachué que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente á +qual passou a embarcação. + +--Vê ahi no meu relogio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo. + +--Seis e trinta e oito, _sinhor_. + +--Oh! então saiámos d'aqui, filha, vamos tomar fresco. + +Vieram para fóra. + +Luiza soltou uma exclamaçãosinha, sonora como um soneto de Paulino de +Brito, engraçada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um +timbre argentino como um filete de agua morna caindo n'uma banheira +d'oiro lavrado: + +--Ah!--fez ella. + +E deixou-se ficar de pé, encostada ao hombro do marido, extasiada, em +frente ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos. + +Largo em aquelle sitio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava +numerosas ilhotas rasas, cobertas d'uma vegetação opulenta, que +esbatia-se n'uns tons escuros, quasi indecisos, no limite do horisonte. +Um socego de tabernaculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do +céo, onde as estrellas começavam a scintillar como as pedras preciosas +d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem occupava n'esse instante um +espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra firme, tremulava uma +pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, esgueirava-se pelo +costado da canôa n'um murmurio dolente. A súbitas, na solemnidade do +silencio, resoou um grito d'ave nocturna. + +--Accende a lanterna, José,--disse Antonio ao caboclo, que obedeceu +logo, voltando depois á sua posição habitual na prôa, fumando. + +Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da +embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes +jarros com roseiras florídas. + +Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido +foi á pôpa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, +conchegando-lh'o muito ao pescoço, amoravelmente. + +Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escuridão. Do logar em +que achavam-se, apenas viam na prôa um ponto vermelho como um +carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornára +invisivel na densidade das trevas. + +Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solidão: entraram a conversar +baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de +tão agradaveis recordações. Era para ambos uma innarravel felicidade +poderem pairar, assim a sós, das peripecias do curto namôro, dos longos +annos que elle passou a amal-a silenciosamente, das emoções e +impaciencias do dia do casamento, quando approximava-se a hora em que o +parocho de Sant'Anna teria de unil-os. + +Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, +n'uma excitação dos sentidos. Um movimento instinctivo,--inconsciente, +talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,--uniu-lhes os labios +n'um prolongado beijo de paixão, vibrante como um côro juvenil. + +Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição. + +Poz-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída +com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvatica +e cheia de grandiosidade das florestas amazonicas... + +E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu +áquelle beijo nascido de duas bôccas amantes no silencio de tão linda +noite paraense. + +Entretanto, a canôa seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela +correnteza. + + + + +Ao despertar + + Ao sr. A. R. d'O. Gomes + + + _Nem tudo o que luze é ouro._ + PROVERBIO POPULAR. + + +I + +A alcova nupcial em noite de noivado. + +Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da +peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas +variegadas em côres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e +como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente +cerradas... Uma lámpada com vidros baços, côr de leite, esparze branda +luz em torno, sem crepitação, n'uma solenne impassibilidade, que dá +certo ar magestoso ao silencio do recinto. + +Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n'um +bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama. + +Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa +meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado. + +Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e +trémula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira +preguiçosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho.... + +Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se +lhe antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar +pelos finos lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em +cima do travesseiro macio como a flôr do algodoeiro.... + +E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a +passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios +contrahidos n'um leve rictus de satisfação, de ventura. + +Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma +pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado: + +--Permittes?.... + +E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando +felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela +atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde +as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e +como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente +cerradas. + + +II + +O casamento realisado n'aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de +seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como +indisposições subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa +de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de não sei que +espirito benefico, pazes feitas com abundantes expansões apaixonadas, +reconciliações ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n'um +enlevo. + +O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, +brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação do homem +rico que vive contentíssimo da sorte. + +Creara para a filha um ideal--um casamento com um bacharel. Similhante +aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa +roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,--a +mulher morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico, +inviavel,--deixava a filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo, +para encurtar o tempo. + +Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira +peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz +attendel-os e appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias +antes chegara de Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o +titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das +graças de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos +d'ella,--duas bólas d'onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas +por longos cilios sedosos;--os longos cabellos d'ébano, ondeando-se-lhe +pelas espaduas de farta carnação; aquelle bonito torso de opulentos +seios na apojadura da juvenilidade;--tudo n'ella prendia-lhe o enamorado +espirito em os laços d'uma paixão tão sincera quanto profunda. Mas, +sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a +grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso +espiritualisado e prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam +as carminadas gengivas d'ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas +covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d'elle, como desejando +magnetisal-o. + +Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, +foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado +sentiu-se, que sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia,--elle +que jámais fizera versos!--uma poesia em que abundavam as +palavras--_seductora virgem_, _divinal espirito archangélico_, em uma +terrivel mescla d'enormes pés quebrados, com grande escandalo das regras +formuladas por A. Feliciano de Castilho. + +Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial. + +Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da +noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o +encantavam. + +E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar +ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o +primeiro beijo que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca! + +Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer +parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula +sorrindo-lhe amoravelmente, incitando-o a uma tentativa agradavel de +roubo de um ósculo. O colete, que elle enfiava n'esse instante, assumia +a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes +pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu +entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era tempo de ir +para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão concentrado em +suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido, murmurando: + +--Que bella dentadura, que tens! + + +III + +Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa +do velho pae de Paula, durante a longa e--para elle,--enfadonha +conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros, +Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com +a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao +ouvido, com um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado na palma +da mão, opiniões em nada favoraveis á sua reputação de sobriedade em +assumpto de succo de uva.... + +--Que te parece o _gajo_, hein?--diziam.--Pois isso é lá cousa que se +faça? Embebedar-se no dia do casamento.... + +--Que escandalo! + +--Grande c.... O que elle merecia eu bem sei. + +E seguiam por esta norma os commentarios--todos reçumando idéas +gordurosas e indecentes. + + ---- + +Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente, +muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com +acompanhamento de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas +bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, +impassivel como um abbade após a ceia, fumava a um canto, affagando com +amortecido olhar a fumaça do charuto, além de forcejar por combater a +força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razão do +abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa, quando brindára, +com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do +partido e ao Manoel do Rosario, o commerciante que não trepidava em +tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto.... + + +Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia +espicaçar-lhe as costas,--ponderou de repente o sogro, sorrindo +malicioso;--que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na +alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a _toilette_. Era natural +aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por +ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de +hymineu elle tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora +como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a +evocação da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata +amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas! +Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a +felicidade d'aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou +moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse, +que lhe não desse trabalho em demasia para não a fatigar: o dóte d'ella +unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma +existencia descuidosa nos braços d'uma indolencia salutar propicia á +gordura.... + +E entrava em demoradas considerações a respeito da bôa vida,--como +sectario da vadiação, que era. + +Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo +recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa +dos noivos. + +Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho +e correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos +bellos dentes de Paula. + + +IV + +A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento. + +Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae +beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de +porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos +espelhos, como invadidas por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que +durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos, +d'aquella cama honestamente encoberta pelos discretos refolhos das +cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente, +cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam +esgaravatando o chão. + +E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento.... + +E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa +palpitante, ameaçando extinguir-se.... + +Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais +debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como +enxugando n'elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse +porventura derramado sobre suas pétalas inodoras.... + +Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de +sêda branca escancaram as cavas, n'uma expressão de abhorrecimento pela +demorada immobilidade, n'uma expressão de appello aos pés que devem +calçal-os. + +De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem +desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven +noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfação +intima. E lá dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda +a formosa Paula, semi-núa, no inconsciente despudor de um somno que foi +agitado... + +Alfredo olha para todos os lados, muito contente e risonho. Ao ver o +raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua +ventura n'um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito, +estarrecido, confuso, muito pállido e crispando as mãos, entra a tremer +todo, com as feições demudadas, os cabellos arrepiados na cabeça +encandescida! + +Á cabeceira do leito, sobre o elegante _guéridon_ de jacarandá, estava +uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito +de massa!..... + +E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos +pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente.... + +Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado +pela emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á +beira do leito, lavado em lágrymas, a murmurar n'um gemido: + +--Estou roubado, estou roubado! + + + + +Poemetos em prosa + + + + +I + +Bidinha + + A Mucio Javrot + +Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração ideal e faceira, +haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, +ella começou a amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, +encontrava-o em casa da prima, córava, julgava soffrer e gosar a um +tempo e entrava a fital-o amoravel e longamente, com essa persistencia +abstracta dos verdadeiros extases apaixonados.... + +O poeta conheceu não ser indifferente áquella moça tão pállida, tão +triste, cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixões +ardentíssimas... + +E, não sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir á casa da prima +da Bidinha, para não vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, lá foi e +encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,--aquelles +tentadores, faiscantes olhos eloquentes,--mais, muito mais bonitos... +Teve pena d'ella: n'um momento em que ficaram sós na sala,--onde +rescendia o perfume d'um ramo de resêda posto n'um jarro em frente +ao retrato d'uma velha senhora de fronte enrugada e olhar +suave--declarou-lhe amal-a desde muito, intensamente. + +Ella, a Bidinha, a pállida donna do álbum que recebêra aquelles +ternissimos versos, d'uma inspiração idéal e faceira, sorriu, estremeceu +e murmurou apenas quasi inintelligivel som. + +D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios +nocturnos, em aquella mesma sala. + + * * * * * + +Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua +fidelidade foram longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o +aperto de mão de despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a +angustia que atravessou-lhe o coração! + + * * * * * + +Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creança a +quem jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, +emquanto rescendia na sala o perfume d'um ramo de resêda. + +Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dôr das +longas espectativas!... Espera-o ainda.... + +Á tarde, quem fôr ao pequenino quintal da casa d'ella, poderá vel-a +sentada sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta +latada,--com o olhar suave e tristemente fito nas paginas d'um album, +soluçando baixinho palavras de saudosa recriminação. + +Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração idéal e faceira, +haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a!... + + +II + +Paraphrase ossianica + + A Frederico Rhossard + +Ó bella, ó seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do +rochedo sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim. + +Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traçam sobre as nossas +torrentes. Ouço-os passar no meio dos turbilhões e suas vozes fanhosas +são os unicos sons a perturbar o magestoso socego das trévas. + +Ó tu, cuja mão branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas +harpas de Lutha, tenta ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e +dolentes. Desperta essas cordas adormecidas, canta, ó Malvina, e reaviva +o meu genio, cuja chamma foi sopitada pelos annos implacaveis. + +Vem a mim, ó Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que +entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o +regato cae na colina e róla, depois do furacão, sob a luz radiante do +sol, o caçador escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a +humida cabelleira. + +Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heróes. +Infla-se meu peito; o meu coração palpita. Delinêa-se a meus olhos o +passado. Vem, ó Malvina, não divagues mais no meio das ténebras! + + +III + +O parocho da aldeia + + Ao Padre Dr. Leorne Menescal + +É a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e +olhar carinhoso como um conselho de Jesus. + +A sua parca mesa está sempre ás ordens dos mendigos, a sua porta aberta +sempre aos viajantes, a sua bôcca incessantemente murmura consolações ás +pessoas que soffrem. + +Muitas vezes, alta noite, vão chamal-o para ministrar os socorros da +religião a algum enfermo, em qualquer das aldeias que formam a serrana +freguezia. Então, levanta-se ás pressas, monta a cavallo e lá vae +montanhas fóra, a galope, ladeando tenebrosos precipícios, sob a chuva, +tiritando de frio, impassivel como um heróe e contente comsigo mesmo, +sentindo-se alegre por ir cumprir um dos mistéres que lhe impõe a sua +profissão, tão bem comprehendida por sua bella alma! + +Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos +aquelles montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os +conselhos de paz e bondade. + +Quando começou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote +arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra +de Baturité. Em poucos mezes, graças a seus esforços e á illimitada +sympathia que a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato não tinham +um sêr captivo: todos eram eguaes! + +Quando sae de casa, encaminhando-se á pequena egreja, cuja torre branca +de neve lança-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as +creancinhas, que bricam ás portas das casas, acodem a beijar-lhe a mão e +as mães saudam-n'o respeitosas, balbuciando uma benção.... + +Aos domingos, á prédica do Evangelho, vi-o, por differentes occasiões, +fazer com a uncção de sua palavra, que as lágrymas borbulhassem nos +olhos dos assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel modo +de viver, fertilíssimo em bons exemplos. + +Nada possue: dá tudo aos necessitados, sem ostentação, naturalmente! + +Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, ó caritativo +sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!.... + + +IV + +Ao Sol[2] + + A Fernando A. da Silva + +Ó tu, que rolas por cima de nossas cabeças, resplandecente como o escudo +de nossos paes; d'onde saem os teus raios, ó sol? D'onde vem a tua luz? +Caminhas em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas +no firmamento; pállida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. +Ficas sosinho, ó sol: quem poderia acompanhar-te o curso? + +Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas são minadas pelos +annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no +fundo dos céus; só tu és sempre o mesmo. + +Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo está +sombrio pelas tempestades, quando o trovão ribomba e vôa o raio, saes +radiante do meio das nuvens e ris do furacão! + +Mas, ai! em vão brilhas para mim! O velho bardo já te não vê os raios, +quer fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer +trema ás portas do poente a tua luz bruxoleante. + +Mas talvez, como eu, só possuas uma estação e teus annos terão um termo: +virá talvez um dia em que empallideças no meio da carreira e a aurora +proxima em vão esperará o teu regresso. + +Regosija-te, portanto, ó sol, na força da tua juventude! A velhice é +triste e abhorrecida: parece-se com as tíbias claridades da lua, as +quaes perdem-se entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este +semeia ao longe as estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a +collina e o viajante transido tirita nos caminhos desertos.... + + [2] Vertido de Ossian. + + +V + +Remember + + A Paulino de Brito + + +I + +Não tens então no peito a minima raiva contra mim?--perguntei-lhe +admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes. + +--Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os +loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, +n'uma prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua +pequenina pessoa, delicada e meiga, parecia desabrochar as florescencias +gentis das suas graças, dos seus divinos dotes triumphantes em meio á +pujança da invejavel mocidade! + +--Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que +tanta bondade tens n'alma, quantas são as seducções capitosas do teu +bello rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e +faceiros, tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores +effluvios!--retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attraíndo-a +castamente para mim, n'um impulso de gratidão, ainda todo commovido pelo +prazer das recentes pazes. + +E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que +manifestara-se no roubo d'um beijo,--d'um pequenino beijo +fugitivo,--áquella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo +como que desabrochava as divinas graças triumphaes em gentis +florescencias de invejavel juventude pujante! + +As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse +enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seducções capitosas +de tão bello rostinho!.. + + +II + +Mas anoitecêra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos +jasmineiros rescendentes maior escuridão communicava á parte do jardim +onde haviamos feito pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido +nos rubros labios mádidos da minha pequenina amante fascinadora. + +Um silencio embaraçador enleiava-nos em tíbia indecisão. A loira +cabecinha d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos +anneis undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das +correctissimas espaduas. + +E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com +seus rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio +enleiando-nos embaraçadoramente em tíbia indecisão. + +Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descançar-me +no hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia +assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,--um fugitivo +beijo pequenino e casto,--nos humidos labios da minha gentil e tentadora +amante. + +Ella, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. +Uma das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu +o pésinho, n'uma expansão de enfado incipiente.... + +--Se reincidir, não perdôo mais!--exclamou, avisando-me, com a voz ainda +repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos +extendidas nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso +que me concedeu, emquanto descançava a fronte no meu hombro, com os +formosos anneis da adoravel cabecinha louca undiflavando-se-lhe +tranquillos pelas correctíssimas espáduas. + +Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á +escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo +de um beijo,--do primeiro beijo, pequenino e casto,--aos ardentes labios +mádidos da minha bemdita virgem. + +E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um +recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em +face do capricho d'aquella pequenina cabeça loira, de triumphantes +graças capitosas, que só admittira e perdoara o meu primeiro +atrevimento... ainda tão innocente e retrahido!... + + + + +O preço das pazes + + A J. A. Pinto Barbosa + + +I + +O meu amigo Ernesto accendêra um charuto, concertára o _pince-nes_ sobre +o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona, +muito fôfa, em que estava sentado deante de mim e começou: + + +--Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, á mesa, sem +poder contar-t'o inteiro, pela importuna presença d'aquellas senhoras. + +Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e +mais divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo +dotado de umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, +avelludada; olhos negros e brilhantíssimos,--como duas caçoilas de +mysteriosos philtros embriagadores;--cabellos muito pretos e ondeados, +rescendentes a bôa olencia de selvática baunilha; um donaire, uma +soberania inteira de magestoso porte e fidalga apresentação captivante, +capaz de enleiar-nos em toda a série de crimes que ao humano pensamento +é dado formular em dias de tôrvas reflexões e sinistras ebriedades +peccaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar perfeitíssimo da +mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archétypo da elevação dos dotes, +a civilisada manifestação das nossas lendárias yáras amazonicas! E, a +par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustração perfeita de +erudita, conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos, +pequeninos e eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, +engastados em formoso coral, brilhante como os róseos labios humidos da +microscópica boquinha sombreada d'um leve buço,--o complemento da +seducção, o requinte da tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. +Imaginaste? Pois bem; assim era a Marócas, a esposa do altivo general +Bandeira, velho quinquagenario d'elevada riqueza materialisada em +appetitosas centenas de contos de réis, depositados nos principaes +bancos do Brazil. + +Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a +azulada fumaça d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no +espaço, como poderia amal-a o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda +entregue a seu amor,--desde os timidos beijos assustadiços +repentinamente dados, ás vezes, no vão de qualquer janella dos aposentos +desertos de enfadonhas testemunhas, até ao completo desnuamento +arrepiado e perfumoso, muito encolhido e cálido, que apresentava-lhe na +mysteriosa liberdade pacifica da recatada alcôva, alta noite, com a sua +elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre neves de rendas, +diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis. + +Uma fascinação, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos +caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a +todos os sacrificios para conquistar uma estima á força de constantes +provas de louvavel desinteresse. + +Confesso não ter ainda visto a repetição d'aquella invejavel existencia +d'affectuoso enlevo,--elle no declinar da vida, ella em toda a +maravilhosa florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas +inteiras a contemplal-os, absorto na admiração d'essa alheia felicidade +que fazia-me venturoso,--tanto é certo que uma perfeita harmonia de +suave existencia rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de +si um como jubiloso transbordamento do seu excesso. + +Muitos annos haviam já passado, desde que o matrimonio os uniu, quando +Marócas fizéra o seu decimo quinto anniversario,--e nem um só instante o +arrependimento lhes chegára de se terem para sempre ligado por um +prematuro enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel +reproducção do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da +discreta alcôva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o +amoravel tratamento de esposo. + +Verdadeiramente admiravel, não achas? + + +II + +Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposição fluctuou, +soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla +felicidade jubilosa de ambos. + +Foi uma verdadeira desgraça suscitada por um capricho desarrazoado da +formosa mulher do general. Elle tivera o arrojo de negar-se,--pela +primeira vez, é certo,--a satisfazel-o, e a Marócas soffrera em cheio no +coração a dureza da áspera repulsa. Longos fios d'interminaveis lágrymas +deslisaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os +com força, circulando-os das roxas manchas tristonhas que têm os +infelizes habituados ao pranto. + +Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou,--emquanto +o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos +desmarcados o soalho, já meio arrependido da quasi brutal violencia com +que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa. + +Depois veiu a reacção, em seguida á crise hysterica dos abundantes +prantos silenciosos. Uns assomos de magestosa indignação, muito +concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente +duros meios de infligir ao marido memoraveis ensinamentos de justas +represalias. + +E a Marócas prometteu elevar-se acima de si propria, ser tão rispida +como brutal havia sido o incivil do general. + +Ai, meu caro amigo! Foi severa a licção! O pobre general Bandeira mais +d'uma vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marócas, ao fim +da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho em seu +quarto,--n'uma triste solidão de viuvez frigidissima... + +Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com +valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sêr. Seria possivel que não +tivesse a força de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto +temiam os paraguayos, annos antes, nas selváticas solidões onde o nosso +exercito ferira tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do +valente Lopez? + +Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resoluções enfraqueceram, como +cae uma véla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe +subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa. + +O general desejou capitular, ne extrêmo das forças. Um arrependimento, +cujo peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe após essas +momentaneas resoluções de superiores resistencias... impossiveis +n'aquelle pobre e velho espirito d'homem tolamente embeiçado pelas +captivantes graças da mulher. + +Com effeito, capitulou. + +Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os +passos das escravas e uma luz baça côava-se pelos fôscos vidros de +lampadas discretas, saíu cauteloso da sua alcôva e, com o coração a +pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher. + +Á porta, parou, indeciso. + +Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira +entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona +sensualmente esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua. + +Marócas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na +simples ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher +que em nada de mau pensa. + +Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava +dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello +corpo, feito d'ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, +vaporisando a tépida emanação subtil das suas frescas, rosadas carnes +bellamente seductoras e deliciosamente juvenis. + +Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, +afflando precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. +Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés, +choroso, supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, +impetrando o perdão, solicitando um armistício, pedindo pazes selladas +com a ardencia d'uma deliciosa e suprema compensação! + +Ella, porém, a Marócas, impassivel e impertubavel--ao tempo que +envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n'um gracioso +rubor de impeccavel donzella,--estendeu o braço para a porta e, +mostrando-lh'a, disse ao general estarrecido: + +--Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizér +apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado. + +E elle teve de saír,--ao reconhecer a impossibilidade de persistir n'uma +resistencia, que só poderia ser-lhe prejudicial. + + +III + +O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir +um meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a +mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o +salvasse da terribilíssima colisão. + +Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sêdas, joias e finas +pedrarias em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse +profusamente, para amimar a caprichosa Marócas, reclusa em forte +baluarte de duras reservas embaraçadoras. Nada conseguia, senão +augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha +de enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com +toda a mesquinhez das pequeninas baixezas. + +Um caso fortuito, porém, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento +pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado +aos hombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das +enfermidades secretas. + +Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fôra o general Bandeira convidado +para examinador de mathematicas, durante os exames da commissão especial +da delegacia geral da instrucção secundaria do municipio da côrte,--essa +creação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autonómica dos +nossos lyceus provincianos, reduzindo-os ás simples e modestas +proporções de insignificantes escholas de primórdios scientificos e +litterarios, destituidos do mínimo valor perante as academias superiores +do Imperio... + +Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e +continuemos na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te. + +O general acceitára e convite com extraordinario gaudio do delegado +especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude +_catonismo_ do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradições de +severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia +marcado, quando--oh! admiração!--appareceu-lhe no quarto a mulher, a +Marócas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas +rendas sobre o cólo, por cima das mais appeteciveis redondezas túrgidas +que é possivel imaginar. + +Trémulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto, +esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e +enterrou-o desgeitosamente na bocca, em sentido opposto áquelle de que +deveria servir-se para fumar satisfactoriamente. + +O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que +estabeleceu entre elle e a Marócas uma distancia consideravel. + +A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os +dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a +necessaria seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o +espaço que approximava-a d'elle. + +Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita: + +--Váe hoje examinar mathematicas, general? + +--Vou... sim... + +--Pois então, este moço irá fazer exame por mim... + +--?... + +--Ouviu...? + +--Sim. + +--Veja lá como se porta. As mathematicas não são o _meu_ forte. _Eu_ não +estou muito _habilitada_. + +E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assédio, +por similhante reclamação de um escandalo impossivel á sua severidade, a +bella Marócas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do +penteador, diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, +essencias boas e rijas carnes feminís e jovens. + + +IV + +Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe +entregara a mulher: + +_Antonio da Silva Larangeira_ + +Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira. +Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos á +quirirú, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na +derme. Que era elle proprio, sim senhor. E uma vóz fanhosa, cheia de +bajulações servilíssimas, resmoneou a pequena phrase affirmativa, +solicitando ali, em sua exaggerada affabilidade, a complacencia do +examinador. + +O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoção, mal +resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que +tivéra o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marócas, para induzil-o ao +crime d'uma indignidade--arrastal-o a quebrar os seus votos de severa +justiça de indomavel rispidez com os estudantes. + +D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova +escripta não poderia ser peor. Escusado é dizer-te que o pequeno +espesinhou a sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. +Como, porém, desempenhava ali as altas funcções de representar a bella +Marócas, á falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito +empenhou-se para que a indulgencia dos demais examinadores salvasse da +guilhotina o infeliz. + +Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando +appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente a gratos perfumes +finíssimos, _Couro da Russia_, e _jasmim do Cabo_. + +--Então?--perguntou ella meio-rindo. + +--Approvado, affirmou o general deixando pender a cabeça, +desfallecido,--talvez envergonhado da sua fraqueza, córando porventura +de não haver opposto resistencia á tentação. + +--Oh! bello! bello!--gritou a Marócas, lançando-se-lhe ao pescoço, +beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto--á ponta do +nariz--os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das +rendas que ornavam o penteador sobre o peito. + +Elle abriu os braços, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande +amplexo nervoso--a manifestação penultima do seu intensíssimo desejo de +reconciliar-se com a mulher. + +Ella impellia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá +perfilado junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com +a voz, com os labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso. + +Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel, +silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas +grossas lágrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas. + +--Que tens? inquiriu ella, assustada, beijando-o sobre uma orelha, +amimada e tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcíssima +harmonia. + +--Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escandalo, +aquella approvação! + +--Ah! volveu ella, abraçando-o com força, reconquistando-o, +reconduzindo-o para o sofá, espiritualisada de prazer, sorrindo +extranhamente. + +E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do +esposo,--caíndo ambos para o sofá hospitaleiro--murmurou-lhe ao ouvido, +entre um _rugeruge_ de roupas: + +--O que é bom custa caro! + + + + +Historia incongruente + + Ao dr. Franklin Tavora + + +I + +Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel +Fonseca. + +A paizagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de +evocar-lhe aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que +todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto. + +As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transição +subita no animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, á hora da +sesta não traziam nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem +causa apparente. Todas as interrogacões, que os olhares apresentavam, +iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia n'um silencio +desanimador. + +E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a +fazenda progredia, graças ao magnifico tempo que, havia dois annos, +reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com +disposição para o trabalho. + +O Thiago, filho unico do coronel, não reparara ainda n'aquellas +concentrações do pae. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como +sincera, para ligar attenção a qualquer coisa que se passasse em outra +parte que não fosse no proprio coração. + +E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir á +villa proxima, bem merecia aquella dedicação egoistica, porém desculpavel. + +Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma +honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a +cuidar dos irmãosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a +apaparical-os, a rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo +bem-estar physico do todos aquelles pequeninos sêres a ella confiados +pela mãe, na occasião de morrer. + +Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo +que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas. + +É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia +para dia mais se ligava de amizade á _Venancia da villa_, como á +rapariga chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da _maqueira_ do +coronel, quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia +muitas vezes ouvil-o pronunciar estas palavras:--"É impossivel +similhante casamento!" + + +II + +Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao +seu correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que +necessitava falar-lhe com urgencia. + +O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se d'um +assumpto ao qual elle fugia ha muito tempo. + +Foi a fazer um violento esforço sobre si mesmo que murmurou: + +--Fala quando quizeres. + +Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos. + +O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma +expressão de curiosidade e pavôr. Tremia ligeiramente, com os nervos +todos irritados. + +--O diabo da gotta quer visitar-me! pensou. + +No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida: + +--Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe é importante de +mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. +Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta +de meu pae.--Desejo casar-me. + +Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indifferença. + +--Pois casa-te, rapaz. Eu não me opponho.... Contanto que seja a moça +escolhida merecedora de ser tua mulher.... + +--Oh! se tal é a condição que apresenta, posso affiançar-lhe que +brevemente me casarei. Bôa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e +cheia de dedicação, creio que poucas moças como ella encontrei no Pará +durante os seis annos que lá estive a estudar no seminario e no lyceu. + +--Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes +dôres nas fontes, com o coração accelerado, porém a affectar +tranquillidade.--Mas então quem é a rapariga? + +Thiago sorriu indizivelmente,--com uma beatifica expressão de +intensíssima felicidade no semblante, e exclamou: + +--É a _Venancia da villa_, a minha querida Venancia! + +O velho ergueu-se impellido pela commoção. Suppondo tal acção um meio de +que o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago +ergueu-se tambem e correu a abraçal-o. + +Mas o velho, fazendo um lento signal com o braço estendido, +paralysou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo: + +--Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores +com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia, +impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de +oppôr-me a elles desassombradamente. Fingí ignorar tudo, na esperança de +que os annos lançassem o tédio sobre as vossas almas captivas uma da +outra por aquillo que eu pensava ser o enthusiasmo pela novidade. Com +immensa dôr verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel á tua palavra, +do mesmo modo por que Venancia o foi á sua. Isto seria uma grande +felicidade se não fosse uma enorme desgraça. Quer dizer, seria um +apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da tua paixão +fosse qualquer outra mulher, que não a Venancia..... Olha, Thiago, sem +procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me +fórça a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, +ausenta-te de Marajó, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou +para qualquer cidade longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma +mulher a quem possas offerecer a mão.... + +--Mas porquê, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o coração +oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras +do pae minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido +com um profundo amor expurgado de malicia. + +--Porque assim é necessario,--redarguiu o velho, n'uma vehemencia de +gesto e de entonação. + +--Pois fique sabendo que, se não explicar satisfactoriamente a causa de +similhante opposição, só tomarei as suas palavras como originarias d'uma +razão que a edade torna vacillante e digna de piedade!--bradou Thiago já +fóra de si, ferido n'essa grande porção de egoismo que todo o homem tem +comsigo. + +--Ingrato, murmurou o velho, deixando-se caír sentado e chorando +copiosamente.--Pois assiste á morte do teu coração, visto assim o +desejares: ouve-me! + +Pela janella aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda, +coberto d'uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos +saltavam ás cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, +pastavam tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as +longas caudas n'um compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro +preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horisonte, +entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexivel lingua +côr de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado d'erva sêcca e de +excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros zangarreavam n'umas +flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamãoseiro. +Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com essas +faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves +que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil +de extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito +distante sobre o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, +magestosa e tranquilla em sua imponencia seductora. + +O velho enxugou as lágrymas e começou a falar. + + +III + +--Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até +agora não sei como possivel me foi resistir a essa desgraça, que eu a +principio reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei +encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber +ninguem, apenas gozando em tuas innocentes caricias um pallido reflexo +d'aquelles grandes affagos que a tua idolatrada mãe fazia-me +constantemente. Passados esses tres annos, comprehendi que o teu futuro +exigia-me impozesse silencio á minha dôr, e cuidasse de nossos bens, +para dar-te uma bôa educação e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro +de uma riqueza sufficiente á tua manutenção. Saí, pois, do quarto, +pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrificio como feito +por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus +exigiam que eu fizesse frequentes viagens á villa, onde, ha vinte e tres +annos, isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora +amazonense, mulher d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador +da villa. Essa senhora era o retrato vivo de tua mãe. Por um phenomeno +de impressionismo,--sem o querer, sem o sentir--fui-me enlevando das +graças d'ella, até chegar ao ponto de pensar que tua bôa mãe tornára á +vida e volvêra a amar-me como d'antes! + +Quando eu ia á villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. +Tal convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em +grande paixão, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves +faziam com que o marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, +deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de +communicar-te que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos +mareados de lágrymas, a arfar do peito e a contrahir o rosto n'uma +visivel agonia causada pelos remorsos. + +--Emfim,--disse com energia e, desta feita, dando expansão ao pranto,--o +resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixão, foi o +nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser +sua filha.... + +--E essa menina é... Ve..nan..cia?--inquiriu Thiago com os olhos +arregalados, os cabellos crispados, as mãos fechadas fortemente, +sentindo fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoção. + +--Sim, Thiago, sim, é Venancia, fructo da minha infamia, a filha do +crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel que não soube +resistir á minha tentação! É Venancia, a mulher com quem te queres unir +pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!... + +E caíu redondamente para traz, agitado nas convulsões da gotta, da sua +molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rêde de +maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma +vida que d'ahi em deante só poderia ser de tormentos e angustias +indiziveis. + + + + +A licção de "Paleographo" + + A Heliodoro de Brito + + +I + +A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma +confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e +profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de +mãe.--O commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a +Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua +resolução de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a +mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas +d'aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem. + +E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da +filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro,--não obstante a +bondade com que era tratada por todos,--teria de ficar no Pará, separada +do pequenino ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de +loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia! + +Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora +privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor, +antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto +silencioso por toda a noite passada em claro após a declaração ouvida +pela manhã. + +Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não +seria a crua realidade? + +Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia +seguinte,--com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos +na rapariguinha,--acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de +benevolencias, consolou-a a meio. + +--Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a +familia, d'ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia +trazer-lh'a instruida, educada, elegante e feliz,--uma verdadeira +senhora. Até ella, Josepha, se arrependeria então da sua tolice actual, +porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe á filha. +Pois não era certo que todos ali tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha +e que esta era tida menos como uma _ingênua_ do que como se, realmente, +fosse originaria do casamento d'elle commendador com sua esposa? +Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com +exuberancia a justeza do seu proceder. + +Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. +Eliminal-a, porém, d'alma, era impossivel, que não póde um coração de +mãe deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações, +lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos +frémitos delirantes da mais intensa dôr. + + +II + +A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a +pequena Isaura. + +Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas +afflicções, não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as +outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de +tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes +do horisonte limitado uma visão, só para ella creada, a attrair-lhe +poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as forças vivas do espirito +e da razão. + +Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás +pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão +do rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem. + +O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. +Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser +senão da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao +socio, pedia-lhe sempre informasse á Josepha estar a filha d'esta com +saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a +carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que +sorria-lhe docemente, compadecidamente. + +--Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella +propria. + +Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim +dava-lhe precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel +deante do _branco_, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma +coisa. + +Elle pareceu comprehendel-a: + +--Queres que a leia? + +--Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e +preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos +sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão +infantil da filha. + +O socio do Castro leu: + + + MINHA QUERIDA MÃE, + +Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe +envio milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho +escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da +minha santa mãe e o grande desejo que sinto de estudar muito, para +voltar depressa para onde está a mãesinha do meu coração. Ante-hontem +fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d'ouro, +dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa mãe. +Tenho passeado muito e gostado immenso d'esta bella cidade, onde o meu +prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha. + +Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia + + + ISAURA. + +Paris, 30 de dezembro de 1887. + + +Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a +carta,--simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras, +comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura. + + +III + +Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia, +transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira +a escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes +girandolas de foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo +enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo. +Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam +no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes. + +Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os +pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral +regosijo. + +Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento +publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para +todos os lados, temendo fossem surprehendel-a. + +Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um +sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho _Paleographo_, +abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida: + +--Vamo' estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p'r'ó mez que vem já +posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus? + +E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades +vencedoras. + + + + +Ao soprar á véla + + Ao Sr. José Feijó d'Albuquerque + + +I + +Ás 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar +alegremente, recebel-o á porta da varanda, arrastando a longa cauda +rendada do penteador de cambraia branca. + +Quanto se demorára elle! .... Porque não voltou mais cedo? A sua +Candinha já sentia tantas saudades!.... Elle não imaginava o que era +estar uma pobre mulher mettida em casa, durante uma tarde inteira, sem +ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!.... + +E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, +causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriçando-lhe os +cabellos dos braços e pernas. + +Que não podera vir mais depressa,--objectava o marido, sentando-se n'uma +poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de +concupiscencia para a mulher.--Bem esforços fizera, mas inutilmente. +Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por +espaço de meia hora, brincando com as creanças, para entreter-se. Os +pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as +mãos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins +e á mulher. + +--E acceitaram?--interrogou a Candida, saltando para as pernas do +marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se +graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim. + +--Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum, +maximè sabendo que nós a desejavamos para a libertar. Aquella gente está +cada vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que +seja o dia de teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. +Continuemos, porém. Estava eu disposto a saír, bem arrufado com o dr. +Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquelle sujeito +vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabellos que os teus joelhos.... + +--Deixa-te de tolices.... + +--Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo +porque levantei-me e saí á viva força!.... Agora,--concluiu +sorrindo,--aqui tem você o seu Roberto, cheio d'amor e paixão, disposto +a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a +querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!.. + +Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos +n'uma vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus +labios frescos e perfumados d'esse olôr exquisito e bom, peculiar ás +mulheres que se tratam. + +Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera á porta que dava para +o corredor o moleque Euzebio, com o bule de chá.... + + +II + +Depois do chá, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e, +accommodando-se n'uma grande _voltaire_, poz-se a ler. Ficou a Candida +defronte d'elle, a miral-o. + +Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois +bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os +cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes +descançando nas palmas das mãos, Candida continuava a olhar para o +marido com uma expressão extranha, suave, repassada de ternuras +dulcíssimas. + +Parecia lançada á contemplação da propria felicidade. Era justamente +aquillo que, annos antes, phantasiára a sua sonhadora imaginação de +burguezinha estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacóvios: +viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre +junto d'elle, para o consolar em todos os desgostos, rir com elle nas +horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, +sobretudo, contemplal-o a todo instante, silenciosa, longamente, +envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu enlanguescido olhar de +creoula amoravel! Nunca sentira-se tão feliz como depois de seu +casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma só contrariedade +tivera após aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do +noivo no silencio de uma discreta alcôva toda cheia de flôres, rendas, +fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha +infantilidade não ficou, na manhã immediata, quando leu no _Diario de +Noticias_ as linhas seguintes, que decorou á força de as repetir +baixinho?--"Uniram-se hontem á noite em matrimonio, na egreja de +Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado commerciante da nossa +praça, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha do nosso amigo +sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadíssimo. Foram padrinhos os +srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendonça e suas exmas. consortes. Aos +jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das +felicidades a que têm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar +em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidíssima +pela lembrança de que, áquella hora, a cidade inteira estava sabedora da +realisação de seus intimos desejos de moça apaixonada!.... D'ahi em +deante começaram a viver como dois anjinhos, como ella queria. Roberto +era sempre de uma delicadeza affectuosa e séria para com a sua Candinha, +que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo seu poder, para +tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que duas +pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas _por dá +cá aquella palha_... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Ahi estava, +mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más linguas, era uma +jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era +outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao +domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dôr de coração! Mas com +ella assim não succedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um +cobrador á hora de recolher ao lar: ás 5 da tarde mandava fechar o +armazem, tomava o _bond_ e vinha logo para junto d'ella, de onde não se +arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente para o +trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ella +conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudança futura. +Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a +importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se +necessario contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a +garganta assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, +estava resolvida! Quando? agora?--Agora não; deixal-o com a leitura, que +está tão entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como +ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que +era tão lindo, tão bom, tão amado!.... + +Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo +apaixonado. + + +III + +De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do +charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, +a Candida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler +n'um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o +marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu +ardente olhar, como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixão. + +Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro. + +--Vamos dormir?--propoz. + +Candida estremeceu e levantou-se. + +O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz. + +No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcôva. Em cima do +velador, uma véla côr de rosa ardia n'um castiçalzinho de porcellana de +Sévres com pinturas allegoricas de Amores alados e Chiméras volitantes. +No centro, uma _causeuse_ de setim azul estava cheia de laços, corpinhos +de renda, brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente +dissymétrico. Vidros de perfumarias com rôlhas de crystal reluziam em +cima do toucador de jacarandá, lançavam scintillações cambiantes ao +espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das +paredes lateraes. + +Ao fundo erguia-se a cama,--pudicamente occulta entre as rugas de um +cortinado de labyrintho finíssimo, suspenso do tecto por uma passadeira +doirada. + +Levantava-se d'aquella cama um quê de evaporação de felicidade +inenarravel, que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos +do olfacto e da vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de +seu amor, do altar de sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, +sobretudo, ella tinha uma importancia transcendental: evocava-lhe uma +recordação agri-dôce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove +mezes de agradabilíssima co-habitação conjugal.... + + ---- + +Quando iam deitar-se, Candida enlaçou a cabeça do marido com os braços +descobertos,--mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de +cambraia enfeitada de rendas do Ceará. + +Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos effluvios,--essas +queridas exhalações de mulher amada,--n'um enlanguescimento concupiscente. + +--Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posição, beijando-o na +testa.--Quero dar-te uma noticia muito bôa.... + +--Qual é?--perguntou Roberto estreitando-a nos braços. + +--Tenho tanta vergonha!.... + +Esta exclamação pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do +marido e dando um pulo para o leito. + +--Anda, fala, menina, que tolice é essa? + +--Então apaga a luz, primeiro; póde ser que ás escuras eu me sinta mais +animosa! .... + +Roberto soprou a luz da véla e disse deitando-se: + +--Agora.... + +Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com +as pontas dos frios dedos trémulos. Depois, a subitas: + +--É que,--murmurou com umas brégeiras risadinhas reprimidas,--é que +eu.... estou grávida! + +Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,--o +beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vêr +convertido em realidade o seu mais persistente anhelo,--respondeu +áquella confissão prazenteira, na propicia escuridade da alcôva +matrimonial.... + + + + +No baile do commendador + + Ao sr. Ulderico Souza + + +Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras! + +E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro +sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de +varetas de madreperola. + +--E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a +cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um +ardente olhar vibrado atravez o crystal do monóculo petulante. + +--Porque--?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a +fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro +esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa +mestra, doutor, e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos! + +--Apezar de ser tão nova assim? + +--A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça +encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes, +preferencia, como compensando-os de não terem o discernimento preciso +para bem conhecer e evitar os revezes da sorte. + +--Mas--é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos labios +com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não +sentisse por sua pessôa--e pelo seu espirito--este indomavel affecto de +que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora--e bem +profundamente!--depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados conceitos. + +--Devéras? + +--Por certo. + +--Oh! é muito amavel.... + +--Digo a verdade. + +--E, todavia, continuo a descrêr... + +--Faz muito mal! + +--Porquê? + +--Ah! já faz perguntas?--Porque quem confessa descrença em similhante +assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr... + +--O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra +geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. +O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições +bem rispidas tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das +suas opiniões, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illusões +phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao +sério as banalidades da confissão que me cantou ha instantes o seu +lyrismo? Estará o sr., effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se +julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razão, doutor! + +--Como é cruel, minha senhora! + +--Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque +sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para +extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o +sentimento.--Permitte-me a liberdade d'uma franqueza? + +--Ora essa! Porque não?... + +--Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... pedantismo. + +--Como diz? + +--Ouça bem: o--seu--illimitado--pedantismo. + +--E.... mas.... + +--Olhe, sente-se aqui, a meu lado--Assim. Conversaremos com +tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as +attenções da sala. Escute-me. + + ---- + +Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante. +Seriam nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra; +uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz +oscillante do gaz. Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez +pessoas: eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, +muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos +sertões africanos para transplantar no Brazil. + +Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs +brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da +qual trabalhavam as escravas. + +De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos +o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no +ar a mão que empunhava a agulha, ou descançavam cautelosas os bilros +sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes. + +A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da _cabanagem_, o +que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta +tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era +auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de +compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na +concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica, +de que pretendia occupar a attenção dos ouvintes. + +Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma +fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos +tempos de que ella ia tratar. + +Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel +obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas,--a bôa preta começou +a referir a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade, +succintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas. + + ---- + +Da outra banda do rio, á margem esquerda d'este mesmo Guajará que róla +suas turbidas aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n'aquelle +tempo,--em 1835,--que era o abrigo d'uma simples familia de modestos +caboclos agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno +vigor d'uns 20 annos sadíos e bem desenvolvidos. + +Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua +simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça +era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam +negocios tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente +na cidade. + +O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga +da margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro á roça. +Pelo São João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um +padre a mais persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais +palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade +olympica de soberanas venturas transcendentes. + +Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo +rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado +á pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves +transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas +falas singellas e apaixonadas. + +Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao +lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha +existencia por vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o +olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras +do fundo, compraziam-se em acastellar illusões, n'umas inflorescencias +de amplas phantasias admiraveis. + +Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade +rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão. + +Mas houve um dia em que a sorte,--sempre inclemente e cynica, +doutor!--pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito +d'aquella invejavel bonança de duas vidas felicíssimas. + +A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas +dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e +fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais +ousada barbaridade. + +Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á +visita dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se +póde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem +querido dissuadil-os da infamia,--após assistirem á perpetração +selvática do attentado sem nome, soffreram inermes a pena ultima, +dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira! + +Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que +embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua +casa haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só +momento o rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um +assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! +Admire que sinceridade a d'aquella paixão, doutor, dias antes +apresentada em _labiosas_ florituras de phantasticos arremessos +idyllicos! Que grande coração, o d'aquelle homem! + +Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe +a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado +a sua noiva,--sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames, +ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa +dos sicarios! + +Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a +Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na +companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas +materialisações soezes e gordurosas. + +Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do cavaquinho! + +Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d'antes, convertera-se em +mattagal e a infeliz Thomazia,--apatetada e envelhecida, coberta de +andrajos e chorosa,--tinha simplesmente, como testemunha da sua +desgraça, uma creança inconsciente, um filho que dentro d'ella semeára a +hedionda selvageria dos revoltosos. + + * * * * * + +Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de +emoção, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o +rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, +agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora, +perguntou sorrindo ironica: + +--E crê, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um só homem +sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas +palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi? + + + + +NOTAS + + +A CONVALESCENTE.--Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino +_croquis_ ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s. +s.ª levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu +respeito externadas por mim n'um estudo critico das _Primeiras Rimas_, +de João do Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremódo aggressivo, todo +pessoal e rancoroso. + +Não quiz, então, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em +uma das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, +apresento-a tal qual m'a deu o prélo, antes do inesperado desabrimento +de s. s.ª + + +QUE BOM MARIDO!--Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o _Diario +de Belém_, declarando-o immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo +entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura +davam-lhe ensejo de estampar as _moralíssimas_ "grivoiseries" de Catulle +Mendès... É o caso mais flagrantemente pífio de criterio e coherencia +que tenho conhecido! + +No dia seguinte, _A Provincia do Pará_ publicava esse trabalho. + + +HISTORIA INCONGRUENTE.--Foi publicada n'_A Arena_ essa narração, em +1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de +dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira +carta muito affectuosa e benevolente. + + + + +INDICE + + PAGINAS + + ALEGRIA GAULEZA 10 + + A CONVALESCENTE 21 + + DESILLUSÃO 23 + + A "SERENATA" DE SCHUBERT 33 + + QUE BOM MARIDO! 45 + + NOITE DE FINADOS 55 + + RIO ABAIXO 61 + + AO DESPERTAR 69 + + POEMETOS EM PROSA: + + I--_Bidinha_ 81 + + II--_Paraphrase ossianica_ 84 + + III--_O parocho da aldeia_ 86 + + IV--_Ao sol_ 89 + + V--_Remember_ 91 + + O PREÇO DAS PAZES 95 + + HISTORIA INCONGRUENTE 109 + + A LICÇÃO DE "PALEOGRAPHO" 119 + + AO SOPRAR Á VÉLA 127 + + NO BAILE DO COMMENDADOR 137 + + NOTAS 147 + + + + +ERRATAS + +Os mais notaveis erros são es seguintes: + +Pags. Linha Erro Emenda + +61 5 caximbo cachimbo + +93 15 embaraçadoramente enleiando-nos + enleiando-nos embaraçadoramente + +93 33 estendidas extendidas + +107 33 inqueriu inquiriu + +114 29 vacillanto vacillante + + + + + + + + + +BREVEMENTE + +será dado á estampa o novo romance de Marques de Carvalho + +SOROR MARIANA + +Grande téla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relêvo a um +dos mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formará um forte +volume de de 300 paginas impressas a capricho. + + + + + + +End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by João Marques de Carvalho + +*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 *** diff --git a/30341-h/30341-h.htm b/30341-h/30341-h.htm new file mode 100644 index 0000000..0c65102 --- /dev/null +++ b/30341-h/30341-h.htm @@ -0,0 +1,3170 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Contos Paraenses, por J. Marques de Carvalho</title> + <meta name="Author" content="J. Marques de Carvalho"> + <meta name="Publisher" content="Pinto Barbosa & C."> + <meta name="Date" content="1889"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=UTF-8"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + font-family: sans-serif; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1, h2, h3, h4 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.centrado {text-align: center; text-indent: 0;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + h2 sup a {font-weight: normal; font-size: 8pt;} + </style> +</head> + +<body> +<div>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 ***</div> + +<p> </p> +<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p> + +<p style="font-size: 2em;">CONTOS</p> + +<p style="font-size: 2.5em;">PARAENSES</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>PARÁ</p> + +<p>PINTO BARBOSA & C.—Editores<br> +<small>Rua 13 de Maio</small><br> +1889</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_1" name="pg_1">{1}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.2em;">Obras de Marques de Carvalho</p> + +<p style="font-size: 1.4em;">VI</p> + +<p style="font-size: 1.5em;">CONTOS PARAENSES</p> + +<p><span class="pn"><a id="pg_2" name="pg_2">{2}</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="margin: 10%; font-size: 0.8em;"> +<p style="text-align:center;">DO MESMO AUCTOR</p> + +<p>O S<small>ONHO DO</small> M<small>ONARCHA</small>,—poemeto, 1886, +Opusculo </p> + +<p>L<small>AVAS</small>, poemeto, 1886, Opusculo</p> + +<p>P<small>AULINO DE</small> B<small>RITO</small>, perfil, com +<em>fac-simile</em> e retrato do biographado, 1887, 1 vol.</p> + +<p>H<small>ORTENCIA</small>,—romance naturalista, 1888, 1 vol.</p> + +<p>O L<small>IVRO DE</small> J<small>UDITH</small>,—versos e contos para +creanças, 1889, 1 vol</p> + +<p style="text-align:center;">A PUBLICAR</p> + +<p>H<small>ISTORIAS D'AMOR</small>,—contos, 1 vol.</p> + +<p>S<small>OROR</small> M<small>ARIA</small>,—romance, 1 vol.</p> + +<p>T<small>HEODORICO</small> M<small>AGNO</small>,—perfil, 1 vol.</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_3" name="pg_3">{3}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p> + +<p style="font-size: 2em;">CONTOS PARAENSES</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>PARÁ</p> + +<p>PINTO BARBOSA & C.—Editores<br> +<small>Rua 13 de Maio</small><br> +1889</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_4" name="pg_4">{4}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> +<hr> + +<p style="font-size: 0.8em; text-align: center;">Pará—Typ. dos Editores, +rua 13 de Maio.—1889.</p> +<hr> + +<p> <span class="pn"><a id="pg_5" name="pg_5">{5}</a></span></p> + +<div style="text-align:center;"> +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>A MEU IRMÂO</p> + +<p style="font-size: 1.8em;font-family: serif;">Antonio de Carvalho</p> + +<p> <span class="pn"><a id="pg_6" name="pg_6">{6}</a><br> +<a id="pg_7" name="pg_7">{7}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>AO EXM.º SR. COMMENDADOR</p> + +<p style="font-size: 1.5em;font-family: serif;">Domingos José Dias</p> + +<p +style="font-size: 0.8em;font-family: serif; margin-left: 10%;">Reconhecimento, +Amizade, Veneração.</p> +</div> + +<p> <span class="pn"><a id="pg_8" name="pg_8">{8}</a><br> +<a id="pg_9" name="pg_9">{9}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION001000000">Alegria gauleza</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION001100000">A José Veríssimo</a> </h3> + +<p>Emquanto esperavamos o almoço,—aquelle almoço ás pressas encommendado +no mais que modesto <em>hotel</em> do Pinheiro, fômos dar um passeio pela +matta, sob a sombra das grandes arvores copadas.</p> + +<p>As senhoras haviam ficado na sala do <em>hotel</em>, aguçando o appetite no +bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.</p> + +<p>O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto +quadrado,<span class="pn"><a id="pg_10" name="pg_10">{10}</a></span> de longas +suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da America.</p> + +<p>Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos +transportara ao Pinheiro.</p> + +<p>Ainda não havia duas horas que nos conheciamos, e já grande familiaridade se +estabelecera entre nós,—essa familiaridade facil, intima, passageira, das +pessoas que viajam.</p> + +<p>Estavamos ainda a bordo, e já o meu sympathico companheiro, sentado á +amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia do +Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.</p> + +<p>Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja existencia eu +ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por motivos que eu não +tratava de saber, tão vivamente me attraía a curiosidade.</p> + +<p>Quando saltamos para terra,—emquanto subiamos pela escada da +ponte,—convidei-o para almoçar comnosco, e elle acceitara +rindo,—com um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem +duplicidade.</p> + +<p>Fôra elle quem me propuzéra aquella excursão á matta, para darmos tempo a +que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já prevía frugal e triste, +attendendo ás condições da terra em que nos achavamos.</p> + +<p>Acceitei-lhe de boamente a proposta, com<span class="pn"><a id="pg_11" +name="pg_11">{11}</a></span> aquella vivacidade alegre de quem vive mezes +inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos, +um bello dia para descançar um pouco, em a paz d'uma povoação de arrabalde, +refestelando-se preguiçosamente na relva odorífera dos nossos grandes e +soberbos mattagaes.</p> + +<p>E fômos por ali fóra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante +cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja uniformidade era +quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo branco das varias flôres +sylvestres, cujas pétalas encolhiam-se um pouco, meio-fanadas pelos raios do +sol.</p> + +<p>Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por onde a +vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da +marezia andava no espaço, casado ao perfume subtil e excitante da baunilha, +cujas compridas favas pendiam dos escuros e velhos galhos d'aquellas arvores +seculares. Pássaros voavam céleres, n'um brando ruflar d'azas, soltando +pequeninos gritos estrídulos e alegres. De momento a momento, a curta distancia +de nós, lagartos cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o +folhedo sêcco que juncava o sólo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços +de ceu de um azul deslavado, que nós entreviamos pelos interstícios das +ramas,<span class="pn"><a id="pg_12" name="pg_12">{12}</a></span> urubús +recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos seus vôos +arredondados, pairando como n'uma contemplação enamorada da terra que os +sustenta com suas putrefacções, com seus resíduos infames e nojentos.</p> + +<p>De repente, o meu companheiro disse-me:</p> + +<p>—Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar cançado d'esta longa +caminhada.</p> + +<p>Não tinha a minima accentuação estrangeira; fallava como um verdadeiro +paraense.</p> + +<p>Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de bruços, +com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a descer-lhe para a +nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.</p> + +<p>Ficamos calados por alguns minutos.</p> + +<p>Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos +haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra exhalava.</p> + +<p>Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe:</p> + +<p>—O sr. é casado?</p> + +<p>Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de quem +deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois respondeu: +</p> + +<p>—Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.</p> + +<p>—Ah!</p> + +<p>—É verdade. Sou viuvo e tenho-me dado<span class="pn"><a id="pg_13" +name="pg_13">{13}</a></span> muito bem n'este novo estado de quem vive sem as +preoccupações do homem casado, que tem uma familia a sustentar. Bem tolo é quem +se casa...</p> + +<p>Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.</p> + +<p>Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traçando nas +duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, partiam a +perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das suissas.</p> + +<p>Eu não comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim sublinhadas +por similhante sorriso.</p> + +<p>Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, apertando-me +as costas da mão direita, como para chamar para si toda a minha attenção:</p> + +<p>—Está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de +arribação que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no coração, no +rosto,—nos labios e no olhar? É uma historia muito longa a minha, meu +caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? Não perderá nada com isso; pelo +contrario, creio aproveitará alguma coisa com a moral que tirar das minhas +palavras, depois de me dar toda a razão nos actos que pratiquei. Logo que me +ouvir, o sr. verificará que é muito certo o rifão: <em>Tristezas não pagam +dividas</em>, e adquirirá a certeza de que, n'este mundo, o<span class="pn"><a +id="pg_14" name="pg_14">{14}</a></span> melhor meio de se gosar saúde e viver +tranquillo, é ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do +dezembargador Delfino. Ora vire p'ra cá as oiças e preste attenção.</p> + +<p>Sentei-me. Elle fez o mesmo e começou, sorrindo sempre:</p> + +<p> </p> + +<p>—"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de réis, +herança de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando logo um +socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o +meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma hispanhola réles e +velhaca de um hotel da cidade.</p> + +<p>"Um bello dia fallimos,—por causa dessas extraordinarias despezas +capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crésus. Cuida que apaixonei-me +por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, sem vontade para +continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu espirito é refractario a +tristezas,—o meu coração grande de mais para fazer-se pequenino e mirrado +por tão pouca cousa. Um ou dois contos de réis que pude ganhar em certo +negocio, após o naufragio a que fôra conduzido pela doidice de meu socio, +empreguei-os em comprar algumas joias de ouro falso, em mercadorias de +contrabando, e, com um volumoso carregamento barato,<span class="pn"><a +id="pg_15" name="pg_15">{15}</a></span> segui para o rio Madeira, afim de +explorar em meu unico proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros.</p> + +<p>"Não me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Pará, e adquiri maior +carregamento, que fui de novo impingir ás remotas regiões do alto Madeira, onde +os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada posição de inoffensivo +estrangeiro, que carece de protecção, que não deve ser offendido nunca em um +paiz amigo!"</p> + +<p>Calou-se. Em sua larga bôcca de expressão franca e descuidosa estava o +eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraía para esse +homem com toda a enorme força de um robusto affecto nascente.</p> + +<p> </p> + +<p>Accendeu um charuto e continuou:</p> + +<p>—"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu +regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma solida fortuna amoedada em +bons contos de réis palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da mala. Tratei +logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos os crédores da massa +fallida, sem excepção de um só! Uma d'essas dividas da firma era uma +anquinha,—uma anquinha!—que meu socio havia comprado para a sua +Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que estabeleci-me pela +segunda vez,—d'essa<span class="pn"><a id="pg_16" +name="pg_16">{16}</a></span> feita sem socio, para não mais ser prejudicado por +ninguem.</p> + +<p>"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga +paraense,—farta carnação morenamente excitante e grandes quadris +arredondados, divinos,—filha de um subdelegado de policia. Casei-me com +ella alguns mezes depois de a ver. Não tinha educação, era estupida, mas +possuía a convicção da belleza nas fórmas, a imponencia da sensualidade no +olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?</p> + +<p>"Dois annos vivi eu nos braços de uma felicidade illimitada. Luiza, a minha +captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em minha infinita +affeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um esplendido segredo de sua +magnifica belleza de crioula! Era um delirio, uma loucura dulcíssima e +purificadora, aquelle amor que eu lhe votava com toda a vibrante virilidade do +meu corpo e da minha alma! A pequenina casa em que viviamos era para mim uma +Capua desejada, onde a minha languidez encontrava tranquillo bem estar, nos +braços da seductora Luiza. O dia seguinte, que para muitos é um enigma +atterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproducção +inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor intenso +e bom, como fostes amadas pela piéguice da ingenuidade do meu espirito!"<span +class="pn"><a id="pg_17" name="pg_17">{17}</a></span></p> + +<p>Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisação prazenteira. +Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a arregaçar-lhe a rubra ponta +do labio grosso e varonil.</p> + +<p>E proseguiu, após haver accendido o charuto que se apagara:</p> + +<p> </p> + +<p>—Eu tinha inteira confiança em Luiza. Jámais a idéa de uma perfidia de +sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como +poderiam enganar-me aquelles olhos tão bellamente claros e brilhantes, aquella +bocca de perfumosos labios que davam beijos tão doces, tão sensuaes, tão +irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espirito era o +espelho onde se reflectia o meu coração e onde eu suppunha ver a alma de Luiza, +estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser tão rudemente +ferida pelos factos!</p> + +<p>"É como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a +phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginação creadora e +ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que viera á cidade, e +um bello dia, quando, ao caír da tarde, regressei a casa para jantar, não mais +a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com +o sobredito <em>cujo</em> mencionado<span class="pn"><a id="pg_18" +name="pg_18">{18}</a></span> vaqueiro, como vim logo a saber, por informações +ministradas pela visinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem +robusto, completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz +para o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e voluptuosa. +</p> + +<p>"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as leis +do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de Marajó, onde, por +certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos braços do cyclopico +vaqueiro? Que expuz á irrisão publica, ás chufas da plebe, a ignara patifaria +de minha mulher e a irreparavel deshonra do meu nome? Nada d'isso, meu caro! +Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas +de que se esquecera com a precipitação da fuga! Veja até que ponto fui +complacente. Veja que santa bondade a minha!</p> + +<p>"A desgraçada morreu um anno depois, victima de béri-béri; pois bem; para +mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha mulher resar, +na egreja do Carmo, uma triste missa de <em>requiem</em>, a que assisti com +respeito e piedade."</p> + +<p>Calou-se, sem uma commoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse do +tempo ou da côr do céu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E logo o seu +velhaco<span class="pn"><a id="pg_19" name="pg_19">{19}</a></span> risinho +sarcastico saltou-lhe da bôcca e veiu espreitar-me de sobre o labio +superior,—como se fosse um depoimento vivo da tranquillidade d'aquella +alma em face de todos os extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella +haviam passado, sem conseguirem emocional-a.</p> + +<p> </p> + +<p>O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me para +que acompanhasse-o, seguiu em direcção ao povoado, cantarolando esta pandega +quadra do <em>Dia e a Noite</em>, de Lecocq:</p> + +<blockquote> + <em>Minha mulher, que Deus levou,</em><br> + <em>Foi-me infiel constantemente;</em><br> + <em>Nada d'isso me acabrunhou:</em><br> + <em>Levei o caso alegremente!</em><span class="pn"><a id="pg_20" + name="pg_20">{20}</a><br> + <a id="pg_21" name="pg_21">{21}</a></span> </blockquote> + +<h1><a name="SECTION002000000">A convalescente</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION002100000">Ao dr. Alvares da Costa</a> </h3> + +<p>Estava pallida e triste, encostada levemente á grade do camarote, n'aquella +noite de estréa.</p> + +<p>Os seus olhos, negros como a sêda que o seu delicado corpo vestia, divagavam +pela platéa, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia uma d'essas +melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e idéaes, bellas, +todavia, mesmo na falsidade da sua creação,—vivificada por um mysterio e +conduzida áquella sala d'espectaculo,<span class="pn"><a id="pg_22" +name="pg_22">{22}</a></span> onde ostentavam-se as formosuras das moças da moda +e as austeras sobrecasacas dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.</p> + +<p>E ella estava sempre pallida, encostada levemente á grade do camarote.</p> + +<p>Nos labios tinha ingênuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expressão da +sympathica physionomia.</p> + +<p>Um engraçado diabrête, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.</p> + +<p>Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da alma +uma commoção de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada d'esse logar, +d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para a platéa, cujo +ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos lenços rendados, dos +perfumosos lenços discretos das jovens damas....</p> + +<p>E aquella encantadora creança que, sempre triste, encostava-se á grade do +camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do soffrimento, que +tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia austeramente séria sob a luz +intensa do lustre.....<span class="pn"><a id="pg_23" +name="pg_23">{23}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION003000000">Desillusão</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION003100000">A Fontes de Carvalho</a> </h3> + +<p>A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem +sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente +zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção.</p> + +<p>Tinha ella a tez,—enrugada e molle como a casca do janipapo +maduro,—salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; +encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, +comprado<span class="pn"><a id="pg_24" name="pg_24">{24}</a></span> sempre na +<em>Loja Mariposa</em>, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico +Affonso,—vendia-lh'o com muita dóse de <em>réclames</em> e chamadas de +attenção para a superioridade da fazenda.</p> + +<p>Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quaes +primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.</p> + +<p>O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada +epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada +d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.</p> + +<p>As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco +lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do +direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui +confidencialmente a certas amigas particulares.</p> + +<p>Sempre houve maledicentes no mundo (salve a <em>chapa</em>!): foi por isso +que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu +trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem +pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos +affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente +russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler +aquella<span class="pn"><a id="pg_25" name="pg_25">{25}</a></span> affirmativa +a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, +naturalmente.</p> + +<p>A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para +conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á +intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas +repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera +antigamente.</p> + +<p>Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu <em>spleen</em> de +senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de <em>tia</em>. Ai! A +pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado +com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus +encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns +vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara o amor d'elle, sonhando +desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um +romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora +era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão, +resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a +Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe +affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de<span class="pn"><a id="pg_26" +name="pg_26">{26}</a></span> amor, e bôas tortas de camarões seguidas de +compotas de delicioso bacury, á sobremesa.</p> + +<p>Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações +exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente +que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela +seducção d'alguma <em>yára</em> encantadora. Do outro constava apenas que +partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear á +lareira, nos longos serões de inverno,—quando o suão sibila em as grandes +chaminés ennegrecidas,—os succulentos nácos de paios da +Beira,—d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta +João Penha.</p> + +<p>Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos +tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas +esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante +dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não +partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem +estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella +armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de +toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á +casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros<span class="pn"><a id="pg_27" +name="pg_27">{27}</a></span> accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle, +para mudamente lhe revelar a sua paixão.</p> + +<p>Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente +contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede +de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos +ao bom andamento d'aquelle amor.</p> + +<p>Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade +apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.</p> + +<p>A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu +as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos +d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa +admiradora do "seu caracter austero."</p> + +<p>Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, +desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.</p> + +<p>Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar +ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da +Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. +Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella, +para obedecer aos<span class="pn"><a id="pg_28" name="pg_28">{28}</a></span> +dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora. +</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no +Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por +uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida +de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as +omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma +escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.</p> + +<p>—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—Já, um +medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....</p> + +<p>O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o +sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações sobre o +tratamento.</p> + +<p>Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve +uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor. +</p> + +<p>Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que +habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse. +Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso<span class="pn"><a +id="pg_29" name="pg_29">{29}</a></span> Francisco da Natividade tratou logo de +mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saíu seis dias depois.</p> + +<p>No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando +verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a +vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:</p> + +<p>—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o +que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!</p> + +<p>—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... +Adeus!</p> + +<p>Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de +restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de +tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a +esquecer-se da sra. d. Joaquina.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos +lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no +continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma +conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias.</p> + +<p>Na vespera do dia em que tinha de seguir<span class="pn"><a id="pg_30" +name="pg_30">{30}</a></span> para a primeira excursão,—ao +Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão +no bolso d'um <em>paletot</em> que só vestia em viagem, encontraram seus dedos +um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e +suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.</p> + +<p>—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo não terá +feito a meu respeito a impagavel senhora....</p> + +<p>E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.</p> + +<p>"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito +<em>afflue-me</em> aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: +amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto +copiou ella do romance <em>A Caridade Christã</em>, de Escrich,—pensou +Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se <em>fui</em> por si acolhido +o meu amor. (Aquelle <em>fui</em> é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o +Raul bem o conheceu). Espero <em>ancioza</em> a sua resposta, com a qual o meu +amigo <em>remeter-me-á</em> meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de +presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua +eternamente,—J<small>OAQUINA</small>."</p> + +<p> </p> + +<p>Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle +<em>modelo</em> d'orthographia,<span class="pn"><a id="pg_31" +name="pg_31">{31}</a></span> propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se +mais serio e:</p> + +<p>—Ora bolas!—disse.—Só os cabellos encantavam-me, por serem +tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que +desillusão!....<span class="pn"><a id="pg_32" name="pg_32">{32}</a><br> +<a id="pg_33" name="pg_33">{33}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION004000000">A "Serenata" de Schubert</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION004100000">Ao dr. Augusto Meira</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION004110000">I</a> </h2> + +<p>No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na +rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma vela +de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na +Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de tranquillidade imponente, que +fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos +domicilios. O vento norte,<span class="pn"><a id="pg_34" +name="pg_34">{34}</a></span> que vinha de Olinda, entrava na sala, e d'esta +seguia para o quarto de João, agitando a luz dentro do <em>photo-mobile</em>. +</p> + +<p>Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na +visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou +attenção. Eram as primeiras notas da <em>Serenata</em> de Schubert, esse +magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De um +pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das janellas do +seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o rosto descançado na +mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta.</p> + +<p>Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, como +extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava no +azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes, uma +diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes montões de +nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima saíam as vozes do +piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas janellas abertas.</p> + +<p>Como todas as musicas sentimentaes, a <em>Serenata</em> de Schubert possue +isto de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro da +meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são sempre, +quer dolorosas<span class="pn"><a id="pg_35" name="pg_35">{35}</a></span> quer +alegres, um grato consolo para a alma.</p> + +<p>Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em +seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente +dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu querido Pará, podia +ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella que deve um dia ser sua +esposa.<sup><a href="#fn1" name="mfn1">[1]</a></sup> Foi tambem porisso que o +moço estudante de direito recordou-se,—e com quantas saudades!—da +magistral execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro +allemão,—uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos, +com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao espirito e +suaves langores ao corpo.</p> + +<p>Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida +companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta, +extasiado na audição d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma +transformação imaginativa, o piano<span class="pn"><a id="pg_36" +name="pg_36">{36}</a></span> da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos d'elle +um som particular, intimo, que o commovia todo, chamando-lhe duas lágrymas aos +cantos dos olhos! E, por esta causa tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas +pacificas paredes da casa fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual +déra-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão +poetica, porém saudosíssima, de uma tela de Watteau....</p> + +<p>Esse quadro, eil-o:</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#mfn1" name="fn1">[1]</a></sup> Este conto foi escripto em +1886. A donzella de que se trata está hoje casada com o heroe da presente +narração e póde gabar-se de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida +e a mais leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga de +todas as mães.</p> +</div> + +<h2><a name="SECTION004120000">II</a> </h2> + +<p>Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda. Um +socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a familia +estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá. Das ruas vinham +pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas e sons de guitarras +fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaços, uma voz, um +grito chegava até á sala, revelando que pela cidade havia quem passeiasse, +tentando festejar o anniversario do nascimento de Christo.<span class="pn"><a +id="pg_37" name="pg_37">{37}</a></span></p> + +<p>Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora sugava +a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua virtuosa mãe, a +qual, supposto conversar com o extremoso marido, não afastava do rosto da filha +os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um lago de ternura meiga e +immaculavel como um beijo maternal.</p> + +<p>Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do +lar,—elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do +amor!—emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle, +falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã, recebera de +suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E +dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão suavíssima do rosto +espiritualisada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os labios, o +velho Antonio, de cabellos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao +filho mais moço, ao Theodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe +como exemplo a seguir várias scenas a que assistira em sua passada vida +commercial.</p> + +<p>Uma exhalação de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a +tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe muitas +confianças no futuro.<span class="pn"><a id="pg_38" +name="pg_38">{38}</a></span></p> + +<p>De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz ergueu-se da +rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:</p> + +<blockquote> + Folguem todos n'esta noite,<br> + Venha a festa sem egual:<br> + —Hoje em nada se repara,<br> + Porque é noite de Natal.<br> + Hoje em nada se repara,<br> + Porque é noite de Natal. </blockquote> + +<p>E a guitarra chorava em <em>tom menor</em>, fazendo côro ao +<em>ritornello</em>. A voz de um agradavel <em>tenor</em> prendeu logo a +attenção dos que estavam na sala:</p> + +<blockquote> + Esta noite abençoada<br> + Pertence aos que têm amor;<br> + No presepe bethlemita<br> + Veiu ao mundo o Deus-Senhor. </blockquote> + +<p>Novo <em>ritornello</em> choroso na guitarra.</p> + +<blockquote> + Por isso, moços e moças,<br> + Entregae-vos ao prazer,<br> + Emquanto não vem a edade<br> + Vossa fronte encanecer! </blockquote> + +<p>Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.</p> + +<p>Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n'uma energia de +movimento,<span class="pn"><a id="pg_39" name="pg_39">{39}</a></span> com as +narinas afflantes, os anneis da cabeça tremendo-lhe sobre os hombros.</p> + +<p>—Tôlo!—exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se +agora ao longe, na extremidade da rua.—Pois que venha cá, a ver se os +velhos não têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me +dirá ao depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o +meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!..</p> + +<p>Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a encarnação +do carinho e, muito piedosa e pura,—qual um raio de sol illuminando a +face de uma estatua antiga,—foi beijar amoravelmente a fronte do +ancião....</p> + +<p>Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;—que não désse +importancia a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que +intensidade elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E +demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, não +valia a pena entristecer-se....</p> + +<p>—Para o lado os pezares!—terminou sorrindo.—Como +distracção agradavel a todos, vou tocar ao piano a <em>Serenata</em> de +Schubert.</p> + +<p>Já se tinha João levantado, prevendo<span class="pn"><a id="pg_40" +name="pg_40">{40}</a></span> este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a +estante a musica desejada e, accendendo as velas, sentou-se ao lado do +banquinho, que Dhalia veiu occupar.</p> + +<h2><a name="SECTION004130000">III</a> </h2> + +<p>E começaram então as primeiras melodias da <em>Serenata</em>.</p> + +<p>João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça, tão +bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica comprehendia os +segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma figura, ao principio +fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, apparecendo em primeiro +plano, desenhou-se na tela da imaginação do moço. E surgiu então um joven de +bandolim em punho, debaixo dos balcões floridos de um elegante castello, que se +erguia a meio de uma paizagem germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos +lagos tranquillos, sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes, +ruflando as<span class="pn"><a id="pg_41" name="pg_41">{41}</a></span> brancas +pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um canto magico de +yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal, doce como um beijo +apaixonado. De seus labios côr de papoula distillava-se o mel da musica de +Schubert, que ia cair com uma suavidade de balsamo sobre a alma enamorada de +uma joven castellã formosa, occulta entre os refólhos das colgaduras das +janellas! A voz do amoroso trovador tinha um não sei quê de melancholico, um +tal cunho de poesia dolente, que João emocionou-se tanto em face do quadro que +a sua imaginação lhe descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com +um meio sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia: +</p> + +<blockquote> + <em>"O Châtelaine,</em><br> + <em>Entend ma peine!..</em>"<br> + ...................<br> + ................... </blockquote> + +<p>Dhalia executou o <em>morendo</em> final da Serenata. João acordou da sua +<em>rêverie</em>, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico +bailava um risinho engraçado.</p> + +<p>De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante +illuminado n'uma expressão de ineffavel ventura.<span class="pn"><a id="pg_42" +name="pg_42">{42}</a></span> Dos labios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma +benção muda, que se completava pelo gesto das mãos erguidas e espalmadas no +espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!</p> +<hr class="dotted"> + +<h2><a name="SECTION004140000">IV</a> </h2> + +<p>Estava n'este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella do +seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha +desconhecida gemia tambem o adoravel remate da <em>Serenata</em>.</p> + +<p>João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe avivára +tão grata lembrança de seu venturoso passado,—agora que elle estava +ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que possuiam-lhe a flôr do +affecto. Ergueu os olhos ao céo, n'uma necessidade de soltar livremente o +espirito pela amplidão infinita do vacuo. No firmamento azul tachonado de +louras lucilações, o crescente de lua<span class="pn"><a id="pg_43" +name="pg_43">{43}</a></span> vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; +pequeninos flócos de nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço +adeante, projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da margem +opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se +bradando—<em>alerta!</em>—á sentinella.</p> + +<p>Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo +infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se +piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo venerando de Antonio, o +estremecido pae de sua noiva.<span class="pn"><a id="pg_44" +name="pg_44">{44}</a><br> +<a id="pg_45" name="pg_45">{45}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION005000000">Que bom marido!</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION005100000">A Juvenal Tavares</a> </h3> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p><em>Não desejarás a mulher do teu proximo.</em><br> + M<small>ANDAMENTO DE</small> D<small>EUS.</small> </p> +</blockquote> + +<p>Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, +tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, +onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas scintillações que davam a nota +de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador +olhar.<span class="pn"><a id="pg_46" name="pg_46">{46}</a></span></p> + +<p>Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de +rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que +tivéra,—tempestuosa e poída nas orgias,—encanecera-lhe +completamente os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde +cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.</p> + +<p>Ella tinha dezoito primavéras,—para me servir d'uma velha expressão do +romantismo;—ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e +marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador +descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos +do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da angélica, +era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a +mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,—d'esses namoradores enfatuados que +abundam por toda a parte.</p> + +<p>O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, +depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da +sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um <em>chôcho</em> á mulher e saía para +a repartição com o passo do empregado publico:—impassivel e +cadenciado.</p> + +<p>Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena +caricia e<span class="pn"><a id="pg_47" name="pg_47">{47}</a></span> voltava á +varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do jantar. Dispostas as coisas para +a segunda refeição, ía sentar-se á machina de costura, que dava-lhe não +diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os +vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a +qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e +um passeio a <em>bond</em> em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de +Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais +outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora +esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e +nova.</p> + +<p>Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus +adoradores,—rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, não +ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente a +requestava era um tal Jacyntho,—um <em>leão</em> conquistador que falava +pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro +atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do +casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o +pobre <em>namorado sem ventura</em> passava todas as tardes pela casa do +Bonifacio, quando Elvira ía para a janella,<span class="pn"><a id="pg_48" +name="pg_48">{48}</a></span> emquanto o marido, na varanda, jogava o sólo com o +taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, +enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense +retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem +corresponder áquelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era +pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem +não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o +taberneiro e o vizinho começavam no <em>passo</em> e no <em>bólo</em>. É que a +interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se +contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, +nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava "uma +distracção", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um +crime.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a +esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra +dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança<span class="pn"><a id="pg_49" +name="pg_49">{49}</a></span> no futuro, que resolvería, com +vantagem,—aquelle interessante problema de amor.</p> + +<p>Uma tarde,—era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras +admirado por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois +lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a +apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.</p> + +<p>Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, +que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:</p> + +<p>—Onde está a d. Elvira, minha filha?</p> + +<p>A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu na +bocca o index da mão direita, conservando-se calada.</p> + +<p>—Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?—insistía +o <em>leão</em> fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.</p> + +<p>Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da fregueza e +disse, ainda meio acanhada:</p> + +<p>—Está lá dentro....</p> + +<p>—E o sr. Bonifacio?</p> + +<p>—Saíu.</p> + +<p>—Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, +queres?</p> + +<p>—Eu quero....<span class="pn"><a id="pg_50" +name="pg_50">{50}</a></span> </p> + +<p>Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por +cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente +outro tostão.</p> + +<p>Depois seguiu pela estrada adeante.</p> + +<p> </p> + +<p>Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor que +por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela +estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo +passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova epístola. Repetiu o mesmo +jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma +carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho +não era-lhe indifferente, mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a +sua "posição de mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."</p> + +<p>D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar +dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos +d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do +sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas +leituras romanticas<span class="pn"><a id="pg_51" name="pg_51">{51}</a></span> +deram causa á correspondencia criminosa.</p> + +<p>Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além +d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente. +</p> + +<p>Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de +volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da +porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as +dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a attenção de velho curioso.</p> + +<p>—Que levas ahi?—perguntou.</p> + +<p>—Não é nada....—respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar +aos paraenses.</p> + +<p>—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a +pelo braço e apoderando-se do objecto.</p> + +<p>Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:</p> + +<p> </p> + +<p>"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a <em>missa +do gallo</em> em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de +conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha á 1 +hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.</p> + +<p style="text-align: right;">E<small>LVIRA</small>.»<span class="pn"><a +id="pg_52" name="pg_52">{52}</a></span></p> + +<p>O Bonifacio <em>subiu ao arame</em>; ficou da côr da purpura e sentiu uma +violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa +infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe appareceu a +subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingança.</p> + +<p>—Toma, leva,—disse entregando a carta á rapariga.</p> + +<p>E entrou.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços +d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes egrejas +onde se deve rezar a <em>missa do gallo</em>.</p> + +<p>O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para a +rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...."</p> + +<p>Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros +até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que +bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um +leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que +ía fruir na conversação de Elvira, quando<span class="pn"><a id="pg_53" +name="pg_53">{53}</a></span> subitamente exhalou um grito, dando um salto para +o lado.</p> + +<p>Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde +occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a lembrança de +namorar-lhe a mulher.</p> + +<p>Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca +agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente, +n'uma agitação febril....</p> + +<p>O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos +haviam saído para a <em>missa do gallo</em>.</p> + +<p>Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, +despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que +achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:</p> + +<p>—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na +asneira de namorar moças casadas!</p> + +<p>E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de +medo.<span class="pn"><a id="pg_54" name="pg_54">{54}</a><br><a id="pg_55" +name="pg_55">{55}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION006000000">Noite de finados</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION006100000">A Manoel P. de Carvalho</a> </h3> + +<p>O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos de +preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. Eram oito +horas da noite sob um céo trevoso como a tristeza d'aquellas pessoas que ali se +recordavam com saudades pungitivas dos parentes e amigos para sempre occultos +debaixo da terra, sobre a qual compridas filas de vélas accêsas lançavam uma +claridade intensa, que ia esbater-se ao fundo, na escuridão do mattagal.<span +class="pn"><a id="pg_56" name="pg_56">{56}</a></span></p> + +<p>O ar estava impregnado do perfume das flôres—piedosamente depostas em +cima das sepulturas por mãos amigas,—e do cheiro mystico da cêra +queimada.</p> + +<p>Ao longe, á direita da ermida, uma banda de musica executava plangentemente +uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades lugubres faziam +suspirar as velhas beatas,—aspirando a uma outra vida desconhecida, além +d'aquelle firmamento negro, no logar onde a omnipotencia incondicional da +Divindade lhes parecia dominar em toda a sua magestade.</p> + +<p>Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o cemiterio. +Este, áquella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas que receiavam um +atropello, saíam enfadadas, murmurando indecencias.</p> + +<p>Á porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente com +as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas lanternas +que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de vestes sujas e +mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em seu favor a caridade dos +visitantes piedosos.</p> + +<p>Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam olhares +torpemente libidinosos ás moças que entravam seguidas de suas mamães, n'um<span +class="pn"><a id="pg_57" name="pg_57">{57}</a></span> andar assustadiço e +saudando um ou outro conhecido com um meneio de cabeça. Mais adeante, n'um +canto escuro, uma roliça mulata, com o vestido muito decotado, murmurava +amabilidades a um preto de physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e +com a cabeça coberta por um descommunal chapéu alto. Como contraste, não muito +longe, estava uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados á +grade ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vélas em castiçaes de +vidro.</p> + +<p>Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma corôa de perpetuas rôxas, corriam +lágrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas do capim que +vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....</p> + +<p>Era sem duvida alguma viuva que pagava á memoria do finado marido alguns +annos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...</p> + +<p>Á esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em negro +caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e toda coberta +de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma senhora de cabellos +grisalhos, immovel, calada—como evocando passadas scenas de +prazer—sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia no funeral +tristonho....<span class="pn"><a id="pg_58" name="pg_58">{58}</a></span></p> + +<p>O céo, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiçada. Grandes +nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as bandas da +cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço d'almas penadas fazia +farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar ás supersticiosas +moças que estavam no cemiterio.... Agora calára-se a orchestra.</p> + +<p>Subira um prégador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de +grande côma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos tragicos, +uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade mundana e a perenne +bemaventurança celestial.</p> + +<p>As mulheres,—mães, filhas, esposas,—que o ouviam, ficavam +caladas, muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto +bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciencia, levantavam um brado de +maldição áquella felicidade que lhes roubára a companhia dos entes queridos e +amoraveis.</p> + +<p>Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma creança de +tenra edade,—um lindo e pallido orphãosinho,—voltou-lhe costas +nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre tumulo tranquillo, em +cuja grade se lia este lancinante poema de uma só phrase:—<em>Á minha +esposa....</em></p> + +<p>No céo, as nuvens afastavam-se, evolavam-se<span class="pn"><a id="pg_59" +name="pg_59">{59}</a></span> como alegrias fugitivas ou prazeres expulsos, +erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de miragens variadas.</p> + +<p>A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena magestade +tumular, que impoz vago soffrimento ao coração de todos. Os brandões e vélas +perderam o brilho, ficaram como pyrilampos lantejoulando os sepulchros sob o +luar diaphano, a cuja claridade continuava o pregador a recordar a omnipotencia +de Deus.</p> + +<p>Os <em>bonds</em> estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos +depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de senhoras +tristes, com physionomias de soffrimento.</p> + +<p>Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava +illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a +penultima da festa annual.</p> + +<p>Então, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma saudade á +memoria de um amigo, d'um irmão, d'um pae, desciam agora ao centro da festa +popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as casas de +jogo,—propellidos pela fascinação demoniaca e terrivel da roleta!<span +class="pn"><a id="pg_60" name="pg_60">{60}</a><br> +<a id="pg_61" name="pg_61">{61}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION007000000">Rio abaixo</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION007100000">(Ao dr. Gaspar Costa)</a> </h3> + +<p>A canôa seguia mansamente, per si só, impellida pela correnteza.</p> + +<p>Sentado á prôa, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava com +o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas das +bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do sol, que +escondia-se por traz da ilha das Onças.</p> + +<p>Na pôpa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o <em>senhor moço</em>, +abanando-se<span class="pn"><a id="pg_62" name="pg_62">{62}</a></span> com uma +ventarola de pennas vermelhas, ao lado da <em>senhora moça</em>, que espreitava +para fóra, por um dos pequenos postigos lateraes. A seus pés, dormitava o cão +Mururé, com um pedaço de lingua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os +dentes meio visiveis.</p> + +<p>O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos mattagaes +da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam até á embarcação, n'uma +suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois +viajantes.</p> + +<p>—Que bonita paizagem, Antonio!</p> + +<p>—É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da +viagem.</p> + +<p>—Quando chegamos ao <em>sitio</em>?</p> + +<p>—Ás 9 horas, isto é, d'aqui a tres ou quatro.</p> + +<p>—É pena chegarmos tão cedo!</p> + +<p>—Dizes bem: vamos tão contentes....</p> + +<p>E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.</p> + +<p>O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns momentos, +voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de +sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada <em>fumaça</em>, para +tranquillisar-se.</p> + +<p>Os outros, os dois recem-casados,—porque Antonio e Luiza eram noivos: +tinham-se matrimoniado quinze dias antes,—experimentavam, debaixo da +tolda, uma sensação<span class="pn"><a id="pg_63" name="pg_63">{63}</a></span> +de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle magestoso socego, sobre o +Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente,—com o olhar +cheio de caricias,—por haverem podido esquivar-se á vida agitada que +levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banaes, +nullas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,—como iriam viver felizes +durante aquella quinzena de fuga, em a tranquillidade bucolica da roça, +sosinhos, passeiando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando +caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa +dos igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos +pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas mattas +do <em>sitio</em>?!....</p> + +<p>Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, estas +idéas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem attenderem a que +o sol não mais vibrava os lategos luminosos no dorso da corrente, e que, +portanto, poderiam sair para o centro da canôa, afim de gozarem da viração +fresca e cheirosa que agitava n'um movimento descompassado as velas mal +colhidas ao mastro.</p> + +<p>Sempre assentado á prôa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o +caboclo<span class="pn"><a id="pg_64" name="pg_64">{64}</a></span> olhava agora +para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixára um rastro +avermelhado no céo, onde agrupavam-se em desordem nuvemzinhas côr de nácar, +violetas, azuladas, plumbeas, côr de perola. Do lado opposto, levantava-se a +noite, n'um andar manso, mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo +bruxoleante.</p> + +<p>O gorgeio dos passaros cessára na ilha das Onças, que já tinha ficado atraz, +a longa distancia; só chegavam á canôa os compassos em <em>andante</em> do +canto de um carachué que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente á qual +passou a embarcação.</p> + +<p>—Vê ahi no meu relogio que horas são, José, ordenou Antonio ao +caboclo.</p> + +<p>—Seis e trinta e oito, <em>sinhor</em>.</p> + +<p>—Oh! então saiámos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.</p> + +<p>Vieram para fóra.</p> + +<p>Luiza soltou uma exclamaçãosinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, +engraçada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um timbre argentino +como um filete de agua morna caindo n'uma banheira d'oiro lavrado:</p> + +<p>—Ah!—fez ella.</p> + +<p>E deixou-se ficar de pé, encostada ao hombro do marido, extasiada, em frente +ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.</p> + +<p>Largo em aquelle sitio, achamalotado<span class="pn"><a id="pg_65" +name="pg_65">{65}</a></span> pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas +rasas, cobertas d'uma vegetação opulenta, que esbatia-se n'uns tons escuros, +quasi indecisos, no limite do horisonte. Um socego de tabernaculo reinava por +toda a parte, sob o azul ferrete do céo, onde as estrellas começavam a +scintillar como as pedras preciosas d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem +occupava n'esse instante um espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra +firme, tremulava uma pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, +esgueirava-se pelo costado da canôa n'um murmurio dolente. A súbitas, na +solemnidade do silencio, resoou um grito d'ave nocturna.</p> + +<p>—Accende a lanterna, José,—disse Antonio ao caboclo, que +obedeceu logo, voltando depois á sua posição habitual na prôa, fumando.</p> + +<p>Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da +embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros +com roseiras florídas.</p> + +<p>Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi +á pôpa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, conchegando-lh'o muito +ao pescoço, amoravelmente.</p> + +<p>Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escuridão. Do logar em que +achavam-se, apenas viam na prôa um ponto vermelho<span class="pn"><a id="pg_66" +name="pg_66">{66}</a></span> como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo +do caboclo. Este se tornára invisivel na densidade das trevas.</p> + +<p>Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solidão: entraram a conversar +baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de tão +agradaveis recordações. Era para ambos uma innarravel felicidade poderem +pairar, assim a sós, das peripecias do curto namôro, dos longos annos que elle +passou a amal-a silenciosamente, das emoções e impaciencias do dia do +casamento, quando approximava-se a hora em que o parocho de Sant'Anna teria de +unil-os.</p> + +<p>Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, +n'uma excitação dos sentidos. Um movimento instinctivo,—inconsciente, +talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,—uniu-lhes os labios n'um +prolongado beijo de paixão, vibrante como um côro juvenil.</p> + +<p>Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.</p> + +<p>Poz-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com +a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvatica e cheia de +grandiosidade das florestas amazonicas...</p> + +<p>E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu +áquelle<span class="pn"><a id="pg_67" name="pg_67">{67}</a></span> beijo +nascido de duas bôccas amantes no silencio de tão linda noite paraense.</p> + +<p>Entretanto, a canôa seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela +correnteza.<span class="pn"><a id="pg_68" name="pg_68">{68}</a><br> +<a id="pg_69" name="pg_69">{69}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION008000000">Ao despertar</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION008100000">Ao sr. A. R. d'O. Gomes</a> </h3> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p><em>Nem tudo o que luze é ouro.</em><br> + <small>PROVERBIO POPULAR.</small></p> +</blockquote> + +<h2><a name="SECTION008110000">I</a> </h2> + +<p>A alcova nupcial em noite de noivado.</p> + +<p>Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da peça, +exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas variegadas em côres +desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas +para o leito de alvas cortinas<span class="pn"><a id="pg_70" +name="pg_70">{70}</a></span> discretamente cerradas... Uma lámpada com vidros +baços, côr de leite, esparze branda luz em torno, sem crepitação, n'uma solenne +impassibilidade, que dá certo ar magestoso ao silencio do recinto.</p> + +<p>Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n'um bocejo, +sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama.</p> + +<p>Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa +meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado.</p> + +<p>Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e trémula, +seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira preguiçosa o elegante +espartilho e o corpinho de labyrintho....</p> + +<p>Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se lhe +antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar pelos finos +lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em cima do travesseiro +macio como a flôr do algodoeiro....</p> + +<p>E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a +passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios contrahidos n'um +leve rictus de satisfação, de ventura.</p> + +<p>Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma +pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:</p> + +<p>—Permittes?....<span class="pn"><a id="pg_71" +name="pg_71">{71}</a></span> </p> + +<p>E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando +felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela atmosphera da +peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas multicores +desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas +para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas.</p> + +<h2><a name="SECTION008120000">II</a> </h2> + +<p>O casamento realisado n'aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de +seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como indisposições +subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa de nonada, e, depois, +de repente, pela influencia de não sei que espirito benefico, pazes feitas com +abundantes expansões apaixonadas, reconciliações ternas e carinhosas, que os +prendiam temporariamente n'um enlevo.</p> + +<p>O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, brazileiro +obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação<span class="pn"><a +id="pg_72" name="pg_72">{72}</a></span> do homem rico que vive contentíssimo da +sorte.</p> + +<p>Creara para a filha um ideal—um casamento com um bacharel. Similhante +aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa roda, para +a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,—a mulher +morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico, inviavel,—deixava a +filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo, para encurtar o tempo.</p> + +<p>Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira +peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz attendel-os e +appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias antes chegara de +Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o titulo de bacharel em +direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das graças de Paula. Aquella cutis +morena e avelludada; os olhos d'ella,—duas bólas d'onix engastadas em +amendoas de jaspe, sombreadas por longos cilios sedosos;—os longos +cabellos d'ébano, ondeando-se-lhe pelas espaduas de farta carnação; aquelle +bonito torso de opulentos seios na apojadura da juvenilidade;—tudo n'ella +prendia-lhe o enamorado espirito em os laços d'uma paixão tão sincera quanto +profunda. Mas, sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava +a grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso espiritualisado +e<span class="pn"><a id="pg_73" name="pg_73">{73}</a></span> prenhe de +beatitude, eram os alvos dentes que perlavam as carminadas gengivas d'ella, +quando Paula fitava-o sorrindo, com duas covinhas sobre as faces, bem junto ao +rosto d'elle, como desejando magnetisal-o.</p> + +<p>Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, foi +para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado sentiu-se, que +sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia,—elle que jámais +fizera versos!—uma poesia em que abundavam as +palavras—<em>seductora virgem</em>, <em>divinal espirito +archangélico</em>, em uma terrivel mescla d'enormes pés quebrados, com grande +escandalo das regras formuladas por A. Feliciano de Castilho.</p> + +<p>Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.</p> + +<p>Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da +noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o encantavam. +</p> + +<p>E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar ao +corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o primeiro beijo +que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!</p> + +<p>Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer parte +que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula sorrindo-lhe +amoravelmente,<span class="pn"><a id="pg_74" name="pg_74">{74}</a></span> +incitando-o a uma tentativa agradavel de roubo de um ósculo. O colete, que elle +enfiava n'esse instante, assumia a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos +hombros, perto dos quaes pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o +padrinho appareceu entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era +tempo de ir para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão +concentrado em suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido, +murmurando:</p> + +<p>—Que bella dentadura, que tens!</p> + +<h2><a name="SECTION008130000">III</a> </h2> + +<p>Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa do +velho pae de Paula, durante a longa e—para elle,—enfadonha +conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros, +Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com a +fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao ouvido, com +um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado<span class="pn"><a id="pg_75" +name="pg_75">{75}</a></span> na palma da mão, opiniões em nada favoraveis á sua +reputação de sobriedade em assumpto de succo de uva....</p> + +<p>—Que te parece o <em>gajo</em>, hein?—diziam.—Pois isso é +lá cousa que se faça? Embebedar-se no dia do casamento....</p> + +<p>—Que escandalo!</p> + +<p>—Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.</p> + +<p>E seguiam por esta norma os commentarios—todos reçumando idéas +gordurosas e indecentes.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente, +muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com acompanhamento +de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas bochechas. Afinal, somente +faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, impassivel como um abbade após a +ceia, fumava a um canto, affagando com amortecido olhar a fumaça do charuto, +além de forcejar por combater a força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao +cerebro, em razão do abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa, +quando brindára, com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe +politico do partido e ao Manoel<span class="pn"><a id="pg_76" +name="pg_76">{76}</a></span> do Rosario, o commerciante que não trepidava em +tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto....</p> + +<p> </p> + +<p>Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia +espicaçar-lhe as costas,—ponderou de repente o sogro, sorrindo +malicioso;—que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na +alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a <em>toilette</em>. Era natural +aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por ellas +havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de hymineu elle +tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora como um demonio +formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a evocação da memoria da +esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata amizade inalteravel, abundante +em amorosidades agradaveis e interminas! Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia +tratar de imital-o, para fazer a felicidade d'aquella creaturinha innocente e +sem defeitos physicos ou moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua +mulher. Que a poupasse, que lhe não desse trabalho em demasia para não a +fatigar: o dóte d'ella unido ao dinheiro que elle tinha, poderia +porpocionar-lhes uma existencia descuidosa nos braços d'uma indolencia salutar +propicia á gordura....</p> + +<p>E entrava em demoradas considerações<span class="pn"><a id="pg_77" +name="pg_77">{77}</a></span> a respeito da bôa vida,—como sectario da +vadiação, que era.</p> + +<p>Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo +recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa dos +noivos.</p> + +<p>Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho e +correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos bellos +dentes de Paula.</p> + +<h2><a name="SECTION008140000">IV</a> </h2> + +<p>A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento.</p> + +<p>Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae +beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de porcellana, +pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos espelhos, como invadidas +por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que durante a noite inteira sairam, +por intermittencias de longos socegos, d'aquella cama honestamente encoberta +pelos discretos<span class="pn"><a id="pg_78" name="pg_78">{78}</a></span> +refolhos das cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam +alegremente, cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam +esgaravatando o chão.</p> + +<p>E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento....</p> + +<p>E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa +palpitante, ameaçando extinguir-se....</p> + +<p>Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais +debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como enxugando +n'elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse porventura derramado sobre +suas pétalas inodoras....</p> + +<p>Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de sêda +branca escancaram as cavas, n'uma expressão de abhorrecimento pela demorada +immobilidade, n'uma expressão de appello aos pés que devem calçal-os.</p> + +<p>De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem desperta. +E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven noivo, em cujos +labios se desenha um franco sorriso de satisfação intima. E lá dentro, na meia +sombra que as rendas projectam, dorme ainda a formosa Paula, semi-núa, no +inconsciente despudor de um somno que foi agitado...</p> + +<p>Alfredo olha para todos os lados, muito<span class="pn"><a id="pg_79" +name="pg_79">{79}</a></span> contente e risonho. Ao ver o raio de sol que +beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua ventura n'um devaneio +de grande felicidade por vir.... Mas de subito, estarrecido, confuso, muito +pállido e crispando as mãos, entra a tremer todo, com as feições demudadas, os +cabellos arrepiados na cabeça encandescida!</p> + +<p>Á cabeceira do leito, sobre o elegante <em>guéridon</em> de jacarandá, +estava uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito +de massa!.....</p> + +<p>E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos pequeninos +dentes eguaes e perfilados correctamente....</p> + +<p>Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado pela +emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á beira do +leito, lavado em lágrymas, a murmurar n'um gemido:</p> + +<p>—Estou roubado, estou roubado!<span class="pn"><a id="pg_80" +name="pg_80">{80}</a><br> +<a id="pg_81" name="pg_81">{81}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION009000000">Poemetos em prosa</a> </h1> + +<h2><a name="SECTION009100000">I<br> +Bidinha</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009110000">A Mucio Javrot</a> </h3> + +<p>Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração ideal e faceira, haviam-lhe +feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, ella começou a +amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, encontrava-o em casa da prima, +córava, julgava soffrer e gosar a um tempo e entrava a fital-o amoravel<span +class="pn"><a id="pg_82" name="pg_82">{82}</a></span> e longamente, com essa +persistencia abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....</p> + +<p>O poeta conheceu não ser indifferente áquella moça tão pállida, tão triste, +cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixões ardentíssimas...</p> + +<p>E, não sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir á casa da prima da +Bidinha, para não vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, lá foi e +encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,—aquelles tentadores, +faiscantes olhos eloquentes,—mais, muito mais bonitos... Teve pena +d'ella: n'um momento em que ficaram sós na sala,—onde rescendia o perfume +d'um ramo de resêda posto n'um jarro em frente ao retrato d'uma velha senhora +de fronte enrugada e olhar suave—declarou-lhe amal-a desde muito, +intensamente.</p> + +<p>Ella, a Bidinha, a pállida donna do álbum que recebêra aquelles ternissimos +versos, d'uma inspiração idéal e faceira, sorriu, estremeceu e murmurou apenas +quasi inintelligivel som.</p> + +<p>D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios +nocturnos, em aquella mesma sala.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua +fidelidade<span class="pn"><a id="pg_83" name="pg_83">{83}</a></span> foram +longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o aperto de mão de +despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a angustia que atravessou-lhe o +coração!</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creança a quem +jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, emquanto +rescendia na sala o perfume d'um ramo de resêda.</p> + +<p>Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dôr das +longas espectativas!... Espera-o ainda....</p> + +<p>Á tarde, quem fôr ao pequenino quintal da casa d'ella, poderá vel-a sentada +sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta latada,—com o olhar +suave e tristemente fito nas paginas d'um album, soluçando baixinho palavras de +saudosa recriminação.</p> + +<p>Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração idéal e faceira, haviam-lhe +feito comprehender que o poeta amava-a!...<span class="pn"><a id="pg_84" +name="pg_84">{84}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION009200000">II<br> +Paraphrase ossianica</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009210000">A Frederico Rhossard</a> </h3> + +<p>Ó bella, ó seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do rochedo +sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.</p> + +<p>Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traçam sobre as nossas +torrentes. Ouço-os passar no meio dos turbilhões e suas vozes fanhosas são os +unicos sons a perturbar o magestoso socego das trévas.</p> + +<p>Ó tu, cuja mão branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas harpas +de<span class="pn"><a id="pg_85" name="pg_85">{85}</a></span> Lutha, tenta +ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e dolentes. Desperta essas cordas +adormecidas, canta, ó Malvina, e reaviva o meu genio, cuja chamma foi sopitada +pelos annos implacaveis.</p> + +<p>Vem a mim, ó Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que +entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o regato +cae na colina e róla, depois do furacão, sob a luz radiante do sol, o caçador +escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a humida cabelleira.</p> + +<p>Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heróes. +Infla-se meu peito; o meu coração palpita. Delinêa-se a meus olhos o passado. +Vem, ó Malvina, não divagues mais no meio das ténebras!<span class="pn"><a +id="pg_86" name="pg_86">{86}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION009300000">III<br> +O parocho da aldeia</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009310000">Ao Padre Dr. Leorne Menescal</a> </h3> + +<p>É a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e +olhar carinhoso como um conselho de Jesus.</p> + +<p>A sua parca mesa está sempre ás ordens dos mendigos, a sua porta aberta +sempre aos viajantes, a sua bôcca incessantemente murmura consolações ás +pessoas que soffrem.</p> + +<p>Muitas vezes, alta noite, vão chamal-o para ministrar os socorros da +religião a algum enfermo, em qualquer das aldeias<span class="pn"><a id="pg_87" +name="pg_87">{87}</a></span> que formam a serrana freguezia. Então, levanta-se +ás pressas, monta a cavallo e lá vae montanhas fóra, a galope, ladeando +tenebrosos precipícios, sob a chuva, tiritando de frio, impassivel como um +heróe e contente comsigo mesmo, sentindo-se alegre por ir cumprir um dos +mistéres que lhe impõe a sua profissão, tão bem comprehendida por sua bella +alma!</p> + +<p>Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos aquelles +montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os conselhos de paz e +bondade.</p> + +<p>Quando começou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote +arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra de +Baturité. Em poucos mezes, graças a seus esforços e á illimitada sympathia que +a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato não tinham um sêr captivo: +todos eram eguaes!</p> + +<p>Quando sae de casa, encaminhando-se á pequena egreja, cuja torre branca de +neve lança-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as creancinhas, +que bricam ás portas das casas, acodem a beijar-lhe a mão e as mães saudam-n'o +respeitosas, balbuciando uma benção....</p> + +<p>Aos domingos, á prédica do Evangelho, vi-o, por differentes occasiões, fazer +com a uncção de sua palavra, que as lágrymas borbulhassem nos olhos dos +assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel<span class="pn"><a +id="pg_88" name="pg_88">{88}</a></span> modo de viver, fertilíssimo em bons +exemplos.</p> + +<p>Nada possue: dá tudo aos necessitados, sem ostentação, naturalmente!</p> + +<p>Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, ó caritativo sacerdote de +tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....<span class="pn"><a +id="pg_89" name="pg_89">{89}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION009400000">IV<br> +Ao Sol</a><sup><a href="#fn2" name="mfn2">[2]</a></sup></h2> + +<h3><a name="SECTION009410000">A Fernando A. da Silva</a> </h3> + +<p>Ó tu, que rolas por cima de nossas cabeças, resplandecente como o escudo de +nossos paes; d'onde saem os teus raios, ó sol? D'onde vem a tua luz? Caminhas +em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas no firmamento; +pállida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. Ficas sosinho, ó sol: +quem poderia acompanhar-te o curso?<span class="pn"><a id="pg_90" +name="pg_90">{90}</a></span></p> + +<p>Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas são minadas pelos +annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no fundo +dos céus; só tu és sempre o mesmo.</p> + +<p>Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo está sombrio +pelas tempestades, quando o trovão ribomba e vôa o raio, saes radiante do meio +das nuvens e ris do furacão!</p> + +<p>Mas, ai! em vão brilhas para mim! O velho bardo já te não vê os raios, quer +fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer trema ás portas +do poente a tua luz bruxoleante.</p> + +<p>Mas talvez, como eu, só possuas uma estação e teus annos terão um termo: +virá talvez um dia em que empallideças no meio da carreira e a aurora proxima +em vão esperará o teu regresso.</p> + +<p>Regosija-te, portanto, ó sol, na força da tua juventude! A velhice é triste +e abhorrecida: parece-se com as tíbias claridades da lua, as quaes perdem-se +entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este semeia ao longe as +estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a collina e o viajante +transido tirita nos caminhos desertos....<span class="pn"><a id="pg_91" +name="pg_91">{91}</a></span></p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#mfn2" name="fn2">[2]</a></sup> Vertido de Ossian.</p> +</div> + +<h2><a name="SECTION009500000">V<br> +Remember</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009510000">A Paulino de Brito</a> </h3> + +<h4><a name="SECTION009520000">I</a> </h4> + +<p>Não tens então no peito a minima raiva contra mim?—perguntei-lhe +admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.</p> + +<p>—Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os +loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, n'uma +prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua pequenina +pessoa,<span class="pn"><a id="pg_92" name="pg_92">{92}</a></span> delicada e +meiga, parecia desabrochar as florescencias gentis das suas graças, dos seus +divinos dotes triumphantes em meio á pujança da invejavel mocidade!</p> + +<p>—Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que +tanta bondade tens n'alma, quantas são as seducções capitosas do teu bello +rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e faceiros, +tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores +effluvios!—retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attraíndo-a +castamente para mim, n'um impulso de gratidão, ainda todo commovido pelo prazer +das recentes pazes.</p> + +<p>E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que +manifestara-se no roubo d'um beijo,—d'um pequenino beijo +fugitivo,—áquella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo +como que desabrochava as divinas graças triumphaes em gentis florescencias de +invejavel juventude pujante!</p> + +<p>As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse +enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seducções capitosas de tão +bello rostinho!..</p> + +<h4><a name="SECTION009530000">II</a> </h4> + +<p>Mas anoitecêra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos +jasmineiros<span class="pn"><a id="pg_93" name="pg_93">{93}</a></span> +rescendentes maior escuridão communicava á parte do jardim onde haviamos feito +pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido nos rubros labios mádidos da +minha pequenina amante fascinadora.</p> + +<p>Um silencio embaraçador enleiava-nos em tíbia indecisão. A loira cabecinha +d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos anneis +undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das correctissimas +espaduas.</p> + +<p>E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com seus +rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio enleiando-nos embaraçadoramente +em tíbia indecisão.</p> + +<p>Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descançar-me no +hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia +assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,—um fugitivo +beijo pequenino e casto,—nos humidos labios da minha gentil e tentadora +amante.</p> + +<p>Ella, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. Uma +das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu o pésinho, +n'uma expansão de enfado incipiente....</p> + +<p>—Se reincidir, não perdôo mais!—exclamou, avisando-me, com a voz +ainda repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos +extendidas<span class="pn"><a id="pg_94" name="pg_94">{94}</a></span> +nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso que me concedeu, +emquanto descançava a fronte no meu hombro, com os formosos anneis da adoravel +cabecinha louca undiflavando-se-lhe tranquillos pelas correctíssimas espáduas. +</p> + +<p>Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á +escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo de um +beijo,—do primeiro beijo, pequenino e casto,—aos ardentes labios +mádidos da minha bemdita virgem.</p> + +<p>E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um +recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em face +do capricho d'aquella pequenina cabeça loira, de triumphantes graças capitosas, +que só admittira e perdoara o meu primeiro atrevimento... ainda tão innocente e +retrahido!...<span class="pn"><a id="pg_95" name="pg_95">{95}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0010000000">O preço das pazes</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0010100000">A J. A. Pinto Barbosa</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0010110000">I</a> </h2> + +<p>O meu amigo Ernesto accendêra um charuto, concertára o <em>pince-nes</em> +sobre o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona, +muito fôfa, em que estava sentado deante de mim e começou:</p> + +<p> </p> + +<p>—Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, á mesa, sem +poder contar-t'o inteiro, pela importuna presença d'aquellas senhoras.<span +class="pn"><a id="pg_96" name="pg_96">{96}</a></span></p> + +<p>Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e mais +divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de +umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, avelludada; olhos negros +e brilhantíssimos,—como duas caçoilas de mysteriosos philtros +embriagadores;—cabellos muito pretos e ondeados, rescendentes a bôa +olencia de selvática baunilha; um donaire, uma soberania inteira de magestoso +porte e fidalga apresentação captivante, capaz de enleiar-nos em toda a série +de crimes que ao humano pensamento é dado formular em dias de tôrvas reflexões +e sinistras ebriedades peccaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar +perfeitíssimo da mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archétypo da elevação +dos dotes, a civilisada manifestação das nossas lendárias yáras amazonicas! E, +a par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustração perfeita de erudita, +conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos, pequeninos e +eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, engastados em formoso +coral, brilhante como os róseos labios humidos da microscópica boquinha +sombreada d'um leve buço,—o complemento da seducção, o requinte da +tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a +Marócas, a esposa do altivo general Bandeira,<span class="pn"><a id="pg_97" +name="pg_97">{97}</a></span> velho quinquagenario d'elevada riqueza +materialisada em appetitosas centenas de contos de réis, depositados nos +principaes bancos do Brazil.</p> + +<p>Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a azulada +fumaça d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no espaço, como poderia +amal-a o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda entregue a seu +amor,—desde os timidos beijos assustadiços repentinamente dados, ás +vezes, no vão de qualquer janella dos aposentos desertos de enfadonhas +testemunhas, até ao completo desnuamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido +e cálido, que apresentava-lhe na mysteriosa liberdade pacifica da recatada +alcôva, alta noite, com a sua elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre +neves de rendas, diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.</p> + +<p>Uma fascinação, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos +caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a todos +os sacrificios para conquistar uma estima á força de constantes provas de +louvavel desinteresse.</p> + +<p>Confesso não ter ainda visto a repetição d'aquella invejavel existencia +d'affectuoso enlevo,—elle no declinar da vida, ella em toda a maravilhosa +florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas inteiras a +contemplal-os, absorto na admiração d'essa<span class="pn"><a id="pg_98" +name="pg_98">{98}</a></span> alheia felicidade que fazia-me +venturoso,—tanto é certo que uma perfeita harmonia de suave existencia +rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso +transbordamento do seu excesso. </p> + +<p>Muitos annos haviam já passado, desde que o matrimonio os uniu, quando +Marócas fizéra o seu decimo quinto anniversario,—e nem um só instante o +arrependimento lhes chegára de se terem para sempre ligado por um prematuro +enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel reproducção do dia em +que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcôva, deram-se, +entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoravel tratamento de esposo.</p> + +<p>Verdadeiramente admiravel, não achas?</p> + +<h2><a name="SECTION0010120000">II</a> </h2> + +<p>Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposição fluctuou, +soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla felicidade +jubilosa de ambos.</p> + +<p>Foi uma verdadeira desgraça suscitada<span class="pn"><a id="pg_99" +name="pg_99">{99}</a></span> por um capricho desarrazoado da formosa mulher do +general. Elle tivera o arrojo de negar-se,—pela primeira vez, é +certo,—a satisfazel-o, e a Marócas soffrera em cheio no coração a dureza +da áspera repulsa. Longos fios d'interminaveis lágrymas deslisaram-se-lhe dos +grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os com força, circulando-os das +roxas manchas tristonhas que têm os infelizes habituados ao pranto.</p> + +<p>Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou,—emquanto +o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos +desmarcados o soalho, já meio arrependido da quasi brutal violencia com que +resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.</p> + +<p>Depois veiu a reacção, em seguida á crise hysterica dos abundantes prantos +silenciosos. Uns assomos de magestosa indignação, muito concentrada e muda, +chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao +marido memoraveis ensinamentos de justas represalias.</p> + +<p>E a Marócas prometteu elevar-se acima de si propria, ser tão rispida como +brutal havia sido o incivil do general.</p> + +<p>Ai, meu caro amigo! Foi severa a licção! O pobre general Bandeira mais d'uma +vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marócas, ao fim da primeira +semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho<span class="pn"><a +id="pg_100" name="pg_100">{100}</a></span> em seu quarto,—n'uma triste +solidão de viuvez frigidissima...</p> + +<p>Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com +valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sêr. Seria possivel que não +tivesse a força de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto temiam os +paraguayos, annos antes, nas selváticas solidões onde o nosso exercito ferira +tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?</p> + +<p>Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resoluções enfraqueceram, como cae +uma véla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente +o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.</p> + +<p>O general desejou capitular, ne extrêmo das forças. Um arrependimento, cujo +peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe após essas momentaneas +resoluções de superiores resistencias... impossiveis n'aquelle pobre e velho +espirito d'homem tolamente embeiçado pelas captivantes graças da mulher.</p> + +<p>Com effeito, capitulou.</p> + +<p>Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os passos +das escravas e uma luz baça côava-se pelos fôscos vidros de lampadas discretas, +saíu cauteloso da sua alcôva e, com o coração a pulsar violento, dirigiu-se ao +quarto da mulher.</p> + +<p>Á porta, parou, indeciso.<span class="pn"><a id="pg_101" +name="pg_101">{101}</a></span></p> + +<p>Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira +entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona sensualmente +esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.</p> + +<p>Marócas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples +ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher que em nada de +mau pensa.</p> + +<p>Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava dando. +Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello corpo, feito +d'ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporisando a tépida +emanação subtil das suas frescas, rosadas carnes bellamente seductoras e +deliciosamente juvenis.</p> + +<p>Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, afflando +precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a +porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés, choroso, +supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdão, +solicitando um armistício, pedindo pazes selladas com a ardencia d'uma +deliciosa e suprema compensação!</p> + +<p>Ella, porém, a Marócas, impassivel e impertubavel—ao tempo que +envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n'um gracioso rubor +de impeccavel<span class="pn"><a id="pg_102" name="pg_102">{102}</a></span> +donzella,—estendeu o braço para a porta e, mostrando-lh'a, disse ao +general estarrecido:</p> + +<p>—Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizér +apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.</p> + +<p>E elle teve de saír,—ao reconhecer a impossibilidade de persistir +n'uma resistencia, que só poderia ser-lhe prejudicial.</p> + +<h2><a name="SECTION0010130000">III</a> </h2> + +<p>O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um +meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a mulher, +sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o salvasse da +terribilíssima colisão.</p> + +<p>Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sêdas, joias e finas pedrarias +em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse profusamente, para amimar a +caprichosa Marócas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraçadoras. +Nada<span class="pn"><a id="pg_103" name="pg_103">{103}</a></span> conseguia, +senão augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de +enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com toda a +mesquinhez das pequeninas baixezas.</p> + +<p>Um caso fortuito, porém, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento +pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado aos +hombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das enfermidades +secretas.</p> + +<p>Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fôra o general Bandeira convidado para +examinador de mathematicas, durante os exames da commissão especial da +delegacia geral da instrucção secundaria do municipio da côrte,—essa +creação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autonómica dos nossos +lyceus provincianos, reduzindo-os ás simples e modestas proporções de +insignificantes escholas de primórdios scientificos e litterarios, destituidos +do mínimo valor perante as academias superiores do Imperio...</p> + +<p>Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e continuemos +na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.</p> + +<p>O general acceitára e convite com extraordinario gaudio do delegado +especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude +<em>catonismo</em> do Bandeira. Disposto a<span class="pn"><a id="pg_104" +name="pg_104">{104}</a></span> conservar as suas tradições de severo +examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia marcado, +quando—oh! admiração!—appareceu-lhe no quarto a mulher, a Marócas, +arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o cólo, +por cima das mais appeteciveis redondezas túrgidas que é possivel imaginar.</p> + +<p>Trémulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto, +esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e enterrou-o +desgeitosamente na bocca, em sentido opposto áquelle de que deveria servir-se +para fumar satisfactoriamente.</p> + +<p>O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu +entre elle e a Marócas uma distancia consideravel.</p> + +<p>A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os +dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a necessaria +seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espaço que +approximava-a d'elle.</p> + +<p>Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:</p> + +<p>—Váe hoje examinar mathematicas, general?</p> + +<p>—Vou... sim...</p> + +<p>—Pois então, este moço irá fazer exame por mim...</p> + +<p>—?...<span class="pn"><a id="pg_105" name="pg_105">{105}</a></span></p> + +<p>—Ouviu...?</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—Veja lá como se porta. As mathematicas não são o <em>meu</em> forte. +<em>Eu</em> não estou muito <em>habilitada</em>.</p> + +<p>E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assédio, por +similhante reclamação de um escandalo impossivel á sua severidade, a bella +Marócas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do penteador, +diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, essencias boas e +rijas carnes feminís e jovens.</p> + +<h2><a name="SECTION0010140000">IV</a> </h2> + +<p>Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe +entregara a mulher:</p> + +<p class="centrado" style="border: solid 1px #000; margin: 1em;padding: 1em;"><em>Antonio da Silva Larangeira</em><span class="pn"><a +id="pg_106" name="pg_106">{106}</a></span> </p> + +<p>Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira. +Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos á quirirú, olhos +arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na derme. Que era elle +proprio, sim senhor. E uma vóz fanhosa, cheia de bajulações servilíssimas, +resmoneou a pequena phrase affirmativa, solicitando ali, em sua exaggerada +affabilidade, a complacencia do examinador.</p> + +<p>O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoção, mal +resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que tivéra o +arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marócas, para induzil-o ao crime d'uma +indignidade—arrastal-o a quebrar os seus votos de severa justiça de +indomavel rispidez com os estudantes.</p> + +<p>D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova +escripta não poderia ser peor. Escusado é dizer-te que o pequeno espesinhou a +sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. Como, porém, +desempenhava ali as altas funcções de representar a bella Marócas, á falta de +Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgencia +dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.</p> + +<p>Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando +appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente<span class="pn"><a +id="pg_107" name="pg_107">{107}</a></span> a gratos perfumes finíssimos, +<em>Couro da Russia</em>, e <em>jasmim do Cabo</em>.</p> + +<p>—Então?—perguntou ella meio-rindo.</p> + +<p>—Approvado, affirmou o general deixando pender a cabeça, +desfallecido,—talvez envergonhado da sua fraqueza, córando porventura de +não haver opposto resistencia á tentação.</p> + +<p>—Oh! bello! bello!—gritou a Marócas, lançando-se-lhe ao pescoço, +beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto—á ponta do +nariz—os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas +que ornavam o penteador sobre o peito.</p> + +<p>Elle abriu os braços, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande +amplexo nervoso—a manifestação penultima do seu intensíssimo desejo de +reconciliar-se com a mulher.</p> + +<p>Ella impellia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá perfilado +junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os +labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.</p> + +<p>Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel, +silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas +lágrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.</p> + +<p>—Que tens? inquiriu ella, assustada,<span class="pn"><a id="pg_108" +name="pg_108">{108}</a></span> beijando-o sobre uma orelha, amimada e +tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcíssima harmonia.</p> + +<p>—Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um +escandalo, aquella approvação!</p> + +<p>—Ah! volveu ella, abraçando-o com força, reconquistando-o, +reconduzindo-o para o sofá, espiritualisada de prazer, sorrindo +extranhamente.</p> + +<p>E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do +esposo,—caíndo ambos para o sofá hospitaleiro—murmurou-lhe ao +ouvido, entre um <em>rugeruge</em> de roupas:</p> + +<p>—O que é bom custa caro!<span class="pn"><a id="pg_109" +name="pg_109">{109}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0011000000">Historia incongruente</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0011100000">Ao dr. Franklin Tavora</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0011110000">I</a> </h2> + +<p>Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel Fonseca. +</p> + +<p>A paizagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de evocar-lhe +aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhãs +saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.<span class="pn"><a +id="pg_110" name="pg_110">{110}</a></span></p> + +<p>As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transição subita no +animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, á hora da sesta não traziam +nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem causa apparente. Todas as +interrogacões, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do +ancião, que persistia n'um silencio desanimador.</p> + +<p>E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda +progredia, graças ao magnifico tempo que, havia dois annos, reinava, o gado +engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposição para o +trabalho.</p> + +<p>O Thiago, filho unico do coronel, não reparara ainda n'aquellas +concentrações do pae. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como +sincera, para ligar attenção a qualquer coisa que se passasse em outra parte +que não fosse no proprio coração.</p> + +<p>E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir á villa +proxima, bem merecia aquella dedicação egoistica, porém desculpavel.</p> + +<p>Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma +honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a cuidar +dos irmãosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a apaparical-os, a +rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar physico do todos +aquelles pequeninos sêres<span class="pn"><a id="pg_111" +name="pg_111">{111}</a></span> a ella confiados pela mãe, na occasião de +morrer.</p> + +<p>Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que +era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.</p> + +<p>É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para +dia mais se ligava de amizade á <em>Venancia da villa</em>, como á rapariga +chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da <em>maqueira</em> do coronel, +quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia muitas vezes +ouvil-o pronunciar estas palavras:—"É impossivel similhante +casamento!"</p> + +<h2><a name="SECTION0011120000">II</a> </h2> + +<p>Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu +correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que necessitava +falar-lhe com urgencia.</p> + +<p>O velho estremeceu, prevendo talvez<span class="pn"><a id="pg_112" +name="pg_112">{112}</a></span> que o filho ia acercar-se d'um assumpto ao qual +elle fugia ha muito tempo.</p> + +<p>Foi a fazer um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:</p> + +<p>—Fala quando quizeres.</p> + +<p>Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.</p> + +<p>O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma +expressão de curiosidade e pavôr. Tremia ligeiramente, com os nervos todos +irritados.</p> + +<p>—O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.</p> + +<p>No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:</p> + +<p>—Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe é importante de +mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. Vou ser +breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta de meu +pae.—Desejo casar-me.</p> + +<p>Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indifferença. +</p> + +<p>—Pois casa-te, rapaz. Eu não me opponho.... Contanto que seja a moça +escolhida merecedora de ser tua mulher....</p> + +<p>—Oh! se tal é a condição que apresenta, posso affiançar-lhe que +brevemente me casarei. Bôa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de +dedicação, creio que poucas moças como ella encontrei no Pará durante os seis +annos que lá estive a estudar no seminario e no lyceu.<span class="pn"><a +id="pg_113" name="pg_113">{113}</a></span></p> + +<p>—Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dôres +nas fontes, com o coração accelerado, porém a affectar +tranquillidade.—Mas então quem é a rapariga?</p> + +<p>Thiago sorriu indizivelmente,—com uma beatifica expressão de +intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:</p> + +<p>—É a <em>Venancia da villa</em>, a minha querida Venancia!</p> + +<p>O velho ergueu-se impellido pela commoção. Suppondo tal acção um meio de que +o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago ergueu-se +tambem e correu a abraçal-o.</p> + +<p>Mas o velho, fazendo um lento signal com o braço estendido, paralysou-lhe a +vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:</p> + +<p>—Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores +com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia, impediam-me de +favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de oppôr-me a elles +desassombradamente. Fingí ignorar tudo, na esperança de que os annos lançassem +o tédio sobre as vossas almas captivas uma da outra por aquillo que eu pensava +ser o enthusiasmo pela novidade. Com immensa dôr verifiquei o meu engano, +porquanto foste fiel á tua palavra, do mesmo modo por que Venancia o foi á sua. +Isto seria uma grande<span class="pn"><a id="pg_114" +name="pg_114">{114}</a></span> felicidade se não fosse uma enorme desgraça. +Quer dizer, seria um apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da +tua paixão fosse qualquer outra mulher, que não a Venancia..... Olha, Thiago, +sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me fórça +a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, ausenta-te de +Marajó, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade +longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma mulher a quem possas offerecer +a mão....</p> + +<p>—Mas porquê, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o coração +oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras do pae +minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido com um +profundo amor expurgado de malicia.</p> + +<p>—Porque assim é necessario,—redarguiu o velho, n'uma vehemencia +de gesto e de entonação.</p> + +<p>—Pois fique sabendo que, se não explicar satisfactoriamente a causa de +similhante opposição, só tomarei as suas palavras como originarias d'uma razão +que a edade torna vacillante e digna de piedade!—bradou Thiago já fóra de +si, ferido n'essa grande porção de egoismo que todo o homem tem comsigo.</p> + +<p>—Ingrato, murmurou o velho, deixando-se<span class="pn"><a id="pg_115" +name="pg_115">{115}</a></span> caír sentado e chorando copiosamente.—Pois +assiste á morte do teu coração, visto assim o desejares: ouve-me!</p> + +<p>Pela janella aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda, +coberto d'uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos saltavam +ás cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam +tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as longas caudas n'um +compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro preto, perfilado e sério, +olhava para a linha escura do horisonte, entretido em lamber as ventas +lustrosas de ranho com a flexivel lingua côr de cinza de charuto. Um cheiro +almiscarado d'erva sêcca e de excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros +zangarreavam n'umas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de +mamãoseiro. Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com +essas faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves +que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil de +extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito distante sobre +o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, magestosa e +tranquilla em sua imponencia seductora.</p> + +<p>O velho enxugou as lágrymas e começou a falar.<span class="pn"><a +id="pg_116" name="pg_116">{116}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION0011130000">III</a> </h2> + +<p>—Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até +agora não sei como possivel me foi resistir a essa desgraça, que eu a principio +reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei encerrado n'este +quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguem, apenas gozando em +tuas innocentes caricias um pallido reflexo d'aquelles grandes affagos que a +tua idolatrada mãe fazia-me constantemente. Passados esses tres annos, +comprehendi que o teu futuro exigia-me impozesse silencio á minha dôr, e +cuidasse de nossos bens, para dar-te uma bôa educação e, depois da minha morte, +fazer-te herdeiro de uma riqueza sufficiente á tua manutenção. Saí, pois, do +quarto, pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrificio como +feito por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus +exigiam que eu fizesse frequentes viagens á villa, onde, ha vinte e tres annos, +isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher +d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da villa. Essa senhora era +o retrato<span class="pn"><a id="pg_117" name="pg_117">{117}</a></span> vivo de +tua mãe. Por um phenomeno de impressionismo,—sem o querer, sem o +sentir—fui-me enlevando das graças d'ella, até chegar ao ponto de pensar +que tua bôa mãe tornára á vida e volvêra a amar-me como d'antes!</p> + +<p>Quando eu ia á villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. Tal +convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em grande +paixão, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves faziam com que o +marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, deixando-me ao lado da +mulher que.... poupa-me a vergonha de communicar-te que.... titubeou o coronel, +muito triste, com os olhos mareados de lágrymas, a arfar do peito e a contrahir +o rosto n'uma visivel agonia causada pelos remorsos.</p> + +<p>—Emfim,—disse com energia e, desta feita, dando expansão ao +pranto,—o resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixão, foi o +nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser sua +filha....</p> + +<p>—E essa menina é... Ve..nan..cia?—inquiriu Thiago com os olhos +arregalados, os cabellos crispados, as mãos fechadas fortemente, sentindo +fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoção.</p> + +<p>—Sim, Thiago, sim, é Venancia, fructo da minha infamia, a filha do +crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel<span class="pn"><a +id="pg_118" name="pg_118">{118}</a></span> que não soube resistir á minha +tentação! É Venancia, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento! É +tua irmã, insensato!...</p> + +<p>E caíu redondamente para traz, agitado nas convulsões da gotta, da sua +molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rêde de maqueira, +fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma vida que d'ahi em +deante só poderia ser de tormentos e angustias indiziveis.<span class="pn"><a +id="pg_119" name="pg_119">{119}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0012000000">A licção de "Paleographo"</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0012100000">A Heliodoro de Brito</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0012110000">I</a> </h2> + +<p>A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma +confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e profundo +golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de mãe.—O +commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a Europa, de +concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua resolução<span +class="pn"><a id="pg_120" name="pg_120">{120}</a></span> de levar comsigo a +pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda +favorita de todas as pessoas d'aquella abastada familia actualmente em vesperas +de viagem.</p> + +<p>E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da filha, +na tenebrosa passividade do seu captiveiro,—não obstante a bondade com +que era tratada por todos,—teria de ficar no Pará, separada do pequenino +ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de loiras phantasias, em +meio ao triste vegetar da sua existencia!</p> + +<p>Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora +privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor, antes de +ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por +toda a noite passada em claro após a declaração ouvida pela manhã.</p> + +<p>Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não seria +a crua realidade?</p> + +<p>Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia +seguinte,—com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos na +rapariguinha,—acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de +benevolencias, consolou-a a meio.</p> + +<p>—Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a +familia,<span class="pn"><a id="pg_121" name="pg_121">{121}</a></span> d'ali a +annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia trazer-lh'a instruida, +educada, elegante e feliz,—uma verdadeira senhora. Até ella, Josepha, se +arrependeria então da sua tolice actual, porque reconheceria os beneficios que +tinham querido fazer-lhe á filha. Pois não era certo que todos ali +tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha e que esta era tida menos como uma +<em>ingênua</em> do que como se, realmente, fosse originaria do casamento +d'elle commendador com sua esposa? Confiasse a Josepha em seus senhores e o +futuro mostrar-lhe-ia com exuberancia a justeza do seu proceder.</p> + +<p>Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. +Eliminal-a, porém, d'alma, era impossivel, que não póde um coração de mãe +deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações, lhe roube o +ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos frémitos delirantes +da mais intensa dôr.</p> + +<h2><a name="SECTION0012120000">II</a> </h2> + +<p>A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a +pequena Isaura.<span class="pn"><a id="pg_122" name="pg_122">{122}</a></span> +</p> + +<p>Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas afflicções, +não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as outras escravas +atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de tudo, olhando em frente, +como se divisando estivesse nos curtos longes do horisonte limitado uma visão, +só para ella creada, a attrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas +as forças vivas do espirito e da razão.</p> + +<p>Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás +pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão do +rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.</p> + +<p>O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. +Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser senão da +sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao socio, pedia-lhe +sempre informasse á Josepha estar a filha d'esta com saude, muito desenvolvida +e bastante adeantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar +longamente aquelle homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.</p> + +<p>—Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella +propria.</p> + +<p>Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim +dava-lhe<span class="pn"><a id="pg_123" name="pg_123">{123}</a></span> +precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel deante do +<em>branco</em>, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma coisa.</p> + +<p>Elle pareceu comprehendel-a:</p> + +<p>—Queres que a leia?</p> + +<p>—Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e +preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos +sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão +infantil da filha.</p> + +<p>O socio do Castro leu:</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;">M<small>INHA QUERIDA MÃE</small>,</p> + +<p>Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe envio +milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe +contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da minha santa mãe e o grande +desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde está a +mãesinha do meu coração. Ante-hontem fiz dez annos e o meu protector +offereceu-me uma bonita penna d'ouro, dizendo-me que com ella deveria +escrever-lhe esta carta, minha boa mãe. Tenho passeado muito e gostado immenso +d'esta bella cidade, onde o meu<span class="pn"><a id="pg_124" +name="pg_124">{124}</a></span> prazer seria completo se a senhora aqui +estivesse junto da sua filha.</p> + +<p>Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;">I<small>SAURA.</small></p> + +<p>Paris, 30 de dezembro de 1887.</p> + +<p> </p> + +<p>Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a +carta,—simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras, +comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.</p> + +<h2><a name="SECTION0012130000">III</a> </h2> + +<p>Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia, +transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a +escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes girandolas de +foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo<span class="pn"><a +id="pg_125" name="pg_125">{125}</a></span> enthusiasmadas louvores e vivas em +honra ao glorioso successo. Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas +marciaes diffundiam no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes. +</p> + +<p>Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os +pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regosijo. +</p> + +<p>Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento +publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para todos os +lados, temendo fossem surprehendel-a.</p> + +<p>Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um sorriso +espiritualisado e, tirando do seio um velho <em>Paleographo</em>, abriu-o nas +primeiras paginas murmurando commovida:</p> + +<p>—Vamo' estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p'r'ó mez que vem já +posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?</p> + +<p>E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades +vencedoras.<span class="pn"><a id="pg_126" name="pg_126">{126}</a><br> +<a id="pg_127" name="pg_127">{127}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0013000000">Ao soprar á véla</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0013100000">Ao Sr. José Feijó d'Albuquerque</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0013110000">I</a> </h2> + +<p>Ás 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar +alegremente, recebel-o á porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do +penteador de cambraia branca.</p> + +<p>Quanto se demorára elle! .... Porque não voltou mais cedo? A sua Candinha já +sentia tantas saudades!.... Elle não imaginava o que era estar uma pobre mulher +mettida em<span class="pn"><a id="pg_128" name="pg_128">{128}</a></span> casa, +durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu +idolatrado amigo!....</p> + +<p>E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, +causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriçando-lhe os cabellos dos +braços e pernas.</p> + +<p>Que não podera vir mais depressa,—objectava o marido, sentando-se +n'uma poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscencia +para a mulher.—Bem esforços fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a +jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por espaço de meia hora, +brincando com as creanças, para entreter-se. Os pequenos são altamente +endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as mãos gordurosas.... Depois, +tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e á mulher.</p> + +<p>—E acceitaram?—interrogou a Candida, saltando para as pernas do +marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se graciosos e +mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.</p> + +<p>—Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum, +maximè sabendo que nós a desejavamos para a libertar. Aquella gente está cada +vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que seja o dia de +teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. Continuemos, porém. Estava +eu disposto a<span class="pn"><a id="pg_129" name="pg_129">{129}</a></span> +saír, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, +aquelle sujeito vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabellos que os teus +joelhos....</p> + +<p>—Deixa-te de tolices....</p> + +<p>—Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo +porque levantei-me e saí á viva força!.... Agora,—concluiu +sorrindo,—aqui tem você o seu Roberto, cheio d'amor e paixão, disposto a +matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe +muito, a fazer-lhe as vontades todas!..</p> + +<p>Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos n'uma +vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus labios frescos e +perfumados d'esse olôr exquisito e bom, peculiar ás mulheres que se tratam.</p> + +<p>Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera á porta que dava para o +corredor o moleque Euzebio, com o bule de chá....</p> + +<h2><a name="SECTION0013120000">II</a> </h2> + +<p>Depois do chá, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e, +accommodando-se<span class="pn"><a id="pg_130" name="pg_130">{130}</a></span> +n'uma grande <em>voltaire</em>, poz-se a ler. Ficou a Candida defronte d'elle, +a miral-o.</p> + +<p>Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois +bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os +cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes +descançando nas palmas das mãos, Candida continuava a olhar para o marido com +uma expressão extranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.</p> + +<p>Parecia lançada á contemplação da propria felicidade. Era justamente aquillo +que, annos antes, phantasiára a sua sonhadora imaginação de burguezinha +estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacóvios: viver honesta ao pé +de um marido bonito e de bom coração; estar sempre junto d'elle, para o +consolar em todos os desgostos, rir com elle nas horas de alegria, ser-lhe +sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, sobretudo, contemplal-o a todo +instante, silenciosa, longamente, envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu +enlanguescido olhar de creoula amoravel! Nunca sentira-se tão feliz como depois +de seu casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma só contrariedade +tivera após aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo +no silencio de uma discreta alcôva toda cheia de flôres, rendas, fitas e +perfumes! E com<span class="pn"><a id="pg_131" name="pg_131">{131}</a></span> +que alegria, com que assomos de risonha infantilidade não ficou, na manhã +immediata, quando leu no <em>Diario de Noticias</em> as linhas seguintes, que +decorou á força de as repetir baixinho?—"Uniram-se hontem á noite em +matrimonio, na egreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado +commerciante da nossa praça, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha +do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadíssimo. Foram +padrinhos os srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendonça e suas exmas. consortes. +Aos jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades +a que têm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar em jubilo, toda +desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidíssima pela lembrança de que, +áquella hora, a cidade inteira estava sabedora da realisação de seus intimos +desejos de moça apaixonada!.... D'ahi em deante começaram a viver como dois +anjinhos, como ella queria. Roberto era sempre de uma delicadeza affectuosa e +séria para com a sua Candinha, que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo +seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que +duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas <em>por dá +cá aquella palha</em>... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Ahi estava, +mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más linguas, era uma +jararaca<span class="pn"><a id="pg_132" name="pg_132">{132}</a></span> para o +marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era outro: passava a vida +pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a +mulher que era mesmo uma dôr de coração! Mas com ella assim não succedia, +graças a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador á hora de recolher ao +lar: ás 5 da tarde mandava fechar o armazem, tomava o <em>bond</em> e vinha +logo para junto d'ella, de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã, +afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma +de vida: ella conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudança +futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a +importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se +necessario contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta +assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, estava resolvida! +Quando? agora?—Agora não; deixal-o com a leitura, que está tão +entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o +Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que era tão lindo, tão bom, tão +amado!....</p> + +<p>Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo +apaixonado.<span class="pn"><a id="pg_133" name="pg_133">{133}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION0013130000">III</a> </h2> + +<p>De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do +charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, a +Candida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler n'um +livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido +continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu ardente olhar, +como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixão.</p> + +<p>Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.</p> + +<p>—Vamos dormir?—propoz.</p> + +<p>Candida estremeceu e levantou-se.</p> + +<p>O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.</p> + +<p>No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcôva. Em cima do velador, +uma véla côr de rosa ardia n'um castiçalzinho de porcellana de Sévres com +pinturas allegoricas de Amores alados e Chiméras volitantes. No centro, uma +<em>causeuse</em> de setim azul estava cheia de laços, corpinhos de renda, +brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente dissymétrico. Vidros de +perfumarias com rôlhas de crystal<span class="pn"><a id="pg_134" +name="pg_134">{134}</a></span> reluziam em cima do toucador de jacarandá, +lançavam scintillações cambiantes ao espelho inteiriço do grande guarda-roupa +que havia no meio de uma das paredes lateraes.</p> + +<p>Ao fundo erguia-se a cama,—pudicamente occulta entre as rugas de um +cortinado de labyrintho finíssimo, suspenso do tecto por uma passadeira +doirada.</p> + +<p>Levantava-se d'aquella cama um quê de evaporação de felicidade inenarravel, +que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos do olfacto e da +vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de seu amor, do altar de +sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, sobretudo, ella tinha uma +importancia transcendental: evocava-lhe uma recordação agri-dôce, que fazia-a +sorrir bondosamente depois de nove mezes de agradabilíssima co-habitação +conjugal....</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Quando iam deitar-se, Candida enlaçou a cabeça do marido com os braços +descobertos,—mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de +cambraia enfeitada de rendas do Ceará.</p> + +<p>Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos +effluvios,—essas queridas exhalações de mulher amada,—n'um +enlanguescimento concupiscente.<span class="pn"><a id="pg_135" +name="pg_135">{135}</a></span></p> + +<p>—Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posição, beijando-o na +testa.—Quero dar-te uma noticia muito bôa....</p> + +<p>—Qual é?—perguntou Roberto estreitando-a nos braços.</p> + +<p>—Tenho tanta vergonha!....</p> + +<p>Esta exclamação pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do marido e +dando um pulo para o leito.</p> + +<p>—Anda, fala, menina, que tolice é essa?</p> + +<p>—Então apaga a luz, primeiro; póde ser que ás escuras eu me sinta mais +animosa! ....</p> + +<p>Roberto soprou a luz da véla e disse deitando-se:</p> + +<p>—Agora....</p> + +<p>Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as +pontas dos frios dedos trémulos. Depois, a subitas:</p> + +<p>—É que,—murmurou com umas brégeiras risadinhas +reprimidas,—é que eu.... estou grávida!</p> + +<p>Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,—o +beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vêr convertido em +realidade o seu mais persistente anhelo,—respondeu áquella confissão +prazenteira, na propicia escuridade da alcôva matrimonial....<span +class="pn"><a id="pg_136" name="pg_136">{136}</a><br> +<a id="pg_137" name="pg_137">{137}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0014000000">No baile do commendador</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0014100000">Ao sr. Ulderico Souza</a> </h3> + +<p>Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!</p> + +<p>E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro +sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de varetas de +madreperola.</p> + +<p>—E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a +cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um ardente +olhar vibrado<span class="pn"><a id="pg_138" name="pg_138">{138}</a></span> +atravez o crystal do monóculo petulante.</p> + +<p>—Porque—?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a +fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro esquerdo, +polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa mestra, doutor, +e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!</p> + +<p>—Apezar de ser tão nova assim?</p> + +<p>—A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça +encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes, preferencia, +como compensando-os de não terem o discernimento preciso para bem conhecer e +evitar os revezes da sorte.</p> + +<p>—Mas—é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos +labios com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não +sentisse por sua pessôa—e pelo seu espirito—este indomavel affecto +de que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora—e bem +profundamente!—depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados +conceitos.</p> + +<p>—Devéras?</p> + +<p>—Por certo.</p> + +<p>—Oh! é muito amavel....</p> + +<p>—Digo a verdade.</p> + +<p>—E, todavia, continuo a descrêr...</p> + +<p>—Faz muito mal!</p> + +<p>—Porquê?<span class="pn"><a id="pg_139" +name="pg_139">{139}</a></span></p> + +<p>—Ah! já faz perguntas?—Porque quem confessa descrença em +similhante assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr...</p> + +<p>—O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra +geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. O mundo +tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições bem rispidas +tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das suas opiniões, fazer +que o sr. acredite nas suas proprias illusões phantasiosas. Pois que! +Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao sério as banalidades da +confissão que me cantou ha instantes o seu lyrismo? Estará o sr., +effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se julgue irresistivel, fatal? +Vaidade sem razão, doutor!</p> + +<p>—Como é cruel, minha senhora!</p> + +<p>—Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque +sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para +extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o +sentimento.—Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?</p> + +<p>—Ora essa! Porque não?...</p> + +<p>—Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... +pedantismo.</p> + +<p>—Como diz?</p> + +<p>—Ouça bem: o—seu—illimitado—pedantismo.<span +class="pn"><a id="pg_140" name="pg_140">{140}</a></span></p> + +<p>—E.... mas....</p> + +<p>—Olhe, sente-se aqui, a meu lado—Assim. Conversaremos com +tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as attenções +da sala. Escute-me.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante. Seriam +nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra; uma triste +chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz oscillante do gaz. +Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas +irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o +trafico da escravatura arrancara aos sertões africanos para transplantar no +Brazil.</p> + +<p>Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs brincavamos a +vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as +escravas.</p> + +<p>De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos o +brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no ar a mão +que empunhava a agulha, ou descançavam<span class="pn"><a id="pg_141" +name="pg_141">{141}</a></span> cautelosas os bilros sobre as almofadas onde +pregavam-se as rendas incipientes.</p> + +<p>A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da +<em>cabanagem</em>, o que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais +absoluta tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era +auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de +compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na +concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica, de que +pretendia occupar a attenção dos ouvintes.</p> + +<p>Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma +fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos tempos de +que ella ia tratar.</p> + +<p>Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel obter-se +com o ruido da chuva a desabar nas telhas,—a bôa preta começou a referir +a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade, succintamente, +para o não enfastiar com imprudentes delongas.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Da outra banda do rio, á margem esquerda d'este mesmo Guajará que róla +suas<span class="pn"><a id="pg_142" name="pg_142">{142}</a></span> turbidas +aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n'aquelle tempo,—em +1835,—que era o abrigo d'uma simples familia de modestos caboclos +agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor d'uns 20 annos +sadíos e bem desenvolvidos. </p> + +<p>Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua +simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça era a +mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam negocios +tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente na cidade.</p> + +<p>O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga da +margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro á roça. Pelo São +João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um padre a mais +persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais palpitou e que dava-lhes, +na sua só lembrança, uma como ebriedade olympica de soberanas venturas +transcendentes.</p> + +<p>Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo +rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado á +pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves +transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas falas +singellas e apaixonadas.<span class="pn"><a id="pg_143" +name="pg_143">{143}</a></span></p> + +<p>Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao lado +da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha existencia por +vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o olhar perdido ao longe, +nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em +acastellar illusões, n'umas inflorescencias de amplas phantasias admiraveis. +</p> + +<p>Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade +rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão.</p> + +<p>Mas houve um dia em que a sorte,—sempre inclemente e cynica, +doutor!—pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito d'aquella +invejavel bonança de duas vidas felicíssimas.</p> + +<p>A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas dos +revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e fazendo +victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada +barbaridade.</p> + +<p>Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á visita +dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se póde intentar +contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem querido dissuadil-os da +infamia,—após assistirem á perpetração selvática do attentado sem nome, +soffreram inermes a<span class="pn"><a id="pg_144" +name="pg_144">{144}</a></span> pena ultima, dependurados, um defronte do outro, +em dois galhos de sombrosa sumahumeira!</p> + +<p>Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que +embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa +haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só momento o +rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um assomo de correr a +vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! Admire que sinceridade a +d'aquella paixão, doutor, dias antes apresentada em <em>labiosas</em> +florituras de phantasticos arremessos idyllicos! Que grande coração, o +d'aquelle homem!</p> + +<p>Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a +indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua +noiva,—sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames, ainda +mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos +sicarios!</p> + +<p>Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a Eufrasia +encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na companhia de torpe +mulata animalisada por uma vida de largas materialisações soezes e gordurosas. +</p> + +<p>Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do +cavaquinho!<span class="pn"><a id="pg_145" name="pg_145">{145}</a></span></p> + +<p>Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d'antes, convertera-se em +mattagal e a infeliz Thomazia,—apatetada e envelhecida, coberta de +andrajos e chorosa,—tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraça, +uma creança inconsciente, um filho que dentro d'ella semeára a hedionda +selvageria dos revoltosos.</p> + +<p class="centrado">*<br> +* *</p> + +<p>Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de emoção, +teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr. +Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, agitando-o vagaroso, com uma +certa magestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo ironica:</p> + +<p>—E crê, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um só homem +sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas palavrosas +mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?<span class="pn"><a id="pg_146" +name="pg_146">{146}</a><br> +<a id="pg_147" name="pg_147">{147}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0015000000">NOTAS</a> </h1> + +<p>A CONVALESCENTE.—Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino +<em>croquis</em> ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s. +s.ª levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu respeito +externadas por mim n'um estudo critico das <em>Primeiras Rimas</em>, de João do +Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremódo aggressivo, todo pessoal e +rancoroso.</p> + +<p>Não quiz, então, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em uma +das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, apresento-a +tal qual m'a deu o prélo, antes do inesperado desabrimento de s. s.ª</p> + +<p> </p> + +<p>QUE BOM MARIDO!—Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o +<em>Diario de Belém</em>, declarando-o<span class="pn"><a id="pg_148" +name="pg_148">{148}</a></span> immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo +entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura davam-lhe +ensejo de estampar as <em>moralíssimas</em> "grivoiseries" de Catulle Mendès... +É o caso mais flagrantemente pífio de criterio e coherencia que tenho +conhecido!</p> + +<p>No dia seguinte, <em>A Provincia do Pará</em> publicava esse trabalho.</p> + +<p> </p> + +<p>HISTORIA INCONGRUENTE.—Foi publicada n'<em>A Arena</em> essa narração, +em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de +dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta +muito affectuosa e benevolente.<span class="pn"><a id="pg_149" +name="pg_149">{149}</a></span></p> +</div> + +<h2><a name="SECTION0016000000">INDICE</a> </h2> + +<table align="center" width="80%" summary="Indice"> + <tbody> + <tr> + <td></td> + <td style="text-align:right;">P<small>AGINAS</small></td> + </tr> + <tr> + <td>A<small>LEGRIA GAULEZA</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_9">9</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A <small>CONVALESCENTE</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_21">21</a></td> + </tr> + <tr> + <td>D<small>ESILLUSÃO</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_23">23</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A "S<small>ERENATA" DE</small> S<small>CHUBERT</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_33">33</a></td> + </tr> + <tr> + <td>Q<small>UE BOM MARIDO!</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_45">45</a></td> + </tr> + <tr> + <td>N<small>OITE DE FINADOS</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_55">55</a></td> + </tr> + <tr> + <td>R<small>IO ABAIXO</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_61">61</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A<small>O DESPERTAR</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_69">69</a></td> + </tr> + <tr> + <td>P<small>OEMETOS EM PROSA:</small></td> + <td style="text-align:right;"></td> + </tr> + <tr> + <td> I—<em>Bidinha</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_81">81</a></td> + </tr> + <tr> + <td> II—<em>Paraphrase ossianica</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_84">84</a></td> + </tr> + <tr> + <td> III—<em>O parocho da aldeia</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_86">86</a></td> + </tr> + <tr> + <td> IV—<em>Ao sol</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_89">89</a></td> + </tr> + <tr> + <td> V—<em>Remember</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_91">91</a></td> + </tr> + <tr> + <td>O <small>PREÇO DAS PAZES</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_95">95</a></td> + </tr> + <tr> + <td>H<small>ISTORIA INCONGRUENTE</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_109">109</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A L<small>ICÇÃO DE "</small>P<small>ALEOGRAPHO"</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_119">119</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A<small>O SOPRAR Á VÉLA</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_127">127</a></td> + </tr> + <tr> + <td>N<small>O BAILE DO COMMENDADOR</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_137">137</a></td> + </tr> + <tr> + <td>N<small>OTAS</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_147">147</a></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p><span class="pn"><a id="pg_150" name="pg_150">{150}</a></span></p> + +<h2>ERRATAS</h2> + +<table align="center" width="80%" summary="Errata"> + <tbody> + <tr> + <td colspan="4">Os mais notaveis erros são es seguintes:</td> + </tr> + <tr> + <th style="text-align:left;">Pags.</th> + <th style="text-align:left;">Linha</th> + <th style="text-align:left;">Erro</th> + <th style="text-align:left;">Emenda</th> + </tr> + <tr> + <td>61</td> + <td>5</td> + <td>caximbo</td> + <td>cachimbo</td> + </tr> + <tr> + <td>93</td> + <td>15</td> + <td>embaraçadoramente enleiando-nos</td> + <td>enleiando-nos embaraçadoramente</td> + </tr> + <tr> + <td>93</td> + <td>33</td> + <td>estendidas</td> + <td>extendidas</td> + </tr> + <tr> + <td>107</td> + <td>33</td> + <td>inqueriu</td> + <td>inquiriu</td> + </tr> + <tr> + <td>114</td> + <td>29</td> + <td>vacillanto</td> + <td>vacillante</td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h4>BREVEMENTE</h4> + +<p>será dado á estampa o novo romance de Marques de Carvalho</p> + +<h4>SOROR MARIANA</h4> + +<p>Grande téla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relêvo a um dos +mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formará um forte volume de de +300 paginas impressas a capricho.</p> + +<div>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 ***</div> +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos Paraenses + +Author: Joo Marques de Carvalho + +Release Date: October 27, 2009 [EBook #30341] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-15 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + + J. MARQUES DE CARVALHO + + CONTOS + + PARAENSES + + + + + PAR + + PINTO BARBOSA & C.--Editores + Rua 13 de Maio + 1889 + + + + +Obras de Marques de Carvalho + +VI + +CONTOS PARAENSES + + + + +DO MESMO AUCTOR + + O SONHO DO MONARCHA,--poemeto, 1886, Opusculo + + LAVAS, poemeto, 1886, Opusculo + + PAULINO DE BRITO, perfil, com _fac-simile_ e retrato do biographado, + 1887, 1 vol. + + HORTENCIA,--romance naturalista, 1888, 1 vol. + + O LIVRO DE JUDITH,--versos e contos para creanas, 1889, 1 vol + + + A PUBLICAR + + HISTORIAS D'AMOR,--contos, 1 vol. + + SOROR MARIA,--romance, 1 vol. + + THEODORICO MAGNO,--perfil, 1 vol. + + + + +J. MARQUES DE CARVALHO + +CONTOS PARAENSES + + + + +PAR + +PINTO BARBOSA & C.--Editores +Rua 13 de Maio +1889 + + + + +------------------------------------------------------------------------ + Par--Typ. dos Editores, rua 13 de Maio.--1889. +------------------------------------------------------------------------ + + + + +A MEU IRMO + +Antonio de Carvalho + + + + +AO EXM. SR. COMMENDADOR + +Domingos Jos Dias + +Reconhecimento, Amizade, Venerao. + + + + +Alegria gauleza + + A Jos Verssimo + + +Emquanto esperavamos o almoo,--aquelle almoo s pressas encommendado +no mais que modesto _hotel_ do Pinheiro, fmos dar um passeio pela matta, +sob a sombra das grandes arvores copadas. + +As senhoras haviam ficado na sala do _hotel_, aguando o appetite no bom +cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha. + +O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto +quadrado, de longas suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da +America. + +Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade +nos transportara ao Pinheiro. + +Ainda no havia duas horas que nos conheciamos, e j grande +familiaridade se estabelecera entre ns,--essa familiaridade facil, +intima, passageira, das pessoas que viajam. + +Estavamos ainda a bordo, e j o meu sympathico companheiro, sentado +amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia +do Par, onde tencionava ficar at ao fim da vida. + +Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja +existencia eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por +motivos que eu no tratava de saber, to vivamente me attraa a +curiosidade. + +Quando saltamos para terra,--emquanto subiamos pela escada da +ponte,--convidei-o para almoar comnosco, e elle acceitara rindo,--com +um riso bonacho de quem dotado de alma simples, sem duplicidade. + +Fra elle quem me propuzra aquella excurso matta, para darmos tempo +a que o hoteleiro preparasse a refeio, que eu j preva frugal e +triste, attendendo s condies da terra em que nos achavamos. + +Acceitei-lhe de boamente a proposta, com aquella vivacidade alegre de +quem vive mezes inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e +toma, de tempos a tempos, um bello dia para descanar um pouco, em a paz +d'uma povoao de arrabalde, refestelando-se preguiosamente na relva +odorfera dos nossos grandes e soberbos mattagaes. + +E fmos por ali fra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de +farfalhante cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja +uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo +branco das varias flres sylvestres, cujas ptalas encolhiam-se um +pouco, meio-fanadas pelos raios do sol. + +Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por +onde a vista se perdia no infinito, aps o rio que fugia para o mar. O +cheiro acre da marezia andava no espao, casado ao perfume subtil e +excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e +velhos galhos d'aquellas arvores seculares. Pssaros voavam cleres, +n'um brando ruflar d'azas, soltando pequeninos gritos estrdulos e +alegres. De momento a momento, a curta distancia de ns, lagartos +cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo scco +que juncava o slo. E l muito ao longe, no alto, sobre pedaos de ceu +de um azul deslavado, que ns entreviamos pelos interstcios das ramas, +urubs recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos +seus vos arredondados, pairando como n'uma contemplao enamorada da +terra que os sustenta com suas putrefaces, com seus resduos infames e +nojentos. + +De repente, o meu companheiro disse-me: + +--Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar canado d'esta longa caminhada. + +No tinha a minima accentuao estrangeira; fallava como um verdadeiro +paraense. + +Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de +bruos, com o pescoo estendido e o grande chapu de palha do Chile a +descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle. + +Ficamos calados por alguns minutos. + +Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos +haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra +exhalava. + +Perguntei-lhe de repente, no achando outra coisa a dizer-lhe: + +--O sr. casado? + +Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expresso investigadora de +quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois +respondeu: + +--No... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo. + +--Ah! + +-- verdade. Sou viuvo e tenho-me dado muito bem n'este novo estado de +quem vive sem as preoccupaes do homem casado, que tem uma familia a +sustentar. Bem tolo quem se casa... + +Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos. + +Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traando nas +duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, +partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das +suissas. + +Eu no comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim +sublinhadas por similhante sorriso. + +Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, +apertando-me as costas da mo direita, como para chamar para si toda a +minha atteno: + +--Est curioso, no? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de +arribao que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no +corao, no rosto,--nos labios e no olhar? uma historia muito longa a +minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? No perder +nada com isso; pelo contrario, creio aproveitar alguma coisa com a +moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razo nos +actos que pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificar que muito +certo o rifo: _Tristezas no pagam dividas_, e adquirir a certeza de +que, n'este mundo, o melhor meio de se gosar sade e viver tranquillo, +ter o corao calmo como a bonana e grande como a barriga do +dezembargador Delfino. Ora vire p'ra c as oias e preste atteno. + +Sentei-me. Elle fez o mesmo e comeou, sorrindo sempre: + + +--"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de ris, +herana de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando +logo um socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de +dinheiro, que o meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma +hispanhola rles e velhaca de um hotel da cidade. + +"Um bello dia fallimos,--por causa dessas extraordinarias despezas +capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crsus. Cuida que +apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, +sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu +espirito refractario a tristezas,--o meu corao grande de mais para +fazer-se pequenino e mirrado por to pouca cousa. Um ou dois contos de +ris que pude ganhar em certo negocio, aps o naufragio a que fra +conduzido pela doidice de meu socio, empreguei-os em comprar algumas +joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso +carregamento barato, segui para o rio Madeira, afim de explorar em meu +unico proveito a ingnua simplicidade dos seringueiros. + +"No me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Par, e adquiri +maior carregamento, que fui de novo impingir s remotas regies do alto +Madeira, onde os jacars e onas respeitaram-me sempre a delicada +posio de inoffensivo estrangeiro, que carece de proteco, que no +deve ser offendido nunca em um paiz amigo!" + +Calou-se. Em sua larga bcca de expresso franca e descuidosa estava o +eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraa +para esse homem com toda a enorme fora de um robusto affecto nascente. + + +Accendeu um charuto e continuou: + +--"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu +regressava definitivamente ao Par, trazendo uma solida fortuna amoedada +em bons contos de ris palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da +mala. Tratei logo de cumprir as imposies de um dever: paguei a todos +os crdores da massa fallida, sem excepo de um s! Uma d'essas dividas +da firma era uma anquinha,--uma anquinha!--que meu socio havia comprado +para a sua Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que +estabeleci-me pela segunda vez,--d'essa feita sem socio, para no mais +ser prejudicado por ninguem. + +"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga +paraense,--farta carnao morenamente excitante e grandes quadris +arredondados, divinos,--filha de um subdelegado de policia. Casei-me com +ella alguns mezes depois de a ver. No tinha educao, era estupida, mas +possua a convico da belleza nas frmas, a imponencia da sensualidade +no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto? + +"Dois annos vivi eu nos braos de uma felicidade illimitada. Luiza, a +minha captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em +minha infinita affeio serdia, e cada vez mais revelava-me um +esplendido segredo de sua magnifica belleza de crioula! Era um delirio, +uma loucura dulcssima e purificadora, aquelle amor que eu lhe votava +com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina +casa em que viviamos era para mim uma Capua desejada, onde a minha +languidez encontrava tranquillo bem estar, nos braos da seductora +Luiza. O dia seguinte, que para muitos um enigma atterrador, +apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproduco +inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavssimas de um amor +intenso e bom, como fostes amadas pela piguice da ingenuidade do meu +espirito!" + +Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisao +prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a +arregaar-lhe a rubra ponta do labio grosso e varonil. + +E proseguiu, aps haver accendido o charuto que se apagara: + + +--Eu tinha inteira confiana em Luiza. Jmais a ida de uma perfidia de +sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como +poderiam enganar-me aquelles olhos to bellamente claros e brilhantes, +aquella bocca de perfumosos labios que davam beijos to doces, to +sensuaes, to irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O +meu espirito era o espelho onde se reflectia o meu corao e onde eu +suppunha ver a alma de Luiza, estava realmente a minha, a minha que em +breve tinha de ser to rudemente ferida pelos factos! + +" como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a +phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginao +creadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Maraj, que +viera cidade, e um bello dia, quando, ao car da tarde, regressei a +casa para jantar, no mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro +que eu tinha em casa e fugira com o sobredito _cujo_ mencionado +vaqueiro, como vim logo a saber, por informaes ministradas pela +visinhana, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto, +completo, valente e, na minha valiosa opinio, no de todo incapaz para +o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e +voluptuosa. + +"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as +leis do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de +Maraj, onde, por certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos +braos do cyclopico vaqueiro? Que expuz irriso publica, s chufas da +plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparavel deshonra do +meu nome? Nada d'isso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, +mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas de que se esquecera com a +precipitao da fuga! Veja at que ponto fui complacente. Veja que santa +bondade a minha! + +"A desgraada morreu um anno depois, victima de bri-bri; pois bem; +para mostrar a Deus que no sou de todo mau, mandei por alma de minha +mulher resar, na egreja do Carmo, uma triste missa de _requiem_, a que +assisti com respeito e piedade." + +Calou-se, sem uma commoo no rosto ou na voz. Falava como se tratasse +do tempo ou da cr do cu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E +logo o seu velhaco risinho sarcastico saltou-lhe da bcca e veiu +espreitar-me de sobre o labio superior,--como se fosse um depoimento +vivo da tranquillidade d'aquella alma em face de todos os +extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella haviam passado, sem +conseguirem emocional-a. + + +O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me +para que acompanhasse-o, seguiu em direco ao povoado, cantarolando +esta pandega quadra do _Dia e a Noite_, de Lecocq: + + _Minha mulher, que Deus levou,_ + _Foi-me infiel constantemente;_ + _Nada d'isso me acabrunhou:_ + _Levei o caso alegremente!_ + + + + +A convalescente + + Ao dr. Alvares da Costa + + +Estava pallida e triste, encostada levemente grade do camarote, +n'aquella noite de estra. + +Os seus olhos, negros como a sda que o seu delicado corpo vestia, +divagavam pela plata, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia +uma d'essas melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e +idaes, bellas, todavia, mesmo na falsidade da sua creao,--vivificada +por um mysterio e conduzida quella sala d'espectaculo, onde +ostentavam-se as formosuras das moas da moda e as austeras sobrecasacas +dos burguezes, sob a intensa luz do gaz. + +E ella estava sempre pallida, encostada levemente grade do camarote. + +Nos labios tinha ingnuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expresso da +sympathica physionomia. + +Um engraado diabrte, primo d'ella, brincava-lhe com o leque. + +Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da +alma uma commoo de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada +d'esse logar, d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para +a plata, cujo ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos +lenos rendados, dos perfumosos lenos discretos das jovens damas.... + +E aquella encantadora creana que, sempre triste, encostava-se grade +do camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do +soffrimento, que tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia +austeramente sria sob a luz intensa do lustre..... + + + + +Desilluso + + A Fontes de Carvalho + + +A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem +sonhando amores e descobrindo tmidas paixes nas palavras alegremente +zombeteiras dos moos que fingem cortejal-as por distraco. + +Tinha ella a tez,--enrugada e molle como a casca do janipapo +maduro,--salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; +encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de p de arroz, +comprado sempre na _Loja Mariposa_, da qual o co-proprietario +Affonso,--o sympathico Affonso,--vendia-lh'o com muita dse de +_rclames_ e chamadas de atteno para a superioridade da fazenda. + +Usava uns vestidos fra da moda, mal feitos, com algumas ndoas, nos +quaes primavam os enfeites vistosos,--uma garridice da sra. d. Joaquina. + +O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refgos da +engelhada epiderme,--posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a +cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos +edade. + +As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco +lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna +do direito de aspirar a um bom casamento"--como ella pensava e dizia mui +confidencialmente a certas amigas particulares. + +Sempre houve maledicentes no mundo (salve a _chapa_!): foi por isso que +uma d'essas amigas, tendo tido uma altercao com ella, retirou-se de +seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa +personagem pintava os cabellos, que, se no recebessem quotidianamente +os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, j deveriam estar +soffrivelmente russos, quando no grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, +suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente +inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente. + +A sra. d. Joaquina possuia uma educao mediocre, apenas sufficiente +para conhecer os seus deveres de "moa solteira", quanto educao +moral; quanto intellectual, lia com desembarao e alguns tropeos +prosdicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres +namorados que tivera antigamente. + +Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu _spleen_ de +senhora entrada em annos e votada lastimosa condio de _tia_. Ai! A +pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de no haver em sua mocidade +casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente +por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, +escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella no acceitara +o amor d'elle, sonhando desposar um joven baro, muito rico e elegante, +como um que conhecera n'um romance do inspido Ponson du Terrail. O +baro, porm, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o +Guedes, n'um momento de lucida reflexo, resolvera viver em calmo e +economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, +mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de +faceiros quindins, nas horas de amor, e bas tortas de camares seguidas +de compotas de delicioso bacury, sobremesa. + +Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jmais tivera informaes +exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se +vagamente que um fra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, +talvez pela seduco d'alguma _yra_ encantadora. Do outro constava +apenas que partira para seu paiz natal,--Portugal,--afim de ir saborear + lareira, nos longos seres de inverno,--quando o suo sibila em as +grandes chamins ennegrecidas,--os succulentos ncos de paios da +Beira,--d'aquelles paios to glutonamente decantados pelo illustre poeta +Joo Penha. + +Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a +dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas +e dulurosas esperanas de captivar o rebelde corao do Francisco da +Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos +Mercadores. Este, porm, parecia no partilhar das mesmas intenes, +porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem +pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe +ratoeiras amorosas: mandava-lhe flres, fazia-lhe presentes de toalhas +de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o caf quando elle ia +casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accsos aos charutos, +roando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixo. + +Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente +contra o Francisco, quando, a ss, no momento de estender-se na sua fria +rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus +actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor. + +Tal era o estado do corao da boa senhora na poca em que o Natividade +apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal. + +A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia to natural, +attrau as boas graas da digna solteirona, que logo sympathisou com +elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga +sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero." + +Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, +desfazia-se nas mais requintadas delicadezas. + +Levada pelas erupes d'aquelle seu corao vulcanico, ella comeou a +amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o +Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moo as amorosas +manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o +parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever. +Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora. + + ---- + +Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, j +no Par, apanhasse alguma constipao, Raul adoeceu, ficou pllido, +perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, aps o jantar, sentiu uma +suffocao, seguida de agudas dres na parte interna do thorax, as quaes +communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, +curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo. + +--Santo Deus, que vejo?!--exclamou o tio, assustado.--J, um medico, +depressa! continuou, a correr attonito pela sala.... + +O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou +o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendaes +sobre o tratamento. + +Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porm, +teve uma verdadeira e forte hemoptysia. L foi o moleque chamar +novamente o doutor. + +Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que +habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que +podesse. Assoberbado por to assustadora recommendao, o bondoso +Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete +que do Par sau seis dias depois. + +No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando +verdadeiras lgrymas de d e de saudade, tirou do bolso uma carta +lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe: + +--Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faa o que +lhe peo. Mas, antes no a abra, pelo amor de Deus! + +--Sim, minha senhora.... Os seus pedidos so ordens para mim.... Adeus! + +Chegando cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso p de +restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, +resguardando-se de tudo quanto podsse fazer-lhe mal. Estes uteis +entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina. + + ---- + +Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os +medicos lhe recommendassem que no viesse ao Brazil, tratou de procurar +emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se +caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer +cobranas pelas provincias. + +Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excurso,--ao +Alemtejo,--estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mo +no bolso d'um _paletot_ que s vestia em viagem, encontraram seus dedos +um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda +amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe dra a sra. d. +Joaquina. + +--Ah! que esquecimento o meu!--exclamou.--Que juizo no ter feito a meu +respeito a impagavel senhora.... + +E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto. + +"Meu bom amigo,--leu.--Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito +_afflue-me_ aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: +amo-o, amo-o, com todo o ardor de que capaz o meu ardente corao! +(Isto copiou ella do romance _A Caridade Christ_, de Escrich,--pensou +Raul). Peo-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se _fui_ por si acolhido +o meu amor. (Aquelle _fui_ que era genuinamente d'ella, s d'ella; o +Raul bem o conheceu). Espero _ancioza_ a sua resposta, com a qual o meu +amigo _remeter-me-_ meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de +presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do corao de sua +eternamente,--JOAQUINA." + + +Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle +_modelo_ d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo +fez-se mais serio e: + +--Ora bolas!--disse.--S os cabellos encantavam-me, por serem to pretos +e lustrosos.... E era falsa aquella cr d'azeviche!.... Que desilluso!.... + + + + +A "Serenata" de Schubert + + Ao dr. Augusto Meira + + +I + +No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, Joo estava deitado na +rde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, luz branda de uma +vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do +Capibaribe, na Casa de Deteno, derramando pelo ar um spro de +tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo +dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte, que vinha de +Olinda, entrava na sala, e d'esta seguia para o quarto de Joo, agitando +a luz dentro do _photo-mobile_. + +Na invisivel palpitao da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na +visinhana. Fanatico adorador da musica, Joo fechou o livro e prestou +atteno. Eram as primeiras notas da _Serenata_ de Schubert, esse +magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composies! De +um pulo, achou-se abaixo da rde, fra do quarto, ao balco de uma das +janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se grade, com o +rosto descanado na mo direita, dispondo-se a ouvir a sua pea predilecta. + +Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, +como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava +no azul-ferrete do co, por entre multides de estrellas tremeluzentes, +uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes +montes de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima +saam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas +janellas abertas. + +Como todas as musicas sentimentaes, a _Serenata_ de Schubert possue isto +de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro +da meditao tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que so +sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma. + +Foi por isso que Joo, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em +seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e +redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu +querido Par, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella +que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moo +estudante de direito recordou-se,--e com quantas saudades!--da magistral +execuo que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro +allemo,--uma execuo toda sentida, interpretando os minimos segredos, +com dulcssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao +espirito e suaves langores ao corpo. + +Entrou Joo a imaginar que estava no Par, ao lado de sua querida +companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta, +extasiado na audio d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma +transformao imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos +ouvidos d'elle um som particular, intimo, que o commovia todo, +chamando-lhe duas lgrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa +tambem, sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa +fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual dra-lhe outrora +tantos prazeres, e que tinha presentemente a expresso poetica, porm +saudosssima, de uma tela de Watteau.... + +Esse quadro, eil-o: + + [1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata + est hoje casada com o heroe da presente narrao e pde gabar-se + de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais + leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga + de todas as mes. + + +II + +Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sar no relogio da varanda. +Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a +familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sof. +Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes spros de brisas cheirosas +e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de +transeuntes. A espaos, uma voz, um grito chegava at sala, revelando +que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario +do nascimento de Christo. + +Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora +sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o clo de sua +virtuosa me, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, no +afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um +lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal. + +Contemplando este quadro rubenesco, Joo pensava nos santos prazeres do +lar,--elle, que era um msero orpho, um desgraado pari do +amor!--emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle, +falava-lhe compungida crca de uma infeliz mulher que, pela manh, +recebera de suas pequeninas mos bemfazejas, roupas e sustento para os +filhinhos. E dominando a todos, no meio do sof, com a expresso +suavssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente +lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas +sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moo, ao Theodoro, +aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir +vrias scenas a que assistira em sua passada vida commercial. + +Uma exhalao de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a +tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depe +muitas confianas no futuro. + +De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz +ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra: + + Folguem todos n'esta noite, + Venha a festa sem egual: + --Hoje em nada se repara, + Porque noite de Natal. + Hoje em nada se repara, + Porque noite de Natal. + +E a guitarra chorava em _tom menor_, fazendo cro ao _ritornello_. A voz +de um agradavel _tenor_ prendeu logo a atteno dos que estavam na sala: + + Esta noite abenoada + Pertence aos que tm amor; + No presepe bethlemita + Veiu ao mundo o Deus-Senhor. + +Novo _ritornello_ choroso na guitarra. + + Por isso, moos e moas, + Entregae-vos ao prazer, + Emquanto no vem a edade + Vossa fronte encanecer! + +Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra. + +Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantra a cabea, n'uma +energia de movimento, com as narinas afflantes, os anneis da cabea +tremendo-lhe sobre os hombros. + +--Tlo!--exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao +longe, na extremidade da rua.--Pois que venha c, a ver se os velhos no +tm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dir ao +depois se eu no amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o +meu Theodoro e innocentinha que ahi dorme sob as benos do meu olhar!.. + +Um soluo gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a +encarnao do carinho e, muito piedosa e pura,--qual um raio de sol +illuminando a face de uma estatua antiga,--foi beijar amoravelmente a +fronte do ancio.... + +Que no se affligisse, pediu-lhe affagando-o;--que no dsse importancia +a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade +elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E +demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, +no valia a pena entristecer-se.... + +--Para o lado os pezares!--terminou sorrindo.--Como distraco agradavel +a todos, vou tocar ao piano a _Serenata_ de Schubert. + +J se tinha Joo levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano, +abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas, +sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar. + + +III + +E comearam ento as primeiras melodias da _Serenata_. + +Joo cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audio da formosa pea, +to bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica +comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma +figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, +apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginao do +moo. E surgiu ento um joven de bandolim em punho, debaixo dos balces +floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem +germanica, onde os robles farfalhavam borda dos lagos tranquillos, +sobre cujas superficies grandes garas deslisavam elegantes, ruflando as +brancas pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um +canto magico de yra amazonica, sentida como uma recriminao paternal, +doce como um beijo apaixonado. De seus labios cr de papoula +distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade +de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castell formosa, occulta +entre os reflhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador +tinha um no sei qu de melancholico, um tal cunho de poesia dolente, +que Joo emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginao lhe +descrevia, que no pde deixar de cantarolar baixinho, com um meio +sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretao de Dhalia: + + _"O Chtelaine,_ + _Entend ma peine!.._" + ................... + ................... + +Dhalia executou o _morendo_ final da Serenata. Joo acordou da sua +_rverie_, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico +bailava um risinho engraado. + +De p, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante +illuminado n'uma expresso de ineffavel ventura. Dos labios entreabertos +parecia escapar-se-lhe uma beno muda, que se completava pelo gesto das +mos erguidas e espalmadas no espao!.. Era o pae a abenoar o futuro +feliz dos filhos idolatrados! + +......................................................................... + + +IV + +Estava n'este ponto a saudosa recordao do moo estudante, na janella +do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano +da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da _Serenata_. + +Joo sentiu-se commovido por aquella musica inspiradssima, que lhe +avivra to grata lembrana de seu venturoso passado,--agora que elle +estava ausente do querido slo natal, onde moravam todos os que +possuiam-lhe a flr do affecto. Ergueu os olhos ao co, n'uma +necessidade de soltar livremente o espirito pela amplido infinita do +vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilaes, o crescente de +lua vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flcos de +nuvens seguiam, muito calmos e ethreos, pelo espao adeante, +projectando sombras cinzentas sobre o calamento da rua. Da +margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se +bradando--_alerta!_-- sentinella. + +Ento, por um impulso de agradecimento, o espirito de Joo partiu pelo +infinito a fra, chegou ao Par, atravessando a cidade, e foi +ajoelhar-se piedoso modesta pedra gradeada que sella o tumulo +venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva. + + + + +Que bom marido! + + A Juvenal Tavares + + + _No desejars a mulher do teu proximo._ + MANDAMENTO DE DEUS. + +Havia j tres annos que estavam casados. No tinham filhos. Viviam +felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente +pintada a cal, onde o sol da manh brincava alegremente n'umas +scintillaes que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante +que para ella dirigisse escrutador olhar. + +Elle era um velho quarento, amanuense de secretara, obeso, rubicundo, +de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que +tivra,--tempestuosa e poda nas orgias,--encanecera-lhe completamente +os cabellos da cabea, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se +numerosas rugas sobre a pelle cr de ginja. + +Ella tinha dezoito primavras,--para me servir d'uma velha expresso do +romantismo;--ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e +marotos. Tz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador +descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais +alvos do que os de um co da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste +da anglica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam +bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vados,--d'esses +namoradores enfatuados que abundam por toda a parte. + +O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manh, s 8 horas, +depois do respectivo e parco almoo, o sr. Bonifacio escovava com a +manga da sobrecasaca o solenne chapu alto, dava um _chcho_ mulher e +saa para a repartio com o passo do empregado publico:--impassivel e +cadenciado. + +Elvira acompanhava o esposo at porta da rua, fazia-lhe uma pequena +caricia e voltava varanda, afim de dar algumas ordens crca do +jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeio, a sentar-se +machina de costura, que dava-lhe no diminuta receita para as despezas +diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio +formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de +tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a +_bond_ em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth, +algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. Joo e mais outras +regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam encantadora +esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher +bonita e nova. + +Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha +seus adoradores,--rapazes toleires, aos quaes ella, diga-se a verdade, +no ligava muita importancia. Entre esses moos, quem mais assiduamente +a requestava era um tal Jacyntho,--um _leo_ conquistador que falava +pelos cotovllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do +namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonra-se por Elvira poucos dias +depois do casamento d'ella, por occasio d'um passeio a Benevides. Desde +essa poca, o pobre _namorado sem ventura_ passava todas as tardes pela +casa do Bonifacio, quando Elvira a para a janella, emquanto o marido, +na varanda, jogava o slo com o taberneiro da esquina e o visinho da +direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um +cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribua a este ultimo e +conservava-se muito sria, muito digna, sem corresponder quelle. +Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual +entrevista, na qual Elvira j parecia interessar-se, pois que tambem no +deixava de ir para a janella assim que, l na varanda, o sr. Bonifacio, +o taberneiro e o vizinho comeavam no _passo_ e no _blo_. que a +interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que no +poda se contentar com os ss affagos morosos e frios do velho +Bonifacio. No obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se +quillo a que chamava "uma distraco", mais para satisfazer uma vaga +curiosidade do que para commetter um crime. + + ---- + +Jacyntho no era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo +a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em +pedra dura, tanto d at que fura." Tinha confiana no futuro, que +resolvera, com vantagem,--aquelle interessante problema de amor. + +Uma tarde,--era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devras admirado +por ver que a sua querida no estava janella. Olhou para os dois lados +da rua e no enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a +apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um s vivente se via. + +Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha +mulata, que saa da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou: + +--Onde est a d. Elvira, minha filha? + +A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabea para o peito, metteu +na bocca o index da mo direita, conservando-se calada. + +--Vamos, fala, toma um tosto.... Onde est a d. Elvira?--insista o +_leo_ fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena. + +Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuados da +fregueza e disse, ainda meio acanhada: + +--Est l dentro.... + +--E o sr. Bonifacio? + +--Sau. + +--Dou-te outro nickel se fres levar uma carta tua senhora, queres? + +--Eu quero.... + +Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, +por cautella, no datra nem assignra. Entregou-a mulatinha e +conjuntamente outro tosto. + +Depois seguiu pela estrada adeante. + + +Elvira no deu resposta quella carta, que lhe revelra o grande amor +que por ella sentia o Lovelace paraense. Este no desanimou: deixou de +passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, aps os quaes voltou, +seguindo pelo passeio, rente janella. Sacudiu-lhe ao clo nova +epstola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira no +pde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda +receiosa, na qual confessava que o Jacyntho no era-lhe indifferente, +mas que devia abrir mos quelle amor, porquanto a sua "posio de +mulher casada no lhe permittia to gratas liberdades." + +D'ento em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a +passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para +os bolsos d'aquelle. que houve uma tarde em que Elvira entrou a +confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto +e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa +correspondencia criminosa. + +Havia j alguns mezes que o amor dos dois no tivra outras expanses +alm d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais +exigente. + +Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, +de volta d'uma visita que fra fazer a seu chefe de seco. Transpondo o +limiar da porta, encontrou a mulatinha que saa apressadamente, +escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a +atteno de velho curioso. + +--Que levas ahi?--perguntou. + +--No nada....--respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos +paraenses. + +--No mintas! Eu vi no sei qu!--bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo +brao e apoderando-se do objecto. + +Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu: + + +"Meu amigo, depois d'amanh, meia noite, meu marido vae ouvir a _missa +do gallo_ em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de +conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha + 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja. + + ELVIRA." + +O Bonifacio _subiu ao arame_; ficou da cr da purpura e sentiu uma +violentssima dr de cabea. Teve impetos ardentes de ir assassinar a +esposa infiel; reflectiu, porm, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe +appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria +vingana. + +--Toma, leva,--disse entregando a carta rapariga. + +E entrou. + + ---- + +Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgases de moos +d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belm em direco s differentes +egrejas onde se deve rezar a _missa do gallo_. + +O sr. Bonifacio, que levantou-se ultima pancada das 11 horas, sae para +a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dr de cabea...." + + 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos +ligeiros at chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o +Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. +Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de +contentamento, pregosando os prazeres que a fruir na conversao de +Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado. + +Era o respeitavel sr. Bonifacio, que sando de traz da mangueira onde +occultra-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivra a +lembrana de namorar-lhe a mulher. + +Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio +pouca agilidade que ainda possua e acompanhou-o, continuando a soval-o +fortemente, n'uma agitao febril.... + +O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os +vizinhos haviam sado para a _missa do gallo_. + +Quando canou, quando os braos negaram-se a continuar, o honrado +amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao +Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi modos: + +--V-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! No torne a car na +asneira de namorar moas casadas! + +E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida +de medo. + + + + +Noite de finados + + A Manoel P. de Carvalho + + +O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos +de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. +Eram oito horas da noite sob um co trevoso como a tristeza d'aquellas +pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos parentes e +amigos para sempre occultos debaixo da terra, sobre a qual compridas +filas de vlas accsas lanavam uma claridade intensa, que ia esbater-se +ao fundo, na escurido do mattagal. + +O ar estava impregnado do perfume das flres--piedosamente depostas em +cima das sepulturas por mos amigas,--e do cheiro mystico da cra queimada. + +Ao longe, direita da ermida, uma banda de musica executava +plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades +lugubres faziam suspirar as velhas beatas,--aspirando a uma outra vida +desconhecida, alm d'aquelle firmamento negro, no logar onde a +omnipotencia incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a +sua magestade. + +Entretanto, de espao a espao, grandes ondas de povo invadiam o +cemiterio. Este, quella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas +que receiavam um atropello, saam enfadadas, murmurando indecencias. + + porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente +com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas +lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de +vestes sujas e mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em +seu favor a caridade dos visitantes piedosos. + +Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam +olhares torpemente libidinosos s moas que entravam seguidas de suas +mames, n'um andar assustadio e saudando um ou outro conhecido com um +meneio de cabea. Mais adeante, n'um canto escuro, uma rolia mulata, +com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de +physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e com a cabea coberta +por um descommunal chapu alto. Como contraste, no muito longe, estava +uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados grade +ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vlas em castiaes de +vidro. + +Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma cora de perpetuas rxas, +corriam lgrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas +do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados.... + +Era sem duvida alguma viuva que pagava memoria do finado marido alguns +annos de amorosa e suavssima coabitao na terra... + + esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em +negro caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e +toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma +senhora de cabellos grisalhos, immovel, calada--como evocando passadas +scenas de prazer--sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia +no funeral tristonho.... + +O co, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiada. Grandes +nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as +bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluo d'almas +penadas fazia farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar +s supersticiosas moas que estavam no cemiterio.... Agora calra-se a +orchestra. + +Subira um prgador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de +grande cma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos +tragicos, uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade +mundana e a perenne bemaventurana celestial. + +As mulheres,--mes, filhas, esposas,--que o ouviam, ficavam caladas, +muito srias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto +bronzeado; no intimo, porm, no fundo da consciencia, levantavam um +brado de maldio quella felicidade que lhes roubra a companhia dos +entes queridos e amoraveis. + +Um homem de cabea encanecida, que vagueava levando pela mo uma creana +de tenra edade,--um lindo e pallido orphosinho,--voltou-lhe costas +nervosamente, soluando, e fugiu para junto de um pobre tumulo +tranquillo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma s +phrase:--_ minha esposa...._ + +No co, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como alegrias fugitivas ou +prazeres expulsos, erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de +miragens variadas. + +A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena +magestade tumular, que impoz vago soffrimento ao corao de todos. Os +brandes e vlas perderam o brilho, ficaram como pyrilampos +lantejoulando os sepulchros sob o luar diaphano, a cuja claridade +continuava o pregador a recordar a omnipotencia de Deus. + +Os _bonds_ estacionados na praa encheram-se de passageiros. Minutos +depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de +senhoras tristes, com physionomias de soffrimento. + +Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava +illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a +penultima da festa annual. + +Ento, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma +saudade memoria de um amigo, d'um irmo, d'um pae, desciam agora ao +centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as +casas de jogo,--propellidos pela fascinao demoniaca e terrivel da roleta! + + + + +Rio abaixo + + (Ao dr. Gaspar Costa) + + +A cana seguia mansamente, per si s, impellida pela correnteza. + +Sentado pra, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava +com o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas +das bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do +sol, que escondia-se por traz da ilha das Onas. + +Na ppa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o _senhor moo_, +abanando-se com uma ventarola de pennas vermelhas, ao lado da _senhora +moa_, que espreitava para fra, por um dos pequenos postigos lateraes. +A seus ps, dormitava o co Murur, com um pedao de lingua escarlate +cada para o lado esquerdo, entre os dentes meio visiveis. + +O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos +mattagaes da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam at +embarcao, n'uma suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de +alegre ternura os dois viajantes. + +--Que bonita paizagem, Antonio! + +-- certo! Razo tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da viagem. + +--Quando chegamos ao _sitio_? + +--s 9 horas, isto , d'aqui a tres ou quatro. + +-- pena chegarmos to cedo! + +--Dizes bem: vamos to contentes.... + +E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario. + +O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns +momentos, voltou o rosto, embaraado, sentindo queimar-lhe as tostadas +faces um ardor de sangue equatorial em ebulio. Puxou do cachimbo +demorada _fumaa_, para tranquillisar-se. + +Os outros, os dois recem-casados,--porque Antonio e Luiza eram noivos: +tinham-se matrimoniado quinze dias antes,--experimentavam, debaixo da +tolda, uma sensao de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle +magestoso socego, sobre o Tocantins, dentro da embarcao. +Felicitavam-se mutuamente,--com o olhar cheio de caricias,--por haverem +podido esquivar-se vida agitada que levavam em Belm, sempre rodeados +de visitas, cujas conversaes banaes, nullas, pouco interesse lhes +davam. Mas agora,--como iriam viver felizes durante aquella quinzena de +fuga, em a tranquillidade bucolica da roa, sosinhos, passeiando sem +companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, +lavando reciprocamente as mos na agua azulada e murmurosa dos +igaraps!.... E que festas fariam hora do jantar, comendo peixinhos +pescados por Luiza, e pacas, rolias de gordas, caadas pelo Antonio nas +mattas do _sitio_?!.... + +Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, +estas idas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem +attenderem a que o sol no mais vibrava os lategos luminosos no dorso da +corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da cana, afim de +gozarem da virao fresca e cheirosa que agitava n'um movimento +descompassado as velas mal colhidas ao mastro. + +Sempre assentado pra, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o +caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com +o sol, que deixra um rastro avermelhado no co, onde agrupavam-se em +desordem nuvemzinhas cr de ncar, violetas, azuladas, plumbeas, cr de +perola. Do lado opposto, levantava-se a noite, n'um andar manso, +mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo bruxoleante. + +O gorgeio dos passaros cessra na ilha das Onas, que j tinha ficado +atraz, a longa distancia; s chegavam cana os compassos em _andante_ +do canto de um carachu que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente +qual passou a embarcao. + +--V ahi no meu relogio que horas so, Jos, ordenou Antonio ao caboclo. + +--Seis e trinta e oito, _sinhor_. + +--Oh! ento saimos d'aqui, filha, vamos tomar fresco. + +Vieram para fra. + +Luiza soltou uma exclamaosinha, sonora como um soneto de Paulino de +Brito, engraada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um +timbre argentino como um filete de agua morna caindo n'uma banheira +d'oiro lavrado: + +--Ah!--fez ella. + +E deixou-se ficar de p, encostada ao hombro do marido, extasiada, em +frente ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos. + +Largo em aquelle sitio, achamalotado pela brisa, o rio abraava +numerosas ilhotas rasas, cobertas d'uma vegetao opulenta, que +esbatia-se n'uns tons escuros, quasi indecisos, no limite do horisonte. +Um socego de tabernaculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do +co, onde as estrellas comeavam a scintillar como as pedras preciosas +d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem occupava n'esse instante um +espao do firmamento. Ao longe, direita da terra firme, tremulava uma +pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, esgueirava-se pelo +costado da cana n'um murmurio dolente. A sbitas, na solemnidade do +silencio, resoou um grito d'ave nocturna. + +--Accende a lanterna, Jos,--disse Antonio ao caboclo, que obedeceu +logo, voltando depois sua posio habitual na pra, fumando. + +Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da +embarcao, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes +jarros com roseiras flordas. + +Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido +foi ppa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, +conchegando-lh'o muito ao pescoo, amoravelmente. + +Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escurido. Do logar em +que achavam-se, apenas viam na pra um ponto vermelho como um +carbnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornra +invisivel na densidade das trevas. + +Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solido: entraram a conversar +baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de +to agradaveis recordaes. Era para ambos uma innarravel felicidade +poderem pairar, assim a ss, das peripecias do curto namro, dos longos +annos que elle passou a amal-a silenciosamente, das emoes e +impaciencias do dia do casamento, quando approximava-se a hora em que o +parocho de Sant'Anna teria de unil-os. + +Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, +n'uma excitao dos sentidos. Um movimento instinctivo,--inconsciente, +talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,--uniu-lhes os labios +n'um prolongado beijo de paixo, vibrante como um cro juvenil. + +Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posio. + +Poz-se a pensar nas passadas e saudosas pocas da sua felicidade, fruda +com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetao selvatica +e cheia de grandiosidade das florestas amazonicas... + +E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosssima, respondeu +quelle beijo nascido de duas bccas amantes no silencio de to linda +noite paraense. + +Entretanto, a cana seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela +correnteza. + + + + +Ao despertar + + Ao sr. A. R. d'O. Gomes + + + _Nem tudo o que luze ouro._ + PROVERBIO POPULAR. + + +I + +A alcova nupcial em noite de noivado. + +Um perfume suave de flres volita invisivelmente pela atmosphera da +pea, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas +variegadas em cres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e +como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente +cerradas... Uma lmpada com vidros baos, cr de leite, esparze branda +luz em torno, sem crepitao, n'uma solenne impassibilidade, que d +certo ar magestoso ao silencio do recinto. + +Dois pares de pantufos de sda branca escancaram as cavas como n'um +bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos ps da cama. + +Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flres de larangeira repousa +meio escondida sob um leno de fina baptista com um monogramma bordado. + +Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pllida e +trmula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira +preguiosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho.... + +Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se +lhe antolhavam na vida que ia comear em breve, deixou-se escorregar +pelos finos lenes e descanou a bella cabea de paraense morena, em +cima do travesseiro macio como a flr do algodoeiro.... + +E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a +passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios +contrahidos n'um leve rictus de satisfao, de ventura. + +Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma +pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado: + +--Permittes?.... + +E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaados, sonhando +felicidades paradisacas, um perfume suave de flres volita pela +atmosphera da pea, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde +as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e +como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente +cerradas. + + +II + +O casamento realisado n'aquelle dia fra o epilogo de um longo namoro de +seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como +indisposies subitas, brigas e malquerenas de alguns mezes por causa +de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de no sei que +espirito benefico, pazes feitas com abundantes expanses apaixonadas, +reconciliaes ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n'um +enlevo. + +O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, +brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfao do homem +rico que vive contentssimo da sorte. + +Creara para a filha um ideal--um casamento com um bacharel. Similhante +aspirao, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa +roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,--a +mulher morrera-lhe de parto, ao dar luz um ente rachtico, +inviavel,--deixava a filha nos sales e ia procurar as mesas de jogo, +para encurtar o tempo. + +Assim andaram os dois, por espao de muitos mezes, em verdadeira +peregrinao cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz +attendel-os e appareceu-lhes na frma de um elegante mancebo, que dias +antes chegara de Pernambuco, sobraando o pergaminho que lhe conferia o +titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das +graas de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos +d'ella,--duas blas d'onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas +por longos cilios sedosos;--os longos cabellos d'bano, ondeando-se-lhe +pelas espaduas de farta carnao; aquelle bonito torso de opulentos +seios na apojadura da juvenilidade;--tudo n'ella prendia-lhe o enamorado +espirito em os laos d'uma paixo to sincera quanto profunda. Mas, +sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a +grandes xtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso +espiritualisado e prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam +as carminadas gengivas d'ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas +covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d'elle, como desejando +magnetisal-o. + +Uma tarde, aps haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, +foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e to enthusiasmado +sentiu-se, que sentou-se secretria e entrou a fazer uma poesia,--elle +que jmais fizera versos!--uma poesia em que abundavam as +palavras--_seductora virgem_, _divinal espirito archanglico_, em uma +terrivel mescla d'enormes ps quebrados, com grande escandalo das regras +formuladas por A. Feliciano de Castilho. + +Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial. + +Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo s pensava nos dentes da +noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o +encantavam. + +E phantasiava um capricho, cuja lembrana era sufficiente para lhe dar +ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o +primeiro beijo que dsse mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca! + +Afinal, aquelles dentes eram uma obsesso para Alfredo. Para qualquer +parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula +sorrindo-lhe amoravelmente, incitando-o a uma tentativa agradavel de +roubo de um sculo. O colete, que elle enfiava n'esse instante, assumia +a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes +pulsava o corao, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu +entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que j era tempo de ir +para a egreja, estava to abstracto da vida regular, to concentrado em +suas phantasiosas meditaes, que abraou-o commovido, murmurando: + +--Que bella dentadura, que tens! + + +III + +Na egreja e ceia opipara que seguiu-se ceremonia religiosa em casa +do velho pae de Paula, durante a longa e--para elle,--enfadonha +conversao subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros, +Alfredo s pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com +a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao +ouvido, com um sorriso eloquente por traz do leno amarrotado na palma +da mo, opinies em nada favoraveis sua reputao de sobriedade em +assumpto de succo de uva.... + +--Que te parece o _gajo_, hein?--diziam.--Pois isso l cousa que se +faa? Embebedar-se no dia do casamento.... + +--Que escandalo! + +--Grande c.... O que elle merecia eu bem sei. + +E seguiam por esta norma os commentarios--todos reumando idas +gordurosas e indecentes. + + ---- + +Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente, +muito lisongeiado pelas felicitaes que lhe foram feitas, com +acompanhamento de expressivos belisces pelos braos e nas gordas +bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, +impassivel como um abbade aps a ceia, fumava a um canto, affagando com +amortecido olhar a fumaa do charuto, alm de forcejar por combater a +fora dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razo do +abuso que antecedentemente fizra das bebidas, mesa, quando brindra, +com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do +partido e ao Manoel do Rosario, o commerciante que no trepidava em +tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasies de aperto.... + + +Que elle, Alfredo, devia, e com muita razo, sentir a impaciencia +espicaar-lhe as costas,--ponderou de repente o sogro, sorrindo +malicioso;--que no se enfastiasse, porm, visto como ainda l estava na +alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a _toilette_. Era natural +aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por +ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de +hymineu elle tivra nos braos da sua Sancha, uma odivellense tentadora +como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a +evocao da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata +amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas! +Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a +felicidade d'aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou +moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse, +que lhe no desse trabalho em demasia para no a fatigar: o dte d'ella +unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma +existencia descuidosa nos braos d'uma indolencia salutar propicia +gordura.... + +E entrava em demoradas consideraes a respeito da ba vida,--como +sectario da vadiao, que era. + +Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo +recolher-se ao quarto que lhe fra destinado para passar a noite em casa +dos noivos. + +Alfredo no quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abrao ao velho +e correu alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos +bellos dentes de Paula. + + +IV + +A alcva nupcial na manh seguinte ao dia do casamento. + +Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na pea e vae +beijar as rosas de varias cres que, emergindo de grandes jarros de +porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos +espelhos, como invadidas por um pudor, em razo dos amorosos ruidos que +durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos, +d'aquella cama honestamente encoberta pelos discretos refolhos das +cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente, +cumprimentando o sol e fazendo a crte s gallinhas, que cacarejam +esgaravatando o cho. + +E um como effluvio de ventura evla-se pelo aposento.... + +E a luz da lampada de vidros fscos dimine de intensidade, bruxola +palpitante, ameaando extinguir-se.... + +Em cima da commoda, a grinalda de flres de larangeiras occulta-se mais +debaixo do leno de custosa cambraia, como envergonhada, ou como +enxugando n'elle as lgrymas que o espirito da Pureza houvesse +porventura derramado sobre suas ptalas inodoras.... + +Aos ps da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de +sda branca escancaram as cavas, n'uma expresso de abhorrecimento pela +demorada immobilidade, n'uma expresso de appello aos ps que devem +calal-os. + +De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem +desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven +noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfao +intima. E l dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda +a formosa Paula, semi-na, no inconsciente despudor de um somno que foi +agitado... + +Alfredo olha para todos os lados, muito contente e risonho. Ao ver o +raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua +ventura n'um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito, +estarrecido, confuso, muito pllido e crispando as mos, entra a tremer +todo, com as feies demudadas, os cabellos arrepiados na cabea +encandescida! + + cabeceira do leito, sobre o elegante _guridon_ de jacarand, estava +uma dentadura patenteiando um co de bcca postio e acinzentado, feito +de massa!..... + +E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos +pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente.... + +Ento, sentindo enormes dres em todo o sr, com o espirito prostrado +pela emoo violentssima, Alfredo cambaleou, soluando, e foi car +beira do leito, lavado em lgrymas, a murmurar n'um gemido: + +--Estou roubado, estou roubado! + + + + +Poemetos em prosa + + + + +I + +Bidinha + + A Mucio Javrot + +Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao ideal e faceira, +haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, +ella comeou a amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, +encontrava-o em casa da prima, crava, julgava soffrer e gosar a um +tempo e entrava a fital-o amoravel e longamente, com essa persistencia +abstracta dos verdadeiros extases apaixonados.... + +O poeta conheceu no ser indifferente quella moa to pllida, to +triste, cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixes +ardentssimas... + +E, no sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir casa da prima +da Bidinha, para no vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, l foi e +encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,--aquelles +tentadores, faiscantes olhos eloquentes,--mais, muito mais bonitos... +Teve pena d'ella: n'um momento em que ficaram ss na sala,--onde +rescendia o perfume d'um ramo de resda posto n'um jarro em frente +ao retrato d'uma velha senhora de fronte enrugada e olhar +suave--declarou-lhe amal-a desde muito, intensamente. + +Ella, a Bidinha, a pllida donna do lbum que recebra aquelles +ternissimos versos, d'uma inspirao idal e faceira, sorriu, estremeceu +e murmurou apenas quasi inintelligivel som. + +D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios +nocturnos, em aquella mesma sala. + + * * * * * + +Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua +fidelidade foram longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o +aperto de mo de despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a +angustia que atravessou-lhe o corao! + + * * * * * + +Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creana a +quem jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, +emquanto rescendia na sala o perfume d'um ramo de resda. + +Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dr das +longas espectativas!... Espera-o ainda.... + + tarde, quem fr ao pequenino quintal da casa d'ella, poder vel-a +sentada sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta +latada,--com o olhar suave e tristemente fito nas paginas d'um album, +soluando baixinho palavras de saudosa recriminao. + +Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao idal e faceira, +haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a!... + + +II + +Paraphrase ossianica + + A Frederico Rhossard + + bella, seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do +rochedo sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim. + +Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traam sobre as nossas +torrentes. Ouo-os passar no meio dos turbilhes e suas vozes fanhosas +so os unicos sons a perturbar o magestoso socego das trvas. + + tu, cuja mo branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas +harpas de Lutha, tenta ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e +dolentes. Desperta essas cordas adormecidas, canta, Malvina, e reaviva +o meu genio, cuja chamma foi sopitada pelos annos implacaveis. + +Vem a mim, Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que +entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o +regato cae na colina e rla, depois do furaco, sob a luz radiante do +sol, o caador escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a +humida cabelleira. + +Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heres. +Infla-se meu peito; o meu corao palpita. Delina-se a meus olhos o +passado. Vem, Malvina, no divagues mais no meio das tnebras! + + +III + +O parocho da aldeia + + Ao Padre Dr. Leorne Menescal + + a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e +olhar carinhoso como um conselho de Jesus. + +A sua parca mesa est sempre s ordens dos mendigos, a sua porta aberta +sempre aos viajantes, a sua bcca incessantemente murmura consolaes s +pessoas que soffrem. + +Muitas vezes, alta noite, vo chamal-o para ministrar os socorros da +religio a algum enfermo, em qualquer das aldeias que formam a serrana +freguezia. Ento, levanta-se s pressas, monta a cavallo e l vae +montanhas fra, a galope, ladeando tenebrosos precipcios, sob a chuva, +tiritando de frio, impassivel como um here e contente comsigo mesmo, +sentindo-se alegre por ir cumprir um dos mistres que lhe impe a sua +profisso, to bem comprehendida por sua bella alma! + +Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos +aquelles montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os +conselhos de paz e bondade. + +Quando comeou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote +arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra +de Baturit. Em poucos mezes, graas a seus esforos e illimitada +sympathia que a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato no tinham +um sr captivo: todos eram eguaes! + +Quando sae de casa, encaminhando-se pequena egreja, cuja torre branca +de neve lana-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as +creancinhas, que bricam s portas das casas, acodem a beijar-lhe a mo e +as mes saudam-n'o respeitosas, balbuciando uma beno.... + +Aos domingos, prdica do Evangelho, vi-o, por differentes occasies, +fazer com a unco de sua palavra, que as lgrymas borbulhassem nos +olhos dos assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel modo +de viver, fertilssimo em bons exemplos. + +Nada possue: d tudo aos necessitados, sem ostentao, naturalmente! + +Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, caritativo +sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!.... + + +IV + +Ao Sol[2] + + A Fernando A. da Silva + + tu, que rolas por cima de nossas cabeas, resplandecente como o escudo +de nossos paes; d'onde saem os teus raios, sol? D'onde vem a tua luz? +Caminhas em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas +no firmamento; pllida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. +Ficas sosinho, sol: quem poderia acompanhar-te o curso? + +Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas so minadas pelos +annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no +fundo dos cus; s tu s sempre o mesmo. + +Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo est +sombrio pelas tempestades, quando o trovo ribomba e va o raio, saes +radiante do meio das nuvens e ris do furaco! + +Mas, ai! em vo brilhas para mim! O velho bardo j te no v os raios, +quer fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer +trema s portas do poente a tua luz bruxoleante. + +Mas talvez, como eu, s possuas uma estao e teus annos tero um termo: +vir talvez um dia em que empallideas no meio da carreira e a aurora +proxima em vo esperar o teu regresso. + +Regosija-te, portanto, sol, na fora da tua juventude! A velhice +triste e abhorrecida: parece-se com as tbias claridades da lua, as +quaes perdem-se entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este +semeia ao longe as estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a +collina e o viajante transido tirita nos caminhos desertos.... + + [2] Vertido de Ossian. + + +V + +Remember + + A Paulino de Brito + + +I + +No tens ento no peito a minima raiva contra mim?--perguntei-lhe +admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes. + +--No! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os +loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, +n'uma prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua +pequenina pessoa, delicada e meiga, parecia desabrochar as florescencias +gentis das suas graas, dos seus divinos dotes triumphantes em meio +pujana da invejavel mocidade! + +--Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que +tanta bondade tens n'alma, quantas so as seduces capitosas do teu +bello rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e +faceiros, tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores +effluvios!--retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attrando-a +castamente para mim, n'um impulso de gratido, ainda todo commovido pelo +prazer das recentes pazes. + +E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que +manifestara-se no roubo d'um beijo,--d'um pequenino beijo +fugitivo,--quella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo +como que desabrochava as divinas graas triumphaes em gentis +florescencias de invejavel juventude pujante! + +As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse +enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seduces capitosas +de to bello rostinho!.. + + +II + +Mas anoitecra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos +jasmineiros rescendentes maior escurido communicava parte do jardim +onde haviamos feito pazes, aps o intemerato roubo de um beijo colhido +nos rubros labios mdidos da minha pequenina amante fascinadora. + +Um silencio embaraador enleiava-nos em tbia indeciso. A loira +cabecinha d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos +anneis undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das +correctissimas espaduas. + +E uma tentao chegou-me a sbitas, sob a latada que abrigava-nos com +seus rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio +enleiando-nos embaraadoramente em tbia indeciso. + +J tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descanar-me +no hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia +assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,--um fugitivo +beijo pequenino e casto,--nos humidos labios da minha gentil e tentadora +amante. + +Ella, porm, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. +Uma das mos subiu-lhe clere altura da cabea, ameaadoramente. Bateu +o psinho, n'uma expanso de enfado incipiente.... + +--Se reincidir, no perdo mais!--exclamou, avisando-me, com a voz ainda +repassada de toda a indolente volpia de pouco antes e fugiu-me das mos +extendidas nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso +que me concedeu, emquanto descanava a fronte no meu hombro, com os +formosos anneis da adoravel cabecinha louca undiflavando-se-lhe +tranquillos pelas correctssimas espduas. + +Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio +escurido, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas aps o roubo +de um beijo,--do primeiro beijo, pequenino e casto,--aos ardentes labios +mdidos da minha bemdita virgem. + +E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um +recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em +face do capricho d'aquella pequenina cabea loira, de triumphantes +graas capitosas, que s admittira e perdoara o meu primeiro +atrevimento... ainda to innocente e retrahido!... + + + + +O preo das pazes + + A J. A. Pinto Barbosa + + +I + +O meu amigo Ernesto accendra um charuto, concertra o _pince-nes_ sobre +o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona, +muito ffa, em que estava sentado deante de mim e comeou: + + +--Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, mesa, sem +poder contar-t'o inteiro, pela importuna presena d'aquellas senhoras. + +Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e +mais divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo +dotado de umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, +avelludada; olhos negros e brilhantssimos,--como duas caoilas de +mysteriosos philtros embriagadores;--cabellos muito pretos e ondeados, +rescendentes a ba olencia de selvtica baunilha; um donaire, uma +soberania inteira de magestoso porte e fidalga apresentao captivante, +capaz de enleiar-nos em toda a srie de crimes que ao humano pensamento + dado formular em dias de trvas reflexes e sinistras ebriedades +peccaminosas: uma revelao pasmosa, um exemplar perfeitssimo da +mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archtypo da elevao dos dotes, +a civilisada manifestao das nossas lendrias yras amazonicas! E, a +par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustrao perfeita de +erudita, conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvssimos, +pequeninos e eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, +engastados em formoso coral, brilhante como os rseos labios humidos da +microscpica boquinha sombreada d'um leve buo,--o complemento da +seduco, o requinte da tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. +Imaginaste? Pois bem; assim era a Marcas, a esposa do altivo general +Bandeira, velho quinquagenario d'elevada riqueza materialisada em +appetitosas centenas de contos de ris, depositados nos principaes +bancos do Brazil. + +Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a +azulada fumaa d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no +espao, como poderia amal-a o esposo, vendo-a to nova, a seu lado, toda +entregue a seu amor,--desde os timidos beijos assustadios +repentinamente dados, s vezes, no vo de qualquer janella dos aposentos +desertos de enfadonhas testemunhas, at ao completo desnuamento +arrepiado e perfumoso, muito encolhido e clido, que apresentava-lhe na +mysteriosa liberdade pacifica da recatada alcva, alta noite, com a sua +elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre neves de rendas, +diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis. + +Uma fascinao, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos +caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a +todos os sacrificios para conquistar uma estima fora de constantes +provas de louvavel desinteresse. + +Confesso no ter ainda visto a repetio d'aquella invejavel existencia +d'affectuoso enlevo,--elle no declinar da vida, ella em toda a +maravilhosa florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas +inteiras a contemplal-os, absorto na admirao d'essa alheia felicidade +que fazia-me venturoso,--tanto certo que uma perfeita harmonia de +suave existencia rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de +si um como jubiloso transbordamento do seu excesso. + +Muitos annos haviam j passado, desde que o matrimonio os uniu, quando +Marcas fizra o seu decimo quinto anniversario,--e nem um s instante o +arrependimento lhes chegra de se terem para sempre ligado por um +prematuro enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel +reproduco do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da +discreta alcva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o +amoravel tratamento de esposo. + +Verdadeiramente admiravel, no achas? + + +II + +Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposio fluctuou, +soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla +felicidade jubilosa de ambos. + +Foi uma verdadeira desgraa suscitada por um capricho desarrazoado da +formosa mulher do general. Elle tivera o arrojo de negar-se,--pela +primeira vez, certo,--a satisfazel-o, e a Marcas soffrera em cheio no +corao a dureza da spera repulsa. Longos fios d'interminaveis lgrymas +deslisaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os +com fora, circulando-os das roxas manchas tristonhas que tm os +infelizes habituados ao pranto. + +Mas esta manifestao de fraqueza apenas algumas horas durou,--emquanto +o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos +desmarcados o soalho, j meio arrependido da quasi brutal violencia com +que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa. + +Depois veiu a reaco, em seguida crise hysterica dos abundantes +prantos silenciosos. Uns assomos de magestosa indignao, muito +concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente +duros meios de infligir ao marido memoraveis ensinamentos de justas +represalias. + +E a Marcas prometteu elevar-se acima de si propria, ser to rispida +como brutal havia sido o incivil do general. + +Ai, meu caro amigo! Foi severa a lico! O pobre general Bandeira mais +d'uma vez sentiu-a espicaando-o, quando o despeito da Marcas, ao fim +da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho em seu +quarto,--n'uma triste solido de viuvez frigidissima... + +Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com +valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sr. Seria possivel que no +tivesse a fora de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto +temiam os paraguayos, annos antes, nas selvticas solides onde o nosso +exercito ferira to sanguinolentos combates contra as guerrilhas do +valente Lopez? + +Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resolues enfraqueceram, como +cae uma vla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe +subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa. + +O general desejou capitular, ne extrmo das foras. Um arrependimento, +cujo peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe aps essas +momentaneas resolues de superiores resistencias... impossiveis +n'aquelle pobre e velho espirito d'homem tolamente embeiado pelas +captivantes graas da mulher. + +Com effeito, capitulou. + +Uma noite, quando os corredores abandonados no repercutiam mais os +passos das escravas e uma luz baa cava-se pelos fscos vidros de +lampadas discretas, sau cauteloso da sua alcva e, com o corao a +pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher. + + porta, parou, indeciso. + +Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira +entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona +sensualmente esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua. + +Marcas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na +simples ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher +que em nada de mau pensa. + +Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava +dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello +corpo, feito d'mbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, +vaporisando a tpida emanao subtil das suas frescas, rosadas carnes +bellamente seductoras e deliciosamente juvenis. + +Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, +afflando precpites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. +Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lanou-se-lhe aos ps, +choroso, supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, +impetrando o perdo, solicitando um armistcio, pedindo pazes selladas +com a ardencia d'uma deliciosa e suprema compensao! + +Ella, porm, a Marcas, impassivel e impertubavel--ao tempo que +envolvia-se toda em fino lenol de transparente cambraia, n'um gracioso +rubor de impeccavel donzella,--estendeu o brao para a porta e, +mostrando-lh'a, disse ao general estarrecido: + +--Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizr +apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado. + +E elle teve de sar,--ao reconhecer a impossibilidade de persistir n'uma +resistencia, que s poderia ser-lhe prejudicial. + + +III + +O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir +um meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a +mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o +salvasse da terribilssima coliso. + +Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosssimos: sdas, joias e finas +pedrarias em todo o Par no houve, que logo as no comprasse +profusamente, para amimar a caprichosa Marcas, reclusa em forte +baluarte de duras reservas embaraadoras. Nada conseguia, seno +augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha +de enrubecida vergonha, pela capitulao a que estava a sujeitar-se, com +toda a mesquinhez das pequeninas baixezas. + +Um caso fortuito, porm, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento +pesava-lhe j como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado +aos hombros desformados de msero ano corrodo por toda a srie das +enfermidades secretas. + +Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fra o general Bandeira convidado +para examinador de mathematicas, durante os exames da commisso especial +da delegacia geral da instruco secundaria do municipio da crte,--essa +creao absorvente e desconchavada, que tira toda a fora autonmica dos +nossos lyceus provincianos, reduzindo-os s simples e modestas +propores de insignificantes escholas de primrdios scientificos e +litterarios, destituidos do mnimo valor perante as academias superiores +do Imperio... + +Mas dispensemos esta tirada pedaggica, meu excellente amigo, e +continuemos na exposio dos acontecimentos que prometti referir-te. + +O general acceitra e convite com extraordinario gaudio do delegado +especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude +_catonismo_ do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradies de +severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia +marcado, quando--oh! admirao!--appareceu-lhe no quarto a mulher, a +Marcas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas +rendas sobre o clo, por cima das mais appeteciveis redondezas trgidas +que possivel imaginar. + +Trmulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto, +esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e +enterrou-o desgeitosamente na bocca, em sentido opposto quelle de que +deveria servir-se para fumar satisfactoriamente. + +O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que +estabeleceu entre elle e a Marcas uma distancia consideravel. + +A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os +dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a +necessaria seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o +espao que approximava-a d'elle. + +Depois, disse, estendendo-lhe um carto de visita: + +--Ve hoje examinar mathematicas, general? + +--Vou... sim... + +--Pois ento, este moo ir fazer exame por mim... + +--?... + +--Ouviu...? + +--Sim. + +--Veja l como se porta. As mathematicas no so o _meu_ forte. _Eu_ no +estou muito _habilitada_. + +E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assdio, +por similhante reclamao de um escandalo impossivel sua severidade, a +bella Marcas fugiu a correr nos bicos dos ps, arrastando a cauda do +penteador, diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, +essencias boas e rijas carnes femins e jovens. + + +IV + +Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o carto que lhe +entregara a mulher: + +_Antonio da Silva Larangeira_ + +Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira. +Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos +quirir, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriaes na +derme. Que era elle proprio, sim senhor. E uma vz fanhosa, cheia de +bajulaes servilssimas, resmoneou a pequena phrase affirmativa, +solicitando ali, em sua exaggerada affabilidade, a complacencia do +examinador. + +O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoo, mal +resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que +tivra o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marcas, para induzil-o ao +crime d'uma indignidade--arrastal-o a quebrar os seus votos de severa +justia de indomavel rispidez com os estudantes. + +D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova +escripta no poderia ser peor. Escusado dizer-te que o pequeno +espesinhou a sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. +Como, porm, desempenhava ali as altas funces de representar a bella +Marcas, falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito +empenhou-se para que a indulgencia dos demais examinadores salvasse da +guilhotina o infeliz. + +Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando +appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente a gratos perfumes +finssimos, _Couro da Russia_, e _jasmim do Cabo_. + +--Ento?--perguntou ella meio-rindo. + +--Approvado, affirmou o general deixando pender a cabea, +desfallecido,--talvez envergonhado da sua fraqueza, crando porventura +de no haver opposto resistencia tentao. + +--Oh! bello! bello!--gritou a Marcas, lanando-se-lhe ao pescoo, +beijando-o com frenesi, apresentando-lhe flor do rosto-- ponta do +nariz--os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das +rendas que ornavam o penteador sobre o peito. + +Elle abriu os braos, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande +amplexo nervoso--a manifestao penultima do seu intensssimo desejo de +reconciliar-se com a mulher. + +Ella impellia-o, devagarinho porm incessantemente, para o sof +perfilado junto secretria do general, acarinhando-o com o olhar, com +a voz, com os labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso. + +Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel, +silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas +grossas lgrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas. + +--Que tens? inquiriu ella, assustada, beijando-o sobre uma orelha, +amimada e tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcssima +harmonia. + +--Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escandalo, +aquella approvao! + +--Ah! volveu ella, abraando-o com fora, reconquistando-o, +reconduzindo-o para o sof, espiritualisada de prazer, sorrindo +extranhamente. + +E aps um instante empregado em oscular a fronte encanecida do +esposo,--cando ambos para o sof hospitaleiro--murmurou-lhe ao ouvido, +entre um _rugeruge_ de roupas: + +--O que bom custa caro! + + + + +Historia incongruente + + Ao dr. Franklin Tavora + + +I + +Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel +Fonseca. + +A paizagem alegre que cercava a fazenda j no tinha o poder de +evocar-lhe aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que +todas as manhs saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto. + +As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transio +subita no animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, hora da +sesta no traziam nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem +causa apparente. Todas as interrogaces, que os olhares apresentavam, +iam embotar-se na fria reserva do ancio, que persistia n'um silencio +desanimador. + +E no havia razo para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a +fazenda progredia, graas ao magnifico tempo que, havia dois annos, +reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com +disposio para o trabalho. + +O Thiago, filho unico do coronel, no reparara ainda n'aquellas +concentraes do pae. Vivia todo entregue a uma paixo to ardente como +sincera, para ligar atteno a qualquer coisa que se passasse em outra +parte que no fosse no proprio corao. + +E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir +villa proxima, bem merecia aquella dedicao egoistica, porm desculpavel. + +Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma +honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a +cuidar dos irmosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a +apaparical-os, a rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo +bem-estar physico do todos aquelles pequeninos sres a ella confiados +pela me, na occasio de morrer. + +Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo +que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas. + + certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia +para dia mais se ligava de amizade _Venancia da villa_, como +rapariga chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da _maqueira_ do +coronel, quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia +muitas vezes ouvil-o pronunciar estas palavras:--" impossivel +similhante casamento!" + + +II + +Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao +seu correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que +necessitava falar-lhe com urgencia. + +O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se d'um +assumpto ao qual elle fugia ha muito tempo. + +Foi a fazer um violento esforo sobre si mesmo que murmurou: + +--Fala quando quizeres. + +Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos. + +O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma +expresso de curiosidade e pavr. Tremia ligeiramente, com os nervos +todos irritados. + +--O diabo da gotta quer visitar-me! pensou. + +No entanto, Thiago enxugava o pescoo com o leno e comeava em seguida: + +--Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe importante de +mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. +Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual ser a resposta +de meu pae.--Desejo casar-me. + +Conteve o coronel um gesto de indignao e disse, mostrando indifferena. + +--Pois casa-te, rapaz. Eu no me opponho.... Contanto que seja a moa +escolhida merecedora de ser tua mulher.... + +--Oh! se tal a condio que apresenta, posso affianar-lhe que +brevemente me casarei. Ba e sria, meiga e honesta, trabalhadora e +cheia de dedicao, creio que poucas moas como ella encontrei no Par +durante os seis annos que l estive a estudar no seminario e no lyceu. + +--Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes +dres nas fontes, com o corao accelerado, porm a affectar +tranquillidade.--Mas ento quem a rapariga? + +Thiago sorriu indizivelmente,--com uma beatifica expresso de +intensssima felicidade no semblante, e exclamou: + +-- a _Venancia da villa_, a minha querida Venancia! + +O velho ergueu-se impellido pela commoo. Suppondo tal aco um meio de +que o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago +ergueu-se tambem e correu a abraal-o. + +Mas o velho, fazendo um lento signal com o brao estendido, +paralysou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo: + +--Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores +com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecers um dia, +impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de +oppr-me a elles desassombradamente. Fing ignorar tudo, na esperana de +que os annos lanassem o tdio sobre as vossas almas captivas uma da +outra por aquillo que eu pensava ser o enthusiasmo pela novidade. Com +immensa dr verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel tua palavra, +do mesmo modo por que Venancia o foi sua. Isto seria uma grande +felicidade se no fosse uma enorme desgraa. Quer dizer, seria um +apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da tua paixo +fosse qualquer outra mulher, que no a Venancia..... Olha, Thiago, sem +procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me +fra a magoar-te o corao, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, +ausenta-te de Maraj, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou +para qualquer cidade longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma +mulher a quem possas offerecer a mo.... + +--Mas porqu, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o corao +oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras +do pae minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido +com um profundo amor expurgado de malicia. + +--Porque assim necessario,--redarguiu o velho, n'uma vehemencia de +gesto e de entonao. + +--Pois fique sabendo que, se no explicar satisfactoriamente a causa de +similhante opposio, s tomarei as suas palavras como originarias d'uma +razo que a edade torna vacillante e digna de piedade!--bradou Thiago j +fra de si, ferido n'essa grande poro de egoismo que todo o homem tem +comsigo. + +--Ingrato, murmurou o velho, deixando-se car sentado e chorando +copiosamente.--Pois assiste morte do teu corao, visto assim o +desejares: ouve-me! + +Pela janella aberta, via-se o vastssimo campo do lado oeste da fazenda, +coberto d'uma vegetao uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos +saltavam s cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, +pastavam tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as +longas caudas n'um compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro +preto, perfilado e srio, olhava para a linha escura do horisonte, +entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexivel lingua +cr de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado d'erva scca e de +excremento de boi subia at ao quarto. Vaqueiros zangarreavam n'umas +flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamoseiro. +Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com essas +faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espao em propagaes suaves +que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil +de extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito +distante sobre o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, +magestosa e tranquilla em sua imponencia seductora. + +O velho enxugou as lgrymas e comeou a falar. + + +III + +--Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa me nos faltou. At +agora no sei como possivel me foi resistir a essa desgraa, que eu a +principio reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei +encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber +ninguem, apenas gozando em tuas innocentes caricias um pallido reflexo +d'aquelles grandes affagos que a tua idolatrada me fazia-me +constantemente. Passados esses tres annos, comprehendi que o teu futuro +exigia-me impozesse silencio minha dr, e cuidasse de nossos bens, +para dar-te uma ba educao e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro +de uma riqueza sufficiente tua manuteno. Sa, pois, do quarto, +pedindo mentalmente alma de tua me tomasse este sacrificio como feito +por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus +exigiam que eu fizesse frequentes viagens villa, onde, ha vinte e tres +annos, isto , quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora +amazonense, mulher d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador +da villa. Essa senhora era o retrato vivo de tua me. Por um phenomeno +de impressionismo,--sem o querer, sem o sentir--fui-me enlevando das +graas d'ella, at chegar ao ponto de pensar que tua ba me tornra +vida e volvra a amar-me como d'antes! + +Quando eu ia villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. +Tal convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em +grande paixo, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves +faziam com que o marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, +deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de +communicar-te que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos +mareados de lgrymas, a arfar do peito e a contrahir o rosto n'uma +visivel agonia causada pelos remorsos. + +--Emfim,--disse com energia e, desta feita, dando expanso ao pranto,--o +resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixo, foi o +nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser +sua filha.... + +--E essa menina ... Ve..nan..cia?--inquiriu Thiago com os olhos +arregalados, os cabellos crispados, as mos fechadas fortemente, +sentindo fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoo. + +--Sim, Thiago, sim, Venancia, fructo da minha infamia, a filha do +crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel que no soube +resistir minha tentao! Venancia, a mulher com quem te queres unir +pelo.... casa...mento! tua irm, insensato!... + +E cau redondamente para traz, agitado nas convulses da gotta, da sua +molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rde de +maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma +vida que d'ahi em deante s poderia ser de tormentos e angustias +indiziveis. + + + + +A lico de "Paleographo" + + A Heliodoro de Brito + + +I + +A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma +confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trdas amarguras do largo e +profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantssimo corao de +me.--O commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a +Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua +resoluo de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a +mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas +d'aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem. + +E ella, a me extremosa, que s vivia do tenro affecto suavssimo da +filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro,--no obstante a +bondade com que era tratada por todos,--teria de ficar no Par, separada +do pequenino ente que deslaava-lhe o espirito em fulgidas chimras de +loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia! + +Uma dr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora +privados de lgrymas sob o ltego inclemente do seu primeiro senhor, +antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto +silencioso por toda a noite passada em claro aps a declarao ouvida +pela manh. + +S a lembrana de to rude separao fazia-a soffrer tanto; o que no +seria a crua realidade? + +Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluando a furto, no dia +seguinte,--com os olhos, mudamente cheios de qurulas expresses, fitos +na rapariguinha,--acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de +benevolencias, consolou-a a meio. + +--Que se no affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a +familia, d'ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia +trazer-lh'a instruida, educada, elegante e feliz,--uma verdadeira +senhora. At ella, Josepha, se arrependeria ento da sua tolice actual, +porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe filha. +Pois no era certo que todos ali tratavam-n'as to bem, me e filha +e que esta era tida menos como uma _ingnua_ do que como se, realmente, +fosse originaria do casamento d'elle commendador com sua esposa? +Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com +exuberancia a justeza do seu proceder. + +Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. +Eliminal-a, porm, d'alma, era impossivel, que no pde um corao de +me deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestaes, +lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos +frmitos delirantes da mais intensa dr. + + +II + +A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a +pequena Isaura. + +Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas +afflices, no pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as +outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de +tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes +do horisonte limitado uma viso, s para ella creada, a attrair-lhe +poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as foras vivas do espirito +e da razo. + +Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a s +pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expresso +do rosto, como quem est acostumado a pensar e agir por vontade de outrem. + +O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. +Bateu desusadamente o corao da preta. Aquelle papel no poderia ser +seno da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao +socio, pedia-lhe sempre informasse Josepha estar a filha d'esta com +saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a +carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que +sorria-lhe docemente, compadecidamente. + +--Anda, vae, disse elle; uma carta de tua filha.... escripta por ella +propria. + +Escorreram lgrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim +dava-lhe precipitados pulos ao corao. Conservou-se, todavia, immovel +deante do _branco_, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma +coisa. + +Elle pareceu comprehendel-a: + +--Queres que a leia? + +--Sim, sinh, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e +preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos +sentidos, a divina musica ignorada das dces palavras escriptas pela mo +infantil da filha. + +O socio do Castro leu: + + + MINHA QUERIDA ME, + +Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe +envio milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho +escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da +minha santa me e o grande desejo que sinto de estudar muito, para +voltar depressa para onde est a mesinha do meu corao. Ante-hontem +fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d'ouro, +dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa me. +Tenho passeado muito e gostado immenso d'esta bella cidade, onde o meu +prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha. + +Abene-me e receba mil beijos que lhe envia + + + ISAURA. + +Paris, 30 de dezembro de 1887. + + +Josepha chorava, soluando, quando ouviu o nome que rematava a +carta,--simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras, +comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura. + + +III + +Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Par tinham festiva apparencia, +transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira +a escravido no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes +girandolas de foguetes e o cco ingente de milhares de vozes bramindo +enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo. +Galhardetes e cortos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam +no espao alegres harmonias de clidos hymnos excitantes. + +Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os +pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral +regosijo. + +Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento +publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para +todos os lados, temendo fossem surprehendel-a. + +Quando teve a certeza de estar bem s, esboou nos roxos labios um +sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho _Paleographo_, +abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida: + +--Vamo' estud a lico. Nh Manduca, disse que p'r' mez que vem j +posso l a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus? + +E curvou a cabea para o livro, na obstinao das grandes vontades +vencedoras. + + + + +Ao soprar vla + + Ao Sr. Jos Feij d'Albuquerque + + +I + +s 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar +alegremente, recebel-o porta da varanda, arrastando a longa cauda +rendada do penteador de cambraia branca. + +Quanto se demorra elle! .... Porque no voltou mais cedo? A sua +Candinha j sentia tantas saudades!.... Elle no imaginava o que era +estar uma pobre mulher mettida em casa, durante uma tarde inteira, sem +ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!.... + +E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafuns pelo alto da cabea, +causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriando-lhe os +cabellos dos braos e pernas. + +Que no podera vir mais depressa,--objectava o marido, sentando-se n'uma +poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de +concupiscencia para a mulher.--Bem esforos fizera, mas inutilmente. +Encontrara-os a jantar, ainda no comeo; teve de esperar no jardim por +espao de meia hora, brincando com as creanas, para entreter-se. Os +pequenos so altamente endiabrados: sujaram-lhe as calas brancas com as +mos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins +e mulher. + +--E acceitaram?--interrogou a Candida, saltando para as pernas do +marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se +graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim. + +--Qual! Responderam-me que no cediam a escrava por dinheiro algum, +maxim sabendo que ns a desejavamos para a libertar. Aquella gente est +cada vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que +seja o dia de teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. +Continuemos, porm. Estava eu disposto a sar, bem arrufado com o dr. +Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquelle sujeito +vermelhudo, cuja cabea est mais limpa de cabellos que os teus joelhos.... + +--Deixa-te de tolices.... + +--Agarraram-me para um solo manhoso, que durou at agora, e isso mesmo +porque levantei-me e sa viva fora!.... Agora,--concluiu +sorrindo,--aqui tem voc o seu Roberto, cheio d'amor e paixo, disposto +a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a +querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!.. + +Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos +n'uma vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus +labios frescos e perfumados d'esse olr exquisito e bom, peculiar s +mulheres que se tratam. + +Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera porta que dava para +o corredor o moleque Euzebio, com o bule de ch.... + + +II + +Depois do ch, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e, +accommodando-se n'uma grande _voltaire_, poz-se a ler. Ficou a Candida +defronte d'elle, a miral-o. + +Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois +bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os +cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes +descanando nas palmas das mos, Candida continuava a olhar para o +marido com uma expresso extranha, suave, repassada de ternuras +dulcssimas. + +Parecia lanada contemplao da propria felicidade. Era justamente +aquillo que, annos antes, phantasira a sua sonhadora imaginao de +burguezinha estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacvios: +viver honesta ao p de um marido bonito e de bom corao; estar sempre +junto d'elle, para o consolar em todos os desgostos, rir com elle nas +horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, +sobretudo, contemplal-o a todo instante, silenciosa, longamente, +envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu enlanguescido olhar de +creoula amoravel! Nunca sentira-se to feliz como depois de seu +casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma s contrariedade +tivera aps aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do +noivo no silencio de uma discreta alcva toda cheia de flres, rendas, +fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha +infantilidade no ficou, na manh immediata, quando leu no _Diario de +Noticias_ as linhas seguintes, que decorou fora de as repetir +baixinho?--"Uniram-se hontem noite em matrimonio, na egreja de +Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado commerciante da nossa +praa, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha do nosso amigo +sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadssimo. Foram padrinhos os +srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendona e suas exmas. consortes. Aos +jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das +felicidades a que tm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar +em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidssima +pela lembrana de que, quella hora, a cidade inteira estava sabedora da +realisao de seus intimos desejos de moa apaixonada!.... D'ahi em +deante comearam a viver como dois anjinhos, como ella queria. Roberto +era sempre de uma delicadeza affectuosa e sria para com a sua Candinha, +que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo seu poder, para +tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que duas +pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas _por d +c aquella palha_... Entretanto, assim acontecia s vezes. Ahi estava, +mesmo no Par, a d. Clotilde que, no dizer das ms linguas, era uma +jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era +outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao +domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dr de corao! Mas com +ella assim no succedia, graas a Deus! O Roberto era pontual como um +cobrador hora de recolher ao lar: s 5 da tarde mandava fechar o +armazem, tomava o _bond_ e vinha logo para junto d'ella, de onde no se +arredava seno ao outro dia pela manh, afim de ir novamente para o +trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ella +conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudana futura. +Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beios, com a +importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se +necessario contar-lhe tudo... Porm como? A vergonha apertava-lhe a +garganta assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, +estava resolvida! Quando? agora?--Agora no; deixal-o com a leitura, que +est to entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como +ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que +era to lindo, to bom, to amado!.... + +Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo +apaixonado. + + +III + +De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do +charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, +a Candida pendia para o peito a formosa cabea, disfarava fingindo ler +n'um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o +marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu +ardente olhar, como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixo. + +Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro. + +--Vamos dormir?--propoz. + +Candida estremeceu e levantou-se. + +O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz. + +No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcva. Em cima do +velador, uma vla cr de rosa ardia n'um castialzinho de porcellana de +Svres com pinturas allegoricas de Amores alados e Chimras volitantes. +No centro, uma _causeuse_ de setim azul estava cheia de laos, corpinhos +de renda, brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente +dissymtrico. Vidros de perfumarias com rlhas de crystal reluziam em +cima do toucador de jacarand, lanavam scintillaes cambiantes ao +espelho inteirio do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das +paredes lateraes. + +Ao fundo erguia-se a cama,--pudicamente occulta entre as rugas de um +cortinado de labyrintho finssimo, suspenso do tecto por uma passadeira +doirada. + +Levantava-se d'aquella cama um qu de evaporao de felicidade +inenarravel, que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos +do olfacto e da vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de +seu amor, do altar de sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, +sobretudo, ella tinha uma importancia transcendental: evocava-lhe uma +recordao agri-dce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove +mezes de agradabilssima co-habitao conjugal.... + + ---- + +Quando iam deitar-se, Candida enlaou a cabea do marido com os braos +descobertos,--mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de +cambraia enfeitada de rendas do Cear. + +Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos effluvios,--essas +queridas exhalaes de mulher amada,--n'um enlanguescimento concupiscente. + +--Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posio, beijando-o na +testa.--Quero dar-te uma noticia muito ba.... + +--Qual ?--perguntou Roberto estreitando-a nos braos. + +--Tenho tanta vergonha!.... + +Esta exclamao pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do +marido e dando um pulo para o leito. + +--Anda, fala, menina, que tolice essa? + +--Ento apaga a luz, primeiro; pde ser que s escuras eu me sinta mais +animosa! .... + +Roberto soprou a luz da vla e disse deitando-se: + +--Agora.... + +Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com +as pontas dos frios dedos trmulos. Depois, a subitas: + +-- que,--murmurou com umas brgeiras risadinhas reprimidas,-- que +eu.... estou grvida! + +Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,--o +beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vr +convertido em realidade o seu mais persistente anhelo,--respondeu +quella confisso prazenteira, na propicia escuridade da alcva +matrimonial.... + + + + +No baile do commendador + + Ao sr. Ulderico Souza + + +Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras! + +E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro +sorriso, com as rendas finssimas do seu leque amarello-canario, de +varetas de madreperola. + +--E porque, no me dir? insistiu o doutor Machado, debruado sobre a +cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um +ardente olhar vibrado atravez o crystal do monculo petulante. + +--Porque--?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a +fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro +esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida uma boa +mestra, doutor, e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos! + +--Apezar de ser to nova assim? + +--A vida no escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabea +encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moos d, por vezes, +preferencia, como compensando-os de no terem o discernimento preciso +para bem conhecer e evitar os revezes da sorte. + +--Mas-- maravilhoso tudo quanto esto a dizer-me os seus divinos labios +com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se j no +sentisse por sua pessa--e pelo seu espirito--este indomavel affecto de +que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora--e bem +profundamente!--depois de ouvir-lhe to razoaveis e inesperados conceitos. + +--Devras? + +--Por certo. + +--Oh! muito amavel.... + +--Digo a verdade. + +--E, todavia, continuo a descrr... + +--Faz muito mal! + +--Porqu? + +--Ah! j faz perguntas?--Porque quem confessa descrena em similhante +assumpto, deseja crr, ou, pelo menos, no quer descrr... + +--O que redunda no mesmo. Errou, porm, estabelecendo at mim a regra +geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convena-se. +O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lies +bem rispidas tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das +suas opinies, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illuses +phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jmais poderei tomar ao +srio as banalidades da confisso que me cantou ha instantes o seu +lyrismo? Estar o sr., effectivamente, to enamorado de si mesmo, que se +julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razo, doutor! + +--Como cruel, minha senhora! + +--No sou cruel, no, cavalheiro: sou justa apenas. E porque +sympathisei inexplicavelmente com o sr., que desejo trabalhar para +extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o +sentimento.--Permitte-me a liberdade d'uma franqueza? + +--Ora essa! Porque no?... + +--Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... pedantismo. + +--Como diz? + +--Oua bem: o--seu--illimitado--pedantismo. + +--E.... mas.... + +--Olhe, sente-se aqui, a meu lado--Assim. Conversaremos com +tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as +attenes da sala. Escute-me. + + ---- + +Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creana insignificante. +Seriam nove noras da noite. A chuva caa sem parar desde que anoitecra; +uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz +oscillante do gaz. Estavamos ao sero, reunidos na varanda, umas dez +pessoas: eu, minhas duas irms, algumas escravas, e uma preta velha, +muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos +sertes africanos para transplantar no Brazil. + +Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irms +brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da +qual trabalhavam as escravas. + +De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e ns interrompemos +o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeas, detinham no +ar a mo que empunhava a agulha, ou descanavam cautelosas os bilros +sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes. + +A velha Eufrasia annuncira que ia contar uma historia da _cabanagem_, o +que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta +tranquillidade. Porque, fique desde j sabendo, a Eufrasia era +auctoridade na materia! A sua narrao tinha alguma coisa de lugubre, de +compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na +concatenao dos factos e na flagrancia da nota, ou pica ou buclica, +de que pretendia occupar a atteno dos ouvintes. + +Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma +fulgurao estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos +tempos de que ella ia tratar. + +Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel +obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas,--a ba preta comeou +a referir a pequena historia que passarei a expr sua attenta bondade, +succintamente, para o no enfastiar com imprudentes delongas. + + ---- + +Da outra banda do rio, margem esquerda d'este mesmo Guajar que rla +suas turbidas aguas aos ps de Belm, uma roa havia, n'aquelle +tempo,--em 1835,--que era o abrigo d'uma simples familia de modestos +caboclos agricultores: pae, me e um filho, rapaz esbelto, no pleno +vigor d'uns 20 annos sados e bem desenvolvidos. + +Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua +simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roa +era a mais afamada na praa de Belm e a seriedade com que tratavam +negocios tinha-lhes aberto largo crdito em casa do seu correspondente +na cidade. + +O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga +da margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro roa. +Pelo So Joo deveriam vir capital da provincia, effectivar perante um +padre a mais persistente aspirao que em peitos amazonicos jmais +palpitou e que dava-lhes, na sua s lembrana, uma como ebriedade +olympica de soberanas venturas transcendentes. + +Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo +rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado + pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves +transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas +falas singellas e apaixonadas. + +Horas inteiras, de intensssimo contentamento, eram as que passava ao +lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha +existencia por vir, quando, a ss no copiar, de mos entrelaadas e o +olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras +do fundo, compraziam-se em acastellar illuses, n'umas inflorescencias +de amplas phantasias admiraveis. + +Similhante existencia, parecia abenoal-a o ceu, na sua clemente bondade +rejubilada pelo edificante espectaculo de to acrisolada paixo. + +Mas houve um dia em que a sorte,--sempre inclemente e cynica, +doutor!--pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito +d'aquella invejavel bonana de duas vidas felicssimas. + +A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas +dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roas, buscando e +fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais +ousada barbaridade. + +Em taes condies, a casa dos paes de Thomazia no poderia escapar +visita dos desalmados. Esta foi subjeitada mais torpe violencia que se +pde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem +querido dissuadil-os da infamia,--aps assistirem perpetrao +selvtica do attentado sem nome, soffreram inermes a pena ultima, +dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira! + +Escaparam ao rbido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que +embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua +casa haviam presenceado o que passava-se na ra fronteira e nem um s +momento o rapaz, aquelle mesmo namorado frvido da vespera, sentiu um +assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! +Admire que sinceridade a d'aquella paixo, doutor, dias antes +apresentada em _labiosas_ florituras de phantasticos arremessos +idyllicos! Que grande corao, o d'aquelle homem! + +Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe +a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado +a sua noiva,--sem ir arrebentar os milos de um dos abjectos infames, +ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa +dos sicarios! + +Annos depois, quando estabelecera-se a pacificao na provincia, a +Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na +companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas +materialisaes soezes e gordurosas. + +Ainda podia rir, ainda tinha canes para zangarrear ao som do cavaquinho! + +L defronte, porm, a roa, to florescente d'antes, convertera-se em +mattagal e a infeliz Thomazia,--apatetada e envelhecida, coberta de +andrajos e chorosa,--tinha simplesmente, como testemunha da sua +desgraa, uma creana inconsciente, um filho que dentro d'ella semera a +hedionda selvageria dos revoltosos. + + * * * * * + +Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de +emoo, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o +rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, +agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora, +perguntou sorrindo ironica: + +--E cr, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um s homem +sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas +palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi? + + + + +NOTAS + + +A CONVALESCENTE.--Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino +_croquis_ ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s. +s. levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu +respeito externadas por mim n'um estudo critico das _Primeiras Rimas_, +de Joo do Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremdo aggressivo, todo +pessoal e rancoroso. + +No quiz, ento, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em +uma das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, +apresento-a tal qual m'a deu o prlo, antes do inesperado desabrimento +de s. s. + + +QUE BOM MARIDO!--Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o _Diario +de Belm_, declarando-o immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo +entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura +davam-lhe ensejo de estampar as _moralssimas_ "grivoiseries" de Catulle +Mends... o caso mais flagrantemente pfio de criterio e coherencia +que tenho conhecido! + +No dia seguinte, _A Provincia do Par_ publicava esse trabalho. + + +HISTORIA INCONGRUENTE.--Foi publicada n'_A Arena_ essa narrao, em +1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de +dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira +carta muito affectuosa e benevolente. + + + + +INDICE + + PAGINAS + + ALEGRIA GAULEZA 10 + + A CONVALESCENTE 21 + + DESILLUSO 23 + + A "SERENATA" DE SCHUBERT 33 + + QUE BOM MARIDO! 45 + + NOITE DE FINADOS 55 + + RIO ABAIXO 61 + + AO DESPERTAR 69 + + POEMETOS EM PROSA: + + I--_Bidinha_ 81 + + II--_Paraphrase ossianica_ 84 + + III--_O parocho da aldeia_ 86 + + IV--_Ao sol_ 89 + + V--_Remember_ 91 + + O PREO DAS PAZES 95 + + HISTORIA INCONGRUENTE 109 + + A LICO DE "PALEOGRAPHO" 119 + + AO SOPRAR VLA 127 + + NO BAILE DO COMMENDADOR 137 + + NOTAS 147 + + + + +ERRATAS + +Os mais notaveis erros so es seguintes: + +Pags. Linha Erro Emenda + +61 5 caximbo cachimbo + +93 15 embaraadoramente enleiando-nos + enleiando-nos embaraadoramente + +93 33 estendidas extendidas + +107 33 inqueriu inquiriu + +114 29 vacillanto vacillante + + + + + + + + + +BREVEMENTE + +ser dado estampa o novo romance de Marques de Carvalho + +SOROR MARIANA + +Grande tla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relvo a um +dos mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formar um forte +volume de de 300 paginas impressas a capricho. + + + + + + +End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES *** + +***** This file should be named 30341-8.txt or 30341-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/0/3/4/30341/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/old/30341-8.zip b/old/30341-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..ce9323b --- /dev/null +++ b/old/30341-8.zip diff --git a/old/30341-h.zip b/old/30341-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..a60593f --- /dev/null +++ b/old/30341-h.zip diff --git a/old/30341-h/30341-h.htm b/old/30341-h/30341-h.htm new file mode 100644 index 0000000..aadeb8b --- /dev/null +++ b/old/30341-h/30341-h.htm @@ -0,0 +1,3584 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Contos Paraenses, por J. Marques de Carvalho</title> + <meta name="Author" content="J. Marques de Carvalho"> + <meta name="Publisher" content="Pinto Barbosa & C."> + <meta name="Date" content="1889"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + font-family: sans-serif; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1, h2, h3, h4 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.centrado {text-align: center; text-indent: 0;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + h2 sup a {font-weight: normal; font-size: 8pt;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos Paraenses + +Author: Joo Marques de Carvalho + +Release Date: October 27, 2009 [EBook #30341] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-15 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES *** + + + + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + + + + + +</pre> + + +<p> </p> +<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p> + +<p style="font-size: 2em;">CONTOS</p> + +<p style="font-size: 2.5em;">PARAENSES</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>PAR</p> + +<p>PINTO BARBOSA & C.—Editores<br> +<small>Rua 13 de Maio</small><br> +1889</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_1" name="pg_1">{1}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.2em;">Obras de Marques de Carvalho</p> + +<p style="font-size: 1.4em;">VI</p> + +<p style="font-size: 1.5em;">CONTOS PARAENSES</p> + +<p><span class="pn"><a id="pg_2" name="pg_2">{2}</a></span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="margin: 10%; font-size: 0.8em;"> +<p style="text-align:center;">DO MESMO AUCTOR</p> + +<p>O S<small>ONHO DO</small> M<small>ONARCHA</small>,—poemeto, 1886, +Opusculo </p> + +<p>L<small>AVAS</small>, poemeto, 1886, Opusculo</p> + +<p>P<small>AULINO DE</small> B<small>RITO</small>, perfil, com +<em>fac-simile</em> e retrato do biographado, 1887, 1 vol.</p> + +<p>H<small>ORTENCIA</small>,—romance naturalista, 1888, 1 vol.</p> + +<p>O L<small>IVRO DE</small> J<small>UDITH</small>,—versos e contos para +creanas, 1889, 1 vol</p> + +<p style="text-align:center;">A PUBLICAR</p> + +<p>H<small>ISTORIAS D'AMOR</small>,—contos, 1 vol.</p> + +<p>S<small>OROR</small> M<small>ARIA</small>,—romance, 1 vol.</p> + +<p>T<small>HEODORICO</small> M<small>AGNO</small>,—perfil, 1 vol.</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_3" name="pg_3">{3}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p> + +<p style="font-size: 2em;">CONTOS PARAENSES</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>PAR</p> + +<p>PINTO BARBOSA & C.—Editores<br> +<small>Rua 13 de Maio</small><br> +1889</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_4" name="pg_4">{4}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> +<hr> + +<p style="font-size: 0.8em; text-align: center;">Par—Typ. dos Editores, +rua 13 de Maio.—1889.</p> +<hr> + +<p><span class="pn"><a id="pg_5" name="pg_5">{5}</a></span></p> + +<div style="text-align:center;"> +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>A MEU IRMO</p> + +<p style="font-size: 1.8em;font-family: serif;">Antonio de Carvalho</p> + +<p><span class="pn"><a id="pg_6" name="pg_6">{6}</a><br> +<a id="pg_7" name="pg_7">{7}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>AO EXM. SR. COMMENDADOR</p> + +<p style="font-size: 1.5em;font-family: serif;">Domingos Jos Dias</p> + +<p +style="font-size: 0.8em;font-family: serif; margin-left: 10%;">Reconhecimento, +Amizade, Venerao.</p> +</div> + +<p><span class="pn"><a id="pg_8" name="pg_8">{8}</a><br> +<a id="pg_9" name="pg_9">{9}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<p> </p> + +<h1><a name="SECTION001000000">Alegria gauleza</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION001100000">A Jos Verssimo</a> </h3> + +<p>Emquanto esperavamos o almoo,—aquelle almoo s pressas encommendado +no mais que modesto <em>hotel</em> do Pinheiro, fmos dar um passeio pela +matta, sob a sombra das grandes arvores copadas.</p> + +<p>As senhoras haviam ficado na sala do <em>hotel</em>, aguando o appetite no +bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.</p> + +<p>O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto +quadrado,<span class="pn"><a id="pg_10" name="pg_10">{10}</a></span> de longas +suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da America.</p> + +<p>Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos +transportara ao Pinheiro.</p> + +<p>Ainda no havia duas horas que nos conheciamos, e j grande familiaridade se +estabelecera entre ns,—essa familiaridade facil, intima, passageira, das +pessoas que viajam.</p> + +<p>Estavamos ainda a bordo, e j o meu sympathico companheiro, sentado +amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia do +Par, onde tencionava ficar at ao fim da vida.</p> + +<p>Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja existencia eu +ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por motivos que eu no +tratava de saber, to vivamente me attraa a curiosidade.</p> + +<p>Quando saltamos para terra,—emquanto subiamos pela escada da +ponte,—convidei-o para almoar comnosco, e elle acceitara +rindo,—com um riso bonacho de quem dotado de alma simples, sem +duplicidade.</p> + +<p>Fra elle quem me propuzra aquella excurso matta, para darmos tempo a +que o hoteleiro preparasse a refeio, que eu j preva frugal e triste, +attendendo s condies da terra em que nos achavamos.</p> + +<p>Acceitei-lhe de boamente a proposta, com<span class="pn"><a id="pg_11" +name="pg_11">{11}</a></span> aquella vivacidade alegre de quem vive mezes +inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos, +um bello dia para descanar um pouco, em a paz d'uma povoao de arrabalde, +refestelando-se preguiosamente na relva odorfera dos nossos grandes e +soberbos mattagaes.</p> + +<p>E fmos por ali fra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante +cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja uniformidade era +quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo branco das varias flres +sylvestres, cujas ptalas encolhiam-se um pouco, meio-fanadas pelos raios do +sol.</p> + +<p>Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por onde a +vista se perdia no infinito, aps o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da +marezia andava no espao, casado ao perfume subtil e excitante da baunilha, +cujas compridas favas pendiam dos escuros e velhos galhos d'aquellas arvores +seculares. Pssaros voavam cleres, n'um brando ruflar d'azas, soltando +pequeninos gritos estrdulos e alegres. De momento a momento, a curta distancia +de ns, lagartos cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o +folhedo scco que juncava o slo. E l muito ao longe, no alto, sobre pedaos +de ceu de um azul deslavado, que ns entreviamos pelos interstcios das +ramas,<span class="pn"><a id="pg_12" name="pg_12">{12}</a></span> urubs +recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos seus vos +arredondados, pairando como n'uma contemplao enamorada da terra que os +sustenta com suas putrefaces, com seus resduos infames e nojentos.</p> + +<p>De repente, o meu companheiro disse-me:</p> + +<p>—Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar canado d'esta longa +caminhada.</p> + +<p>No tinha a minima accentuao estrangeira; fallava como um verdadeiro +paraense.</p> + +<p>Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de bruos, +com o pescoo estendido e o grande chapu de palha do Chile a descer-lhe para a +nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.</p> + +<p>Ficamos calados por alguns minutos.</p> + +<p>Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos +haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra exhalava.</p> + +<p>Perguntei-lhe de repente, no achando outra coisa a dizer-lhe:</p> + +<p>—O sr. casado?</p> + +<p>Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expresso investigadora de quem +deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois respondeu: +</p> + +<p>—No... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.</p> + +<p>—Ah!</p> + +<p>— verdade. Sou viuvo e tenho-me dado<span class="pn"><a id="pg_13" +name="pg_13">{13}</a></span> muito bem n'este novo estado de quem vive sem as +preoccupaes do homem casado, que tem uma familia a sustentar. Bem tolo quem +se casa...</p> + +<p>Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.</p> + +<p>Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traando nas +duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, partiam a +perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das suissas.</p> + +<p>Eu no comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim sublinhadas +por similhante sorriso.</p> + +<p>Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, apertando-me +as costas da mo direita, como para chamar para si toda a minha atteno:</p> + +<p>—Est curioso, no? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de +arribao que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no corao, no +rosto,—nos labios e no olhar? uma historia muito longa a minha, meu +caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? No perder nada com isso; pelo +contrario, creio aproveitar alguma coisa com a moral que tirar das minhas +palavras, depois de me dar toda a razo nos actos que pratiquei. Logo que me +ouvir, o sr. verificar que muito certo o rifo: <em>Tristezas no pagam +dividas</em>, e adquirir a certeza de que, n'este mundo, o<span class="pn"><a +id="pg_14" name="pg_14">{14}</a></span> melhor meio de se gosar sade e viver +tranquillo, ter o corao calmo como a bonana e grande como a barriga do +dezembargador Delfino. Ora vire p'ra c as oias e preste atteno.</p> + +<p>Sentei-me. Elle fez o mesmo e comeou, sorrindo sempre:</p> + +<p> </p> + +<p>—"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de ris, +herana de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando logo um +socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o +meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma hispanhola rles e +velhaca de um hotel da cidade.</p> + +<p>"Um bello dia fallimos,—por causa dessas extraordinarias despezas +capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crsus. Cuida que apaixonei-me +por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, sem vontade para +continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu espirito refractario a +tristezas,—o meu corao grande de mais para fazer-se pequenino e mirrado +por to pouca cousa. Um ou dois contos de ris que pude ganhar em certo +negocio, aps o naufragio a que fra conduzido pela doidice de meu socio, +empreguei-os em comprar algumas joias de ouro falso, em mercadorias de +contrabando, e, com um volumoso carregamento barato,<span class="pn"><a +id="pg_15" name="pg_15">{15}</a></span> segui para o rio Madeira, afim de +explorar em meu unico proveito a ingnua simplicidade dos seringueiros.</p> + +<p>"No me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Par, e adquiri maior +carregamento, que fui de novo impingir s remotas regies do alto Madeira, onde +os jacars e onas respeitaram-me sempre a delicada posio de inoffensivo +estrangeiro, que carece de proteco, que no deve ser offendido nunca em um +paiz amigo!"</p> + +<p>Calou-se. Em sua larga bcca de expresso franca e descuidosa estava o +eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraa para esse +homem com toda a enorme fora de um robusto affecto nascente.</p> + +<p> </p> + +<p>Accendeu um charuto e continuou:</p> + +<p>—"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu +regressava definitivamente ao Par, trazendo uma solida fortuna amoedada em +bons contos de ris palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da mala. Tratei +logo de cumprir as imposies de um dever: paguei a todos os crdores da massa +fallida, sem excepo de um s! Uma d'essas dividas da firma era uma +anquinha,—uma anquinha!—que meu socio havia comprado para a sua +Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que estabeleci-me pela +segunda vez,—d'essa<span class="pn"><a id="pg_16" +name="pg_16">{16}</a></span> feita sem socio, para no mais ser prejudicado por +ninguem.</p> + +<p>"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga +paraense,—farta carnao morenamente excitante e grandes quadris +arredondados, divinos,—filha de um subdelegado de policia. Casei-me com +ella alguns mezes depois de a ver. No tinha educao, era estupida, mas +possua a convico da belleza nas frmas, a imponencia da sensualidade no +olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?</p> + +<p>"Dois annos vivi eu nos braos de uma felicidade illimitada. Luiza, a minha +captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em minha infinita +affeio serdia, e cada vez mais revelava-me um esplendido segredo de sua +magnifica belleza de crioula! Era um delirio, uma loucura dulcssima e +purificadora, aquelle amor que eu lhe votava com toda a vibrante virilidade do +meu corpo e da minha alma! A pequenina casa em que viviamos era para mim uma +Capua desejada, onde a minha languidez encontrava tranquillo bem estar, nos +braos da seductora Luiza. O dia seguinte, que para muitos um enigma +atterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproduco +inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavssimas de um amor intenso +e bom, como fostes amadas pela piguice da ingenuidade do meu espirito!"<span +class="pn"><a id="pg_17" name="pg_17">{17}</a></span></p> + +<p>Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisao prazenteira. +Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a arregaar-lhe a rubra ponta +do labio grosso e varonil.</p> + +<p>E proseguiu, aps haver accendido o charuto que se apagara:</p> + +<p> </p> + +<p>—Eu tinha inteira confiana em Luiza. Jmais a ida de uma perfidia de +sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como +poderiam enganar-me aquelles olhos to bellamente claros e brilhantes, aquella +bocca de perfumosos labios que davam beijos to doces, to sensuaes, to +irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espirito era o +espelho onde se reflectia o meu corao e onde eu suppunha ver a alma de Luiza, +estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser to rudemente +ferida pelos factos!</p> + +<p>" como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a +phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginao creadora e +ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Maraj, que viera cidade, e +um bello dia, quando, ao car da tarde, regressei a casa para jantar, no mais +a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com +o sobredito <em>cujo</em> mencionado<span class="pn"><a id="pg_18" +name="pg_18">{18}</a></span> vaqueiro, como vim logo a saber, por informaes +ministradas pela visinhana, com grande vergonha dos meus brios de homem +robusto, completo, valente e, na minha valiosa opinio, no de todo incapaz +para o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e voluptuosa. +</p> + +<p>"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as leis +do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de Maraj, onde, por +certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos braos do cyclopico +vaqueiro? Que expuz irriso publica, s chufas da plebe, a ignara patifaria +de minha mulher e a irreparavel deshonra do meu nome? Nada d'isso, meu caro! +Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas +de que se esquecera com a precipitao da fuga! Veja at que ponto fui +complacente. Veja que santa bondade a minha!</p> + +<p>"A desgraada morreu um anno depois, victima de bri-bri; pois bem; para +mostrar a Deus que no sou de todo mau, mandei por alma de minha mulher resar, +na egreja do Carmo, uma triste missa de <em>requiem</em>, a que assisti com +respeito e piedade."</p> + +<p>Calou-se, sem uma commoo no rosto ou na voz. Falava como se tratasse do +tempo ou da cr do cu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E logo o seu +velhaco<span class="pn"><a id="pg_19" name="pg_19">{19}</a></span> risinho +sarcastico saltou-lhe da bcca e veiu espreitar-me de sobre o labio +superior,—como se fosse um depoimento vivo da tranquillidade d'aquella +alma em face de todos os extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella +haviam passado, sem conseguirem emocional-a.</p> + +<p> </p> + +<p>O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me para +que acompanhasse-o, seguiu em direco ao povoado, cantarolando esta pandega +quadra do <em>Dia e a Noite</em>, de Lecocq:</p> + +<blockquote> + <em>Minha mulher, que Deus levou,</em><br> + <em>Foi-me infiel constantemente;</em><br> + <em>Nada d'isso me acabrunhou:</em><br> + <em>Levei o caso alegremente!</em><span class="pn"><a id="pg_20" + name="pg_20">{20}</a><br> + <a id="pg_21" name="pg_21">{21}</a></span> </blockquote> + +<h1><a name="SECTION002000000">A convalescente</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION002100000">Ao dr. Alvares da Costa</a> </h3> + +<p>Estava pallida e triste, encostada levemente grade do camarote, n'aquella +noite de estra.</p> + +<p>Os seus olhos, negros como a sda que o seu delicado corpo vestia, divagavam +pela plata, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia uma d'essas +melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e idaes, bellas, +todavia, mesmo na falsidade da sua creao,—vivificada por um mysterio e +conduzida quella sala d'espectaculo,<span class="pn"><a id="pg_22" +name="pg_22">{22}</a></span> onde ostentavam-se as formosuras das moas da moda +e as austeras sobrecasacas dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.</p> + +<p>E ella estava sempre pallida, encostada levemente grade do camarote.</p> + +<p>Nos labios tinha ingnuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expresso da +sympathica physionomia.</p> + +<p>Um engraado diabrte, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.</p> + +<p>Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da alma +uma commoo de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada d'esse logar, +d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para a plata, cujo +ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos lenos rendados, dos +perfumosos lenos discretos das jovens damas....</p> + +<p>E aquella encantadora creana que, sempre triste, encostava-se grade do +camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do soffrimento, que +tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia austeramente sria sob a luz +intensa do lustre.....<span class="pn"><a id="pg_23" +name="pg_23">{23}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION003000000">Desilluso</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION003100000">A Fontes de Carvalho</a> </h3> + +<p>A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem +sonhando amores e descobrindo tmidas paixes nas palavras alegremente +zombeteiras dos moos que fingem cortejal-as por distraco.</p> + +<p>Tinha ella a tez,—enrugada e molle como a casca do janipapo +maduro,—salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; +encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de p de arroz, +comprado<span class="pn"><a id="pg_24" name="pg_24">{24}</a></span> sempre na +<em>Loja Mariposa</em>, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico +Affonso,—vendia-lh'o com muita dse de <em>rclames</em> e chamadas de +atteno para a superioridade da fazenda.</p> + +<p>Usava uns vestidos fra da moda, mal feitos, com algumas ndoas, nos quaes +primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.</p> + +<p>O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refgos da engelhada +epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada +d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.</p> + +<p>As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco +lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do +direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui +confidencialmente a certas amigas particulares.</p> + +<p>Sempre houve maledicentes no mundo (salve a <em>chapa</em>!): foi por isso +que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercao com ella, retirou-se de seu +trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem +pintava os cabellos, que, se no recebessem quotidianamente os respectivos +affagos da esponja embebida em tintura, j deveriam estar soffrivelmente +russos, quando no grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler +aquella<span class="pn"><a id="pg_25" name="pg_25">{25}</a></span> affirmativa +a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, +naturalmente.</p> + +<p>A sra. d. Joaquina possuia uma educao mediocre, apenas sufficiente para +conhecer os seus deveres de "moa solteira", quanto educao moral; quanto +intellectual, lia com desembarao e alguns tropeos prosdicos as cartas +repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera +antigamente.</p> + +<p>Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu <em>spleen</em> de +senhora entrada em annos e votada lastimosa condio de <em>tia</em>. Ai! A +pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de no haver em sua mocidade casado +com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus +encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns +vinte e dois annos de existencia. Ella no acceitara o amor d'elle, sonhando +desposar um joven baro, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um +romance do inspido Ponson du Terrail. O baro, porm, nunca appareceu. Agora +era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexo, +resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a +Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe +affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de<span class="pn"><a id="pg_26" +name="pg_26">{26}</a></span> amor, e bas tortas de camares seguidas de +compotas de delicioso bacury, sobremesa.</p> + +<p>Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jmais tivera informaes +exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente +que um fra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela +seduco d'alguma <em>yra</em> encantadora. Do outro constava apenas que +partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear +lareira, nos longos seres de inverno,—quando o suo sibila em as grandes +chamins ennegrecidas,—os succulentos ncos de paios da +Beira,—d'aquelles paios to glutonamente decantados pelo illustre poeta +Joo Penha.</p> + +<p>Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos +tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulurosas +esperanas de captivar o rebelde corao do Francisco da Natividade, o elegante +dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porm, parecia no +partilhar das mesmas intenes, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem +estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella +armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flres, fazia-lhe presentes de +toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o caf quando elle ia +casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros<span class="pn"><a id="pg_27" +name="pg_27">{27}</a></span> accsos aos charutos, roando os dedos nos d'elle, +para mudamente lhe revelar a sua paixo.</p> + +<p>Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente +contra o Francisco, quando, a ss, no momento de estender-se na sua fria rede +de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos +ao bom andamento d'aquelle amor.</p> + +<p>Tal era o estado do corao da boa senhora na poca em que o Natividade +apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.</p> + +<p>A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia to natural, attrau +as boas graas da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos +d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa +admiradora do "seu caracter austero."</p> + +<p>Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, +desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.</p> + +<p>Levada pelas erupes d'aquelle seu corao vulcanico, ella comeou a amar +ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da +Natividade. Cedo surprehendeu o bom moo as amorosas manobras da sra. d. +Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella, +para obedecer aos<span class="pn"><a id="pg_28" name="pg_28">{28}</a></span> +dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora. +</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, j no +Par, apanhasse alguma constipao, Raul adoeceu, ficou pllido, perseguido por +uma pequena tosse, e uma tarde, aps o jantar, sentiu uma suffocao, seguida +de agudas dres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as +omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma +escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.</p> + +<p>—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—J, um +medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....</p> + +<p>O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o +sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendaes sobre o +tratamento.</p> + +<p>Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porm, teve +uma verdadeira e forte hemoptysia. L foi o moleque chamar novamente o doutor. +</p> + +<p>Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que +habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse. +Assoberbado por to assustadora recommendao, o bondoso<span class="pn"><a +id="pg_29" name="pg_29">{29}</a></span> Francisco da Natividade tratou logo de +mandar o sobrinho pelo paquete que do Par sau seis dias depois.</p> + +<p>No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando +verdadeiras lgrymas de d e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a +vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:</p> + +<p>—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faa o +que lhe peo. Mas, antes no a abra, pelo amor de Deus!</p> + +<p>—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos so ordens para mim.... +Adeus!</p> + +<p>Chegando cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso p de +restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de +tudo quanto podsse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a +esquecer-se da sra. d. Joaquina.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos +lhe recommendassem que no viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no +continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma +conceituada casa commercial, para ir fazer cobranas pelas provincias.</p> + +<p>Na vespera do dia em que tinha de seguir<span class="pn"><a id="pg_30" +name="pg_30">{30}</a></span> para a primeira excurso,—ao +Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mo +no bolso d'um <em>paletot</em> que s vestia em viagem, encontraram seus dedos +um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e +suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe dra a sra. d. Joaquina.</p> + +<p>—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo no ter +feito a meu respeito a impagavel senhora....</p> + +<p>E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.</p> + +<p>"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito +<em>afflue-me</em> aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: +amo-o, amo-o, com todo o ardor de que capaz o meu ardente corao! (Isto +copiou ella do romance <em>A Caridade Christ</em>, de Escrich,—pensou +Raul). Peo-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se <em>fui</em> por si acolhido +o meu amor. (Aquelle <em>fui</em> que era genuinamente d'ella, s d'ella; o +Raul bem o conheceu). Espero <em>ancioza</em> a sua resposta, com a qual o meu +amigo <em>remeter-me-</em> meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de +presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do corao de sua +eternamente,—J<small>OAQUINA</small>."</p> + +<p> </p> + +<p>Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle +<em>modelo</em> d'orthographia,<span class="pn"><a id="pg_31" +name="pg_31">{31}</a></span> propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se +mais serio e:</p> + +<p>—Ora bolas!—disse.—S os cabellos encantavam-me, por serem +to pretos e lustrosos.... E era falsa aquella cr d'azeviche!.... Que +desilluso!....<span class="pn"><a id="pg_32" name="pg_32">{32}</a><br> +<a id="pg_33" name="pg_33">{33}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION004000000">A "Serenata" de Schubert</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION004100000">Ao dr. Augusto Meira</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION004110000">I</a> </h2> + +<p>No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, Joo estava deitado na +rde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, luz branda de uma vela +de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na +Casa de Deteno, derramando pelo ar um spro de tranquillidade imponente, que +fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos +domicilios. O vento norte,<span class="pn"><a id="pg_34" +name="pg_34">{34}</a></span> que vinha de Olinda, entrava na sala, e d'esta +seguia para o quarto de Joo, agitando a luz dentro do <em>photo-mobile</em>. +</p> + +<p>Na invisivel palpitao da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na +visinhana. Fanatico adorador da musica, Joo fechou o livro e prestou +atteno. Eram as primeiras notas da <em>Serenata</em> de Schubert, esse +magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composies! De um +pulo, achou-se abaixo da rde, fra do quarto, ao balco de uma das janellas do +seu humilde terceiro andar. E encostou-se grade, com o rosto descanado na +mo direita, dispondo-se a ouvir a sua pea predilecta.</p> + +<p>Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, como +extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava no +azul-ferrete do co, por entre multides de estrellas tremeluzentes, uma +diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes montes de +nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima saam as vozes do +piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas janellas abertas.</p> + +<p>Como todas as musicas sentimentaes, a <em>Serenata</em> de Schubert possue +isto de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro da +meditao tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que so sempre, +quer dolorosas<span class="pn"><a id="pg_35" name="pg_35">{35}</a></span> quer +alegres, um grato consolo para a alma.</p> + +<p>Foi por isso que Joo, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em +seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente +dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu querido Par, podia +ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella que deve um dia ser sua +esposa.<sup><a href="#fn1" name="mfn1">[1]</a></sup> Foi tambem porisso que o +moo estudante de direito recordou-se,—e com quantas saudades!—da +magistral execuo que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro +allemo,—uma execuo toda sentida, interpretando os minimos segredos, +com dulcssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao espirito e +suaves langores ao corpo.</p> + +<p>Entrou Joo a imaginar que estava no Par, ao lado de sua querida +companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta, +extasiado na audio d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma +transformao imaginativa, o piano<span class="pn"><a id="pg_36" +name="pg_36">{36}</a></span> da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos d'elle +um som particular, intimo, que o commovia todo, chamando-lhe duas lgrymas aos +cantos dos olhos! E, por esta causa tambem, sua alma pareceu ver desfilar nas +pacificas paredes da casa fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual +dra-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expresso +poetica, porm saudosssima, de uma tela de Watteau....</p> + +<p>Esse quadro, eil-o:</p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#mfn1" name="fn1">[1]</a></sup> Este conto foi escripto em +1886. A donzella de que se trata est hoje casada com o heroe da presente +narrao e pde gabar-se de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida +e a mais leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga de +todas as mes.</p> +</div> + +<h2><a name="SECTION004120000">II</a> </h2> + +<p>Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sar no relogio da varanda. Um +socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a familia +estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sof. Das ruas vinham +pelas janellas abertas fortes spros de brisas cheirosas e sons de guitarras +fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaos, uma voz, um +grito chegava at sala, revelando que pela cidade havia quem passeiasse, +tentando festejar o anniversario do nascimento de Christo.<span class="pn"><a +id="pg_37" name="pg_37">{37}</a></span></p> + +<p>Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora sugava +a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o clo de sua virtuosa me, a +qual, supposto conversar com o extremoso marido, no afastava do rosto da filha +os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um lago de ternura meiga e +immaculavel como um beijo maternal.</p> + +<p>Contemplando este quadro rubenesco, Joo pensava nos santos prazeres do +lar,—elle, que era um msero orpho, um desgraado pari do +amor!—emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle, +falava-lhe compungida crca de uma infeliz mulher que, pela manh, recebera de +suas pequeninas mos bemfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E +dominando a todos, no meio do sof, com a expresso suavssima do rosto +espiritualisada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os labios, o +velho Antonio, de cabellos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao +filho mais moo, ao Theodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe +como exemplo a seguir vrias scenas a que assistira em sua passada vida +commercial.</p> + +<p>Uma exhalao de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a +tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depe muitas +confianas no futuro.<span class="pn"><a id="pg_38" +name="pg_38">{38}</a></span></p> + +<p>De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz ergueu-se da +rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:</p> + +<blockquote> + Folguem todos n'esta noite,<br> + Venha a festa sem egual:<br> + —Hoje em nada se repara,<br> + Porque noite de Natal.<br> + Hoje em nada se repara,<br> + Porque noite de Natal. </blockquote> + +<p>E a guitarra chorava em <em>tom menor</em>, fazendo cro ao +<em>ritornello</em>. A voz de um agradavel <em>tenor</em> prendeu logo a +atteno dos que estavam na sala:</p> + +<blockquote> + Esta noite abenoada<br> + Pertence aos que tm amor;<br> + No presepe bethlemita<br> + Veiu ao mundo o Deus-Senhor. </blockquote> + +<p>Novo <em>ritornello</em> choroso na guitarra.</p> + +<blockquote> + Por isso, moos e moas,<br> + Entregae-vos ao prazer,<br> + Emquanto no vem a edade<br> + Vossa fronte encanecer! </blockquote> + +<p>Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.</p> + +<p>Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantra a cabea, n'uma energia de +movimento,<span class="pn"><a id="pg_39" name="pg_39">{39}</a></span> com as +narinas afflantes, os anneis da cabea tremendo-lhe sobre os hombros.</p> + +<p>—Tlo!—exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se +agora ao longe, na extremidade da rua.—Pois que venha c, a ver se os +velhos no tm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me +dir ao depois se eu no amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o +meu Theodoro e innocentinha que ahi dorme sob as benos do meu olhar!..</p> + +<p>Um soluo gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a encarnao +do carinho e, muito piedosa e pura,—qual um raio de sol illuminando a +face de uma estatua antiga,—foi beijar amoravelmente a fronte do +ancio....</p> + +<p>Que no se affligisse, pediu-lhe affagando-o;—que no dsse +importancia a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que +intensidade elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E +demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, no +valia a pena entristecer-se....</p> + +<p>—Para o lado os pezares!—terminou sorrindo.—Como +distraco agradavel a todos, vou tocar ao piano a <em>Serenata</em> de +Schubert.</p> + +<p>J se tinha Joo levantado, prevendo<span class="pn"><a id="pg_40" +name="pg_40">{40}</a></span> este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a +estante a musica desejada e, accendendo as velas, sentou-se ao lado do +banquinho, que Dhalia veiu occupar.</p> + +<h2><a name="SECTION004130000">III</a> </h2> + +<p>E comearam ento as primeiras melodias da <em>Serenata</em>.</p> + +<p>Joo cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audio da formosa pea, to +bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica comprehendia os +segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma figura, ao principio +fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, apparecendo em primeiro +plano, desenhou-se na tela da imaginao do moo. E surgiu ento um joven de +bandolim em punho, debaixo dos balces floridos de um elegante castello, que se +erguia a meio de uma paizagem germanica, onde os robles farfalhavam borda dos +lagos tranquillos, sobre cujas superficies grandes garas deslisavam elegantes, +ruflando as<span class="pn"><a id="pg_41" name="pg_41">{41}</a></span> brancas +pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um canto magico de +yra amazonica, sentida como uma recriminao paternal, doce como um beijo +apaixonado. De seus labios cr de papoula distillava-se o mel da musica de +Schubert, que ia cair com uma suavidade de balsamo sobre a alma enamorada de +uma joven castell formosa, occulta entre os reflhos das colgaduras das +janellas! A voz do amoroso trovador tinha um no sei qu de melancholico, um +tal cunho de poesia dolente, que Joo emocionou-se tanto em face do quadro que +a sua imaginao lhe descrevia, que no pde deixar de cantarolar baixinho, com +um meio sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretao de Dhalia: +</p> + +<blockquote> + <em>"O Chtelaine,</em><br> + <em>Entend ma peine!..</em>"<br> + ...................<br> + ................... </blockquote> + +<p>Dhalia executou o <em>morendo</em> final da Serenata. Joo acordou da sua +<em>rverie</em>, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico +bailava um risinho engraado.</p> + +<p>De p, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante +illuminado n'uma expresso de ineffavel ventura.<span class="pn"><a id="pg_42" +name="pg_42">{42}</a></span> Dos labios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma +beno muda, que se completava pelo gesto das mos erguidas e espalmadas no +espao!.. Era o pae a abenoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!</p> +<hr class="dotted"> + +<h2><a name="SECTION004140000">IV</a> </h2> + +<p>Estava n'este ponto a saudosa recordao do moo estudante, na janella do +seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha +desconhecida gemia tambem o adoravel remate da <em>Serenata</em>.</p> + +<p>Joo sentiu-se commovido por aquella musica inspiradssima, que lhe avivra +to grata lembrana de seu venturoso passado,—agora que elle estava +ausente do querido slo natal, onde moravam todos os que possuiam-lhe a flr do +affecto. Ergueu os olhos ao co, n'uma necessidade de soltar livremente o +espirito pela amplido infinita do vacuo. No firmamento azul tachonado de +louras lucilaes, o crescente de lua<span class="pn"><a id="pg_43" +name="pg_43">{43}</a></span> vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; +pequeninos flcos de nuvens seguiam, muito calmos e ethreos, pelo espao +adeante, projectando sombras cinzentas sobre o calamento da rua. Da margem +opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se +bradando—<em>alerta!</em>— sentinella.</p> + +<p>Ento, por um impulso de agradecimento, o espirito de Joo partiu pelo +infinito a fra, chegou ao Par, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se +piedoso modesta pedra gradeada que sella o tumulo venerando de Antonio, o +estremecido pae de sua noiva.<span class="pn"><a id="pg_44" +name="pg_44">{44}</a><br> +<a id="pg_45" name="pg_45">{45}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION005000000">Que bom marido!</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION005100000">A Juvenal Tavares</a> </h3> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p><em>No desejars a mulher do teu proximo.</em><br> + M<small>ANDAMENTO DE</small> D<small>EUS.</small> </p> +</blockquote> + +<p>Havia j tres annos que estavam casados. No tinham filhos. Viviam felizes, +tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, +onde o sol da manh brincava alegremente n'umas scintillaes que davam a nota +de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador +olhar.<span class="pn"><a id="pg_46" name="pg_46">{46}</a></span></p> + +<p>Elle era um velho quarento, amanuense de secretara, obeso, rubicundo, de +rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que +tivra,—tempestuosa e poda nas orgias,—encanecera-lhe +completamente os cabellos da cabea, os quaes desciam para o rosto, onde +cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle cr de ginja.</p> + +<p>Ella tinha dezoito primavras,—para me servir d'uma velha expresso do +romantismo;—ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e +marotos. Tz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador +descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos +do que os de um co da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da anglica, +era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a +mais de meia-duzia de gamenhos vados,—d'esses namoradores enfatuados que +abundam por toda a parte.</p> + +<p>O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manh, s 8 horas, +depois do respectivo e parco almoo, o sr. Bonifacio escovava com a manga da +sobrecasaca o solenne chapu alto, dava um <em>chcho</em> mulher e saa para +a repartio com o passo do empregado publico:—impassivel e +cadenciado.</p> + +<p>Elvira acompanhava o esposo at porta da rua, fazia-lhe uma pequena +caricia e<span class="pn"><a id="pg_47" name="pg_47">{47}</a></span> voltava +varanda, afim de dar algumas ordens crca do jantar. Dispostas as coisas para +a segunda refeio, a sentar-se machina de costura, que dava-lhe no +diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os +vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a +qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e +um passeio a <em>bond</em> em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de +Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. Joo e mais +outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam encantadora +esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e +nova.</p> + +<p>Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus +adoradores,—rapazes toleires, aos quaes ella, diga-se a verdade, no +ligava muita importancia. Entre esses moos, quem mais assiduamente a +requestava era um tal Jacyntho,—um <em>leo</em> conquistador que falava +pelos cotovllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro +atrevido. Este Jacyntho apaixonra-se por Elvira poucos dias depois do +casamento d'ella, por occasio d'um passeio a Benevides. Desde essa poca, o +pobre <em>namorado sem ventura</em> passava todas as tardes pela casa do +Bonifacio, quando Elvira a para a janella,<span class="pn"><a id="pg_48" +name="pg_48">{48}</a></span> emquanto o marido, na varanda, jogava o slo com o +taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, +enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense +retribua a este ultimo e conservava-se muito sria, muito digna, sem +corresponder quelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era +pontual entrevista, na qual Elvira j parecia interessar-se, pois que tambem +no deixava de ir para a janella assim que, l na varanda, o sr. Bonifacio, o +taberneiro e o vizinho comeavam no <em>passo</em> e no <em>blo</em>. que a +interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que no poda se +contentar com os ss affagos morosos e frios do velho Bonifacio. No obstante, +nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se quillo a que chamava "uma +distraco", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um +crime.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Jacyntho no era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a +esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra +dura, tanto d at que fura." Tinha confiana<span class="pn"><a id="pg_49" +name="pg_49">{49}</a></span> no futuro, que resolvera, com +vantagem,—aquelle interessante problema de amor.</p> + +<p>Uma tarde,—era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devras +admirado por ver que a sua querida no estava janella. Olhou para os dois +lados da rua e no enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a +apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um s vivente se via.</p> + +<p>Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, +que saa da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:</p> + +<p>—Onde est a d. Elvira, minha filha?</p> + +<p>A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabea para o peito, metteu na +bocca o index da mo direita, conservando-se calada.</p> + +<p>—Vamos, fala, toma um tosto.... Onde est a d. Elvira?—insista +o <em>leo</em> fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.</p> + +<p>Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuados da fregueza e +disse, ainda meio acanhada:</p> + +<p>—Est l dentro....</p> + +<p>—E o sr. Bonifacio?</p> + +<p>—Sau.</p> + +<p>—Dou-te outro nickel se fres levar uma carta tua senhora, +queres?</p> + +<p>—Eu quero....<span class="pn"><a id="pg_50" +name="pg_50">{50}</a></span> </p> + +<p>Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por +cautella, no datra nem assignra. Entregou-a mulatinha e conjuntamente +outro tosto.</p> + +<p>Depois seguiu pela estrada adeante.</p> + +<p> </p> + +<p>Elvira no deu resposta quella carta, que lhe revelra o grande amor que +por ella sentia o Lovelace paraense. Este no desanimou: deixou de passar pela +estrada de S. Braz durante dois dias, aps os quaes voltou, seguindo pelo +passeio, rente janella. Sacudiu-lhe ao clo nova epstola. Repetiu o mesmo +jogo por uma semana. Finalmente, Elvira no pde resistir mais, mandou-lhe uma +carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho +no era-lhe indifferente, mas que devia abrir mos quelle amor, porquanto a +sua "posio de mulher casada no lhe permittia to gratas liberdades."</p> + +<p>D'ento em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar +dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos +d'aquelle. que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do +sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas +leituras romanticas<span class="pn"><a id="pg_51" name="pg_51">{51}</a></span> +deram causa correspondencia criminosa.</p> + +<p>Havia j alguns mezes que o amor dos dois no tivra outras expanses alm +d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente. +</p> + +<p>Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de +volta d'uma visita que fra fazer a seu chefe de seco. Transpondo o limiar da +porta, encontrou a mulatinha que saa apressadamente, escondendo mal entre as +dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a atteno de velho curioso.</p> + +<p>—Que levas ahi?—perguntou.</p> + +<p>—No nada....—respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar +aos paraenses.</p> + +<p>—No mintas! Eu vi no sei qu!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a +pelo brao e apoderando-se do objecto.</p> + +<p>Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:</p> + +<p> </p> + +<p>"Meu amigo, depois d'amanh, meia noite, meu marido vae ouvir a <em>missa +do gallo</em> em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de +conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha 1 +hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.</p> + +<p style="text-align: right;">E<small>LVIRA</small>.<span class="pn"><a +id="pg_52" name="pg_52">{52}</a></span></p> + +<p>O Bonifacio <em>subiu ao arame</em>; ficou da cr da purpura e sentiu uma +violentssima dr de cabea. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa +infiel; reflectiu, porm, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe appareceu a +subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingana.</p> + +<p>—Toma, leva,—disse entregando a carta rapariga.</p> + +<p>E entrou.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgases de moos +d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belm em direco s differentes egrejas +onde se deve rezar a <em>missa do gallo</em>.</p> + +<p>O sr. Bonifacio, que levantou-se ultima pancada das 11 horas, sae para a +rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dr de cabea...."</p> + +<p> 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros +at chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que +bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um +leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que +a fruir na conversao de Elvira, quando<span class="pn"><a id="pg_53" +name="pg_53">{53}</a></span> subitamente exhalou um grito, dando um salto para +o lado.</p> + +<p>Era o respeitavel sr. Bonifacio, que sando de traz da mangueira onde +occultra-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivra a lembrana de +namorar-lhe a mulher.</p> + +<p>Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio pouca +agilidade que ainda possua e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente, +n'uma agitao febril....</p> + +<p>O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos +haviam sado para a <em>missa do gallo</em>.</p> + +<p>Quando canou, quando os braos negaram-se a continuar, o honrado amanuense, +despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que +achava-se por terra, com os ossos quasi modos:</p> + +<p>—V-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! No torne a car na +asneira de namorar moas casadas!</p> + +<p>E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de +medo.<span class="pn"><a id="pg_54" name="pg_54">{54}</a><br><a id="pg_55" +name="pg_55">{55}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION006000000">Noite de finados</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION006100000">A Manoel P. de Carvalho</a> </h3> + +<p>O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos de +preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. Eram oito +horas da noite sob um co trevoso como a tristeza d'aquellas pessoas que ali se +recordavam com saudades pungitivas dos parentes e amigos para sempre occultos +debaixo da terra, sobre a qual compridas filas de vlas accsas lanavam uma +claridade intensa, que ia esbater-se ao fundo, na escurido do mattagal.<span +class="pn"><a id="pg_56" name="pg_56">{56}</a></span></p> + +<p>O ar estava impregnado do perfume das flres—piedosamente depostas em +cima das sepulturas por mos amigas,—e do cheiro mystico da cra +queimada.</p> + +<p>Ao longe, direita da ermida, uma banda de musica executava plangentemente +uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades lugubres faziam +suspirar as velhas beatas,—aspirando a uma outra vida desconhecida, alm +d'aquelle firmamento negro, no logar onde a omnipotencia incondicional da +Divindade lhes parecia dominar em toda a sua magestade.</p> + +<p>Entretanto, de espao a espao, grandes ondas de povo invadiam o cemiterio. +Este, quella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas que receiavam um +atropello, saam enfadadas, murmurando indecencias.</p> + +<p> porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente com +as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas lanternas +que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de vestes sujas e +mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em seu favor a caridade dos +visitantes piedosos.</p> + +<p>Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam olhares +torpemente libidinosos s moas que entravam seguidas de suas mames, n'um<span +class="pn"><a id="pg_57" name="pg_57">{57}</a></span> andar assustadio e +saudando um ou outro conhecido com um meneio de cabea. Mais adeante, n'um +canto escuro, uma rolia mulata, com o vestido muito decotado, murmurava +amabilidades a um preto de physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e +com a cabea coberta por um descommunal chapu alto. Como contraste, no muito +longe, estava uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados +grade ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vlas em castiaes de +vidro.</p> + +<p>Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma cora de perpetuas rxas, corriam +lgrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas do capim que +vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....</p> + +<p>Era sem duvida alguma viuva que pagava memoria do finado marido alguns +annos de amorosa e suavssima coabitao na terra...</p> + +<p> esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em negro +caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e toda coberta +de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma senhora de cabellos +grisalhos, immovel, calada—como evocando passadas scenas de +prazer—sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia no funeral +tristonho....<span class="pn"><a id="pg_58" name="pg_58">{58}</a></span></p> + +<p>O co, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiada. Grandes +nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as bandas da +cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluo d'almas penadas fazia +farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar s supersticiosas +moas que estavam no cemiterio.... Agora calra-se a orchestra.</p> + +<p>Subira um prgador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de +grande cma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos tragicos, +uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade mundana e a perenne +bemaventurana celestial.</p> + +<p>As mulheres,—mes, filhas, esposas,—que o ouviam, ficavam +caladas, muito srias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto +bronzeado; no intimo, porm, no fundo da consciencia, levantavam um brado de +maldio quella felicidade que lhes roubra a companhia dos entes queridos e +amoraveis.</p> + +<p>Um homem de cabea encanecida, que vagueava levando pela mo uma creana de +tenra edade,—um lindo e pallido orphosinho,—voltou-lhe costas +nervosamente, soluando, e fugiu para junto de um pobre tumulo tranquillo, em +cuja grade se lia este lancinante poema de uma s phrase:—<em> minha +esposa....</em></p> + +<p>No co, as nuvens afastavam-se, evolavam-se<span class="pn"><a id="pg_59" +name="pg_59">{59}</a></span> como alegrias fugitivas ou prazeres expulsos, +erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de miragens variadas.</p> + +<p>A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena magestade +tumular, que impoz vago soffrimento ao corao de todos. Os brandes e vlas +perderam o brilho, ficaram como pyrilampos lantejoulando os sepulchros sob o +luar diaphano, a cuja claridade continuava o pregador a recordar a omnipotencia +de Deus.</p> + +<p>Os <em>bonds</em> estacionados na praa encheram-se de passageiros. Minutos +depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de senhoras +tristes, com physionomias de soffrimento.</p> + +<p>Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava +illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a +penultima da festa annual.</p> + +<p>Ento, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma saudade +memoria de um amigo, d'um irmo, d'um pae, desciam agora ao centro da festa +popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as casas de +jogo,—propellidos pela fascinao demoniaca e terrivel da roleta!<span +class="pn"><a id="pg_60" name="pg_60">{60}</a><br> +<a id="pg_61" name="pg_61">{61}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION007000000">Rio abaixo</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION007100000">(Ao dr. Gaspar Costa)</a> </h3> + +<p>A cana seguia mansamente, per si s, impellida pela correnteza.</p> + +<p>Sentado pra, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava com +o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas das +bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do sol, que +escondia-se por traz da ilha das Onas.</p> + +<p>Na ppa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o <em>senhor moo</em>, +abanando-se<span class="pn"><a id="pg_62" name="pg_62">{62}</a></span> com uma +ventarola de pennas vermelhas, ao lado da <em>senhora moa</em>, que espreitava +para fra, por um dos pequenos postigos lateraes. A seus ps, dormitava o co +Murur, com um pedao de lingua escarlate cada para o lado esquerdo, entre os +dentes meio visiveis.</p> + +<p>O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos mattagaes +da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam at embarcao, n'uma +suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois +viajantes.</p> + +<p>—Que bonita paizagem, Antonio!</p> + +<p>— certo! Razo tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da +viagem.</p> + +<p>—Quando chegamos ao <em>sitio</em>?</p> + +<p>—s 9 horas, isto , d'aqui a tres ou quatro.</p> + +<p>— pena chegarmos to cedo!</p> + +<p>—Dizes bem: vamos to contentes....</p> + +<p>E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.</p> + +<p>O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns momentos, +voltou o rosto, embaraado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de +sangue equatorial em ebulio. Puxou do cachimbo demorada <em>fumaa</em>, para +tranquillisar-se.</p> + +<p>Os outros, os dois recem-casados,—porque Antonio e Luiza eram noivos: +tinham-se matrimoniado quinze dias antes,—experimentavam, debaixo da +tolda, uma sensao<span class="pn"><a id="pg_63" name="pg_63">{63}</a></span> +de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle magestoso socego, sobre o +Tocantins, dentro da embarcao. Felicitavam-se mutuamente,—com o olhar +cheio de caricias,—por haverem podido esquivar-se vida agitada que +levavam em Belm, sempre rodeados de visitas, cujas conversaes banaes, +nullas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,—como iriam viver felizes +durante aquella quinzena de fuga, em a tranquillidade bucolica da roa, +sosinhos, passeiando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando +caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mos na agua azulada e murmurosa +dos igaraps!.... E que festas fariam hora do jantar, comendo peixinhos +pescados por Luiza, e pacas, rolias de gordas, caadas pelo Antonio nas mattas +do <em>sitio</em>?!....</p> + +<p>Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, estas +idas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem attenderem a que +o sol no mais vibrava os lategos luminosos no dorso da corrente, e que, +portanto, poderiam sair para o centro da cana, afim de gozarem da virao +fresca e cheirosa que agitava n'um movimento descompassado as velas mal +colhidas ao mastro.</p> + +<p>Sempre assentado pra, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o +caboclo<span class="pn"><a id="pg_64" name="pg_64">{64}</a></span> olhava agora +para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixra um rastro +avermelhado no co, onde agrupavam-se em desordem nuvemzinhas cr de ncar, +violetas, azuladas, plumbeas, cr de perola. Do lado opposto, levantava-se a +noite, n'um andar manso, mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo +bruxoleante.</p> + +<p>O gorgeio dos passaros cessra na ilha das Onas, que j tinha ficado atraz, +a longa distancia; s chegavam cana os compassos em <em>andante</em> do +canto de um carachu que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente qual +passou a embarcao.</p> + +<p>—V ahi no meu relogio que horas so, Jos, ordenou Antonio ao +caboclo.</p> + +<p>—Seis e trinta e oito, <em>sinhor</em>.</p> + +<p>—Oh! ento saimos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.</p> + +<p>Vieram para fra.</p> + +<p>Luiza soltou uma exclamaosinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, +engraada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um timbre argentino +como um filete de agua morna caindo n'uma banheira d'oiro lavrado:</p> + +<p>—Ah!—fez ella.</p> + +<p>E deixou-se ficar de p, encostada ao hombro do marido, extasiada, em frente +ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.</p> + +<p>Largo em aquelle sitio, achamalotado<span class="pn"><a id="pg_65" +name="pg_65">{65}</a></span> pela brisa, o rio abraava numerosas ilhotas +rasas, cobertas d'uma vegetao opulenta, que esbatia-se n'uns tons escuros, +quasi indecisos, no limite do horisonte. Um socego de tabernaculo reinava por +toda a parte, sob o azul ferrete do co, onde as estrellas comeavam a +scintillar como as pedras preciosas d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem +occupava n'esse instante um espao do firmamento. Ao longe, direita da terra +firme, tremulava uma pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, +esgueirava-se pelo costado da cana n'um murmurio dolente. A sbitas, na +solemnidade do silencio, resoou um grito d'ave nocturna.</p> + +<p>—Accende a lanterna, Jos,—disse Antonio ao caboclo, que +obedeceu logo, voltando depois sua posio habitual na pra, fumando.</p> + +<p>Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da +embarcao, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros +com roseiras flordas.</p> + +<p>Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi + ppa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, conchegando-lh'o muito +ao pescoo, amoravelmente.</p> + +<p>Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escurido. Do logar em que +achavam-se, apenas viam na pra um ponto vermelho<span class="pn"><a id="pg_66" +name="pg_66">{66}</a></span> como um carbnculo: o tabaco a arder no cachimbo +do caboclo. Este se tornra invisivel na densidade das trevas.</p> + +<p>Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solido: entraram a conversar +baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de to +agradaveis recordaes. Era para ambos uma innarravel felicidade poderem +pairar, assim a ss, das peripecias do curto namro, dos longos annos que elle +passou a amal-a silenciosamente, das emoes e impaciencias do dia do +casamento, quando approximava-se a hora em que o parocho de Sant'Anna teria de +unil-os.</p> + +<p>Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, +n'uma excitao dos sentidos. Um movimento instinctivo,—inconsciente, +talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,—uniu-lhes os labios n'um +prolongado beijo de paixo, vibrante como um cro juvenil.</p> + +<p>Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posio.</p> + +<p>Poz-se a pensar nas passadas e saudosas pocas da sua felicidade, fruda com +a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetao selvatica e cheia de +grandiosidade das florestas amazonicas...</p> + +<p>E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosssima, respondeu +quelle<span class="pn"><a id="pg_67" name="pg_67">{67}</a></span> beijo +nascido de duas bccas amantes no silencio de to linda noite paraense.</p> + +<p>Entretanto, a cana seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela +correnteza.<span class="pn"><a id="pg_68" name="pg_68">{68}</a><br> +<a id="pg_69" name="pg_69">{69}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION008000000">Ao despertar</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION008100000">Ao sr. A. R. d'O. Gomes</a> </h3> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p><em>Nem tudo o que luze ouro.</em><br> + <small>PROVERBIO POPULAR.</small></p> +</blockquote> + +<h2><a name="SECTION008110000">I</a> </h2> + +<p>A alcova nupcial em noite de noivado.</p> + +<p>Um perfume suave de flres volita invisivelmente pela atmosphera da pea, +exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas variegadas em cres +desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas +para o leito de alvas cortinas<span class="pn"><a id="pg_70" +name="pg_70">{70}</a></span> discretamente cerradas... Uma lmpada com vidros +baos, cr de leite, esparze branda luz em torno, sem crepitao, n'uma solenne +impassibilidade, que d certo ar magestoso ao silencio do recinto.</p> + +<p>Dois pares de pantufos de sda branca escancaram as cavas como n'um bocejo, +sobre a fina alcatifa azul, aos ps da cama.</p> + +<p>Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flres de larangeira repousa +meio escondida sob um leno de fina baptista com um monogramma bordado.</p> + +<p>Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pllida e trmula, +seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira preguiosa o elegante +espartilho e o corpinho de labyrintho....</p> + +<p>Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se lhe +antolhavam na vida que ia comear em breve, deixou-se escorregar pelos finos +lenes e descanou a bella cabea de paraense morena, em cima do travesseiro +macio como a flr do algodoeiro....</p> + +<p>E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a +passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios contrahidos n'um +leve rictus de satisfao, de ventura.</p> + +<p>Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma +pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:</p> + +<p>—Permittes?....<span class="pn"><a id="pg_71" +name="pg_71">{71}</a></span> </p> + +<p>E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaados, sonhando +felicidades paradisacas, um perfume suave de flres volita pela atmosphera da +pea, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas multicores +desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas +para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas.</p> + +<h2><a name="SECTION008120000">II</a> </h2> + +<p>O casamento realisado n'aquelle dia fra o epilogo de um longo namoro de +seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como indisposies +subitas, brigas e malquerenas de alguns mezes por causa de nonada, e, depois, +de repente, pela influencia de no sei que espirito benefico, pazes feitas com +abundantes expanses apaixonadas, reconciliaes ternas e carinhosas, que os +prendiam temporariamente n'um enlevo.</p> + +<p>O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, brazileiro +obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfao<span class="pn"><a +id="pg_72" name="pg_72">{72}</a></span> do homem rico que vive contentssimo da +sorte.</p> + +<p>Creara para a filha um ideal—um casamento com um bacharel. Similhante +aspirao, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa roda, para +a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,—a mulher +morrera-lhe de parto, ao dar luz um ente rachtico, inviavel,—deixava a +filha nos sales e ia procurar as mesas de jogo, para encurtar o tempo.</p> + +<p>Assim andaram os dois, por espao de muitos mezes, em verdadeira +peregrinao cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz attendel-os e +appareceu-lhes na frma de um elegante mancebo, que dias antes chegara de +Pernambuco, sobraando o pergaminho que lhe conferia o titulo de bacharel em +direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das graas de Paula. Aquella cutis +morena e avelludada; os olhos d'ella,—duas blas d'onix engastadas em +amendoas de jaspe, sombreadas por longos cilios sedosos;—os longos +cabellos d'bano, ondeando-se-lhe pelas espaduas de farta carnao; aquelle +bonito torso de opulentos seios na apojadura da juvenilidade;—tudo n'ella +prendia-lhe o enamorado espirito em os laos d'uma paixo to sincera quanto +profunda. Mas, sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava +a grandes xtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso espiritualisado +e<span class="pn"><a id="pg_73" name="pg_73">{73}</a></span> prenhe de +beatitude, eram os alvos dentes que perlavam as carminadas gengivas d'ella, +quando Paula fitava-o sorrindo, com duas covinhas sobre as faces, bem junto ao +rosto d'elle, como desejando magnetisal-o.</p> + +<p>Uma tarde, aps haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, foi +para casa com a alma perfumada pelo prazer e to enthusiasmado sentiu-se, que +sentou-se secretria e entrou a fazer uma poesia,—elle que jmais +fizera versos!—uma poesia em que abundavam as +palavras—<em>seductora virgem</em>, <em>divinal espirito +archanglico</em>, em uma terrivel mescla d'enormes ps quebrados, com grande +escandalo das regras formuladas por A. Feliciano de Castilho.</p> + +<p>Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.</p> + +<p>Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo s pensava nos dentes da +noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o encantavam. +</p> + +<p>E phantasiava um capricho, cuja lembrana era sufficiente para lhe dar ao +corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o primeiro beijo +que dsse mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!</p> + +<p>Afinal, aquelles dentes eram uma obsesso para Alfredo. Para qualquer parte +que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula sorrindo-lhe +amoravelmente,<span class="pn"><a id="pg_74" name="pg_74">{74}</a></span> +incitando-o a uma tentativa agradavel de roubo de um sculo. O colete, que elle +enfiava n'esse instante, assumia a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos +hombros, perto dos quaes pulsava o corao, arfando em anhelos. E, quando o +padrinho appareceu entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que j era +tempo de ir para a egreja, estava to abstracto da vida regular, to +concentrado em suas phantasiosas meditaes, que abraou-o commovido, +murmurando:</p> + +<p>—Que bella dentadura, que tens!</p> + +<h2><a name="SECTION008130000">III</a> </h2> + +<p>Na egreja e ceia opipara que seguiu-se ceremonia religiosa em casa do +velho pae de Paula, durante a longa e—para elle,—enfadonha +conversao subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros, +Alfredo s pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com a +fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao ouvido, com +um sorriso eloquente por traz do leno amarrotado<span class="pn"><a id="pg_75" +name="pg_75">{75}</a></span> na palma da mo, opinies em nada favoraveis sua +reputao de sobriedade em assumpto de succo de uva....</p> + +<p>—Que te parece o <em>gajo</em>, hein?—diziam.—Pois isso +l cousa que se faa? Embebedar-se no dia do casamento....</p> + +<p>—Que escandalo!</p> + +<p>—Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.</p> + +<p>E seguiam por esta norma os commentarios—todos reumando idas +gordurosas e indecentes.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente, +muito lisongeiado pelas felicitaes que lhe foram feitas, com acompanhamento +de expressivos belisces pelos braos e nas gordas bochechas. Afinal, somente +faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, impassivel como um abbade aps a +ceia, fumava a um canto, affagando com amortecido olhar a fumaa do charuto, +alm de forcejar por combater a fora dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao +cerebro, em razo do abuso que antecedentemente fizra das bebidas, mesa, +quando brindra, com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe +politico do partido e ao Manoel<span class="pn"><a id="pg_76" +name="pg_76">{76}</a></span> do Rosario, o commerciante que no trepidava em +tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasies de aperto....</p> + +<p> </p> + +<p>Que elle, Alfredo, devia, e com muita razo, sentir a impaciencia +espicaar-lhe as costas,—ponderou de repente o sogro, sorrindo +malicioso;—que no se enfastiasse, porm, visto como ainda l estava na +alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a <em>toilette</em>. Era natural +aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por ellas +havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de hymineu elle +tivra nos braos da sua Sancha, uma odivellense tentadora como um demonio +formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a evocao da memoria da +esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata amizade inalteravel, abundante +em amorosidades agradaveis e interminas! Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia +tratar de imital-o, para fazer a felicidade d'aquella creaturinha innocente e +sem defeitos physicos ou moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua +mulher. Que a poupasse, que lhe no desse trabalho em demasia para no a +fatigar: o dte d'ella unido ao dinheiro que elle tinha, poderia +porpocionar-lhes uma existencia descuidosa nos braos d'uma indolencia salutar +propicia gordura....</p> + +<p>E entrava em demoradas consideraes<span class="pn"><a id="pg_77" +name="pg_77">{77}</a></span> a respeito da ba vida,—como sectario da +vadiao, que era.</p> + +<p>Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo +recolher-se ao quarto que lhe fra destinado para passar a noite em casa dos +noivos.</p> + +<p>Alfredo no quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abrao ao velho e +correu alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos bellos +dentes de Paula.</p> + +<h2><a name="SECTION008140000">IV</a> </h2> + +<p>A alcva nupcial na manh seguinte ao dia do casamento.</p> + +<p>Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na pea e vae +beijar as rosas de varias cres que, emergindo de grandes jarros de porcellana, +pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos espelhos, como invadidas +por um pudor, em razo dos amorosos ruidos que durante a noite inteira sairam, +por intermittencias de longos socegos, d'aquella cama honestamente encoberta +pelos discretos<span class="pn"><a id="pg_78" name="pg_78">{78}</a></span> +refolhos das cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam +alegremente, cumprimentando o sol e fazendo a crte s gallinhas, que cacarejam +esgaravatando o cho.</p> + +<p>E um como effluvio de ventura evla-se pelo aposento....</p> + +<p>E a luz da lampada de vidros fscos dimine de intensidade, bruxola +palpitante, ameaando extinguir-se....</p> + +<p>Em cima da commoda, a grinalda de flres de larangeiras occulta-se mais +debaixo do leno de custosa cambraia, como envergonhada, ou como enxugando +n'elle as lgrymas que o espirito da Pureza houvesse porventura derramado sobre +suas ptalas inodoras....</p> + +<p>Aos ps da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de sda +branca escancaram as cavas, n'uma expresso de abhorrecimento pela demorada +immobilidade, n'uma expresso de appello aos ps que devem calal-os.</p> + +<p>De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem desperta. +E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven noivo, em cujos +labios se desenha um franco sorriso de satisfao intima. E l dentro, na meia +sombra que as rendas projectam, dorme ainda a formosa Paula, semi-na, no +inconsciente despudor de um somno que foi agitado...</p> + +<p>Alfredo olha para todos os lados, muito<span class="pn"><a id="pg_79" +name="pg_79">{79}</a></span> contente e risonho. Ao ver o raio de sol que +beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua ventura n'um devaneio +de grande felicidade por vir.... Mas de subito, estarrecido, confuso, muito +pllido e crispando as mos, entra a tremer todo, com as feies demudadas, os +cabellos arrepiados na cabea encandescida!</p> + +<p> cabeceira do leito, sobre o elegante <em>guridon</em> de jacarand, +estava uma dentadura patenteiando um co de bcca postio e acinzentado, feito +de massa!.....</p> + +<p>E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos pequeninos +dentes eguaes e perfilados correctamente....</p> + +<p>Ento, sentindo enormes dres em todo o sr, com o espirito prostrado pela +emoo violentssima, Alfredo cambaleou, soluando, e foi car beira do +leito, lavado em lgrymas, a murmurar n'um gemido:</p> + +<p>—Estou roubado, estou roubado!<span class="pn"><a id="pg_80" +name="pg_80">{80}</a><br> +<a id="pg_81" name="pg_81">{81}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION009000000">Poemetos em prosa</a> </h1> + +<h2><a name="SECTION009100000">I<br> +Bidinha</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009110000">A Mucio Javrot</a> </h3> + +<p>Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao ideal e faceira, haviam-lhe +feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, ella comeou a +amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, encontrava-o em casa da prima, +crava, julgava soffrer e gosar a um tempo e entrava a fital-o amoravel<span +class="pn"><a id="pg_82" name="pg_82">{82}</a></span> e longamente, com essa +persistencia abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....</p> + +<p>O poeta conheceu no ser indifferente quella moa to pllida, to triste, +cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixes ardentssimas...</p> + +<p>E, no sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir casa da prima da +Bidinha, para no vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, l foi e +encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,—aquelles tentadores, +faiscantes olhos eloquentes,—mais, muito mais bonitos... Teve pena +d'ella: n'um momento em que ficaram ss na sala,—onde rescendia o perfume +d'um ramo de resda posto n'um jarro em frente ao retrato d'uma velha senhora +de fronte enrugada e olhar suave—declarou-lhe amal-a desde muito, +intensamente.</p> + +<p>Ella, a Bidinha, a pllida donna do lbum que recebra aquelles ternissimos +versos, d'uma inspirao idal e faceira, sorriu, estremeceu e murmurou apenas +quasi inintelligivel som.</p> + +<p>D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios +nocturnos, em aquella mesma sala.</p> + +<p class="centrado">*<br> +**</p> + +<p>Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua +fidelidade<span class="pn"><a id="pg_83" name="pg_83">{83}</a></span> foram +longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o aperto de mo de +despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a angustia que atravessou-lhe o +corao!</p> + +<p class="centrado">*<br> +**</p> + +<p>Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creana a quem +jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, emquanto +rescendia na sala o perfume d'um ramo de resda.</p> + +<p>Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dr das +longas espectativas!... Espera-o ainda....</p> + +<p> tarde, quem fr ao pequenino quintal da casa d'ella, poder vel-a sentada +sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta latada,—com o olhar +suave e tristemente fito nas paginas d'um album, soluando baixinho palavras de +saudosa recriminao.</p> + +<p>Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao idal e faceira, haviam-lhe +feito comprehender que o poeta amava-a!...<span class="pn"><a id="pg_84" +name="pg_84">{84}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION009200000">II<br> +Paraphrase ossianica</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009210000">A Frederico Rhossard</a> </h3> + +<p> bella, seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do rochedo +sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.</p> + +<p>Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traam sobre as nossas +torrentes. Ouo-os passar no meio dos turbilhes e suas vozes fanhosas so os +unicos sons a perturbar o magestoso socego das trvas.</p> + +<p> tu, cuja mo branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas harpas +de<span class="pn"><a id="pg_85" name="pg_85">{85}</a></span> Lutha, tenta +ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e dolentes. Desperta essas cordas +adormecidas, canta, Malvina, e reaviva o meu genio, cuja chamma foi sopitada +pelos annos implacaveis.</p> + +<p>Vem a mim, Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que +entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o regato +cae na colina e rla, depois do furaco, sob a luz radiante do sol, o caador +escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a humida cabelleira.</p> + +<p>Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heres. +Infla-se meu peito; o meu corao palpita. Delina-se a meus olhos o passado. +Vem, Malvina, no divagues mais no meio das tnebras!<span class="pn"><a +id="pg_86" name="pg_86">{86}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION009300000">III<br> +O parocho da aldeia</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009310000">Ao Padre Dr. Leorne Menescal</a> </h3> + +<p> a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e +olhar carinhoso como um conselho de Jesus.</p> + +<p>A sua parca mesa est sempre s ordens dos mendigos, a sua porta aberta +sempre aos viajantes, a sua bcca incessantemente murmura consolaes s +pessoas que soffrem.</p> + +<p>Muitas vezes, alta noite, vo chamal-o para ministrar os socorros da +religio a algum enfermo, em qualquer das aldeias<span class="pn"><a id="pg_87" +name="pg_87">{87}</a></span> que formam a serrana freguezia. Ento, levanta-se +s pressas, monta a cavallo e l vae montanhas fra, a galope, ladeando +tenebrosos precipcios, sob a chuva, tiritando de frio, impassivel como um +here e contente comsigo mesmo, sentindo-se alegre por ir cumprir um dos +mistres que lhe impe a sua profisso, to bem comprehendida por sua bella +alma!</p> + +<p>Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos aquelles +montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os conselhos de paz e +bondade.</p> + +<p>Quando comeou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote +arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra de +Baturit. Em poucos mezes, graas a seus esforos e illimitada sympathia que +a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato no tinham um sr captivo: +todos eram eguaes!</p> + +<p>Quando sae de casa, encaminhando-se pequena egreja, cuja torre branca de +neve lana-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as creancinhas, +que bricam s portas das casas, acodem a beijar-lhe a mo e as mes saudam-n'o +respeitosas, balbuciando uma beno....</p> + +<p>Aos domingos, prdica do Evangelho, vi-o, por differentes occasies, fazer +com a unco de sua palavra, que as lgrymas borbulhassem nos olhos dos +assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel<span class="pn"><a +id="pg_88" name="pg_88">{88}</a></span> modo de viver, fertilssimo em bons +exemplos.</p> + +<p>Nada possue: d tudo aos necessitados, sem ostentao, naturalmente!</p> + +<p>Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, caritativo sacerdote de +tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....<span class="pn"><a +id="pg_89" name="pg_89">{89}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION009400000">IV<br> +Ao Sol</a><sup><a href="#fn2" name="mfn2">[2]</a></sup></h2> + +<h3><a name="SECTION009410000">A Fernando A. da Silva</a> </h3> + +<p> tu, que rolas por cima de nossas cabeas, resplandecente como o escudo de +nossos paes; d'onde saem os teus raios, sol? D'onde vem a tua luz? Caminhas +em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas no firmamento; +pllida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. Ficas sosinho, sol: +quem poderia acompanhar-te o curso?<span class="pn"><a id="pg_90" +name="pg_90">{90}</a></span></p> + +<p>Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas so minadas pelos +annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no fundo +dos cus; s tu s sempre o mesmo.</p> + +<p>Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo est sombrio +pelas tempestades, quando o trovo ribomba e va o raio, saes radiante do meio +das nuvens e ris do furaco!</p> + +<p>Mas, ai! em vo brilhas para mim! O velho bardo j te no v os raios, quer +fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer trema s portas +do poente a tua luz bruxoleante.</p> + +<p>Mas talvez, como eu, s possuas uma estao e teus annos tero um termo: +vir talvez um dia em que empallideas no meio da carreira e a aurora proxima +em vo esperar o teu regresso.</p> + +<p>Regosija-te, portanto, sol, na fora da tua juventude! A velhice triste +e abhorrecida: parece-se com as tbias claridades da lua, as quaes perdem-se +entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este semeia ao longe as +estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a collina e o viajante +transido tirita nos caminhos desertos....<span class="pn"><a id="pg_91" +name="pg_91">{91}</a></span></p> + +<div class="rodape"> +<p><sup><a href="#mfn2" name="fn2">[2]</a></sup> Vertido de Ossian.</p> +</div> + +<h2><a name="SECTION009500000">V<br> +Remember</a> </h2> + +<h3><a name="SECTION009510000">A Paulino de Brito</a> </h3> + +<h4><a name="SECTION009520000">I</a> </h4> + +<p>No tens ento no peito a minima raiva contra mim?—perguntei-lhe +admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.</p> + +<p>—No! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os +loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, n'uma +prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua pequenina +pessoa,<span class="pn"><a id="pg_92" name="pg_92">{92}</a></span> delicada e +meiga, parecia desabrochar as florescencias gentis das suas graas, dos seus +divinos dotes triumphantes em meio pujana da invejavel mocidade!</p> + +<p>—Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que +tanta bondade tens n'alma, quantas so as seduces capitosas do teu bello +rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e faceiros, +tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores +effluvios!—retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attrando-a +castamente para mim, n'um impulso de gratido, ainda todo commovido pelo prazer +das recentes pazes.</p> + +<p>E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que +manifestara-se no roubo d'um beijo,—d'um pequenino beijo +fugitivo,—quella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo +como que desabrochava as divinas graas triumphaes em gentis florescencias de +invejavel juventude pujante!</p> + +<p>As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse +enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seduces capitosas de to +bello rostinho!..</p> + +<h4><a name="SECTION009530000">II</a> </h4> + +<p>Mas anoitecra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos +jasmineiros<span class="pn"><a id="pg_93" name="pg_93">{93}</a></span> +rescendentes maior escurido communicava parte do jardim onde haviamos feito +pazes, aps o intemerato roubo de um beijo colhido nos rubros labios mdidos da +minha pequenina amante fascinadora.</p> + +<p>Um silencio embaraador enleiava-nos em tbia indeciso. A loira cabecinha +d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos anneis +undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das correctissimas +espaduas.</p> + +<p>E uma tentao chegou-me a sbitas, sob a latada que abrigava-nos com seus +rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio enleiando-nos embaraadoramente +em tbia indeciso.</p> + +<p>J tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descanar-me no +hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia +assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,—um fugitivo +beijo pequenino e casto,—nos humidos labios da minha gentil e tentadora +amante.</p> + +<p>Ella, porm, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. Uma +das mos subiu-lhe clere altura da cabea, ameaadoramente. Bateu o psinho, +n'uma expanso de enfado incipiente....</p> + +<p>—Se reincidir, no perdo mais!—exclamou, avisando-me, com a voz +ainda repassada de toda a indolente volpia de pouco antes e fugiu-me das mos +extendidas<span class="pn"><a id="pg_94" name="pg_94">{94}</a></span> +nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso que me concedeu, +emquanto descanava a fronte no meu hombro, com os formosos anneis da adoravel +cabecinha louca undiflavando-se-lhe tranquillos pelas correctssimas espduas. +</p> + +<p>Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio +escurido, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas aps o roubo de um +beijo,—do primeiro beijo, pequenino e casto,—aos ardentes labios +mdidos da minha bemdita virgem.</p> + +<p>E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um +recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em face +do capricho d'aquella pequenina cabea loira, de triumphantes graas capitosas, +que s admittira e perdoara o meu primeiro atrevimento... ainda to innocente e +retrahido!...<span class="pn"><a id="pg_95" name="pg_95">{95}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0010000000">O preo das pazes</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0010100000">A J. A. Pinto Barbosa</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0010110000">I</a> </h2> + +<p>O meu amigo Ernesto accendra um charuto, concertra o <em>pince-nes</em> +sobre o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona, +muito ffa, em que estava sentado deante de mim e comeou:</p> + +<p> </p> + +<p>—Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, mesa, sem +poder contar-t'o inteiro, pela importuna presena d'aquellas senhoras.<span +class="pn"><a id="pg_96" name="pg_96">{96}</a></span></p> + +<p>Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e mais +divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de +umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, avelludada; olhos negros +e brilhantssimos,—como duas caoilas de mysteriosos philtros +embriagadores;—cabellos muito pretos e ondeados, rescendentes a ba +olencia de selvtica baunilha; um donaire, uma soberania inteira de magestoso +porte e fidalga apresentao captivante, capaz de enleiar-nos em toda a srie +de crimes que ao humano pensamento dado formular em dias de trvas reflexes +e sinistras ebriedades peccaminosas: uma revelao pasmosa, um exemplar +perfeitssimo da mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archtypo da elevao +dos dotes, a civilisada manifestao das nossas lendrias yras amazonicas! E, +a par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustrao perfeita de erudita, +conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvssimos, pequeninos e +eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, engastados em formoso +coral, brilhante como os rseos labios humidos da microscpica boquinha +sombreada d'um leve buo,—o complemento da seduco, o requinte da +tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a +Marcas, a esposa do altivo general Bandeira,<span class="pn"><a id="pg_97" +name="pg_97">{97}</a></span> velho quinquagenario d'elevada riqueza +materialisada em appetitosas centenas de contos de ris, depositados nos +principaes bancos do Brazil.</p> + +<p>Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a azulada +fumaa d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no espao, como poderia +amal-a o esposo, vendo-a to nova, a seu lado, toda entregue a seu +amor,—desde os timidos beijos assustadios repentinamente dados, s +vezes, no vo de qualquer janella dos aposentos desertos de enfadonhas +testemunhas, at ao completo desnuamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido +e clido, que apresentava-lhe na mysteriosa liberdade pacifica da recatada +alcva, alta noite, com a sua elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre +neves de rendas, diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.</p> + +<p>Uma fascinao, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos +caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a todos +os sacrificios para conquistar uma estima fora de constantes provas de +louvavel desinteresse.</p> + +<p>Confesso no ter ainda visto a repetio d'aquella invejavel existencia +d'affectuoso enlevo,—elle no declinar da vida, ella em toda a maravilhosa +florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas inteiras a +contemplal-os, absorto na admirao d'essa<span class="pn"><a id="pg_98" +name="pg_98">{98}</a></span> alheia felicidade que fazia-me +venturoso,—tanto certo que uma perfeita harmonia de suave existencia +rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso +transbordamento do seu excesso. </p> + +<p>Muitos annos haviam j passado, desde que o matrimonio os uniu, quando +Marcas fizra o seu decimo quinto anniversario,—e nem um s instante o +arrependimento lhes chegra de se terem para sempre ligado por um prematuro +enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel reproduco do dia em +que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcva, deram-se, +entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoravel tratamento de esposo.</p> + +<p>Verdadeiramente admiravel, no achas?</p> + +<h2><a name="SECTION0010120000">II</a> </h2> + +<p>Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposio fluctuou, +soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla felicidade +jubilosa de ambos.</p> + +<p>Foi uma verdadeira desgraa suscitada<span class="pn"><a id="pg_99" +name="pg_99">{99}</a></span> por um capricho desarrazoado da formosa mulher do +general. Elle tivera o arrojo de negar-se,—pela primeira vez, +certo,—a satisfazel-o, e a Marcas soffrera em cheio no corao a dureza +da spera repulsa. Longos fios d'interminaveis lgrymas deslisaram-se-lhe dos +grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os com fora, circulando-os das +roxas manchas tristonhas que tm os infelizes habituados ao pranto.</p> + +<p>Mas esta manifestao de fraqueza apenas algumas horas durou,—emquanto +o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos +desmarcados o soalho, j meio arrependido da quasi brutal violencia com que +resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.</p> + +<p>Depois veiu a reaco, em seguida crise hysterica dos abundantes prantos +silenciosos. Uns assomos de magestosa indignao, muito concentrada e muda, +chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao +marido memoraveis ensinamentos de justas represalias.</p> + +<p>E a Marcas prometteu elevar-se acima de si propria, ser to rispida como +brutal havia sido o incivil do general.</p> + +<p>Ai, meu caro amigo! Foi severa a lico! O pobre general Bandeira mais d'uma +vez sentiu-a espicaando-o, quando o despeito da Marcas, ao fim da primeira +semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho<span class="pn"><a +id="pg_100" name="pg_100">{100}</a></span> em seu quarto,—n'uma triste +solido de viuvez frigidissima...</p> + +<p>Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com +valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sr. Seria possivel que no +tivesse a fora de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto temiam os +paraguayos, annos antes, nas selvticas solides onde o nosso exercito ferira +to sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?</p> + +<p>Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resolues enfraqueceram, como cae +uma vla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente +o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.</p> + +<p>O general desejou capitular, ne extrmo das foras. Um arrependimento, cujo +peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe aps essas momentaneas +resolues de superiores resistencias... impossiveis n'aquelle pobre e velho +espirito d'homem tolamente embeiado pelas captivantes graas da mulher.</p> + +<p>Com effeito, capitulou.</p> + +<p>Uma noite, quando os corredores abandonados no repercutiam mais os passos +das escravas e uma luz baa cava-se pelos fscos vidros de lampadas discretas, +sau cauteloso da sua alcva e, com o corao a pulsar violento, dirigiu-se ao +quarto da mulher.</p> + +<p> porta, parou, indeciso.<span class="pn"><a id="pg_101" +name="pg_101">{101}</a></span></p> + +<p>Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira +entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona sensualmente +esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.</p> + +<p>Marcas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples +ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher que em nada de +mau pensa.</p> + +<p>Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava dando. +Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello corpo, feito +d'mbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporisando a tpida +emanao subtil das suas frescas, rosadas carnes bellamente seductoras e +deliciosamente juvenis.</p> + +<p>Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, afflando +precpites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a +porta, correu para junto da mulher e lanou-se-lhe aos ps, choroso, +supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdo, +solicitando um armistcio, pedindo pazes selladas com a ardencia d'uma +deliciosa e suprema compensao!</p> + +<p>Ella, porm, a Marcas, impassivel e impertubavel—ao tempo que +envolvia-se toda em fino lenol de transparente cambraia, n'um gracioso rubor +de impeccavel<span class="pn"><a id="pg_102" name="pg_102">{102}</a></span> +donzella,—estendeu o brao para a porta e, mostrando-lh'a, disse ao +general estarrecido:</p> + +<p>—Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizr +apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.</p> + +<p>E elle teve de sar,—ao reconhecer a impossibilidade de persistir +n'uma resistencia, que s poderia ser-lhe prejudicial.</p> + +<h2><a name="SECTION0010130000">III</a> </h2> + +<p>O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um +meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a mulher, +sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o salvasse da +terribilssima coliso.</p> + +<p>Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosssimos: sdas, joias e finas pedrarias +em todo o Par no houve, que logo as no comprasse profusamente, para amimar a +caprichosa Marcas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraadoras. +Nada<span class="pn"><a id="pg_103" name="pg_103">{103}</a></span> conseguia, +seno augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de +enrubecida vergonha, pela capitulao a que estava a sujeitar-se, com toda a +mesquinhez das pequeninas baixezas.</p> + +<p>Um caso fortuito, porm, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento +pesava-lhe j como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado aos +hombros desformados de msero ano corrodo por toda a srie das enfermidades +secretas.</p> + +<p>Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fra o general Bandeira convidado para +examinador de mathematicas, durante os exames da commisso especial da +delegacia geral da instruco secundaria do municipio da crte,—essa +creao absorvente e desconchavada, que tira toda a fora autonmica dos nossos +lyceus provincianos, reduzindo-os s simples e modestas propores de +insignificantes escholas de primrdios scientificos e litterarios, destituidos +do mnimo valor perante as academias superiores do Imperio...</p> + +<p>Mas dispensemos esta tirada pedaggica, meu excellente amigo, e continuemos +na exposio dos acontecimentos que prometti referir-te.</p> + +<p>O general acceitra e convite com extraordinario gaudio do delegado +especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude +<em>catonismo</em> do Bandeira. Disposto a<span class="pn"><a id="pg_104" +name="pg_104">{104}</a></span> conservar as suas tradies de severo +examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia marcado, +quando—oh! admirao!—appareceu-lhe no quarto a mulher, a Marcas, +arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o clo, +por cima das mais appeteciveis redondezas trgidas que possivel imaginar.</p> + +<p>Trmulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto, +esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e enterrou-o +desgeitosamente na bocca, em sentido opposto quelle de que deveria servir-se +para fumar satisfactoriamente.</p> + +<p>O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu +entre elle e a Marcas uma distancia consideravel.</p> + +<p>A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os +dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a necessaria +seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espao que +approximava-a d'elle.</p> + +<p>Depois, disse, estendendo-lhe um carto de visita:</p> + +<p>—Ve hoje examinar mathematicas, general?</p> + +<p>—Vou... sim...</p> + +<p>—Pois ento, este moo ir fazer exame por mim...</p> + +<p>—?...<span class="pn"><a id="pg_105" name="pg_105">{105}</a></span></p> + +<p>—Ouviu...?</p> + +<p>—Sim.</p> + +<p>—Veja l como se porta. As mathematicas no so o <em>meu</em> forte. +<em>Eu</em> no estou muito <em>habilitada</em>.</p> + +<p>E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assdio, por +similhante reclamao de um escandalo impossivel sua severidade, a bella +Marcas fugiu a correr nos bicos dos ps, arrastando a cauda do penteador, +diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, essencias boas e +rijas carnes femins e jovens.</p> + +<h2><a name="SECTION0010140000">IV</a> </h2> + +<p>Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o carto que lhe +entregara a mulher:</p> + +<p class="centrado" style="border: solid 1px #000; margin: 1em;padding: 1em;"><em>Antonio da Silva Larangeira</em><span class="pn"><a +id="pg_106" name="pg_106">{106}</a></span> </p> + +<p>Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira. +Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos quirir, olhos +arregalados e unhas sujas, orladas de escoriaes na derme. Que era elle +proprio, sim senhor. E uma vz fanhosa, cheia de bajulaes servilssimas, +resmoneou a pequena phrase affirmativa, solicitando ali, em sua exaggerada +affabilidade, a complacencia do examinador.</p> + +<p>O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoo, mal +resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que tivra o +arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marcas, para induzil-o ao crime d'uma +indignidade—arrastal-o a quebrar os seus votos de severa justia de +indomavel rispidez com os estudantes.</p> + +<p>D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova +escripta no poderia ser peor. Escusado dizer-te que o pequeno espesinhou a +sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. Como, porm, +desempenhava ali as altas funces de representar a bella Marcas, falta de +Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgencia +dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.</p> + +<p>Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando +appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente<span class="pn"><a +id="pg_107" name="pg_107">{107}</a></span> a gratos perfumes finssimos, +<em>Couro da Russia</em>, e <em>jasmim do Cabo</em>.</p> + +<p>—Ento?—perguntou ella meio-rindo.</p> + +<p>—Approvado, affirmou o general deixando pender a cabea, +desfallecido,—talvez envergonhado da sua fraqueza, crando porventura de +no haver opposto resistencia tentao.</p> + +<p>—Oh! bello! bello!—gritou a Marcas, lanando-se-lhe ao pescoo, +beijando-o com frenesi, apresentando-lhe flor do rosto— ponta do +nariz—os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas +que ornavam o penteador sobre o peito.</p> + +<p>Elle abriu os braos, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande +amplexo nervoso—a manifestao penultima do seu intensssimo desejo de +reconciliar-se com a mulher.</p> + +<p>Ella impellia-o, devagarinho porm incessantemente, para o sof perfilado +junto secretria do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os +labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.</p> + +<p>Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel, +silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas +lgrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.</p> + +<p>—Que tens? inquiriu ella, assustada,<span class="pn"><a id="pg_108" +name="pg_108">{108}</a></span> beijando-o sobre uma orelha, amimada e +tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcssima harmonia.</p> + +<p>—Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um +escandalo, aquella approvao!</p> + +<p>—Ah! volveu ella, abraando-o com fora, reconquistando-o, +reconduzindo-o para o sof, espiritualisada de prazer, sorrindo +extranhamente.</p> + +<p>E aps um instante empregado em oscular a fronte encanecida do +esposo,—cando ambos para o sof hospitaleiro—murmurou-lhe ao +ouvido, entre um <em>rugeruge</em> de roupas:</p> + +<p>—O que bom custa caro!<span class="pn"><a id="pg_109" +name="pg_109">{109}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0011000000">Historia incongruente</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0011100000">Ao dr. Franklin Tavora</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0011110000">I</a> </h2> + +<p>Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel Fonseca. +</p> + +<p>A paizagem alegre que cercava a fazenda j no tinha o poder de evocar-lhe +aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhs +saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.<span class="pn"><a +id="pg_110" name="pg_110">{110}</a></span></p> + +<p>As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transio subita no +animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, hora da sesta no traziam +nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem causa apparente. Todas as +interrogaces, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do +ancio, que persistia n'um silencio desanimador.</p> + +<p>E no havia razo para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda +progredia, graas ao magnifico tempo que, havia dois annos, reinava, o gado +engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposio para o +trabalho.</p> + +<p>O Thiago, filho unico do coronel, no reparara ainda n'aquellas +concentraes do pae. Vivia todo entregue a uma paixo to ardente como +sincera, para ligar atteno a qualquer coisa que se passasse em outra parte +que no fosse no proprio corao.</p> + +<p>E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir villa +proxima, bem merecia aquella dedicao egoistica, porm desculpavel.</p> + +<p>Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma +honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a cuidar +dos irmosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a apaparical-os, a +rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar physico do todos +aquelles pequeninos sres<span class="pn"><a id="pg_111" +name="pg_111">{111}</a></span> a ella confiados pela me, na occasio de +morrer.</p> + +<p>Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que +era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.</p> + +<p> certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para +dia mais se ligava de amizade <em>Venancia da villa</em>, como rapariga +chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da <em>maqueira</em> do coronel, +quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia muitas vezes +ouvil-o pronunciar estas palavras:—" impossivel similhante +casamento!"</p> + +<h2><a name="SECTION0011120000">II</a> </h2> + +<p>Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu +correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que necessitava +falar-lhe com urgencia.</p> + +<p>O velho estremeceu, prevendo talvez<span class="pn"><a id="pg_112" +name="pg_112">{112}</a></span> que o filho ia acercar-se d'um assumpto ao qual +elle fugia ha muito tempo.</p> + +<p>Foi a fazer um violento esforo sobre si mesmo que murmurou:</p> + +<p>—Fala quando quizeres.</p> + +<p>Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.</p> + +<p>O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma +expresso de curiosidade e pavr. Tremia ligeiramente, com os nervos todos +irritados.</p> + +<p>—O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.</p> + +<p>No entanto, Thiago enxugava o pescoo com o leno e comeava em seguida:</p> + +<p>—Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe importante de +mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. Vou ser +breve, mesmo porque estou morto por saber qual ser a resposta de meu +pae.—Desejo casar-me.</p> + +<p>Conteve o coronel um gesto de indignao e disse, mostrando indifferena. +</p> + +<p>—Pois casa-te, rapaz. Eu no me opponho.... Contanto que seja a moa +escolhida merecedora de ser tua mulher....</p> + +<p>—Oh! se tal a condio que apresenta, posso affianar-lhe que +brevemente me casarei. Ba e sria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de +dedicao, creio que poucas moas como ella encontrei no Par durante os seis +annos que l estive a estudar no seminario e no lyceu.<span class="pn"><a +id="pg_113" name="pg_113">{113}</a></span></p> + +<p>—Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dres +nas fontes, com o corao accelerado, porm a affectar +tranquillidade.—Mas ento quem a rapariga?</p> + +<p>Thiago sorriu indizivelmente,—com uma beatifica expresso de +intensssima felicidade no semblante, e exclamou:</p> + +<p>— a <em>Venancia da villa</em>, a minha querida Venancia!</p> + +<p>O velho ergueu-se impellido pela commoo. Suppondo tal aco um meio de que +o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago ergueu-se +tambem e correu a abraal-o.</p> + +<p>Mas o velho, fazendo um lento signal com o brao estendido, paralysou-lhe a +vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:</p> + +<p>—Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores +com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecers um dia, impediam-me de +favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de oppr-me a elles +desassombradamente. Fing ignorar tudo, na esperana de que os annos lanassem +o tdio sobre as vossas almas captivas uma da outra por aquillo que eu pensava +ser o enthusiasmo pela novidade. Com immensa dr verifiquei o meu engano, +porquanto foste fiel tua palavra, do mesmo modo por que Venancia o foi sua. +Isto seria uma grande<span class="pn"><a id="pg_114" +name="pg_114">{114}</a></span> felicidade se no fosse uma enorme desgraa. +Quer dizer, seria um apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da +tua paixo fosse qualquer outra mulher, que no a Venancia..... Olha, Thiago, +sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me fra +a magoar-te o corao, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, ausenta-te de +Maraj, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade +longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma mulher a quem possas offerecer +a mo....</p> + +<p>—Mas porqu, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o corao +oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras do pae +minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido com um +profundo amor expurgado de malicia.</p> + +<p>—Porque assim necessario,—redarguiu o velho, n'uma vehemencia +de gesto e de entonao.</p> + +<p>—Pois fique sabendo que, se no explicar satisfactoriamente a causa de +similhante opposio, s tomarei as suas palavras como originarias d'uma razo +que a edade torna vacillante e digna de piedade!—bradou Thiago j fra de +si, ferido n'essa grande poro de egoismo que todo o homem tem comsigo.</p> + +<p>—Ingrato, murmurou o velho, deixando-se<span class="pn"><a id="pg_115" +name="pg_115">{115}</a></span> car sentado e chorando copiosamente.—Pois +assiste morte do teu corao, visto assim o desejares: ouve-me!</p> + +<p>Pela janella aberta, via-se o vastssimo campo do lado oeste da fazenda, +coberto d'uma vegetao uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos saltavam +s cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam +tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as longas caudas n'um +compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro preto, perfilado e srio, +olhava para a linha escura do horisonte, entretido em lamber as ventas +lustrosas de ranho com a flexivel lingua cr de cinza de charuto. Um cheiro +almiscarado d'erva scca e de excremento de boi subia at ao quarto. Vaqueiros +zangarreavam n'umas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de +mamoseiro. Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com +essas faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espao em propagaes suaves +que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil de +extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito distante sobre +o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, magestosa e +tranquilla em sua imponencia seductora.</p> + +<p>O velho enxugou as lgrymas e comeou a falar.<span class="pn"><a +id="pg_116" name="pg_116">{116}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION0011130000">III</a> </h2> + +<p>—Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa me nos faltou. At +agora no sei como possivel me foi resistir a essa desgraa, que eu a principio +reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei encerrado n'este +quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguem, apenas gozando em +tuas innocentes caricias um pallido reflexo d'aquelles grandes affagos que a +tua idolatrada me fazia-me constantemente. Passados esses tres annos, +comprehendi que o teu futuro exigia-me impozesse silencio minha dr, e +cuidasse de nossos bens, para dar-te uma ba educao e, depois da minha morte, +fazer-te herdeiro de uma riqueza sufficiente tua manuteno. Sa, pois, do +quarto, pedindo mentalmente alma de tua me tomasse este sacrificio como +feito por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus +exigiam que eu fizesse frequentes viagens villa, onde, ha vinte e tres annos, +isto , quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher +d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da villa. Essa senhora era +o retrato<span class="pn"><a id="pg_117" name="pg_117">{117}</a></span> vivo de +tua me. Por um phenomeno de impressionismo,—sem o querer, sem o +sentir—fui-me enlevando das graas d'ella, at chegar ao ponto de pensar +que tua ba me tornra vida e volvra a amar-me como d'antes!</p> + +<p>Quando eu ia villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. Tal +convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em grande +paixo, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves faziam com que o +marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, deixando-me ao lado da +mulher que.... poupa-me a vergonha de communicar-te que.... titubeou o coronel, +muito triste, com os olhos mareados de lgrymas, a arfar do peito e a contrahir +o rosto n'uma visivel agonia causada pelos remorsos.</p> + +<p>—Emfim,—disse com energia e, desta feita, dando expanso ao +pranto,—o resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixo, foi o +nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser sua +filha....</p> + +<p>—E essa menina ... Ve..nan..cia?—inquiriu Thiago com os olhos +arregalados, os cabellos crispados, as mos fechadas fortemente, sentindo +fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoo.</p> + +<p>—Sim, Thiago, sim, Venancia, fructo da minha infamia, a filha do +crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel<span class="pn"><a +id="pg_118" name="pg_118">{118}</a></span> que no soube resistir minha +tentao! Venancia, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento! +tua irm, insensato!...</p> + +<p>E cau redondamente para traz, agitado nas convulses da gotta, da sua +molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rde de maqueira, +fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma vida que d'ahi em +deante s poderia ser de tormentos e angustias indiziveis.<span class="pn"><a +id="pg_119" name="pg_119">{119}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0012000000">A lico de "Paleographo"</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0012100000">A Heliodoro de Brito</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0012110000">I</a> </h2> + +<p>A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma +confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trdas amarguras do largo e profundo +golpe que breve teria de receber-lhe o amantssimo corao de me.—O +commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a Europa, de +concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua resoluo<span +class="pn"><a id="pg_120" name="pg_120">{120}</a></span> de levar comsigo a +pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda +favorita de todas as pessoas d'aquella abastada familia actualmente em vesperas +de viagem.</p> + +<p>E ella, a me extremosa, que s vivia do tenro affecto suavssimo da filha, +na tenebrosa passividade do seu captiveiro,—no obstante a bondade com +que era tratada por todos,—teria de ficar no Par, separada do pequenino +ente que deslaava-lhe o espirito em fulgidas chimras de loiras phantasias, em +meio ao triste vegetar da sua existencia!</p> + +<p>Uma dr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora +privados de lgrymas sob o ltego inclemente do seu primeiro senhor, antes de +ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por +toda a noite passada em claro aps a declarao ouvida pela manh.</p> + +<p>S a lembrana de to rude separao fazia-a soffrer tanto; o que no seria +a crua realidade?</p> + +<p>Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluando a furto, no dia +seguinte,—com os olhos, mudamente cheios de qurulas expresses, fitos na +rapariguinha,—acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de +benevolencias, consolou-a a meio.</p> + +<p>—Que se no affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a +familia,<span class="pn"><a id="pg_121" name="pg_121">{121}</a></span> d'ali a +annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia trazer-lh'a instruida, +educada, elegante e feliz,—uma verdadeira senhora. At ella, Josepha, se +arrependeria ento da sua tolice actual, porque reconheceria os beneficios que +tinham querido fazer-lhe filha. Pois no era certo que todos ali +tratavam-n'as to bem, me e filha e que esta era tida menos como uma +<em>ingnua</em> do que como se, realmente, fosse originaria do casamento +d'elle commendador com sua esposa? Confiasse a Josepha em seus senhores e o +futuro mostrar-lhe-ia com exuberancia a justeza do seu proceder.</p> + +<p>Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. +Eliminal-a, porm, d'alma, era impossivel, que no pde um corao de me +deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestaes, lhe roube o +ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos frmitos delirantes +da mais intensa dr.</p> + +<h2><a name="SECTION0012120000">II</a> </h2> + +<p>A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a +pequena Isaura.<span class="pn"><a id="pg_122" name="pg_122">{122}</a></span> +</p> + +<p>Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas afflices, +no pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as outras escravas +atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de tudo, olhando em frente, +como se divisando estivesse nos curtos longes do horisonte limitado uma viso, +s para ella creada, a attrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas +as foras vivas do espirito e da razo.</p> + +<p>Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a s +pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expresso do +rosto, como quem est acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.</p> + +<p>O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. +Bateu desusadamente o corao da preta. Aquelle papel no poderia ser seno da +sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao socio, pedia-lhe +sempre informasse Josepha estar a filha d'esta com saude, muito desenvolvida +e bastante adeantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar +longamente aquelle homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.</p> + +<p>—Anda, vae, disse elle; uma carta de tua filha.... escripta por ella +propria.</p> + +<p>Escorreram lgrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim +dava-lhe<span class="pn"><a id="pg_123" name="pg_123">{123}</a></span> +precipitados pulos ao corao. Conservou-se, todavia, immovel deante do +<em>branco</em>, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma coisa.</p> + +<p>Elle pareceu comprehendel-a:</p> + +<p>—Queres que a leia?</p> + +<p>—Sim, sinh, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e +preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos +sentidos, a divina musica ignorada das dces palavras escriptas pela mo +infantil da filha.</p> + +<p>O socio do Castro leu:</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;">M<small>INHA QUERIDA ME</small>,</p> + +<p>Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe envio +milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe +contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da minha santa me e o grande +desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde est a +mesinha do meu corao. Ante-hontem fiz dez annos e o meu protector +offereceu-me uma bonita penna d'ouro, dizendo-me que com ella deveria +escrever-lhe esta carta, minha boa me. Tenho passeado muito e gostado immenso +d'esta bella cidade, onde o meu<span class="pn"><a id="pg_124" +name="pg_124">{124}</a></span> prazer seria completo se a senhora aqui +estivesse junto da sua filha.</p> + +<p>Abene-me e receba mil beijos que lhe envia</p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:right;">I<small>SAURA.</small></p> + +<p>Paris, 30 de dezembro de 1887.</p> + +<p> </p> + +<p>Josepha chorava, soluando, quando ouviu o nome que rematava a +carta,—simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras, +comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.</p> + +<h2><a name="SECTION0012130000">III</a> </h2> + +<p>Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Par tinham festiva apparencia, +transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a +escravido no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes girandolas de +foguetes e o cco ingente de milhares de vozes bramindo<span class="pn"><a +id="pg_125" name="pg_125">{125}</a></span> enthusiasmadas louvores e vivas em +honra ao glorioso successo. Galhardetes e cortos erguiam-se pelas ruas. Bandas +marciaes diffundiam no espao alegres harmonias de clidos hymnos excitantes. +</p> + +<p>Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os +pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regosijo. +</p> + +<p>Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento +publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para todos os +lados, temendo fossem surprehendel-a.</p> + +<p>Quando teve a certeza de estar bem s, esboou nos roxos labios um sorriso +espiritualisado e, tirando do seio um velho <em>Paleographo</em>, abriu-o nas +primeiras paginas murmurando commovida:</p> + +<p>—Vamo' estud a lico. Nh Manduca, disse que p'r' mez que vem j +posso l a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?</p> + +<p>E curvou a cabea para o livro, na obstinao das grandes vontades +vencedoras.<span class="pn"><a id="pg_126" name="pg_126">{126}</a><br> +<a id="pg_127" name="pg_127">{127}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0013000000">Ao soprar vla</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0013100000">Ao Sr. Jos Feij d'Albuquerque</a> </h3> + +<h2><a name="SECTION0013110000">I</a> </h2> + +<p>s 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar +alegremente, recebel-o porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do +penteador de cambraia branca.</p> + +<p>Quanto se demorra elle! .... Porque no voltou mais cedo? A sua Candinha j +sentia tantas saudades!.... Elle no imaginava o que era estar uma pobre mulher +mettida em<span class="pn"><a id="pg_128" name="pg_128">{128}</a></span> casa, +durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu +idolatrado amigo!....</p> + +<p>E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafuns pelo alto da cabea, +causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriando-lhe os cabellos dos +braos e pernas.</p> + +<p>Que no podera vir mais depressa,—objectava o marido, sentando-se +n'uma poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscencia +para a mulher.—Bem esforos fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a +jantar, ainda no comeo; teve de esperar no jardim por espao de meia hora, +brincando com as creanas, para entreter-se. Os pequenos so altamente +endiabrados: sujaram-lhe as calas brancas com as mos gordurosas.... Depois, +tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e mulher.</p> + +<p>—E acceitaram?—interrogou a Candida, saltando para as pernas do +marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se graciosos e +mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.</p> + +<p>—Qual! Responderam-me que no cediam a escrava por dinheiro algum, +maxim sabendo que ns a desejavamos para a libertar. Aquella gente est cada +vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que seja o dia de +teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. Continuemos, porm. Estava +eu disposto a<span class="pn"><a id="pg_129" name="pg_129">{129}</a></span> +sar, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, +aquelle sujeito vermelhudo, cuja cabea est mais limpa de cabellos que os teus +joelhos....</p> + +<p>—Deixa-te de tolices....</p> + +<p>—Agarraram-me para um solo manhoso, que durou at agora, e isso mesmo +porque levantei-me e sa viva fora!.... Agora,—concluiu +sorrindo,—aqui tem voc o seu Roberto, cheio d'amor e paixo, disposto a +matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe +muito, a fazer-lhe as vontades todas!..</p> + +<p>Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos n'uma +vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus labios frescos e +perfumados d'esse olr exquisito e bom, peculiar s mulheres que se tratam.</p> + +<p>Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera porta que dava para o +corredor o moleque Euzebio, com o bule de ch....</p> + +<h2><a name="SECTION0013120000">II</a> </h2> + +<p>Depois do ch, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e, +accommodando-se<span class="pn"><a id="pg_130" name="pg_130">{130}</a></span> +n'uma grande <em>voltaire</em>, poz-se a ler. Ficou a Candida defronte d'elle, +a miral-o.</p> + +<p>Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois +bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os +cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes +descanando nas palmas das mos, Candida continuava a olhar para o marido com +uma expresso extranha, suave, repassada de ternuras dulcssimas.</p> + +<p>Parecia lanada contemplao da propria felicidade. Era justamente aquillo +que, annos antes, phantasira a sua sonhadora imaginao de burguezinha +estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacvios: viver honesta ao p +de um marido bonito e de bom corao; estar sempre junto d'elle, para o +consolar em todos os desgostos, rir com elle nas horas de alegria, ser-lhe +sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, sobretudo, contemplal-o a todo +instante, silenciosa, longamente, envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu +enlanguescido olhar de creoula amoravel! Nunca sentira-se to feliz como depois +de seu casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma s contrariedade +tivera aps aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo +no silencio de uma discreta alcva toda cheia de flres, rendas, fitas e +perfumes! E com<span class="pn"><a id="pg_131" name="pg_131">{131}</a></span> +que alegria, com que assomos de risonha infantilidade no ficou, na manh +immediata, quando leu no <em>Diario de Noticias</em> as linhas seguintes, que +decorou fora de as repetir baixinho?—"Uniram-se hontem noite em +matrimonio, na egreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado +commerciante da nossa praa, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha +do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadssimo. Foram +padrinhos os srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendona e suas exmas. consortes. +Aos jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades +a que tm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar em jubilo, toda +desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidssima pela lembrana de que, +quella hora, a cidade inteira estava sabedora da realisao de seus intimos +desejos de moa apaixonada!.... D'ahi em deante comearam a viver como dois +anjinhos, como ella queria. Roberto era sempre de uma delicadeza affectuosa e +sria para com a sua Candinha, que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo +seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que +duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas <em>por d +c aquella palha</em>... Entretanto, assim acontecia s vezes. Ahi estava, +mesmo no Par, a d. Clotilde que, no dizer das ms linguas, era uma +jararaca<span class="pn"><a id="pg_132" name="pg_132">{132}</a></span> para o +marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era outro: passava a vida +pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a +mulher que era mesmo uma dr de corao! Mas com ella assim no succedia, +graas a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador hora de recolher ao +lar: s 5 da tarde mandava fechar o armazem, tomava o <em>bond</em> e vinha +logo para junto d'ella, de onde no se arredava seno ao outro dia pela manh, +afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma +de vida: ella conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudana +futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beios, com a +importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se +necessario contar-lhe tudo... Porm como? A vergonha apertava-lhe a garganta +assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, estava resolvida! +Quando? agora?—Agora no; deixal-o com a leitura, que est to +entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o +Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que era to lindo, to bom, to +amado!....</p> + +<p>Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo +apaixonado.<span class="pn"><a id="pg_133" name="pg_133">{133}</a></span></p> + +<h2><a name="SECTION0013130000">III</a> </h2> + +<p>De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do +charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, a +Candida pendia para o peito a formosa cabea, disfarava fingindo ler n'um +livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido +continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu ardente olhar, +como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixo.</p> + +<p>Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.</p> + +<p>—Vamos dormir?—propoz.</p> + +<p>Candida estremeceu e levantou-se.</p> + +<p>O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.</p> + +<p>No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcva. Em cima do velador, +uma vla cr de rosa ardia n'um castialzinho de porcellana de Svres com +pinturas allegoricas de Amores alados e Chimras volitantes. No centro, uma +<em>causeuse</em> de setim azul estava cheia de laos, corpinhos de renda, +brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente dissymtrico. Vidros de +perfumarias com rlhas de crystal<span class="pn"><a id="pg_134" +name="pg_134">{134}</a></span> reluziam em cima do toucador de jacarand, +lanavam scintillaes cambiantes ao espelho inteirio do grande guarda-roupa +que havia no meio de uma das paredes lateraes.</p> + +<p>Ao fundo erguia-se a cama,—pudicamente occulta entre as rugas de um +cortinado de labyrintho finssimo, suspenso do tecto por uma passadeira +doirada.</p> + +<p>Levantava-se d'aquella cama um qu de evaporao de felicidade inenarravel, +que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos do olfacto e da +vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de seu amor, do altar de +sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, sobretudo, ella tinha uma +importancia transcendental: evocava-lhe uma recordao agri-dce, que fazia-a +sorrir bondosamente depois de nove mezes de agradabilssima co-habitao +conjugal....</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Quando iam deitar-se, Candida enlaou a cabea do marido com os braos +descobertos,—mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de +cambraia enfeitada de rendas do Cear.</p> + +<p>Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos +effluvios,—essas queridas exhalaes de mulher amada,—n'um +enlanguescimento concupiscente.<span class="pn"><a id="pg_135" +name="pg_135">{135}</a></span></p> + +<p>—Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posio, beijando-o na +testa.—Quero dar-te uma noticia muito ba....</p> + +<p>—Qual ?—perguntou Roberto estreitando-a nos braos.</p> + +<p>—Tenho tanta vergonha!....</p> + +<p>Esta exclamao pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do marido e +dando um pulo para o leito.</p> + +<p>—Anda, fala, menina, que tolice essa?</p> + +<p>—Ento apaga a luz, primeiro; pde ser que s escuras eu me sinta mais +animosa! ....</p> + +<p>Roberto soprou a luz da vla e disse deitando-se:</p> + +<p>—Agora....</p> + +<p>Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as +pontas dos frios dedos trmulos. Depois, a subitas:</p> + +<p>— que,—murmurou com umas brgeiras risadinhas +reprimidas,— que eu.... estou grvida!</p> + +<p>Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,—o +beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vr convertido em +realidade o seu mais persistente anhelo,—respondeu quella confisso +prazenteira, na propicia escuridade da alcva matrimonial....<span +class="pn"><a id="pg_136" name="pg_136">{136}</a><br> +<a id="pg_137" name="pg_137">{137}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0014000000">No baile do commendador</a> </h1> + +<h3><a name="SECTION0014100000">Ao sr. Ulderico Souza</a> </h3> + +<p>Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!</p> + +<p>E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro +sorriso, com as rendas finssimas do seu leque amarello-canario, de varetas de +madreperola.</p> + +<p>—E porque, no me dir? insistiu o doutor Machado, debruado sobre a +cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um ardente +olhar vibrado<span class="pn"><a id="pg_138" name="pg_138">{138}</a></span> +atravez o crystal do monculo petulante.</p> + +<p>—Porque—?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a +fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro esquerdo, +polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida uma boa mestra, doutor, +e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!</p> + +<p>—Apezar de ser to nova assim?</p> + +<p>—A vida no escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabea +encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moos d, por vezes, preferencia, +como compensando-os de no terem o discernimento preciso para bem conhecer e +evitar os revezes da sorte.</p> + +<p>—Mas— maravilhoso tudo quanto esto a dizer-me os seus divinos +labios com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se j no +sentisse por sua pessa—e pelo seu espirito—este indomavel affecto +de que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora—e bem +profundamente!—depois de ouvir-lhe to razoaveis e inesperados +conceitos.</p> + +<p>—Devras?</p> + +<p>—Por certo.</p> + +<p>—Oh! muito amavel....</p> + +<p>—Digo a verdade.</p> + +<p>—E, todavia, continuo a descrr...</p> + +<p>—Faz muito mal!</p> + +<p>—Porqu?<span class="pn"><a id="pg_139" +name="pg_139">{139}</a></span></p> + +<p>—Ah! j faz perguntas?—Porque quem confessa descrena em +similhante assumpto, deseja crr, ou, pelo menos, no quer descrr...</p> + +<p>—O que redunda no mesmo. Errou, porm, estabelecendo at mim a regra +geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convena-se. O mundo +tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lies bem rispidas +tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das suas opinies, fazer +que o sr. acredite nas suas proprias illuses phantasiosas. Pois que! +Persuade-se acaso de que jmais poderei tomar ao srio as banalidades da +confisso que me cantou ha instantes o seu lyrismo? Estar o sr., +effectivamente, to enamorado de si mesmo, que se julgue irresistivel, fatal? +Vaidade sem razo, doutor!</p> + +<p>—Como cruel, minha senhora!</p> + +<p>—No sou cruel, no, cavalheiro: sou justa apenas. E porque +sympathisei inexplicavelmente com o sr., que desejo trabalhar para +extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o +sentimento.—Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?</p> + +<p>—Ora essa! Porque no?...</p> + +<p>—Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... +pedantismo.</p> + +<p>—Como diz?</p> + +<p>—Oua bem: o—seu—illimitado—pedantismo.<span +class="pn"><a id="pg_140" name="pg_140">{140}</a></span></p> + +<p>—E.... mas....</p> + +<p>—Olhe, sente-se aqui, a meu lado—Assim. Conversaremos com +tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as attenes +da sala. Escute-me.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creana insignificante. Seriam +nove noras da noite. A chuva caa sem parar desde que anoitecra; uma triste +chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz oscillante do gaz. +Estavamos ao sero, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas +irms, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o +trafico da escravatura arrancara aos sertes africanos para transplantar no +Brazil.</p> + +<p>Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irms brincavamos a +vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as +escravas.</p> + +<p>De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e ns interrompemos o +brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeas, detinham no ar a mo +que empunhava a agulha, ou descanavam<span class="pn"><a id="pg_141" +name="pg_141">{141}</a></span> cautelosas os bilros sobre as almofadas onde +pregavam-se as rendas incipientes.</p> + +<p>A velha Eufrasia annuncira que ia contar uma historia da +<em>cabanagem</em>, o que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais +absoluta tranquillidade. Porque, fique desde j sabendo, a Eufrasia era +auctoridade na materia! A sua narrao tinha alguma coisa de lugubre, de +compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na +concatenao dos factos e na flagrancia da nota, ou pica ou buclica, de que +pretendia occupar a atteno dos ouvintes.</p> + +<p>Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma +fulgurao estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos tempos de +que ella ia tratar.</p> + +<p>Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel obter-se +com o ruido da chuva a desabar nas telhas,—a ba preta comeou a referir +a pequena historia que passarei a expr sua attenta bondade, succintamente, +para o no enfastiar com imprudentes delongas.</p> + +<p class="centrado">—</p> + +<p>Da outra banda do rio, margem esquerda d'este mesmo Guajar que rla +suas<span class="pn"><a id="pg_142" name="pg_142">{142}</a></span> turbidas +aguas aos ps de Belm, uma roa havia, n'aquelle tempo,—em +1835,—que era o abrigo d'uma simples familia de modestos caboclos +agricultores: pae, me e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor d'uns 20 annos +sados e bem desenvolvidos. </p> + +<p>Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua +simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roa era a +mais afamada na praa de Belm e a seriedade com que tratavam negocios +tinha-lhes aberto largo crdito em casa do seu correspondente na cidade.</p> + +<p>O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga da +margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro roa. Pelo So +Joo deveriam vir capital da provincia, effectivar perante um padre a mais +persistente aspirao que em peitos amazonicos jmais palpitou e que dava-lhes, +na sua s lembrana, uma como ebriedade olympica de soberanas venturas +transcendentes.</p> + +<p>Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo +rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado +pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves +transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas falas +singellas e apaixonadas.<span class="pn"><a id="pg_143" +name="pg_143">{143}</a></span></p> + +<p>Horas inteiras, de intensssimo contentamento, eram as que passava ao lado +da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha existencia por +vir, quando, a ss no copiar, de mos entrelaadas e o olhar perdido ao longe, +nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em +acastellar illuses, n'umas inflorescencias de amplas phantasias admiraveis. +</p> + +<p>Similhante existencia, parecia abenoal-a o ceu, na sua clemente bondade +rejubilada pelo edificante espectaculo de to acrisolada paixo.</p> + +<p>Mas houve um dia em que a sorte,—sempre inclemente e cynica, +doutor!—pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito d'aquella +invejavel bonana de duas vidas felicssimas.</p> + +<p>A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas dos +revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roas, buscando e fazendo +victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada +barbaridade.</p> + +<p>Em taes condies, a casa dos paes de Thomazia no poderia escapar visita +dos desalmados. Esta foi subjeitada mais torpe violencia que se pde intentar +contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem querido dissuadil-os da +infamia,—aps assistirem perpetrao selvtica do attentado sem nome, +soffreram inermes a<span class="pn"><a id="pg_144" +name="pg_144">{144}</a></span> pena ultima, dependurados, um defronte do outro, +em dois galhos de sombrosa sumahumeira!</p> + +<p>Escaparam ao rbido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que +embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa +haviam presenceado o que passava-se na ra fronteira e nem um s momento o +rapaz, aquelle mesmo namorado frvido da vespera, sentiu um assomo de correr a +vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! Admire que sinceridade a +d'aquella paixo, doutor, dias antes apresentada em <em>labiosas</em> +florituras de phantasticos arremessos idyllicos! Que grande corao, o +d'aquelle homem!</p> + +<p>Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a +indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua +noiva,—sem ir arrebentar os milos de um dos abjectos infames, ainda +mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos +sicarios!</p> + +<p>Annos depois, quando estabelecera-se a pacificao na provincia, a Eufrasia +encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na companhia de torpe +mulata animalisada por uma vida de largas materialisaes soezes e gordurosas. +</p> + +<p>Ainda podia rir, ainda tinha canes para zangarrear ao som do +cavaquinho!<span class="pn"><a id="pg_145" name="pg_145">{145}</a></span></p> + +<p>L defronte, porm, a roa, to florescente d'antes, convertera-se em +mattagal e a infeliz Thomazia,—apatetada e envelhecida, coberta de +andrajos e chorosa,—tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraa, +uma creana inconsciente, um filho que dentro d'ella semera a hedionda +selvageria dos revoltosos.</p> + +<p class="centrado">*<br> +**</p> + +<p>Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de emoo, +teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr. +Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, agitando-o vagaroso, com uma +certa magestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo ironica:</p> + +<p>—E cr, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um s homem +sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas palavrosas +mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?<span class="pn"><a id="pg_146" +name="pg_146">{146}</a><br> +<a id="pg_147" name="pg_147">{147}</a></span></p> + +<h1><a name="SECTION0015000000">NOTAS</a> </h1> + +<p>A CONVALESCENTE.—Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino +<em>croquis</em> ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s. +s. levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu respeito +externadas por mim n'um estudo critico das <em>Primeiras Rimas</em>, de Joo do +Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremdo aggressivo, todo pessoal e +rancoroso.</p> + +<p>No quiz, ento, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em uma +das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, apresento-a +tal qual m'a deu o prlo, antes do inesperado desabrimento de s. s.</p> + +<p> </p> + +<p>QUE BOM MARIDO!—Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o +<em>Diario de Belm</em>, declarando-o<span class="pn"><a id="pg_148" +name="pg_148">{148}</a></span> immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo +entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura davam-lhe +ensejo de estampar as <em>moralssimas</em> "grivoiseries" de Catulle Mends... + o caso mais flagrantemente pfio de criterio e coherencia que tenho +conhecido!</p> + +<p>No dia seguinte, <em>A Provincia do Par</em> publicava esse trabalho.</p> + +<p> </p> + +<p>HISTORIA INCONGRUENTE.—Foi publicada n'<em>A Arena</em> essa narrao, +em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de +dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta +muito affectuosa e benevolente.<span class="pn"><a id="pg_149" +name="pg_149">{149}</a></span></p> +</div> + +<h2><a name="SECTION0016000000">INDICE</a> </h2> + +<table align="center" width="80%" summary="Indice"> + <tbody> + <tr> + <td></td> + <td style="text-align:right;">P<small>AGINAS</small></td> + </tr> + <tr> + <td>A<small>LEGRIA GAULEZA</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_9">9</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A <small>CONVALESCENTE</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_21">21</a></td> + </tr> + <tr> + <td>D<small>ESILLUSO</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_23">23</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A "S<small>ERENATA" DE</small> S<small>CHUBERT</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_33">33</a></td> + </tr> + <tr> + <td>Q<small>UE BOM MARIDO!</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_45">45</a></td> + </tr> + <tr> + <td>N<small>OITE DE FINADOS</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_55">55</a></td> + </tr> + <tr> + <td>R<small>IO ABAIXO</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_61">61</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A<small>O DESPERTAR</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_69">69</a></td> + </tr> + <tr> + <td>P<small>OEMETOS EM PROSA:</small></td> + <td style="text-align:right;"></td> + </tr> + <tr> + <td>I—<em>Bidinha</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_81">81</a></td> + </tr> + <tr> + <td>II—<em>Paraphrase ossianica</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_84">84</a></td> + </tr> + <tr> + <td>III—<em>O parocho da aldeia</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_86">86</a></td> + </tr> + <tr> + <td>IV—<em>Ao sol</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_89">89</a></td> + </tr> + <tr> + <td>V—<em>Remember</em></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_91">91</a></td> + </tr> + <tr> + <td>O <small>PREO DAS PAZES</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_95">95</a></td> + </tr> + <tr> + <td>H<small>ISTORIA INCONGRUENTE</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_109">109</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A L<small>ICO DE "</small>P<small>ALEOGRAPHO"</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_119">119</a></td> + </tr> + <tr> + <td>A<small>O SOPRAR VLA</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_127">127</a></td> + </tr> + <tr> + <td>N<small>O BAILE DO COMMENDADOR</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_137">137</a></td> + </tr> + <tr> + <td>N<small>OTAS</small></td> + <td style="text-align:right;"><a href="#pg_147">147</a></td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p><span class="pn"><a id="pg_150" name="pg_150">{150}</a></span></p> + +<h2>ERRATAS</h2> + +<table align="center" width="80%" summary="Errata"> + <tbody> + <tr> + <td colspan="4">Os mais notaveis erros so es seguintes:</td> + </tr> + <tr> + <th style="text-align:left;">Pags.</th> + <th style="text-align:left;">Linha</th> + <th style="text-align:left;">Erro</th> + <th style="text-align:left;">Emenda</th> + </tr> + <tr> + <td>61</td> + <td>5</td> + <td>caximbo</td> + <td>cachimbo</td> + </tr> + <tr> + <td>93</td> + <td>15</td> + <td>embaraadoramente enleiando-nos</td> + <td>enleiando-nos embaraadoramente</td> + </tr> + <tr> + <td>93</td> + <td>33</td> + <td>estendidas</td> + <td>extendidas</td> + </tr> + <tr> + <td>107</td> + <td>33</td> + <td>inqueriu</td> + <td>inquiriu</td> + </tr> + <tr> + <td>114</td> + <td>29</td> + <td>vacillanto</td> + <td>vacillante</td> + </tr> + </tbody> +</table> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h4>BREVEMENTE</h4> + +<p>ser dado estampa o novo romance de Marques de Carvalho</p> + +<h4>SOROR MARIANA</h4> + +<p>Grande tla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relvo a um dos +mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formar um forte volume de de +300 paginas impressas a capricho.</p> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES *** + +***** This file should be named 30341-h.htm or 30341-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/0/3/4/30341/ + +Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images +of public domain material from Google Book Search) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Redistribution is +subject to the trademark license, especially commercial +redistribution. + + + +*** START: FULL LICENSE *** + +THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE +PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK + +To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free +distribution of electronic works, by using or distributing this work +(or any other work associated in any way with the phrase "Project +Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project +Gutenberg-tm License (available with this file or online at +https://gutenberg.org/license). + + +Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm +electronic works + +1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm +electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to +and accept all the terms of this license and intellectual property +(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all +the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy +all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. +If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project +Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the +terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or +entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. + +1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be +used on or associated in any way with an electronic work by people who +agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few +things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works +even without complying with the full terms of this agreement. See +paragraph 1.C below. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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