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+*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 ***
+
+ J. MARQUES DE CARVALHO
+
+ CONTOS
+
+ PARAENSES
+
+
+
+
+ PARÁ
+
+ PINTO BARBOSA & C.--Editores
+ Rua 13 de Maio
+ 1889
+
+
+
+
+Obras de Marques de Carvalho
+
+VI
+
+CONTOS PARAENSES
+
+
+
+
+DO MESMO AUCTOR
+
+ O SONHO DO MONARCHA,--poemeto, 1886, Opusculo
+
+ LAVAS, poemeto, 1886, Opusculo
+
+ PAULINO DE BRITO, perfil, com _fac-simile_ e retrato do biographado,
+ 1887, 1 vol.
+
+ HORTENCIA,--romance naturalista, 1888, 1 vol.
+
+ O LIVRO DE JUDITH,--versos e contos para creanças, 1889, 1 vol
+
+
+ A PUBLICAR
+
+ HISTORIAS D'AMOR,--contos, 1 vol.
+
+ SOROR MARIA,--romance, 1 vol.
+
+ THEODORICO MAGNO,--perfil, 1 vol.
+
+
+
+
+J. MARQUES DE CARVALHO
+
+CONTOS PARAENSES
+
+
+
+
+PARÁ
+
+PINTO BARBOSA & C.--Editores
+Rua 13 de Maio
+1889
+
+
+
+
+------------------------------------------------------------------------
+ Pará--Typ. dos Editores, rua 13 de Maio.--1889.
+------------------------------------------------------------------------
+
+
+
+
+A MEU IRMÂO
+
+Antonio de Carvalho
+
+
+
+
+AO EXM.º SR. COMMENDADOR
+
+Domingos José Dias
+
+Reconhecimento, Amizade, Veneração.
+
+
+
+
+Alegria gauleza
+
+ A José Veríssimo
+
+
+Emquanto esperavamos o almoço,--aquelle almoço ás pressas encommendado
+no mais que modesto _hotel_ do Pinheiro, fômos dar um passeio pela matta,
+sob a sombra das grandes arvores copadas.
+
+As senhoras haviam ficado na sala do _hotel_, aguçando o appetite no bom
+cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.
+
+O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto
+quadrado, de longas suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da
+America.
+
+Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade
+nos transportara ao Pinheiro.
+
+Ainda não havia duas horas que nos conheciamos, e já grande
+familiaridade se estabelecera entre nós,--essa familiaridade facil,
+intima, passageira, das pessoas que viajam.
+
+Estavamos ainda a bordo, e já o meu sympathico companheiro, sentado á
+amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia
+do Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.
+
+Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja
+existencia eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por
+motivos que eu não tratava de saber, tão vivamente me attraía a
+curiosidade.
+
+Quando saltamos para terra,--emquanto subiamos pela escada da
+ponte,--convidei-o para almoçar comnosco, e elle acceitara rindo,--com
+um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem duplicidade.
+
+Fôra elle quem me propuzéra aquella excursão á matta, para darmos tempo
+a que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já prevía frugal e
+triste, attendendo ás condições da terra em que nos achavamos.
+
+Acceitei-lhe de boamente a proposta, com aquella vivacidade alegre de
+quem vive mezes inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e
+toma, de tempos a tempos, um bello dia para descançar um pouco, em a paz
+d'uma povoação de arrabalde, refestelando-se preguiçosamente na relva
+odorífera dos nossos grandes e soberbos mattagaes.
+
+E fômos por ali fóra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de
+farfalhante cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja
+uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo
+branco das varias flôres sylvestres, cujas pétalas encolhiam-se um
+pouco, meio-fanadas pelos raios do sol.
+
+Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por
+onde a vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O
+cheiro acre da marezia andava no espaço, casado ao perfume subtil e
+excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e
+velhos galhos d'aquellas arvores seculares. Pássaros voavam céleres,
+n'um brando ruflar d'azas, soltando pequeninos gritos estrídulos e
+alegres. De momento a momento, a curta distancia de nós, lagartos
+cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo sêcco
+que juncava o sólo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços de ceu
+de um azul deslavado, que nós entreviamos pelos interstícios das ramas,
+urubús recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos
+seus vôos arredondados, pairando como n'uma contemplação enamorada da
+terra que os sustenta com suas putrefacções, com seus resíduos infames e
+nojentos.
+
+De repente, o meu companheiro disse-me:
+
+--Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar cançado d'esta longa caminhada.
+
+Não tinha a minima accentuação estrangeira; fallava como um verdadeiro
+paraense.
+
+Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de
+bruços, com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a
+descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.
+
+Ficamos calados por alguns minutos.
+
+Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos
+haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra
+exhalava.
+
+Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe:
+
+--O sr. é casado?
+
+Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de
+quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois
+respondeu:
+
+--Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.
+
+--Ah!
+
+--É verdade. Sou viuvo e tenho-me dado muito bem n'este novo estado de
+quem vive sem as preoccupações do homem casado, que tem uma familia a
+sustentar. Bem tolo é quem se casa...
+
+Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.
+
+Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traçando nas
+duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz,
+partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das
+suissas.
+
+Eu não comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim
+sublinhadas por similhante sorriso.
+
+Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse,
+apertando-me as costas da mão direita, como para chamar para si toda a
+minha attenção:
+
+--Está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de
+arribação que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no
+coração, no rosto,--nos labios e no olhar? É uma historia muito longa a
+minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? Não perderá
+nada com isso; pelo contrario, creio aproveitará alguma coisa com a
+moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razão nos
+actos que pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificará que é muito
+certo o rifão: _Tristezas não pagam dividas_, e adquirirá a certeza de
+que, n'este mundo, o melhor meio de se gosar saúde e viver tranquillo, é
+ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do
+dezembargador Delfino. Ora vire p'ra cá as oiças e preste attenção.
+
+Sentei-me. Elle fez o mesmo e começou, sorrindo sempre:
+
+
+--"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de réis,
+herança de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando
+logo um socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de
+dinheiro, que o meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma
+hispanhola réles e velhaca de um hotel da cidade.
+
+"Um bello dia fallimos,--por causa dessas extraordinarias despezas
+capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crésus. Cuida que
+apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado,
+sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu
+espirito é refractario a tristezas,--o meu coração grande de mais para
+fazer-se pequenino e mirrado por tão pouca cousa. Um ou dois contos de
+réis que pude ganhar em certo negocio, após o naufragio a que fôra
+conduzido pela doidice de meu socio, empreguei-os em comprar algumas
+joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso
+carregamento barato, segui para o rio Madeira, afim de explorar em meu
+unico proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros.
+
+"Não me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Pará, e adquiri
+maior carregamento, que fui de novo impingir ás remotas regiões do alto
+Madeira, onde os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada
+posição de inoffensivo estrangeiro, que carece de protecção, que não
+deve ser offendido nunca em um paiz amigo!"
+
+Calou-se. Em sua larga bôcca de expressão franca e descuidosa estava o
+eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraía
+para esse homem com toda a enorme força de um robusto affecto nascente.
+
+
+Accendeu um charuto e continuou:
+
+--"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu
+regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma solida fortuna amoedada
+em bons contos de réis palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da
+mala. Tratei logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos
+os crédores da massa fallida, sem excepção de um só! Uma d'essas dividas
+da firma era uma anquinha,--uma anquinha!--que meu socio havia comprado
+para a sua Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que
+estabeleci-me pela segunda vez,--d'essa feita sem socio, para não mais
+ser prejudicado por ninguem.
+
+"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga
+paraense,--farta carnação morenamente excitante e grandes quadris
+arredondados, divinos,--filha de um subdelegado de policia. Casei-me com
+ella alguns mezes depois de a ver. Não tinha educação, era estupida, mas
+possuía a convicção da belleza nas fórmas, a imponencia da sensualidade
+no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?
+
+"Dois annos vivi eu nos braços de uma felicidade illimitada. Luiza, a
+minha captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em
+minha infinita affeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um
+esplendido segredo de sua magnifica belleza de crioula! Era um delirio,
+uma loucura dulcíssima e purificadora, aquelle amor que eu lhe votava
+com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina
+casa em que viviamos era para mim uma Capua desejada, onde a minha
+languidez encontrava tranquillo bem estar, nos braços da seductora
+Luiza. O dia seguinte, que para muitos é um enigma atterrador,
+apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproducção
+inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor
+intenso e bom, como fostes amadas pela piéguice da ingenuidade do meu
+espirito!"
+
+Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisação
+prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a
+arregaçar-lhe a rubra ponta do labio grosso e varonil.
+
+E proseguiu, após haver accendido o charuto que se apagara:
+
+
+--Eu tinha inteira confiança em Luiza. Jámais a idéa de uma perfidia de
+sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como
+poderiam enganar-me aquelles olhos tão bellamente claros e brilhantes,
+aquella bocca de perfumosos labios que davam beijos tão doces, tão
+sensuaes, tão irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O
+meu espirito era o espelho onde se reflectia o meu coração e onde eu
+suppunha ver a alma de Luiza, estava realmente a minha, a minha que em
+breve tinha de ser tão rudemente ferida pelos factos!
+
+"É como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a
+phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginação
+creadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que
+viera á cidade, e um bello dia, quando, ao caír da tarde, regressei a
+casa para jantar, não mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro
+que eu tinha em casa e fugira com o sobredito _cujo_ mencionado
+vaqueiro, como vim logo a saber, por informações ministradas pela
+visinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto,
+completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz para
+o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e
+voluptuosa.
+
+"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as
+leis do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de
+Marajó, onde, por certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos
+braços do cyclopico vaqueiro? Que expuz á irrisão publica, ás chufas da
+plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparavel deshonra do
+meu nome? Nada d'isso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe,
+mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas de que se esquecera com a
+precipitação da fuga! Veja até que ponto fui complacente. Veja que santa
+bondade a minha!
+
+"A desgraçada morreu um anno depois, victima de béri-béri; pois bem;
+para mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha
+mulher resar, na egreja do Carmo, uma triste missa de _requiem_, a que
+assisti com respeito e piedade."
+
+Calou-se, sem uma commoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse
+do tempo ou da côr do céu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E
+logo o seu velhaco risinho sarcastico saltou-lhe da bôcca e veiu
+espreitar-me de sobre o labio superior,--como se fosse um depoimento
+vivo da tranquillidade d'aquella alma em face de todos os
+extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella haviam passado, sem
+conseguirem emocional-a.
+
+
+O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me
+para que acompanhasse-o, seguiu em direcção ao povoado, cantarolando
+esta pandega quadra do _Dia e a Noite_, de Lecocq:
+
+ _Minha mulher, que Deus levou,_
+ _Foi-me infiel constantemente;_
+ _Nada d'isso me acabrunhou:_
+ _Levei o caso alegremente!_
+
+
+
+
+A convalescente
+
+ Ao dr. Alvares da Costa
+
+
+Estava pallida e triste, encostada levemente á grade do camarote,
+n'aquella noite de estréa.
+
+Os seus olhos, negros como a sêda que o seu delicado corpo vestia,
+divagavam pela platéa, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia
+uma d'essas melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e
+idéaes, bellas, todavia, mesmo na falsidade da sua creação,--vivificada
+por um mysterio e conduzida áquella sala d'espectaculo, onde
+ostentavam-se as formosuras das moças da moda e as austeras sobrecasacas
+dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.
+
+E ella estava sempre pallida, encostada levemente á grade do camarote.
+
+Nos labios tinha ingênuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expressão da
+sympathica physionomia.
+
+Um engraçado diabrête, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.
+
+Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da
+alma uma commoção de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada
+d'esse logar, d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para
+a platéa, cujo ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos
+lenços rendados, dos perfumosos lenços discretos das jovens damas....
+
+E aquella encantadora creança que, sempre triste, encostava-se á grade
+do camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do
+soffrimento, que tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia
+austeramente séria sob a luz intensa do lustre.....
+
+
+
+
+Desillusão
+
+ A Fontes de Carvalho
+
+
+A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem
+sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente
+zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção.
+
+Tinha ella a tez,--enrugada e molle como a casca do janipapo
+maduro,--salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas;
+encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz,
+comprado sempre na _Loja Mariposa_, da qual o co-proprietario
+Affonso,--o sympathico Affonso,--vendia-lh'o com muita dóse de
+_réclames_ e chamadas de attenção para a superioridade da fazenda.
+
+Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos
+quaes primavam os enfeites vistosos,--uma garridice da sra. d. Joaquina.
+
+O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da
+engelhada epiderme,--posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a
+cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos
+edade.
+
+As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco
+lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna
+do direito de aspirar a um bom casamento"--como ella pensava e dizia mui
+confidencialmente a certas amigas particulares.
+
+Sempre houve maledicentes no mundo (salve a _chapa_!): foi por isso que
+uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de
+seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa
+personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente
+os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar
+soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou,
+suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente
+inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.
+
+A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente
+para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação
+moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços
+prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres
+namorados que tivera antigamente.
+
+Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu _spleen_ de
+senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de _tia_. Ai! A
+pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade
+casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente
+por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade,
+escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara
+o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante,
+como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O
+barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o
+Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e
+economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira,
+mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de
+faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas
+de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.
+
+Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações
+exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se
+vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou,
+talvez pela seducção d'alguma _yára_ encantadora. Do outro constava
+apenas que partira para seu paiz natal,--Portugal,--afim de ir saborear
+á lareira, nos longos serões de inverno,--quando o suão sibila em as
+grandes chaminés ennegrecidas,--os succulentos nácos de paios da
+Beira,--d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta
+João Penha.
+
+Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a
+dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas
+e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da
+Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos
+Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções,
+porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem
+pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe
+ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas
+de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á
+casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos,
+roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.
+
+Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente
+contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria
+rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus
+actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.
+
+Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade
+apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.
+
+A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural,
+attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com
+elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga
+sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."
+
+Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos,
+desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.
+
+Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a
+amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o
+Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas
+manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o
+parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever.
+Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.
+
+ ----
+
+Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já
+no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido,
+perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma
+suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes
+communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir,
+curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.
+
+--Santo Deus, que vejo?!--exclamou o tio, assustado.--Já, um medico,
+depressa! continuou, a correr attonito pela sala....
+
+O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou
+o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações
+sobre o tratamento.
+
+Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém,
+teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar
+novamente o doutor.
+
+Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que
+habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que
+podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso
+Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete
+que do Pará saíu seis dias depois.
+
+No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando
+verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta
+lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:
+
+--Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que
+lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!
+
+--Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!
+
+Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de
+restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado,
+resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis
+entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.
+
+ ----
+
+Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os
+medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar
+emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se
+caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer
+cobranças pelas provincias.
+
+Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,--ao
+Alemtejo,--estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão
+no bolso d'um _paletot_ que só vestia em viagem, encontraram seus dedos
+um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda
+amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d.
+Joaquina.
+
+--Ah! que esquecimento o meu!--exclamou.--Que juizo não terá feito a meu
+respeito a impagavel senhora....
+
+E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.
+
+"Meu bom amigo,--leu.--Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito
+_afflue-me_ aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o:
+amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração!
+(Isto copiou ella do romance _A Caridade Christã_, de Escrich,--pensou
+Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se _fui_ por si acolhido
+o meu amor. (Aquelle _fui_ é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o
+Raul bem o conheceu). Espero _ancioza_ a sua resposta, com a qual o meu
+amigo _remeter-me-á_ meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de
+presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua
+eternamente,--JOAQUINA."
+
+
+Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle
+_modelo_ d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo
+fez-se mais serio e:
+
+--Ora bolas!--disse.--Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos
+e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....
+
+
+
+
+A "Serenata" de Schubert
+
+ Ao dr. Augusto Meira
+
+
+I
+
+No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na
+rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma
+vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do
+Capibaribe, na Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de
+tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo
+dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte, que vinha de
+Olinda, entrava na sala, e d'esta seguia para o quarto de João, agitando
+a luz dentro do _photo-mobile_.
+
+Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na
+visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou
+attenção. Eram as primeiras notas da _Serenata_ de Schubert, esse
+magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De
+um pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das
+janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o
+rosto descançado na mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta.
+
+Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios,
+como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava
+no azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes,
+uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes
+montões de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima
+saíam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas
+janellas abertas.
+
+Como todas as musicas sentimentaes, a _Serenata_ de Schubert possue isto
+de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro
+da meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são
+sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma.
+
+Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em
+seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e
+redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu
+querido Pará, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella
+que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moço
+estudante de direito recordou-se,--e com quantas saudades!--da magistral
+execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro
+allemão,--uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos,
+com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao
+espirito e suaves langores ao corpo.
+
+Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida
+companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta,
+extasiado na audição d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma
+transformação imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos
+ouvidos d'elle um som particular, intimo, que o commovia todo,
+chamando-lhe duas lágrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa
+tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa
+fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual déra-lhe outrora
+tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão poetica, porém
+saudosíssima, de uma tela de Watteau....
+
+Esse quadro, eil-o:
+
+ [1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata
+ está hoje casada com o heroe da presente narração e póde gabar-se
+ de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais
+ leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga
+ de todas as mães.
+
+
+II
+
+Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda.
+Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a
+familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá.
+Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas
+e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de
+transeuntes. A espaços, uma voz, um grito chegava até á sala, revelando
+que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario
+do nascimento de Christo.
+
+Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora
+sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua
+virtuosa mãe, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, não
+afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um
+lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal.
+
+Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do
+lar,--elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do
+amor!--emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle,
+falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã,
+recebera de suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os
+filhinhos. E dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão
+suavíssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente
+lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas
+sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moço, ao Theodoro,
+aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir
+várias scenas a que assistira em sua passada vida commercial.
+
+Uma exhalação de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a
+tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe
+muitas confianças no futuro.
+
+De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz
+ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:
+
+ Folguem todos n'esta noite,
+ Venha a festa sem egual:
+ --Hoje em nada se repara,
+ Porque é noite de Natal.
+ Hoje em nada se repara,
+ Porque é noite de Natal.
+
+E a guitarra chorava em _tom menor_, fazendo côro ao _ritornello_. A voz
+de um agradavel _tenor_ prendeu logo a attenção dos que estavam na sala:
+
+ Esta noite abençoada
+ Pertence aos que têm amor;
+ No presepe bethlemita
+ Veiu ao mundo o Deus-Senhor.
+
+Novo _ritornello_ choroso na guitarra.
+
+ Por isso, moços e moças,
+ Entregae-vos ao prazer,
+ Emquanto não vem a edade
+ Vossa fronte encanecer!
+
+Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.
+
+Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n'uma
+energia de movimento, com as narinas afflantes, os anneis da cabeça
+tremendo-lhe sobre os hombros.
+
+--Tôlo!--exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao
+longe, na extremidade da rua.--Pois que venha cá, a ver se os velhos não
+têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dirá ao
+depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o
+meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!..
+
+Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a
+encarnação do carinho e, muito piedosa e pura,--qual um raio de sol
+illuminando a face de uma estatua antiga,--foi beijar amoravelmente a
+fronte do ancião....
+
+Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;--que não désse importancia
+a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade
+elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E
+demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor,
+não valia a pena entristecer-se....
+
+--Para o lado os pezares!--terminou sorrindo.--Como distracção agradavel
+a todos, vou tocar ao piano a _Serenata_ de Schubert.
+
+Já se tinha João levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano,
+abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas,
+sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar.
+
+
+III
+
+E começaram então as primeiras melodias da _Serenata_.
+
+João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça,
+tão bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica
+comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma
+figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo,
+apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginação do
+moço. E surgiu então um joven de bandolim em punho, debaixo dos balcões
+floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem
+germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos lagos tranquillos,
+sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes, ruflando as
+brancas pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um
+canto magico de yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal,
+doce como um beijo apaixonado. De seus labios côr de papoula
+distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade
+de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castellã formosa, occulta
+entre os refólhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador
+tinha um não sei quê de melancholico, um tal cunho de poesia dolente,
+que João emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginação lhe
+descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com um meio
+sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia:
+
+ _"O Châtelaine,_
+ _Entend ma peine!.._"
+ ...................
+ ...................
+
+Dhalia executou o _morendo_ final da Serenata. João acordou da sua
+_rêverie_, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico
+bailava um risinho engraçado.
+
+De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante
+illuminado n'uma expressão de ineffavel ventura. Dos labios entreabertos
+parecia escapar-se-lhe uma benção muda, que se completava pelo gesto das
+mãos erguidas e espalmadas no espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro
+feliz dos filhos idolatrados!
+
+.........................................................................
+
+
+IV
+
+Estava n'este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella
+do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano
+da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da _Serenata_.
+
+João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe
+avivára tão grata lembrança de seu venturoso passado,--agora que elle
+estava ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que
+possuiam-lhe a flôr do affecto. Ergueu os olhos ao céo, n'uma
+necessidade de soltar livremente o espirito pela amplidão infinita do
+vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilações, o crescente de
+lua vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flócos de
+nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço adeante,
+projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da
+margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se
+bradando--_alerta!_--á sentinella.
+
+Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo
+infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi
+ajoelhar-se piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo
+venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva.
+
+
+
+
+Que bom marido!
+
+ A Juvenal Tavares
+
+
+ _Não desejarás a mulher do teu proximo._
+ MANDAMENTO DE DEUS.
+
+Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam
+felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente
+pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas
+scintillações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante
+que para ella dirigisse escrutador olhar.
+
+Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo,
+de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que
+tivéra,--tempestuosa e poída nas orgias,--encanecera-lhe completamente
+os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se
+numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.
+
+Ella tinha dezoito primavéras,--para me servir d'uma velha expressão do
+romantismo;--ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e
+marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador
+descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais
+alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste
+da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam
+bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,--d'esses
+namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
+
+O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas,
+depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a
+manga da sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um _chôcho_ á mulher e
+saía para a repartição com o passo do empregado publico:--impassivel e
+cadenciado.
+
+Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena
+caricia e voltava á varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do
+jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á
+machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas
+diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio
+formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de
+tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a
+_bond_ em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth,
+algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras
+regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora
+esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher
+bonita e nova.
+
+Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha
+seus adoradores,--rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade,
+não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente
+a requestava era um tal Jacyntho,--um _leão_ conquistador que falava
+pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do
+namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias
+depois do casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde
+essa época, o pobre _namorado sem ventura_ passava todas as tardes pela
+casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella, emquanto o marido,
+na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da
+direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um
+cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e
+conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquelle.
+Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á
+entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não
+deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio,
+o taberneiro e o vizinho começavam no _passo_ e no _bólo_. É que a
+interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não
+podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho
+Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se
+áquillo a que chamava "uma distracção", mais para satisfazer uma vaga
+curiosidade do que para commetter um crime.
+
+ ----
+
+Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo
+a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em
+pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que
+resolvería, com vantagem,--aquelle interessante problema de amor.
+
+Uma tarde,--era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado
+por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados
+da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a
+apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.
+
+Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha
+mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:
+
+--Onde está a d. Elvira, minha filha?
+
+A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu
+na bocca o index da mão direita, conservando-se calada.
+
+--Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?--insistía o
+_leão_ fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
+
+Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da
+fregueza e disse, ainda meio acanhada:
+
+--Está lá dentro....
+
+--E o sr. Bonifacio?
+
+--Saíu.
+
+--Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres?
+
+--Eu quero....
+
+Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que,
+por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e
+conjuntamente outro tostão.
+
+Depois seguiu pela estrada adeante.
+
+
+Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor
+que por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de
+passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou,
+seguindo pelo passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova
+epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não
+pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda
+receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente,
+mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua "posição de
+mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."
+
+D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a
+passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para
+os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a
+confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto
+e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa á
+correspondencia criminosa.
+
+Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões
+além d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais
+exigente.
+
+Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa,
+de volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o
+limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente,
+escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a
+attenção de velho curioso.
+
+--Que levas ahi?--perguntou.
+
+--Não é nada....--respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos
+paraenses.
+
+--Não mintas! Eu vi não sei quê!--bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo
+braço e apoderando-se do objecto.
+
+Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:
+
+
+"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a _missa
+do gallo_ em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de
+conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha
+á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.
+
+ ELVIRA."
+
+O Bonifacio _subiu ao arame_; ficou da côr da purpura e sentiu uma
+violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a
+esposa infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe
+appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria
+vingança.
+
+--Toma, leva,--disse entregando a carta á rapariga.
+
+E entrou.
+
+ ----
+
+Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços
+d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes
+egrejas onde se deve rezar a _missa do gallo_.
+
+O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para
+a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...."
+
+Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos
+ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o
+Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas.
+Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de
+contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de
+Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.
+
+Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde
+occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a
+lembrança de namorar-lhe a mulher.
+
+Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á
+pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o
+fortemente, n'uma agitação febril....
+
+O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os
+vizinhos haviam saído para a _missa do gallo_.
+
+Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado
+amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao
+Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:
+
+--Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na
+asneira de namorar moças casadas!
+
+E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida
+de medo.
+
+
+
+
+Noite de finados
+
+ A Manoel P. de Carvalho
+
+
+O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos
+de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas.
+Eram oito horas da noite sob um céo trevoso como a tristeza d'aquellas
+pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos parentes e
+amigos para sempre occultos debaixo da terra, sobre a qual compridas
+filas de vélas accêsas lançavam uma claridade intensa, que ia esbater-se
+ao fundo, na escuridão do mattagal.
+
+O ar estava impregnado do perfume das flôres--piedosamente depostas em
+cima das sepulturas por mãos amigas,--e do cheiro mystico da cêra queimada.
+
+Ao longe, á direita da ermida, uma banda de musica executava
+plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades
+lugubres faziam suspirar as velhas beatas,--aspirando a uma outra vida
+desconhecida, além d'aquelle firmamento negro, no logar onde a
+omnipotencia incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a
+sua magestade.
+
+Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o
+cemiterio. Este, áquella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas
+que receiavam um atropello, saíam enfadadas, murmurando indecencias.
+
+Á porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente
+com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas
+lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de
+vestes sujas e mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em
+seu favor a caridade dos visitantes piedosos.
+
+Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam
+olhares torpemente libidinosos ás moças que entravam seguidas de suas
+mamães, n'um andar assustadiço e saudando um ou outro conhecido com um
+meneio de cabeça. Mais adeante, n'um canto escuro, uma roliça mulata,
+com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de
+physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e com a cabeça coberta
+por um descommunal chapéu alto. Como contraste, não muito longe, estava
+uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados á grade
+ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vélas em castiçaes de
+vidro.
+
+Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma corôa de perpetuas rôxas,
+corriam lágrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas
+do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....
+
+Era sem duvida alguma viuva que pagava á memoria do finado marido alguns
+annos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...
+
+Á esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em
+negro caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e
+toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma
+senhora de cabellos grisalhos, immovel, calada--como evocando passadas
+scenas de prazer--sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia
+no funeral tristonho....
+
+O céo, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiçada. Grandes
+nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as
+bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço d'almas
+penadas fazia farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar
+ás supersticiosas moças que estavam no cemiterio.... Agora calára-se a
+orchestra.
+
+Subira um prégador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de
+grande côma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos
+tragicos, uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade
+mundana e a perenne bemaventurança celestial.
+
+As mulheres,--mães, filhas, esposas,--que o ouviam, ficavam caladas,
+muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto
+bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciencia, levantavam um
+brado de maldição áquella felicidade que lhes roubára a companhia dos
+entes queridos e amoraveis.
+
+Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma creança
+de tenra edade,--um lindo e pallido orphãosinho,--voltou-lhe costas
+nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre tumulo
+tranquillo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma só
+phrase:--_Á minha esposa...._
+
+No céo, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como alegrias fugitivas ou
+prazeres expulsos, erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de
+miragens variadas.
+
+A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena
+magestade tumular, que impoz vago soffrimento ao coração de todos. Os
+brandões e vélas perderam o brilho, ficaram como pyrilampos
+lantejoulando os sepulchros sob o luar diaphano, a cuja claridade
+continuava o pregador a recordar a omnipotencia de Deus.
+
+Os _bonds_ estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos
+depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de
+senhoras tristes, com physionomias de soffrimento.
+
+Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava
+illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a
+penultima da festa annual.
+
+Então, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma
+saudade á memoria de um amigo, d'um irmão, d'um pae, desciam agora ao
+centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as
+casas de jogo,--propellidos pela fascinação demoniaca e terrivel da roleta!
+
+
+
+
+Rio abaixo
+
+ (Ao dr. Gaspar Costa)
+
+
+A canôa seguia mansamente, per si só, impellida pela correnteza.
+
+Sentado á prôa, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava
+com o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas
+das bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do
+sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.
+
+Na pôpa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o _senhor moço_,
+abanando-se com uma ventarola de pennas vermelhas, ao lado da _senhora
+moça_, que espreitava para fóra, por um dos pequenos postigos lateraes.
+A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de lingua escarlate
+caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visiveis.
+
+O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos
+mattagaes da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam até á
+embarcação, n'uma suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de
+alegre ternura os dois viajantes.
+
+--Que bonita paizagem, Antonio!
+
+--É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da viagem.
+
+--Quando chegamos ao _sitio_?
+
+--Ás 9 horas, isto é, d'aqui a tres ou quatro.
+
+--É pena chegarmos tão cedo!
+
+--Dizes bem: vamos tão contentes....
+
+E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.
+
+O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns
+momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas
+faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo
+demorada _fumaça_, para tranquillisar-se.
+
+Os outros, os dois recem-casados,--porque Antonio e Luiza eram noivos:
+tinham-se matrimoniado quinze dias antes,--experimentavam, debaixo da
+tolda, uma sensação de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle
+magestoso socego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação.
+Felicitavam-se mutuamente,--com o olhar cheio de caricias,--por haverem
+podido esquivar-se á vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados
+de visitas, cujas conversações banaes, nullas, pouco interesse lhes
+davam. Mas agora,--como iriam viver felizes durante aquella quinzena de
+fuga, em a tranquillidade bucolica da roça, sosinhos, passeiando sem
+companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama,
+lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos
+igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos
+pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas
+mattas do _sitio_?!....
+
+Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio,
+estas idéas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem
+attenderem a que o sol não mais vibrava os lategos luminosos no dorso da
+corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canôa, afim de
+gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava n'um movimento
+descompassado as velas mal colhidas ao mastro.
+
+Sempre assentado á prôa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o
+caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com
+o sol, que deixára um rastro avermelhado no céo, onde agrupavam-se em
+desordem nuvemzinhas côr de nácar, violetas, azuladas, plumbeas, côr de
+perola. Do lado opposto, levantava-se a noite, n'um andar manso,
+mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo bruxoleante.
+
+O gorgeio dos passaros cessára na ilha das Onças, que já tinha ficado
+atraz, a longa distancia; só chegavam á canôa os compassos em _andante_
+do canto de um carachué que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente á
+qual passou a embarcação.
+
+--Vê ahi no meu relogio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.
+
+--Seis e trinta e oito, _sinhor_.
+
+--Oh! então saiámos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.
+
+Vieram para fóra.
+
+Luiza soltou uma exclamaçãosinha, sonora como um soneto de Paulino de
+Brito, engraçada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um
+timbre argentino como um filete de agua morna caindo n'uma banheira
+d'oiro lavrado:
+
+--Ah!--fez ella.
+
+E deixou-se ficar de pé, encostada ao hombro do marido, extasiada, em
+frente ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.
+
+Largo em aquelle sitio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava
+numerosas ilhotas rasas, cobertas d'uma vegetação opulenta, que
+esbatia-se n'uns tons escuros, quasi indecisos, no limite do horisonte.
+Um socego de tabernaculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do
+céo, onde as estrellas começavam a scintillar como as pedras preciosas
+d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem occupava n'esse instante um
+espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra firme, tremulava uma
+pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, esgueirava-se pelo
+costado da canôa n'um murmurio dolente. A súbitas, na solemnidade do
+silencio, resoou um grito d'ave nocturna.
+
+--Accende a lanterna, José,--disse Antonio ao caboclo, que obedeceu
+logo, voltando depois á sua posição habitual na prôa, fumando.
+
+Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da
+embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes
+jarros com roseiras florídas.
+
+Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido
+foi á pôpa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros,
+conchegando-lh'o muito ao pescoço, amoravelmente.
+
+Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escuridão. Do logar em
+que achavam-se, apenas viam na prôa um ponto vermelho como um
+carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornára
+invisivel na densidade das trevas.
+
+Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solidão: entraram a conversar
+baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de
+tão agradaveis recordações. Era para ambos uma innarravel felicidade
+poderem pairar, assim a sós, das peripecias do curto namôro, dos longos
+annos que elle passou a amal-a silenciosamente, das emoções e
+impaciencias do dia do casamento, quando approximava-se a hora em que o
+parocho de Sant'Anna teria de unil-os.
+
+Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias,
+n'uma excitação dos sentidos. Um movimento instinctivo,--inconsciente,
+talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,--uniu-lhes os labios
+n'um prolongado beijo de paixão, vibrante como um côro juvenil.
+
+Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.
+
+Poz-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída
+com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvatica
+e cheia de grandiosidade das florestas amazonicas...
+
+E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu
+áquelle beijo nascido de duas bôccas amantes no silencio de tão linda
+noite paraense.
+
+Entretanto, a canôa seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela
+correnteza.
+
+
+
+
+Ao despertar
+
+ Ao sr. A. R. d'O. Gomes
+
+
+ _Nem tudo o que luze é ouro._
+ PROVERBIO POPULAR.
+
+
+I
+
+A alcova nupcial em noite de noivado.
+
+Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da
+peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas
+variegadas em côres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e
+como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente
+cerradas... Uma lámpada com vidros baços, côr de leite, esparze branda
+luz em torno, sem crepitação, n'uma solenne impassibilidade, que dá
+certo ar magestoso ao silencio do recinto.
+
+Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n'um
+bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama.
+
+Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa
+meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado.
+
+Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e
+trémula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira
+preguiçosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho....
+
+Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se
+lhe antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar
+pelos finos lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em
+cima do travesseiro macio como a flôr do algodoeiro....
+
+E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a
+passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios
+contrahidos n'um leve rictus de satisfação, de ventura.
+
+Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma
+pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:
+
+--Permittes?....
+
+E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando
+felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela
+atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde
+as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e
+como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente
+cerradas.
+
+
+II
+
+O casamento realisado n'aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de
+seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como
+indisposições subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa
+de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de não sei que
+espirito benefico, pazes feitas com abundantes expansões apaixonadas,
+reconciliações ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n'um
+enlevo.
+
+O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios,
+brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação do homem
+rico que vive contentíssimo da sorte.
+
+Creara para a filha um ideal--um casamento com um bacharel. Similhante
+aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa
+roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,--a
+mulher morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico,
+inviavel,--deixava a filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo,
+para encurtar o tempo.
+
+Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira
+peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz
+attendel-os e appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias
+antes chegara de Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o
+titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das
+graças de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos
+d'ella,--duas bólas d'onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas
+por longos cilios sedosos;--os longos cabellos d'ébano, ondeando-se-lhe
+pelas espaduas de farta carnação; aquelle bonito torso de opulentos
+seios na apojadura da juvenilidade;--tudo n'ella prendia-lhe o enamorado
+espirito em os laços d'uma paixão tão sincera quanto profunda. Mas,
+sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a
+grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso
+espiritualisado e prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam
+as carminadas gengivas d'ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas
+covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d'elle, como desejando
+magnetisal-o.
+
+Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas,
+foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado
+sentiu-se, que sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia,--elle
+que jámais fizera versos!--uma poesia em que abundavam as
+palavras--_seductora virgem_, _divinal espirito archangélico_, em uma
+terrivel mescla d'enormes pés quebrados, com grande escandalo das regras
+formuladas por A. Feliciano de Castilho.
+
+Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.
+
+Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da
+noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o
+encantavam.
+
+E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar
+ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o
+primeiro beijo que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!
+
+Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer
+parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula
+sorrindo-lhe amoravelmente, incitando-o a uma tentativa agradavel de
+roubo de um ósculo. O colete, que elle enfiava n'esse instante, assumia
+a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes
+pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu
+entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era tempo de ir
+para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão concentrado em
+suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido, murmurando:
+
+--Que bella dentadura, que tens!
+
+
+III
+
+Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa
+do velho pae de Paula, durante a longa e--para elle,--enfadonha
+conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros,
+Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com
+a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao
+ouvido, com um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado na palma
+da mão, opiniões em nada favoraveis á sua reputação de sobriedade em
+assumpto de succo de uva....
+
+--Que te parece o _gajo_, hein?--diziam.--Pois isso é lá cousa que se
+faça? Embebedar-se no dia do casamento....
+
+--Que escandalo!
+
+--Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.
+
+E seguiam por esta norma os commentarios--todos reçumando idéas
+gordurosas e indecentes.
+
+ ----
+
+Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente,
+muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com
+acompanhamento de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas
+bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que,
+impassivel como um abbade após a ceia, fumava a um canto, affagando com
+amortecido olhar a fumaça do charuto, além de forcejar por combater a
+força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razão do
+abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa, quando brindára,
+com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do
+partido e ao Manoel do Rosario, o commerciante que não trepidava em
+tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto....
+
+
+Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia
+espicaçar-lhe as costas,--ponderou de repente o sogro, sorrindo
+malicioso;--que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na
+alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a _toilette_. Era natural
+aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por
+ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de
+hymineu elle tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora
+como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a
+evocação da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata
+amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas!
+Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a
+felicidade d'aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou
+moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse,
+que lhe não desse trabalho em demasia para não a fatigar: o dóte d'ella
+unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma
+existencia descuidosa nos braços d'uma indolencia salutar propicia á
+gordura....
+
+E entrava em demoradas considerações a respeito da bôa vida,--como
+sectario da vadiação, que era.
+
+Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo
+recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa
+dos noivos.
+
+Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho
+e correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos
+bellos dentes de Paula.
+
+
+IV
+
+A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento.
+
+Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae
+beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de
+porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos
+espelhos, como invadidas por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que
+durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos,
+d'aquella cama honestamente encoberta pelos discretos refolhos das
+cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente,
+cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam
+esgaravatando o chão.
+
+E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento....
+
+E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa
+palpitante, ameaçando extinguir-se....
+
+Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais
+debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como
+enxugando n'elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse
+porventura derramado sobre suas pétalas inodoras....
+
+Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de
+sêda branca escancaram as cavas, n'uma expressão de abhorrecimento pela
+demorada immobilidade, n'uma expressão de appello aos pés que devem
+calçal-os.
+
+De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem
+desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven
+noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfação
+intima. E lá dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda
+a formosa Paula, semi-núa, no inconsciente despudor de um somno que foi
+agitado...
+
+Alfredo olha para todos os lados, muito contente e risonho. Ao ver o
+raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua
+ventura n'um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito,
+estarrecido, confuso, muito pállido e crispando as mãos, entra a tremer
+todo, com as feições demudadas, os cabellos arrepiados na cabeça
+encandescida!
+
+Á cabeceira do leito, sobre o elegante _guéridon_ de jacarandá, estava
+uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito
+de massa!.....
+
+E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos
+pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente....
+
+Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado
+pela emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á
+beira do leito, lavado em lágrymas, a murmurar n'um gemido:
+
+--Estou roubado, estou roubado!
+
+
+
+
+Poemetos em prosa
+
+
+
+
+I
+
+Bidinha
+
+ A Mucio Javrot
+
+Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração ideal e faceira,
+haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem,
+ella começou a amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso,
+encontrava-o em casa da prima, córava, julgava soffrer e gosar a um
+tempo e entrava a fital-o amoravel e longamente, com essa persistencia
+abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....
+
+O poeta conheceu não ser indifferente áquella moça tão pállida, tão
+triste, cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixões
+ardentíssimas...
+
+E, não sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir á casa da prima
+da Bidinha, para não vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, lá foi e
+encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,--aquelles
+tentadores, faiscantes olhos eloquentes,--mais, muito mais bonitos...
+Teve pena d'ella: n'um momento em que ficaram sós na sala,--onde
+rescendia o perfume d'um ramo de resêda posto n'um jarro em frente
+ao retrato d'uma velha senhora de fronte enrugada e olhar
+suave--declarou-lhe amal-a desde muito, intensamente.
+
+Ella, a Bidinha, a pállida donna do álbum que recebêra aquelles
+ternissimos versos, d'uma inspiração idéal e faceira, sorriu, estremeceu
+e murmurou apenas quasi inintelligivel som.
+
+D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios
+nocturnos, em aquella mesma sala.
+
+ * * * * *
+
+Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua
+fidelidade foram longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o
+aperto de mão de despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a
+angustia que atravessou-lhe o coração!
+
+ * * * * *
+
+Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creança a
+quem jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada,
+emquanto rescendia na sala o perfume d'um ramo de resêda.
+
+Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dôr das
+longas espectativas!... Espera-o ainda....
+
+Á tarde, quem fôr ao pequenino quintal da casa d'ella, poderá vel-a
+sentada sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta
+latada,--com o olhar suave e tristemente fito nas paginas d'um album,
+soluçando baixinho palavras de saudosa recriminação.
+
+Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração idéal e faceira,
+haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a!...
+
+
+II
+
+Paraphrase ossianica
+
+ A Frederico Rhossard
+
+Ó bella, ó seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do
+rochedo sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.
+
+Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traçam sobre as nossas
+torrentes. Ouço-os passar no meio dos turbilhões e suas vozes fanhosas
+são os unicos sons a perturbar o magestoso socego das trévas.
+
+Ó tu, cuja mão branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas
+harpas de Lutha, tenta ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e
+dolentes. Desperta essas cordas adormecidas, canta, ó Malvina, e reaviva
+o meu genio, cuja chamma foi sopitada pelos annos implacaveis.
+
+Vem a mim, ó Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que
+entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o
+regato cae na colina e róla, depois do furacão, sob a luz radiante do
+sol, o caçador escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a
+humida cabelleira.
+
+Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heróes.
+Infla-se meu peito; o meu coração palpita. Delinêa-se a meus olhos o
+passado. Vem, ó Malvina, não divagues mais no meio das ténebras!
+
+
+III
+
+O parocho da aldeia
+
+ Ao Padre Dr. Leorne Menescal
+
+É a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e
+olhar carinhoso como um conselho de Jesus.
+
+A sua parca mesa está sempre ás ordens dos mendigos, a sua porta aberta
+sempre aos viajantes, a sua bôcca incessantemente murmura consolações ás
+pessoas que soffrem.
+
+Muitas vezes, alta noite, vão chamal-o para ministrar os socorros da
+religião a algum enfermo, em qualquer das aldeias que formam a serrana
+freguezia. Então, levanta-se ás pressas, monta a cavallo e lá vae
+montanhas fóra, a galope, ladeando tenebrosos precipícios, sob a chuva,
+tiritando de frio, impassivel como um heróe e contente comsigo mesmo,
+sentindo-se alegre por ir cumprir um dos mistéres que lhe impõe a sua
+profissão, tão bem comprehendida por sua bella alma!
+
+Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos
+aquelles montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os
+conselhos de paz e bondade.
+
+Quando começou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote
+arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra
+de Baturité. Em poucos mezes, graças a seus esforços e á illimitada
+sympathia que a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato não tinham
+um sêr captivo: todos eram eguaes!
+
+Quando sae de casa, encaminhando-se á pequena egreja, cuja torre branca
+de neve lança-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as
+creancinhas, que bricam ás portas das casas, acodem a beijar-lhe a mão e
+as mães saudam-n'o respeitosas, balbuciando uma benção....
+
+Aos domingos, á prédica do Evangelho, vi-o, por differentes occasiões,
+fazer com a uncção de sua palavra, que as lágrymas borbulhassem nos
+olhos dos assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel modo
+de viver, fertilíssimo em bons exemplos.
+
+Nada possue: dá tudo aos necessitados, sem ostentação, naturalmente!
+
+Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, ó caritativo
+sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....
+
+
+IV
+
+Ao Sol[2]
+
+ A Fernando A. da Silva
+
+Ó tu, que rolas por cima de nossas cabeças, resplandecente como o escudo
+de nossos paes; d'onde saem os teus raios, ó sol? D'onde vem a tua luz?
+Caminhas em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas
+no firmamento; pállida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente.
+Ficas sosinho, ó sol: quem poderia acompanhar-te o curso?
+
+Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas são minadas pelos
+annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no
+fundo dos céus; só tu és sempre o mesmo.
+
+Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo está
+sombrio pelas tempestades, quando o trovão ribomba e vôa o raio, saes
+radiante do meio das nuvens e ris do furacão!
+
+Mas, ai! em vão brilhas para mim! O velho bardo já te não vê os raios,
+quer fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer
+trema ás portas do poente a tua luz bruxoleante.
+
+Mas talvez, como eu, só possuas uma estação e teus annos terão um termo:
+virá talvez um dia em que empallideças no meio da carreira e a aurora
+proxima em vão esperará o teu regresso.
+
+Regosija-te, portanto, ó sol, na força da tua juventude! A velhice é
+triste e abhorrecida: parece-se com as tíbias claridades da lua, as
+quaes perdem-se entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este
+semeia ao longe as estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a
+collina e o viajante transido tirita nos caminhos desertos....
+
+ [2] Vertido de Ossian.
+
+
+V
+
+Remember
+
+ A Paulino de Brito
+
+
+I
+
+Não tens então no peito a minima raiva contra mim?--perguntei-lhe
+admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.
+
+--Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os
+loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia,
+n'uma prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua
+pequenina pessoa, delicada e meiga, parecia desabrochar as florescencias
+gentis das suas graças, dos seus divinos dotes triumphantes em meio á
+pujança da invejavel mocidade!
+
+--Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que
+tanta bondade tens n'alma, quantas são as seducções capitosas do teu
+bello rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e
+faceiros, tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores
+effluvios!--retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attraíndo-a
+castamente para mim, n'um impulso de gratidão, ainda todo commovido pelo
+prazer das recentes pazes.
+
+E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que
+manifestara-se no roubo d'um beijo,--d'um pequenino beijo
+fugitivo,--áquella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo
+como que desabrochava as divinas graças triumphaes em gentis
+florescencias de invejavel juventude pujante!
+
+As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse
+enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seducções capitosas
+de tão bello rostinho!..
+
+
+II
+
+Mas anoitecêra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos
+jasmineiros rescendentes maior escuridão communicava á parte do jardim
+onde haviamos feito pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido
+nos rubros labios mádidos da minha pequenina amante fascinadora.
+
+Um silencio embaraçador enleiava-nos em tíbia indecisão. A loira
+cabecinha d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos
+anneis undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das
+correctissimas espaduas.
+
+E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com
+seus rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio
+enleiando-nos embaraçadoramente em tíbia indecisão.
+
+Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descançar-me
+no hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia
+assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,--um fugitivo
+beijo pequenino e casto,--nos humidos labios da minha gentil e tentadora
+amante.
+
+Ella, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida.
+Uma das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu
+o pésinho, n'uma expansão de enfado incipiente....
+
+--Se reincidir, não perdôo mais!--exclamou, avisando-me, com a voz ainda
+repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos
+extendidas nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso
+que me concedeu, emquanto descançava a fronte no meu hombro, com os
+formosos anneis da adoravel cabecinha louca undiflavando-se-lhe
+tranquillos pelas correctíssimas espáduas.
+
+Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á
+escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo
+de um beijo,--do primeiro beijo, pequenino e casto,--aos ardentes labios
+mádidos da minha bemdita virgem.
+
+E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um
+recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em
+face do capricho d'aquella pequenina cabeça loira, de triumphantes
+graças capitosas, que só admittira e perdoara o meu primeiro
+atrevimento... ainda tão innocente e retrahido!...
+
+
+
+
+O preço das pazes
+
+ A J. A. Pinto Barbosa
+
+
+I
+
+O meu amigo Ernesto accendêra um charuto, concertára o _pince-nes_ sobre
+o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona,
+muito fôfa, em que estava sentado deante de mim e começou:
+
+
+--Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, á mesa, sem
+poder contar-t'o inteiro, pela importuna presença d'aquellas senhoras.
+
+Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e
+mais divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo
+dotado de umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena,
+avelludada; olhos negros e brilhantíssimos,--como duas caçoilas de
+mysteriosos philtros embriagadores;--cabellos muito pretos e ondeados,
+rescendentes a bôa olencia de selvática baunilha; um donaire, uma
+soberania inteira de magestoso porte e fidalga apresentação captivante,
+capaz de enleiar-nos em toda a série de crimes que ao humano pensamento
+é dado formular em dias de tôrvas reflexões e sinistras ebriedades
+peccaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar perfeitíssimo da
+mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archétypo da elevação dos dotes,
+a civilisada manifestação das nossas lendárias yáras amazonicas! E, a
+par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustração perfeita de
+erudita, conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos,
+pequeninos e eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite,
+engastados em formoso coral, brilhante como os róseos labios humidos da
+microscópica boquinha sombreada d'um leve buço,--o complemento da
+seducção, o requinte da tentadora volupia d'aquelle delicioso ser.
+Imaginaste? Pois bem; assim era a Marócas, a esposa do altivo general
+Bandeira, velho quinquagenario d'elevada riqueza materialisada em
+appetitosas centenas de contos de réis, depositados nos principaes
+bancos do Brazil.
+
+Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a
+azulada fumaça d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no
+espaço, como poderia amal-a o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda
+entregue a seu amor,--desde os timidos beijos assustadiços
+repentinamente dados, ás vezes, no vão de qualquer janella dos aposentos
+desertos de enfadonhas testemunhas, até ao completo desnuamento
+arrepiado e perfumoso, muito encolhido e cálido, que apresentava-lhe na
+mysteriosa liberdade pacifica da recatada alcôva, alta noite, com a sua
+elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre neves de rendas,
+diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.
+
+Uma fascinação, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos
+caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a
+todos os sacrificios para conquistar uma estima á força de constantes
+provas de louvavel desinteresse.
+
+Confesso não ter ainda visto a repetição d'aquella invejavel existencia
+d'affectuoso enlevo,--elle no declinar da vida, ella em toda a
+maravilhosa florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas
+inteiras a contemplal-os, absorto na admiração d'essa alheia felicidade
+que fazia-me venturoso,--tanto é certo que uma perfeita harmonia de
+suave existencia rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de
+si um como jubiloso transbordamento do seu excesso.
+
+Muitos annos haviam já passado, desde que o matrimonio os uniu, quando
+Marócas fizéra o seu decimo quinto anniversario,--e nem um só instante o
+arrependimento lhes chegára de se terem para sempre ligado por um
+prematuro enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel
+reproducção do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da
+discreta alcôva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o
+amoravel tratamento de esposo.
+
+Verdadeiramente admiravel, não achas?
+
+
+II
+
+Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposição fluctuou,
+soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla
+felicidade jubilosa de ambos.
+
+Foi uma verdadeira desgraça suscitada por um capricho desarrazoado da
+formosa mulher do general. Elle tivera o arrojo de negar-se,--pela
+primeira vez, é certo,--a satisfazel-o, e a Marócas soffrera em cheio no
+coração a dureza da áspera repulsa. Longos fios d'interminaveis lágrymas
+deslisaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os
+com força, circulando-os das roxas manchas tristonhas que têm os
+infelizes habituados ao pranto.
+
+Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou,--emquanto
+o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos
+desmarcados o soalho, já meio arrependido da quasi brutal violencia com
+que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.
+
+Depois veiu a reacção, em seguida á crise hysterica dos abundantes
+prantos silenciosos. Uns assomos de magestosa indignação, muito
+concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente
+duros meios de infligir ao marido memoraveis ensinamentos de justas
+represalias.
+
+E a Marócas prometteu elevar-se acima de si propria, ser tão rispida
+como brutal havia sido o incivil do general.
+
+Ai, meu caro amigo! Foi severa a licção! O pobre general Bandeira mais
+d'uma vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marócas, ao fim
+da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho em seu
+quarto,--n'uma triste solidão de viuvez frigidissima...
+
+Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com
+valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sêr. Seria possivel que não
+tivesse a força de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto
+temiam os paraguayos, annos antes, nas selváticas solidões onde o nosso
+exercito ferira tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do
+valente Lopez?
+
+Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resoluções enfraqueceram, como
+cae uma véla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe
+subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.
+
+O general desejou capitular, ne extrêmo das forças. Um arrependimento,
+cujo peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe após essas
+momentaneas resoluções de superiores resistencias... impossiveis
+n'aquelle pobre e velho espirito d'homem tolamente embeiçado pelas
+captivantes graças da mulher.
+
+Com effeito, capitulou.
+
+Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os
+passos das escravas e uma luz baça côava-se pelos fôscos vidros de
+lampadas discretas, saíu cauteloso da sua alcôva e, com o coração a
+pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher.
+
+Á porta, parou, indeciso.
+
+Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira
+entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona
+sensualmente esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.
+
+Marócas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na
+simples ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher
+que em nada de mau pensa.
+
+Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava
+dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello
+corpo, feito d'ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto,
+vaporisando a tépida emanação subtil das suas frescas, rosadas carnes
+bellamente seductoras e deliciosamente juvenis.
+
+Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas,
+afflando precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas.
+Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés,
+choroso, supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas,
+impetrando o perdão, solicitando um armistício, pedindo pazes selladas
+com a ardencia d'uma deliciosa e suprema compensação!
+
+Ella, porém, a Marócas, impassivel e impertubavel--ao tempo que
+envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n'um gracioso
+rubor de impeccavel donzella,--estendeu o braço para a porta e,
+mostrando-lh'a, disse ao general estarrecido:
+
+--Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizér
+apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.
+
+E elle teve de saír,--ao reconhecer a impossibilidade de persistir n'uma
+resistencia, que só poderia ser-lhe prejudicial.
+
+
+III
+
+O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir
+um meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a
+mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o
+salvasse da terribilíssima colisão.
+
+Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sêdas, joias e finas
+pedrarias em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse
+profusamente, para amimar a caprichosa Marócas, reclusa em forte
+baluarte de duras reservas embaraçadoras. Nada conseguia, senão
+augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha
+de enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com
+toda a mesquinhez das pequeninas baixezas.
+
+Um caso fortuito, porém, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento
+pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado
+aos hombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das
+enfermidades secretas.
+
+Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fôra o general Bandeira convidado
+para examinador de mathematicas, durante os exames da commissão especial
+da delegacia geral da instrucção secundaria do municipio da côrte,--essa
+creação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autonómica dos
+nossos lyceus provincianos, reduzindo-os ás simples e modestas
+proporções de insignificantes escholas de primórdios scientificos e
+litterarios, destituidos do mínimo valor perante as academias superiores
+do Imperio...
+
+Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e
+continuemos na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.
+
+O general acceitára e convite com extraordinario gaudio do delegado
+especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude
+_catonismo_ do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradições de
+severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia
+marcado, quando--oh! admiração!--appareceu-lhe no quarto a mulher, a
+Marócas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas
+rendas sobre o cólo, por cima das mais appeteciveis redondezas túrgidas
+que é possivel imaginar.
+
+Trémulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto,
+esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e
+enterrou-o desgeitosamente na bocca, em sentido opposto áquelle de que
+deveria servir-se para fumar satisfactoriamente.
+
+O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que
+estabeleceu entre elle e a Marócas uma distancia consideravel.
+
+A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os
+dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a
+necessaria seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o
+espaço que approximava-a d'elle.
+
+Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:
+
+--Váe hoje examinar mathematicas, general?
+
+--Vou... sim...
+
+--Pois então, este moço irá fazer exame por mim...
+
+--?...
+
+--Ouviu...?
+
+--Sim.
+
+--Veja lá como se porta. As mathematicas não são o _meu_ forte. _Eu_ não
+estou muito _habilitada_.
+
+E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assédio,
+por similhante reclamação de um escandalo impossivel á sua severidade, a
+bella Marócas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do
+penteador, diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas,
+essencias boas e rijas carnes feminís e jovens.
+
+
+IV
+
+Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe
+entregara a mulher:
+
+_Antonio da Silva Larangeira_
+
+Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira.
+Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos á
+quirirú, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na
+derme. Que era elle proprio, sim senhor. E uma vóz fanhosa, cheia de
+bajulações servilíssimas, resmoneou a pequena phrase affirmativa,
+solicitando ali, em sua exaggerada affabilidade, a complacencia do
+examinador.
+
+O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoção, mal
+resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que
+tivéra o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marócas, para induzil-o ao
+crime d'uma indignidade--arrastal-o a quebrar os seus votos de severa
+justiça de indomavel rispidez com os estudantes.
+
+D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova
+escripta não poderia ser peor. Escusado é dizer-te que o pequeno
+espesinhou a sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante.
+Como, porém, desempenhava ali as altas funcções de representar a bella
+Marócas, á falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito
+empenhou-se para que a indulgencia dos demais examinadores salvasse da
+guilhotina o infeliz.
+
+Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando
+appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente a gratos perfumes
+finíssimos, _Couro da Russia_, e _jasmim do Cabo_.
+
+--Então?--perguntou ella meio-rindo.
+
+--Approvado, affirmou o general deixando pender a cabeça,
+desfallecido,--talvez envergonhado da sua fraqueza, córando porventura
+de não haver opposto resistencia á tentação.
+
+--Oh! bello! bello!--gritou a Marócas, lançando-se-lhe ao pescoço,
+beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto--á ponta do
+nariz--os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das
+rendas que ornavam o penteador sobre o peito.
+
+Elle abriu os braços, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande
+amplexo nervoso--a manifestação penultima do seu intensíssimo desejo de
+reconciliar-se com a mulher.
+
+Ella impellia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá
+perfilado junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com
+a voz, com os labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.
+
+Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel,
+silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas
+grossas lágrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.
+
+--Que tens? inquiriu ella, assustada, beijando-o sobre uma orelha,
+amimada e tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcíssima
+harmonia.
+
+--Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escandalo,
+aquella approvação!
+
+--Ah! volveu ella, abraçando-o com força, reconquistando-o,
+reconduzindo-o para o sofá, espiritualisada de prazer, sorrindo
+extranhamente.
+
+E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do
+esposo,--caíndo ambos para o sofá hospitaleiro--murmurou-lhe ao ouvido,
+entre um _rugeruge_ de roupas:
+
+--O que é bom custa caro!
+
+
+
+
+Historia incongruente
+
+ Ao dr. Franklin Tavora
+
+
+I
+
+Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel
+Fonseca.
+
+A paizagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de
+evocar-lhe aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que
+todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.
+
+As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transição
+subita no animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, á hora da
+sesta não traziam nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem
+causa apparente. Todas as interrogacões, que os olhares apresentavam,
+iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia n'um silencio
+desanimador.
+
+E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a
+fazenda progredia, graças ao magnifico tempo que, havia dois annos,
+reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com
+disposição para o trabalho.
+
+O Thiago, filho unico do coronel, não reparara ainda n'aquellas
+concentrações do pae. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como
+sincera, para ligar attenção a qualquer coisa que se passasse em outra
+parte que não fosse no proprio coração.
+
+E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir á
+villa proxima, bem merecia aquella dedicação egoistica, porém desculpavel.
+
+Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma
+honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a
+cuidar dos irmãosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a
+apaparical-os, a rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo
+bem-estar physico do todos aquelles pequeninos sêres a ella confiados
+pela mãe, na occasião de morrer.
+
+Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo
+que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.
+
+É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia
+para dia mais se ligava de amizade á _Venancia da villa_, como á
+rapariga chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da _maqueira_ do
+coronel, quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia
+muitas vezes ouvil-o pronunciar estas palavras:--"É impossivel
+similhante casamento!"
+
+
+II
+
+Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao
+seu correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que
+necessitava falar-lhe com urgencia.
+
+O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se d'um
+assumpto ao qual elle fugia ha muito tempo.
+
+Foi a fazer um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:
+
+--Fala quando quizeres.
+
+Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.
+
+O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma
+expressão de curiosidade e pavôr. Tremia ligeiramente, com os nervos
+todos irritados.
+
+--O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.
+
+No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:
+
+--Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe é importante de
+mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios.
+Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta
+de meu pae.--Desejo casar-me.
+
+Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indifferença.
+
+--Pois casa-te, rapaz. Eu não me opponho.... Contanto que seja a moça
+escolhida merecedora de ser tua mulher....
+
+--Oh! se tal é a condição que apresenta, posso affiançar-lhe que
+brevemente me casarei. Bôa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e
+cheia de dedicação, creio que poucas moças como ella encontrei no Pará
+durante os seis annos que lá estive a estudar no seminario e no lyceu.
+
+--Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes
+dôres nas fontes, com o coração accelerado, porém a affectar
+tranquillidade.--Mas então quem é a rapariga?
+
+Thiago sorriu indizivelmente,--com uma beatifica expressão de
+intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:
+
+--É a _Venancia da villa_, a minha querida Venancia!
+
+O velho ergueu-se impellido pela commoção. Suppondo tal acção um meio de
+que o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago
+ergueu-se tambem e correu a abraçal-o.
+
+Mas o velho, fazendo um lento signal com o braço estendido,
+paralysou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:
+
+--Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores
+com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia,
+impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de
+oppôr-me a elles desassombradamente. Fingí ignorar tudo, na esperança de
+que os annos lançassem o tédio sobre as vossas almas captivas uma da
+outra por aquillo que eu pensava ser o enthusiasmo pela novidade. Com
+immensa dôr verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel á tua palavra,
+do mesmo modo por que Venancia o foi á sua. Isto seria uma grande
+felicidade se não fosse uma enorme desgraça. Quer dizer, seria um
+apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da tua paixão
+fosse qualquer outra mulher, que não a Venancia..... Olha, Thiago, sem
+procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me
+fórça a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visital-a,
+ausenta-te de Marajó, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou
+para qualquer cidade longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma
+mulher a quem possas offerecer a mão....
+
+--Mas porquê, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o coração
+oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras
+do pae minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido
+com um profundo amor expurgado de malicia.
+
+--Porque assim é necessario,--redarguiu o velho, n'uma vehemencia de
+gesto e de entonação.
+
+--Pois fique sabendo que, se não explicar satisfactoriamente a causa de
+similhante opposição, só tomarei as suas palavras como originarias d'uma
+razão que a edade torna vacillante e digna de piedade!--bradou Thiago já
+fóra de si, ferido n'essa grande porção de egoismo que todo o homem tem
+comsigo.
+
+--Ingrato, murmurou o velho, deixando-se caír sentado e chorando
+copiosamente.--Pois assiste á morte do teu coração, visto assim o
+desejares: ouve-me!
+
+Pela janella aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda,
+coberto d'uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos
+saltavam ás cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos,
+pastavam tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as
+longas caudas n'um compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro
+preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horisonte,
+entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexivel lingua
+côr de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado d'erva sêcca e de
+excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros zangarreavam n'umas
+flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamãoseiro.
+Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com essas
+faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves
+que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil
+de extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito
+distante sobre o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite,
+magestosa e tranquilla em sua imponencia seductora.
+
+O velho enxugou as lágrymas e começou a falar.
+
+
+III
+
+--Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até
+agora não sei como possivel me foi resistir a essa desgraça, que eu a
+principio reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei
+encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber
+ninguem, apenas gozando em tuas innocentes caricias um pallido reflexo
+d'aquelles grandes affagos que a tua idolatrada mãe fazia-me
+constantemente. Passados esses tres annos, comprehendi que o teu futuro
+exigia-me impozesse silencio á minha dôr, e cuidasse de nossos bens,
+para dar-te uma bôa educação e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro
+de uma riqueza sufficiente á tua manutenção. Saí, pois, do quarto,
+pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrificio como feito
+por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus
+exigiam que eu fizesse frequentes viagens á villa, onde, ha vinte e tres
+annos, isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora
+amazonense, mulher d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador
+da villa. Essa senhora era o retrato vivo de tua mãe. Por um phenomeno
+de impressionismo,--sem o querer, sem o sentir--fui-me enlevando das
+graças d'ella, até chegar ao ponto de pensar que tua bôa mãe tornára á
+vida e volvêra a amar-me como d'antes!
+
+Quando eu ia á villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro.
+Tal convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em
+grande paixão, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves
+faziam com que o marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa,
+deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de
+communicar-te que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos
+mareados de lágrymas, a arfar do peito e a contrahir o rosto n'uma
+visivel agonia causada pelos remorsos.
+
+--Emfim,--disse com energia e, desta feita, dando expansão ao pranto,--o
+resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixão, foi o
+nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser
+sua filha....
+
+--E essa menina é... Ve..nan..cia?--inquiriu Thiago com os olhos
+arregalados, os cabellos crispados, as mãos fechadas fortemente,
+sentindo fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoção.
+
+--Sim, Thiago, sim, é Venancia, fructo da minha infamia, a filha do
+crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel que não soube
+resistir á minha tentação! É Venancia, a mulher com quem te queres unir
+pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!...
+
+E caíu redondamente para traz, agitado nas convulsões da gotta, da sua
+molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rêde de
+maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma
+vida que d'ahi em deante só poderia ser de tormentos e angustias
+indiziveis.
+
+
+
+
+A licção de "Paleographo"
+
+ A Heliodoro de Brito
+
+
+I
+
+A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma
+confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e
+profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de
+mãe.--O commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a
+Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua
+resolução de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a
+mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas
+d'aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem.
+
+E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da
+filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro,--não obstante a
+bondade com que era tratada por todos,--teria de ficar no Pará, separada
+do pequenino ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de
+loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia!
+
+Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora
+privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor,
+antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto
+silencioso por toda a noite passada em claro após a declaração ouvida
+pela manhã.
+
+Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não
+seria a crua realidade?
+
+Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia
+seguinte,--com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos
+na rapariguinha,--acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de
+benevolencias, consolou-a a meio.
+
+--Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a
+familia, d'ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia
+trazer-lh'a instruida, educada, elegante e feliz,--uma verdadeira
+senhora. Até ella, Josepha, se arrependeria então da sua tolice actual,
+porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe á filha.
+Pois não era certo que todos ali tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha
+e que esta era tida menos como uma _ingênua_ do que como se, realmente,
+fosse originaria do casamento d'elle commendador com sua esposa?
+Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com
+exuberancia a justeza do seu proceder.
+
+Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava.
+Eliminal-a, porém, d'alma, era impossivel, que não póde um coração de
+mãe deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações,
+lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos
+frémitos delirantes da mais intensa dôr.
+
+
+II
+
+A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a
+pequena Isaura.
+
+Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas
+afflicções, não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as
+outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de
+tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes
+do horisonte limitado uma visão, só para ella creada, a attrair-lhe
+poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as forças vivas do espirito
+e da razão.
+
+Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás
+pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão
+do rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.
+
+O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta.
+Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser
+senão da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao
+socio, pedia-lhe sempre informasse á Josepha estar a filha d'esta com
+saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a
+carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que
+sorria-lhe docemente, compadecidamente.
+
+--Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella
+propria.
+
+Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim
+dava-lhe precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel
+deante do _branco_, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma
+coisa.
+
+Elle pareceu comprehendel-a:
+
+--Queres que a leia?
+
+--Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e
+preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos
+sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão
+infantil da filha.
+
+O socio do Castro leu:
+
+
+ MINHA QUERIDA MÃE,
+
+Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe
+envio milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho
+escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da
+minha santa mãe e o grande desejo que sinto de estudar muito, para
+voltar depressa para onde está a mãesinha do meu coração. Ante-hontem
+fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d'ouro,
+dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa mãe.
+Tenho passeado muito e gostado immenso d'esta bella cidade, onde o meu
+prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha.
+
+Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia
+
+
+ ISAURA.
+
+Paris, 30 de dezembro de 1887.
+
+
+Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a
+carta,--simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras,
+comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.
+
+
+III
+
+Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia,
+transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira
+a escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes
+girandolas de foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo
+enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo.
+Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam
+no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes.
+
+Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os
+pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral
+regosijo.
+
+Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento
+publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para
+todos os lados, temendo fossem surprehendel-a.
+
+Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um
+sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho _Paleographo_,
+abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida:
+
+--Vamo' estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p'r'ó mez que vem já
+posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?
+
+E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades
+vencedoras.
+
+
+
+
+Ao soprar á véla
+
+ Ao Sr. José Feijó d'Albuquerque
+
+
+I
+
+Ás 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar
+alegremente, recebel-o á porta da varanda, arrastando a longa cauda
+rendada do penteador de cambraia branca.
+
+Quanto se demorára elle! .... Porque não voltou mais cedo? A sua
+Candinha já sentia tantas saudades!.... Elle não imaginava o que era
+estar uma pobre mulher mettida em casa, durante uma tarde inteira, sem
+ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!....
+
+E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça,
+causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriçando-lhe os
+cabellos dos braços e pernas.
+
+Que não podera vir mais depressa,--objectava o marido, sentando-se n'uma
+poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de
+concupiscencia para a mulher.--Bem esforços fizera, mas inutilmente.
+Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por
+espaço de meia hora, brincando com as creanças, para entreter-se. Os
+pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as
+mãos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins
+e á mulher.
+
+--E acceitaram?--interrogou a Candida, saltando para as pernas do
+marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se
+graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.
+
+--Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum,
+maximè sabendo que nós a desejavamos para a libertar. Aquella gente está
+cada vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que
+seja o dia de teus annos digna e liberalmente solennisado por mim.
+Continuemos, porém. Estava eu disposto a saír, bem arrufado com o dr.
+Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquelle sujeito
+vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabellos que os teus joelhos....
+
+--Deixa-te de tolices....
+
+--Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo
+porque levantei-me e saí á viva força!.... Agora,--concluiu
+sorrindo,--aqui tem você o seu Roberto, cheio d'amor e paixão, disposto
+a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a
+querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!..
+
+Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos
+n'uma vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus
+labios frescos e perfumados d'esse olôr exquisito e bom, peculiar ás
+mulheres que se tratam.
+
+Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera á porta que dava para
+o corredor o moleque Euzebio, com o bule de chá....
+
+
+II
+
+Depois do chá, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e,
+accommodando-se n'uma grande _voltaire_, poz-se a ler. Ficou a Candida
+defronte d'elle, a miral-o.
+
+Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois
+bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os
+cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes
+descançando nas palmas das mãos, Candida continuava a olhar para o
+marido com uma expressão extranha, suave, repassada de ternuras
+dulcíssimas.
+
+Parecia lançada á contemplação da propria felicidade. Era justamente
+aquillo que, annos antes, phantasiára a sua sonhadora imaginação de
+burguezinha estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacóvios:
+viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre
+junto d'elle, para o consolar em todos os desgostos, rir com elle nas
+horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irreprehensivel e,
+sobretudo, contemplal-o a todo instante, silenciosa, longamente,
+envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu enlanguescido olhar de
+creoula amoravel! Nunca sentira-se tão feliz como depois de seu
+casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma só contrariedade
+tivera após aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do
+noivo no silencio de uma discreta alcôva toda cheia de flôres, rendas,
+fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha
+infantilidade não ficou, na manhã immediata, quando leu no _Diario de
+Noticias_ as linhas seguintes, que decorou á força de as repetir
+baixinho?--"Uniram-se hontem á noite em matrimonio, na egreja de
+Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado commerciante da nossa
+praça, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha do nosso amigo
+sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadíssimo. Foram padrinhos os
+srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendonça e suas exmas. consortes. Aos
+jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das
+felicidades a que têm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar
+em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidíssima
+pela lembrança de que, áquella hora, a cidade inteira estava sabedora da
+realisação de seus intimos desejos de moça apaixonada!.... D'ahi em
+deante começaram a viver como dois anjinhos, como ella queria. Roberto
+era sempre de uma delicadeza affectuosa e séria para com a sua Candinha,
+que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo seu poder, para
+tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que duas
+pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas _por dá
+cá aquella palha_... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Ahi estava,
+mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más linguas, era uma
+jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era
+outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao
+domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dôr de coração! Mas com
+ella assim não succedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um
+cobrador á hora de recolher ao lar: ás 5 da tarde mandava fechar o
+armazem, tomava o _bond_ e vinha logo para junto d'ella, de onde não se
+arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente para o
+trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ella
+conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudança futura.
+Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a
+importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se
+necessario contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a
+garganta assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria,
+estava resolvida! Quando? agora?--Agora não; deixal-o com a leitura, que
+está tão entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como
+ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que
+era tão lindo, tão bom, tão amado!....
+
+Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo
+apaixonado.
+
+
+III
+
+De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do
+charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida,
+a Candida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler
+n'um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o
+marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu
+ardente olhar, como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixão.
+
+Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.
+
+--Vamos dormir?--propoz.
+
+Candida estremeceu e levantou-se.
+
+O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.
+
+No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcôva. Em cima do
+velador, uma véla côr de rosa ardia n'um castiçalzinho de porcellana de
+Sévres com pinturas allegoricas de Amores alados e Chiméras volitantes.
+No centro, uma _causeuse_ de setim azul estava cheia de laços, corpinhos
+de renda, brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente
+dissymétrico. Vidros de perfumarias com rôlhas de crystal reluziam em
+cima do toucador de jacarandá, lançavam scintillações cambiantes ao
+espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das
+paredes lateraes.
+
+Ao fundo erguia-se a cama,--pudicamente occulta entre as rugas de um
+cortinado de labyrintho finíssimo, suspenso do tecto por uma passadeira
+doirada.
+
+Levantava-se d'aquella cama um quê de evaporação de felicidade
+inenarravel, que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos
+do olfacto e da vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de
+seu amor, do altar de sua existencia feliz e encantadora. Para Candida,
+sobretudo, ella tinha uma importancia transcendental: evocava-lhe uma
+recordação agri-dôce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove
+mezes de agradabilíssima co-habitação conjugal....
+
+ ----
+
+Quando iam deitar-se, Candida enlaçou a cabeça do marido com os braços
+descobertos,--mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de
+cambraia enfeitada de rendas do Ceará.
+
+Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos effluvios,--essas
+queridas exhalações de mulher amada,--n'um enlanguescimento concupiscente.
+
+--Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posição, beijando-o na
+testa.--Quero dar-te uma noticia muito bôa....
+
+--Qual é?--perguntou Roberto estreitando-a nos braços.
+
+--Tenho tanta vergonha!....
+
+Esta exclamação pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do
+marido e dando um pulo para o leito.
+
+--Anda, fala, menina, que tolice é essa?
+
+--Então apaga a luz, primeiro; póde ser que ás escuras eu me sinta mais
+animosa! ....
+
+Roberto soprou a luz da véla e disse deitando-se:
+
+--Agora....
+
+Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com
+as pontas dos frios dedos trémulos. Depois, a subitas:
+
+--É que,--murmurou com umas brégeiras risadinhas reprimidas,--é que
+eu.... estou grávida!
+
+Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,--o
+beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vêr
+convertido em realidade o seu mais persistente anhelo,--respondeu
+áquella confissão prazenteira, na propicia escuridade da alcôva
+matrimonial....
+
+
+
+
+No baile do commendador
+
+ Ao sr. Ulderico Souza
+
+
+Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!
+
+E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro
+sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de
+varetas de madreperola.
+
+--E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a
+cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um
+ardente olhar vibrado atravez o crystal do monóculo petulante.
+
+--Porque--?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a
+fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro
+esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa
+mestra, doutor, e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!
+
+--Apezar de ser tão nova assim?
+
+--A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça
+encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes,
+preferencia, como compensando-os de não terem o discernimento preciso
+para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.
+
+--Mas--é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos labios
+com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não
+sentisse por sua pessôa--e pelo seu espirito--este indomavel affecto de
+que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora--e bem
+profundamente!--depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados conceitos.
+
+--Devéras?
+
+--Por certo.
+
+--Oh! é muito amavel....
+
+--Digo a verdade.
+
+--E, todavia, continuo a descrêr...
+
+--Faz muito mal!
+
+--Porquê?
+
+--Ah! já faz perguntas?--Porque quem confessa descrença em similhante
+assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr...
+
+--O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra
+geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se.
+O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições
+bem rispidas tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das
+suas opiniões, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illusões
+phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao
+sério as banalidades da confissão que me cantou ha instantes o seu
+lyrismo? Estará o sr., effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se
+julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razão, doutor!
+
+--Como é cruel, minha senhora!
+
+--Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque
+sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para
+extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o
+sentimento.--Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?
+
+--Ora essa! Porque não?...
+
+--Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... pedantismo.
+
+--Como diz?
+
+--Ouça bem: o--seu--illimitado--pedantismo.
+
+--E.... mas....
+
+--Olhe, sente-se aqui, a meu lado--Assim. Conversaremos com
+tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as
+attenções da sala. Escute-me.
+
+ ----
+
+Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante.
+Seriam nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra;
+uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz
+oscillante do gaz. Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez
+pessoas: eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha,
+muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos
+sertões africanos para transplantar no Brazil.
+
+Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs
+brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da
+qual trabalhavam as escravas.
+
+De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos
+o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no
+ar a mão que empunhava a agulha, ou descançavam cautelosas os bilros
+sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.
+
+A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da _cabanagem_, o
+que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta
+tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era
+auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de
+compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na
+concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica,
+de que pretendia occupar a attenção dos ouvintes.
+
+Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma
+fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos
+tempos de que ella ia tratar.
+
+Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel
+obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas,--a bôa preta começou
+a referir a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade,
+succintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas.
+
+ ----
+
+Da outra banda do rio, á margem esquerda d'este mesmo Guajará que róla
+suas turbidas aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n'aquelle
+tempo,--em 1835,--que era o abrigo d'uma simples familia de modestos
+caboclos agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno
+vigor d'uns 20 annos sadíos e bem desenvolvidos.
+
+Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua
+simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça
+era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam
+negocios tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente
+na cidade.
+
+O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga
+da margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro á roça.
+Pelo São João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um
+padre a mais persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais
+palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade
+olympica de soberanas venturas transcendentes.
+
+Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo
+rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado
+á pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves
+transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas
+falas singellas e apaixonadas.
+
+Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao
+lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha
+existencia por vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o
+olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras
+do fundo, compraziam-se em acastellar illusões, n'umas inflorescencias
+de amplas phantasias admiraveis.
+
+Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade
+rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão.
+
+Mas houve um dia em que a sorte,--sempre inclemente e cynica,
+doutor!--pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito
+d'aquella invejavel bonança de duas vidas felicíssimas.
+
+A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas
+dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e
+fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais
+ousada barbaridade.
+
+Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á
+visita dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se
+póde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem
+querido dissuadil-os da infamia,--após assistirem á perpetração
+selvática do attentado sem nome, soffreram inermes a pena ultima,
+dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira!
+
+Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que
+embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua
+casa haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só
+momento o rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um
+assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva!
+Admire que sinceridade a d'aquella paixão, doutor, dias antes
+apresentada em _labiosas_ florituras de phantasticos arremessos
+idyllicos! Que grande coração, o d'aquelle homem!
+
+Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe
+a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado
+a sua noiva,--sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames,
+ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa
+dos sicarios!
+
+Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a
+Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na
+companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas
+materialisações soezes e gordurosas.
+
+Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do cavaquinho!
+
+Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d'antes, convertera-se em
+mattagal e a infeliz Thomazia,--apatetada e envelhecida, coberta de
+andrajos e chorosa,--tinha simplesmente, como testemunha da sua
+desgraça, uma creança inconsciente, um filho que dentro d'ella semeára a
+hedionda selvageria dos revoltosos.
+
+ * * * * *
+
+Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de
+emoção, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o
+rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario,
+agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora,
+perguntou sorrindo ironica:
+
+--E crê, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um só homem
+sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas
+palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?
+
+
+
+
+NOTAS
+
+
+A CONVALESCENTE.--Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino
+_croquis_ ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s.
+s.ª levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu
+respeito externadas por mim n'um estudo critico das _Primeiras Rimas_,
+de João do Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremódo aggressivo, todo
+pessoal e rancoroso.
+
+Não quiz, então, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em
+uma das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade,
+apresento-a tal qual m'a deu o prélo, antes do inesperado desabrimento
+de s. s.ª
+
+
+QUE BOM MARIDO!--Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o _Diario
+de Belém_, declarando-o immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo
+entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura
+davam-lhe ensejo de estampar as _moralíssimas_ "grivoiseries" de Catulle
+Mendès... É o caso mais flagrantemente pífio de criterio e coherencia
+que tenho conhecido!
+
+No dia seguinte, _A Provincia do Pará_ publicava esse trabalho.
+
+
+HISTORIA INCONGRUENTE.--Foi publicada n'_A Arena_ essa narração, em
+1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de
+dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira
+carta muito affectuosa e benevolente.
+
+
+
+
+INDICE
+
+ PAGINAS
+
+ ALEGRIA GAULEZA 10
+
+ A CONVALESCENTE 21
+
+ DESILLUSÃO 23
+
+ A "SERENATA" DE SCHUBERT 33
+
+ QUE BOM MARIDO! 45
+
+ NOITE DE FINADOS 55
+
+ RIO ABAIXO 61
+
+ AO DESPERTAR 69
+
+ POEMETOS EM PROSA:
+
+ I--_Bidinha_ 81
+
+ II--_Paraphrase ossianica_ 84
+
+ III--_O parocho da aldeia_ 86
+
+ IV--_Ao sol_ 89
+
+ V--_Remember_ 91
+
+ O PREÇO DAS PAZES 95
+
+ HISTORIA INCONGRUENTE 109
+
+ A LICÇÃO DE "PALEOGRAPHO" 119
+
+ AO SOPRAR Á VÉLA 127
+
+ NO BAILE DO COMMENDADOR 137
+
+ NOTAS 147
+
+
+
+
+ERRATAS
+
+Os mais notaveis erros são es seguintes:
+
+Pags. Linha Erro Emenda
+
+61 5 caximbo cachimbo
+
+93 15 embaraçadoramente enleiando-nos
+ enleiando-nos embaraçadoramente
+
+93 33 estendidas extendidas
+
+107 33 inqueriu inquiriu
+
+114 29 vacillanto vacillante
+
+
+
+
+
+
+
+
+
+BREVEMENTE
+
+será dado á estampa o novo romance de Marques de Carvalho
+
+SOROR MARIANA
+
+Grande téla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relêvo a um
+dos mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formará um forte
+volume de de 300 paginas impressas a capricho.
+
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by João Marques de Carvalho
+
+*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 ***
diff --git a/30341-h/30341-h.htm b/30341-h/30341-h.htm
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+<head>
+ <title>Contos Paraenses, por J. Marques de Carvalho</title>
+ <meta name="Author" content="J. Marques de Carvalho">
+ <meta name="Publisher" content="Pinto Barbosa &amp; C.">
+ <meta name="Date" content="1889">
+ <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=UTF-8">
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+</head>
+
+<body>
+<div>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 ***</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p>
+
+<p style="font-size: 2em;">CONTOS</p>
+
+<p style="font-size: 2.5em;">PARAENSES</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>PARÁ</p>
+
+<p>PINTO BARBOSA &amp; C.&mdash;Editores<br>
+<small>Rua 13 de Maio</small><br>
+1889</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_1" name="pg_1">{1}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p style="font-size: 1.2em;">Obras de Marques de Carvalho</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">VI</p>
+
+<p style="font-size: 1.5em;">CONTOS PARAENSES</p>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_2" name="pg_2">{2}</a></span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin: 10%; font-size: 0.8em;">
+<p style="text-align:center;">DO MESMO AUCTOR</p>
+
+<p>O S<small>ONHO DO</small> M<small>ONARCHA</small>,&mdash;poemeto, 1886,
+Opusculo </p>
+
+<p>L<small>AVAS</small>, poemeto, 1886, Opusculo</p>
+
+<p>P<small>AULINO DE</small> B<small>RITO</small>, perfil, com
+<em>fac-simile</em> e retrato do biographado, 1887, 1 vol.</p>
+
+<p>H<small>ORTENCIA</small>,&mdash;romance naturalista, 1888, 1 vol.</p>
+
+<p>O L<small>IVRO DE</small> J<small>UDITH</small>,&mdash;versos e contos para
+creanças, 1889, 1 vol</p>
+
+<p style="text-align:center;">A PUBLICAR</p>
+
+<p>H<small>ISTORIAS D'AMOR</small>,&mdash;contos, 1 vol.</p>
+
+<p>S<small>OROR</small> M<small>ARIA</small>,&mdash;romance, 1 vol.</p>
+
+<p>T<small>HEODORICO</small> M<small>AGNO</small>,&mdash;perfil, 1 vol.</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_3" name="pg_3">{3}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p>
+
+<p style="font-size: 2em;">CONTOS PARAENSES</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>PARÁ</p>
+
+<p>PINTO BARBOSA &amp; C.&mdash;Editores<br>
+<small>Rua 13 de Maio</small><br>
+1889</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_4" name="pg_4">{4}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<hr>
+
+<p style="font-size: 0.8em; text-align: center;">Pará&mdash;Typ. dos Editores,
+rua 13 de Maio.&mdash;1889.</p>
+<hr>
+
+<p> <span class="pn"><a id="pg_5" name="pg_5">{5}</a></span></p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>A MEU IRMÂO</p>
+
+<p style="font-size: 1.8em;font-family: serif;">Antonio de Carvalho</p>
+
+<p> <span class="pn"><a id="pg_6" name="pg_6">{6}</a><br>
+<a id="pg_7" name="pg_7">{7}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>AO EXM.º SR. COMMENDADOR</p>
+
+<p style="font-size: 1.5em;font-family: serif;">Domingos José Dias</p>
+
+<p
+style="font-size: 0.8em;font-family: serif; margin-left: 10%;">Reconhecimento,
+Amizade, Veneração.</p>
+</div>
+
+<p> <span class="pn"><a id="pg_8" name="pg_8">{8}</a><br>
+<a id="pg_9" name="pg_9">{9}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION001000000">Alegria gauleza</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION001100000">A José Veríssimo</a> </h3>
+
+<p>Emquanto esperavamos o almoço,&mdash;aquelle almoço ás pressas encommendado
+no mais que modesto <em>hotel</em> do Pinheiro, fômos dar um passeio pela
+matta, sob a sombra das grandes arvores copadas.</p>
+
+<p>As senhoras haviam ficado na sala do <em>hotel</em>, aguçando o appetite no
+bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.</p>
+
+<p>O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto
+quadrado,<span class="pn"><a id="pg_10" name="pg_10">{10}</a></span> de longas
+suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da America.</p>
+
+<p>Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos
+transportara ao Pinheiro.</p>
+
+<p>Ainda não havia duas horas que nos conheciamos, e já grande familiaridade se
+estabelecera entre nós,&mdash;essa familiaridade facil, intima, passageira, das
+pessoas que viajam.</p>
+
+<p>Estavamos ainda a bordo, e já o meu sympathico companheiro, sentado á
+amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia do
+Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.</p>
+
+<p>Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja existencia eu
+ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por motivos que eu não
+tratava de saber, tão vivamente me attraía a curiosidade.</p>
+
+<p>Quando saltamos para terra,&mdash;emquanto subiamos pela escada da
+ponte,&mdash;convidei-o para almoçar comnosco, e elle acceitara
+rindo,&mdash;com um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem
+duplicidade.</p>
+
+<p>Fôra elle quem me propuzéra aquella excursão á matta, para darmos tempo a
+que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já prevía frugal e triste,
+attendendo ás condições da terra em que nos achavamos.</p>
+
+<p>Acceitei-lhe de boamente a proposta, com<span class="pn"><a id="pg_11"
+name="pg_11">{11}</a></span> aquella vivacidade alegre de quem vive mezes
+inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos,
+um bello dia para descançar um pouco, em a paz d'uma povoação de arrabalde,
+refestelando-se preguiçosamente na relva odorífera dos nossos grandes e
+soberbos mattagaes.</p>
+
+<p>E fômos por ali fóra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante
+cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja uniformidade era
+quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo branco das varias flôres
+sylvestres, cujas pétalas encolhiam-se um pouco, meio-fanadas pelos raios do
+sol.</p>
+
+<p>Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por onde a
+vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da
+marezia andava no espaço, casado ao perfume subtil e excitante da baunilha,
+cujas compridas favas pendiam dos escuros e velhos galhos d'aquellas arvores
+seculares. Pássaros voavam céleres, n'um brando ruflar d'azas, soltando
+pequeninos gritos estrídulos e alegres. De momento a momento, a curta distancia
+de nós, lagartos cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o
+folhedo sêcco que juncava o sólo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços
+de ceu de um azul deslavado, que nós entreviamos pelos interstícios das
+ramas,<span class="pn"><a id="pg_12" name="pg_12">{12}</a></span> urubús
+recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos seus vôos
+arredondados, pairando como n'uma contemplação enamorada da terra que os
+sustenta com suas putrefacções, com seus resíduos infames e nojentos.</p>
+
+<p>De repente, o meu companheiro disse-me:</p>
+
+<p>&mdash;Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar cançado d'esta longa
+caminhada.</p>
+
+<p>Não tinha a minima accentuação estrangeira; fallava como um verdadeiro
+paraense.</p>
+
+<p>Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de bruços,
+com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a descer-lhe para a
+nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.</p>
+
+<p>Ficamos calados por alguns minutos.</p>
+
+<p>Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos
+haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra exhalava.</p>
+
+<p>Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;O sr. é casado?</p>
+
+<p>Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de quem
+deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois respondeu:
+</p>
+
+<p>&mdash;Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.</p>
+
+<p>&mdash;Ah!</p>
+
+<p>&mdash;É verdade. Sou viuvo e tenho-me dado<span class="pn"><a id="pg_13"
+name="pg_13">{13}</a></span> muito bem n'este novo estado de quem vive sem as
+preoccupações do homem casado, que tem uma familia a sustentar. Bem tolo é quem
+se casa...</p>
+
+<p>Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.</p>
+
+<p>Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traçando nas
+duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, partiam a
+perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das suissas.</p>
+
+<p>Eu não comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim sublinhadas
+por similhante sorriso.</p>
+
+<p>Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, apertando-me
+as costas da mão direita, como para chamar para si toda a minha attenção:</p>
+
+<p>&mdash;Está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de
+arribação que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no coração, no
+rosto,&mdash;nos labios e no olhar? É uma historia muito longa a minha, meu
+caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? Não perderá nada com isso; pelo
+contrario, creio aproveitará alguma coisa com a moral que tirar das minhas
+palavras, depois de me dar toda a razão nos actos que pratiquei. Logo que me
+ouvir, o sr. verificará que é muito certo o rifão: <em>Tristezas não pagam
+dividas</em>, e adquirirá a certeza de que, n'este mundo, o<span class="pn"><a
+id="pg_14" name="pg_14">{14}</a></span> melhor meio de se gosar saúde e viver
+tranquillo, é ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do
+dezembargador Delfino. Ora vire p'ra cá as oiças e preste attenção.</p>
+
+<p>Sentei-me. Elle fez o mesmo e começou, sorrindo sempre:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de réis,
+herança de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando logo um
+socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o
+meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma hispanhola réles e
+velhaca de um hotel da cidade.</p>
+
+<p>"Um bello dia fallimos,&mdash;por causa dessas extraordinarias despezas
+capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crésus. Cuida que apaixonei-me
+por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, sem vontade para
+continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu espirito é refractario a
+tristezas,&mdash;o meu coração grande de mais para fazer-se pequenino e mirrado
+por tão pouca cousa. Um ou dois contos de réis que pude ganhar em certo
+negocio, após o naufragio a que fôra conduzido pela doidice de meu socio,
+empreguei-os em comprar algumas joias de ouro falso, em mercadorias de
+contrabando, e, com um volumoso carregamento barato,<span class="pn"><a
+id="pg_15" name="pg_15">{15}</a></span> segui para o rio Madeira, afim de
+explorar em meu unico proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros.</p>
+
+<p>"Não me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Pará, e adquiri maior
+carregamento, que fui de novo impingir ás remotas regiões do alto Madeira, onde
+os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada posição de inoffensivo
+estrangeiro, que carece de protecção, que não deve ser offendido nunca em um
+paiz amigo!"</p>
+
+<p>Calou-se. Em sua larga bôcca de expressão franca e descuidosa estava o
+eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraía para esse
+homem com toda a enorme força de um robusto affecto nascente.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Accendeu um charuto e continuou:</p>
+
+<p>&mdash;"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu
+regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma solida fortuna amoedada em
+bons contos de réis palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da mala. Tratei
+logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos os crédores da massa
+fallida, sem excepção de um só! Uma d'essas dividas da firma era uma
+anquinha,&mdash;uma anquinha!&mdash;que meu socio havia comprado para a sua
+Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que estabeleci-me pela
+segunda vez,&mdash;d'essa<span class="pn"><a id="pg_16"
+name="pg_16">{16}</a></span> feita sem socio, para não mais ser prejudicado por
+ninguem.</p>
+
+<p>"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga
+paraense,&mdash;farta carnação morenamente excitante e grandes quadris
+arredondados, divinos,&mdash;filha de um subdelegado de policia. Casei-me com
+ella alguns mezes depois de a ver. Não tinha educação, era estupida, mas
+possuía a convicção da belleza nas fórmas, a imponencia da sensualidade no
+olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?</p>
+
+<p>"Dois annos vivi eu nos braços de uma felicidade illimitada. Luiza, a minha
+captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em minha infinita
+affeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um esplendido segredo de sua
+magnifica belleza de crioula! Era um delirio, uma loucura dulcíssima e
+purificadora, aquelle amor que eu lhe votava com toda a vibrante virilidade do
+meu corpo e da minha alma! A pequenina casa em que viviamos era para mim uma
+Capua desejada, onde a minha languidez encontrava tranquillo bem estar, nos
+braços da seductora Luiza. O dia seguinte, que para muitos é um enigma
+atterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproducção
+inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor intenso
+e bom, como fostes amadas pela piéguice da ingenuidade do meu espirito!"<span
+class="pn"><a id="pg_17" name="pg_17">{17}</a></span></p>
+
+<p>Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisação prazenteira.
+Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a arregaçar-lhe a rubra ponta
+do labio grosso e varonil.</p>
+
+<p>E proseguiu, após haver accendido o charuto que se apagara:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Eu tinha inteira confiança em Luiza. Jámais a idéa de uma perfidia de
+sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como
+poderiam enganar-me aquelles olhos tão bellamente claros e brilhantes, aquella
+bocca de perfumosos labios que davam beijos tão doces, tão sensuaes, tão
+irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espirito era o
+espelho onde se reflectia o meu coração e onde eu suppunha ver a alma de Luiza,
+estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser tão rudemente
+ferida pelos factos!</p>
+
+<p>"É como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a
+phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginação creadora e
+ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que viera á cidade, e
+um bello dia, quando, ao caír da tarde, regressei a casa para jantar, não mais
+a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com
+o sobredito <em>cujo</em> mencionado<span class="pn"><a id="pg_18"
+name="pg_18">{18}</a></span> vaqueiro, como vim logo a saber, por informações
+ministradas pela visinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem
+robusto, completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz
+para o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e voluptuosa.
+</p>
+
+<p>"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as leis
+do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de Marajó, onde, por
+certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos braços do cyclopico
+vaqueiro? Que expuz á irrisão publica, ás chufas da plebe, a ignara patifaria
+de minha mulher e a irreparavel deshonra do meu nome? Nada d'isso, meu caro!
+Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas
+de que se esquecera com a precipitação da fuga! Veja até que ponto fui
+complacente. Veja que santa bondade a minha!</p>
+
+<p>"A desgraçada morreu um anno depois, victima de béri-béri; pois bem; para
+mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha mulher resar,
+na egreja do Carmo, uma triste missa de <em>requiem</em>, a que assisti com
+respeito e piedade."</p>
+
+<p>Calou-se, sem uma commoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse do
+tempo ou da côr do céu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E logo o seu
+velhaco<span class="pn"><a id="pg_19" name="pg_19">{19}</a></span> risinho
+sarcastico saltou-lhe da bôcca e veiu espreitar-me de sobre o labio
+superior,&mdash;como se fosse um depoimento vivo da tranquillidade d'aquella
+alma em face de todos os extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella
+haviam passado, sem conseguirem emocional-a.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me para
+que acompanhasse-o, seguiu em direcção ao povoado, cantarolando esta pandega
+quadra do <em>Dia e a Noite</em>, de Lecocq:</p>
+
+<blockquote>
+ <em>Minha mulher, que Deus levou,</em><br>
+ <em>Foi-me infiel constantemente;</em><br>
+ <em>Nada d'isso me acabrunhou:</em><br>
+ <em>Levei o caso alegremente!</em><span class="pn"><a id="pg_20"
+ name="pg_20">{20}</a><br>
+ <a id="pg_21" name="pg_21">{21}</a></span> </blockquote>
+
+<h1><a name="SECTION002000000">A convalescente</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION002100000">Ao dr. Alvares da Costa</a> </h3>
+
+<p>Estava pallida e triste, encostada levemente á grade do camarote, n'aquella
+noite de estréa.</p>
+
+<p>Os seus olhos, negros como a sêda que o seu delicado corpo vestia, divagavam
+pela platéa, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia uma d'essas
+melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e idéaes, bellas,
+todavia, mesmo na falsidade da sua creação,&mdash;vivificada por um mysterio e
+conduzida áquella sala d'espectaculo,<span class="pn"><a id="pg_22"
+name="pg_22">{22}</a></span> onde ostentavam-se as formosuras das moças da moda
+e as austeras sobrecasacas dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.</p>
+
+<p>E ella estava sempre pallida, encostada levemente á grade do camarote.</p>
+
+<p>Nos labios tinha ingênuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expressão da
+sympathica physionomia.</p>
+
+<p>Um engraçado diabrête, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.</p>
+
+<p>Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da alma
+uma commoção de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada d'esse logar,
+d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para a platéa, cujo
+ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos lenços rendados, dos
+perfumosos lenços discretos das jovens damas....</p>
+
+<p>E aquella encantadora creança que, sempre triste, encostava-se á grade do
+camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do soffrimento, que
+tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia austeramente séria sob a luz
+intensa do lustre.....<span class="pn"><a id="pg_23"
+name="pg_23">{23}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION003000000">Desillusão</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION003100000">A Fontes de Carvalho</a> </h3>
+
+<p>A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem
+sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente
+zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção.</p>
+
+<p>Tinha ella a tez,&mdash;enrugada e molle como a casca do janipapo
+maduro,&mdash;salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas;
+encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz,
+comprado<span class="pn"><a id="pg_24" name="pg_24">{24}</a></span> sempre na
+<em>Loja Mariposa</em>, da qual o co-proprietario Affonso,&mdash;o sympathico
+Affonso,&mdash;vendia-lh'o com muita dóse de <em>réclames</em> e chamadas de
+attenção para a superioridade da fazenda.</p>
+
+<p>Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quaes
+primavam os enfeites vistosos,&mdash;uma garridice da sra. d. Joaquina.</p>
+
+<p>O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada
+epiderme,&mdash;posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada
+d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.</p>
+
+<p>As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco
+lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do
+direito de aspirar a um bom casamento"&mdash;como ella pensava e dizia mui
+confidencialmente a certas amigas particulares.</p>
+
+<p>Sempre houve maledicentes no mundo (salve a <em>chapa</em>!): foi por isso
+que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu
+trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem
+pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos
+affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente
+russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler
+aquella<span class="pn"><a id="pg_25" name="pg_25">{25}</a></span> affirmativa
+a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou,
+naturalmente.</p>
+
+<p>A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para
+conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á
+intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas
+repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera
+antigamente.</p>
+
+<p>Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu <em>spleen</em> de
+senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de <em>tia</em>. Ai! A
+pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado
+com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus
+encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns
+vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara o amor d'elle, sonhando
+desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um
+romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora
+era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão,
+resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a
+Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe
+affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de<span class="pn"><a id="pg_26"
+name="pg_26">{26}</a></span> amor, e bôas tortas de camarões seguidas de
+compotas de delicioso bacury, á sobremesa.</p>
+
+<p>Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações
+exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente
+que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela
+seducção d'alguma <em>yára</em> encantadora. Do outro constava apenas que
+partira para seu paiz natal,&mdash;Portugal,&mdash;afim de ir saborear á
+lareira, nos longos serões de inverno,&mdash;quando o suão sibila em as grandes
+chaminés ennegrecidas,&mdash;os succulentos nácos de paios da
+Beira,&mdash;d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta
+João Penha.</p>
+
+<p>Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos
+tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas
+esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante
+dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não
+partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem
+estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella
+armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de
+toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á
+casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros<span class="pn"><a id="pg_27"
+name="pg_27">{27}</a></span> accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle,
+para mudamente lhe revelar a sua paixão.</p>
+
+<p>Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente
+contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede
+de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos
+ao bom andamento d'aquelle amor.</p>
+
+<p>Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade
+apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.</p>
+
+<p>A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu
+as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos
+d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa
+admiradora do "seu caracter austero."</p>
+
+<p>Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos,
+desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.</p>
+
+<p>Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar
+ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da
+Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d.
+Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella,
+para obedecer aos<span class="pn"><a id="pg_28" name="pg_28">{28}</a></span>
+dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.
+</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no
+Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por
+uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida
+de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as
+omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma
+escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.</p>
+
+<p>&mdash;Santo Deus, que vejo?!&mdash;exclamou o tio, assustado.&mdash;Já, um
+medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....</p>
+
+<p>O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o
+sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações sobre o
+tratamento.</p>
+
+<p>Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve
+uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.
+</p>
+
+<p>Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que
+habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse.
+Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso<span class="pn"><a
+id="pg_29" name="pg_29">{29}</a></span> Francisco da Natividade tratou logo de
+mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saíu seis dias depois.</p>
+
+<p>No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando
+verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a
+vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o
+que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim....
+Adeus!</p>
+
+<p>Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de
+restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de
+tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a
+esquecer-se da sra. d. Joaquina.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos
+lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no
+continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma
+conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias.</p>
+
+<p>Na vespera do dia em que tinha de seguir<span class="pn"><a id="pg_30"
+name="pg_30">{30}</a></span> para a primeira excursão,&mdash;ao
+Alemtejo,&mdash;estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão
+no bolso d'um <em>paletot</em> que só vestia em viagem, encontraram seus dedos
+um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e
+suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! que esquecimento o meu!&mdash;exclamou.&mdash;Que juizo não terá
+feito a meu respeito a impagavel senhora....</p>
+
+<p>E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.</p>
+
+<p>"Meu bom amigo,&mdash;leu.&mdash;Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito
+<em>afflue-me</em> aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o:
+amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto
+copiou ella do romance <em>A Caridade Christã</em>, de Escrich,&mdash;pensou
+Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se <em>fui</em> por si acolhido
+o meu amor. (Aquelle <em>fui</em> é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o
+Raul bem o conheceu). Espero <em>ancioza</em> a sua resposta, com a qual o meu
+amigo <em>remeter-me-á</em> meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de
+presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua
+eternamente,&mdash;J<small>OAQUINA</small>."</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle
+<em>modelo</em> d'orthographia,<span class="pn"><a id="pg_31"
+name="pg_31">{31}</a></span> propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se
+mais serio e:</p>
+
+<p>&mdash;Ora bolas!&mdash;disse.&mdash;Só os cabellos encantavam-me, por serem
+tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que
+desillusão!....<span class="pn"><a id="pg_32" name="pg_32">{32}</a><br>
+<a id="pg_33" name="pg_33">{33}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION004000000">A "Serenata" de Schubert</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION004100000">Ao dr. Augusto Meira</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION004110000">I</a> </h2>
+
+<p>No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na
+rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma vela
+de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na
+Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de tranquillidade imponente, que
+fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos
+domicilios. O vento norte,<span class="pn"><a id="pg_34"
+name="pg_34">{34}</a></span> que vinha de Olinda, entrava na sala, e d'esta
+seguia para o quarto de João, agitando a luz dentro do <em>photo-mobile</em>.
+</p>
+
+<p>Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na
+visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou
+attenção. Eram as primeiras notas da <em>Serenata</em> de Schubert, esse
+magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De um
+pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das janellas do
+seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o rosto descançado na
+mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta.</p>
+
+<p>Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, como
+extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava no
+azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes, uma
+diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes montões de
+nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima saíam as vozes do
+piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas janellas abertas.</p>
+
+<p>Como todas as musicas sentimentaes, a <em>Serenata</em> de Schubert possue
+isto de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro da
+meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são sempre,
+quer dolorosas<span class="pn"><a id="pg_35" name="pg_35">{35}</a></span> quer
+alegres, um grato consolo para a alma.</p>
+
+<p>Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em
+seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente
+dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu querido Pará, podia
+ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella que deve um dia ser sua
+esposa.<sup><a href="#fn1" name="mfn1">[1]</a></sup> Foi tambem porisso que o
+moço estudante de direito recordou-se,&mdash;e com quantas saudades!&mdash;da
+magistral execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro
+allemão,&mdash;uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos,
+com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao espirito e
+suaves langores ao corpo.</p>
+
+<p>Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida
+companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta,
+extasiado na audição d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma
+transformação imaginativa, o piano<span class="pn"><a id="pg_36"
+name="pg_36">{36}</a></span> da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos d'elle
+um som particular, intimo, que o commovia todo, chamando-lhe duas lágrymas aos
+cantos dos olhos! E, por esta causa tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas
+pacificas paredes da casa fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual
+déra-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão
+poetica, porém saudosíssima, de uma tela de Watteau....</p>
+
+<p>Esse quadro, eil-o:</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a href="#mfn1" name="fn1">[1]</a></sup> Este conto foi escripto em
+1886. A donzella de que se trata está hoje casada com o heroe da presente
+narração e póde gabar-se de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida
+e a mais leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga de
+todas as mães.</p>
+</div>
+
+<h2><a name="SECTION004120000">II</a> </h2>
+
+<p>Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda. Um
+socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a familia
+estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá. Das ruas vinham
+pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas e sons de guitarras
+fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaços, uma voz, um
+grito chegava até á sala, revelando que pela cidade havia quem passeiasse,
+tentando festejar o anniversario do nascimento de Christo.<span class="pn"><a
+id="pg_37" name="pg_37">{37}</a></span></p>
+
+<p>Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora sugava
+a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua virtuosa mãe, a
+qual, supposto conversar com o extremoso marido, não afastava do rosto da filha
+os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um lago de ternura meiga e
+immaculavel como um beijo maternal.</p>
+
+<p>Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do
+lar,&mdash;elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do
+amor!&mdash;emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle,
+falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã, recebera de
+suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E
+dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão suavíssima do rosto
+espiritualisada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os labios, o
+velho Antonio, de cabellos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao
+filho mais moço, ao Theodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe
+como exemplo a seguir várias scenas a que assistira em sua passada vida
+commercial.</p>
+
+<p>Uma exhalação de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a
+tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe muitas
+confianças no futuro.<span class="pn"><a id="pg_38"
+name="pg_38">{38}</a></span></p>
+
+<p>De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz ergueu-se da
+rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:</p>
+
+<blockquote>
+ Folguem todos n'esta noite,<br>
+ Venha a festa sem egual:<br>
+ &mdash;Hoje em nada se repara,<br>
+ Porque é noite de Natal.<br>
+ Hoje em nada se repara,<br>
+ Porque é noite de Natal. </blockquote>
+
+<p>E a guitarra chorava em <em>tom menor</em>, fazendo côro ao
+<em>ritornello</em>. A voz de um agradavel <em>tenor</em> prendeu logo a
+attenção dos que estavam na sala:</p>
+
+<blockquote>
+ Esta noite abençoada<br>
+ Pertence aos que têm amor;<br>
+ No presepe bethlemita<br>
+ Veiu ao mundo o Deus-Senhor. </blockquote>
+
+<p>Novo <em>ritornello</em> choroso na guitarra.</p>
+
+<blockquote>
+ Por isso, moços e moças,<br>
+ Entregae-vos ao prazer,<br>
+ Emquanto não vem a edade<br>
+ Vossa fronte encanecer! </blockquote>
+
+<p>Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.</p>
+
+<p>Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n'uma energia de
+movimento,<span class="pn"><a id="pg_39" name="pg_39">{39}</a></span> com as
+narinas afflantes, os anneis da cabeça tremendo-lhe sobre os hombros.</p>
+
+<p>&mdash;Tôlo!&mdash;exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se
+agora ao longe, na extremidade da rua.&mdash;Pois que venha cá, a ver se os
+velhos não têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me
+dirá ao depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o
+meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!..</p>
+
+<p>Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a encarnação
+do carinho e, muito piedosa e pura,&mdash;qual um raio de sol illuminando a
+face de uma estatua antiga,&mdash;foi beijar amoravelmente a fronte do
+ancião....</p>
+
+<p>Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;&mdash;que não désse
+importancia a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que
+intensidade elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E
+demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, não
+valia a pena entristecer-se....</p>
+
+<p>&mdash;Para o lado os pezares!&mdash;terminou sorrindo.&mdash;Como
+distracção agradavel a todos, vou tocar ao piano a <em>Serenata</em> de
+Schubert.</p>
+
+<p>Já se tinha João levantado, prevendo<span class="pn"><a id="pg_40"
+name="pg_40">{40}</a></span> este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a
+estante a musica desejada e, accendendo as velas, sentou-se ao lado do
+banquinho, que Dhalia veiu occupar.</p>
+
+<h2><a name="SECTION004130000">III</a> </h2>
+
+<p>E começaram então as primeiras melodias da <em>Serenata</em>.</p>
+
+<p>João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça, tão
+bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica comprehendia os
+segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma figura, ao principio
+fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, apparecendo em primeiro
+plano, desenhou-se na tela da imaginação do moço. E surgiu então um joven de
+bandolim em punho, debaixo dos balcões floridos de um elegante castello, que se
+erguia a meio de uma paizagem germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos
+lagos tranquillos, sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes,
+ruflando as<span class="pn"><a id="pg_41" name="pg_41">{41}</a></span> brancas
+pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um canto magico de
+yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal, doce como um beijo
+apaixonado. De seus labios côr de papoula distillava-se o mel da musica de
+Schubert, que ia cair com uma suavidade de balsamo sobre a alma enamorada de
+uma joven castellã formosa, occulta entre os refólhos das colgaduras das
+janellas! A voz do amoroso trovador tinha um não sei quê de melancholico, um
+tal cunho de poesia dolente, que João emocionou-se tanto em face do quadro que
+a sua imaginação lhe descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com
+um meio sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia:
+</p>
+
+<blockquote>
+ <em>"O Châtelaine,</em><br>
+ <em>Entend ma peine!..</em>"<br>
+ ...................<br>
+ ................... </blockquote>
+
+<p>Dhalia executou o <em>morendo</em> final da Serenata. João acordou da sua
+<em>rêverie</em>, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico
+bailava um risinho engraçado.</p>
+
+<p>De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante
+illuminado n'uma expressão de ineffavel ventura.<span class="pn"><a id="pg_42"
+name="pg_42">{42}</a></span> Dos labios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma
+benção muda, que se completava pelo gesto das mãos erguidas e espalmadas no
+espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!</p>
+<hr class="dotted">
+
+<h2><a name="SECTION004140000">IV</a> </h2>
+
+<p>Estava n'este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella do
+seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha
+desconhecida gemia tambem o adoravel remate da <em>Serenata</em>.</p>
+
+<p>João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe avivára
+tão grata lembrança de seu venturoso passado,&mdash;agora que elle estava
+ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que possuiam-lhe a flôr do
+affecto. Ergueu os olhos ao céo, n'uma necessidade de soltar livremente o
+espirito pela amplidão infinita do vacuo. No firmamento azul tachonado de
+louras lucilações, o crescente de lua<span class="pn"><a id="pg_43"
+name="pg_43">{43}</a></span> vogava para o occaso como uma alegria fugitiva;
+pequeninos flócos de nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço
+adeante, projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da margem
+opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se
+bradando&mdash;<em>alerta!</em>&mdash;á sentinella.</p>
+
+<p>Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo
+infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se
+piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo venerando de Antonio, o
+estremecido pae de sua noiva.<span class="pn"><a id="pg_44"
+name="pg_44">{44}</a><br>
+<a id="pg_45" name="pg_45">{45}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION005000000">Que bom marido!</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION005100000">A Juvenal Tavares</a> </h3>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p><em>Não desejarás a mulher do teu proximo.</em><br>
+               M<small>ANDAMENTO DE</small> D<small>EUS.</small> </p>
+</blockquote>
+
+<p>Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes,
+tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal,
+onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas scintillações que davam a nota
+de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador
+olhar.<span class="pn"><a id="pg_46" name="pg_46">{46}</a></span></p>
+
+<p>Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de
+rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que
+tivéra,&mdash;tempestuosa e poída nas orgias,&mdash;encanecera-lhe
+completamente os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde
+cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.</p>
+
+<p>Ella tinha dezoito primavéras,&mdash;para me servir d'uma velha expressão do
+romantismo;&mdash;ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e
+marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador
+descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos
+do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da angélica,
+era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a
+mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,&mdash;d'esses namoradores enfatuados que
+abundam por toda a parte.</p>
+
+<p>O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas,
+depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da
+sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um <em>chôcho</em> á mulher e saía para
+a repartição com o passo do empregado publico:&mdash;impassivel e
+cadenciado.</p>
+
+<p>Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena
+caricia e<span class="pn"><a id="pg_47" name="pg_47">{47}</a></span> voltava á
+varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do jantar. Dispostas as coisas para
+a segunda refeição, ía sentar-se á machina de costura, que dava-lhe não
+diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os
+vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a
+qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e
+um passeio a <em>bond</em> em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de
+Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais
+outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora
+esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e
+nova.</p>
+
+<p>Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus
+adoradores,&mdash;rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, não
+ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente a
+requestava era um tal Jacyntho,&mdash;um <em>leão</em> conquistador que falava
+pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro
+atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do
+casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o
+pobre <em>namorado sem ventura</em> passava todas as tardes pela casa do
+Bonifacio, quando Elvira ía para a janella,<span class="pn"><a id="pg_48"
+name="pg_48">{48}</a></span> emquanto o marido, na varanda, jogava o sólo com o
+taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira,
+enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense
+retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem
+corresponder áquelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era
+pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem
+não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o
+taberneiro e o vizinho começavam no <em>passo</em> e no <em>bólo</em>. É que a
+interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se
+contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante,
+nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava "uma
+distracção", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um
+crime.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a
+esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra
+dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança<span class="pn"><a id="pg_49"
+name="pg_49">{49}</a></span> no futuro, que resolvería, com
+vantagem,&mdash;aquelle interessante problema de amor.</p>
+
+<p>Uma tarde,&mdash;era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras
+admirado por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois
+lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a
+apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.</p>
+
+<p>Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata,
+que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Onde está a d. Elvira, minha filha?</p>
+
+<p>A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu na
+bocca o index da mão direita, conservando-se calada.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?&mdash;insistía
+o <em>leão</em> fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.</p>
+
+<p>Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da fregueza e
+disse, ainda meio acanhada:</p>
+
+<p>&mdash;Está lá dentro....</p>
+
+<p>&mdash;E o sr. Bonifacio?</p>
+
+<p>&mdash;Saíu.</p>
+
+<p>&mdash;Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora,
+queres?</p>
+
+<p>&mdash;Eu quero....<span class="pn"><a id="pg_50"
+name="pg_50">{50}</a></span> </p>
+
+<p>Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por
+cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente
+outro tostão.</p>
+
+<p>Depois seguiu pela estrada adeante.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor que
+por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela
+estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo
+passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova epístola. Repetiu o mesmo
+jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma
+carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho
+não era-lhe indifferente, mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a
+sua "posição de mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."</p>
+
+<p>D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar
+dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos
+d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do
+sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas
+leituras romanticas<span class="pn"><a id="pg_51" name="pg_51">{51}</a></span>
+deram causa á correspondencia criminosa.</p>
+
+<p>Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além
+d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
+</p>
+
+<p>Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de
+volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da
+porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as
+dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a attenção de velho curioso.</p>
+
+<p>&mdash;Que levas ahi?&mdash;perguntou.</p>
+
+<p>&mdash;Não é nada....&mdash;respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar
+aos paraenses.</p>
+
+<p>&mdash;Não mintas! Eu vi não sei quê!&mdash;bradou o sr. Bonifacio puxando-a
+pelo braço e apoderando-se do objecto.</p>
+
+<p>Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a <em>missa
+do gallo</em> em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de
+conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha á 1
+hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.</p>
+
+<p style="text-align: right;">E<small>LVIRA</small>.»<span class="pn"><a
+id="pg_52" name="pg_52">{52}</a></span></p>
+
+<p>O Bonifacio <em>subiu ao arame</em>; ficou da côr da purpura e sentiu uma
+violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa
+infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe appareceu a
+subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingança.</p>
+
+<p>&mdash;Toma, leva,&mdash;disse entregando a carta á rapariga.</p>
+
+<p>E entrou.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços
+d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes egrejas
+onde se deve rezar a <em>missa do gallo</em>.</p>
+
+<p>O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para a
+rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...."</p>
+
+<p>Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros
+até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que
+bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um
+leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que
+ía fruir na conversação de Elvira, quando<span class="pn"><a id="pg_53"
+name="pg_53">{53}</a></span> subitamente exhalou um grito, dando um salto para
+o lado.</p>
+
+<p>Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde
+occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a lembrança de
+namorar-lhe a mulher.</p>
+
+<p>Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca
+agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente,
+n'uma agitação febril....</p>
+
+<p>O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos
+haviam saído para a <em>missa do gallo</em>.</p>
+
+<p>Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense,
+despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que
+achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:</p>
+
+<p>&mdash;Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na
+asneira de namorar moças casadas!</p>
+
+<p>E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de
+medo.<span class="pn"><a id="pg_54" name="pg_54">{54}</a><br><a id="pg_55"
+name="pg_55">{55}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION006000000">Noite de finados</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION006100000">A Manoel P. de Carvalho</a> </h3>
+
+<p>O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos de
+preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. Eram oito
+horas da noite sob um céo trevoso como a tristeza d'aquellas pessoas que ali se
+recordavam com saudades pungitivas dos parentes e amigos para sempre occultos
+debaixo da terra, sobre a qual compridas filas de vélas accêsas lançavam uma
+claridade intensa, que ia esbater-se ao fundo, na escuridão do mattagal.<span
+class="pn"><a id="pg_56" name="pg_56">{56}</a></span></p>
+
+<p>O ar estava impregnado do perfume das flôres&mdash;piedosamente depostas em
+cima das sepulturas por mãos amigas,&mdash;e do cheiro mystico da cêra
+queimada.</p>
+
+<p>Ao longe, á direita da ermida, uma banda de musica executava plangentemente
+uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades lugubres faziam
+suspirar as velhas beatas,&mdash;aspirando a uma outra vida desconhecida, além
+d'aquelle firmamento negro, no logar onde a omnipotencia incondicional da
+Divindade lhes parecia dominar em toda a sua magestade.</p>
+
+<p>Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o cemiterio.
+Este, áquella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas que receiavam um
+atropello, saíam enfadadas, murmurando indecencias.</p>
+
+<p>Á porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente com
+as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas lanternas
+que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de vestes sujas e
+mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em seu favor a caridade dos
+visitantes piedosos.</p>
+
+<p>Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam olhares
+torpemente libidinosos ás moças que entravam seguidas de suas mamães, n'um<span
+class="pn"><a id="pg_57" name="pg_57">{57}</a></span> andar assustadiço e
+saudando um ou outro conhecido com um meneio de cabeça. Mais adeante, n'um
+canto escuro, uma roliça mulata, com o vestido muito decotado, murmurava
+amabilidades a um preto de physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e
+com a cabeça coberta por um descommunal chapéu alto. Como contraste, não muito
+longe, estava uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados á
+grade ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vélas em castiçaes de
+vidro.</p>
+
+<p>Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma corôa de perpetuas rôxas, corriam
+lágrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas do capim que
+vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....</p>
+
+<p>Era sem duvida alguma viuva que pagava á memoria do finado marido alguns
+annos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...</p>
+
+<p>Á esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em negro
+caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e toda coberta
+de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma senhora de cabellos
+grisalhos, immovel, calada&mdash;como evocando passadas scenas de
+prazer&mdash;sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia no funeral
+tristonho....<span class="pn"><a id="pg_58" name="pg_58">{58}</a></span></p>
+
+<p>O céo, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiçada. Grandes
+nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as bandas da
+cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço d'almas penadas fazia
+farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar ás supersticiosas
+moças que estavam no cemiterio.... Agora calára-se a orchestra.</p>
+
+<p>Subira um prégador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de
+grande côma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos tragicos,
+uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade mundana e a perenne
+bemaventurança celestial.</p>
+
+<p>As mulheres,&mdash;mães, filhas, esposas,&mdash;que o ouviam, ficavam
+caladas, muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto
+bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciencia, levantavam um brado de
+maldição áquella felicidade que lhes roubára a companhia dos entes queridos e
+amoraveis.</p>
+
+<p>Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma creança de
+tenra edade,&mdash;um lindo e pallido orphãosinho,&mdash;voltou-lhe costas
+nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre tumulo tranquillo, em
+cuja grade se lia este lancinante poema de uma só phrase:&mdash;<em>Á minha
+esposa....</em></p>
+
+<p>No céo, as nuvens afastavam-se, evolavam-se<span class="pn"><a id="pg_59"
+name="pg_59">{59}</a></span> como alegrias fugitivas ou prazeres expulsos,
+erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de miragens variadas.</p>
+
+<p>A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena magestade
+tumular, que impoz vago soffrimento ao coração de todos. Os brandões e vélas
+perderam o brilho, ficaram como pyrilampos lantejoulando os sepulchros sob o
+luar diaphano, a cuja claridade continuava o pregador a recordar a omnipotencia
+de Deus.</p>
+
+<p>Os <em>bonds</em> estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos
+depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de senhoras
+tristes, com physionomias de soffrimento.</p>
+
+<p>Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava
+illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a
+penultima da festa annual.</p>
+
+<p>Então, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma saudade á
+memoria de um amigo, d'um irmão, d'um pae, desciam agora ao centro da festa
+popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as casas de
+jogo,&mdash;propellidos pela fascinação demoniaca e terrivel da roleta!<span
+class="pn"><a id="pg_60" name="pg_60">{60}</a><br>
+<a id="pg_61" name="pg_61">{61}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION007000000">Rio abaixo</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION007100000">(Ao dr. Gaspar Costa)</a> </h3>
+
+<p>A canôa seguia mansamente, per si só, impellida pela correnteza.</p>
+
+<p>Sentado á prôa, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava com
+o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas das
+bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do sol, que
+escondia-se por traz da ilha das Onças.</p>
+
+<p>Na pôpa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o <em>senhor moço</em>,
+abanando-se<span class="pn"><a id="pg_62" name="pg_62">{62}</a></span> com uma
+ventarola de pennas vermelhas, ao lado da <em>senhora moça</em>, que espreitava
+para fóra, por um dos pequenos postigos lateraes. A seus pés, dormitava o cão
+Mururé, com um pedaço de lingua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os
+dentes meio visiveis.</p>
+
+<p>O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos mattagaes
+da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam até á embarcação, n'uma
+suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois
+viajantes.</p>
+
+<p>&mdash;Que bonita paizagem, Antonio!</p>
+
+<p>&mdash;É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da
+viagem.</p>
+
+<p>&mdash;Quando chegamos ao <em>sitio</em>?</p>
+
+<p>&mdash;Ás 9 horas, isto é, d'aqui a tres ou quatro.</p>
+
+<p>&mdash;É pena chegarmos tão cedo!</p>
+
+<p>&mdash;Dizes bem: vamos tão contentes....</p>
+
+<p>E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.</p>
+
+<p>O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns momentos,
+voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de
+sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada <em>fumaça</em>, para
+tranquillisar-se.</p>
+
+<p>Os outros, os dois recem-casados,&mdash;porque Antonio e Luiza eram noivos:
+tinham-se matrimoniado quinze dias antes,&mdash;experimentavam, debaixo da
+tolda, uma sensação<span class="pn"><a id="pg_63" name="pg_63">{63}</a></span>
+de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle magestoso socego, sobre o
+Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente,&mdash;com o olhar
+cheio de caricias,&mdash;por haverem podido esquivar-se á vida agitada que
+levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banaes,
+nullas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,&mdash;como iriam viver felizes
+durante aquella quinzena de fuga, em a tranquillidade bucolica da roça,
+sosinhos, passeiando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando
+caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa
+dos igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos
+pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas mattas
+do <em>sitio</em>?!....</p>
+
+<p>Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, estas
+idéas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem attenderem a que
+o sol não mais vibrava os lategos luminosos no dorso da corrente, e que,
+portanto, poderiam sair para o centro da canôa, afim de gozarem da viração
+fresca e cheirosa que agitava n'um movimento descompassado as velas mal
+colhidas ao mastro.</p>
+
+<p>Sempre assentado á prôa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o
+caboclo<span class="pn"><a id="pg_64" name="pg_64">{64}</a></span> olhava agora
+para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixára um rastro
+avermelhado no céo, onde agrupavam-se em desordem nuvemzinhas côr de nácar,
+violetas, azuladas, plumbeas, côr de perola. Do lado opposto, levantava-se a
+noite, n'um andar manso, mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo
+bruxoleante.</p>
+
+<p>O gorgeio dos passaros cessára na ilha das Onças, que já tinha ficado atraz,
+a longa distancia; só chegavam á canôa os compassos em <em>andante</em> do
+canto de um carachué que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente á qual
+passou a embarcação.</p>
+
+<p>&mdash;Vê ahi no meu relogio que horas são, José, ordenou Antonio ao
+caboclo.</p>
+
+<p>&mdash;Seis e trinta e oito, <em>sinhor</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! então saiámos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.</p>
+
+<p>Vieram para fóra.</p>
+
+<p>Luiza soltou uma exclamaçãosinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito,
+engraçada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um timbre argentino
+como um filete de agua morna caindo n'uma banheira d'oiro lavrado:</p>
+
+<p>&mdash;Ah!&mdash;fez ella.</p>
+
+<p>E deixou-se ficar de pé, encostada ao hombro do marido, extasiada, em frente
+ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.</p>
+
+<p>Largo em aquelle sitio, achamalotado<span class="pn"><a id="pg_65"
+name="pg_65">{65}</a></span> pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas
+rasas, cobertas d'uma vegetação opulenta, que esbatia-se n'uns tons escuros,
+quasi indecisos, no limite do horisonte. Um socego de tabernaculo reinava por
+toda a parte, sob o azul ferrete do céo, onde as estrellas começavam a
+scintillar como as pedras preciosas d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem
+occupava n'esse instante um espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra
+firme, tremulava uma pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante,
+esgueirava-se pelo costado da canôa n'um murmurio dolente. A súbitas, na
+solemnidade do silencio, resoou um grito d'ave nocturna.</p>
+
+<p>&mdash;Accende a lanterna, José,&mdash;disse Antonio ao caboclo, que
+obedeceu logo, voltando depois á sua posição habitual na prôa, fumando.</p>
+
+<p>Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da
+embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros
+com roseiras florídas.</p>
+
+<p>Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi
+á pôpa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, conchegando-lh'o muito
+ao pescoço, amoravelmente.</p>
+
+<p>Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escuridão. Do logar em que
+achavam-se, apenas viam na prôa um ponto vermelho<span class="pn"><a id="pg_66"
+name="pg_66">{66}</a></span> como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo
+do caboclo. Este se tornára invisivel na densidade das trevas.</p>
+
+<p>Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solidão: entraram a conversar
+baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de tão
+agradaveis recordações. Era para ambos uma innarravel felicidade poderem
+pairar, assim a sós, das peripecias do curto namôro, dos longos annos que elle
+passou a amal-a silenciosamente, das emoções e impaciencias do dia do
+casamento, quando approximava-se a hora em que o parocho de Sant'Anna teria de
+unil-os.</p>
+
+<p>Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias,
+n'uma excitação dos sentidos. Um movimento instinctivo,&mdash;inconsciente,
+talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,&mdash;uniu-lhes os labios n'um
+prolongado beijo de paixão, vibrante como um côro juvenil.</p>
+
+<p>Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.</p>
+
+<p>Poz-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com
+a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvatica e cheia de
+grandiosidade das florestas amazonicas...</p>
+
+<p>E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu
+áquelle<span class="pn"><a id="pg_67" name="pg_67">{67}</a></span> beijo
+nascido de duas bôccas amantes no silencio de tão linda noite paraense.</p>
+
+<p>Entretanto, a canôa seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela
+correnteza.<span class="pn"><a id="pg_68" name="pg_68">{68}</a><br>
+<a id="pg_69" name="pg_69">{69}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION008000000">Ao despertar</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION008100000">Ao sr. A. R. d'O. Gomes</a> </h3>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p><em>Nem tudo o que luze é ouro.</em><br>
+           <small>PROVERBIO POPULAR.</small></p>
+</blockquote>
+
+<h2><a name="SECTION008110000">I</a> </h2>
+
+<p>A alcova nupcial em noite de noivado.</p>
+
+<p>Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da peça,
+exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas variegadas em côres
+desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas
+para o leito de alvas cortinas<span class="pn"><a id="pg_70"
+name="pg_70">{70}</a></span> discretamente cerradas... Uma lámpada com vidros
+baços, côr de leite, esparze branda luz em torno, sem crepitação, n'uma solenne
+impassibilidade, que dá certo ar magestoso ao silencio do recinto.</p>
+
+<p>Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n'um bocejo,
+sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama.</p>
+
+<p>Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa
+meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado.</p>
+
+<p>Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e trémula,
+seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira preguiçosa o elegante
+espartilho e o corpinho de labyrintho....</p>
+
+<p>Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se lhe
+antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar pelos finos
+lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em cima do travesseiro
+macio como a flôr do algodoeiro....</p>
+
+<p>E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a
+passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios contrahidos n'um
+leve rictus de satisfação, de ventura.</p>
+
+<p>Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma
+pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:</p>
+
+<p>&mdash;Permittes?....<span class="pn"><a id="pg_71"
+name="pg_71">{71}</a></span> </p>
+
+<p>E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando
+felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela atmosphera da
+peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas multicores
+desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas
+para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas.</p>
+
+<h2><a name="SECTION008120000">II</a> </h2>
+
+<p>O casamento realisado n'aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de
+seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como indisposições
+subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa de nonada, e, depois,
+de repente, pela influencia de não sei que espirito benefico, pazes feitas com
+abundantes expansões apaixonadas, reconciliações ternas e carinhosas, que os
+prendiam temporariamente n'um enlevo.</p>
+
+<p>O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, brazileiro
+obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação<span class="pn"><a
+id="pg_72" name="pg_72">{72}</a></span> do homem rico que vive contentíssimo da
+sorte.</p>
+
+<p>Creara para a filha um ideal&mdash;um casamento com um bacharel. Similhante
+aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa roda, para
+a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,&mdash;a mulher
+morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico, inviavel,&mdash;deixava a
+filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo, para encurtar o tempo.</p>
+
+<p>Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira
+peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz attendel-os e
+appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias antes chegara de
+Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o titulo de bacharel em
+direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das graças de Paula. Aquella cutis
+morena e avelludada; os olhos d'ella,&mdash;duas bólas d'onix engastadas em
+amendoas de jaspe, sombreadas por longos cilios sedosos;&mdash;os longos
+cabellos d'ébano, ondeando-se-lhe pelas espaduas de farta carnação; aquelle
+bonito torso de opulentos seios na apojadura da juvenilidade;&mdash;tudo n'ella
+prendia-lhe o enamorado espirito em os laços d'uma paixão tão sincera quanto
+profunda. Mas, sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava
+a grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso espiritualisado
+e<span class="pn"><a id="pg_73" name="pg_73">{73}</a></span> prenhe de
+beatitude, eram os alvos dentes que perlavam as carminadas gengivas d'ella,
+quando Paula fitava-o sorrindo, com duas covinhas sobre as faces, bem junto ao
+rosto d'elle, como desejando magnetisal-o.</p>
+
+<p>Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, foi
+para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado sentiu-se, que
+sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia,&mdash;elle que jámais
+fizera versos!&mdash;uma poesia em que abundavam as
+palavras&mdash;<em>seductora virgem</em>, <em>divinal espirito
+archangélico</em>, em uma terrivel mescla d'enormes pés quebrados, com grande
+escandalo das regras formuladas por A. Feliciano de Castilho.</p>
+
+<p>Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.</p>
+
+<p>Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da
+noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o encantavam.
+</p>
+
+<p>E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar ao
+corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o primeiro beijo
+que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!</p>
+
+<p>Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer parte
+que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula sorrindo-lhe
+amoravelmente,<span class="pn"><a id="pg_74" name="pg_74">{74}</a></span>
+incitando-o a uma tentativa agradavel de roubo de um ósculo. O colete, que elle
+enfiava n'esse instante, assumia a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos
+hombros, perto dos quaes pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o
+padrinho appareceu entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era
+tempo de ir para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão
+concentrado em suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido,
+murmurando:</p>
+
+<p>&mdash;Que bella dentadura, que tens!</p>
+
+<h2><a name="SECTION008130000">III</a> </h2>
+
+<p>Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa do
+velho pae de Paula, durante a longa e&mdash;para elle,&mdash;enfadonha
+conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros,
+Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com a
+fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao ouvido, com
+um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado<span class="pn"><a id="pg_75"
+name="pg_75">{75}</a></span> na palma da mão, opiniões em nada favoraveis á sua
+reputação de sobriedade em assumpto de succo de uva....</p>
+
+<p>&mdash;Que te parece o <em>gajo</em>, hein?&mdash;diziam.&mdash;Pois isso é
+lá cousa que se faça? Embebedar-se no dia do casamento....</p>
+
+<p>&mdash;Que escandalo!</p>
+
+<p>&mdash;Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.</p>
+
+<p>E seguiam por esta norma os commentarios&mdash;todos reçumando idéas
+gordurosas e indecentes.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente,
+muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com acompanhamento
+de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas bochechas. Afinal, somente
+faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, impassivel como um abbade após a
+ceia, fumava a um canto, affagando com amortecido olhar a fumaça do charuto,
+além de forcejar por combater a força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao
+cerebro, em razão do abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa,
+quando brindára, com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe
+politico do partido e ao Manoel<span class="pn"><a id="pg_76"
+name="pg_76">{76}</a></span> do Rosario, o commerciante que não trepidava em
+tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto....</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia
+espicaçar-lhe as costas,&mdash;ponderou de repente o sogro, sorrindo
+malicioso;&mdash;que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na
+alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a <em>toilette</em>. Era natural
+aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por ellas
+havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de hymineu elle
+tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora como um demonio
+formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a evocação da memoria da
+esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata amizade inalteravel, abundante
+em amorosidades agradaveis e interminas! Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia
+tratar de imital-o, para fazer a felicidade d'aquella creaturinha innocente e
+sem defeitos physicos ou moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua
+mulher. Que a poupasse, que lhe não desse trabalho em demasia para não a
+fatigar: o dóte d'ella unido ao dinheiro que elle tinha, poderia
+porpocionar-lhes uma existencia descuidosa nos braços d'uma indolencia salutar
+propicia á gordura....</p>
+
+<p>E entrava em demoradas considerações<span class="pn"><a id="pg_77"
+name="pg_77">{77}</a></span> a respeito da bôa vida,&mdash;como sectario da
+vadiação, que era.</p>
+
+<p>Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo
+recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa dos
+noivos.</p>
+
+<p>Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho e
+correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos bellos
+dentes de Paula.</p>
+
+<h2><a name="SECTION008140000">IV</a> </h2>
+
+<p>A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento.</p>
+
+<p>Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae
+beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de porcellana,
+pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos espelhos, como invadidas
+por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que durante a noite inteira sairam,
+por intermittencias de longos socegos, d'aquella cama honestamente encoberta
+pelos discretos<span class="pn"><a id="pg_78" name="pg_78">{78}</a></span>
+refolhos das cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam
+alegremente, cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam
+esgaravatando o chão.</p>
+
+<p>E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento....</p>
+
+<p>E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa
+palpitante, ameaçando extinguir-se....</p>
+
+<p>Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais
+debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como enxugando
+n'elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse porventura derramado sobre
+suas pétalas inodoras....</p>
+
+<p>Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de sêda
+branca escancaram as cavas, n'uma expressão de abhorrecimento pela demorada
+immobilidade, n'uma expressão de appello aos pés que devem calçal-os.</p>
+
+<p>De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem desperta.
+E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven noivo, em cujos
+labios se desenha um franco sorriso de satisfação intima. E lá dentro, na meia
+sombra que as rendas projectam, dorme ainda a formosa Paula, semi-núa, no
+inconsciente despudor de um somno que foi agitado...</p>
+
+<p>Alfredo olha para todos os lados, muito<span class="pn"><a id="pg_79"
+name="pg_79">{79}</a></span> contente e risonho. Ao ver o raio de sol que
+beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua ventura n'um devaneio
+de grande felicidade por vir.... Mas de subito, estarrecido, confuso, muito
+pállido e crispando as mãos, entra a tremer todo, com as feições demudadas, os
+cabellos arrepiados na cabeça encandescida!</p>
+
+<p>Á cabeceira do leito, sobre o elegante <em>guéridon</em> de jacarandá,
+estava uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito
+de massa!.....</p>
+
+<p>E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos pequeninos
+dentes eguaes e perfilados correctamente....</p>
+
+<p>Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado pela
+emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á beira do
+leito, lavado em lágrymas, a murmurar n'um gemido:</p>
+
+<p>&mdash;Estou roubado, estou roubado!<span class="pn"><a id="pg_80"
+name="pg_80">{80}</a><br>
+<a id="pg_81" name="pg_81">{81}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION009000000">Poemetos em prosa</a> </h1>
+
+<h2><a name="SECTION009100000">I<br>
+Bidinha</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009110000">A Mucio Javrot</a> </h3>
+
+<p>Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração ideal e faceira, haviam-lhe
+feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, ella começou a
+amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, encontrava-o em casa da prima,
+córava, julgava soffrer e gosar a um tempo e entrava a fital-o amoravel<span
+class="pn"><a id="pg_82" name="pg_82">{82}</a></span> e longamente, com essa
+persistencia abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....</p>
+
+<p>O poeta conheceu não ser indifferente áquella moça tão pállida, tão triste,
+cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixões ardentíssimas...</p>
+
+<p>E, não sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir á casa da prima da
+Bidinha, para não vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, lá foi e
+encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,&mdash;aquelles tentadores,
+faiscantes olhos eloquentes,&mdash;mais, muito mais bonitos... Teve pena
+d'ella: n'um momento em que ficaram sós na sala,&mdash;onde rescendia o perfume
+d'um ramo de resêda posto n'um jarro em frente ao retrato d'uma velha senhora
+de fronte enrugada e olhar suave&mdash;declarou-lhe amal-a desde muito,
+intensamente.</p>
+
+<p>Ella, a Bidinha, a pállida donna do álbum que recebêra aquelles ternissimos
+versos, d'uma inspiração idéal e faceira, sorriu, estremeceu e murmurou apenas
+quasi inintelligivel som.</p>
+
+<p>D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios
+nocturnos, em aquella mesma sala.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua
+fidelidade<span class="pn"><a id="pg_83" name="pg_83">{83}</a></span> foram
+longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o aperto de mão de
+despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a angustia que atravessou-lhe o
+coração!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creança a quem
+jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, emquanto
+rescendia na sala o perfume d'um ramo de resêda.</p>
+
+<p>Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dôr das
+longas espectativas!... Espera-o ainda....</p>
+
+<p>Á tarde, quem fôr ao pequenino quintal da casa d'ella, poderá vel-a sentada
+sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta latada,&mdash;com o olhar
+suave e tristemente fito nas paginas d'um album, soluçando baixinho palavras de
+saudosa recriminação.</p>
+
+<p>Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração idéal e faceira, haviam-lhe
+feito comprehender que o poeta amava-a!...<span class="pn"><a id="pg_84"
+name="pg_84">{84}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION009200000">II<br>
+Paraphrase ossianica</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009210000">A Frederico Rhossard</a> </h3>
+
+<p>Ó bella, ó seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do rochedo
+sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.</p>
+
+<p>Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traçam sobre as nossas
+torrentes. Ouço-os passar no meio dos turbilhões e suas vozes fanhosas são os
+unicos sons a perturbar o magestoso socego das trévas.</p>
+
+<p>Ó tu, cuja mão branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas harpas
+de<span class="pn"><a id="pg_85" name="pg_85">{85}</a></span> Lutha, tenta
+ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e dolentes. Desperta essas cordas
+adormecidas, canta, ó Malvina, e reaviva o meu genio, cuja chamma foi sopitada
+pelos annos implacaveis.</p>
+
+<p>Vem a mim, ó Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que
+entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o regato
+cae na colina e róla, depois do furacão, sob a luz radiante do sol, o caçador
+escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a humida cabelleira.</p>
+
+<p>Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heróes.
+Infla-se meu peito; o meu coração palpita. Delinêa-se a meus olhos o passado.
+Vem, ó Malvina, não divagues mais no meio das ténebras!<span class="pn"><a
+id="pg_86" name="pg_86">{86}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION009300000">III<br>
+O parocho da aldeia</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009310000">Ao Padre Dr. Leorne Menescal</a> </h3>
+
+<p>É a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e
+olhar carinhoso como um conselho de Jesus.</p>
+
+<p>A sua parca mesa está sempre ás ordens dos mendigos, a sua porta aberta
+sempre aos viajantes, a sua bôcca incessantemente murmura consolações ás
+pessoas que soffrem.</p>
+
+<p>Muitas vezes, alta noite, vão chamal-o para ministrar os socorros da
+religião a algum enfermo, em qualquer das aldeias<span class="pn"><a id="pg_87"
+name="pg_87">{87}</a></span> que formam a serrana freguezia. Então, levanta-se
+ás pressas, monta a cavallo e lá vae montanhas fóra, a galope, ladeando
+tenebrosos precipícios, sob a chuva, tiritando de frio, impassivel como um
+heróe e contente comsigo mesmo, sentindo-se alegre por ir cumprir um dos
+mistéres que lhe impõe a sua profissão, tão bem comprehendida por sua bella
+alma!</p>
+
+<p>Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos aquelles
+montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os conselhos de paz e
+bondade.</p>
+
+<p>Quando começou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote
+arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra de
+Baturité. Em poucos mezes, graças a seus esforços e á illimitada sympathia que
+a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato não tinham um sêr captivo:
+todos eram eguaes!</p>
+
+<p>Quando sae de casa, encaminhando-se á pequena egreja, cuja torre branca de
+neve lança-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as creancinhas,
+que bricam ás portas das casas, acodem a beijar-lhe a mão e as mães saudam-n'o
+respeitosas, balbuciando uma benção....</p>
+
+<p>Aos domingos, á prédica do Evangelho, vi-o, por differentes occasiões, fazer
+com a uncção de sua palavra, que as lágrymas borbulhassem nos olhos dos
+assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel<span class="pn"><a
+id="pg_88" name="pg_88">{88}</a></span> modo de viver, fertilíssimo em bons
+exemplos.</p>
+
+<p>Nada possue: dá tudo aos necessitados, sem ostentação, naturalmente!</p>
+
+<p>Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, ó caritativo sacerdote de
+tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....<span class="pn"><a
+id="pg_89" name="pg_89">{89}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION009400000">IV<br>
+Ao Sol</a><sup><a href="#fn2" name="mfn2">[2]</a></sup></h2>
+
+<h3><a name="SECTION009410000">A Fernando A. da Silva</a> </h3>
+
+<p>Ó tu, que rolas por cima de nossas cabeças, resplandecente como o escudo de
+nossos paes; d'onde saem os teus raios, ó sol? D'onde vem a tua luz? Caminhas
+em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas no firmamento;
+pállida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. Ficas sosinho, ó sol:
+quem poderia acompanhar-te o curso?<span class="pn"><a id="pg_90"
+name="pg_90">{90}</a></span></p>
+
+<p>Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas são minadas pelos
+annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no fundo
+dos céus; só tu és sempre o mesmo.</p>
+
+<p>Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo está sombrio
+pelas tempestades, quando o trovão ribomba e vôa o raio, saes radiante do meio
+das nuvens e ris do furacão!</p>
+
+<p>Mas, ai! em vão brilhas para mim! O velho bardo já te não vê os raios, quer
+fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer trema ás portas
+do poente a tua luz bruxoleante.</p>
+
+<p>Mas talvez, como eu, só possuas uma estação e teus annos terão um termo:
+virá talvez um dia em que empallideças no meio da carreira e a aurora proxima
+em vão esperará o teu regresso.</p>
+
+<p>Regosija-te, portanto, ó sol, na força da tua juventude! A velhice é triste
+e abhorrecida: parece-se com as tíbias claridades da lua, as quaes perdem-se
+entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este semeia ao longe as
+estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a collina e o viajante
+transido tirita nos caminhos desertos....<span class="pn"><a id="pg_91"
+name="pg_91">{91}</a></span></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a href="#mfn2" name="fn2">[2]</a></sup> Vertido de Ossian.</p>
+</div>
+
+<h2><a name="SECTION009500000">V<br>
+Remember</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009510000">A Paulino de Brito</a> </h3>
+
+<h4><a name="SECTION009520000">I</a> </h4>
+
+<p>Não tens então no peito a minima raiva contra mim?&mdash;perguntei-lhe
+admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.</p>
+
+<p>&mdash;Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os
+loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, n'uma
+prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua pequenina
+pessoa,<span class="pn"><a id="pg_92" name="pg_92">{92}</a></span> delicada e
+meiga, parecia desabrochar as florescencias gentis das suas graças, dos seus
+divinos dotes triumphantes em meio á pujança da invejavel mocidade!</p>
+
+<p>&mdash;Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que
+tanta bondade tens n'alma, quantas são as seducções capitosas do teu bello
+rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e faceiros,
+tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores
+effluvios!&mdash;retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attraíndo-a
+castamente para mim, n'um impulso de gratidão, ainda todo commovido pelo prazer
+das recentes pazes.</p>
+
+<p>E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que
+manifestara-se no roubo d'um beijo,&mdash;d'um pequenino beijo
+fugitivo,&mdash;áquella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo
+como que desabrochava as divinas graças triumphaes em gentis florescencias de
+invejavel juventude pujante!</p>
+
+<p>As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse
+enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seducções capitosas de tão
+bello rostinho!..</p>
+
+<h4><a name="SECTION009530000">II</a> </h4>
+
+<p>Mas anoitecêra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos
+jasmineiros<span class="pn"><a id="pg_93" name="pg_93">{93}</a></span>
+rescendentes maior escuridão communicava á parte do jardim onde haviamos feito
+pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido nos rubros labios mádidos da
+minha pequenina amante fascinadora.</p>
+
+<p>Um silencio embaraçador enleiava-nos em tíbia indecisão. A loira cabecinha
+d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos anneis
+undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das correctissimas
+espaduas.</p>
+
+<p>E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com seus
+rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio enleiando-nos embaraçadoramente
+em tíbia indecisão.</p>
+
+<p>Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descançar-me no
+hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia
+assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,&mdash;um fugitivo
+beijo pequenino e casto,&mdash;nos humidos labios da minha gentil e tentadora
+amante.</p>
+
+<p>Ella, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. Uma
+das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu o pésinho,
+n'uma expansão de enfado incipiente....</p>
+
+<p>&mdash;Se reincidir, não perdôo mais!&mdash;exclamou, avisando-me, com a voz
+ainda repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos
+extendidas<span class="pn"><a id="pg_94" name="pg_94">{94}</a></span>
+nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso que me concedeu,
+emquanto descançava a fronte no meu hombro, com os formosos anneis da adoravel
+cabecinha louca undiflavando-se-lhe tranquillos pelas correctíssimas espáduas.
+</p>
+
+<p>Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á
+escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo de um
+beijo,&mdash;do primeiro beijo, pequenino e casto,&mdash;aos ardentes labios
+mádidos da minha bemdita virgem.</p>
+
+<p>E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um
+recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em face
+do capricho d'aquella pequenina cabeça loira, de triumphantes graças capitosas,
+que só admittira e perdoara o meu primeiro atrevimento... ainda tão innocente e
+retrahido!...<span class="pn"><a id="pg_95" name="pg_95">{95}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0010000000">O preço das pazes</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0010100000">A J. A. Pinto Barbosa</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0010110000">I</a> </h2>
+
+<p>O meu amigo Ernesto accendêra um charuto, concertára o <em>pince-nes</em>
+sobre o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona,
+muito fôfa, em que estava sentado deante de mim e começou:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, á mesa, sem
+poder contar-t'o inteiro, pela importuna presença d'aquellas senhoras.<span
+class="pn"><a id="pg_96" name="pg_96">{96}</a></span></p>
+
+<p>Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e mais
+divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de
+umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, avelludada; olhos negros
+e brilhantíssimos,&mdash;como duas caçoilas de mysteriosos philtros
+embriagadores;&mdash;cabellos muito pretos e ondeados, rescendentes a bôa
+olencia de selvática baunilha; um donaire, uma soberania inteira de magestoso
+porte e fidalga apresentação captivante, capaz de enleiar-nos em toda a série
+de crimes que ao humano pensamento é dado formular em dias de tôrvas reflexões
+e sinistras ebriedades peccaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar
+perfeitíssimo da mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archétypo da elevação
+dos dotes, a civilisada manifestação das nossas lendárias yáras amazonicas! E,
+a par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustração perfeita de erudita,
+conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos, pequeninos e
+eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, engastados em formoso
+coral, brilhante como os róseos labios humidos da microscópica boquinha
+sombreada d'um leve buço,&mdash;o complemento da seducção, o requinte da
+tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a
+Marócas, a esposa do altivo general Bandeira,<span class="pn"><a id="pg_97"
+name="pg_97">{97}</a></span> velho quinquagenario d'elevada riqueza
+materialisada em appetitosas centenas de contos de réis, depositados nos
+principaes bancos do Brazil.</p>
+
+<p>Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a azulada
+fumaça d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no espaço, como poderia
+amal-a o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda entregue a seu
+amor,&mdash;desde os timidos beijos assustadiços repentinamente dados, ás
+vezes, no vão de qualquer janella dos aposentos desertos de enfadonhas
+testemunhas, até ao completo desnuamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido
+e cálido, que apresentava-lhe na mysteriosa liberdade pacifica da recatada
+alcôva, alta noite, com a sua elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre
+neves de rendas, diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.</p>
+
+<p>Uma fascinação, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos
+caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a todos
+os sacrificios para conquistar uma estima á força de constantes provas de
+louvavel desinteresse.</p>
+
+<p>Confesso não ter ainda visto a repetição d'aquella invejavel existencia
+d'affectuoso enlevo,&mdash;elle no declinar da vida, ella em toda a maravilhosa
+florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas inteiras a
+contemplal-os, absorto na admiração d'essa<span class="pn"><a id="pg_98"
+name="pg_98">{98}</a></span> alheia felicidade que fazia-me
+venturoso,&mdash;tanto é certo que uma perfeita harmonia de suave existencia
+rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso
+transbordamento do seu excesso. </p>
+
+<p>Muitos annos haviam já passado, desde que o matrimonio os uniu, quando
+Marócas fizéra o seu decimo quinto anniversario,&mdash;e nem um só instante o
+arrependimento lhes chegára de se terem para sempre ligado por um prematuro
+enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel reproducção do dia em
+que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcôva, deram-se,
+entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoravel tratamento de esposo.</p>
+
+<p>Verdadeiramente admiravel, não achas?</p>
+
+<h2><a name="SECTION0010120000">II</a> </h2>
+
+<p>Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposição fluctuou,
+soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla felicidade
+jubilosa de ambos.</p>
+
+<p>Foi uma verdadeira desgraça suscitada<span class="pn"><a id="pg_99"
+name="pg_99">{99}</a></span> por um capricho desarrazoado da formosa mulher do
+general. Elle tivera o arrojo de negar-se,&mdash;pela primeira vez, é
+certo,&mdash;a satisfazel-o, e a Marócas soffrera em cheio no coração a dureza
+da áspera repulsa. Longos fios d'interminaveis lágrymas deslisaram-se-lhe dos
+grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os com força, circulando-os das
+roxas manchas tristonhas que têm os infelizes habituados ao pranto.</p>
+
+<p>Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou,&mdash;emquanto
+o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos
+desmarcados o soalho, já meio arrependido da quasi brutal violencia com que
+resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.</p>
+
+<p>Depois veiu a reacção, em seguida á crise hysterica dos abundantes prantos
+silenciosos. Uns assomos de magestosa indignação, muito concentrada e muda,
+chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao
+marido memoraveis ensinamentos de justas represalias.</p>
+
+<p>E a Marócas prometteu elevar-se acima de si propria, ser tão rispida como
+brutal havia sido o incivil do general.</p>
+
+<p>Ai, meu caro amigo! Foi severa a licção! O pobre general Bandeira mais d'uma
+vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marócas, ao fim da primeira
+semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho<span class="pn"><a
+id="pg_100" name="pg_100">{100}</a></span> em seu quarto,&mdash;n'uma triste
+solidão de viuvez frigidissima...</p>
+
+<p>Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com
+valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sêr. Seria possivel que não
+tivesse a força de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto temiam os
+paraguayos, annos antes, nas selváticas solidões onde o nosso exercito ferira
+tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?</p>
+
+<p>Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resoluções enfraqueceram, como cae
+uma véla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente
+o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.</p>
+
+<p>O general desejou capitular, ne extrêmo das forças. Um arrependimento, cujo
+peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe após essas momentaneas
+resoluções de superiores resistencias... impossiveis n'aquelle pobre e velho
+espirito d'homem tolamente embeiçado pelas captivantes graças da mulher.</p>
+
+<p>Com effeito, capitulou.</p>
+
+<p>Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os passos
+das escravas e uma luz baça côava-se pelos fôscos vidros de lampadas discretas,
+saíu cauteloso da sua alcôva e, com o coração a pulsar violento, dirigiu-se ao
+quarto da mulher.</p>
+
+<p>Á porta, parou, indeciso.<span class="pn"><a id="pg_101"
+name="pg_101">{101}</a></span></p>
+
+<p>Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira
+entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona sensualmente
+esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.</p>
+
+<p>Marócas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples
+ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher que em nada de
+mau pensa.</p>
+
+<p>Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava dando.
+Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello corpo, feito
+d'ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporisando a tépida
+emanação subtil das suas frescas, rosadas carnes bellamente seductoras e
+deliciosamente juvenis.</p>
+
+<p>Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, afflando
+precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a
+porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés, choroso,
+supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdão,
+solicitando um armistício, pedindo pazes selladas com a ardencia d'uma
+deliciosa e suprema compensação!</p>
+
+<p>Ella, porém, a Marócas, impassivel e impertubavel&mdash;ao tempo que
+envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n'um gracioso rubor
+de impeccavel<span class="pn"><a id="pg_102" name="pg_102">{102}</a></span>
+donzella,&mdash;estendeu o braço para a porta e, mostrando-lh'a, disse ao
+general estarrecido:</p>
+
+<p>&mdash;Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizér
+apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.</p>
+
+<p>E elle teve de saír,&mdash;ao reconhecer a impossibilidade de persistir
+n'uma resistencia, que só poderia ser-lhe prejudicial.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0010130000">III</a> </h2>
+
+<p>O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um
+meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a mulher,
+sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o salvasse da
+terribilíssima colisão.</p>
+
+<p>Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sêdas, joias e finas pedrarias
+em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse profusamente, para amimar a
+caprichosa Marócas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraçadoras.
+Nada<span class="pn"><a id="pg_103" name="pg_103">{103}</a></span> conseguia,
+senão augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de
+enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com toda a
+mesquinhez das pequeninas baixezas.</p>
+
+<p>Um caso fortuito, porém, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento
+pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado aos
+hombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das enfermidades
+secretas.</p>
+
+<p>Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fôra o general Bandeira convidado para
+examinador de mathematicas, durante os exames da commissão especial da
+delegacia geral da instrucção secundaria do municipio da côrte,&mdash;essa
+creação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autonómica dos nossos
+lyceus provincianos, reduzindo-os ás simples e modestas proporções de
+insignificantes escholas de primórdios scientificos e litterarios, destituidos
+do mínimo valor perante as academias superiores do Imperio...</p>
+
+<p>Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e continuemos
+na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.</p>
+
+<p>O general acceitára e convite com extraordinario gaudio do delegado
+especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude
+<em>catonismo</em> do Bandeira. Disposto a<span class="pn"><a id="pg_104"
+name="pg_104">{104}</a></span> conservar as suas tradições de severo
+examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia marcado,
+quando&mdash;oh! admiração!&mdash;appareceu-lhe no quarto a mulher, a Marócas,
+arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o cólo,
+por cima das mais appeteciveis redondezas túrgidas que é possivel imaginar.</p>
+
+<p>Trémulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto,
+esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e enterrou-o
+desgeitosamente na bocca, em sentido opposto áquelle de que deveria servir-se
+para fumar satisfactoriamente.</p>
+
+<p>O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu
+entre elle e a Marócas uma distancia consideravel.</p>
+
+<p>A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os
+dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a necessaria
+seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espaço que
+approximava-a d'elle.</p>
+
+<p>Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:</p>
+
+<p>&mdash;Váe hoje examinar mathematicas, general?</p>
+
+<p>&mdash;Vou... sim...</p>
+
+<p>&mdash;Pois então, este moço irá fazer exame por mim...</p>
+
+<p>&mdash;?...<span class="pn"><a id="pg_105" name="pg_105">{105}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Ouviu...?</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;Veja lá como se porta. As mathematicas não são o <em>meu</em> forte.
+<em>Eu</em> não estou muito <em>habilitada</em>.</p>
+
+<p>E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assédio, por
+similhante reclamação de um escandalo impossivel á sua severidade, a bella
+Marócas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do penteador,
+diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, essencias boas e
+rijas carnes feminís e jovens.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0010140000">IV</a> </h2>
+
+<p>Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe
+entregara a mulher:</p>
+
+<p class="centrado" style="border: solid 1px #000; margin: 1em;padding: 1em;"><em>Antonio da Silva Larangeira</em><span class="pn"><a
+id="pg_106" name="pg_106">{106}</a></span> </p>
+
+<p>Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira.
+Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos á quirirú, olhos
+arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na derme. Que era elle
+proprio, sim senhor. E uma vóz fanhosa, cheia de bajulações servilíssimas,
+resmoneou a pequena phrase affirmativa, solicitando ali, em sua exaggerada
+affabilidade, a complacencia do examinador.</p>
+
+<p>O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoção, mal
+resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que tivéra o
+arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marócas, para induzil-o ao crime d'uma
+indignidade&mdash;arrastal-o a quebrar os seus votos de severa justiça de
+indomavel rispidez com os estudantes.</p>
+
+<p>D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova
+escripta não poderia ser peor. Escusado é dizer-te que o pequeno espesinhou a
+sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. Como, porém,
+desempenhava ali as altas funcções de representar a bella Marócas, á falta de
+Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgencia
+dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.</p>
+
+<p>Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando
+appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente<span class="pn"><a
+id="pg_107" name="pg_107">{107}</a></span> a gratos perfumes finíssimos,
+<em>Couro da Russia</em>, e <em>jasmim do Cabo</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Então?&mdash;perguntou ella meio-rindo.</p>
+
+<p>&mdash;Approvado, affirmou o general deixando pender a cabeça,
+desfallecido,&mdash;talvez envergonhado da sua fraqueza, córando porventura de
+não haver opposto resistencia á tentação.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! bello! bello!&mdash;gritou a Marócas, lançando-se-lhe ao pescoço,
+beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto&mdash;á ponta do
+nariz&mdash;os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas
+que ornavam o penteador sobre o peito.</p>
+
+<p>Elle abriu os braços, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande
+amplexo nervoso&mdash;a manifestação penultima do seu intensíssimo desejo de
+reconciliar-se com a mulher.</p>
+
+<p>Ella impellia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá perfilado
+junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os
+labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.</p>
+
+<p>Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel,
+silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas
+lágrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.</p>
+
+<p>&mdash;Que tens? inquiriu ella, assustada,<span class="pn"><a id="pg_108"
+name="pg_108">{108}</a></span> beijando-o sobre uma orelha, amimada e
+tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcíssima harmonia.</p>
+
+<p>&mdash;Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um
+escandalo, aquella approvação!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! volveu ella, abraçando-o com força, reconquistando-o,
+reconduzindo-o para o sofá, espiritualisada de prazer, sorrindo
+extranhamente.</p>
+
+<p>E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do
+esposo,&mdash;caíndo ambos para o sofá hospitaleiro&mdash;murmurou-lhe ao
+ouvido, entre um <em>rugeruge</em> de roupas:</p>
+
+<p>&mdash;O que é bom custa caro!<span class="pn"><a id="pg_109"
+name="pg_109">{109}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0011000000">Historia incongruente</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0011100000">Ao dr. Franklin Tavora</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0011110000">I</a> </h2>
+
+<p>Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel Fonseca.
+</p>
+
+<p>A paizagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de evocar-lhe
+aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhãs
+saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.<span class="pn"><a
+id="pg_110" name="pg_110">{110}</a></span></p>
+
+<p>As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transição subita no
+animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, á hora da sesta não traziam
+nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem causa apparente. Todas as
+interrogacões, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do
+ancião, que persistia n'um silencio desanimador.</p>
+
+<p>E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda
+progredia, graças ao magnifico tempo que, havia dois annos, reinava, o gado
+engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposição para o
+trabalho.</p>
+
+<p>O Thiago, filho unico do coronel, não reparara ainda n'aquellas
+concentrações do pae. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como
+sincera, para ligar attenção a qualquer coisa que se passasse em outra parte
+que não fosse no proprio coração.</p>
+
+<p>E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir á villa
+proxima, bem merecia aquella dedicação egoistica, porém desculpavel.</p>
+
+<p>Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma
+honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a cuidar
+dos irmãosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a apaparical-os, a
+rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar physico do todos
+aquelles pequeninos sêres<span class="pn"><a id="pg_111"
+name="pg_111">{111}</a></span> a ella confiados pela mãe, na occasião de
+morrer.</p>
+
+<p>Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que
+era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.</p>
+
+<p>É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para
+dia mais se ligava de amizade á <em>Venancia da villa</em>, como á rapariga
+chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da <em>maqueira</em> do coronel,
+quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia muitas vezes
+ouvil-o pronunciar estas palavras:&mdash;"É impossivel similhante
+casamento!"</p>
+
+<h2><a name="SECTION0011120000">II</a> </h2>
+
+<p>Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu
+correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que necessitava
+falar-lhe com urgencia.</p>
+
+<p>O velho estremeceu, prevendo talvez<span class="pn"><a id="pg_112"
+name="pg_112">{112}</a></span> que o filho ia acercar-se d'um assumpto ao qual
+elle fugia ha muito tempo.</p>
+
+<p>Foi a fazer um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:</p>
+
+<p>&mdash;Fala quando quizeres.</p>
+
+<p>Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.</p>
+
+<p>O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma
+expressão de curiosidade e pavôr. Tremia ligeiramente, com os nervos todos
+irritados.</p>
+
+<p>&mdash;O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.</p>
+
+<p>No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:</p>
+
+<p>&mdash;Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe é importante de
+mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. Vou ser
+breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta de meu
+pae.&mdash;Desejo casar-me.</p>
+
+<p>Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indifferença.
+</p>
+
+<p>&mdash;Pois casa-te, rapaz. Eu não me opponho.... Contanto que seja a moça
+escolhida merecedora de ser tua mulher....</p>
+
+<p>&mdash;Oh! se tal é a condição que apresenta, posso affiançar-lhe que
+brevemente me casarei. Bôa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de
+dedicação, creio que poucas moças como ella encontrei no Pará durante os seis
+annos que lá estive a estudar no seminario e no lyceu.<span class="pn"><a
+id="pg_113" name="pg_113">{113}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dôres
+nas fontes, com o coração accelerado, porém a affectar
+tranquillidade.&mdash;Mas então quem é a rapariga?</p>
+
+<p>Thiago sorriu indizivelmente,&mdash;com uma beatifica expressão de
+intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:</p>
+
+<p>&mdash;É a <em>Venancia da villa</em>, a minha querida Venancia!</p>
+
+<p>O velho ergueu-se impellido pela commoção. Suppondo tal acção um meio de que
+o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago ergueu-se
+tambem e correu a abraçal-o.</p>
+
+<p>Mas o velho, fazendo um lento signal com o braço estendido, paralysou-lhe a
+vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:</p>
+
+<p>&mdash;Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores
+com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia, impediam-me de
+favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de oppôr-me a elles
+desassombradamente. Fingí ignorar tudo, na esperança de que os annos lançassem
+o tédio sobre as vossas almas captivas uma da outra por aquillo que eu pensava
+ser o enthusiasmo pela novidade. Com immensa dôr verifiquei o meu engano,
+porquanto foste fiel á tua palavra, do mesmo modo por que Venancia o foi á sua.
+Isto seria uma grande<span class="pn"><a id="pg_114"
+name="pg_114">{114}</a></span> felicidade se não fosse uma enorme desgraça.
+Quer dizer, seria um apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da
+tua paixão fosse qualquer outra mulher, que não a Venancia..... Olha, Thiago,
+sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me fórça
+a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, ausenta-te de
+Marajó, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade
+longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma mulher a quem possas offerecer
+a mão....</p>
+
+<p>&mdash;Mas porquê, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o coração
+oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras do pae
+minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido com um
+profundo amor expurgado de malicia.</p>
+
+<p>&mdash;Porque assim é necessario,&mdash;redarguiu o velho, n'uma vehemencia
+de gesto e de entonação.</p>
+
+<p>&mdash;Pois fique sabendo que, se não explicar satisfactoriamente a causa de
+similhante opposição, só tomarei as suas palavras como originarias d'uma razão
+que a edade torna vacillante e digna de piedade!&mdash;bradou Thiago já fóra de
+si, ferido n'essa grande porção de egoismo que todo o homem tem comsigo.</p>
+
+<p>&mdash;Ingrato, murmurou o velho, deixando-se<span class="pn"><a id="pg_115"
+name="pg_115">{115}</a></span> caír sentado e chorando copiosamente.&mdash;Pois
+assiste á morte do teu coração, visto assim o desejares: ouve-me!</p>
+
+<p>Pela janella aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda,
+coberto d'uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos saltavam
+ás cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam
+tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as longas caudas n'um
+compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro preto, perfilado e sério,
+olhava para a linha escura do horisonte, entretido em lamber as ventas
+lustrosas de ranho com a flexivel lingua côr de cinza de charuto. Um cheiro
+almiscarado d'erva sêcca e de excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros
+zangarreavam n'umas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de
+mamãoseiro. Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com
+essas faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves
+que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil de
+extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito distante sobre
+o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, magestosa e
+tranquilla em sua imponencia seductora.</p>
+
+<p>O velho enxugou as lágrymas e começou a falar.<span class="pn"><a
+id="pg_116" name="pg_116">{116}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION0011130000">III</a> </h2>
+
+<p>&mdash;Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até
+agora não sei como possivel me foi resistir a essa desgraça, que eu a principio
+reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei encerrado n'este
+quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguem, apenas gozando em
+tuas innocentes caricias um pallido reflexo d'aquelles grandes affagos que a
+tua idolatrada mãe fazia-me constantemente. Passados esses tres annos,
+comprehendi que o teu futuro exigia-me impozesse silencio á minha dôr, e
+cuidasse de nossos bens, para dar-te uma bôa educação e, depois da minha morte,
+fazer-te herdeiro de uma riqueza sufficiente á tua manutenção. Saí, pois, do
+quarto, pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrificio como
+feito por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus
+exigiam que eu fizesse frequentes viagens á villa, onde, ha vinte e tres annos,
+isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher
+d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da villa. Essa senhora era
+o retrato<span class="pn"><a id="pg_117" name="pg_117">{117}</a></span> vivo de
+tua mãe. Por um phenomeno de impressionismo,&mdash;sem o querer, sem o
+sentir&mdash;fui-me enlevando das graças d'ella, até chegar ao ponto de pensar
+que tua bôa mãe tornára á vida e volvêra a amar-me como d'antes!</p>
+
+<p>Quando eu ia á villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. Tal
+convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em grande
+paixão, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves faziam com que o
+marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, deixando-me ao lado da
+mulher que.... poupa-me a vergonha de communicar-te que.... titubeou o coronel,
+muito triste, com os olhos mareados de lágrymas, a arfar do peito e a contrahir
+o rosto n'uma visivel agonia causada pelos remorsos.</p>
+
+<p>&mdash;Emfim,&mdash;disse com energia e, desta feita, dando expansão ao
+pranto,&mdash;o resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixão, foi o
+nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser sua
+filha....</p>
+
+<p>&mdash;E essa menina é... Ve..nan..cia?&mdash;inquiriu Thiago com os olhos
+arregalados, os cabellos crispados, as mãos fechadas fortemente, sentindo
+fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoção.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, Thiago, sim, é Venancia, fructo da minha infamia, a filha do
+crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel<span class="pn"><a
+id="pg_118" name="pg_118">{118}</a></span> que não soube resistir á minha
+tentação! É Venancia, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento! É
+tua irmã, insensato!...</p>
+
+<p>E caíu redondamente para traz, agitado nas convulsões da gotta, da sua
+molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rêde de maqueira,
+fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma vida que d'ahi em
+deante só poderia ser de tormentos e angustias indiziveis.<span class="pn"><a
+id="pg_119" name="pg_119">{119}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0012000000">A licção de "Paleographo"</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0012100000">A Heliodoro de Brito</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0012110000">I</a> </h2>
+
+<p>A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma
+confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e profundo
+golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de mãe.&mdash;O
+commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a Europa, de
+concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua resolução<span
+class="pn"><a id="pg_120" name="pg_120">{120}</a></span> de levar comsigo a
+pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda
+favorita de todas as pessoas d'aquella abastada familia actualmente em vesperas
+de viagem.</p>
+
+<p>E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da filha,
+na tenebrosa passividade do seu captiveiro,&mdash;não obstante a bondade com
+que era tratada por todos,&mdash;teria de ficar no Pará, separada do pequenino
+ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de loiras phantasias, em
+meio ao triste vegetar da sua existencia!</p>
+
+<p>Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora
+privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor, antes de
+ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por
+toda a noite passada em claro após a declaração ouvida pela manhã.</p>
+
+<p>Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não seria
+a crua realidade?</p>
+
+<p>Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia
+seguinte,&mdash;com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos na
+rapariguinha,&mdash;acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de
+benevolencias, consolou-a a meio.</p>
+
+<p>&mdash;Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a
+familia,<span class="pn"><a id="pg_121" name="pg_121">{121}</a></span> d'ali a
+annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia trazer-lh'a instruida,
+educada, elegante e feliz,&mdash;uma verdadeira senhora. Até ella, Josepha, se
+arrependeria então da sua tolice actual, porque reconheceria os beneficios que
+tinham querido fazer-lhe á filha. Pois não era certo que todos ali
+tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha e que esta era tida menos como uma
+<em>ingênua</em> do que como se, realmente, fosse originaria do casamento
+d'elle commendador com sua esposa? Confiasse a Josepha em seus senhores e o
+futuro mostrar-lhe-ia com exuberancia a justeza do seu proceder.</p>
+
+<p>Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava.
+Eliminal-a, porém, d'alma, era impossivel, que não póde um coração de mãe
+deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações, lhe roube o
+ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos frémitos delirantes
+da mais intensa dôr.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0012120000">II</a> </h2>
+
+<p>A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a
+pequena Isaura.<span class="pn"><a id="pg_122" name="pg_122">{122}</a></span>
+</p>
+
+<p>Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas afflicções,
+não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as outras escravas
+atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de tudo, olhando em frente,
+como se divisando estivesse nos curtos longes do horisonte limitado uma visão,
+só para ella creada, a attrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas
+as forças vivas do espirito e da razão.</p>
+
+<p>Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás
+pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão do
+rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.</p>
+
+<p>O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta.
+Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser senão da
+sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao socio, pedia-lhe
+sempre informasse á Josepha estar a filha d'esta com saude, muito desenvolvida
+e bastante adeantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar
+longamente aquelle homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.</p>
+
+<p>&mdash;Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella
+propria.</p>
+
+<p>Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim
+dava-lhe<span class="pn"><a id="pg_123" name="pg_123">{123}</a></span>
+precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel deante do
+<em>branco</em>, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma coisa.</p>
+
+<p>Elle pareceu comprehendel-a:</p>
+
+<p>&mdash;Queres que a leia?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e
+preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos
+sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão
+infantil da filha.</p>
+
+<p>O socio do Castro leu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;">M<small>INHA QUERIDA MÃE</small>,</p>
+
+<p>Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe envio
+milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe
+contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da minha santa mãe e o grande
+desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde está a
+mãesinha do meu coração. Ante-hontem fiz dez annos e o meu protector
+offereceu-me uma bonita penna d'ouro, dizendo-me que com ella deveria
+escrever-lhe esta carta, minha boa mãe. Tenho passeado muito e gostado immenso
+d'esta bella cidade, onde o meu<span class="pn"><a id="pg_124"
+name="pg_124">{124}</a></span> prazer seria completo se a senhora aqui
+estivesse junto da sua filha.</p>
+
+<p>Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;">I<small>SAURA.</small></p>
+
+<p>Paris, 30 de dezembro de 1887.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a
+carta,&mdash;simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras,
+comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0012130000">III</a> </h2>
+
+<p>Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia,
+transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a
+escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes girandolas de
+foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo<span class="pn"><a
+id="pg_125" name="pg_125">{125}</a></span> enthusiasmadas louvores e vivas em
+honra ao glorioso successo. Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas
+marciaes diffundiam no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes.
+</p>
+
+<p>Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os
+pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regosijo.
+</p>
+
+<p>Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento
+publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para todos os
+lados, temendo fossem surprehendel-a.</p>
+
+<p>Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um sorriso
+espiritualisado e, tirando do seio um velho <em>Paleographo</em>, abriu-o nas
+primeiras paginas murmurando commovida:</p>
+
+<p>&mdash;Vamo' estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p'r'ó mez que vem já
+posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?</p>
+
+<p>E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades
+vencedoras.<span class="pn"><a id="pg_126" name="pg_126">{126}</a><br>
+<a id="pg_127" name="pg_127">{127}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0013000000">Ao soprar á véla</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0013100000">Ao Sr. José Feijó d'Albuquerque</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0013110000">I</a> </h2>
+
+<p>Ás 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar
+alegremente, recebel-o á porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do
+penteador de cambraia branca.</p>
+
+<p>Quanto se demorára elle! .... Porque não voltou mais cedo? A sua Candinha já
+sentia tantas saudades!.... Elle não imaginava o que era estar uma pobre mulher
+mettida em<span class="pn"><a id="pg_128" name="pg_128">{128}</a></span> casa,
+durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu
+idolatrado amigo!....</p>
+
+<p>E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça,
+causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriçando-lhe os cabellos dos
+braços e pernas.</p>
+
+<p>Que não podera vir mais depressa,&mdash;objectava o marido, sentando-se
+n'uma poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscencia
+para a mulher.&mdash;Bem esforços fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a
+jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por espaço de meia hora,
+brincando com as creanças, para entreter-se. Os pequenos são altamente
+endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as mãos gordurosas.... Depois,
+tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e á mulher.</p>
+
+<p>&mdash;E acceitaram?&mdash;interrogou a Candida, saltando para as pernas do
+marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se graciosos e
+mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.</p>
+
+<p>&mdash;Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum,
+maximè sabendo que nós a desejavamos para a libertar. Aquella gente está cada
+vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que seja o dia de
+teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. Continuemos, porém. Estava
+eu disposto a<span class="pn"><a id="pg_129" name="pg_129">{129}</a></span>
+saír, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino,
+aquelle sujeito vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabellos que os teus
+joelhos....</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-te de tolices....</p>
+
+<p>&mdash;Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo
+porque levantei-me e saí á viva força!.... Agora,&mdash;concluiu
+sorrindo,&mdash;aqui tem você o seu Roberto, cheio d'amor e paixão, disposto a
+matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe
+muito, a fazer-lhe as vontades todas!..</p>
+
+<p>Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos n'uma
+vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus labios frescos e
+perfumados d'esse olôr exquisito e bom, peculiar ás mulheres que se tratam.</p>
+
+<p>Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera á porta que dava para o
+corredor o moleque Euzebio, com o bule de chá....</p>
+
+<h2><a name="SECTION0013120000">II</a> </h2>
+
+<p>Depois do chá, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e,
+accommodando-se<span class="pn"><a id="pg_130" name="pg_130">{130}</a></span>
+n'uma grande <em>voltaire</em>, poz-se a ler. Ficou a Candida defronte d'elle,
+a miral-o.</p>
+
+<p>Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois
+bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os
+cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes
+descançando nas palmas das mãos, Candida continuava a olhar para o marido com
+uma expressão extranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.</p>
+
+<p>Parecia lançada á contemplação da propria felicidade. Era justamente aquillo
+que, annos antes, phantasiára a sua sonhadora imaginação de burguezinha
+estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacóvios: viver honesta ao pé
+de um marido bonito e de bom coração; estar sempre junto d'elle, para o
+consolar em todos os desgostos, rir com elle nas horas de alegria, ser-lhe
+sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, sobretudo, contemplal-o a todo
+instante, silenciosa, longamente, envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu
+enlanguescido olhar de creoula amoravel! Nunca sentira-se tão feliz como depois
+de seu casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma só contrariedade
+tivera após aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo
+no silencio de uma discreta alcôva toda cheia de flôres, rendas, fitas e
+perfumes! E com<span class="pn"><a id="pg_131" name="pg_131">{131}</a></span>
+que alegria, com que assomos de risonha infantilidade não ficou, na manhã
+immediata, quando leu no <em>Diario de Noticias</em> as linhas seguintes, que
+decorou á força de as repetir baixinho?&mdash;"Uniram-se hontem á noite em
+matrimonio, na egreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado
+commerciante da nossa praça, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha
+do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadíssimo. Foram
+padrinhos os srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendonça e suas exmas. consortes.
+Aos jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades
+a que têm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar em jubilo, toda
+desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidíssima pela lembrança de que,
+áquella hora, a cidade inteira estava sabedora da realisação de seus intimos
+desejos de moça apaixonada!.... D'ahi em deante começaram a viver como dois
+anjinhos, como ella queria. Roberto era sempre de uma delicadeza affectuosa e
+séria para com a sua Candinha, que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo
+seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que
+duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas <em>por dá
+cá aquella palha</em>... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Ahi estava,
+mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más linguas, era uma
+jararaca<span class="pn"><a id="pg_132" name="pg_132">{132}</a></span> para o
+marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era outro: passava a vida
+pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a
+mulher que era mesmo uma dôr de coração! Mas com ella assim não succedia,
+graças a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador á hora de recolher ao
+lar: ás 5 da tarde mandava fechar o armazem, tomava o <em>bond</em> e vinha
+logo para junto d'ella, de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã,
+afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma
+de vida: ella conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudança
+futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a
+importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se
+necessario contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta
+assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, estava resolvida!
+Quando? agora?&mdash;Agora não; deixal-o com a leitura, que está tão
+entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o
+Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que era tão lindo, tão bom, tão
+amado!....</p>
+
+<p>Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo
+apaixonado.<span class="pn"><a id="pg_133" name="pg_133">{133}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION0013130000">III</a> </h2>
+
+<p>De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do
+charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, a
+Candida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler n'um
+livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido
+continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu ardente olhar,
+como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixão.</p>
+
+<p>Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos dormir?&mdash;propoz.</p>
+
+<p>Candida estremeceu e levantou-se.</p>
+
+<p>O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.</p>
+
+<p>No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcôva. Em cima do velador,
+uma véla côr de rosa ardia n'um castiçalzinho de porcellana de Sévres com
+pinturas allegoricas de Amores alados e Chiméras volitantes. No centro, uma
+<em>causeuse</em> de setim azul estava cheia de laços, corpinhos de renda,
+brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente dissymétrico. Vidros de
+perfumarias com rôlhas de crystal<span class="pn"><a id="pg_134"
+name="pg_134">{134}</a></span> reluziam em cima do toucador de jacarandá,
+lançavam scintillações cambiantes ao espelho inteiriço do grande guarda-roupa
+que havia no meio de uma das paredes lateraes.</p>
+
+<p>Ao fundo erguia-se a cama,&mdash;pudicamente occulta entre as rugas de um
+cortinado de labyrintho finíssimo, suspenso do tecto por uma passadeira
+doirada.</p>
+
+<p>Levantava-se d'aquella cama um quê de evaporação de felicidade inenarravel,
+que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos do olfacto e da
+vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de seu amor, do altar de
+sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, sobretudo, ella tinha uma
+importancia transcendental: evocava-lhe uma recordação agri-dôce, que fazia-a
+sorrir bondosamente depois de nove mezes de agradabilíssima co-habitação
+conjugal....</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Quando iam deitar-se, Candida enlaçou a cabeça do marido com os braços
+descobertos,&mdash;mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de
+cambraia enfeitada de rendas do Ceará.</p>
+
+<p>Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos
+effluvios,&mdash;essas queridas exhalações de mulher amada,&mdash;n'um
+enlanguescimento concupiscente.<span class="pn"><a id="pg_135"
+name="pg_135">{135}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posição, beijando-o na
+testa.&mdash;Quero dar-te uma noticia muito bôa....</p>
+
+<p>&mdash;Qual é?&mdash;perguntou Roberto estreitando-a nos braços.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho tanta vergonha!....</p>
+
+<p>Esta exclamação pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do marido e
+dando um pulo para o leito.</p>
+
+<p>&mdash;Anda, fala, menina, que tolice é essa?</p>
+
+<p>&mdash;Então apaga a luz, primeiro; póde ser que ás escuras eu me sinta mais
+animosa! ....</p>
+
+<p>Roberto soprou a luz da véla e disse deitando-se:</p>
+
+<p>&mdash;Agora....</p>
+
+<p>Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as
+pontas dos frios dedos trémulos. Depois, a subitas:</p>
+
+<p>&mdash;É que,&mdash;murmurou com umas brégeiras risadinhas
+reprimidas,&mdash;é que eu.... estou grávida!</p>
+
+<p>Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,&mdash;o
+beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vêr convertido em
+realidade o seu mais persistente anhelo,&mdash;respondeu áquella confissão
+prazenteira, na propicia escuridade da alcôva matrimonial....<span
+class="pn"><a id="pg_136" name="pg_136">{136}</a><br>
+<a id="pg_137" name="pg_137">{137}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0014000000">No baile do commendador</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0014100000">Ao sr. Ulderico Souza</a> </h3>
+
+<p>Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!</p>
+
+<p>E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro
+sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de varetas de
+madreperola.</p>
+
+<p>&mdash;E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a
+cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um ardente
+olhar vibrado<span class="pn"><a id="pg_138" name="pg_138">{138}</a></span>
+atravez o crystal do monóculo petulante.</p>
+
+<p>&mdash;Porque&mdash;?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a
+fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro esquerdo,
+polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa mestra, doutor,
+e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!</p>
+
+<p>&mdash;Apezar de ser tão nova assim?</p>
+
+<p>&mdash;A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça
+encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes, preferencia,
+como compensando-os de não terem o discernimento preciso para bem conhecer e
+evitar os revezes da sorte.</p>
+
+<p>&mdash;Mas&mdash;é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos
+labios com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não
+sentisse por sua pessôa&mdash;e pelo seu espirito&mdash;este indomavel affecto
+de que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora&mdash;e bem
+profundamente!&mdash;depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados
+conceitos.</p>
+
+<p>&mdash;Devéras?</p>
+
+<p>&mdash;Por certo.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! é muito amavel....</p>
+
+<p>&mdash;Digo a verdade.</p>
+
+<p>&mdash;E, todavia, continuo a descrêr...</p>
+
+<p>&mdash;Faz muito mal!</p>
+
+<p>&mdash;Porquê?<span class="pn"><a id="pg_139"
+name="pg_139">{139}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Ah! já faz perguntas?&mdash;Porque quem confessa descrença em
+similhante assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr...</p>
+
+<p>&mdash;O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra
+geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. O mundo
+tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições bem rispidas
+tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das suas opiniões, fazer
+que o sr. acredite nas suas proprias illusões phantasiosas. Pois que!
+Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao sério as banalidades da
+confissão que me cantou ha instantes o seu lyrismo? Estará o sr.,
+effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se julgue irresistivel, fatal?
+Vaidade sem razão, doutor!</p>
+
+<p>&mdash;Como é cruel, minha senhora!</p>
+
+<p>&mdash;Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque
+sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para
+extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o
+sentimento.&mdash;Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?</p>
+
+<p>&mdash;Ora essa! Porque não?...</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado....
+pedantismo.</p>
+
+<p>&mdash;Como diz?</p>
+
+<p>&mdash;Ouça bem: o&mdash;seu&mdash;illimitado&mdash;pedantismo.<span
+class="pn"><a id="pg_140" name="pg_140">{140}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;E.... mas....</p>
+
+<p>&mdash;Olhe, sente-se aqui, a meu lado&mdash;Assim. Conversaremos com
+tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as attenções
+da sala. Escute-me.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante. Seriam
+nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra; uma triste
+chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz oscillante do gaz.
+Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas
+irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o
+trafico da escravatura arrancara aos sertões africanos para transplantar no
+Brazil.</p>
+
+<p>Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs brincavamos a
+vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as
+escravas.</p>
+
+<p>De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos o
+brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no ar a mão
+que empunhava a agulha, ou descançavam<span class="pn"><a id="pg_141"
+name="pg_141">{141}</a></span> cautelosas os bilros sobre as almofadas onde
+pregavam-se as rendas incipientes.</p>
+
+<p>A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da
+<em>cabanagem</em>, o que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais
+absoluta tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era
+auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de
+compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na
+concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica, de que
+pretendia occupar a attenção dos ouvintes.</p>
+
+<p>Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma
+fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos tempos de
+que ella ia tratar.</p>
+
+<p>Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel obter-se
+com o ruido da chuva a desabar nas telhas,&mdash;a bôa preta começou a referir
+a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade, succintamente,
+para o não enfastiar com imprudentes delongas.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Da outra banda do rio, á margem esquerda d'este mesmo Guajará que róla
+suas<span class="pn"><a id="pg_142" name="pg_142">{142}</a></span> turbidas
+aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n'aquelle tempo,&mdash;em
+1835,&mdash;que era o abrigo d'uma simples familia de modestos caboclos
+agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor d'uns 20 annos
+sadíos e bem desenvolvidos. </p>
+
+<p>Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua
+simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça era a
+mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam negocios
+tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente na cidade.</p>
+
+<p>O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga da
+margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro á roça. Pelo São
+João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um padre a mais
+persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais palpitou e que dava-lhes,
+na sua só lembrança, uma como ebriedade olympica de soberanas venturas
+transcendentes.</p>
+
+<p>Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo
+rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado á
+pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves
+transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas falas
+singellas e apaixonadas.<span class="pn"><a id="pg_143"
+name="pg_143">{143}</a></span></p>
+
+<p>Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao lado
+da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha existencia por
+vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o olhar perdido ao longe,
+nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em
+acastellar illusões, n'umas inflorescencias de amplas phantasias admiraveis.
+</p>
+
+<p>Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade
+rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão.</p>
+
+<p>Mas houve um dia em que a sorte,&mdash;sempre inclemente e cynica,
+doutor!&mdash;pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito d'aquella
+invejavel bonança de duas vidas felicíssimas.</p>
+
+<p>A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas dos
+revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e fazendo
+victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada
+barbaridade.</p>
+
+<p>Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á visita
+dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se póde intentar
+contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem querido dissuadil-os da
+infamia,&mdash;após assistirem á perpetração selvática do attentado sem nome,
+soffreram inermes a<span class="pn"><a id="pg_144"
+name="pg_144">{144}</a></span> pena ultima, dependurados, um defronte do outro,
+em dois galhos de sombrosa sumahumeira!</p>
+
+<p>Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que
+embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa
+haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só momento o
+rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um assomo de correr a
+vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! Admire que sinceridade a
+d'aquella paixão, doutor, dias antes apresentada em <em>labiosas</em>
+florituras de phantasticos arremessos idyllicos! Que grande coração, o
+d'aquelle homem!</p>
+
+<p>Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a
+indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua
+noiva,&mdash;sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames, ainda
+mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos
+sicarios!</p>
+
+<p>Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a Eufrasia
+encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na companhia de torpe
+mulata animalisada por uma vida de largas materialisações soezes e gordurosas.
+</p>
+
+<p>Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do
+cavaquinho!<span class="pn"><a id="pg_145" name="pg_145">{145}</a></span></p>
+
+<p>Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d'antes, convertera-se em
+mattagal e a infeliz Thomazia,&mdash;apatetada e envelhecida, coberta de
+andrajos e chorosa,&mdash;tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraça,
+uma creança inconsciente, um filho que dentro d'ella semeára a hedionda
+selvageria dos revoltosos.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de emoção,
+teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr.
+Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, agitando-o vagaroso, com uma
+certa magestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo ironica:</p>
+
+<p>&mdash;E crê, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um só homem
+sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas palavrosas
+mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?<span class="pn"><a id="pg_146"
+name="pg_146">{146}</a><br>
+<a id="pg_147" name="pg_147">{147}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0015000000">NOTAS</a> </h1>
+
+<p>A CONVALESCENTE.&mdash;Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino
+<em>croquis</em> ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s.
+s.ª levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu respeito
+externadas por mim n'um estudo critico das <em>Primeiras Rimas</em>, de João do
+Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremódo aggressivo, todo pessoal e
+rancoroso.</p>
+
+<p>Não quiz, então, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em uma
+das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, apresento-a
+tal qual m'a deu o prélo, antes do inesperado desabrimento de s. s.ª</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>QUE BOM MARIDO!&mdash;Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o
+<em>Diario de Belém</em>, declarando-o<span class="pn"><a id="pg_148"
+name="pg_148">{148}</a></span> immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo
+entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura davam-lhe
+ensejo de estampar as <em>moralíssimas</em> "grivoiseries" de Catulle Mendès...
+É o caso mais flagrantemente pífio de criterio e coherencia que tenho
+conhecido!</p>
+
+<p>No dia seguinte, <em>A Provincia do Pará</em> publicava esse trabalho.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>HISTORIA INCONGRUENTE.&mdash;Foi publicada n'<em>A Arena</em> essa narração,
+em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de
+dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta
+muito affectuosa e benevolente.<span class="pn"><a id="pg_149"
+name="pg_149">{149}</a></span></p>
+</div>
+
+<h2><a name="SECTION0016000000">INDICE</a> </h2>
+
+<table align="center" width="80%" summary="Indice">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td></td>
+ <td style="text-align:right;">P<small>AGINAS</small></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A<small>LEGRIA GAULEZA</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_9">9</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A <small>CONVALESCENTE</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_21">21</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>D<small>ESILLUSÃO</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_23">23</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A "S<small>ERENATA" DE</small> S<small>CHUBERT</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_33">33</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Q<small>UE BOM MARIDO!</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_45">45</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>N<small>OITE DE FINADOS</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_55">55</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>R<small>IO ABAIXO</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_61">61</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A<small>O DESPERTAR</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_69">69</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>P<small>OEMETOS EM PROSA:</small></td>
+ <td style="text-align:right;"></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>    I&mdash;<em>Bidinha</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_81">81</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>    II&mdash;<em>Paraphrase ossianica</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_84">84</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>    III&mdash;<em>O parocho da aldeia</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_86">86</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>    IV&mdash;<em>Ao sol</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_89">89</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>    V&mdash;<em>Remember</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_91">91</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>O <small>PREÇO DAS PAZES</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_95">95</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>H<small>ISTORIA INCONGRUENTE</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_109">109</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A L<small>ICÇÃO DE "</small>P<small>ALEOGRAPHO"</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_119">119</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A<small>O SOPRAR Á VÉLA</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_127">127</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>N<small>O BAILE DO COMMENDADOR</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_137">137</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>N<small>OTAS</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_147">147</a></td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_150" name="pg_150">{150}</a></span></p>
+
+<h2>ERRATAS</h2>
+
+<table align="center" width="80%" summary="Errata">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td colspan="4">Os mais notaveis erros são es seguintes:</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th style="text-align:left;">Pags.</th>
+ <th style="text-align:left;">Linha</th>
+ <th style="text-align:left;">Erro</th>
+ <th style="text-align:left;">Emenda</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>61</td>
+ <td>5</td>
+ <td>caximbo</td>
+ <td>cachimbo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>93</td>
+ <td>15</td>
+ <td>embaraçadoramente enleiando-nos</td>
+ <td>enleiando-nos embaraçadoramente</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>93</td>
+ <td>33</td>
+ <td>estendidas</td>
+ <td>extendidas</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>107</td>
+ <td>33</td>
+ <td>inqueriu</td>
+ <td>inquiriu</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>114</td>
+ <td>29</td>
+ <td>vacillanto</td>
+ <td>vacillante</td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h4>BREVEMENTE</h4>
+
+<p>será dado á estampa o novo romance de Marques de Carvalho</p>
+
+<h4>SOROR MARIANA</h4>
+
+<p>Grande téla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relêvo a um dos
+mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formará um forte volume de de
+300 paginas impressas a capricho.</p>
+
+<div>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30341 ***</div>
+</body>
+</html>
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+This eBook, including all associated images, markup, improvements,
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+Project Gutenberg (https://www.gutenberg.org) public repository for
+eBook #30341 (https://www.gutenberg.org/ebooks/30341)
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+++ b/old/30341-8.txt
@@ -0,0 +1,3394 @@
+The Project Gutenberg EBook of Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Contos Paraenses
+
+Author: Joo Marques de Carvalho
+
+Release Date: October 27, 2009 [EBook #30341]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-15
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
+
+
+
+
+
+ J. MARQUES DE CARVALHO
+
+ CONTOS
+
+ PARAENSES
+
+
+
+
+ PAR
+
+ PINTO BARBOSA & C.--Editores
+ Rua 13 de Maio
+ 1889
+
+
+
+
+Obras de Marques de Carvalho
+
+VI
+
+CONTOS PARAENSES
+
+
+
+
+DO MESMO AUCTOR
+
+ O SONHO DO MONARCHA,--poemeto, 1886, Opusculo
+
+ LAVAS, poemeto, 1886, Opusculo
+
+ PAULINO DE BRITO, perfil, com _fac-simile_ e retrato do biographado,
+ 1887, 1 vol.
+
+ HORTENCIA,--romance naturalista, 1888, 1 vol.
+
+ O LIVRO DE JUDITH,--versos e contos para creanas, 1889, 1 vol
+
+
+ A PUBLICAR
+
+ HISTORIAS D'AMOR,--contos, 1 vol.
+
+ SOROR MARIA,--romance, 1 vol.
+
+ THEODORICO MAGNO,--perfil, 1 vol.
+
+
+
+
+J. MARQUES DE CARVALHO
+
+CONTOS PARAENSES
+
+
+
+
+PAR
+
+PINTO BARBOSA & C.--Editores
+Rua 13 de Maio
+1889
+
+
+
+
+------------------------------------------------------------------------
+ Par--Typ. dos Editores, rua 13 de Maio.--1889.
+------------------------------------------------------------------------
+
+
+
+
+A MEU IRMO
+
+Antonio de Carvalho
+
+
+
+
+AO EXM. SR. COMMENDADOR
+
+Domingos Jos Dias
+
+Reconhecimento, Amizade, Venerao.
+
+
+
+
+Alegria gauleza
+
+ A Jos Verssimo
+
+
+Emquanto esperavamos o almoo,--aquelle almoo s pressas encommendado
+no mais que modesto _hotel_ do Pinheiro, fmos dar um passeio pela matta,
+sob a sombra das grandes arvores copadas.
+
+As senhoras haviam ficado na sala do _hotel_, aguando o appetite no bom
+cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.
+
+O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto
+quadrado, de longas suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da
+America.
+
+Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade
+nos transportara ao Pinheiro.
+
+Ainda no havia duas horas que nos conheciamos, e j grande
+familiaridade se estabelecera entre ns,--essa familiaridade facil,
+intima, passageira, das pessoas que viajam.
+
+Estavamos ainda a bordo, e j o meu sympathico companheiro, sentado
+amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia
+do Par, onde tencionava ficar at ao fim da vida.
+
+Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja
+existencia eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por
+motivos que eu no tratava de saber, to vivamente me attraa a
+curiosidade.
+
+Quando saltamos para terra,--emquanto subiamos pela escada da
+ponte,--convidei-o para almoar comnosco, e elle acceitara rindo,--com
+um riso bonacho de quem dotado de alma simples, sem duplicidade.
+
+Fra elle quem me propuzra aquella excurso matta, para darmos tempo
+a que o hoteleiro preparasse a refeio, que eu j preva frugal e
+triste, attendendo s condies da terra em que nos achavamos.
+
+Acceitei-lhe de boamente a proposta, com aquella vivacidade alegre de
+quem vive mezes inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e
+toma, de tempos a tempos, um bello dia para descanar um pouco, em a paz
+d'uma povoao de arrabalde, refestelando-se preguiosamente na relva
+odorfera dos nossos grandes e soberbos mattagaes.
+
+E fmos por ali fra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de
+farfalhante cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja
+uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo
+branco das varias flres sylvestres, cujas ptalas encolhiam-se um
+pouco, meio-fanadas pelos raios do sol.
+
+Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por
+onde a vista se perdia no infinito, aps o rio que fugia para o mar. O
+cheiro acre da marezia andava no espao, casado ao perfume subtil e
+excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e
+velhos galhos d'aquellas arvores seculares. Pssaros voavam cleres,
+n'um brando ruflar d'azas, soltando pequeninos gritos estrdulos e
+alegres. De momento a momento, a curta distancia de ns, lagartos
+cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo scco
+que juncava o slo. E l muito ao longe, no alto, sobre pedaos de ceu
+de um azul deslavado, que ns entreviamos pelos interstcios das ramas,
+urubs recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos
+seus vos arredondados, pairando como n'uma contemplao enamorada da
+terra que os sustenta com suas putrefaces, com seus resduos infames e
+nojentos.
+
+De repente, o meu companheiro disse-me:
+
+--Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar canado d'esta longa caminhada.
+
+No tinha a minima accentuao estrangeira; fallava como um verdadeiro
+paraense.
+
+Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de
+bruos, com o pescoo estendido e o grande chapu de palha do Chile a
+descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.
+
+Ficamos calados por alguns minutos.
+
+Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos
+haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra
+exhalava.
+
+Perguntei-lhe de repente, no achando outra coisa a dizer-lhe:
+
+--O sr. casado?
+
+Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expresso investigadora de
+quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois
+respondeu:
+
+--No... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.
+
+--Ah!
+
+-- verdade. Sou viuvo e tenho-me dado muito bem n'este novo estado de
+quem vive sem as preoccupaes do homem casado, que tem uma familia a
+sustentar. Bem tolo quem se casa...
+
+Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.
+
+Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traando nas
+duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz,
+partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das
+suissas.
+
+Eu no comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim
+sublinhadas por similhante sorriso.
+
+Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse,
+apertando-me as costas da mo direita, como para chamar para si toda a
+minha atteno:
+
+--Est curioso, no? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de
+arribao que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no
+corao, no rosto,--nos labios e no olhar? uma historia muito longa a
+minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? No perder
+nada com isso; pelo contrario, creio aproveitar alguma coisa com a
+moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razo nos
+actos que pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificar que muito
+certo o rifo: _Tristezas no pagam dividas_, e adquirir a certeza de
+que, n'este mundo, o melhor meio de se gosar sade e viver tranquillo,
+ter o corao calmo como a bonana e grande como a barriga do
+dezembargador Delfino. Ora vire p'ra c as oias e preste atteno.
+
+Sentei-me. Elle fez o mesmo e comeou, sorrindo sempre:
+
+
+--"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de ris,
+herana de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando
+logo um socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de
+dinheiro, que o meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma
+hispanhola rles e velhaca de um hotel da cidade.
+
+"Um bello dia fallimos,--por causa dessas extraordinarias despezas
+capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crsus. Cuida que
+apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado,
+sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu
+espirito refractario a tristezas,--o meu corao grande de mais para
+fazer-se pequenino e mirrado por to pouca cousa. Um ou dois contos de
+ris que pude ganhar em certo negocio, aps o naufragio a que fra
+conduzido pela doidice de meu socio, empreguei-os em comprar algumas
+joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso
+carregamento barato, segui para o rio Madeira, afim de explorar em meu
+unico proveito a ingnua simplicidade dos seringueiros.
+
+"No me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Par, e adquiri
+maior carregamento, que fui de novo impingir s remotas regies do alto
+Madeira, onde os jacars e onas respeitaram-me sempre a delicada
+posio de inoffensivo estrangeiro, que carece de proteco, que no
+deve ser offendido nunca em um paiz amigo!"
+
+Calou-se. Em sua larga bcca de expresso franca e descuidosa estava o
+eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraa
+para esse homem com toda a enorme fora de um robusto affecto nascente.
+
+
+Accendeu um charuto e continuou:
+
+--"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu
+regressava definitivamente ao Par, trazendo uma solida fortuna amoedada
+em bons contos de ris palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da
+mala. Tratei logo de cumprir as imposies de um dever: paguei a todos
+os crdores da massa fallida, sem excepo de um s! Uma d'essas dividas
+da firma era uma anquinha,--uma anquinha!--que meu socio havia comprado
+para a sua Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que
+estabeleci-me pela segunda vez,--d'essa feita sem socio, para no mais
+ser prejudicado por ninguem.
+
+"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga
+paraense,--farta carnao morenamente excitante e grandes quadris
+arredondados, divinos,--filha de um subdelegado de policia. Casei-me com
+ella alguns mezes depois de a ver. No tinha educao, era estupida, mas
+possua a convico da belleza nas frmas, a imponencia da sensualidade
+no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?
+
+"Dois annos vivi eu nos braos de uma felicidade illimitada. Luiza, a
+minha captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em
+minha infinita affeio serdia, e cada vez mais revelava-me um
+esplendido segredo de sua magnifica belleza de crioula! Era um delirio,
+uma loucura dulcssima e purificadora, aquelle amor que eu lhe votava
+com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina
+casa em que viviamos era para mim uma Capua desejada, onde a minha
+languidez encontrava tranquillo bem estar, nos braos da seductora
+Luiza. O dia seguinte, que para muitos um enigma atterrador,
+apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproduco
+inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavssimas de um amor
+intenso e bom, como fostes amadas pela piguice da ingenuidade do meu
+espirito!"
+
+Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisao
+prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a
+arregaar-lhe a rubra ponta do labio grosso e varonil.
+
+E proseguiu, aps haver accendido o charuto que se apagara:
+
+
+--Eu tinha inteira confiana em Luiza. Jmais a ida de uma perfidia de
+sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como
+poderiam enganar-me aquelles olhos to bellamente claros e brilhantes,
+aquella bocca de perfumosos labios que davam beijos to doces, to
+sensuaes, to irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O
+meu espirito era o espelho onde se reflectia o meu corao e onde eu
+suppunha ver a alma de Luiza, estava realmente a minha, a minha que em
+breve tinha de ser to rudemente ferida pelos factos!
+
+" como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a
+phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginao
+creadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Maraj, que
+viera cidade, e um bello dia, quando, ao car da tarde, regressei a
+casa para jantar, no mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro
+que eu tinha em casa e fugira com o sobredito _cujo_ mencionado
+vaqueiro, como vim logo a saber, por informaes ministradas pela
+visinhana, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto,
+completo, valente e, na minha valiosa opinio, no de todo incapaz para
+o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e
+voluptuosa.
+
+"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as
+leis do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de
+Maraj, onde, por certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos
+braos do cyclopico vaqueiro? Que expuz irriso publica, s chufas da
+plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparavel deshonra do
+meu nome? Nada d'isso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe,
+mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas de que se esquecera com a
+precipitao da fuga! Veja at que ponto fui complacente. Veja que santa
+bondade a minha!
+
+"A desgraada morreu um anno depois, victima de bri-bri; pois bem;
+para mostrar a Deus que no sou de todo mau, mandei por alma de minha
+mulher resar, na egreja do Carmo, uma triste missa de _requiem_, a que
+assisti com respeito e piedade."
+
+Calou-se, sem uma commoo no rosto ou na voz. Falava como se tratasse
+do tempo ou da cr do cu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E
+logo o seu velhaco risinho sarcastico saltou-lhe da bcca e veiu
+espreitar-me de sobre o labio superior,--como se fosse um depoimento
+vivo da tranquillidade d'aquella alma em face de todos os
+extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella haviam passado, sem
+conseguirem emocional-a.
+
+
+O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me
+para que acompanhasse-o, seguiu em direco ao povoado, cantarolando
+esta pandega quadra do _Dia e a Noite_, de Lecocq:
+
+ _Minha mulher, que Deus levou,_
+ _Foi-me infiel constantemente;_
+ _Nada d'isso me acabrunhou:_
+ _Levei o caso alegremente!_
+
+
+
+
+A convalescente
+
+ Ao dr. Alvares da Costa
+
+
+Estava pallida e triste, encostada levemente grade do camarote,
+n'aquella noite de estra.
+
+Os seus olhos, negros como a sda que o seu delicado corpo vestia,
+divagavam pela plata, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia
+uma d'essas melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e
+idaes, bellas, todavia, mesmo na falsidade da sua creao,--vivificada
+por um mysterio e conduzida quella sala d'espectaculo, onde
+ostentavam-se as formosuras das moas da moda e as austeras sobrecasacas
+dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.
+
+E ella estava sempre pallida, encostada levemente grade do camarote.
+
+Nos labios tinha ingnuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expresso da
+sympathica physionomia.
+
+Um engraado diabrte, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.
+
+Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da
+alma uma commoo de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada
+d'esse logar, d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para
+a plata, cujo ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos
+lenos rendados, dos perfumosos lenos discretos das jovens damas....
+
+E aquella encantadora creana que, sempre triste, encostava-se grade
+do camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do
+soffrimento, que tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia
+austeramente sria sob a luz intensa do lustre.....
+
+
+
+
+Desilluso
+
+ A Fontes de Carvalho
+
+
+A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem
+sonhando amores e descobrindo tmidas paixes nas palavras alegremente
+zombeteiras dos moos que fingem cortejal-as por distraco.
+
+Tinha ella a tez,--enrugada e molle como a casca do janipapo
+maduro,--salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas;
+encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de p de arroz,
+comprado sempre na _Loja Mariposa_, da qual o co-proprietario
+Affonso,--o sympathico Affonso,--vendia-lh'o com muita dse de
+_rclames_ e chamadas de atteno para a superioridade da fazenda.
+
+Usava uns vestidos fra da moda, mal feitos, com algumas ndoas, nos
+quaes primavam os enfeites vistosos,--uma garridice da sra. d. Joaquina.
+
+O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refgos da
+engelhada epiderme,--posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a
+cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos
+edade.
+
+As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco
+lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna
+do direito de aspirar a um bom casamento"--como ella pensava e dizia mui
+confidencialmente a certas amigas particulares.
+
+Sempre houve maledicentes no mundo (salve a _chapa_!): foi por isso que
+uma d'essas amigas, tendo tido uma altercao com ella, retirou-se de
+seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa
+personagem pintava os cabellos, que, se no recebessem quotidianamente
+os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, j deveriam estar
+soffrivelmente russos, quando no grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou,
+suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente
+inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.
+
+A sra. d. Joaquina possuia uma educao mediocre, apenas sufficiente
+para conhecer os seus deveres de "moa solteira", quanto educao
+moral; quanto intellectual, lia com desembarao e alguns tropeos
+prosdicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres
+namorados que tivera antigamente.
+
+Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu _spleen_ de
+senhora entrada em annos e votada lastimosa condio de _tia_. Ai! A
+pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de no haver em sua mocidade
+casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente
+por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade,
+escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella no acceitara
+o amor d'elle, sonhando desposar um joven baro, muito rico e elegante,
+como um que conhecera n'um romance do inspido Ponson du Terrail. O
+baro, porm, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o
+Guedes, n'um momento de lucida reflexo, resolvera viver em calmo e
+economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira,
+mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de
+faceiros quindins, nas horas de amor, e bas tortas de camares seguidas
+de compotas de delicioso bacury, sobremesa.
+
+Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jmais tivera informaes
+exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se
+vagamente que um fra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou,
+talvez pela seduco d'alguma _yra_ encantadora. Do outro constava
+apenas que partira para seu paiz natal,--Portugal,--afim de ir saborear
+ lareira, nos longos seres de inverno,--quando o suo sibila em as
+grandes chamins ennegrecidas,--os succulentos ncos de paios da
+Beira,--d'aquelles paios to glutonamente decantados pelo illustre poeta
+Joo Penha.
+
+Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a
+dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas
+e dulurosas esperanas de captivar o rebelde corao do Francisco da
+Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos
+Mercadores. Este, porm, parecia no partilhar das mesmas intenes,
+porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem
+pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe
+ratoeiras amorosas: mandava-lhe flres, fazia-lhe presentes de toalhas
+de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o caf quando elle ia
+casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accsos aos charutos,
+roando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixo.
+
+Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente
+contra o Francisco, quando, a ss, no momento de estender-se na sua fria
+rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus
+actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.
+
+Tal era o estado do corao da boa senhora na poca em que o Natividade
+apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.
+
+A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia to natural,
+attrau as boas graas da digna solteirona, que logo sympathisou com
+elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga
+sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."
+
+Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos,
+desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.
+
+Levada pelas erupes d'aquelle seu corao vulcanico, ella comeou a
+amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o
+Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moo as amorosas
+manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o
+parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever.
+Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.
+
+ ----
+
+Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, j
+no Par, apanhasse alguma constipao, Raul adoeceu, ficou pllido,
+perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, aps o jantar, sentiu uma
+suffocao, seguida de agudas dres na parte interna do thorax, as quaes
+communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir,
+curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.
+
+--Santo Deus, que vejo?!--exclamou o tio, assustado.--J, um medico,
+depressa! continuou, a correr attonito pela sala....
+
+O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou
+o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendaes
+sobre o tratamento.
+
+Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porm,
+teve uma verdadeira e forte hemoptysia. L foi o moleque chamar
+novamente o doutor.
+
+Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que
+habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que
+podesse. Assoberbado por to assustadora recommendao, o bondoso
+Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete
+que do Par sau seis dias depois.
+
+No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando
+verdadeiras lgrymas de d e de saudade, tirou do bolso uma carta
+lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:
+
+--Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faa o que
+lhe peo. Mas, antes no a abra, pelo amor de Deus!
+
+--Sim, minha senhora.... Os seus pedidos so ordens para mim.... Adeus!
+
+Chegando cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso p de
+restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado,
+resguardando-se de tudo quanto podsse fazer-lhe mal. Estes uteis
+entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.
+
+ ----
+
+Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os
+medicos lhe recommendassem que no viesse ao Brazil, tratou de procurar
+emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se
+caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer
+cobranas pelas provincias.
+
+Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excurso,--ao
+Alemtejo,--estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mo
+no bolso d'um _paletot_ que s vestia em viagem, encontraram seus dedos
+um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda
+amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe dra a sra. d.
+Joaquina.
+
+--Ah! que esquecimento o meu!--exclamou.--Que juizo no ter feito a meu
+respeito a impagavel senhora....
+
+E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.
+
+"Meu bom amigo,--leu.--Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito
+_afflue-me_ aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o:
+amo-o, amo-o, com todo o ardor de que capaz o meu ardente corao!
+(Isto copiou ella do romance _A Caridade Christ_, de Escrich,--pensou
+Raul). Peo-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se _fui_ por si acolhido
+o meu amor. (Aquelle _fui_ que era genuinamente d'ella, s d'ella; o
+Raul bem o conheceu). Espero _ancioza_ a sua resposta, com a qual o meu
+amigo _remeter-me-_ meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de
+presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do corao de sua
+eternamente,--JOAQUINA."
+
+
+Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle
+_modelo_ d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo
+fez-se mais serio e:
+
+--Ora bolas!--disse.--S os cabellos encantavam-me, por serem to pretos
+e lustrosos.... E era falsa aquella cr d'azeviche!.... Que desilluso!....
+
+
+
+
+A "Serenata" de Schubert
+
+ Ao dr. Augusto Meira
+
+
+I
+
+No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, Joo estava deitado na
+rde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, luz branda de uma
+vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do
+Capibaribe, na Casa de Deteno, derramando pelo ar um spro de
+tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo
+dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte, que vinha de
+Olinda, entrava na sala, e d'esta seguia para o quarto de Joo, agitando
+a luz dentro do _photo-mobile_.
+
+Na invisivel palpitao da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na
+visinhana. Fanatico adorador da musica, Joo fechou o livro e prestou
+atteno. Eram as primeiras notas da _Serenata_ de Schubert, esse
+magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composies! De
+um pulo, achou-se abaixo da rde, fra do quarto, ao balco de uma das
+janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se grade, com o
+rosto descanado na mo direita, dispondo-se a ouvir a sua pea predilecta.
+
+Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios,
+como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava
+no azul-ferrete do co, por entre multides de estrellas tremeluzentes,
+uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes
+montes de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima
+saam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas
+janellas abertas.
+
+Como todas as musicas sentimentaes, a _Serenata_ de Schubert possue isto
+de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro
+da meditao tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que so
+sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma.
+
+Foi por isso que Joo, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em
+seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e
+redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu
+querido Par, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella
+que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moo
+estudante de direito recordou-se,--e com quantas saudades!--da magistral
+execuo que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro
+allemo,--uma execuo toda sentida, interpretando os minimos segredos,
+com dulcssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao
+espirito e suaves langores ao corpo.
+
+Entrou Joo a imaginar que estava no Par, ao lado de sua querida
+companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta,
+extasiado na audio d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma
+transformao imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos
+ouvidos d'elle um som particular, intimo, que o commovia todo,
+chamando-lhe duas lgrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa
+tambem, sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa
+fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual dra-lhe outrora
+tantos prazeres, e que tinha presentemente a expresso poetica, porm
+saudosssima, de uma tela de Watteau....
+
+Esse quadro, eil-o:
+
+ [1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata
+ est hoje casada com o heroe da presente narrao e pde gabar-se
+ de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais
+ leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga
+ de todas as mes.
+
+
+II
+
+Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sar no relogio da varanda.
+Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a
+familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sof.
+Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes spros de brisas cheirosas
+e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de
+transeuntes. A espaos, uma voz, um grito chegava at sala, revelando
+que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario
+do nascimento de Christo.
+
+Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora
+sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o clo de sua
+virtuosa me, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, no
+afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um
+lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal.
+
+Contemplando este quadro rubenesco, Joo pensava nos santos prazeres do
+lar,--elle, que era um msero orpho, um desgraado pari do
+amor!--emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle,
+falava-lhe compungida crca de uma infeliz mulher que, pela manh,
+recebera de suas pequeninas mos bemfazejas, roupas e sustento para os
+filhinhos. E dominando a todos, no meio do sof, com a expresso
+suavssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente
+lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas
+sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moo, ao Theodoro,
+aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir
+vrias scenas a que assistira em sua passada vida commercial.
+
+Uma exhalao de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a
+tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depe
+muitas confianas no futuro.
+
+De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz
+ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:
+
+ Folguem todos n'esta noite,
+ Venha a festa sem egual:
+ --Hoje em nada se repara,
+ Porque noite de Natal.
+ Hoje em nada se repara,
+ Porque noite de Natal.
+
+E a guitarra chorava em _tom menor_, fazendo cro ao _ritornello_. A voz
+de um agradavel _tenor_ prendeu logo a atteno dos que estavam na sala:
+
+ Esta noite abenoada
+ Pertence aos que tm amor;
+ No presepe bethlemita
+ Veiu ao mundo o Deus-Senhor.
+
+Novo _ritornello_ choroso na guitarra.
+
+ Por isso, moos e moas,
+ Entregae-vos ao prazer,
+ Emquanto no vem a edade
+ Vossa fronte encanecer!
+
+Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.
+
+Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantra a cabea, n'uma
+energia de movimento, com as narinas afflantes, os anneis da cabea
+tremendo-lhe sobre os hombros.
+
+--Tlo!--exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao
+longe, na extremidade da rua.--Pois que venha c, a ver se os velhos no
+tm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dir ao
+depois se eu no amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o
+meu Theodoro e innocentinha que ahi dorme sob as benos do meu olhar!..
+
+Um soluo gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a
+encarnao do carinho e, muito piedosa e pura,--qual um raio de sol
+illuminando a face de uma estatua antiga,--foi beijar amoravelmente a
+fronte do ancio....
+
+Que no se affligisse, pediu-lhe affagando-o;--que no dsse importancia
+a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade
+elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E
+demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor,
+no valia a pena entristecer-se....
+
+--Para o lado os pezares!--terminou sorrindo.--Como distraco agradavel
+a todos, vou tocar ao piano a _Serenata_ de Schubert.
+
+J se tinha Joo levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano,
+abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas,
+sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar.
+
+
+III
+
+E comearam ento as primeiras melodias da _Serenata_.
+
+Joo cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audio da formosa pea,
+to bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica
+comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma
+figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo,
+apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginao do
+moo. E surgiu ento um joven de bandolim em punho, debaixo dos balces
+floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem
+germanica, onde os robles farfalhavam borda dos lagos tranquillos,
+sobre cujas superficies grandes garas deslisavam elegantes, ruflando as
+brancas pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um
+canto magico de yra amazonica, sentida como uma recriminao paternal,
+doce como um beijo apaixonado. De seus labios cr de papoula
+distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade
+de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castell formosa, occulta
+entre os reflhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador
+tinha um no sei qu de melancholico, um tal cunho de poesia dolente,
+que Joo emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginao lhe
+descrevia, que no pde deixar de cantarolar baixinho, com um meio
+sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretao de Dhalia:
+
+ _"O Chtelaine,_
+ _Entend ma peine!.._"
+ ...................
+ ...................
+
+Dhalia executou o _morendo_ final da Serenata. Joo acordou da sua
+_rverie_, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico
+bailava um risinho engraado.
+
+De p, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante
+illuminado n'uma expresso de ineffavel ventura. Dos labios entreabertos
+parecia escapar-se-lhe uma beno muda, que se completava pelo gesto das
+mos erguidas e espalmadas no espao!.. Era o pae a abenoar o futuro
+feliz dos filhos idolatrados!
+
+.........................................................................
+
+
+IV
+
+Estava n'este ponto a saudosa recordao do moo estudante, na janella
+do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano
+da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da _Serenata_.
+
+Joo sentiu-se commovido por aquella musica inspiradssima, que lhe
+avivra to grata lembrana de seu venturoso passado,--agora que elle
+estava ausente do querido slo natal, onde moravam todos os que
+possuiam-lhe a flr do affecto. Ergueu os olhos ao co, n'uma
+necessidade de soltar livremente o espirito pela amplido infinita do
+vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilaes, o crescente de
+lua vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flcos de
+nuvens seguiam, muito calmos e ethreos, pelo espao adeante,
+projectando sombras cinzentas sobre o calamento da rua. Da
+margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se
+bradando--_alerta!_-- sentinella.
+
+Ento, por um impulso de agradecimento, o espirito de Joo partiu pelo
+infinito a fra, chegou ao Par, atravessando a cidade, e foi
+ajoelhar-se piedoso modesta pedra gradeada que sella o tumulo
+venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva.
+
+
+
+
+Que bom marido!
+
+ A Juvenal Tavares
+
+
+ _No desejars a mulher do teu proximo._
+ MANDAMENTO DE DEUS.
+
+Havia j tres annos que estavam casados. No tinham filhos. Viviam
+felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente
+pintada a cal, onde o sol da manh brincava alegremente n'umas
+scintillaes que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante
+que para ella dirigisse escrutador olhar.
+
+Elle era um velho quarento, amanuense de secretara, obeso, rubicundo,
+de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que
+tivra,--tempestuosa e poda nas orgias,--encanecera-lhe completamente
+os cabellos da cabea, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se
+numerosas rugas sobre a pelle cr de ginja.
+
+Ella tinha dezoito primavras,--para me servir d'uma velha expresso do
+romantismo;--ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e
+marotos. Tz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador
+descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais
+alvos do que os de um co da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste
+da anglica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam
+bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vados,--d'esses
+namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
+
+O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manh, s 8 horas,
+depois do respectivo e parco almoo, o sr. Bonifacio escovava com a
+manga da sobrecasaca o solenne chapu alto, dava um _chcho_ mulher e
+saa para a repartio com o passo do empregado publico:--impassivel e
+cadenciado.
+
+Elvira acompanhava o esposo at porta da rua, fazia-lhe uma pequena
+caricia e voltava varanda, afim de dar algumas ordens crca do
+jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeio, a sentar-se
+machina de costura, que dava-lhe no diminuta receita para as despezas
+diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio
+formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de
+tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a
+_bond_ em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth,
+algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. Joo e mais outras
+regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam encantadora
+esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher
+bonita e nova.
+
+Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha
+seus adoradores,--rapazes toleires, aos quaes ella, diga-se a verdade,
+no ligava muita importancia. Entre esses moos, quem mais assiduamente
+a requestava era um tal Jacyntho,--um _leo_ conquistador que falava
+pelos cotovllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do
+namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonra-se por Elvira poucos dias
+depois do casamento d'ella, por occasio d'um passeio a Benevides. Desde
+essa poca, o pobre _namorado sem ventura_ passava todas as tardes pela
+casa do Bonifacio, quando Elvira a para a janella, emquanto o marido,
+na varanda, jogava o slo com o taberneiro da esquina e o visinho da
+direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um
+cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribua a este ultimo e
+conservava-se muito sria, muito digna, sem corresponder quelle.
+Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual
+entrevista, na qual Elvira j parecia interessar-se, pois que tambem no
+deixava de ir para a janella assim que, l na varanda, o sr. Bonifacio,
+o taberneiro e o vizinho comeavam no _passo_ e no _blo_. que a
+interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que no
+poda se contentar com os ss affagos morosos e frios do velho
+Bonifacio. No obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se
+quillo a que chamava "uma distraco", mais para satisfazer uma vaga
+curiosidade do que para commetter um crime.
+
+ ----
+
+Jacyntho no era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo
+a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em
+pedra dura, tanto d at que fura." Tinha confiana no futuro, que
+resolvera, com vantagem,--aquelle interessante problema de amor.
+
+Uma tarde,--era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devras admirado
+por ver que a sua querida no estava janella. Olhou para os dois lados
+da rua e no enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a
+apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um s vivente se via.
+
+Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha
+mulata, que saa da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:
+
+--Onde est a d. Elvira, minha filha?
+
+A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabea para o peito, metteu
+na bocca o index da mo direita, conservando-se calada.
+
+--Vamos, fala, toma um tosto.... Onde est a d. Elvira?--insista o
+_leo_ fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
+
+Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuados da
+fregueza e disse, ainda meio acanhada:
+
+--Est l dentro....
+
+--E o sr. Bonifacio?
+
+--Sau.
+
+--Dou-te outro nickel se fres levar uma carta tua senhora, queres?
+
+--Eu quero....
+
+Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que,
+por cautella, no datra nem assignra. Entregou-a mulatinha e
+conjuntamente outro tosto.
+
+Depois seguiu pela estrada adeante.
+
+
+Elvira no deu resposta quella carta, que lhe revelra o grande amor
+que por ella sentia o Lovelace paraense. Este no desanimou: deixou de
+passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, aps os quaes voltou,
+seguindo pelo passeio, rente janella. Sacudiu-lhe ao clo nova
+epstola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira no
+pde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda
+receiosa, na qual confessava que o Jacyntho no era-lhe indifferente,
+mas que devia abrir mos quelle amor, porquanto a sua "posio de
+mulher casada no lhe permittia to gratas liberdades."
+
+D'ento em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a
+passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para
+os bolsos d'aquelle. que houve uma tarde em que Elvira entrou a
+confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto
+e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa
+correspondencia criminosa.
+
+Havia j alguns mezes que o amor dos dois no tivra outras expanses
+alm d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais
+exigente.
+
+Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa,
+de volta d'uma visita que fra fazer a seu chefe de seco. Transpondo o
+limiar da porta, encontrou a mulatinha que saa apressadamente,
+escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a
+atteno de velho curioso.
+
+--Que levas ahi?--perguntou.
+
+--No nada....--respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos
+paraenses.
+
+--No mintas! Eu vi no sei qu!--bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo
+brao e apoderando-se do objecto.
+
+Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:
+
+
+"Meu amigo, depois d'amanh, meia noite, meu marido vae ouvir a _missa
+do gallo_ em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de
+conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha
+ 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.
+
+ ELVIRA."
+
+O Bonifacio _subiu ao arame_; ficou da cr da purpura e sentiu uma
+violentssima dr de cabea. Teve impetos ardentes de ir assassinar a
+esposa infiel; reflectiu, porm, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe
+appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria
+vingana.
+
+--Toma, leva,--disse entregando a carta rapariga.
+
+E entrou.
+
+ ----
+
+Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgases de moos
+d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belm em direco s differentes
+egrejas onde se deve rezar a _missa do gallo_.
+
+O sr. Bonifacio, que levantou-se ultima pancada das 11 horas, sae para
+a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dr de cabea...."
+
+ 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos
+ligeiros at chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o
+Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas.
+Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de
+contentamento, pregosando os prazeres que a fruir na conversao de
+Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.
+
+Era o respeitavel sr. Bonifacio, que sando de traz da mangueira onde
+occultra-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivra a
+lembrana de namorar-lhe a mulher.
+
+Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio
+pouca agilidade que ainda possua e acompanhou-o, continuando a soval-o
+fortemente, n'uma agitao febril....
+
+O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os
+vizinhos haviam sado para a _missa do gallo_.
+
+Quando canou, quando os braos negaram-se a continuar, o honrado
+amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao
+Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi modos:
+
+--V-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! No torne a car na
+asneira de namorar moas casadas!
+
+E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida
+de medo.
+
+
+
+
+Noite de finados
+
+ A Manoel P. de Carvalho
+
+
+O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos
+de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas.
+Eram oito horas da noite sob um co trevoso como a tristeza d'aquellas
+pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos parentes e
+amigos para sempre occultos debaixo da terra, sobre a qual compridas
+filas de vlas accsas lanavam uma claridade intensa, que ia esbater-se
+ao fundo, na escurido do mattagal.
+
+O ar estava impregnado do perfume das flres--piedosamente depostas em
+cima das sepulturas por mos amigas,--e do cheiro mystico da cra queimada.
+
+Ao longe, direita da ermida, uma banda de musica executava
+plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades
+lugubres faziam suspirar as velhas beatas,--aspirando a uma outra vida
+desconhecida, alm d'aquelle firmamento negro, no logar onde a
+omnipotencia incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a
+sua magestade.
+
+Entretanto, de espao a espao, grandes ondas de povo invadiam o
+cemiterio. Este, quella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas
+que receiavam um atropello, saam enfadadas, murmurando indecencias.
+
+ porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente
+com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas
+lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de
+vestes sujas e mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em
+seu favor a caridade dos visitantes piedosos.
+
+Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam
+olhares torpemente libidinosos s moas que entravam seguidas de suas
+mames, n'um andar assustadio e saudando um ou outro conhecido com um
+meneio de cabea. Mais adeante, n'um canto escuro, uma rolia mulata,
+com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de
+physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e com a cabea coberta
+por um descommunal chapu alto. Como contraste, no muito longe, estava
+uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados grade
+ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vlas em castiaes de
+vidro.
+
+Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma cora de perpetuas rxas,
+corriam lgrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas
+do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....
+
+Era sem duvida alguma viuva que pagava memoria do finado marido alguns
+annos de amorosa e suavssima coabitao na terra...
+
+ esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em
+negro caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e
+toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma
+senhora de cabellos grisalhos, immovel, calada--como evocando passadas
+scenas de prazer--sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia
+no funeral tristonho....
+
+O co, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiada. Grandes
+nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as
+bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluo d'almas
+penadas fazia farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar
+s supersticiosas moas que estavam no cemiterio.... Agora calra-se a
+orchestra.
+
+Subira um prgador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de
+grande cma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos
+tragicos, uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade
+mundana e a perenne bemaventurana celestial.
+
+As mulheres,--mes, filhas, esposas,--que o ouviam, ficavam caladas,
+muito srias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto
+bronzeado; no intimo, porm, no fundo da consciencia, levantavam um
+brado de maldio quella felicidade que lhes roubra a companhia dos
+entes queridos e amoraveis.
+
+Um homem de cabea encanecida, que vagueava levando pela mo uma creana
+de tenra edade,--um lindo e pallido orphosinho,--voltou-lhe costas
+nervosamente, soluando, e fugiu para junto de um pobre tumulo
+tranquillo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma s
+phrase:--_ minha esposa...._
+
+No co, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como alegrias fugitivas ou
+prazeres expulsos, erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de
+miragens variadas.
+
+A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena
+magestade tumular, que impoz vago soffrimento ao corao de todos. Os
+brandes e vlas perderam o brilho, ficaram como pyrilampos
+lantejoulando os sepulchros sob o luar diaphano, a cuja claridade
+continuava o pregador a recordar a omnipotencia de Deus.
+
+Os _bonds_ estacionados na praa encheram-se de passageiros. Minutos
+depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de
+senhoras tristes, com physionomias de soffrimento.
+
+Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava
+illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a
+penultima da festa annual.
+
+Ento, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma
+saudade memoria de um amigo, d'um irmo, d'um pae, desciam agora ao
+centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as
+casas de jogo,--propellidos pela fascinao demoniaca e terrivel da roleta!
+
+
+
+
+Rio abaixo
+
+ (Ao dr. Gaspar Costa)
+
+
+A cana seguia mansamente, per si s, impellida pela correnteza.
+
+Sentado pra, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava
+com o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas
+das bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do
+sol, que escondia-se por traz da ilha das Onas.
+
+Na ppa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o _senhor moo_,
+abanando-se com uma ventarola de pennas vermelhas, ao lado da _senhora
+moa_, que espreitava para fra, por um dos pequenos postigos lateraes.
+A seus ps, dormitava o co Murur, com um pedao de lingua escarlate
+cada para o lado esquerdo, entre os dentes meio visiveis.
+
+O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos
+mattagaes da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam at
+embarcao, n'uma suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de
+alegre ternura os dois viajantes.
+
+--Que bonita paizagem, Antonio!
+
+-- certo! Razo tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da viagem.
+
+--Quando chegamos ao _sitio_?
+
+--s 9 horas, isto , d'aqui a tres ou quatro.
+
+-- pena chegarmos to cedo!
+
+--Dizes bem: vamos to contentes....
+
+E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.
+
+O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns
+momentos, voltou o rosto, embaraado, sentindo queimar-lhe as tostadas
+faces um ardor de sangue equatorial em ebulio. Puxou do cachimbo
+demorada _fumaa_, para tranquillisar-se.
+
+Os outros, os dois recem-casados,--porque Antonio e Luiza eram noivos:
+tinham-se matrimoniado quinze dias antes,--experimentavam, debaixo da
+tolda, uma sensao de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle
+magestoso socego, sobre o Tocantins, dentro da embarcao.
+Felicitavam-se mutuamente,--com o olhar cheio de caricias,--por haverem
+podido esquivar-se vida agitada que levavam em Belm, sempre rodeados
+de visitas, cujas conversaes banaes, nullas, pouco interesse lhes
+davam. Mas agora,--como iriam viver felizes durante aquella quinzena de
+fuga, em a tranquillidade bucolica da roa, sosinhos, passeiando sem
+companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama,
+lavando reciprocamente as mos na agua azulada e murmurosa dos
+igaraps!.... E que festas fariam hora do jantar, comendo peixinhos
+pescados por Luiza, e pacas, rolias de gordas, caadas pelo Antonio nas
+mattas do _sitio_?!....
+
+Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio,
+estas idas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem
+attenderem a que o sol no mais vibrava os lategos luminosos no dorso da
+corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da cana, afim de
+gozarem da virao fresca e cheirosa que agitava n'um movimento
+descompassado as velas mal colhidas ao mastro.
+
+Sempre assentado pra, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o
+caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com
+o sol, que deixra um rastro avermelhado no co, onde agrupavam-se em
+desordem nuvemzinhas cr de ncar, violetas, azuladas, plumbeas, cr de
+perola. Do lado opposto, levantava-se a noite, n'um andar manso,
+mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo bruxoleante.
+
+O gorgeio dos passaros cessra na ilha das Onas, que j tinha ficado
+atraz, a longa distancia; s chegavam cana os compassos em _andante_
+do canto de um carachu que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente
+qual passou a embarcao.
+
+--V ahi no meu relogio que horas so, Jos, ordenou Antonio ao caboclo.
+
+--Seis e trinta e oito, _sinhor_.
+
+--Oh! ento saimos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.
+
+Vieram para fra.
+
+Luiza soltou uma exclamaosinha, sonora como um soneto de Paulino de
+Brito, engraada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um
+timbre argentino como um filete de agua morna caindo n'uma banheira
+d'oiro lavrado:
+
+--Ah!--fez ella.
+
+E deixou-se ficar de p, encostada ao hombro do marido, extasiada, em
+frente ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.
+
+Largo em aquelle sitio, achamalotado pela brisa, o rio abraava
+numerosas ilhotas rasas, cobertas d'uma vegetao opulenta, que
+esbatia-se n'uns tons escuros, quasi indecisos, no limite do horisonte.
+Um socego de tabernaculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do
+co, onde as estrellas comeavam a scintillar como as pedras preciosas
+d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem occupava n'esse instante um
+espao do firmamento. Ao longe, direita da terra firme, tremulava uma
+pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, esgueirava-se pelo
+costado da cana n'um murmurio dolente. A sbitas, na solemnidade do
+silencio, resoou um grito d'ave nocturna.
+
+--Accende a lanterna, Jos,--disse Antonio ao caboclo, que obedeceu
+logo, voltando depois sua posio habitual na pra, fumando.
+
+Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da
+embarcao, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes
+jarros com roseiras flordas.
+
+Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido
+foi ppa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros,
+conchegando-lh'o muito ao pescoo, amoravelmente.
+
+Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escurido. Do logar em
+que achavam-se, apenas viam na pra um ponto vermelho como um
+carbnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornra
+invisivel na densidade das trevas.
+
+Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solido: entraram a conversar
+baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de
+to agradaveis recordaes. Era para ambos uma innarravel felicidade
+poderem pairar, assim a ss, das peripecias do curto namro, dos longos
+annos que elle passou a amal-a silenciosamente, das emoes e
+impaciencias do dia do casamento, quando approximava-se a hora em que o
+parocho de Sant'Anna teria de unil-os.
+
+Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias,
+n'uma excitao dos sentidos. Um movimento instinctivo,--inconsciente,
+talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,--uniu-lhes os labios
+n'um prolongado beijo de paixo, vibrante como um cro juvenil.
+
+Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posio.
+
+Poz-se a pensar nas passadas e saudosas pocas da sua felicidade, fruda
+com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetao selvatica
+e cheia de grandiosidade das florestas amazonicas...
+
+E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosssima, respondeu
+quelle beijo nascido de duas bccas amantes no silencio de to linda
+noite paraense.
+
+Entretanto, a cana seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela
+correnteza.
+
+
+
+
+Ao despertar
+
+ Ao sr. A. R. d'O. Gomes
+
+
+ _Nem tudo o que luze ouro._
+ PROVERBIO POPULAR.
+
+
+I
+
+A alcova nupcial em noite de noivado.
+
+Um perfume suave de flres volita invisivelmente pela atmosphera da
+pea, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas
+variegadas em cres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e
+como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente
+cerradas... Uma lmpada com vidros baos, cr de leite, esparze branda
+luz em torno, sem crepitao, n'uma solenne impassibilidade, que d
+certo ar magestoso ao silencio do recinto.
+
+Dois pares de pantufos de sda branca escancaram as cavas como n'um
+bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos ps da cama.
+
+Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flres de larangeira repousa
+meio escondida sob um leno de fina baptista com um monogramma bordado.
+
+Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pllida e
+trmula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira
+preguiosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho....
+
+Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se
+lhe antolhavam na vida que ia comear em breve, deixou-se escorregar
+pelos finos lenes e descanou a bella cabea de paraense morena, em
+cima do travesseiro macio como a flr do algodoeiro....
+
+E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a
+passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios
+contrahidos n'um leve rictus de satisfao, de ventura.
+
+Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma
+pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:
+
+--Permittes?....
+
+E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaados, sonhando
+felicidades paradisacas, um perfume suave de flres volita pela
+atmosphera da pea, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde
+as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e
+como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente
+cerradas.
+
+
+II
+
+O casamento realisado n'aquelle dia fra o epilogo de um longo namoro de
+seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como
+indisposies subitas, brigas e malquerenas de alguns mezes por causa
+de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de no sei que
+espirito benefico, pazes feitas com abundantes expanses apaixonadas,
+reconciliaes ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n'um
+enlevo.
+
+O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios,
+brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfao do homem
+rico que vive contentssimo da sorte.
+
+Creara para a filha um ideal--um casamento com um bacharel. Similhante
+aspirao, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa
+roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,--a
+mulher morrera-lhe de parto, ao dar luz um ente rachtico,
+inviavel,--deixava a filha nos sales e ia procurar as mesas de jogo,
+para encurtar o tempo.
+
+Assim andaram os dois, por espao de muitos mezes, em verdadeira
+peregrinao cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz
+attendel-os e appareceu-lhes na frma de um elegante mancebo, que dias
+antes chegara de Pernambuco, sobraando o pergaminho que lhe conferia o
+titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das
+graas de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos
+d'ella,--duas blas d'onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas
+por longos cilios sedosos;--os longos cabellos d'bano, ondeando-se-lhe
+pelas espaduas de farta carnao; aquelle bonito torso de opulentos
+seios na apojadura da juvenilidade;--tudo n'ella prendia-lhe o enamorado
+espirito em os laos d'uma paixo to sincera quanto profunda. Mas,
+sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a
+grandes xtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso
+espiritualisado e prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam
+as carminadas gengivas d'ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas
+covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d'elle, como desejando
+magnetisal-o.
+
+Uma tarde, aps haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas,
+foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e to enthusiasmado
+sentiu-se, que sentou-se secretria e entrou a fazer uma poesia,--elle
+que jmais fizera versos!--uma poesia em que abundavam as
+palavras--_seductora virgem_, _divinal espirito archanglico_, em uma
+terrivel mescla d'enormes ps quebrados, com grande escandalo das regras
+formuladas por A. Feliciano de Castilho.
+
+Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.
+
+Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo s pensava nos dentes da
+noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o
+encantavam.
+
+E phantasiava um capricho, cuja lembrana era sufficiente para lhe dar
+ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o
+primeiro beijo que dsse mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!
+
+Afinal, aquelles dentes eram uma obsesso para Alfredo. Para qualquer
+parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula
+sorrindo-lhe amoravelmente, incitando-o a uma tentativa agradavel de
+roubo de um sculo. O colete, que elle enfiava n'esse instante, assumia
+a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes
+pulsava o corao, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu
+entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que j era tempo de ir
+para a egreja, estava to abstracto da vida regular, to concentrado em
+suas phantasiosas meditaes, que abraou-o commovido, murmurando:
+
+--Que bella dentadura, que tens!
+
+
+III
+
+Na egreja e ceia opipara que seguiu-se ceremonia religiosa em casa
+do velho pae de Paula, durante a longa e--para elle,--enfadonha
+conversao subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros,
+Alfredo s pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com
+a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao
+ouvido, com um sorriso eloquente por traz do leno amarrotado na palma
+da mo, opinies em nada favoraveis sua reputao de sobriedade em
+assumpto de succo de uva....
+
+--Que te parece o _gajo_, hein?--diziam.--Pois isso l cousa que se
+faa? Embebedar-se no dia do casamento....
+
+--Que escandalo!
+
+--Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.
+
+E seguiam por esta norma os commentarios--todos reumando idas
+gordurosas e indecentes.
+
+ ----
+
+Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente,
+muito lisongeiado pelas felicitaes que lhe foram feitas, com
+acompanhamento de expressivos belisces pelos braos e nas gordas
+bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que,
+impassivel como um abbade aps a ceia, fumava a um canto, affagando com
+amortecido olhar a fumaa do charuto, alm de forcejar por combater a
+fora dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razo do
+abuso que antecedentemente fizra das bebidas, mesa, quando brindra,
+com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do
+partido e ao Manoel do Rosario, o commerciante que no trepidava em
+tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasies de aperto....
+
+
+Que elle, Alfredo, devia, e com muita razo, sentir a impaciencia
+espicaar-lhe as costas,--ponderou de repente o sogro, sorrindo
+malicioso;--que no se enfastiasse, porm, visto como ainda l estava na
+alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a _toilette_. Era natural
+aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por
+ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de
+hymineu elle tivra nos braos da sua Sancha, uma odivellense tentadora
+como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a
+evocao da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata
+amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas!
+Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a
+felicidade d'aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou
+moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse,
+que lhe no desse trabalho em demasia para no a fatigar: o dte d'ella
+unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma
+existencia descuidosa nos braos d'uma indolencia salutar propicia
+gordura....
+
+E entrava em demoradas consideraes a respeito da ba vida,--como
+sectario da vadiao, que era.
+
+Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo
+recolher-se ao quarto que lhe fra destinado para passar a noite em casa
+dos noivos.
+
+Alfredo no quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abrao ao velho
+e correu alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos
+bellos dentes de Paula.
+
+
+IV
+
+A alcva nupcial na manh seguinte ao dia do casamento.
+
+Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na pea e vae
+beijar as rosas de varias cres que, emergindo de grandes jarros de
+porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos
+espelhos, como invadidas por um pudor, em razo dos amorosos ruidos que
+durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos,
+d'aquella cama honestamente encoberta pelos discretos refolhos das
+cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente,
+cumprimentando o sol e fazendo a crte s gallinhas, que cacarejam
+esgaravatando o cho.
+
+E um como effluvio de ventura evla-se pelo aposento....
+
+E a luz da lampada de vidros fscos dimine de intensidade, bruxola
+palpitante, ameaando extinguir-se....
+
+Em cima da commoda, a grinalda de flres de larangeiras occulta-se mais
+debaixo do leno de custosa cambraia, como envergonhada, ou como
+enxugando n'elle as lgrymas que o espirito da Pureza houvesse
+porventura derramado sobre suas ptalas inodoras....
+
+Aos ps da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de
+sda branca escancaram as cavas, n'uma expresso de abhorrecimento pela
+demorada immobilidade, n'uma expresso de appello aos ps que devem
+calal-os.
+
+De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem
+desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven
+noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfao
+intima. E l dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda
+a formosa Paula, semi-na, no inconsciente despudor de um somno que foi
+agitado...
+
+Alfredo olha para todos os lados, muito contente e risonho. Ao ver o
+raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua
+ventura n'um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito,
+estarrecido, confuso, muito pllido e crispando as mos, entra a tremer
+todo, com as feies demudadas, os cabellos arrepiados na cabea
+encandescida!
+
+ cabeceira do leito, sobre o elegante _guridon_ de jacarand, estava
+uma dentadura patenteiando um co de bcca postio e acinzentado, feito
+de massa!.....
+
+E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos
+pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente....
+
+Ento, sentindo enormes dres em todo o sr, com o espirito prostrado
+pela emoo violentssima, Alfredo cambaleou, soluando, e foi car
+beira do leito, lavado em lgrymas, a murmurar n'um gemido:
+
+--Estou roubado, estou roubado!
+
+
+
+
+Poemetos em prosa
+
+
+
+
+I
+
+Bidinha
+
+ A Mucio Javrot
+
+Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao ideal e faceira,
+haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem,
+ella comeou a amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso,
+encontrava-o em casa da prima, crava, julgava soffrer e gosar a um
+tempo e entrava a fital-o amoravel e longamente, com essa persistencia
+abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....
+
+O poeta conheceu no ser indifferente quella moa to pllida, to
+triste, cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixes
+ardentssimas...
+
+E, no sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir casa da prima
+da Bidinha, para no vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, l foi e
+encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,--aquelles
+tentadores, faiscantes olhos eloquentes,--mais, muito mais bonitos...
+Teve pena d'ella: n'um momento em que ficaram ss na sala,--onde
+rescendia o perfume d'um ramo de resda posto n'um jarro em frente
+ao retrato d'uma velha senhora de fronte enrugada e olhar
+suave--declarou-lhe amal-a desde muito, intensamente.
+
+Ella, a Bidinha, a pllida donna do lbum que recebra aquelles
+ternissimos versos, d'uma inspirao idal e faceira, sorriu, estremeceu
+e murmurou apenas quasi inintelligivel som.
+
+D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios
+nocturnos, em aquella mesma sala.
+
+ * * * * *
+
+Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua
+fidelidade foram longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o
+aperto de mo de despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a
+angustia que atravessou-lhe o corao!
+
+ * * * * *
+
+Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creana a
+quem jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada,
+emquanto rescendia na sala o perfume d'um ramo de resda.
+
+Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dr das
+longas espectativas!... Espera-o ainda....
+
+ tarde, quem fr ao pequenino quintal da casa d'ella, poder vel-a
+sentada sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta
+latada,--com o olhar suave e tristemente fito nas paginas d'um album,
+soluando baixinho palavras de saudosa recriminao.
+
+Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao idal e faceira,
+haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a!...
+
+
+II
+
+Paraphrase ossianica
+
+ A Frederico Rhossard
+
+ bella, seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do
+rochedo sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.
+
+Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traam sobre as nossas
+torrentes. Ouo-os passar no meio dos turbilhes e suas vozes fanhosas
+so os unicos sons a perturbar o magestoso socego das trvas.
+
+ tu, cuja mo branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas
+harpas de Lutha, tenta ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e
+dolentes. Desperta essas cordas adormecidas, canta, Malvina, e reaviva
+o meu genio, cuja chamma foi sopitada pelos annos implacaveis.
+
+Vem a mim, Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que
+entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o
+regato cae na colina e rla, depois do furaco, sob a luz radiante do
+sol, o caador escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a
+humida cabelleira.
+
+Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heres.
+Infla-se meu peito; o meu corao palpita. Delina-se a meus olhos o
+passado. Vem, Malvina, no divagues mais no meio das tnebras!
+
+
+III
+
+O parocho da aldeia
+
+ Ao Padre Dr. Leorne Menescal
+
+ a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e
+olhar carinhoso como um conselho de Jesus.
+
+A sua parca mesa est sempre s ordens dos mendigos, a sua porta aberta
+sempre aos viajantes, a sua bcca incessantemente murmura consolaes s
+pessoas que soffrem.
+
+Muitas vezes, alta noite, vo chamal-o para ministrar os socorros da
+religio a algum enfermo, em qualquer das aldeias que formam a serrana
+freguezia. Ento, levanta-se s pressas, monta a cavallo e l vae
+montanhas fra, a galope, ladeando tenebrosos precipcios, sob a chuva,
+tiritando de frio, impassivel como um here e contente comsigo mesmo,
+sentindo-se alegre por ir cumprir um dos mistres que lhe impe a sua
+profisso, to bem comprehendida por sua bella alma!
+
+Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos
+aquelles montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os
+conselhos de paz e bondade.
+
+Quando comeou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote
+arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra
+de Baturit. Em poucos mezes, graas a seus esforos e illimitada
+sympathia que a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato no tinham
+um sr captivo: todos eram eguaes!
+
+Quando sae de casa, encaminhando-se pequena egreja, cuja torre branca
+de neve lana-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as
+creancinhas, que bricam s portas das casas, acodem a beijar-lhe a mo e
+as mes saudam-n'o respeitosas, balbuciando uma beno....
+
+Aos domingos, prdica do Evangelho, vi-o, por differentes occasies,
+fazer com a unco de sua palavra, que as lgrymas borbulhassem nos
+olhos dos assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel modo
+de viver, fertilssimo em bons exemplos.
+
+Nada possue: d tudo aos necessitados, sem ostentao, naturalmente!
+
+Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, caritativo
+sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....
+
+
+IV
+
+Ao Sol[2]
+
+ A Fernando A. da Silva
+
+ tu, que rolas por cima de nossas cabeas, resplandecente como o escudo
+de nossos paes; d'onde saem os teus raios, sol? D'onde vem a tua luz?
+Caminhas em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas
+no firmamento; pllida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente.
+Ficas sosinho, sol: quem poderia acompanhar-te o curso?
+
+Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas so minadas pelos
+annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no
+fundo dos cus; s tu s sempre o mesmo.
+
+Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo est
+sombrio pelas tempestades, quando o trovo ribomba e va o raio, saes
+radiante do meio das nuvens e ris do furaco!
+
+Mas, ai! em vo brilhas para mim! O velho bardo j te no v os raios,
+quer fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer
+trema s portas do poente a tua luz bruxoleante.
+
+Mas talvez, como eu, s possuas uma estao e teus annos tero um termo:
+vir talvez um dia em que empallideas no meio da carreira e a aurora
+proxima em vo esperar o teu regresso.
+
+Regosija-te, portanto, sol, na fora da tua juventude! A velhice
+triste e abhorrecida: parece-se com as tbias claridades da lua, as
+quaes perdem-se entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este
+semeia ao longe as estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a
+collina e o viajante transido tirita nos caminhos desertos....
+
+ [2] Vertido de Ossian.
+
+
+V
+
+Remember
+
+ A Paulino de Brito
+
+
+I
+
+No tens ento no peito a minima raiva contra mim?--perguntei-lhe
+admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.
+
+--No! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os
+loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia,
+n'uma prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua
+pequenina pessoa, delicada e meiga, parecia desabrochar as florescencias
+gentis das suas graas, dos seus divinos dotes triumphantes em meio
+pujana da invejavel mocidade!
+
+--Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que
+tanta bondade tens n'alma, quantas so as seduces capitosas do teu
+bello rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e
+faceiros, tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores
+effluvios!--retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attrando-a
+castamente para mim, n'um impulso de gratido, ainda todo commovido pelo
+prazer das recentes pazes.
+
+E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que
+manifestara-se no roubo d'um beijo,--d'um pequenino beijo
+fugitivo,--quella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo
+como que desabrochava as divinas graas triumphaes em gentis
+florescencias de invejavel juventude pujante!
+
+As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse
+enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seduces capitosas
+de to bello rostinho!..
+
+
+II
+
+Mas anoitecra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos
+jasmineiros rescendentes maior escurido communicava parte do jardim
+onde haviamos feito pazes, aps o intemerato roubo de um beijo colhido
+nos rubros labios mdidos da minha pequenina amante fascinadora.
+
+Um silencio embaraador enleiava-nos em tbia indeciso. A loira
+cabecinha d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos
+anneis undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das
+correctissimas espaduas.
+
+E uma tentao chegou-me a sbitas, sob a latada que abrigava-nos com
+seus rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio
+enleiando-nos embaraadoramente em tbia indeciso.
+
+J tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descanar-me
+no hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia
+assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,--um fugitivo
+beijo pequenino e casto,--nos humidos labios da minha gentil e tentadora
+amante.
+
+Ella, porm, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida.
+Uma das mos subiu-lhe clere altura da cabea, ameaadoramente. Bateu
+o psinho, n'uma expanso de enfado incipiente....
+
+--Se reincidir, no perdo mais!--exclamou, avisando-me, com a voz ainda
+repassada de toda a indolente volpia de pouco antes e fugiu-me das mos
+extendidas nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso
+que me concedeu, emquanto descanava a fronte no meu hombro, com os
+formosos anneis da adoravel cabecinha louca undiflavando-se-lhe
+tranquillos pelas correctssimas espduas.
+
+Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio
+escurido, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas aps o roubo
+de um beijo,--do primeiro beijo, pequenino e casto,--aos ardentes labios
+mdidos da minha bemdita virgem.
+
+E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um
+recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em
+face do capricho d'aquella pequenina cabea loira, de triumphantes
+graas capitosas, que s admittira e perdoara o meu primeiro
+atrevimento... ainda to innocente e retrahido!...
+
+
+
+
+O preo das pazes
+
+ A J. A. Pinto Barbosa
+
+
+I
+
+O meu amigo Ernesto accendra um charuto, concertra o _pince-nes_ sobre
+o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona,
+muito ffa, em que estava sentado deante de mim e comeou:
+
+
+--Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, mesa, sem
+poder contar-t'o inteiro, pela importuna presena d'aquellas senhoras.
+
+Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e
+mais divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo
+dotado de umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena,
+avelludada; olhos negros e brilhantssimos,--como duas caoilas de
+mysteriosos philtros embriagadores;--cabellos muito pretos e ondeados,
+rescendentes a ba olencia de selvtica baunilha; um donaire, uma
+soberania inteira de magestoso porte e fidalga apresentao captivante,
+capaz de enleiar-nos em toda a srie de crimes que ao humano pensamento
+ dado formular em dias de trvas reflexes e sinistras ebriedades
+peccaminosas: uma revelao pasmosa, um exemplar perfeitssimo da
+mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archtypo da elevao dos dotes,
+a civilisada manifestao das nossas lendrias yras amazonicas! E, a
+par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustrao perfeita de
+erudita, conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvssimos,
+pequeninos e eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite,
+engastados em formoso coral, brilhante como os rseos labios humidos da
+microscpica boquinha sombreada d'um leve buo,--o complemento da
+seduco, o requinte da tentadora volupia d'aquelle delicioso ser.
+Imaginaste? Pois bem; assim era a Marcas, a esposa do altivo general
+Bandeira, velho quinquagenario d'elevada riqueza materialisada em
+appetitosas centenas de contos de ris, depositados nos principaes
+bancos do Brazil.
+
+Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a
+azulada fumaa d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no
+espao, como poderia amal-a o esposo, vendo-a to nova, a seu lado, toda
+entregue a seu amor,--desde os timidos beijos assustadios
+repentinamente dados, s vezes, no vo de qualquer janella dos aposentos
+desertos de enfadonhas testemunhas, at ao completo desnuamento
+arrepiado e perfumoso, muito encolhido e clido, que apresentava-lhe na
+mysteriosa liberdade pacifica da recatada alcva, alta noite, com a sua
+elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre neves de rendas,
+diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.
+
+Uma fascinao, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos
+caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a
+todos os sacrificios para conquistar uma estima fora de constantes
+provas de louvavel desinteresse.
+
+Confesso no ter ainda visto a repetio d'aquella invejavel existencia
+d'affectuoso enlevo,--elle no declinar da vida, ella em toda a
+maravilhosa florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas
+inteiras a contemplal-os, absorto na admirao d'essa alheia felicidade
+que fazia-me venturoso,--tanto certo que uma perfeita harmonia de
+suave existencia rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de
+si um como jubiloso transbordamento do seu excesso.
+
+Muitos annos haviam j passado, desde que o matrimonio os uniu, quando
+Marcas fizra o seu decimo quinto anniversario,--e nem um s instante o
+arrependimento lhes chegra de se terem para sempre ligado por um
+prematuro enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel
+reproduco do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da
+discreta alcva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o
+amoravel tratamento de esposo.
+
+Verdadeiramente admiravel, no achas?
+
+
+II
+
+Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposio fluctuou,
+soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla
+felicidade jubilosa de ambos.
+
+Foi uma verdadeira desgraa suscitada por um capricho desarrazoado da
+formosa mulher do general. Elle tivera o arrojo de negar-se,--pela
+primeira vez, certo,--a satisfazel-o, e a Marcas soffrera em cheio no
+corao a dureza da spera repulsa. Longos fios d'interminaveis lgrymas
+deslisaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os
+com fora, circulando-os das roxas manchas tristonhas que tm os
+infelizes habituados ao pranto.
+
+Mas esta manifestao de fraqueza apenas algumas horas durou,--emquanto
+o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos
+desmarcados o soalho, j meio arrependido da quasi brutal violencia com
+que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.
+
+Depois veiu a reaco, em seguida crise hysterica dos abundantes
+prantos silenciosos. Uns assomos de magestosa indignao, muito
+concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente
+duros meios de infligir ao marido memoraveis ensinamentos de justas
+represalias.
+
+E a Marcas prometteu elevar-se acima de si propria, ser to rispida
+como brutal havia sido o incivil do general.
+
+Ai, meu caro amigo! Foi severa a lico! O pobre general Bandeira mais
+d'uma vez sentiu-a espicaando-o, quando o despeito da Marcas, ao fim
+da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho em seu
+quarto,--n'uma triste solido de viuvez frigidissima...
+
+Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com
+valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sr. Seria possivel que no
+tivesse a fora de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto
+temiam os paraguayos, annos antes, nas selvticas solides onde o nosso
+exercito ferira to sanguinolentos combates contra as guerrilhas do
+valente Lopez?
+
+Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resolues enfraqueceram, como
+cae uma vla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe
+subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.
+
+O general desejou capitular, ne extrmo das foras. Um arrependimento,
+cujo peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe aps essas
+momentaneas resolues de superiores resistencias... impossiveis
+n'aquelle pobre e velho espirito d'homem tolamente embeiado pelas
+captivantes graas da mulher.
+
+Com effeito, capitulou.
+
+Uma noite, quando os corredores abandonados no repercutiam mais os
+passos das escravas e uma luz baa cava-se pelos fscos vidros de
+lampadas discretas, sau cauteloso da sua alcva e, com o corao a
+pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher.
+
+ porta, parou, indeciso.
+
+Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira
+entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona
+sensualmente esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.
+
+Marcas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na
+simples ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher
+que em nada de mau pensa.
+
+Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava
+dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello
+corpo, feito d'mbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto,
+vaporisando a tpida emanao subtil das suas frescas, rosadas carnes
+bellamente seductoras e deliciosamente juvenis.
+
+Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas,
+afflando precpites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas.
+Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lanou-se-lhe aos ps,
+choroso, supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas,
+impetrando o perdo, solicitando um armistcio, pedindo pazes selladas
+com a ardencia d'uma deliciosa e suprema compensao!
+
+Ella, porm, a Marcas, impassivel e impertubavel--ao tempo que
+envolvia-se toda em fino lenol de transparente cambraia, n'um gracioso
+rubor de impeccavel donzella,--estendeu o brao para a porta e,
+mostrando-lh'a, disse ao general estarrecido:
+
+--Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizr
+apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.
+
+E elle teve de sar,--ao reconhecer a impossibilidade de persistir n'uma
+resistencia, que s poderia ser-lhe prejudicial.
+
+
+III
+
+O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir
+um meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a
+mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o
+salvasse da terribilssima coliso.
+
+Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosssimos: sdas, joias e finas
+pedrarias em todo o Par no houve, que logo as no comprasse
+profusamente, para amimar a caprichosa Marcas, reclusa em forte
+baluarte de duras reservas embaraadoras. Nada conseguia, seno
+augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha
+de enrubecida vergonha, pela capitulao a que estava a sujeitar-se, com
+toda a mesquinhez das pequeninas baixezas.
+
+Um caso fortuito, porm, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento
+pesava-lhe j como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado
+aos hombros desformados de msero ano corrodo por toda a srie das
+enfermidades secretas.
+
+Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fra o general Bandeira convidado
+para examinador de mathematicas, durante os exames da commisso especial
+da delegacia geral da instruco secundaria do municipio da crte,--essa
+creao absorvente e desconchavada, que tira toda a fora autonmica dos
+nossos lyceus provincianos, reduzindo-os s simples e modestas
+propores de insignificantes escholas de primrdios scientificos e
+litterarios, destituidos do mnimo valor perante as academias superiores
+do Imperio...
+
+Mas dispensemos esta tirada pedaggica, meu excellente amigo, e
+continuemos na exposio dos acontecimentos que prometti referir-te.
+
+O general acceitra e convite com extraordinario gaudio do delegado
+especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude
+_catonismo_ do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradies de
+severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia
+marcado, quando--oh! admirao!--appareceu-lhe no quarto a mulher, a
+Marcas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas
+rendas sobre o clo, por cima das mais appeteciveis redondezas trgidas
+que possivel imaginar.
+
+Trmulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto,
+esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e
+enterrou-o desgeitosamente na bocca, em sentido opposto quelle de que
+deveria servir-se para fumar satisfactoriamente.
+
+O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que
+estabeleceu entre elle e a Marcas uma distancia consideravel.
+
+A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os
+dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a
+necessaria seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o
+espao que approximava-a d'elle.
+
+Depois, disse, estendendo-lhe um carto de visita:
+
+--Ve hoje examinar mathematicas, general?
+
+--Vou... sim...
+
+--Pois ento, este moo ir fazer exame por mim...
+
+--?...
+
+--Ouviu...?
+
+--Sim.
+
+--Veja l como se porta. As mathematicas no so o _meu_ forte. _Eu_ no
+estou muito _habilitada_.
+
+E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assdio,
+por similhante reclamao de um escandalo impossivel sua severidade, a
+bella Marcas fugiu a correr nos bicos dos ps, arrastando a cauda do
+penteador, diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas,
+essencias boas e rijas carnes femins e jovens.
+
+
+IV
+
+Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o carto que lhe
+entregara a mulher:
+
+_Antonio da Silva Larangeira_
+
+Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira.
+Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos
+quirir, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriaes na
+derme. Que era elle proprio, sim senhor. E uma vz fanhosa, cheia de
+bajulaes servilssimas, resmoneou a pequena phrase affirmativa,
+solicitando ali, em sua exaggerada affabilidade, a complacencia do
+examinador.
+
+O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoo, mal
+resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que
+tivra o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marcas, para induzil-o ao
+crime d'uma indignidade--arrastal-o a quebrar os seus votos de severa
+justia de indomavel rispidez com os estudantes.
+
+D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova
+escripta no poderia ser peor. Escusado dizer-te que o pequeno
+espesinhou a sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante.
+Como, porm, desempenhava ali as altas funces de representar a bella
+Marcas, falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito
+empenhou-se para que a indulgencia dos demais examinadores salvasse da
+guilhotina o infeliz.
+
+Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando
+appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente a gratos perfumes
+finssimos, _Couro da Russia_, e _jasmim do Cabo_.
+
+--Ento?--perguntou ella meio-rindo.
+
+--Approvado, affirmou o general deixando pender a cabea,
+desfallecido,--talvez envergonhado da sua fraqueza, crando porventura
+de no haver opposto resistencia tentao.
+
+--Oh! bello! bello!--gritou a Marcas, lanando-se-lhe ao pescoo,
+beijando-o com frenesi, apresentando-lhe flor do rosto-- ponta do
+nariz--os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das
+rendas que ornavam o penteador sobre o peito.
+
+Elle abriu os braos, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande
+amplexo nervoso--a manifestao penultima do seu intensssimo desejo de
+reconciliar-se com a mulher.
+
+Ella impellia-o, devagarinho porm incessantemente, para o sof
+perfilado junto secretria do general, acarinhando-o com o olhar, com
+a voz, com os labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.
+
+Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel,
+silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas
+grossas lgrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.
+
+--Que tens? inquiriu ella, assustada, beijando-o sobre uma orelha,
+amimada e tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcssima
+harmonia.
+
+--Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escandalo,
+aquella approvao!
+
+--Ah! volveu ella, abraando-o com fora, reconquistando-o,
+reconduzindo-o para o sof, espiritualisada de prazer, sorrindo
+extranhamente.
+
+E aps um instante empregado em oscular a fronte encanecida do
+esposo,--cando ambos para o sof hospitaleiro--murmurou-lhe ao ouvido,
+entre um _rugeruge_ de roupas:
+
+--O que bom custa caro!
+
+
+
+
+Historia incongruente
+
+ Ao dr. Franklin Tavora
+
+
+I
+
+Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel
+Fonseca.
+
+A paizagem alegre que cercava a fazenda j no tinha o poder de
+evocar-lhe aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que
+todas as manhs saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.
+
+As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transio
+subita no animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, hora da
+sesta no traziam nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem
+causa apparente. Todas as interrogaces, que os olhares apresentavam,
+iam embotar-se na fria reserva do ancio, que persistia n'um silencio
+desanimador.
+
+E no havia razo para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a
+fazenda progredia, graas ao magnifico tempo que, havia dois annos,
+reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com
+disposio para o trabalho.
+
+O Thiago, filho unico do coronel, no reparara ainda n'aquellas
+concentraes do pae. Vivia todo entregue a uma paixo to ardente como
+sincera, para ligar atteno a qualquer coisa que se passasse em outra
+parte que no fosse no proprio corao.
+
+E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir
+villa proxima, bem merecia aquella dedicao egoistica, porm desculpavel.
+
+Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma
+honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a
+cuidar dos irmosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a
+apaparical-os, a rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo
+bem-estar physico do todos aquelles pequeninos sres a ella confiados
+pela me, na occasio de morrer.
+
+Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo
+que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.
+
+ certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia
+para dia mais se ligava de amizade _Venancia da villa_, como
+rapariga chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da _maqueira_ do
+coronel, quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia
+muitas vezes ouvil-o pronunciar estas palavras:--" impossivel
+similhante casamento!"
+
+
+II
+
+Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao
+seu correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que
+necessitava falar-lhe com urgencia.
+
+O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se d'um
+assumpto ao qual elle fugia ha muito tempo.
+
+Foi a fazer um violento esforo sobre si mesmo que murmurou:
+
+--Fala quando quizeres.
+
+Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.
+
+O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma
+expresso de curiosidade e pavr. Tremia ligeiramente, com os nervos
+todos irritados.
+
+--O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.
+
+No entanto, Thiago enxugava o pescoo com o leno e comeava em seguida:
+
+--Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe importante de
+mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios.
+Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual ser a resposta
+de meu pae.--Desejo casar-me.
+
+Conteve o coronel um gesto de indignao e disse, mostrando indifferena.
+
+--Pois casa-te, rapaz. Eu no me opponho.... Contanto que seja a moa
+escolhida merecedora de ser tua mulher....
+
+--Oh! se tal a condio que apresenta, posso affianar-lhe que
+brevemente me casarei. Ba e sria, meiga e honesta, trabalhadora e
+cheia de dedicao, creio que poucas moas como ella encontrei no Par
+durante os seis annos que l estive a estudar no seminario e no lyceu.
+
+--Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes
+dres nas fontes, com o corao accelerado, porm a affectar
+tranquillidade.--Mas ento quem a rapariga?
+
+Thiago sorriu indizivelmente,--com uma beatifica expresso de
+intensssima felicidade no semblante, e exclamou:
+
+-- a _Venancia da villa_, a minha querida Venancia!
+
+O velho ergueu-se impellido pela commoo. Suppondo tal aco um meio de
+que o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago
+ergueu-se tambem e correu a abraal-o.
+
+Mas o velho, fazendo um lento signal com o brao estendido,
+paralysou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:
+
+--Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores
+com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecers um dia,
+impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de
+oppr-me a elles desassombradamente. Fing ignorar tudo, na esperana de
+que os annos lanassem o tdio sobre as vossas almas captivas uma da
+outra por aquillo que eu pensava ser o enthusiasmo pela novidade. Com
+immensa dr verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel tua palavra,
+do mesmo modo por que Venancia o foi sua. Isto seria uma grande
+felicidade se no fosse uma enorme desgraa. Quer dizer, seria um
+apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da tua paixo
+fosse qualquer outra mulher, que no a Venancia..... Olha, Thiago, sem
+procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me
+fra a magoar-te o corao, esquece essa rapariga, deixa de visital-a,
+ausenta-te de Maraj, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou
+para qualquer cidade longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma
+mulher a quem possas offerecer a mo....
+
+--Mas porqu, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o corao
+oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras
+do pae minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido
+com um profundo amor expurgado de malicia.
+
+--Porque assim necessario,--redarguiu o velho, n'uma vehemencia de
+gesto e de entonao.
+
+--Pois fique sabendo que, se no explicar satisfactoriamente a causa de
+similhante opposio, s tomarei as suas palavras como originarias d'uma
+razo que a edade torna vacillante e digna de piedade!--bradou Thiago j
+fra de si, ferido n'essa grande poro de egoismo que todo o homem tem
+comsigo.
+
+--Ingrato, murmurou o velho, deixando-se car sentado e chorando
+copiosamente.--Pois assiste morte do teu corao, visto assim o
+desejares: ouve-me!
+
+Pela janella aberta, via-se o vastssimo campo do lado oeste da fazenda,
+coberto d'uma vegetao uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos
+saltavam s cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos,
+pastavam tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as
+longas caudas n'um compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro
+preto, perfilado e srio, olhava para a linha escura do horisonte,
+entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexivel lingua
+cr de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado d'erva scca e de
+excremento de boi subia at ao quarto. Vaqueiros zangarreavam n'umas
+flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamoseiro.
+Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com essas
+faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espao em propagaes suaves
+que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil
+de extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito
+distante sobre o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite,
+magestosa e tranquilla em sua imponencia seductora.
+
+O velho enxugou as lgrymas e comeou a falar.
+
+
+III
+
+--Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa me nos faltou. At
+agora no sei como possivel me foi resistir a essa desgraa, que eu a
+principio reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei
+encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber
+ninguem, apenas gozando em tuas innocentes caricias um pallido reflexo
+d'aquelles grandes affagos que a tua idolatrada me fazia-me
+constantemente. Passados esses tres annos, comprehendi que o teu futuro
+exigia-me impozesse silencio minha dr, e cuidasse de nossos bens,
+para dar-te uma ba educao e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro
+de uma riqueza sufficiente tua manuteno. Sa, pois, do quarto,
+pedindo mentalmente alma de tua me tomasse este sacrificio como feito
+por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus
+exigiam que eu fizesse frequentes viagens villa, onde, ha vinte e tres
+annos, isto , quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora
+amazonense, mulher d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador
+da villa. Essa senhora era o retrato vivo de tua me. Por um phenomeno
+de impressionismo,--sem o querer, sem o sentir--fui-me enlevando das
+graas d'ella, at chegar ao ponto de pensar que tua ba me tornra
+vida e volvra a amar-me como d'antes!
+
+Quando eu ia villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro.
+Tal convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em
+grande paixo, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves
+faziam com que o marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa,
+deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de
+communicar-te que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos
+mareados de lgrymas, a arfar do peito e a contrahir o rosto n'uma
+visivel agonia causada pelos remorsos.
+
+--Emfim,--disse com energia e, desta feita, dando expanso ao pranto,--o
+resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixo, foi o
+nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser
+sua filha....
+
+--E essa menina ... Ve..nan..cia?--inquiriu Thiago com os olhos
+arregalados, os cabellos crispados, as mos fechadas fortemente,
+sentindo fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoo.
+
+--Sim, Thiago, sim, Venancia, fructo da minha infamia, a filha do
+crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel que no soube
+resistir minha tentao! Venancia, a mulher com quem te queres unir
+pelo.... casa...mento! tua irm, insensato!...
+
+E cau redondamente para traz, agitado nas convulses da gotta, da sua
+molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rde de
+maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma
+vida que d'ahi em deante s poderia ser de tormentos e angustias
+indiziveis.
+
+
+
+
+A lico de "Paleographo"
+
+ A Heliodoro de Brito
+
+
+I
+
+A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma
+confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trdas amarguras do largo e
+profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantssimo corao de
+me.--O commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a
+Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua
+resoluo de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a
+mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas
+d'aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem.
+
+E ella, a me extremosa, que s vivia do tenro affecto suavssimo da
+filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro,--no obstante a
+bondade com que era tratada por todos,--teria de ficar no Par, separada
+do pequenino ente que deslaava-lhe o espirito em fulgidas chimras de
+loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia!
+
+Uma dr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora
+privados de lgrymas sob o ltego inclemente do seu primeiro senhor,
+antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto
+silencioso por toda a noite passada em claro aps a declarao ouvida
+pela manh.
+
+S a lembrana de to rude separao fazia-a soffrer tanto; o que no
+seria a crua realidade?
+
+Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluando a furto, no dia
+seguinte,--com os olhos, mudamente cheios de qurulas expresses, fitos
+na rapariguinha,--acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de
+benevolencias, consolou-a a meio.
+
+--Que se no affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a
+familia, d'ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia
+trazer-lh'a instruida, educada, elegante e feliz,--uma verdadeira
+senhora. At ella, Josepha, se arrependeria ento da sua tolice actual,
+porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe filha.
+Pois no era certo que todos ali tratavam-n'as to bem, me e filha
+e que esta era tida menos como uma _ingnua_ do que como se, realmente,
+fosse originaria do casamento d'elle commendador com sua esposa?
+Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com
+exuberancia a justeza do seu proceder.
+
+Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava.
+Eliminal-a, porm, d'alma, era impossivel, que no pde um corao de
+me deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestaes,
+lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos
+frmitos delirantes da mais intensa dr.
+
+
+II
+
+A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a
+pequena Isaura.
+
+Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas
+afflices, no pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as
+outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de
+tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes
+do horisonte limitado uma viso, s para ella creada, a attrair-lhe
+poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as foras vivas do espirito
+e da razo.
+
+Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a s
+pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expresso
+do rosto, como quem est acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.
+
+O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta.
+Bateu desusadamente o corao da preta. Aquelle papel no poderia ser
+seno da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao
+socio, pedia-lhe sempre informasse Josepha estar a filha d'esta com
+saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a
+carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que
+sorria-lhe docemente, compadecidamente.
+
+--Anda, vae, disse elle; uma carta de tua filha.... escripta por ella
+propria.
+
+Escorreram lgrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim
+dava-lhe precipitados pulos ao corao. Conservou-se, todavia, immovel
+deante do _branco_, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma
+coisa.
+
+Elle pareceu comprehendel-a:
+
+--Queres que a leia?
+
+--Sim, sinh, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e
+preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos
+sentidos, a divina musica ignorada das dces palavras escriptas pela mo
+infantil da filha.
+
+O socio do Castro leu:
+
+
+ MINHA QUERIDA ME,
+
+Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe
+envio milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho
+escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da
+minha santa me e o grande desejo que sinto de estudar muito, para
+voltar depressa para onde est a mesinha do meu corao. Ante-hontem
+fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d'ouro,
+dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa me.
+Tenho passeado muito e gostado immenso d'esta bella cidade, onde o meu
+prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha.
+
+Abene-me e receba mil beijos que lhe envia
+
+
+ ISAURA.
+
+Paris, 30 de dezembro de 1887.
+
+
+Josepha chorava, soluando, quando ouviu o nome que rematava a
+carta,--simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras,
+comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.
+
+
+III
+
+Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Par tinham festiva apparencia,
+transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira
+a escravido no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes
+girandolas de foguetes e o cco ingente de milhares de vozes bramindo
+enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo.
+Galhardetes e cortos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam
+no espao alegres harmonias de clidos hymnos excitantes.
+
+Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os
+pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral
+regosijo.
+
+Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento
+publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para
+todos os lados, temendo fossem surprehendel-a.
+
+Quando teve a certeza de estar bem s, esboou nos roxos labios um
+sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho _Paleographo_,
+abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida:
+
+--Vamo' estud a lico. Nh Manduca, disse que p'r' mez que vem j
+posso l a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?
+
+E curvou a cabea para o livro, na obstinao das grandes vontades
+vencedoras.
+
+
+
+
+Ao soprar vla
+
+ Ao Sr. Jos Feij d'Albuquerque
+
+
+I
+
+s 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar
+alegremente, recebel-o porta da varanda, arrastando a longa cauda
+rendada do penteador de cambraia branca.
+
+Quanto se demorra elle! .... Porque no voltou mais cedo? A sua
+Candinha j sentia tantas saudades!.... Elle no imaginava o que era
+estar uma pobre mulher mettida em casa, durante uma tarde inteira, sem
+ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!....
+
+E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafuns pelo alto da cabea,
+causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriando-lhe os
+cabellos dos braos e pernas.
+
+Que no podera vir mais depressa,--objectava o marido, sentando-se n'uma
+poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de
+concupiscencia para a mulher.--Bem esforos fizera, mas inutilmente.
+Encontrara-os a jantar, ainda no comeo; teve de esperar no jardim por
+espao de meia hora, brincando com as creanas, para entreter-se. Os
+pequenos so altamente endiabrados: sujaram-lhe as calas brancas com as
+mos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins
+e mulher.
+
+--E acceitaram?--interrogou a Candida, saltando para as pernas do
+marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se
+graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.
+
+--Qual! Responderam-me que no cediam a escrava por dinheiro algum,
+maxim sabendo que ns a desejavamos para a libertar. Aquella gente est
+cada vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que
+seja o dia de teus annos digna e liberalmente solennisado por mim.
+Continuemos, porm. Estava eu disposto a sar, bem arrufado com o dr.
+Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquelle sujeito
+vermelhudo, cuja cabea est mais limpa de cabellos que os teus joelhos....
+
+--Deixa-te de tolices....
+
+--Agarraram-me para um solo manhoso, que durou at agora, e isso mesmo
+porque levantei-me e sa viva fora!.... Agora,--concluiu
+sorrindo,--aqui tem voc o seu Roberto, cheio d'amor e paixo, disposto
+a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a
+querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!..
+
+Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos
+n'uma vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus
+labios frescos e perfumados d'esse olr exquisito e bom, peculiar s
+mulheres que se tratam.
+
+Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera porta que dava para
+o corredor o moleque Euzebio, com o bule de ch....
+
+
+II
+
+Depois do ch, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e,
+accommodando-se n'uma grande _voltaire_, poz-se a ler. Ficou a Candida
+defronte d'elle, a miral-o.
+
+Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois
+bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os
+cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes
+descanando nas palmas das mos, Candida continuava a olhar para o
+marido com uma expresso extranha, suave, repassada de ternuras
+dulcssimas.
+
+Parecia lanada contemplao da propria felicidade. Era justamente
+aquillo que, annos antes, phantasira a sua sonhadora imaginao de
+burguezinha estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacvios:
+viver honesta ao p de um marido bonito e de bom corao; estar sempre
+junto d'elle, para o consolar em todos os desgostos, rir com elle nas
+horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irreprehensivel e,
+sobretudo, contemplal-o a todo instante, silenciosa, longamente,
+envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu enlanguescido olhar de
+creoula amoravel! Nunca sentira-se to feliz como depois de seu
+casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma s contrariedade
+tivera aps aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do
+noivo no silencio de uma discreta alcva toda cheia de flres, rendas,
+fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha
+infantilidade no ficou, na manh immediata, quando leu no _Diario de
+Noticias_ as linhas seguintes, que decorou fora de as repetir
+baixinho?--"Uniram-se hontem noite em matrimonio, na egreja de
+Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado commerciante da nossa
+praa, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha do nosso amigo
+sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadssimo. Foram padrinhos os
+srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendona e suas exmas. consortes. Aos
+jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das
+felicidades a que tm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar
+em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidssima
+pela lembrana de que, quella hora, a cidade inteira estava sabedora da
+realisao de seus intimos desejos de moa apaixonada!.... D'ahi em
+deante comearam a viver como dois anjinhos, como ella queria. Roberto
+era sempre de uma delicadeza affectuosa e sria para com a sua Candinha,
+que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo seu poder, para
+tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que duas
+pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas _por d
+c aquella palha_... Entretanto, assim acontecia s vezes. Ahi estava,
+mesmo no Par, a d. Clotilde que, no dizer das ms linguas, era uma
+jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era
+outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao
+domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dr de corao! Mas com
+ella assim no succedia, graas a Deus! O Roberto era pontual como um
+cobrador hora de recolher ao lar: s 5 da tarde mandava fechar o
+armazem, tomava o _bond_ e vinha logo para junto d'ella, de onde no se
+arredava seno ao outro dia pela manh, afim de ir novamente para o
+trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ella
+conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudana futura.
+Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beios, com a
+importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se
+necessario contar-lhe tudo... Porm como? A vergonha apertava-lhe a
+garganta assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria,
+estava resolvida! Quando? agora?--Agora no; deixal-o com a leitura, que
+est to entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como
+ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que
+era to lindo, to bom, to amado!....
+
+Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo
+apaixonado.
+
+
+III
+
+De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do
+charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida,
+a Candida pendia para o peito a formosa cabea, disfarava fingindo ler
+n'um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o
+marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu
+ardente olhar, como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixo.
+
+Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.
+
+--Vamos dormir?--propoz.
+
+Candida estremeceu e levantou-se.
+
+O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.
+
+No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcva. Em cima do
+velador, uma vla cr de rosa ardia n'um castialzinho de porcellana de
+Svres com pinturas allegoricas de Amores alados e Chimras volitantes.
+No centro, uma _causeuse_ de setim azul estava cheia de laos, corpinhos
+de renda, brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente
+dissymtrico. Vidros de perfumarias com rlhas de crystal reluziam em
+cima do toucador de jacarand, lanavam scintillaes cambiantes ao
+espelho inteirio do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das
+paredes lateraes.
+
+Ao fundo erguia-se a cama,--pudicamente occulta entre as rugas de um
+cortinado de labyrintho finssimo, suspenso do tecto por uma passadeira
+doirada.
+
+Levantava-se d'aquella cama um qu de evaporao de felicidade
+inenarravel, que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos
+do olfacto e da vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de
+seu amor, do altar de sua existencia feliz e encantadora. Para Candida,
+sobretudo, ella tinha uma importancia transcendental: evocava-lhe uma
+recordao agri-dce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove
+mezes de agradabilssima co-habitao conjugal....
+
+ ----
+
+Quando iam deitar-se, Candida enlaou a cabea do marido com os braos
+descobertos,--mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de
+cambraia enfeitada de rendas do Cear.
+
+Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos effluvios,--essas
+queridas exhalaes de mulher amada,--n'um enlanguescimento concupiscente.
+
+--Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posio, beijando-o na
+testa.--Quero dar-te uma noticia muito ba....
+
+--Qual ?--perguntou Roberto estreitando-a nos braos.
+
+--Tenho tanta vergonha!....
+
+Esta exclamao pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do
+marido e dando um pulo para o leito.
+
+--Anda, fala, menina, que tolice essa?
+
+--Ento apaga a luz, primeiro; pde ser que s escuras eu me sinta mais
+animosa! ....
+
+Roberto soprou a luz da vla e disse deitando-se:
+
+--Agora....
+
+Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com
+as pontas dos frios dedos trmulos. Depois, a subitas:
+
+-- que,--murmurou com umas brgeiras risadinhas reprimidas,-- que
+eu.... estou grvida!
+
+Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,--o
+beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vr
+convertido em realidade o seu mais persistente anhelo,--respondeu
+quella confisso prazenteira, na propicia escuridade da alcva
+matrimonial....
+
+
+
+
+No baile do commendador
+
+ Ao sr. Ulderico Souza
+
+
+Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!
+
+E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro
+sorriso, com as rendas finssimas do seu leque amarello-canario, de
+varetas de madreperola.
+
+--E porque, no me dir? insistiu o doutor Machado, debruado sobre a
+cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um
+ardente olhar vibrado atravez o crystal do monculo petulante.
+
+--Porque--?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a
+fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro
+esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida uma boa
+mestra, doutor, e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!
+
+--Apezar de ser to nova assim?
+
+--A vida no escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabea
+encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moos d, por vezes,
+preferencia, como compensando-os de no terem o discernimento preciso
+para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.
+
+--Mas-- maravilhoso tudo quanto esto a dizer-me os seus divinos labios
+com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se j no
+sentisse por sua pessa--e pelo seu espirito--este indomavel affecto de
+que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora--e bem
+profundamente!--depois de ouvir-lhe to razoaveis e inesperados conceitos.
+
+--Devras?
+
+--Por certo.
+
+--Oh! muito amavel....
+
+--Digo a verdade.
+
+--E, todavia, continuo a descrr...
+
+--Faz muito mal!
+
+--Porqu?
+
+--Ah! j faz perguntas?--Porque quem confessa descrena em similhante
+assumpto, deseja crr, ou, pelo menos, no quer descrr...
+
+--O que redunda no mesmo. Errou, porm, estabelecendo at mim a regra
+geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convena-se.
+O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lies
+bem rispidas tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das
+suas opinies, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illuses
+phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jmais poderei tomar ao
+srio as banalidades da confisso que me cantou ha instantes o seu
+lyrismo? Estar o sr., effectivamente, to enamorado de si mesmo, que se
+julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razo, doutor!
+
+--Como cruel, minha senhora!
+
+--No sou cruel, no, cavalheiro: sou justa apenas. E porque
+sympathisei inexplicavelmente com o sr., que desejo trabalhar para
+extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o
+sentimento.--Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?
+
+--Ora essa! Porque no?...
+
+--Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... pedantismo.
+
+--Como diz?
+
+--Oua bem: o--seu--illimitado--pedantismo.
+
+--E.... mas....
+
+--Olhe, sente-se aqui, a meu lado--Assim. Conversaremos com
+tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as
+attenes da sala. Escute-me.
+
+ ----
+
+Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creana insignificante.
+Seriam nove noras da noite. A chuva caa sem parar desde que anoitecra;
+uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz
+oscillante do gaz. Estavamos ao sero, reunidos na varanda, umas dez
+pessoas: eu, minhas duas irms, algumas escravas, e uma preta velha,
+muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos
+sertes africanos para transplantar no Brazil.
+
+Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irms
+brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da
+qual trabalhavam as escravas.
+
+De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e ns interrompemos
+o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeas, detinham no
+ar a mo que empunhava a agulha, ou descanavam cautelosas os bilros
+sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.
+
+A velha Eufrasia annuncira que ia contar uma historia da _cabanagem_, o
+que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta
+tranquillidade. Porque, fique desde j sabendo, a Eufrasia era
+auctoridade na materia! A sua narrao tinha alguma coisa de lugubre, de
+compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na
+concatenao dos factos e na flagrancia da nota, ou pica ou buclica,
+de que pretendia occupar a atteno dos ouvintes.
+
+Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma
+fulgurao estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos
+tempos de que ella ia tratar.
+
+Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel
+obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas,--a ba preta comeou
+a referir a pequena historia que passarei a expr sua attenta bondade,
+succintamente, para o no enfastiar com imprudentes delongas.
+
+ ----
+
+Da outra banda do rio, margem esquerda d'este mesmo Guajar que rla
+suas turbidas aguas aos ps de Belm, uma roa havia, n'aquelle
+tempo,--em 1835,--que era o abrigo d'uma simples familia de modestos
+caboclos agricultores: pae, me e um filho, rapaz esbelto, no pleno
+vigor d'uns 20 annos sados e bem desenvolvidos.
+
+Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua
+simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roa
+era a mais afamada na praa de Belm e a seriedade com que tratavam
+negocios tinha-lhes aberto largo crdito em casa do seu correspondente
+na cidade.
+
+O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga
+da margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro roa.
+Pelo So Joo deveriam vir capital da provincia, effectivar perante um
+padre a mais persistente aspirao que em peitos amazonicos jmais
+palpitou e que dava-lhes, na sua s lembrana, uma como ebriedade
+olympica de soberanas venturas transcendentes.
+
+Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo
+rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado
+ pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves
+transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas
+falas singellas e apaixonadas.
+
+Horas inteiras, de intensssimo contentamento, eram as que passava ao
+lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha
+existencia por vir, quando, a ss no copiar, de mos entrelaadas e o
+olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras
+do fundo, compraziam-se em acastellar illuses, n'umas inflorescencias
+de amplas phantasias admiraveis.
+
+Similhante existencia, parecia abenoal-a o ceu, na sua clemente bondade
+rejubilada pelo edificante espectaculo de to acrisolada paixo.
+
+Mas houve um dia em que a sorte,--sempre inclemente e cynica,
+doutor!--pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito
+d'aquella invejavel bonana de duas vidas felicssimas.
+
+A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas
+dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roas, buscando e
+fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais
+ousada barbaridade.
+
+Em taes condies, a casa dos paes de Thomazia no poderia escapar
+visita dos desalmados. Esta foi subjeitada mais torpe violencia que se
+pde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem
+querido dissuadil-os da infamia,--aps assistirem perpetrao
+selvtica do attentado sem nome, soffreram inermes a pena ultima,
+dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira!
+
+Escaparam ao rbido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que
+embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua
+casa haviam presenceado o que passava-se na ra fronteira e nem um s
+momento o rapaz, aquelle mesmo namorado frvido da vespera, sentiu um
+assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva!
+Admire que sinceridade a d'aquella paixo, doutor, dias antes
+apresentada em _labiosas_ florituras de phantasticos arremessos
+idyllicos! Que grande corao, o d'aquelle homem!
+
+Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe
+a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado
+a sua noiva,--sem ir arrebentar os milos de um dos abjectos infames,
+ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa
+dos sicarios!
+
+Annos depois, quando estabelecera-se a pacificao na provincia, a
+Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na
+companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas
+materialisaes soezes e gordurosas.
+
+Ainda podia rir, ainda tinha canes para zangarrear ao som do cavaquinho!
+
+L defronte, porm, a roa, to florescente d'antes, convertera-se em
+mattagal e a infeliz Thomazia,--apatetada e envelhecida, coberta de
+andrajos e chorosa,--tinha simplesmente, como testemunha da sua
+desgraa, uma creana inconsciente, um filho que dentro d'ella semera a
+hedionda selvageria dos revoltosos.
+
+ * * * * *
+
+Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de
+emoo, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o
+rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario,
+agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora,
+perguntou sorrindo ironica:
+
+--E cr, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um s homem
+sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas
+palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?
+
+
+
+
+NOTAS
+
+
+A CONVALESCENTE.--Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino
+_croquis_ ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s.
+s. levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu
+respeito externadas por mim n'um estudo critico das _Primeiras Rimas_,
+de Joo do Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremdo aggressivo, todo
+pessoal e rancoroso.
+
+No quiz, ento, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em
+uma das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade,
+apresento-a tal qual m'a deu o prlo, antes do inesperado desabrimento
+de s. s.
+
+
+QUE BOM MARIDO!--Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o _Diario
+de Belm_, declarando-o immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo
+entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura
+davam-lhe ensejo de estampar as _moralssimas_ "grivoiseries" de Catulle
+Mends... o caso mais flagrantemente pfio de criterio e coherencia
+que tenho conhecido!
+
+No dia seguinte, _A Provincia do Par_ publicava esse trabalho.
+
+
+HISTORIA INCONGRUENTE.--Foi publicada n'_A Arena_ essa narrao, em
+1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de
+dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira
+carta muito affectuosa e benevolente.
+
+
+
+
+INDICE
+
+ PAGINAS
+
+ ALEGRIA GAULEZA 10
+
+ A CONVALESCENTE 21
+
+ DESILLUSO 23
+
+ A "SERENATA" DE SCHUBERT 33
+
+ QUE BOM MARIDO! 45
+
+ NOITE DE FINADOS 55
+
+ RIO ABAIXO 61
+
+ AO DESPERTAR 69
+
+ POEMETOS EM PROSA:
+
+ I--_Bidinha_ 81
+
+ II--_Paraphrase ossianica_ 84
+
+ III--_O parocho da aldeia_ 86
+
+ IV--_Ao sol_ 89
+
+ V--_Remember_ 91
+
+ O PREO DAS PAZES 95
+
+ HISTORIA INCONGRUENTE 109
+
+ A LICO DE "PALEOGRAPHO" 119
+
+ AO SOPRAR VLA 127
+
+ NO BAILE DO COMMENDADOR 137
+
+ NOTAS 147
+
+
+
+
+ERRATAS
+
+Os mais notaveis erros so es seguintes:
+
+Pags. Linha Erro Emenda
+
+61 5 caximbo cachimbo
+
+93 15 embaraadoramente enleiando-nos
+ enleiando-nos embaraadoramente
+
+93 33 estendidas extendidas
+
+107 33 inqueriu inquiriu
+
+114 29 vacillanto vacillante
+
+
+
+
+
+
+
+
+
+BREVEMENTE
+
+ser dado estampa o novo romance de Marques de Carvalho
+
+SOROR MARIANA
+
+Grande tla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relvo a um
+dos mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formar um forte
+volume de de 300 paginas impressas a capricho.
+
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES ***
+
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+
+
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+works. See paragraph 1.E below.
+
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
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+
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+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
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+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
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+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
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+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
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+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
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+status with the IRS.
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+where we have not received written confirmation of compliance. To
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+
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+works.
+
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+
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+
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@@ -0,0 +1,3584 @@
+<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN">
+<html lang="pt">
+<head>
+ <title>Contos Paraenses, por J. Marques de Carvalho</title>
+ <meta name="Author" content="J. Marques de Carvalho">
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+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Contos Paraenses
+
+Author: Joo Marques de Carvalho
+
+Release Date: October 27, 2009 [EBook #30341]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-15
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
+of public domain material from Google Book Search)
+
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+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p>
+
+<p style="font-size: 2em;">CONTOS</p>
+
+<p style="font-size: 2.5em;">PARAENSES</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>PAR</p>
+
+<p>PINTO BARBOSA &amp; C.&mdash;Editores<br>
+<small>Rua 13 de Maio</small><br>
+1889</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_1" name="pg_1">{1}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p style="font-size: 1.2em;">Obras de Marques de Carvalho</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">VI</p>
+
+<p style="font-size: 1.5em;">CONTOS PARAENSES</p>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_2" name="pg_2">{2}</a></span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="margin: 10%; font-size: 0.8em;">
+<p style="text-align:center;">DO MESMO AUCTOR</p>
+
+<p>O S<small>ONHO DO</small> M<small>ONARCHA</small>,&mdash;poemeto, 1886,
+Opusculo </p>
+
+<p>L<small>AVAS</small>, poemeto, 1886, Opusculo</p>
+
+<p>P<small>AULINO DE</small> B<small>RITO</small>, perfil, com
+<em>fac-simile</em> e retrato do biographado, 1887, 1 vol.</p>
+
+<p>H<small>ORTENCIA</small>,&mdash;romance naturalista, 1888, 1 vol.</p>
+
+<p>O L<small>IVRO DE</small> J<small>UDITH</small>,&mdash;versos e contos para
+creanas, 1889, 1 vol</p>
+
+<p style="text-align:center;">A PUBLICAR</p>
+
+<p>H<small>ISTORIAS D'AMOR</small>,&mdash;contos, 1 vol.</p>
+
+<p>S<small>OROR</small> M<small>ARIA</small>,&mdash;romance, 1 vol.</p>
+
+<p>T<small>HEODORICO</small> M<small>AGNO</small>,&mdash;perfil, 1 vol.</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_3" name="pg_3">{3}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.5em;">J. MARQUES DE CARVALHO</p>
+
+<p style="font-size: 2em;">CONTOS PARAENSES</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>PAR</p>
+
+<p>PINTO BARBOSA &amp; C.&mdash;Editores<br>
+<small>Rua 13 de Maio</small><br>
+1889</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_4" name="pg_4">{4}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<hr>
+
+<p style="font-size: 0.8em; text-align: center;">Par&mdash;Typ. dos Editores,
+rua 13 de Maio.&mdash;1889.</p>
+<hr>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_5" name="pg_5">{5}</a></span></p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>A MEU IRMO</p>
+
+<p style="font-size: 1.8em;font-family: serif;">Antonio de Carvalho</p>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_6" name="pg_6">{6}</a><br>
+<a id="pg_7" name="pg_7">{7}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>AO EXM. SR. COMMENDADOR</p>
+
+<p style="font-size: 1.5em;font-family: serif;">Domingos Jos Dias</p>
+
+<p
+style="font-size: 0.8em;font-family: serif; margin-left: 10%;">Reconhecimento,
+Amizade, Venerao.</p>
+</div>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_8" name="pg_8">{8}</a><br>
+<a id="pg_9" name="pg_9">{9}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION001000000">Alegria gauleza</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION001100000">A Jos Verssimo</a> </h3>
+
+<p>Emquanto esperavamos o almoo,&mdash;aquelle almoo s pressas encommendado
+no mais que modesto <em>hotel</em> do Pinheiro, fmos dar um passeio pela
+matta, sob a sombra das grandes arvores copadas.</p>
+
+<p>As senhoras haviam ficado na sala do <em>hotel</em>, aguando o appetite no
+bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.</p>
+
+<p>O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto
+quadrado,<span class="pn"><a id="pg_10" name="pg_10">{10}</a></span> de longas
+suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da America.</p>
+
+<p>Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos
+transportara ao Pinheiro.</p>
+
+<p>Ainda no havia duas horas que nos conheciamos, e j grande familiaridade se
+estabelecera entre ns,&mdash;essa familiaridade facil, intima, passageira, das
+pessoas que viajam.</p>
+
+<p>Estavamos ainda a bordo, e j o meu sympathico companheiro, sentado
+amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia do
+Par, onde tencionava ficar at ao fim da vida.</p>
+
+<p>Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja existencia eu
+ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por motivos que eu no
+tratava de saber, to vivamente me attraa a curiosidade.</p>
+
+<p>Quando saltamos para terra,&mdash;emquanto subiamos pela escada da
+ponte,&mdash;convidei-o para almoar comnosco, e elle acceitara
+rindo,&mdash;com um riso bonacho de quem dotado de alma simples, sem
+duplicidade.</p>
+
+<p>Fra elle quem me propuzra aquella excurso matta, para darmos tempo a
+que o hoteleiro preparasse a refeio, que eu j preva frugal e triste,
+attendendo s condies da terra em que nos achavamos.</p>
+
+<p>Acceitei-lhe de boamente a proposta, com<span class="pn"><a id="pg_11"
+name="pg_11">{11}</a></span> aquella vivacidade alegre de quem vive mezes
+inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos,
+um bello dia para descanar um pouco, em a paz d'uma povoao de arrabalde,
+refestelando-se preguiosamente na relva odorfera dos nossos grandes e
+soberbos mattagaes.</p>
+
+<p>E fmos por ali fra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante
+cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja uniformidade era
+quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo branco das varias flres
+sylvestres, cujas ptalas encolhiam-se um pouco, meio-fanadas pelos raios do
+sol.</p>
+
+<p>Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por onde a
+vista se perdia no infinito, aps o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da
+marezia andava no espao, casado ao perfume subtil e excitante da baunilha,
+cujas compridas favas pendiam dos escuros e velhos galhos d'aquellas arvores
+seculares. Pssaros voavam cleres, n'um brando ruflar d'azas, soltando
+pequeninos gritos estrdulos e alegres. De momento a momento, a curta distancia
+de ns, lagartos cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o
+folhedo scco que juncava o slo. E l muito ao longe, no alto, sobre pedaos
+de ceu de um azul deslavado, que ns entreviamos pelos interstcios das
+ramas,<span class="pn"><a id="pg_12" name="pg_12">{12}</a></span> urubs
+recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos seus vos
+arredondados, pairando como n'uma contemplao enamorada da terra que os
+sustenta com suas putrefaces, com seus resduos infames e nojentos.</p>
+
+<p>De repente, o meu companheiro disse-me:</p>
+
+<p>&mdash;Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar canado d'esta longa
+caminhada.</p>
+
+<p>No tinha a minima accentuao estrangeira; fallava como um verdadeiro
+paraense.</p>
+
+<p>Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de bruos,
+com o pescoo estendido e o grande chapu de palha do Chile a descer-lhe para a
+nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.</p>
+
+<p>Ficamos calados por alguns minutos.</p>
+
+<p>Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos
+haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra exhalava.</p>
+
+<p>Perguntei-lhe de repente, no achando outra coisa a dizer-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;O sr. casado?</p>
+
+<p>Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expresso investigadora de quem
+deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois respondeu:
+</p>
+
+<p>&mdash;No... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.</p>
+
+<p>&mdash;Ah!</p>
+
+<p>&mdash; verdade. Sou viuvo e tenho-me dado<span class="pn"><a id="pg_13"
+name="pg_13">{13}</a></span> muito bem n'este novo estado de quem vive sem as
+preoccupaes do homem casado, que tem uma familia a sustentar. Bem tolo quem
+se casa...</p>
+
+<p>Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.</p>
+
+<p>Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traando nas
+duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, partiam a
+perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das suissas.</p>
+
+<p>Eu no comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim sublinhadas
+por similhante sorriso.</p>
+
+<p>Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, apertando-me
+as costas da mo direita, como para chamar para si toda a minha atteno:</p>
+
+<p>&mdash;Est curioso, no? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de
+arribao que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no corao, no
+rosto,&mdash;nos labios e no olhar? uma historia muito longa a minha, meu
+caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? No perder nada com isso; pelo
+contrario, creio aproveitar alguma coisa com a moral que tirar das minhas
+palavras, depois de me dar toda a razo nos actos que pratiquei. Logo que me
+ouvir, o sr. verificar que muito certo o rifo: <em>Tristezas no pagam
+dividas</em>, e adquirir a certeza de que, n'este mundo, o<span class="pn"><a
+id="pg_14" name="pg_14">{14}</a></span> melhor meio de se gosar sade e viver
+tranquillo, ter o corao calmo como a bonana e grande como a barriga do
+dezembargador Delfino. Ora vire p'ra c as oias e preste atteno.</p>
+
+<p>Sentei-me. Elle fez o mesmo e comeou, sorrindo sempre:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de ris,
+herana de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando logo um
+socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o
+meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma hispanhola rles e
+velhaca de um hotel da cidade.</p>
+
+<p>"Um bello dia fallimos,&mdash;por causa dessas extraordinarias despezas
+capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crsus. Cuida que apaixonei-me
+por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, sem vontade para
+continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu espirito refractario a
+tristezas,&mdash;o meu corao grande de mais para fazer-se pequenino e mirrado
+por to pouca cousa. Um ou dois contos de ris que pude ganhar em certo
+negocio, aps o naufragio a que fra conduzido pela doidice de meu socio,
+empreguei-os em comprar algumas joias de ouro falso, em mercadorias de
+contrabando, e, com um volumoso carregamento barato,<span class="pn"><a
+id="pg_15" name="pg_15">{15}</a></span> segui para o rio Madeira, afim de
+explorar em meu unico proveito a ingnua simplicidade dos seringueiros.</p>
+
+<p>"No me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Par, e adquiri maior
+carregamento, que fui de novo impingir s remotas regies do alto Madeira, onde
+os jacars e onas respeitaram-me sempre a delicada posio de inoffensivo
+estrangeiro, que carece de proteco, que no deve ser offendido nunca em um
+paiz amigo!"</p>
+
+<p>Calou-se. Em sua larga bcca de expresso franca e descuidosa estava o
+eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraa para esse
+homem com toda a enorme fora de um robusto affecto nascente.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Accendeu um charuto e continuou:</p>
+
+<p>&mdash;"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu
+regressava definitivamente ao Par, trazendo uma solida fortuna amoedada em
+bons contos de ris palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da mala. Tratei
+logo de cumprir as imposies de um dever: paguei a todos os crdores da massa
+fallida, sem excepo de um s! Uma d'essas dividas da firma era uma
+anquinha,&mdash;uma anquinha!&mdash;que meu socio havia comprado para a sua
+Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que estabeleci-me pela
+segunda vez,&mdash;d'essa<span class="pn"><a id="pg_16"
+name="pg_16">{16}</a></span> feita sem socio, para no mais ser prejudicado por
+ninguem.</p>
+
+<p>"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga
+paraense,&mdash;farta carnao morenamente excitante e grandes quadris
+arredondados, divinos,&mdash;filha de um subdelegado de policia. Casei-me com
+ella alguns mezes depois de a ver. No tinha educao, era estupida, mas
+possua a convico da belleza nas frmas, a imponencia da sensualidade no
+olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?</p>
+
+<p>"Dois annos vivi eu nos braos de uma felicidade illimitada. Luiza, a minha
+captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em minha infinita
+affeio serdia, e cada vez mais revelava-me um esplendido segredo de sua
+magnifica belleza de crioula! Era um delirio, uma loucura dulcssima e
+purificadora, aquelle amor que eu lhe votava com toda a vibrante virilidade do
+meu corpo e da minha alma! A pequenina casa em que viviamos era para mim uma
+Capua desejada, onde a minha languidez encontrava tranquillo bem estar, nos
+braos da seductora Luiza. O dia seguinte, que para muitos um enigma
+atterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproduco
+inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavssimas de um amor intenso
+e bom, como fostes amadas pela piguice da ingenuidade do meu espirito!"<span
+class="pn"><a id="pg_17" name="pg_17">{17}</a></span></p>
+
+<p>Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisao prazenteira.
+Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a arregaar-lhe a rubra ponta
+do labio grosso e varonil.</p>
+
+<p>E proseguiu, aps haver accendido o charuto que se apagara:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Eu tinha inteira confiana em Luiza. Jmais a ida de uma perfidia de
+sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como
+poderiam enganar-me aquelles olhos to bellamente claros e brilhantes, aquella
+bocca de perfumosos labios que davam beijos to doces, to sensuaes, to
+irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espirito era o
+espelho onde se reflectia o meu corao e onde eu suppunha ver a alma de Luiza,
+estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser to rudemente
+ferida pelos factos!</p>
+
+<p>" como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a
+phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginao creadora e
+ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Maraj, que viera cidade, e
+um bello dia, quando, ao car da tarde, regressei a casa para jantar, no mais
+a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com
+o sobredito <em>cujo</em> mencionado<span class="pn"><a id="pg_18"
+name="pg_18">{18}</a></span> vaqueiro, como vim logo a saber, por informaes
+ministradas pela visinhana, com grande vergonha dos meus brios de homem
+robusto, completo, valente e, na minha valiosa opinio, no de todo incapaz
+para o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e voluptuosa.
+</p>
+
+<p>"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as leis
+do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de Maraj, onde, por
+certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos braos do cyclopico
+vaqueiro? Que expuz irriso publica, s chufas da plebe, a ignara patifaria
+de minha mulher e a irreparavel deshonra do meu nome? Nada d'isso, meu caro!
+Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas
+de que se esquecera com a precipitao da fuga! Veja at que ponto fui
+complacente. Veja que santa bondade a minha!</p>
+
+<p>"A desgraada morreu um anno depois, victima de bri-bri; pois bem; para
+mostrar a Deus que no sou de todo mau, mandei por alma de minha mulher resar,
+na egreja do Carmo, uma triste missa de <em>requiem</em>, a que assisti com
+respeito e piedade."</p>
+
+<p>Calou-se, sem uma commoo no rosto ou na voz. Falava como se tratasse do
+tempo ou da cr do cu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E logo o seu
+velhaco<span class="pn"><a id="pg_19" name="pg_19">{19}</a></span> risinho
+sarcastico saltou-lhe da bcca e veiu espreitar-me de sobre o labio
+superior,&mdash;como se fosse um depoimento vivo da tranquillidade d'aquella
+alma em face de todos os extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella
+haviam passado, sem conseguirem emocional-a.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me para
+que acompanhasse-o, seguiu em direco ao povoado, cantarolando esta pandega
+quadra do <em>Dia e a Noite</em>, de Lecocq:</p>
+
+<blockquote>
+ <em>Minha mulher, que Deus levou,</em><br>
+ <em>Foi-me infiel constantemente;</em><br>
+ <em>Nada d'isso me acabrunhou:</em><br>
+ <em>Levei o caso alegremente!</em><span class="pn"><a id="pg_20"
+ name="pg_20">{20}</a><br>
+ <a id="pg_21" name="pg_21">{21}</a></span> </blockquote>
+
+<h1><a name="SECTION002000000">A convalescente</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION002100000">Ao dr. Alvares da Costa</a> </h3>
+
+<p>Estava pallida e triste, encostada levemente grade do camarote, n'aquella
+noite de estra.</p>
+
+<p>Os seus olhos, negros como a sda que o seu delicado corpo vestia, divagavam
+pela plata, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia uma d'essas
+melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e idaes, bellas,
+todavia, mesmo na falsidade da sua creao,&mdash;vivificada por um mysterio e
+conduzida quella sala d'espectaculo,<span class="pn"><a id="pg_22"
+name="pg_22">{22}</a></span> onde ostentavam-se as formosuras das moas da moda
+e as austeras sobrecasacas dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.</p>
+
+<p>E ella estava sempre pallida, encostada levemente grade do camarote.</p>
+
+<p>Nos labios tinha ingnuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expresso da
+sympathica physionomia.</p>
+
+<p>Um engraado diabrte, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.</p>
+
+<p>Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da alma
+uma commoo de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada d'esse logar,
+d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para a plata, cujo
+ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos lenos rendados, dos
+perfumosos lenos discretos das jovens damas....</p>
+
+<p>E aquella encantadora creana que, sempre triste, encostava-se grade do
+camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do soffrimento, que
+tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia austeramente sria sob a luz
+intensa do lustre.....<span class="pn"><a id="pg_23"
+name="pg_23">{23}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION003000000">Desilluso</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION003100000">A Fontes de Carvalho</a> </h3>
+
+<p>A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem
+sonhando amores e descobrindo tmidas paixes nas palavras alegremente
+zombeteiras dos moos que fingem cortejal-as por distraco.</p>
+
+<p>Tinha ella a tez,&mdash;enrugada e molle como a casca do janipapo
+maduro,&mdash;salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas;
+encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de p de arroz,
+comprado<span class="pn"><a id="pg_24" name="pg_24">{24}</a></span> sempre na
+<em>Loja Mariposa</em>, da qual o co-proprietario Affonso,&mdash;o sympathico
+Affonso,&mdash;vendia-lh'o com muita dse de <em>rclames</em> e chamadas de
+atteno para a superioridade da fazenda.</p>
+
+<p>Usava uns vestidos fra da moda, mal feitos, com algumas ndoas, nos quaes
+primavam os enfeites vistosos,&mdash;uma garridice da sra. d. Joaquina.</p>
+
+<p>O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refgos da engelhada
+epiderme,&mdash;posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada
+d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.</p>
+
+<p>As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco
+lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do
+direito de aspirar a um bom casamento"&mdash;como ella pensava e dizia mui
+confidencialmente a certas amigas particulares.</p>
+
+<p>Sempre houve maledicentes no mundo (salve a <em>chapa</em>!): foi por isso
+que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercao com ella, retirou-se de seu
+trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem
+pintava os cabellos, que, se no recebessem quotidianamente os respectivos
+affagos da esponja embebida em tintura, j deveriam estar soffrivelmente
+russos, quando no grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler
+aquella<span class="pn"><a id="pg_25" name="pg_25">{25}</a></span> affirmativa
+a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou,
+naturalmente.</p>
+
+<p>A sra. d. Joaquina possuia uma educao mediocre, apenas sufficiente para
+conhecer os seus deveres de "moa solteira", quanto educao moral; quanto
+intellectual, lia com desembarao e alguns tropeos prosdicos as cartas
+repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera
+antigamente.</p>
+
+<p>Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu <em>spleen</em> de
+senhora entrada em annos e votada lastimosa condio de <em>tia</em>. Ai! A
+pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de no haver em sua mocidade casado
+com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus
+encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns
+vinte e dois annos de existencia. Ella no acceitara o amor d'elle, sonhando
+desposar um joven baro, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um
+romance do inspido Ponson du Terrail. O baro, porm, nunca appareceu. Agora
+era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexo,
+resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a
+Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe
+affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de<span class="pn"><a id="pg_26"
+name="pg_26">{26}</a></span> amor, e bas tortas de camares seguidas de
+compotas de delicioso bacury, sobremesa.</p>
+
+<p>Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jmais tivera informaes
+exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente
+que um fra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela
+seduco d'alguma <em>yra</em> encantadora. Do outro constava apenas que
+partira para seu paiz natal,&mdash;Portugal,&mdash;afim de ir saborear
+lareira, nos longos seres de inverno,&mdash;quando o suo sibila em as grandes
+chamins ennegrecidas,&mdash;os succulentos ncos de paios da
+Beira,&mdash;d'aquelles paios to glutonamente decantados pelo illustre poeta
+Joo Penha.</p>
+
+<p>Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos
+tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulurosas
+esperanas de captivar o rebelde corao do Francisco da Natividade, o elegante
+dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porm, parecia no
+partilhar das mesmas intenes, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem
+estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella
+armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flres, fazia-lhe presentes de
+toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o caf quando elle ia
+casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros<span class="pn"><a id="pg_27"
+name="pg_27">{27}</a></span> accsos aos charutos, roando os dedos nos d'elle,
+para mudamente lhe revelar a sua paixo.</p>
+
+<p>Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente
+contra o Francisco, quando, a ss, no momento de estender-se na sua fria rede
+de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos
+ao bom andamento d'aquelle amor.</p>
+
+<p>Tal era o estado do corao da boa senhora na poca em que o Natividade
+apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.</p>
+
+<p>A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia to natural, attrau
+as boas graas da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos
+d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa
+admiradora do "seu caracter austero."</p>
+
+<p>Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos,
+desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.</p>
+
+<p>Levada pelas erupes d'aquelle seu corao vulcanico, ella comeou a amar
+ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da
+Natividade. Cedo surprehendeu o bom moo as amorosas manobras da sra. d.
+Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella,
+para obedecer aos<span class="pn"><a id="pg_28" name="pg_28">{28}</a></span>
+dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.
+</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, j no
+Par, apanhasse alguma constipao, Raul adoeceu, ficou pllido, perseguido por
+uma pequena tosse, e uma tarde, aps o jantar, sentiu uma suffocao, seguida
+de agudas dres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as
+omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma
+escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.</p>
+
+<p>&mdash;Santo Deus, que vejo?!&mdash;exclamou o tio, assustado.&mdash;J, um
+medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....</p>
+
+<p>O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o
+sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendaes sobre o
+tratamento.</p>
+
+<p>Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porm, teve
+uma verdadeira e forte hemoptysia. L foi o moleque chamar novamente o doutor.
+</p>
+
+<p>Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que
+habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse.
+Assoberbado por to assustadora recommendao, o bondoso<span class="pn"><a
+id="pg_29" name="pg_29">{29}</a></span> Francisco da Natividade tratou logo de
+mandar o sobrinho pelo paquete que do Par sau seis dias depois.</p>
+
+<p>No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando
+verdadeiras lgrymas de d e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a
+vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faa o
+que lhe peo. Mas, antes no a abra, pelo amor de Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Sim, minha senhora.... Os seus pedidos so ordens para mim....
+Adeus!</p>
+
+<p>Chegando cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso p de
+restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de
+tudo quanto podsse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a
+esquecer-se da sra. d. Joaquina.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos
+lhe recommendassem que no viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no
+continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma
+conceituada casa commercial, para ir fazer cobranas pelas provincias.</p>
+
+<p>Na vespera do dia em que tinha de seguir<span class="pn"><a id="pg_30"
+name="pg_30">{30}</a></span> para a primeira excurso,&mdash;ao
+Alemtejo,&mdash;estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mo
+no bolso d'um <em>paletot</em> que s vestia em viagem, encontraram seus dedos
+um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e
+suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe dra a sra. d. Joaquina.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! que esquecimento o meu!&mdash;exclamou.&mdash;Que juizo no ter
+feito a meu respeito a impagavel senhora....</p>
+
+<p>E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.</p>
+
+<p>"Meu bom amigo,&mdash;leu.&mdash;Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito
+<em>afflue-me</em> aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o:
+amo-o, amo-o, com todo o ardor de que capaz o meu ardente corao! (Isto
+copiou ella do romance <em>A Caridade Christ</em>, de Escrich,&mdash;pensou
+Raul). Peo-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se <em>fui</em> por si acolhido
+o meu amor. (Aquelle <em>fui</em> que era genuinamente d'ella, s d'ella; o
+Raul bem o conheceu). Espero <em>ancioza</em> a sua resposta, com a qual o meu
+amigo <em>remeter-me-</em> meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de
+presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do corao de sua
+eternamente,&mdash;J<small>OAQUINA</small>."</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle
+<em>modelo</em> d'orthographia,<span class="pn"><a id="pg_31"
+name="pg_31">{31}</a></span> propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se
+mais serio e:</p>
+
+<p>&mdash;Ora bolas!&mdash;disse.&mdash;S os cabellos encantavam-me, por serem
+to pretos e lustrosos.... E era falsa aquella cr d'azeviche!.... Que
+desilluso!....<span class="pn"><a id="pg_32" name="pg_32">{32}</a><br>
+<a id="pg_33" name="pg_33">{33}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION004000000">A "Serenata" de Schubert</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION004100000">Ao dr. Augusto Meira</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION004110000">I</a> </h2>
+
+<p>No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, Joo estava deitado na
+rde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, luz branda de uma vela
+de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na
+Casa de Deteno, derramando pelo ar um spro de tranquillidade imponente, que
+fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos
+domicilios. O vento norte,<span class="pn"><a id="pg_34"
+name="pg_34">{34}</a></span> que vinha de Olinda, entrava na sala, e d'esta
+seguia para o quarto de Joo, agitando a luz dentro do <em>photo-mobile</em>.
+</p>
+
+<p>Na invisivel palpitao da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na
+visinhana. Fanatico adorador da musica, Joo fechou o livro e prestou
+atteno. Eram as primeiras notas da <em>Serenata</em> de Schubert, esse
+magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composies! De um
+pulo, achou-se abaixo da rde, fra do quarto, ao balco de uma das janellas do
+seu humilde terceiro andar. E encostou-se grade, com o rosto descanado na
+mo direita, dispondo-se a ouvir a sua pea predilecta.</p>
+
+<p>Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, como
+extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava no
+azul-ferrete do co, por entre multides de estrellas tremeluzentes, uma
+diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes montes de
+nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima saam as vozes do
+piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas janellas abertas.</p>
+
+<p>Como todas as musicas sentimentaes, a <em>Serenata</em> de Schubert possue
+isto de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro da
+meditao tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que so sempre,
+quer dolorosas<span class="pn"><a id="pg_35" name="pg_35">{35}</a></span> quer
+alegres, um grato consolo para a alma.</p>
+
+<p>Foi por isso que Joo, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em
+seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente
+dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu querido Par, podia
+ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella que deve um dia ser sua
+esposa.<sup><a href="#fn1" name="mfn1">[1]</a></sup> Foi tambem porisso que o
+moo estudante de direito recordou-se,&mdash;e com quantas saudades!&mdash;da
+magistral execuo que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro
+allemo,&mdash;uma execuo toda sentida, interpretando os minimos segredos,
+com dulcssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao espirito e
+suaves langores ao corpo.</p>
+
+<p>Entrou Joo a imaginar que estava no Par, ao lado de sua querida
+companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta,
+extasiado na audio d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma
+transformao imaginativa, o piano<span class="pn"><a id="pg_36"
+name="pg_36">{36}</a></span> da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos d'elle
+um som particular, intimo, que o commovia todo, chamando-lhe duas lgrymas aos
+cantos dos olhos! E, por esta causa tambem, sua alma pareceu ver desfilar nas
+pacificas paredes da casa fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual
+dra-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expresso
+poetica, porm saudosssima, de uma tela de Watteau....</p>
+
+<p>Esse quadro, eil-o:</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a href="#mfn1" name="fn1">[1]</a></sup> Este conto foi escripto em
+1886. A donzella de que se trata est hoje casada com o heroe da presente
+narrao e pde gabar-se de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida
+e a mais leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga de
+todas as mes.</p>
+</div>
+
+<h2><a name="SECTION004120000">II</a> </h2>
+
+<p>Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sar no relogio da varanda. Um
+socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a familia
+estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sof. Das ruas vinham
+pelas janellas abertas fortes spros de brisas cheirosas e sons de guitarras
+fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaos, uma voz, um
+grito chegava at sala, revelando que pela cidade havia quem passeiasse,
+tentando festejar o anniversario do nascimento de Christo.<span class="pn"><a
+id="pg_37" name="pg_37">{37}</a></span></p>
+
+<p>Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora sugava
+a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o clo de sua virtuosa me, a
+qual, supposto conversar com o extremoso marido, no afastava do rosto da filha
+os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um lago de ternura meiga e
+immaculavel como um beijo maternal.</p>
+
+<p>Contemplando este quadro rubenesco, Joo pensava nos santos prazeres do
+lar,&mdash;elle, que era um msero orpho, um desgraado pari do
+amor!&mdash;emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle,
+falava-lhe compungida crca de uma infeliz mulher que, pela manh, recebera de
+suas pequeninas mos bemfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E
+dominando a todos, no meio do sof, com a expresso suavssima do rosto
+espiritualisada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os labios, o
+velho Antonio, de cabellos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao
+filho mais moo, ao Theodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe
+como exemplo a seguir vrias scenas a que assistira em sua passada vida
+commercial.</p>
+
+<p>Uma exhalao de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a
+tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depe muitas
+confianas no futuro.<span class="pn"><a id="pg_38"
+name="pg_38">{38}</a></span></p>
+
+<p>De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz ergueu-se da
+rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:</p>
+
+<blockquote>
+ Folguem todos n'esta noite,<br>
+ Venha a festa sem egual:<br>
+ &mdash;Hoje em nada se repara,<br>
+ Porque noite de Natal.<br>
+ Hoje em nada se repara,<br>
+ Porque noite de Natal. </blockquote>
+
+<p>E a guitarra chorava em <em>tom menor</em>, fazendo cro ao
+<em>ritornello</em>. A voz de um agradavel <em>tenor</em> prendeu logo a
+atteno dos que estavam na sala:</p>
+
+<blockquote>
+ Esta noite abenoada<br>
+ Pertence aos que tm amor;<br>
+ No presepe bethlemita<br>
+ Veiu ao mundo o Deus-Senhor. </blockquote>
+
+<p>Novo <em>ritornello</em> choroso na guitarra.</p>
+
+<blockquote>
+ Por isso, moos e moas,<br>
+ Entregae-vos ao prazer,<br>
+ Emquanto no vem a edade<br>
+ Vossa fronte encanecer! </blockquote>
+
+<p>Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.</p>
+
+<p>Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantra a cabea, n'uma energia de
+movimento,<span class="pn"><a id="pg_39" name="pg_39">{39}</a></span> com as
+narinas afflantes, os anneis da cabea tremendo-lhe sobre os hombros.</p>
+
+<p>&mdash;Tlo!&mdash;exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se
+agora ao longe, na extremidade da rua.&mdash;Pois que venha c, a ver se os
+velhos no tm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me
+dir ao depois se eu no amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o
+meu Theodoro e innocentinha que ahi dorme sob as benos do meu olhar!..</p>
+
+<p>Um soluo gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a encarnao
+do carinho e, muito piedosa e pura,&mdash;qual um raio de sol illuminando a
+face de uma estatua antiga,&mdash;foi beijar amoravelmente a fronte do
+ancio....</p>
+
+<p>Que no se affligisse, pediu-lhe affagando-o;&mdash;que no dsse
+importancia a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que
+intensidade elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E
+demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, no
+valia a pena entristecer-se....</p>
+
+<p>&mdash;Para o lado os pezares!&mdash;terminou sorrindo.&mdash;Como
+distraco agradavel a todos, vou tocar ao piano a <em>Serenata</em> de
+Schubert.</p>
+
+<p>J se tinha Joo levantado, prevendo<span class="pn"><a id="pg_40"
+name="pg_40">{40}</a></span> este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a
+estante a musica desejada e, accendendo as velas, sentou-se ao lado do
+banquinho, que Dhalia veiu occupar.</p>
+
+<h2><a name="SECTION004130000">III</a> </h2>
+
+<p>E comearam ento as primeiras melodias da <em>Serenata</em>.</p>
+
+<p>Joo cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audio da formosa pea, to
+bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica comprehendia os
+segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma figura, ao principio
+fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, apparecendo em primeiro
+plano, desenhou-se na tela da imaginao do moo. E surgiu ento um joven de
+bandolim em punho, debaixo dos balces floridos de um elegante castello, que se
+erguia a meio de uma paizagem germanica, onde os robles farfalhavam borda dos
+lagos tranquillos, sobre cujas superficies grandes garas deslisavam elegantes,
+ruflando as<span class="pn"><a id="pg_41" name="pg_41">{41}</a></span> brancas
+pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um canto magico de
+yra amazonica, sentida como uma recriminao paternal, doce como um beijo
+apaixonado. De seus labios cr de papoula distillava-se o mel da musica de
+Schubert, que ia cair com uma suavidade de balsamo sobre a alma enamorada de
+uma joven castell formosa, occulta entre os reflhos das colgaduras das
+janellas! A voz do amoroso trovador tinha um no sei qu de melancholico, um
+tal cunho de poesia dolente, que Joo emocionou-se tanto em face do quadro que
+a sua imaginao lhe descrevia, que no pde deixar de cantarolar baixinho, com
+um meio sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretao de Dhalia:
+</p>
+
+<blockquote>
+ <em>"O Chtelaine,</em><br>
+ <em>Entend ma peine!..</em>"<br>
+ ...................<br>
+ ................... </blockquote>
+
+<p>Dhalia executou o <em>morendo</em> final da Serenata. Joo acordou da sua
+<em>rverie</em>, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico
+bailava um risinho engraado.</p>
+
+<p>De p, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante
+illuminado n'uma expresso de ineffavel ventura.<span class="pn"><a id="pg_42"
+name="pg_42">{42}</a></span> Dos labios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma
+beno muda, que se completava pelo gesto das mos erguidas e espalmadas no
+espao!.. Era o pae a abenoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!</p>
+<hr class="dotted">
+
+<h2><a name="SECTION004140000">IV</a> </h2>
+
+<p>Estava n'este ponto a saudosa recordao do moo estudante, na janella do
+seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha
+desconhecida gemia tambem o adoravel remate da <em>Serenata</em>.</p>
+
+<p>Joo sentiu-se commovido por aquella musica inspiradssima, que lhe avivra
+to grata lembrana de seu venturoso passado,&mdash;agora que elle estava
+ausente do querido slo natal, onde moravam todos os que possuiam-lhe a flr do
+affecto. Ergueu os olhos ao co, n'uma necessidade de soltar livremente o
+espirito pela amplido infinita do vacuo. No firmamento azul tachonado de
+louras lucilaes, o crescente de lua<span class="pn"><a id="pg_43"
+name="pg_43">{43}</a></span> vogava para o occaso como uma alegria fugitiva;
+pequeninos flcos de nuvens seguiam, muito calmos e ethreos, pelo espao
+adeante, projectando sombras cinzentas sobre o calamento da rua. Da margem
+opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se
+bradando&mdash;<em>alerta!</em>&mdash; sentinella.</p>
+
+<p>Ento, por um impulso de agradecimento, o espirito de Joo partiu pelo
+infinito a fra, chegou ao Par, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se
+piedoso modesta pedra gradeada que sella o tumulo venerando de Antonio, o
+estremecido pae de sua noiva.<span class="pn"><a id="pg_44"
+name="pg_44">{44}</a><br>
+<a id="pg_45" name="pg_45">{45}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION005000000">Que bom marido!</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION005100000">A Juvenal Tavares</a> </h3>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p><em>No desejars a mulher do teu proximo.</em><br>
+ M<small>ANDAMENTO DE</small> D<small>EUS.</small> </p>
+</blockquote>
+
+<p>Havia j tres annos que estavam casados. No tinham filhos. Viviam felizes,
+tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal,
+onde o sol da manh brincava alegremente n'umas scintillaes que davam a nota
+de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador
+olhar.<span class="pn"><a id="pg_46" name="pg_46">{46}</a></span></p>
+
+<p>Elle era um velho quarento, amanuense de secretara, obeso, rubicundo, de
+rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que
+tivra,&mdash;tempestuosa e poda nas orgias,&mdash;encanecera-lhe
+completamente os cabellos da cabea, os quaes desciam para o rosto, onde
+cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle cr de ginja.</p>
+
+<p>Ella tinha dezoito primavras,&mdash;para me servir d'uma velha expresso do
+romantismo;&mdash;ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e
+marotos. Tz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador
+descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos
+do que os de um co da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da anglica,
+era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a
+mais de meia-duzia de gamenhos vados,&mdash;d'esses namoradores enfatuados que
+abundam por toda a parte.</p>
+
+<p>O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manh, s 8 horas,
+depois do respectivo e parco almoo, o sr. Bonifacio escovava com a manga da
+sobrecasaca o solenne chapu alto, dava um <em>chcho</em> mulher e saa para
+a repartio com o passo do empregado publico:&mdash;impassivel e
+cadenciado.</p>
+
+<p>Elvira acompanhava o esposo at porta da rua, fazia-lhe uma pequena
+caricia e<span class="pn"><a id="pg_47" name="pg_47">{47}</a></span> voltava
+varanda, afim de dar algumas ordens crca do jantar. Dispostas as coisas para
+a segunda refeio, a sentar-se machina de costura, que dava-lhe no
+diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os
+vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a
+qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e
+um passeio a <em>bond</em> em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de
+Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. Joo e mais
+outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam encantadora
+esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e
+nova.</p>
+
+<p>Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus
+adoradores,&mdash;rapazes toleires, aos quaes ella, diga-se a verdade, no
+ligava muita importancia. Entre esses moos, quem mais assiduamente a
+requestava era um tal Jacyntho,&mdash;um <em>leo</em> conquistador que falava
+pelos cotovllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro
+atrevido. Este Jacyntho apaixonra-se por Elvira poucos dias depois do
+casamento d'ella, por occasio d'um passeio a Benevides. Desde essa poca, o
+pobre <em>namorado sem ventura</em> passava todas as tardes pela casa do
+Bonifacio, quando Elvira a para a janella,<span class="pn"><a id="pg_48"
+name="pg_48">{48}</a></span> emquanto o marido, na varanda, jogava o slo com o
+taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira,
+enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense
+retribua a este ultimo e conservava-se muito sria, muito digna, sem
+corresponder quelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era
+pontual entrevista, na qual Elvira j parecia interessar-se, pois que tambem
+no deixava de ir para a janella assim que, l na varanda, o sr. Bonifacio, o
+taberneiro e o vizinho comeavam no <em>passo</em> e no <em>blo</em>. que a
+interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que no poda se
+contentar com os ss affagos morosos e frios do velho Bonifacio. No obstante,
+nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se quillo a que chamava "uma
+distraco", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um
+crime.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Jacyntho no era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a
+esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra
+dura, tanto d at que fura." Tinha confiana<span class="pn"><a id="pg_49"
+name="pg_49">{49}</a></span> no futuro, que resolvera, com
+vantagem,&mdash;aquelle interessante problema de amor.</p>
+
+<p>Uma tarde,&mdash;era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devras
+admirado por ver que a sua querida no estava janella. Olhou para os dois
+lados da rua e no enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a
+apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um s vivente se via.</p>
+
+<p>Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata,
+que saa da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;Onde est a d. Elvira, minha filha?</p>
+
+<p>A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabea para o peito, metteu na
+bocca o index da mo direita, conservando-se calada.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos, fala, toma um tosto.... Onde est a d. Elvira?&mdash;insista
+o <em>leo</em> fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.</p>
+
+<p>Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuados da fregueza e
+disse, ainda meio acanhada:</p>
+
+<p>&mdash;Est l dentro....</p>
+
+<p>&mdash;E o sr. Bonifacio?</p>
+
+<p>&mdash;Sau.</p>
+
+<p>&mdash;Dou-te outro nickel se fres levar uma carta tua senhora,
+queres?</p>
+
+<p>&mdash;Eu quero....<span class="pn"><a id="pg_50"
+name="pg_50">{50}</a></span> </p>
+
+<p>Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por
+cautella, no datra nem assignra. Entregou-a mulatinha e conjuntamente
+outro tosto.</p>
+
+<p>Depois seguiu pela estrada adeante.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Elvira no deu resposta quella carta, que lhe revelra o grande amor que
+por ella sentia o Lovelace paraense. Este no desanimou: deixou de passar pela
+estrada de S. Braz durante dois dias, aps os quaes voltou, seguindo pelo
+passeio, rente janella. Sacudiu-lhe ao clo nova epstola. Repetiu o mesmo
+jogo por uma semana. Finalmente, Elvira no pde resistir mais, mandou-lhe uma
+carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho
+no era-lhe indifferente, mas que devia abrir mos quelle amor, porquanto a
+sua "posio de mulher casada no lhe permittia to gratas liberdades."</p>
+
+<p>D'ento em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar
+dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos
+d'aquelle. que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do
+sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas
+leituras romanticas<span class="pn"><a id="pg_51" name="pg_51">{51}</a></span>
+deram causa correspondencia criminosa.</p>
+
+<p>Havia j alguns mezes que o amor dos dois no tivra outras expanses alm
+d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
+</p>
+
+<p>Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de
+volta d'uma visita que fra fazer a seu chefe de seco. Transpondo o limiar da
+porta, encontrou a mulatinha que saa apressadamente, escondendo mal entre as
+dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a atteno de velho curioso.</p>
+
+<p>&mdash;Que levas ahi?&mdash;perguntou.</p>
+
+<p>&mdash;No nada....&mdash;respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar
+aos paraenses.</p>
+
+<p>&mdash;No mintas! Eu vi no sei qu!&mdash;bradou o sr. Bonifacio puxando-a
+pelo brao e apoderando-se do objecto.</p>
+
+<p>Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>"Meu amigo, depois d'amanh, meia noite, meu marido vae ouvir a <em>missa
+do gallo</em> em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de
+conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha 1
+hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.</p>
+
+<p style="text-align: right;">E<small>LVIRA</small>.<span class="pn"><a
+id="pg_52" name="pg_52">{52}</a></span></p>
+
+<p>O Bonifacio <em>subiu ao arame</em>; ficou da cr da purpura e sentiu uma
+violentssima dr de cabea. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa
+infiel; reflectiu, porm, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe appareceu a
+subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingana.</p>
+
+<p>&mdash;Toma, leva,&mdash;disse entregando a carta rapariga.</p>
+
+<p>E entrou.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgases de moos
+d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belm em direco s differentes egrejas
+onde se deve rezar a <em>missa do gallo</em>.</p>
+
+<p>O sr. Bonifacio, que levantou-se ultima pancada das 11 horas, sae para a
+rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dr de cabea...."</p>
+
+<p> 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros
+at chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que
+bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um
+leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que
+a fruir na conversao de Elvira, quando<span class="pn"><a id="pg_53"
+name="pg_53">{53}</a></span> subitamente exhalou um grito, dando um salto para
+o lado.</p>
+
+<p>Era o respeitavel sr. Bonifacio, que sando de traz da mangueira onde
+occultra-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivra a lembrana de
+namorar-lhe a mulher.</p>
+
+<p>Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio pouca
+agilidade que ainda possua e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente,
+n'uma agitao febril....</p>
+
+<p>O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos
+haviam sado para a <em>missa do gallo</em>.</p>
+
+<p>Quando canou, quando os braos negaram-se a continuar, o honrado amanuense,
+despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que
+achava-se por terra, com os ossos quasi modos:</p>
+
+<p>&mdash;V-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! No torne a car na
+asneira de namorar moas casadas!</p>
+
+<p>E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de
+medo.<span class="pn"><a id="pg_54" name="pg_54">{54}</a><br><a id="pg_55"
+name="pg_55">{55}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION006000000">Noite de finados</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION006100000">A Manoel P. de Carvalho</a> </h3>
+
+<p>O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos de
+preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. Eram oito
+horas da noite sob um co trevoso como a tristeza d'aquellas pessoas que ali se
+recordavam com saudades pungitivas dos parentes e amigos para sempre occultos
+debaixo da terra, sobre a qual compridas filas de vlas accsas lanavam uma
+claridade intensa, que ia esbater-se ao fundo, na escurido do mattagal.<span
+class="pn"><a id="pg_56" name="pg_56">{56}</a></span></p>
+
+<p>O ar estava impregnado do perfume das flres&mdash;piedosamente depostas em
+cima das sepulturas por mos amigas,&mdash;e do cheiro mystico da cra
+queimada.</p>
+
+<p>Ao longe, direita da ermida, uma banda de musica executava plangentemente
+uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades lugubres faziam
+suspirar as velhas beatas,&mdash;aspirando a uma outra vida desconhecida, alm
+d'aquelle firmamento negro, no logar onde a omnipotencia incondicional da
+Divindade lhes parecia dominar em toda a sua magestade.</p>
+
+<p>Entretanto, de espao a espao, grandes ondas de povo invadiam o cemiterio.
+Este, quella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas que receiavam um
+atropello, saam enfadadas, murmurando indecencias.</p>
+
+<p> porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente com
+as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas lanternas
+que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de vestes sujas e
+mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em seu favor a caridade dos
+visitantes piedosos.</p>
+
+<p>Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam olhares
+torpemente libidinosos s moas que entravam seguidas de suas mames, n'um<span
+class="pn"><a id="pg_57" name="pg_57">{57}</a></span> andar assustadio e
+saudando um ou outro conhecido com um meneio de cabea. Mais adeante, n'um
+canto escuro, uma rolia mulata, com o vestido muito decotado, murmurava
+amabilidades a um preto de physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e
+com a cabea coberta por um descommunal chapu alto. Como contraste, no muito
+longe, estava uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados
+grade ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vlas em castiaes de
+vidro.</p>
+
+<p>Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma cora de perpetuas rxas, corriam
+lgrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas do capim que
+vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....</p>
+
+<p>Era sem duvida alguma viuva que pagava memoria do finado marido alguns
+annos de amorosa e suavssima coabitao na terra...</p>
+
+<p> esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em negro
+caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e toda coberta
+de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma senhora de cabellos
+grisalhos, immovel, calada&mdash;como evocando passadas scenas de
+prazer&mdash;sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia no funeral
+tristonho....<span class="pn"><a id="pg_58" name="pg_58">{58}</a></span></p>
+
+<p>O co, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiada. Grandes
+nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as bandas da
+cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluo d'almas penadas fazia
+farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar s supersticiosas
+moas que estavam no cemiterio.... Agora calra-se a orchestra.</p>
+
+<p>Subira um prgador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de
+grande cma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos tragicos,
+uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade mundana e a perenne
+bemaventurana celestial.</p>
+
+<p>As mulheres,&mdash;mes, filhas, esposas,&mdash;que o ouviam, ficavam
+caladas, muito srias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto
+bronzeado; no intimo, porm, no fundo da consciencia, levantavam um brado de
+maldio quella felicidade que lhes roubra a companhia dos entes queridos e
+amoraveis.</p>
+
+<p>Um homem de cabea encanecida, que vagueava levando pela mo uma creana de
+tenra edade,&mdash;um lindo e pallido orphosinho,&mdash;voltou-lhe costas
+nervosamente, soluando, e fugiu para junto de um pobre tumulo tranquillo, em
+cuja grade se lia este lancinante poema de uma s phrase:&mdash;<em> minha
+esposa....</em></p>
+
+<p>No co, as nuvens afastavam-se, evolavam-se<span class="pn"><a id="pg_59"
+name="pg_59">{59}</a></span> como alegrias fugitivas ou prazeres expulsos,
+erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de miragens variadas.</p>
+
+<p>A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena magestade
+tumular, que impoz vago soffrimento ao corao de todos. Os brandes e vlas
+perderam o brilho, ficaram como pyrilampos lantejoulando os sepulchros sob o
+luar diaphano, a cuja claridade continuava o pregador a recordar a omnipotencia
+de Deus.</p>
+
+<p>Os <em>bonds</em> estacionados na praa encheram-se de passageiros. Minutos
+depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de senhoras
+tristes, com physionomias de soffrimento.</p>
+
+<p>Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava
+illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a
+penultima da festa annual.</p>
+
+<p>Ento, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma saudade
+memoria de um amigo, d'um irmo, d'um pae, desciam agora ao centro da festa
+popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as casas de
+jogo,&mdash;propellidos pela fascinao demoniaca e terrivel da roleta!<span
+class="pn"><a id="pg_60" name="pg_60">{60}</a><br>
+<a id="pg_61" name="pg_61">{61}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION007000000">Rio abaixo</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION007100000">(Ao dr. Gaspar Costa)</a> </h3>
+
+<p>A cana seguia mansamente, per si s, impellida pela correnteza.</p>
+
+<p>Sentado pra, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava com
+o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas das
+bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do sol, que
+escondia-se por traz da ilha das Onas.</p>
+
+<p>Na ppa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o <em>senhor moo</em>,
+abanando-se<span class="pn"><a id="pg_62" name="pg_62">{62}</a></span> com uma
+ventarola de pennas vermelhas, ao lado da <em>senhora moa</em>, que espreitava
+para fra, por um dos pequenos postigos lateraes. A seus ps, dormitava o co
+Murur, com um pedao de lingua escarlate cada para o lado esquerdo, entre os
+dentes meio visiveis.</p>
+
+<p>O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos mattagaes
+da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam at embarcao, n'uma
+suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois
+viajantes.</p>
+
+<p>&mdash;Que bonita paizagem, Antonio!</p>
+
+<p>&mdash; certo! Razo tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da
+viagem.</p>
+
+<p>&mdash;Quando chegamos ao <em>sitio</em>?</p>
+
+<p>&mdash;s 9 horas, isto , d'aqui a tres ou quatro.</p>
+
+<p>&mdash; pena chegarmos to cedo!</p>
+
+<p>&mdash;Dizes bem: vamos to contentes....</p>
+
+<p>E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.</p>
+
+<p>O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns momentos,
+voltou o rosto, embaraado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de
+sangue equatorial em ebulio. Puxou do cachimbo demorada <em>fumaa</em>, para
+tranquillisar-se.</p>
+
+<p>Os outros, os dois recem-casados,&mdash;porque Antonio e Luiza eram noivos:
+tinham-se matrimoniado quinze dias antes,&mdash;experimentavam, debaixo da
+tolda, uma sensao<span class="pn"><a id="pg_63" name="pg_63">{63}</a></span>
+de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle magestoso socego, sobre o
+Tocantins, dentro da embarcao. Felicitavam-se mutuamente,&mdash;com o olhar
+cheio de caricias,&mdash;por haverem podido esquivar-se vida agitada que
+levavam em Belm, sempre rodeados de visitas, cujas conversaes banaes,
+nullas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,&mdash;como iriam viver felizes
+durante aquella quinzena de fuga, em a tranquillidade bucolica da roa,
+sosinhos, passeiando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando
+caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mos na agua azulada e murmurosa
+dos igaraps!.... E que festas fariam hora do jantar, comendo peixinhos
+pescados por Luiza, e pacas, rolias de gordas, caadas pelo Antonio nas mattas
+do <em>sitio</em>?!....</p>
+
+<p>Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, estas
+idas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem attenderem a que
+o sol no mais vibrava os lategos luminosos no dorso da corrente, e que,
+portanto, poderiam sair para o centro da cana, afim de gozarem da virao
+fresca e cheirosa que agitava n'um movimento descompassado as velas mal
+colhidas ao mastro.</p>
+
+<p>Sempre assentado pra, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o
+caboclo<span class="pn"><a id="pg_64" name="pg_64">{64}</a></span> olhava agora
+para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixra um rastro
+avermelhado no co, onde agrupavam-se em desordem nuvemzinhas cr de ncar,
+violetas, azuladas, plumbeas, cr de perola. Do lado opposto, levantava-se a
+noite, n'um andar manso, mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo
+bruxoleante.</p>
+
+<p>O gorgeio dos passaros cessra na ilha das Onas, que j tinha ficado atraz,
+a longa distancia; s chegavam cana os compassos em <em>andante</em> do
+canto de um carachu que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente qual
+passou a embarcao.</p>
+
+<p>&mdash;V ahi no meu relogio que horas so, Jos, ordenou Antonio ao
+caboclo.</p>
+
+<p>&mdash;Seis e trinta e oito, <em>sinhor</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! ento saimos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.</p>
+
+<p>Vieram para fra.</p>
+
+<p>Luiza soltou uma exclamaosinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito,
+engraada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um timbre argentino
+como um filete de agua morna caindo n'uma banheira d'oiro lavrado:</p>
+
+<p>&mdash;Ah!&mdash;fez ella.</p>
+
+<p>E deixou-se ficar de p, encostada ao hombro do marido, extasiada, em frente
+ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.</p>
+
+<p>Largo em aquelle sitio, achamalotado<span class="pn"><a id="pg_65"
+name="pg_65">{65}</a></span> pela brisa, o rio abraava numerosas ilhotas
+rasas, cobertas d'uma vegetao opulenta, que esbatia-se n'uns tons escuros,
+quasi indecisos, no limite do horisonte. Um socego de tabernaculo reinava por
+toda a parte, sob o azul ferrete do co, onde as estrellas comeavam a
+scintillar como as pedras preciosas d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem
+occupava n'esse instante um espao do firmamento. Ao longe, direita da terra
+firme, tremulava uma pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante,
+esgueirava-se pelo costado da cana n'um murmurio dolente. A sbitas, na
+solemnidade do silencio, resoou um grito d'ave nocturna.</p>
+
+<p>&mdash;Accende a lanterna, Jos,&mdash;disse Antonio ao caboclo, que
+obedeceu logo, voltando depois sua posio habitual na pra, fumando.</p>
+
+<p>Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da
+embarcao, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros
+com roseiras flordas.</p>
+
+<p>Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi
+ ppa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, conchegando-lh'o muito
+ao pescoo, amoravelmente.</p>
+
+<p>Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escurido. Do logar em que
+achavam-se, apenas viam na pra um ponto vermelho<span class="pn"><a id="pg_66"
+name="pg_66">{66}</a></span> como um carbnculo: o tabaco a arder no cachimbo
+do caboclo. Este se tornra invisivel na densidade das trevas.</p>
+
+<p>Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solido: entraram a conversar
+baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de to
+agradaveis recordaes. Era para ambos uma innarravel felicidade poderem
+pairar, assim a ss, das peripecias do curto namro, dos longos annos que elle
+passou a amal-a silenciosamente, das emoes e impaciencias do dia do
+casamento, quando approximava-se a hora em que o parocho de Sant'Anna teria de
+unil-os.</p>
+
+<p>Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias,
+n'uma excitao dos sentidos. Um movimento instinctivo,&mdash;inconsciente,
+talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,&mdash;uniu-lhes os labios n'um
+prolongado beijo de paixo, vibrante como um cro juvenil.</p>
+
+<p>Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posio.</p>
+
+<p>Poz-se a pensar nas passadas e saudosas pocas da sua felicidade, fruda com
+a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetao selvatica e cheia de
+grandiosidade das florestas amazonicas...</p>
+
+<p>E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosssima, respondeu
+quelle<span class="pn"><a id="pg_67" name="pg_67">{67}</a></span> beijo
+nascido de duas bccas amantes no silencio de to linda noite paraense.</p>
+
+<p>Entretanto, a cana seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela
+correnteza.<span class="pn"><a id="pg_68" name="pg_68">{68}</a><br>
+<a id="pg_69" name="pg_69">{69}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION008000000">Ao despertar</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION008100000">Ao sr. A. R. d'O. Gomes</a> </h3>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p><em>Nem tudo o que luze ouro.</em><br>
+ <small>PROVERBIO POPULAR.</small></p>
+</blockquote>
+
+<h2><a name="SECTION008110000">I</a> </h2>
+
+<p>A alcova nupcial em noite de noivado.</p>
+
+<p>Um perfume suave de flres volita invisivelmente pela atmosphera da pea,
+exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas variegadas em cres
+desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas
+para o leito de alvas cortinas<span class="pn"><a id="pg_70"
+name="pg_70">{70}</a></span> discretamente cerradas... Uma lmpada com vidros
+baos, cr de leite, esparze branda luz em torno, sem crepitao, n'uma solenne
+impassibilidade, que d certo ar magestoso ao silencio do recinto.</p>
+
+<p>Dois pares de pantufos de sda branca escancaram as cavas como n'um bocejo,
+sobre a fina alcatifa azul, aos ps da cama.</p>
+
+<p>Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flres de larangeira repousa
+meio escondida sob um leno de fina baptista com um monogramma bordado.</p>
+
+<p>Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pllida e trmula,
+seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira preguiosa o elegante
+espartilho e o corpinho de labyrintho....</p>
+
+<p>Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se lhe
+antolhavam na vida que ia comear em breve, deixou-se escorregar pelos finos
+lenes e descanou a bella cabea de paraense morena, em cima do travesseiro
+macio como a flr do algodoeiro....</p>
+
+<p>E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a
+passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios contrahidos n'um
+leve rictus de satisfao, de ventura.</p>
+
+<p>Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma
+pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:</p>
+
+<p>&mdash;Permittes?....<span class="pn"><a id="pg_71"
+name="pg_71">{71}</a></span> </p>
+
+<p>E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaados, sonhando
+felicidades paradisacas, um perfume suave de flres volita pela atmosphera da
+pea, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas multicores
+desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas
+para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas.</p>
+
+<h2><a name="SECTION008120000">II</a> </h2>
+
+<p>O casamento realisado n'aquelle dia fra o epilogo de um longo namoro de
+seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como indisposies
+subitas, brigas e malquerenas de alguns mezes por causa de nonada, e, depois,
+de repente, pela influencia de no sei que espirito benefico, pazes feitas com
+abundantes expanses apaixonadas, reconciliaes ternas e carinhosas, que os
+prendiam temporariamente n'um enlevo.</p>
+
+<p>O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, brazileiro
+obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfao<span class="pn"><a
+id="pg_72" name="pg_72">{72}</a></span> do homem rico que vive contentssimo da
+sorte.</p>
+
+<p>Creara para a filha um ideal&mdash;um casamento com um bacharel. Similhante
+aspirao, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa roda, para
+a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,&mdash;a mulher
+morrera-lhe de parto, ao dar luz um ente rachtico, inviavel,&mdash;deixava a
+filha nos sales e ia procurar as mesas de jogo, para encurtar o tempo.</p>
+
+<p>Assim andaram os dois, por espao de muitos mezes, em verdadeira
+peregrinao cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz attendel-os e
+appareceu-lhes na frma de um elegante mancebo, que dias antes chegara de
+Pernambuco, sobraando o pergaminho que lhe conferia o titulo de bacharel em
+direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das graas de Paula. Aquella cutis
+morena e avelludada; os olhos d'ella,&mdash;duas blas d'onix engastadas em
+amendoas de jaspe, sombreadas por longos cilios sedosos;&mdash;os longos
+cabellos d'bano, ondeando-se-lhe pelas espaduas de farta carnao; aquelle
+bonito torso de opulentos seios na apojadura da juvenilidade;&mdash;tudo n'ella
+prendia-lhe o enamorado espirito em os laos d'uma paixo to sincera quanto
+profunda. Mas, sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava
+a grandes xtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso espiritualisado
+e<span class="pn"><a id="pg_73" name="pg_73">{73}</a></span> prenhe de
+beatitude, eram os alvos dentes que perlavam as carminadas gengivas d'ella,
+quando Paula fitava-o sorrindo, com duas covinhas sobre as faces, bem junto ao
+rosto d'elle, como desejando magnetisal-o.</p>
+
+<p>Uma tarde, aps haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, foi
+para casa com a alma perfumada pelo prazer e to enthusiasmado sentiu-se, que
+sentou-se secretria e entrou a fazer uma poesia,&mdash;elle que jmais
+fizera versos!&mdash;uma poesia em que abundavam as
+palavras&mdash;<em>seductora virgem</em>, <em>divinal espirito
+archanglico</em>, em uma terrivel mescla d'enormes ps quebrados, com grande
+escandalo das regras formuladas por A. Feliciano de Castilho.</p>
+
+<p>Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.</p>
+
+<p>Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo s pensava nos dentes da
+noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o encantavam.
+</p>
+
+<p>E phantasiava um capricho, cuja lembrana era sufficiente para lhe dar ao
+corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o primeiro beijo
+que dsse mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!</p>
+
+<p>Afinal, aquelles dentes eram uma obsesso para Alfredo. Para qualquer parte
+que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula sorrindo-lhe
+amoravelmente,<span class="pn"><a id="pg_74" name="pg_74">{74}</a></span>
+incitando-o a uma tentativa agradavel de roubo de um sculo. O colete, que elle
+enfiava n'esse instante, assumia a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos
+hombros, perto dos quaes pulsava o corao, arfando em anhelos. E, quando o
+padrinho appareceu entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que j era
+tempo de ir para a egreja, estava to abstracto da vida regular, to
+concentrado em suas phantasiosas meditaes, que abraou-o commovido,
+murmurando:</p>
+
+<p>&mdash;Que bella dentadura, que tens!</p>
+
+<h2><a name="SECTION008130000">III</a> </h2>
+
+<p>Na egreja e ceia opipara que seguiu-se ceremonia religiosa em casa do
+velho pae de Paula, durante a longa e&mdash;para elle,&mdash;enfadonha
+conversao subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros,
+Alfredo s pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com a
+fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao ouvido, com
+um sorriso eloquente por traz do leno amarrotado<span class="pn"><a id="pg_75"
+name="pg_75">{75}</a></span> na palma da mo, opinies em nada favoraveis sua
+reputao de sobriedade em assumpto de succo de uva....</p>
+
+<p>&mdash;Que te parece o <em>gajo</em>, hein?&mdash;diziam.&mdash;Pois isso
+l cousa que se faa? Embebedar-se no dia do casamento....</p>
+
+<p>&mdash;Que escandalo!</p>
+
+<p>&mdash;Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.</p>
+
+<p>E seguiam por esta norma os commentarios&mdash;todos reumando idas
+gordurosas e indecentes.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente,
+muito lisongeiado pelas felicitaes que lhe foram feitas, com acompanhamento
+de expressivos belisces pelos braos e nas gordas bochechas. Afinal, somente
+faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, impassivel como um abbade aps a
+ceia, fumava a um canto, affagando com amortecido olhar a fumaa do charuto,
+alm de forcejar por combater a fora dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao
+cerebro, em razo do abuso que antecedentemente fizra das bebidas, mesa,
+quando brindra, com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe
+politico do partido e ao Manoel<span class="pn"><a id="pg_76"
+name="pg_76">{76}</a></span> do Rosario, o commerciante que no trepidava em
+tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasies de aperto....</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Que elle, Alfredo, devia, e com muita razo, sentir a impaciencia
+espicaar-lhe as costas,&mdash;ponderou de repente o sogro, sorrindo
+malicioso;&mdash;que no se enfastiasse, porm, visto como ainda l estava na
+alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a <em>toilette</em>. Era natural
+aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por ellas
+havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de hymineu elle
+tivra nos braos da sua Sancha, uma odivellense tentadora como um demonio
+formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a evocao da memoria da
+esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata amizade inalteravel, abundante
+em amorosidades agradaveis e interminas! Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia
+tratar de imital-o, para fazer a felicidade d'aquella creaturinha innocente e
+sem defeitos physicos ou moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua
+mulher. Que a poupasse, que lhe no desse trabalho em demasia para no a
+fatigar: o dte d'ella unido ao dinheiro que elle tinha, poderia
+porpocionar-lhes uma existencia descuidosa nos braos d'uma indolencia salutar
+propicia gordura....</p>
+
+<p>E entrava em demoradas consideraes<span class="pn"><a id="pg_77"
+name="pg_77">{77}</a></span> a respeito da ba vida,&mdash;como sectario da
+vadiao, que era.</p>
+
+<p>Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo
+recolher-se ao quarto que lhe fra destinado para passar a noite em casa dos
+noivos.</p>
+
+<p>Alfredo no quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abrao ao velho e
+correu alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos bellos
+dentes de Paula.</p>
+
+<h2><a name="SECTION008140000">IV</a> </h2>
+
+<p>A alcva nupcial na manh seguinte ao dia do casamento.</p>
+
+<p>Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na pea e vae
+beijar as rosas de varias cres que, emergindo de grandes jarros de porcellana,
+pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos espelhos, como invadidas
+por um pudor, em razo dos amorosos ruidos que durante a noite inteira sairam,
+por intermittencias de longos socegos, d'aquella cama honestamente encoberta
+pelos discretos<span class="pn"><a id="pg_78" name="pg_78">{78}</a></span>
+refolhos das cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam
+alegremente, cumprimentando o sol e fazendo a crte s gallinhas, que cacarejam
+esgaravatando o cho.</p>
+
+<p>E um como effluvio de ventura evla-se pelo aposento....</p>
+
+<p>E a luz da lampada de vidros fscos dimine de intensidade, bruxola
+palpitante, ameaando extinguir-se....</p>
+
+<p>Em cima da commoda, a grinalda de flres de larangeiras occulta-se mais
+debaixo do leno de custosa cambraia, como envergonhada, ou como enxugando
+n'elle as lgrymas que o espirito da Pureza houvesse porventura derramado sobre
+suas ptalas inodoras....</p>
+
+<p>Aos ps da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de sda
+branca escancaram as cavas, n'uma expresso de abhorrecimento pela demorada
+immobilidade, n'uma expresso de appello aos ps que devem calal-os.</p>
+
+<p>De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem desperta.
+E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven noivo, em cujos
+labios se desenha um franco sorriso de satisfao intima. E l dentro, na meia
+sombra que as rendas projectam, dorme ainda a formosa Paula, semi-na, no
+inconsciente despudor de um somno que foi agitado...</p>
+
+<p>Alfredo olha para todos os lados, muito<span class="pn"><a id="pg_79"
+name="pg_79">{79}</a></span> contente e risonho. Ao ver o raio de sol que
+beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua ventura n'um devaneio
+de grande felicidade por vir.... Mas de subito, estarrecido, confuso, muito
+pllido e crispando as mos, entra a tremer todo, com as feies demudadas, os
+cabellos arrepiados na cabea encandescida!</p>
+
+<p> cabeceira do leito, sobre o elegante <em>guridon</em> de jacarand,
+estava uma dentadura patenteiando um co de bcca postio e acinzentado, feito
+de massa!.....</p>
+
+<p>E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos pequeninos
+dentes eguaes e perfilados correctamente....</p>
+
+<p>Ento, sentindo enormes dres em todo o sr, com o espirito prostrado pela
+emoo violentssima, Alfredo cambaleou, soluando, e foi car beira do
+leito, lavado em lgrymas, a murmurar n'um gemido:</p>
+
+<p>&mdash;Estou roubado, estou roubado!<span class="pn"><a id="pg_80"
+name="pg_80">{80}</a><br>
+<a id="pg_81" name="pg_81">{81}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION009000000">Poemetos em prosa</a> </h1>
+
+<h2><a name="SECTION009100000">I<br>
+Bidinha</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009110000">A Mucio Javrot</a> </h3>
+
+<p>Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao ideal e faceira, haviam-lhe
+feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, ella comeou a
+amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, encontrava-o em casa da prima,
+crava, julgava soffrer e gosar a um tempo e entrava a fital-o amoravel<span
+class="pn"><a id="pg_82" name="pg_82">{82}</a></span> e longamente, com essa
+persistencia abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....</p>
+
+<p>O poeta conheceu no ser indifferente quella moa to pllida, to triste,
+cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixes ardentssimas...</p>
+
+<p>E, no sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir casa da prima da
+Bidinha, para no vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, l foi e
+encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,&mdash;aquelles tentadores,
+faiscantes olhos eloquentes,&mdash;mais, muito mais bonitos... Teve pena
+d'ella: n'um momento em que ficaram ss na sala,&mdash;onde rescendia o perfume
+d'um ramo de resda posto n'um jarro em frente ao retrato d'uma velha senhora
+de fronte enrugada e olhar suave&mdash;declarou-lhe amal-a desde muito,
+intensamente.</p>
+
+<p>Ella, a Bidinha, a pllida donna do lbum que recebra aquelles ternissimos
+versos, d'uma inspirao idal e faceira, sorriu, estremeceu e murmurou apenas
+quasi inintelligivel som.</p>
+
+<p>D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios
+nocturnos, em aquella mesma sala.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+**</p>
+
+<p>Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua
+fidelidade<span class="pn"><a id="pg_83" name="pg_83">{83}</a></span> foram
+longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o aperto de mo de
+despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a angustia que atravessou-lhe o
+corao!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+**</p>
+
+<p>Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creana a quem
+jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, emquanto
+rescendia na sala o perfume d'um ramo de resda.</p>
+
+<p>Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dr das
+longas espectativas!... Espera-o ainda....</p>
+
+<p> tarde, quem fr ao pequenino quintal da casa d'ella, poder vel-a sentada
+sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta latada,&mdash;com o olhar
+suave e tristemente fito nas paginas d'um album, soluando baixinho palavras de
+saudosa recriminao.</p>
+
+<p>Aquelles versos ternssimos, d'uma inspirao idal e faceira, haviam-lhe
+feito comprehender que o poeta amava-a!...<span class="pn"><a id="pg_84"
+name="pg_84">{84}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION009200000">II<br>
+Paraphrase ossianica</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009210000">A Frederico Rhossard</a> </h3>
+
+<p> bella, seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do rochedo
+sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.</p>
+
+<p>Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traam sobre as nossas
+torrentes. Ouo-os passar no meio dos turbilhes e suas vozes fanhosas so os
+unicos sons a perturbar o magestoso socego das trvas.</p>
+
+<p> tu, cuja mo branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas harpas
+de<span class="pn"><a id="pg_85" name="pg_85">{85}</a></span> Lutha, tenta
+ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e dolentes. Desperta essas cordas
+adormecidas, canta, Malvina, e reaviva o meu genio, cuja chamma foi sopitada
+pelos annos implacaveis.</p>
+
+<p>Vem a mim, Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que
+entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o regato
+cae na colina e rla, depois do furaco, sob a luz radiante do sol, o caador
+escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a humida cabelleira.</p>
+
+<p>Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heres.
+Infla-se meu peito; o meu corao palpita. Delina-se a meus olhos o passado.
+Vem, Malvina, no divagues mais no meio das tnebras!<span class="pn"><a
+id="pg_86" name="pg_86">{86}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION009300000">III<br>
+O parocho da aldeia</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009310000">Ao Padre Dr. Leorne Menescal</a> </h3>
+
+<p> a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e
+olhar carinhoso como um conselho de Jesus.</p>
+
+<p>A sua parca mesa est sempre s ordens dos mendigos, a sua porta aberta
+sempre aos viajantes, a sua bcca incessantemente murmura consolaes s
+pessoas que soffrem.</p>
+
+<p>Muitas vezes, alta noite, vo chamal-o para ministrar os socorros da
+religio a algum enfermo, em qualquer das aldeias<span class="pn"><a id="pg_87"
+name="pg_87">{87}</a></span> que formam a serrana freguezia. Ento, levanta-se
+s pressas, monta a cavallo e l vae montanhas fra, a galope, ladeando
+tenebrosos precipcios, sob a chuva, tiritando de frio, impassivel como um
+here e contente comsigo mesmo, sentindo-se alegre por ir cumprir um dos
+mistres que lhe impe a sua profisso, to bem comprehendida por sua bella
+alma!</p>
+
+<p>Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos aquelles
+montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os conselhos de paz e
+bondade.</p>
+
+<p>Quando comeou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote
+arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra de
+Baturit. Em poucos mezes, graas a seus esforos e illimitada sympathia que
+a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato no tinham um sr captivo:
+todos eram eguaes!</p>
+
+<p>Quando sae de casa, encaminhando-se pequena egreja, cuja torre branca de
+neve lana-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as creancinhas,
+que bricam s portas das casas, acodem a beijar-lhe a mo e as mes saudam-n'o
+respeitosas, balbuciando uma beno....</p>
+
+<p>Aos domingos, prdica do Evangelho, vi-o, por differentes occasies, fazer
+com a unco de sua palavra, que as lgrymas borbulhassem nos olhos dos
+assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel<span class="pn"><a
+id="pg_88" name="pg_88">{88}</a></span> modo de viver, fertilssimo em bons
+exemplos.</p>
+
+<p>Nada possue: d tudo aos necessitados, sem ostentao, naturalmente!</p>
+
+<p>Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, caritativo sacerdote de
+tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....<span class="pn"><a
+id="pg_89" name="pg_89">{89}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION009400000">IV<br>
+Ao Sol</a><sup><a href="#fn2" name="mfn2">[2]</a></sup></h2>
+
+<h3><a name="SECTION009410000">A Fernando A. da Silva</a> </h3>
+
+<p> tu, que rolas por cima de nossas cabeas, resplandecente como o escudo de
+nossos paes; d'onde saem os teus raios, sol? D'onde vem a tua luz? Caminhas
+em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas no firmamento;
+pllida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. Ficas sosinho, sol:
+quem poderia acompanhar-te o curso?<span class="pn"><a id="pg_90"
+name="pg_90">{90}</a></span></p>
+
+<p>Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas so minadas pelos
+annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no fundo
+dos cus; s tu s sempre o mesmo.</p>
+
+<p>Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo est sombrio
+pelas tempestades, quando o trovo ribomba e va o raio, saes radiante do meio
+das nuvens e ris do furaco!</p>
+
+<p>Mas, ai! em vo brilhas para mim! O velho bardo j te no v os raios, quer
+fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer trema s portas
+do poente a tua luz bruxoleante.</p>
+
+<p>Mas talvez, como eu, s possuas uma estao e teus annos tero um termo:
+vir talvez um dia em que empallideas no meio da carreira e a aurora proxima
+em vo esperar o teu regresso.</p>
+
+<p>Regosija-te, portanto, sol, na fora da tua juventude! A velhice triste
+e abhorrecida: parece-se com as tbias claridades da lua, as quaes perdem-se
+entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este semeia ao longe as
+estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a collina e o viajante
+transido tirita nos caminhos desertos....<span class="pn"><a id="pg_91"
+name="pg_91">{91}</a></span></p>
+
+<div class="rodape">
+<p><sup><a href="#mfn2" name="fn2">[2]</a></sup> Vertido de Ossian.</p>
+</div>
+
+<h2><a name="SECTION009500000">V<br>
+Remember</a> </h2>
+
+<h3><a name="SECTION009510000">A Paulino de Brito</a> </h3>
+
+<h4><a name="SECTION009520000">I</a> </h4>
+
+<p>No tens ento no peito a minima raiva contra mim?&mdash;perguntei-lhe
+admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.</p>
+
+<p>&mdash;No! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os
+loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, n'uma
+prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua pequenina
+pessoa,<span class="pn"><a id="pg_92" name="pg_92">{92}</a></span> delicada e
+meiga, parecia desabrochar as florescencias gentis das suas graas, dos seus
+divinos dotes triumphantes em meio pujana da invejavel mocidade!</p>
+
+<p>&mdash;Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que
+tanta bondade tens n'alma, quantas so as seduces capitosas do teu bello
+rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e faceiros,
+tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores
+effluvios!&mdash;retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attrando-a
+castamente para mim, n'um impulso de gratido, ainda todo commovido pelo prazer
+das recentes pazes.</p>
+
+<p>E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que
+manifestara-se no roubo d'um beijo,&mdash;d'um pequenino beijo
+fugitivo,&mdash;quella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo
+como que desabrochava as divinas graas triumphaes em gentis florescencias de
+invejavel juventude pujante!</p>
+
+<p>As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse
+enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seduces capitosas de to
+bello rostinho!..</p>
+
+<h4><a name="SECTION009530000">II</a> </h4>
+
+<p>Mas anoitecra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos
+jasmineiros<span class="pn"><a id="pg_93" name="pg_93">{93}</a></span>
+rescendentes maior escurido communicava parte do jardim onde haviamos feito
+pazes, aps o intemerato roubo de um beijo colhido nos rubros labios mdidos da
+minha pequenina amante fascinadora.</p>
+
+<p>Um silencio embaraador enleiava-nos em tbia indeciso. A loira cabecinha
+d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos anneis
+undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das correctissimas
+espaduas.</p>
+
+<p>E uma tentao chegou-me a sbitas, sob a latada que abrigava-nos com seus
+rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio enleiando-nos embaraadoramente
+em tbia indeciso.</p>
+
+<p>J tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descanar-me no
+hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia
+assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,&mdash;um fugitivo
+beijo pequenino e casto,&mdash;nos humidos labios da minha gentil e tentadora
+amante.</p>
+
+<p>Ella, porm, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. Uma
+das mos subiu-lhe clere altura da cabea, ameaadoramente. Bateu o psinho,
+n'uma expanso de enfado incipiente....</p>
+
+<p>&mdash;Se reincidir, no perdo mais!&mdash;exclamou, avisando-me, com a voz
+ainda repassada de toda a indolente volpia de pouco antes e fugiu-me das mos
+extendidas<span class="pn"><a id="pg_94" name="pg_94">{94}</a></span>
+nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso que me concedeu,
+emquanto descanava a fronte no meu hombro, com os formosos anneis da adoravel
+cabecinha louca undiflavando-se-lhe tranquillos pelas correctssimas espduas.
+</p>
+
+<p>Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio
+escurido, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas aps o roubo de um
+beijo,&mdash;do primeiro beijo, pequenino e casto,&mdash;aos ardentes labios
+mdidos da minha bemdita virgem.</p>
+
+<p>E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um
+recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em face
+do capricho d'aquella pequenina cabea loira, de triumphantes graas capitosas,
+que s admittira e perdoara o meu primeiro atrevimento... ainda to innocente e
+retrahido!...<span class="pn"><a id="pg_95" name="pg_95">{95}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0010000000">O preo das pazes</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0010100000">A J. A. Pinto Barbosa</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0010110000">I</a> </h2>
+
+<p>O meu amigo Ernesto accendra um charuto, concertra o <em>pince-nes</em>
+sobre o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona,
+muito ffa, em que estava sentado deante de mim e comeou:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&mdash;Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, mesa, sem
+poder contar-t'o inteiro, pela importuna presena d'aquellas senhoras.<span
+class="pn"><a id="pg_96" name="pg_96">{96}</a></span></p>
+
+<p>Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e mais
+divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de
+umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, avelludada; olhos negros
+e brilhantssimos,&mdash;como duas caoilas de mysteriosos philtros
+embriagadores;&mdash;cabellos muito pretos e ondeados, rescendentes a ba
+olencia de selvtica baunilha; um donaire, uma soberania inteira de magestoso
+porte e fidalga apresentao captivante, capaz de enleiar-nos em toda a srie
+de crimes que ao humano pensamento dado formular em dias de trvas reflexes
+e sinistras ebriedades peccaminosas: uma revelao pasmosa, um exemplar
+perfeitssimo da mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archtypo da elevao
+dos dotes, a civilisada manifestao das nossas lendrias yras amazonicas! E,
+a par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustrao perfeita de erudita,
+conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvssimos, pequeninos e
+eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, engastados em formoso
+coral, brilhante como os rseos labios humidos da microscpica boquinha
+sombreada d'um leve buo,&mdash;o complemento da seduco, o requinte da
+tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a
+Marcas, a esposa do altivo general Bandeira,<span class="pn"><a id="pg_97"
+name="pg_97">{97}</a></span> velho quinquagenario d'elevada riqueza
+materialisada em appetitosas centenas de contos de ris, depositados nos
+principaes bancos do Brazil.</p>
+
+<p>Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a azulada
+fumaa d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no espao, como poderia
+amal-a o esposo, vendo-a to nova, a seu lado, toda entregue a seu
+amor,&mdash;desde os timidos beijos assustadios repentinamente dados, s
+vezes, no vo de qualquer janella dos aposentos desertos de enfadonhas
+testemunhas, at ao completo desnuamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido
+e clido, que apresentava-lhe na mysteriosa liberdade pacifica da recatada
+alcva, alta noite, com a sua elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre
+neves de rendas, diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.</p>
+
+<p>Uma fascinao, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos
+caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a todos
+os sacrificios para conquistar uma estima fora de constantes provas de
+louvavel desinteresse.</p>
+
+<p>Confesso no ter ainda visto a repetio d'aquella invejavel existencia
+d'affectuoso enlevo,&mdash;elle no declinar da vida, ella em toda a maravilhosa
+florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas inteiras a
+contemplal-os, absorto na admirao d'essa<span class="pn"><a id="pg_98"
+name="pg_98">{98}</a></span> alheia felicidade que fazia-me
+venturoso,&mdash;tanto certo que uma perfeita harmonia de suave existencia
+rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso
+transbordamento do seu excesso. </p>
+
+<p>Muitos annos haviam j passado, desde que o matrimonio os uniu, quando
+Marcas fizra o seu decimo quinto anniversario,&mdash;e nem um s instante o
+arrependimento lhes chegra de se terem para sempre ligado por um prematuro
+enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel reproduco do dia em
+que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcva, deram-se,
+entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoravel tratamento de esposo.</p>
+
+<p>Verdadeiramente admiravel, no achas?</p>
+
+<h2><a name="SECTION0010120000">II</a> </h2>
+
+<p>Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposio fluctuou,
+soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla felicidade
+jubilosa de ambos.</p>
+
+<p>Foi uma verdadeira desgraa suscitada<span class="pn"><a id="pg_99"
+name="pg_99">{99}</a></span> por um capricho desarrazoado da formosa mulher do
+general. Elle tivera o arrojo de negar-se,&mdash;pela primeira vez,
+certo,&mdash;a satisfazel-o, e a Marcas soffrera em cheio no corao a dureza
+da spera repulsa. Longos fios d'interminaveis lgrymas deslisaram-se-lhe dos
+grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os com fora, circulando-os das
+roxas manchas tristonhas que tm os infelizes habituados ao pranto.</p>
+
+<p>Mas esta manifestao de fraqueza apenas algumas horas durou,&mdash;emquanto
+o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos
+desmarcados o soalho, j meio arrependido da quasi brutal violencia com que
+resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.</p>
+
+<p>Depois veiu a reaco, em seguida crise hysterica dos abundantes prantos
+silenciosos. Uns assomos de magestosa indignao, muito concentrada e muda,
+chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao
+marido memoraveis ensinamentos de justas represalias.</p>
+
+<p>E a Marcas prometteu elevar-se acima de si propria, ser to rispida como
+brutal havia sido o incivil do general.</p>
+
+<p>Ai, meu caro amigo! Foi severa a lico! O pobre general Bandeira mais d'uma
+vez sentiu-a espicaando-o, quando o despeito da Marcas, ao fim da primeira
+semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho<span class="pn"><a
+id="pg_100" name="pg_100">{100}</a></span> em seu quarto,&mdash;n'uma triste
+solido de viuvez frigidissima...</p>
+
+<p>Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com
+valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sr. Seria possivel que no
+tivesse a fora de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto temiam os
+paraguayos, annos antes, nas selvticas solides onde o nosso exercito ferira
+to sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?</p>
+
+<p>Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resolues enfraqueceram, como cae
+uma vla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente
+o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.</p>
+
+<p>O general desejou capitular, ne extrmo das foras. Um arrependimento, cujo
+peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe aps essas momentaneas
+resolues de superiores resistencias... impossiveis n'aquelle pobre e velho
+espirito d'homem tolamente embeiado pelas captivantes graas da mulher.</p>
+
+<p>Com effeito, capitulou.</p>
+
+<p>Uma noite, quando os corredores abandonados no repercutiam mais os passos
+das escravas e uma luz baa cava-se pelos fscos vidros de lampadas discretas,
+sau cauteloso da sua alcva e, com o corao a pulsar violento, dirigiu-se ao
+quarto da mulher.</p>
+
+<p> porta, parou, indeciso.<span class="pn"><a id="pg_101"
+name="pg_101">{101}</a></span></p>
+
+<p>Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira
+entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona sensualmente
+esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.</p>
+
+<p>Marcas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples
+ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher que em nada de
+mau pensa.</p>
+
+<p>Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava dando.
+Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello corpo, feito
+d'mbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporisando a tpida
+emanao subtil das suas frescas, rosadas carnes bellamente seductoras e
+deliciosamente juvenis.</p>
+
+<p>Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, afflando
+precpites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a
+porta, correu para junto da mulher e lanou-se-lhe aos ps, choroso,
+supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdo,
+solicitando um armistcio, pedindo pazes selladas com a ardencia d'uma
+deliciosa e suprema compensao!</p>
+
+<p>Ella, porm, a Marcas, impassivel e impertubavel&mdash;ao tempo que
+envolvia-se toda em fino lenol de transparente cambraia, n'um gracioso rubor
+de impeccavel<span class="pn"><a id="pg_102" name="pg_102">{102}</a></span>
+donzella,&mdash;estendeu o brao para a porta e, mostrando-lh'a, disse ao
+general estarrecido:</p>
+
+<p>&mdash;Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizr
+apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.</p>
+
+<p>E elle teve de sar,&mdash;ao reconhecer a impossibilidade de persistir
+n'uma resistencia, que s poderia ser-lhe prejudicial.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0010130000">III</a> </h2>
+
+<p>O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um
+meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a mulher,
+sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o salvasse da
+terribilssima coliso.</p>
+
+<p>Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosssimos: sdas, joias e finas pedrarias
+em todo o Par no houve, que logo as no comprasse profusamente, para amimar a
+caprichosa Marcas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraadoras.
+Nada<span class="pn"><a id="pg_103" name="pg_103">{103}</a></span> conseguia,
+seno augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de
+enrubecida vergonha, pela capitulao a que estava a sujeitar-se, com toda a
+mesquinhez das pequeninas baixezas.</p>
+
+<p>Um caso fortuito, porm, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento
+pesava-lhe j como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado aos
+hombros desformados de msero ano corrodo por toda a srie das enfermidades
+secretas.</p>
+
+<p>Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fra o general Bandeira convidado para
+examinador de mathematicas, durante os exames da commisso especial da
+delegacia geral da instruco secundaria do municipio da crte,&mdash;essa
+creao absorvente e desconchavada, que tira toda a fora autonmica dos nossos
+lyceus provincianos, reduzindo-os s simples e modestas propores de
+insignificantes escholas de primrdios scientificos e litterarios, destituidos
+do mnimo valor perante as academias superiores do Imperio...</p>
+
+<p>Mas dispensemos esta tirada pedaggica, meu excellente amigo, e continuemos
+na exposio dos acontecimentos que prometti referir-te.</p>
+
+<p>O general acceitra e convite com extraordinario gaudio do delegado
+especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude
+<em>catonismo</em> do Bandeira. Disposto a<span class="pn"><a id="pg_104"
+name="pg_104">{104}</a></span> conservar as suas tradies de severo
+examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia marcado,
+quando&mdash;oh! admirao!&mdash;appareceu-lhe no quarto a mulher, a Marcas,
+arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o clo,
+por cima das mais appeteciveis redondezas trgidas que possivel imaginar.</p>
+
+<p>Trmulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto,
+esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e enterrou-o
+desgeitosamente na bocca, em sentido opposto quelle de que deveria servir-se
+para fumar satisfactoriamente.</p>
+
+<p>O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu
+entre elle e a Marcas uma distancia consideravel.</p>
+
+<p>A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os
+dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a necessaria
+seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espao que
+approximava-a d'elle.</p>
+
+<p>Depois, disse, estendendo-lhe um carto de visita:</p>
+
+<p>&mdash;Ve hoje examinar mathematicas, general?</p>
+
+<p>&mdash;Vou... sim...</p>
+
+<p>&mdash;Pois ento, este moo ir fazer exame por mim...</p>
+
+<p>&mdash;?...<span class="pn"><a id="pg_105" name="pg_105">{105}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Ouviu...?</p>
+
+<p>&mdash;Sim.</p>
+
+<p>&mdash;Veja l como se porta. As mathematicas no so o <em>meu</em> forte.
+<em>Eu</em> no estou muito <em>habilitada</em>.</p>
+
+<p>E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assdio, por
+similhante reclamao de um escandalo impossivel sua severidade, a bella
+Marcas fugiu a correr nos bicos dos ps, arrastando a cauda do penteador,
+diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, essencias boas e
+rijas carnes femins e jovens.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0010140000">IV</a> </h2>
+
+<p>Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o carto que lhe
+entregara a mulher:</p>
+
+<p class="centrado" style="border: solid 1px #000; margin: 1em;padding: 1em;"><em>Antonio da Silva Larangeira</em><span class="pn"><a
+id="pg_106" name="pg_106">{106}</a></span> </p>
+
+<p>Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira.
+Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos quirir, olhos
+arregalados e unhas sujas, orladas de escoriaes na derme. Que era elle
+proprio, sim senhor. E uma vz fanhosa, cheia de bajulaes servilssimas,
+resmoneou a pequena phrase affirmativa, solicitando ali, em sua exaggerada
+affabilidade, a complacencia do examinador.</p>
+
+<p>O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoo, mal
+resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que tivra o
+arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marcas, para induzil-o ao crime d'uma
+indignidade&mdash;arrastal-o a quebrar os seus votos de severa justia de
+indomavel rispidez com os estudantes.</p>
+
+<p>D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova
+escripta no poderia ser peor. Escusado dizer-te que o pequeno espesinhou a
+sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. Como, porm,
+desempenhava ali as altas funces de representar a bella Marcas, falta de
+Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgencia
+dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.</p>
+
+<p>Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando
+appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente<span class="pn"><a
+id="pg_107" name="pg_107">{107}</a></span> a gratos perfumes finssimos,
+<em>Couro da Russia</em>, e <em>jasmim do Cabo</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Ento?&mdash;perguntou ella meio-rindo.</p>
+
+<p>&mdash;Approvado, affirmou o general deixando pender a cabea,
+desfallecido,&mdash;talvez envergonhado da sua fraqueza, crando porventura de
+no haver opposto resistencia tentao.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! bello! bello!&mdash;gritou a Marcas, lanando-se-lhe ao pescoo,
+beijando-o com frenesi, apresentando-lhe flor do rosto&mdash; ponta do
+nariz&mdash;os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas
+que ornavam o penteador sobre o peito.</p>
+
+<p>Elle abriu os braos, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande
+amplexo nervoso&mdash;a manifestao penultima do seu intensssimo desejo de
+reconciliar-se com a mulher.</p>
+
+<p>Ella impellia-o, devagarinho porm incessantemente, para o sof perfilado
+junto secretria do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os
+labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.</p>
+
+<p>Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel,
+silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas
+lgrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.</p>
+
+<p>&mdash;Que tens? inquiriu ella, assustada,<span class="pn"><a id="pg_108"
+name="pg_108">{108}</a></span> beijando-o sobre uma orelha, amimada e
+tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcssima harmonia.</p>
+
+<p>&mdash;Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um
+escandalo, aquella approvao!</p>
+
+<p>&mdash;Ah! volveu ella, abraando-o com fora, reconquistando-o,
+reconduzindo-o para o sof, espiritualisada de prazer, sorrindo
+extranhamente.</p>
+
+<p>E aps um instante empregado em oscular a fronte encanecida do
+esposo,&mdash;cando ambos para o sof hospitaleiro&mdash;murmurou-lhe ao
+ouvido, entre um <em>rugeruge</em> de roupas:</p>
+
+<p>&mdash;O que bom custa caro!<span class="pn"><a id="pg_109"
+name="pg_109">{109}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0011000000">Historia incongruente</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0011100000">Ao dr. Franklin Tavora</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0011110000">I</a> </h2>
+
+<p>Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel Fonseca.
+</p>
+
+<p>A paizagem alegre que cercava a fazenda j no tinha o poder de evocar-lhe
+aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhs
+saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.<span class="pn"><a
+id="pg_110" name="pg_110">{110}</a></span></p>
+
+<p>As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transio subita no
+animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, hora da sesta no traziam
+nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem causa apparente. Todas as
+interrogaces, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do
+ancio, que persistia n'um silencio desanimador.</p>
+
+<p>E no havia razo para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda
+progredia, graas ao magnifico tempo que, havia dois annos, reinava, o gado
+engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposio para o
+trabalho.</p>
+
+<p>O Thiago, filho unico do coronel, no reparara ainda n'aquellas
+concentraes do pae. Vivia todo entregue a uma paixo to ardente como
+sincera, para ligar atteno a qualquer coisa que se passasse em outra parte
+que no fosse no proprio corao.</p>
+
+<p>E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir villa
+proxima, bem merecia aquella dedicao egoistica, porm desculpavel.</p>
+
+<p>Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma
+honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a cuidar
+dos irmosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a apaparical-os, a
+rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar physico do todos
+aquelles pequeninos sres<span class="pn"><a id="pg_111"
+name="pg_111">{111}</a></span> a ella confiados pela me, na occasio de
+morrer.</p>
+
+<p>Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que
+era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.</p>
+
+<p> certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para
+dia mais se ligava de amizade <em>Venancia da villa</em>, como rapariga
+chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da <em>maqueira</em> do coronel,
+quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia muitas vezes
+ouvil-o pronunciar estas palavras:&mdash;" impossivel similhante
+casamento!"</p>
+
+<h2><a name="SECTION0011120000">II</a> </h2>
+
+<p>Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu
+correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que necessitava
+falar-lhe com urgencia.</p>
+
+<p>O velho estremeceu, prevendo talvez<span class="pn"><a id="pg_112"
+name="pg_112">{112}</a></span> que o filho ia acercar-se d'um assumpto ao qual
+elle fugia ha muito tempo.</p>
+
+<p>Foi a fazer um violento esforo sobre si mesmo que murmurou:</p>
+
+<p>&mdash;Fala quando quizeres.</p>
+
+<p>Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.</p>
+
+<p>O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma
+expresso de curiosidade e pavr. Tremia ligeiramente, com os nervos todos
+irritados.</p>
+
+<p>&mdash;O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.</p>
+
+<p>No entanto, Thiago enxugava o pescoo com o leno e comeava em seguida:</p>
+
+<p>&mdash;Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe importante de
+mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. Vou ser
+breve, mesmo porque estou morto por saber qual ser a resposta de meu
+pae.&mdash;Desejo casar-me.</p>
+
+<p>Conteve o coronel um gesto de indignao e disse, mostrando indifferena.
+</p>
+
+<p>&mdash;Pois casa-te, rapaz. Eu no me opponho.... Contanto que seja a moa
+escolhida merecedora de ser tua mulher....</p>
+
+<p>&mdash;Oh! se tal a condio que apresenta, posso affianar-lhe que
+brevemente me casarei. Ba e sria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de
+dedicao, creio que poucas moas como ella encontrei no Par durante os seis
+annos que l estive a estudar no seminario e no lyceu.<span class="pn"><a
+id="pg_113" name="pg_113">{113}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dres
+nas fontes, com o corao accelerado, porm a affectar
+tranquillidade.&mdash;Mas ento quem a rapariga?</p>
+
+<p>Thiago sorriu indizivelmente,&mdash;com uma beatifica expresso de
+intensssima felicidade no semblante, e exclamou:</p>
+
+<p>&mdash; a <em>Venancia da villa</em>, a minha querida Venancia!</p>
+
+<p>O velho ergueu-se impellido pela commoo. Suppondo tal aco um meio de que
+o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago ergueu-se
+tambem e correu a abraal-o.</p>
+
+<p>Mas o velho, fazendo um lento signal com o brao estendido, paralysou-lhe a
+vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:</p>
+
+<p>&mdash;Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores
+com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecers um dia, impediam-me de
+favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de oppr-me a elles
+desassombradamente. Fing ignorar tudo, na esperana de que os annos lanassem
+o tdio sobre as vossas almas captivas uma da outra por aquillo que eu pensava
+ser o enthusiasmo pela novidade. Com immensa dr verifiquei o meu engano,
+porquanto foste fiel tua palavra, do mesmo modo por que Venancia o foi sua.
+Isto seria uma grande<span class="pn"><a id="pg_114"
+name="pg_114">{114}</a></span> felicidade se no fosse uma enorme desgraa.
+Quer dizer, seria um apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da
+tua paixo fosse qualquer outra mulher, que no a Venancia..... Olha, Thiago,
+sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me fra
+a magoar-te o corao, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, ausenta-te de
+Maraj, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade
+longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma mulher a quem possas offerecer
+a mo....</p>
+
+<p>&mdash;Mas porqu, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o corao
+oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras do pae
+minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido com um
+profundo amor expurgado de malicia.</p>
+
+<p>&mdash;Porque assim necessario,&mdash;redarguiu o velho, n'uma vehemencia
+de gesto e de entonao.</p>
+
+<p>&mdash;Pois fique sabendo que, se no explicar satisfactoriamente a causa de
+similhante opposio, s tomarei as suas palavras como originarias d'uma razo
+que a edade torna vacillante e digna de piedade!&mdash;bradou Thiago j fra de
+si, ferido n'essa grande poro de egoismo que todo o homem tem comsigo.</p>
+
+<p>&mdash;Ingrato, murmurou o velho, deixando-se<span class="pn"><a id="pg_115"
+name="pg_115">{115}</a></span> car sentado e chorando copiosamente.&mdash;Pois
+assiste morte do teu corao, visto assim o desejares: ouve-me!</p>
+
+<p>Pela janella aberta, via-se o vastssimo campo do lado oeste da fazenda,
+coberto d'uma vegetao uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos saltavam
+s cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam
+tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as longas caudas n'um
+compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro preto, perfilado e srio,
+olhava para a linha escura do horisonte, entretido em lamber as ventas
+lustrosas de ranho com a flexivel lingua cr de cinza de charuto. Um cheiro
+almiscarado d'erva scca e de excremento de boi subia at ao quarto. Vaqueiros
+zangarreavam n'umas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de
+mamoseiro. Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com
+essas faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espao em propagaes suaves
+que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil de
+extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito distante sobre
+o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, magestosa e
+tranquilla em sua imponencia seductora.</p>
+
+<p>O velho enxugou as lgrymas e comeou a falar.<span class="pn"><a
+id="pg_116" name="pg_116">{116}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION0011130000">III</a> </h2>
+
+<p>&mdash;Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa me nos faltou. At
+agora no sei como possivel me foi resistir a essa desgraa, que eu a principio
+reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei encerrado n'este
+quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguem, apenas gozando em
+tuas innocentes caricias um pallido reflexo d'aquelles grandes affagos que a
+tua idolatrada me fazia-me constantemente. Passados esses tres annos,
+comprehendi que o teu futuro exigia-me impozesse silencio minha dr, e
+cuidasse de nossos bens, para dar-te uma ba educao e, depois da minha morte,
+fazer-te herdeiro de uma riqueza sufficiente tua manuteno. Sa, pois, do
+quarto, pedindo mentalmente alma de tua me tomasse este sacrificio como
+feito por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus
+exigiam que eu fizesse frequentes viagens villa, onde, ha vinte e tres annos,
+isto , quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher
+d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da villa. Essa senhora era
+o retrato<span class="pn"><a id="pg_117" name="pg_117">{117}</a></span> vivo de
+tua me. Por um phenomeno de impressionismo,&mdash;sem o querer, sem o
+sentir&mdash;fui-me enlevando das graas d'ella, at chegar ao ponto de pensar
+que tua ba me tornra vida e volvra a amar-me como d'antes!</p>
+
+<p>Quando eu ia villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. Tal
+convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em grande
+paixo, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves faziam com que o
+marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, deixando-me ao lado da
+mulher que.... poupa-me a vergonha de communicar-te que.... titubeou o coronel,
+muito triste, com os olhos mareados de lgrymas, a arfar do peito e a contrahir
+o rosto n'uma visivel agonia causada pelos remorsos.</p>
+
+<p>&mdash;Emfim,&mdash;disse com energia e, desta feita, dando expanso ao
+pranto,&mdash;o resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixo, foi o
+nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser sua
+filha....</p>
+
+<p>&mdash;E essa menina ... Ve..nan..cia?&mdash;inquiriu Thiago com os olhos
+arregalados, os cabellos crispados, as mos fechadas fortemente, sentindo
+fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoo.</p>
+
+<p>&mdash;Sim, Thiago, sim, Venancia, fructo da minha infamia, a filha do
+crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel<span class="pn"><a
+id="pg_118" name="pg_118">{118}</a></span> que no soube resistir minha
+tentao! Venancia, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento!
+tua irm, insensato!...</p>
+
+<p>E cau redondamente para traz, agitado nas convulses da gotta, da sua
+molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rde de maqueira,
+fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma vida que d'ahi em
+deante s poderia ser de tormentos e angustias indiziveis.<span class="pn"><a
+id="pg_119" name="pg_119">{119}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0012000000">A lico de "Paleographo"</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0012100000">A Heliodoro de Brito</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0012110000">I</a> </h2>
+
+<p>A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma
+confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trdas amarguras do largo e profundo
+golpe que breve teria de receber-lhe o amantssimo corao de me.&mdash;O
+commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a Europa, de
+concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua resoluo<span
+class="pn"><a id="pg_120" name="pg_120">{120}</a></span> de levar comsigo a
+pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda
+favorita de todas as pessoas d'aquella abastada familia actualmente em vesperas
+de viagem.</p>
+
+<p>E ella, a me extremosa, que s vivia do tenro affecto suavssimo da filha,
+na tenebrosa passividade do seu captiveiro,&mdash;no obstante a bondade com
+que era tratada por todos,&mdash;teria de ficar no Par, separada do pequenino
+ente que deslaava-lhe o espirito em fulgidas chimras de loiras phantasias, em
+meio ao triste vegetar da sua existencia!</p>
+
+<p>Uma dr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora
+privados de lgrymas sob o ltego inclemente do seu primeiro senhor, antes de
+ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por
+toda a noite passada em claro aps a declarao ouvida pela manh.</p>
+
+<p>S a lembrana de to rude separao fazia-a soffrer tanto; o que no seria
+a crua realidade?</p>
+
+<p>Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluando a furto, no dia
+seguinte,&mdash;com os olhos, mudamente cheios de qurulas expresses, fitos na
+rapariguinha,&mdash;acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de
+benevolencias, consolou-a a meio.</p>
+
+<p>&mdash;Que se no affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a
+familia,<span class="pn"><a id="pg_121" name="pg_121">{121}</a></span> d'ali a
+annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia trazer-lh'a instruida,
+educada, elegante e feliz,&mdash;uma verdadeira senhora. At ella, Josepha, se
+arrependeria ento da sua tolice actual, porque reconheceria os beneficios que
+tinham querido fazer-lhe filha. Pois no era certo que todos ali
+tratavam-n'as to bem, me e filha e que esta era tida menos como uma
+<em>ingnua</em> do que como se, realmente, fosse originaria do casamento
+d'elle commendador com sua esposa? Confiasse a Josepha em seus senhores e o
+futuro mostrar-lhe-ia com exuberancia a justeza do seu proceder.</p>
+
+<p>Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava.
+Eliminal-a, porm, d'alma, era impossivel, que no pde um corao de me
+deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestaes, lhe roube o
+ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos frmitos delirantes
+da mais intensa dr.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0012120000">II</a> </h2>
+
+<p>A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a
+pequena Isaura.<span class="pn"><a id="pg_122" name="pg_122">{122}</a></span>
+</p>
+
+<p>Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas afflices,
+no pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as outras escravas
+atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de tudo, olhando em frente,
+como se divisando estivesse nos curtos longes do horisonte limitado uma viso,
+s para ella creada, a attrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas
+as foras vivas do espirito e da razo.</p>
+
+<p>Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a s
+pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expresso do
+rosto, como quem est acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.</p>
+
+<p>O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta.
+Bateu desusadamente o corao da preta. Aquelle papel no poderia ser seno da
+sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao socio, pedia-lhe
+sempre informasse Josepha estar a filha d'esta com saude, muito desenvolvida
+e bastante adeantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar
+longamente aquelle homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.</p>
+
+<p>&mdash;Anda, vae, disse elle; uma carta de tua filha.... escripta por ella
+propria.</p>
+
+<p>Escorreram lgrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim
+dava-lhe<span class="pn"><a id="pg_123" name="pg_123">{123}</a></span>
+precipitados pulos ao corao. Conservou-se, todavia, immovel deante do
+<em>branco</em>, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma coisa.</p>
+
+<p>Elle pareceu comprehendel-a:</p>
+
+<p>&mdash;Queres que a leia?</p>
+
+<p>&mdash;Sim, sinh, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e
+preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos
+sentidos, a divina musica ignorada das dces palavras escriptas pela mo
+infantil da filha.</p>
+
+<p>O socio do Castro leu:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;">M<small>INHA QUERIDA ME</small>,</p>
+
+<p>Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe envio
+milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe
+contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da minha santa me e o grande
+desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde est a
+mesinha do meu corao. Ante-hontem fiz dez annos e o meu protector
+offereceu-me uma bonita penna d'ouro, dizendo-me que com ella deveria
+escrever-lhe esta carta, minha boa me. Tenho passeado muito e gostado immenso
+d'esta bella cidade, onde o meu<span class="pn"><a id="pg_124"
+name="pg_124">{124}</a></span> prazer seria completo se a senhora aqui
+estivesse junto da sua filha.</p>
+
+<p>Abene-me e receba mil beijos que lhe envia</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:right;">I<small>SAURA.</small></p>
+
+<p>Paris, 30 de dezembro de 1887.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Josepha chorava, soluando, quando ouviu o nome que rematava a
+carta,&mdash;simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras,
+comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.</p>
+
+<h2><a name="SECTION0012130000">III</a> </h2>
+
+<p>Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Par tinham festiva apparencia,
+transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a
+escravido no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes girandolas de
+foguetes e o cco ingente de milhares de vozes bramindo<span class="pn"><a
+id="pg_125" name="pg_125">{125}</a></span> enthusiasmadas louvores e vivas em
+honra ao glorioso successo. Galhardetes e cortos erguiam-se pelas ruas. Bandas
+marciaes diffundiam no espao alegres harmonias de clidos hymnos excitantes.
+</p>
+
+<p>Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os
+pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regosijo.
+</p>
+
+<p>Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento
+publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para todos os
+lados, temendo fossem surprehendel-a.</p>
+
+<p>Quando teve a certeza de estar bem s, esboou nos roxos labios um sorriso
+espiritualisado e, tirando do seio um velho <em>Paleographo</em>, abriu-o nas
+primeiras paginas murmurando commovida:</p>
+
+<p>&mdash;Vamo' estud a lico. Nh Manduca, disse que p'r' mez que vem j
+posso l a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?</p>
+
+<p>E curvou a cabea para o livro, na obstinao das grandes vontades
+vencedoras.<span class="pn"><a id="pg_126" name="pg_126">{126}</a><br>
+<a id="pg_127" name="pg_127">{127}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0013000000">Ao soprar vla</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0013100000">Ao Sr. Jos Feij d'Albuquerque</a> </h3>
+
+<h2><a name="SECTION0013110000">I</a> </h2>
+
+<p>s 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar
+alegremente, recebel-o porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do
+penteador de cambraia branca.</p>
+
+<p>Quanto se demorra elle! .... Porque no voltou mais cedo? A sua Candinha j
+sentia tantas saudades!.... Elle no imaginava o que era estar uma pobre mulher
+mettida em<span class="pn"><a id="pg_128" name="pg_128">{128}</a></span> casa,
+durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu
+idolatrado amigo!....</p>
+
+<p>E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafuns pelo alto da cabea,
+causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriando-lhe os cabellos dos
+braos e pernas.</p>
+
+<p>Que no podera vir mais depressa,&mdash;objectava o marido, sentando-se
+n'uma poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscencia
+para a mulher.&mdash;Bem esforos fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a
+jantar, ainda no comeo; teve de esperar no jardim por espao de meia hora,
+brincando com as creanas, para entreter-se. Os pequenos so altamente
+endiabrados: sujaram-lhe as calas brancas com as mos gordurosas.... Depois,
+tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e mulher.</p>
+
+<p>&mdash;E acceitaram?&mdash;interrogou a Candida, saltando para as pernas do
+marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se graciosos e
+mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.</p>
+
+<p>&mdash;Qual! Responderam-me que no cediam a escrava por dinheiro algum,
+maxim sabendo que ns a desejavamos para a libertar. Aquella gente est cada
+vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que seja o dia de
+teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. Continuemos, porm. Estava
+eu disposto a<span class="pn"><a id="pg_129" name="pg_129">{129}</a></span>
+sar, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino,
+aquelle sujeito vermelhudo, cuja cabea est mais limpa de cabellos que os teus
+joelhos....</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-te de tolices....</p>
+
+<p>&mdash;Agarraram-me para um solo manhoso, que durou at agora, e isso mesmo
+porque levantei-me e sa viva fora!.... Agora,&mdash;concluiu
+sorrindo,&mdash;aqui tem voc o seu Roberto, cheio d'amor e paixo, disposto a
+matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe
+muito, a fazer-lhe as vontades todas!..</p>
+
+<p>Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos n'uma
+vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus labios frescos e
+perfumados d'esse olr exquisito e bom, peculiar s mulheres que se tratam.</p>
+
+<p>Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera porta que dava para o
+corredor o moleque Euzebio, com o bule de ch....</p>
+
+<h2><a name="SECTION0013120000">II</a> </h2>
+
+<p>Depois do ch, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e,
+accommodando-se<span class="pn"><a id="pg_130" name="pg_130">{130}</a></span>
+n'uma grande <em>voltaire</em>, poz-se a ler. Ficou a Candida defronte d'elle,
+a miral-o.</p>
+
+<p>Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois
+bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os
+cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes
+descanando nas palmas das mos, Candida continuava a olhar para o marido com
+uma expresso extranha, suave, repassada de ternuras dulcssimas.</p>
+
+<p>Parecia lanada contemplao da propria felicidade. Era justamente aquillo
+que, annos antes, phantasira a sua sonhadora imaginao de burguezinha
+estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacvios: viver honesta ao p
+de um marido bonito e de bom corao; estar sempre junto d'elle, para o
+consolar em todos os desgostos, rir com elle nas horas de alegria, ser-lhe
+sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, sobretudo, contemplal-o a todo
+instante, silenciosa, longamente, envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu
+enlanguescido olhar de creoula amoravel! Nunca sentira-se to feliz como depois
+de seu casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma s contrariedade
+tivera aps aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo
+no silencio de uma discreta alcva toda cheia de flres, rendas, fitas e
+perfumes! E com<span class="pn"><a id="pg_131" name="pg_131">{131}</a></span>
+que alegria, com que assomos de risonha infantilidade no ficou, na manh
+immediata, quando leu no <em>Diario de Noticias</em> as linhas seguintes, que
+decorou fora de as repetir baixinho?&mdash;"Uniram-se hontem noite em
+matrimonio, na egreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado
+commerciante da nossa praa, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha
+do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadssimo. Foram
+padrinhos os srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendona e suas exmas. consortes.
+Aos jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades
+a que tm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar em jubilo, toda
+desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidssima pela lembrana de que,
+quella hora, a cidade inteira estava sabedora da realisao de seus intimos
+desejos de moa apaixonada!.... D'ahi em deante comearam a viver como dois
+anjinhos, como ella queria. Roberto era sempre de uma delicadeza affectuosa e
+sria para com a sua Candinha, que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo
+seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que
+duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas <em>por d
+c aquella palha</em>... Entretanto, assim acontecia s vezes. Ahi estava,
+mesmo no Par, a d. Clotilde que, no dizer das ms linguas, era uma
+jararaca<span class="pn"><a id="pg_132" name="pg_132">{132}</a></span> para o
+marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era outro: passava a vida
+pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a
+mulher que era mesmo uma dr de corao! Mas com ella assim no succedia,
+graas a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador hora de recolher ao
+lar: s 5 da tarde mandava fechar o armazem, tomava o <em>bond</em> e vinha
+logo para junto d'ella, de onde no se arredava seno ao outro dia pela manh,
+afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma
+de vida: ella conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudana
+futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beios, com a
+importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se
+necessario contar-lhe tudo... Porm como? A vergonha apertava-lhe a garganta
+assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, estava resolvida!
+Quando? agora?&mdash;Agora no; deixal-o com a leitura, que est to
+entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o
+Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que era to lindo, to bom, to
+amado!....</p>
+
+<p>Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo
+apaixonado.<span class="pn"><a id="pg_133" name="pg_133">{133}</a></span></p>
+
+<h2><a name="SECTION0013130000">III</a> </h2>
+
+<p>De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do
+charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, a
+Candida pendia para o peito a formosa cabea, disfarava fingindo ler n'um
+livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido
+continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu ardente olhar,
+como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixo.</p>
+
+<p>Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos dormir?&mdash;propoz.</p>
+
+<p>Candida estremeceu e levantou-se.</p>
+
+<p>O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.</p>
+
+<p>No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcva. Em cima do velador,
+uma vla cr de rosa ardia n'um castialzinho de porcellana de Svres com
+pinturas allegoricas de Amores alados e Chimras volitantes. No centro, uma
+<em>causeuse</em> de setim azul estava cheia de laos, corpinhos de renda,
+brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente dissymtrico. Vidros de
+perfumarias com rlhas de crystal<span class="pn"><a id="pg_134"
+name="pg_134">{134}</a></span> reluziam em cima do toucador de jacarand,
+lanavam scintillaes cambiantes ao espelho inteirio do grande guarda-roupa
+que havia no meio de uma das paredes lateraes.</p>
+
+<p>Ao fundo erguia-se a cama,&mdash;pudicamente occulta entre as rugas de um
+cortinado de labyrintho finssimo, suspenso do tecto por uma passadeira
+doirada.</p>
+
+<p>Levantava-se d'aquella cama um qu de evaporao de felicidade inenarravel,
+que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos do olfacto e da
+vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de seu amor, do altar de
+sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, sobretudo, ella tinha uma
+importancia transcendental: evocava-lhe uma recordao agri-dce, que fazia-a
+sorrir bondosamente depois de nove mezes de agradabilssima co-habitao
+conjugal....</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Quando iam deitar-se, Candida enlaou a cabea do marido com os braos
+descobertos,&mdash;mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de
+cambraia enfeitada de rendas do Cear.</p>
+
+<p>Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos
+effluvios,&mdash;essas queridas exhalaes de mulher amada,&mdash;n'um
+enlanguescimento concupiscente.<span class="pn"><a id="pg_135"
+name="pg_135">{135}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posio, beijando-o na
+testa.&mdash;Quero dar-te uma noticia muito ba....</p>
+
+<p>&mdash;Qual ?&mdash;perguntou Roberto estreitando-a nos braos.</p>
+
+<p>&mdash;Tenho tanta vergonha!....</p>
+
+<p>Esta exclamao pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do marido e
+dando um pulo para o leito.</p>
+
+<p>&mdash;Anda, fala, menina, que tolice essa?</p>
+
+<p>&mdash;Ento apaga a luz, primeiro; pde ser que s escuras eu me sinta mais
+animosa! ....</p>
+
+<p>Roberto soprou a luz da vla e disse deitando-se:</p>
+
+<p>&mdash;Agora....</p>
+
+<p>Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as
+pontas dos frios dedos trmulos. Depois, a subitas:</p>
+
+<p>&mdash; que,&mdash;murmurou com umas brgeiras risadinhas
+reprimidas,&mdash; que eu.... estou grvida!</p>
+
+<p>Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,&mdash;o
+beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vr convertido em
+realidade o seu mais persistente anhelo,&mdash;respondeu quella confisso
+prazenteira, na propicia escuridade da alcva matrimonial....<span
+class="pn"><a id="pg_136" name="pg_136">{136}</a><br>
+<a id="pg_137" name="pg_137">{137}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0014000000">No baile do commendador</a> </h1>
+
+<h3><a name="SECTION0014100000">Ao sr. Ulderico Souza</a> </h3>
+
+<p>Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!</p>
+
+<p>E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro
+sorriso, com as rendas finssimas do seu leque amarello-canario, de varetas de
+madreperola.</p>
+
+<p>&mdash;E porque, no me dir? insistiu o doutor Machado, debruado sobre a
+cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um ardente
+olhar vibrado<span class="pn"><a id="pg_138" name="pg_138">{138}</a></span>
+atravez o crystal do monculo petulante.</p>
+
+<p>&mdash;Porque&mdash;?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a
+fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro esquerdo,
+polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida uma boa mestra, doutor,
+e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!</p>
+
+<p>&mdash;Apezar de ser to nova assim?</p>
+
+<p>&mdash;A vida no escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabea
+encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moos d, por vezes, preferencia,
+como compensando-os de no terem o discernimento preciso para bem conhecer e
+evitar os revezes da sorte.</p>
+
+<p>&mdash;Mas&mdash; maravilhoso tudo quanto esto a dizer-me os seus divinos
+labios com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se j no
+sentisse por sua pessa&mdash;e pelo seu espirito&mdash;este indomavel affecto
+de que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora&mdash;e bem
+profundamente!&mdash;depois de ouvir-lhe to razoaveis e inesperados
+conceitos.</p>
+
+<p>&mdash;Devras?</p>
+
+<p>&mdash;Por certo.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! muito amavel....</p>
+
+<p>&mdash;Digo a verdade.</p>
+
+<p>&mdash;E, todavia, continuo a descrr...</p>
+
+<p>&mdash;Faz muito mal!</p>
+
+<p>&mdash;Porqu?<span class="pn"><a id="pg_139"
+name="pg_139">{139}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;Ah! j faz perguntas?&mdash;Porque quem confessa descrena em
+similhante assumpto, deseja crr, ou, pelo menos, no quer descrr...</p>
+
+<p>&mdash;O que redunda no mesmo. Errou, porm, estabelecendo at mim a regra
+geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convena-se. O mundo
+tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lies bem rispidas
+tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das suas opinies, fazer
+que o sr. acredite nas suas proprias illuses phantasiosas. Pois que!
+Persuade-se acaso de que jmais poderei tomar ao srio as banalidades da
+confisso que me cantou ha instantes o seu lyrismo? Estar o sr.,
+effectivamente, to enamorado de si mesmo, que se julgue irresistivel, fatal?
+Vaidade sem razo, doutor!</p>
+
+<p>&mdash;Como cruel, minha senhora!</p>
+
+<p>&mdash;No sou cruel, no, cavalheiro: sou justa apenas. E porque
+sympathisei inexplicavelmente com o sr., que desejo trabalhar para
+extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o
+sentimento.&mdash;Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?</p>
+
+<p>&mdash;Ora essa! Porque no?...</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado....
+pedantismo.</p>
+
+<p>&mdash;Como diz?</p>
+
+<p>&mdash;Oua bem: o&mdash;seu&mdash;illimitado&mdash;pedantismo.<span
+class="pn"><a id="pg_140" name="pg_140">{140}</a></span></p>
+
+<p>&mdash;E.... mas....</p>
+
+<p>&mdash;Olhe, sente-se aqui, a meu lado&mdash;Assim. Conversaremos com
+tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as attenes
+da sala. Escute-me.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creana insignificante. Seriam
+nove noras da noite. A chuva caa sem parar desde que anoitecra; uma triste
+chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz oscillante do gaz.
+Estavamos ao sero, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas
+irms, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o
+trafico da escravatura arrancara aos sertes africanos para transplantar no
+Brazil.</p>
+
+<p>Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irms brincavamos a
+vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as
+escravas.</p>
+
+<p>De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e ns interrompemos o
+brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeas, detinham no ar a mo
+que empunhava a agulha, ou descanavam<span class="pn"><a id="pg_141"
+name="pg_141">{141}</a></span> cautelosas os bilros sobre as almofadas onde
+pregavam-se as rendas incipientes.</p>
+
+<p>A velha Eufrasia annuncira que ia contar uma historia da
+<em>cabanagem</em>, o que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais
+absoluta tranquillidade. Porque, fique desde j sabendo, a Eufrasia era
+auctoridade na materia! A sua narrao tinha alguma coisa de lugubre, de
+compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na
+concatenao dos factos e na flagrancia da nota, ou pica ou buclica, de que
+pretendia occupar a atteno dos ouvintes.</p>
+
+<p>Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma
+fulgurao estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos tempos de
+que ella ia tratar.</p>
+
+<p>Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel obter-se
+com o ruido da chuva a desabar nas telhas,&mdash;a ba preta comeou a referir
+a pequena historia que passarei a expr sua attenta bondade, succintamente,
+para o no enfastiar com imprudentes delongas.</p>
+
+<p class="centrado">&mdash;</p>
+
+<p>Da outra banda do rio, margem esquerda d'este mesmo Guajar que rla
+suas<span class="pn"><a id="pg_142" name="pg_142">{142}</a></span> turbidas
+aguas aos ps de Belm, uma roa havia, n'aquelle tempo,&mdash;em
+1835,&mdash;que era o abrigo d'uma simples familia de modestos caboclos
+agricultores: pae, me e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor d'uns 20 annos
+sados e bem desenvolvidos. </p>
+
+<p>Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua
+simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roa era a
+mais afamada na praa de Belm e a seriedade com que tratavam negocios
+tinha-lhes aberto largo crdito em casa do seu correspondente na cidade.</p>
+
+<p>O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga da
+margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro roa. Pelo So
+Joo deveriam vir capital da provincia, effectivar perante um padre a mais
+persistente aspirao que em peitos amazonicos jmais palpitou e que dava-lhes,
+na sua s lembrana, uma como ebriedade olympica de soberanas venturas
+transcendentes.</p>
+
+<p>Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo
+rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado
+pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves
+transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas falas
+singellas e apaixonadas.<span class="pn"><a id="pg_143"
+name="pg_143">{143}</a></span></p>
+
+<p>Horas inteiras, de intensssimo contentamento, eram as que passava ao lado
+da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha existencia por
+vir, quando, a ss no copiar, de mos entrelaadas e o olhar perdido ao longe,
+nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em
+acastellar illuses, n'umas inflorescencias de amplas phantasias admiraveis.
+</p>
+
+<p>Similhante existencia, parecia abenoal-a o ceu, na sua clemente bondade
+rejubilada pelo edificante espectaculo de to acrisolada paixo.</p>
+
+<p>Mas houve um dia em que a sorte,&mdash;sempre inclemente e cynica,
+doutor!&mdash;pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito d'aquella
+invejavel bonana de duas vidas felicssimas.</p>
+
+<p>A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas dos
+revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roas, buscando e fazendo
+victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada
+barbaridade.</p>
+
+<p>Em taes condies, a casa dos paes de Thomazia no poderia escapar visita
+dos desalmados. Esta foi subjeitada mais torpe violencia que se pde intentar
+contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem querido dissuadil-os da
+infamia,&mdash;aps assistirem perpetrao selvtica do attentado sem nome,
+soffreram inermes a<span class="pn"><a id="pg_144"
+name="pg_144">{144}</a></span> pena ultima, dependurados, um defronte do outro,
+em dois galhos de sombrosa sumahumeira!</p>
+
+<p>Escaparam ao rbido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que
+embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa
+haviam presenceado o que passava-se na ra fronteira e nem um s momento o
+rapaz, aquelle mesmo namorado frvido da vespera, sentiu um assomo de correr a
+vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! Admire que sinceridade a
+d'aquella paixo, doutor, dias antes apresentada em <em>labiosas</em>
+florituras de phantasticos arremessos idyllicos! Que grande corao, o
+d'aquelle homem!</p>
+
+<p>Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a
+indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua
+noiva,&mdash;sem ir arrebentar os milos de um dos abjectos infames, ainda
+mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos
+sicarios!</p>
+
+<p>Annos depois, quando estabelecera-se a pacificao na provincia, a Eufrasia
+encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na companhia de torpe
+mulata animalisada por uma vida de largas materialisaes soezes e gordurosas.
+</p>
+
+<p>Ainda podia rir, ainda tinha canes para zangarrear ao som do
+cavaquinho!<span class="pn"><a id="pg_145" name="pg_145">{145}</a></span></p>
+
+<p>L defronte, porm, a roa, to florescente d'antes, convertera-se em
+mattagal e a infeliz Thomazia,&mdash;apatetada e envelhecida, coberta de
+andrajos e chorosa,&mdash;tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraa,
+uma creana inconsciente, um filho que dentro d'ella semera a hedionda
+selvageria dos revoltosos.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+**</p>
+
+<p>Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de emoo,
+teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr.
+Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, agitando-o vagaroso, com uma
+certa magestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo ironica:</p>
+
+<p>&mdash;E cr, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um s homem
+sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas palavrosas
+mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?<span class="pn"><a id="pg_146"
+name="pg_146">{146}</a><br>
+<a id="pg_147" name="pg_147">{147}</a></span></p>
+
+<h1><a name="SECTION0015000000">NOTAS</a> </h1>
+
+<p>A CONVALESCENTE.&mdash;Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino
+<em>croquis</em> ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s.
+s. levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu respeito
+externadas por mim n'um estudo critico das <em>Primeiras Rimas</em>, de Joo do
+Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremdo aggressivo, todo pessoal e
+rancoroso.</p>
+
+<p>No quiz, ento, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em uma
+das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, apresento-a
+tal qual m'a deu o prlo, antes do inesperado desabrimento de s. s.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>QUE BOM MARIDO!&mdash;Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o
+<em>Diario de Belm</em>, declarando-o<span class="pn"><a id="pg_148"
+name="pg_148">{148}</a></span> immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo
+entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura davam-lhe
+ensejo de estampar as <em>moralssimas</em> "grivoiseries" de Catulle Mends...
+ o caso mais flagrantemente pfio de criterio e coherencia que tenho
+conhecido!</p>
+
+<p>No dia seguinte, <em>A Provincia do Par</em> publicava esse trabalho.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>HISTORIA INCONGRUENTE.&mdash;Foi publicada n'<em>A Arena</em> essa narrao,
+em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de
+dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta
+muito affectuosa e benevolente.<span class="pn"><a id="pg_149"
+name="pg_149">{149}</a></span></p>
+</div>
+
+<h2><a name="SECTION0016000000">INDICE</a> </h2>
+
+<table align="center" width="80%" summary="Indice">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td></td>
+ <td style="text-align:right;">P<small>AGINAS</small></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A<small>LEGRIA GAULEZA</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_9">9</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A <small>CONVALESCENTE</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_21">21</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>D<small>ESILLUSO</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_23">23</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A "S<small>ERENATA" DE</small> S<small>CHUBERT</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_33">33</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>Q<small>UE BOM MARIDO!</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_45">45</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>N<small>OITE DE FINADOS</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_55">55</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>R<small>IO ABAIXO</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_61">61</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A<small>O DESPERTAR</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_69">69</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>P<small>OEMETOS EM PROSA:</small></td>
+ <td style="text-align:right;"></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>I&mdash;<em>Bidinha</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_81">81</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>II&mdash;<em>Paraphrase ossianica</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_84">84</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>III&mdash;<em>O parocho da aldeia</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_86">86</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>IV&mdash;<em>Ao sol</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_89">89</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>V&mdash;<em>Remember</em></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_91">91</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>O <small>PREO DAS PAZES</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_95">95</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>H<small>ISTORIA INCONGRUENTE</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_109">109</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A L<small>ICO DE "</small>P<small>ALEOGRAPHO"</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_119">119</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>A<small>O SOPRAR VLA</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_127">127</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>N<small>O BAILE DO COMMENDADOR</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_137">137</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>N<small>OTAS</small></td>
+ <td style="text-align:right;"><a href="#pg_147">147</a></td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p><span class="pn"><a id="pg_150" name="pg_150">{150}</a></span></p>
+
+<h2>ERRATAS</h2>
+
+<table align="center" width="80%" summary="Errata">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td colspan="4">Os mais notaveis erros so es seguintes:</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <th style="text-align:left;">Pags.</th>
+ <th style="text-align:left;">Linha</th>
+ <th style="text-align:left;">Erro</th>
+ <th style="text-align:left;">Emenda</th>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>61</td>
+ <td>5</td>
+ <td>caximbo</td>
+ <td>cachimbo</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>93</td>
+ <td>15</td>
+ <td>embaraadoramente enleiando-nos</td>
+ <td>enleiando-nos embaraadoramente</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>93</td>
+ <td>33</td>
+ <td>estendidas</td>
+ <td>extendidas</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>107</td>
+ <td>33</td>
+ <td>inqueriu</td>
+ <td>inquiriu</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td>114</td>
+ <td>29</td>
+ <td>vacillanto</td>
+ <td>vacillante</td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h4>BREVEMENTE</h4>
+
+<p>ser dado estampa o novo romance de Marques de Carvalho</p>
+
+<h4>SOROR MARIANA</h4>
+
+<p>Grande tla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relvo a um dos
+mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formar um forte volume de de
+300 paginas impressas a capricho.</p>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by Joo Marques de Carvalho
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES ***
+
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+works. See paragraph 1.E below.
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+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
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+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
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+works.
+
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+concept of a library of electronic works that could be freely shared
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+
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