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XXIX v. 18 + + +As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um +homem, que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que +faz de ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um +Deus de paz, assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno +da velhice, com a mesma serenidade com que tinha visto passar as +illusões da juventude, e com que havia atravessado os perigos da edade +viril. Satisfeito com a sua pobreza, não invejava (se é que invejou +alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a eloquencia persuasiva dos +primeiros confessores da fé nas grandes epochas da regeneração moral do +mundo. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da +liberdade estava a soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na +manção do jubilo, patria suspirada de suas mais doces esperanças, unica +impaciencia de uma alma, que longe da morada celeste se entristecia +captiva. + +A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não +aspirava a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos +mundanos. Se alguma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu +queixas que a sua bocca se não abrisse para as suavisar, nem viu +lagrimas, que a sua mão as não enxugasse logo. Por isso em muitas +occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a simplicidade da +pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o +advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si, +nunca faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a +illusão, sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até +me deu para esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de +esturro, e ia catar, ou alporcar os craveiros, até o relogio do +estomago, unico relogio que havia em casa, o avisar de que eram horas da +refeição. Vinha então recolhendo-se de vagar, alargava o passeio pela +cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem se arriscar a alguma +jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria, que tinha a seu cargo +a economia domestica e o baixo e mixto imperio da dispensa e da +capoeira. + +A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço +d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de +immensa cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio +e agudo, metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as +consolações da Egreja a uma de suas ovelhas, que agonisava em +desabrigada choupana. Á volta o corpo tremia sacudido por uma sesão de +febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a face de um moribundo. +Deitou-se para não se tornar a levantar. + +Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou +a enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu +para sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi +preciso que os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca +houve funeral tão rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares +da freguezia e dos arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do +presbyterio, o chôro de toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas. +Com razão! Não era o velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? +Em vida constituira os pobres seus herdeiros, por isso não deixava de +seu mais do que a sobrepeliz e a batina remendada, em que o +amortalharam, e o crucifixo de marfim, que unira ao coração na +derradeira despedida. + +O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou +corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares +sempre se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos +vicios esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á +proveitosa lição das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. +A ama, á qual o Vigario legára sómente a memoria de suas virtudes, +encontrou logo a hospitalidade, affectuosa, não de um, mas de muitos +habitantes, que se lhe offereceram para acolherem sua velhice. O cão do +Pastor, companheiro constante de tantos dias de fadiga, tambem achou +quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia +saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos livros +da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como +reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, +depois de largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a +recordação do sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos +cyprestes plantados pelas suas mãos no cemiterio da aldeia. + +Este foi o homem e o ecclesiastico venerando. + +Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, +rarissimas pessoas dariam noticia. Fugia da fama que dão as lettras, com +um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava envergonhado ao +pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal receava ser +visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna não +se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha pouco +vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe +concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações +do passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em +algumas scenas soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da +mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a +chuva, chapinhando, lhe fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas +paginas á luz do ponderoso candieiro de latão amarello de tres bicos, +talvez o traste mais luxuoso de toda a sua mobilia. Assim nasceram em um +recanto obscuro da aldeia estes _Contos e Lendas_, escriptos sem emendas +e com admiravel rapidez, em lettra grada, direita, e garrafal, para +regosijo dos compositores, que cegam a miudo os negalhos de missanga de +certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes Deus não castigue em +desaggravo de suas victimas. + +Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os +papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas +instancias para m'os confiar. Poucos mezes antes da sua morte é que +alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais opportuno, +com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque dizia +elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o +tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou +examinar a sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento +diante da mesa e pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos +os protestos, entram commigo as malditas historias, e não ha +resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam bruxarias.» + +A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de +vista as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar +pelas visões do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam +muitas outras que a admiração saúda como principes da intelligencia. +Vingava-se porem d'este máu sestro (era a sua phrase) pondo de lado as +escriptas frivolas apenas as acabava e nunca mais fallando d'ellas. +Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este desprezo tratava a +inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno ao antigo +maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois d'este +e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias +com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos seus segredos, a qual +representava nos serões litterarios do presbyterio o papel, que a +tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella +devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de +esbofeteado, e de escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se +desforrasse torcendo o pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o +sangue aos coelhos, transformado em raposa ou em ginete. Nunca acordava, +que não esperasse encontrar a capoeira vasia! Se é bom estar bem com +Deus, dizia, não é máu estar em paz com o demonio. A casa do presbyterio +não era grande, nem espaçosa, mas sorria de longe á vista caiada por +fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um tal ar de festa, +que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia a +hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os +braços abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um +outeirinho, alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos +troncos lisos e direitos o vento meneava graciosamente. O pateo +ajardinado, cercado de alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas +enroscadas e collossaes, cobriam com a sombra de seus pampanos as +parreiras, aonde amadureciam na estação os mais formosos cachos de +moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha morada, penduravam-se +as vinhas pelas encostas das collinas até ás margens de um ribeiro, +toldado de salgueiros e chorões que se torciam para beijarem a agua. Por +entre as vinhas apparecia em malhas o verde mais fechado das hortas +mettidas entre vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava a +levada correndo pelas regueiras. Os pomares, copando-se, encantavam de +espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques fechados, e +embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos outeiros, +que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo +horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de +socalco em socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um +verde triste, a viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios +ao cair da tarde. + +A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi +adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com +estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles +pampanos cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos de hortas e +pomares; os variados tons que zebravam as encostas dos montes e +collinas, desde a esmeralda viva dos prados até ao louro cendrado das +paveias; os rosmaninhos e as boninas esmaltando as veigas; o rio +precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e limpido e depois +esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de luz dourada +todo o quadro, de noute o clarão da lua tocando-o de meiga melancolia, +compunham um espectaculo de tanto enlevo que a vista fugia com a vontade +e com o coração para aquelles casaes debruçados das collinas fazendo +nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vêr romper o luar +por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos +primeiros raios brancos do alvor matutino. + +Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chaminés +expelliam o fumo em penachos caprichosos; os cepos estalávam no lume; e +as creanças, como enxame buliçoso, brincavam defronte das portas. As +mães cosinhavam a ceia, em quanto os velhos e os mancebos descansando do +trabalho, aguardavam encostados, ou assentados, a hora proxima da +refeição e do repouso. + +Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pôr do sol nas +aldeias! N'esta occasião, em que a fadiga do corpo como que faz mais +docil o espirito, é que o padre Vigario, desembocava de uma das +azinhagas com o seu Horacio, ou o seu Salustio debaixo do braço, e vinha +conversar o seu pedaço com os anciãos da terra, para saber as novidades, +e espreitar as rixas e discordias, afim de as compôr. Correndo a mão +pela cabeça das creanças, ralhando com umas, afagando outras, +informava-se de tudo, sanava as malquerenças, e conseguia pelo respeito +de seus annos e qualidades, que os moradores da parochia formassem uma +só familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, estes, mal o viam, +voavam em bandos a agarrar-se-lhe á loba e ás mãos, por entre vozes e +saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No verão, nos +dias de maior calor, era sempre certo o prior, á tardinha, debaixo da +parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de +prata, que lhe escorregavam até á ponta do nariz. Lia e passeiava. De +tres, ou de quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga +e sorvia com delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a +vêr se alguma flôr carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava +punha na cabeça o venerando tricornio, pegava da bengala de canna da +India e castão de prata, e sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase +modesta, empregada por elle para designar as suas marchas forçadas de +legua, legua e meia, e ás vezes duas leguas por montes e quebradas. + +Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos +homens vigorosos, na flôr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo +largo e egual. Abordoando-se á bengala por costume e não por +necessidade, despejava caminho como andarilho mais valente. De estatura +elevada, secca, mas encorpada, carregava sem esforço com o peso de uma +velhice verde e alegre. Nos olhos cinzentos e vivos brilhava um toque de +finura risonha, e a bocca não pequena, mas engraçada, animava o rosto e +dava-lhe expressão agradavel, avivada de constante jovialidade. A +brandura do animo correspondia ás promessas da physionomia, e o tracto +intimo denunciava as prendas d'aquelle caracter, honrado, severo só +comsigo, inflexivel e incapaz de se torcer em pontos de consciencia ou +de melindre. Na convivencia com o padre Vigario, aprendi mais do que me +ensinariam muitos annos de leitura. Convalescente e magoado, devi-lhe a +saude do corpo, a saude e o conforto da alma. + +Este velho desterrado por gosto e eleição sua em um canto do mundo, +n'uma aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos +que se pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava +toda a sua philosophia:--paciencia e amor. Com a primeira supportava os +trabalhos e os revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças ao +segundo, o coração, purificado pelos annos, abria-se a todos os +sentimentos nobres, e palpitava com orgulho memorando as glorias da +patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava a dôr das desgraças +presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão crente e enthusiasta, +como se acabasse de entrar na epocha das illusões. Entendia e applicava +o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraçando como filhos e +irmãos todos os afflictos e necessitados; e pelo amor, finalmente, não +perdoava mas agradecia as offensas, as injustiças, e até as calumnias, +provações da virtude, não se lembrando d'ellas senão para pagar o mal +com o bem. + +Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de +Camões, de Ferreira e de Sá de Miranda. Familiar com os escriptores da +antiguidade, e com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o +desapercebido, e espertar a veia natural e espirituosa da sua +conversação, para se apreciar devidamente os thesouros encobertos +d'aquella vasta erudição e os prodigios de uma memoria em verdade rara. +As citações acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as anecdotas +encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel, +succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente +os homens e as cousas, que as cinzas dos grandes varões de Roma e da +Grecia, dos heroes de todos os tempos e de todas as nações tornavam a +juntar-se, a tomar corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar +como se os estivessemos contemplando nos dias do seu esplendor. As +ruinas de Athenas, as do velho Lacio, os monumentos da meia edade, e os +episodios de epochas mais proximas, evocados pelo encantamento +irresistivel d'aquella imaginação creadora, como que volviam subitamente +ao primeiro sêr, apparecendo uns em toda a formosura da arte classica, +erguendo-se outros pela religiosa inspiração da arte christã. + +Á noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa +poltrona de couro, com a ama á direita e o cão somnolento á esquerda, a +velha cabeceando de rocca á cinta e engrolando Padres-nossos, o animal +piscando os olhos com uma orelha fita e outra derrubada. Dos dous +companheiros do serão o mais attento e sisudo era de certo o cão! +Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca perdia occasião de lhe +coçar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo favoravel. O +bofete de pau santo e pés torneados, o candieiro de latão e a anarchia +dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada uma +hora, o unico que não dormia era o Vigario; a sua penna continuava a +ranger sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. +Quando as palpebras se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, +mettia dous dedos na argola do candieiro, e recolhia-se ao quarto no +meio das recommendações da ama sobre os perigos do fogo, sobre a falta +de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos provaveis. Estas +recommendações não se calavam, senão quando a respiração alta e +compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua +eloquencia. + +Em um d'estes serões, a que assisti, caiu o dialogo sobre não sei qual +de nossos reis, e o Vigario innocentemente deixou escapar o segredo das +suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do solitario com o +seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a desculpas, +que me lê-se alguns _Contos e Lendas_. Oxalá que o leitor seja do meu +voto. Ainda me não arrependo do que disse d'elles ao auctor, que tremia, +como se a minha opinião valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos, +longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio. +Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre +resistiu a apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, +pouco antes da sua morte, foi com a final e irrevogavel condição de +nunca descubrir o nome do auctor, se me atrevesse a importunar os prelos +(assim se expressou) com as puerilidades de um velho creança. Possam os +_Contos e Lendas_ do padre Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, +merecerem alguns momentos de attenção, não por si, mas pelas memorias +que recordam. Correm já sujeitos ás vecissitudes da publicidade tantos +filhos espurios da mesma invenção, que mais esta, entrando no mundo das +lettras, não usurpará de certo logar, que pertença de direito ás obras +primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia não ha +fortuna. Lanço-a á corrente!... A sorte bôa, ou má que faça o resto! + +Valle, 30 de septembro de 1866. + + + + +A TORRE DE CAIN + +LENDA DO SECULO XI + + +I + +De um bom irmão um mau christão + +O monge começou assim a sua historia: + +No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é +que succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por +dias, e com elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder +dos infieis as provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da +fronteira não se descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as +armas; e quer luzisse a manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das +almenáras, ou o rebate das trombetas não consentia nem leve repouso aos +defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no campo da peleja, não se +socegava um momento. Os melhores castellos ainda tinham a voz dos +descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas tapadas do +Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os veados, os ursos e os +javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as columnas e as +ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d'este formoso +jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu +deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso +infantil, e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a +tristeza até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo +é, o arabe sensual passava pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso +a saudade do que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração!... + +--E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito, +bradando: esta terra é nossa! acudiu Martin Paes. + +--Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de +captiveiro todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da +charrua, guiadas por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso, +que nos deu outra vez a terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em +que abrimos os olhos, o cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a +arvore que nos cobriu com a sombra a infancia e a velhice, e a fonte que +ferve ao pé do rosal!... N'aquelle tempo, quando o mouro passava, +baixavam todos a vista, porque elle era o senhor. + +--Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre? + +--Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos +vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os +gados pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era +magoa e desconsôlo por dentro; porque a terra, em que sômos escravos, +mesmo que seja a da patria, parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo. +A casa alheia, a courella que é de outro, e o fogo accêso na lareira a +medo, fazem-nos chorar, porque nada d'aquillo é nosso, e hoje, ou +amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como vive agora; o que +estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam +as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não +brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a +donzella assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava +tranquilla, como aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo +descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harem do sarraceno, aberto +diante d'ella, como um abysmo, fazia-a empallidecer. De um momento para +outro podia ser obrigada a escolher entre a deshonra e a morte. + +--Que martyrio não seria a vida assim?!... + +--Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. +Faz-se tarde. Quereis que continue? + +--Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos. + +--No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas +terras de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de +certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De +seus castellos os dous inimigos, postos defronte, corriam o campo +talando vinhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o outro, +assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou +companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda a furia. Nos casaes +assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoutecer +recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão +das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado. + +Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do +contrario, e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas +ameias. Aconteceu isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos +festejavam o bemdito Santo com fogueiras, cantigas e follias. O +cavalleiro tinha um filho e um irmão. O filho de edade tenra; o irmão +temido pela indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a +creança fez-se homem; e de parte a parte a aversão das duas familias +cada vez crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de sangue por +muitas vezes, e os sinos não cessavam de dobrar na egreja pelos que +morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais +aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro assassinado era já +um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença gentil a +cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar, +esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas +sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do +rico homem morto na vespera de S. João. + +D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por +desgraça, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração +esquecido da vingança guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae +derramado á falsa fé, as malquerenças de tantos annos, as promessas da +meninice e da juventude, tudo d'ahi em diante se apagou da sua alma para +não vêr outro sol, outra luz, senão a dos bellos olhos, que o tinham +feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior odio rebentou o mais +constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido saltou aos +olhos de todos. Os parentes lançaram em rosto ao mancebo a sua fraqueza, +mas a paixão pôde mais, que as memorias do tumulo, que deixava sem +vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, os rancores +cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas +inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não +podiam dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar. +Aprazou-se para vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou +acaso? N'esse dia contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. +Moço de Ansures fôra assassinado. + +O homem põe e Deus dispõe! + +O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do +que á propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado +fôra procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. +Inigo Lopes, era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou +chegar de longe, quando estavam pregando as taboas do caixão do infeliz. +A dôr fez de D. Inigo uma estatua, e sete dias com sete noutes o viram +todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe +os ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo n'elle tudo que tinha de +humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a +cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um seculo em sete +dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem um soluço do peito mudo. +Deixou sobre a campa espada e arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao +entrar ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as +costas ao altar. Os anjos nos defendam! + +O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella? +Se alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na +ultima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo +crescer da sepultura e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões! +Quem vae nunca mais torna. O que não foi fabula, porque todos o +presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma +rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como se existisse ha +muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! Mas se +queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar +uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. +Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que +outros tantos dias se contavam tambem desde que o corpo do valente +cavalleiro descera á sepultura trespassado de sete feridas. + +Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos +com mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, +comendo das ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás +inclemencias do tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do +mundo! O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha desviado os +olhos d'elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz, ou +se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe +no deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. +Valha-nos Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um +mar de fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das +altas rochas dançaram, crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então +na vasta solidão do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, e o +pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tornou-se côr de sangue +e sumiu-se, que as estrellas esconderam tremulas a sua luz. O christão +acabáva de vender ali a alma ao inferno pela vingança. Desde aquella +hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra segue o corpo, a +imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz, elle que não +se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o juramento. +Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço, +repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas +immoveis do Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O +reprobo escarneceu do passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. +Mas elle que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe +a terra debaixo dos pés, como horrorisada do peso do seu crime. Aos +primeiros passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal +rebentava ao mesmo tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, +no ceu aonde os trovões estalavam uns apoz outros; na terra, que se +abria em voragens, e no deserto, aonde o furacão, bramindo, cavava +abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em vortice as areias. Cedros +antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As feras, timidas que +nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam +suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e +pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D'ali em +diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no +precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão, +debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas +torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia +caíra um velho desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota +d'aquella agua para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a +entornando-lhe de proposito o cantaro diante dos olhos para lhe +exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam tragando de longe a +agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por +mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de ti!» O +Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse +vencedor do inferno. Mas, desde aquelle crime, a sêde intensa ateiada +nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes +convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada no +deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas. + +Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que +nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos +chammas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda +varria o pó, a respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. +Diante d'elle as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se +outeiros; o mar e os abysmos solidificados aplanavam-se; e no perpassar +do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o chão, +flexiveis como juncos. Cavallo e cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo +da ferradura magica as aguas tomavam a dureza do diamante: a terra +oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos vulcões, vinham coroar +o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, e estacou. +Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d'ali. Á medida +que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio +de sol dissolveu-se desfeito em fumo. + +Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu +o sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao +primeiro passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao segundo +illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas +cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro +levantava o _Ave maris stella_. Estava aplacada a vingança do morto. A +fé, porem, debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu +em vão lhe offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de +misericordia! Orava n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo +hermita pelo maior peccador. Arrebatado em espirito, viu um homem +cuspindo por odio na cruz á porta de uma egreja. O anjo Custodio, +ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes luminosas; mas o +desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, subiu na +aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente. + +«A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão +para o que renega o teu Santo nome?» + +N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com +estrondo; e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas, +repetiu ao longe: _memento, homo, quia pulvis es!_ + + +II + +Não ha gosto sem pesar + +N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais +poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados +do castello por valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um +aceno trinta cavalleiros mettiam o pé no estribo, e centos de homens de +armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos +primeiros lidadores das Asturias, raça de bronze nos odios, e de ferro +nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta +ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, +D. Ordonho sentia que os annos não haviam passado em vão. Só a neta, a +formosa Auzenda, unico amor da sua vida, podia distrahil-o das horas de +tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, +um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagrima só d'aquelles +olhos lindos, transformava em cordeiro o leão embravecido. + +Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens +de armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa +cavalgada, que se espera? + +O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os +derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua +sobre as campinas, e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em +larga distancia ao redor. + +No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia +casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. +João, e por horas tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que +os monges negros rezaram o officio de finados em volta da tumba do +cavalleiro assassinado. + +Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa +do outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da +formosura, entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia. +Aquella belleza era sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os +cabellos em tranças d'ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor +suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado +cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora +folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio +palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. Os pés, como os da corsa +gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das +fragas na serra ingreme. As rozas accendem o rubor na face assetinada +desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa silvestre pousada +na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal subiu casta e +pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da aurora. +O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe +fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios +da primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr +do lado opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço +Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do +amor. + +--Voltais logo? perguntou a donzella corando. + +--Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado +olhar. + +--Tão tarde!? + +--Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!... + +--Não! Mas!... + +--Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui! + +Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella +seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo +outeiro. + +Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a +donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios +de noiva a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, +fechou-se a noute, e quando as estrellas começavam a tremer na abobada +do ceu, recolheu-se suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da +atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam a entrar no castello, +attraidos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de côres +diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos á luz +dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, os relinchos dos +cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos alegres o quadro +do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela estatura. +Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O +seu brado vencia o estrepito. + +--Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os +recem-chegados com a bocca cheia de riso. + +Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do +dia, segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e +com a noute cerrada não chegava!... Do lado das montanhas não havia +rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos. +Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão +meigo e desejado? Porque se ausentára n'aquelle dia, em que tantos +estremos o convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam? +Um juramento sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos +de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o +tumulo de seu pae. Por isso deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao +romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da +noiva as contava tão vagarosas! + + +III + +Deus seja comnosco + +Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca +das malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados +capellos! Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os +estrados das donas e donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas +dos trovadores. Mais adiante, em turbilhões de cem côres, em collos +ondeados e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar furtivo de +alguns pares promette, em breve, dias semelhantes a mais de um solar. + +Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não +entram, o vento geme por entre frizos e laçarias dos delgados +columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das +frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o +silencio. Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas +tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz subitamente. Os escanções +enchem as taças e fazem-as circular em roda. Saudes, acclamações, e +vozes crusam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de um a outro +extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á sua direita senta-se +Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço Ansures. Defronte, +em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se podesse +deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto. + +A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas +vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam +incessantemente donas, cavalleiros e monges, convidados pela +hospitalidade quasi regia do rico-homem. As taças cheias de licor +espumoso correm de mão para mão. D. Ordonho, de pé, alça a sua, e com a +fronte erguida brada: + +--Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa +acclamação responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre +irmãos!» + +Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou +um grito. Os convivas olharam tambem e ficaram immoveis com as taças +suspensas. + +No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu +de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e +na cotta o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a +primeira taça cheia, ergueu-a lentamente. + +--Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!.. + +Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se +vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de +ferro em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os +olhos, as feições o os modos eram exactamente os do cavalleiro +assassinado havia quatorze annos; porem os cabellos e as barbas brancas +lembravam, que por cima do seu corpo passára o frio da sepultura. + +Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder +occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos. + + +IV + +Enterro por noivado + +Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu: + +Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao +primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, +ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas +das violas e alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs +profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos +jograes transformou-se repentinamente em _dies iræ_ que retumbou. Os +cabellos erriçaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e +vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados +jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o +sino dobrava já tinha desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos +clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes +tocar, fecharam-se adiante d'elles. O portal maciço gemeu nos quicios e +cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis alaram as dobradiças. + +Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor +de ti choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de +esperança; o palmito symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas +de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paços do conde +ninguem se entendia. Estava sobre elles o poder do inferno. O suor frio +borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ousados fazia +tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na +escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo +enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos +tectos. Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se +obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados +tão altos, e o fosso tão fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o +toldo sombrio, que a velava, e o seu clarão pallido lançou como um +sudario sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a curta +distancia sobranceiro ao castello. As aguas, rebentando ali á sombra de +antigos choupos, ferviam de encontro ás fragas, e despenhadas espumaram +batendo em cachões no leito da ribeira, que lá em baixo bramia +arremessada por entre a bronca penedia. + +Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços +por entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou +baixando de andar em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo +cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra +por pedra quasi a desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas +envergonhados. + +--Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de +St.ª Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui +todos! gritou depois em grande brado. + +Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. +Ergueram-se as achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem +robustos braços ferem a um tempo com ancia mortal a porta maciça e +chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem... Mas +nas taboas nem signaes dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam +até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e do alarido das vozes +rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo +campeia o cavalleiro negro. As aguas espumavam por baixo dos pés do +corcel; a mão direita brandia um facho; a esquerda só peava com as +redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo. + +--Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a +eu. Pago as arrhas da formosa noiva. + +--Maldito!... + +--Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou +o dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue +dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes. + +Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas +furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. +No hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem +sentidos. As faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do +velho; as tranças de ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os +olhos languidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se +mortaes. + +--Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue +verteu-o esta mão culpada.... Feri a cabeça do peccador saciado de annos +e de amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... +Poupai-a em vossa justiça!. + +Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n'aquelle +instante o senhor de tantos vassallos e castellos por alguns palmos de +terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna, que nos serros +vizinhos refrigerava as miserias do escravo? + +O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas +não quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto +enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo +passar muda e terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro! +Nem capello de aço lhe cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito +descoberto. Leva porem a morte escripta no rosto. O sombrio clarão do +desespero reluz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, +brancos e descorados. Deixai-o ir! É o castigo de Deus que se adianta! +Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o inspira! + +A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas +para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. +Que fogo ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento! +Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim +era D. Ordonho!... A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento +lastimava-se soturno. A distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o +clarão avermelhado do incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas +estendia-se como toldo immenso. As aguas e o furacão confundiam os +bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava +em estampidos medonhos. + +A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto é +aquelle, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no +eirado da torre Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas +abrazadas e não recúa. Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as +sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e +abatem as paredes, e não as vê! O temporal fustigando os cedros, +estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha; as +torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como rios caudalosos. +Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e horrores da +vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao +desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a +peior das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o +sepulcro do ultimo descendente de uma grande raça. + +Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira +dava-lhe á face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, +e a vista mede o espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um +aceno para voar sibilando ao seu alvo.... + +Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol de fogo jorrou dos +ceus abertos. Soa distinctamente o galope de um cavallo. As ferraduras, +raspando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz das outras. Armas +brancas, capello sem viseira, no peito o açor do Douro. Será D. Moço +Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho sacudido pelo +cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado sobre a +aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo +e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo +lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. +Pouco depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo +debruçado para o precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas +para se rodear de trevas. O braço do Maldito alçou de subito a espada e +o golpe descia já... quando uma seta passa assoviando. O mancebo vio +então o seu inimigo rolar aos pés do ginete e logo apoz um corpo dobado +nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atufar +dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que espirram a grande +altura espuma e sangue. + +Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta +brados de triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde +Ordonho, cosida nas chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos +ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrepito, as +quadrellas alluiram-se, as traves accesas remoinharam e cairam, e entre +os destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do +somno eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no +seu pendão! Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou +comsigo a orgulhosa raça de riba d'Ave, e do seu castello só ficaram de +pé aquella torre negra, que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos +de Pedro Ansures. + +--E D. Moço? perguntou Martim Paes. + +--E Auzenda? acudiu D. Nuno. + +D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e, +cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços, +fragas, e alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do +incendio e viu-o arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só +parou quando o facho do cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que +succedeu então já vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o +encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, mas sem vida! +Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de +cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das +Hespanhas. + +D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a +esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás +batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte? Para quê? +Não a sentia já no peito? A liberdade da terra do seu berço? Ai! Nem +essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d'aquelle coração!... Sombra +do que fôra, o que fazia o desgraçado n'este desterro cruel, sem +affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu +na força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha +até cair, a dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias +desgraçadas, minavam-lhe a vida, seccando-lh'a na raiz. + +Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de +lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a +doce imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias +ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros +que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas +virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera tão feliz; +nos labios aquelle sorriso em botão, que se abria casto como a rosa. O +mancebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acordava, chorando, +porque só abraçára o ar. N'este tormento agonisou por mezes até que +Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde se +recolhera. + +Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o +coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára +orando a velar a tumba, contou depois que vira apparecer uma dama, +formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do +ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe +um annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte +descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por +tres vezes lutou para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras +tantas, vencido por braço invisivel, se prostrou com a face no pó do +templo. Eram as nupcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? +Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzella o sangue +inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus. +Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e os prodigios da sua +clemencia infinita?! + + + + +O CASTELLO DE ALMOUROL[1] + +CONTO DO SECULO XVII + + +I + +--Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta +praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles +pelo Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elles estão aqui á +nossa quinta é muito longe? + +--Não é nada perto, não, sr.ª Brizida de Sousa! Mas lá diz o adagio: aos +que muito correm quebram-se-lhes as pernas... Socegue. O sr. conde de +Villa Flôr anda com elles a contas e não é para graças. + +--O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi +dizer... Mas se elle ficasse mal agora? + +--Ficavamos nós peior, isso é verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, +se meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto +como um estafermo!... + +--Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou demais por essas +guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O +que seria de mim sósinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha +umas poucas de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro +mundo! Ó sr. Romão Pires, diga-me: o demonio--salva tal logar--terá +poder de subverter comsigo no inferno corpo e alma uma creatura +baptisada e remida nas santas aguas?... + +--Conforme! Se não estiver em estado de graça!... + +--Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! +Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? +Quero que me escreva já e já á sr.ª D. Magdalena, contando-lhe tudo +isto. Ella não póde consentir que a sua criada velha uma noite d'estas +desappareça nas garras do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... +Diga-lhe que nos venha livrar d'este inferno, senão... eu cá por mim +fujo! Primeiro a salvação da minha alma... + +--Tambem eu não gosto nada d'isto, sr.ª Brizida. Mas animo forte e +coração á larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo +que vejo, não leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para +esta quinta... + +--Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me não +chamasse eu, se depois da primeira noite não mettesse um bom par de +legoas entre o demonio e quem se présa de christã baptisada na freguezia +de Santa Catharina de Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a +Deus, e sem eiva, nem leiva de mau sangue!... Mas o amor, que tenho á +minha menina, coitadinha, tudo me faz supportar com paciencia... Espere! +Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros arrastados pelo sobrado? + +--Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é +que elles fazem das suas... + +--É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de +noites, Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes vê o +fim. E que me diz então a estas despedidas de maio e entradas de +junho?!... + +--Não são de convidar, sr.ª Brizida! Velho sou, mas não me lembro de +anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, trovões e ventanias que levam +tudo pelos ares! Safa! + +--E nós, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa +Barbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre +será. Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima +no vão das casas? + +--Não é nada. São os rapazes do feitor jogando as escondidas. + +--Pois, sr. Romão Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, +quando minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: «Brizida, a sua +menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão tambem, os phisicos não +acertam com o remedio, e fr. João entende que estas tosses do peito, +assim teimosas, não se despegam senão com mudança de ares. Bem sabe, não +posso sair da cidade por estes dias mais chegados--e é assim, coitada, +por causa da sua demanda--acompanhe-me os meninos, e conte que fico tão +socegada como se eu mesma fosse...» Quando me disse isto, e eu lhe +beijei as mãos pela mercê, se podesse adivinhar o que nos esperava aqui, +asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e viesse quem +quizesse... Isto não é palacio, nem quinta, é um verdadeiro inferno! +Deus salve a minha alma! + +--A sr.ª Brizida não diz o que sente. Vindo a sr.ª D. Maria e o sr. D. +Pedro, ninguem a arrancava de ao pé d'elles. + +--Tem razão. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não +lhe quer mais, não, deixe-me ter esta presumpção... A elle vi-o nascer, +e os primeiros braços, que o embalaram, foram estes que hade comer a +terra. Tão pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo +agora, que não me posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto +de os abraçar homens!... Quando me ponho a olhar para elles, parece-me +ás vezes que não póde ser, e que tudo isto é sonho... + +--Então!? Elles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos. Não ha +remedio. O mundo vae assim. + +--Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que +é da edade e do muito crescer, e que hão de encorpar depois. Deus +queira! São os negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos +meus meninos. A sr.ª D. Maria manhãs e tardes inteiras á almofada, +bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que +dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? É mesmo uma dôr de alma +vel-o dia e noite amarrado á banca dos livros, e que livros! Latins, +gregos, e não sei que outras trapalhadas de _retroricas_... Quem tem a +culpa de tudo, o culpado de tudo o que póde acontecer, é o teimoso do +sr. fr. João, que á fina força quer o sobrinho sabio. Depois que +falleceu o pae, (Deus o tenha em gloria!) não se nos tira de casa, e +tanto ha de quebrar-me a cabeça ao meu menino, que um dia treslê. Pois +olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale +asno vivo, que doutor morto. + +--O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª +Brizida, é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido +um segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes +merecimentos. Não lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna +possuem elles... + +--Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não m'os deixa +respirar. Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa +para acolá... latins, _pholosophias_, ai, que barafunda! Nem eu sei como +as pobres creanças não teem endoudecido. Cá por mim já o miolo ha muito +tempo me tinha dado volta, tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa. + +--Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum nescio... + +--Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na côrte +dizem que não ha outro doutor como elle. + +--Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz +dos seus olhos, e depois tão meigos, tão applicados... + +--De mais, de mais, para a edade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não +parecem d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. João é muito +extremoso, e o que faz é por desejar o seu bem d'elles, mas, graças a +Deus, a casa é rica e não era preciso amofinar-me tanto os meus +meninos... + +O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era +travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas +janellas, cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes +em reboco pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em +outras partes as colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam +em suas pinturas desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores +anãs, e no meio de arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas +lavradas inculcavam a paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a +grande altura, enegrecidos pelo fumo da immensa chaminé de pedra, ornada +de leões de marmore nas bases, e rematada com um brazão de relevo alto, +orlado de ramos de silvas e amoras. + +O sr. Romão Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de +carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma +das faias mais direitas da quinta. Nascêra e fôra creado desde a +infancia n'aquella casa, e não conhecera nunca outros amos senão D. +Vasco, e D. Magdalena. Acompanhára seu senhor, assim lhe chamou sempre, +em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando esforçadamente +ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis desde +1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das +proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de +saboroso pasto aos serões da familia, obrigada a engulir como artigos de +fé todas as aventuras da nova «Tavola Redonda,» que a imaginação do +escudeiro entretecia na tela interminavel de sua cansativa Illiada. + +A sr.ª Brizida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das +apparições, era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, roliça e +risonha, suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de +duas maçans rainetas. As feições, pouco accentuadas, e quasi infantis, +sumiam-se entre as roscas das nedias bochechas, e os seus ares beatos +brigavam na candura affectada com uma larga experiencia da vida. Toda +aquella pequena e buliçosa matrona respirava aceio, cuidado, devoção, e +azafama. Collaça de D. Magdalena, e casada com um dos caseiros mais +abastados do morgado, depois ama de leite da filha primogenita da casa, +enviuvára sem filhos, nem saudades do estado, resumindo todos os +affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas +creanças, que trazia sempre na boca e no coração. + +Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez +de mais para a testa, e o córte dos vestidos á beguina, affirmavam o +programma da sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria +recheada de orações, de visões, e de devotas crendices, o seu defeito +capital era occupar-se muito com as vidas alheias, enfiando um rosario +de conselhos a proposito de tudo, e mexericando, por indiscreta, amos, +criados, e hospedes, mas sem intenção ruim. Todos se encobriam d'ella, +quanto podiam, porém ninguem a aborrecia. Temiam-se da intemperança de +suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu caracter, que era na +verdade excellente. + +Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas, +representava em tudo o opposto d'ella. Sério, como um santão, +embizourado, e quasi sempre com a aguda barba escondida na gargantilha, +se levantasse a vista e a curiosidade para os negocios dos outros, +cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e +segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle profundamente. + +Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o +conselheiro nato da sr.ª Brizida em todos os casos intrincados, e o +defensor convicto dos seus mêdos e indiscrições.--«Boa alma! Boa alma! +respondia aos que a censuravam. Tem o defeito de fallar de mais, mas é +uma santa pessoa.»--Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edição +das guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrificio de +suspender a loquacidade propria!... + +O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calças côr de +pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado +no cavallete do interminavel nariz, não desabotoava a seriedade do +rosto, nem dava ferias ao enfado chronico senão para sorrir á sua +comadre Brizida. Aquelles olhos verdes desbotados não se animavam senão +para festejar algum bom dito da matrona, cujas fallas assucaradas +contrastavam com a voz rouca e soturna do antigo campeão da +independencia portugueza. A predilecção honesta, mas decidida dos dois +um pelo outro, não escapára aos criados, e todos acreditavam que, cedo +ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a +união de duas almas já tão intimas. + +A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita +do Tejo, estendia as matas e charnecas até á ribeira, que separa Paio +Pelle da villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, +distaria pouco mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio +antigo, talvez fundado por meiados do seculo XIV, accrescentado, e +reparado pelos fins do XVI. As ameias, já derrubadas em muitos lanços de +muro, proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas +por torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo fóra do corpo +principal do edificio, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado +diante da fachada, cujas doze janellas de architectura irregular olhavam +para elle. No terreiro se tinham jogado cannas e corrido touros nos +anniversarios festivos dos senhores. + +A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e +articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas +parietarias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras, +resguardava as entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol +até ao primeiro andar. Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava +serventia por uma rampa para os subterraneos allumiados ao rez do chão +por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de salas nuas, frias e +tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde o ar e uma +luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas +envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, +crusados de passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo +desde o andar terreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rêde +inextricavel, um verdadeiro labyrintho. A casa de jantar, forrada de +carvalho em molduras, prolongava-se á maneira de refeitorio entre dois +extensos corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada +para o jardim, na outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para +os vãos, os quaes por cima corriam em largura e comprimento da casa. As +torres communicavam-se com o corpo do edificio por duas portas esguias e +abobadadas, aferrolhadas havia longos annos. Os eirados, meio abatidos, +vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudaes do inverno. + +O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de +pedra no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava +algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e +malmequeres bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de +pão, cingidas de vallados altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do +palacio era carregado de melancholia. Rodeado de solidão justificava em +sua tristeza as queixas, que ouvimos á sr.ª Brizida. Porque escolhera, +porém, D. Magdalena aquelle êrmo para abrigo dos filhos e dos criados, +quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas aonde podessem +respirar, longe do bulicio da côrte o ar do campo? + +D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de +que fôra tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do +couto de Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fernando na comarca da +Beira. Formosa, discreta e recatada, perdera seu marido, D. Vasco +Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. João IV e D. Affonso +VI, havia tres annos, e ainda não enxugára as lagrimas da viuvez. Em +edade de merecer e de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa +de Lisboa, aonde não recebia senão as visitas de alguns amigos antigos +da familia, guiando-se em tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu +irmão, grande sabio, e doutor em canones e theologia, o qual se +encarregára de dirigir a educação litteraria dos sobrinhos. + +D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nascimento, como pelas +qualidades do caracter e do espirito, unira ás propriedades de sua casa, +já mui rica, o senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de +Almourol, que sua mulher lhe trouxera em dote, mas quasi sempre occupado +na côrte com os negocios politicos e no serviço activo das armas, só +duas vezes visitára de fugida aquelle solar desamparado, que principiava +a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras e a cobrança dos +direitos do donatario, com excessiva confiança, diziam os murmuradores, +á probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e ladino, +que mais as disfructava como usurario, do que as geria como +administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam +n'aquellas mãos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o +verdadeiro estado das cousas, na companhia de seu irmão, fr. João +Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais +conveniente. + +Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, +dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas +relações de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo +ramo dos Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma +comarca, aonde existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que +tão viçoso beija as aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados +campos e charnecas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. +Affonso de Noronha, saira da côrte para o exercito do Alemtejo. D. +Affonso, illustre pelo berço, e já illustre pelo valor, vira crescer em +belleza, primeiro com assombro, depois com paixão ardente, sua prima D. +Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pae o amor, que ella lhe +inspirava. D. Nuno confiou este segredo á ditosa mãe, e ella, não +podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes +de dar o sim, quizera, comtudo, sondar disfarçadamente as inclinações da +donzella. Conheceu com alegria, que D. Affonso começára a apoderar-se +d'aquelle coração, que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas +as primeiras e vagas aspirações de um sentimento, que não sabia definir +ainda. + +Corria o anno de 1663. D. João de Austria, á frente das armas +castelhanas, tentára o derradeiro esforço, invadindo Portugal com +dezeseis mil soldados, e os nossos generaes, juntando as forças, mal +conseguiram oppor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Evora, que devia +ser um dos baluartes da resistencia, accommettida no dia 14 de maio, +capitulára, depois de pouco honrada defeza. Este revez aggravou os +receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a insultar +Alcacer. D. Sancho Manuel convocára immediatamente os officiaes a +conselho, e só um voto, o d'elle, approvára a conveniencia de ferir a +batalha, que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A +pericia de Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o +ultimo precipicio da independencia; mas a feliz temeridade do conde de +Villa Flor, fechando os olhos á prudencia, applaudia o encontro decisivo +dos dois exercitos, como o unico meio, embora desesperado, de salvar a +provincia e o reino da sujeição estrangeira. + +O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltára +as casas de Sebastião Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de +Elvas. A todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e +todos tremiam. Um lance repentino podia sepultar para sempre as +esperanças de Portugal! + +A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito +mezes do que D. Pedro, seu irmão, contava n'esta epocha dezesete annos, +e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez +que o unico senão de tanta belleza fosse a sua mesma perfeição +irreprehensivel. No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas +tranças, confundiam-se os lirios e as rozas na mais mimosa frescura. A +bocca, fina e espirituosa, córada como um botão nacarado, breve como um +suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma expressão adoravel. Nos +olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam ás vezes de uma sombra +de enlevada melancolia, a luz serena raramente se inflammava, mas sua +tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixão dormia ainda, +facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor aquellas +pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo de uma estatua +primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que +a vista como que involuntariamente se alçava a buscar nos hombros as +azas da Silphide. A voz tinha condão seductor. A estatura, um pouco +acima de ordinaria, e flexivel como a hastea de uma flor, tambem se +dobrava como ella, parecendo que o esbelto corpo de melindroso não podia +com o doce peso da fronte, em que as mil graças da primeira enamorada +primavera competiam umas com as outras sem se vencerem. + +As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a +attracção, que o calculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o +arteficio. O requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do +sorriso, e a magia arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam +espontaneos, prendendo os sentidos e a admiração. A formosura da alma +ainda era maior, se é possivel. O coração retratava-se na fronte +limpida, e os infinitos thesouros de ternura e de abnegação, que por ora +concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando se abrissem a +affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor ditoso. A +pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de +candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que +affrontado não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e +caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da indole a +firmesa da vontade. Os dotes do espirito esmaltavam as qualidades +moraes. + +Talvez não houvesse na corte dama ou donzella tão instruida na lição das +boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e +castigadas dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos +por Fr. João, eram a sua companhia certa nas horas de repouso. + +D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distincções, que o +exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustração do berço, do +que a elevação do caracter e a fidalguia das acções, que em edade tão +verde quasi o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, comtudo, +senão a confirmassem n'este juizo a presença insinuante do mancebo, a +gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua phisionomia. Os olhos +da donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do +primo, aonde riam as illusões da vida e da juventude, nunca fugiam +d'elles, senão a furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o +que tentaria encobrir em vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os +labios dos dois tinham soltado uma palavra, que revelasse o que sentiam. +Amavam-se. A alma de um trazia sempre gravada a alma do outro, mas só a +eloquencia da vista, indiscreta ás vezes, traira o segredo. D. Affonso, +não podendo por mais tempo calar a chamma, que o abrazava, tinha +declarado ao pae, momentos antes de metter o pé no estribo e de partir +para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas +esperanças, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não +perdera a occasião, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto. + +A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, +com alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo +Rodrigues. Tomado de subito o manhoso camponez, soubera disfarçar o +embaraço e as apprehensões, mas custara-lhe a conformar-se com a +presença dos amos na casa, que havia tantos annos estava costumado a +olhar mais como sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar á pressa duas +salas e algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a +mulher e os filhos nos vãos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a +viseira quando soube que a senhora e Fr. João Coutinho poucos dias se +demorariam atraz da familia. + +No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a +ultima pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos +quartos da aya e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente +por si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos +de ferros e cadeias arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desappareceu. + +O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe +sacudia os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira +noute levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, +petiscou lume, accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao +corredor, quasi em vestido de banho, mas com a comprida espada nua +debaixo do braço. Depressa se arrependeu. Aos primeiros passos um sopro +forte apagou-lhe a luz, bramidos roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, +e um clarão momentaneo e sulphurio mostrou-lhe, envolto no sudario, um +spectro descummunal e ameaçador. + +Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao +inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das +roupas, acto de valor, em que a sr.ª Brizida de Sousa o acompanhava +conscienciosamente havia muitas horas. Pela manhã os dous velhos +pareciam desenterrados. + +O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi +mais respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia +continuada as longas horas, que medeiaram até ao amanhecer. D. Pedro +ainda padeceu mais. Acordando sobresaltado ao impulso de mãos brutaes e +no meio de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar +dentro das cobertas entre uivos e rizadas. + +Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, +ouvindo da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades +nocturnas, contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, +que em vida de seu pae, já tinham muito má fama as casas do andar nobre. + +As noutes seguintes não foram mais tranquillas. Os espectros e duendes +tinham de certo reservado aquellas espaçosas salas, e os corredores, +para theatro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo conspirado +com elles os ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as +trovoadas de maio tão carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em +relampagos, e a terra tremia com o rebombo dos trovões. As chuvas caiam +tão impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de +torrentes e as terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, +alagava as margens, e suas aguas batiam enfurecidas contra os penedos +sobre que se ergue o castello de Almourol, salvando por cima do caes em +cachões de espuma. Ao oitavo dia acalmaram-se as tempestades, mas +redobraram de força os maleficios nocturnos, com terror, e espanto summo +dos recem-chegados. + +Avexados, tremulos e fóra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar +a residencia para os aposentos do castello, que não tinham desabado +ainda minados pelos seculos e pela indifferença; mas o feitor, que +estabelecera n'elles uma filha casada, dissuadiu-os do proposito, +ponderando que as salas e os quartos do velho edificio dos Templarios, +alem de frios e de mais nus, que os do palacio, não eram menos +perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou elle, as almas dos +cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos tinham +vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de +abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha +da famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da +noute sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e +ouvia-se a voz das sentinellas. Até raiar a aurora não se calavam na +sala de armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando esta +descripção horrifica, Brizida de Sousa e Romão Pires olharam +consternados um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, +não querendo precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar +as travessuras menos estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram +entretanto a D. Magdalena, pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle +purgatorio o mais cedo possivel, ou que viesse sem demora em companhia +do Sr. Fr. João desalojar os espiritos diabolicos, cuja audacia zombava +da agua benta e exorcismos do Vigario de Tancos. Os dous honrados servos +confiavam que a grande sciencia do frade doutor e as virtudes do habito +de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da rebeldia de Satanaz e +da maldade dos seus accessores. + + +II + +Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a cêrca +exterior da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, +defronte de Tancos.[2] Cinco seculos, passando por cima d'ellas, não +haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem alluido o cimento +indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a acção do tempo +e o braço infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo, transferida de +Castro Marim para Thomar, a séde da sua victoriosa milicia, estendera +rapidamente pela Estremadura os membros robustos. Affonso I, +liberalisando-lhe doações e privilegios, e enriquecendo com largos +senhorios os monges soldados, confiára quasi exclusivamente ao seu valor +a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure, +Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e +outras povoações, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte +bipartido[3]. As chaves das duas entradas da provincia estavam nas mãos +dos cavalleiros. Defronte da moderna Constança, na confluencia dos dois +rios, o castello do Zezere cortava o passo aos agarenos da Beira Baixa, +em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello de Almourol fechava o +caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia. + +As ruinas, que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam aos que sabem +interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre +um ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali +caprichosamente pelo impeto de violenta irrupção vulcanica, as elevadas +torres do velho castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam +descortinar de longe, erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito +mirrador dos seculos. Grinaldas de heras penduram-se em festões das +ameias desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios +dos pannos rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, tão +arremessados que o dedo de uma creança parece sufficiente para os fazer +escorregar com o muro que os corôa, para o leito do rio, espanta os +olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio ousado e quasi milagroso. +Areias accumuladas, e alguma terra de alluvião formam o solo, aonde +cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos troncos +torcidos se penduram de cima das fragas até roçarem as aguas com as +ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os +penhascos aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio +precipitadas. Uma vegetação activa e luxuosa veste de verdura aquelle +cahos de moles immensas sustidas ha seculos no meio da ameaça constante +de uma quéda instantanea. + +No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia, +o aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou, +mas a assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. +Do lado do occidente quatro torres circulares, levantadas como +sentinellas de granito a egual distancia umas das outras, alçavam as +frontes torvas e já tostadas do tempo. Entre a segunda e a terceira +rasgava-se a porta actualmente intransitavel do castello, com a sua +volta de ogiva e grossos batentes de castanho chapeado. No meio do +guerreiro edificio avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto +intervallo, outra quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias. +Uma janella ornada de lavores em ramos, aberta a dois terços da altura, +esclarecia os aposentos do segundo piso, em quanto da parte oriental +duas frestas do mesmo estyllo davam claridade á sala de armas. Cinco +torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a muralha subia a grande +altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes ficava ao sul, e +o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, corria +profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje são +ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os +cactus silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaçoso por onde se +entrava para os andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles +aposentos, pouco espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas laçarias. Em +1663 a obra da destruição principiava a annunciar-se apenas. Apesar de +nuas, as salas ainda conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e +adarves, se não alvejava havia mais de tresentos annos o manto branco +dos templarios, se algumas heras, trepando, se balouçavam á mercê do +vento, e se as torres e muralhas mostravam já a côr adusta, que é para +os monumentos o que são as cãs nos velhos, um testemunho irrecusavel de +que viram e viveram muito, não se tinham esmorecido, comtudo, nem +apagado ainda nenhuns dos vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol +no meio do Tejo, similhante a um titão com metade do corpo fóra das +aguas, ainda podia ameaçar forte e intacto, os que ousassem arriscar-se +ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel cuidava no vigor de sua +robusta velhice zombar dos seculos, como as creanças zombam dos annos, +bem alheio de suppor, que na transição da edade grave para a decrepidez +sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas +diriam ás gerações indifferentes da nossa época, que eterno e grande só +é Deus! + +Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e +ornada de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os +dois ricassos da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais +ainda pelas raizes de interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues +ajudava piedosamente seu genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar +copiosas libações de um vinho, que escaldaria outras goelas menos +estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e pés torneados, que servia +de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho d'aquelles contornos, +avultava um alentado cangirão de barro, bojudo, e cheio até á boca. +Principiára a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos, similhante +a monstruoso aranhiço, allumiava a casa escassamente. Duas espingardas, +carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, promptas para servir á +primeira voz. + +Antonio Rodrigues era corpulento, espadaúdo, e reforçado. Faces largas e +cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça enterrada +entre os hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes +denunciavam n'elle o vigor de um atheleta unido a uma saude +inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta annos, mas os visinhos do seu +tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e acertavam. Mas era uma +velhice verde e jovial, que não se inclinava ao peso dos annos, que o +trabalho não desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim viçosa +e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos +rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo +douto Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter +de receitar nem um xarope áquelle cliente invulneravel ás chuvas, aos +frios, e a todas as temeridades, a que um mancebo se não atreveria +impunemente! + +Antonio Rodrigues trajava á camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibão +e calças de baeta escura, carapuça de lã, e o inseparavel varapau +ferrado na ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha +de cabellos grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa, +pouco sulcada de rugas. O sorriso enroscava-se perenne nos beiços +grossos e córados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como +os de um tubarão, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o +peito, e os olhos castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em +gordura, dir-se-hiam que espreitavam tudo, meio encobertos. A voz +aflautada causava espanto saindo d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz +grosso e cravejado de botões vinosos, rubros como rubins, assumia +dimensões quasi phenomenaes. A expressão da phisionomia era dubia. O +observador no primeiro relancear apenas notaria a beatitude do comilão +repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e, comparando o +olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando +debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feições moraes +significativas da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma +cubiça incapaz pela avidez de transigir com a honra, com a consciencia e +com o dever. + +Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto +aos dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo +alpha, e o outro pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto, +assustava os que o viam com o receio de que um dia lhe saltassem os +ossos das tibias e dos femurs soltos das ligaduras. Braços de polipo, +terminados por mãos e dedos eternos, hombros agudos sobre os quaes o +fato dansava como posto em cima de um cabide, rosto comprido, +escaveirado, e macilento, acompanhado das melenas esguias de um cabello +ruivo e aguado, testa núa que chega quasi á nuca, peito e ventre +espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou surrateiros, +boca rasgada quasi até ás orelhas, e beiços finos e desbotados, +compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais +atilado, avarento e sem escrupulos d'aquellas immediações. Parecia fraco +e a desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar +legoas, os braços escamados encobriam uma força alem do commum, e os +olhos vesgos só viam torto para os negocios alheios. + +Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o +velhaco ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria +para fóra. Uzurario de nascença, hypocrita por indole e verdadeira +voragem de liquidos e solidos, digeria como um abestruz e bebia como um +areal. Quando conversava, sempre em fallas manças, sabia chamar a tempo +uns frouxos de tosse e umas lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a +engulir metade, e ás vezes duas terças-partes das palavras, e é inutil +accrescentar, que as palavras engulidas eram sempre as que o podiam +comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o caso o requeria, Pedro +Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma cascata de prantos. +Tinha as glandulas lacrimaes devassas e chorava como um crocodilo. Ai +dos innocentes que se deixavam orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam +quasi sempre sem camisa. No meio d'aquelle rosto afiado erguia-se um +promontorio immenso. Era o nariz adunco e aguçado na ponta, que descia +quasi a beijar o labio superior. Este nariz, delgado e membranoso, +rematava a semelhança que tinha aquella cara com o focinho da fuinha. +Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso geral as +funcções de procurador de dous conventos de freiras, de quatro +irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos +lucrativos a arrematação dos dizimos e premicias da comarca. + +--Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando +o caneco despejado em cima da mesa. + +--Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro +Lavareda com um sorriso avinagrado. + +--Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui +mettida. Tomara vel-os pelas costas. + +--Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá saudades! +redarguia o outro com meio sorriso acido. + +--Isso é facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vês, os +donos da casa são elles!... + +--Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são ellas!... + +--Hum! Podiam ser melhores... Esse é o meu receio. Trazemos isto muito +de rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse já ou lh'o ha de +dizer. + +--Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse. + +--Pois sim!... Olha, não seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas +terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a +castanha na boca uma d'estas manhãs?! + +--Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira á boa feição, e o dinheiro é +sangue... + +--Mas homem!?... + +--Deixe lá, sr. sogro, não se metta a abelhudo aonde o não chamam, e +deixe ir a agua ao moinho. Já alguem fallou em lhe levantar a renda da +alcaidasia?... + +--Não. + +--Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração á larga. O que +for soará. + +Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coçava a nuca com o +indicador e o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava +sobre a taboa da meza com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da +barba sumiam-se-lhe na golla alta do gibão, e os olhinhos, homisiados +entre as palpebras meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do +gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo +na apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de +linho, em quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mão raspava uma +nodoa conhecida e teimosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavam e se +entendiam sem fallar. O feitor de repente levantou meio corpo de cima do +mocho de pinho em que se assentava, colheu o cangirão pelas azas, +sopesou-o por um instante, e emborcando-o, encheu os dous canecos de +louça. Levou depois o seu á boca, encurvando lentamente o braço, e +despejou-o em poucos sorvos, emquanto o sobrinho, coleando primeiro a +lingua pelos beiços, libou com mais vagar e com gestos de amador +consumado o nectar, que espumava na grosseira taça. + +--Rapaz, isto não vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro. +Anda mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me +abotou-o. Esta gente de Lisboa aqui não gosto nada d'ella. + +--Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya é uma tonta, +uma pêga douda. O escudeiro não passa de um espantalho de pardaes, e os +meninos.... leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada +nascida de oito dias e verá se não lhe dizem que é trigo. + +--Mas atraz da pêga e do espantalho tenho muito medo que venha o +milhafre!... + +--Qual milhafre?!... + +--O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de +verdadeiro susto. + +--E então se vier?!... Lê no seu breviario! O Sr. Fr. João Coutinho sabe +muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio... + +--Nisso te enganas. É capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se +no campo e administrou muito tempo os bens do convento. + +--Ah! Ah!... + +--E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela prôa +com a Sr. D. Magdalena. + +--Mau será!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do +polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Máu +será, tio!.... Mas não havemos de perder o somno por isso. Dizia no +mosteiro, aonde me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo +o genero de peccado deixou Deus remedio na sua egreja... + +Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco +satisfeitos. + +--Então que dizes, homem?!.. + +--Se o frade vier.... é pôl-o ao fresco, em vinte e quatro horas. + +--Estás mangando, sobrinho?!.. Pôl-o ao fresco? O irmão da senhora, o +tio dos meninos?!... + +--Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa. + +--Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?... + +--Mettendo-lhe medo. + +--Ao sr. Fr. João, que é rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai +dormir, Pedro, isso é somno. + +--Sim sr., metter-lhe medo, porque não?... + +--Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito á lambareira da +aya e ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada +de escarneo. + +--Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade não +foge?... Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lençoes da +cama. + +--Deixa-te de historias, Pedro!... As visões com o frade não pegam. O +que apanhas é algum tiro.... e olha que é caçador que não erra. + +--Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e verá.... + +--Emfim, lá sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo! +O frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho muito amor á +pelle. + +--Socegue. Eu tambem não tenho odio á minha. Diga-me: se Fr. João vier, +aonde o mette? + +--Aonde o metto?!.. Porquê? + +--Preciso saber. + +--No quarto verde talvez... + +--Nada! Dê-lhe o quarto dos armarios. + +--Mas!... + +Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coçando sempre a nuca. O +genro ria-se para dentro, raspando a nodoa do calção. + +--Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu +risinho. + +--Pois não tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua +mãe Maria Santissima. + +--Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!... +Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no +sr. Fr. João.... Não é por elle, é por mim. Nada de graças pesadas! Não +me quero ver na cadeia comido de pés e mãos. Leve antes a bréca as +terras. + +--Ai, tio!.. Não se faça teimoso, e não esteja calumniando as minhas +intenções.. Valha-me a Senhora Sant'Anna. + +--Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?... + +--São passos. + +--E vozes... Chega á fresta e vê! + +Pedro Lavareda obedeceu. + +Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram-lhe na cara, apenas +abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se +passava no rio. O devoto personagem recolheu á pressa o interminavel e +esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas, e, enrolando um +lenço por cima da gola do gibão, tornou a affrontar, porem mais abrigado +d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta +observação, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se +defronte do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada +no afunilado rosto uma verdadeira elegia. + +--Então?!... disse o feitor já sobresaltado com a mimica tetrica do +sobrinho. + +--Fallai no mau, apparelhai o pau!... É o frade!.. + +--Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de pé de um pulo e +enterrando a carapuça até aos hombros. O frade?!. + +--Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razão, tio. Anda mouro na +costa. + +--Vem a Senhora D. Magdalena?... + +--Não. Vem elle só. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro. + +--Não te dizia eu, Pedro?... E agora?... + +--O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua. + +--Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. +Não gosto nada da vinda do sr. Fr. João assim com este segredo.... +Receio.... + +--_Valaverunt galhetas_, sr. meu tio! como nós diziamos no convento!... +O caso está feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem rabo!.. +melhor, porém, o ha de fazer Deus e sua Mãe Maria Santissima, minha +madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom +vinho alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber +o sr. Fr. João, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada. + +--E tu?... + +--Eu... Fico para pôr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! Dê ao sr. +Fr. João o quarto dos armarios. É essencial. + +--Porquê?... + +--Pela bocca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça esperar sua +reverendissima e encommende-me nas suas orações á minha devota Senhora +Santa Anna... + +--Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha +lá?.. Cuidado com a pelle do sr. Fr. João! + +--Vá descansado, tio, não hade haver novidade. Vem ceiar? + +--Venho. + +--Até logo. + +E os dous consocios e parentes separaram-se. + + +III + +--Com que então solto anda o demonio por estes palacios confusos, e +afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me +contam! Mau é isso!... E vossê que diz, Romão Pires? Parece ainda mais +pasmado do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. Antonio Rodrigues, +diga-me: aonde é o quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. É +de casa! + +--Eu, sr. fr. João!... Sei só que não se póde parar aqui da meia noite +em diante!.. + +--Ah! sabe isso!?... Ja não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia +mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os sustos. + +--O sr. Fr. João gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!... + +--Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora +Apparecida!... É da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou +a sr.ª Brizida, pondo as mãos. + +--Então o sr. Antonio Rodrigues crê que esta noite haverá ensaio geral +de Satanaz e da sua côrte, para festejarem a minha chegada?... Muito +bem! Cá estamos. _Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!_ +Pelejaremos com as armas espirituaes, que são as melhores, e com as +temporaes, que tambem servem em certas occasiões! Mas como vamos de +ceia?.. No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar +um carneiro assado! E o vinho, aquelle bom vinho de 1655, ainda haverá +por cá uma gota d'elle? Ha de haver. O sr. Antonio Rodrigues, o melhor +copo de Tancos e seus arredores, aposto que não está desprovido de +munições de guerra? + +Antonio sorriu e coçou a nuca. + +--A ceia está ao lume, e não se demora tres credos. Quanto ao vinho.... +esteja vossa reverendissima descansado. + +--Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr.ª D. Maria. +Ella tem passado peior?... + +--Não, sr.! Peior não. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a +minha rica menina tem perdido as côres. Ella é tão delicadinha, tão +fraca!.. Ó sr. fr. João, a menina não podia ler um nadinha menos, mais o +sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa? + +--Não pode, não senhor!... acudiu o frade em voz de trovão. Meus +sobrinhos não se educam para espantalhos de sala!... E vossê é muito +atrevida em se metter a dar conselhos aonde a não chamam!... + +--Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir uma repostada +assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. João? Não sou moura, nem perra, nem +captiva. Pão em toda a parte se come; e se não fosse o amor dos meus +meninos, por esta (e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma +hora mais n'esta casa! + +--Está bom, Brizida de Souza, está bom! Não se inflamme. Sabe que a +estimo, que todos em casa lhe queremos muito.... mas não me toque n'essa +córda. Sei que me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que +elles não teem uma tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa +aos meus livros!... + +--«Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» resmungou a velha ainda +irada e incorregivel. + +--Mas eu é que não quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos, +mulher!--bradou o frade fazendo-se côr de purpura e sorvendo duas +pitadas com o ruido de um furacão..--Safa! Vossê é capaz de fazer perder +a paciencia ao proprio Job!... Bem! Não fallemos mais n'isto, e não faça +caso dos meus repentes.... Sabe que não sou tão mau como pareço e que +trago sempre no coração os meus dois rapazes... + +--Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. João berra, esbraceja, é um +destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos +Deus de uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o dente +calados.... + +--Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa intenção. Chame os +pequenos. A ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella +como Santiago aos mouros!.. Vamos. + +A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra, +regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. João +proclamou rival do melhor que se podesse beber á meza de el-rei. As +proezas gastronomicas do erudito dominicano tinham assombrado o proprio +feitor, cujo estomago insondavel sepultava sem incommodo alimentos de +todas as qualidades, e se carregava de quantidades que eram o espanto e +maravilha dos que assistiam ás suas repetidas campanhas pantagruelicas. +D'esta reputação merecida Antonio Rodrigues viu-se obrigado a arrear +bandeiras. O padre mestre não comia, devorava, não bebia, absorvia! +Regando de copiosas libações cada iguaria rustica, absolvendo as +indigestas com um exorcismo culinario, fazendo desaparecer do prato as +menos pesadas com milagrosa rapidez, dir-se-hia que a fome iberica e +peninsular, a fome de dentes caninos e apetite insaciavel, tomára a +figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos uma +verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porém, e Fr. João, exalando um +suspiro, e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por +concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda +suffocada do esforço: _Deus nobis hæc otia fecit!_ + +O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no +espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o +barretinho de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não +offerecia de certo a imagem dos piedosos e extenuados monges, que em +epochas de mais fé edificavam os fieis com o exemplo de sua vida frugal +e contricta. Parecia mais um hippopotamo encalhado, do que um devoto +filho de S. Domingos. Os instinctos animaes prevaleciam, e a fadiga de +uma digestão laboriosa fazia arfar aquella machina de mastigação +continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admiração sincera +de creaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas +atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em +oração atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o +padre coloçal fulminado por um ataque apopletico. Romão Pires ainda não +podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel do +irmão do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam +no brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente +com a unha, e dizia comsigo, que o frade, medindo as forças pela +alimentação, devia prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em +dous, como o faria qualquer mastim faminto ao gato descuidado, que lhe +caisse debaixo das prezas. + +--_Deus nobis hæc otia fecit!_ tornou a repetir Fr. João depois de uma +pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e +agilidade.--Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!.. +Minha sobrinha! Não gostei de a ver tão triste. Que nuvem pesa sobre +esse coração? São receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver são e +escorreito.... + +--Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida. + +--Pois quem hade ser senão aquelle cavalleiro andante que se despedio de +nós e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me +agora? + +--Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza. + +--Está bom! Está bom! Não digo mais nada.... Romão Pires sabe que os +castelhanos tomaram Evora, e que a estas horas hão de estar as mãos com +o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem vence?!.. + +--Essa é boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa +Flor. + +--Deus o ouça! Bom é ter fé!.. Mas!--E a larga fronte do frade +enrrugou-se aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de +lhe cobrirem quasi as palpebras superiores--_Deus super omnia_! +murmurou. + +Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se +com estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou +impetuosamente pelo aposento, com os olhos espantados, as faces +contraidas, e os cabellos ruivos espetados, representando a imagem viva +do terror e da consternação. + +--Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!... + +A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de pé, não +menos assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora. + +--Os castelhanos!?.. gritou Fr. João, saltando da cadeira e empunhando +machinalmente um bastão enorme, especie de clava, que o acaso lhe +mostrou encostado a um canto. + +--Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e +erguendo as mãos. + +--Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a +longa navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em +quanto Romão Pires sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiçosa. + +D. Maria, branca de cêra e silenciosa, encostou-se á mesa para não cair. +D. Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes, +e a fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de côrte, e deu +alguns passos como se quizesse sair ao encontro do perigo. + +--Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. João. Ás armas! sr. Antonio +Rodrigues chame os criados!... Façamos de Tancos e de Almourol uma +segunda Aljubarrota!... + +Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de +impaciencia batia o pé como o corsel insofrido escarva o chão desejoso +de soltar a carreira. + +--Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a +noticia, e aonde estão os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com +extrema serenidade. + +--_Do manus!_ _Rem acu tetegiste, puer!_[4] gritou o frade sentando-se +commovido e ainda tremulo. Façâmos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em +primeiro logar: quem é e como se chama este correio de más novas?.. + +--É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda. + +--Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais +secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue á falla o sr. +Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a má noticia que nos trouxe?... + +--Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!... + +--E que disse o almocreve?... + +--Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no +campo, e que as guardas avançadas de D. João de Austria estavam a entrar +no Crato!... + +--Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha? + +--Não m'o soube dizer. + +--Hum! E o seu almocreve aonde está?... + +--Partiu, caminho de Lisboa. + +--Oh! E não sabe mais nada? + +--Mais nada, sr. padre mestre. + +--Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de +amigo?... + +--Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!.. + +--Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve, durma sobre o caso, +como nós vamos dormir, e creia que amanhã acorda convencido de que +engulio uma peta mais comprida do que a sua pessoa, o que já não é +pouco. + +Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas +como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e hypocrita de +uma annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam +soffrivelmente um sorriso boçal. + +--_Macte puer!_ gritou Fr. João, batendo no hombro de D. Pedro. Tiveste +mais juizo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e mentira mal +armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um +almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma até +Almeida! Romão Pires, enfie-me na baínha esse eterno chifarote, espanto +e censura viva das espadas de hoje!... + +--Então vossa reverendissima já não quer que ponha de aviso os criados? +disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com +o genro, colloquio, que apesar de curto, não escapara a Fr. João. + +--Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro +mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma +boa ceia é o melhor remedio para estas molestias. Aonde é o meu quarto? + +O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador ao sobrinho, que lhe +respondeu com um aceno quasi imperceptivel de cabeça, e, pegando em um +maciço castiçal de prata denegrido, precedeu a especie de procissão de +toda a familia até ao aposento, aonde o douto dominicano havia de passar +a noute. A porta abria-se no topo do comprido corredor do centro; a +camara de D. Pedro ficava-lhe á esquerda, e o pequeno camarim de Romão +Pires á direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados, e +seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brizida +de Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. João, nada +inculcava de notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de +peitos e uma sacada, cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a +par de largos pedaços das colgaduras de couro, que em melhores dias as +tinham ornado, altos e grandes armarios de pau santo. Os tectos altos e +enegrecidos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalando com o peso dos +passos, atestavam a velhice e o desamparo. Um leito antigo, enorme, com +sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de pau santo arruinado, +e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou quatro +cadeiras coxas dos pés, ou mutiladas dos braços, a mobilia nada commoda, +nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruição minava, +e esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram +alguns paineis grandes, retratos de corpo inteiro de guerreiros, damas, +e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras de carvalho, +lavradas de talha alta. + +O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, +sorrindo-se, ao feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas +almas do outro mundo. Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda +cabeça, e Brizida benzeu-se devotamente. + +--Bem!... N'esse caso é preciso estar armado e vigilante para a batalha! +Se escaparmos aos castelhanos do Crato, não quero que acabemos nas +garras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz +favor! Mande trazer para aqui o meu alforge, que ficou na sala de +entrada. Sr. Pedro Lavareda (exquisito nome (!)) é bom caçador por +certo, e hade ter uma espingarda de mais. Eu tambem gosto de dar o meu +tiro de manhã cedo ás perdizes e ás calhandras por essa charneca. Conto +levantar-me com o sol, e dar um passeio pelas fazendas, para tornar a +ver estas terras em que não ponho os olhos ha um bom par de annos. Para +não ir com as mãos abanando levarei a sua espingarda... Não a heide +tratar mal, descanse!.. + +--Essa é boa, sr. Fr. João! A espingarda, eu, e tudo o que mandar estão +ás ordens de vossa reverendissima.... + +--Muito obrigado!... Olhe não se esqueça de me trazer um frasquinho de +polvora. + +O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a +Romão Pires, e pondo as mãos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em +voz baixa: + +--_Latet anguis!_ Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella face +compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous, +elle e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão conjurados contra +nós... Porquê e para quê? O tempo o dirá. Olho vivo, pois, Romão Pires! +Se lhe apparecer visão, ou espectro, receba-m'o ás cutiladas. Eu cá +espero a pé firme os que vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes +deitar, hade chamuscal-os de véras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous +velhacos. + +De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a +espingarda e o frasco. Fr. João fallou um pedaço com elles, sempre com a +boca cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar até pela +manhã, e despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiança. + +--O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse +Antonio Rodrigues com o rosto carregado. + +--Veremos, sr. meu tio. + +--Guarda-te de elle te pôr as mãos. É capaz de estourar um boi. + +--Melhor o fará Deus! + +--Boas noutes. + +--Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda. + +--Sentido! Nem uma beliscadura! + +Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do +corredor, Fr. João Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e +parecia ficar inteirado de que as paredes e os armarios não encobriam +portas falsas, nem os sobrados alçapões. Abrindo o alforge depois, tirou +de dentro um par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as +escorvas, e passando á espingarda, carregou-a com todo o cuidado, +metteu-lhe uma bala, e pousou-a engatilhada á cabeceira da cama. Feito +isto foi á porta pé ante pé, descerrou-a de manso, e em passo subtil +encaminhou-se ao camarim de Romão Pires, aonde se demorou. Á +volta--davam onze horas--achou tudo como o deixara, rezou pelo seu +breviario, e despindo só o habito, abafou-se, conchegou as colchas, +recostou a cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um +somno profundo annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, +as almas penadas, e os virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade não +julgára de bons quilates. + +Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito, +pesado e maciço, arfava, balouçado como um barco sobre vagas inquietas. +O frade entre-abriu os olhos. A vela do castiçal estava em um terço, e a +luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e +silencioso. Entretanto o leito não parára de dansar, e, facto mais +singular ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mão, ou +braço que lhe tocasse. Fr. João deixou-se ficar, tomando sómente uma +posição que lhe consentisse saltar ao chão de um pulo para travar a +lucta com os duendes e spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador +á cabeceira, e a espingarda ao pé. Entretanto, apesar de animoso e +resoluto, o suor principiava a borbolhar-lhe na testa, e um calefrio +suspeito a correr-lhe a espinha dorsal. + +--Isto não vae bem! Queria antes ruido, grilhões arrastados.... a scena +do costume. Esta calada e estes empuchões invisiveis.... sinceramente +sería de fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!.. Lá se +foi a roupa até aos pés da cama.... Não gosto da graça! Que é aquillo? +As pinturas andam!?.. Oh!... + +Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos +cabellos, que lhe restavam, erriçados em volta da calva, com as feições +contrahidas e a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no +painel, que lhe ficava fronteiro e que representava um cavalleiro da +edade média coberto de toda a armadura, mas com o rosto sem viseira e os +olhos ameaçadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura, +parecia mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. João quiz duvidar do +testemunho dos sentidos, e convencer-se de que era victima de uma +illusão. Esfregou as palpebras, beliscou os braços para despertar a +sensibilidade, mas o retrato continuava a adiantar-se, e um sorriso +tetrico como que lhe franzia os beiços. Ao mesmo tempo os ouvidos +afiados do dominicano colheram, não sem grande pavor, o som amortecido +de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante ao gemido +doloroso de afflictivo estertor. + +--_Vade retro, Satanaz!_ murmurou saindo da cama cheio de terror. _Ne +nos inducas in tentatione!_ + +Apenas soltára a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furacão +medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes. + +Fr. João recuou até ás cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os +joelhos, e fugir-lhe o animo. Estendendo a mão nas trevas machinalmente, +encontrou uma das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos +apertaram tambem machinalmente a coronha. + +De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz +sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma +gigantesca envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta +figura descommunal, cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas +cavidades dos olhos, e acenava com os longos ossos de esqueleto. O frade +tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos +recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas +espirituaes não produziram effeito, e, apesar da perturbação momentanea, +tornou a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle +espectaculo uma visualidade, ensaiada para zombar da sua boa fé. +Revestindo-se, pois, de valor e decisão, apontou rapidamente ao vulto, +que tinha diante, a pistola, que não largara da mão, e disparou-a. +Observando que o tiro não causára abalo no phantasma, pegou depois na +outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou o gatilho. Uma +risada estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o spectro, +mostrando as duas balas, arremessou-as ao chão, aonde o padre mestre as +ouviu rolar. Logo em seguida o clarão sumiu-se de subito, espessas +trevas envolveram o quarto. Fr. João, quasi desmaiado, caiu em uma das +cadeiras proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os +membros, e paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo +terror. + +Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas não eram menos activas e +violentas nas camaras dos outros hospedes. Romão Pires, apenas se +deitára, e escondera a cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco +em harmonia com os brios de suas falladas campanhas, sentio +apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe pelos pés o magro e aprumado corpo +até o estatelarem de pancada e sem dó nas taboas do sobrado. O grito de +mêdo e de dor, que soltára estremunhado, teve em resposta um côro de +risadas em falsete. Brizida de Souza acordou espavorida ao frio gelado +de um verdadeiro regador de agua que lhe entornavam sobre a cabeça, e +saltando por a casa em roupas menores, e com a boca escancarada, para +bradar, era comida no ar por mãos pouco caridosas e nada leves, que de +empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde veiu +encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma +das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem +accusava uma força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de +pavor, não padecera senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito +gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros. + +No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque +tinham chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, +sereno em presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na +intervenção dos poderes infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute +sem se despir, e com a espada nua ao lado, tinha-se entregado á leitura +de um livro novo, que em breve lhe absorveu a attenção. Feriu-lhe de +repente o ouvido a matinada das investidas no corredor e nos aposentos +proximos. Apagando a luz, e empunhando a espada, aguardou silencioso. + +A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber +dous vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se +debruçava sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava +d'elle sons roucos e medonhos, caiu ás pranchadas sobre o musico do +Averno, ao qual o instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado, +principiava a revolver-se pela casa, gritando como um simples mortal +derreado por uma sova. O outro phantasma volveu logo em auxilio do +agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao que pareceu, +deitou-o pela porta fóra como um vendaval, em quanto o companheiro +tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo. + +D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castiçal +e a candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão +um buzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com +lagrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelão pintada de +amarello. + +O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao +mesmo tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gôtas de +sangue, caidas no pavimento desde metade da casa até á porta, +provaram-lhe que um dos actores do drama nocturno retirara ferido e +assignalado. D. Pedro pegou no castiçal, e seguindo o rasto de sangue +pelo corredor, notou que parava no topo, aonde só existia uma parede +grossa, sem nenhuma saida apparente. Informado do que desejava +verificar, voltou atraz, e encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á +porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se +affirmar. A velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos +transidos de medo e de frio, esgotavam um defronte do outro todo o +vocabulario de rezas e de interjeições atribuladas, sem se atreverem a +volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, fallou-lhes, +animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a camara de +Fr. João. + +O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quasi exanime na +ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e +a espada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas +não se moveu. + +D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir +palavra examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo +triumphante não deixára despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em +cima do velador, collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para +junto da cadeira, d'onde o tio, como paralysado, observava tudo +silencioso, disse-lhe: + +--Mas o que foi isto?!.. + +Fr. João respondeu com um suspiro, e, correu a mão pela testa ainda +inundada de suor. + +--Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!.. Não me dirá o que +succedeu?!...» + +Outro suspiro mais alto. + +--Por onde entraram elles?... + +O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, +meneou a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio corpo da +cadeira, e apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos +antes soltar-se da moldura, e encaminhar-se para elle. + +--Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castiçal +e correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou: +Olhe?! + +--O que? disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido e tremulo, como +se acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade. + +--Venha meu tio, e veja! + +De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um botão +debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo á pressão, +abriu-se lentamente. + +--Ah!.. exclamou fr. João. + +--Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo. + +--Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as +côres, a elasticidade dos membros, e a viveza dos olhos. Mas abaixando a +vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no chão, e uma nuvem +torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o que +succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os +duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um +immenso ponto de interrogação. + +--Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro. + +--Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão Pires. + +--Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo? + +--Como de te estar vendo. + +--E metteu-lhe uma bala de calibre? + +--Seguramente. + +--Muito bem, quer vêr? + +E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a +polvora. Da bala não achou noticia. + +--Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os +dentes, plectorico de colera. + +--Podiam atirar-lhe com tres balas aos pés em vez de duas! Tinham tido o +cuidado... + +--De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão de pagar-m'o caro!... Só +atazanados! + +--Dá licença que lhe dê um conselho?... + +--Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais, do que nós +todos. + +--Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha. + +--Bem! Bem! _Do manus! Qui nescit dissimulare nescit regnare_, acudiu +fr. João, esfregando as mãos. Ah! patifes! O que elles se terão rido á +minha custa!... + +--Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Bôas noites meu tio. Socegue, +que bem o precisa. + + + + +A CAMISA DO NOIVADO + + +I + + Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu + tempo certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos + quaes disserom, que as Leis e justiça erom como teias de aranha nas + quaes os mosquitos pequenos, caindo, são reteudos e morrem em ella, + e as moscas grandes e que som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as + e vão-se. + + Fernão Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX. + +Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoço, na provincia de +Traz-os-Montes, erguia a cabeça soberba acima dos outros logares. As +muralhas de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo +castello, debruçadas sobre um precipicio despenhado, concordavam com a +melancolia do sitio e com as sombrias tradições, de que as memorias do +povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de +aguias, a vista, relanceando, abraçava toda a campina, mosqueada aqui de +arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas além, e empolada mais +adiante em collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam até +beijarem o cinto de cabeços alpestres, ultima barreira dos horisontes. +Ao sopé da montanha, aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma +torrente. Era o Angueira bramindo entalado na bronca penedia do leito. +Mais ao longe, na coroa dos cerros, os pinheiros meneavam as copas +verde-tristes, e os ciprestes solitarios balouçavam ao vento as pontas +esguias. Por ultimo, ao largo, já quasi aonde não enxergavam os olhos, +recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de Seabra na +fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de +Nogueira, toucadas de gelos eternos. + +De tarde, quando começava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens +do rio em cóllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e +envolvia n'uma cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu +caprichoso, cujas dobras sacudia a briza, ora se despregava, deixando +entrever confusamente os vultos, ora condensado cerrava tudo em volta do +solar. + +Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo e de nebrina eram +tambem as horas dos feitiços. Uma princeza encantada junto da fonte de +S. João guardava os thesouros enterrados de certo magico. Linda como as +estrellas, a maldade do encantador condemnara-a a arrastar-se todo o +anno em figura de serpente. Só na vespera do festejado santo, á meia +noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, é que o fado mau +se quebrava até ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a +moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as +escamas luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a +formosura rara de uma belleza admiravel. + +Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e +copados ulmeiros á beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de +branco, desnastrando as tranças com um pente de ouro, e cantando aos +espiritos do ar com tão maviosa voz, que se cortava o coração de a +ouvir. + +Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira já inclinada sobre o +espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da +côr da açucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se áquella +hora qualquer lograsse fallar á moura antes de tornar á fórma de +serpente, alcançaria da bella captiva, que era fada, as primeiras tres +cousas que lhe pedisse; mas os acasos ditosos são raros, e em cem annos +pelo menos não havia lembrança de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido +batia os pés, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo, +como sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas +aguas, e uma leve nebrina por entre as arvores. + + +II + +Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o +_Justiceiro_, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e +humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer +punisse, quer premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos, +os maus tremiam diante da sua face, porque o castigo de suas mãos seria +vingador como a ira de Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos. +No seu tempo a lei era de um só rosto e a pena não coxeava atraz da +culpa. Entre o crime e a expiação não se interpunham annos, promessas, +ou favores. Devedor honrado, o principe ajustava logo a sua conta a cada +um, e pagava-a immediatamente. Só aos moradores de Algouço, coitados! é +que ainda não chegára a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo +sentiam sua fé tão viva n'elle, que nas maiores afflicções a voz de +todos era sempre: «Valha-nos aqui el-rei D. Pedro!» Por fim valeu, e o +caso devia ser escripto com lettras de ouro pela penna d'aquelle honrado +e singelo chronista Fernão Lopes, mais poeta do que toda uma arcadia, e +grande pintor de vultos e de cousas. + +Ainda então se aninhava a povoação de Algouço em volta do castello, +construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a +sombra misericordiosa dos braços da sua cruz. Por ambas as encostas até +á corôa da montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos +armados nos eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da +aldeia, pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e +arruinadas de velhice, estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas +e remoçadas dissimulando a pobreza com os ares quasi festivos!! «Deus +nos livre de tão mau senhor!» era o voto dos burguezes de Miranda, +compadecidos da escravidão dos moradores de Algouço, e ainda não diziam +desgraçadamente toda a verdade. Ali o suor de sangue regava os banquetes +da sala de armas e as pompas quasi regias do rico-homem. O pranto da +viuva e as lagrimas dos orphãos molhavam suas mãos, sempre alçadas +contra a miseria dos desditosos para destruir o tecto, que lhes abrigava +o berço, e revolver ás vezes até o chão sagrado do cemiterio aonde +repousavam seus paes, avós, e irmãos. + +O mordomo trazia de cór os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A +vontade do amo e a cubiça dos servos deixavam mendigos á noite os que +tinham amanhecido remediados! + +D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raça o sangue +nobre confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o +casamento de Diogo Lopes com a Dama-pé-de-Cabra. Verdadeira, ou +fabulosa, a alliança dos altivos barões com os demonios tinha sido +fertil em crimes. N'uma epocha, em que a lança e a espada cortavam as +contendas, calando as leis, e calcando os direitos, os cavalleiros de +Algoço excediam os mais ferozes na braveza, e na crueldade ferina. Vêr +correr prantos, e derramar sangue, para elles era um deleite. Pizar aos +pés dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes das +matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro +objecto das estrondosas caçadas, em que talavam campos e vinhas a +pretexto de montear lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta +familia impia. Tres esposas, em seis annos, haviam passado do leito +nupcial para o tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de tão mal agourada +união. Rosas pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em +flor, fanava-as logo? O segredo não transpirou dos labios gelados das +victimas; mas sabia-se que os sorrisos do amor nunca lhes tinham +alegrado a vida. Desceram ao sepulcro, tristes e silenciosas como +existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas sombrias portas. D. +Sueiro não soltára um suspiro! Se uma lagrima congelada n'aquelle +coração de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se +queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida +estampava-se na fronte maldicta. O crime das tres esposas fôra a +esterilidade. O ferro, ou o veneno, rompera o laço conjugal. A sepultura +quebrára o vinculo apertado no altar! Era calumnia? Era verdade? Quem +sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes podiam espantar os mais ousados. + + +III + +Tinha fama de grande monteiro o castellão. Mál o dia despontava, saltava +logo no cavallo, e a galope, por sarças e estevaes, por montes e +campinas, no meio dos caçadores, entre risos, juras e brados, corria até +á noite. Uma tarde, na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas +terras de um colono, e a despeito das supplicas do velho, cães e +corseis, salvando valados, e calcando pavêas, arrazaram em minutos o +trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e relinchos soavam, sem +cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca! Tocavam buzinas, +estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu atraz da pista. +Garcia de Marnel, o dono do campo, fôra o melhor besteiro dos sitios. O +mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas mãos, e a seta da sua +aljava atravessara sempre o alvo. De avôs a netos esta robusta e +laboriosa raça lançára raizes profundas no solo, remido pelo seu braço. +Os mais fundos affectos prendiam-a á terra rôta e lavrada com o suor do +trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viçosas as +primeiras esperanças, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e +dos filhos. No altar da egreja haviam sido abençoadas as promessas de +mutua ternura; e agora debaixo da cupula frondosa dos álamos, á sua +porta, o avô, no inverno dos annos, sentia-se renascer nas graças +infantis da neta, mimosa e unica vergontea, que sobrevivia dos ramos +decepados pela morte no velho tronco da familia. Garcia amava tudo isto +com o ardor calado, mas intenso das almas viris, retemperadas pelo +infortunio. + +A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabeça, nem o peso da enxada lhe +desfallecera o braço. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do +coração, a dor mesmo não lhe prostrára o animo. A esposa, por tantos +annos alegria e conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho +da vida para ir esperal-o na mansão de paz. Dois filhos, amparo da sua +velhice, orgulho da sua alma, ceifados em flôr seguiram a mãe, em quanto +o ancião desgraçado, só e de joelhos não via a seu lado no desterro da +vida, êrmo de consolações, senão a infancia fragil e graciosa de +Silvaninha, duas vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu +sangue. Inclinado sobre tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as +sombras da morte, converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em +um extremo louco e quasi delirante. Só esta saudade, só este amor o +prendia ainda ao mundo, mas com tal encanto, que muitas vezes pedira a +Deus que lhe dilatasse os dias para não se unir aos que o chamavam do +ceu, senão depois de a ver mulher e feliz. + +Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos pés dos cavallos os fructos de um +anno, o sangue do velho, remoçado pela ira, pulou nas veias; as faces +cavadas coráram de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo +ao encontro do cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas não de mêdo. + +Aquelle campo era o dote da neta, e só por causa d'ella é que supportava +o peso aborrecido de setenta annos de fadigas. «Senhor! Senhor! dizia +elle correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caçada +contra um velho e uma donzella!» O rico homem não respondeu. As matilhas +e os cavallos, precipitando-se, partiam á róda d'elle, envoltos em +nuvens de pó, e o afflicto lavrador, de pé e coberto, tinha lançado mão +das redeas do corsel. + +Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o látego, silvando, +cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe +ameaçou o peito com ás patas «Fóra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do +conselho!» Garcia desviou-se quasi cego de dôr, e Sueiro, cravando as +esporas nos ilhaes, voou á redea larga por cima das hortas e ceáras, +bradando: «Sus! Abóca!» + +O açoute infamante não cortou o corpo, cortou a alma ao desgraçado. +Recuando para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as +pupilas inflammadas, poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um +rujido surdo expirava ao mesmo tempo á flôr dos labios. A vida do homem +orgulhoso e máu estava á mercê d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o +ajustou a seta. O que no intimo peito diziam o desespero e a colera era +medonho. O rosto não o encobria. Ao apontar o tiro a vista ardente +elevou-se ao ceu. Pedia perdão, ou auxilio? + +De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e +melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram então dos olhos +seccos do velho; os braços descairam. Quiz vencer-se e resistir, não +pôde. O arco fugiu-lhe das mãos, e a bocca murmurou: + +«Fôra matal-a tambem a ella!» Enxugando depois as palpebras entregou a +Deus o castigo do oppressor. + +Mas a desgraça entrára no seu campo com Sueiro Lopes. + +O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fôra +aviltado, Garcia não parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o. +Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos, +acudindo ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma +oliveira plantada pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre +orphã, confiscada caiu nas mãos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha, +sem parentes, e protectores, teria morrido de frio e de fome se lhe não +valesse a caridade dos amigos do besteiro. Um deu-lhe a casa e o +sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de sua gentilesa, +soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a donzella +em edade e formosura; mas á medida que os annos corriam, o rosto pallido +e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas +faces as lagrimas e não as entendia. É que o pão da esmola, mesmo dado +com amor, sempre tráva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando +para o tecto da casinha, de que fôra desherdada, apertava-se-lhe o +coração por medo tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da +sepultura, aonde seu avô descansava, aonde todos os seus dormiam! + + +IV + +Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoço +tinham lançado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de +terra. Sueiro Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras +tantas viuvo, cada vez se havia feito mais aspero e cruel. + +Mal raiava a manhã as buzinas acordavam logo as solidões. Assim que a +noite se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem, +illumminando-se, reverberavam o clarão das tochas do festim. Os gritos, +as risadas, as blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham +perto do castello. Os vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os +deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O +abutre já não empolgava só a vida e os bens dos villãos; abrazado em +ardor impuro cevava a sensualidade na honra das filhas da aldeia. +Rindo-se do temor de Deus, arrastava sem piedade pelo lodo de amores +infames a innocencia das mais formosas e a virtude das mais honestas. Um +sorriso, um olhar d'elle era como a fascinação do reptil. Por onde +passava, as flores mais frescas, e mais puras caiam desmaiadas. + +Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces +realçava a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura +contemplativa dos olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava +os mais suaves affectos. O vivo carmim dos labios abotoando as rosas da +bocca, redobrava os encantos ao sorriso meigo, tornando irresistivel o +requebro e a graça virginal da phisionomia namorada. A voz, fresca e +melodiosa, insinuando-se no coração, era o seu maior attrativo. +Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para quem havia de +levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia palpitar +de esperança, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubiçal-a +foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso +sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o +não fugindo a suas caricias? Mas ás primeiras palavras o rubor do pejo +incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de esmeralda +fuzilou a ira. Soltando as mãos envergonhada e offendida, furtou-se ás +garras do açor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento +saltou-lhe da bocca por entre sorrisos lividos. + +--Não serás esposa sem primeiro seres amante! Pedirás de joelhos o que +hoje engeitas! Sei atalhar os rodeios á corsa. Sei aonde o golpe fere +seguro! + +Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e +soffocada não suspendeu a carreira senão á porta da cabana aonde morava +a velha Aldonça, conselho e consolação de toda a aldeia. As linguas +maldizentes affirmavam, que a velha não era decrepita, nem mendiga, mas +fada, e que sabia ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam +prodigios do seu poder! Alguns chegaram a asseverar até, que ella e a +serpente encantada tinham nascido irmans, e se juntavam em colloquio á +meia noute. Quando a donzella appareceu, Aldonça, sentada em um penedo +diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a e sorriu-se. Enrolou +depois a estriga, puxou o fio, e á medida que o fuso girava, e que a +linha se enrolava, meneava a cabeça, como se estivesse vendo, ou +ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto. + +--Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim +assustada. O açor cubiçou a rolinha? Havia de ser! Estava escripto lá em +cima, e o que ha de acontecer muita força tem. Conta-me tudo. O que te +disse? O que lhe respondeste? + +Quando Silvana terminou, redarguiu a velha: + +--Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o +homem. A aguia real já a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes +novidades, filha! Apesar de agudas, as garras do açor não hão de +ferir-te. Vai d'aqui á fonte da moura e dize que sim a quem lá +encontráres. Não te demores. D'onde se não espera vem o remedio. Has de +ser feliz! + +Ditas estas palavras, abysmou-se em tão profundo scismar, que parecia +morta. Não quiz saber mais a donzella. Voou á fonte com a fé viva dos +quinze annos e da esperança. Ao pé do primeiro álamo parou e tremeu. Não +vira a serpente, nem a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e +gentil, filho do mais abastado cavalleiro villão das cercanias. Porque +lhe esmorece a ella de subito a vermelhidão das faces affrontadas da +corrida? porque lhe bateu o coração no peito tão atropellado? Tello +Vasques, o melhor besteiro depois da morte de Garcia do Marnel, era o +noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas disputavam com mais +inveja. Debalde! A vista d'elle não se baixára para nenhuma, nem a sua +bocca se abrira para dizer uma palavra terna á mais galante. Silvaninha +fôra a sua primeira e unica paixão. Combateu-a e calou-a por muito +tempo, com receio dos pais, mas por fim, não se podendo conter, +decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mão. Ninguem sabia o segredo do +mancebo senão Aldonça, porque d'essa nada se escondia. E a donzella?... +Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio +coração, que, alvoroçado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor. +Quando parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli. +Sem forças para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe ás faces o +rubor em ondas, e a vista não ousou despregar-se do chão. O tremor +convulso que a agitava fazia-lhe arfar o seio. + + +V + +Tello Vasques não estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural +dos olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas. +Encobrindo que a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe, +e uma especie de deslumbramento turvou-lhe a vista. A mão suspensa, a +cabeça inclinada, o gesto cheio de timidez retratavam a vontade presa do +enlevo sem força para dissimular, e ainda menos para combater. Assim +ficaram por minutos. Immoveis, calados, contemplando-se, e fallando só +com o coração. A felicidade era tão grande, que não achavam termos que a +pintassem. Quem encostasse a mão ao peito do robusto besteiro, +sentindo-o pulsar agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem +escutasse o palpitar ancioso do seio de Silvaninha não precisava +perguntar-lhe se tambem amava! + +Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro +recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua, +sussurrando preguiçosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas +relvas que aveludavam o chão. Mais longe, a pequena levada afundava-se +com estrepito pelas fendas musgosas dos penhascos debruçados sobre o +valle. Em baixo, no fim da encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos, +de pomares, e de campos viçosos, contrastando com o arvoredo sombrio, +que entristecia ao largo a paisagem. Depois, a perder de vista, a côr +arida e melancolica das charnecas desatando-se até aos cabeços da serra, +cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens. Uma brisa louca, +mas amena, doudejáva na campina, ramalhando as folhas, brincando com os +arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os rouxinóes nas +moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra casava a +voz estridula com o coaxar das rãs. As sombras, delgadas ainda, +começavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam +a pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino azul do +firmamento e o verde fresco das arvores e plantas. + +Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si +primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de +travessa ameaça e disse: + +--Vós aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que +quereis que digam da pobre Silvana, que não tem senão o seu nome?... + +A voz era queixosa, e não irada. O timbre harmonioso avivou no peito do +mancebo o ardor da paixão. Depois os olhos sorriam animados de malicia +tão innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperança, leu amor. De +repente ficou outro. Pegando-lhe na mão, e beijando-a, a voz +soltou-se-lhe, e a vista, cobrando valor na vista d'ella, tornou-se tão +eloquente, tão avida de ternura, que ella baixou outra vez as palpebras. + +--Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um +não podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Dás-me o sim? + +O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das +faces sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se +de lagrimas, lançaram sobre o rosto as sombras da mais resignada +tristesa. Sem retirar, ou entregar a mão, que o mancebo prendia nas +suas, a neta de Garcia do Marnel, esquecido o conselho de Aldonça, +respondeu singelamente: + +--Tello, não vos darei já o sim; não quero arrepender-me. O filho de +Ayres Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, não deve +escolher a sua noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de +Algoço. Amo! Porque hei de negal-o? Mas pelo muito amor é que receio +acceitar. O que ha de trazer em dote a orphã sustentada pela caridade +dos visinhos senão lagrimas e saudades d'aquelle chão, aonde dorme sem +vingança, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar, o velho que duas vezes +foi seu pai, e que por ella morreu de dôr? Não, Tello! Não pode ser! + +Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo +admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dôr +fazia irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa +a magoa intima, por tal modo lhe realçavam a formosura, que o besteiro +não sabia se era anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil +attractivos. Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle, +o homem forte, o filho de uma raça leal e rude, como o seculo em que +vivia, sentiu rebentar o pranto, e não se envergonhou de o deixar +correr. + +--A tua vontade, Silvana, será a minha! disse por fim. Mas por amor te +quero, e não é justo que por amor te perca. O que vale dizer a bocca +não, se os olhos, mau pesar teu, estão dizendo sim? Dizes que o dote que +me trazes é de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas lagrimas +piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse +coração é o teu maior thesouro. Hontem não podia viver sem ti, hoje +morria se te perdesse. Silvana!... Não n'o escondas! O senhor tentou-te +de amores, e jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus será comnosco. +O meu arco não erra. A seta vae sempre aonde a mando! + +Não cedeu ainda a donzella, mas Tello não se enganára: o coração +desmentia a bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accêsa em pejo +desappareceu como se toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado, +que no seguinte dia iria Tello ao solar pedir licença a Sueiro Lopes. Os +noivos sem ella não podiam receber-se na igreja de Algoço, e Silvana +desejava tanto que seus amores fossem abençoados, aonde o tinham sido os +de seu pai e seu avô, que o besteiro não ousou contrarial-a. Altos +juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente dos senhores de +Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria todas as +culpas da sua geração, todos os crimes da sua vida. + + +VI + +Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro, +correndo a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos +que findava á porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha +de monteiros, de guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e +folgando, em quanto os moços de monte sustinham das tréllas as matilhas +impacientes, cujos saltos e latidos formavam condigno acompanhamento aos +alaridos dos caçadores. No meio do prestito jovial uma azemola conduzia +atravessado em duas varas o corpo de um javardo, victima enorme e +cerdosa sacrificada depois de aturada fadiga e renhido combate, segundo +attestavam os golpes, com que suas navalhadas presas tinham descosido os +mais valentes e fugosos cães. + +Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso, +trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava, +entre chufas e galhofas, a oração funebre do pingue eremita, que todos +haviam corrido sem parar desde a madrugada até ao pôr do sol. + +D. Sueiro, que se apartára d'elles ao pé da fonte da moura, era o unico +serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda, +e nem o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu +venabulo, lhe arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a +levantar. Que magoa, ou que remorso entristecia o senhor de Algoço? Nas +trevas, nas horas atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a +visão terrivel, com que na raça de Biscaia a sombra de Diogo Lopes +avisava a cabeça da familia de estar proximo o dia dos ultimos e tardios +arrependimentos? Ao pé da fonte apeiou-se, e, com a cabeça entre as +mãos, alongou a vista até aos montes fronteiros. O olhar vago e perdido +dizia que o espirito não se achava ali. De repente rangeram e estalaram +os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma figura. Ao ruido +o rico-homem levou a mão ao punho da espada, inculcando sobresalto sem +receio. O mêdo nunca entrára n'aquelle peito inaccessivel á piedade. + +--Quem és? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o +robusto e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mão, e frechas passadas +no cinto, se lhe descobria subitamente. + +Este não se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas +accusavam, assomou-lhe ás faces morenas um leve rubor e as pupillas +negras faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais força os +copos da espada. + +--Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vós buscava! + +A firmesa do tom e a concisão da resposta desagradaram ao cavalleiro. +Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os +beiços. + +--O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoço, fóra do +seu castello, n'este logar deserto? + +A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo. + +--Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em +vossas terras a donzella que ha de ser minha mulher. + +--Ah! Só isso?! E é bonita e moça a tua noiva? Por força a conheço +então. Como se chama? + +Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as +furias do ciume se levantaram no peito do mancebo. Conteve-se, porem, e +retorquiu: + +--A mais formosa da aldeia. É a Silvana do Marnel. + +--A Silvaninha? A perola de Algoço? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pões +alto o pensamento, villão. Muito alto! Manjares de senhor não se dão a +servos. + +Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o braço a Tello. A mão +procurou a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram +no peito do rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas +disfarçou. Continuando a pungir o mancebo com mofas, proseguiu: + +--Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor +cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o +resgate de um barão? Cuida o villão que eu havia de enterrar na sua +posilga a roza dos nossos sitios? + +--Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume. + +--Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o pé no estribo e sacudindo o +látego no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com +mil ameaças nos olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisavô te juro, que +tantas noutes dormirás na cisterna do meu castello, que de lá te +arranquem cego e doudo! + +--Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. Só Deus sabe aonde vós +dormireis hoje! + +O cavalleiro ja tínha cravado esporas no corsel, e começára a levantar o +galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, +parou o cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a +vista sobre elle, disse-lhe rindo affrontosamente: + +--Villão! Não has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer +de fios de ortigas, nascidas na sepultura do avô, duas camisas para mim, +dou licença que se chame tua mulher. É uma joia por um ceitil! uma das +camisas será o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar +com ella no dia seguinte. Até lá que não vos torne a ver a ambos! + +A esperança acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco, +fugiu-lhe a luz da vista, e sentiu-se tão prostrado, como se o sangue se +lhe esvaisse todo. Quiz fallar e correr, mas os pés arraigavam-se ao +chão. A mão inerte não se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi +suspendido a vida. Quando volveu a si para olhar em roda, avistou ao +longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito, e pareceu-lhe ouvir +estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou então ao ceu a +vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu a noute +sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas arvores sem elle o +sentir; e as primeiras gotas da chuva, nuncias da tempestade, +orvalharam-lhe a cabeça nua, sem o despertarem da amargura. Ao rebombo +dos trovões é que acordou, e que principiou a afastar-se com passos +vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illusões lhe sorrira alegre, +e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanças da +existencia. + + +VII + +--O açor encontrará a aguia. Sinto-a já voar! Não chores, Silvana, serás +feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar +na aljava. Esta noite, á meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja. +Ajoelhai e rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e +estão n'ella viçosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e +duas, e traz-m'as no regaço á fonte da Moura. Vespera de S. João ha de +torcer-se o fio. As duas camisas não hão de faltar. A semana que vem +será a do noivado e a do enterro. Ouvis dobrar o sino? A aguia não +tarda. Enxugai os olhos. + +E a velha Aldonça, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da +feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condição, +que só daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da +sepultura do avô duas camisas. + +--Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando. + +--Por que não fugimos nós? acudiu elle a meia voz. + +--Por que ninguem foge á sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a +mão alva e breve de Silvana entre as suas. Não vos demoreis. Á meia +noite, ao romper da lua, todos tres na fonte da Moura! + +Era já escuro, e as estrellas começavam a scintillar. Suspirava a +viração por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de +sombra as sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza +silvestre entrelaçava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da +egreja, entre rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um +arco no topo. Ali repousava de setenta annos de edade e de fadigas o avô +da donzella. Segundo afirmára Aldonça, uma seára de ortigas vestia o +chão. Como o pranto se corre pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a +oração sobe pura e fervorosa de seus labios ao regaço dos anjos, que vão +depor aos pés do Senhor! Mais afastado, Tello, tambem de joelhos, orava +com ardor; mas aquelle peito, menos brando, mistura com as preces vozes +de vingança. Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o +pó dos que amára se volvera ao pó, principiou a cumprir as ordens de +Aldonça. A duas e duas foi apanhando as ortigas. Quando acabava chispou +no outeiro mais proximo a labareda da primeira fogueira, e soou na voz +de bronze do sino o primeiro repique. A lua rompia de traz da serra, e o +seu clarão branco allumiava toda a campina. Era a hora aprazada. O +mancebo deu a mão a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro d'alma, +que nenhum fallou em todo o caminho. + +Quando chegaram não viram senão uma serpente, fugindo por cima dos +penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha +Aldonça appareceu de repente ao pé da fonte, e acenou-lhes. Recebendo +das mãos da donzella as tres regaçadas de ortigas, banhou-as outras +tantas vezes na agua encantada, pronunciando algumas palavras a meia +voz. Passados minutos tirou-as do tanque reduzidas a feveras finas, como +o fio que tece a aranha. Tres dias decorreram. Em todos elles não cessou +de girar o fuso da velha. + +No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear. + +Quando a semana pendia só de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo +pela choupana, olhou, e viu Aldonça á porta, cozendo com Silvana uma +tela tão branca e transparente, que deslumbrava. + +--Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta +pressa? + +E o cavalleiro não tirava a vista dos dedos afilados da donzella que +voavam sobre a costura. + +--Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabeça. +Aquella é a camisa do noivado, esta é a camisa do enterro. Ortigas do +cemiterio nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres +dias estarão acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o +morto no caixão. + +Ouvindo-a, o rico-homem mudou de côr e largou as redeas ao cavallo. A +velha, vendo-o correr, exclamou, meneando a cabeça: + +--Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa! + + +VIII + +Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se á +saida do estreito portal, e mais de um moço airoso, de rosto bronzeado, +distrahe a vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos +cheios de reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos +pés, o borburinho e os alaridos das creanças, saltando pelo adro, animam +de ar festivo a scena popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se +encaminha de vagar para a sua morada, estendendo a benção pelos aldeãos, +Silvana, sempre pallida, ampara no braço delicado o corpo de Aldonça. Os +villãos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as +mulheres acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras, +tomam-as por intercessoras de suas petições. Encostado a uma oliveira +antiga, Tello, de braços crusados, e com o arco a tiracollo, não +desprega a vista namorada da neta de Garcia. + +Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as está esperando, um +homem de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos, +apressando o passo, adianta-se, e chega primeiro. É simples o seu trajo. +Guarda-coz de ipre verde desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo +estofo, sem plumas, assenta com desgarre fragueiro sobre os cabellos +pretos, cujos anneis se debruçam sobre o cabeção da golla. Era de villão +o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam condição mais nobre. Nas +pupillas inquietas, e por vezes desvairadas, retrata-se a indole +ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos. + +As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaços a +serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas +rapidas ao semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam +as feições de um caracter afeito a dominar, de um coração ferido de +golpe irreparavel, de uma mão que no combate das paixões nem sempre ha +de conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos. + +Afagando com a mão direita as compridas barbas, e concertando com a +esquerda o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que não +póde contar ainda quarenta annos, e que entrára na egreja sem nenhum dos +fieis se lembrar de o ter visto nunca, começou á saida a fallar com uns +e com outros, fazendo perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por +entre o povo veiu collocar-se no sitio, aonde o descobrimos diante de +Aldonça e Silvana, tão proximo de Tello que este não perdeu palavra do +que disse. Sem saber porque, o besteiro, de ordinario cioso e assomado, +em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia do monteiro. Parecia +que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia n'este +momento a sua sorte. Era tão grande n'elle a tranquillidade de animo, +como se a noiva adorada estivesse debaixo da protecção d'aquelle que +duas vezes chamára pae. A velha Aldonça, apenas divisara o hospede, +exclamou como rejuvenescida de repente: + +--Filha! Não t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto. +Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder. +Muita fé em Deus e na justiça de Elrei D. Pedro. + +--Não é a fé que me falta, redarguiu melancholica a donzella, é a +esperança, mãe!... Elrei está longe e tão alto, que não podem vencer de +certo metade do caminho as queixas da orphã. + +--Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a +formosura de Silvana. Pegando-lhe na mão, ajuntou: + +--El-rei D. Pedro, filha, vê e ouve de longe. Conta-me tuas magoas. + +Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava, +sentiu renascer a esperança, e insensivelmente socegou do maior cuidado. +Ora pallida, ora córada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte +dolorosa do avô, as lastimas da sua infancia, e os amores infames que a +perseguiam. As palavras pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que +vingativa, procurava atenuar as crueldades do senhor. Quando terminou, o +desconhecido, sorrindo-se, e soltando-lhe a mão, disse: + +--Descansai! Está perto El-rei D. Pedro. É como se vos ouvisse. Mandai a +Sueiro Lopes a camisa da mortalha, não a pediu de balde! Se o cavalleiro +fôr desleal, ou se vos quizer tirar por força, enviai-me este signal. +Deus e El-rei serão comvosco! + +Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello, +accrescentava: + +--É o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... Não córeis, +Silvana! Se o besteiro fôr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle +em Miranda. Adeus! Não vos esqueça!... Ao primeiro perigo, um recado e o +signal. O mais fica para mim. + +Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos +pés da noiva, que Aldonça animava, annunciando-lhe proximo o termo de +seus pezares. + + +IX + +Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do +castello de Algoço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas +escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes; +alma negra do senhor, aonde alcançára com o braço deixára sempre +vestigios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, +o villico (era o seu titulo n'aquelle tempo) não pôde conter o sorriso, +rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de +Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas á porta +despediram-o asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que +ninguem o despertaria para dar audiencia a um villão. A principio Tello +pôde sopear a ira, mas a pouco e pouco a altercação irritou-o, e +levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de repente á porta. Inteirado do +motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e perguntou: + +--A que vens aqui? + +--Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu +elle friamente. + +O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que não soube vencer, +sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que +vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez da sua vida. +Depressa se recobrou e medindo o mancebo com indizivel escarneo, +replicou: + +--Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da +sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha +mortalha. Palavra de cavalleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de +faltar. As camisas?... + +--Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o +panno. + +Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o +noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem +mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro +tremia. Sobre o peito, em lettras côr de sangue, viu as iniciaes de seu +nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das +tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito. + +--Bem! exclamou. Silvana é tua se a achares. Quanto á mortalha.... +Veremos esta noite quem a veste! + +Não esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho +da choupana de Aldonça. Um presentimento vago advertia-o de perigo +incerto. A tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a bôa nova, que +levava, devia alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado. +Rugindo no pinhal o vento arrancava por entre as ramas das arvores +gemidos lugubres. No céu apagavam-se as estrellas umas apóz outras +debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima +do ultimo outeiro. Sem saber porque, sentiu-se Tello desalentado. Elle, +o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, +deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando +chegou á choupana, achou a casa êrma e a porta arrombada, e acabou de +crer que os pressagios não mentem. Bastava olhar para dentro para +adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e luz +mortiça deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as +arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em +um feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar as ideias. O golpe +inopinado tinha-lhe quebrádo as forças. Nem o animo, nem a razão se +prestavam a ajudal-o. + +Fôra rapto? Fôra vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! +Saltaram-lhe então as lagrimas, e a dôr foi tão penetrante, que a não se +encostar caíra desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes, +e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do +Castello, e áquella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para +ella eram as portas do sepulchro. _É tua se a achares!_ dissera o +roubador. A quem iria Tello pedir justiça? Luctando com a agonia sentiu +que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava á donzella senão a morte +depois da infamia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou +atribulado: «Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não +embainheis a espada da justiça!» + +No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no hombro. +Olhou. Viu Aldonça. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito +que iam soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a +um logar deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco +de uma arvore, disse-lhe rapidamente: + +--Monta! + +O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha +ajuntou: + +--O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva. +Corre, que por tua felicidade corres, e não pares senão na villa de +Miranda. Busca os Paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, +dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro d'esta manhã. +Dá-lhe a trompa, conta-lhe o succedido, e faze o que te mandar. Antes de +sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão +cumprido o seu fado. + +O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu +direito á villa. + + +X + +Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os +penedos do seu leito! Que trovões rebramam as aguas despenhadas em +cascatas contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a +noute se cobre de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos +bramidos do vento responde o estampido longinquo da tempestade. Os +relampagos fuzilam sobre as eminencias. + +Lá em cima, nos penhascos fragosos, que villa é aquella, cujas torres +negras estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a +margem do rio, Tello Vasques não sente fadiga; o brioso corsel devora a +distancia. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo +atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pára no terreiro, +defronte dos Paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os +degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas +intentam detel-o; mas sem voltar a cabeça, e continuando, responde: +busco o senhor! Ninguem o suspende. De corredor em corredor, de aposento +em aposento chega á sala de armas. Entre os cavalleiros, que passeiam, +divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-coz ainda. + +Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de +armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em +caprichosos ornatos enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados +sustentam os fechos da abobada. O monteiro, apercebendo Tello, +encaminhou-se para elle. O mancebo vinha tão soffocado, que pôde dobrar +apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi preciso que elle sorrisse +para o besteiro narrar o successo, que o trazia áquella hora. +Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com a vista inflammada bradou: + +--Levai-me aos pés de El-rei D. Pedro. Dizem que não conhece grandes, +nem pequenos. A donzella, que roubaram, é pura e santa como a mais pura +e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ella +ter nascido no berço de um villão! + +Á medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de +aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e +jovial, empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O +gesto infundia medo até nos que se achavam distantes. Quando Tello poz +termo a suas queixas, e levantou a vista, recuou assustado. A expressão +dos olhos do seu protector era terrivel. Ensanguentados e delirantes +mais se assimilhavam ás pupillas encandeadas do tigre, do que a olhar +humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, fallava tão convulsa, que +pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes +brados: + +--Lourenço Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas +filhas! + +O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Lourenço +Gonsalves era o corregedor da côrte. Ninguem ousaria chamal-o assim +senão el-rei. Tello prostrou-se cheio de esperança. + +--Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado á porta! A minha +capellina de aço! Gonsalo Vasques de Goes, escrivão da Puridade! Chamae +os desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentença. Por alma +de Ignez de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de +nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino, e mais uma +justiça de minhas mãos no livro de suas chronicas! + +Fallando assim enlaçava a capellina, calçava as luvas de gamo, e com o +açoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada. + +O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns +apoz outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atraz do +cavallo o proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de +Algoço. Por cima d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes. +A procella abria os ceus em clarões lividos, desarraigando as arvores +annosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castello, um vulto +surgiu, que tomou-lhe as redeas, convidando-o a apeiar-se. De um salto +estava em terra e levantando a cabeça via as frestas da torre +illuminadas. O vulto travou-lhe do braço, e disse: + +--É ali! + +--Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiança. + +Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu á chave e ao impulso. + +--Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz. + +Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro +subiu. No topo da escada de caracol, a scena que se lhe representou +excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar do nome +Justiceiro se perdoasse aquelle crime. + +Era espaçoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto +mergulhava-se em meia escuridão. No centro da sala, em um leito, com as +mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a bocca até +os ais lhe suffocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados de +lagrimas pediam a Deus a morte, remedio extremo da infamia. Sueiro +Lopes, defronte, sorria-se medindo com a vista a queda lenta da areia +d'uma ampulheta. A seu lado o villico silencioso corria os dados sobre a +mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com as ortigas do tumulo, +estava nas mãos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas como punhaes, +atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos +senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos. + +--Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo +por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste não. A tua +prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e +os anjos porque chamavas! Brada pelo besteiro villão, que preferiste ao +rico-homem! Grita por el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço as +portas chapeadas d'este castello ainda são mais fortes. Em esta areia, +que está por instantes, cahindo toda... + +Faltou-lhe a voz. A mão erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo +dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um +clarão terrivel. A pesada acha reluzia em suas mãos. + +--Traidor! bradou o principe. Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe +todas as portas. Vais ver!... Villão! ajuntou fallando ao villico. Solta +as mãos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta +bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais +comparecer na presença de Deus! + +O orgulho indomito do cavalleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto +que pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu: + +--Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro +Gonsalves? O rei carrasco, falso á sua alma e á alma de seu pae? +Imaginas que farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a +quem entra de noite e á má fé chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os +laços da captiva. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o +castello senão a Deus. A mim, homens d'armas! + +--Deus é justo! clamou el-rei, cuja furia não conhecia limites. O +matador de tres mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor +cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como villão +ás mãos dos teus villãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha +acha. Villãos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. +Sou D. Pedro! Sou o rei! Esse que ahi está, rebelde e traidor, +prendei-m'o em quanto os meus não chegam! + +A presença e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens +d'armas temiam, mas não amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida. +Depois de curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou á mercê de +el-rei. + +--Passae um laço na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle +subir, e cingi-lhe o nó na garganta! proseguiu o soberano indignado. + +--Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, caírá +sobre vós e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-hão contas d'ella, +verdugo! gritou o cavalleiro estorcendo-se. + +--A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas +não é cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro. + +Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico +enrolava-lhe o laço. Commovida e tremula, Silvana lançou-se supplicante +aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente: + +--Pedes perdão a Deus e ao teu rei? + +--Não! + +O pé do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras +do cavalleiro. + + +XI + +A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do +castello, annunciou á aldeia alvoroçada a vinda do monarcha. Tello +Vasques apparecia á porta quando Sueiro Lopes expirava. + +--Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. +Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A +justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor! + +Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na +capella, e os noivos recebiam a benção nupcial, tendo el-rei D. Pedro +por seu padrinho. + +Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não esqueceu nunca foi +a justiça que fizera em Algoço a severidade do monarcha. + +O castello devolveu-se á corôa, e parece que fôra doado depois ao +primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi +verdade ou fabula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de fazer +cavalleiro um villão, como de justiçar como villão um cavalleiro. + + + + +ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA + + +I + +O Senhor D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias. +A verdade é que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em +Lisboa estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O +proloquio fundava-se na habilidade mechanica do monarcha como torneiro, +e no caracter dominador do marquez como ministro. + +Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de +flôres, os bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e +a brisa doudejava indiscreta arregaçando o lenço á donzella que passava, +ou roubando um beijo á rosa perfumada. Tudo eram alegrias e canticos... +os rouxinoes nas moutas, o coração nos amores, e a naturesa nos sorrisos +ao sol esplendido que a dourava. + +Uma tourada real chamára a côrte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam +n'estas occasiões menos opprimidos. Não os assombrava tão de perto a +privança do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o +amphiteatro pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na +bocca de todos. Por cumulo de venturas o marquez de Pombal ficára em +Lisboa, retido pelo conflicto com o embaixador de Hespanha. + +Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o +enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em +alta voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio, +crucificando-o outros sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e +os fidalgos puritanos eram pelo hespanhol, e pediam a Deus que os +rebates da guerra proxima despenhassem o plebeu nobilitado. Os +magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o marquez e +respondiam com meios sorrisos ás fogosas jaculatorias dos zelosos do +throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa ás +concessões exigidas imperiosamente pelo governo castelhano. + +--Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito de sessenta mil homens +entrará em Portugal e fará... + +--O quê? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta +assestada e no tom mais indifferente. + +--Fará entender a rasão e a justiça de el-rei, meu amo, a Sua Magestade +e a vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo +o ministro fulminado. + +Sebastião José de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira, +e cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente: + +--Sessenta mil homens muita gente é para casa tão pequena, mas, querendo +Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa +hospedal-a. Mais pequena era Aljubarrota e lá couberam os que D. João de +Castella trouxe. Vossa excellencia póde responder isto ao seu governo. + +E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou: + +--Bem sabe vossa excellencia que póde tanto cada um em sua casa, que +mesmo depois de morto são precisos quatro homens para o tirarem! + +O embaixador saíu jurando por _Dios y la Virgen Santisima_ e o marquez +preparou-se para a guerra. O caso é como dizia o nosso Zeferino na +_Sobrinha do Marquez_, que Sebastião José de Carvalho foi um grande +ministro e que fez muito pela nação. Hoje ha menos quem responda assim á +lettra ás ameaças dos estrangeiros. Berra-se muito, dorme-se a somno +solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello de +madrugada e está salva a patria! + +O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes +medias. Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a +industria nunca acabou de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos +maus governos que succederam ao seu, e tambem do povo que não quiz +trabalhar deveras... Mas vamos aos touros reaes. D'esses é que o +ministro não gostava nada. Queria-os ao arado e não á farpa, e +parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o +Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem, +tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e á +nação. + +Mas el-rei D. José, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros não +admittia reflexões. N'isto era rei a valer e Bragança legitimo. Os +fidalgos sabiam-o e por isso disfructavam dôces prazeres--a satisfação +do gosto nacional, e a contradicção da vontade do ministro. Desatendel-a +sem perigo e pela mão do soberano era para elles um deleite e um +triumpho. + +N'estas funcções não vigorava a severidade das ultimas pragmaticas. +Outro motivo de jubilo. Quem queria podia arruinar-se em luxuosos +vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os +veludos e sedas de fóra, talhados á franceza, resplandeciam constellados +de perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais +vistosas côres desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas +cabelleiras. As damas ostentavam as graças de seus donaires e tufados, e +emoldurando o bello oval dos rostos nos penteados caprichosos sorriam-se +para os gentis campeadores, e seus olhos cheios de luz e de promessas +estimulavam até os timidos. + +Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou +el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se +ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça resoam brava alegria +as trombetas, as charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros, +fidalgos distinctos todos, com o conto das lanças nos estribos e os +brazões bordados no veludo das gualdrapas dos cavallos. As plumas dos +chapeus debruçam-se em matisados cocares, e as espadas em bainhas +lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e forcados vestem com +garbo á castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o +enthusiasmo. + +O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O +seu trajo, cortado á moda da côrte de Luiz XV, de veludo preto, fazia +realçar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete sobresaiam +as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas bordadas +deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O conde +não excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os +seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais, +porém animadas de grande expressão, e o fulgor das pupillas negras +fuzilava tão vivo e por vezes tão recobrado, que se tornava +irresistivel. Filho do marquez de Marialva, e discipulo querido de seu +pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavallo, a +nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Elle e o +corsel, como que ajustados em uma só peça, realisavam a imagem do +centauro antigo. + +A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso +corsel, arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta, +obrigando o cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que +uma dama escondesse torvada no lenço as rosas vivissimas do rosto, que +de certo descobririam o melindroso segredo da sua alma, se em momentos +rapidos como o faiscar do relampago podesse alguem adivinhar o que só +dois sabiam. + +El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e +disse voltando-se: + +--Por que virá o conde quasi de luto á festa? + +Principiou o combate. + +Não é proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem +assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de +notavel. Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se +corriam desembolados, á hespanhola. Nada diminuia, portanto, as +probabilidades do perigo e a poesia da lucta. + +Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um +touro preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas +compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de +grande ligeireza, e movimentos rapidos e bruscos, signal de força +prodigiosa. Apenas tocára o centro da praça, estacou como deslumbrado, +sacudiu a fronte e escarvando a terra impaciente, soltou um mugido feroz +no meio do silencio, que succedera ás palmas e gritos dos espectadores. +Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos as trincheiras, fugiam á +velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres cavallos expirantes +denunciavam a sua furia. + +Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa. +O touro pisava a arena ameaçador e parecia desafiar em vão um contendor. +De repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da +féra e a hastea flexivel do rojão ranger e estalar, embebendo o ferro no +pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma acclamação immensa do +amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas e charamellas +encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope +por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o +cavallo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, +curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem +afrouxar a carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo +depois com o touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o +estreitando em volta d'elle os circulos até chegar quasi a pôr-lhe a mão +na anca. + +O mancebo despresava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que +seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro +com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com furia cega e +irresistivel. O cavallo baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na +perna, não pôde levantar-se. Voltando sobre elle o boi enraivecido +arremessou-o aos ares, esperou-lhe a quéda nas armas, e não se arredou +senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu +inimigo era um cadaver. + +Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja +consummada a tragedia e não havia expirado ainda o echo dos ultimos +aplausos. + +De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias, +emudeceu o circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fóra dos camarotes, +fitavam a praça sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como +para seguir a alma, que para lá voava envolta em sangue. + +Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o chão, +um gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadaver com +uma lagrima de fogo. Uma dama desmaiada nos braços de outras senhoras +soltára aquelle grito estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar +no peito. + +El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado. + +A côrte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dôr. + +Mas o drama ainda não tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade +iam cortar de novas magoas o peito a todos. + +O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na +gentileza do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando +radiosos a cada sorte feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se +de uma nuvem o semblante do ancião. Quando o conde dos Arcos sahiu a +farpeal-o, as feições do pae contrairam-se e a sua vista não se +despregou mais da arriscada lucta. + +De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos, +apertando depois as mãos na cabeça. Os seus receios haviam-se realisado. +Cavallo e cavalleiro rolavam na arena, e a esperança pendia de um fio +tenue! Cortou-lh'o rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho, +luz da sua alma e ufania de suas cãs, não proferiu uma palavra, não +derramou uma lagrima; mas os joelhos fugiam-lhe tremulos, e a elevada +estatura inclinou-se vergando ao peso da magua excruciante. + +Volveu, porém, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto +tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e +hirtos revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas +da juba de um leão irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo, +mas terrivel, o sombrio clarão de uma colera, em que todas as ancias +insofridas da vingança se accumulavam. + +Em um impeto a presença reassumiu as proporções magestosas e erectas +como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando +por acto instinctivo a mão ao lado, para arrancar da espada, meneou +tristemente a cabeça. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho +n'este dia que se convertera para a sua casa em dia de eterno luto! + +Sem querer ouvir nada, desceu os degraus amphiteatro, seguro e resoluto +como se as neves de setenta annos lhe não branqueassem a cabeça. + +--Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas +ordens! disse um camarista detendo-o pelo braço. + +O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no +interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado +d'um pensamento immutavel. Desviando depois a mão, que o suspendia, +baixou mais dois degraus. + +--Sua magestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não +quer perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece ás ordens de +el-rei?!... + +--El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancião em voz +aspera, mas sumida. Aquelle é o corpo de meu filho! e apontava para o +cadaver. «Está ali! Sua magestade póde tudo menos desarmar o braço do +pae, menos deshonrar os cabellos brancos do criado que o serve ha tantos +annos. Deixe-me passar, e diga isto.» + +D. José vira o marquez levantar-se e percebera a sua resolução. Amava no +estribeiro-mór as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da +sua bocca não ouvira senão a verdade, e a idéa de o perder assim era-lhe +insupportavel. Apenas lhe constou que elle não accedia á sua vontade, +fez-se branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado para fóra da +tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe. + +A esse tempo já o marquez pisava a praça, firme e intrepido como os +antigos romanos diante da morte. Dentro do peito o seu coração chorava, +mas os olhos aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por +elles. Primeiro do que tudo queria a vingança. + +Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de pé. Os semblantes +consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa +contensão do espirito, em que um sentido parece concentrar todos. + +Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, não tem egual. O +fogo, que lhe presta vida e forças, é a desesperação. Deixae-o ir, e de +joelhos! Saudae a magestade do infortunio! + +O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo +na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do +chão a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. +Passou depois a capa no braço e cobriu-se. Decorridos instantes estava +no meio da praça e devorava o touro com a vista chammejante, +provocando-o para o combate. + +Cortado de commoções tão crueis, não lhe tremia o braço, e os pés +arraigavam-se na arena como se um poder occulto e superior lh'os tivesse +ligado repentinamente á terra. + +Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e tão profundo, que +poderiam ouvir-se até as pulsações do coração do marquez se n'aquella +alma de bronze o coração valesse mais do que a vontade. + +O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e +irado, mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada. + +Os ilhaes da féra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as +pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansaço. O ancião +zomba da sua furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os +golpes sem recuar um passo. + +O combate demora-se. + +A vida dos espectadores resume-se nos olhos. + +Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça. + +A immensidade da catastrophe immobilisa todos. + +De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O +velho aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos +ajoelharam para resarem por alma do ultimo marquez de Marialva. + +A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a +pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a +espada fuzilar nos ares e logo apóz sumir-se até aos copos entre a nuca +do animal. Um bramido, que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado +na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama. + +Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o +joelho, com a força do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver. +Sem fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraçar-se com o corpo do +filho, banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos. + +O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão da morte, veiu apalpar o +sitio aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem +vida ao lado do cavallo do conde dos Arcos. + +N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram. +El-rei, de pé e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal, +coberto de pó e com signaes de ter viajado depressa. + +Sebastião José de Carvalho voltava de proposito as costas á praça +fallando com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo. + +--Temos guerra com a Hespanha, senhor. É inevitavel. Vossa magestade não +póde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se +continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal á vela. + +--Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os +touros reaes emquanto eu reinar. + +--Assim o espero da sabedoria de vossa magestade. Não ha tanta gente nos +seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro. El-rei consente que +vá em seu nome consolar o marquez de Marialva? + +--Vá! É pae. Sabe o que ha de dizer-lhe... + +--O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como está o +conde. + +El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praça em +toda a magestade de sua elevada estatura, levantou nos braços o velho +fidalgo, dizendo-lhe com voz meiga e triste: + +--Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia são para darem +exemplos de grandeza d'alma e não para os receberem. Tinha um filho e +Deus levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e +el-rei, meu amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa +excellencia. + +E travando-lhe da mão, levou-o quasi nos braços até o metterem na +carruagem. + +D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca +mais se picaram touros reaes em Salvaterra. + + + + [1] A prematura morte do illustre auctor d'este livro não lhe + permittiu concluir este admiravel romancinho. As paginas, porém, + escriptas representam um tal primor de litteratura, que fôra falta + imperdoavel condemnal-as á obscuridade. Os amadores de boas letras + de certo nos agradecerão a resolução tomada de não os privarmos de + alguns momentos de não muito vulgar leitura. + + EDITOR + + [2] O castello de Almourol já figurava na epocha da dominação dos + romanos. D. Gualdim restaurou-o das ruinas e povoou a terra por + carta de foral. + + ELUCIDARIO. Tom. II p. 346--374. + + [3] A balça ou bandeira do Templo era bipartida de branco e preto + com a cruz vermelha no centro e a lenda: _non nobis, sed nomini tuo + da gloriam_. + + [4] Concordo. Puzeste o dedo na difficuldade, menino. + + + + +DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS + +Por L. A. REBELLO DA SILVA + +Remette-se FRANCO DE PORTE para a provincia. + +Correspondencia a Mattos Moreira & C.ª. LIVRARIA EDITORA. Praça de D. +Pedro, 68, Lisboa + +PREÇO 600 RÉIS + +LISBOA + +TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C.ª + +67, Praça de D. Pedro, 67 + +1873 + + + + + +End of Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Luís Augusto Rebelo da Silva + +*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30359 *** diff --git a/30359-h/30359-h.htm b/30359-h/30359-h.htm new file mode 100644 index 0000000..f66f6b9 --- /dev/null +++ b/30359-h/30359-h.htm @@ -0,0 +1,3716 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Contos e Lendas, por Rebello da Silva</title> + <meta name="Author" content="Rebello da Silva"> + <meta name="Publisher" content="Livraria Editora de Mattos Moreira e Comp.ª"> + <meta name="Date" content="1873"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=UTF-8"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1,h2, h3 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 0; font-size: small; text-indent: 0;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px;} + blockquote {font-size: 0.8em; width: 50%; margin-left: 40%;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + #corpo h1 sup {font-size: 0.5em;} + </style> +</head> + +<body> +<div>*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30359 ***</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;font-size: 1.5em;">CONTOS E LENDAS</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">REBELLO DA SILVA</p> + +<hr style="width: 80%; border-bottom: double 4px #000;"> + +<p style="font-size: 1.8em;">CONTOS</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">E</p> + +<p style="font-size: 2.5em;">LENDAS</p> + +<p> </p> + +<hr style="width: 30%;"> + +<p> </p> + +<p>Introducção—A torre de Cain—O castello de Almourol<br> +A camisa do noivado<br> +A ultima corrida de touros em Salvaterra</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<hr style="width: 30%;"> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>LISBOA<br> +<small>LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª</small><br> +67—Praça de D. Pedro—67<br> +1873<span class="pn">{4}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h3>DECLARAÇÃO</h3> + +<p><em>A propriedade d'esta edição pertence a Henrique de Araujo Tavares, +subdito brasileiro.</em></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">LISBOA<br> +<small>LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª</small><br> +67—Praça de D. Pedro—67<br> +1873<span class="pn">{5}</span></p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h1><a name="SECTION00100000000000000000">INTRODUCÇÃO</a></h1> + +<blockquote> + <p>Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies.</p> + + <p style="text-align:right;">Job cap. XXIX v. 18</p> +</blockquote> + +<p>As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um homem, +que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que faz de +ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um Deus de paz, +assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da velhice, com a +mesma serenidade com que tinha visto passar as illusões da juventude, e com que +havia atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com a sua pobreza, não +invejava (se é que invejou alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a +eloquencia persuasiva dos primeiros confessores da fé<span +class="pn">{6}</span> nas grandes epochas da regeneração moral do mundo. +Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da liberdade estava a +soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na manção do jubilo, patria +suspirada de suas mais doces esperanças, unica impaciencia de uma alma, que +longe da morada celeste se entristecia captiva.</p> + +<p>A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não aspirava +a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se alguma +vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu queixas que a sua bocca se +não abrisse para as suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mão as não enxugasse +logo. Por isso em muitas occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a +simplicidade da pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o +advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si, nunca +faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a illusão, +sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até me deu para +esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia catar, ou +alporcar os craveiros, até o relogio do estomago, unico relogio que havia em +casa, o avisar de que eram horas da refeição. Vinha então recolhendo-se de +vagar, alargava o passeio pela cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem +se arriscar a alguma jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria,<span +class="pn">{7}</span> que tinha a seu cargo a economia domestica e o baixo e +mixto imperio da dispensa e da capoeira.</p> + +<p>A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço +d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de immensa +cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio e agudo, +metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as consolações da Egreja +a uma de suas ovelhas, que agonisava em desabrigada choupana. Á volta o corpo +tremia sacudido por uma sesão de febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a +face de um moribundo. Deitou-se para não se tornar a levantar.</p> + +<p>Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou a +enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu para +sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi preciso que +os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca houve funeral tão +rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares da freguezia e dos +arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do presbyterio, o chôro de +toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas. Com razão! Não era o velho +parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? Em vida constituira os pobres +seus herdeiros, por isso não deixava de seu mais do que a sobrepeliz e a batina +remendada, em que o amortalharam, e o<span class="pn">{8}</span> crucifixo de +marfim, que unira ao coração na derradeira despedida.</p> + +<p>O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou +corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre +se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos vicios +esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á proveitosa lição +das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A ama, á qual o Vigario +legára sómente a memoria de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade, +affectuosa, não de um, mas de muitos habitantes, que se lhe offereceram para +acolherem sua velhice. O cão do Pastor, companheiro constante de tantos dias de +fadiga, tambem achou quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre +que gemia saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos +livros da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como +reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, depois de +largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a recordação do +sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos cyprestes plantados pelas +suas mãos no cemiterio da aldeia.</p> + +<p>Este foi o homem e o ecclesiastico venerando.</p> + +<p>Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, +rarissimas pessoas dariam noticia.<span class="pn">{9}</span> Fugia da fama que +dão as lettras, com um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava +envergonhado ao pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal +receava ser visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a +penna não se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha +pouco vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe +concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações do +passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em algumas scenas +soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da mocidade. E em quanto o +vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe +fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas paginas á luz do ponderoso +candieiro de latão amarello de tres bicos, talvez o traste mais luxuoso de toda +a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto obscuro da aldeia estes <em>Contos +e Lendas</em>, escriptos sem emendas e com admiravel rapidez, em lettra grada, +direita, e garrafal, para regosijo dos compositores, que cegam a miudo os +negalhos de missanga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes +Deus não castigue em desaggravo de suas victimas.</p> + +<p>Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os +papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas +instancias<span class="pn">{10}</span> para m'os confiar. Poucos mezes antes da +sua morte é que alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais +opportuno, com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque +dizia elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o +tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou examinar a +sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento diante da mesa e +pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, entram +commigo as malditas historias, e não ha resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava +que me faziam bruxarias.»</p> + +<p>A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de vista +as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar pelas visões +do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam muitas outras que a +admiração saúda como principes da intelligencia. Vingava-se porem d'este máu +sestro (era a sua phrase) pondo de lado as escriptas frivolas apenas as acabava +e nunca mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este +desprezo tratava a inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno +ao antigo maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois +d'este e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias +com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos<span class="pn">{11}</span> +seus segredos, a qual representava nos serões litterarios do presbyterio o +papel, que a tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella +devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de esbofeteado, e de +escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se desforrasse torcendo o +pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o sangue aos coelhos, transformado +em raposa ou em ginete. Nunca acordava, que não esperasse encontrar a capoeira +vasia! Se é bom estar bem com Deus, dizia, não é máu estar em paz com o +demonio. A casa do presbyterio não era grande, nem espaçosa, mas sorria de +longe á vista caiada por fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um +tal ar de festa, que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia +a hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os braços +abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um outeirinho, +alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos troncos lisos e +direitos o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, cercado de +alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas enroscadas e collossaes, +cobriam com a sombra de seus pampanos as parreiras, aonde amadureciam na +estação os mais formosos cachos de moscatel e de ferral-tamara. Em volta da +risonha morada, penduravam-se as vinhas pelas encostas das collinas até ás +margens de um ribeiro, toldado<span class="pn">{12}</span> de salgueiros e +chorões que se torciam para beijarem a agua. Por entre as vinhas apparecia em +malhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre vallados de piteiras, em +quanto ao lado sussurrava a levada correndo pelas regueiras. Os pomares, +copando-se, encantavam de espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques +fechados, e embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos +outeiros, que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo +horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socalco em +socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um verde triste, a +viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios ao cair da tarde.</p> + +<p>A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi +adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com +estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles pampanos +cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos de hortas e pomares; os variados +tons que zebravam as encostas dos montes e collinas, desde a esmeralda viva dos +prados até ao louro cendrado das paveias; os rosmaninhos e as boninas +esmaltando as veigas; o rio precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e +limpido e depois esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de +luz dourada todo o quadro, de<span class="pn">{13}</span> noute o clarão da lua +tocando-o de meiga melancolia, compunham um espectaculo de tanto enlevo que a +vista fugia com a vontade e com o coração para aquelles casaes debruçados das +collinas fazendo nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vêr +romper o luar por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos +primeiros raios brancos do alvor matutino.</p> + +<p>Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chaminés expelliam o +fumo em penachos caprichosos; os cepos estalávam no lume; e as creanças, como +enxame buliçoso, brincavam defronte das portas. As mães cosinhavam a ceia, em +quanto os velhos e os mancebos descansando do trabalho, aguardavam encostados, +ou assentados, a hora proxima da refeição e do repouso.</p> + +<p>Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pôr do sol nas aldeias! +N'esta occasião, em que a fadiga do corpo como que faz mais docil o espirito, é +que o padre Vigario, desembocava de uma das azinhagas com o seu Horacio, ou o +seu Salustio debaixo do braço, e vinha conversar o seu pedaço com os anciãos da +terra, para saber as novidades, e espreitar as rixas e discordias, afim de as +compôr. Correndo a mão pela cabeça das creanças, ralhando com umas, afagando +outras, informava-se de tudo, sanava as malquerenças, e conseguia pelo respeito +de seus annos e qualidades, que<span class="pn">{14}</span> os moradores da +parochia formassem uma só familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, +estes, mal o viam, voavam em bandos a agarrar-se-lhe á loba e ás mãos, por +entre vozes e saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No +verão, nos dias de maior calor, era sempre certo o prior, á tardinha, debaixo +da parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de prata, +que lhe escorregavam até á ponta do nariz. Lia e passeiava. De tres, ou de +quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga e sorvia com +delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a vêr se alguma flôr +carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava punha na cabeça o +venerando tricornio, pegava da bengala de canna da India e castão de prata, e +sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase modesta, empregada por elle para +designar as suas marchas forçadas de legua, legua e meia, e ás vezes duas +leguas por montes e quebradas.</p> + +<p>Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos homens +vigorosos, na flôr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo largo e egual. +Abordoando-se á bengala por costume e não por necessidade, despejava caminho +como andarilho mais valente. De estatura elevada, secca, mas encorpada, +carregava sem esforço com o peso de uma velhice verde e alegre. Nos olhos +cinzentos e vivos brilhava<span class="pn">{15}</span> um toque de finura +risonha, e a bocca não pequena, mas engraçada, animava o rosto e dava-lhe +expressão agradavel, avivada de constante jovialidade. A brandura do animo +correspondia ás promessas da physionomia, e o tracto intimo denunciava as +prendas d'aquelle caracter, honrado, severo só comsigo, inflexivel e incapaz de +se torcer em pontos de consciencia ou de melindre. Na convivencia com o padre +Vigario, aprendi mais do que me ensinariam muitos annos de leitura. +Convalescente e magoado, devi-lhe a saude do corpo, a saude e o conforto da +alma.</p> + +<p>Este velho desterrado por gosto e eleição sua em um canto do mundo, n'uma +aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos que se +pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava toda a sua +philosophia:—paciencia e amor. Com a primeira supportava os trabalhos e os +revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças ao segundo, o coração, +purificado pelos annos, abria-se a todos os sentimentos nobres, e palpitava com +orgulho memorando as glorias da patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava +a dôr das desgraças presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão crente e +enthusiasta, como se acabasse de entrar na epocha das illusões. Entendia e +applicava o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraçando como +filhos e irmãos todos os afflictos e necessitados;<span class="pn">{16}</span> +e pelo amor, finalmente, não perdoava mas agradecia as offensas, as injustiças, +e até as calumnias, provações da virtude, não se lembrando d'ellas senão para +pagar o mal com o bem.</p> + +<p>Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de Camões, +de Ferreira e de Sá de Miranda. Familiar com os escriptores da antiguidade, e +com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o desapercebido, e espertar +a veia natural e espirituosa da sua conversação, para se apreciar devidamente +os thesouros encobertos d'aquella vasta erudição e os prodigios de uma memoria +em verdade rara. As citações acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as +anecdotas encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel, +succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente os +homens e as cousas, que as cinzas dos grandes varões de Roma e da Grecia, dos +heroes de todos os tempos e de todas as nações tornavam a juntar-se, a tomar +corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar como se os estivessemos +contemplando nos dias do seu esplendor. As ruinas de Athenas, as do velho +Lacio, os monumentos da meia edade, e os episodios de epochas mais proximas, +evocados pelo encantamento irresistivel d'aquella imaginação creadora, como que +volviam subitamente ao primeiro sêr, apparecendo uns em toda a formosura da +arte classica, erguendo-se<span class="pn">{17}</span> outros pela religiosa +inspiração da arte christã.</p> + +<p>Á noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa poltrona +de couro, com a ama á direita e o cão somnolento á esquerda, a velha cabeceando +de rocca á cinta e engrolando Padres-nossos, o animal piscando os olhos com uma +orelha fita e outra derrubada. Dos dous companheiros do serão o mais attento e +sisudo era de certo o cão! Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca +perdia occasião de lhe coçar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo +favoravel. O bofete de pau santo e pés torneados, o candieiro de latão e a +anarchia dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada +uma hora, o unico que não dormia era o Vigario; a sua penna continuava a ranger +sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. Quando as palpebras +se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, mettia dous dedos na argola +do candieiro, e recolhia-se ao quarto no meio das recommendações da ama sobre +os perigos do fogo, sobre a falta de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos +provaveis. Estas recommendações não se calavam, senão quando a respiração alta +e compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua +eloquencia.</p> + +<p>Em um d'estes serões, a que assisti, caiu o dialogo sobre não sei qual de +nossos reis, e o Vigario<span class="pn">{18}</span> innocentemente deixou +escapar o segredo das suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do +solitario com o seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a +desculpas, que me lê-se alguns <em>Contos e Lendas</em>. Oxalá que o leitor +seja do meu voto. Ainda me não arrependo do que disse d'elles ao auctor, que +tremia, como se a minha opinião valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos, +longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio. +Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre resistiu a +apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, pouco antes da sua +morte, foi com a final e irrevogavel condição de nunca descubrir o nome do +auctor, se me atrevesse a importunar os prelos (assim se expressou) com as +puerilidades de um velho creança. Possam os <em>Contos e Lendas</em> do padre +Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, merecerem alguns momentos de +attenção, não por si, mas pelas memorias que recordam. Correm já sujeitos ás +vecissitudes da publicidade tantos filhos espurios da mesma invenção, que mais +esta, entrando no mundo das lettras, não usurpará de certo logar, que pertença +de direito ás obras primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia +não ha fortuna. Lanço-a á corrente!... A sorte bôa, ou má que faça o resto!</p> + +<p>Valle, 30 de septembro de 1866.<span class="pn">{19}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00200000000000000000">A TORRE DE CAIN</a></h1> + +<h3><a name="SECTION00200100000000000000">LENDA DO SECULO XI</a></h3> + +<h2><a name="SECTION00210000000000000000">I<br> +De um bom irmão um mau christão</a></h2> + +<p>O monge começou assim a sua historia:</p> + +<p>No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é que +succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por dias, e com +elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder dos infieis as +provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da fronteira não se +descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as armas; e quer luzisse a +manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das almenáras, ou o rebate das trombetas +não consentia nem leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou +no<span class="pn">{20}</span> campo da peleja, não se socegava um momento. Os +melhores castellos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes +tributo; e as bellas tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os +veados, os ursos e os javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as +columnas e as ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d'este +formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu +deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil, +e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a tristeza até parecia +desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo é, o arabe sensual passava +pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge +tão viva hoje o coração!...</p> + +<p>—E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito, bradando: +esta terra é nossa! acudiu Martin Paes.</p> + +<p>—Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de captiveiro +todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da charrua, guiadas +por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso, que nos deu outra vez a +terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em que abrimos os olhos, o +cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a arvore que nos cobriu com a sombra +a infancia e a velhice, e a fonte que ferve ao pé do rosal!...<span +class="pn">{21}</span> N'aquelle tempo, quando o mouro passava, baixavam todos +a vista, porque elle era o senhor.</p> + +<p>—Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre?</p> + +<p>—Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de +relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos +montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era magoa e desconsôlo por +dentro; porque a terra, em que sômos escravos, mesmo que seja a da patria, +parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo. A casa alheia, a courella que é de +outro, e o fogo accêso na lareira a medo, fazem-nos chorar, porque nada +d'aquillo é nosso, e hoje, ou amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como +vive agora; o que estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo +sol, corriam as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não +brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a donzella +assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava tranquilla, como +aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo descantar o rouxinol por cima da +cabeça. O harem do sarraceno, aberto diante d'ella, como um abysmo, fazia-a +empallidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a +deshonra e a morte.<span class="pn">{22}</span></p> + +<p>—Que martyrio não seria a vida assim?!...</p> + +<p>—Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. Faz-se +tarde. Quereis que continue?</p> + +<p>—Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos.</p> + +<p>—No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas terras +de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama, +juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De seus castellos os dous +inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e cearas, e +mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e +fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda +a furia. Nos casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se +ao anoutecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao +clarão das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado.</p> + +<p>Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do contrario, +e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas ameias. Aconteceu +isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos festejavam o bemdito +Santo com fogueiras, cantigas e follias. O cavalleiro tinha um filho e um +irmão. O filho de edade tenra; o irmão temido<span class="pn">{23}</span> pela +indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a creança fez-se homem; +e de parte a parte a aversão das duas familias cada vez crescia mais. O rio que +as separava, tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos não cessavam de +dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, +parecia avivar mais aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro +assassinado era já um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença +gentil a cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar, +esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas +sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do rico +homem morto na vespera de S. João.</p> + +<p>D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraça, +viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração esquecido da vingança +guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae derramado á falsa fé, as +malquerenças de tantos annos, as promessas da meninice e da juventude, tudo +d'ahi em diante se apagou da sua alma para não vêr outro sol, outra luz, senão +a dos bellos olhos, que o tinham feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior +odio rebentou o mais constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido +saltou aos olhos de todos. Os parentes lançaram<span class="pn">{24}</span> em +rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixão pôde mais, que as memorias do +tumulo, que deixava sem vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, +os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas +inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não podiam +dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Aprazou-se para +vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou acaso? N'esse dia +contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. Moço de Ansures fôra +assassinado.</p> + +<p>O homem põe e Deus dispõe!</p> + +<p>O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do que á +propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado fôra +procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. Inigo Lopes, +era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando +estavam pregando as taboas do caixão do infeliz. A dôr fez de D. Inigo uma +estatua, e sete dias com sete noutes o viram todos jazer deitado sobre a +sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmão, consumia ao mesmo +tempo n'elle tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se +levantou, trazia a cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um +seculo em sete dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem<span +class="pn">{25}</span> um soluço do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e +arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o signal da cruz, +mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam!</p> + +<p>O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella? Se +alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na ultima noute +vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura +e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões! Quem vae nunca mais torna. O +que não foi fabula, porque todos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com +o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como +se existisse ha muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! +Mas se queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar +uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada +ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias +se contavam tambem desde que o corpo do valente cavalleiro descera á sepultura +trespassado de sete feridas.</p> + +<p>Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos com +mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das +ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás inclemencias do +tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do mundo!<span +class="pn">{26}</span> O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha +desviado os olhos d'elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz, +ou se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe no +deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos +Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um mar de fogo; o +ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas dançaram, +crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão do ermo um +brado immenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi tão negro, +que a lua tornou-se côr de sangue e sumiu-se, que as estrellas esconderam +tremulas a sua luz. O christão acabáva de vender ali a alma ao inferno pela +vingança. Desde aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra +segue o corpo, a imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz, +elle que não se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o +juramento. Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço, +repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas immoveis do +Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O reprobo escarneceu do +passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. Mas elle que se ria de Deus +e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos pés, como +horrorisada do peso do seu crime. Aos primeiros<span class="pn">{27}</span> +passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo +tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, no ceu aonde os trovões +estalavam uns apoz outros; na terra, que se abria em voragens, e no deserto, +aonde o furacão, bramindo, cavava abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em +vortice as areias. Cedros antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As +feras, timidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os +homens elevavam suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia +humilde e pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D'ali +em diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no +precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão, +debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas torciam-se em +toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia caíra um velho +desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota d'aquella agua para lhe +restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a entornando-lhe de proposito o cantaro +diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam +tragando de longe a agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e +dizendo-lhe por mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de +ti!» O Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse +vencedor do<span class="pn">{28}</span> inferno. Mas, desde aquelle crime, a +sêde intensa ateiada nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e +as fontes convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada +no deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas.</p> + +<p>Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que +nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos chammas, o +trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o pó, a +respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante d'elle as mais +altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abysmos +solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos +inclinados tremiam e beijavam o chão, flexiveis como juncos. Cavallo e +cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo da ferradura magica as aguas tomavam a +dureza do diamante: a terra oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos +vulcões, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, +e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d'ali. Á +medida que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio +de sol dissolveu-se desfeito em fumo.</p> + +<p>Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o +sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao primeiro<span +class="pn">{29}</span> passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao +segundo illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas +cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro levantava o +<em>Ave maris stella</em>. Estava aplacada a vingança do morto. A fé, porem, +debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu em vão lhe +offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de misericordia! Orava +n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior peccador. +Arrebatado em espirito, viu um homem cuspindo por odio na cruz á porta de uma +egreja. O anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes +luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, +subiu na aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente.</p> + +<p>«A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão para o +que renega o teu Santo nome?»</p> + +<p>N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo; +e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe: +<em>memento, homo, quia pulvis es!</em><span class="pn">{30}</span></p> + +<p><span class="pn">{31}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00220000000000000000">II<br> +Não ha gosto sem pesar</a></h2> + +<p>N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais poderoso e +rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castello por +valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavalleiros +mettiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu +pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Asturias, raça de +bronze nos odios, e de ferro nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e +açor velho não se remonta ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as +madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os<span class="pn">{32}</span> annos +não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Auzenda, unico amor da sua +vida, podia distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas +vezes era o sangue da sua alma, um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma +lagrima só d'aquelles olhos lindos, transformava em cordeiro o leão +embravecido.</p> + +<p>Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de +armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa +cavalgada, que se espera?</p> + +<p>O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os derradeiros +clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, +e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em larga distancia ao redor. +</p> + +<p>No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia casar-se +com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. João, e por horas +tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que os monges negros rezaram o +officio de finados em volta da tumba do cavalleiro assassinado.</p> + +<p>Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa do +outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da formosura, +entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia. Aquella belleza era +sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os cabellos em tranças<span +class="pn">{33}</span> d'ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor +suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado cinto +aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga livre +com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da +alva tinha saido. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem tão +leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra ingreme. As rozas accendem +o rubor na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa +silvestre pousada na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal +subiu casta e pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da +aurora. O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe +fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios da +primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr do lado +opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço Ansures. +Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do amor.</p> + +<p>—Voltais logo? perguntou a donzella corando.</p> + +<p>—Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado olhar. +</p> + +<p>—Tão tarde!?</p> + +<p>—Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...</p> + +<p>—Não! Mas!...</p> + +<p>—Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!<span +class="pn">{34}</span></p> + +<p>Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella +seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo outeiro.</p> + +<p>Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a +donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva +a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noute, e +quando as estrellas começavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se +suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da atalaya. Donas, cavalleiros +e pagens principiavam a entrar no castello, attraidos pelos festejos. As armas +reluzentes, as plumas de côres diversas, os tabardos de matizes variegados +deslumbravam, vistos á luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos +lebreus, os relinchos dos cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos +alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela +estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O +seu brado vencia o estrepito.</p> + +<p>—Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recem-chegados +com a bocca cheia de riso.</p> + +<p>Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do dia, +segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e com a noute +cerrada não chegava!... Do lado das montanhas<span class="pn">{35}</span> não +havia rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos. Que +motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e +desejado? Porque se ausentára n'aquelle dia, em que tantos estremos o +convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam? Um juramento +sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das +duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o tumulo de seu pae. Por isso +deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas +passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas!<span +class="pn">{36}</span></p> + +<p><span class="pn">{37}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00230000000000000000">III<br> +Deus seja comnosco</a></h2> + +<p>Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca das +malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capellos! +Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e +donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas dos trovadores. Mais adiante, +em turbilhões de cem côres, em collos ondeados e graciosos, giram e volteam as +dansas, e o olhar furtivo de alguns pares promette, em breve, dias semelhantes +a mais de um solar.</p> + +<p>Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não entram, +o vento geme por entre frizos<span class="pn">{38}</span> e laçarias dos +delgados columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das +frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silencio. +Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas tochas. Povoa-se a +sala, innundada de luz subitamente. Os escanções enchem as taças e fazem-as +circular em roda. Saudes, acclamações, e vozes crusam-se, trocam-se e voam em +confusão jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á +sua direita senta-se Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço +Ansures. Defronte, em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se +podesse deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto.</p> + +<p>A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas +vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam incessantemente +donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospitalidade quasi regia do +rico-homem. As taças cheias de licor espumoso correm de mão para mão. D. +Ordonho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida brada:</p> + +<p>—Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa acclamação +responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre irmãos!»</p> + +<p>Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um +grito. Os convivas olharam<span class="pn">{39}</span> tambem e ficaram +immoveis com as taças suspensas.</p> + +<p>No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu de +repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e na cotta +o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a primeira taça +cheia, ergueu-a lentamente.</p> + +<p>—Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!..</p> + +<p>Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se +vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de ferro +em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os olhos, as feições +o os modos eram exactamente os do cavalleiro assassinado havia quatorze annos; +porem os cabellos e as barbas brancas lembravam, que por cima do seu corpo +passára o frio da sepultura.</p> + +<p>Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder +occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos.<span +class="pn">{40}</span></p> + +<p><span class="pn">{41}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00240000000000000000">IV<br> +Enterro por noivado</a></h2> + +<p>Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu:</p> + +<p>Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao +primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, ficaram +immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e +alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs profundos das +salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograes transformou-se +repentinamente em <em>dies iræ</em> que retumbou. Os cabellos erriçaram-se de +horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e<span class="pn">{42}</span> +vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados jogaram, as +torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava já tinha +desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos clamores! Muitos intentaram +fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes tocar, fecharam-se adiante d'elles. +O portal maciço gemeu nos quicios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis +alaram as dobradiças.</p> + +<p>Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor de ti +choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de esperança; o palmito +symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas de cypreste esfolhou sobre o +leito do noivado. Nos paços do conde ninguem se entendia. Estava sobre elles o +poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor +dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma +pluma de fogo na escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo +enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tectos. +Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir +e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados tão altos, e o fosso tão +fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o +seu clarão pallido lançou como um sudario sobre o rochedo talhado a pique, que +se aprumava a<span class="pn">{43}</span> curta distancia sobranceiro ao +castello. As aguas, rebentando ali á sombra de antigos choupos, ferviam de +encontro ás fragas, e despenhadas espumaram batendo em cachões no leito da +ribeira, que lá em baixo bramia arremessada por entre a bronca penedia.</p> + +<p>Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços por +entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de andar +em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas +serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra por pedra quasi a +desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas envergonhados.</p> + +<p>—Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de St.ª +Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! gritou +depois em grande brado.</p> + +<p>Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as +achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem robustos braços ferem a +um tempo com ancia mortal a porta maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro +chispou fogo, os gonzos tremem... Mas nas taboas nem signaes dos finos gumes. +Os machados, estalando, lascam até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e +do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa +do rochedo campeia<span class="pn">{44}</span> o cavalleiro negro. As aguas +espumavam por baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um facho; a +esquerda só peava com as redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo. +</p> + +<p>—Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a eu. +Pago as arrhas da formosa noiva.</p> + +<p>—Maldito!...</p> + +<p>—Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou o +dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos meus. +Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.</p> + +<p>Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas +furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No +hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem sentidos. As +faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tranças de +ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os olhos languidos, em que expirava +a doce luz da vida, cerravam-se mortaes.</p> + +<p>—Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue +verteu-o esta mão culpada.... Feri a cabeça do peccador saciado de annos e de +amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... Poupai-a em +vossa justiça!.</p> + +<p>Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n'aquelle +instante o senhor de tantos<span class="pn">{45}</span> vassallos e castellos +por alguns palmos de terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna, +que nos serros vizinhos refrigerava as miserias do escravo?</p> + +<p>O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas não +quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto enxugou-se +em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo passar muda e +terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro! Nem capello de aço lhe +cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito descoberto. Leva porem a morte +escripta no rosto. O sombrio clarão do desespero reluz nas orbitas +ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, brancos e descorados. Deixai-o ir! É +o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o +inspira!</p> + +<p>A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para +depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo +ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento! Guarde-se o falcão. +Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!... A lua +escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A +distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o clarão avermelhado do +incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se como toldo +immenso. As aguas e o furacão confundiam<span class="pn">{46}</span> os +bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava em +estampidos medonhos.</p> + +<p>A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto é aquelle, +que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre +Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas abrazadas e não recúa. +Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado estalam e +desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e não as vê! O +temporal fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os +penhascos da montanha; as torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como +rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e +horrores da vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao +desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a peior +das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o sepulcro do ultimo +descendente de uma grande raça.</p> + +<p>Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira dava-lhe á +face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vista mede o +espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um aceno para voar sibilando +ao seu alvo....</p> + +<p>Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol<span +class="pn">{47}</span> de fogo jorrou dos ceus abertos. Soa distinctamente o +galope de um cavallo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as +faiscas umas atraz das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no peito o +açor do Douro. Será D. Moço Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho +sacudido pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado +sobre a aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. +Cavallo e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo +lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. Pouco +depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo debruçado para o +precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas para se rodear de trevas. +O braço do Maldito alçou de subito a espada e o golpe descia já... quando uma +seta passa assoviando. O mancebo vio então o seu inimigo rolar aos pés do +ginete e logo apoz um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das +rochas até se atufar dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que +espirram a grande altura espuma e sangue.</p> + +<p>Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de +triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cosida nas +chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos ao temporal. Depois +abateu-se a torre com grande estrepito, as quadrellas alluiram-se, as +traves<span class="pn">{48}</span> accesas remoinharam e cairam, e entre os +destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do somno +eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendão! +Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou comsigo a orgulhosa +raça de riba d'Ave, e do seu castello só ficaram de pé aquella torre negra, que +alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos de Pedro Ansures.</p> + +<p>—E D. Moço? perguntou Martim Paes.</p> + +<p>—E Auzenda? acudiu D. Nuno.</p> + +<p>D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e, +cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços, fragas, e +alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do incendio e viu-o +arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só parou quando o facho do +cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que succedeu então já vos contei. Apenas +Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, +mas sem vida! Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de +cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das +Hespanhas.</p> + +<p>D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a +esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás +batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte?<span +class="pn">{49}</span> Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade da terra +do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d'aquelle +coração!... Sombra do que fôra, o que fazia o desgraçado n'este desterro cruel, +sem affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu na +força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha até cair, a +dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias desgraçadas, minavam-lhe +a vida, seccando-lh'a na raiz.</p> + +<p>Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de +lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a doce +imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma +grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em ondas; as +mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginaes; nos olhos sempre a luz +suave do amor, que o fizera tão feliz; nos labios aquelle sorriso em botão, que +se abria casto como a rosa. O mancebo queria estreitar a visão querida ao +peito, e acordava, chorando, porque só abraçára o ar. N'este tormento agonisou +por mezes até que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, +aonde se recolhera.</p> + +<p>Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o +coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára orando a +velar<span class="pn">{50}</span> a tumba, contou depois que vira apparecer uma +dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do +ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe um +annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte descorada. +Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por tres vezes lutou +para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por +braço invisivel, se prostrou com a face no pó do templo. Eram as nupcias dos +mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes +perseguindo na donzella o sangue inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? +Altos mysterios de Deus. Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e +os prodigios da sua clemencia infinita?!<span class="pn">{51}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00300000000000000000">O CASTELLO DE ALMOUROL</a><a +name="tex2html1" href="#foot326"><sup>[1]</sup></a></h1> + +<h3><a name="SECTION00300100000000000000">CONTO DO SECULO XVII</a></h3> + +<h2><a name="SECTION00310000000000000000">I</a></h2> + +<p>—Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta +praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles pelo +Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elles estão aqui á nossa quinta é +muito longe?</p> + +<p>—Não é nada perto, não, sr.ª Brizida de Sousa! Mas lá diz o adagio: aos que +muito correm quebram-se-lhes<span class="pn">{52}</span> as pernas... Socegue. +O sr. conde de Villa Flôr anda com elles a contas e não é para graças.</p> + +<p>—O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi +dizer... Mas se elle ficasse mal agora?</p> + +<p>—Ficavamos nós peior, isso é verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, se +meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto como um +estafermo!...</p> + +<p>—Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou demais por essas +guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O que +seria de mim sósinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha umas poucas +de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro mundo! Ó sr. Romão +Pires, diga-me: o demonio—salva tal logar—terá poder de subverter comsigo no +inferno corpo e alma uma creatura baptisada e remida nas santas aguas?...</p> + +<p>—Conforme! Se não estiver em estado de graça!...</p> + +<p>—Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! +Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? Quero que +me escreva já e já á sr.ª D. Magdalena, contando-lhe tudo isto. Ella não póde +consentir que a sua criada velha uma noite d'estas desappareça nas garras<span +class="pn">{53}</span> do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... Diga-lhe +que nos venha livrar d'este inferno, senão... eu cá por mim fujo! Primeiro a +salvação da minha alma...</p> + +<p>—Tambem eu não gosto nada d'isto, sr.ª Brizida. Mas animo forte e coração á +larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo que vejo, não +leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para esta quinta...</p> + +<p>—Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me não chamasse +eu, se depois da primeira noite não mettesse um bom par de legoas entre o +demonio e quem se présa de christã baptisada na freguezia de Santa Catharina de +Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem leiva de +mau sangue!... Mas o amor, que tenho á minha menina, coitadinha, tudo me faz +supportar com paciencia... Espere! Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros +arrastados pelo sobrado?</p> + +<p>—Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é que +elles fazem das suas...</p> + +<p>—É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de noites, +Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes vê o fim. E que me +diz então a estas despedidas de maio e entradas de junho?!...</p> + +<p>—Não são de convidar, sr.ª Brizida! Velho sou,<span class="pn">{54}</span> +mas não me lembro de anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, trovões e +ventanias que levam tudo pelos ares! Safa!</p> + +<p>—E nós, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa +Barbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre será. +Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima no vão das +casas?</p> + +<p>—Não é nada. São os rapazes do feitor jogando as escondidas.</p> + +<p>—Pois, sr. Romão Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, quando +minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: «Brizida, a sua menina anda +fraquinha e enfezada, e o irmão tambem, os phisicos não acertam com o remedio, +e fr. João entende que estas tosses do peito, assim teimosas, não se despegam +senão com mudança de ares. Bem sabe, não posso sair da cidade por estes dias +mais chegados—e é assim, coitada, por causa da sua demanda—acompanhe-me os +meninos, e conte que fico tão socegada como se eu mesma fosse...» Quando me +disse isto, e eu lhe beijei as mãos pela mercê, se podesse adivinhar o que nos +esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e +viesse quem quizesse... Isto não é palacio, nem quinta, é um verdadeiro +inferno! Deus salve a minha alma!</p> + +<p>—A sr.ª Brizida não diz o que sente. Vindo a<span class="pn">{55}</span> +sr.ª D. Maria e o sr. D. Pedro, ninguem a arrancava de ao pé d'elles.</p> + +<p>—Tem razão. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não lhe +quer mais, não, deixe-me ter esta presumpção... A elle vi-o nascer, e os +primeiros braços, que o embalaram, foram estes que hade comer a terra. Tão +pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo agora, que não me +posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto de os abraçar homens!... +Quando me ponho a olhar para elles, parece-me ás vezes que não póde ser, e que +tudo isto é sonho...</p> + +<p>—Então!? Elles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos. Não ha remedio. O +mundo vae assim.</p> + +<p>—Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que é +da edade e do muito crescer, e que hão de encorpar depois. Deus queira! São os +negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos meus meninos. A sr.ª +D. Maria manhãs e tardes inteiras á almofada, bordando de branco, de matiz, e a +ouro. E com que perfeição!... Que dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? +É mesmo uma dôr de alma vel-o dia e noite amarrado á banca dos livros, e que +livros! Latins, gregos, e não sei que outras trapalhadas de +<em>retroricas</em>... Quem tem a culpa de tudo, o culpado de tudo o que póde +acontecer, é o teimoso do sr. fr. João, que á fina força<span +class="pn">{56}</span> quer o sobrinho sabio. Depois que falleceu o pae, (Deus +o tenha em gloria!) não se nos tira de casa, e tanto ha de quebrar-me a cabeça +ao meu menino, que um dia treslê. Pois olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe +diz uma ruim cabeça: mais vale asno vivo, que doutor morto.</p> + +<p>—O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª +Brizida, é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido um +segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes +merecimentos. Não lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna possuem +elles...</p> + +<p>—Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não m'os deixa respirar. +Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa para acolá... +latins, <em>pholosophias</em>, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres +creanças não teem endoudecido. Cá por mim já o miolo ha muito tempo me tinha +dado volta, tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa.</p> + +<p>—Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum nescio...</p> + +<p>—Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na côrte dizem +que não ha outro doutor como elle.</p> + +<p>—Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz dos +seus olhos, e depois tão meigos, tão applicados...<span class="pn">{57}</span> +</p> + +<p>—De mais, de mais, para a edade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não parecem +d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. João é muito extremoso, e o que faz +é por desejar o seu bem d'elles, mas, graças a Deus, a casa é rica e não era +preciso amofinar-me tanto os meus meninos...</p> + +<p>O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era +travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas janellas, +cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes em reboco +pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em outras partes as +colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam em suas pinturas +desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores anãs, e no meio de +arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas lavradas inculcavam a +paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a grande altura, enegrecidos pelo +fumo da immensa chaminé de pedra, ornada de leões de marmore nas bases, e +rematada com um brazão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras.</p> + +<p>O sr. Romão Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de +carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma das +faias mais direitas da quinta. Nascêra e fôra creado desde a infancia n'aquella +casa, e não conhecera nunca outros amos senão D. Vasco, e D.<span +class="pn">{58}</span> Magdalena. Acompanhára seu senhor, assim lhe chamou +sempre, em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando +esforçadamente ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis +desde 1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das +proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de saboroso +pasto aos serões da familia, obrigada a engulir como artigos de fé todas as +aventuras da nova «Tavola Redonda,» que a imaginação do escudeiro entretecia na +tela interminavel de sua cansativa Illiada.</p> + +<p>A sr.ª Brizida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das apparições, +era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, roliça e risonha, suas faces +lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas maçans rainetas. As +feições, pouco accentuadas, e quasi infantis, sumiam-se entre as roscas das +nedias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura affectada com uma +larga experiencia da vida. Toda aquella pequena e buliçosa matrona respirava +aceio, cuidado, devoção, e azafama. Collaça de D. Magdalena, e casada com um +dos caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da filha +primogenita da casa, enviuvára sem filhos, nem saudades do estado, resumindo +todos os affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas +creanças, que trazia sempre na boca e no coração.<span class="pn">{59}</span> +</p> + +<p>Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez de +mais para a testa, e o córte dos vestidos á beguina, affirmavam o programma da +sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria recheada de orações, +de visões, e de devotas crendices, o seu defeito capital era occupar-se muito +com as vidas alheias, enfiando um rosario de conselhos a proposito de tudo, e +mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hospedes, mas sem intenção ruim. +Todos se encobriam d'ella, quanto podiam, porém ninguem a aborrecia. Temiam-se +da intemperança de suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu +caracter, que era na verdade excellente.</p> + +<p>Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas, representava em +tudo o opposto d'ella. Sério, como um santão, embizourado, e quasi sempre com a +aguda barba escondida na gargantilha, se levantasse a vista e a curiosidade +para os negocios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca +era sagrada, e segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle +profundamente.</p> + +<p>Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o +conselheiro nato da sr.ª Brizida em todos os casos intrincados, e o defensor +convicto dos seus mêdos e indiscrições.—«Boa alma! Boa alma! respondia aos que +a censuravam.<span class="pn">{60}</span> Tem o defeito de fallar de mais, mas +é uma santa pessoa.»—Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edição das +guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrificio de suspender a +loquacidade propria!...</p> + +<p>O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calças côr de +pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado no +cavallete do interminavel nariz, não desabotoava a seriedade do rosto, nem dava +ferias ao enfado chronico senão para sorrir á sua comadre Brizida. Aquelles +olhos verdes desbotados não se animavam senão para festejar algum bom dito da +matrona, cujas fallas assucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna do +antigo campeão da independencia portugueza. A predilecção honesta, mas decidida +dos dois um pelo outro, não escapára aos criados, e todos acreditavam que, cedo +ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a união +de duas almas já tão intimas.</p> + +<p>A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita do +Tejo, estendia as matas e charnecas até á ribeira, que separa Paio Pelle da +villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, distaria pouco +mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio antigo, talvez fundado +por meiados do seculo XIV, accrescentado, e reparado pelos fins do XVI. As +ameias, já derrubadas<span class="pn">{61}</span> em muitos lanços de muro, +proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas por torres +fortificadas em tempos mais remotos, saindo fóra do corpo principal do +edificio, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada, +cujas doze janellas de architectura irregular olhavam para elle. No terreiro se +tinham jogado cannas e corrido touros nos anniversarios festivos dos senhores. +</p> + +<p>A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e +articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas parietarias. Uma +arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as entradas das duas +escadas, que subiam em volta de caracol até ao primeiro andar. Outra porta, por +baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para os subterraneos +allumiados ao rez do chão por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de +salas nuas, frias e tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde +o ar e uma luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas +envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, crusados de +passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo desde o andar +terreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rêde inextricavel, um verdadeiro +labyrintho. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras, prolongava-se á +maneira de refeitorio<span class="pn">{62}</span> entre dois extensos +corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada para o jardim, na +outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para os vãos, os quaes por cima +corriam em largura e comprimento da casa. As torres communicavam-se com o corpo +do edificio por duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos +annos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas +caudaes do inverno.</p> + +<p>O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de pedra +no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava algumas +roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres bravos. +As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingidas de vallados +altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do palacio era carregado de +melancholia. Rodeado de solidão justificava em sua tristeza as queixas, que +ouvimos á sr.ª Brizida. Porque escolhera, porém, D. Magdalena aquelle êrmo para +abrigo dos filhos e dos criados, quando tinha tantas propriedades mais alegres +e reparadas aonde podessem respirar, longe do bulicio da côrte o ar do campo? +</p> + +<p>D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de que +fôra tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do couto de +Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fernando na comarca da Beira. Formosa, +discreta e recatada,<span class="pn">{63}</span> perdera seu marido, D. Vasco +Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. João IV e D. Affonso VI, havia +tres annos, e ainda não enxugára as lagrimas da viuvez. Em edade de merecer e +de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, aonde não +recebia senão as visitas de alguns amigos antigos da familia, guiando-se em +tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu irmão, grande sabio, e doutor em +canones e theologia, o qual se encarregára de dirigir a educação litteraria dos +sobrinhos.</p> + +<p>D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nascimento, como pelas qualidades +do caracter e do espirito, unira ás propriedades de sua casa, já mui rica, o +senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de Almourol, que sua mulher lhe +trouxera em dote, mas quasi sempre occupado na côrte com os negocios politicos +e no serviço activo das armas, só duas vezes visitára de fugida aquelle solar +desamparado, que principiava a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras +e a cobrança dos direitos do donatario, com excessiva confiança, diziam os +murmuradores, á probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e +ladino, que mais as disfructava como usurario, do que as geria como +administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam n'aquellas +mãos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro +estado<span class="pn">{64}</span> das cousas, na companhia de seu irmão, fr. +João Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais +conveniente.</p> + +<p>Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, +dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas relações +de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo ramo dos +Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma comarca, aonde +existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que tão viçoso beija as +aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia +ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. Affonso de Noronha, saira da côrte para +o exercito do Alemtejo. D. Affonso, illustre pelo berço, e já illustre pelo +valor, vira crescer em belleza, primeiro com assombro, depois com paixão +ardente, sua prima D. Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pae o amor, +que ella lhe inspirava. D. Nuno confiou este segredo á ditosa mãe, e ella, não +podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar +o sim, quizera, comtudo, sondar disfarçadamente as inclinações da donzella. +Conheceu com alegria, que D. Affonso começára a apoderar-se d'aquelle coração, +que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas as primeiras e vagas +aspirações de um sentimento, que não sabia definir ainda.<span +class="pn">{65}</span></p> + +<p>Corria o anno de 1663. D. João de Austria, á frente das armas castelhanas, +tentára o derradeiro esforço, invadindo Portugal com dezeseis mil soldados, e +os nossos generaes, juntando as forças, mal conseguiram oppor-lhe cinco ou seis +mil. A cidade de Evora, que devia ser um dos baluartes da resistencia, +accommettida no dia 14 de maio, capitulára, depois de pouco honrada defeza. +Este revez aggravou os receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a +insultar Alcacer. D. Sancho Manuel convocára immediatamente os officiaes a +conselho, e só um voto, o d'elle, approvára a conveniencia de ferir a batalha, +que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A pericia de +Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o ultimo precipicio +da independencia; mas a feliz temeridade do conde de Villa Flor, fechando os +olhos á prudencia, applaudia o encontro decisivo dos dois exercitos, como o +unico meio, embora desesperado, de salvar a provincia e o reino da sujeição +estrangeira.</p> + +<p>O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltára as +casas de Sebastião Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de Elvas. A +todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um +lance repentino podia sepultar para sempre as esperanças de Portugal!<span +class="pn">{66}</span></p> + +<p>A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito mezes +do que D. Pedro, seu irmão, contava n'esta epocha dezesete annos, e sem vaidade +merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez que o unico senão de +tanta belleza fosse a sua mesma perfeição irreprehensivel. No rosto, +graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranças, confundiam-se os lirios e as +rozas na mais mimosa frescura. A bocca, fina e espirituosa, córada como um +botão nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma +expressão adoravel. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam ás +vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente se +inflammava, mas sua tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixão +dormia ainda, facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor +aquellas pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo de uma estatua +primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista +como que involuntariamente se alçava a buscar nos hombros as azas da Silphide. +A voz tinha condão seductor. A estatura, um pouco acima de ordinaria, e +flexivel como a hastea de uma flor, tambem se dobrava como ella, parecendo que +o esbelto corpo de melindroso não podia com o doce peso da fronte, em que as +mil graças da primeira enamorada primavera competiam umas com as outras sem se +vencerem.<span class="pn">{67}</span></p> + +<p>As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a attracção, +que o calculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o arteficio. O +requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do sorriso, e a magia +arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam espontaneos, prendendo os +sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda era maior, se é possivel. O +coração retratava-se na fronte limpida, e os infinitos thesouros de ternura e +de abnegação, que por ora concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando +se abrissem a affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor +ditoso. A pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de +candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que affrontado +não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e caridosa sabia conciliar +a altivez do sexo com a brandura da indole a firmesa da vontade. Os dotes do +espirito esmaltavam as qualidades moraes.</p> + +<p>Talvez não houvesse na corte dama ou donzella tão instruida na lição das +boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e castigadas +dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos por Fr. João, eram a +sua companhia certa nas horas de repouso.</p> + +<p>D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distincções, que o +exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustração do berço, do que a +elevação<span class="pn">{68}</span> do caracter e a fidalguia das acções, que +em edade tão verde quasi o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, +comtudo, senão a confirmassem n'este juizo a presença insinuante do mancebo, a +gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua phisionomia. Os olhos da +donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo, +aonde riam as illusões da vida e da juventude, nunca fugiam d'elles, senão a +furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o que tentaria encobrir em +vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os labios dos dois tinham soltado uma +palavra, que revelasse o que sentiam. Amavam-se. A alma de um trazia sempre +gravada a alma do outro, mas só a eloquencia da vista, indiscreta ás vezes, +traira o segredo. D. Affonso, não podendo por mais tempo calar a chamma, que o +abrazava, tinha declarado ao pae, momentos antes de metter o pé no estribo e de +partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas +esperanças, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não perdera a +occasião, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto.</p> + +<p>A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, com +alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado de +subito o manhoso camponez, soubera disfarçar o embaraço e as apprehensões, mas +custara-lhe a conformar-se com a presença dos amos na casa, que<span +class="pn">{69}</span> havia tantos annos estava costumado a olhar mais como +sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar á pressa duas salas e algumas +alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos nos +vãos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a +senhora e Fr. João Coutinho poucos dias se demorariam atraz da familia.</p> + +<p>No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a ultima +pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos quartos da aya +e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por si mesmas. +Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos de ferros e cadeias +arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desappareceu.</p> + +<p>O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe sacudia +os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira noute +levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, petiscou lume, +accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quasi em vestido +de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do braço. Depressa se +arrependeu. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos +roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão momentaneo e sulphurio +mostrou-lhe, envolto no sudario, um spectro descummunal e ameaçador.<span +class="pn">{70}</span></p> + +<p>Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao +inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das roupas, acto +de valor, em que a sr.ª Brizida de Sousa o acompanhava conscienciosamente havia +muitas horas. Pela manhã os dous velhos pareciam desenterrados.</p> + +<p>O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi mais +respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia continuada as +longas horas, que medeiaram até ao amanhecer. D. Pedro ainda padeceu mais. +Acordando sobresaltado ao impulso de mãos brutaes e no meio de escuridão +profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar dentro das cobertas entre +uivos e rizadas.</p> + +<p>Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, ouvindo +da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades nocturnas, +contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, que em vida de +seu pae, já tinham muito má fama as casas do andar nobre.</p> + +<p>As noutes seguintes não foram mais tranquillas. Os espectros e duendes +tinham de certo reservado aquellas espaçosas salas, e os corredores, para +theatro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo conspirado com elles os +ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as trovoadas de maio tão +carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em relampagos, e a terra tremia +com o rebombo dos trovões.<span class="pn">{71}</span> As chuvas caiam tão +impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as +terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, alagava as margens, e suas +aguas batiam enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castello de +Almourol, salvando por cima do caes em cachões de espuma. Ao oitavo dia +acalmaram-se as tempestades, mas redobraram de força os maleficios nocturnos, +com terror, e espanto summo dos recem-chegados.</p> + +<p>Avexados, tremulos e fóra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar a +residencia para os aposentos do castello, que não tinham desabado ainda minados +pelos seculos e pela indifferença; mas o feitor, que estabelecera n'elles uma +filha casada, dissuadiu-os do proposito, ponderando que as salas e os quartos +do velho edificio dos Templarios, alem de frios e de mais nus, que os do +palacio, não eram menos perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou elle, +as almas dos cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos +tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de +abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha da +famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da noute +sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e ouvia-se a +voz das sentinellas. Até raiar a aurora não se calavam na sala de<span +class="pn">{72}</span> armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando +esta descripção horrifica, Brizida de Sousa e Romão Pires olharam consternados +um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, não querendo +precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar as travessuras menos +estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. Magdalena, +pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle purgatorio o mais cedo possivel, ou que +viesse sem demora em companhia do Sr. Fr. João desalojar os espiritos +diabolicos, cuja audacia zombava da agua benta e exorcismos do Vigario de +Tancos. Os dous honrados servos confiavam que a grande sciencia do frade doutor +e as virtudes do habito de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da +rebeldia de Satanaz e da maldade dos seus accessores.<span +class="pn">{73}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00320000000000000000">II</a></h2> + +<p>Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a cêrca exterior +da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, defronte de +Tancos.<a name="tex2html2" href="#foot327"><sup>[2]</sup></a> Cinco seculos, +passando por cima d'ellas, não haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem +alluido o cimento indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a +acção do tempo e o braço infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo, +transferida de Castro Marim para Thomar,<span class="pn">{74}</span> a séde da +sua victoriosa milicia, estendera rapidamente pela Estremadura os membros +robustos. Affonso I, liberalisando-lhe doações e privilegios, e enriquecendo +com largos senhorios os monges soldados, confiára quasi exclusivamente ao seu +valor a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure, +Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras +povoações, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte bipartido<a +name="tex2html3" href="#foot323"><sup>[3]</sup></a>. As chaves das duas +entradas da provincia estavam nas mãos dos cavalleiros. Defronte da moderna +Constança, na confluencia dos dois rios, o castello do Zezere cortava o passo +aos agarenos da Beira Baixa, em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello +de Almourol fechava o caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia.</p> + +<p>As ruinas, que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam aos que sabem +interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre um +ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali caprichosamente +pelo impeto de violenta irrupção vulcanica, as elevadas torres do velho +castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam descortinar de longe, +erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito mirrador dos seculos. Grinaldas +de heras penduram-se em festões das<span class="pn">{75}</span> ameias +desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios dos pannos +rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, tão arremessados que o dedo de +uma creança parece sufficiente para os fazer escorregar com o muro que os +corôa, para o leito do rio, espanta os olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio +ousado e quasi milagroso. Areias accumuladas, e alguma terra de alluvião formam +o solo, aonde cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos +troncos torcidos se penduram de cima das fragas até roçarem as aguas com as +ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os penhascos +aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio precipitadas. Uma vegetação +activa e luxuosa veste de verdura aquelle cahos de moles immensas sustidas ha +seculos no meio da ameaça constante de uma quéda instantanea.</p> + +<p>No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia, o +aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou, mas a +assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. Do lado do +occidente quatro torres circulares, levantadas como sentinellas de granito a +egual distancia umas das outras, alçavam as frontes torvas e já tostadas do +tempo. Entre a segunda e a terceira rasgava-se a porta actualmente +intransitavel do castello, com a sua volta de ogiva e grossos batentes de +castanho chapeado. No meio do<span class="pn">{76}</span> guerreiro edificio +avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto intervallo, outra +quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias. Uma janella ornada de +lavores em ramos, aberta a dois terços da altura, esclarecia os aposentos do +segundo piso, em quanto da parte oriental duas frestas do mesmo estyllo davam +claridade á sala de armas. Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a +muralha subia a grande altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes +ficava ao sul, e o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, +corria profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje são +ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os cactus +silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaçoso por onde se entrava para os +andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles aposentos, pouco +espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas laçarias. Em 1663 a obra da +destruição principiava a annunciar-se apenas. Apesar de nuas, as salas ainda +conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e adarves, se não alvejava havia +mais de tresentos annos o manto branco dos templarios, se algumas heras, +trepando, se balouçavam á mercê do vento, e se as torres e muralhas mostravam +já a côr adusta, que é para os monumentos o que são as cãs nos velhos, um +testemunho irrecusavel de que viram e viveram muito, não se tinham +esmorecido,<span class="pn">{77}</span> comtudo, nem apagado ainda nenhuns dos +vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol no meio do Tejo, similhante a um +titão com metade do corpo fóra das aguas, ainda podia ameaçar forte e intacto, +os que ousassem arriscar-se ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel +cuidava no vigor de sua robusta velhice zombar dos seculos, como as creanças +zombam dos annos, bem alheio de suppor, que na transição da edade grave para a +decrepidez sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas +diriam ás gerações indifferentes da nossa época, que eterno e grande só é Deus! +</p> + +<p>Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e ornada +de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os dois ricassos +da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais ainda pelas raizes de +interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues ajudava piedosamente seu +genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar copiosas libações de um vinho, que +escaldaria outras goelas menos estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e +pés torneados, que servia de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho +d'aquelles contornos, avultava um alentado cangirão de barro, bojudo, e cheio +até á boca. Principiára a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos, +similhante a monstruoso aranhiço, allumiava a casa<span class="pn">{78}</span> +escassamente. Duas espingardas, carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, +promptas para servir á primeira voz.</p> + +<p>Antonio Rodrigues era corpulento, espadaúdo, e reforçado. Faces largas e +cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça enterrada entre os +hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes denunciavam n'elle o +vigor de um atheleta unido a uma saude inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta +annos, mas os visinhos do seu tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e +acertavam. Mas era uma velhice verde e jovial, que não se inclinava ao peso dos +annos, que o trabalho não desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim +viçosa e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos +rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo douto +Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter de receitar +nem um xarope áquelle cliente invulneravel ás chuvas, aos frios, e a todas as +temeridades, a que um mancebo se não atreveria impunemente!</p> + +<p>Antonio Rodrigues trajava á camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibão e +calças de baeta escura, carapuça de lã, e o inseparavel varapau ferrado na +ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha de cabellos +grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa, pouco sulcada de +rugas.<span class="pn">{79}</span> O sorriso enroscava-se perenne nos beiços +grossos e córados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como os de um +tubarão, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o peito, e os olhos +castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em gordura, dir-se-hiam que +espreitavam tudo, meio encobertos. A voz aflautada causava espanto saindo +d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz grosso e cravejado de botões vinosos, +rubros como rubins, assumia dimensões quasi phenomenaes. A expressão da +phisionomia era dubia. O observador no primeiro relancear apenas notaria a +beatitude do comilão repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e, +comparando o olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando +debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feições moraes significativas +da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma cubiça incapaz pela +avidez de transigir com a honra, com a consciencia e com o dever.</p> + +<p>Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto aos +dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo alpha, e o outro +pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto, assustava os que o viam com o +receio de que um dia lhe saltassem os ossos das tibias e dos femurs soltos das +ligaduras. Braços de polipo, terminados por mãos e dedos eternos, hombros +agudos<span class="pn">{80}</span> sobre os quaes o fato dansava como posto em +cima de um cabide, rosto comprido, escaveirado, e macilento, acompanhado das +melenas esguias de um cabello ruivo e aguado, testa núa que chega quasi á nuca, +peito e ventre espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou +surrateiros, boca rasgada quasi até ás orelhas, e beiços finos e desbotados, +compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais atilado, +avarento e sem escrupulos d'aquellas immediações. Parecia fraco e a +desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar legoas, os braços +escamados encobriam uma força alem do commum, e os olhos vesgos só viam torto +para os negocios alheios.</p> + +<p>Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o velhaco +ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria para fóra. +Uzurario de nascença, hypocrita por indole e verdadeira voragem de liquidos e +solidos, digeria como um abestruz e bebia como um areal. Quando conversava, +sempre em fallas manças, sabia chamar a tempo uns frouxos de tosse e umas +lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a engulir metade, e ás vezes duas +terças-partes das palavras, e é inutil accrescentar, que as palavras engulidas +eram sempre as que o podiam comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o +caso o requeria, Pedro Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma +cascata de prantos.<span class="pn">{81}</span> Tinha as glandulas lacrimaes +devassas e chorava como um crocodilo. Ai dos innocentes que se deixavam +orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam quasi sempre sem camisa. No meio +d'aquelle rosto afiado erguia-se um promontorio immenso. Era o nariz adunco e +aguçado na ponta, que descia quasi a beijar o labio superior. Este nariz, +delgado e membranoso, rematava a semelhança que tinha aquella cara com o +focinho da fuinha. Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso +geral as funcções de procurador de dous conventos de freiras, de quatro +irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos lucrativos a +arrematação dos dizimos e premicias da comarca.</p> + +<p>—Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando o +caneco despejado em cima da mesa.</p> + +<p>—Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro Lavareda +com um sorriso avinagrado.</p> + +<p>—Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui +mettida. Tomara vel-os pelas costas.</p> + +<p>—Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá saudades! +redarguia o outro com meio sorriso acido.</p> + +<p>—Isso é facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vês, os donos da +casa são elles!...<span class="pn">{82}</span></p> + +<p>—Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são ellas!...</p> + +<p>—Hum! Podiam ser melhores... Esse é o meu receio. Trazemos isto muito de +rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse já ou lh'o ha de dizer.</p> + +<p>—Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse.</p> + +<p>—Pois sim!... Olha, não seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas +terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a castanha na +boca uma d'estas manhãs?!</p> + +<p>—Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira á boa feição, e o dinheiro é +sangue...</p> + +<p>—Mas homem!?...</p> + +<p>—Deixe lá, sr. sogro, não se metta a abelhudo aonde o não chamam, e deixe +ir a agua ao moinho. Já alguem fallou em lhe levantar a renda da alcaidasia?... +</p> + +<p>—Não.</p> + +<p>—Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração á larga. O que for +soará.</p> + +<p>Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coçava a nuca com o indicador e +o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava sobre a taboa da +meza com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da barba sumiam-se-lhe na +golla alta do gibão, e os olhinhos, homisiados entre as palpebras<span +class="pn">{83}</span> meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do +gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo na +apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de linho, em +quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mão raspava uma nodoa conhecida +e teimosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavam e se entendiam sem fallar. +O feitor de repente levantou meio corpo de cima do mocho de pinho em que se +assentava, colheu o cangirão pelas azas, sopesou-o por um instante, e +emborcando-o, encheu os dous canecos de louça. Levou depois o seu á boca, +encurvando lentamente o braço, e despejou-o em poucos sorvos, emquanto o +sobrinho, coleando primeiro a lingua pelos beiços, libou com mais vagar e com +gestos de amador consumado o nectar, que espumava na grosseira taça.</p> + +<p>—Rapaz, isto não vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro. Anda +mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me abotou-o. Esta +gente de Lisboa aqui não gosto nada d'ella.</p> + +<p>—Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya é uma tonta, uma +pêga douda. O escudeiro não passa de um espantalho de pardaes, e os meninos.... +leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada nascida de oito dias +e verá se não lhe dizem que é trigo.<span class="pn">{84}</span></p> + +<p>—Mas atraz da pêga e do espantalho tenho muito medo que venha o +milhafre!...</p> + +<p>—Qual milhafre?!...</p> + +<p>—O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de verdadeiro +susto.</p> + +<p>—E então se vier?!... Lê no seu breviario! O Sr. Fr. João Coutinho sabe +muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio...</p> + +<p>—Nisso te enganas. É capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se no +campo e administrou muito tempo os bens do convento.</p> + +<p>—Ah! Ah!...</p> + +<p>—E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela prôa com +a Sr. D. Magdalena.</p> + +<p>—Mau será!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do +polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Máu será, +tio!.... Mas não havemos de perder o somno por isso. Dizia no mosteiro, aonde +me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo o genero de peccado +deixou Deus remedio na sua egreja...</p> + +<p>Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco +satisfeitos.</p> + +<p>—Então que dizes, homem?!..</p> + +<p>—Se o frade vier.... é pôl-o ao fresco, em vinte e quatro horas.</p> + +<p>—Estás mangando, sobrinho?!.. Pôl-o ao fresco? O irmão da senhora, o tio +dos meninos?!...<span class="pn">{85}</span></p> + +<p>—Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa.</p> + +<p>—Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?...</p> + +<p>—Mettendo-lhe medo.</p> + +<p>—Ao sr. Fr. João, que é rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai +dormir, Pedro, isso é somno.</p> + +<p>—Sim sr., metter-lhe medo, porque não?...</p> + +<p>—Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito á lambareira da aya e +ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada de escarneo. +</p> + +<p>—Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade não foge?... +Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lençoes da cama.</p> + +<p>—Deixa-te de historias, Pedro!... As visões com o frade não pegam. O que +apanhas é algum tiro.... e olha que é caçador que não erra.</p> + +<p>—Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e verá....</p> + +<p>—Emfim, lá sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo! O +frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho muito amor á pelle.</p> + +<p>—Socegue. Eu tambem não tenho odio á minha. Diga-me: se Fr. João vier, +aonde o mette?</p> + +<p>—Aonde o metto?!.. Porquê?<span class="pn">{86}</span></p> + +<p>—Preciso saber.</p> + +<p>—No quarto verde talvez...</p> + +<p>—Nada! Dê-lhe o quarto dos armarios.</p> + +<p>—Mas!...</p> + +<p>Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coçando sempre a nuca. O genro +ria-se para dentro, raspando a nodoa do calção.</p> + +<p>—Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu +risinho.</p> + +<p>—Pois não tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua mãe +Maria Santissima.</p> + +<p>—Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!... +Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no sr. +Fr. João.... Não é por elle, é por mim. Nada de graças pesadas! Não me quero +ver na cadeia comido de pés e mãos. Leve antes a bréca as terras.</p> + +<p>—Ai, tio!.. Não se faça teimoso, e não esteja calumniando as minhas +intenções.. Valha-me a Senhora Sant'Anna.</p> + +<p>—Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?...</p> + +<p>—São passos.</p> + +<p>—E vozes... Chega á fresta e vê!</p> + +<p>Pedro Lavareda obedeceu.</p> + +<p>Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram-lhe na cara, apenas +abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se +passava<span class="pn">{87}</span> no rio. O devoto personagem recolheu á +pressa o interminavel e esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas, +e, enrolando um lenço por cima da gola do gibão, tornou a affrontar, porem mais +abrigado d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta +observação, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se defronte +do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada no afunilado +rosto uma verdadeira elegia.</p> + +<p>—Então?!... disse o feitor já sobresaltado com a mimica tetrica do +sobrinho.</p> + +<p>—Fallai no mau, apparelhai o pau!... É o frade!..</p> + +<p>—Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de pé de um pulo e enterrando a +carapuça até aos hombros. O frade?!.</p> + +<p>—Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razão, tio. Anda mouro na +costa.</p> + +<p>—Vem a Senhora D. Magdalena?...</p> + +<p>—Não. Vem elle só. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro.</p> + +<p>—Não te dizia eu, Pedro?... E agora?...</p> + +<p>—O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua.</p> + +<p>—Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. Não +gosto nada da vinda do sr. Fr. João assim com este segredo.... Receio....<span +class="pn">{88}</span></p> + +<p>—<em>Valaverunt galhetas</em>, sr. meu tio! como nós diziamos no +convento!... O caso está feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem +rabo!.. melhor, porém, o ha de fazer Deus e sua Mãe Maria Santissima, minha +madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom vinho +alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber o sr. Fr. +João, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada.</p> + +<p>—E tu?...</p> + +<p>—Eu... Fico para pôr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! Dê ao sr. Fr. +João o quarto dos armarios. É essencial.</p> + +<p>—Porquê?...</p> + +<p>—Pela bocca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça esperar sua +reverendissima e encommende-me nas suas orações á minha devota Senhora Santa +Anna...</p> + +<p>—Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha lá?.. +Cuidado com a pelle do sr. Fr. João!</p> + +<p>—Vá descansado, tio, não hade haver novidade. Vem ceiar?</p> + +<p>—Venho.</p> + +<p>—Até logo.</p> + +<p>E os dous consocios e parentes separaram-se.<span class="pn">{89}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00330000000000000000">III</a></h2> + +<p>—Com que então solto anda o demonio por estes palacios confusos, e +afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me +contam! Mau é isso!... E vossê que diz, Romão Pires? Parece ainda mais pasmado +do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. Antonio Rodrigues, diga-me: aonde é o +quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. É de casa!</p> + +<p>—Eu, sr. fr. João!... Sei só que não se póde parar aqui da meia noite em +diante!..</p> + +<p>—Ah! sabe isso!?... Ja não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia +mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os sustos.<span +class="pn">{90}</span></p> + +<p>—O sr. Fr. João gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!...</p> + +<p>—Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora Apparecida!... É +da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou a sr.ª Brizida, pondo as +mãos.</p> + +<p>—Então o sr. Antonio Rodrigues crê que esta noite haverá ensaio geral de +Satanaz e da sua côrte, para festejarem a minha chegada?... Muito bem! Cá +estamos. <em>Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!</em> Pelejaremos +com as armas espirituaes, que são as melhores, e com as temporaes, que tambem +servem em certas occasiões! Mas como vamos de ceia?.. No barco o mau tempo +fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar um carneiro assado! E o vinho, +aquelle bom vinho de 1655, ainda haverá por cá uma gota d'elle? Ha de haver. O +sr. Antonio Rodrigues, o melhor copo de Tancos e seus arredores, aposto que não +está desprovido de munições de guerra?</p> + +<p>Antonio sorriu e coçou a nuca.</p> + +<p>—A ceia está ao lume, e não se demora tres credos. Quanto ao vinho.... +esteja vossa reverendissima descansado.</p> + +<p>—Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr.ª D. Maria. Ella +tem passado peior?...</p> + +<p>—Não, sr.! Peior não. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a minha +rica menina tem perdido<span class="pn">{91}</span> as côres. Ella é tão +delicadinha, tão fraca!.. Ó sr. fr. João, a menina não podia ler um nadinha +menos, mais o sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa?</p> + +<p>—Não pode, não senhor!... acudiu o frade em voz de trovão. Meus sobrinhos +não se educam para espantalhos de sala!... E vossê é muito atrevida em se +metter a dar conselhos aonde a não chamam!...</p> + +<p>—Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir uma repostada +assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. João? Não sou moura, nem perra, nem captiva. +Pão em toda a parte se come; e se não fosse o amor dos meus meninos, por esta +(e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma hora mais n'esta casa!</p> + +<p>—Está bom, Brizida de Souza, está bom! Não se inflamme. Sabe que a estimo, +que todos em casa lhe queremos muito.... mas não me toque n'essa córda. Sei que +me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que elles não teem uma +tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa aos meus livros!...</p> + +<p>—«Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» resmungou a velha ainda irada +e incorregivel.</p> + +<p>—Mas eu é que não quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos, +mulher!—bradou o frade fazendo-se côr de purpura e sorvendo duas pitadas com o +ruido de um furacão..—Safa! Vossê é capaz<span class="pn">{92}</span> de fazer +perder a paciencia ao proprio Job!... Bem! Não fallemos mais n'isto, e não faça +caso dos meus repentes.... Sabe que não sou tão mau como pareço e que trago +sempre no coração os meus dois rapazes...</p> + +<p>—Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. João berra, esbraceja, é um +destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos Deus de +uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o dente calados....</p> + +<p>—Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa intenção. Chame os pequenos. A +ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella como Santiago aos +mouros!.. Vamos.</p> + +<p>A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra, +regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. João proclamou +rival do melhor que se podesse beber á meza de el-rei. As proezas gastronomicas +do erudito dominicano tinham assombrado o proprio feitor, cujo estomago +insondavel sepultava sem incommodo alimentos de todas as qualidades, e se +carregava de quantidades que eram o espanto e maravilha dos que assistiam ás +suas repetidas campanhas pantagruelicas. D'esta reputação merecida Antonio +Rodrigues viu-se obrigado a arrear bandeiras. O padre mestre não comia, +devorava, não bebia, absorvia! Regando de copiosas libações cada iguaria +rustica, absolvendo as<span class="pn">{93}</span> indigestas com um exorcismo +culinario, fazendo desaparecer do prato as menos pesadas com milagrosa rapidez, +dir-se-hia que a fome iberica e peninsular, a fome de dentes caninos e apetite +insaciavel, tomára a figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos +uma verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porém, e Fr. João, exalando um +suspiro, e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por +concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda suffocada do +esforço: <em>Deus nobis hæc otia fecit!</em></p> + +<p>O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no +espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o barretinho de +seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não offerecia de certo a imagem +dos piedosos e extenuados monges, que em epochas de mais fé edificavam os fieis +com o exemplo de sua vida frugal e contricta. Parecia mais um hippopotamo +encalhado, do que um devoto filho de S. Domingos. Os instinctos animaes +prevaleciam, e a fadiga de uma digestão laboriosa fazia arfar aquella machina +de mastigação continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admiração +sincera de creaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas +atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em oração +atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o padre<span +class="pn">{94}</span> coloçal fulminado por um ataque apopletico. Romão Pires +ainda não podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel +do irmão do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam no +brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente com a unha, +e dizia comsigo, que o frade, medindo as forças pela alimentação, devia +prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em dous, como o faria qualquer +mastim faminto ao gato descuidado, que lhe caisse debaixo das prezas.</p> + +<p>—<em>Deus nobis hæc otia fecit!</em> tornou a repetir Fr. João depois de +uma pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e +agilidade.—Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!.. Minha +sobrinha! Não gostei de a ver tão triste. Que nuvem pesa sobre esse coração? +São receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver são e escorreito....</p> + +<p>—Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida.</p> + +<p>—Pois quem hade ser senão aquelle cavalleiro andante que se despedio de nós +e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me agora?</p> + +<p>—Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza.</p> + +<p>—Está bom! Está bom! Não digo mais nada.... Romão Pires sabe que os +castelhanos tomaram Evora,<span class="pn">{95}</span> e que a estas horas hão +de estar as mãos com o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem +vence?!..</p> + +<p>—Essa é boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa Flor. +</p> + +<p>—Deus o ouça! Bom é ter fé!.. Mas!—E a larga fronte do frade enrrugou-se +aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de lhe cobrirem quasi as +palpebras superiores—<em>Deus super omnia</em>! murmurou.</p> + +<p>Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se com +estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou impetuosamente +pelo aposento, com os olhos espantados, as faces contraidas, e os cabellos +ruivos espetados, representando a imagem viva do terror e da consternação.</p> + +<p>—Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!...</p> + +<p>A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de pé, não menos +assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora.</p> + +<p>—Os castelhanos!?.. gritou Fr. João, saltando da cadeira e empunhando +machinalmente um bastão enorme, especie de clava, que o acaso lhe mostrou +encostado a um canto.</p> + +<p>—Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e +erguendo as mãos.<span class="pn">{96}</span></p> + +<p>—Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a longa +navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em quanto Romão Pires +sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiçosa.</p> + +<p>D. Maria, branca de cêra e silenciosa, encostou-se á mesa para não cair. D. +Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes, e a +fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de côrte, e deu alguns +passos como se quizesse sair ao encontro do perigo.</p> + +<p>—Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. João. Ás armas! sr. Antonio Rodrigues +chame os criados!... Façamos de Tancos e de Almourol uma segunda +Aljubarrota!...</p> + +<p>Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de +impaciencia batia o pé como o corsel insofrido escarva o chão desejoso de +soltar a carreira.</p> + +<p>—Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a +noticia, e aonde estão os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com +extrema serenidade.</p> + +<p>—<em>Do manus!</em> <em>Rem acu tetegiste, puer!</em><a name="tex2html4" +href="#foot178"><sup>[4]</sup></a> gritou o frade sentando-se commovido e ainda +tremulo. Façâmos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em primeiro<span +class="pn">{97}</span> logar: quem é e como se chama este correio de más +novas?..</p> + +<p>—É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda.</p> + +<p>—Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais +secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue á falla o sr. +Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a má noticia que nos trouxe?...</p> + +<p>—Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!...</p> + +<p>—E que disse o almocreve?...</p> + +<p>—Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no campo, +e que as guardas avançadas de D. João de Austria estavam a entrar no Crato!... +</p> + +<p>—Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha?</p> + +<p>—Não m'o soube dizer.</p> + +<p>—Hum! E o seu almocreve aonde está?...</p> + +<p>—Partiu, caminho de Lisboa.</p> + +<p>—Oh! E não sabe mais nada?</p> + +<p>—Mais nada, sr. padre mestre.</p> + +<p>—Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de +amigo?...</p> + +<p>—Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!..</p> + +<p>—Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve,<span +class="pn">{98}</span> durma sobre o caso, como nós vamos dormir, e creia que +amanhã acorda convencido de que engulio uma peta mais comprida do que a sua +pessoa, o que já não é pouco.</p> + +<p>Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas +como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e hypocrita de uma +annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam soffrivelmente +um sorriso boçal.</p> + +<p>—<em>Macte puer!</em> gritou Fr. João, batendo no hombro de D. Pedro. +Tiveste mais juizo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e mentira mal +armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um +almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma até Almeida! Romão +Pires, enfie-me na baínha esse eterno chifarote, espanto e censura viva das +espadas de hoje!...</p> + +<p>—Então vossa reverendissima já não quer que ponha de aviso os criados? +disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com o +genro, colloquio, que apesar de curto, não escapara a Fr. João.</p> + +<p>—Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro +mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma boa ceia +é o melhor remedio para estas molestias. Aonde é o meu quarto?</p> + +<p>O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador<span +class="pn">{99}</span> ao sobrinho, que lhe respondeu com um aceno quasi +imperceptivel de cabeça, e, pegando em um maciço castiçal de prata denegrido, +precedeu a especie de procissão de toda a familia até ao aposento, aonde o +douto dominicano havia de passar a noute. A porta abria-se no topo do comprido +corredor do centro; a camara de D. Pedro ficava-lhe á esquerda, e o pequeno +camarim de Romão Pires á direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados, +e seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brizida de +Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. João, nada inculcava de +notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de peitos e uma sacada, +cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a par de largos pedaços das +colgaduras de couro, que em melhores dias as tinham ornado, altos e grandes +armarios de pau santo. Os tectos altos e enegrecidos e o pavimento carunchoso, +gemendo e estalando com o peso dos passos, atestavam a velhice e o desamparo. +Um leito antigo, enorme, com sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de +pau santo arruinado, e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou +quatro cadeiras coxas dos pés, ou mutiladas dos braços, a mobilia nada commoda, +nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruição minava, e +esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram alguns<span +class="pn">{100}</span> paineis grandes, retratos de corpo inteiro de +guerreiros, damas, e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras +de carvalho, lavradas de talha alta.</p> + +<p>O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, sorrindo-se, ao +feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas almas do outro mundo. +Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda cabeça, e Brizida benzeu-se +devotamente.</p> + +<p>—Bem!... N'esse caso é preciso estar armado e vigilante para a batalha! Se +escaparmos aos castelhanos do Crato, não quero que acabemos nas garras dos +trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz favor! Mande trazer +para aqui o meu alforge, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro Lavareda +(exquisito nome (!)) é bom caçador por certo, e hade ter uma espingarda de +mais. Eu tambem gosto de dar o meu tiro de manhã cedo ás perdizes e ás +calhandras por essa charneca. Conto levantar-me com o sol, e dar um passeio +pelas fazendas, para tornar a ver estas terras em que não ponho os olhos ha um +bom par de annos. Para não ir com as mãos abanando levarei a sua espingarda... +Não a heide tratar mal, descanse!..</p> + +<p>—Essa é boa, sr. Fr. João! A espingarda, eu, e tudo o que mandar estão ás +ordens de vossa reverendissima....<span class="pn">{101}</span></p> + +<p>—Muito obrigado!... Olhe não se esqueça de me trazer um frasquinho de +polvora.</p> + +<p>O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a Romão +Pires, e pondo as mãos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em voz baixa: +</p> + +<p>—<em>Latet anguis!</em> Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella +face compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous, elle +e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão conjurados contra nós... Porquê +e para quê? O tempo o dirá. Olho vivo, pois, Romão Pires! Se lhe apparecer +visão, ou espectro, receba-m'o ás cutiladas. Eu cá espero a pé firme os que +vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes deitar, hade chamuscal-os de +véras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous velhacos.</p> + +<p>De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a +espingarda e o frasco. Fr. João fallou um pedaço com elles, sempre com a boca +cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar até pela manhã, e +despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiança.</p> + +<p>—O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse Antonio +Rodrigues com o rosto carregado.</p> + +<p>—Veremos, sr. meu tio.</p> + +<p>—Guarda-te de elle te pôr as mãos. É capaz de estourar um boi.<span +class="pn">{102}</span></p> + +<p>—Melhor o fará Deus!</p> + +<p>—Boas noutes.</p> + +<p>—Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda.</p> + +<p>—Sentido! Nem uma beliscadura!</p> + +<p>Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do +corredor, Fr. João Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e parecia ficar +inteirado de que as paredes e os armarios não encobriam portas falsas, nem os +sobrados alçapões. Abrindo o alforge depois, tirou de dentro um par de +pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as escorvas, e passando á +espingarda, carregou-a com todo o cuidado, metteu-lhe uma bala, e pousou-a +engatilhada á cabeceira da cama. Feito isto foi á porta pé ante pé, descerrou-a +de manso, e em passo subtil encaminhou-se ao camarim de Romão Pires, aonde se +demorou. Á volta—davam onze horas—achou tudo como o deixara, rezou pelo seu +breviario, e despindo só o habito, abafou-se, conchegou as colchas, recostou a +cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um somno profundo +annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, as almas penadas, e os +virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade não julgára de bons quilates.</p> + +<p>Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito, pesado e +maciço, arfava, balouçado<span class="pn">{103}</span> como um barco sobre +vagas inquietas. O frade entre-abriu os olhos. A vela do castiçal estava em um +terço, e a luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e +silencioso. Entretanto o leito não parára de dansar, e, facto mais singular +ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mão, ou braço que lhe +tocasse. Fr. João deixou-se ficar, tomando sómente uma posição que lhe +consentisse saltar ao chão de um pulo para travar a lucta com os duendes e +spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador á cabeceira, e a espingarda ao +pé. Entretanto, apesar de animoso e resoluto, o suor principiava a +borbolhar-lhe na testa, e um calefrio suspeito a correr-lhe a espinha dorsal. +</p> + +<p>—Isto não vae bem! Queria antes ruido, grilhões arrastados.... a scena do +costume. Esta calada e estes empuchões invisiveis.... sinceramente sería de +fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!.. Lá se foi a roupa até +aos pés da cama.... Não gosto da graça! Que é aquillo? As pinturas andam!?.. +Oh!...</p> + +<p>Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos cabellos, +que lhe restavam, erriçados em volta da calva, com as feições contrahidas e a +boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no painel, que lhe ficava +fronteiro e que representava um cavalleiro da edade média coberto de toda a +armadura, mas com o rosto sem viseira e<span class="pn">{104}</span> os olhos +ameaçadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura, parecia +mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. João quiz duvidar do testemunho dos +sentidos, e convencer-se de que era victima de uma illusão. Esfregou as +palpebras, beliscou os braços para despertar a sensibilidade, mas o retrato +continuava a adiantar-se, e um sorriso tetrico como que lhe franzia os beiços. +Ao mesmo tempo os ouvidos afiados do dominicano colheram, não sem grande pavor, +o som amortecido de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante +ao gemido doloroso de afflictivo estertor.</p> + +<p>—<em>Vade retro, Satanaz!</em> murmurou saindo da cama cheio de terror. +<em>Ne nos inducas in tentatione!</em></p> + +<p>Apenas soltára a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furacão +medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes.</p> + +<p>Fr. João recuou até ás cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os joelhos, +e fugir-lhe o animo. Estendendo a mão nas trevas machinalmente, encontrou uma +das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos apertaram tambem +machinalmente a coronha.</p> + +<p>De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz +sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma gigantesca +envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta figura descommunal, +cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas cavidades dos olhos, e +acenava<span class="pn">{105}</span> com os longos ossos de esqueleto. O frade +tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos +recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas +espirituaes não produziram effeito, e, apesar da perturbação momentanea, tornou +a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle espectaculo uma +visualidade, ensaiada para zombar da sua boa fé. Revestindo-se, pois, de valor +e decisão, apontou rapidamente ao vulto, que tinha diante, a pistola, que não +largara da mão, e disparou-a. Observando que o tiro não causára abalo no +phantasma, pegou depois na outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou +o gatilho. Uma risada estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o +spectro, mostrando as duas balas, arremessou-as ao chão, aonde o padre mestre +as ouviu rolar. Logo em seguida o clarão sumiu-se de subito, espessas trevas +envolveram o quarto. Fr. João, quasi desmaiado, caiu em uma das cadeiras +proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os membros, e +paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo terror.</p> + +<p>Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas não eram menos activas e violentas +nas camaras dos outros hospedes. Romão Pires, apenas se deitára, e escondera a +cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco em harmonia com os brios de +suas falladas campanhas, sentio apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe<span +class="pn">{106}</span> pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de +pancada e sem dó nas taboas do sobrado. O grito de mêdo e de dor, que soltára +estremunhado, teve em resposta um côro de risadas em falsete. Brizida de Souza +acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de agua que lhe +entornavam sobre a cabeça, e saltando por a casa em roupas menores, e com a +boca escancarada, para bradar, era comida no ar por mãos pouco caridosas e nada +leves, que de empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde +veiu encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma das +mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem accusava uma +força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de pavor, não padecera +senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e +arrastar ferros.</p> + +<p>No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque tinham +chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em +presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na intervenção dos poderes +infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute sem se despir, e com a espada nua +ao lado, tinha-se entregado á leitura de um livro novo, que em breve lhe +absorveu a attenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada das investidas no +corredor e nos aposentos proximos. Apagando<span class="pn">{107}</span> a luz, +e empunhando a espada, aguardou silencioso.</p> + +<p>A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber dous +vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se debruçava +sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava d'elle sons roucos +e medonhos, caiu ás pranchadas sobre o musico do Averno, ao qual o instrumento +escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela casa, +gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro phantasma volveu +logo em auxilio do agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao +que pareceu, deitou-o pela porta fóra como um vendaval, em quanto o companheiro +tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.</p> + +<p>D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castiçal e a +candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão um buzio +dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com lagrimas de tinta +encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarello.</p> + +<p>O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao mesmo +tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gôtas de sangue, caidas no +pavimento desde metade da casa até á porta, provaram-lhe que um dos actores do +drama nocturno retirara ferido e assignalado. D. Pedro pegou<span +class="pn">{108}</span> no castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo +corredor, notou que parava no topo, aonde só existia uma parede grossa, sem +nenhuma saida apparente. Informado do que desejava verificar, voltou atraz, e +encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á porta viu duas figuras brancas +ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se affirmar. A velha aia e o dorido +escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e de frio, esgotavam um +defronte do outro todo o vocabulario de rezas e de interjeições atribuladas, +sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, +fallou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a +camara de Fr. João.</p> + +<p>O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quasi exanime na ampla +cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e a espada nua +debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas não se moveu.</p> + +<p>D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir palavra +examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo triumphante não +deixára despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em cima do velador, +collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para junto da cadeira, d'onde +o tio, como paralysado, observava tudo silencioso, disse-lhe:</p> + +<p>—Mas o que foi isto?!..<span class="pn">{109}</span></p> + +<p>Fr. João respondeu com um suspiro, e, correu a mão pela testa ainda inundada +de suor.</p> + +<p>—Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!.. Não me dirá o que +succedeu?!...»</p> + +<p>Outro suspiro mais alto.</p> + +<p>—Por onde entraram elles?...</p> + +<p>O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, meneou +a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio corpo da cadeira, e +apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos antes soltar-se da +moldura, e encaminhar-se para elle.</p> + +<p>—Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castiçal e +correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou: Olhe?! +</p> + +<p>—O que? disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido e tremulo, como se +acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade.</p> + +<p>—Venha meu tio, e veja!</p> + +<p>De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um botão +debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo á pressão, abriu-se +lentamente.</p> + +<p>—Ah!.. exclamou fr. João.</p> + +<p>—Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo.</p> + +<p>—Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as +côres, a elasticidade dos<span class="pn">{110}</span> membros, e a viveza dos +olhos. Mas abaixando a vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no chão, +e uma nuvem torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o +que succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os +duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um immenso +ponto de interrogação.</p> + +<p>—Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro.</p> + +<p>—Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão Pires.</p> + +<p>—Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo?</p> + +<p>—Como de te estar vendo.</p> + +<p>—E metteu-lhe uma bala de calibre?</p> + +<p>—Seguramente.</p> + +<p>—Muito bem, quer vêr?</p> + +<p>E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a +polvora. Da bala não achou noticia.</p> + +<p>—Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os dentes, +plectorico de colera.</p> + +<p>—Podiam atirar-lhe com tres balas aos pés em vez de duas! Tinham tido o +cuidado...</p> + +<p>—De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão de pagar-m'o caro!... Só +atazanados!<span class="pn">{111}</span></p> + +<p>—Dá licença que lhe dê um conselho?...</p> + +<p>—Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais, do que nós todos. +</p> + +<p>—Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha.</p> + +<p>—Bem! Bem! <em>Do manus!</em> <em>Qui nescit dissimulare nescit +regnare</em>, acudiu fr. João, esfregando as mãos. Ah! patifes! O que elles se +terão rido á minha custa!...</p> + +<p>—Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Bôas noites meu tio. Socegue, que +bem o precisa.<span class="pn">{112}</span></p> + +<p><span class="pn">{113}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00400000000000000000">A CAMISA DO NOIVADO</a></h1> + +<h2><a name="SECTION00410000000000000000">I</a></h2> + +<blockquote> + <p>Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu tempo + certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos quaes disserom, + que as Leis e justiça erom como teias de aranha nas quaes os mosquitos + pequenos, caindo, são reteudos e morrem em ella, e as moscas grandes e que + som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as e vão-se.</p> + + <p>Fernão Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX.</p> +</blockquote> + +<p>Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoço, na provincia de +Traz-os-Montes, erguia a cabeça soberba acima dos outros logares. As muralhas +de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo castello, debruçadas +sobre um precipicio despenhado, concordavam com a melancolia<span +class="pn">{114}</span> do sitio e com as sombrias tradições, de que as +memorias do povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de +aguias, a vista, relanceando, abraçava toda a campina, mosqueada aqui de +arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas além, e empolada mais adiante em +collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam até beijarem o cinto +de cabeços alpestres, ultima barreira dos horisontes. Ao sopé da montanha, +aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma torrente. Era o Angueira +bramindo entalado na bronca penedia do leito. Mais ao longe, na coroa dos +cerros, os pinheiros meneavam as copas verde-tristes, e os ciprestes solitarios +balouçavam ao vento as pontas esguias. Por ultimo, ao largo, já quasi aonde não +enxergavam os olhos, recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de +Seabra na fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de +Nogueira, toucadas de gelos eternos.</p> + +<p>De tarde, quando começava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens do +rio em cóllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e envolvia n'uma +cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu caprichoso, cujas dobras +sacudia a briza, ora se despregava, deixando entrever confusamente os vultos, +ora condensado cerrava tudo em volta do solar.</p> + +<p>Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo<span +class="pn">{115}</span> e de nebrina eram tambem as horas dos feitiços. Uma +princeza encantada junto da fonte de S. João guardava os thesouros enterrados +de certo magico. Linda como as estrellas, a maldade do encantador condemnara-a +a arrastar-se todo o anno em figura de serpente. Só na vespera do festejado +santo, á meia noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, é que o +fado mau se quebrava até ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a +moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as escamas +luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a formosura rara de uma +belleza admiravel.</p> + +<p>Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e +copados ulmeiros á beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de branco, +desnastrando as tranças com um pente de ouro, e cantando aos espiritos do ar +com tão maviosa voz, que se cortava o coração de a ouvir.</p> + +<p>Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira já inclinada sobre o +espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da côr da +açucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se áquella hora qualquer +lograsse fallar á moura antes de tornar á fórma de serpente, alcançaria da bella +captiva, que era fada, as primeiras tres cousas que lhe pedisse; mas os acasos +ditosos são raros, e em cem annos pelo menos não havia<span +class="pn">{116}</span> lembrança de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido +batia os pés, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo, como +sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas aguas, e uma leve +nebrina por entre as arvores.<span class="pn">{117}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00420000000000000000">II</a></h2> + +<p>Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o +<em>Justiceiro</em>, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e +humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer punisse, quer +premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos, os maus tremiam +diante da sua face, porque o castigo de suas mãos seria vingador como a ira de +Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos. No seu tempo a lei era de um +só rosto e a pena não coxeava atraz da culpa. Entre o crime e a expiação não se +interpunham annos, promessas, ou favores. Devedor honrado,<span +class="pn">{118}</span> o principe ajustava logo a sua conta a cada um, e +pagava-a immediatamente. Só aos moradores de Algouço, coitados! é que ainda não +chegára a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo sentiam sua fé tão viva +n'elle, que nas maiores afflicções a voz de todos era sempre: «Valha-nos aqui +el-rei D. Pedro!» Por fim valeu, e o caso devia ser escripto com lettras de +ouro pela penna d'aquelle honrado e singelo chronista Fernão Lopes, mais poeta +do que toda uma arcadia, e grande pintor de vultos e de cousas.</p> + +<p>Ainda então se aninhava a povoação de Algouço em volta do castello, +construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a sombra +misericordiosa dos braços da sua cruz. Por ambas as encostas até á corôa da +montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos armados nos +eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da aldeia, +pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e arruinadas de velhice, +estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas e remoçadas dissimulando a +pobreza com os ares quasi festivos!! «Deus nos livre de tão mau senhor!» era o +voto dos burguezes de Miranda, compadecidos da escravidão dos moradores de +Algouço, e ainda não diziam desgraçadamente toda a verdade. Ali o suor de +sangue regava os banquetes da sala de armas e as pompas quasi regias do +rico-homem.<span class="pn">{119}</span> O pranto da viuva e as lagrimas dos +orphãos molhavam suas mãos, sempre alçadas contra a miseria dos desditosos para +destruir o tecto, que lhes abrigava o berço, e revolver ás vezes até o chão +sagrado do cemiterio aonde repousavam seus paes, avós, e irmãos.</p> + +<p>O mordomo trazia de cór os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A +vontade do amo e a cubiça dos servos deixavam mendigos á noite os que tinham +amanhecido remediados!</p> + +<p>D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raça o sangue nobre +confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o casamento de +Diogo Lopes com a Dama-pé-de-Cabra. Verdadeira, ou fabulosa, a alliança dos +altivos barões com os demonios tinha sido fertil em crimes. N'uma epocha, em +que a lança e a espada cortavam as contendas, calando as leis, e calcando os +direitos, os cavalleiros de Algoço excediam os mais ferozes na braveza, e na +crueldade ferina. Vêr correr prantos, e derramar sangue, para elles era um +deleite. Pizar aos pés dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes +das matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro objecto +das estrondosas caçadas, em que talavam campos e vinhas a pretexto de montear +lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta familia impia. Tres esposas, em +seis annos, haviam passado do leito<span class="pn">{120}</span> nupcial para o +tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de tão mal agourada união. Rosas +pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em flor, fanava-as logo? +O segredo não transpirou dos labios gelados das victimas; mas sabia-se que os +sorrisos do amor nunca lhes tinham alegrado a vida. Desceram ao sepulcro, +tristes e silenciosas como existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas +sombrias portas. D. Sueiro não soltára um suspiro! Se uma lagrima congelada +n'aquelle coração de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se +queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida estampava-se na +fronte maldicta. O crime das tres esposas fôra a esterilidade. O ferro, ou o +veneno, rompera o laço conjugal. A sepultura quebrára o vinculo apertado no +altar! Era calumnia? Era verdade? Quem sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes +podiam espantar os mais ousados.<span class="pn">{121}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00430000000000000000">III</a></h2> + +<p>Tinha fama de grande monteiro o castellão. Mál o dia despontava, saltava +logo no cavallo, e a galope, por sarças e estevaes, por montes e campinas, no +meio dos caçadores, entre risos, juras e brados, corria até á noite. Uma tarde, +na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas terras de um colono, e a +despeito das supplicas do velho, cães e corseis, salvando valados, e calcando +pavêas, arrazaram em minutos o trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e +relinchos soavam, sem cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca! +Tocavam buzinas, estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu<span +class="pn">{122}</span> atraz da pista. Garcia de Marnel, o dono do campo, fôra +o melhor besteiro dos sitios. O mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas +mãos, e a seta da sua aljava atravessara sempre o alvo. De avôs a netos esta +robusta e laboriosa raça lançára raizes profundas no solo, remido pelo seu +braço. Os mais fundos affectos prendiam-a á terra rôta e lavrada com o suor do +trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viçosas as primeiras +esperanças, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e dos filhos. No +altar da egreja haviam sido abençoadas as promessas de mutua ternura; e agora +debaixo da cupula frondosa dos álamos, á sua porta, o avô, no inverno dos +annos, sentia-se renascer nas graças infantis da neta, mimosa e unica +vergontea, que sobrevivia dos ramos decepados pela morte no velho tronco da +familia. Garcia amava tudo isto com o ardor calado, mas intenso das almas +viris, retemperadas pelo infortunio.</p> + +<p>A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabeça, nem o peso da enxada lhe +desfallecera o braço. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do coração, a +dor mesmo não lhe prostrára o animo. A esposa, por tantos annos alegria e +conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho da vida para ir +esperal-o na mansão de paz. Dois filhos, amparo da sua velhice, orgulho da sua +alma, ceifados em flôr seguiram a mãe, em quanto o ancião desgraçado,<span +class="pn">{123}</span> só e de joelhos não via a seu lado no desterro da vida, +êrmo de consolações, senão a infancia fragil e graciosa de Silvaninha, duas +vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu sangue. Inclinado sobre +tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as sombras da morte, +converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em um extremo louco e quasi +delirante. Só esta saudade, só este amor o prendia ainda ao mundo, mas com tal +encanto, que muitas vezes pedira a Deus que lhe dilatasse os dias para não se +unir aos que o chamavam do ceu, senão depois de a ver mulher e feliz.</p> + +<p>Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos pés dos cavallos os fructos de um anno, o +sangue do velho, remoçado pela ira, pulou nas veias; as faces cavadas coráram +de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo ao encontro do +cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas não de mêdo.</p> + +<p>Aquelle campo era o dote da neta, e só por causa d'ella é que supportava o +peso aborrecido de setenta annos de fadigas. «Senhor! Senhor! dizia elle +correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caçada contra um velho e +uma donzella!» O rico homem não respondeu. As matilhas e os cavallos, +precipitando-se, partiam á róda d'elle, envoltos em nuvens de pó, e o afflicto +lavrador, de pé e coberto, tinha lançado mão das redeas do corsel.<span +class="pn">{124}</span></p> + +<p>Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o látego, silvando, +cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe ameaçou o +peito com ás patas «Fóra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do conselho!» Garcia +desviou-se quasi cego de dôr, e Sueiro, cravando as esporas nos ilhaes, voou á +redea larga por cima das hortas e ceáras, bradando: «Sus! Abóca!»</p> + +<p>O açoute infamante não cortou o corpo, cortou a alma ao desgraçado. Recuando +para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as pupilas inflammadas, +poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um rujido surdo expirava ao mesmo +tempo á flôr dos labios. A vida do homem orgulhoso e máu estava á mercê +d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o ajustou a seta. O que no intimo peito +diziam o desespero e a colera era medonho. O rosto não o encobria. Ao apontar o +tiro a vista ardente elevou-se ao ceu. Pedia perdão, ou auxilio?</p> + +<p>De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e +melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram então dos olhos seccos do +velho; os braços descairam. Quiz vencer-se e resistir, não pôde. O arco +fugiu-lhe das mãos, e a bocca murmurou:</p> + +<p>«Fôra matal-a tambem a ella!» Enxugando depois as palpebras entregou a Deus +o castigo do oppressor.<span class="pn">{125}</span></p> + +<p>Mas a desgraça entrára no seu campo com Sueiro Lopes.</p> + +<p>O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fôra +aviltado, Garcia não parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o. +Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos, acudindo +ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma oliveira plantada +pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre orphã, confiscada caiu nas +mãos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha, sem parentes, e protectores, +teria morrido de frio e de fome se lhe não valesse a caridade dos amigos do +besteiro. Um deu-lhe a casa e o sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de +sua gentilesa, soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a +donzella em edade e formosura; mas á medida que os annos corriam, o rosto +pallido e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas +faces as lagrimas e não as entendia. É que o pão da esmola, mesmo dado com +amor, sempre tráva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando para o +tecto da casinha, de que fôra desherdada, apertava-se-lhe o coração por medo +tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da sepultura, aonde seu avô +descansava, aonde todos os seus dormiam!<span class="pn">{126}</span></p> + +<p><span class="pn">{127}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00440000000000000000">IV</a></h2> + +<p>Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoço tinham +lançado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de terra. Sueiro +Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras tantas viuvo, cada vez se +havia feito mais aspero e cruel.</p> + +<p>Mal raiava a manhã as buzinas acordavam logo as solidões. Assim que a noite +se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem, illumminando-se, +reverberavam o clarão das tochas do festim. Os gritos, as risadas, as +blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham perto do castello. +Os<span class="pn">{128}</span> vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os +deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O abutre já +não empolgava só a vida e os bens dos villãos; abrazado em ardor impuro cevava +a sensualidade na honra das filhas da aldeia. Rindo-se do temor de Deus, +arrastava sem piedade pelo lodo de amores infames a innocencia das mais +formosas e a virtude das mais honestas. Um sorriso, um olhar d'elle era como a +fascinação do reptil. Por onde passava, as flores mais frescas, e mais puras +caiam desmaiadas.</p> + +<p>Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces realçava +a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura contemplativa dos +olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava os mais suaves affectos. O +vivo carmim dos labios abotoando as rosas da bocca, redobrava os encantos ao +sorriso meigo, tornando irresistivel o requebro e a graça virginal da +phisionomia namorada. A voz, fresca e melodiosa, insinuando-se no coração, era +o seu maior attrativo. Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para +quem havia de levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia +palpitar de esperança, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubiçal-a +foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso +sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o não +fugindo<span class="pn">{129}</span> a suas caricias? Mas ás primeiras palavras +o rubor do pejo incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de +esmeralda fuzilou a ira. Soltando as mãos envergonhada e offendida, furtou-se +ás garras do açor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento saltou-lhe da +bocca por entre sorrisos lividos.</p> + +<p>—Não serás esposa sem primeiro seres amante! Pedirás de joelhos o que hoje +engeitas! Sei atalhar os rodeios á corsa. Sei aonde o golpe fere seguro!</p> + +<p>Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e +soffocada não suspendeu a carreira senão á porta da cabana aonde morava a velha +Aldonça, conselho e consolação de toda a aldeia. As linguas maldizentes +affirmavam, que a velha não era decrepita, nem mendiga, mas fada, e que sabia +ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam prodigios do seu poder! Alguns +chegaram a asseverar até, que ella e a serpente encantada tinham nascido +irmans, e se juntavam em colloquio á meia noute. Quando a donzella appareceu, +Aldonça, sentada em um penedo diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a +e sorriu-se. Enrolou depois a estriga, puxou o fio, e á medida que o fuso +girava, e que a linha se enrolava, meneava a cabeça, como se estivesse vendo, +ou ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto.</p> + +<p>—Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim +assustada. O açor cubiçou a rolinha?<span class="pn">{130}</span> Havia de ser! +Estava escripto lá em cima, e o que ha de acontecer muita força tem. Conta-me +tudo. O que te disse? O que lhe respondeste?</p> + +<p>Quando Silvana terminou, redarguiu a velha:</p> + +<p>—Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o homem. A +aguia real já a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes novidades, +filha! Apesar de agudas, as garras do açor não hão de ferir-te. Vai d'aqui á +fonte da moura e dize que sim a quem lá encontráres. Não te demores. D'onde se +não espera vem o remedio. Has de ser feliz!</p> + +<p>Ditas estas palavras, abysmou-se em tão profundo scismar, que parecia morta. +Não quiz saber mais a donzella. Voou á fonte com a fé viva dos quinze annos e +da esperança. Ao pé do primeiro álamo parou e tremeu. Não vira a serpente, nem +a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e gentil, filho do mais abastado +cavalleiro villão das cercanias. Porque lhe esmorece a ella de subito a +vermelhidão das faces affrontadas da corrida? porque lhe bateu o coração no +peito tão atropellado? Tello Vasques, o melhor besteiro depois da morte de +Garcia do Marnel, era o noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas +disputavam com mais inveja. Debalde! A vista d'elle não se baixára para +nenhuma, nem a sua bocca se abrira para dizer uma palavra terna á mais galante. +Silvaninha fôra a sua<span class="pn">{131}</span> primeira e unica paixão. +Combateu-a e calou-a por muito tempo, com receio dos pais, mas por fim, não se +podendo conter, decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mão. Ninguem sabia o +segredo do mancebo senão Aldonça, porque d'essa nada se escondia. E a +donzella?... Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio +coração, que, alvoroçado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor. Quando +parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli. Sem forças +para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe ás faces o rubor em ondas, e a +vista não ousou despregar-se do chão. O tremor convulso que a agitava fazia-lhe +arfar o seio.<span class="pn">{132}</span></p> + +<p><span class="pn">{133}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00450000000000000000">V</a></h2> + +<p>Tello Vasques não estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural dos +olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas. Encobrindo que +a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe, e uma especie de +deslumbramento turvou-lhe a vista. A mão suspensa, a cabeça inclinada, o gesto +cheio de timidez retratavam a vontade presa do enlevo sem força para +dissimular, e ainda menos para combater. Assim ficaram por minutos. Immoveis, +calados, contemplando-se, e fallando só com o coração. A felicidade era tão +grande, que não achavam termos que a pintassem. Quem encostasse<span +class="pn">{134}</span> a mão ao peito do robusto besteiro, sentindo-o pulsar +agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem escutasse o palpitar +ancioso do seio de Silvaninha não precisava perguntar-lhe se tambem amava!</p> + +<p>Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro +recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua, +sussurrando preguiçosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas relvas que +aveludavam o chão. Mais longe, a pequena levada afundava-se com estrepito pelas +fendas musgosas dos penhascos debruçados sobre o valle. Em baixo, no fim da +encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos, de pomares, e de campos viçosos, +contrastando com o arvoredo sombrio, que entristecia ao largo a paisagem. +Depois, a perder de vista, a côr arida e melancolica das charnecas desatando-se +até aos cabeços da serra, cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens. +Uma brisa louca, mas amena, doudejáva na campina, ramalhando as folhas, +brincando com os arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os +rouxinóes nas moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra +casava a voz estridula com o coaxar das rãs. As sombras, delgadas ainda, +começavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam a +pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino<span +class="pn">{135}</span> azul do firmamento e o verde fresco das arvores e +plantas.</p> + +<p>Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si +primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de travessa +ameaça e disse:</p> + +<p>—Vós aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que quereis +que digam da pobre Silvana, que não tem senão o seu nome?...</p> + +<p>A voz era queixosa, e não irada. O timbre harmonioso avivou no peito do +mancebo o ardor da paixão. Depois os olhos sorriam animados de malicia tão +innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperança, leu amor. De repente +ficou outro. Pegando-lhe na mão, e beijando-a, a voz soltou-se-lhe, e a vista, +cobrando valor na vista d'ella, tornou-se tão eloquente, tão avida de ternura, +que ella baixou outra vez as palpebras.</p> + +<p>—Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um não +podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Dás-me o sim?</p> + +<p>O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das faces +sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se de lagrimas, +lançaram sobre o rosto as sombras da mais resignada tristesa. Sem retirar, ou +entregar a mão, que o mancebo prendia nas suas, a neta de Garcia<span +class="pn">{136}</span> do Marnel, esquecido o conselho de Aldonça, respondeu +singelamente:</p> + +<p>—Tello, não vos darei já o sim; não quero arrepender-me. O filho de Ayres +Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, não deve escolher a sua +noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de Algoço. Amo! Porque hei de +negal-o? Mas pelo muito amor é que receio acceitar. O que ha de trazer em dote +a orphã sustentada pela caridade dos visinhos senão lagrimas e saudades +d'aquelle chão, aonde dorme sem vingança, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar, +o velho que duas vezes foi seu pai, e que por ella morreu de dôr? Não, Tello! +Não pode ser!</p> + +<p>Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo +admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dôr fazia +irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa a magoa +intima, por tal modo lhe realçavam a formosura, que o besteiro não sabia se era +anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil attractivos. +Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle, o homem forte, o +filho de uma raça leal e rude, como o seculo em que vivia, sentiu rebentar o +pranto, e não se envergonhou de o deixar correr.</p> + +<p>—A tua vontade, Silvana, será a minha! disse por fim. Mas por amor te +quero, e não é justo que<span class="pn">{137}</span> por amor te perca. O que +vale dizer a bocca não, se os olhos, mau pesar teu, estão dizendo sim? Dizes +que o dote que me trazes é de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas +lagrimas piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse +coração é o teu maior thesouro. Hontem não podia viver sem ti, hoje morria se +te perdesse. Silvana!... Não n'o escondas! O senhor tentou-te de amores, e +jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus será comnosco. O meu arco não erra. +A seta vae sempre aonde a mando!</p> + +<p>Não cedeu ainda a donzella, mas Tello não se enganára: o coração desmentia a +bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accêsa em pejo desappareceu como se +toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado, que no seguinte dia iria Tello +ao solar pedir licença a Sueiro Lopes. Os noivos sem ella não podiam receber-se +na igreja de Algoço, e Silvana desejava tanto que seus amores fossem +abençoados, aonde o tinham sido os de seu pai e seu avô, que o besteiro não +ousou contrarial-a. Altos juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente +dos senhores de Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria +todas as culpas da sua geração, todos os crimes da sua vida.<span +class="pn">{138}</span></p> + +<p><span class="pn">{139}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00460000000000000000">VI</a></h2> + +<p>Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro, correndo +a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos que findava á +porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha de monteiros, de +guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e folgando, em quanto os moços +de monte sustinham das tréllas as matilhas impacientes, cujos saltos e latidos +formavam condigno acompanhamento aos alaridos dos caçadores. No meio do +prestito jovial uma azemola conduzia atravessado em duas varas o corpo de um +javardo, victima enorme e cerdosa sacrificada depois de aturada<span +class="pn">{140}</span> fadiga e renhido combate, segundo attestavam os golpes, +com que suas navalhadas presas tinham descosido os mais valentes e fugosos +cães.</p> + +<p>Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso, +trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava, entre +chufas e galhofas, a oração funebre do pingue eremita, que todos haviam corrido +sem parar desde a madrugada até ao pôr do sol.</p> + +<p>D. Sueiro, que se apartára d'elles ao pé da fonte da moura, era o unico +serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda, e nem +o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu venabulo, lhe +arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a levantar. Que magoa, +ou que remorso entristecia o senhor de Algoço? Nas trevas, nas horas +atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a visão terrivel, com que na +raça de Biscaia a sombra de Diogo Lopes avisava a cabeça da familia de estar +proximo o dia dos ultimos e tardios arrependimentos? Ao pé da fonte apeiou-se, +e, com a cabeça entre as mãos, alongou a vista até aos montes fronteiros. O +olhar vago e perdido dizia que o espirito não se achava ali. De repente +rangeram e estalaram os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma +figura. Ao ruido o rico-homem levou a mão ao punho da espada, inculcando +sobresalto sem receio. O mêdo<span class="pn">{141}</span> nunca entrára +n'aquelle peito inaccessivel á piedade.</p> + +<p>—Quem és? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o robusto +e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mão, e frechas passadas no cinto, se +lhe descobria subitamente.</p> + +<p>Este não se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas +accusavam, assomou-lhe ás faces morenas um leve rubor e as pupillas negras +faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais força os copos da espada. +</p> + +<p>—Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vós buscava!</p> + +<p>A firmesa do tom e a concisão da resposta desagradaram ao cavalleiro. +Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os beiços.</p> + +<p>—O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoço, fóra do seu +castello, n'este logar deserto?</p> + +<p>A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo.</p> + +<p>—Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em vossas +terras a donzella que ha de ser minha mulher.</p> + +<p>—Ah! Só isso?! E é bonita e moça a tua noiva? Por força a conheço então. +Como se chama?</p> + +<p>Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as +furias do ciume se levantaram<span class="pn">{142}</span> no peito do mancebo. +Conteve-se, porem, e retorquiu:</p> + +<p>—A mais formosa da aldeia. É a Silvana do Marnel.</p> + +<p>—A Silvaninha? A perola de Algoço? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pões +alto o pensamento, villão. Muito alto! Manjares de senhor não se dão a servos. +</p> + +<p>Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o braço a Tello. A mão procurou +a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram no peito do +rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas disfarçou. Continuando a +pungir o mancebo com mofas, proseguiu:</p> + +<p>—Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor +cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o resgate de +um barão? Cuida o villão que eu havia de enterrar na sua posilga a roza dos +nossos sitios?</p> + +<p>—Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume.</p> + +<p>—Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o pé no estribo e sacudindo o látego +no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com mil ameaças nos +olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisavô te juro, que tantas noutes dormirás +na cisterna do meu castello, que de lá te arranquem cego e doudo!<span +class="pn">{143}</span></p> + +<p>—Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. Só Deus sabe aonde vós +dormireis hoje!</p> + +<p>O cavalleiro ja tínha cravado esporas no corsel, e começára a levantar o +galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, parou o +cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a vista sobre elle, +disse-lhe rindo affrontosamente:</p> + +<p>—Villão! Não has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer de +fios de ortigas, nascidas na sepultura do avô, duas camisas para mim, dou +licença que se chame tua mulher. É uma joia por um ceitil! uma das camisas será +o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar com ella no dia +seguinte. Até lá que não vos torne a ver a ambos!</p> + +<p>A esperança acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco, fugiu-lhe +a luz da vista, e sentiu-se tão prostrado, como se o sangue se lhe esvaisse +todo. Quiz fallar e correr, mas os pés arraigavam-se ao chão. A mão inerte não +se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi suspendido a vida. Quando volveu a si +para olhar em roda, avistou ao longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito, +e pareceu-lhe ouvir estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou +então ao ceu a vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu +a noute sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas<span +class="pn">{144}</span> arvores sem elle o sentir; e as primeiras gotas da +chuva, nuncias da tempestade, orvalharam-lhe a cabeça nua, sem o despertarem da +amargura. Ao rebombo dos trovões é que acordou, e que principiou a afastar-se +com passos vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illusões lhe sorrira +alegre, e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanças da +existencia.<span class="pn">{145}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00470000000000000000">VII</a></h2> + +<p>—O açor encontrará a aguia. Sinto-a já voar! Não chores, Silvana, serás +feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar na +aljava. Esta noite, á meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja. Ajoelhai e +rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e estão n'ella +viçosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e duas, e traz-m'as no +regaço á fonte da Moura. Vespera de S. João ha de torcer-se o fio. As duas +camisas não hão de faltar. A semana que vem será a do noivado e a do enterro. +Ouvis dobrar o sino? A aguia não tarda. Enxugai os olhos.<span +class="pn">{146}</span></p> + +<p>E a velha Aldonça, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da +feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condição, que só +daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da sepultura do avô +duas camisas.</p> + +<p>—Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando.</p> + +<p>—Por que não fugimos nós? acudiu elle a meia voz.</p> + +<p>—Por que ninguem foge á sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a mão +alva e breve de Silvana entre as suas. Não vos demoreis. Á meia noite, ao +romper da lua, todos tres na fonte da Moura!</p> + +<p>Era já escuro, e as estrellas começavam a scintillar. Suspirava a viração +por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de sombra as +sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza silvestre +entrelaçava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da egreja, entre +rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um arco no topo. Ali +repousava de setenta annos de edade e de fadigas o avô da donzella. Segundo +afirmára Aldonça, uma seára de ortigas vestia o chão. Como o pranto se corre +pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a oração sobe pura e fervorosa de seus +labios ao regaço dos anjos, que vão depor aos pés do Senhor! Mais afastado, +Tello, tambem de joelhos, orava com ardor; mas aquelle peito, menos +brando,<span class="pn">{147}</span> mistura com as preces vozes de vingança. +Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o pó dos que amára se +volvera ao pó, principiou a cumprir as ordens de Aldonça. A duas e duas foi +apanhando as ortigas. Quando acabava chispou no outeiro mais proximo a labareda +da primeira fogueira, e soou na voz de bronze do sino o primeiro repique. A lua +rompia de traz da serra, e o seu clarão branco allumiava toda a campina. Era a +hora aprazada. O mancebo deu a mão a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro +d'alma, que nenhum fallou em todo o caminho.</p> + +<p>Quando chegaram não viram senão uma serpente, fugindo por cima dos +penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha Aldonça +appareceu de repente ao pé da fonte, e acenou-lhes. Recebendo das mãos da +donzella as tres regaçadas de ortigas, banhou-as outras tantas vezes na agua +encantada, pronunciando algumas palavras a meia voz. Passados minutos tirou-as +do tanque reduzidas a feveras finas, como o fio que tece a aranha. Tres dias +decorreram. Em todos elles não cessou de girar o fuso da velha.</p> + +<p>No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear.</p> + +<p>Quando a semana pendia só de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo +pela choupana, olhou, e viu Aldonça á porta, cozendo com Silvana<span +class="pn">{148}</span> uma tela tão branca e transparente, que deslumbrava. +</p> + +<p>—Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta pressa? +</p> + +<p>E o cavalleiro não tirava a vista dos dedos afilados da donzella que voavam +sobre a costura.</p> + +<p>—Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabeça. +Aquella é a camisa do noivado, esta é a camisa do enterro. Ortigas do cemiterio +nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres dias estarão +acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o morto no caixão. +</p> + +<p>Ouvindo-a, o rico-homem mudou de côr e largou as redeas ao cavallo. A velha, +vendo-o correr, exclamou, meneando a cabeça:</p> + +<p>—Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa!<span +class="pn">{149}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00480000000000000000">VIII</a></h2> + +<p>Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se á saida +do estreito portal, e mais de um moço airoso, de rosto bronzeado, distrahe a +vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos cheios de +reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos pés, o borburinho e +os alaridos das creanças, saltando pelo adro, animam de ar festivo a scena +popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se encaminha de vagar para a sua +morada, estendendo a benção pelos aldeãos,<span class="pn">{150}</span> +Silvana, sempre pallida, ampara no braço delicado o corpo de Aldonça. Os +villãos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as mulheres +acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras, tomam-as por +intercessoras de suas petições. Encostado a uma oliveira antiga, Tello, de +braços crusados, e com o arco a tiracollo, não desprega a vista namorada da +neta de Garcia.</p> + +<p>Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as está esperando, um homem +de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos, apressando o passo, +adianta-se, e chega primeiro. É simples o seu trajo. Guarda-coz de ipre verde +desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo estofo, sem plumas, assenta com +desgarre fragueiro sobre os cabellos pretos, cujos anneis se debruçam sobre o +cabeção da golla. Era de villão o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam +condição mais nobre. Nas pupillas inquietas, e por vezes desvairadas, +retrata-se a indole ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos.</p> + +<p>As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaços a +serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas rapidas ao +semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam as feições de um +caracter afeito a dominar, de um coração ferido de golpe irreparavel, de uma +mão que no combate das paixões<span class="pn">{151}</span> nem sempre ha de +conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos.</p> + +<p>Afagando com a mão direita as compridas barbas, e concertando com a esquerda +o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que não póde contar +ainda quarenta annos, e que entrára na egreja sem nenhum dos fieis se lembrar +de o ter visto nunca, começou á saida a fallar com uns e com outros, fazendo +perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por entre o povo veiu collocar-se no +sitio, aonde o descobrimos diante de Aldonça e Silvana, tão proximo de Tello +que este não perdeu palavra do que disse. Sem saber porque, o besteiro, de +ordinario cioso e assomado, em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia +do monteiro. Parecia que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia +n'este momento a sua sorte. Era tão grande n'elle a tranquillidade de animo, +como se a noiva adorada estivesse debaixo da protecção d'aquelle que duas vezes +chamára pae. A velha Aldonça, apenas divisara o hospede, exclamou como +rejuvenescida de repente:</p> + +<p>—Filha! Não t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto. +Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder. Muita +fé em Deus e na justiça de Elrei D. Pedro.</p> + +<p>—Não é a fé que me falta, redarguiu melancholica<span +class="pn">{152}</span> a donzella, é a esperança, mãe!... Elrei está longe e +tão alto, que não podem vencer de certo metade do caminho as queixas da orphã. +</p> + +<p>—Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a +formosura de Silvana. Pegando-lhe na mão, ajuntou:</p> + +<p>—El-rei D. Pedro, filha, vê e ouve de longe. Conta-me tuas magoas.</p> + +<p>Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava, sentiu +renascer a esperança, e insensivelmente socegou do maior cuidado. Ora pallida, +ora córada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte dolorosa do avô, as +lastimas da sua infancia, e os amores infames que a perseguiam. As palavras +pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que vingativa, procurava atenuar as +crueldades do senhor. Quando terminou, o desconhecido, sorrindo-se, e +soltando-lhe a mão, disse:</p> + +<p>—Descansai! Está perto El-rei D. Pedro. É como se vos ouvisse. Mandai a +Sueiro Lopes a camisa da mortalha, não a pediu de balde! Se o cavalleiro fôr +desleal, ou se vos quizer tirar por força, enviai-me este signal. Deus e El-rei +serão comvosco!</p> + +<p>Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello, +accrescentava:</p> + +<p>—É o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... Não córeis, Silvana! +Se o besteiro fôr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle em Miranda.<span +class="pn">{153}</span> Adeus! Não vos esqueça!... Ao primeiro perigo, um +recado e o signal. O mais fica para mim.</p> + +<p>Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos pés +da noiva, que Aldonça animava, annunciando-lhe proximo o termo de seus +pezares.<span class="pn">{154}</span></p> + +<p><span class="pn">{155}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00490000000000000000">IX</a></h2> + +<p>Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do +castello de Algoço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas +escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes; alma +negra do senhor, aonde alcançára com o braço deixára sempre vestigios +dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o villico (era o +seu titulo n'aquelle tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre +dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e +continuou o caminho; mas á porta despediram-o asperamente, respondendo<span +class="pn">{156}</span> que Sua Mercê repousava, e que ninguem o despertaria +para dar audiencia a um villão. A principio Tello pôde sopear a ira, mas a +pouco e pouco a altercação irritou-o, e levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de +repente á porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e +perguntou:</p> + +<p>—A que vens aqui?</p> + +<p>—Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu elle +friamente.</p> + +<p>O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe +os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que vira na choupana +de Aldonça, e tremeu pela primeira vez da sua vida. Depressa se recobrou e +medindo o mancebo com indizivel escarneo, replicou:</p> + +<p>—Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da sepultura +de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de +cavalleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?...</p> + +<p>—Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o panno. +</p> + +<p>Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo +de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem mostrava não +ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro tremia. Sobre o peito, +em lettras côr de sangue, viu as iniciaes de seu nome e pondo<span +class="pn">{157}</span> o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das +tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito.</p> + +<p>—Bem! exclamou. Silvana é tua se a achares. Quanto á mortalha.... Veremos +esta noite quem a veste!</p> + +<p>Não esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho da +choupana de Aldonça. Um presentimento vago advertia-o de perigo incerto. A +tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a bôa nova, que levava, devia +alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado. Rugindo no pinhal o +vento arrancava por entre as ramas das arvores gemidos lugubres. No céu +apagavam-se as estrellas umas apóz outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e +a lua encobria-se de todo por cima do ultimo outeiro. Sem saber porque, +sentiu-se Tello desalentado. Elle, o melhor caminheiro dos arredores, o +besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os +passos e tremendo. Quando chegou á choupana, achou a casa êrma e a porta +arrombada, e acabou de crer que os pressagios não mentem. Bastava olhar para +dentro para adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e +luz mortiça deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as +arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um +feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar<span class="pn">{158}</span> as +ideias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrádo as forças. Nem o animo, nem a +razão se prestavam a ajudal-o.</p> + +<p>Fôra rapto? Fôra vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia! +Saltaram-lhe então as lagrimas, e a dôr foi tão penetrante, que a não se +encostar caíra desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes, e +percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do Castello, e +áquella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para ella eram as portas +do sepulchro. <em>É tua se a achares!</em> dissera o roubador. A quem iria +Tello pedir justiça? Luctando com a agonia sentiu que ia enlouquecer. Mas, +louco, o que restava á donzella senão a morte depois da infamia? No auge da +desesperação, erguendo as mãos, bradou atribulado: «Senhor! A vingança é mais +vossa, do que minha! Não embainheis a espada da justiça!»</p> + +<p>No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no hombro. +Olhou. Viu Aldonça. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito que iam +soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a um logar +deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco de uma arvore, +disse-lhe rapidamente:</p> + +<p>—Monta!</p> + +<p>O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha +ajuntou:<span class="pn">{159}</span></p> + +<p>—O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva. Corre, +que por tua felicidade corres, e não pares senão na villa de Miranda. Busca os +Paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o +senhor. Já o viste. É o monteiro d'esta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o +succedido, e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos +outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado.</p> + +<p>O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu direito +á villa.<span class="pn">{160}</span></p> + +<p><span class="pn">{161}</span></p> + +<h2><a name="SECTION004100000000000000000">X</a></h2> + +<p>Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os +penedos do seu leito! Que trovões rebramam as aguas despenhadas em cascatas +contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a noute se cobre +de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde +o estampido longinquo da tempestade. Os relampagos fuzilam sobre as eminencias. +</p> + +<p>Lá em cima, nos penhascos fragosos, que villa é aquella, cujas torres negras +estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a margem do<span +class="pn">{162}</span> rio, Tello Vasques não sente fadiga; o brioso corsel +devora a distancia. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo +atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pára no terreiro, defronte +dos Paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e +dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detel-o; mas sem +voltar a cabeça, e continuando, responde: busco o senhor! Ninguem o suspende. +De corredor em corredor, de aposento em aposento chega á sala de armas. Entre +os cavalleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo +guarda-coz ainda.</p> + +<p>Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de armas +brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos +enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados sustentam os fechos da abobada. O +monteiro, apercebendo Tello, encaminhou-se para elle. O mancebo vinha tão +soffocado, que pôde dobrar apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi +preciso que elle sorrisse para o besteiro narrar o successo, que o trazia +áquella hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com a vista inflammada +bradou:</p> + +<p>—Levai-me aos pés de El-rei D. Pedro. Dizem que não conhece grandes, nem +pequenos. A donzella, que roubaram, é pura e santa como a mais pura e nobre de +vossas filhas. Não deixeis sem castigo<span class="pn">{163}</span> o +rico-homem por ella ter nascido no berço de um villão!</p> + +<p>Á medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de +aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e jovial, +empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo +até nos que se achavam distantes. Quando Tello poz termo a suas queixas, e +levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protector era +terrivel. Ensanguentados e delirantes mais se assimilhavam ás pupillas +encandeadas do tigre, do que a olhar humano. A voz cheia, mas presa, +gaguejando, fallava tão convulsa, que pouco se entendia. Adiantando-se, o +desconhecido clamou em grandes brados:</p> + +<p>—Lourenço Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas +filhas!</p> + +<p>O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonsalves +era o corregedor da côrte. Ninguem ousaria chamal-o assim senão el-rei. Tello +prostrou-se cheio de esperança.</p> + +<p>—Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado á porta! A minha +capellina de aço! Gonsalo Vasques de Goes, escrivão da Puridade! Chamae os +desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentença. Por alma de Ignez +de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de<span +class="pn">{164}</span> nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino, +e mais uma justiça de minhas mãos no livro de suas chronicas!</p> + +<p>Fallando assim enlaçava a capellina, calçava as luvas de gamo, e com o +açoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.</p> + +<p>O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns +apoz outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atraz do cavallo o +proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de Algoço. Por cima +d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes. A procella abria os +ceus em clarões lividos, desarraigando as arvores annosas. Quando D. Pedro +assomava diante da porta do castello, um vulto surgiu, que tomou-lhe as redeas, +convidando-o a apeiar-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça via +as frestas da torre illuminadas. O vulto travou-lhe do braço, e disse:</p> + +<p>—É ali!</p> + +<p>—Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiança.</p> + +<p>Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu á chave e ao impulso.</p> + +<p>—Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz.</p> + +<p>Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro +subiu. No topo da escada<span class="pn">{165}</span> de caracol, a scena que +se lhe representou excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar +do nome Justiceiro se perdoasse aquelle crime.</p> + +<p>Era espaçoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto +mergulhava-se em meia escuridão. No centro da sala, em um leito, com as mãos +ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a bocca até os ais lhe +suffocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados de lagrimas pediam a Deus a +morte, remedio extremo da infamia. Sueiro Lopes, defronte, sorria-se medindo +com a vista a queda lenta da areia d'uma ampulheta. A seu lado o villico +silencioso corria os dados sobre a mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com +as ortigas do tumulo, estava nas mãos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas +como punhaes, atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos +senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos.</p> + +<p>—Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo por +um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste não. A tua prenda foi esta +mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos porque +chamavas! Brada pelo besteiro villão, que preferiste ao rico-homem! Grita por +el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço as portas chapeadas d'este +castello ainda são<span class="pn">{166}</span> mais fortes. Em esta areia, que +está por instantes, cahindo toda...</p> + +<p>Faltou-lhe a voz. A mão erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo +dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um clarão +terrivel. A pesada acha reluzia em suas mãos.</p> + +<p>—Traidor! bradou o principe. Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe +todas as portas. Vais ver!... Villão! ajuntou fallando ao villico. Solta as +mãos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta bem os +grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na +presença de Deus!</p> + +<p>O orgulho indomito do cavalleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que +pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu:</p> + +<p>—Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro +Gonsalves? O rei carrasco, falso á sua alma e á alma de seu pae? Imaginas que +farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e +á má fé chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os laços da captiva. No alto e no +baixo, irado e pagado, não entrego o castello senão a Deus. A mim, homens +d'armas!</p> + +<p>—Deus é justo! clamou el-rei, cuja furia não conhecia limites. O matador de +tres mulheres levanta-se<span class="pn">{167}</span> contra o seu rei. O +perseguidor cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como +villão ás mãos dos teus villãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha +acha. Villãos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. Sou D. +Pedro! Sou o rei! Esse que ahi está, rebelde e traidor, prendei-m'o em quanto +os meus não chegam!</p> + +<p>A presença e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens +d'armas temiam, mas não amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de +curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou á mercê de el-rei.</p> + +<p>—Passae um laço na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle subir, +e cingi-lhe o nó na garganta! proseguiu o soberano indignado.</p> + +<p>—Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, caírá sobre +vós e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-hão contas d'ella, verdugo! gritou +o cavalleiro estorcendo-se.</p> + +<p>—A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas não é +cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro.</p> + +<p>Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico +enrolava-lhe o laço. Commovida e tremula, Silvana lançou-se supplicante aos pés +do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:<span +class="pn">{168}</span></p> + +<p>—Pedes perdão a Deus e ao teu rei?</p> + +<p>—Não!</p> + +<p>O pé do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras do +cavalleiro.<span class="pn">{169}</span></p> + +<h2><a name="SECTION004110000000000000000">XI</a></h2> + +<p>A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do castello, +annunciou á aldeia alvoroçada a vinda do monarcha. Tello Vasques apparecia á +porta quando Sueiro Lopes expirava.</p> + +<p>—Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro. +Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A justiça +do rei ainda andou mais veloz do que o amor!</p> + +<p>Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na capella, e +os noivos recebiam a benção nupcial, tendo el-rei D. Pedro por seu +padrinho.<span class="pn">{170}</span></p> + +<p>Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não esqueceu nunca foi a +justiça que fizera em Algoço a severidade do monarcha.</p> + +<p>O castello devolveu-se á corôa, e parece que fôra doado depois ao +primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade +ou fabula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavalleiro um +villão, como de justiçar como villão um cavalleiro.<span +class="pn">{171}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00500000000000000000">ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM +SALVATERRA</a></h1> + +<h2><a name="SECTION00510000000000000000">I</a></h2> + +<p>O Senhor D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias. A +verdade é que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em Lisboa +estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O proloquio fundava-se +na habilidade mechanica do monarcha como torneiro, e no caracter dominador do +marquez como ministro.</p> + +<p>Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de flôres, os +bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e a brisa doudejava +indiscreta arregaçando o lenço á donzella que passava, ou roubando um beijo á +rosa<span class="pn">{172}</span> perfumada. Tudo eram alegrias e canticos... +os rouxinoes nas moutas, o coração nos amores, e a naturesa nos sorrisos ao sol +esplendido que a dourava.</p> + +<p>Uma tourada real chamára a côrte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam +n'estas occasiões menos opprimidos. Não os assombrava tão de perto a privança +do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o amphiteatro +pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na bocca de todos. Por +cumulo de venturas o marquez de Pombal ficára em Lisboa, retido pelo conflicto +com o embaixador de Hespanha.</p> + +<p>Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o +enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em alta +voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio, crucificando-o outros +sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e os fidalgos puritanos eram +pelo hespanhol, e pediam a Deus que os rebates da guerra proxima despenhassem o +plebeu nobilitado. Os magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o +marquez e respondiam com meios sorrisos ás fogosas jaculatorias dos zelosos do +throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa ás +concessões exigidas imperiosamente pelo governo castelhano.</p> + +<p>—Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito<span class="pn">{173}</span> +de sessenta mil homens entrará em Portugal e fará...</p> + +<p>—O quê? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta assestada e +no tom mais indifferente.</p> + +<p>—Fará entender a rasão e a justiça de el-rei, meu amo, a Sua Magestade e a +vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo o ministro +fulminado.</p> + +<p>Sebastião José de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira, e +cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente:</p> + +<p>—Sessenta mil homens muita gente é para casa tão pequena, mas, querendo +Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa hospedal-a. +Mais pequena era Aljubarrota e lá couberam os que D. João de Castella trouxe. +Vossa excellencia póde responder isto ao seu governo.</p> + +<p>E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou:</p> + +<p>—Bem sabe vossa excellencia que póde tanto cada um em sua casa, que mesmo +depois de morto são precisos quatro homens para o tirarem!</p> + +<p>O embaixador saíu jurando por <em>Dios y la Virgen Santisima</em> e o +marquez preparou-se para a guerra. O caso é como dizia o nosso Zeferino na +<em>Sobrinha do Marquez</em>, que Sebastião José de Carvalho foi um grande +ministro e que fez muito pela nação.<span class="pn">{174}</span> Hoje ha menos +quem responda assim á lettra ás ameaças dos estrangeiros. Berra-se muito, +dorme-se a somno solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello +de madrugada e está salva a patria!</p> + +<p>O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes medias. +Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a industria nunca acabou +de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos maus governos que succederam ao +seu, e tambem do povo que não quiz trabalhar deveras... Mas vamos aos touros +reaes. D'esses é que o ministro não gostava nada. Queria-os ao arado e não á +farpa, e parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o +Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem, +tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e á nação.</p> + +<p>Mas el-rei D. José, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros não +admittia reflexões. N'isto era rei a valer e Bragança legitimo. Os fidalgos +sabiam-o e por isso disfructavam dôces prazeres—a satisfação do gosto +nacional, e a contradicção da vontade do ministro. Desatendel-a sem perigo e +pela mão do soberano era para elles um deleite e um triumpho.</p> + +<p>N'estas funcções não vigorava a severidade das ultimas pragmaticas. Outro +motivo de jubilo. Quem<span class="pn">{175}</span> queria podia arruinar-se em +luxuosos vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os +veludos e sedas de fóra, talhados á franceza, resplandeciam constellados de +perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais vistosas côres +desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas cabelleiras. As damas +ostentavam as graças de seus donaires e tufados, e emoldurando o bello oval dos +rostos nos penteados caprichosos sorriam-se para os gentis campeadores, e seus +olhos cheios de luz e de promessas estimulavam até os timidos.</p> + +<p>Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou el-rei, e +logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se ondear um oceano +de cabeças e de plumas. Na praça resoam brava alegria as trombetas, as +charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros, fidalgos distinctos todos, +com o conto das lanças nos estribos e os brazões bordados no veludo das +gualdrapas dos cavallos. As plumas dos chapeus debruçam-se em matisados +cocares, e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os +capinhas e forcados vestem com garbo á castelhana antiga. No semblante de todos +brilha o ardor e o enthusiasmo.</p> + +<p>O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O seu +trajo, cortado á moda da<span class="pn">{176}</span> côrte de Luiz XV, de +veludo preto, fazia realçar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete +sobresaiam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas +bordadas deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O +conde não excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os +seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais, porém +animadas de grande expressão, e o fulgor das pupillas negras fuzilava tão vivo +e por vezes tão recobrado, que se tornava irresistivel. Filho do marquez de +Marialva, e discipulo querido de seu pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e +talvez da Europa, a cavallo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam +os olhos. Elle e o corsel, como que ajustados em uma só peça, realisavam a +imagem do centauro antigo.</p> + +<p>A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corsel, +arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta, obrigando o +cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse +torvada no lenço as rosas vivissimas do rosto, que de certo descobririam o +melindroso segredo da sua alma, se em momentos rapidos como o faiscar do +relampago podesse alguem adivinhar o que só dois sabiam.</p> + +<p>El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e disse +voltando-se:<span class="pn">{177}</span></p> + +<p>—Por que virá o conde quasi de luto á festa?</p> + +<p>Principiou o combate.</p> + +<p>Não é proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem +assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de notavel. +Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se corriam +desembolados, á hespanhola. Nada diminuia, portanto, as probabilidades do +perigo e a poesia da lucta.</p> + +<p>Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro +preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e +reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de grande ligeireza, +e movimentos rapidos e bruscos, signal de força prodigiosa. Apenas tocára o +centro da praça, estacou como deslumbrado, sacudiu a fronte e escarvando a +terra impaciente, soltou um mugido feroz no meio do silencio, que succedera ás +palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos +as trincheiras, fugiam á velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres +cavallos expirantes denunciavam a sua furia.</p> + +<p>Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa. O +touro pisava a arena ameaçador e parecia desafiar em vão um contendor. De +repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da féra e a +hastea flexivel do rojão<span class="pn">{178}</span> ranger e estalar, +embebendo o ferro no pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma +acclamação immensa do amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas +e charamellas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a +galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o +cavallo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, +curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a +carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo depois com o +touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o estreitando em volta +d'elle os circulos até chegar quasi a pôr-lhe a mão na anca.</p> + +<p>O mancebo despresava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que seus +olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com a ponta +da lança. Precipitou-se então o animal com furia cega e irresistivel. O cavallo +baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na perna, não pôde levantar-se. +Voltando sobre elle o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a +quéda nas armas, e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o +peito, conheceu que o seu inimigo era um cadaver.</p> + +<p>Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja consummada +a tragedia e não havia expirado ainda o echo dos ultimos aplausos.<span +class="pn">{179}</span></p> + +<p>De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias, emudeceu o +circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fóra dos camarotes, fitavam a praça +sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como para seguir a alma, que +para lá voava envolta em sangue.</p> + +<p>Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o chão, um +gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadaver com uma lagrima +de fogo. Uma dama desmaiada nos braços de outras senhoras soltára aquelle grito +estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar no peito.</p> + +<p>El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado.</p> + +<p>A côrte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dôr.</p> + +<p>Mas o drama ainda não tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade iam +cortar de novas magoas o peito a todos.</p> + +<p>O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na gentileza +do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando radiosos a cada sorte +feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se de uma nuvem o semblante do +ancião. Quando o conde dos Arcos sahiu a farpeal-o, as feições do pae +contrairam-se e a sua vista não se despregou mais da arriscada lucta.<span +class="pn">{180}</span></p> + +<p>De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos, apertando +depois as mãos na cabeça. Os seus receios haviam-se realisado. Cavallo e +cavalleiro rolavam na arena, e a esperança pendia de um fio tenue! Cortou-lh'o +rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho, luz da sua alma e ufania de +suas cãs, não proferiu uma palavra, não derramou uma lagrima; mas os joelhos +fugiam-lhe tremulos, e a elevada estatura inclinou-se vergando ao peso da magua +excruciante.</p> + +<p>Volveu, porém, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto +tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e hirtos +revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas da juba de um +leão irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo, mas terrivel, o +sombrio clarão de uma colera, em que todas as ancias insofridas da vingança se +accumulavam.</p> + +<p>Em um impeto a presença reassumiu as proporções magestosas e erectas como se +lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando por acto +instinctivo a mão ao lado, para arrancar da espada, meneou tristemente a +cabeça. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho n'este dia que se +convertera para a sua casa em dia de eterno luto!</p> + +<p>Sem querer ouvir nada, desceu os degraus<span class="pn">{181}</span> +amphiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta annos lhe não +branqueassem a cabeça.</p> + +<p>—Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas ordens! +disse um camarista detendo-o pelo braço.</p> + +<p>O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no +interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado d'um +pensamento immutavel. Desviando depois a mão, que o suspendia, baixou mais dois +degraus.</p> + +<p>—Sua magestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não quer +perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece ás ordens de el-rei?!... +</p> + +<p>—El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancião em voz aspera, +mas sumida. Aquelle é o corpo de meu filho! e apontava para o cadaver. «Está +ali! Sua magestade póde tudo menos desarmar o braço do pae, menos deshonrar os +cabellos brancos do criado que o serve ha tantos annos. Deixe-me passar, e diga +isto.»</p> + +<p>D. José vira o marquez levantar-se e percebera a sua resolução. Amava no +estribeiro-mór as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da sua +bocca não ouvira senão a verdade, e a idéa de o perder assim era-lhe +insupportavel. Apenas lhe constou que elle não accedia á sua vontade, fez-se +branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado<span class="pn">{182}</span> +para fóra da tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe. +</p> + +<p>A esse tempo já o marquez pisava a praça, firme e intrepido como os antigos +romanos diante da morte. Dentro do peito o seu coração chorava, mas os olhos +aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por elles. Primeiro do +que tudo queria a vingança.</p> + +<p>Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de pé. Os semblantes +consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa contensão +do espirito, em que um sentido parece concentrar todos.</p> + +<p>Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, não tem egual. O +fogo, que lhe presta vida e forças, é a desesperação. Deixae-o ir, e de +joelhos! Saudae a magestade do infortunio!</p> + +<p>O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo na +fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão a +espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois +a capa no braço e cobriu-se. Decorridos instantes estava no meio da praça e +devorava o touro com a vista chammejante, provocando-o para o combate.</p> + +<p>Cortado de commoções tão crueis, não lhe tremia o braço, e os pés +arraigavam-se na arena como se um<span class="pn">{183}</span> poder occulto e +superior lh'os tivesse ligado repentinamente á terra.</p> + +<p>Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e tão profundo, que poderiam +ouvir-se até as pulsações do coração do marquez se n'aquella alma de bronze o +coração valesse mais do que a vontade.</p> + +<p>O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e irado, +mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada.</p> + +<p>Os ilhaes da féra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as pernas +vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansaço. O ancião zomba da sua +furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os golpes sem recuar um +passo.</p> + +<p>O combate demora-se.</p> + +<p>A vida dos espectadores resume-se nos olhos.</p> + +<p>Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça.</p> + +<p>A immensidade da catastrophe immobilisa todos.</p> + +<p>De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho +aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos ajoelharam para +resarem por alma do ultimo marquez de Marialva.</p> + +<p>A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a +pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada +fuzilar nos ares e logo apóz sumir-se até aos copos entre a nuca do animal. Um +bramido, que atroou<span class="pn">{184}</span> o circo, e o baque do corpo +agigantado na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama.</p> + +<p>Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o +joelho, com a força do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver. Sem +fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraçar-se com o corpo do filho, +banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos.</p> + +<p>O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão da morte, veiu apalpar o sitio +aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem vida ao lado +do cavallo do conde dos Arcos.</p> + +<p>N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram. +El-rei, de pé e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal, coberto +de pó e com signaes de ter viajado depressa.</p> + +<p>Sebastião José de Carvalho voltava de proposito as costas á praça fallando +com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo.</p> + +<p>—Temos guerra com a Hespanha, senhor. É inevitavel. Vossa magestade não +póde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se +continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal á vela.</p> + +<p>—Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os touros +reaes emquanto eu reinar.</p> + +<p>—Assim o espero da sabedoria de vossa magestade.<span +class="pn">{185}</span> Não ha tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um +homem por um touro. El-rei consente que vá em seu nome consolar o marquez de +Marialva?</p> + +<p>—Vá! É pae. Sabe o que ha de dizer-lhe...</p> + +<p>—O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como está o conde. +</p> + +<p>El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praça em toda a +magestade de sua elevada estatura, levantou nos braços o velho fidalgo, +dizendo-lhe com voz meiga e triste:</p> + +<p>—Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia são para darem +exemplos de grandeza d'alma e não para os receberem. Tinha um filho e Deus +levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e el-rei, meu +amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa excellencia.</p> + +<p>E travando-lhe da mão, levou-o quasi nos braços até o metterem na carruagem. +</p> + +<p>D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca mais +se picaram touros reaes em Salvaterra.<span class="pn">{186}</span></p> + + +<p> </p> + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot326" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> A prematura morte do +illustre auctor d'este livro não lhe permittiu concluir este admiravel +romancinho. As paginas, porém, escriptas representam um tal primor de +litteratura, que fôra falta imperdoavel condemnal-as á obscuridade. Os amadores +de boas letras de certo nos agradecerão a resolução tomada de não os privarmos +de alguns momentos de não muito vulgar leitura.</p> + +<p style="text-align:right;">E<small>DITOR</small></p> + +<p><a name="foot327" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> O castello de +Almourol já figurava na epocha da dominação dos romanos. D. Gualdim restaurou-o +das ruinas e povoou a terra por carta de foral.</p> + +<p style="text-align:right;">E<small>LUCIDARIO.</small> Tom. II p. 346—374.</p> + +<p><a name="foot323" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> A balça ou bandeira +do Templo era bipartida de branco e preto com a cruz vermelha no centro e a +lenda: <em>non nobis, sed nomini tuo da gloriam</em>.</p> + +<p><a name="foot178" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> Concordo. Puzeste o +dedo na difficuldade, menino.</p> +</div> + +<p> </p> +<p><span class="pn">{187}<br>{188}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align: center;"> +<p>DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS</p> + +<p>Por L. A. REBELLO DA SILVA</p> + +<p>Remette-se <small>FRANCO DE PORTE</small> para a provincia.</p> + +<p>Correspondencia a Mattos Moreira & C.ª. LIVRARIA EDITORA. Praça de D. +Pedro, 68, Lisboa</p> + +<p>PREÇO 600 RÉIS</p> + +<p>LISBOA</p> + +<p>TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C.ª</p> + +<p>67, Praça de D. Pedro, 67</p> + +<p>1873</p> +</div> + +<div>*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 30359 ***</div> +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos e Lendas + +Author: Lus Augusto Rebelo da Silva + +Release Date: October 29, 2009 [EBook #30359] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-15 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + +CONTOS E LENDAS + + + + +REBELLO DA SILVA + + +CONTOS + +E + +LENDAS + + +Introduco--A torre de Cain--O castello de Almourol +A camisa do noivado +A ultima corrida de touros em Salvaterra + + + + +LISBOA +LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP. +67--Praa de D. Pedro--67 +1873 + + + + +DECLARAO + + +_A propriedade d'esta edio pertence a Henrique de Araujo Tavares, +subdito brasileiro._ + + + + +LISBOA +LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP. +67--Praa de D. Pedro--67 +1873 + + + + +INTRODUCO + + Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies. + + Job cap. XXIX v. 18 + + +As pequenas composies, que hoje principimos a publicar, so de um +homem, que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que +faz de ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um +Deus de paz, assentou-se aos ps da cruz e d'ali viu aproximar o inverno +da velhice, com a mesma serenidade com que tinha visto passar as +illuses da juventude, e com que havia atravessado os perigos da edade +viril. Satisfeito com a sua pobreza, no invejava (se que invejou +alguma cousa!) seno a unco apostolica e a eloquencia persuasiva dos +primeiros confessores da f nas grandes epochas da regenerao moral do +mundo. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da +liberdade estava a soar, reclinou a cabea para acordar sem dr na +mano do jubilo, patria suspirada de suas mais doces esperanas, unica +impaciencia de uma alma, que longe da morada celeste se entristecia +captiva. + +A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, no +aspirava a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos +mundanos. Se alguma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu +queixas que a sua bocca se no abrisse para as suavisar, nem viu +lagrimas, que a sua mo as no enxugasse logo. Por isso em muitas +occasies, elle, o ancio experimentado, revellava a simplicidade da +pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o +advertissem, a sua caridade no se cansava, e embora faltasse a si, +nunca faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a +illuso, sorria-se, e respondia: Louvado seja Deus! Ainda bem que at +me deu para esses! Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de +esturro, e ia catar, ou alporcar os craveiros, at o relogio do +estomago, unico relogio que havia em casa, o avisar de que eram horas da +refeio. Vinha ento recolhendo-se de vagar, alargava o passeio pela +cosinha, rondando o almoo ou o jantar, no sem se arriscar a alguma +jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria, que tinha a seu cargo +a economia domestica e o baixo e mixto imperio da dispensa e da +capoeira. + +A ultima doena do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo servio +d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de +immensa cerrao, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio +e agudo, metteu-se meia noute ao caminho da serra, para levar as +consolaes da Egreja a uma de suas ovelhas, que agonisava em +desabrigada choupana. volta o corpo tremia sacudido por uma seso de +febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a face de um moribundo. +Deitou-se para no se tornar a levantar. + +Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abenoou +a enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu +para sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi +preciso que os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensao nunca +houve funeral to rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares +da freguezia e dos arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do +presbyterio, o chro de toda a aldeia honrou aquellas cinzas to amadas. +Com razo! No era o velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? +Em vida constituira os pobres seus herdeiros, por isso no deixava de +seu mais do que a sobrepeliz e a batina remendada, em que o +amortalharam, e o crucifixo de marfim, que unira ao corao na +derradeira despedida. + +O premio no foi s a cora de gloria!... Por mais desvairada, ou +corrompida, que uma gerao corra ao precipicio, os exemplos salutares +sempre se lhe gravam na lembrana, e a rudeza dos camponezes, apezar dos +vicios esquecidos nos idilios, no usualmente a que resiste mais +proveitosa lio das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. +A ama, qual o Vigario legra smente a memoria de suas virtudes, +encontrou logo a hospitalidade, affectuosa, no de um, mas de muitos +habitantes, que se lhe offereceram para acolherem sua velhice. O co do +Pastor, companheiro constante de tantos dias de fadiga, tambem achou +quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia +saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos livros +da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como +reliquias, repartiram-se sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, +depois de largos annos, o tempo, que tudo gasta, no amorteceu ainda a +recordao do sacerdote exemplar, cujos ossos repousam sombra dos +cyprestes plantados pelas suas mos no cemiterio da aldeia. + +Este foi o homem e o ecclesiastico venerando. + +Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, +rarissimas pessoas dariam noticia. Fugia da fama que do as lettras, com +um cuidado egual pelo menos quelle, com que se furtava envergonhado ao +prego da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal receava ser +visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna no +se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha pouco +vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigaes lhe +concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordaes +do passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em +algumas scenas soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da +mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a +chuva, chapinhando, lhe fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas +paginas luz do ponderoso candieiro de lato amarello de tres bicos, +talvez o traste mais luxuoso de toda a sua mobilia. Assim nasceram em um +recanto obscuro da aldeia estes _Contos e Lendas_, escriptos sem emendas +e com admiravel rapidez, em lettra grada, direita, e garrafal, para +regosijo dos compositores, que cegam a miudo os negalhos de missanga de +certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes Deus no castigue em +desaggravo de suas victimas. + +Se o padre Vigario vivesse, ainda no soltava seguramente da gaveta os +papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas +instancias para m'os confiar. Poucos mezes antes da sua morte que +alcancei licena para fazer d'elles o uso que julgasse mais opportuno, +com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse porque dizia +elle, no so cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o +tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou +examinar a sua consciencia. Mas no sei como isto ; assim que me sento +diante da mesa e pego da penna, no posso valer-lhe, e apesar de todos +os protestos, entram commigo as malditas historias, e no ha +resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam bruxarias. + +A bruxaria era o que hoje se chama a vocao! A ss commigo perdia de +vista as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar +pelas vises do mundo phantastico, aonde antes d'elle j se entranharam +muitas outras que a admirao sada como principes da intelligencia. +Vingava-se porem d'este mu sestro (era a sua phrase) pondo de lado as +escriptas frivolas apenas as acabava e nunca mais fallando d'ellas. +Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este desprezo tratava a +inspirao!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno ao antigo +mao. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois d'este +e dos outros at ao inverno seguinte, em que voltava s suas historias +com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos seus segredos, a qual +representava nos seres litterarios do presbyterio o papel, que a +tradio attribue famosa ama de Molire. Em lisa f temia ella +devras, que o demonio perdesse um dia a paciencia fora de +esbofeteado, e de escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se +desforrasse torcendo o pescoo s gallinhas e frangos, ou chupando o +sangue aos coelhos, transformado em raposa ou em ginete. Nunca acordava, +que no esperasse encontrar a capoeira vasia! Se bom estar bem com +Deus, dizia, no mu estar em paz com o demonio. A casa do presbyterio +no era grande, nem espaosa, mas sorria de longe vista caiada por +fra e rodeada de canteiros de flres. Vestia-se de um tal ar de festa, +que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia a +hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os +braos abertos a quantos lhe batiam porta. Situada na cora de um +outeirinho, alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos +troncos lisos e direitos o vento meneava graciosamente. O pateo +ajardinado, cercado de alegretes, era todo vio e frescura, e tres cepas +enroscadas e collossaes, cobriam com a sombra de seus pampanos as +parreiras, aonde amadureciam na estao os mais formosos cachos de +moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha morada, penduravam-se +as vinhas pelas encostas das collinas at s margens de um ribeiro, +toldado de salgueiros e chores que se torciam para beijarem a agua. Por +entre as vinhas apparecia em malhas o verde mais fechado das hortas +mettidas entre vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava a +levada correndo pelas regueiras. Os pomares, copando-se, encantavam de +espao em espao os olhos offerecendo-lhes bosques fechados, e +embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos outeiros, +que ondeavam desde a planicie at s montanhas torreadas no extremo +horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de +socalco em socalco at cortina de pinheiros, cujas cabeas, de um +verde triste, a virao balouava l em cima meneando-as entre mormurios +ao cair da tarde. + +A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi +adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com +estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles +pampanos cingidos de arvoredos, aquelles valles viosos de hortas e +pomares; os variados tons que zebravam as encostas dos montes e +collinas, desde a esmeralda viva dos prados at ao louro cendrado das +paveias; os rosmaninhos e as boninas esmaltando as veigas; o rio +precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e limpido e depois +esperguiando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de luz dourada +todo o quadro, de noute o claro da lua tocando-o de meiga melancolia, +compunham um espectaculo de tanto enlevo que a vista fugia com a vontade +e com o corao para aquelles casaes debruados das collinas fazendo +nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vr romper o luar +por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos +primeiros raios brancos do alvor matutino. + +Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chamins +expelliam o fumo em penachos caprichosos; os cepos estalvam no lume; e +as creanas, como enxame bulioso, brincavam defronte das portas. As +mes cosinhavam a ceia, em quanto os velhos e os mancebos descansando do +trabalho, aguardavam encostados, ou assentados, a hora proxima da +refeio e do repouso. + +Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pr do sol nas +aldeias! N'esta occasio, em que a fadiga do corpo como que faz mais +docil o espirito, que o padre Vigario, desembocava de uma das +azinhagas com o seu Horacio, ou o seu Salustio debaixo do brao, e vinha +conversar o seu pedao com os ancios da terra, para saber as novidades, +e espreitar as rixas e discordias, afim de as compr. Correndo a mo +pela cabea das creanas, ralhando com umas, afagando outras, +informava-se de tudo, sanava as malquerenas, e conseguia pelo respeito +de seus annos e qualidades, que os moradores da parochia formassem uma +s familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, estes, mal o viam, +voavam em bandos a agarrar-se-lhe loba e s mos, por entre vozes e +saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No vero, nos +dias de maior calor, era sempre certo o prior, tardinha, debaixo da +parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de +prata, que lhe escorregavam at ponta do nariz. Lia e passeiava. De +tres, ou de quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga +e sorvia com delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a +vr se alguma flr carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava +punha na cabea o venerando tricornio, pegava da bengala de canna da +India e casto de prata, e sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase +modesta, empregada por elle para designar as suas marchas foradas de +legua, legua e meia, e s vezes duas leguas por montes e quebradas. + +Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos +homens vigorosos, na flr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo +largo e egual. Abordoando-se bengala por costume e no por +necessidade, despejava caminho como andarilho mais valente. De estatura +elevada, secca, mas encorpada, carregava sem esforo com o peso de uma +velhice verde e alegre. Nos olhos cinzentos e vivos brilhava um toque de +finura risonha, e a bocca no pequena, mas engraada, animava o rosto e +dava-lhe expresso agradavel, avivada de constante jovialidade. A +brandura do animo correspondia s promessas da physionomia, e o tracto +intimo denunciava as prendas d'aquelle caracter, honrado, severo s +comsigo, inflexivel e incapaz de se torcer em pontos de consciencia ou +de melindre. Na convivencia com o padre Vigario, aprendi mais do que me +ensinariam muitos annos de leitura. Convalescente e magoado, devi-lhe a +saude do corpo, a saude e o conforto da alma. + +Este velho desterrado por gosto e eleio sua em um canto do mundo, +n'uma aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos +que se pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava +toda a sua philosophia:--paciencia e amor. Com a primeira supportava os +trabalhos e os revezes sem desmentir a serenidade da alma; graas ao +segundo, o corao, purificado pelos annos, abria-se a todos os +sentimentos nobres, e palpitava com orgulho memorando as glorias da +patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava a dr das desgraas +presentes, com as esperanas de melhor porvir, to crente e enthusiasta, +como se acabasse de entrar na epocha das illuses. Entendia e applicava +o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraando como filhos e +irmos todos os afflictos e necessitados; e pelo amor, finalmente, no +perdoava mas agradecia as offensas, as injustias, e at as calumnias, +provaes da virtude, no se lembrando d'ellas seno para pagar o mal +com o bem. + +Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de +Cames, de Ferreira e de S de Miranda. Familiar com os escriptores da +antiguidade, e com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o +desapercebido, e espertar a veia natural e espirituosa da sua +conversao, para se apreciar devidamente os thesouros encobertos +d'aquella vasta erudio e os prodigios de uma memoria em verdade rara. +As citaes acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as anecdotas +encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel, +succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente +os homens e as cousas, que as cinzas dos grandes vares de Roma e da +Grecia, dos heroes de todos os tempos e de todas as naes tornavam a +juntar-se, a tomar corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar +como se os estivessemos contemplando nos dias do seu esplendor. As +ruinas de Athenas, as do velho Lacio, os monumentos da meia edade, e os +episodios de epochas mais proximas, evocados pelo encantamento +irresistivel d'aquella imaginao creadora, como que volviam subitamente +ao primeiro sr, apparecendo uns em toda a formosura da arte classica, +erguendo-se outros pela religiosa inspirao da arte christ. + + noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa +poltrona de couro, com a ama direita e o co somnolento esquerda, a +velha cabeceando de rocca cinta e engrolando Padres-nossos, o animal +piscando os olhos com uma orelha fita e outra derrubada. Dos dous +companheiros do sero o mais attento e sisudo era de certo o co! +Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca perdia occasio de lhe +coar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo favoravel. O +bofete de pau santo e ps torneados, o candieiro de lato e a anarchia +dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada uma +hora, o unico que no dormia era o Vigario; a sua penna continuava a +ranger sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. +Quando as palpebras se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, +mettia dous dedos na argola do candieiro, e recolhia-se ao quarto no +meio das recommendaes da ama sobre os perigos do fogo, sobre a falta +de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos provaveis. Estas +recommendaes no se calavam, seno quando a respirao alta e +compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua +eloquencia. + +Em um d'estes seres, a que assisti, caiu o dialogo sobre no sei qual +de nossos reis, e o Vigario innocentemente deixou escapar o segredo das +suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do solitario com o +seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a desculpas, +que me l-se alguns _Contos e Lendas_. Oxal que o leitor seja do meu +voto. Ainda me no arrependo do que disse d'elles ao auctor, que tremia, +como se a minha opinio valesse alguma cousa. No os reputei perfeitos, +longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio. +Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre +resistiu a apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, +pouco antes da sua morte, foi com a final e irrevogavel condio de +nunca descubrir o nome do auctor, se me atrevesse a importunar os prelos +(assim se expressou) com as puerilidades de um velho creana. Possam os +_Contos e Lendas_ do padre Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, +merecerem alguns momentos de atteno, no por si, mas pelas memorias +que recordam. Correm j sujeitos s vecissitudes da publicidade tantos +filhos espurios da mesma inveno, que mais esta, entrando no mundo das +lettras, no usurpar de certo logar, que pertena de direito s obras +primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia no ha +fortuna. Lano-a corrente!... A sorte ba, ou m que faa o resto! + +Valle, 30 de septembro de 1866. + + + + +A TORRE DE CAIN + +LENDA DO SECULO XI + + +I + +De um bom irmo um mau christo + +O monge comeou assim a sua historia: + +No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, +que succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por +dias, e com elle vinham boas lanas para o ajudarem a resgatar do poder +dos infieis as provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da +fronteira no se descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as +armas; e quer luzisse a manh, quer cerrasse a tarde, o claro das +almenras, ou o rebate das trombetas no consentia nem leve repouso aos +defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no campo da peleja, no se +socegava um momento. Os melhores castellos ainda tinham a voz dos +descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas tapadas do +Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os veados, os ursos e os +javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as columnas e as +ricas laarias de seus paos. Tudo na abenoada primavera d'este formoso +jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu +deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso +infantil, e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a +tristeza at parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo +, o arabe sensual passava pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso +a saudade do que perdeu lhe punge to viva hoje o corao!... + +--E no havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanas no peito, +bradando: esta terra nossa! acudiu Martin Paes. + +--Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de +captiveiro todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da +charrua, guiadas por mos de escravos. Deus exalte o brao victorioso, +que nos deu outra vez a terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em +que abrimos os olhos, o cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a +arvore que nos cobriu com a sombra a infancia e a velhice, e a fonte que +ferve ao p do rosal!... N'aquelle tempo, quando o mouro passava, +baixavam todos a vista, porque elle era o senhor. + +--Mas a terra havia de ser ento quasi um deserto, padre? + +--No. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos +vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os +gados pastavam nos montes. Mas a terra, to alegre por fra, toda era +magoa e desconslo por dentro; porque a terra, em que smos escravos, +mesmo que seja a da patria, parece-nos mais s e vasia, do que um rmo. +A casa alheia, a courella que de outro, e o fogo accso na lareira a +medo, fazem-nos chorar, porque nada d'aquillo nosso, e hoje, ou +amanh, podem dizer-nos: se! O reino vivia, como vive agora; o que +estava morto era o corao do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam +as mesmas aguas, nasciam as mesmas flres; porm as creanas no +brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a +donzella assustada, tremendo de se vr formosa, no se assentava +tranquilla, como aquella, debaixo da amendoeira em flr ouvindo +descantar o rouxinol por cima da cabea. O harem do sarraceno, aberto +diante d'ella, como um abysmo, fazia-a empallidecer. De um momento para +outro podia ser obrigada a escolher entre a deshonra e a morte. + +--Que martyrio no seria a vida assim?!... + +--Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. +Faz-se tarde. Quereis que continue? + +--Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos. + +--No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas +terras de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de +certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De +seus castellos os dous inimigos, postos defronte, corriam o campo +talando vinhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o outro, +assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou +companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda a furia. Nos casaes +assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoutecer +recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao claro +das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado. + +Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o pao acastellado do +contrario, e tomou-o traio, deixando a cabea do senhor cravada nas +ameias. Aconteceu isto vespera de S. Joo, por alta noute, quando todos +festejavam o bemdito Santo com fogueiras, cantigas e follias. O +cavalleiro tinha um filho e um irmo. O filho de edade tenra; o irmo +temido pela indole e pelo brao. Entraram e sairam os annos assim; a +creana fez-se homem; e de parte a parte a averso das duas familias +cada vez crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de sangue por +muitas vezes, e os sinos no cessavam de dobrar na egreja pelos que +morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais +aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro assassinado era j +um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezena gentil a +cavallo e nos sarus. Chamava-se D. Moo Ansures, e vendo-o passar, +esbelto e affogueado da carreira, com o falco no punho, as donzellas +sorriam-se e cravam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do +rico homem morto na vespera de S. Joo. + +D. Moo ainda no dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por +desgraa, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o corao +esquecido da vingana guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae +derramado falsa f, as malquerenas de tantos annos, as promessas da +meninice e da juventude, tudo d'ahi em diante se apagou da sua alma para +no vr outro sol, outra luz, seno a dos bellos olhos, que o tinham +feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior odio rebentou o mais +constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido saltou aos +olhos de todos. Os parentes lanaram em rosto ao mancebo a sua fraqueza, +mas a paixo pde mais, que as memorias do tumulo, que deixava sem +vingana. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, os rancores +cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas +inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que no +podiam dormir o somno eterno, e os que haviam jurado no perdoar. +Aprazou-se para vespera de S. Joo o ditoso enlace. Seria proposito, ou +acaso? N'esse dia contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. +Moo de Ansures fra assassinado. + +O homem pe e Deus dispe! + +O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmo, que lhe queria mais do +que propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado +fra procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. +Inigo Lopes, era o nome do irmo mais novo, andava ausente. Acertou +chegar de longe, quando estavam pregando as taboas do caixo do infeliz. +A dr fez de D. Inigo uma estatua, e sete dias com sete noutes o viram +todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe +os ossos do irmo, consumia ao mesmo tempo n'elle tudo que tinha de +humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a +cabea e as barbas brancas como neve. Envelhecra ali um seculo em sete +dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem um soluo do peito mudo. +Deixou sobre a campa espada e arnez, e levou s comsigo o punhal. Ao +entrar ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as +costas ao altar. Os anjos nos defendam! + +O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo s e encerrado na capella? +Se alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na +ultima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo +crescer da sepultura e a mo do morto apertar a mo do vivo. Illuses! +Quem vae nunca mais torna. O que no foi fabula, porque todos o +presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma +rozeira do centro da cova, to viosa e robusta como se existisse ha +muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botes nos ramos! Mas se +queriam apanhal-os por devoo, murchavam nos dedos; se tentavam cortar +uma pelo p, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. +Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que +outros tantos dias se contavam tambem desde que o corpo do valente +cavalleiro descera sepultura trespassado de sete feridas. + +Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos +com mais cinco vaguera como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, +comendo das ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo s +inclemencias do tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do +mundo! O Senhor, que l nos coraes, ha muito que tinha desviado os +olhos d'elle. Com ser christo nascido nunca mais ajoelhra cruz, ou +se encommendra Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe +no deserto da Tentao ao atravessar pela terceira vez a Palestina. +Valha-nos Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um +mar de fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das +altas rochas danaram, crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se ento +na vasta solido do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, e o +pacto, que ali firmou, foi to negro, que a lua tornou-se cr de sangue +e sumiu-se, que as estrellas esconderam tremulas a sua luz. O christo +acabva de vender ali a alma ao inferno pela vingana. Desde aquella +hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra segue o corpo, a +imagem do irmo assassinado. Ajoelhra ao poder de Satanaz, elle que no +se prostrra diante da cruz, e rasgando as veias afirmra o juramento. +Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espao, +repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas +immoveis do Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O +reprobo escarneceu do passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. +Mas elle que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe +a terra debaixo dos ps, como horrorisada do peso do seu crime. Aos +primeiros passos o claro dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal +rebentava ao mesmo tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, +no ceu aonde os troves estalavam uns apoz outros; na terra, que se +abria em voragens, e no deserto, aonde o furaco, bramindo, cavava +abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em vortice as areias. Cedros +antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As feras, timidas que +nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam +suas oraes a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e +pequeno para a supplica, porque riria s o orgulho do culpado? D'ali em +diante no passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no +precipicio. Raiava a manh um dia e curvado sobre a corrente do Jordo, +debruava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas +torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia +cara um velho desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota +d'aquella agua para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a +entornando-lhe de proposito o cantaro diante dos olhos para lhe +exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam tragando de longe a +agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por +mofa: chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao p de ti! O +Senhor no accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse +vencedor do inferno. Mas, desde aquelle crime, a sde intensa ateiada +nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes +convertiam a fresquido em fogo para o abrazar. A gota de agua negada no +deserto pesra na balana do Senhor largos seculos de culpas. + +Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, terra em que +nascera. Disseram que um cavallo da cr da noute, com os olhos todos +chammas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda +varria o p, a respirao era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. +Diante d'elle as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se +outeiros; o mar e os abysmos solidificados aplanavam-se; e no perpassar +do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o cho, +flexiveis como juncos. Cavallo e cavalleiro no corriam, voavam! Debaixo +da ferradura magica as aguas tomavam a dureza do diamante: a terra +oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos vulces, vinham coroar +o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, e estacou. +Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. No passou d'ali. medida +que ia aclarando a manh adelgaavam-se-lhe as formas e do primeiro raio +de sol dissolveu-se desfeito em fumo. + +Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu +o sitio. Estava junto da egreja aonde fra sepultado seu irmo. Ao +primeiro passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao segundo +illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas +cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro +levantava o _Ave maris stella_. Estava aplacada a vingana do morto. A +f, porem, debalde chamava ali por Inigo; elle no a ouvia. A voz do ceu +em vo lhe offerecia o perdo; elle, surdo, no escutava a palavra de +misericordia! Orava n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo +hermita pelo maior peccador. Arrebatado em espirito, viu um homem +cuspindo por odio na cruz porta de uma egreja. O anjo Custodio, +ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes luminosas; mas o +desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, subiu na +aragem at se perder nos raios dourados do sol nascente. + +A tua clemencia, Senhor, infinita! exclamou o justo. Haver perdo +para o que renega o teu Santo nome? + +N'este ponto a viso sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com +estrondo; e uma voz, semelhante da tempestade, bramindo nas selvas, +repetiu ao longe: _memento, homo, quia pulvis es!_ + + +II + +No ha gosto sem pesar + +N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais +poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados +do castello por valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um +aceno trinta cavalleiros mettiam o p no estribo, e centos de homens de +armas e pees seguiam o seu pendo. Descendia da grande raa dos +primeiros lidadores das Asturias, raa de bronze nos odios, e de ferro +nas vinganas. A edade gasta os mais fortes, e aor velho no se remonta +s aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas, +D. Ordonho sentia que os annos no haviam passado em vo. S a neta, a +formosa Auzenda, unico amor da sua vida, podia distrahil-o das horas de +tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma, +um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagrima s d'aquelles +olhos lindos, transformava em cordeiro o leo embravecido. + +Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens +de armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa +cavalgada, que se espera? + +O sol j se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os +derradeiros clares no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua +sobre as campinas, e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em +larga distancia ao redor. + +No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia +casar-se com Moo Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. +Joo, e por horas tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que +os monges negros rezaram o officio de finados em volta da tumba do +cavalleiro assassinado. + +Porque se via Auzenda to pensativa olhando do seu balco para a cora +do outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da +formosura, entre mil no se ufanavam de possuir perola de egual valia. +Aquella belleza era sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os +cabellos em tranas d'ouro soltas briza; e os olhos azues, aonde amor +suspira, oh! quem podra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado +cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora +folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio +palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. Os ps, como os da corsa +gentil, que a acompanha, fogem to leves, que mal trilham os musgos das +fragas na serra ingreme. As rozas accendem o rubor na face assetinada +desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa silvestre pousada +na fronte. Ajoelhou cruz solitaria, e a orao matinal subiu casta e +pura do corao ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da aurora. +O vestido branco desenha confusamente as frmas, e visto de longe +fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia viso celeste que os raios +da primeira luz vo desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr +do lado opposto. O aor do Douro remata-lhe o capello de ao. D. Moo +Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do +amor. + +--Voltais logo? perguntou a donzella corando. + +--Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado +olhar. + +--To tarde!? + +--Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!... + +--No! Mas!... + +--Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui! + +Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella +seguiu-o com a vista, saudosa at desapparecer por traz do ultimo +outeiro. + +Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o corao? por isso que a +donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balco? Seriam receios +de noiva a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, +fechou-se a noute, e quando as estrellas comeavam a tremer na abobada +do ceu, recolheu-se suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da +atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam a entrar no castello, +attraidos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de cres +diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos luz +dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, os relinchos dos +cavallos, e as vozes dos pees animavam de mil ruidos alegres o quadro +do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela estatura. +Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O +seu brado vencia o estrepito. + +--Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os +recem-chegados com a bocca cheia de riso. + +Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do +dia, segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos ps de Auzenda, e +com a noute cerrada no chegava!... Do lado das montanhas no havia +rebate de mouros. As almenras apagadas no davam signal de inimigos. +Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando to +meigo e desejado? Porque se ausentra n'aquelle dia, em que tantos +estremos o convidavam a no se apartar dos bellos olhos que o prendiam? +Um juramento sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos +de todos a unio das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o +tumulo de seu pae. Por isso deixra Auzenda junto da cruz de pedra ao +romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da +noiva as contava to vagarosas! + + +III + +Deus seja comnosco + +Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca +das malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados +capellos! Cavalleiros moos fallam de amores, inclinados sobre os +estrados das donas e donzellas. Violas e doainas acompanham as coplas +dos trovadores. Mais adiante, em turbilhes de cem cres, em collos +ondeados e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar furtivo de +alguns pares promette, em breve, dias semelhantes a mais de um solar. + +Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas no +entram, o vento geme por entre frizos e laarias dos delgados +columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros cordos das +frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o +silencio. Avizinha-se, e j se reflete nas paredes, o claro de muitas +tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz subitamente. Os escanes +enchem as taas e fazem-as circular em roda. Saudes, acclamaes, e +vozes crusam-se, trocam-se e voam em confuso jovial de um a outro +extremo da casa. D. Ordonho parece remoado. sua direita senta-se +Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moo Ansures. Defronte, +em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se podesse +deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto. + +A meio do banquete as dansas tornam a entranar os pares como grinaldas +vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam +incessantemente donas, cavalleiros e monges, convidados pela +hospitalidade quasi regia do rico-homem. As taas cheias de licor +espumoso correm de mo para mo. D. Ordonho, de p, ala a sua, e com a +fronte erguida brada: + +-- paz dos christos! ruina e confuso dos infieis! Uma longa +acclamao responde sua voz: Assim findem todas as discordias entre +irmos! + +Ainda no tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou +um grito. Os convivas olharam tambem e ficaram immoveis com as taas +suspensas. + +No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu +de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e +na cotta o aor bordado. Descalando o guante direito, e empunhando a +primeira taa cheia, ergueu-a lentamente. + +--Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) paz da noute de S. Joo!.. + +No bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se +vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taa uma malha de +ferro em braza queimou a alvura do linho. Alou ento a viseira. Os +olhos, as feies o os modos eram exactamente os do cavalleiro +assassinado havia quatorze annos; porem os cabellos e as barbas brancas +lembravam, que por cima do seu corpo passra o frio da sepultura. + +Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder +occulto, no poderam mover-se. O horror gelava a todos. + + +IV + +Enterro por noivado + +Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu: + +Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao +primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, +ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas +das violas e alades. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vas +profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos +jograes transformou-se repentinamente em _dies ir_ que retumbou. Os +cabellos erriaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e +vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados +jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o +sino dobrava j tinha desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos +clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes +tocar, fecharam-se adiante d'elles. O portal macio gemeu nos quicios e +cerrou-se por si mesmo. Mos invisiveis alaram as dobradias. + +Ai noute de S. Joo, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor +de ti choraram; a alcachofra benta ardendo no brotou a flor de +esperana; o palmito symbolico, em vez de rozas e de fructos, s ramas +de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paos do conde +ninguem se entendia. Estava sobre elles o poder do inferno. O suor frio +borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ousados fazia +tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na +escurido. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo +enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos +tectos. Jesus! Acudi! O castello est a arder! Tudo isto se viu e se +obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados +to altos, e o fosso to fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o +toldo sombrio, que a velava, e o seu claro pallido lanou como um +sudario sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a curta +distancia sobranceiro ao castello. As aguas, rebentando ali sombra de +antigos choupos, ferviam de encontro s fragas, e despenhadas espumaram +batendo em caches no leito da ribeira, que l em baixo bramia +arremessada por entre a bronca penedia. + +Aonde est D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braos +por entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, no correu, voou +baixando de andar em andar, at ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo +cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra +por pedra quasi a desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas +envergonhados. + +--Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de +St. Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui +todos! gritou depois em grande brado. + +Palpitou a esperana esmorecida nos peitos mais desalentados. +Ergueram-se as achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem +robustos braos ferem a um tempo com ancia mortal a porta macia e +chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem... Mas +nas taboas nem signaes dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam +at aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e do alarido das vozes +rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo +campeia o cavalleiro negro. As aguas espumavam por baixo dos ps do +corcel; a mo direita brandia um facho; a esquerda s peava com as +redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo. + +--Conde Ordonho! Esta fogueira faltava tua festa do S. Joo. Accendi-a +eu. Pago as arrhas da formosa noiva. + +--Maldito!... + +--Esquecias j D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou +o dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingar o sangue +dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes. + +Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas +furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. +No hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem +sentidos. As faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do +velho; as tranas de ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os +olhos languidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se +mortaes. + +--Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creana. O sangue +verteu-o esta mo culpada.... Feri a cabea do peccador saciado de annos +e de amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... +Poupai-a em vossa justia!. + +Dizendo isto apertava a neta contra o corao. O que no daria n'aquelle +instante o senhor de tantos vassallos e castellos por alguns palmos de +terra livre, por uma respirao pura da briza nocturna, que nos serros +vizinhos refrigerava as miserias do escravo? + +O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas +no quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dr; o pranto +enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo +passar muda e terrivel aquella vingana! Eil-o vai o velho fronteiro! +Nem capello de ao lhe cobre a fronte na, nem arnez lhe veste o peito +descoberto. Leva porem a morte escripta no rosto. O sombrio claro do +desespero reluz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, +brancos e descorados. Deixai-o ir! o castigo de Deus que se adianta! +Inclinai-vos! o santo amor de pae que o inspira! + +A aguia real no caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas +para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. +Que fogo ameaador na vista immovel! Que fria raiva no vo lento! +Guarde-se o falco. Primeiro perder a vida que o rei dos ares. Assim +era D. Ordonho!... A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento +lastimava-se soturno. A distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o +claro avermelhado do incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas +estendia-se como toldo immenso. As aguas e o furaco confundiam os +bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovo estourava +em estampidos medonhos. + +A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto +aquelle, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no +eirado da torre Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos ps as lageas +abrazadas e no reca. Sobre a cabea crusam-se mil centelhas e no as +sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e +abatem as paredes, e no as v! O temporal fustigando os cedros, +estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha; as +torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como rios caudalosos. +Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e horrores da +vida conjurados no o aballam? A desesperao! Que lhe importam ao +desgraado as ameaas do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a +peior das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avs ser o +sepulcro do ultimo descendente de uma grande raa. + +Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A cr livida da ira +dava-lhe face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, +e a vista mede o espao. Ai do que aparar o tiro! A seta s espera um +aceno para voar sibilando ao seu alvo.... + +Tres vezes estalou o trovo, e tres vezes um lenol de fogo jorrou dos +ceus abertos. Soa distinctamente o galope de um cavallo. As ferraduras, +raspando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz das outras. Armas +brancas, capello sem viseira, no peito o aor do Douro. Ser D. Moo +Ansures? claridade dos relampagos, luz do facho sacudido pelo +cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado sobre a +aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo +e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo +lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. +Pouco depois descortinava-se D. Moo enristando a lana meio corpo +debruado para o precipicio, e o renegado arremeando o facho s aguas +para se rodear de trevas. O brao do Maldito alou de subito a espada e +o golpe descia j... quando uma seta passa assoviando. O mancebo vio +ento o seu inimigo rolar aos ps do ginete e logo apoz um corpo dobado +nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas at se atufar +dilacerado e disforme nos caches da nascente, que espirram a grande +altura espuma e sangue. + +Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta +brados de triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde +Ordonho, cosida nas chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos +ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrepito, as +quadrellas alluiram-se, as traves accesas remoinharam e cairam, e entre +os destroos, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do +somno eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no +seu pendo! Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou +comsigo a orgulhosa raa de riba d'Ave, e do seu castello s ficaram de +p aquella torre negra, que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos +de Pedro Ansures. + +--E D. Moo? perguntou Martim Paes. + +--E Auzenda? acudiu D. Nuno. + +D. Moo, cumprindo j de noute o seu voto, teve um presentimento, e, +cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabos, +fragas, e alcantis. J perto do castello, deu-lhe no rosto o claro do +incendio e viu-o arder. Apertando o corsel, correu como louco, e s +parou quando o facho do cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que +succedeu ento j vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o +encantamento. D. Moo buscou Auzenda. Encontrou-a, mas sem vida! +Levaram-a os monges capella, puzeram-lhe na cabea uma cora de +cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das +Hespanhas. + +D. Moo, desde esse dia, no viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a +esperana, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir s +batalhas? A gloria? No tinha com quem a repartir. A morte? Para qu? +No a sentia j no peito? A liberdade da terra do seu bero? Ai! Nem +essa ideia mesmo podia fundir j os gelos d'aquelle corao!... Sombra +do que fra, o que fazia o desgraado n'este desterro cruel, sem +affectos, sem amigos, sem consolaes? Como o carvalho, que o raio feriu +na fora do crescimento debrua os ramos mirrados e se torce e definha +at cair, a dr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias +desgraadas, minavam-lhe a vida, seccando-lh'a na raiz. + +Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de +lagrimas. Ento a febre do delirio representava-lhe junto do leito a +doce imagem, que trazia no corao. Era ella! Via-a, como nos dias +ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros +que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas +virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera to feliz; +nos labios aquelle sorriso em boto, que se abria casto como a rosa. O +mancebo queria estreitar a viso querida ao peito, e acordava, chorando, +porque s abrara o ar. N'este tormento agonisou por mezes at que +Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde se +recolhera. + +Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o +corao, um lao de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficra +orando a velar a tumba, contou depois que vira apparecer uma dama, +formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do +ataude saiu um brao, e ella, com a sua mo na mo do morto, passar-lhe +um annel no dedo e cingir-lhe a cora de boninas que trazia, na fronte +descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por +tres vezes lutou para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras +tantas, vencido por brao invisivel, se prostrou com a face no p do +templo. Eram as nupcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? +Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzella o sangue +inimigo e a vingana contra o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus. +Quem ousaria prescutar os segredos da sua justia, e os prodigios da sua +clemencia infinita?! + + + + +O CASTELLO DE ALMOUROL[1] + +CONTO DO SECULO XVII + + +I + +--Ai, Virgem Santissima! No ganha a gente para sustos! No bastava esta +praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles +pelo Alemtejo abaixo?! sr. Romo Pires, d'onde elles esto aqui +nossa quinta muito longe? + +--No nada perto, no, sr. Brizida de Sousa! Mas l diz o adagio: aos +que muito correm quebram-se-lhes as pernas... Socegue. O sr. conde de +Villa Flr anda com elles a contas e no para graas. + +--O sr. conde muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi +dizer... Mas se elle ficasse mal agora? + +--Ficavamos ns peior, isso verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, +se meu senhor e amo fosse vivo!... No estava eu aqui posto ao canto +como um estafermo!... + +--Ora no diga isso por quem . O sr. Romo j andou demais por essas +guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O +que seria de mim ssinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha +umas poucas de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro +mundo! sr. Romo Pires, diga-me: o demonio--salva tal logar--ter +poder de subverter comsigo no inferno corpo e alma uma creatura +baptisada e remida nas santas aguas?... + +--Conforme! Se no estiver em estado de graa!... + +--Credo! S. Braz e S. Joo! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! +Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? +Quero que me escreva j e j sr. D. Magdalena, contando-lhe tudo +isto. Ella no pde consentir que a sua criada velha uma noite d'estas +desapparea nas garras do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... +Diga-lhe que nos venha livrar d'este inferno, seno... eu c por mim +fujo! Primeiro a salvao da minha alma... + +--Tambem eu no gosto nada d'isto, sr. Brizida. Mas animo forte e +corao larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo +que vejo, no leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para +esta quinta... + +--Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me no +chamasse eu, se depois da primeira noite no mettesse um bom par de +legoas entre o demonio e quem se prsa de christ baptisada na freguezia +de Santa Catharina de Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a +Deus, e sem eiva, nem leiva de mau sangue!... Mas o amor, que tenho +minha menina, coitadinha, tudo me faz supportar com paciencia... Espere! +No ouviu bulha? Assim a modo de ferros arrastados pelo sobrado? + +--Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no cho l em cima. De dia no +que elles fazem das suas... + +-- verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de +noites, Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes v o +fim. E que me diz ento a estas despedidas de maio e entradas de +junho?!... + +--No so de convidar, sr. Brizida! Velho sou, mas no me lembro de +anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, troves e ventanias que levam +tudo pelos ares! Safa! + +--E ns, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa +Barbara! se a tua serva e devota no deixa aqui os ossos, grande milagre +ser. Escute!... Agora no foi engano!... No ouviu risadas l em cima +no vo das casas? + +--No nada. So os rapazes do feitor jogando as escondidas. + +--Pois, sr. Romo Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, +quando minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: Brizida, a sua +menina anda fraquinha e enfezada, e o irmo tambem, os phisicos no +acertam com o remedio, e fr. Joo entende que estas tosses do peito, +assim teimosas, no se despegam seno com mudana de ares. Bem sabe, no +posso sair da cidade por estes dias mais chegados--e assim, coitada, +por causa da sua demanda--acompanhe-me os meninos, e conte que fico to +socegada como se eu mesma fosse... Quando me disse isto, e eu lhe +beijei as mos pela merc, se podesse adivinhar o que nos esperava aqui, +asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e viesse quem +quizesse... Isto no palacio, nem quinta, um verdadeiro inferno! +Deus salve a minha alma! + +--A sr. Brizida no diz o que sente. Vindo a sr. D. Maria e o sr. D. +Pedro, ninguem a arrancava de ao p d'elles. + +--Tem razo. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua me no +lhe quer mais, no, deixe-me ter esta presumpo... A elle vi-o nascer, +e os primeiros braos, que o embalaram, foram estes que hade comer a +terra. To pequeninos os conheci, e to formosos e crescidos os vejo +agora, que no me posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto +de os abraar homens!... Quando me ponho a olhar para elles, parece-me +s vezes que no pde ser, e que tudo isto sonho... + +--Ento!? Elles fazem-se homens, e ns fazemo-nos velhos. No ha +remedio. O mundo vae assim. + +--Bem sei. Mas, no os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que + da edade e do muito crescer, e que ho de encorpar depois. Deus +queira! So os negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos +meus meninos. A sr. D. Maria manhs e tardes inteiras almofada, +bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeio!... Que +dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? mesmo uma dr de alma +vel-o dia e noite amarrado banca dos livros, e que livros! Latins, +gregos, e no sei que outras trapalhadas de _retroricas_... Quem tem a +culpa de tudo, o culpado de tudo o que pde acontecer, o teimoso do +sr. fr. Joo, que fina fora quer o sobrinho sabio. Depois que +falleceu o pae, (Deus o tenha em gloria!) no se nos tira de casa, e +tanto ha de quebrar-me a cabea ao meu menino, que um dia tresl. Pois +olhe, sr. Romo Pires, v com o que lhe diz uma ruim cabea: mais vale +asno vivo, que doutor morto. + +--O sr. fr. Joo, atalhou Romo Pires, aproveitando uma pausa da sr. +Brizida, muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido +um segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes +merecimentos. No lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna +possuem elles... + +--Por isso mesmo! No precisava atanazarmos tanto! No m'os deixa +respirar. Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa +para acol... latins, _pholosophias_, ai, que barafunda! Nem eu sei como +as pobres creanas no teem endoudecido. C por mim j o miolo ha muito +tempo me tinha dado volta, to certo como chamar-me eu Brizida de Sousa. + +--Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. Joo no nenhum nescio... + +--Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na crte +dizem que no ha outro doutor como elle. + +--Pois ento deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos so a luz +dos seus olhos, e depois to meigos, to applicados... + +--De mais, de mais, para a edade, sr. Romo Pires. Assustam-me. No +parecem d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. Joo muito +extremoso, e o que faz por desejar o seu bem d'elles, mas, graas a +Deus, a casa rica e no era preciso amofinar-me tanto os meus +meninos... + +O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era +travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas +janellas, cujas vidraas de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes +em reboco pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em +outras partes as colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam +em suas pinturas desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores +ans, e no meio de arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas +lavradas inculcavam a paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a +grande altura, enegrecidos pelo fumo da immensa chamin de pedra, ornada +de lees de marmore nas bases, e rematada com um brazo de relevo alto, +orlado de ramos de silvas e amoras. + +O sr. Romo Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de +carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma +das faias mais direitas da quinta. Nascra e fra creado desde a +infancia n'aquella casa, e no conhecera nunca outros amos seno D. +Vasco, e D. Magdalena. Acompanhra seu senhor, assim lhe chamou sempre, +em todas as campanhas da guerra da restaurao, pelejando esforadamente +ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis desde +1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narrao das +proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de +saboroso pasto aos seres da familia, obrigada a engulir como artigos de +f todas as aventuras da nova Tavola Redonda, que a imaginao do +escudeiro entretecia na tela interminavel de sua cansativa Illiada. + +A sr. Brizida de Sousa, que to avexada ouvimos queixar-se das +apparies, era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, rolia e +risonha, suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de +duas maans rainetas. As feies, pouco accentuadas, e quasi infantis, +sumiam-se entre as roscas das nedias bochechas, e os seus ares beatos +brigavam na candura affectada com uma larga experiencia da vida. Toda +aquella pequena e buliosa matrona respirava aceio, cuidado, devoo, e +azafama. Collaa de D. Magdalena, e casada com um dos caseiros mais +abastados do morgado, depois ama de leite da filha primogenita da casa, +enviuvra sem filhos, nem saudades do estado, resumindo todos os +affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas +creanas, que trazia sempre na boca e no corao. + +Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez +de mais para a testa, e o crte dos vestidos beguina, affirmavam o +programma da sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria +recheada de oraes, de vises, e de devotas crendices, o seu defeito +capital era occupar-se muito com as vidas alheias, enfiando um rosario +de conselhos a proposito de tudo, e mexericando, por indiscreta, amos, +criados, e hospedes, mas sem inteno ruim. Todos se encobriam d'ella, +quanto podiam, porm ninguem a aborrecia. Temiam-se da intemperana de +suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu caracter, que era na +verdade excellente. + +Romo Pires, tirando a estafada repetio de suas campanhas, +representava em tudo o opposto d'ella. Srio, como um santo, +embizourado, e quasi sempre com a aguda barba escondida na gargantilha, +se levantasse a vista e a curiosidade para os negocios dos outros, +cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e +segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle profundamente. + +Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o +conselheiro nato da sr. Brizida em todos os casos intrincados, e o +defensor convicto dos seus mdos e indiscries.--Boa alma! Boa alma! +respondia aos que a censuravam. Tem o defeito de fallar de mais, mas +uma santa pessoa.--Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edio +das guerreiras epopeias do escudeiro, at fazia o sacrificio de +suspender a loquacidade propria!... + +O sr. Romo Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calas cr de +pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado +no cavallete do interminavel nariz, no desabotoava a seriedade do +rosto, nem dava ferias ao enfado chronico seno para sorrir sua +comadre Brizida. Aquelles olhos verdes desbotados no se animavam seno +para festejar algum bom dito da matrona, cujas fallas assucaradas +contrastavam com a voz rouca e soturna do antigo campeo da +independencia portugueza. A predileco honesta, mas decidida dos dois +um pelo outro, no escapra aos criados, e todos acreditavam que, cedo +ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a +unio de duas almas j to intimas. + +A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita +do Tejo, estendia as matas e charnecas at ribeira, que separa Paio +Pelle da villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, +distaria pouco mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio +antigo, talvez fundado por meiados do seculo XIV, accrescentado, e +reparado pelos fins do XVI. As ameias, j derrubadas em muitos lanos de +muro, proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas +por torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo fra do corpo +principal do edificio, formavam os lados do espaoso terreiro, rasgado +diante da fachada, cujas doze janellas de architectura irregular olhavam +para elle. No terreiro se tinham jogado cannas e corrido touros nos +anniversarios festivos dos senhores. + +A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e +articulaes das pedras carcomidas cresciam tufos de viosas +parietarias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras, +resguardava as entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol +at ao primeiro andar. Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava +serventia por uma rampa para os subterraneos allumiados ao rez do cho +por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de salas nuas, frias e +tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde o ar e uma +luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas +envidraadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, +crusados de passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo +desde o andar terreo at aos vos debaixo dos telhados, uma rde +inextricavel, um verdadeiro labyrintho. A casa de jantar, forrada de +carvalho em molduras, prolongava-se maneira de refeitorio entre dois +extensos corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada +para o jardim, na outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para +os vos, os quaes por cima corriam em largura e comprimento da casa. As +torres communicavam-se com o corpo do edificio por duas portas esguias e +abobadadas, aferrolhadas havia longos annos. Os eirados, meio abatidos, +vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudaes do inverno. + +O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de +pedra no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava +algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e +malmequeres bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de +po, cingidas de vallados altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do +palacio era carregado de melancholia. Rodeado de solido justificava em +sua tristeza as queixas, que ouvimos sr. Brizida. Porque escolhera, +porm, D. Magdalena aquelle rmo para abrigo dos filhos e dos criados, +quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas aonde podessem +respirar, longe do bulicio da crte o ar do campo? + +D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de +que fra tronco e progenitor o marechal Gonalo Vaz Coutinho, senhor do +couto de Leonil, e meirinho-mr por el-rei D. Fernando na comarca da +Beira. Formosa, discreta e recatada, perdera seu marido, D. Vasco +Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. Joo IV e D. Affonso +VI, havia tres annos, e ainda no enxugra as lagrimas da viuvez. Em +edade de merecer e de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa +de Lisboa, aonde no recebia seno as visitas de alguns amigos antigos +da familia, guiando-se em tudo pelos conselhos de fr. Joo Coutinho, seu +irmo, grande sabio, e doutor em canones e theologia, o qual se +encarregra de dirigir a educao litteraria dos sobrinhos. + +D. Vasco Mascarenhas, to distincto pelo nascimento, como pelas +qualidades do caracter e do espirito, unira s propriedades de sua casa, +j mui rica, o senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de +Almourol, que sua mulher lhe trouxera em dote, mas quasi sempre occupado +na crte com os negocios politicos e no servio activo das armas, s +duas vezes visitra de fugida aquelle solar desamparado, que principiava +a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras e a cobrana dos +direitos do donatario, com excessiva confiana, diziam os murmuradores, + probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e ladino, +que mais as disfructava como usurario, do que as geria como +administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam +n'aquellas mos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o +verdadeiro estado das cousas, na companhia de seu irmo, fr. Joo +Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais +conveniente. + +Outra razo serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, +dissimulada com o pretexto da necessidade da mudana de ares. Antigas +relaes de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo +ramo dos Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma +comarca, aonde existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que +to vioso beija as aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados +campos e charnecas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. +Affonso de Noronha, saira da crte para o exercito do Alemtejo. D. +Affonso, illustre pelo bero, e j illustre pelo valor, vira crescer em +belleza, primeiro com assombro, depois com paixo ardente, sua prima D. +Maria de Mascarenhas, e no encobrira de seu pae o amor, que ella lhe +inspirava. D. Nuno confiou este segredo ditosa me, e ella, no +podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes +de dar o sim, quizera, comtudo, sondar disfaradamente as inclinaes da +donzella. Conheceu com alegria, que D. Affonso comera a apoderar-se +d'aquelle corao, que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas +as primeiras e vagas aspiraes de um sentimento, que no sabia definir +ainda. + +Corria o anno de 1663. D. Joo de Austria, frente das armas +castelhanas, tentra o derradeiro esforo, invadindo Portugal com +dezeseis mil soldados, e os nossos generaes, juntando as foras, mal +conseguiram oppor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Evora, que devia +ser um dos baluartes da resistencia, accommettida no dia 14 de maio, +capitulra, depois de pouco honrada defeza. Este revez aggravou os +receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a insultar +Alcacer. D. Sancho Manuel convocra immediatamente os officiaes a +conselho, e s um voto, o d'elle, approvra a conveniencia de ferir a +batalha, que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A +pericia de Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o +ultimo precipicio da independencia; mas a feliz temeridade do conde de +Villa Flor, fechando os olhos prudencia, applaudia o encontro decisivo +dos dois exercitos, como o unico meio, embora desesperado, de salvar a +provincia e o reino da sujeio estrangeira. + +O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praas, assaltra +as casas de Sebastio Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de +Elvas. A todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e +todos tremiam. Um lance repentino podia sepultar para sempre as +esperanas de Portugal! + +A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito +mezes do que D. Pedro, seu irmo, contava n'esta epocha dezesete annos, +e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez +que o unico seno de tanta belleza fosse a sua mesma perfeio +irreprehensivel. No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas +tranas, confundiam-se os lirios e as rozas na mais mimosa frescura. A +bocca, fina e espirituosa, crada como um boto nacarado, breve como um +suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma expresso adoravel. Nos +olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam s vezes de uma sombra +de enlevada melancolia, a luz serena raramente se inflammava, mas sua +tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixo dormia ainda, +facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor aquellas +pupilas descuidadas. A mo parecia formada pelo modelo de uma estatua +primorosa. O p estreito e arqueado pousava-se to leve e elegante, que +a vista como que involuntariamente se alava a buscar nos hombros as +azas da Silphide. A voz tinha condo seductor. A estatura, um pouco +acima de ordinaria, e flexivel como a hastea de uma flor, tambem se +dobrava como ella, parecendo que o esbelto corpo de melindroso no podia +com o doce peso da fronte, em que as mil graas da primeira enamorada +primavera competiam umas com as outras sem se vencerem. + +As posies e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a +attraco, que o calculo debalde se esfora por imitar. Tudo desmentia o +arteficio. O requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do +sorriso, e a magia arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam +espontaneos, prendendo os sentidos e a admirao. A formosura da alma +ainda era maior, se possivel. O corao retratava-se na fronte +limpida, e os infinitos thesouros de ternura e de abnegao, que por ora +concentrava nos extremos de filha e de irm, quando se abrissem a +affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor ditoso. A +pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de +candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella to sensivel, que +affrontado no s faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e +caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da indole a +firmesa da vontade. Os dotes do espirito esmaltavam as qualidades +moraes. + +Talvez no houvesse na corte dama ou donzella to instruida na lio das +boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e +castigadas dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos +por Fr. Joo, eram a sua companhia certa nas horas de repouso. + +D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distinces, que o +exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustrao do bero, do +que a elevao do caracter e a fidalguia das aces, que em edade to +verde quasi o haviam tornado um paladino. No seria mulher, comtudo, +seno a confirmassem n'este juizo a presena insinuante do mancebo, a +gentileza do seu porte e a nobre expresso da sua phisionomia. Os olhos +da donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do +primo, aonde riam as illuses da vida e da juventude, nunca fugiam +d'elles, seno a furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o +que tentaria encobrir em vo se acaso soubesse dissimular. Nunca os +labios dos dois tinham soltado uma palavra, que revelasse o que sentiam. +Amavam-se. A alma de um trazia sempre gravada a alma do outro, mas s a +eloquencia da vista, indiscreta s vezes, traira o segredo. D. Affonso, +no podendo por mais tempo calar a chamma, que o abrazava, tinha +declarado ao pae, momentos antes de metter o p no estribo e de partir +para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas +esperanas, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno no +perdera a occasio, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto. + +A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, +com alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo +Rodrigues. Tomado de subito o manhoso camponez, soubera disfarar o +embarao e as apprehenses, mas custara-lhe a conformar-se com a +presena dos amos na casa, que havia tantos annos estava costumado a +olhar mais como sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar pressa duas +salas e algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a +mulher e os filhos nos vos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a +viseira quando soube que a senhora e Fr. Joo Coutinho poucos dias se +demorariam atraz da familia. + +No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a +ultima pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos +quartos da aya e de Romo Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente +por si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos +de ferros e cadeias arrastadas. S ao alvorecer que tudo desappareceu. + +O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe +sacudia os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira +noute levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, +petiscou lume, accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao +corredor, quasi em vestido de banho, mas com a comprida espada nua +debaixo do brao. Depressa se arrependeu. Aos primeiros passos um sopro +forte apagou-lhe a luz, bramidos roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, +e um claro momentaneo e sulphurio mostrou-lhe, envolto no sudario, um +spectro descummunal e ameaador. + +Esta horrenda viso deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao +inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabea debaixo das +roupas, acto de valor, em que a sr. Brizida de Sousa o acompanhava +conscienciosamente havia muitas horas. Pela manh os dous velhos +pareciam desenterrados. + +O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, no foi +mais respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia +continuada as longas horas, que medeiaram at ao amanhecer. D. Pedro +ainda padeceu mais. Acordando sobresaltado ao impulso de mos brutaes e +no meio de escurido profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouar +dentro das cobertas entre uivos e rizadas. + +Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, +ouvindo da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades +nocturnas, contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, +que em vida de seu pae, j tinham muito m fama as casas do andar nobre. + +As noutes seguintes no foram mais tranquillas. Os espectros e duendes +tinham de certo reservado aquellas espaosas salas, e os corredores, +para theatro de suas diabruras. Dir-se-hia at que o tempo conspirado +com elles os ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as +trovoadas de maio to carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em +relampagos, e a terra tremia com o rebombo dos troves. As chuvas caiam +to impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de +torrentes e as terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, +alagava as margens, e suas aguas batiam enfurecidas contra os penedos +sobre que se ergue o castello de Almourol, salvando por cima do caes em +caches de espuma. Ao oitavo dia acalmaram-se as tempestades, mas +redobraram de fora os maleficios nocturnos, com terror, e espanto summo +dos recem-chegados. + +Avexados, tremulos e fra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar +a residencia para os aposentos do castello, que no tinham desabado +ainda minados pelos seculos e pela indifferena; mas o feitor, que +estabelecera n'elles uma filha casada, dissuadiu-os do proposito, +ponderando que as salas e os quartos do velho edificio dos Templarios, +alem de frios e de mais nus, que os do palacio, no eram menos +perseguidos de vises. Por horas mortas, exclamou elle, as almas dos +cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos tinham +vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de +abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha +da famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da +noute sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e +ouvia-se a voz das sentinellas. At raiar a aurora no se calavam na +sala de armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando esta +descripo horrifica, Brizida de Sousa e Romo Pires olharam +consternados um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, +no querendo precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar +as travessuras menos estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram +entretanto a D. Magdalena, pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle +purgatorio o mais cedo possivel, ou que viesse sem demora em companhia +do Sr. Fr. Joo desalojar os espiritos diabolicos, cuja audacia zombava +da agua benta e exorcismos do Vigario de Tancos. Os dous honrados servos +confiavam que a grande sciencia do frade doutor e as virtudes do habito +de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da rebeldia de Satanaz e +da maldade dos seus accessores. + + +II + +Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a crca +exterior da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, +defronte de Tancos.[2] Cinco seculos, passando por cima d'ellas, no +haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem alluido o cimento +indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a aco do tempo +e o brao infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo, transferida de +Castro Marim para Thomar, a sde da sua victoriosa milicia, estendera +rapidamente pela Estremadura os membros robustos. Affonso I, +liberalisando-lhe doaes e privilegios, e enriquecendo com largos +senhorios os monges soldados, confira quasi exclusivamente ao seu valor +a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure, +Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e +outras povoaes, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte +bipartido[3]. As chaves das duas entradas da provincia estavam nas mos +dos cavalleiros. Defronte da moderna Constana, na confluencia dos dois +rios, o castello do Zezere cortava o passo aos agarenos da Beira Baixa, +em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello de Almourol fechava o +caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia. + +As ruinas, que vemos hoje debruadas sobre o rio, contam aos que sabem +interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre +um ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali +caprichosamente pelo impeto de violenta irrupo vulcanica, as elevadas +torres do velho castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam +descortinar de longe, erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito +mirrador dos seculos. Grinaldas de heras penduram-se em festes das +ameias desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios +dos pannos rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, to +arremessados que o dedo de uma creana parece sufficiente para os fazer +escorregar com o muro que os cora, para o leito do rio, espanta os +olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio ousado e quasi milagroso. +Areias accumuladas, e alguma terra de alluvio formam o solo, aonde +cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chores, cujos troncos +torcidos se penduram de cima das fragas at roarem as aguas com as +ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os +penhascos aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio +precipitadas. Uma vegetao activa e luxuosa veste de verdura aquelle +cahos de moles immensas sustidas ha seculos no meio da ameaa constante +de uma quda instantanea. + +No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia, +o aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou, +mas a assolao no o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. +Do lado do occidente quatro torres circulares, levantadas como +sentinellas de granito a egual distancia umas das outras, alavam as +frontes torvas e j tostadas do tempo. Entre a segunda e a terceira +rasgava-se a porta actualmente intransitavel do castello, com a sua +volta de ogiva e grossos batentes de castanho chapeado. No meio do +guerreiro edificio avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto +intervallo, outra quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias. +Uma janella ornada de lavores em ramos, aberta a dois teros da altura, +esclarecia os aposentos do segundo piso, em quanto da parte oriental +duas frestas do mesmo estyllo davam claridade sala de armas. Cinco +torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a muralha subia a grande +altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes ficava ao sul, e +o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, corria +profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje so +ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os +cactus silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaoso por onde se +entrava para os andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles +aposentos, pouco espaosos, mas enfeitados de altas e ricas laarias. Em +1663 a obra da destruio principiava a annunciar-se apenas. Apesar de +nuas, as salas ainda conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e +adarves, se no alvejava havia mais de tresentos annos o manto branco +dos templarios, se algumas heras, trepando, se balouavam merc do +vento, e se as torres e muralhas mostravam j a cr adusta, que para +os monumentos o que so as cs nos velhos, um testemunho irrecusavel de +que viram e viveram muito, no se tinham esmorecido, comtudo, nem +apagado ainda nenhuns dos vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol +no meio do Tejo, similhante a um tito com metade do corpo fra das +aguas, ainda podia ameaar forte e intacto, os que ousassem arriscar-se +ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel cuidava no vigor de sua +robusta velhice zombar dos seculos, como as creanas zombam dos annos, +bem alheio de suppor, que na transio da edade grave para a decrepidez +sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas +diriam s geraes indifferentes da nossa poca, que eterno e grande s + Deus! + +Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e +ornada de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os +dois ricassos da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais +ainda pelas raizes de interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues +ajudava piedosamente seu genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar +copiosas libaes de um vinho, que escaldaria outras goelas menos +estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e ps torneados, que servia +de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho d'aquelles contornos, +avultava um alentado cangiro de barro, bojudo, e cheio at boca. +Principira a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos, similhante +a monstruoso aranhio, allumiava a casa escassamente. Duas espingardas, +carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, promptas para servir +primeira voz. + +Antonio Rodrigues era corpulento, espadado, e reforado. Faces largas e +cheias, bastante rolias, pescoo curto e taurino, cabea enterrada +entre os hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes +denunciavam n'elle o vigor de um atheleta unido a uma saude +inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta annos, mas os visinhos do seu +tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e acertavam. Mas era uma +velhice verde e jovial, que no se inclinava ao peso dos annos, que o +trabalho no desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim viosa +e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos +rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo +douto Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter +de receitar nem um xarope quelle cliente invulneravel s chuvas, aos +frios, e a todas as temeridades, a que um mancebo se no atreveria +impunemente! + +Antonio Rodrigues trajava camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibo +e calas de baeta escura, carapua de l, e o inseparavel varapau +ferrado na ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha +de cabellos grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa, +pouco sulcada de rugas. O sorriso enroscava-se perenne nos beios +grossos e crados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como +os de um tubaro, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o +peito, e os olhos castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em +gordura, dir-se-hiam que espreitavam tudo, meio encobertos. A voz +aflautada causava espanto saindo d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz +grosso e cravejado de botes vinosos, rubros como rubins, assumia +dimenses quasi phenomenaes. A expresso da phisionomia era dubia. O +observador no primeiro relancear apenas notaria a beatitude do comilo +repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e, comparando o +olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando +debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feies moraes +significativas da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma +cubia incapaz pela avidez de transigir com a honra, com a consciencia e +com o dever. + +Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto +aos dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo +alpha, e o outro pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto, +assustava os que o viam com o receio de que um dia lhe saltassem os +ossos das tibias e dos femurs soltos das ligaduras. Braos de polipo, +terminados por mos e dedos eternos, hombros agudos sobre os quaes o +fato dansava como posto em cima de um cabide, rosto comprido, +escaveirado, e macilento, acompanhado das melenas esguias de um cabello +ruivo e aguado, testa na que chega quasi nuca, peito e ventre +espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou surrateiros, +boca rasgada quasi at s orelhas, e beios finos e desbotados, +compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais +atilado, avarento e sem escrupulos d'aquellas immediaes. Parecia fraco +e a desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar +legoas, os braos escamados encobriam uma fora alem do commum, e os +olhos vesgos s viam torto para os negocios alheios. + +Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o +velhaco ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria +para fra. Uzurario de nascena, hypocrita por indole e verdadeira +voragem de liquidos e solidos, digeria como um abestruz e bebia como um +areal. Quando conversava, sempre em fallas manas, sabia chamar a tempo +uns frouxos de tosse e umas lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a +engulir metade, e s vezes duas teras-partes das palavras, e inutil +accrescentar, que as palavras engulidas eram sempre as que o podiam +comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o caso o requeria, Pedro +Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma cascata de prantos. +Tinha as glandulas lacrimaes devassas e chorava como um crocodilo. Ai +dos innocentes que se deixavam orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam +quasi sempre sem camisa. No meio d'aquelle rosto afiado erguia-se um +promontorio immenso. Era o nariz adunco e aguado na ponta, que descia +quasi a beijar o labio superior. Este nariz, delgado e membranoso, +rematava a semelhana que tinha aquella cara com o focinho da fuinha. +Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso geral as +funces de procurador de dous conventos de freiras, de quatro +irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos +lucrativos a arrematao dos dizimos e premicias da comarca. + +--Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando +o caneco despejado em cima da mesa. + +--Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro +Lavareda com um sorriso avinagrado. + +--Bem bom!... Sabes o que me d cuidado agora, homem? esta gente aqui +mettida. Tomara vel-os pelas costas. + +--Pois acabe de os empurrar para a rua, que no deixam c saudades! +redarguia o outro com meio sorriso acido. + +--Isso facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vs, os +donos da casa so elles!... + +--Que vo comendo as rendas e que nos deixem. To ms so ellas!... + +--Hum! Podiam ser melhores... Esse o meu receio. Trazemos isto muito +de rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse j ou lh'o ha de +dizer. + +--Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse. + +--Pois sim!... Olha, no seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas +terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a +castanha na boca uma d'estas manhs?! + +--Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira boa feio, e o dinheiro +sangue... + +--Mas homem!?... + +--Deixe l, sr. sogro, no se metta a abelhudo aonde o no chamam, e +deixe ir a agua ao moinho. J alguem fallou em lhe levantar a renda da +alcaidasia?... + +--No. + +--Pois no faa andar o carro adiante dos bois, e corao larga. O que +for soar. + +Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coava a nuca com o +indicador e o dedo mdio da mo direita por baixo da carapua, e rufava +sobre a taboa da meza com todos os dedos da mo esquerda. As roscas da +barba sumiam-se-lhe na golla alta do gibo, e os olhinhos, homisiados +entre as palpebras meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do +gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo +na apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de +linho, em quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mo raspava uma +nodoa conhecida e teimosa do calo sobre o joelho. Ambos meditavam e se +entendiam sem fallar. O feitor de repente levantou meio corpo de cima do +mocho de pinho em que se assentava, colheu o cangiro pelas azas, +sopesou-o por um instante, e emborcando-o, encheu os dous canecos de +loua. Levou depois o seu boca, encurvando lentamente o brao, e +despejou-o em poucos sorvos, emquanto o sobrinho, coleando primeiro a +lingua pelos beios, libou com mais vagar e com gestos de amador +consumado o nectar, que espumava na grosseira taa. + +--Rapaz, isto no vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro. +Anda mouro na costa, que eu bem o sinto e c sei os botes com que me +abotou-o. Esta gente de Lisboa aqui no gosto nada d'ella. + +--Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya uma tonta, +uma pga douda. O escudeiro no passa de um espantalho de pardaes, e os +meninos.... leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada +nascida de oito dias e ver se no lhe dizem que trigo. + +--Mas atraz da pga e do espantalho tenho muito medo que venha o +milhafre!... + +--Qual milhafre?!... + +--O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de +verdadeiro susto. + +--E ento se vier?!... L no seu breviario! O Sr. Fr. Joo Coutinho sabe +muito de leis e de casos, mas de lavouras no creio... + +--Nisso te enganas. capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se +no campo e administrou muito tempo os bens do convento. + +--Ah! Ah!... + +--E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela pra +com a Sr. D. Magdalena. + +--Mau ser!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do +polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Mu +ser, tio!.... Mas no havemos de perder o somno por isso. Dizia no +mosteiro, aonde me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo +o genero de peccado deixou Deus remedio na sua egreja... + +Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco +satisfeitos. + +--Ento que dizes, homem?!.. + +--Se o frade vier.... pl-o ao fresco, em vinte e quatro horas. + +--Ests mangando, sobrinho?!.. Pl-o ao fresco? O irmo da senhora, o +tio dos meninos?!... + +--Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa. + +--Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?... + +--Mettendo-lhe medo. + +--Ao sr. Fr. Joo, que rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai +dormir, Pedro, isso somno. + +--Sim sr., metter-lhe medo, porque no?... + +--Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito lambareira da +aya e ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada +de escarneo. + +--Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade no +foge?... Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lenoes da +cama. + +--Deixa-te de historias, Pedro!... As vises com o frade no pegam. O +que apanhas algum tiro.... e olha que caador que no erra. + +--Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e ver.... + +--Emfim, l sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo! +O frade ladino, sei que vem desconfiado de ns, e tenho muito amor +pelle. + +--Socegue. Eu tambem no tenho odio minha. Diga-me: se Fr. Joo vier, +aonde o mette? + +--Aonde o metto?!.. Porqu? + +--Preciso saber. + +--No quarto verde talvez... + +--Nada! D-lhe o quarto dos armarios. + +--Mas!... + +Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coando sempre a nuca. O +genro ria-se para dentro, raspando a nodoa do calo. + +--Tu no me dirs o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu +risinho. + +--Pois no tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua +me Maria Santissima. + +--Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!... +Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no +sr. Fr. Joo.... No por elle, por mim. Nada de graas pesadas! No +me quero ver na cadeia comido de ps e mos. Leve antes a brca as +terras. + +--Ai, tio!.. No se faa teimoso, e no esteja calumniando as minhas +intenes.. Valha-me a Senhora Sant'Anna. + +--Mau! Tornas aos santos!... Que isto?... + +--So passos. + +--E vozes... Chega fresta e v! + +Pedro Lavareda obedeceu. + +Um vento rijo e chuveires puxados com fora bateram-lhe na cara, apenas +abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabea para espreitar o que se +passava no rio. O devoto personagem recolheu pressa o interminavel e +esganado pescoo, rosnou duas interjeies apimentadas, e, enrolando um +leno por cima da gola do gibo, tornou a affrontar, porem mais abrigado +d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta +observao, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se +defronte do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada +no afunilado rosto uma verdadeira elegia. + +--Ento?!... disse o feitor j sobresaltado com a mimica tetrica do +sobrinho. + +--Fallai no mau, apparelhai o pau!... o frade!.. + +--Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de p de um pulo e +enterrando a carapua at aos hombros. O frade?!. + +--Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razo, tio. Anda mouro na +costa. + +--Vem a Senhora D. Magdalena?... + +--No. Vem elle s. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro. + +--No te dizia eu, Pedro?... E agora?... + +--O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua. + +--Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. +No gosto nada da vinda do sr. Fr. Joo assim com este segredo.... +Receio.... + +--_Valaverunt galhetas_, sr. meu tio! como ns diziamos no convento!... +O caso est feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem rabo!.. +melhor, porm, o ha de fazer Deus e sua Me Maria Santissima, minha +madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom +vinho alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a p! V receber +o sr. Fr. Joo, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada. + +--E tu?... + +--Eu... Fico para pr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! D ao sr. +Fr. Joo o quarto dos armarios. essencial. + +--Porqu?... + +--Pela bocca morre o peixe!... Depois ver. Adeus! No faa esperar sua +reverendissima e encommende-me nas suas oraes minha devota Senhora +Santa Anna... + +--Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha +l?.. Cuidado com a pelle do sr. Fr. Joo! + +--V descansado, tio, no hade haver novidade. Vem ceiar? + +--Venho. + +--At logo. + +E os dous consocios e parentes separaram-se. + + +III + +--Com que ento solto anda o demonio por estes palacios confusos, e +afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me +contam! Mau isso!... E voss que diz, Romo Pires? Parece ainda mais +pasmado do que esta boa velha!... Vamos l, sr. Antonio Rodrigues, +diga-me: aonde o quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. +de casa! + +--Eu, sr. fr. Joo!... Sei s que no se pde parar aqui da meia noite +em diante!.. + +--Ah! sabe isso!?... Ja no pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia +mais. Acho-o to rolio e anafado, que vejo que engorda com os sustos. + +--O sr. Fr. Joo gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!... + +--Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora +Apparecida!... da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou +a sr. Brizida, pondo as mos. + +--Ento o sr. Antonio Rodrigues cr que esta noite haver ensaio geral +de Satanaz e da sua crte, para festejarem a minha chegada?... Muito +bem! C estamos. _Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!_ +Pelejaremos com as armas espirituaes, que so as melhores, e com as +temporaes, que tambem servem em certas occasies! Mas como vamos de +ceia?.. No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar +um carneiro assado! E o vinho, aquelle bom vinho de 1655, ainda haver +por c uma gota d'elle? Ha de haver. O sr. Antonio Rodrigues, o melhor +copo de Tancos e seus arredores, aposto que no est desprovido de +munies de guerra? + +Antonio sorriu e coou a nuca. + +--A ceia est ao lume, e no se demora tres credos. Quanto ao vinho.... +esteja vossa reverendissima descansado. + +--Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr. D. Maria. +Ella tem passado peior?... + +--No, sr.! Peior no. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a +minha rica menina tem perdido as cres. Ella to delicadinha, to +fraca!.. sr. fr. Joo, a menina no podia ler um nadinha menos, mais o +sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa? + +--No pode, no senhor!... acudiu o frade em voz de trovo. Meus +sobrinhos no se educam para espantalhos de sala!... E voss muito +atrevida em se metter a dar conselhos aonde a no chamam!... + +--Ai doce Jesus do meu corao! Que disse eu para ouvir uma repostada +assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. Joo? No sou moura, nem perra, nem +captiva. Po em toda a parte se come; e se no fosse o amor dos meus +meninos, por esta (e beijou os polegares em cruz) que no aturava uma +hora mais n'esta casa! + +--Est bom, Brizida de Souza, est bom! No se inflamme. Sabe que a +estimo, que todos em casa lhe queremos muito.... mas no me toque n'essa +crda. Sei que me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que +elles no teem uma tosse, uma febrita, de que se no torne logo a culpa +aos meus livros!... + +--Vale mais asno vivo, do que doutor morto! resmungou a velha ainda +irada e incorregivel. + +--Mas eu que no quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos, +mulher!--bradou o frade fazendo-se cr de purpura e sorvendo duas +pitadas com o ruido de um furaco..--Safa! Voss capaz de fazer perder +a paciencia ao proprio Job!... Bem! No fallemos mais n'isto, e no faa +caso dos meus repentes.... Sabe que no sou to mau como pareo e que +trago sempre no corao os meus dois rapazes... + +--Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. Joo berra, esbraceja, um +destemperado, mas passa-lhe logo. Co que ladra no morde. Livre-nos +Deus de uns sonsinhos que no quebram um prato, mas que ferram o dente +calados.... + +--Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa inteno. Chame os +pequenos. A ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella +como Santiago aos mouros!.. Vamos. + +A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra, +regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. Joo +proclamou rival do melhor que se podesse beber meza de el-rei. As +proezas gastronomicas do erudito dominicano tinham assombrado o proprio +feitor, cujo estomago insondavel sepultava sem incommodo alimentos de +todas as qualidades, e se carregava de quantidades que eram o espanto e +maravilha dos que assistiam s suas repetidas campanhas pantagruelicas. +D'esta reputao merecida Antonio Rodrigues viu-se obrigado a arrear +bandeiras. O padre mestre no comia, devorava, no bebia, absorvia! +Regando de copiosas libaes cada iguaria rustica, absolvendo as +indigestas com um exorcismo culinario, fazendo desaparecer do prato as +menos pesadas com milagrosa rapidez, dir-se-hia que a fome iberica e +peninsular, a fome de dentes caninos e apetite insaciavel, tomra a +figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos uma +verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porm, e Fr. Joo, exalando um +suspiro, e cruzando as mos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por +concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda +suffocada do esforo: _Deus nobis hc otia fecit!_ + +O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no +espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o +barretinho de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, no +offerecia de certo a imagem dos piedosos e extenuados monges, que em +epochas de mais f edificavam os fieis com o exemplo de sua vida frugal +e contricta. Parecia mais um hippopotamo encalhado, do que um devoto +filho de S. Domingos. Os instinctos animaes prevaleciam, e a fadiga de +uma digesto laboriosa fazia arfar aquella machina de mastigao +continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admirao sincera +de creaturas delicadas, que semelhantes excessos no s confundem, mas +atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em +orao atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o +padre coloal fulminado por um ataque apopletico. Romo Pires ainda no +podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel do +irmo do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam +no brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente +com a unha, e dizia comsigo, que o frade, medindo as foras pela +alimentao, devia prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em +dous, como o faria qualquer mastim faminto ao gato descuidado, que lhe +caisse debaixo das prezas. + +--_Deus nobis hc otia fecit!_ tornou a repetir Fr. Joo depois de uma +pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e +agilidade.--Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!.. +Minha sobrinha! No gostei de a ver to triste. Que nuvem pesa sobre +esse corao? So receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver so e +escorreito.... + +--Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida. + +--Pois quem hade ser seno aquelle cavalleiro andante que se despedio de +ns e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me +agora? + +--Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza. + +--Est bom! Est bom! No digo mais nada.... Romo Pires sabe que os +castelhanos tomaram Evora, e que a estas horas ho de estar as mos com +o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem vence?!.. + +--Essa boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa +Flor. + +--Deus o oua! Bom ter f!.. Mas!--E a larga fronte do frade +enrrugou-se aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de +lhe cobrirem quasi as palpebras superiores--_Deus super omnia_! +murmurou. + +Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se +com estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou +impetuosamente pelo aposento, com os olhos espantados, as faces +contraidas, e os cabellos ruivos espetados, representando a imagem viva +do terror e da consternao. + +--Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!... + +A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de p, no +menos assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora. + +--Os castelhanos!?.. gritou Fr. Joo, saltando da cadeira e empunhando +machinalmente um basto enorme, especie de clava, que o acaso lhe +mostrou encostado a um canto. + +--Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e +erguendo as mos. + +--Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a +longa navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em +quanto Romo Pires sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiosa. + +D. Maria, branca de cra e silenciosa, encostou-se mesa para no cair. +D. Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes, +e a fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de crte, e deu +alguns passos como se quizesse sair ao encontro do perigo. + +--Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. Joo. s armas! sr. Antonio +Rodrigues chame os criados!... Faamos de Tancos e de Almourol uma +segunda Aljubarrota!... + +Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de +impaciencia batia o p como o corsel insofrido escarva o cho desejoso +de soltar a carreira. + +--Mas no seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a +noticia, e aonde esto os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com +extrema serenidade. + +--_Do manus!_ _Rem acu tetegiste, puer!_[4] gritou o frade sentando-se +commovido e ainda tremulo. Famos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em +primeiro logar: quem e como se chama este correio de ms novas?.. + +-- meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda. + +--Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais +secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue falla o sr. +Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a m noticia que nos trouxe?... + +--Um almocreve do Crato, que saiu de l a bom fugir!... + +--E que disse o almocreve?... + +--Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no +campo, e que as guardas avanadas de D. Joo de Austria estavam a entrar +no Crato!... + +--Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha? + +--No m'o soube dizer. + +--Hum! E o seu almocreve aonde est?... + +--Partiu, caminho de Lisboa. + +--Oh! E no sabe mais nada? + +--Mais nada, sr. padre mestre. + +--Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de +amigo?... + +--Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!.. + +--Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve, durma sobre o caso, +como ns vamos dormir, e creia que amanh acorda convencido de que +engulio uma peta mais comprida do que a sua pessoa, o que j no +pouco. + +Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas +como o no eram, contentaram-se com a expresso humilde e hypocrita de +uma annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam +soffrivelmente um sorriso boal. + +--_Macte puer!_ gritou Fr. Joo, batendo no hombro de D. Pedro. Tiveste +mais juizo tu s, do que ns todos!... Isto mentira e mentira mal +armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um +almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma at +Almeida! Romo Pires, enfie-me na banha esse eterno chifarote, espanto +e censura viva das espadas de hoje!... + +--Ento vossa reverendissima j no quer que ponha de aviso os criados? +disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com +o genro, colloquio, que apesar de curto, no escapara a Fr. Joo. + +--No, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro +mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma +boa ceia o melhor remedio para estas molestias. Aonde o meu quarto? + +O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador ao sobrinho, que lhe +respondeu com um aceno quasi imperceptivel de cabea, e, pegando em um +macio castial de prata denegrido, precedeu a especie de procisso de +toda a familia at ao aposento, aonde o douto dominicano havia de passar +a noute. A porta abria-se no topo do comprido corredor do centro; a +camara de D. Pedro ficava-lhe esquerda, e o pequeno camarim de Romo +Pires direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados, e +seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao p o leito de Brizida +de Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. Joo, nada +inculcava de notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de +peitos e uma sacada, cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a +par de largos pedaos das colgaduras de couro, que em melhores dias as +tinham ornado, altos e grandes armarios de pau santo. Os tectos altos e +enegrecidos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalando com o peso dos +passos, atestavam a velhice e o desamparo. Um leito antigo, enorme, com +sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de pau santo arruinado, +e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou quatro +cadeiras coxas dos ps, ou mutiladas dos braos, a mobilia nada commoda, +nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruio minava, +e esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram +alguns paineis grandes, retratos de corpo inteiro de guerreiros, damas, +e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras de carvalho, +lavradas de talha alta. + +O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, +sorrindo-se, ao feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas +almas do outro mundo. Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda +cabea, e Brizida benzeu-se devotamente. + +--Bem!... N'esse caso preciso estar armado e vigilante para a batalha! +Se escaparmos aos castelhanos do Crato, no quero que acabemos nas +garras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz +favor! Mande trazer para aqui o meu alforge, que ficou na sala de +entrada. Sr. Pedro Lavareda (exquisito nome (!)) bom caador por +certo, e hade ter uma espingarda de mais. Eu tambem gosto de dar o meu +tiro de manh cedo s perdizes e s calhandras por essa charneca. Conto +levantar-me com o sol, e dar um passeio pelas fazendas, para tornar a +ver estas terras em que no ponho os olhos ha um bom par de annos. Para +no ir com as mos abanando levarei a sua espingarda... No a heide +tratar mal, descanse!.. + +--Essa boa, sr. Fr. Joo! A espingarda, eu, e tudo o que mandar esto +s ordens de vossa reverendissima.... + +--Muito obrigado!... Olhe no se esquea de me trazer um frasquinho de +polvora. + +O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a +Romo Pires, e pondo as mos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em +voz baixa: + +--_Latet anguis!_ Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella face +compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous, +elle e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, esto conjurados contra +ns... Porqu e para qu? O tempo o dir. Olho vivo, pois, Romo Pires! +Se lhe apparecer viso, ou espectro, receba-m'o s cutiladas. Eu c +espero a p firme os que vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes +deitar, hade chamuscal-os de vras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous +velhacos. + +De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a +espingarda e o frasco. Fr. Joo fallou um pedao com elles, sempre com a +boca cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar at pela +manh, e despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiana. + +--O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse +Antonio Rodrigues com o rosto carregado. + +--Veremos, sr. meu tio. + +--Guarda-te de elle te pr as mos. capaz de estourar um boi. + +--Melhor o far Deus! + +--Boas noutes. + +--Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda. + +--Sentido! Nem uma beliscadura! + +Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do +corredor, Fr. Joo Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e +parecia ficar inteirado de que as paredes e os armarios no encobriam +portas falsas, nem os sobrados alapes. Abrindo o alforge depois, tirou +de dentro um par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as +escorvas, e passando espingarda, carregou-a com todo o cuidado, +metteu-lhe uma bala, e pousou-a engatilhada cabeceira da cama. Feito +isto foi porta p ante p, descerrou-a de manso, e em passo subtil +encaminhou-se ao camarim de Romo Pires, aonde se demorou. +volta--davam onze horas--achou tudo como o deixara, rezou pelo seu +breviario, e despindo s o habito, abafou-se, conchegou as colchas, +recostou a cabea, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um +somno profundo annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, +as almas penadas, e os virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade no +julgra de bons quilates. + +Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito, +pesado e macio, arfava, balouado como um barco sobre vagas inquietas. +O frade entre-abriu os olhos. A vela do castial estava em um tero, e a +luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e +silencioso. Entretanto o leito no parra de dansar, e, facto mais +singular ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mo, ou +brao que lhe tocasse. Fr. Joo deixou-se ficar, tomando smente uma +posio que lhe consentisse saltar ao cho de um pulo para travar a +lucta com os duendes e spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador + cabeceira, e a espingarda ao p. Entretanto, apesar de animoso e +resoluto, o suor principiava a borbolhar-lhe na testa, e um calefrio +suspeito a correr-lhe a espinha dorsal. + +--Isto no vae bem! Queria antes ruido, grilhes arrastados.... a scena +do costume. Esta calada e estes empuches invisiveis.... sinceramente +sera de fazer tremer as carnes, se eu no soubesse!... Credo!.. L se +foi a roupa at aos ps da cama.... No gosto da graa! Que aquillo? +As pinturas andam!?.. Oh!... + +Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos +cabellos, que lhe restavam, erriados em volta da calva, com as feies +contrahidas e a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no +painel, que lhe ficava fronteiro e que representava um cavalleiro da +edade mdia coberto de toda a armadura, mas com o rosto sem viseira e os +olhos ameaadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura, +parecia mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. Joo quiz duvidar do +testemunho dos sentidos, e convencer-se de que era victima de uma +illuso. Esfregou as palpebras, beliscou os braos para despertar a +sensibilidade, mas o retrato continuava a adiantar-se, e um sorriso +tetrico como que lhe franzia os beios. Ao mesmo tempo os ouvidos +afiados do dominicano colheram, no sem grande pavor, o som amortecido +de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante ao gemido +doloroso de afflictivo estertor. + +--_Vade retro, Satanaz!_ murmurou saindo da cama cheio de terror. _Ne +nos inducas in tentatione!_ + +Apenas soltra a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furaco +medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes. + +Fr. Joo recuou at s cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os +joelhos, e fugir-lhe o animo. Estendendo a mo nas trevas machinalmente, +encontrou uma das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos +apertaram tambem machinalmente a coronha. + +De repente um claro sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz +sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma +gigantesca envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta +figura descommunal, cuja cabea era uma caveira, lanava chispas pelas +cavidades dos olhos, e acenava com os longos ossos de esqueleto. O frade +tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos +recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas +espirituaes no produziram effeito, e, apesar da perturbao momentanea, +tornou a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle +espectaculo uma visualidade, ensaiada para zombar da sua boa f. +Revestindo-se, pois, de valor e deciso, apontou rapidamente ao vulto, +que tinha diante, a pistola, que no largara da mo, e disparou-a. +Observando que o tiro no causra abalo no phantasma, pegou depois na +outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou o gatilho. Uma +risada estridente respondeu ao estrondo da exploso, e o spectro, +mostrando as duas balas, arremessou-as ao cho, aonde o padre mestre as +ouviu rolar. Logo em seguida o claro sumiu-se de subito, espessas +trevas envolveram o quarto. Fr. Joo, quasi desmaiado, caiu em uma das +cadeiras proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os +membros, e paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo +terror. + +Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas no eram menos activas e +violentas nas camaras dos outros hospedes. Romo Pires, apenas se +deitra, e escondera a cabea debaixo da roupa, com premeditao pouco +em harmonia com os brios de suas falladas campanhas, sentio +apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe pelos ps o magro e aprumado corpo +at o estatelarem de pancada e sem d nas taboas do sobrado. O grito de +mdo e de dor, que soltra estremunhado, teve em resposta um cro de +risadas em falsete. Brizida de Souza acordou espavorida ao frio gelado +de um verdadeiro regador de agua que lhe entornavam sobre a cabea, e +saltando por a casa em roupas menores, e com a boca escancarada, para +bradar, era comida no ar por mos pouco caridosas e nada leves, que de +empurro em empurro a levaram aos tombos at ao corredor, aonde veiu +encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma +das mos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem +accusava uma fora sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de +pavor, no padecera seno o terror de ouvir estalar ao p do leito +gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros. + +No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque +tinham chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, +sereno em presena do perigo, e pouco disposto a acreditar na +interveno dos poderes infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute +sem se despir, e com a espada nua ao lado, tinha-se entregado leitura +de um livro novo, que em breve lhe absorveu a atteno. Feriu-lhe de +repente o ouvido a matinada das investidas no corredor e nos aposentos +proximos. Apagando a luz, e empunhando a espada, aguardou silencioso. + +A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber +dous vultos na escurido. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se +debruava sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava +d'elle sons roucos e medonhos, caiu s pranchadas sobre o musico do +Averno, ao qual o instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado, +principiava a revolver-se pela casa, gritando como um simples mortal +derreado por uma sova. O outro phantasma volveu logo em auxilio do +agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no brao ao que pareceu, +deitou-o pela porta fra como um vendaval, em quanto o companheiro +tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo. + +D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castial +e a candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no cho +um buzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lenol com +lagrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelo pintada de +amarello. + +O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao +mesmo tempo documento vivo da conspirao tramada. Algumas gtas de +sangue, caidas no pavimento desde metade da casa at porta, +provaram-lhe que um dos actores do drama nocturno retirara ferido e +assignalado. D. Pedro pegou no castial, e seguindo o rasto de sangue +pelo corredor, notou que parava no topo, aonde s existia uma parede +grossa, sem nenhuma saida apparente. Informado do que desejava +verificar, voltou atraz, e encaminhou-se ao camarim de Romo Pires. +porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco at se +affirmar. A velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos +transidos de medo e de frio, esgotavam um defronte do outro todo o +vocabulario de rezas e de interjeies atribuladas, sem se atreverem a +volver aos aposentos. D. Pedro, no podendo suster o riso, fallou-lhes, +animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a camara de +Fr. Joo. + +O frade ainda jazia na mesma posio. Conservava-se quasi exanime na +ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castial em uma das mos e +a espada nua debaixo do brao, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas +no se moveu. + +D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir +palavra examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo +triumphante no deixra despojos. Terminado o exame, poz o castial em +cima do velador, collocou a espada ao p do castial, e, volvendo para +junto da cadeira, d'onde o tio, como paralysado, observava tudo +silencioso, disse-lhe: + +--Mas o que foi isto?!.. + +Fr. Joo respondeu com um suspiro, e, correu a mo pela testa ainda +inundada de suor. + +--Estas pistolas disparadas, estas balas no cho!.. No me dir o que +succedeu?!... + +Outro suspiro mais alto. + +--Por onde entraram elles?... + +O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, +meneou a cabea com tristeza, fez um esforo para levantar meio corpo da +cadeira, e apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos +antes soltar-se da moldura, e encaminhar-se para elle. + +--Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castial +e correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou: +Olhe?! + +--O que? disse o frade, pondo-se de p, mas to abatido e tremulo, como +se acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade. + +--Venha meu tio, e veja! + +De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um boto +debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo presso, +abriu-se lentamente. + +--Ah!.. exclamou fr. Joo. + +--Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo. + +--Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as +cres, a elasticidade dos membros, e a viveza dos olhos. Mas abaixando a +vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no cho, e uma nuvem +torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o que +succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os +duendes. Fr. Joo ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um +immenso ponto de interrogao. + +--Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro. + +--Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romo Pires. + +--Foi o que bastou. No mexeu na espingarda? Est certo? + +--Como de te estar vendo. + +--E metteu-lhe uma bala de calibre? + +--Seguramente. + +--Muito bem, quer vr? + +E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a +polvora. Da bala no achou noticia. + +--Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os +dentes, plectorico de colera. + +--Podiam atirar-lhe com tres balas aos ps em vez de duas! Tinham tido o +cuidado... + +--De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que ho de pagar-m'o caro!... S +atazanados! + +--D licena que lhe d um conselho?... + +--Dize, rapaz. Ests um homem, e tens mostrado valer mais, do que ns +todos. + +--Se quer apanhar o rato na ratoeira, no faa bulha. + +--Bem! Bem! _Do manus! Qui nescit dissimulare nescit regnare_, acudiu +fr. Joo, esfregando as mos. Ah! patifes! O que elles se tero rido +minha custa!... + +--Deixe! Riram-se hoje? Amanh choraro! Bas noites meu tio. Socegue, +que bem o precisa. + + + + +A CAMISA DO NOIVADO + + +I + + Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu + tempo certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos + quaes disserom, que as Leis e justia erom como teias de aranha nas + quaes os mosquitos pequenos, caindo, so reteudos e morrem em ella, + e as moscas grandes e que som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as + e vo-se. + + Ferno Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX. + +Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoo, na provincia de +Traz-os-Montes, erguia a cabea soberba acima dos outros logares. As +muralhas de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo +castello, debruadas sobre um precipicio despenhado, concordavam com a +melancolia do sitio e com as sombrias tradies, de que as memorias do +povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de +aguias, a vista, relanceando, abraava toda a campina, mosqueada aqui de +arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas alm, e empolada mais +adiante em collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam at +beijarem o cinto de cabeos alpestres, ultima barreira dos horisontes. +Ao sop da montanha, aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma +torrente. Era o Angueira bramindo entalado na bronca penedia do leito. +Mais ao longe, na coroa dos cerros, os pinheiros meneavam as copas +verde-tristes, e os ciprestes solitarios balouavam ao vento as pontas +esguias. Por ultimo, ao largo, j quasi aonde no enxergavam os olhos, +recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de Seabra na +fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de +Nogueira, toucadas de gelos eternos. + +De tarde, quando comeava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens +do rio em cllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e +envolvia n'uma cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu +caprichoso, cujas dobras sacudia a briza, ora se despregava, deixando +entrever confusamente os vultos, ora condensado cerrava tudo em volta do +solar. + +Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo e de nebrina eram +tambem as horas dos feitios. Uma princeza encantada junto da fonte de +S. Joo guardava os thesouros enterrados de certo magico. Linda como as +estrellas, a maldade do encantador condemnara-a a arrastar-se todo o +anno em figura de serpente. S na vespera do festejado santo, meia +noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, que o fado mau +se quebrava at ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a +moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as +escamas luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a +formosura rara de uma belleza admiravel. + +Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e +copados ulmeiros beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de +branco, desnastrando as tranas com um pente de ouro, e cantando aos +espiritos do ar com to maviosa voz, que se cortava o corao de a +ouvir. + +Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira j inclinada sobre o +espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da +cr da aucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se quella +hora qualquer lograsse fallar moura antes de tornar frma de +serpente, alcanaria da bella captiva, que era fada, as primeiras tres +cousas que lhe pedisse; mas os acasos ditosos so raros, e em cem annos +pelo menos no havia lembrana de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido +batia os ps, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo, +como sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas +aguas, e uma leve nebrina por entre as arvores. + + +II + +Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o +_Justiceiro_, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e +humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer +punisse, quer premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos, +os maus tremiam diante da sua face, porque o castigo de suas mos seria +vingador como a ira de Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos. +No seu tempo a lei era de um s rosto e a pena no coxeava atraz da +culpa. Entre o crime e a expiao no se interpunham annos, promessas, +ou favores. Devedor honrado, o principe ajustava logo a sua conta a cada +um, e pagava-a immediatamente. S aos moradores de Algouo, coitados! +que ainda no chegra a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo +sentiam sua f to viva n'elle, que nas maiores afflices a voz de +todos era sempre: Valha-nos aqui el-rei D. Pedro! Por fim valeu, e o +caso devia ser escripto com lettras de ouro pela penna d'aquelle honrado +e singelo chronista Ferno Lopes, mais poeta do que toda uma arcadia, e +grande pintor de vultos e de cousas. + +Ainda ento se aninhava a povoao de Algouo em volta do castello, +construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a +sombra misericordiosa dos braos da sua cruz. Por ambas as encostas at + cora da montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos +armados nos eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da +aldeia, pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e +arruinadas de velhice, estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas +e remoadas dissimulando a pobreza com os ares quasi festivos!! Deus +nos livre de to mau senhor! era o voto dos burguezes de Miranda, +compadecidos da escravido dos moradores de Algouo, e ainda no diziam +desgraadamente toda a verdade. Ali o suor de sangue regava os banquetes +da sala de armas e as pompas quasi regias do rico-homem. O pranto da +viuva e as lagrimas dos orphos molhavam suas mos, sempre aladas +contra a miseria dos desditosos para destruir o tecto, que lhes abrigava +o bero, e revolver s vezes at o cho sagrado do cemiterio aonde +repousavam seus paes, avs, e irmos. + +O mordomo trazia de cr os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A +vontade do amo e a cubia dos servos deixavam mendigos noite os que +tinham amanhecido remediados! + +D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raa o sangue +nobre confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o +casamento de Diogo Lopes com a Dama-p-de-Cabra. Verdadeira, ou +fabulosa, a alliana dos altivos bares com os demonios tinha sido +fertil em crimes. N'uma epocha, em que a lana e a espada cortavam as +contendas, calando as leis, e calcando os direitos, os cavalleiros de +Algoo excediam os mais ferozes na braveza, e na crueldade ferina. Vr +correr prantos, e derramar sangue, para elles era um deleite. Pizar aos +ps dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes das +matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro +objecto das estrondosas caadas, em que talavam campos e vinhas a +pretexto de montear lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta +familia impia. Tres esposas, em seis annos, haviam passado do leito +nupcial para o tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de to mal agourada +unio. Rosas pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em +flor, fanava-as logo? O segredo no transpirou dos labios gelados das +victimas; mas sabia-se que os sorrisos do amor nunca lhes tinham +alegrado a vida. Desceram ao sepulcro, tristes e silenciosas como +existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas sombrias portas. D. +Sueiro no soltra um suspiro! Se uma lagrima congelada n'aquelle +corao de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se +queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida +estampava-se na fronte maldicta. O crime das tres esposas fra a +esterilidade. O ferro, ou o veneno, rompera o lao conjugal. A sepultura +quebrra o vinculo apertado no altar! Era calumnia? Era verdade? Quem +sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes podiam espantar os mais ousados. + + +III + +Tinha fama de grande monteiro o castello. Ml o dia despontava, saltava +logo no cavallo, e a galope, por saras e estevaes, por montes e +campinas, no meio dos caadores, entre risos, juras e brados, corria at + noite. Uma tarde, na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas +terras de um colono, e a despeito das supplicas do velho, ces e +corseis, salvando valados, e calcando pavas, arrazaram em minutos o +trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e relinchos soavam, sem +cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca! Tocavam buzinas, +estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu atraz da pista. +Garcia de Marnel, o dono do campo, fra o melhor besteiro dos sitios. O +mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas mos, e a seta da sua +aljava atravessara sempre o alvo. De avs a netos esta robusta e +laboriosa raa lanra raizes profundas no solo, remido pelo seu brao. +Os mais fundos affectos prendiam-a terra rta e lavrada com o suor do +trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viosas as +primeiras esperanas, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e +dos filhos. No altar da egreja haviam sido abenoadas as promessas de +mutua ternura; e agora debaixo da cupula frondosa dos lamos, sua +porta, o av, no inverno dos annos, sentia-se renascer nas graas +infantis da neta, mimosa e unica vergontea, que sobrevivia dos ramos +decepados pela morte no velho tronco da familia. Garcia amava tudo isto +com o ardor calado, mas intenso das almas viris, retemperadas pelo +infortunio. + +A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabea, nem o peso da enxada lhe +desfallecera o brao. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do +corao, a dor mesmo no lhe prostrra o animo. A esposa, por tantos +annos alegria e conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho +da vida para ir esperal-o na manso de paz. Dois filhos, amparo da sua +velhice, orgulho da sua alma, ceifados em flr seguiram a me, em quanto +o ancio desgraado, s e de joelhos no via a seu lado no desterro da +vida, rmo de consolaes, seno a infancia fragil e graciosa de +Silvaninha, duas vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu +sangue. Inclinado sobre tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as +sombras da morte, converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em +um extremo louco e quasi delirante. S esta saudade, s este amor o +prendia ainda ao mundo, mas com tal encanto, que muitas vezes pedira a +Deus que lhe dilatasse os dias para no se unir aos que o chamavam do +ceu, seno depois de a ver mulher e feliz. + +Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos ps dos cavallos os fructos de um +anno, o sangue do velho, remoado pela ira, pulou nas veias; as faces +cavadas corram de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo +ao encontro do cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas no de mdo. + +Aquelle campo era o dote da neta, e s por causa d'ella que supportava +o peso aborrecido de setenta annos de fadigas. Senhor! Senhor! dizia +elle correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caada +contra um velho e uma donzella! O rico homem no respondeu. As matilhas +e os cavallos, precipitando-se, partiam rda d'elle, envoltos em +nuvens de p, e o afflicto lavrador, de p e coberto, tinha lanado mo +das redeas do corsel. + +Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o ltego, silvando, +cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe +ameaou o peito com s patas Fra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do +conselho! Garcia desviou-se quasi cego de dr, e Sueiro, cravando as +esporas nos ilhaes, voou redea larga por cima das hortas e ceras, +bradando: Sus! Abca! + +O aoute infamante no cortou o corpo, cortou a alma ao desgraado. +Recuando para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as +pupilas inflammadas, poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um +rujido surdo expirava ao mesmo tempo flr dos labios. A vida do homem +orgulhoso e mu estava merc d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o +ajustou a seta. O que no intimo peito diziam o desespero e a colera era +medonho. O rosto no o encobria. Ao apontar o tiro a vista ardente +elevou-se ao ceu. Pedia perdo, ou auxilio? + +De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e +melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram ento dos olhos +seccos do velho; os braos descairam. Quiz vencer-se e resistir, no +pde. O arco fugiu-lhe das mos, e a bocca murmurou: + +Fra matal-a tambem a ella! Enxugando depois as palpebras entregou a +Deus o castigo do oppressor. + +Mas a desgraa entrra no seu campo com Sueiro Lopes. + +O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fra +aviltado, Garcia no parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o. +Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos, +acudindo ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma +oliveira plantada pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre +orph, confiscada caiu nas mos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha, +sem parentes, e protectores, teria morrido de frio e de fome se lhe no +valesse a caridade dos amigos do besteiro. Um deu-lhe a casa e o +sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de sua gentilesa, +soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a donzella +em edade e formosura; mas medida que os annos corriam, o rosto pallido +e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas +faces as lagrimas e no as entendia. que o po da esmola, mesmo dado +com amor, sempre trva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando +para o tecto da casinha, de que fra desherdada, apertava-se-lhe o +corao por medo tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da +sepultura, aonde seu av descansava, aonde todos os seus dormiam! + + +IV + +Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoo +tinham lanado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de +terra. Sueiro Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras +tantas viuvo, cada vez se havia feito mais aspero e cruel. + +Mal raiava a manh as buzinas acordavam logo as solides. Assim que a +noite se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem, +illumminando-se, reverberavam o claro das tochas do festim. Os gritos, +as risadas, as blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham +perto do castello. Os vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os +deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O +abutre j no empolgava s a vida e os bens dos villos; abrazado em +ardor impuro cevava a sensualidade na honra das filhas da aldeia. +Rindo-se do temor de Deus, arrastava sem piedade pelo lodo de amores +infames a innocencia das mais formosas e a virtude das mais honestas. Um +sorriso, um olhar d'elle era como a fascinao do reptil. Por onde +passava, as flores mais frescas, e mais puras caiam desmaiadas. + +Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces +realava a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura +contemplativa dos olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava +os mais suaves affectos. O vivo carmim dos labios abotoando as rosas da +bocca, redobrava os encantos ao sorriso meigo, tornando irresistivel o +requebro e a graa virginal da phisionomia namorada. A voz, fresca e +melodiosa, insinuando-se no corao, era o seu maior attrativo. +Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para quem havia de +levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia palpitar +de esperana, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubial-a +foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso +sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o +no fugindo a suas caricias? Mas s primeiras palavras o rubor do pejo +incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de esmeralda +fuzilou a ira. Soltando as mos envergonhada e offendida, furtou-se s +garras do aor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento +saltou-lhe da bocca por entre sorrisos lividos. + +--No sers esposa sem primeiro seres amante! Pedirs de joelhos o que +hoje engeitas! Sei atalhar os rodeios corsa. Sei aonde o golpe fere +seguro! + +Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e +soffocada no suspendeu a carreira seno porta da cabana aonde morava +a velha Aldona, conselho e consolao de toda a aldeia. As linguas +maldizentes affirmavam, que a velha no era decrepita, nem mendiga, mas +fada, e que sabia ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam +prodigios do seu poder! Alguns chegaram a asseverar at, que ella e a +serpente encantada tinham nascido irmans, e se juntavam em colloquio +meia noute. Quando a donzella appareceu, Aldona, sentada em um penedo +diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a e sorriu-se. Enrolou +depois a estriga, puxou o fio, e medida que o fuso girava, e que a +linha se enrolava, meneava a cabea, como se estivesse vendo, ou +ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto. + +--Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim +assustada. O aor cubiou a rolinha? Havia de ser! Estava escripto l em +cima, e o que ha de acontecer muita fora tem. Conta-me tudo. O que te +disse? O que lhe respondeste? + +Quando Silvana terminou, redarguiu a velha: + +--Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o +homem. A aguia real j a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes +novidades, filha! Apesar de agudas, as garras do aor no ho de +ferir-te. Vai d'aqui fonte da moura e dize que sim a quem l +encontrres. No te demores. D'onde se no espera vem o remedio. Has de +ser feliz! + +Ditas estas palavras, abysmou-se em to profundo scismar, que parecia +morta. No quiz saber mais a donzella. Voou fonte com a f viva dos +quinze annos e da esperana. Ao p do primeiro lamo parou e tremeu. No +vira a serpente, nem a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e +gentil, filho do mais abastado cavalleiro villo das cercanias. Porque +lhe esmorece a ella de subito a vermelhido das faces affrontadas da +corrida? porque lhe bateu o corao no peito to atropellado? Tello +Vasques, o melhor besteiro depois da morte de Garcia do Marnel, era o +noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas disputavam com mais +inveja. Debalde! A vista d'elle no se baixra para nenhuma, nem a sua +bocca se abrira para dizer uma palavra terna mais galante. Silvaninha +fra a sua primeira e unica paixo. Combateu-a e calou-a por muito +tempo, com receio dos pais, mas por fim, no se podendo conter, +decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mo. Ninguem sabia o segredo do +mancebo seno Aldona, porque d'essa nada se escondia. E a donzella?... +Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio +corao, que, alvoroado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor. +Quando parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli. +Sem foras para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe s faces o +rubor em ondas, e a vista no ousou despregar-se do cho. O tremor +convulso que a agitava fazia-lhe arfar o seio. + + +V + +Tello Vasques no estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural +dos olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas. +Encobrindo que a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe, +e uma especie de deslumbramento turvou-lhe a vista. A mo suspensa, a +cabea inclinada, o gesto cheio de timidez retratavam a vontade presa do +enlevo sem fora para dissimular, e ainda menos para combater. Assim +ficaram por minutos. Immoveis, calados, contemplando-se, e fallando s +com o corao. A felicidade era to grande, que no achavam termos que a +pintassem. Quem encostasse a mo ao peito do robusto besteiro, +sentindo-o pulsar agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem +escutasse o palpitar ancioso do seio de Silvaninha no precisava +perguntar-lhe se tambem amava! + +Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro +recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua, +sussurrando preguiosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas +relvas que aveludavam o cho. Mais longe, a pequena levada afundava-se +com estrepito pelas fendas musgosas dos penhascos debruados sobre o +valle. Em baixo, no fim da encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos, +de pomares, e de campos viosos, contrastando com o arvoredo sombrio, +que entristecia ao largo a paisagem. Depois, a perder de vista, a cr +arida e melancolica das charnecas desatando-se at aos cabeos da serra, +cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens. Uma brisa louca, +mas amena, doudejva na campina, ramalhando as folhas, brincando com os +arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os rouxines nas +moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra casava a +voz estridula com o coaxar das rs. As sombras, delgadas ainda, +comeavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam +a pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino azul do +firmamento e o verde fresco das arvores e plantas. + +Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si +primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de +travessa ameaa e disse: + +--Vs aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que +quereis que digam da pobre Silvana, que no tem seno o seu nome?... + +A voz era queixosa, e no irada. O timbre harmonioso avivou no peito do +mancebo o ardor da paixo. Depois os olhos sorriam animados de malicia +to innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperana, leu amor. De +repente ficou outro. Pegando-lhe na mo, e beijando-a, a voz +soltou-se-lhe, e a vista, cobrando valor na vista d'ella, tornou-se to +eloquente, to avida de ternura, que ella baixou outra vez as palpebras. + +--Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um +no podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Ds-me o sim? + +O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das +faces sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se +de lagrimas, lanaram sobre o rosto as sombras da mais resignada +tristesa. Sem retirar, ou entregar a mo, que o mancebo prendia nas +suas, a neta de Garcia do Marnel, esquecido o conselho de Aldona, +respondeu singelamente: + +--Tello, no vos darei j o sim; no quero arrepender-me. O filho de +Ayres Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, no deve +escolher a sua noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de +Algoo. Amo! Porque hei de negal-o? Mas pelo muito amor que receio +acceitar. O que ha de trazer em dote a orph sustentada pela caridade +dos visinhos seno lagrimas e saudades d'aquelle cho, aonde dorme sem +vingana, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar, o velho que duas vezes +foi seu pai, e que por ella morreu de dr? No, Tello! No pode ser! + +Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo +admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dr +fazia irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa +a magoa intima, por tal modo lhe realavam a formosura, que o besteiro +no sabia se era anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil +attractivos. Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle, +o homem forte, o filho de uma raa leal e rude, como o seculo em que +vivia, sentiu rebentar o pranto, e no se envergonhou de o deixar +correr. + +--A tua vontade, Silvana, ser a minha! disse por fim. Mas por amor te +quero, e no justo que por amor te perca. O que vale dizer a bocca +no, se os olhos, mau pesar teu, esto dizendo sim? Dizes que o dote que +me trazes de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas lagrimas +piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse +corao o teu maior thesouro. Hontem no podia viver sem ti, hoje +morria se te perdesse. Silvana!... No n'o escondas! O senhor tentou-te +de amores, e jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus ser comnosco. +O meu arco no erra. A seta vae sempre aonde a mando! + +No cedeu ainda a donzella, mas Tello no se enganra: o corao +desmentia a bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accsa em pejo +desappareceu como se toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado, +que no seguinte dia iria Tello ao solar pedir licena a Sueiro Lopes. Os +noivos sem ella no podiam receber-se na igreja de Algoo, e Silvana +desejava tanto que seus amores fossem abenoados, aonde o tinham sido os +de seu pai e seu av, que o besteiro no ousou contrarial-a. Altos +juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente dos senhores de +Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria todas as +culpas da sua gerao, todos os crimes da sua vida. + + +VI + +Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro, +correndo a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos +que findava porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha +de monteiros, de guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e +folgando, em quanto os moos de monte sustinham das trllas as matilhas +impacientes, cujos saltos e latidos formavam condigno acompanhamento aos +alaridos dos caadores. No meio do prestito jovial uma azemola conduzia +atravessado em duas varas o corpo de um javardo, victima enorme e +cerdosa sacrificada depois de aturada fadiga e renhido combate, segundo +attestavam os golpes, com que suas navalhadas presas tinham descosido os +mais valentes e fugosos ces. + +Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso, +trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava, +entre chufas e galhofas, a orao funebre do pingue eremita, que todos +haviam corrido sem parar desde a madrugada at ao pr do sol. + +D. Sueiro, que se apartra d'elles ao p da fonte da moura, era o unico +serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda, +e nem o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu +venabulo, lhe arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a +levantar. Que magoa, ou que remorso entristecia o senhor de Algoo? Nas +trevas, nas horas atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a +viso terrivel, com que na raa de Biscaia a sombra de Diogo Lopes +avisava a cabea da familia de estar proximo o dia dos ultimos e tardios +arrependimentos? Ao p da fonte apeiou-se, e, com a cabea entre as +mos, alongou a vista at aos montes fronteiros. O olhar vago e perdido +dizia que o espirito no se achava ali. De repente rangeram e estalaram +os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma figura. Ao ruido +o rico-homem levou a mo ao punho da espada, inculcando sobresalto sem +receio. O mdo nunca entrra n'aquelle peito inaccessivel piedade. + +--Quem s? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o +robusto e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mo, e frechas passadas +no cinto, se lhe descobria subitamente. + +Este no se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas +accusavam, assomou-lhe s faces morenas um leve rubor e as pupillas +negras faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais fora os +copos da espada. + +--Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vs buscava! + +A firmesa do tom e a conciso da resposta desagradaram ao cavalleiro. +Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os +beios. + +--O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoo, fra do +seu castello, n'este logar deserto? + +A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo. + +--Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em +vossas terras a donzella que ha de ser minha mulher. + +--Ah! S isso?! E bonita e moa a tua noiva? Por fora a conheo +ento. Como se chama? + +Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as +furias do ciume se levantaram no peito do mancebo. Conteve-se, porem, e +retorquiu: + +--A mais formosa da aldeia. a Silvana do Marnel. + +--A Silvaninha? A perola de Algoo? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pes +alto o pensamento, villo. Muito alto! Manjares de senhor no se do a +servos. + +Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o brao a Tello. A mo +procurou a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram +no peito do rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas +disfarou. Continuando a pungir o mancebo com mofas, proseguiu: + +--Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor +cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o +resgate de um baro? Cuida o villo que eu havia de enterrar na sua +posilga a roza dos nossos sitios? + +--Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume. + +--Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o p no estribo e sacudindo o +ltego no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com +mil ameaas nos olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisav te juro, que +tantas noutes dormirs na cisterna do meu castello, que de l te +arranquem cego e doudo! + +--Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. S Deus sabe aonde vs +dormireis hoje! + +O cavalleiro ja tnha cravado esporas no corsel, e comera a levantar o +galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, +parou o cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a +vista sobre elle, disse-lhe rindo affrontosamente: + +--Villo! No has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer +de fios de ortigas, nascidas na sepultura do av, duas camisas para mim, +dou licena que se chame tua mulher. uma joia por um ceitil! uma das +camisas ser o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar +com ella no dia seguinte. At l que no vos torne a ver a ambos! + +A esperana acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco, +fugiu-lhe a luz da vista, e sentiu-se to prostrado, como se o sangue se +lhe esvaisse todo. Quiz fallar e correr, mas os ps arraigavam-se ao +cho. A mo inerte no se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi +suspendido a vida. Quando volveu a si para olhar em roda, avistou ao +longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito, e pareceu-lhe ouvir +estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou ento ao ceu a +vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu a noute +sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas arvores sem elle o +sentir; e as primeiras gotas da chuva, nuncias da tempestade, +orvalharam-lhe a cabea nua, sem o despertarem da amargura. Ao rebombo +dos troves que acordou, e que principiou a afastar-se com passos +vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illuses lhe sorrira alegre, +e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanas da +existencia. + + +VII + +--O aor encontrar a aguia. Sinto-a j voar! No chores, Silvana, sers +feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar +na aljava. Esta noite, meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja. +Ajoelhai e rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e +esto n'ella viosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e +duas, e traz-m'as no regao fonte da Moura. Vespera de S. Joo ha de +torcer-se o fio. As duas camisas no ho de faltar. A semana que vem +ser a do noivado e a do enterro. Ouvis dobrar o sino? A aguia no +tarda. Enxugai os olhos. + +E a velha Aldona, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da +feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condio, +que s daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da +sepultura do av duas camisas. + +--Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando. + +--Por que no fugimos ns? acudiu elle a meia voz. + +--Por que ninguem foge sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a +mo alva e breve de Silvana entre as suas. No vos demoreis. meia +noite, ao romper da lua, todos tres na fonte da Moura! + +Era j escuro, e as estrellas comeavam a scintillar. Suspirava a +virao por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de +sombra as sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza +silvestre entrelaava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da +egreja, entre rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um +arco no topo. Ali repousava de setenta annos de edade e de fadigas o av +da donzella. Segundo afirmra Aldona, uma sera de ortigas vestia o +cho. Como o pranto se corre pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a +orao sobe pura e fervorosa de seus labios ao regao dos anjos, que vo +depor aos ps do Senhor! Mais afastado, Tello, tambem de joelhos, orava +com ardor; mas aquelle peito, menos brando, mistura com as preces vozes +de vingana. Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o +p dos que amra se volvera ao p, principiou a cumprir as ordens de +Aldona. A duas e duas foi apanhando as ortigas. Quando acabava chispou +no outeiro mais proximo a labareda da primeira fogueira, e soou na voz +de bronze do sino o primeiro repique. A lua rompia de traz da serra, e o +seu claro branco allumiava toda a campina. Era a hora aprazada. O +mancebo deu a mo a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro d'alma, +que nenhum fallou em todo o caminho. + +Quando chegaram no viram seno uma serpente, fugindo por cima dos +penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha +Aldona appareceu de repente ao p da fonte, e acenou-lhes. Recebendo +das mos da donzella as tres regaadas de ortigas, banhou-as outras +tantas vezes na agua encantada, pronunciando algumas palavras a meia +voz. Passados minutos tirou-as do tanque reduzidas a feveras finas, como +o fio que tece a aranha. Tres dias decorreram. Em todos elles no cessou +de girar o fuso da velha. + +No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear. + +Quando a semana pendia s de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo +pela choupana, olhou, e viu Aldona porta, cozendo com Silvana uma +tela to branca e transparente, que deslumbrava. + +--Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta +pressa? + +E o cavalleiro no tirava a vista dos dedos afilados da donzella que +voavam sobre a costura. + +--Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabea. +Aquella a camisa do noivado, esta a camisa do enterro. Ortigas do +cemiterio nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres +dias estaro acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o +morto no caixo. + +Ouvindo-a, o rico-homem mudou de cr e largou as redeas ao cavallo. A +velha, vendo-o correr, exclamou, meneando a cabea: + +--Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa! + + +VIII + +Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se +saida do estreito portal, e mais de um moo airoso, de rosto bronzeado, +distrahe a vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos +cheios de reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos +ps, o borburinho e os alaridos das creanas, saltando pelo adro, animam +de ar festivo a scena popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se +encaminha de vagar para a sua morada, estendendo a beno pelos aldeos, +Silvana, sempre pallida, ampara no brao delicado o corpo de Aldona. Os +villos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as +mulheres acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras, +tomam-as por intercessoras de suas peties. Encostado a uma oliveira +antiga, Tello, de braos crusados, e com o arco a tiracollo, no +desprega a vista namorada da neta de Garcia. + +Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as est esperando, um +homem de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos, +apressando o passo, adianta-se, e chega primeiro. simples o seu trajo. +Guarda-coz de ipre verde desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo +estofo, sem plumas, assenta com desgarre fragueiro sobre os cabellos +pretos, cujos anneis se debruam sobre o cabeo da golla. Era de villo +o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam condio mais nobre. Nas +pupillas inquietas, e por vezes desvairadas, retrata-se a indole +ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos. + +As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaos a +serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas +rapidas ao semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam +as feies de um caracter afeito a dominar, de um corao ferido de +golpe irreparavel, de uma mo que no combate das paixes nem sempre ha +de conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos. + +Afagando com a mo direita as compridas barbas, e concertando com a +esquerda o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que no +pde contar ainda quarenta annos, e que entrra na egreja sem nenhum dos +fieis se lembrar de o ter visto nunca, comeou saida a fallar com uns +e com outros, fazendo perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por +entre o povo veiu collocar-se no sitio, aonde o descobrimos diante de +Aldona e Silvana, to proximo de Tello que este no perdeu palavra do +que disse. Sem saber porque, o besteiro, de ordinario cioso e assomado, +em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia do monteiro. Parecia +que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia n'este +momento a sua sorte. Era to grande n'elle a tranquillidade de animo, +como se a noiva adorada estivesse debaixo da proteco d'aquelle que +duas vezes chamra pae. A velha Aldona, apenas divisara o hospede, +exclamou como rejuvenescida de repente: + +--Filha! No t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto. +Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder. +Muita f em Deus e na justia de Elrei D. Pedro. + +--No a f que me falta, redarguiu melancholica a donzella, a +esperana, me!... Elrei est longe e to alto, que no podem vencer de +certo metade do caminho as queixas da orph. + +--Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a +formosura de Silvana. Pegando-lhe na mo, ajuntou: + +--El-rei D. Pedro, filha, v e ouve de longe. Conta-me tuas magoas. + +Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava, +sentiu renascer a esperana, e insensivelmente socegou do maior cuidado. +Ora pallida, ora crada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte +dolorosa do av, as lastimas da sua infancia, e os amores infames que a +perseguiam. As palavras pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que +vingativa, procurava atenuar as crueldades do senhor. Quando terminou, o +desconhecido, sorrindo-se, e soltando-lhe a mo, disse: + +--Descansai! Est perto El-rei D. Pedro. como se vos ouvisse. Mandai a +Sueiro Lopes a camisa da mortalha, no a pediu de balde! Se o cavalleiro +fr desleal, ou se vos quizer tirar por fora, enviai-me este signal. +Deus e El-rei sero comvosco! + +Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello, +accrescentava: + +-- o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... No creis, +Silvana! Se o besteiro fr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle +em Miranda. Adeus! No vos esquea!... Ao primeiro perigo, um recado e o +signal. O mais fica para mim. + +Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos +ps da noiva, que Aldona animava, annunciando-lhe proximo o termo de +seus pezares. + + +IX + +Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a p a ladeira do +castello de Algoo, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas +escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes; +alma negra do senhor, aonde alcanra com o brao deixra sempre +vestigios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, +o villico (era o seu titulo n'aquelle tempo) no pde conter o sorriso, +rosnando por entre dentes: quantos vo que no voltaro! O noivo de +Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas porta +despediram-o asperamente, respondendo que Sua Merc repousava, e que +ninguem o despertaria para dar audiencia a um villo. A principio Tello +pde sopear a ira, mas a pouco e pouco a altercao irritou-o, e +levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de repente porta. Inteirado do +motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e perguntou: + +--A que vens aqui? + +--Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu +elle friamente. + +O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que no soube vencer, +sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que +vira na choupana de Aldona, e tremeu pela primeira vez da sua vida. +Depressa se recobrou e medindo o mancebo com indizivel escarneo, +replicou: + +--Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da +sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha +mortalha. Palavra de cavalleiro no quebra! Se cumpriste, no hei de +faltar. As camisas?... + +--Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o +panno. + +Era o mesmo que j lhe respondera Aldona. A maravilhosa tela, que o +noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem +mostrava no ser obra de mos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro +tremia. Sobre o peito, em lettras cr de sangue, viu as iniciaes de seu +nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feies das +tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito. + +--Bem! exclamou. Silvana tua se a achares. Quanto mortalha.... +Veremos esta noite quem a veste! + +No esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho +da choupana de Aldona. Um presentimento vago advertia-o de perigo +incerto. A tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a ba nova, que +levava, devia alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado. +Rugindo no pinhal o vento arrancava por entre as ramas das arvores +gemidos lugubres. No cu apagavam-se as estrellas umas apz outras +debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima +do ultimo outeiro. Sem saber porque, sentiu-se Tello desalentado. Elle, +o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos, +deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando +chegou choupana, achou a casa rma e a porta arrombada, e acabou de +crer que os pressagios no mentem. Bastava olhar para dentro para +adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e luz +mortia deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as +arcas espedaadas. O pobre catre de Aldona, despido de roupas, jazia em +um feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar as ideias. O golpe +inopinado tinha-lhe quebrdo as foras. Nem o animo, nem a razo se +prestavam a ajudal-o. + +Fra rapto? Fra vingana mais atroz? A mudez da cabana no respondia! +Saltaram-lhe ento as lagrimas, e a dr foi to penetrante, que a no se +encostar cara desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes, +e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do +Castello, e quella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para +ella eram as portas do sepulchro. _ tua se a achares!_ dissera o +roubador. A quem iria Tello pedir justia? Luctando com a agonia sentiu +que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava donzella seno a morte +depois da infamia? No auge da desesperao, erguendo as mos, bradou +atribulado: Senhor! A vingana mais vossa, do que minha! No +embainheis a espada da justia! + +No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mo de uma mulher no hombro. +Olhou. Viu Aldona. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito +que iam soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a +um logar deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco +de uma arvore, disse-lhe rapidamente: + +--Monta! + +O besteiro obedeceu. Entregando-lhe ento a trompa de prata, a velha +ajuntou: + +--O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva. +Corre, que por tua felicidade corres, e no pares seno na villa de +Miranda. Busca os Paos do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem s, +dize que procuras o senhor. J o viste. o monteiro d'esta manh. +D-lhe a trompa, conta-lhe o succedido, e faze o que te mandar. Antes de +sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas tero +cumprido o seu fado. + +O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu +direito villa. + + +X + +Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os +penedos do seu leito! Que troves rebramam as aguas despenhadas em +cascatas contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a +noute se cobre de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos +bramidos do vento responde o estampido longinquo da tempestade. Os +relampagos fuzilam sobre as eminencias. + +L em cima, nos penhascos fragosos, que villa aquella, cujas torres +negras estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a +margem do rio, Tello Vasques no sente fadiga; o brioso corsel devora a +distancia. Batia a hora de se alarem as levadias, quando o mancebo +atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pra no terreiro, +defronte dos Paos do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os +degraus a dois e dois at ao portal da primeira sala. Os guardas +intentam detel-o; mas sem voltar a cabea, e continuando, responde: +busco o senhor! Ninguem o suspende. De corredor em corredor, de aposento +em aposento chega sala de armas. Entre os cavalleiros, que passeiam, +divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-coz ainda. + +Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de +armas brunidas, achas, montantes, lanas e adagas entrelaadas em +caprichosos ornatos enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados +sustentam os fechos da abobada. O monteiro, apercebendo Tello, +encaminhou-se para elle. O mancebo vinha to soffocado, que pde dobrar +apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi preciso que elle sorrisse +para o besteiro narrar o successo, que o trazia quella hora. +Concluindo, o moo ergueu as mos, e com a vista inflammada bradou: + +--Levai-me aos ps de El-rei D. Pedro. Dizem que no conhece grandes, +nem pequenos. A donzella, que roubaram, pura e santa como a mais pura +e nobre de vossas filhas. No deixeis sem castigo o rico-homem por ella +ter nascido no bero de um villo! + + medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de +aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e +jovial, empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O +gesto infundia medo at nos que se achavam distantes. Quando Tello poz +termo a suas queixas, e levantou a vista, recuou assustado. A expresso +dos olhos do seu protector era terrivel. Ensanguentados e delirantes +mais se assimilhavam s pupillas encandeadas do tigre, do que a olhar +humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, fallava to convulsa, que +pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes +brados: + +--Loureno Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas +filhas! + +O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Loureno +Gonsalves era o corregedor da crte. Ninguem ousaria chamal-o assim +seno el-rei. Tello prostrou-se cheio de esperana. + +--Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado porta! A minha +capellina de ao! Gonsalo Vasques de Goes, escrivo da Puridade! Chamae +os desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentena. Por alma +de Ignez de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de +nascer o sol haver um criminoso de menos no meu reino, e mais uma +justia de minhas mos no livro de suas chronicas! + +Fallando assim enlaava a capellina, calava as luvas de gamo, e com o +aoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada. + +O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns +apoz outros galoparam para o alcanar. El-rei ia deixando atraz do +cavallo o proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de +Algoo. Por cima d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes. +A procella abria os ceus em clares lividos, desarraigando as arvores +annosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castello, um vulto +surgiu, que tomou-lhe as redeas, convidando-o a apeiar-se. De um salto +estava em terra e levantando a cabea via as frestas da torre +illuminadas. O vulto travou-lhe do brao, e disse: + +-- ali! + +--Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiana. + +Uma entrada falsa, alm do fosso, cedeu chave e ao impulso. + +--Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz. + +Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro +subiu. No topo da escada de caracol, a scena que se lhe representou +excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar do nome +Justiceiro se perdoasse aquelle crime. + +Era espaoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto +mergulhava-se em meia escurido. No centro da sala, em um leito, com as +mos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de leno sobre a bocca at +os ais lhe suffocavam! S os olhos, os lindos olhos, banhados de +lagrimas pediam a Deus a morte, remedio extremo da infamia. Sueiro +Lopes, defronte, sorria-se medindo com a vista a queda lenta da areia +d'uma ampulheta. A seu lado o villico silencioso corria os dados sobre a +mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com as ortigas do tumulo, +estava nas mos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas como punhaes, +atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos +senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos. + +--Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo +por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste no. A tua +prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e +os anjos porque chamavas! Brada pelo besteiro villo, que preferiste ao +rico-homem! Grita por el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu brao as +portas chapeadas d'este castello ainda so mais fortes. Em esta areia, +que est por instantes, cahindo toda... + +Faltou-lhe a voz. A mo erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo +dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um +claro terrivel. A pesada acha reluzia em suas mos. + +--Traidor! bradou o principe. Mentes! O brao de D. Pedro quebra e rompe +todas as portas. Vais ver!... Villo! ajuntou fallando ao villico. Solta +as mos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta +bem os gros de areia da tua ampulheta. o tempo que te dou. Vais +comparecer na presena de Deus! + +O orgulho indomito do cavalleiro no cedeu. Empunhando a adaga, e posto +que pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu: + +--Quem d aqui ordens e ameaa? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro +Gonsalves? O rei carrasco, falso sua alma e alma de seu pae? +Imaginas que farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a +quem entra de noite e m f chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os +laos da captiva. No alto e no baixo, irado e pagado, no entrego o +castello seno a Deus. A mim, homens d'armas! + +--Deus justo! clamou el-rei, cuja furia no conhecia limites. O +matador de tres mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor +cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrers como villo +s mos dos teus villos. No mancho em tal sangue o ferro da minha +acha. Villos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. +Sou D. Pedro! Sou o rei! Esse que ahi est, rebelde e traidor, +prendei-m'o em quanto os meus no chegam! + +A presena e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens +d'armas temiam, mas no amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida. +Depois de curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou merc de +el-rei. + +--Passae um lao na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle +subir, e cingi-lhe o n na garganta! proseguiu o soberano indignado. + +--Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, car +sobre vs e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-ho contas d'ella, +verdugo! gritou o cavalleiro estorcendo-se. + +--A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas +no cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro. + +Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico +enrolava-lhe o lao. Commovida e tremula, Silvana lanou-se supplicante +aos ps do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente: + +--Pedes perdo a Deus e ao teu rei? + +--No! + +O p do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras +do cavalleiro. + + +XI + +A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do +castello, annunciou aldeia alvoroada a vinda do monarcha. Tello +Vasques apparecia porta quando Sueiro Lopes expirava. + +--Besteiro! Por teus olhos vs que me no chamam em vo o Justiceiro. +Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A +justia do rei ainda andou mais veloz do que o amor! + +Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na +capella, e os noivos recebiam a beno nupcial, tendo el-rei D. Pedro +por seu padrinho. + +Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que no esqueceu nunca foi +a justia que fizera em Algoo a severidade do monarcha. + +O castello devolveu-se cora, e parece que fra doado depois ao +primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi +verdade ou fabula, no sei. El-rei D. Pedro era to capaz de fazer +cavalleiro um villo, como de justiar como villo um cavalleiro. + + + + +ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA + + +I + +O Senhor D. Jos, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em frias. +A verdade que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em +Lisboa estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O +proloquio fundava-se na habilidade mechanica do monarcha como torneiro, +e no caracter dominador do marquez como ministro. + +Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de +flres, os bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e +a brisa doudejava indiscreta arregaando o leno donzella que passava, +ou roubando um beijo rosa perfumada. Tudo eram alegrias e canticos... +os rouxinoes nas moutas, o corao nos amores, e a naturesa nos sorrisos +ao sol esplendido que a dourava. + +Uma tourada real chamra a crte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam +n'estas occasies menos opprimidos. No os assombrava to de perto a +privana do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o +amphiteatro pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na +bocca de todos. Por cumulo de venturas o marquez de Pombal ficra em +Lisboa, retido pelo conflicto com o embaixador de Hespanha. + +Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o +enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em +alta voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio, +crucificando-o outros sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e +os fidalgos puritanos eram pelo hespanhol, e pediam a Deus que os +rebates da guerra proxima despenhassem o plebeu nobilitado. Os +magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o marquez e +respondiam com meios sorrisos s fogosas jaculatorias dos zelosos do +throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa s +concesses exigidas imperiosamente pelo governo castelhano. + +--Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito de sessenta mil homens +entrar em Portugal e far... + +--O qu? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta +assestada e no tom mais indifferente. + +--Far entender a raso e a justia de el-rei, meu amo, a Sua Magestade +e a vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo +o ministro fulminado. + +Sebastio Jos de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira, +e cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente: + +--Sessenta mil homens muita gente para casa to pequena, mas, querendo +Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa +hospedal-a. Mais pequena era Aljubarrota e l couberam os que D. Joo de +Castella trouxe. Vossa excellencia pde responder isto ao seu governo. + +E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou: + +--Bem sabe vossa excellencia que pde tanto cada um em sua casa, que +mesmo depois de morto so precisos quatro homens para o tirarem! + +O embaixador sau jurando por _Dios y la Virgen Santisima_ e o marquez +preparou-se para a guerra. O caso como dizia o nosso Zeferino na +_Sobrinha do Marquez_, que Sebastio Jos de Carvalho foi um grande +ministro e que fez muito pela nao. Hoje ha menos quem responda assim +lettra s ameaas dos estrangeiros. Berra-se muito, dorme-se a somno +solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello de +madrugada e est salva a patria! + +O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes +medias. Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a +industria nunca acabou de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos +maus governos que succederam ao seu, e tambem do povo que no quiz +trabalhar deveras... Mas vamos aos touros reaes. D'esses que o +ministro no gostava nada. Queria-os ao arado e no farpa, e +parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o +Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem, +tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e +nao. + +Mas el-rei D. Jos, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros no +admittia reflexes. N'isto era rei a valer e Bragana legitimo. Os +fidalgos sabiam-o e por isso disfructavam dces prazeres--a satisfao +do gosto nacional, e a contradico da vontade do ministro. Desatendel-a +sem perigo e pela mo do soberano era para elles um deleite e um +triumpho. + +N'estas funces no vigorava a severidade das ultimas pragmaticas. +Outro motivo de jubilo. Quem queria podia arruinar-se em luxuosos +vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os +veludos e sedas de fra, talhados franceza, resplandeciam constellados +de perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais +vistosas cres desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas +cabelleiras. As damas ostentavam as graas de seus donaires e tufados, e +emoldurando o bello oval dos rostos nos penteados caprichosos sorriam-se +para os gentis campeadores, e seus olhos cheios de luz e de promessas +estimulavam at os timidos. + +Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou +el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e v-se +ondear um oceano de cabeas e de plumas. Na praa resoam brava alegria +as trombetas, as charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros, +fidalgos distinctos todos, com o conto das lanas nos estribos e os +brazes bordados no veludo das gualdrapas dos cavallos. As plumas dos +chapeus debruam-se em matisados cocares, e as espadas em bainhas +lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e forcados vestem com +garbo castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o +enthusiasmo. + +O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O +seu trajo, cortado moda da crte de Luiz XV, de veludo preto, fazia +realar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete sobresaiam +as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas bordadas +deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O conde +no excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os +seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais, +porm animadas de grande expresso, e o fulgor das pupillas negras +fuzilava to vivo e por vezes to recobrado, que se tornava +irresistivel. Filho do marquez de Marialva, e discipulo querido de seu +pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavallo, a +nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Elle e o +corsel, como que ajustados em uma s pea, realisavam a imagem do +centauro antigo. + +A bizarria com que percorreu a praa, domando sem esforo o fogoso +corsel, arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta, +obrigando o cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que +uma dama escondesse torvada no leno as rosas vivissimas do rosto, que +de certo descobririam o melindroso segredo da sua alma, se em momentos +rapidos como o faiscar do relampago podesse alguem adivinhar o que s +dois sabiam. + +El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e +disse voltando-se: + +--Por que vir o conde quasi de luto festa? + +Principiou o combate. + +No proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem +assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de +notavel. Diremos s que a raa dos bois era apurada, e que os touros se +corriam desembolados, hespanhola. Nada diminuia, portanto, as +probabilidades do perigo e a poesia da lucta. + +Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um +touro preto investiu com a praa. Era um verdadeiro boi de circo. Armas +compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de +grande ligeireza, e movimentos rapidos e bruscos, signal de fora +prodigiosa. Apenas tocra o centro da praa, estacou como deslumbrado, +sacudiu a fronte e escarvando a terra impaciente, soltou um mugido feroz +no meio do silencio, que succedera s palmas e gritos dos espectadores. +Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos as trincheiras, fugiam +velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres cavallos expirantes +denunciavam a sua furia. + +Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa. +O touro pisava a arena ameaador e parecia desafiar em vo um contendor. +De repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da +fra e a hastea flexivel do rojo ranger e estalar, embebendo o ferro no +pescoo musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma acclamao immensa do +amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas e charamellas +encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope +por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o +cavallo, a mo alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, +curvando-se com donaire sobre os ares, apanhou a flor do cho sem +afrouxar a carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo +depois com o touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o +estreitando em volta d'elle os circulos at chegar quasi a pr-lhe a mo +na anca. + +O mancebo despresava o perigo e pago at da morte pelos sorrisos, que +seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro +com a ponta da lana. Precipitou-se ento o animal com furia cega e +irresistivel. O cavallo baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na +perna, no pde levantar-se. Voltando sobre elle o boi enraivecido +arremessou-o aos ares, esperou-lhe a quda nas armas, e no se arredou +seno quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu +inimigo era um cadaver. + +Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja +consummada a tragedia e no havia expirado ainda o echo dos ultimos +aplausos. + +De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias, +emudeceu o circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fra dos camarotes, +fitavam a praa sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como +para seguir a alma, que para l voava envolta em sangue. + +Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o cho, +um gemido agudo, composto de soluos e choro, caiu sobre o cadaver com +uma lagrima de fogo. Uma dama desmaiada nos braos de outras senhoras +soltra aquelle grito estridente, derradeiro ai do corao ao rebentar +no peito. + +El-rei D. Jos, com as mos no rosto, parecia petrificado. + +A crte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dr. + +Mas o drama ainda no tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade +iam cortar de novas magoas o peito a todos. + +O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na +gentileza do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando +radiosos a cada sorte feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se +de uma nuvem o semblante do ancio. Quando o conde dos Arcos sahiu a +farpeal-o, as feies do pae contrairam-se e a sua vista no se +despregou mais da arriscada lucta. + +De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos, +apertando depois as mos na cabea. Os seus receios haviam-se realisado. +Cavallo e cavalleiro rolavam na arena, e a esperana pendia de um fio +tenue! Cortou-lh'o rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho, +luz da sua alma e ufania de suas cs, no proferiu uma palavra, no +derramou uma lagrima; mas os joelhos fugiam-lhe tremulos, e a elevada +estatura inclinou-se vergando ao peso da magua excruciante. + +Volveu, porm, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto +tingiu-se de vermelhido febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e +hirtos revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas +da juba de um leo irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo, +mas terrivel, o sombrio claro de uma colera, em que todas as ancias +insofridas da vingana se accumulavam. + +Em um impeto a presena reassumiu as propores magestosas e erectas +como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando +por acto instinctivo a mo ao lado, para arrancar da espada, meneou +tristemente a cabea. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho +n'este dia que se convertera para a sua casa em dia de eterno luto! + +Sem querer ouvir nada, desceu os degraus amphiteatro, seguro e resoluto +como se as neves de setenta annos lhe no branqueassem a cabea. + +--Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas +ordens! disse um camarista detendo-o pelo brao. + +O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no +interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado +d'um pensamento immutavel. Desviando depois a mo, que o suspendia, +baixou mais dois degraus. + +--Sua magestade entende que este dia foi j bastante desgraado e no +quer perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece s ordens de +el-rei?!... + +--El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancio em voz +aspera, mas sumida. Aquelle o corpo de meu filho! e apontava para o +cadaver. Est ali! Sua magestade pde tudo menos desarmar o brao do +pae, menos deshonrar os cabellos brancos do criado que o serve ha tantos +annos. Deixe-me passar, e diga isto. + +D. Jos vira o marquez levantar-se e percebera a sua resoluo. Amava no +estribeiro-mr as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da +sua bocca no ouvira seno a verdade, e a ida de o perder assim era-lhe +insupportavel. Apenas lhe constou que elle no accedia sua vontade, +fez-se branco, cerrou os dentes convulso, e, debruado para fra da +tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe. + +A esse tempo j o marquez pisava a praa, firme e intrepido como os +antigos romanos diante da morte. Dentro do peito o seu corao chorava, +mas os olhos aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por +elles. Primeiro do que tudo queria a vingana. + +Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de p. Os semblantes +consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa +contenso do espirito, em que um sentido parece concentrar todos. + +Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, no tem egual. O +fogo, que lhe presta vida e foras, a desesperao. Deixae-o ir, e de +joelhos! Saudae a magestade do infortunio! + +O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo +na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do +cho a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. +Passou depois a capa no brao e cobriu-se. Decorridos instantes estava +no meio da praa e devorava o touro com a vista chammejante, +provocando-o para o combate. + +Cortado de commoes to crueis, no lhe tremia o brao, e os ps +arraigavam-se na arena como se um poder occulto e superior lh'os tivesse +ligado repentinamente terra. + +Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e to profundo, que +poderiam ouvir-se at as pulsaes do corao do marquez se n'aquella +alma de bronze o corao valesse mais do que a vontade. + +O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e +irado, mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada. + +Os ilhaes da fra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as +pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansao. O ancio +zomba da sua furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os +golpes sem recuar um passo. + +O combate demora-se. + +A vida dos espectadores resume-se nos olhos. + +Nenhum ousa desviar a vista de cima da praa. + +A immensidade da catastrophe immobilisa todos. + +De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O +velho aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos +ajoelharam para resarem por alma do ultimo marquez de Marialva. + +A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a +pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a +espada fuzilar nos ares e logo apz sumir-se at aos copos entre a nuca +do animal. Um bramido, que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado +na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama. + +Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o +joelho, com a fora do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver. +Sem fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraar-se com o corpo do +filho, banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos. + +O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezo da morte, veiu apalpar o +sitio aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem +vida ao lado do cavallo do conde dos Arcos. + +N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram. +El-rei, de p e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal, +coberto de p e com signaes de ter viajado depressa. + +Sebastio Jos de Carvalho voltava de proposito as costas praa +fallando com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo. + +--Temos guerra com a Hespanha, senhor. inevitavel. Vossa magestade no +pde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se +continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal vela. + +--Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os +touros reaes emquanto eu reinar. + +--Assim o espero da sabedoria de vossa magestade. No ha tanta gente nos +seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro. El-rei consente que +v em seu nome consolar o marquez de Marialva? + +--V! pae. Sabe o que ha de dizer-lhe... + +--O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como est o +conde. + +El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praa em +toda a magestade de sua elevada estatura, levantou nos braos o velho +fidalgo, dizendo-lhe com voz meiga e triste: + +--Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia so para darem +exemplos de grandeza d'alma e no para os receberem. Tinha um filho e +Deus levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e +el-rei, meu amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa +excellencia. + +E travando-lhe da mo, levou-o quasi nos braos at o metterem na +carruagem. + +D. Jos I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca +mais se picaram touros reaes em Salvaterra. + + + + [1] A prematura morte do illustre auctor d'este livro no lhe + permittiu concluir este admiravel romancinho. As paginas, porm, + escriptas representam um tal primor de litteratura, que fra falta + imperdoavel condemnal-as obscuridade. Os amadores de boas letras + de certo nos agradecero a resoluo tomada de no os privarmos de + alguns momentos de no muito vulgar leitura. + + EDITOR + + [2] O castello de Almourol j figurava na epocha da dominao dos + romanos. D. Gualdim restaurou-o das ruinas e povoou a terra por + carta de foral. + + ELUCIDARIO. Tom. II p. 346--374. + + [3] A bala ou bandeira do Templo era bipartida de branco e preto + com a cruz vermelha no centro e a lenda: _non nobis, sed nomini tuo + da gloriam_. + + [4] Concordo. Puzeste o dedo na difficuldade, menino. + + + + +DE NOITE TODOS OS GATOS SO PARDOS + +Por L. A. REBELLO DA SILVA + +Remette-se FRANCO DE PORTE para a provincia. + +Correspondencia a Mattos Moreira & C.. LIVRARIA EDITORA. Praa de D. +Pedro, 68, Lisboa + +PREO 600 RIS + +LISBOA + +TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C. + +67, Praa de D. Pedro, 67 + +1873 + + + + + +End of Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Lus Augusto Rebelo da Silva + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS *** + +***** This file should be named 30359-8.txt or 30359-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/0/3/5/30359/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/old/30359-8.zip b/old/30359-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..224357a --- /dev/null +++ b/old/30359-8.zip diff --git a/old/30359-h.zip b/old/30359-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..3dc273d --- /dev/null +++ b/old/30359-h.zip diff --git a/old/30359-h/30359-h.htm b/old/30359-h/30359-h.htm new file mode 100644 index 0000000..0e8f89d --- /dev/null +++ b/old/30359-h/30359-h.htm @@ -0,0 +1,4133 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN"> +<html lang="pt"> +<head> + <title>Contos e Lendas, por Rebello da Silva</title> + <meta name="Author" content="Rebello da Silva"> + <meta name="Publisher" content="Livraria Editora de Mattos Moreira e Comp."> + <meta name="Date" content="1873"> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: smaller; + text-align: right; + color: silver; + } + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;} + h1,h2, h3 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 0; font-size: small; text-indent: 0;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px;} + blockquote {font-size: 0.8em; width: 50%; margin-left: 40%;} + .rodape { + font-size: 0.8em; + margin: 2em; + } + #corpo h1 sup {font-size: 0.5em;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Lus Augusto Rebelo da Silva + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Contos e Lendas + +Author: Lus Augusto Rebelo da Silva + +Release Date: October 29, 2009 [EBook #30359] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-15 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS *** + + + + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + + + + + +</pre> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;font-size: 1.5em;">CONTOS E LENDAS</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;"> +<p style="font-size: 1.5em;">REBELLO DA SILVA</p> + +<hr style="width: 80%; border-bottom: double 4px #000;"> + +<p style="font-size: 1.8em;">CONTOS</p> + +<p style="font-size: 0.8em;">E</p> + +<p style="font-size: 2.5em;">LENDAS</p> + +<p> </p> + +<hr style="width: 30%;"> + +<p> </p> + +<p>Introduco—A torre de Cain—O castello de Almourol<br> +A camisa do noivado<br> +A ultima corrida de touros em Salvaterra</p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<hr style="width: 30%;"> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p>LISBOA<br> +<small>LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.</small><br> +67—Praa de D. Pedro—67<br> +1873<span class="pn">{4}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<h3>DECLARAO</h3> + +<p><em>A propriedade d'esta edio pertence a Henrique de Araujo Tavares, +subdito brasileiro.</em></p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">LISBOA<br> +<small>LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.</small><br> +67—Praa de D. Pedro—67<br> +1873<span class="pn">{5}</span></p> + +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h1><a name="SECTION00100000000000000000">INTRODUCO</a></h1> + +<blockquote> + <p>Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies.</p> + + <p style="text-align:right;">Job cap. XXIX v. 18</p> +</blockquote> + +<p>As pequenas composies, que hoje principimos a publicar, so de um homem, +que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que faz de +ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um Deus de paz, +assentou-se aos ps da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da velhice, com a +mesma serenidade com que tinha visto passar as illuses da juventude, e com que +havia atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com a sua pobreza, no +invejava (se que invejou alguma cousa!) seno a unco apostolica e a +eloquencia persuasiva dos primeiros confessores da f<span +class="pn">{6}</span> nas grandes epochas da regenerao moral do mundo. +Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da liberdade estava a +soar, reclinou a cabea para acordar sem dr na mano do jubilo, patria +suspirada de suas mais doces esperanas, unica impaciencia de uma alma, que +longe da morada celeste se entristecia captiva.</p> + +<p>A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, no aspirava +a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se alguma +vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu queixas que a sua bocca se +no abrisse para as suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mo as no enxugasse +logo. Por isso em muitas occasies, elle, o ancio experimentado, revellava a +simplicidade da pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o +advertissem, a sua caridade no se cansava, e embora faltasse a si, nunca +faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a illuso, +sorria-se, e respondia: Louvado seja Deus! Ainda bem que at me deu para +esses! Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia catar, ou +alporcar os craveiros, at o relogio do estomago, unico relogio que havia em +casa, o avisar de que eram horas da refeio. Vinha ento recolhendo-se de +vagar, alargava o passeio pela cosinha, rondando o almoo ou o jantar, no sem +se arriscar a alguma jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria,<span +class="pn">{7}</span> que tinha a seu cargo a economia domestica e o baixo e +mixto imperio da dispensa e da capoeira.</p> + +<p>A ultima doena do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo servio +d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de immensa +cerrao, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio e agudo, +metteu-se meia noute ao caminho da serra, para levar as consolaes da Egreja +a uma de suas ovelhas, que agonisava em desabrigada choupana. volta o corpo +tremia sacudido por uma seso de febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a +face de um moribundo. Deitou-se para no se tornar a levantar.</p> + +<p>Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abenoou a +enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu para +sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi preciso que +os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensao nunca houve funeral to +rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares da freguezia e dos +arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do presbyterio, o chro de +toda a aldeia honrou aquellas cinzas to amadas. Com razo! No era o velho +parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? Em vida constituira os pobres +seus herdeiros, por isso no deixava de seu mais do que a sobrepeliz e a batina +remendada, em que o amortalharam, e o<span class="pn">{8}</span> crucifixo de +marfim, que unira ao corao na derradeira despedida.</p> + +<p>O premio no foi s a cora de gloria!... Por mais desvairada, ou +corrompida, que uma gerao corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre +se lhe gravam na lembrana, e a rudeza dos camponezes, apezar dos vicios +esquecidos nos idilios, no usualmente a que resiste mais proveitosa lio +das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A ama, qual o Vigario +legra smente a memoria de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade, +affectuosa, no de um, mas de muitos habitantes, que se lhe offereceram para +acolherem sua velhice. O co do Pastor, companheiro constante de tantos dias de +fadiga, tambem achou quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre +que gemia saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos +livros da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como +reliquias, repartiram-se sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, depois de +largos annos, o tempo, que tudo gasta, no amorteceu ainda a recordao do +sacerdote exemplar, cujos ossos repousam sombra dos cyprestes plantados pelas +suas mos no cemiterio da aldeia.</p> + +<p>Este foi o homem e o ecclesiastico venerando.</p> + +<p>Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, +rarissimas pessoas dariam noticia.<span class="pn">{9}</span> Fugia da fama que +do as lettras, com um cuidado egual pelo menos quelle, com que se furtava +envergonhado ao prego da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal +receava ser visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a +penna no se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha +pouco vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigaes lhe +concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordaes do +passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em algumas scenas +soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da mocidade. E em quanto o +vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe +fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas paginas luz do ponderoso +candieiro de lato amarello de tres bicos, talvez o traste mais luxuoso de toda +a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto obscuro da aldeia estes <em>Contos +e Lendas</em>, escriptos sem emendas e com admiravel rapidez, em lettra grada, +direita, e garrafal, para regosijo dos compositores, que cegam a miudo os +negalhos de missanga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes +Deus no castigue em desaggravo de suas victimas.</p> + +<p>Se o padre Vigario vivesse, ainda no soltava seguramente da gaveta os +papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas +instancias<span class="pn">{10}</span> para m'os confiar. Poucos mezes antes da +sua morte que alcancei licena para fazer d'elles o uso que julgasse mais +opportuno, com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse porque +dizia elle, no so cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o +tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou examinar a +sua consciencia. Mas no sei como isto ; assim que me sento diante da mesa e +pego da penna, no posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, entram +commigo as malditas historias, e no ha resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava +que me faziam bruxarias.</p> + +<p>A bruxaria era o que hoje se chama a vocao! A ss commigo perdia de vista +as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar pelas vises +do mundo phantastico, aonde antes d'elle j se entranharam muitas outras que a +admirao sada como principes da intelligencia. Vingava-se porem d'este mu +sestro (era a sua phrase) pondo de lado as escriptas frivolas apenas as acabava +e nunca mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este +desprezo tratava a inspirao!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno +ao antigo mao. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois +d'este e dos outros at ao inverno seguinte, em que voltava s suas historias +com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos<span class="pn">{11}</span> +seus segredos, a qual representava nos seres litterarios do presbyterio o +papel, que a tradio attribue famosa ama de Molire. Em lisa f temia ella +devras, que o demonio perdesse um dia a paciencia fora de esbofeteado, e de +escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se desforrasse torcendo o +pescoo s gallinhas e frangos, ou chupando o sangue aos coelhos, transformado +em raposa ou em ginete. Nunca acordava, que no esperasse encontrar a capoeira +vasia! Se bom estar bem com Deus, dizia, no mu estar em paz com o +demonio. A casa do presbyterio no era grande, nem espaosa, mas sorria de +longe vista caiada por fra e rodeada de canteiros de flres. Vestia-se de um +tal ar de festa, que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia +a hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os braos +abertos a quantos lhe batiam porta. Situada na cora de um outeirinho, +alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos troncos lisos e +direitos o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, cercado de +alegretes, era todo vio e frescura, e tres cepas enroscadas e collossaes, +cobriam com a sombra de seus pampanos as parreiras, aonde amadureciam na +estao os mais formosos cachos de moscatel e de ferral-tamara. Em volta da +risonha morada, penduravam-se as vinhas pelas encostas das collinas at s +margens de um ribeiro, toldado<span class="pn">{12}</span> de salgueiros e +chores que se torciam para beijarem a agua. Por entre as vinhas apparecia em +malhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre vallados de piteiras, em +quanto ao lado sussurrava a levada correndo pelas regueiras. Os pomares, +copando-se, encantavam de espao em espao os olhos offerecendo-lhes bosques +fechados, e embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos +outeiros, que ondeavam desde a planicie at s montanhas torreadas no extremo +horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socalco em +socalco at cortina de pinheiros, cujas cabeas, de um verde triste, a +virao balouava l em cima meneando-as entre mormurios ao cair da tarde.</p> + +<p>A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi +adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com +estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles pampanos +cingidos de arvoredos, aquelles valles viosos de hortas e pomares; os variados +tons que zebravam as encostas dos montes e collinas, desde a esmeralda viva dos +prados at ao louro cendrado das paveias; os rosmaninhos e as boninas +esmaltando as veigas; o rio precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e +limpido e depois esperguiando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de +luz dourada todo o quadro, de<span class="pn">{13}</span> noute o claro da lua +tocando-o de meiga melancolia, compunham um espectaculo de tanto enlevo que a +vista fugia com a vontade e com o corao para aquelles casaes debruados das +collinas fazendo nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vr +romper o luar por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos +primeiros raios brancos do alvor matutino.</p> + +<p>Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chamins expelliam o +fumo em penachos caprichosos; os cepos estalvam no lume; e as creanas, como +enxame bulioso, brincavam defronte das portas. As mes cosinhavam a ceia, em +quanto os velhos e os mancebos descansando do trabalho, aguardavam encostados, +ou assentados, a hora proxima da refeio e do repouso.</p> + +<p>Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pr do sol nas aldeias! +N'esta occasio, em que a fadiga do corpo como que faz mais docil o espirito, +que o padre Vigario, desembocava de uma das azinhagas com o seu Horacio, ou o +seu Salustio debaixo do brao, e vinha conversar o seu pedao com os ancios da +terra, para saber as novidades, e espreitar as rixas e discordias, afim de as +compr. Correndo a mo pela cabea das creanas, ralhando com umas, afagando +outras, informava-se de tudo, sanava as malquerenas, e conseguia pelo respeito +de seus annos e qualidades, que<span class="pn">{14}</span> os moradores da +parochia formassem uma s familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, +estes, mal o viam, voavam em bandos a agarrar-se-lhe loba e s mos, por +entre vozes e saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No +vero, nos dias de maior calor, era sempre certo o prior, tardinha, debaixo +da parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de prata, +que lhe escorregavam at ponta do nariz. Lia e passeiava. De tres, ou de +quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga e sorvia com +delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a vr se alguma flr +carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava punha na cabea o +venerando tricornio, pegava da bengala de canna da India e casto de prata, e +sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase modesta, empregada por elle para +designar as suas marchas foradas de legua, legua e meia, e s vezes duas +leguas por montes e quebradas.</p> + +<p>Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos homens +vigorosos, na flr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo largo e egual. +Abordoando-se bengala por costume e no por necessidade, despejava caminho +como andarilho mais valente. De estatura elevada, secca, mas encorpada, +carregava sem esforo com o peso de uma velhice verde e alegre. Nos olhos +cinzentos e vivos brilhava<span class="pn">{15}</span> um toque de finura +risonha, e a bocca no pequena, mas engraada, animava o rosto e dava-lhe +expresso agradavel, avivada de constante jovialidade. A brandura do animo +correspondia s promessas da physionomia, e o tracto intimo denunciava as +prendas d'aquelle caracter, honrado, severo s comsigo, inflexivel e incapaz de +se torcer em pontos de consciencia ou de melindre. Na convivencia com o padre +Vigario, aprendi mais do que me ensinariam muitos annos de leitura. +Convalescente e magoado, devi-lhe a saude do corpo, a saude e o conforto da +alma.</p> + +<p>Este velho desterrado por gosto e eleio sua em um canto do mundo, n'uma +aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos que se +pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava toda a sua +philosophia:—paciencia e amor. Com a primeira supportava os trabalhos e os +revezes sem desmentir a serenidade da alma; graas ao segundo, o corao, +purificado pelos annos, abria-se a todos os sentimentos nobres, e palpitava com +orgulho memorando as glorias da patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava +a dr das desgraas presentes, com as esperanas de melhor porvir, to crente e +enthusiasta, como se acabasse de entrar na epocha das illuses. Entendia e +applicava o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraando como +filhos e irmos todos os afflictos e necessitados;<span class="pn">{16}</span> +e pelo amor, finalmente, no perdoava mas agradecia as offensas, as injustias, +e at as calumnias, provaes da virtude, no se lembrando d'ellas seno para +pagar o mal com o bem.</p> + +<p>Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de Cames, +de Ferreira e de S de Miranda. Familiar com os escriptores da antiguidade, e +com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o desapercebido, e espertar +a veia natural e espirituosa da sua conversao, para se apreciar devidamente +os thesouros encobertos d'aquella vasta erudio e os prodigios de uma memoria +em verdade rara. As citaes acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as +anecdotas encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel, +succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente os +homens e as cousas, que as cinzas dos grandes vares de Roma e da Grecia, dos +heroes de todos os tempos e de todas as naes tornavam a juntar-se, a tomar +corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar como se os estivessemos +contemplando nos dias do seu esplendor. As ruinas de Athenas, as do velho +Lacio, os monumentos da meia edade, e os episodios de epochas mais proximas, +evocados pelo encantamento irresistivel d'aquella imaginao creadora, como que +volviam subitamente ao primeiro sr, apparecendo uns em toda a formosura da +arte classica, erguendo-se<span class="pn">{17}</span> outros pela religiosa +inspirao da arte christ.</p> + +<p> noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa poltrona +de couro, com a ama direita e o co somnolento esquerda, a velha cabeceando +de rocca cinta e engrolando Padres-nossos, o animal piscando os olhos com uma +orelha fita e outra derrubada. Dos dous companheiros do sero o mais attento e +sisudo era de certo o co! Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca +perdia occasio de lhe coar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo +favoravel. O bofete de pau santo e ps torneados, o candieiro de lato e a +anarchia dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada +uma hora, o unico que no dormia era o Vigario; a sua penna continuava a ranger +sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. Quando as palpebras +se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, mettia dous dedos na argola +do candieiro, e recolhia-se ao quarto no meio das recommendaes da ama sobre +os perigos do fogo, sobre a falta de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos +provaveis. Estas recommendaes no se calavam, seno quando a respirao alta +e compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua +eloquencia.</p> + +<p>Em um d'estes seres, a que assisti, caiu o dialogo sobre no sei qual de +nossos reis, e o Vigario<span class="pn">{18}</span> innocentemente deixou +escapar o segredo das suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do +solitario com o seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a +desculpas, que me l-se alguns <em>Contos e Lendas</em>. Oxal que o leitor +seja do meu voto. Ainda me no arrependo do que disse d'elles ao auctor, que +tremia, como se a minha opinio valesse alguma cousa. No os reputei perfeitos, +longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio. +Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre resistiu a +apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, pouco antes da sua +morte, foi com a final e irrevogavel condio de nunca descubrir o nome do +auctor, se me atrevesse a importunar os prelos (assim se expressou) com as +puerilidades de um velho creana. Possam os <em>Contos e Lendas</em> do padre +Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, merecerem alguns momentos de +atteno, no por si, mas pelas memorias que recordam. Correm j sujeitos s +vecissitudes da publicidade tantos filhos espurios da mesma inveno, que mais +esta, entrando no mundo das lettras, no usurpar de certo logar, que pertena +de direito s obras primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia +no ha fortuna. Lano-a corrente!... A sorte ba, ou m que faa o resto!</p> + +<p>Valle, 30 de septembro de 1866.<span class="pn">{19}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00200000000000000000">A TORRE DE CAIN</a></h1> + +<h3><a name="SECTION00200100000000000000">LENDA DO SECULO XI</a></h3> + +<h2><a name="SECTION00210000000000000000">I<br> +De um bom irmo um mau christo</a></h2> + +<p>O monge comeou assim a sua historia:</p> + +<p>No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, que +succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por dias, e com +elle vinham boas lanas para o ajudarem a resgatar do poder dos infieis as +provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da fronteira no se +descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as armas; e quer luzisse a +manh, quer cerrasse a tarde, o claro das almenras, ou o rebate das trombetas +no consentia nem leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou +no<span class="pn">{20}</span> campo da peleja, no se socegava um momento. Os +melhores castellos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes +tributo; e as bellas tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os +veados, os ursos e os javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as +columnas e as ricas laarias de seus paos. Tudo na abenoada primavera d'este +formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu +deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil, +e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a tristeza at parecia +desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo , o arabe sensual passava +pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge +to viva hoje o corao!...</p> + +<p>—E no havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanas no peito, bradando: +esta terra nossa! acudiu Martin Paes.</p> + +<p>—Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de captiveiro +todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da charrua, guiadas +por mos de escravos. Deus exalte o brao victorioso, que nos deu outra vez a +terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em que abrimos os olhos, o +cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a arvore que nos cobriu com a sombra +a infancia e a velhice, e a fonte que ferve ao p do rosal!...<span +class="pn">{21}</span> N'aquelle tempo, quando o mouro passava, baixavam todos +a vista, porque elle era o senhor.</p> + +<p>—Mas a terra havia de ser ento quasi um deserto, padre?</p> + +<p>—No. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de +relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos +montes. Mas a terra, to alegre por fra, toda era magoa e desconslo por +dentro; porque a terra, em que smos escravos, mesmo que seja a da patria, +parece-nos mais s e vasia, do que um rmo. A casa alheia, a courella que de +outro, e o fogo accso na lareira a medo, fazem-nos chorar, porque nada +d'aquillo nosso, e hoje, ou amanh, podem dizer-nos: se! O reino vivia, como +vive agora; o que estava morto era o corao do homem. Resplandecia o mesmo +sol, corriam as mesmas aguas, nasciam as mesmas flres; porm as creanas no +brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a donzella +assustada, tremendo de se vr formosa, no se assentava tranquilla, como +aquella, debaixo da amendoeira em flr ouvindo descantar o rouxinol por cima da +cabea. O harem do sarraceno, aberto diante d'ella, como um abysmo, fazia-a +empallidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a +deshonra e a morte.<span class="pn">{22}</span></p> + +<p>—Que martyrio no seria a vida assim?!...</p> + +<p>—Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. Faz-se +tarde. Quereis que continue?</p> + +<p>—Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos.</p> + +<p>—No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas terras +de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama, +juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De seus castellos os dous +inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e cearas, e +mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e +fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda +a furia. Nos casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se +ao anoutecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao +claro das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado.</p> + +<p>Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o pao acastellado do contrario, +e tomou-o traio, deixando a cabea do senhor cravada nas ameias. Aconteceu +isto vespera de S. Joo, por alta noute, quando todos festejavam o bemdito +Santo com fogueiras, cantigas e follias. O cavalleiro tinha um filho e um +irmo. O filho de edade tenra; o irmo temido<span class="pn">{23}</span> pela +indole e pelo brao. Entraram e sairam os annos assim; a creana fez-se homem; +e de parte a parte a averso das duas familias cada vez crescia mais. O rio que +as separava, tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos no cessavam de +dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, +parecia avivar mais aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro +assassinado era j um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezena +gentil a cavallo e nos sarus. Chamava-se D. Moo Ansures, e vendo-o passar, +esbelto e affogueado da carreira, com o falco no punho, as donzellas +sorriam-se e cravam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do rico +homem morto na vespera de S. Joo.</p> + +<p>D. Moo ainda no dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraa, +viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o corao esquecido da vingana +guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae derramado falsa f, as +malquerenas de tantos annos, as promessas da meninice e da juventude, tudo +d'ahi em diante se apagou da sua alma para no vr outro sol, outra luz, seno +a dos bellos olhos, que o tinham feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior +odio rebentou o mais constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido +saltou aos olhos de todos. Os parentes lanaram<span class="pn">{24}</span> em +rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixo pde mais, que as memorias do +tumulo, que deixava sem vingana. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, +os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas +inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que no podiam +dormir o somno eterno, e os que haviam jurado no perdoar. Aprazou-se para +vespera de S. Joo o ditoso enlace. Seria proposito, ou acaso? N'esse dia +contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. Moo de Ansures fra +assassinado.</p> + +<p>O homem pe e Deus dispe!</p> + +<p>O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmo, que lhe queria mais do que +propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado fra +procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. Inigo Lopes, +era o nome do irmo mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando +estavam pregando as taboas do caixo do infeliz. A dr fez de D. Inigo uma +estatua, e sete dias com sete noutes o viram todos jazer deitado sobre a +sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmo, consumia ao mesmo +tempo n'elle tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se +levantou, trazia a cabea e as barbas brancas como neve. Envelhecra ali um +seculo em sete dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem<span +class="pn">{25}</span> um soluo do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e +arnez, e levou s comsigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o signal da cruz, +mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam!</p> + +<p>O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo s e encerrado na capella? Se +alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na ultima noute +vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura +e a mo do morto apertar a mo do vivo. Illuses! Quem vae nunca mais torna. O +que no foi fabula, porque todos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com +o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, to viosa e robusta como +se existisse ha muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botes nos ramos! +Mas se queriam apanhal-os por devoo, murchavam nos dedos; se tentavam cortar +uma pelo p, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada +ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias +se contavam tambem desde que o corpo do valente cavalleiro descera sepultura +trespassado de sete feridas.</p> + +<p>Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos com +mais cinco vaguera como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das +ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo s inclemencias do +tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do mundo!<span +class="pn">{26}</span> O Senhor, que l nos coraes, ha muito que tinha +desviado os olhos d'elle. Com ser christo nascido nunca mais ajoelhra cruz, +ou se encommendra Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe no +deserto da Tentao ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos +Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um mar de fogo; o +ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas danaram, +crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se ento na vasta solido do ermo um +brado immenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi to negro, +que a lua tornou-se cr de sangue e sumiu-se, que as estrellas esconderam +tremulas a sua luz. O christo acabva de vender ali a alma ao inferno pela +vingana. Desde aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra +segue o corpo, a imagem do irmo assassinado. Ajoelhra ao poder de Satanaz, +elle que no se prostrra diante da cruz, e rasgando as veias afirmra o +juramento. Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espao, +repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas immoveis do +Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O reprobo escarneceu do +passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. Mas elle que se ria de Deus +e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos ps, como +horrorisada do peso do seu crime. Aos primeiros<span class="pn">{27}</span> +passos o claro dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo +tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, no ceu aonde os troves +estalavam uns apoz outros; na terra, que se abria em voragens, e no deserto, +aonde o furaco, bramindo, cavava abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em +vortice as areias. Cedros antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As +feras, timidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os +homens elevavam suas oraes a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia +humilde e pequeno para a supplica, porque riria s o orgulho do culpado? D'ali +em diante no passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no +precipicio. Raiava a manh um dia e curvado sobre a corrente do Jordo, +debruava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas torciam-se em +toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia cara um velho +desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota d'aquella agua para lhe +restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a entornando-lhe de proposito o cantaro +diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam +tragando de longe a agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e +dizendo-lhe por mofa: chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao p de +ti! O Senhor no accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse +vencedor do<span class="pn">{28}</span> inferno. Mas, desde aquelle crime, a +sde intensa ateiada nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e +as fontes convertiam a fresquido em fogo para o abrazar. A gota de agua negada +no deserto pesra na balana do Senhor largos seculos de culpas.</p> + +<p>Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, terra em que +nascera. Disseram que um cavallo da cr da noute, com os olhos todos chammas, o +trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o p, a +respirao era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante d'elle as mais +altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abysmos +solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos +inclinados tremiam e beijavam o cho, flexiveis como juncos. Cavallo e +cavalleiro no corriam, voavam! Debaixo da ferradura magica as aguas tomavam a +dureza do diamante: a terra oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos +vulces, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, +e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. No passou d'ali. +medida que ia aclarando a manh adelgaavam-se-lhe as formas e do primeiro raio +de sol dissolveu-se desfeito em fumo.</p> + +<p>Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o +sitio. Estava junto da egreja aonde fra sepultado seu irmo. Ao primeiro<span +class="pn">{29}</span> passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao +segundo illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas +cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro levantava o +<em>Ave maris stella</em>. Estava aplacada a vingana do morto. A f, porem, +debalde chamava ali por Inigo; elle no a ouvia. A voz do ceu em vo lhe +offerecia o perdo; elle, surdo, no escutava a palavra de misericordia! Orava +n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior peccador. +Arrebatado em espirito, viu um homem cuspindo por odio na cruz porta de uma +egreja. O anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes +luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, +subiu na aragem at se perder nos raios dourados do sol nascente.</p> + +<p>A tua clemencia, Senhor, infinita! exclamou o justo. Haver perdo para o +que renega o teu Santo nome?</p> + +<p>N'este ponto a viso sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo; +e uma voz, semelhante da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe: +<em>memento, homo, quia pulvis es!</em><span class="pn">{30}</span></p> + +<p><span class="pn">{31}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00220000000000000000">II<br> +No ha gosto sem pesar</a></h2> + +<p>N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais poderoso e +rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castello por +valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavalleiros +mettiam o p no estribo, e centos de homens de armas e pees seguiam o seu +pendo. Descendia da grande raa dos primeiros lidadores das Asturias, raa de +bronze nos odios, e de ferro nas vinganas. A edade gasta os mais fortes, e +aor velho no se remonta s aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as +madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os<span class="pn">{32}</span> annos +no haviam passado em vo. S a neta, a formosa Auzenda, unico amor da sua +vida, podia distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas +vezes era o sangue da sua alma, um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma +lagrima s d'aquelles olhos lindos, transformava em cordeiro o leo +embravecido.</p> + +<p>Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de +armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa +cavalgada, que se espera?</p> + +<p>O sol j se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os derradeiros +clares no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas, +e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em larga distancia ao redor. +</p> + +<p>No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia casar-se +com Moo Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. Joo, e por horas +tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que os monges negros rezaram o +officio de finados em volta da tumba do cavalleiro assassinado.</p> + +<p>Porque se via Auzenda to pensativa olhando do seu balco para a cora do +outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da formosura, +entre mil no se ufanavam de possuir perola de egual valia. Aquella belleza era +sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os cabellos em tranas<span +class="pn">{33}</span> d'ouro soltas briza; e os olhos azues, aonde amor +suspira, oh! quem podra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado cinto +aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga livre +com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da +alva tinha saido. Os ps, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem to +leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra ingreme. As rozas accendem +o rubor na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa +silvestre pousada na fronte. Ajoelhou cruz solitaria, e a orao matinal +subiu casta e pura do corao ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da +aurora. O vestido branco desenha confusamente as frmas, e visto de longe +fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia viso celeste que os raios da +primeira luz vo desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr do lado +opposto. O aor do Douro remata-lhe o capello de ao. D. Moo Ansures. +Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do amor.</p> + +<p>—Voltais logo? perguntou a donzella corando.</p> + +<p>—Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado olhar. +</p> + +<p>—To tarde!?</p> + +<p>—Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...</p> + +<p>—No! Mas!...</p> + +<p>—Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!<span +class="pn">{34}</span></p> + +<p>Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella +seguiu-o com a vista, saudosa at desapparecer por traz do ultimo outeiro.</p> + +<p>Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o corao? por isso que a +donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balco? Seriam receios de noiva +a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noute, e +quando as estrellas comeavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se +suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da atalaya. Donas, cavalleiros +e pagens principiavam a entrar no castello, attraidos pelos festejos. As armas +reluzentes, as plumas de cres diversas, os tabardos de matizes variegados +deslumbravam, vistos luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos +lebreus, os relinchos dos cavallos, e as vozes dos pees animavam de mil ruidos +alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela +estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O +seu brado vencia o estrepito.</p> + +<p>—Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recem-chegados +com a bocca cheia de riso.</p> + +<p>Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do dia, +segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos ps de Auzenda, e com a noute +cerrada no chegava!... Do lado das montanhas<span class="pn">{35}</span> no +havia rebate de mouros. As almenras apagadas no davam signal de inimigos. Que +motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando to meigo e +desejado? Porque se ausentra n'aquelle dia, em que tantos estremos o +convidavam a no se apartar dos bellos olhos que o prendiam? Um juramento +sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos de todos a unio das +duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o tumulo de seu pae. Por isso +deixra Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas +passavam e a saudade impaciente da noiva as contava to vagarosas!<span +class="pn">{36}</span></p> + +<p><span class="pn">{37}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00230000000000000000">III<br> +Deus seja comnosco</a></h2> + +<p>Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca das +malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capellos! +Cavalleiros moos fallam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e +donzellas. Violas e doainas acompanham as coplas dos trovadores. Mais adiante, +em turbilhes de cem cres, em collos ondeados e graciosos, giram e volteam as +dansas, e o olhar furtivo de alguns pares promette, em breve, dias semelhantes +a mais de um solar.</p> + +<p>Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas no entram, +o vento geme por entre frizos<span class="pn">{38}</span> e laarias dos +delgados columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros cordos das +frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silencio. +Avizinha-se, e j se reflete nas paredes, o claro de muitas tochas. Povoa-se a +sala, innundada de luz subitamente. Os escanes enchem as taas e fazem-as +circular em roda. Saudes, acclamaes, e vozes crusam-se, trocam-se e voam em +confuso jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece remoado. +sua direita senta-se Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moo +Ansures. Defronte, em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se +podesse deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto.</p> + +<p>A meio do banquete as dansas tornam a entranar os pares como grinaldas +vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam incessantemente +donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospitalidade quasi regia do +rico-homem. As taas cheias de licor espumoso correm de mo para mo. D. +Ordonho, de p, ala a sua, e com a fronte erguida brada:</p> + +<p>— paz dos christos! ruina e confuso dos infieis! Uma longa acclamao +responde sua voz: Assim findem todas as discordias entre irmos!</p> + +<p>Ainda no tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um +grito. Os convivas olharam<span class="pn">{39}</span> tambem e ficaram +immoveis com as taas suspensas.</p> + +<p>No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu de +repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e na cotta +o aor bordado. Descalando o guante direito, e empunhando a primeira taa +cheia, ergueu-a lentamente.</p> + +<p>—Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) paz da noute de S. Joo!..</p> + +<p>No bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se +vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taa uma malha de ferro +em braza queimou a alvura do linho. Alou ento a viseira. Os olhos, as feies +o os modos eram exactamente os do cavalleiro assassinado havia quatorze annos; +porem os cabellos e as barbas brancas lembravam, que por cima do seu corpo +passra o frio da sepultura.</p> + +<p>Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder +occulto, no poderam mover-se. O horror gelava a todos.<span +class="pn">{40}</span></p> + +<p><span class="pn">{41}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00240000000000000000">IV<br> +Enterro por noivado</a></h2> + +<p>Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu:</p> + +<p>Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao +primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, ficaram +immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e +alades. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vas profundos das +salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograes transformou-se +repentinamente em <em>dies ir</em> que retumbou. Os cabellos erriaram-se de +horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e<span class="pn">{42}</span> +vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados jogaram, as +torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava j tinha +desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos clamores! Muitos intentaram +fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes tocar, fecharam-se adiante d'elles. +O portal macio gemeu nos quicios e cerrou-se por si mesmo. Mos invisiveis +alaram as dobradias.</p> + +<p>Ai noute de S. Joo, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor de ti +choraram; a alcachofra benta ardendo no brotou a flor de esperana; o palmito +symbolico, em vez de rozas e de fructos, s ramas de cypreste esfolhou sobre o +leito do noivado. Nos paos do conde ninguem se entendia. Estava sobre elles o +poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor +dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma +pluma de fogo na escurido. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo +enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tectos. +Jesus! Acudi! O castello est a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir +e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados to altos, e o fosso to +fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o +seu claro pallido lanou como um sudario sobre o rochedo talhado a pique, que +se aprumava a<span class="pn">{43}</span> curta distancia sobranceiro ao +castello. As aguas, rebentando ali sombra de antigos choupos, ferviam de +encontro s fragas, e despenhadas espumaram batendo em caches no leito da +ribeira, que l em baixo bramia arremessada por entre a bronca penedia.</p> + +<p>Aonde est D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braos por +entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, no correu, voou baixando de andar +em andar, at ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas +serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra por pedra quasi a +desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas envergonhados.</p> + +<p>—Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de St. +Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! gritou +depois em grande brado.</p> + +<p>Palpitou a esperana esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as +achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem robustos braos ferem a +um tempo com ancia mortal a porta macia e chapeada. O roble gemeu, o ferro +chispou fogo, os gonzos tremem... Mas nas taboas nem signaes dos finos gumes. +Os machados, estalando, lascam at aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e +do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa +do rochedo campeia<span class="pn">{44}</span> o cavalleiro negro. As aguas +espumavam por baixo dos ps do corcel; a mo direita brandia um facho; a +esquerda s peava com as redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo. +</p> + +<p>—Conde Ordonho! Esta fogueira faltava tua festa do S. Joo. Accendi-a eu. +Pago as arrhas da formosa noiva.</p> + +<p>—Maldito!...</p> + +<p>—Esquecias j D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou o +dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingar o sangue dos meus. +Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.</p> + +<p>Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas +furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No +hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem sentidos. As +faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tranas de +ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os olhos languidos, em que expirava +a doce luz da vida, cerravam-se mortaes.</p> + +<p>—Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creana. O sangue +verteu-o esta mo culpada.... Feri a cabea do peccador saciado de annos e de +amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... Poupai-a em +vossa justia!.</p> + +<p>Dizendo isto apertava a neta contra o corao. O que no daria n'aquelle +instante o senhor de tantos<span class="pn">{45}</span> vassallos e castellos +por alguns palmos de terra livre, por uma respirao pura da briza nocturna, +que nos serros vizinhos refrigerava as miserias do escravo?</p> + +<p>O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas no +quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dr; o pranto enxugou-se +em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo passar muda e +terrivel aquella vingana! Eil-o vai o velho fronteiro! Nem capello de ao lhe +cobre a fronte na, nem arnez lhe veste o peito descoberto. Leva porem a morte +escripta no rosto. O sombrio claro do desespero reluz nas orbitas +ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, brancos e descorados. Deixai-o ir! +o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! o santo amor de pae que o +inspira!</p> + +<p>A aguia real no caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para +depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo +ameaador na vista immovel! Que fria raiva no vo lento! Guarde-se o falco. +Primeiro perder a vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!... A lua +escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A +distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o claro avermelhado do +incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se como toldo +immenso. As aguas e o furaco confundiam<span class="pn">{46}</span> os +bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovo estourava em +estampidos medonhos.</p> + +<p>A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto aquelle, +que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre +Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos ps as lageas abrazadas e no reca. +Sobre a cabea crusam-se mil centelhas e no as sente. Ao lado estalam e +desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e no as v! O +temporal fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os +penhascos da montanha; as torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como +rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e +horrores da vida conjurados no o aballam? A desesperao! Que lhe importam ao +desgraado as ameaas do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a peior +das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avs ser o sepulcro do ultimo +descendente de uma grande raa.</p> + +<p>Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A cr livida da ira dava-lhe +face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vista mede o +espao. Ai do que aparar o tiro! A seta s espera um aceno para voar sibilando +ao seu alvo....</p> + +<p>Tres vezes estalou o trovo, e tres vezes um lenol<span +class="pn">{47}</span> de fogo jorrou dos ceus abertos. Soa distinctamente o +galope de um cavallo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as +faiscas umas atraz das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no peito o +aor do Douro. Ser D. Moo Ansures? claridade dos relampagos, luz do facho +sacudido pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado +sobre a aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. +Cavallo e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo +lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. Pouco +depois descortinava-se D. Moo enristando a lana meio corpo debruado para o +precipicio, e o renegado arremeando o facho s aguas para se rodear de trevas. +O brao do Maldito alou de subito a espada e o golpe descia j... quando uma +seta passa assoviando. O mancebo vio ento o seu inimigo rolar aos ps do +ginete e logo apoz um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das +rochas at se atufar dilacerado e disforme nos caches da nascente, que +espirram a grande altura espuma e sangue.</p> + +<p>Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de +triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cosida nas +chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos ao temporal. Depois +abateu-se a torre com grande estrepito, as quadrellas alluiram-se, as +traves<span class="pn">{48}</span> accesas remoinharam e cairam, e entre os +destroos, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do somno +eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendo! +Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou comsigo a orgulhosa +raa de riba d'Ave, e do seu castello s ficaram de p aquella torre negra, que +alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos de Pedro Ansures.</p> + +<p>—E D. Moo? perguntou Martim Paes.</p> + +<p>—E Auzenda? acudiu D. Nuno.</p> + +<p>D. Moo, cumprindo j de noute o seu voto, teve um presentimento, e, +cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabos, fragas, e +alcantis. J perto do castello, deu-lhe no rosto o claro do incendio e viu-o +arder. Apertando o corsel, correu como louco, e s parou quando o facho do +cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que succedeu ento j vos contei. Apenas +Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moo buscou Auzenda. Encontrou-a, +mas sem vida! Levaram-a os monges capella, puzeram-lhe na cabea uma cora de +cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das +Hespanhas.</p> + +<p>D. Moo, desde esse dia, no viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a +esperana, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir s +batalhas? A gloria? No tinha com quem a repartir. A morte?<span +class="pn">{49}</span> Para qu? No a sentia j no peito? A liberdade da terra +do seu bero? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir j os gelos d'aquelle +corao!... Sombra do que fra, o que fazia o desgraado n'este desterro cruel, +sem affectos, sem amigos, sem consolaes? Como o carvalho, que o raio feriu na +fora do crescimento debrua os ramos mirrados e se torce e definha at cair, a +dr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias desgraadas, minavam-lhe +a vida, seccando-lh'a na raiz.</p> + +<p>Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de +lagrimas. Ento a febre do delirio representava-lhe junto do leito a doce +imagem, que trazia no corao. Era ella! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma +grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em ondas; as +mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginaes; nos olhos sempre a luz +suave do amor, que o fizera to feliz; nos labios aquelle sorriso em boto, que +se abria casto como a rosa. O mancebo queria estreitar a viso querida ao +peito, e acordava, chorando, porque s abrara o ar. N'este tormento agonisou +por mezes at que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, +aonde se recolhera.</p> + +<p>Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o +corao, um lao de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficra orando a +velar<span class="pn">{50}</span> a tumba, contou depois que vira apparecer uma +dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do +ataude saiu um brao, e ella, com a sua mo na mo do morto, passar-lhe um +annel no dedo e cingir-lhe a cora de boninas que trazia, na fronte descorada. +Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por tres vezes lutou +para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por +brao invisivel, se prostrou com a face no p do templo. Eram as nupcias dos +mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes +perseguindo na donzella o sangue inimigo e a vingana contra o conde Ordonho? +Altos mysterios de Deus. Quem ousaria prescutar os segredos da sua justia, e +os prodigios da sua clemencia infinita?!<span class="pn">{51}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00300000000000000000">O CASTELLO DE ALMOUROL</a><a +name="tex2html1" href="#foot326"><sup>[1]</sup></a></h1> + +<h3><a name="SECTION00300100000000000000">CONTO DO SECULO XVII</a></h3> + +<h2><a name="SECTION00310000000000000000">I</a></h2> + +<p>—Ai, Virgem Santissima! No ganha a gente para sustos! No bastava esta +praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles pelo +Alemtejo abaixo?! sr. Romo Pires, d'onde elles esto aqui nossa quinta +muito longe?</p> + +<p>—No nada perto, no, sr. Brizida de Sousa! Mas l diz o adagio: aos que +muito correm quebram-se-lhes<span class="pn">{52}</span> as pernas... Socegue. +O sr. conde de Villa Flr anda com elles a contas e no para graas.</p> + +<p>—O sr. conde muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi +dizer... Mas se elle ficasse mal agora?</p> + +<p>—Ficavamos ns peior, isso verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, se +meu senhor e amo fosse vivo!... No estava eu aqui posto ao canto como um +estafermo!...</p> + +<p>—Ora no diga isso por quem . O sr. Romo j andou demais por essas +guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O que +seria de mim ssinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha umas poucas +de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro mundo! sr. Romo +Pires, diga-me: o demonio—salva tal logar—ter poder de subverter comsigo no +inferno corpo e alma uma creatura baptisada e remida nas santas aguas?...</p> + +<p>—Conforme! Se no estiver em estado de graa!...</p> + +<p>—Credo! S. Braz e S. Joo! Meus ricos santos da minha alma, valei-me! +Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? Quero que +me escreva j e j sr. D. Magdalena, contando-lhe tudo isto. Ella no pde +consentir que a sua criada velha uma noite d'estas desapparea nas garras<span +class="pn">{53}</span> do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... Diga-lhe +que nos venha livrar d'este inferno, seno... eu c por mim fujo! Primeiro a +salvao da minha alma...</p> + +<p>—Tambem eu no gosto nada d'isto, sr. Brizida. Mas animo forte e corao +larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo que vejo, no +leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para esta quinta...</p> + +<p>—Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me no chamasse +eu, se depois da primeira noite no mettesse um bom par de legoas entre o +demonio e quem se prsa de christ baptisada na freguezia de Santa Catharina de +Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem leiva de +mau sangue!... Mas o amor, que tenho minha menina, coitadinha, tudo me faz +supportar com paciencia... Espere! No ouviu bulha? Assim a modo de ferros +arrastados pelo sobrado?</p> + +<p>—Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no cho l em cima. De dia no que +elles fazem das suas...</p> + +<p>— verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de noites, +Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes v o fim. E que me +diz ento a estas despedidas de maio e entradas de junho?!...</p> + +<p>—No so de convidar, sr. Brizida! Velho sou,<span class="pn">{54}</span> +mas no me lembro de anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, troves e +ventanias que levam tudo pelos ares! Safa!</p> + +<p>—E ns, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa +Barbara! se a tua serva e devota no deixa aqui os ossos, grande milagre ser. +Escute!... Agora no foi engano!... No ouviu risadas l em cima no vo das +casas?</p> + +<p>—No nada. So os rapazes do feitor jogando as escondidas.</p> + +<p>—Pois, sr. Romo Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, quando +minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: Brizida, a sua menina anda +fraquinha e enfezada, e o irmo tambem, os phisicos no acertam com o remedio, +e fr. Joo entende que estas tosses do peito, assim teimosas, no se despegam +seno com mudana de ares. Bem sabe, no posso sair da cidade por estes dias +mais chegados—e assim, coitada, por causa da sua demanda—acompanhe-me os +meninos, e conte que fico to socegada como se eu mesma fosse... Quando me +disse isto, e eu lhe beijei as mos pela merc, se podesse adivinhar o que nos +esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e +viesse quem quizesse... Isto no palacio, nem quinta, um verdadeiro +inferno! Deus salve a minha alma!</p> + +<p>—A sr. Brizida no diz o que sente. Vindo a<span class="pn">{55}</span> +sr. D. Maria e o sr. D. Pedro, ninguem a arrancava de ao p d'elles.</p> + +<p>—Tem razo. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua me no lhe +quer mais, no, deixe-me ter esta presumpo... A elle vi-o nascer, e os +primeiros braos, que o embalaram, foram estes que hade comer a terra. To +pequeninos os conheci, e to formosos e crescidos os vejo agora, que no me +posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto de os abraar homens!... +Quando me ponho a olhar para elles, parece-me s vezes que no pde ser, e que +tudo isto sonho...</p> + +<p>—Ento!? Elles fazem-se homens, e ns fazemo-nos velhos. No ha remedio. O +mundo vae assim.</p> + +<p>—Bem sei. Mas, no os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que +da edade e do muito crescer, e que ho de encorpar depois. Deus queira! So os +negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos meus meninos. A sr. +D. Maria manhs e tardes inteiras almofada, bordando de branco, de matiz, e a +ouro. E com que perfeio!... Que dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? + mesmo uma dr de alma vel-o dia e noite amarrado banca dos livros, e que +livros! Latins, gregos, e no sei que outras trapalhadas de +<em>retroricas</em>... Quem tem a culpa de tudo, o culpado de tudo o que pde +acontecer, o teimoso do sr. fr. Joo, que fina fora<span +class="pn">{56}</span> quer o sobrinho sabio. Depois que falleceu o pae, (Deus +o tenha em gloria!) no se nos tira de casa, e tanto ha de quebrar-me a cabea +ao meu menino, que um dia tresl. Pois olhe, sr. Romo Pires, v com o que lhe +diz uma ruim cabea: mais vale asno vivo, que doutor morto.</p> + +<p>—O sr. fr. Joo, atalhou Romo Pires, aproveitando uma pausa da sr. +Brizida, muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido um +segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes +merecimentos. No lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna possuem +elles...</p> + +<p>—Por isso mesmo! No precisava atanazarmos tanto! No m'os deixa respirar. +Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa para acol... +latins, <em>pholosophias</em>, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres +creanas no teem endoudecido. C por mim j o miolo ha muito tempo me tinha +dado volta, to certo como chamar-me eu Brizida de Sousa.</p> + +<p>—Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. Joo no nenhum nescio...</p> + +<p>—Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na crte dizem +que no ha outro doutor como elle.</p> + +<p>—Pois ento deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos so a luz dos +seus olhos, e depois to meigos, to applicados...<span class="pn">{57}</span> +</p> + +<p>—De mais, de mais, para a edade, sr. Romo Pires. Assustam-me. No parecem +d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. Joo muito extremoso, e o que faz + por desejar o seu bem d'elles, mas, graas a Deus, a casa rica e no era +preciso amofinar-me tanto os meus meninos...</p> + +<p>O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era +travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas janellas, +cujas vidraas de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes em reboco +pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em outras partes as +colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam em suas pinturas +desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores ans, e no meio de +arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas lavradas inculcavam a +paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a grande altura, enegrecidos pelo +fumo da immensa chamin de pedra, ornada de lees de marmore nas bases, e +rematada com um brazo de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras.</p> + +<p>O sr. Romo Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de +carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma das +faias mais direitas da quinta. Nascra e fra creado desde a infancia n'aquella +casa, e no conhecera nunca outros amos seno D. Vasco, e D.<span +class="pn">{58}</span> Magdalena. Acompanhra seu senhor, assim lhe chamou +sempre, em todas as campanhas da guerra da restaurao, pelejando +esforadamente ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis +desde 1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narrao das +proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de saboroso +pasto aos seres da familia, obrigada a engulir como artigos de f todas as +aventuras da nova Tavola Redonda, que a imaginao do escudeiro entretecia na +tela interminavel de sua cansativa Illiada.</p> + +<p>A sr. Brizida de Sousa, que to avexada ouvimos queixar-se das apparies, +era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, rolia e risonha, suas faces +lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas maans rainetas. As +feies, pouco accentuadas, e quasi infantis, sumiam-se entre as roscas das +nedias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura affectada com uma +larga experiencia da vida. Toda aquella pequena e buliosa matrona respirava +aceio, cuidado, devoo, e azafama. Collaa de D. Magdalena, e casada com um +dos caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da filha +primogenita da casa, enviuvra sem filhos, nem saudades do estado, resumindo +todos os affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas +creanas, que trazia sempre na boca e no corao.<span class="pn">{59}</span> +</p> + +<p>Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez de +mais para a testa, e o crte dos vestidos beguina, affirmavam o programma da +sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria recheada de oraes, +de vises, e de devotas crendices, o seu defeito capital era occupar-se muito +com as vidas alheias, enfiando um rosario de conselhos a proposito de tudo, e +mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hospedes, mas sem inteno ruim. +Todos se encobriam d'ella, quanto podiam, porm ninguem a aborrecia. Temiam-se +da intemperana de suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu +caracter, que era na verdade excellente.</p> + +<p>Romo Pires, tirando a estafada repetio de suas campanhas, representava em +tudo o opposto d'ella. Srio, como um santo, embizourado, e quasi sempre com a +aguda barba escondida na gargantilha, se levantasse a vista e a curiosidade +para os negocios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca +era sagrada, e segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle +profundamente.</p> + +<p>Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o +conselheiro nato da sr. Brizida em todos os casos intrincados, e o defensor +convicto dos seus mdos e indiscries.—Boa alma! Boa alma! respondia aos que +a censuravam.<span class="pn">{60}</span> Tem o defeito de fallar de mais, mas + uma santa pessoa.—Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edio das +guerreiras epopeias do escudeiro, at fazia o sacrificio de suspender a +loquacidade propria!...</p> + +<p>O sr. Romo Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calas cr de +pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado no +cavallete do interminavel nariz, no desabotoava a seriedade do rosto, nem dava +ferias ao enfado chronico seno para sorrir sua comadre Brizida. Aquelles +olhos verdes desbotados no se animavam seno para festejar algum bom dito da +matrona, cujas fallas assucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna do +antigo campeo da independencia portugueza. A predileco honesta, mas decidida +dos dois um pelo outro, no escapra aos criados, e todos acreditavam que, cedo +ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a unio +de duas almas j to intimas.</p> + +<p>A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita do +Tejo, estendia as matas e charnecas at ribeira, que separa Paio Pelle da +villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, distaria pouco +mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio antigo, talvez fundado +por meiados do seculo XIV, accrescentado, e reparado pelos fins do XVI. As +ameias, j derrubadas<span class="pn">{61}</span> em muitos lanos de muro, +proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas por torres +fortificadas em tempos mais remotos, saindo fra do corpo principal do +edificio, formavam os lados do espaoso terreiro, rasgado diante da fachada, +cujas doze janellas de architectura irregular olhavam para elle. No terreiro se +tinham jogado cannas e corrido touros nos anniversarios festivos dos senhores. +</p> + +<p>A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e +articulaes das pedras carcomidas cresciam tufos de viosas parietarias. Uma +arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as entradas das duas +escadas, que subiam em volta de caracol at ao primeiro andar. Outra porta, por +baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para os subterraneos +allumiados ao rez do cho por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de +salas nuas, frias e tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde +o ar e uma luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas +envidraadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, crusados de +passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo desde o andar +terreo at aos vos debaixo dos telhados, uma rde inextricavel, um verdadeiro +labyrintho. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras, prolongava-se +maneira de refeitorio<span class="pn">{62}</span> entre dois extensos +corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada para o jardim, na +outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para os vos, os quaes por cima +corriam em largura e comprimento da casa. As torres communicavam-se com o corpo +do edificio por duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos +annos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas +caudaes do inverno.</p> + +<p>O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de pedra +no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava algumas +roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres bravos. +As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de po, cingidas de vallados +altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do palacio era carregado de +melancholia. Rodeado de solido justificava em sua tristeza as queixas, que +ouvimos sr. Brizida. Porque escolhera, porm, D. Magdalena aquelle rmo para +abrigo dos filhos e dos criados, quando tinha tantas propriedades mais alegres +e reparadas aonde podessem respirar, longe do bulicio da crte o ar do campo? +</p> + +<p>D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de que +fra tronco e progenitor o marechal Gonalo Vaz Coutinho, senhor do couto de +Leonil, e meirinho-mr por el-rei D. Fernando na comarca da Beira. Formosa, +discreta e recatada,<span class="pn">{63}</span> perdera seu marido, D. Vasco +Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. Joo IV e D. Affonso VI, havia +tres annos, e ainda no enxugra as lagrimas da viuvez. Em edade de merecer e +de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, aonde no +recebia seno as visitas de alguns amigos antigos da familia, guiando-se em +tudo pelos conselhos de fr. Joo Coutinho, seu irmo, grande sabio, e doutor em +canones e theologia, o qual se encarregra de dirigir a educao litteraria dos +sobrinhos.</p> + +<p>D. Vasco Mascarenhas, to distincto pelo nascimento, como pelas qualidades +do caracter e do espirito, unira s propriedades de sua casa, j mui rica, o +senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de Almourol, que sua mulher lhe +trouxera em dote, mas quasi sempre occupado na crte com os negocios politicos +e no servio activo das armas, s duas vezes visitra de fugida aquelle solar +desamparado, que principiava a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras +e a cobrana dos direitos do donatario, com excessiva confiana, diziam os +murmuradores, probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e +ladino, que mais as disfructava como usurario, do que as geria como +administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam n'aquellas +mos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro +estado<span class="pn">{64}</span> das cousas, na companhia de seu irmo, fr. +Joo Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais +conveniente.</p> + +<p>Outra razo serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa, +dissimulada com o pretexto da necessidade da mudana de ares. Antigas relaes +de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo ramo dos +Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma comarca, aonde +existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que to vioso beija as +aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia +ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. Affonso de Noronha, saira da crte para +o exercito do Alemtejo. D. Affonso, illustre pelo bero, e j illustre pelo +valor, vira crescer em belleza, primeiro com assombro, depois com paixo +ardente, sua prima D. Maria de Mascarenhas, e no encobrira de seu pae o amor, +que ella lhe inspirava. D. Nuno confiou este segredo ditosa me, e ella, no +podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar +o sim, quizera, comtudo, sondar disfaradamente as inclinaes da donzella. +Conheceu com alegria, que D. Affonso comera a apoderar-se d'aquelle corao, +que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas as primeiras e vagas +aspiraes de um sentimento, que no sabia definir ainda.<span +class="pn">{65}</span></p> + +<p>Corria o anno de 1663. D. Joo de Austria, frente das armas castelhanas, +tentra o derradeiro esforo, invadindo Portugal com dezeseis mil soldados, e +os nossos generaes, juntando as foras, mal conseguiram oppor-lhe cinco ou seis +mil. A cidade de Evora, que devia ser um dos baluartes da resistencia, +accommettida no dia 14 de maio, capitulra, depois de pouco honrada defeza. +Este revez aggravou os receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a +insultar Alcacer. D. Sancho Manuel convocra immediatamente os officiaes a +conselho, e s um voto, o d'elle, approvra a conveniencia de ferir a batalha, +que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A pericia de +Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o ultimo precipicio +da independencia; mas a feliz temeridade do conde de Villa Flor, fechando os +olhos prudencia, applaudia o encontro decisivo dos dois exercitos, como o +unico meio, embora desesperado, de salvar a provincia e o reino da sujeio +estrangeira.</p> + +<p>O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praas, assaltra as +casas de Sebastio Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de Elvas. A +todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um +lance repentino podia sepultar para sempre as esperanas de Portugal!<span +class="pn">{66}</span></p> + +<p>A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito mezes +do que D. Pedro, seu irmo, contava n'esta epocha dezesete annos, e sem vaidade +merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez que o unico seno de +tanta belleza fosse a sua mesma perfeio irreprehensivel. No rosto, +graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranas, confundiam-se os lirios e as +rozas na mais mimosa frescura. A bocca, fina e espirituosa, crada como um +boto nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma +expresso adoravel. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam s +vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente se +inflammava, mas sua tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixo +dormia ainda, facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor +aquellas pupilas descuidadas. A mo parecia formada pelo modelo de uma estatua +primorosa. O p estreito e arqueado pousava-se to leve e elegante, que a vista +como que involuntariamente se alava a buscar nos hombros as azas da Silphide. +A voz tinha condo seductor. A estatura, um pouco acima de ordinaria, e +flexivel como a hastea de uma flor, tambem se dobrava como ella, parecendo que +o esbelto corpo de melindroso no podia com o doce peso da fronte, em que as +mil graas da primeira enamorada primavera competiam umas com as outras sem se +vencerem.<span class="pn">{67}</span></p> + +<p>As posies e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a attraco, +que o calculo debalde se esfora por imitar. Tudo desmentia o arteficio. O +requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do sorriso, e a magia +arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam espontaneos, prendendo os +sentidos e a admirao. A formosura da alma ainda era maior, se possivel. O +corao retratava-se na fronte limpida, e os infinitos thesouros de ternura e +de abnegao, que por ora concentrava nos extremos de filha e de irm, quando +se abrissem a affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor +ditoso. A pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de +candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella to sensivel, que affrontado +no s faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e caridosa sabia conciliar +a altivez do sexo com a brandura da indole a firmesa da vontade. Os dotes do +espirito esmaltavam as qualidades moraes.</p> + +<p>Talvez no houvesse na corte dama ou donzella to instruida na lio das +boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e castigadas +dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos por Fr. Joo, eram a +sua companhia certa nas horas de repouso.</p> + +<p>D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distinces, que o +exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustrao do bero, do que a +elevao<span class="pn">{68}</span> do caracter e a fidalguia das aces, que +em edade to verde quasi o haviam tornado um paladino. No seria mulher, +comtudo, seno a confirmassem n'este juizo a presena insinuante do mancebo, a +gentileza do seu porte e a nobre expresso da sua phisionomia. Os olhos da +donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo, +aonde riam as illuses da vida e da juventude, nunca fugiam d'elles, seno a +furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o que tentaria encobrir em +vo se acaso soubesse dissimular. Nunca os labios dos dois tinham soltado uma +palavra, que revelasse o que sentiam. Amavam-se. A alma de um trazia sempre +gravada a alma do outro, mas s a eloquencia da vista, indiscreta s vezes, +traira o segredo. D. Affonso, no podendo por mais tempo calar a chamma, que o +abrazava, tinha declarado ao pae, momentos antes de metter o p no estribo e de +partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas +esperanas, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno no perdera a +occasio, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto.</p> + +<p>A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, com +alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado de +subito o manhoso camponez, soubera disfarar o embarao e as apprehenses, mas +custara-lhe a conformar-se com a presena dos amos na casa, que<span +class="pn">{69}</span> havia tantos annos estava costumado a olhar mais como +sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar pressa duas salas e algumas +alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos nos +vos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a +senhora e Fr. Joo Coutinho poucos dias se demorariam atraz da familia.</p> + +<p>No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a ultima +pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos quartos da aya +e de Romo Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por si mesmas. +Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos de ferros e cadeias +arrastadas. S ao alvorecer que tudo desappareceu.</p> + +<p>O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe sacudia +os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira noute +levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, petiscou lume, +accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quasi em vestido +de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do brao. Depressa se +arrependeu. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos +roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, e um claro momentaneo e sulphurio +mostrou-lhe, envolto no sudario, um spectro descummunal e ameaador.<span +class="pn">{70}</span></p> + +<p>Esta horrenda viso deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao +inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabea debaixo das roupas, acto +de valor, em que a sr. Brizida de Sousa o acompanhava conscienciosamente havia +muitas horas. Pela manh os dous velhos pareciam desenterrados.</p> + +<p>O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, no foi mais +respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia continuada as +longas horas, que medeiaram at ao amanhecer. D. Pedro ainda padeceu mais. +Acordando sobresaltado ao impulso de mos brutaes e no meio de escurido +profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouar dentro das cobertas entre +uivos e rizadas.</p> + +<p>Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, ouvindo +da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades nocturnas, +contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, que em vida de +seu pae, j tinham muito m fama as casas do andar nobre.</p> + +<p>As noutes seguintes no foram mais tranquillas. Os espectros e duendes +tinham de certo reservado aquellas espaosas salas, e os corredores, para +theatro de suas diabruras. Dir-se-hia at que o tempo conspirado com elles os +ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as trovoadas de maio to +carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em relampagos, e a terra tremia +com o rebombo dos troves.<span class="pn">{71}</span> As chuvas caiam to +impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as +terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, alagava as margens, e suas +aguas batiam enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castello de +Almourol, salvando por cima do caes em caches de espuma. Ao oitavo dia +acalmaram-se as tempestades, mas redobraram de fora os maleficios nocturnos, +com terror, e espanto summo dos recem-chegados.</p> + +<p>Avexados, tremulos e fra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar a +residencia para os aposentos do castello, que no tinham desabado ainda minados +pelos seculos e pela indifferena; mas o feitor, que estabelecera n'elles uma +filha casada, dissuadiu-os do proposito, ponderando que as salas e os quartos +do velho edificio dos Templarios, alem de frios e de mais nus, que os do +palacio, no eram menos perseguidos de vises. Por horas mortas, exclamou elle, +as almas dos cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos +tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de +abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha da +famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da noute +sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e ouvia-se a +voz das sentinellas. At raiar a aurora no se calavam na sala de<span +class="pn">{72}</span> armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando +esta descripo horrifica, Brizida de Sousa e Romo Pires olharam consternados +um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, no querendo +precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar as travessuras menos +estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. Magdalena, +pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle purgatorio o mais cedo possivel, ou que +viesse sem demora em companhia do Sr. Fr. Joo desalojar os espiritos +diabolicos, cuja audacia zombava da agua benta e exorcismos do Vigario de +Tancos. Os dous honrados servos confiavam que a grande sciencia do frade doutor +e as virtudes do habito de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da +rebeldia de Satanaz e da maldade dos seus accessores.<span +class="pn">{73}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00320000000000000000">II</a></h2> + +<p>Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a crca exterior +da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, defronte de +Tancos.<a name="tex2html2" href="#foot327"><sup>[2]</sup></a> Cinco seculos, +passando por cima d'ellas, no haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem +alluido o cimento indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a +aco do tempo e o brao infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo, +transferida de Castro Marim para Thomar,<span class="pn">{74}</span> a sde da +sua victoriosa milicia, estendera rapidamente pela Estremadura os membros +robustos. Affonso I, liberalisando-lhe doaes e privilegios, e enriquecendo +com largos senhorios os monges soldados, confira quasi exclusivamente ao seu +valor a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure, +Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras +povoaes, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte bipartido<a +name="tex2html3" href="#foot323"><sup>[3]</sup></a>. As chaves das duas +entradas da provincia estavam nas mos dos cavalleiros. Defronte da moderna +Constana, na confluencia dos dois rios, o castello do Zezere cortava o passo +aos agarenos da Beira Baixa, em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello +de Almourol fechava o caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia.</p> + +<p>As ruinas, que vemos hoje debruadas sobre o rio, contam aos que sabem +interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre um +ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali caprichosamente +pelo impeto de violenta irrupo vulcanica, as elevadas torres do velho +castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam descortinar de longe, +erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito mirrador dos seculos. Grinaldas +de heras penduram-se em festes das<span class="pn">{75}</span> ameias +desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios dos pannos +rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, to arremessados que o dedo de +uma creana parece sufficiente para os fazer escorregar com o muro que os +cora, para o leito do rio, espanta os olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio +ousado e quasi milagroso. Areias accumuladas, e alguma terra de alluvio formam +o solo, aonde cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chores, cujos +troncos torcidos se penduram de cima das fragas at roarem as aguas com as +ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os penhascos +aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio precipitadas. Uma vegetao +activa e luxuosa veste de verdura aquelle cahos de moles immensas sustidas ha +seculos no meio da ameaa constante de uma quda instantanea.</p> + +<p>No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia, o +aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou, mas a +assolao no o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. Do lado do +occidente quatro torres circulares, levantadas como sentinellas de granito a +egual distancia umas das outras, alavam as frontes torvas e j tostadas do +tempo. Entre a segunda e a terceira rasgava-se a porta actualmente +intransitavel do castello, com a sua volta de ogiva e grossos batentes de +castanho chapeado. No meio do<span class="pn">{76}</span> guerreiro edificio +avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto intervallo, outra +quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias. Uma janella ornada de +lavores em ramos, aberta a dois teros da altura, esclarecia os aposentos do +segundo piso, em quanto da parte oriental duas frestas do mesmo estyllo davam +claridade sala de armas. Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a +muralha subia a grande altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes +ficava ao sul, e o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, +corria profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje so +ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os cactus +silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaoso por onde se entrava para os +andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles aposentos, pouco +espaosos, mas enfeitados de altas e ricas laarias. Em 1663 a obra da +destruio principiava a annunciar-se apenas. Apesar de nuas, as salas ainda +conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e adarves, se no alvejava havia +mais de tresentos annos o manto branco dos templarios, se algumas heras, +trepando, se balouavam merc do vento, e se as torres e muralhas mostravam +j a cr adusta, que para os monumentos o que so as cs nos velhos, um +testemunho irrecusavel de que viram e viveram muito, no se tinham +esmorecido,<span class="pn">{77}</span> comtudo, nem apagado ainda nenhuns dos +vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol no meio do Tejo, similhante a um +tito com metade do corpo fra das aguas, ainda podia ameaar forte e intacto, +os que ousassem arriscar-se ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel +cuidava no vigor de sua robusta velhice zombar dos seculos, como as creanas +zombam dos annos, bem alheio de suppor, que na transio da edade grave para a +decrepidez sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas +diriam s geraes indifferentes da nossa poca, que eterno e grande s Deus! +</p> + +<p>Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e ornada +de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os dois ricassos +da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais ainda pelas raizes de +interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues ajudava piedosamente seu +genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar copiosas libaes de um vinho, que +escaldaria outras goelas menos estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e +ps torneados, que servia de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho +d'aquelles contornos, avultava um alentado cangiro de barro, bojudo, e cheio +at boca. Principira a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos, +similhante a monstruoso aranhio, allumiava a casa<span class="pn">{78}</span> +escassamente. Duas espingardas, carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, +promptas para servir primeira voz.</p> + +<p>Antonio Rodrigues era corpulento, espadado, e reforado. Faces largas e +cheias, bastante rolias, pescoo curto e taurino, cabea enterrada entre os +hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes denunciavam n'elle o +vigor de um atheleta unido a uma saude inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta +annos, mas os visinhos do seu tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e +acertavam. Mas era uma velhice verde e jovial, que no se inclinava ao peso dos +annos, que o trabalho no desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim +viosa e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos +rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo douto +Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter de receitar +nem um xarope quelle cliente invulneravel s chuvas, aos frios, e a todas as +temeridades, a que um mancebo se no atreveria impunemente!</p> + +<p>Antonio Rodrigues trajava camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibo e +calas de baeta escura, carapua de l, e o inseparavel varapau ferrado na +ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha de cabellos +grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa, pouco sulcada de +rugas.<span class="pn">{79}</span> O sorriso enroscava-se perenne nos beios +grossos e crados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como os de um +tubaro, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o peito, e os olhos +castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em gordura, dir-se-hiam que +espreitavam tudo, meio encobertos. A voz aflautada causava espanto saindo +d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz grosso e cravejado de botes vinosos, +rubros como rubins, assumia dimenses quasi phenomenaes. A expresso da +phisionomia era dubia. O observador no primeiro relancear apenas notaria a +beatitude do comilo repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e, +comparando o olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando +debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feies moraes significativas +da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma cubia incapaz pela +avidez de transigir com a honra, com a consciencia e com o dever.</p> + +<p>Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto aos +dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo alpha, e o outro +pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto, assustava os que o viam com o +receio de que um dia lhe saltassem os ossos das tibias e dos femurs soltos das +ligaduras. Braos de polipo, terminados por mos e dedos eternos, hombros +agudos<span class="pn">{80}</span> sobre os quaes o fato dansava como posto em +cima de um cabide, rosto comprido, escaveirado, e macilento, acompanhado das +melenas esguias de um cabello ruivo e aguado, testa na que chega quasi nuca, +peito e ventre espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou +surrateiros, boca rasgada quasi at s orelhas, e beios finos e desbotados, +compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais atilado, +avarento e sem escrupulos d'aquellas immediaes. Parecia fraco e a +desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar legoas, os braos +escamados encobriam uma fora alem do commum, e os olhos vesgos s viam torto +para os negocios alheios.</p> + +<p>Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o velhaco +ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria para fra. +Uzurario de nascena, hypocrita por indole e verdadeira voragem de liquidos e +solidos, digeria como um abestruz e bebia como um areal. Quando conversava, +sempre em fallas manas, sabia chamar a tempo uns frouxos de tosse e umas +lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a engulir metade, e s vezes duas +teras-partes das palavras, e inutil accrescentar, que as palavras engulidas +eram sempre as que o podiam comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o +caso o requeria, Pedro Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma +cascata de prantos.<span class="pn">{81}</span> Tinha as glandulas lacrimaes +devassas e chorava como um crocodilo. Ai dos innocentes que se deixavam +orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam quasi sempre sem camisa. No meio +d'aquelle rosto afiado erguia-se um promontorio immenso. Era o nariz adunco e +aguado na ponta, que descia quasi a beijar o labio superior. Este nariz, +delgado e membranoso, rematava a semelhana que tinha aquella cara com o +focinho da fuinha. Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso +geral as funces de procurador de dous conventos de freiras, de quatro +irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos lucrativos a +arrematao dos dizimos e premicias da comarca.</p> + +<p>—Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando o +caneco despejado em cima da mesa.</p> + +<p>—Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro Lavareda +com um sorriso avinagrado.</p> + +<p>—Bem bom!... Sabes o que me d cuidado agora, homem? esta gente aqui +mettida. Tomara vel-os pelas costas.</p> + +<p>—Pois acabe de os empurrar para a rua, que no deixam c saudades! +redarguia o outro com meio sorriso acido.</p> + +<p>—Isso facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vs, os donos da +casa so elles!...<span class="pn">{82}</span></p> + +<p>—Que vo comendo as rendas e que nos deixem. To ms so ellas!...</p> + +<p>—Hum! Podiam ser melhores... Esse o meu receio. Trazemos isto muito de +rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse j ou lh'o ha de dizer.</p> + +<p>—Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse.</p> + +<p>—Pois sim!... Olha, no seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas +terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a castanha na +boca uma d'estas manhs?!</p> + +<p>—Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira boa feio, e o dinheiro +sangue...</p> + +<p>—Mas homem!?...</p> + +<p>—Deixe l, sr. sogro, no se metta a abelhudo aonde o no chamam, e deixe +ir a agua ao moinho. J alguem fallou em lhe levantar a renda da alcaidasia?... +</p> + +<p>—No.</p> + +<p>—Pois no faa andar o carro adiante dos bois, e corao larga. O que for +soar.</p> + +<p>Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coava a nuca com o indicador e +o dedo mdio da mo direita por baixo da carapua, e rufava sobre a taboa da +meza com todos os dedos da mo esquerda. As roscas da barba sumiam-se-lhe na +golla alta do gibo, e os olhinhos, homisiados entre as palpebras<span +class="pn">{83}</span> meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do +gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo na +apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de linho, em +quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mo raspava uma nodoa conhecida +e teimosa do calo sobre o joelho. Ambos meditavam e se entendiam sem fallar. +O feitor de repente levantou meio corpo de cima do mocho de pinho em que se +assentava, colheu o cangiro pelas azas, sopesou-o por um instante, e +emborcando-o, encheu os dous canecos de loua. Levou depois o seu boca, +encurvando lentamente o brao, e despejou-o em poucos sorvos, emquanto o +sobrinho, coleando primeiro a lingua pelos beios, libou com mais vagar e com +gestos de amador consumado o nectar, que espumava na grosseira taa.</p> + +<p>—Rapaz, isto no vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro. Anda +mouro na costa, que eu bem o sinto e c sei os botes com que me abotou-o. Esta +gente de Lisboa aqui no gosto nada d'ella.</p> + +<p>—Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya uma tonta, uma +pga douda. O escudeiro no passa de um espantalho de pardaes, e os meninos.... +leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada nascida de oito dias +e ver se no lhe dizem que trigo.<span class="pn">{84}</span></p> + +<p>—Mas atraz da pga e do espantalho tenho muito medo que venha o +milhafre!...</p> + +<p>—Qual milhafre?!...</p> + +<p>—O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de verdadeiro +susto.</p> + +<p>—E ento se vier?!... L no seu breviario! O Sr. Fr. Joo Coutinho sabe +muito de leis e de casos, mas de lavouras no creio...</p> + +<p>—Nisso te enganas. capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se no +campo e administrou muito tempo os bens do convento.</p> + +<p>—Ah! Ah!...</p> + +<p>—E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela pra com +a Sr. D. Magdalena.</p> + +<p>—Mau ser!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do +polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Mu ser, +tio!.... Mas no havemos de perder o somno por isso. Dizia no mosteiro, aonde +me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo o genero de peccado +deixou Deus remedio na sua egreja...</p> + +<p>Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco +satisfeitos.</p> + +<p>—Ento que dizes, homem?!..</p> + +<p>—Se o frade vier.... pl-o ao fresco, em vinte e quatro horas.</p> + +<p>—Ests mangando, sobrinho?!.. Pl-o ao fresco? O irmo da senhora, o tio +dos meninos?!...<span class="pn">{85}</span></p> + +<p>—Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa.</p> + +<p>—Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?...</p> + +<p>—Mettendo-lhe medo.</p> + +<p>—Ao sr. Fr. Joo, que rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai +dormir, Pedro, isso somno.</p> + +<p>—Sim sr., metter-lhe medo, porque no?...</p> + +<p>—Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito lambareira da aya e +ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada de escarneo. +</p> + +<p>—Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade no foge?... +Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lenoes da cama.</p> + +<p>—Deixa-te de historias, Pedro!... As vises com o frade no pegam. O que +apanhas algum tiro.... e olha que caador que no erra.</p> + +<p>—Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e ver....</p> + +<p>—Emfim, l sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo! O +frade ladino, sei que vem desconfiado de ns, e tenho muito amor pelle.</p> + +<p>—Socegue. Eu tambem no tenho odio minha. Diga-me: se Fr. Joo vier, +aonde o mette?</p> + +<p>—Aonde o metto?!.. Porqu?<span class="pn">{86}</span></p> + +<p>—Preciso saber.</p> + +<p>—No quarto verde talvez...</p> + +<p>—Nada! D-lhe o quarto dos armarios.</p> + +<p>—Mas!...</p> + +<p>Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coando sempre a nuca. O genro +ria-se para dentro, raspando a nodoa do calo.</p> + +<p>—Tu no me dirs o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu +risinho.</p> + +<p>—Pois no tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua me +Maria Santissima.</p> + +<p>—Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!... +Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no sr. +Fr. Joo.... No por elle, por mim. Nada de graas pesadas! No me quero +ver na cadeia comido de ps e mos. Leve antes a brca as terras.</p> + +<p>—Ai, tio!.. No se faa teimoso, e no esteja calumniando as minhas +intenes.. Valha-me a Senhora Sant'Anna.</p> + +<p>—Mau! Tornas aos santos!... Que isto?...</p> + +<p>—So passos.</p> + +<p>—E vozes... Chega fresta e v!</p> + +<p>Pedro Lavareda obedeceu.</p> + +<p>Um vento rijo e chuveires puxados com fora bateram-lhe na cara, apenas +abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabea para espreitar o que se +passava<span class="pn">{87}</span> no rio. O devoto personagem recolheu +pressa o interminavel e esganado pescoo, rosnou duas interjeies apimentadas, +e, enrolando um leno por cima da gola do gibo, tornou a affrontar, porem mais +abrigado d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta +observao, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se defronte +do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada no afunilado +rosto uma verdadeira elegia.</p> + +<p>—Ento?!... disse o feitor j sobresaltado com a mimica tetrica do +sobrinho.</p> + +<p>—Fallai no mau, apparelhai o pau!... o frade!..</p> + +<p>—Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de p de um pulo e enterrando a +carapua at aos hombros. O frade?!.</p> + +<p>—Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razo, tio. Anda mouro na +costa.</p> + +<p>—Vem a Senhora D. Magdalena?...</p> + +<p>—No. Vem elle s. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro.</p> + +<p>—No te dizia eu, Pedro?... E agora?...</p> + +<p>—O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua.</p> + +<p>—Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. No +gosto nada da vinda do sr. Fr. Joo assim com este segredo.... Receio....<span +class="pn">{88}</span></p> + +<p>—<em>Valaverunt galhetas</em>, sr. meu tio! como ns diziamos no +convento!... O caso est feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem +rabo!.. melhor, porm, o ha de fazer Deus e sua Me Maria Santissima, minha +madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom vinho +alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a p! V receber o sr. Fr. +Joo, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada.</p> + +<p>—E tu?...</p> + +<p>—Eu... Fico para pr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! D ao sr. Fr. +Joo o quarto dos armarios. essencial.</p> + +<p>—Porqu?...</p> + +<p>—Pela bocca morre o peixe!... Depois ver. Adeus! No faa esperar sua +reverendissima e encommende-me nas suas oraes minha devota Senhora Santa +Anna...</p> + +<p>—Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha l?.. +Cuidado com a pelle do sr. Fr. Joo!</p> + +<p>—V descansado, tio, no hade haver novidade. Vem ceiar?</p> + +<p>—Venho.</p> + +<p>—At logo.</p> + +<p>E os dous consocios e parentes separaram-se.<span class="pn">{89}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00330000000000000000">III</a></h2> + +<p>—Com que ento solto anda o demonio por estes palacios confusos, e +afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me +contam! Mau isso!... E voss que diz, Romo Pires? Parece ainda mais pasmado +do que esta boa velha!... Vamos l, sr. Antonio Rodrigues, diga-me: aonde o +quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. de casa!</p> + +<p>—Eu, sr. fr. Joo!... Sei s que no se pde parar aqui da meia noite em +diante!..</p> + +<p>—Ah! sabe isso!?... Ja no pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia +mais. Acho-o to rolio e anafado, que vejo que engorda com os sustos.<span +class="pn">{90}</span></p> + +<p>—O sr. Fr. Joo gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!...</p> + +<p>—Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora Apparecida!... +da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou a sr. Brizida, pondo as +mos.</p> + +<p>—Ento o sr. Antonio Rodrigues cr que esta noite haver ensaio geral de +Satanaz e da sua crte, para festejarem a minha chegada?... Muito bem! C +estamos. <em>Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!</em> Pelejaremos +com as armas espirituaes, que so as melhores, e com as temporaes, que tambem +servem em certas occasies! Mas como vamos de ceia?.. No barco o mau tempo +fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar um carneiro assado! E o vinho, +aquelle bom vinho de 1655, ainda haver por c uma gota d'elle? Ha de haver. O +sr. Antonio Rodrigues, o melhor copo de Tancos e seus arredores, aposto que no +est desprovido de munies de guerra?</p> + +<p>Antonio sorriu e coou a nuca.</p> + +<p>—A ceia est ao lume, e no se demora tres credos. Quanto ao vinho.... +esteja vossa reverendissima descansado.</p> + +<p>—Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr. D. Maria. Ella +tem passado peior?...</p> + +<p>—No, sr.! Peior no. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a minha +rica menina tem perdido<span class="pn">{91}</span> as cres. Ella to +delicadinha, to fraca!.. sr. fr. Joo, a menina no podia ler um nadinha +menos, mais o sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa?</p> + +<p>—No pode, no senhor!... acudiu o frade em voz de trovo. Meus sobrinhos +no se educam para espantalhos de sala!... E voss muito atrevida em se +metter a dar conselhos aonde a no chamam!...</p> + +<p>—Ai doce Jesus do meu corao! Que disse eu para ouvir uma repostada +assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. Joo? No sou moura, nem perra, nem captiva. +Po em toda a parte se come; e se no fosse o amor dos meus meninos, por esta +(e beijou os polegares em cruz) que no aturava uma hora mais n'esta casa!</p> + +<p>—Est bom, Brizida de Souza, est bom! No se inflamme. Sabe que a estimo, +que todos em casa lhe queremos muito.... mas no me toque n'essa crda. Sei que +me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que elles no teem uma +tosse, uma febrita, de que se no torne logo a culpa aos meus livros!...</p> + +<p>—Vale mais asno vivo, do que doutor morto! resmungou a velha ainda irada +e incorregivel.</p> + +<p>—Mas eu que no quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos, +mulher!—bradou o frade fazendo-se cr de purpura e sorvendo duas pitadas com o +ruido de um furaco..—Safa! Voss capaz<span class="pn">{92}</span> de fazer +perder a paciencia ao proprio Job!... Bem! No fallemos mais n'isto, e no faa +caso dos meus repentes.... Sabe que no sou to mau como pareo e que trago +sempre no corao os meus dois rapazes...</p> + +<p>—Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. Joo berra, esbraceja, um +destemperado, mas passa-lhe logo. Co que ladra no morde. Livre-nos Deus de +uns sonsinhos que no quebram um prato, mas que ferram o dente calados....</p> + +<p>—Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa inteno. Chame os pequenos. A +ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella como Santiago aos +mouros!.. Vamos.</p> + +<p>A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra, +regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. Joo proclamou +rival do melhor que se podesse beber meza de el-rei. As proezas gastronomicas +do erudito dominicano tinham assombrado o proprio feitor, cujo estomago +insondavel sepultava sem incommodo alimentos de todas as qualidades, e se +carregava de quantidades que eram o espanto e maravilha dos que assistiam s +suas repetidas campanhas pantagruelicas. D'esta reputao merecida Antonio +Rodrigues viu-se obrigado a arrear bandeiras. O padre mestre no comia, +devorava, no bebia, absorvia! Regando de copiosas libaes cada iguaria +rustica, absolvendo as<span class="pn">{93}</span> indigestas com um exorcismo +culinario, fazendo desaparecer do prato as menos pesadas com milagrosa rapidez, +dir-se-hia que a fome iberica e peninsular, a fome de dentes caninos e apetite +insaciavel, tomra a figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos +uma verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porm, e Fr. Joo, exalando um +suspiro, e cruzando as mos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por +concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda suffocada do +esforo: <em>Deus nobis hc otia fecit!</em></p> + +<p>O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no +espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o barretinho de +seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, no offerecia de certo a imagem +dos piedosos e extenuados monges, que em epochas de mais f edificavam os fieis +com o exemplo de sua vida frugal e contricta. Parecia mais um hippopotamo +encalhado, do que um devoto filho de S. Domingos. Os instinctos animaes +prevaleciam, e a fadiga de uma digesto laboriosa fazia arfar aquella machina +de mastigao continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admirao +sincera de creaturas delicadas, que semelhantes excessos no s confundem, mas +atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em orao +atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o padre<span +class="pn">{94}</span> coloal fulminado por um ataque apopletico. Romo Pires +ainda no podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel +do irmo do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam no +brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente com a unha, +e dizia comsigo, que o frade, medindo as foras pela alimentao, devia +prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em dous, como o faria qualquer +mastim faminto ao gato descuidado, que lhe caisse debaixo das prezas.</p> + +<p>—<em>Deus nobis hc otia fecit!</em> tornou a repetir Fr. Joo depois de +uma pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e +agilidade.—Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!.. Minha +sobrinha! No gostei de a ver to triste. Que nuvem pesa sobre esse corao? +So receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver so e escorreito....</p> + +<p>—Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida.</p> + +<p>—Pois quem hade ser seno aquelle cavalleiro andante que se despedio de ns +e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me agora?</p> + +<p>—Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza.</p> + +<p>—Est bom! Est bom! No digo mais nada.... Romo Pires sabe que os +castelhanos tomaram Evora,<span class="pn">{95}</span> e que a estas horas ho +de estar as mos com o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem +vence?!..</p> + +<p>—Essa boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa Flor. +</p> + +<p>—Deus o oua! Bom ter f!.. Mas!—E a larga fronte do frade enrrugou-se +aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de lhe cobrirem quasi as +palpebras superiores—<em>Deus super omnia</em>! murmurou.</p> + +<p>Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se com +estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou impetuosamente +pelo aposento, com os olhos espantados, as faces contraidas, e os cabellos +ruivos espetados, representando a imagem viva do terror e da consternao.</p> + +<p>—Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!...</p> + +<p>A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de p, no menos +assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora.</p> + +<p>—Os castelhanos!?.. gritou Fr. Joo, saltando da cadeira e empunhando +machinalmente um basto enorme, especie de clava, que o acaso lhe mostrou +encostado a um canto.</p> + +<p>—Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e +erguendo as mos.<span class="pn">{96}</span></p> + +<p>—Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a longa +navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em quanto Romo Pires +sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiosa.</p> + +<p>D. Maria, branca de cra e silenciosa, encostou-se mesa para no cair. D. +Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes, e a +fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de crte, e deu alguns +passos como se quizesse sair ao encontro do perigo.</p> + +<p>—Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. Joo. s armas! sr. Antonio Rodrigues +chame os criados!... Faamos de Tancos e de Almourol uma segunda +Aljubarrota!...</p> + +<p>Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de +impaciencia batia o p como o corsel insofrido escarva o cho desejoso de +soltar a carreira.</p> + +<p>—Mas no seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a +noticia, e aonde esto os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com +extrema serenidade.</p> + +<p>—<em>Do manus!</em> <em>Rem acu tetegiste, puer!</em><a name="tex2html4" +href="#foot178"><sup>[4]</sup></a> gritou o frade sentando-se commovido e ainda +tremulo. Famos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em primeiro<span +class="pn">{97}</span> logar: quem e como se chama este correio de ms +novas?..</p> + +<p>— meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda.</p> + +<p>—Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais +secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue falla o sr. +Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a m noticia que nos trouxe?...</p> + +<p>—Um almocreve do Crato, que saiu de l a bom fugir!...</p> + +<p>—E que disse o almocreve?...</p> + +<p>—Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no campo, +e que as guardas avanadas de D. Joo de Austria estavam a entrar no Crato!... +</p> + +<p>—Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha?</p> + +<p>—No m'o soube dizer.</p> + +<p>—Hum! E o seu almocreve aonde est?...</p> + +<p>—Partiu, caminho de Lisboa.</p> + +<p>—Oh! E no sabe mais nada?</p> + +<p>—Mais nada, sr. padre mestre.</p> + +<p>—Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de +amigo?...</p> + +<p>—Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!..</p> + +<p>—Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve,<span +class="pn">{98}</span> durma sobre o caso, como ns vamos dormir, e creia que +amanh acorda convencido de que engulio uma peta mais comprida do que a sua +pessoa, o que j no pouco.</p> + +<p>Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas +como o no eram, contentaram-se com a expresso humilde e hypocrita de uma +annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam soffrivelmente +um sorriso boal.</p> + +<p>—<em>Macte puer!</em> gritou Fr. Joo, batendo no hombro de D. Pedro. +Tiveste mais juizo tu s, do que ns todos!... Isto mentira e mentira mal +armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um +almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma at Almeida! Romo +Pires, enfie-me na banha esse eterno chifarote, espanto e censura viva das +espadas de hoje!...</p> + +<p>—Ento vossa reverendissima j no quer que ponha de aviso os criados? +disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com o +genro, colloquio, que apesar de curto, no escapara a Fr. Joo.</p> + +<p>—No, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro +mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma boa ceia + o melhor remedio para estas molestias. Aonde o meu quarto?</p> + +<p>O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador<span +class="pn">{99}</span> ao sobrinho, que lhe respondeu com um aceno quasi +imperceptivel de cabea, e, pegando em um macio castial de prata denegrido, +precedeu a especie de procisso de toda a familia at ao aposento, aonde o +douto dominicano havia de passar a noute. A porta abria-se no topo do comprido +corredor do centro; a camara de D. Pedro ficava-lhe esquerda, e o pequeno +camarim de Romo Pires direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados, +e seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao p o leito de Brizida de +Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. Joo, nada inculcava de +notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de peitos e uma sacada, +cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a par de largos pedaos das +colgaduras de couro, que em melhores dias as tinham ornado, altos e grandes +armarios de pau santo. Os tectos altos e enegrecidos e o pavimento carunchoso, +gemendo e estalando com o peso dos passos, atestavam a velhice e o desamparo. +Um leito antigo, enorme, com sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de +pau santo arruinado, e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou +quatro cadeiras coxas dos ps, ou mutiladas dos braos, a mobilia nada commoda, +nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruio minava, e +esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram alguns<span +class="pn">{100}</span> paineis grandes, retratos de corpo inteiro de +guerreiros, damas, e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras +de carvalho, lavradas de talha alta.</p> + +<p>O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, sorrindo-se, ao +feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas almas do outro mundo. +Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda cabea, e Brizida benzeu-se +devotamente.</p> + +<p>—Bem!... N'esse caso preciso estar armado e vigilante para a batalha! Se +escaparmos aos castelhanos do Crato, no quero que acabemos nas garras dos +trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz favor! Mande trazer +para aqui o meu alforge, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro Lavareda +(exquisito nome (!)) bom caador por certo, e hade ter uma espingarda de +mais. Eu tambem gosto de dar o meu tiro de manh cedo s perdizes e s +calhandras por essa charneca. Conto levantar-me com o sol, e dar um passeio +pelas fazendas, para tornar a ver estas terras em que no ponho os olhos ha um +bom par de annos. Para no ir com as mos abanando levarei a sua espingarda... +No a heide tratar mal, descanse!..</p> + +<p>—Essa boa, sr. Fr. Joo! A espingarda, eu, e tudo o que mandar esto s +ordens de vossa reverendissima....<span class="pn">{101}</span></p> + +<p>—Muito obrigado!... Olhe no se esquea de me trazer um frasquinho de +polvora.</p> + +<p>O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a Romo +Pires, e pondo as mos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em voz baixa: +</p> + +<p>—<em>Latet anguis!</em> Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella +face compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous, elle +e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, esto conjurados contra ns... Porqu +e para qu? O tempo o dir. Olho vivo, pois, Romo Pires! Se lhe apparecer +viso, ou espectro, receba-m'o s cutiladas. Eu c espero a p firme os que +vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes deitar, hade chamuscal-os de +vras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous velhacos.</p> + +<p>De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a +espingarda e o frasco. Fr. Joo fallou um pedao com elles, sempre com a boca +cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar at pela manh, e +despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiana.</p> + +<p>—O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse Antonio +Rodrigues com o rosto carregado.</p> + +<p>—Veremos, sr. meu tio.</p> + +<p>—Guarda-te de elle te pr as mos. capaz de estourar um boi.<span +class="pn">{102}</span></p> + +<p>—Melhor o far Deus!</p> + +<p>—Boas noutes.</p> + +<p>—Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda.</p> + +<p>—Sentido! Nem uma beliscadura!</p> + +<p>Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do +corredor, Fr. Joo Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e parecia ficar +inteirado de que as paredes e os armarios no encobriam portas falsas, nem os +sobrados alapes. Abrindo o alforge depois, tirou de dentro um par de +pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as escorvas, e passando +espingarda, carregou-a com todo o cuidado, metteu-lhe uma bala, e pousou-a +engatilhada cabeceira da cama. Feito isto foi porta p ante p, descerrou-a +de manso, e em passo subtil encaminhou-se ao camarim de Romo Pires, aonde se +demorou. volta—davam onze horas—achou tudo como o deixara, rezou pelo seu +breviario, e despindo s o habito, abafou-se, conchegou as colchas, recostou a +cabea, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um somno profundo +annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, as almas penadas, e os +virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade no julgra de bons quilates.</p> + +<p>Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito, pesado e +macio, arfava, balouado<span class="pn">{103}</span> como um barco sobre +vagas inquietas. O frade entre-abriu os olhos. A vela do castial estava em um +tero, e a luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e +silencioso. Entretanto o leito no parra de dansar, e, facto mais singular +ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mo, ou brao que lhe +tocasse. Fr. Joo deixou-se ficar, tomando smente uma posio que lhe +consentisse saltar ao cho de um pulo para travar a lucta com os duendes e +spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador cabeceira, e a espingarda ao +p. Entretanto, apesar de animoso e resoluto, o suor principiava a +borbolhar-lhe na testa, e um calefrio suspeito a correr-lhe a espinha dorsal. +</p> + +<p>—Isto no vae bem! Queria antes ruido, grilhes arrastados.... a scena do +costume. Esta calada e estes empuches invisiveis.... sinceramente sera de +fazer tremer as carnes, se eu no soubesse!... Credo!.. L se foi a roupa at +aos ps da cama.... No gosto da graa! Que aquillo? As pinturas andam!?.. +Oh!...</p> + +<p>Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos cabellos, +que lhe restavam, erriados em volta da calva, com as feies contrahidas e a +boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no painel, que lhe ficava +fronteiro e que representava um cavalleiro da edade mdia coberto de toda a +armadura, mas com o rosto sem viseira e<span class="pn">{104}</span> os olhos +ameaadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura, parecia +mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. Joo quiz duvidar do testemunho dos +sentidos, e convencer-se de que era victima de uma illuso. Esfregou as +palpebras, beliscou os braos para despertar a sensibilidade, mas o retrato +continuava a adiantar-se, e um sorriso tetrico como que lhe franzia os beios. +Ao mesmo tempo os ouvidos afiados do dominicano colheram, no sem grande pavor, +o som amortecido de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante +ao gemido doloroso de afflictivo estertor.</p> + +<p>—<em>Vade retro, Satanaz!</em> murmurou saindo da cama cheio de terror. +<em>Ne nos inducas in tentatione!</em></p> + +<p>Apenas soltra a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furaco +medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes.</p> + +<p>Fr. Joo recuou at s cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os joelhos, +e fugir-lhe o animo. Estendendo a mo nas trevas machinalmente, encontrou uma +das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos apertaram tambem +machinalmente a coronha.</p> + +<p>De repente um claro sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz +sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma gigantesca +envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta figura descommunal, +cuja cabea era uma caveira, lanava chispas pelas cavidades dos olhos, e +acenava<span class="pn">{105}</span> com os longos ossos de esqueleto. O frade +tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos +recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas +espirituaes no produziram effeito, e, apesar da perturbao momentanea, tornou +a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle espectaculo uma +visualidade, ensaiada para zombar da sua boa f. Revestindo-se, pois, de valor +e deciso, apontou rapidamente ao vulto, que tinha diante, a pistola, que no +largara da mo, e disparou-a. Observando que o tiro no causra abalo no +phantasma, pegou depois na outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou +o gatilho. Uma risada estridente respondeu ao estrondo da exploso, e o +spectro, mostrando as duas balas, arremessou-as ao cho, aonde o padre mestre +as ouviu rolar. Logo em seguida o claro sumiu-se de subito, espessas trevas +envolveram o quarto. Fr. Joo, quasi desmaiado, caiu em uma das cadeiras +proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os membros, e +paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo terror.</p> + +<p>Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas no eram menos activas e violentas +nas camaras dos outros hospedes. Romo Pires, apenas se deitra, e escondera a +cabea debaixo da roupa, com premeditao pouco em harmonia com os brios de +suas falladas campanhas, sentio apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe<span +class="pn">{106}</span> pelos ps o magro e aprumado corpo at o estatelarem de +pancada e sem d nas taboas do sobrado. O grito de mdo e de dor, que soltra +estremunhado, teve em resposta um cro de risadas em falsete. Brizida de Souza +acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de agua que lhe +entornavam sobre a cabea, e saltando por a casa em roupas menores, e com a +boca escancarada, para bradar, era comida no ar por mos pouco caridosas e nada +leves, que de empurro em empurro a levaram aos tombos at ao corredor, aonde +veiu encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma das +mos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem accusava uma +fora sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de pavor, no padecera +seno o terror de ouvir estalar ao p do leito gargalhadas dissonantes, e +arrastar ferros.</p> + +<p>No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque tinham +chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em +presena do perigo, e pouco disposto a acreditar na interveno dos poderes +infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute sem se despir, e com a espada nua +ao lado, tinha-se entregado leitura de um livro novo, que em breve lhe +absorveu a atteno. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada das investidas no +corredor e nos aposentos proximos. Apagando<span class="pn">{107}</span> a luz, +e empunhando a espada, aguardou silencioso.</p> + +<p>A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber dous +vultos na escurido. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se debruava +sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava d'elle sons roucos +e medonhos, caiu s pranchadas sobre o musico do Averno, ao qual o instrumento +escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela casa, +gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro phantasma volveu +logo em auxilio do agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no brao ao +que pareceu, deitou-o pela porta fra como um vendaval, em quanto o companheiro +tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.</p> + +<p>D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castial e a +candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no cho um buzio +dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lenol com lagrimas de tinta +encarnada, e uma caveira de papelo pintada de amarello.</p> + +<p>O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao mesmo +tempo documento vivo da conspirao tramada. Algumas gtas de sangue, caidas no +pavimento desde metade da casa at porta, provaram-lhe que um dos actores do +drama nocturno retirara ferido e assignalado. D. Pedro pegou<span +class="pn">{108}</span> no castial, e seguindo o rasto de sangue pelo +corredor, notou que parava no topo, aonde s existia uma parede grossa, sem +nenhuma saida apparente. Informado do que desejava verificar, voltou atraz, e +encaminhou-se ao camarim de Romo Pires. porta viu duas figuras brancas +ajoelhadas. Deteve-se um pouco at se affirmar. A velha aia e o dorido +escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e de frio, esgotavam um +defronte do outro todo o vocabulario de rezas e de interjeies atribuladas, +sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro, no podendo suster o riso, +fallou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a +camara de Fr. Joo.</p> + +<p>O frade ainda jazia na mesma posio. Conservava-se quasi exanime na ampla +cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castial em uma das mos e a espada nua +debaixo do brao, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas no se moveu.</p> + +<p>D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir palavra +examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo triumphante no +deixra despojos. Terminado o exame, poz o castial em cima do velador, +collocou a espada ao p do castial, e, volvendo para junto da cadeira, d'onde +o tio, como paralysado, observava tudo silencioso, disse-lhe:</p> + +<p>—Mas o que foi isto?!..<span class="pn">{109}</span></p> + +<p>Fr. Joo respondeu com um suspiro, e, correu a mo pela testa ainda inundada +de suor.</p> + +<p>—Estas pistolas disparadas, estas balas no cho!.. No me dir o que +succedeu?!...</p> + +<p>Outro suspiro mais alto.</p> + +<p>—Por onde entraram elles?...</p> + +<p>O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, meneou +a cabea com tristeza, fez um esforo para levantar meio corpo da cadeira, e +apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos antes soltar-se da +moldura, e encaminhar-se para elle.</p> + +<p>—Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castial e +correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou: Olhe?! +</p> + +<p>—O que? disse o frade, pondo-se de p, mas to abatido e tremulo, como se +acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade.</p> + +<p>—Venha meu tio, e veja!</p> + +<p>De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um boto +debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo presso, abriu-se +lentamente.</p> + +<p>—Ah!.. exclamou fr. Joo.</p> + +<p>—Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo.</p> + +<p>—Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as +cres, a elasticidade dos<span class="pn">{110}</span> membros, e a viveza dos +olhos. Mas abaixando a vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no cho, +e uma nuvem torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o +que succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os +duendes. Fr. Joo ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um immenso +ponto de interrogao.</p> + +<p>—Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro.</p> + +<p>—Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romo Pires.</p> + +<p>—Foi o que bastou. No mexeu na espingarda? Est certo?</p> + +<p>—Como de te estar vendo.</p> + +<p>—E metteu-lhe uma bala de calibre?</p> + +<p>—Seguramente.</p> + +<p>—Muito bem, quer vr?</p> + +<p>E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a +polvora. Da bala no achou noticia.</p> + +<p>—Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os dentes, +plectorico de colera.</p> + +<p>—Podiam atirar-lhe com tres balas aos ps em vez de duas! Tinham tido o +cuidado...</p> + +<p>—De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que ho de pagar-m'o caro!... S +atazanados!<span class="pn">{111}</span></p> + +<p>—D licena que lhe d um conselho?...</p> + +<p>—Dize, rapaz. Ests um homem, e tens mostrado valer mais, do que ns todos. +</p> + +<p>—Se quer apanhar o rato na ratoeira, no faa bulha.</p> + +<p>—Bem! Bem! <em>Do manus!</em> <em>Qui nescit dissimulare nescit +regnare</em>, acudiu fr. Joo, esfregando as mos. Ah! patifes! O que elles se +tero rido minha custa!...</p> + +<p>—Deixe! Riram-se hoje? Amanh choraro! Bas noites meu tio. Socegue, que +bem o precisa.<span class="pn">{112}</span></p> + +<p><span class="pn">{113}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00400000000000000000">A CAMISA DO NOIVADO</a></h1> + +<h2><a name="SECTION00410000000000000000">I</a></h2> + +<blockquote> + <p>Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu tempo + certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos quaes disserom, + que as Leis e justia erom como teias de aranha nas quaes os mosquitos + pequenos, caindo, so reteudos e morrem em ella, e as moscas grandes e que + som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as e vo-se.</p> + + <p>Ferno Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX.</p> +</blockquote> + +<p>Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoo, na provincia de +Traz-os-Montes, erguia a cabea soberba acima dos outros logares. As muralhas +de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo castello, debruadas +sobre um precipicio despenhado, concordavam com a melancolia<span +class="pn">{114}</span> do sitio e com as sombrias tradies, de que as +memorias do povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de +aguias, a vista, relanceando, abraava toda a campina, mosqueada aqui de +arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas alm, e empolada mais adiante em +collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam at beijarem o cinto +de cabeos alpestres, ultima barreira dos horisontes. Ao sop da montanha, +aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma torrente. Era o Angueira +bramindo entalado na bronca penedia do leito. Mais ao longe, na coroa dos +cerros, os pinheiros meneavam as copas verde-tristes, e os ciprestes solitarios +balouavam ao vento as pontas esguias. Por ultimo, ao largo, j quasi aonde no +enxergavam os olhos, recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de +Seabra na fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de +Nogueira, toucadas de gelos eternos.</p> + +<p>De tarde, quando comeava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens do +rio em cllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e envolvia n'uma +cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu caprichoso, cujas dobras +sacudia a briza, ora se despregava, deixando entrever confusamente os vultos, +ora condensado cerrava tudo em volta do solar.</p> + +<p>Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo<span +class="pn">{115}</span> e de nebrina eram tambem as horas dos feitios. Uma +princeza encantada junto da fonte de S. Joo guardava os thesouros enterrados +de certo magico. Linda como as estrellas, a maldade do encantador condemnara-a +a arrastar-se todo o anno em figura de serpente. S na vespera do festejado +santo, meia noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, que o +fado mau se quebrava at ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a +moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as escamas +luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a formosura rara de uma +belleza admiravel.</p> + +<p>Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e +copados ulmeiros beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de branco, +desnastrando as tranas com um pente de ouro, e cantando aos espiritos do ar +com to maviosa voz, que se cortava o corao de a ouvir.</p> + +<p>Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira j inclinada sobre o +espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da cr da +aucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se quella hora qualquer +lograsse fallar moura antes de tornar frma de serpente, alcanaria da bella +captiva, que era fada, as primeiras tres cousas que lhe pedisse; mas os acasos +ditosos so raros, e em cem annos pelo menos no havia<span +class="pn">{116}</span> lembrana de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido +batia os ps, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo, como +sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas aguas, e uma leve +nebrina por entre as arvores.<span class="pn">{117}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00420000000000000000">II</a></h2> + +<p>Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o +<em>Justiceiro</em>, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e +humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer punisse, quer +premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos, os maus tremiam +diante da sua face, porque o castigo de suas mos seria vingador como a ira de +Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos. No seu tempo a lei era de um +s rosto e a pena no coxeava atraz da culpa. Entre o crime e a expiao no se +interpunham annos, promessas, ou favores. Devedor honrado,<span +class="pn">{118}</span> o principe ajustava logo a sua conta a cada um, e +pagava-a immediatamente. S aos moradores de Algouo, coitados! que ainda no +chegra a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo sentiam sua f to viva +n'elle, que nas maiores afflices a voz de todos era sempre: Valha-nos aqui +el-rei D. Pedro! Por fim valeu, e o caso devia ser escripto com lettras de +ouro pela penna d'aquelle honrado e singelo chronista Ferno Lopes, mais poeta +do que toda uma arcadia, e grande pintor de vultos e de cousas.</p> + +<p>Ainda ento se aninhava a povoao de Algouo em volta do castello, +construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a sombra +misericordiosa dos braos da sua cruz. Por ambas as encostas at cora da +montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos armados nos +eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da aldeia, +pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e arruinadas de velhice, +estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas e remoadas dissimulando a +pobreza com os ares quasi festivos!! Deus nos livre de to mau senhor! era o +voto dos burguezes de Miranda, compadecidos da escravido dos moradores de +Algouo, e ainda no diziam desgraadamente toda a verdade. Ali o suor de +sangue regava os banquetes da sala de armas e as pompas quasi regias do +rico-homem.<span class="pn">{119}</span> O pranto da viuva e as lagrimas dos +orphos molhavam suas mos, sempre aladas contra a miseria dos desditosos para +destruir o tecto, que lhes abrigava o bero, e revolver s vezes at o cho +sagrado do cemiterio aonde repousavam seus paes, avs, e irmos.</p> + +<p>O mordomo trazia de cr os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A +vontade do amo e a cubia dos servos deixavam mendigos noite os que tinham +amanhecido remediados!</p> + +<p>D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raa o sangue nobre +confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o casamento de +Diogo Lopes com a Dama-p-de-Cabra. Verdadeira, ou fabulosa, a alliana dos +altivos bares com os demonios tinha sido fertil em crimes. N'uma epocha, em +que a lana e a espada cortavam as contendas, calando as leis, e calcando os +direitos, os cavalleiros de Algoo excediam os mais ferozes na braveza, e na +crueldade ferina. Vr correr prantos, e derramar sangue, para elles era um +deleite. Pizar aos ps dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes +das matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro objecto +das estrondosas caadas, em que talavam campos e vinhas a pretexto de montear +lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta familia impia. Tres esposas, em +seis annos, haviam passado do leito<span class="pn">{120}</span> nupcial para o +tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de to mal agourada unio. Rosas +pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em flor, fanava-as logo? +O segredo no transpirou dos labios gelados das victimas; mas sabia-se que os +sorrisos do amor nunca lhes tinham alegrado a vida. Desceram ao sepulcro, +tristes e silenciosas como existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas +sombrias portas. D. Sueiro no soltra um suspiro! Se uma lagrima congelada +n'aquelle corao de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se +queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida estampava-se na +fronte maldicta. O crime das tres esposas fra a esterilidade. O ferro, ou o +veneno, rompera o lao conjugal. A sepultura quebrra o vinculo apertado no +altar! Era calumnia? Era verdade? Quem sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes +podiam espantar os mais ousados.<span class="pn">{121}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00430000000000000000">III</a></h2> + +<p>Tinha fama de grande monteiro o castello. Ml o dia despontava, saltava +logo no cavallo, e a galope, por saras e estevaes, por montes e campinas, no +meio dos caadores, entre risos, juras e brados, corria at noite. Uma tarde, +na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas terras de um colono, e a +despeito das supplicas do velho, ces e corseis, salvando valados, e calcando +pavas, arrazaram em minutos o trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e +relinchos soavam, sem cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca! +Tocavam buzinas, estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu<span +class="pn">{122}</span> atraz da pista. Garcia de Marnel, o dono do campo, fra +o melhor besteiro dos sitios. O mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas +mos, e a seta da sua aljava atravessara sempre o alvo. De avs a netos esta +robusta e laboriosa raa lanra raizes profundas no solo, remido pelo seu +brao. Os mais fundos affectos prendiam-a terra rta e lavrada com o suor do +trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viosas as primeiras +esperanas, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e dos filhos. No +altar da egreja haviam sido abenoadas as promessas de mutua ternura; e agora +debaixo da cupula frondosa dos lamos, sua porta, o av, no inverno dos +annos, sentia-se renascer nas graas infantis da neta, mimosa e unica +vergontea, que sobrevivia dos ramos decepados pela morte no velho tronco da +familia. Garcia amava tudo isto com o ardor calado, mas intenso das almas +viris, retemperadas pelo infortunio.</p> + +<p>A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabea, nem o peso da enxada lhe +desfallecera o brao. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do corao, a +dor mesmo no lhe prostrra o animo. A esposa, por tantos annos alegria e +conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho da vida para ir +esperal-o na manso de paz. Dois filhos, amparo da sua velhice, orgulho da sua +alma, ceifados em flr seguiram a me, em quanto o ancio desgraado,<span +class="pn">{123}</span> s e de joelhos no via a seu lado no desterro da vida, +rmo de consolaes, seno a infancia fragil e graciosa de Silvaninha, duas +vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu sangue. Inclinado sobre +tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as sombras da morte, +converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em um extremo louco e quasi +delirante. S esta saudade, s este amor o prendia ainda ao mundo, mas com tal +encanto, que muitas vezes pedira a Deus que lhe dilatasse os dias para no se +unir aos que o chamavam do ceu, seno depois de a ver mulher e feliz.</p> + +<p>Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos ps dos cavallos os fructos de um anno, o +sangue do velho, remoado pela ira, pulou nas veias; as faces cavadas corram +de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo ao encontro do +cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas no de mdo.</p> + +<p>Aquelle campo era o dote da neta, e s por causa d'ella que supportava o +peso aborrecido de setenta annos de fadigas. Senhor! Senhor! dizia elle +correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caada contra um velho e +uma donzella! O rico homem no respondeu. As matilhas e os cavallos, +precipitando-se, partiam rda d'elle, envoltos em nuvens de p, e o afflicto +lavrador, de p e coberto, tinha lanado mo das redeas do corsel.<span +class="pn">{124}</span></p> + +<p>Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o ltego, silvando, +cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe ameaou o +peito com s patas Fra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do conselho! Garcia +desviou-se quasi cego de dr, e Sueiro, cravando as esporas nos ilhaes, voou +redea larga por cima das hortas e ceras, bradando: Sus! Abca!</p> + +<p>O aoute infamante no cortou o corpo, cortou a alma ao desgraado. Recuando +para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as pupilas inflammadas, +poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um rujido surdo expirava ao mesmo +tempo flr dos labios. A vida do homem orgulhoso e mu estava merc +d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o ajustou a seta. O que no intimo peito +diziam o desespero e a colera era medonho. O rosto no o encobria. Ao apontar o +tiro a vista ardente elevou-se ao ceu. Pedia perdo, ou auxilio?</p> + +<p>De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e +melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram ento dos olhos seccos do +velho; os braos descairam. Quiz vencer-se e resistir, no pde. O arco +fugiu-lhe das mos, e a bocca murmurou:</p> + +<p>Fra matal-a tambem a ella! Enxugando depois as palpebras entregou a Deus +o castigo do oppressor.<span class="pn">{125}</span></p> + +<p>Mas a desgraa entrra no seu campo com Sueiro Lopes.</p> + +<p>O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fra +aviltado, Garcia no parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o. +Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos, acudindo +ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma oliveira plantada +pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre orph, confiscada caiu nas +mos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha, sem parentes, e protectores, +teria morrido de frio e de fome se lhe no valesse a caridade dos amigos do +besteiro. Um deu-lhe a casa e o sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de +sua gentilesa, soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a +donzella em edade e formosura; mas medida que os annos corriam, o rosto +pallido e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas +faces as lagrimas e no as entendia. que o po da esmola, mesmo dado com +amor, sempre trva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando para o +tecto da casinha, de que fra desherdada, apertava-se-lhe o corao por medo +tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da sepultura, aonde seu av +descansava, aonde todos os seus dormiam!<span class="pn">{126}</span></p> + +<p><span class="pn">{127}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00440000000000000000">IV</a></h2> + +<p>Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoo tinham +lanado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de terra. Sueiro +Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras tantas viuvo, cada vez se +havia feito mais aspero e cruel.</p> + +<p>Mal raiava a manh as buzinas acordavam logo as solides. Assim que a noite +se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem, illumminando-se, +reverberavam o claro das tochas do festim. Os gritos, as risadas, as +blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham perto do castello. +Os<span class="pn">{128}</span> vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os +deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O abutre j +no empolgava s a vida e os bens dos villos; abrazado em ardor impuro cevava +a sensualidade na honra das filhas da aldeia. Rindo-se do temor de Deus, +arrastava sem piedade pelo lodo de amores infames a innocencia das mais +formosas e a virtude das mais honestas. Um sorriso, um olhar d'elle era como a +fascinao do reptil. Por onde passava, as flores mais frescas, e mais puras +caiam desmaiadas.</p> + +<p>Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces realava +a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura contemplativa dos +olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava os mais suaves affectos. O +vivo carmim dos labios abotoando as rosas da bocca, redobrava os encantos ao +sorriso meigo, tornando irresistivel o requebro e a graa virginal da +phisionomia namorada. A voz, fresca e melodiosa, insinuando-se no corao, era +o seu maior attrativo. Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para +quem havia de levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia +palpitar de esperana, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubial-a +foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso +sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o no +fugindo<span class="pn">{129}</span> a suas caricias? Mas s primeiras palavras +o rubor do pejo incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de +esmeralda fuzilou a ira. Soltando as mos envergonhada e offendida, furtou-se +s garras do aor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento saltou-lhe da +bocca por entre sorrisos lividos.</p> + +<p>—No sers esposa sem primeiro seres amante! Pedirs de joelhos o que hoje +engeitas! Sei atalhar os rodeios corsa. Sei aonde o golpe fere seguro!</p> + +<p>Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e +soffocada no suspendeu a carreira seno porta da cabana aonde morava a velha +Aldona, conselho e consolao de toda a aldeia. As linguas maldizentes +affirmavam, que a velha no era decrepita, nem mendiga, mas fada, e que sabia +ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam prodigios do seu poder! Alguns +chegaram a asseverar at, que ella e a serpente encantada tinham nascido +irmans, e se juntavam em colloquio meia noute. Quando a donzella appareceu, +Aldona, sentada em um penedo diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a +e sorriu-se. Enrolou depois a estriga, puxou o fio, e medida que o fuso +girava, e que a linha se enrolava, meneava a cabea, como se estivesse vendo, +ou ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto.</p> + +<p>—Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim +assustada. O aor cubiou a rolinha?<span class="pn">{130}</span> Havia de ser! +Estava escripto l em cima, e o que ha de acontecer muita fora tem. Conta-me +tudo. O que te disse? O que lhe respondeste?</p> + +<p>Quando Silvana terminou, redarguiu a velha:</p> + +<p>—Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o homem. A +aguia real j a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes novidades, +filha! Apesar de agudas, as garras do aor no ho de ferir-te. Vai d'aqui +fonte da moura e dize que sim a quem l encontrres. No te demores. D'onde se +no espera vem o remedio. Has de ser feliz!</p> + +<p>Ditas estas palavras, abysmou-se em to profundo scismar, que parecia morta. +No quiz saber mais a donzella. Voou fonte com a f viva dos quinze annos e +da esperana. Ao p do primeiro lamo parou e tremeu. No vira a serpente, nem +a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e gentil, filho do mais abastado +cavalleiro villo das cercanias. Porque lhe esmorece a ella de subito a +vermelhido das faces affrontadas da corrida? porque lhe bateu o corao no +peito to atropellado? Tello Vasques, o melhor besteiro depois da morte de +Garcia do Marnel, era o noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas +disputavam com mais inveja. Debalde! A vista d'elle no se baixra para +nenhuma, nem a sua bocca se abrira para dizer uma palavra terna mais galante. +Silvaninha fra a sua<span class="pn">{131}</span> primeira e unica paixo. +Combateu-a e calou-a por muito tempo, com receio dos pais, mas por fim, no se +podendo conter, decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mo. Ninguem sabia o +segredo do mancebo seno Aldona, porque d'essa nada se escondia. E a +donzella?... Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio +corao, que, alvoroado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor. Quando +parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli. Sem foras +para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe s faces o rubor em ondas, e a +vista no ousou despregar-se do cho. O tremor convulso que a agitava fazia-lhe +arfar o seio.<span class="pn">{132}</span></p> + +<p><span class="pn">{133}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00450000000000000000">V</a></h2> + +<p>Tello Vasques no estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural dos +olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas. Encobrindo que +a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe, e uma especie de +deslumbramento turvou-lhe a vista. A mo suspensa, a cabea inclinada, o gesto +cheio de timidez retratavam a vontade presa do enlevo sem fora para +dissimular, e ainda menos para combater. Assim ficaram por minutos. Immoveis, +calados, contemplando-se, e fallando s com o corao. A felicidade era to +grande, que no achavam termos que a pintassem. Quem encostasse<span +class="pn">{134}</span> a mo ao peito do robusto besteiro, sentindo-o pulsar +agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem escutasse o palpitar +ancioso do seio de Silvaninha no precisava perguntar-lhe se tambem amava!</p> + +<p>Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro +recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua, +sussurrando preguiosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas relvas que +aveludavam o cho. Mais longe, a pequena levada afundava-se com estrepito pelas +fendas musgosas dos penhascos debruados sobre o valle. Em baixo, no fim da +encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos, de pomares, e de campos viosos, +contrastando com o arvoredo sombrio, que entristecia ao largo a paisagem. +Depois, a perder de vista, a cr arida e melancolica das charnecas desatando-se +at aos cabeos da serra, cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens. +Uma brisa louca, mas amena, doudejva na campina, ramalhando as folhas, +brincando com os arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os +rouxines nas moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra +casava a voz estridula com o coaxar das rs. As sombras, delgadas ainda, +comeavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam a +pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino<span +class="pn">{135}</span> azul do firmamento e o verde fresco das arvores e +plantas.</p> + +<p>Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si +primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de travessa +ameaa e disse:</p> + +<p>—Vs aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que quereis +que digam da pobre Silvana, que no tem seno o seu nome?...</p> + +<p>A voz era queixosa, e no irada. O timbre harmonioso avivou no peito do +mancebo o ardor da paixo. Depois os olhos sorriam animados de malicia to +innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperana, leu amor. De repente +ficou outro. Pegando-lhe na mo, e beijando-a, a voz soltou-se-lhe, e a vista, +cobrando valor na vista d'ella, tornou-se to eloquente, to avida de ternura, +que ella baixou outra vez as palpebras.</p> + +<p>—Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um no +podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Ds-me o sim?</p> + +<p>O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das faces +sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se de lagrimas, +lanaram sobre o rosto as sombras da mais resignada tristesa. Sem retirar, ou +entregar a mo, que o mancebo prendia nas suas, a neta de Garcia<span +class="pn">{136}</span> do Marnel, esquecido o conselho de Aldona, respondeu +singelamente:</p> + +<p>—Tello, no vos darei j o sim; no quero arrepender-me. O filho de Ayres +Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, no deve escolher a sua +noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de Algoo. Amo! Porque hei de +negal-o? Mas pelo muito amor que receio acceitar. O que ha de trazer em dote +a orph sustentada pela caridade dos visinhos seno lagrimas e saudades +d'aquelle cho, aonde dorme sem vingana, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar, +o velho que duas vezes foi seu pai, e que por ella morreu de dr? No, Tello! +No pode ser!</p> + +<p>Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo +admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dr fazia +irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa a magoa +intima, por tal modo lhe realavam a formosura, que o besteiro no sabia se era +anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil attractivos. +Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle, o homem forte, o +filho de uma raa leal e rude, como o seculo em que vivia, sentiu rebentar o +pranto, e no se envergonhou de o deixar correr.</p> + +<p>—A tua vontade, Silvana, ser a minha! disse por fim. Mas por amor te +quero, e no justo que<span class="pn">{137}</span> por amor te perca. O que +vale dizer a bocca no, se os olhos, mau pesar teu, esto dizendo sim? Dizes +que o dote que me trazes de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas +lagrimas piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse +corao o teu maior thesouro. Hontem no podia viver sem ti, hoje morria se +te perdesse. Silvana!... No n'o escondas! O senhor tentou-te de amores, e +jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus ser comnosco. O meu arco no erra. +A seta vae sempre aonde a mando!</p> + +<p>No cedeu ainda a donzella, mas Tello no se enganra: o corao desmentia a +bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accsa em pejo desappareceu como se +toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado, que no seguinte dia iria Tello +ao solar pedir licena a Sueiro Lopes. Os noivos sem ella no podiam receber-se +na igreja de Algoo, e Silvana desejava tanto que seus amores fossem +abenoados, aonde o tinham sido os de seu pai e seu av, que o besteiro no +ousou contrarial-a. Altos juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente +dos senhores de Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria +todas as culpas da sua gerao, todos os crimes da sua vida.<span +class="pn">{138}</span></p> + +<p><span class="pn">{139}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00460000000000000000">VI</a></h2> + +<p>Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro, correndo +a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos que findava +porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha de monteiros, de +guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e folgando, em quanto os moos +de monte sustinham das trllas as matilhas impacientes, cujos saltos e latidos +formavam condigno acompanhamento aos alaridos dos caadores. No meio do +prestito jovial uma azemola conduzia atravessado em duas varas o corpo de um +javardo, victima enorme e cerdosa sacrificada depois de aturada<span +class="pn">{140}</span> fadiga e renhido combate, segundo attestavam os golpes, +com que suas navalhadas presas tinham descosido os mais valentes e fugosos +ces.</p> + +<p>Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso, +trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava, entre +chufas e galhofas, a orao funebre do pingue eremita, que todos haviam corrido +sem parar desde a madrugada at ao pr do sol.</p> + +<p>D. Sueiro, que se apartra d'elles ao p da fonte da moura, era o unico +serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda, e nem +o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu venabulo, lhe +arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a levantar. Que magoa, +ou que remorso entristecia o senhor de Algoo? Nas trevas, nas horas +atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a viso terrivel, com que na +raa de Biscaia a sombra de Diogo Lopes avisava a cabea da familia de estar +proximo o dia dos ultimos e tardios arrependimentos? Ao p da fonte apeiou-se, +e, com a cabea entre as mos, alongou a vista at aos montes fronteiros. O +olhar vago e perdido dizia que o espirito no se achava ali. De repente +rangeram e estalaram os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma +figura. Ao ruido o rico-homem levou a mo ao punho da espada, inculcando +sobresalto sem receio. O mdo<span class="pn">{141}</span> nunca entrra +n'aquelle peito inaccessivel piedade.</p> + +<p>—Quem s? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o robusto +e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mo, e frechas passadas no cinto, se +lhe descobria subitamente.</p> + +<p>Este no se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas +accusavam, assomou-lhe s faces morenas um leve rubor e as pupillas negras +faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais fora os copos da espada. +</p> + +<p>—Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vs buscava!</p> + +<p>A firmesa do tom e a conciso da resposta desagradaram ao cavalleiro. +Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os beios.</p> + +<p>—O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoo, fra do seu +castello, n'este logar deserto?</p> + +<p>A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo.</p> + +<p>—Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em vossas +terras a donzella que ha de ser minha mulher.</p> + +<p>—Ah! S isso?! E bonita e moa a tua noiva? Por fora a conheo ento. +Como se chama?</p> + +<p>Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as +furias do ciume se levantaram<span class="pn">{142}</span> no peito do mancebo. +Conteve-se, porem, e retorquiu:</p> + +<p>—A mais formosa da aldeia. a Silvana do Marnel.</p> + +<p>—A Silvaninha? A perola de Algoo? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pes +alto o pensamento, villo. Muito alto! Manjares de senhor no se do a servos. +</p> + +<p>Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o brao a Tello. A mo procurou +a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram no peito do +rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas disfarou. Continuando a +pungir o mancebo com mofas, proseguiu:</p> + +<p>—Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor +cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o resgate de +um baro? Cuida o villo que eu havia de enterrar na sua posilga a roza dos +nossos sitios?</p> + +<p>—Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume.</p> + +<p>—Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o p no estribo e sacudindo o ltego +no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com mil ameaas nos +olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisav te juro, que tantas noutes dormirs +na cisterna do meu castello, que de l te arranquem cego e doudo!<span +class="pn">{143}</span></p> + +<p>—Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. S Deus sabe aonde vs +dormireis hoje!</p> + +<p>O cavalleiro ja tnha cravado esporas no corsel, e comera a levantar o +galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, parou o +cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a vista sobre elle, +disse-lhe rindo affrontosamente:</p> + +<p>—Villo! No has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer de +fios de ortigas, nascidas na sepultura do av, duas camisas para mim, dou +licena que se chame tua mulher. uma joia por um ceitil! uma das camisas ser +o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar com ella no dia +seguinte. At l que no vos torne a ver a ambos!</p> + +<p>A esperana acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco, fugiu-lhe +a luz da vista, e sentiu-se to prostrado, como se o sangue se lhe esvaisse +todo. Quiz fallar e correr, mas os ps arraigavam-se ao cho. A mo inerte no +se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi suspendido a vida. Quando volveu a si +para olhar em roda, avistou ao longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito, +e pareceu-lhe ouvir estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou +ento ao ceu a vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu +a noute sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas<span +class="pn">{144}</span> arvores sem elle o sentir; e as primeiras gotas da +chuva, nuncias da tempestade, orvalharam-lhe a cabea nua, sem o despertarem da +amargura. Ao rebombo dos troves que acordou, e que principiou a afastar-se +com passos vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illuses lhe sorrira +alegre, e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanas da +existencia.<span class="pn">{145}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00470000000000000000">VII</a></h2> + +<p>—O aor encontrar a aguia. Sinto-a j voar! No chores, Silvana, sers +feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar na +aljava. Esta noite, meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja. Ajoelhai e +rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e esto n'ella +viosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e duas, e traz-m'as no +regao fonte da Moura. Vespera de S. Joo ha de torcer-se o fio. As duas +camisas no ho de faltar. A semana que vem ser a do noivado e a do enterro. +Ouvis dobrar o sino? A aguia no tarda. Enxugai os olhos.<span +class="pn">{146}</span></p> + +<p>E a velha Aldona, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da +feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condio, que s +daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da sepultura do av +duas camisas.</p> + +<p>—Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando.</p> + +<p>—Por que no fugimos ns? acudiu elle a meia voz.</p> + +<p>—Por que ninguem foge sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a mo +alva e breve de Silvana entre as suas. No vos demoreis. meia noite, ao +romper da lua, todos tres na fonte da Moura!</p> + +<p>Era j escuro, e as estrellas comeavam a scintillar. Suspirava a virao +por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de sombra as +sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza silvestre +entrelaava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da egreja, entre +rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um arco no topo. Ali +repousava de setenta annos de edade e de fadigas o av da donzella. Segundo +afirmra Aldona, uma sera de ortigas vestia o cho. Como o pranto se corre +pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a orao sobe pura e fervorosa de seus +labios ao regao dos anjos, que vo depor aos ps do Senhor! Mais afastado, +Tello, tambem de joelhos, orava com ardor; mas aquelle peito, menos +brando,<span class="pn">{147}</span> mistura com as preces vozes de vingana. +Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o p dos que amra se +volvera ao p, principiou a cumprir as ordens de Aldona. A duas e duas foi +apanhando as ortigas. Quando acabava chispou no outeiro mais proximo a labareda +da primeira fogueira, e soou na voz de bronze do sino o primeiro repique. A lua +rompia de traz da serra, e o seu claro branco allumiava toda a campina. Era a +hora aprazada. O mancebo deu a mo a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro +d'alma, que nenhum fallou em todo o caminho.</p> + +<p>Quando chegaram no viram seno uma serpente, fugindo por cima dos +penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha Aldona +appareceu de repente ao p da fonte, e acenou-lhes. Recebendo das mos da +donzella as tres regaadas de ortigas, banhou-as outras tantas vezes na agua +encantada, pronunciando algumas palavras a meia voz. Passados minutos tirou-as +do tanque reduzidas a feveras finas, como o fio que tece a aranha. Tres dias +decorreram. Em todos elles no cessou de girar o fuso da velha.</p> + +<p>No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear.</p> + +<p>Quando a semana pendia s de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo +pela choupana, olhou, e viu Aldona porta, cozendo com Silvana<span +class="pn">{148}</span> uma tela to branca e transparente, que deslumbrava. +</p> + +<p>—Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta pressa? +</p> + +<p>E o cavalleiro no tirava a vista dos dedos afilados da donzella que voavam +sobre a costura.</p> + +<p>—Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabea. +Aquella a camisa do noivado, esta a camisa do enterro. Ortigas do cemiterio +nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres dias estaro +acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o morto no caixo. +</p> + +<p>Ouvindo-a, o rico-homem mudou de cr e largou as redeas ao cavallo. A velha, +vendo-o correr, exclamou, meneando a cabea:</p> + +<p>—Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa!<span +class="pn">{149}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00480000000000000000">VIII</a></h2> + +<p>Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se saida +do estreito portal, e mais de um moo airoso, de rosto bronzeado, distrahe a +vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos cheios de +reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos ps, o borburinho e +os alaridos das creanas, saltando pelo adro, animam de ar festivo a scena +popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se encaminha de vagar para a sua +morada, estendendo a beno pelos aldeos,<span class="pn">{150}</span> +Silvana, sempre pallida, ampara no brao delicado o corpo de Aldona. Os +villos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as mulheres +acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras, tomam-as por +intercessoras de suas peties. Encostado a uma oliveira antiga, Tello, de +braos crusados, e com o arco a tiracollo, no desprega a vista namorada da +neta de Garcia.</p> + +<p>Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as est esperando, um homem +de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos, apressando o passo, +adianta-se, e chega primeiro. simples o seu trajo. Guarda-coz de ipre verde +desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo estofo, sem plumas, assenta com +desgarre fragueiro sobre os cabellos pretos, cujos anneis se debruam sobre o +cabeo da golla. Era de villo o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam +condio mais nobre. Nas pupillas inquietas, e por vezes desvairadas, +retrata-se a indole ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos.</p> + +<p>As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaos a +serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas rapidas ao +semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam as feies de um +caracter afeito a dominar, de um corao ferido de golpe irreparavel, de uma +mo que no combate das paixes<span class="pn">{151}</span> nem sempre ha de +conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos.</p> + +<p>Afagando com a mo direita as compridas barbas, e concertando com a esquerda +o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que no pde contar +ainda quarenta annos, e que entrra na egreja sem nenhum dos fieis se lembrar +de o ter visto nunca, comeou saida a fallar com uns e com outros, fazendo +perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por entre o povo veiu collocar-se no +sitio, aonde o descobrimos diante de Aldona e Silvana, to proximo de Tello +que este no perdeu palavra do que disse. Sem saber porque, o besteiro, de +ordinario cioso e assomado, em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia +do monteiro. Parecia que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia +n'este momento a sua sorte. Era to grande n'elle a tranquillidade de animo, +como se a noiva adorada estivesse debaixo da proteco d'aquelle que duas vezes +chamra pae. A velha Aldona, apenas divisara o hospede, exclamou como +rejuvenescida de repente:</p> + +<p>—Filha! No t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto. +Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder. Muita +f em Deus e na justia de Elrei D. Pedro.</p> + +<p>—No a f que me falta, redarguiu melancholica<span +class="pn">{152}</span> a donzella, a esperana, me!... Elrei est longe e +to alto, que no podem vencer de certo metade do caminho as queixas da orph. +</p> + +<p>—Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a +formosura de Silvana. Pegando-lhe na mo, ajuntou:</p> + +<p>—El-rei D. Pedro, filha, v e ouve de longe. Conta-me tuas magoas.</p> + +<p>Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava, sentiu +renascer a esperana, e insensivelmente socegou do maior cuidado. Ora pallida, +ora crada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte dolorosa do av, as +lastimas da sua infancia, e os amores infames que a perseguiam. As palavras +pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que vingativa, procurava atenuar as +crueldades do senhor. Quando terminou, o desconhecido, sorrindo-se, e +soltando-lhe a mo, disse:</p> + +<p>—Descansai! Est perto El-rei D. Pedro. como se vos ouvisse. Mandai a +Sueiro Lopes a camisa da mortalha, no a pediu de balde! Se o cavalleiro fr +desleal, ou se vos quizer tirar por fora, enviai-me este signal. Deus e El-rei +sero comvosco!</p> + +<p>Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello, +accrescentava:</p> + +<p>— o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... No creis, Silvana! +Se o besteiro fr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle em Miranda.<span +class="pn">{153}</span> Adeus! No vos esquea!... Ao primeiro perigo, um +recado e o signal. O mais fica para mim.</p> + +<p>Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos ps +da noiva, que Aldona animava, annunciando-lhe proximo o termo de seus +pezares.<span class="pn">{154}</span></p> + +<p><span class="pn">{155}</span></p> + +<h2><a name="SECTION00490000000000000000">IX</a></h2> + +<p>Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a p a ladeira do +castello de Algoo, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas +escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes; alma +negra do senhor, aonde alcanra com o brao deixra sempre vestigios +dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o villico (era o +seu titulo n'aquelle tempo) no pde conter o sorriso, rosnando por entre +dentes: quantos vo que no voltaro! O noivo de Silvana desprezou o riso, e +continuou o caminho; mas porta despediram-o asperamente, respondendo<span +class="pn">{156}</span> que Sua Merc repousava, e que ninguem o despertaria +para dar audiencia a um villo. A principio Tello pde sopear a ira, mas a +pouco e pouco a altercao irritou-o, e levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de +repente porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e +perguntou:</p> + +<p>—A que vens aqui?</p> + +<p>—Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu elle +friamente.</p> + +<p>O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que no soube vencer, sacudiu-lhe +os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que vira na choupana +de Aldona, e tremeu pela primeira vez da sua vida. Depressa se recobrou e +medindo o mancebo com indizivel escarneo, replicou:</p> + +<p>—Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da sepultura +de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de +cavalleiro no quebra! Se cumpriste, no hei de faltar. As camisas?...</p> + +<p>—Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o panno. +</p> + +<p>Era o mesmo que j lhe respondera Aldona. A maravilhosa tela, que o noivo +de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem mostrava no +ser obra de mos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro tremia. Sobre o peito, +em lettras cr de sangue, viu as iniciaes de seu nome e pondo<span +class="pn">{157}</span> o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feies das +tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito.</p> + +<p>—Bem! exclamou. Silvana tua se a achares. Quanto mortalha.... Veremos +esta noite quem a veste!</p> + +<p>No esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho da +choupana de Aldona. Um presentimento vago advertia-o de perigo incerto. A +tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a ba nova, que levava, devia +alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado. Rugindo no pinhal o +vento arrancava por entre as ramas das arvores gemidos lugubres. No cu +apagavam-se as estrellas umas apz outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e +a lua encobria-se de todo por cima do ultimo outeiro. Sem saber porque, +sentiu-se Tello desalentado. Elle, o melhor caminheiro dos arredores, o +besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os +passos e tremendo. Quando chegou choupana, achou a casa rma e a porta +arrombada, e acabou de crer que os pressagios no mentem. Bastava olhar para +dentro para adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e +luz mortia deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as +arcas espedaadas. O pobre catre de Aldona, despido de roupas, jazia em um +feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar<span class="pn">{158}</span> as +ideias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrdo as foras. Nem o animo, nem a +razo se prestavam a ajudal-o.</p> + +<p>Fra rapto? Fra vingana mais atroz? A mudez da cabana no respondia! +Saltaram-lhe ento as lagrimas, e a dr foi to penetrante, que a no se +encostar cara desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes, e +percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do Castello, e +quella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para ella eram as portas +do sepulchro. <em> tua se a achares!</em> dissera o roubador. A quem iria +Tello pedir justia? Luctando com a agonia sentiu que ia enlouquecer. Mas, +louco, o que restava donzella seno a morte depois da infamia? No auge da +desesperao, erguendo as mos, bradou atribulado: Senhor! A vingana mais +vossa, do que minha! No embainheis a espada da justia!</p> + +<p>No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mo de uma mulher no hombro. +Olhou. Viu Aldona. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito que iam +soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a um logar +deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco de uma arvore, +disse-lhe rapidamente:</p> + +<p>—Monta!</p> + +<p>O besteiro obedeceu. Entregando-lhe ento a trompa de prata, a velha +ajuntou:<span class="pn">{159}</span></p> + +<p>—O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva. Corre, +que por tua felicidade corres, e no pares seno na villa de Miranda. Busca os +Paos do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem s, dize que procuras o +senhor. J o viste. o monteiro d'esta manh. D-lhe a trompa, conta-lhe o +succedido, e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos +outra vez. As duas camisas tero cumprido o seu fado.</p> + +<p>O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu direito + villa.<span class="pn">{160}</span></p> + +<p><span class="pn">{161}</span></p> + +<h2><a name="SECTION004100000000000000000">X</a></h2> + +<p>Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os +penedos do seu leito! Que troves rebramam as aguas despenhadas em cascatas +contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a noute se cobre +de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde +o estampido longinquo da tempestade. Os relampagos fuzilam sobre as eminencias. +</p> + +<p>L em cima, nos penhascos fragosos, que villa aquella, cujas torres negras +estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a margem do<span +class="pn">{162}</span> rio, Tello Vasques no sente fadiga; o brioso corsel +devora a distancia. Batia a hora de se alarem as levadias, quando o mancebo +atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pra no terreiro, defronte +dos Paos do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e +dois at ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detel-o; mas sem +voltar a cabea, e continuando, responde: busco o senhor! Ninguem o suspende. +De corredor em corredor, de aposento em aposento chega sala de armas. Entre +os cavalleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo +guarda-coz ainda.</p> + +<p>Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de armas +brunidas, achas, montantes, lanas e adagas entrelaadas em caprichosos ornatos +enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados sustentam os fechos da abobada. O +monteiro, apercebendo Tello, encaminhou-se para elle. O mancebo vinha to +soffocado, que pde dobrar apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi +preciso que elle sorrisse para o besteiro narrar o successo, que o trazia +quella hora. Concluindo, o moo ergueu as mos, e com a vista inflammada +bradou:</p> + +<p>—Levai-me aos ps de El-rei D. Pedro. Dizem que no conhece grandes, nem +pequenos. A donzella, que roubaram, pura e santa como a mais pura e nobre de +vossas filhas. No deixeis sem castigo<span class="pn">{163}</span> o +rico-homem por ella ter nascido no bero de um villo!</p> + +<p> medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de +aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e jovial, +empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo +at nos que se achavam distantes. Quando Tello poz termo a suas queixas, e +levantou a vista, recuou assustado. A expresso dos olhos do seu protector era +terrivel. Ensanguentados e delirantes mais se assimilhavam s pupillas +encandeadas do tigre, do que a olhar humano. A voz cheia, mas presa, +gaguejando, fallava to convulsa, que pouco se entendia. Adiantando-se, o +desconhecido clamou em grandes brados:</p> + +<p>—Loureno Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas +filhas!</p> + +<p>O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Loureno Gonsalves +era o corregedor da crte. Ninguem ousaria chamal-o assim seno el-rei. Tello +prostrou-se cheio de esperana.</p> + +<p>—Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado porta! A minha +capellina de ao! Gonsalo Vasques de Goes, escrivo da Puridade! Chamae os +desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentena. Por alma de Ignez +de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de<span +class="pn">{164}</span> nascer o sol haver um criminoso de menos no meu reino, +e mais uma justia de minhas mos no livro de suas chronicas!</p> + +<p>Fallando assim enlaava a capellina, calava as luvas de gamo, e com o +aoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.</p> + +<p>O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns +apoz outros galoparam para o alcanar. El-rei ia deixando atraz do cavallo o +proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de Algoo. Por cima +d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes. A procella abria os +ceus em clares lividos, desarraigando as arvores annosas. Quando D. Pedro +assomava diante da porta do castello, um vulto surgiu, que tomou-lhe as redeas, +convidando-o a apeiar-se. De um salto estava em terra e levantando a cabea via +as frestas da torre illuminadas. O vulto travou-lhe do brao, e disse:</p> + +<p>— ali!</p> + +<p>—Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiana.</p> + +<p>Uma entrada falsa, alm do fosso, cedeu chave e ao impulso.</p> + +<p>—Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz.</p> + +<p>Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro +subiu. No topo da escada<span class="pn">{165}</span> de caracol, a scena que +se lhe representou excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar +do nome Justiceiro se perdoasse aquelle crime.</p> + +<p>Era espaoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto +mergulhava-se em meia escurido. No centro da sala, em um leito, com as mos +ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de leno sobre a bocca at os ais lhe +suffocavam! S os olhos, os lindos olhos, banhados de lagrimas pediam a Deus a +morte, remedio extremo da infamia. Sueiro Lopes, defronte, sorria-se medindo +com a vista a queda lenta da areia d'uma ampulheta. A seu lado o villico +silencioso corria os dados sobre a mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com +as ortigas do tumulo, estava nas mos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas +como punhaes, atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos +senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos.</p> + +<p>—Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo por +um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste no. A tua prenda foi esta +mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos porque +chamavas! Brada pelo besteiro villo, que preferiste ao rico-homem! Grita por +el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu brao as portas chapeadas d'este +castello ainda so<span class="pn">{166}</span> mais fortes. Em esta areia, que +est por instantes, cahindo toda...</p> + +<p>Faltou-lhe a voz. A mo erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo +dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um claro +terrivel. A pesada acha reluzia em suas mos.</p> + +<p>—Traidor! bradou o principe. Mentes! O brao de D. Pedro quebra e rompe +todas as portas. Vais ver!... Villo! ajuntou fallando ao villico. Solta as +mos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta bem os +gros de areia da tua ampulheta. o tempo que te dou. Vais comparecer na +presena de Deus!</p> + +<p>O orgulho indomito do cavalleiro no cedeu. Empunhando a adaga, e posto que +pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu:</p> + +<p>—Quem d aqui ordens e ameaa? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro +Gonsalves? O rei carrasco, falso sua alma e alma de seu pae? Imaginas que +farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e + m f chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os laos da captiva. No alto e no +baixo, irado e pagado, no entrego o castello seno a Deus. A mim, homens +d'armas!</p> + +<p>—Deus justo! clamou el-rei, cuja furia no conhecia limites. O matador de +tres mulheres levanta-se<span class="pn">{167}</span> contra o seu rei. O +perseguidor cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrers como +villo s mos dos teus villos. No mancho em tal sangue o ferro da minha +acha. Villos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. Sou D. +Pedro! Sou o rei! Esse que ahi est, rebelde e traidor, prendei-m'o em quanto +os meus no chegam!</p> + +<p>A presena e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens +d'armas temiam, mas no amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de +curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou merc de el-rei.</p> + +<p>—Passae um lao na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle subir, +e cingi-lhe o n na garganta! proseguiu o soberano indignado.</p> + +<p>—Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, car sobre +vs e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-ho contas d'ella, verdugo! gritou +o cavalleiro estorcendo-se.</p> + +<p>—A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas no +cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro.</p> + +<p>Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico +enrolava-lhe o lao. Commovida e tremula, Silvana lanou-se supplicante aos ps +do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:<span +class="pn">{168}</span></p> + +<p>—Pedes perdo a Deus e ao teu rei?</p> + +<p>—No!</p> + +<p>O p do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras do +cavalleiro.<span class="pn">{169}</span></p> + +<h2><a name="SECTION004110000000000000000">XI</a></h2> + +<p>A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do castello, +annunciou aldeia alvoroada a vinda do monarcha. Tello Vasques apparecia +porta quando Sueiro Lopes expirava.</p> + +<p>—Besteiro! Por teus olhos vs que me no chamam em vo o Justiceiro. +Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A justia +do rei ainda andou mais veloz do que o amor!</p> + +<p>Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na capella, e +os noivos recebiam a beno nupcial, tendo el-rei D. Pedro por seu +padrinho.<span class="pn">{170}</span></p> + +<p>Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que no esqueceu nunca foi a +justia que fizera em Algoo a severidade do monarcha.</p> + +<p>O castello devolveu-se cora, e parece que fra doado depois ao +primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade +ou fabula, no sei. El-rei D. Pedro era to capaz de fazer cavalleiro um +villo, como de justiar como villo um cavalleiro.<span +class="pn">{171}</span></p> + +<h1><a name="SECTION00500000000000000000">ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM +SALVATERRA</a></h1> + +<h2><a name="SECTION00510000000000000000">I</a></h2> + +<p>O Senhor D. Jos, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em frias. A +verdade que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em Lisboa +estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O proloquio fundava-se +na habilidade mechanica do monarcha como torneiro, e no caracter dominador do +marquez como ministro.</p> + +<p>Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de flres, os +bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e a brisa doudejava +indiscreta arregaando o leno donzella que passava, ou roubando um beijo +rosa<span class="pn">{172}</span> perfumada. Tudo eram alegrias e canticos... +os rouxinoes nas moutas, o corao nos amores, e a naturesa nos sorrisos ao sol +esplendido que a dourava.</p> + +<p>Uma tourada real chamra a crte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam +n'estas occasies menos opprimidos. No os assombrava to de perto a privana +do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o amphiteatro +pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na bocca de todos. Por +cumulo de venturas o marquez de Pombal ficra em Lisboa, retido pelo conflicto +com o embaixador de Hespanha.</p> + +<p>Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o +enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em alta +voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio, crucificando-o outros +sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e os fidalgos puritanos eram +pelo hespanhol, e pediam a Deus que os rebates da guerra proxima despenhassem o +plebeu nobilitado. Os magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o +marquez e respondiam com meios sorrisos s fogosas jaculatorias dos zelosos do +throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa s +concesses exigidas imperiosamente pelo governo castelhano.</p> + +<p>—Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito<span class="pn">{173}</span> +de sessenta mil homens entrar em Portugal e far...</p> + +<p>—O qu? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta assestada e +no tom mais indifferente.</p> + +<p>—Far entender a raso e a justia de el-rei, meu amo, a Sua Magestade e a +vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo o ministro +fulminado.</p> + +<p>Sebastio Jos de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira, e +cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente:</p> + +<p>—Sessenta mil homens muita gente para casa to pequena, mas, querendo +Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa hospedal-a. +Mais pequena era Aljubarrota e l couberam os que D. Joo de Castella trouxe. +Vossa excellencia pde responder isto ao seu governo.</p> + +<p>E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou:</p> + +<p>—Bem sabe vossa excellencia que pde tanto cada um em sua casa, que mesmo +depois de morto so precisos quatro homens para o tirarem!</p> + +<p>O embaixador sau jurando por <em>Dios y la Virgen Santisima</em> e o +marquez preparou-se para a guerra. O caso como dizia o nosso Zeferino na +<em>Sobrinha do Marquez</em>, que Sebastio Jos de Carvalho foi um grande +ministro e que fez muito pela nao.<span class="pn">{174}</span> Hoje ha menos +quem responda assim lettra s ameaas dos estrangeiros. Berra-se muito, +dorme-se a somno solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello +de madrugada e est salva a patria!</p> + +<p>O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes medias. +Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a industria nunca acabou +de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos maus governos que succederam ao +seu, e tambem do povo que no quiz trabalhar deveras... Mas vamos aos touros +reaes. D'esses que o ministro no gostava nada. Queria-os ao arado e no +farpa, e parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o +Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem, +tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e nao.</p> + +<p>Mas el-rei D. Jos, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros no +admittia reflexes. N'isto era rei a valer e Bragana legitimo. Os fidalgos +sabiam-o e por isso disfructavam dces prazeres—a satisfao do gosto +nacional, e a contradico da vontade do ministro. Desatendel-a sem perigo e +pela mo do soberano era para elles um deleite e um triumpho.</p> + +<p>N'estas funces no vigorava a severidade das ultimas pragmaticas. Outro +motivo de jubilo. Quem<span class="pn">{175}</span> queria podia arruinar-se em +luxuosos vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os +veludos e sedas de fra, talhados franceza, resplandeciam constellados de +perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais vistosas cres +desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas cabelleiras. As damas +ostentavam as graas de seus donaires e tufados, e emoldurando o bello oval dos +rostos nos penteados caprichosos sorriam-se para os gentis campeadores, e seus +olhos cheios de luz e de promessas estimulavam at os timidos.</p> + +<p>Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou el-rei, e +logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e v-se ondear um oceano +de cabeas e de plumas. Na praa resoam brava alegria as trombetas, as +charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros, fidalgos distinctos todos, +com o conto das lanas nos estribos e os brazes bordados no veludo das +gualdrapas dos cavallos. As plumas dos chapeus debruam-se em matisados +cocares, e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os +capinhas e forcados vestem com garbo castelhana antiga. No semblante de todos +brilha o ardor e o enthusiasmo.</p> + +<p>O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O seu +trajo, cortado moda da<span class="pn">{176}</span> crte de Luiz XV, de +veludo preto, fazia realar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete +sobresaiam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas +bordadas deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O +conde no excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os +seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais, porm +animadas de grande expresso, e o fulgor das pupillas negras fuzilava to vivo +e por vezes to recobrado, que se tornava irresistivel. Filho do marquez de +Marialva, e discipulo querido de seu pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e +talvez da Europa, a cavallo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam +os olhos. Elle e o corsel, como que ajustados em uma s pea, realisavam a +imagem do centauro antigo.</p> + +<p>A bizarria com que percorreu a praa, domando sem esforo o fogoso corsel, +arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta, obrigando o +cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse +torvada no leno as rosas vivissimas do rosto, que de certo descobririam o +melindroso segredo da sua alma, se em momentos rapidos como o faiscar do +relampago podesse alguem adivinhar o que s dois sabiam.</p> + +<p>El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e disse +voltando-se:<span class="pn">{177}</span></p> + +<p>—Por que vir o conde quasi de luto festa?</p> + +<p>Principiou o combate.</p> + +<p>No proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem +assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de notavel. +Diremos s que a raa dos bois era apurada, e que os touros se corriam +desembolados, hespanhola. Nada diminuia, portanto, as probabilidades do +perigo e a poesia da lucta.</p> + +<p>Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro +preto investiu com a praa. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e +reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de grande ligeireza, +e movimentos rapidos e bruscos, signal de fora prodigiosa. Apenas tocra o +centro da praa, estacou como deslumbrado, sacudiu a fronte e escarvando a +terra impaciente, soltou um mugido feroz no meio do silencio, que succedera s +palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos +as trincheiras, fugiam velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres +cavallos expirantes denunciavam a sua furia.</p> + +<p>Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa. O +touro pisava a arena ameaador e parecia desafiar em vo um contendor. De +repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da fra e a +hastea flexivel do rojo<span class="pn">{178}</span> ranger e estalar, +embebendo o ferro no pescoo musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma +acclamao immensa do amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas +e charamellas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a +galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o +cavallo, a mo alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde, +curvando-se com donaire sobre os ares, apanhou a flor do cho sem afrouxar a +carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo depois com o +touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o estreitando em volta +d'elle os circulos at chegar quasi a pr-lhe a mo na anca.</p> + +<p>O mancebo despresava o perigo e pago at da morte pelos sorrisos, que seus +olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com a ponta +da lana. Precipitou-se ento o animal com furia cega e irresistivel. O cavallo +baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na perna, no pde levantar-se. +Voltando sobre elle o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a +quda nas armas, e no se arredou seno quando, assentando-lhe as patas sobre o +peito, conheceu que o seu inimigo era um cadaver.</p> + +<p>Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja consummada +a tragedia e no havia expirado ainda o echo dos ultimos aplausos.<span +class="pn">{179}</span></p> + +<p>De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias, emudeceu o +circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fra dos camarotes, fitavam a praa +sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como para seguir a alma, que +para l voava envolta em sangue.</p> + +<p>Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o cho, um +gemido agudo, composto de soluos e choro, caiu sobre o cadaver com uma lagrima +de fogo. Uma dama desmaiada nos braos de outras senhoras soltra aquelle grito +estridente, derradeiro ai do corao ao rebentar no peito.</p> + +<p>El-rei D. Jos, com as mos no rosto, parecia petrificado.</p> + +<p>A crte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dr.</p> + +<p>Mas o drama ainda no tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade iam +cortar de novas magoas o peito a todos.</p> + +<p>O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na gentileza +do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando radiosos a cada sorte +feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se de uma nuvem o semblante do +ancio. Quando o conde dos Arcos sahiu a farpeal-o, as feies do pae +contrairam-se e a sua vista no se despregou mais da arriscada lucta.<span +class="pn">{180}</span></p> + +<p>De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos, apertando +depois as mos na cabea. Os seus receios haviam-se realisado. Cavallo e +cavalleiro rolavam na arena, e a esperana pendia de um fio tenue! Cortou-lh'o +rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho, luz da sua alma e ufania de +suas cs, no proferiu uma palavra, no derramou uma lagrima; mas os joelhos +fugiam-lhe tremulos, e a elevada estatura inclinou-se vergando ao peso da magua +excruciante.</p> + +<p>Volveu, porm, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto +tingiu-se de vermelhido febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e hirtos +revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas da juba de um +leo irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo, mas terrivel, o +sombrio claro de uma colera, em que todas as ancias insofridas da vingana se +accumulavam.</p> + +<p>Em um impeto a presena reassumiu as propores magestosas e erectas como se +lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando por acto +instinctivo a mo ao lado, para arrancar da espada, meneou tristemente a +cabea. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho n'este dia que se +convertera para a sua casa em dia de eterno luto!</p> + +<p>Sem querer ouvir nada, desceu os degraus<span class="pn">{181}</span> +amphiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta annos lhe no +branqueassem a cabea.</p> + +<p>—Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas ordens! +disse um camarista detendo-o pelo brao.</p> + +<p>O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no +interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado d'um +pensamento immutavel. Desviando depois a mo, que o suspendia, baixou mais dois +degraus.</p> + +<p>—Sua magestade entende que este dia foi j bastante desgraado e no quer +perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece s ordens de el-rei?!... +</p> + +<p>—El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancio em voz aspera, +mas sumida. Aquelle o corpo de meu filho! e apontava para o cadaver. Est +ali! Sua magestade pde tudo menos desarmar o brao do pae, menos deshonrar os +cabellos brancos do criado que o serve ha tantos annos. Deixe-me passar, e diga +isto.</p> + +<p>D. Jos vira o marquez levantar-se e percebera a sua resoluo. Amava no +estribeiro-mr as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da sua +bocca no ouvira seno a verdade, e a ida de o perder assim era-lhe +insupportavel. Apenas lhe constou que elle no accedia sua vontade, fez-se +branco, cerrou os dentes convulso, e, debruado<span class="pn">{182}</span> +para fra da tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe. +</p> + +<p>A esse tempo j o marquez pisava a praa, firme e intrepido como os antigos +romanos diante da morte. Dentro do peito o seu corao chorava, mas os olhos +aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por elles. Primeiro do +que tudo queria a vingana.</p> + +<p>Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de p. Os semblantes +consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa contenso +do espirito, em que um sentido parece concentrar todos.</p> + +<p>Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, no tem egual. O +fogo, que lhe presta vida e foras, a desesperao. Deixae-o ir, e de +joelhos! Saudae a magestade do infortunio!</p> + +<p>O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo na +fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do cho a +espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois +a capa no brao e cobriu-se. Decorridos instantes estava no meio da praa e +devorava o touro com a vista chammejante, provocando-o para o combate.</p> + +<p>Cortado de commoes to crueis, no lhe tremia o brao, e os ps +arraigavam-se na arena como se um<span class="pn">{183}</span> poder occulto e +superior lh'os tivesse ligado repentinamente terra.</p> + +<p>Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e to profundo, que poderiam +ouvir-se at as pulsaes do corao do marquez se n'aquella alma de bronze o +corao valesse mais do que a vontade.</p> + +<p>O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e irado, +mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada.</p> + +<p>Os ilhaes da fra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as pernas +vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansao. O ancio zomba da sua +furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os golpes sem recuar um +passo.</p> + +<p>O combate demora-se.</p> + +<p>A vida dos espectadores resume-se nos olhos.</p> + +<p>Nenhum ousa desviar a vista de cima da praa.</p> + +<p>A immensidade da catastrophe immobilisa todos.</p> + +<p>De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho +aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos ajoelharam para +resarem por alma do ultimo marquez de Marialva.</p> + +<p>A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a +pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada +fuzilar nos ares e logo apz sumir-se at aos copos entre a nuca do animal. Um +bramido, que atroou<span class="pn">{184}</span> o circo, e o baque do corpo +agigantado na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama.</p> + +<p>Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o +joelho, com a fora do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver. Sem +fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraar-se com o corpo do filho, +banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos.</p> + +<p>O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezo da morte, veiu apalpar o sitio +aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem vida ao lado +do cavallo do conde dos Arcos.</p> + +<p>N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram. +El-rei, de p e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal, coberto +de p e com signaes de ter viajado depressa.</p> + +<p>Sebastio Jos de Carvalho voltava de proposito as costas praa fallando +com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo.</p> + +<p>—Temos guerra com a Hespanha, senhor. inevitavel. Vossa magestade no +pde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se +continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal vela.</p> + +<p>—Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os touros +reaes emquanto eu reinar.</p> + +<p>—Assim o espero da sabedoria de vossa magestade.<span +class="pn">{185}</span> No ha tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um +homem por um touro. El-rei consente que v em seu nome consolar o marquez de +Marialva?</p> + +<p>—V! pae. Sabe o que ha de dizer-lhe...</p> + +<p>—O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como est o conde. +</p> + +<p>El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praa em toda a +magestade de sua elevada estatura, levantou nos braos o velho fidalgo, +dizendo-lhe com voz meiga e triste:</p> + +<p>—Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia so para darem +exemplos de grandeza d'alma e no para os receberem. Tinha um filho e Deus +levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e el-rei, meu +amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa excellencia.</p> + +<p>E travando-lhe da mo, levou-o quasi nos braos at o metterem na carruagem. +</p> + +<p>D. Jos I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca mais +se picaram touros reaes em Salvaterra.<span class="pn">{186}</span></p> + + +<p> </p> + +<div class="rodape"> +<p><a name="foot326" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> A prematura morte do +illustre auctor d'este livro no lhe permittiu concluir este admiravel +romancinho. As paginas, porm, escriptas representam um tal primor de +litteratura, que fra falta imperdoavel condemnal-as obscuridade. Os amadores +de boas letras de certo nos agradecero a resoluo tomada de no os privarmos +de alguns momentos de no muito vulgar leitura.</p> + +<p style="text-align:right;">E<small>DITOR</small></p> + +<p><a name="foot327" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> O castello de +Almourol j figurava na epocha da dominao dos romanos. D. Gualdim restaurou-o +das ruinas e povoou a terra por carta de foral.</p> + +<p style="text-align:right;">E<small>LUCIDARIO.</small> Tom. II p. 346—374.</p> + +<p><a name="foot323" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> A bala ou bandeira +do Templo era bipartida de branco e preto com a cruz vermelha no centro e a +lenda: <em>non nobis, sed nomini tuo da gloriam</em>.</p> + +<p><a name="foot178" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> Concordo. Puzeste o +dedo na difficuldade, menino.</p> +</div> + +<p> </p> +<p><span class="pn">{187}<br>{188}</span></p> +</div> + +<p> </p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align: center;"> +<p>DE NOITE TODOS OS GATOS SO PARDOS</p> + +<p>Por L. A. REBELLO DA SILVA</p> + +<p>Remette-se <small>FRANCO DE PORTE</small> para a provincia.</p> + +<p>Correspondencia a Mattos Moreira & C.. LIVRARIA EDITORA. Praa de D. +Pedro, 68, Lisboa</p> + +<p>PREO 600 RIS</p> + +<p>LISBOA</p> + +<p>TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C.</p> + +<p>67, Praa de D. Pedro, 67</p> + +<p>1873</p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Lus Augusto Rebelo da Silva + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS *** + +***** This file should be named 30359-h.htm or 30359-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/0/3/5/30359/ + +Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was +produced from scanned images of public domain material +from the Google Print project.) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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