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+ <title>Contos e Lendas, por Rebello da Silva</title>
+ <meta name="Author" content="Rebello da Silva">
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+Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Luís Augusto Rebelo da Silva
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+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Contos e Lendas
+
+Author: Luís Augusto Rebelo da Silva
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+Release Date: October 29, 2009 [EBook #30359]
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+Language: Portuguese
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+Character set encoding: ISO-8859-15
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS ***
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+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
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+<p>&nbsp;</p>
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+<p>&nbsp;</p>
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+<p>&nbsp;</p>
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+<p style="text-align:center;font-size: 1.5em;">CONTOS E LENDAS</p>
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+<p>&nbsp;</p>
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+<p>&nbsp;</p>
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+<div style="text-align:center; border: solid 1px #000; padding: 1em;">
+<p style="font-size: 1.5em;">REBELLO DA SILVA</p>
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+<hr style="width: 80%; border-bottom: double 4px #000;">
+
+<p style="font-size: 1.8em;">CONTOS</p>
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+<p style="font-size: 0.8em;">E</p>
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+<p style="font-size: 2.5em;">LENDAS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<hr style="width: 30%;">
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Introducção&mdash;A torre de Cain&mdash;O castello de Almourol<br>
+A camisa do noivado<br>
+A ultima corrida de touros em Salvaterra</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<hr style="width: 30%;">
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>LISBOA<br>
+<small>LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª</small><br>
+67&mdash;Praça de D. Pedro&mdash;67<br>
+1873<span class="pn">{4}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h3>DECLARAÇÃO</h3>
+
+<p><em>A propriedade d'esta edição pertence a Henrique de Araujo Tavares,
+subdito brasileiro.</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">LISBOA<br>
+<small>LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª</small><br>
+67&mdash;Praça de D. Pedro&mdash;67<br>
+1873<span class="pn">{5}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<h1><a name="SECTION00100000000000000000">INTRODUCÇÃO</a></h1>
+
+<blockquote>
+ <p>Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies.</p>
+
+ <p style="text-align:right;">Job cap. XXIX v. 18</p>
+</blockquote>
+
+<p>As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um homem,
+que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que faz de
+ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um Deus de paz,
+assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da velhice, com a
+mesma serenidade com que tinha visto passar as illusões da juventude, e com que
+havia atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com a sua pobreza, não
+invejava (se é que invejou alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a
+eloquencia persuasiva dos primeiros confessores da fé<span
+class="pn">{6}</span> nas grandes epochas da regeneração moral do mundo.
+Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da liberdade estava a
+soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na manção do jubilo, patria
+suspirada de suas mais doces esperanças, unica impaciencia de uma alma, que
+longe da morada celeste se entristecia captiva.</p>
+
+<p>A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não aspirava
+a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se alguma
+vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu queixas que a sua bocca se
+não abrisse para as suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mão as não enxugasse
+logo. Por isso em muitas occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a
+simplicidade da pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o
+advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si, nunca
+faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a illusão,
+sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até me deu para
+esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia catar, ou
+alporcar os craveiros, até o relogio do estomago, unico relogio que havia em
+casa, o avisar de que eram horas da refeição. Vinha então recolhendo-se de
+vagar, alargava o passeio pela cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem
+se arriscar a alguma jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria,<span
+class="pn">{7}</span> que tinha a seu cargo a economia domestica e o baixo e
+mixto imperio da dispensa e da capoeira.</p>
+
+<p>A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço
+d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de immensa
+cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio e agudo,
+metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as consolações da Egreja
+a uma de suas ovelhas, que agonisava em desabrigada choupana. Á volta o corpo
+tremia sacudido por uma sesão de febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a
+face de um moribundo. Deitou-se para não se tornar a levantar.</p>
+
+<p>Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou a
+enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu para
+sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi preciso que
+os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca houve funeral tão
+rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares da freguezia e dos
+arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do presbyterio, o chôro de
+toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas. Com razão! Não era o velho
+parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? Em vida constituira os pobres
+seus herdeiros, por isso não deixava de seu mais do que a sobrepeliz e a batina
+remendada, em que o amortalharam, e o<span class="pn">{8}</span> crucifixo de
+marfim, que unira ao coração na derradeira despedida.</p>
+
+<p>O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou
+corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre
+se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos vicios
+esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á proveitosa lição
+das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A ama, á qual o Vigario
+legára sómente a memoria de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade,
+affectuosa, não de um, mas de muitos habitantes, que se lhe offereceram para
+acolherem sua velhice. O cão do Pastor, companheiro constante de tantos dias de
+fadiga, tambem achou quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre
+que gemia saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos
+livros da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como
+reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, depois de
+largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a recordação do
+sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos cyprestes plantados pelas
+suas mãos no cemiterio da aldeia.</p>
+
+<p>Este foi o homem e o ecclesiastico venerando.</p>
+
+<p>Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras,
+rarissimas pessoas dariam noticia.<span class="pn">{9}</span> Fugia da fama que
+dão as lettras, com um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava
+envergonhado ao pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal
+receava ser visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a
+penna não se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha
+pouco vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe
+concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações do
+passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em algumas scenas
+soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da mocidade. E em quanto o
+vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe
+fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas paginas á luz do ponderoso
+candieiro de latão amarello de tres bicos, talvez o traste mais luxuoso de toda
+a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto obscuro da aldeia estes <em>Contos
+e Lendas</em>, escriptos sem emendas e com admiravel rapidez, em lettra grada,
+direita, e garrafal, para regosijo dos compositores, que cegam a miudo os
+negalhos de missanga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes
+Deus não castigue em desaggravo de suas victimas.</p>
+
+<p>Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os
+papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas
+instancias<span class="pn">{10}</span> para m'os confiar. Poucos mezes antes da
+sua morte é que alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais
+opportuno, com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque
+dizia elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o
+tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou examinar a
+sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento diante da mesa e
+pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, entram
+commigo as malditas historias, e não ha resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava
+que me faziam bruxarias.»</p>
+
+<p>A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de vista
+as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar pelas visões
+do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam muitas outras que a
+admiração saúda como principes da intelligencia. Vingava-se porem d'este máu
+sestro (era a sua phrase) pondo de lado as escriptas frivolas apenas as acabava
+e nunca mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este
+desprezo tratava a inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno
+ao antigo maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois
+d'este e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias
+com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos<span class="pn">{11}</span>
+seus segredos, a qual representava nos serões litterarios do presbyterio o
+papel, que a tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella
+devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de esbofeteado, e de
+escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se desforrasse torcendo o
+pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o sangue aos coelhos, transformado
+em raposa ou em ginete. Nunca acordava, que não esperasse encontrar a capoeira
+vasia! Se é bom estar bem com Deus, dizia, não é máu estar em paz com o
+demonio. A casa do presbyterio não era grande, nem espaçosa, mas sorria de
+longe á vista caiada por fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um
+tal ar de festa, que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia
+a hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os braços
+abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um outeirinho,
+alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos troncos lisos e
+direitos o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, cercado de
+alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas enroscadas e collossaes,
+cobriam com a sombra de seus pampanos as parreiras, aonde amadureciam na
+estação os mais formosos cachos de moscatel e de ferral-tamara. Em volta da
+risonha morada, penduravam-se as vinhas pelas encostas das collinas até ás
+margens de um ribeiro, toldado<span class="pn">{12}</span> de salgueiros e
+chorões que se torciam para beijarem a agua. Por entre as vinhas apparecia em
+malhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre vallados de piteiras, em
+quanto ao lado sussurrava a levada correndo pelas regueiras. Os pomares,
+copando-se, encantavam de espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques
+fechados, e embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos
+outeiros, que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo
+horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socalco em
+socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um verde triste, a
+viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios ao cair da tarde.</p>
+
+<p>A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi
+adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com
+estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles pampanos
+cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos de hortas e pomares; os variados
+tons que zebravam as encostas dos montes e collinas, desde a esmeralda viva dos
+prados até ao louro cendrado das paveias; os rosmaninhos e as boninas
+esmaltando as veigas; o rio precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e
+limpido e depois esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de
+luz dourada todo o quadro, de<span class="pn">{13}</span> noute o clarão da lua
+tocando-o de meiga melancolia, compunham um espectaculo de tanto enlevo que a
+vista fugia com a vontade e com o coração para aquelles casaes debruçados das
+collinas fazendo nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vêr
+romper o luar por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos
+primeiros raios brancos do alvor matutino.</p>
+
+<p>Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chaminés expelliam o
+fumo em penachos caprichosos; os cepos estalávam no lume; e as creanças, como
+enxame buliçoso, brincavam defronte das portas. As mães cosinhavam a ceia, em
+quanto os velhos e os mancebos descansando do trabalho, aguardavam encostados,
+ou assentados, a hora proxima da refeição e do repouso.</p>
+
+<p>Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pôr do sol nas aldeias!
+N'esta occasião, em que a fadiga do corpo como que faz mais docil o espirito, é
+que o padre Vigario, desembocava de uma das azinhagas com o seu Horacio, ou o
+seu Salustio debaixo do braço, e vinha conversar o seu pedaço com os anciãos da
+terra, para saber as novidades, e espreitar as rixas e discordias, afim de as
+compôr. Correndo a mão pela cabeça das creanças, ralhando com umas, afagando
+outras, informava-se de tudo, sanava as malquerenças, e conseguia pelo respeito
+de seus annos e qualidades, que<span class="pn">{14}</span> os moradores da
+parochia formassem uma só familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes,
+estes, mal o viam, voavam em bandos a agarrar-se-lhe á loba e ás mãos, por
+entre vozes e saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No
+verão, nos dias de maior calor, era sempre certo o prior, á tardinha, debaixo
+da parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de prata,
+que lhe escorregavam até á ponta do nariz. Lia e passeiava. De tres, ou de
+quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga e sorvia com
+delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a vêr se alguma flôr
+carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava punha na cabeça o
+venerando tricornio, pegava da bengala de canna da India e castão de prata, e
+sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase modesta, empregada por elle para
+designar as suas marchas forçadas de legua, legua e meia, e ás vezes duas
+leguas por montes e quebradas.</p>
+
+<p>Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos homens
+vigorosos, na flôr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo largo e egual.
+Abordoando-se á bengala por costume e não por necessidade, despejava caminho
+como andarilho mais valente. De estatura elevada, secca, mas encorpada,
+carregava sem esforço com o peso de uma velhice verde e alegre. Nos olhos
+cinzentos e vivos brilhava<span class="pn">{15}</span> um toque de finura
+risonha, e a bocca não pequena, mas engraçada, animava o rosto e dava-lhe
+expressão agradavel, avivada de constante jovialidade. A brandura do animo
+correspondia ás promessas da physionomia, e o tracto intimo denunciava as
+prendas d'aquelle caracter, honrado, severo só comsigo, inflexivel e incapaz de
+se torcer em pontos de consciencia ou de melindre. Na convivencia com o padre
+Vigario, aprendi mais do que me ensinariam muitos annos de leitura.
+Convalescente e magoado, devi-lhe a saude do corpo, a saude e o conforto da
+alma.</p>
+
+<p>Este velho desterrado por gosto e eleição sua em um canto do mundo, n'uma
+aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos que se
+pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava toda a sua
+philosophia:&mdash;paciencia e amor. Com a primeira supportava os trabalhos e os
+revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças ao segundo, o coração,
+purificado pelos annos, abria-se a todos os sentimentos nobres, e palpitava com
+orgulho memorando as glorias da patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava
+a dôr das desgraças presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão crente e
+enthusiasta, como se acabasse de entrar na epocha das illusões. Entendia e
+applicava o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraçando como
+filhos e irmãos todos os afflictos e necessitados;<span class="pn">{16}</span>
+e pelo amor, finalmente, não perdoava mas agradecia as offensas, as injustiças,
+e até as calumnias, provações da virtude, não se lembrando d'ellas senão para
+pagar o mal com o bem.</p>
+
+<p>Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de Camões,
+de Ferreira e de Sá de Miranda. Familiar com os escriptores da antiguidade, e
+com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o desapercebido, e espertar
+a veia natural e espirituosa da sua conversação, para se apreciar devidamente
+os thesouros encobertos d'aquella vasta erudição e os prodigios de uma memoria
+em verdade rara. As citações acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as
+anecdotas encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel,
+succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente os
+homens e as cousas, que as cinzas dos grandes varões de Roma e da Grecia, dos
+heroes de todos os tempos e de todas as nações tornavam a juntar-se, a tomar
+corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar como se os estivessemos
+contemplando nos dias do seu esplendor. As ruinas de Athenas, as do velho
+Lacio, os monumentos da meia edade, e os episodios de epochas mais proximas,
+evocados pelo encantamento irresistivel d'aquella imaginação creadora, como que
+volviam subitamente ao primeiro sêr, apparecendo uns em toda a formosura da
+arte classica, erguendo-se<span class="pn">{17}</span> outros pela religiosa
+inspiração da arte christã.</p>
+
+<p>Á noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa poltrona
+de couro, com a ama á direita e o cão somnolento á esquerda, a velha cabeceando
+de rocca á cinta e engrolando Padres-nossos, o animal piscando os olhos com uma
+orelha fita e outra derrubada. Dos dous companheiros do serão o mais attento e
+sisudo era de certo o cão! Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca
+perdia occasião de lhe coçar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo
+favoravel. O bofete de pau santo e pés torneados, o candieiro de latão e a
+anarchia dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada
+uma hora, o unico que não dormia era o Vigario; a sua penna continuava a ranger
+sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida. Quando as palpebras
+se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira, mettia dous dedos na argola
+do candieiro, e recolhia-se ao quarto no meio das recommendações da ama sobre
+os perigos do fogo, sobre a falta de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos
+provaveis. Estas recommendações não se calavam, senão quando a respiração alta
+e compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua
+eloquencia.</p>
+
+<p>Em um d'estes serões, a que assisti, caiu o dialogo sobre não sei qual de
+nossos reis, e o Vigario<span class="pn">{18}</span> innocentemente deixou
+escapar o segredo das suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do
+solitario com o seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a
+desculpas, que me lê-se alguns <em>Contos e Lendas</em>. Oxalá que o leitor
+seja do meu voto. Ainda me não arrependo do que disse d'elles ao auctor, que
+tremia, como se a minha opinião valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos,
+longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio.
+Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre resistiu a
+apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou, pouco antes da sua
+morte, foi com a final e irrevogavel condição de nunca descubrir o nome do
+auctor, se me atrevesse a importunar os prelos (assim se expressou) com as
+puerilidades de um velho creança. Possam os <em>Contos e Lendas</em> do padre
+Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo, merecerem alguns momentos de
+attenção, não por si, mas pelas memorias que recordam. Correm já sujeitos ás
+vecissitudes da publicidade tantos filhos espurios da mesma invenção, que mais
+esta, entrando no mundo das lettras, não usurpará de certo logar, que pertença
+de direito ás obras primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia
+não ha fortuna. Lanço-a á corrente!... A sorte bôa, ou má que faça o resto!</p>
+
+<p>Valle, 30 de septembro de 1866.<span class="pn">{19}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00200000000000000000">A TORRE DE CAIN</a></h1>
+
+<h3><a name="SECTION00200100000000000000">LENDA DO SECULO XI</a></h3>
+
+<h2><a name="SECTION00210000000000000000">I<br>
+De um bom irmão um mau christão</a></h2>
+
+<p>O monge começou assim a sua historia:</p>
+
+<p>No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é que
+succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por dias, e com
+elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder dos infieis as
+provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da fronteira não se
+descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as armas; e quer luzisse a
+manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das almenáras, ou o rebate das trombetas
+não consentia nem leve repouso aos defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou
+no<span class="pn">{20}</span> campo da peleja, não se socegava um momento. Os
+melhores castellos ainda tinham a voz dos descridos; muitas terras pagavam-lhes
+tributo; e as bellas tapadas do Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os
+veados, os ursos e os javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as
+columnas e as ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d'este
+formoso jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu
+deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso infantil,
+e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a tristeza até parecia
+desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo é, o arabe sensual passava
+pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso a saudade do que perdeu lhe punge
+tão viva hoje o coração!...</p>
+
+<p>&mdash;E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito, bradando:
+esta terra é nossa! acudiu Martin Paes.</p>
+
+<p>&mdash;Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de captiveiro
+todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da charrua, guiadas
+por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso, que nos deu outra vez a
+terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em que abrimos os olhos, o
+cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a arvore que nos cobriu com a sombra
+a infancia e a velhice, e a fonte que ferve ao pé do rosal!...<span
+class="pn">{21}</span> N'aquelle tempo, quando o mouro passava, baixavam todos
+a vista, porque elle era o senhor.</p>
+
+<p>&mdash;Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre?</p>
+
+<p>&mdash;Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos vestiam-se de
+relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os gados pastavam nos
+montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era magoa e desconsôlo por
+dentro; porque a terra, em que sômos escravos, mesmo que seja a da patria,
+parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo. A casa alheia, a courella que é de
+outro, e o fogo accêso na lareira a medo, fazem-nos chorar, porque nada
+d'aquillo é nosso, e hoje, ou amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como
+vive agora; o que estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo
+sol, corriam as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não
+brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a donzella
+assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava tranquilla, como
+aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo descantar o rouxinol por cima da
+cabeça. O harem do sarraceno, aberto diante d'ella, como um abysmo, fazia-a
+empallidecer. De um momento para outro podia ser obrigada a escolher entre a
+deshonra e a morte.<span class="pn">{22}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que martyrio não seria a vida assim?!...</p>
+
+<p>&mdash;Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina. Faz-se
+tarde. Quereis que continue?</p>
+
+<p>&mdash;Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos.</p>
+
+<p>&mdash;No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas terras
+de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de certa dama,
+juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De seus castellos os dous
+inimigos, postos defronte, corriam o campo talando vinhas, pomares e cearas, e
+mal um se descuidava, o outro, assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e
+fogo. Em suas mesnadas, ou companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda
+a furia. Nos casaes assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se
+ao anoutecer recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao
+clarão das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado.</p>
+
+<p>Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do contrario,
+e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas ameias. Aconteceu
+isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos festejavam o bemdito
+Santo com fogueiras, cantigas e follias. O cavalleiro tinha um filho e um
+irmão. O filho de edade tenra; o irmão temido<span class="pn">{23}</span> pela
+indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a creança fez-se homem;
+e de parte a parte a aversão das duas familias cada vez crescia mais. O rio que
+as separava, tingiu-se de sangue por muitas vezes, e os sinos não cessavam de
+dobrar na egreja pelos que morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia,
+parecia avivar mais aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro
+assassinado era já um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença
+gentil a cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar,
+esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas
+sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do rico
+homem morto na vespera de S. João.</p>
+
+<p>D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por desgraça,
+viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração esquecido da vingança
+guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae derramado á falsa fé, as
+malquerenças de tantos annos, as promessas da meninice e da juventude, tudo
+d'ahi em diante se apagou da sua alma para não vêr outro sol, outra luz, senão
+a dos bellos olhos, que o tinham feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior
+odio rebentou o mais constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido
+saltou aos olhos de todos. Os parentes lançaram<span class="pn">{24}</span> em
+rosto ao mancebo a sua fraqueza, mas a paixão pôde mais, que as memorias do
+tumulo, que deixava sem vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas,
+os rancores cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas
+inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não podiam
+dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar. Aprazou-se para
+vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou acaso? N'esse dia
+contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D. Moço de Ansures fôra
+assassinado.</p>
+
+<p>O homem põe e Deus dispõe!</p>
+
+<p>O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do que á
+propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado fôra
+procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D. Inigo Lopes,
+era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou chegar de longe, quando
+estavam pregando as taboas do caixão do infeliz. A dôr fez de D. Inigo uma
+estatua, e sete dias com sete noutes o viram todos jazer deitado sobre a
+sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe os ossos do irmão, consumia ao mesmo
+tempo n'elle tudo que tinha de humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se
+levantou, trazia a cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um
+seculo em sete dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem<span
+class="pn">{25}</span> um soluço do peito mudo. Deixou sobre a campa espada e
+arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao entrar ainda fizera o signal da cruz,
+mas, saindo, Jesus! voltou as costas ao altar. Os anjos nos defendam!</p>
+
+<p>O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella? Se
+alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na ultima noute
+vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo crescer da sepultura
+e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões! Quem vae nunca mais torna. O
+que não foi fabula, porque todos o presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com
+o primeiro raio de luz uma rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como
+se existisse ha muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos!
+Mas se queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar
+uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta. Em cada
+ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que outros tantos dias
+se contavam tambem desde que o corpo do valente cavalleiro descera á sepultura
+trespassado de sete feridas.</p>
+
+<p>Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos com
+mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou, comendo das
+ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás inclemencias do
+tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do mundo!<span
+class="pn">{26}</span> O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha
+desviado os olhos d'elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz,
+ou se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe no
+deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina. Valha-nos
+Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um mar de fogo; o
+ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das altas rochas dançaram,
+crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então na vasta solidão do ermo um
+brado immenso. D. Inigo respondeu, e o pacto, que ali firmou, foi tão negro,
+que a lua tornou-se côr de sangue e sumiu-se, que as estrellas esconderam
+tremulas a sua luz. O christão acabáva de vender ali a alma ao inferno pela
+vingança. Desde aquella hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra
+segue o corpo, a imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz,
+elle que não se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o
+juramento. Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço,
+repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas immoveis do
+Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O reprobo escarneceu do
+passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca. Mas elle que se ria de Deus
+e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe a terra debaixo dos pés, como
+horrorisada do peso do seu crime. Aos primeiros<span class="pn">{27}</span>
+passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal rebentava ao mesmo
+tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras, no ceu aonde os trovões
+estalavam uns apoz outros; na terra, que se abria em voragens, e no deserto,
+aonde o furacão, bramindo, cavava abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em
+vortice as areias. Cedros antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As
+feras, timidas que nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os
+homens elevavam suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia
+humilde e pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D'ali
+em diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no
+precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão,
+debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas torciam-se em
+toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia caíra um velho
+desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota d'aquella agua para lhe
+restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a entornando-lhe de proposito o cantaro
+diante dos olhos para lhe exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam
+tragando de longe a agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e
+dizendo-lhe por mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de
+ti!» O Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse
+vencedor do<span class="pn">{28}</span> inferno. Mas, desde aquelle crime, a
+sêde intensa ateiada nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e
+as fontes convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada
+no deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas.</p>
+
+<p>Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que
+nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos chammas, o
+trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda varria o pó, a
+respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento. Diante d'elle as mais
+altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se outeiros; o mar e os abysmos
+solidificados aplanavam-se; e no perpassar do galope infernal os carvalhos
+inclinados tremiam e beijavam o chão, flexiveis como juncos. Cavallo e
+cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo da ferradura magica as aguas tomavam a
+dureza do diamante: a terra oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos
+vulcões, vinham coroar o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se,
+e estacou. Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d'ali. Á
+medida que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio
+de sol dissolveu-se desfeito em fumo.</p>
+
+<p>Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu o
+sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao primeiro<span
+class="pn">{29}</span> passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao
+segundo illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas
+cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro levantava o
+<em>Ave maris stella</em>. Estava aplacada a vingança do morto. A fé, porem,
+debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu em vão lhe
+offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de misericordia! Orava
+n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo hermita pelo maior peccador.
+Arrebatado em espirito, viu um homem cuspindo por odio na cruz á porta de uma
+egreja. O anjo Custodio, ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes
+luminosas; mas o desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas,
+subiu na aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente.</p>
+
+<p>«A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão para o
+que renega o teu Santo nome?»</p>
+
+<p>N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com estrondo;
+e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas, repetiu ao longe:
+<em>memento, homo, quia pulvis es!</em><span class="pn">{30}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{31}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00220000000000000000">II<br>
+Não ha gosto sem pesar</a></h2>
+
+<p>N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais poderoso e
+rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados do castello por
+valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um aceno trinta cavalleiros
+mettiam o pé no estribo, e centos de homens de armas e peões seguiam o seu
+pendão. Descendia da grande raça dos primeiros lidadores das Asturias, raça de
+bronze nos odios, e de ferro nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e
+açor velho não se remonta ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as
+madeixas brancas, D. Ordonho sentia que os<span class="pn">{32}</span> annos
+não haviam passado em vão. Só a neta, a formosa Auzenda, unico amor da sua
+vida, podia distrahil-o das horas de tristeza. Mais do que filha, porque duas
+vezes era o sangue da sua alma, um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma
+lagrima só d'aquelles olhos lindos, transformava em cordeiro o leão
+embravecido.</p>
+
+<p>Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens de
+armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa
+cavalgada, que se espera?</p>
+
+<p>O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os derradeiros
+clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua sobre as campinas,
+e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em larga distancia ao redor.
+</p>
+
+<p>No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia casar-se
+com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S. João, e por horas
+tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que os monges negros rezaram o
+officio de finados em volta da tumba do cavalleiro assassinado.</p>
+
+<p>Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa do
+outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da formosura,
+entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia. Aquella belleza era
+sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os cabellos em tranças<span
+class="pn">{33}</span> d'ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor
+suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado cinto
+aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora folga livre
+com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio palpitante. Ao raiar da
+alva tinha saido. Os pés, como os da corsa gentil, que a acompanha, fogem tão
+leves, que mal trilham os musgos das fragas na serra ingreme. As rozas accendem
+o rubor na face assetinada desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa
+silvestre pousada na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal
+subiu casta e pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da
+aurora. O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe
+fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios da
+primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr do lado
+opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço Ansures.
+Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do amor.</p>
+
+<p>&mdash;Voltais logo? perguntou a donzella corando.</p>
+
+<p>&mdash;Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado olhar.
+</p>
+
+<p>&mdash;Tão tarde!?</p>
+
+<p>&mdash;Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...</p>
+
+<p>&mdash;Não! Mas!...</p>
+
+<p>&mdash;Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!<span
+class="pn">{34}</span></p>
+
+<p>Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella
+seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo outeiro.</p>
+
+<p>Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a
+donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios de noiva
+a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde, fechou-se a noute, e
+quando as estrellas começavam a tremer na abobada do ceu, recolheu-se
+suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da atalaya. Donas, cavalleiros
+e pagens principiavam a entrar no castello, attraidos pelos festejos. As armas
+reluzentes, as plumas de côres diversas, os tabardos de matizes variegados
+deslumbravam, vistos á luz dos fachos. O som das trompas, os latidos dos
+lebreus, os relinchos dos cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos
+alegres o quadro do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela
+estatura. Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O
+seu brado vencia o estrepito.</p>
+
+<p>&mdash;Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os recem-chegados
+com a bocca cheia de riso.</p>
+
+<p>Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do dia,
+segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e com a noute
+cerrada não chegava!... Do lado das montanhas<span class="pn">{35}</span> não
+havia rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos. Que
+motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão meigo e
+desejado? Porque se ausentára n'aquelle dia, em que tantos estremos o
+convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam? Um juramento
+sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos de todos a união das
+duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o tumulo de seu pae. Por isso
+deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao romper da aurora. Por isso as horas
+passavam e a saudade impaciente da noiva as contava tão vagarosas!<span
+class="pn">{36}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{37}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00230000000000000000">III<br>
+Deus seja comnosco</a></h2>
+
+<p>Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca das
+malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados capellos!
+Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os estrados das donas e
+donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas dos trovadores. Mais adiante,
+em turbilhões de cem côres, em collos ondeados e graciosos, giram e volteam as
+dansas, e o olhar furtivo de alguns pares promette, em breve, dias semelhantes
+a mais de um solar.</p>
+
+<p>Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não entram,
+o vento geme por entre frizos<span class="pn">{38}</span> e laçarias dos
+delgados columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das
+frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o silencio.
+Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas tochas. Povoa-se a
+sala, innundada de luz subitamente. Os escanções enchem as taças e fazem-as
+circular em roda. Saudes, acclamações, e vozes crusam-se, trocam-se e voam em
+confusão jovial de um a outro extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á
+sua direita senta-se Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço
+Ansures. Defronte, em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se
+podesse deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto.</p>
+
+<p>A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas
+vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam incessantemente
+donas, cavalleiros e monges, convidados pela hospitalidade quasi regia do
+rico-homem. As taças cheias de licor espumoso correm de mão para mão. D.
+Ordonho, de pé, alça a sua, e com a fronte erguida brada:</p>
+
+<p>&mdash;Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa acclamação
+responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre irmãos!»</p>
+
+<p>Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou um
+grito. Os convivas olharam<span class="pn">{39}</span> tambem e ficaram
+immoveis com as taças suspensas.</p>
+
+<p>No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu de
+repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e na cotta
+o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a primeira taça
+cheia, ergueu-a lentamente.</p>
+
+<p>&mdash;Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!..</p>
+
+<p>Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se
+vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de ferro
+em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os olhos, as feições
+o os modos eram exactamente os do cavalleiro assassinado havia quatorze annos;
+porem os cabellos e as barbas brancas lembravam, que por cima do seu corpo
+passára o frio da sepultura.</p>
+
+<p>Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder
+occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos.<span
+class="pn">{40}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{41}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00240000000000000000">IV<br>
+Enterro por noivado</a></h2>
+
+<p>Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu:</p>
+
+<p>Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao
+primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados, ficaram
+immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas das violas e
+alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs profundos das
+salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos jograes transformou-se
+repentinamente em <em>dies iræ</em> que retumbou. Os cabellos erriçaram-se de
+horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e<span class="pn">{42}</span>
+vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados jogaram, as
+torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o sino dobrava já tinha
+desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos clamores! Muitos intentaram
+fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes tocar, fecharam-se adiante d'elles.
+O portal maciço gemeu nos quicios e cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis
+alaram as dobradiças.</p>
+
+<p>Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor de ti
+choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de esperança; o palmito
+symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas de cypreste esfolhou sobre o
+leito do noivado. Nos paços do conde ninguem se entendia. Estava sobre elles o
+poder do inferno. O suor frio borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor
+dos mais ousados fazia tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma
+pluma de fogo na escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo
+enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos tectos.
+Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se obrou em um abrir
+e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados tão altos, e o fosso tão
+fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o toldo sombrio, que a velava, e o
+seu clarão pallido lançou como um sudario sobre o rochedo talhado a pique, que
+se aprumava a<span class="pn">{43}</span> curta distancia sobranceiro ao
+castello. As aguas, rebentando ali á sombra de antigos choupos, ferviam de
+encontro ás fragas, e despenhadas espumaram batendo em cachões no leito da
+ribeira, que lá em baixo bramia arremessada por entre a bronca penedia.</p>
+
+<p>Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços por
+entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou baixando de andar
+em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo cerrado, as labaredas
+serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra por pedra quasi a
+desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas envergonhados.</p>
+
+<p>&mdash;Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de St.ª
+Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui todos! gritou
+depois em grande brado.</p>
+
+<p>Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados. Ergueram-se as
+achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem robustos braços ferem a
+um tempo com ancia mortal a porta maciça e chapeada. O roble gemeu, o ferro
+chispou fogo, os gonzos tremem... Mas nas taboas nem signaes dos finos gumes.
+Os machados, estalando, lascam até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e
+do alarido das vozes rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa
+do rochedo campeia<span class="pn">{44}</span> o cavalleiro negro. As aguas
+espumavam por baixo dos pés do corcel; a mão direita brandia um facho; a
+esquerda só peava com as redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo.
+</p>
+
+<p>&mdash;Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a eu.
+Pago as arrhas da formosa noiva.</p>
+
+<p>&mdash;Maldito!...</p>
+
+<p>&mdash;Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou o
+dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue dos meus.
+Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.</p>
+
+<p>Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas
+furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou. No
+hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem sentidos. As
+faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do velho; as tranças de
+ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os olhos languidos, em que expirava
+a doce luz da vida, cerravam-se mortaes.</p>
+
+<p>&mdash;Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue
+verteu-o esta mão culpada.... Feri a cabeça do peccador saciado de annos e de
+amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?... Poupai-a em
+vossa justiça!.</p>
+
+<p>Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n'aquelle
+instante o senhor de tantos<span class="pn">{45}</span> vassallos e castellos
+por alguns palmos de terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna,
+que nos serros vizinhos refrigerava as miserias do escravo?</p>
+
+<p>O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas não
+quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto enxugou-se
+em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo passar muda e
+terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro! Nem capello de aço lhe
+cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito descoberto. Leva porem a morte
+escripta no rosto. O sombrio clarão do desespero reluz nas orbitas
+ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios, brancos e descorados. Deixai-o ir! É
+o castigo de Deus que se adianta! Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o
+inspira!</p>
+
+<p>A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas para
+depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens. Que fogo
+ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento! Guarde-se o falcão.
+Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim era D. Ordonho!... A lua
+escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento lastimava-se soturno. A
+distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o clarão avermelhado do
+incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas estendia-se como toldo
+immenso. As aguas e o furacão confundiam<span class="pn">{46}</span> os
+bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava em
+estampidos medonhos.</p>
+
+<p>A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto é aquelle,
+que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no eirado da torre
+Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas abrazadas e não recúa.
+Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as sente. Ao lado estalam e
+desabam os madeiros com fragor, racham-se e abatem as paredes, e não as vê! O
+temporal fustigando os cedros, estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os
+penhascos da montanha; as torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como
+rios caudalosos. Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e
+horrores da vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao
+desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a peior
+das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o sepulcro do ultimo
+descendente de uma grande raça.</p>
+
+<p>Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira dava-lhe á
+face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda, e a vista mede o
+espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um aceno para voar sibilando
+ao seu alvo....</p>
+
+<p>Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol<span
+class="pn">{47}</span> de fogo jorrou dos ceus abertos. Soa distinctamente o
+galope de um cavallo. As ferraduras, raspando as fragas, fazem saltar as
+faiscas umas atraz das outras. Armas brancas, capello sem viseira, no peito o
+açor do Douro. Será D. Moço Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho
+sacudido pelo cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado
+sobre a aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas.
+Cavallo e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo
+lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte. Pouco
+depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo debruçado para o
+precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas para se rodear de trevas.
+O braço do Maldito alçou de subito a espada e o golpe descia já... quando uma
+seta passa assoviando. O mancebo vio então o seu inimigo rolar aos pés do
+ginete e logo apoz um corpo dobado nos ares, resvalar, batendo nas pontas das
+rochas até se atufar dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que
+espirram a grande altura espuma e sangue.</p>
+
+<p>Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta brados de
+triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde Ordonho, cosida nas
+chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos ao temporal. Depois
+abateu-se a torre com grande estrepito, as quadrellas alluiram-se, as
+traves<span class="pn">{48}</span> accesas remoinharam e cairam, e entre os
+destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do somno
+eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no seu pendão!
+Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou comsigo a orgulhosa
+raça de riba d'Ave, e do seu castello só ficaram de pé aquella torre negra, que
+alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos de Pedro Ansures.</p>
+
+<p>&mdash;E D. Moço? perguntou Martim Paes.</p>
+
+<p>&mdash;E Auzenda? acudiu D. Nuno.</p>
+
+<p>D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e,
+cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços, fragas, e
+alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do incendio e viu-o
+arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só parou quando o facho do
+cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que succedeu então já vos contei. Apenas
+Inigo expirou, desfez-se o encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a,
+mas sem vida! Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de
+cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das
+Hespanhas.</p>
+
+<p>D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a
+esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás
+batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte?<span
+class="pn">{49}</span> Para quê? Não a sentia já no peito? A liberdade da terra
+do seu berço? Ai! Nem essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d'aquelle
+coração!... Sombra do que fôra, o que fazia o desgraçado n'este desterro cruel,
+sem affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu na
+força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha até cair, a
+dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias desgraçadas, minavam-lhe
+a vida, seccando-lh'a na raiz.</p>
+
+<p>Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de
+lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a doce
+imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias ditosos. A mesma
+grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros que fugiam em ondas; as
+mesmas roupas alvas desenhavam as formas virginaes; nos olhos sempre a luz
+suave do amor, que o fizera tão feliz; nos labios aquelle sorriso em botão, que
+se abria casto como a rosa. O mancebo queria estreitar a visão querida ao
+peito, e acordava, chorando, porque só abraçára o ar. N'este tormento agonisou
+por mezes até que Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde,
+aonde se recolhera.</p>
+
+<p>Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o
+coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára orando a
+velar<span class="pn">{50}</span> a tumba, contou depois que vira apparecer uma
+dama, formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do
+ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe um
+annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte descorada.
+Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por tres vezes lutou
+para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras tantas, vencido por
+braço invisivel, se prostrou com a face no pó do templo. Eram as nupcias dos
+mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures? Era ainda a sombra de Inigo Lopes
+perseguindo na donzella o sangue inimigo e a vingança contra o conde Ordonho?
+Altos mysterios de Deus. Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e
+os prodigios da sua clemencia infinita?!<span class="pn">{51}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00300000000000000000">O CASTELLO DE ALMOUROL</a><a
+name="tex2html1" href="#foot326"><sup>[1]</sup></a></h1>
+
+<h3><a name="SECTION00300100000000000000">CONTO DO SECULO XVII</a></h3>
+
+<h2><a name="SECTION00310000000000000000">I</a></h2>
+
+<p>&mdash;Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta
+praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles pelo
+Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elles estão aqui á nossa quinta é
+muito longe?</p>
+
+<p>&mdash;Não é nada perto, não, sr.ª Brizida de Sousa! Mas lá diz o adagio: aos que
+muito correm quebram-se-lhes<span class="pn">{52}</span> as pernas... Socegue.
+O sr. conde de Villa Flôr anda com elles a contas e não é para graças.</p>
+
+<p>&mdash;O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi
+dizer... Mas se elle ficasse mal agora?</p>
+
+<p>&mdash;Ficavamos nós peior, isso é verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh, se
+meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto como um
+estafermo!...</p>
+
+<p>&mdash;Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou demais por essas
+guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O que
+seria de mim sósinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha umas poucas
+de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro mundo! Ó sr. Romão
+Pires, diga-me: o demonio&mdash;salva tal logar&mdash;terá poder de subverter comsigo no
+inferno corpo e alma uma creatura baptisada e remida nas santas aguas?...</p>
+
+<p>&mdash;Conforme! Se não estiver em estado de graça!...</p>
+
+<p>&mdash;Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me!
+Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais? Quero que
+me escreva já e já á sr.ª D. Magdalena, contando-lhe tudo isto. Ella não póde
+consentir que a sua criada velha uma noite d'estas desappareça nas garras<span
+class="pn">{53}</span> do inimigo tentador do genero humano. Jesus!... Diga-lhe
+que nos venha livrar d'este inferno, senão... eu cá por mim fujo! Primeiro a
+salvação da minha alma...</p>
+
+<p>&mdash;Tambem eu não gosto nada d'isto, sr.ª Brizida. Mas animo forte e coração á
+larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo que vejo, não
+leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para esta quinta...</p>
+
+<p>&mdash;Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me não chamasse
+eu, se depois da primeira noite não mettesse um bom par de legoas entre o
+demonio e quem se présa de christã baptisada na freguezia de Santa Catharina de
+Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a Deus, e sem eiva, nem leiva de
+mau sangue!... Mas o amor, que tenho á minha menina, coitadinha, tudo me faz
+supportar com paciencia... Espere! Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros
+arrastados pelo sobrado?</p>
+
+<p>&mdash;Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é que
+elles fazem das suas...</p>
+
+<p>&mdash;É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de noites,
+Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes vê o fim. E que me
+diz então a estas despedidas de maio e entradas de junho?!...</p>
+
+<p>&mdash;Não são de convidar, sr.ª Brizida! Velho sou,<span class="pn">{54}</span>
+mas não me lembro de anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, trovões e
+ventanias que levam tudo pelos ares! Safa!</p>
+
+<p>&mdash;E nós, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa
+Barbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre será.
+Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima no vão das
+casas?</p>
+
+<p>&mdash;Não é nada. São os rapazes do feitor jogando as escondidas.</p>
+
+<p>&mdash;Pois, sr. Romão Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa, quando
+minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: «Brizida, a sua menina anda
+fraquinha e enfezada, e o irmão tambem, os phisicos não acertam com o remedio,
+e fr. João entende que estas tosses do peito, assim teimosas, não se despegam
+senão com mudança de ares. Bem sabe, não posso sair da cidade por estes dias
+mais chegados&mdash;e é assim, coitada, por causa da sua demanda&mdash;acompanhe-me os
+meninos, e conte que fico tão socegada como se eu mesma fosse...» Quando me
+disse isto, e eu lhe beijei as mãos pela mercê, se podesse adivinhar o que nos
+esperava aqui, asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e
+viesse quem quizesse... Isto não é palacio, nem quinta, é um verdadeiro
+inferno! Deus salve a minha alma!</p>
+
+<p>&mdash;A sr.ª Brizida não diz o que sente. Vindo a<span class="pn">{55}</span>
+sr.ª D. Maria e o sr. D. Pedro, ninguem a arrancava de ao pé d'elles.</p>
+
+<p>&mdash;Tem razão. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não lhe
+quer mais, não, deixe-me ter esta presumpção... A elle vi-o nascer, e os
+primeiros braços, que o embalaram, foram estes que hade comer a terra. Tão
+pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo agora, que não me
+posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto de os abraçar homens!...
+Quando me ponho a olhar para elles, parece-me ás vezes que não póde ser, e que
+tudo isto é sonho...</p>
+
+<p>&mdash;Então!? Elles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos. Não ha remedio. O
+mundo vae assim.</p>
+
+<p>&mdash;Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que é
+da edade e do muito crescer, e que hão de encorpar depois. Deus queira! São os
+negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos meus meninos. A sr.ª
+D. Maria manhãs e tardes inteiras á almofada, bordando de branco, de matiz, e a
+ouro. E com que perfeição!... Que dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro?
+É mesmo uma dôr de alma vel-o dia e noite amarrado á banca dos livros, e que
+livros! Latins, gregos, e não sei que outras trapalhadas de
+<em>retroricas</em>... Quem tem a culpa de tudo, o culpado de tudo o que póde
+acontecer, é o teimoso do sr. fr. João, que á fina força<span
+class="pn">{56}</span> quer o sobrinho sabio. Depois que falleceu o pae, (Deus
+o tenha em gloria!) não se nos tira de casa, e tanto ha de quebrar-me a cabeça
+ao meu menino, que um dia treslê. Pois olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe
+diz uma ruim cabeça: mais vale asno vivo, que doutor morto.</p>
+
+<p>&mdash;O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª
+Brizida, é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido um
+segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes
+merecimentos. Não lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna possuem
+elles...</p>
+
+<p>&mdash;Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não m'os deixa respirar.
+Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa para acolá...
+latins, <em>pholosophias</em>, ai, que barafunda! Nem eu sei como as pobres
+creanças não teem endoudecido. Cá por mim já o miolo ha muito tempo me tinha
+dado volta, tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa.</p>
+
+<p>&mdash;Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum nescio...</p>
+
+<p>&mdash;Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na côrte dizem
+que não ha outro doutor como elle.</p>
+
+<p>&mdash;Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz dos
+seus olhos, e depois tão meigos, tão applicados...<span class="pn">{57}</span>
+</p>
+
+<p>&mdash;De mais, de mais, para a edade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não parecem
+d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. João é muito extremoso, e o que faz
+é por desejar o seu bem d'elles, mas, graças a Deus, a casa é rica e não era
+preciso amofinar-me tanto os meus meninos...</p>
+
+<p>O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era
+travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas janellas,
+cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes em reboco
+pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em outras partes as
+colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam em suas pinturas
+desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores anãs, e no meio de
+arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas lavradas inculcavam a
+paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a grande altura, enegrecidos pelo
+fumo da immensa chaminé de pedra, ornada de leões de marmore nas bases, e
+rematada com um brazão de relevo alto, orlado de ramos de silvas e amoras.</p>
+
+<p>O sr. Romão Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de
+carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma das
+faias mais direitas da quinta. Nascêra e fôra creado desde a infancia n'aquella
+casa, e não conhecera nunca outros amos senão D. Vasco, e D.<span
+class="pn">{58}</span> Magdalena. Acompanhára seu senhor, assim lhe chamou
+sempre, em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando
+esforçadamente ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis
+desde 1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das
+proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de saboroso
+pasto aos serões da familia, obrigada a engulir como artigos de fé todas as
+aventuras da nova «Tavola Redonda,» que a imaginação do escudeiro entretecia na
+tela interminavel de sua cansativa Illiada.</p>
+
+<p>A sr.ª Brizida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das apparições,
+era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, roliça e risonha, suas faces
+lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de duas maçans rainetas. As
+feições, pouco accentuadas, e quasi infantis, sumiam-se entre as roscas das
+nedias bochechas, e os seus ares beatos brigavam na candura affectada com uma
+larga experiencia da vida. Toda aquella pequena e buliçosa matrona respirava
+aceio, cuidado, devoção, e azafama. Collaça de D. Magdalena, e casada com um
+dos caseiros mais abastados do morgado, depois ama de leite da filha
+primogenita da casa, enviuvára sem filhos, nem saudades do estado, resumindo
+todos os affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas
+creanças, que trazia sempre na boca e no coração.<span class="pn">{59}</span>
+</p>
+
+<p>Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez de
+mais para a testa, e o córte dos vestidos á beguina, affirmavam o programma da
+sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria recheada de orações,
+de visões, e de devotas crendices, o seu defeito capital era occupar-se muito
+com as vidas alheias, enfiando um rosario de conselhos a proposito de tudo, e
+mexericando, por indiscreta, amos, criados, e hospedes, mas sem intenção ruim.
+Todos se encobriam d'ella, quanto podiam, porém ninguem a aborrecia. Temiam-se
+da intemperança de suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu
+caracter, que era na verdade excellente.</p>
+
+<p>Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas, representava em
+tudo o opposto d'ella. Sério, como um santão, embizourado, e quasi sempre com a
+aguda barba escondida na gargantilha, se levantasse a vista e a curiosidade
+para os negocios dos outros, cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca
+era sagrada, e segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle
+profundamente.</p>
+
+<p>Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o
+conselheiro nato da sr.ª Brizida em todos os casos intrincados, e o defensor
+convicto dos seus mêdos e indiscrições.&mdash;«Boa alma! Boa alma! respondia aos que
+a censuravam.<span class="pn">{60}</span> Tem o defeito de fallar de mais, mas
+é uma santa pessoa.»&mdash;Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edição das
+guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrificio de suspender a
+loquacidade propria!...</p>
+
+<p>O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calças côr de
+pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado no
+cavallete do interminavel nariz, não desabotoava a seriedade do rosto, nem dava
+ferias ao enfado chronico senão para sorrir á sua comadre Brizida. Aquelles
+olhos verdes desbotados não se animavam senão para festejar algum bom dito da
+matrona, cujas fallas assucaradas contrastavam com a voz rouca e soturna do
+antigo campeão da independencia portugueza. A predilecção honesta, mas decidida
+dos dois um pelo outro, não escapára aos criados, e todos acreditavam que, cedo
+ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a união
+de duas almas já tão intimas.</p>
+
+<p>A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita do
+Tejo, estendia as matas e charnecas até á ribeira, que separa Paio Pelle da
+villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina, distaria pouco
+mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio antigo, talvez fundado
+por meiados do seculo XIV, accrescentado, e reparado pelos fins do XVI. As
+ameias, já derrubadas<span class="pn">{61}</span> em muitos lanços de muro,
+proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas por torres
+fortificadas em tempos mais remotos, saindo fóra do corpo principal do
+edificio, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado diante da fachada,
+cujas doze janellas de architectura irregular olhavam para elle. No terreiro se
+tinham jogado cannas e corrido touros nos anniversarios festivos dos senhores.
+</p>
+
+<p>A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e
+articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas parietarias. Uma
+arcada sombria, sustida por grossas pilastras, resguardava as entradas das duas
+escadas, que subiam em volta de caracol até ao primeiro andar. Outra porta, por
+baixo do centro da arcada, dava serventia por uma rampa para os subterraneos
+allumiados ao rez do chão por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de
+salas nuas, frias e tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde
+o ar e uma luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas
+envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros, crusados de
+passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo desde o andar
+terreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rêde inextricavel, um verdadeiro
+labyrintho. A casa de jantar, forrada de carvalho em molduras, prolongava-se á
+maneira de refeitorio<span class="pn">{62}</span> entre dois extensos
+corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada para o jardim, na
+outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para os vãos, os quaes por cima
+corriam em largura e comprimento da casa. As torres communicavam-se com o corpo
+do edificio por duas portas esguias e abobadadas, aferrolhadas havia longos
+annos. Os eirados, meio abatidos, vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas
+caudaes do inverno.</p>
+
+<p>O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de pedra
+no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava algumas
+roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e malmequeres bravos.
+As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de pão, cingidas de vallados
+altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do palacio era carregado de
+melancholia. Rodeado de solidão justificava em sua tristeza as queixas, que
+ouvimos á sr.ª Brizida. Porque escolhera, porém, D. Magdalena aquelle êrmo para
+abrigo dos filhos e dos criados, quando tinha tantas propriedades mais alegres
+e reparadas aonde podessem respirar, longe do bulicio da côrte o ar do campo?
+</p>
+
+<p>D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de que
+fôra tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do couto de
+Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fernando na comarca da Beira. Formosa,
+discreta e recatada,<span class="pn">{63}</span> perdera seu marido, D. Vasco
+Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. João IV e D. Affonso VI, havia
+tres annos, e ainda não enxugára as lagrimas da viuvez. Em edade de merecer e
+de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa de Lisboa, aonde não
+recebia senão as visitas de alguns amigos antigos da familia, guiando-se em
+tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu irmão, grande sabio, e doutor em
+canones e theologia, o qual se encarregára de dirigir a educação litteraria dos
+sobrinhos.</p>
+
+<p>D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nascimento, como pelas qualidades
+do caracter e do espirito, unira ás propriedades de sua casa, já mui rica, o
+senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de Almourol, que sua mulher lhe
+trouxera em dote, mas quasi sempre occupado na côrte com os negocios politicos
+e no serviço activo das armas, só duas vezes visitára de fugida aquelle solar
+desamparado, que principiava a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras
+e a cobrança dos direitos do donatario, com excessiva confiança, diziam os
+murmuradores, á probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e
+ladino, que mais as disfructava como usurario, do que as geria como
+administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam n'aquellas
+mãos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o verdadeiro
+estado<span class="pn">{64}</span> das cousas, na companhia de seu irmão, fr.
+João Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais
+conveniente.</p>
+
+<p>Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa,
+dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas relações
+de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo ramo dos
+Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma comarca, aonde
+existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que tão viçoso beija as
+aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados campos e charnecas, pertencia
+ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D. Affonso de Noronha, saira da côrte para
+o exercito do Alemtejo. D. Affonso, illustre pelo berço, e já illustre pelo
+valor, vira crescer em belleza, primeiro com assombro, depois com paixão
+ardente, sua prima D. Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pae o amor,
+que ella lhe inspirava. D. Nuno confiou este segredo á ditosa mãe, e ella, não
+podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes de dar
+o sim, quizera, comtudo, sondar disfarçadamente as inclinações da donzella.
+Conheceu com alegria, que D. Affonso começára a apoderar-se d'aquelle coração,
+que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas as primeiras e vagas
+aspirações de um sentimento, que não sabia definir ainda.<span
+class="pn">{65}</span></p>
+
+<p>Corria o anno de 1663. D. João de Austria, á frente das armas castelhanas,
+tentára o derradeiro esforço, invadindo Portugal com dezeseis mil soldados, e
+os nossos generaes, juntando as forças, mal conseguiram oppor-lhe cinco ou seis
+mil. A cidade de Evora, que devia ser um dos baluartes da resistencia,
+accommettida no dia 14 de maio, capitulára, depois de pouco honrada defeza.
+Este revez aggravou os receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a
+insultar Alcacer. D. Sancho Manuel convocára immediatamente os officiaes a
+conselho, e só um voto, o d'elle, approvára a conveniencia de ferir a batalha,
+que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A pericia de
+Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o ultimo precipicio
+da independencia; mas a feliz temeridade do conde de Villa Flor, fechando os
+olhos á prudencia, applaudia o encontro decisivo dos dois exercitos, como o
+unico meio, embora desesperado, de salvar a provincia e o reino da sujeição
+estrangeira.</p>
+
+<p>O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltára as
+casas de Sebastião Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de Elvas. A
+todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e todos tremiam. Um
+lance repentino podia sepultar para sempre as esperanças de Portugal!<span
+class="pn">{66}</span></p>
+
+<p>A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito mezes
+do que D. Pedro, seu irmão, contava n'esta epocha dezesete annos, e sem vaidade
+merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez que o unico senão de
+tanta belleza fosse a sua mesma perfeição irreprehensivel. No rosto,
+graciosamente emoldurado pelas luxuosas tranças, confundiam-se os lirios e as
+rozas na mais mimosa frescura. A bocca, fina e espirituosa, córada como um
+botão nacarado, breve como um suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma
+expressão adoravel. Nos olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam ás
+vezes de uma sombra de enlevada melancolia, a luz serena raramente se
+inflammava, mas sua tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixão
+dormia ainda, facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor
+aquellas pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo de uma estatua
+primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que a vista
+como que involuntariamente se alçava a buscar nos hombros as azas da Silphide.
+A voz tinha condão seductor. A estatura, um pouco acima de ordinaria, e
+flexivel como a hastea de uma flor, tambem se dobrava como ella, parecendo que
+o esbelto corpo de melindroso não podia com o doce peso da fronte, em que as
+mil graças da primeira enamorada primavera competiam umas com as outras sem se
+vencerem.<span class="pn">{67}</span></p>
+
+<p>As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a attracção,
+que o calculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o arteficio. O
+requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do sorriso, e a magia
+arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam espontaneos, prendendo os
+sentidos e a admiração. A formosura da alma ainda era maior, se é possivel. O
+coração retratava-se na fronte limpida, e os infinitos thesouros de ternura e
+de abnegação, que por ora concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando
+se abrissem a affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor
+ditoso. A pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de
+candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que affrontado
+não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e caridosa sabia conciliar
+a altivez do sexo com a brandura da indole a firmesa da vontade. Os dotes do
+espirito esmaltavam as qualidades moraes.</p>
+
+<p>Talvez não houvesse na corte dama ou donzella tão instruida na lição das
+boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e castigadas
+dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos por Fr. João, eram a
+sua companhia certa nas horas de repouso.</p>
+
+<p>D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distincções, que o
+exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustração do berço, do que a
+elevação<span class="pn">{68}</span> do caracter e a fidalguia das acções, que
+em edade tão verde quasi o haviam tornado um paladino. Não seria mulher,
+comtudo, senão a confirmassem n'este juizo a presença insinuante do mancebo, a
+gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua phisionomia. Os olhos da
+donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do primo,
+aonde riam as illusões da vida e da juventude, nunca fugiam d'elles, senão a
+furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o que tentaria encobrir em
+vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os labios dos dois tinham soltado uma
+palavra, que revelasse o que sentiam. Amavam-se. A alma de um trazia sempre
+gravada a alma do outro, mas só a eloquencia da vista, indiscreta ás vezes,
+traira o segredo. D. Affonso, não podendo por mais tempo calar a chamma, que o
+abrazava, tinha declarado ao pae, momentos antes de metter o pé no estribo e de
+partir para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas
+esperanças, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não perdera a
+occasião, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto.</p>
+
+<p>A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro, com
+alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo Rodrigues. Tomado de
+subito o manhoso camponez, soubera disfarçar o embaraço e as apprehensões, mas
+custara-lhe a conformar-se com a presença dos amos na casa, que<span
+class="pn">{69}</span> havia tantos annos estava costumado a olhar mais como
+sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar á pressa duas salas e algumas
+alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a mulher e os filhos nos
+vãos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a viseira quando soube que a
+senhora e Fr. João Coutinho poucos dias se demorariam atraz da familia.</p>
+
+<p>No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a ultima
+pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos quartos da aya
+e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente por si mesmas.
+Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos de ferros e cadeias
+arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desappareceu.</p>
+
+<p>O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe sacudia
+os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira noute
+levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias, petiscou lume,
+accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao corredor, quasi em vestido
+de banho, mas com a comprida espada nua debaixo do braço. Depressa se
+arrependeu. Aos primeiros passos um sopro forte apagou-lhe a luz, bramidos
+roucos e proximos gelaram-lhe o sangue, e um clarão momentaneo e sulphurio
+mostrou-lhe, envolto no sudario, um spectro descummunal e ameaçador.<span
+class="pn">{70}</span></p>
+
+<p>Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao
+inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das roupas, acto
+de valor, em que a sr.ª Brizida de Sousa o acompanhava conscienciosamente havia
+muitas horas. Pela manhã os dous velhos pareciam desenterrados.</p>
+
+<p>O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi mais
+respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia continuada as
+longas horas, que medeiaram até ao amanhecer. D. Pedro ainda padeceu mais.
+Acordando sobresaltado ao impulso de mãos brutaes e no meio de escuridão
+profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar dentro das cobertas entre
+uivos e rizadas.</p>
+
+<p>Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e, ouvindo
+da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades nocturnas,
+contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente, que em vida de
+seu pae, já tinham muito má fama as casas do andar nobre.</p>
+
+<p>As noutes seguintes não foram mais tranquillas. Os espectros e duendes
+tinham de certo reservado aquellas espaçosas salas, e os corredores, para
+theatro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo conspirado com elles os
+ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as trovoadas de maio tão
+carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em relampagos, e a terra tremia
+com o rebombo dos trovões.<span class="pn">{71}</span> As chuvas caiam tão
+impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de torrentes e as
+terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado, alagava as margens, e suas
+aguas batiam enfurecidas contra os penedos sobre que se ergue o castello de
+Almourol, salvando por cima do caes em cachões de espuma. Ao oitavo dia
+acalmaram-se as tempestades, mas redobraram de força os maleficios nocturnos,
+com terror, e espanto summo dos recem-chegados.</p>
+
+<p>Avexados, tremulos e fóra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar a
+residencia para os aposentos do castello, que não tinham desabado ainda minados
+pelos seculos e pela indifferença; mas o feitor, que estabelecera n'elles uma
+filha casada, dissuadiu-os do proposito, ponderando que as salas e os quartos
+do velho edificio dos Templarios, alem de frios e de mais nus, que os do
+palacio, não eram menos perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou elle,
+as almas dos cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos
+tinham vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de
+abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha da
+famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da noute
+sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e ouvia-se a
+voz das sentinellas. Até raiar a aurora não se calavam na sala de<span
+class="pn">{72}</span> armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando
+esta descripção horrifica, Brizida de Sousa e Romão Pires olharam consternados
+um para o outro, e depois de se persignarem devotamente, não querendo
+precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar as travessuras menos
+estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram entretanto a D. Magdalena,
+pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle purgatorio o mais cedo possivel, ou que
+viesse sem demora em companhia do Sr. Fr. João desalojar os espiritos
+diabolicos, cuja audacia zombava da agua benta e exorcismos do Vigario de
+Tancos. Os dous honrados servos confiavam que a grande sciencia do frade doutor
+e as virtudes do habito de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da
+rebeldia de Satanaz e da maldade dos seus accessores.<span
+class="pn">{73}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00320000000000000000">II</a></h2>
+
+<p>Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a cêrca exterior
+da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes, defronte de
+Tancos.<a name="tex2html2" href="#foot327"><sup>[2]</sup></a> Cinco seculos,
+passando por cima d'ellas, não haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem
+alluido o cimento indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a
+acção do tempo e o braço infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo,
+transferida de Castro Marim para Thomar,<span class="pn">{74}</span> a séde da
+sua victoriosa milicia, estendera rapidamente pela Estremadura os membros
+robustos. Affonso I, liberalisando-lhe doações e privilegios, e enriquecendo
+com largos senhorios os monges soldados, confiára quasi exclusivamente ao seu
+valor a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure,
+Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e outras
+povoações, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte bipartido<a
+name="tex2html3" href="#foot323"><sup>[3]</sup></a>. As chaves das duas
+entradas da provincia estavam nas mãos dos cavalleiros. Defronte da moderna
+Constança, na confluencia dos dois rios, o castello do Zezere cortava o passo
+aos agarenos da Beira Baixa, em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello
+de Almourol fechava o caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia.</p>
+
+<p>As ruinas, que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam aos que sabem
+interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre um
+ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali caprichosamente
+pelo impeto de violenta irrupção vulcanica, as elevadas torres do velho
+castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam descortinar de longe,
+erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito mirrador dos seculos. Grinaldas
+de heras penduram-se em festões das<span class="pn">{75}</span> ameias
+desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios dos pannos
+rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, tão arremessados que o dedo de
+uma creança parece sufficiente para os fazer escorregar com o muro que os
+corôa, para o leito do rio, espanta os olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio
+ousado e quasi milagroso. Areias accumuladas, e alguma terra de alluvião formam
+o solo, aonde cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos
+troncos torcidos se penduram de cima das fragas até roçarem as aguas com as
+ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os penhascos
+aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio precipitadas. Uma vegetação
+activa e luxuosa veste de verdura aquelle cahos de moles immensas sustidas ha
+seculos no meio da ameaça constante de uma quéda instantanea.</p>
+
+<p>No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia, o
+aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou, mas a
+assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia. Do lado do
+occidente quatro torres circulares, levantadas como sentinellas de granito a
+egual distancia umas das outras, alçavam as frontes torvas e já tostadas do
+tempo. Entre a segunda e a terceira rasgava-se a porta actualmente
+intransitavel do castello, com a sua volta de ogiva e grossos batentes de
+castanho chapeado. No meio do<span class="pn">{76}</span> guerreiro edificio
+avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto intervallo, outra
+quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias. Uma janella ornada de
+lavores em ramos, aberta a dois terços da altura, esclarecia os aposentos do
+segundo piso, em quanto da parte oriental duas frestas do mesmo estyllo davam
+claridade á sala de armas. Cinco torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a
+muralha subia a grande altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes
+ficava ao sul, e o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho,
+corria profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje são
+ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os cactus
+silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaçoso por onde se entrava para os
+andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles aposentos, pouco
+espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas laçarias. Em 1663 a obra da
+destruição principiava a annunciar-se apenas. Apesar de nuas, as salas ainda
+conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e adarves, se não alvejava havia
+mais de tresentos annos o manto branco dos templarios, se algumas heras,
+trepando, se balouçavam á mercê do vento, e se as torres e muralhas mostravam
+já a côr adusta, que é para os monumentos o que são as cãs nos velhos, um
+testemunho irrecusavel de que viram e viveram muito, não se tinham
+esmorecido,<span class="pn">{77}</span> comtudo, nem apagado ainda nenhuns dos
+vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol no meio do Tejo, similhante a um
+titão com metade do corpo fóra das aguas, ainda podia ameaçar forte e intacto,
+os que ousassem arriscar-se ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel
+cuidava no vigor de sua robusta velhice zombar dos seculos, como as creanças
+zombam dos annos, bem alheio de suppor, que na transição da edade grave para a
+decrepidez sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas
+diriam ás gerações indifferentes da nossa época, que eterno e grande só é Deus!
+</p>
+
+<p>Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e ornada
+de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os dois ricassos
+da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais ainda pelas raizes de
+interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues ajudava piedosamente seu
+genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar copiosas libações de um vinho, que
+escaldaria outras goelas menos estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e
+pés torneados, que servia de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho
+d'aquelles contornos, avultava um alentado cangirão de barro, bojudo, e cheio
+até á boca. Principiára a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos,
+similhante a monstruoso aranhiço, allumiava a casa<span class="pn">{78}</span>
+escassamente. Duas espingardas, carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto,
+promptas para servir á primeira voz.</p>
+
+<p>Antonio Rodrigues era corpulento, espadaúdo, e reforçado. Faces largas e
+cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça enterrada entre os
+hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes denunciavam n'elle o
+vigor de um atheleta unido a uma saude inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta
+annos, mas os visinhos do seu tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e
+acertavam. Mas era uma velhice verde e jovial, que não se inclinava ao peso dos
+annos, que o trabalho não desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim
+viçosa e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos
+rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo douto
+Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter de receitar
+nem um xarope áquelle cliente invulneravel ás chuvas, aos frios, e a todas as
+temeridades, a que um mancebo se não atreveria impunemente!</p>
+
+<p>Antonio Rodrigues trajava á camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibão e
+calças de baeta escura, carapuça de lã, e o inseparavel varapau ferrado na
+ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha de cabellos
+grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa, pouco sulcada de
+rugas.<span class="pn">{79}</span> O sorriso enroscava-se perenne nos beiços
+grossos e córados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como os de um
+tubarão, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o peito, e os olhos
+castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em gordura, dir-se-hiam que
+espreitavam tudo, meio encobertos. A voz aflautada causava espanto saindo
+d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz grosso e cravejado de botões vinosos,
+rubros como rubins, assumia dimensões quasi phenomenaes. A expressão da
+phisionomia era dubia. O observador no primeiro relancear apenas notaria a
+beatitude do comilão repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e,
+comparando o olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando
+debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feições moraes significativas
+da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma cubiça incapaz pela
+avidez de transigir com a honra, com a consciencia e com o dever.</p>
+
+<p>Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto aos
+dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo alpha, e o outro
+pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto, assustava os que o viam com o
+receio de que um dia lhe saltassem os ossos das tibias e dos femurs soltos das
+ligaduras. Braços de polipo, terminados por mãos e dedos eternos, hombros
+agudos<span class="pn">{80}</span> sobre os quaes o fato dansava como posto em
+cima de um cabide, rosto comprido, escaveirado, e macilento, acompanhado das
+melenas esguias de um cabello ruivo e aguado, testa núa que chega quasi á nuca,
+peito e ventre espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou
+surrateiros, boca rasgada quasi até ás orelhas, e beiços finos e desbotados,
+compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais atilado,
+avarento e sem escrupulos d'aquellas immediações. Parecia fraco e a
+desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar legoas, os braços
+escamados encobriam uma força alem do commum, e os olhos vesgos só viam torto
+para os negocios alheios.</p>
+
+<p>Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o velhaco
+ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria para fóra.
+Uzurario de nascença, hypocrita por indole e verdadeira voragem de liquidos e
+solidos, digeria como um abestruz e bebia como um areal. Quando conversava,
+sempre em fallas manças, sabia chamar a tempo uns frouxos de tosse e umas
+lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a engulir metade, e ás vezes duas
+terças-partes das palavras, e é inutil accrescentar, que as palavras engulidas
+eram sempre as que o podiam comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o
+caso o requeria, Pedro Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma
+cascata de prantos.<span class="pn">{81}</span> Tinha as glandulas lacrimaes
+devassas e chorava como um crocodilo. Ai dos innocentes que se deixavam
+orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam quasi sempre sem camisa. No meio
+d'aquelle rosto afiado erguia-se um promontorio immenso. Era o nariz adunco e
+aguçado na ponta, que descia quasi a beijar o labio superior. Este nariz,
+delgado e membranoso, rematava a semelhança que tinha aquella cara com o
+focinho da fuinha. Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso
+geral as funcções de procurador de dous conventos de freiras, de quatro
+irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos lucrativos a
+arrematação dos dizimos e premicias da comarca.</p>
+
+<p>&mdash;Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando o
+caneco despejado em cima da mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro Lavareda
+com um sorriso avinagrado.</p>
+
+<p>&mdash;Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui
+mettida. Tomara vel-os pelas costas.</p>
+
+<p>&mdash;Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá saudades!
+redarguia o outro com meio sorriso acido.</p>
+
+<p>&mdash;Isso é facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vês, os donos da
+casa são elles!...<span class="pn">{82}</span></p>
+
+<p>&mdash;Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são ellas!...</p>
+
+<p>&mdash;Hum! Podiam ser melhores... Esse é o meu receio. Trazemos isto muito de
+rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse já ou lh'o ha de dizer.</p>
+
+<p>&mdash;Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim!... Olha, não seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas
+terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a castanha na
+boca uma d'estas manhãs?!</p>
+
+<p>&mdash;Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira á boa feição, e o dinheiro é
+sangue...</p>
+
+<p>&mdash;Mas homem!?...</p>
+
+<p>&mdash;Deixe lá, sr. sogro, não se metta a abelhudo aonde o não chamam, e deixe
+ir a agua ao moinho. Já alguem fallou em lhe levantar a renda da alcaidasia?...
+</p>
+
+<p>&mdash;Não.</p>
+
+<p>&mdash;Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração á larga. O que for
+soará.</p>
+
+<p>Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coçava a nuca com o indicador e
+o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava sobre a taboa da
+meza com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da barba sumiam-se-lhe na
+golla alta do gibão, e os olhinhos, homisiados entre as palpebras<span
+class="pn">{83}</span> meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do
+gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo na
+apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de linho, em
+quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mão raspava uma nodoa conhecida
+e teimosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavam e se entendiam sem fallar.
+O feitor de repente levantou meio corpo de cima do mocho de pinho em que se
+assentava, colheu o cangirão pelas azas, sopesou-o por um instante, e
+emborcando-o, encheu os dous canecos de louça. Levou depois o seu á boca,
+encurvando lentamente o braço, e despejou-o em poucos sorvos, emquanto o
+sobrinho, coleando primeiro a lingua pelos beiços, libou com mais vagar e com
+gestos de amador consumado o nectar, que espumava na grosseira taça.</p>
+
+<p>&mdash;Rapaz, isto não vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro. Anda
+mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me abotou-o. Esta
+gente de Lisboa aqui não gosto nada d'ella.</p>
+
+<p>&mdash;Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya é uma tonta, uma
+pêga douda. O escudeiro não passa de um espantalho de pardaes, e os meninos....
+leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada nascida de oito dias
+e verá se não lhe dizem que é trigo.<span class="pn">{84}</span></p>
+
+<p>&mdash;Mas atraz da pêga e do espantalho tenho muito medo que venha o
+milhafre!...</p>
+
+<p>&mdash;Qual milhafre?!...</p>
+
+<p>&mdash;O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de verdadeiro
+susto.</p>
+
+<p>&mdash;E então se vier?!... Lê no seu breviario! O Sr. Fr. João Coutinho sabe
+muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio...</p>
+
+<p>&mdash;Nisso te enganas. É capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se no
+campo e administrou muito tempo os bens do convento.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Ah!...</p>
+
+<p>&mdash;E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela prôa com
+a Sr. D. Magdalena.</p>
+
+<p>&mdash;Mau será!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do
+polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Máu será,
+tio!.... Mas não havemos de perder o somno por isso. Dizia no mosteiro, aonde
+me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo o genero de peccado
+deixou Deus remedio na sua egreja...</p>
+
+<p>Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco
+satisfeitos.</p>
+
+<p>&mdash;Então que dizes, homem?!..</p>
+
+<p>&mdash;Se o frade vier.... é pôl-o ao fresco, em vinte e quatro horas.</p>
+
+<p>&mdash;Estás mangando, sobrinho?!.. Pôl-o ao fresco? O irmão da senhora, o tio
+dos meninos?!...<span class="pn">{85}</span></p>
+
+<p>&mdash;Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa.</p>
+
+<p>&mdash;Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?...</p>
+
+<p>&mdash;Mettendo-lhe medo.</p>
+
+<p>&mdash;Ao sr. Fr. João, que é rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai
+dormir, Pedro, isso é somno.</p>
+
+<p>&mdash;Sim sr., metter-lhe medo, porque não?...</p>
+
+<p>&mdash;Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito á lambareira da aya e
+ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada de escarneo.
+</p>
+
+<p>&mdash;Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade não foge?...
+Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lençoes da cama.</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-te de historias, Pedro!... As visões com o frade não pegam. O que
+apanhas é algum tiro.... e olha que é caçador que não erra.</p>
+
+<p>&mdash;Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e verá....</p>
+
+<p>&mdash;Emfim, lá sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo! O
+frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho muito amor á pelle.</p>
+
+<p>&mdash;Socegue. Eu tambem não tenho odio á minha. Diga-me: se Fr. João vier,
+aonde o mette?</p>
+
+<p>&mdash;Aonde o metto?!.. Porquê?<span class="pn">{86}</span></p>
+
+<p>&mdash;Preciso saber.</p>
+
+<p>&mdash;No quarto verde talvez...</p>
+
+<p>&mdash;Nada! Dê-lhe o quarto dos armarios.</p>
+
+<p>&mdash;Mas!...</p>
+
+<p>Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coçando sempre a nuca. O genro
+ria-se para dentro, raspando a nodoa do calção.</p>
+
+<p>&mdash;Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu
+risinho.</p>
+
+<p>&mdash;Pois não tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua mãe
+Maria Santissima.</p>
+
+<p>&mdash;Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!...
+Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no sr.
+Fr. João.... Não é por elle, é por mim. Nada de graças pesadas! Não me quero
+ver na cadeia comido de pés e mãos. Leve antes a bréca as terras.</p>
+
+<p>&mdash;Ai, tio!.. Não se faça teimoso, e não esteja calumniando as minhas
+intenções.. Valha-me a Senhora Sant'Anna.</p>
+
+<p>&mdash;Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?...</p>
+
+<p>&mdash;São passos.</p>
+
+<p>&mdash;E vozes... Chega á fresta e vê!</p>
+
+<p>Pedro Lavareda obedeceu.</p>
+
+<p>Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram-lhe na cara, apenas
+abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se
+passava<span class="pn">{87}</span> no rio. O devoto personagem recolheu á
+pressa o interminavel e esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas,
+e, enrolando um lenço por cima da gola do gibão, tornou a affrontar, porem mais
+abrigado d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta
+observação, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se defronte
+do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada no afunilado
+rosto uma verdadeira elegia.</p>
+
+<p>&mdash;Então?!... disse o feitor já sobresaltado com a mimica tetrica do
+sobrinho.</p>
+
+<p>&mdash;Fallai no mau, apparelhai o pau!... É o frade!..</p>
+
+<p>&mdash;Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de pé de um pulo e enterrando a
+carapuça até aos hombros. O frade?!.</p>
+
+<p>&mdash;Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razão, tio. Anda mouro na
+costa.</p>
+
+<p>&mdash;Vem a Senhora D. Magdalena?...</p>
+
+<p>&mdash;Não. Vem elle só. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro.</p>
+
+<p>&mdash;Não te dizia eu, Pedro?... E agora?...</p>
+
+<p>&mdash;O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco. Não
+gosto nada da vinda do sr. Fr. João assim com este segredo.... Receio....<span
+class="pn">{88}</span></p>
+
+<p>&mdash;<em>Valaverunt galhetas</em>, sr. meu tio! como nós diziamos no
+convento!... O caso está feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem
+rabo!.. melhor, porém, o ha de fazer Deus e sua Mãe Maria Santissima, minha
+madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom vinho
+alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber o sr. Fr.
+João, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada.</p>
+
+<p>&mdash;E tu?...</p>
+
+<p>&mdash;Eu... Fico para pôr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! Dê ao sr. Fr.
+João o quarto dos armarios. É essencial.</p>
+
+<p>&mdash;Porquê?...</p>
+
+<p>&mdash;Pela bocca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça esperar sua
+reverendissima e encommende-me nas suas orações á minha devota Senhora Santa
+Anna...</p>
+
+<p>&mdash;Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha lá?..
+Cuidado com a pelle do sr. Fr. João!</p>
+
+<p>&mdash;Vá descansado, tio, não hade haver novidade. Vem ceiar?</p>
+
+<p>&mdash;Venho.</p>
+
+<p>&mdash;Até logo.</p>
+
+<p>E os dous consocios e parentes separaram-se.<span class="pn">{89}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00330000000000000000">III</a></h2>
+
+<p>&mdash;Com que então solto anda o demonio por estes palacios confusos, e
+afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me
+contam! Mau é isso!... E vossê que diz, Romão Pires? Parece ainda mais pasmado
+do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. Antonio Rodrigues, diga-me: aonde é o
+quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. É de casa!</p>
+
+<p>&mdash;Eu, sr. fr. João!... Sei só que não se póde parar aqui da meia noite em
+diante!..</p>
+
+<p>&mdash;Ah! sabe isso!?... Ja não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia
+mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os sustos.<span
+class="pn">{90}</span></p>
+
+<p>&mdash;O sr. Fr. João gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!...</p>
+
+<p>&mdash;Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora Apparecida!... É
+da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou a sr.ª Brizida, pondo as
+mãos.</p>
+
+<p>&mdash;Então o sr. Antonio Rodrigues crê que esta noite haverá ensaio geral de
+Satanaz e da sua côrte, para festejarem a minha chegada?... Muito bem! Cá
+estamos. <em>Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!</em> Pelejaremos
+com as armas espirituaes, que são as melhores, e com as temporaes, que tambem
+servem em certas occasiões! Mas como vamos de ceia?.. No barco o mau tempo
+fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar um carneiro assado! E o vinho,
+aquelle bom vinho de 1655, ainda haverá por cá uma gota d'elle? Ha de haver. O
+sr. Antonio Rodrigues, o melhor copo de Tancos e seus arredores, aposto que não
+está desprovido de munições de guerra?</p>
+
+<p>Antonio sorriu e coçou a nuca.</p>
+
+<p>&mdash;A ceia está ao lume, e não se demora tres credos. Quanto ao vinho....
+esteja vossa reverendissima descansado.</p>
+
+<p>&mdash;Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr.ª D. Maria. Ella
+tem passado peior?...</p>
+
+<p>&mdash;Não, sr.! Peior não. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a minha
+rica menina tem perdido<span class="pn">{91}</span> as côres. Ella é tão
+delicadinha, tão fraca!.. Ó sr. fr. João, a menina não podia ler um nadinha
+menos, mais o sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa?</p>
+
+<p>&mdash;Não pode, não senhor!... acudiu o frade em voz de trovão. Meus sobrinhos
+não se educam para espantalhos de sala!... E vossê é muito atrevida em se
+metter a dar conselhos aonde a não chamam!...</p>
+
+<p>&mdash;Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir uma repostada
+assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. João? Não sou moura, nem perra, nem captiva.
+Pão em toda a parte se come; e se não fosse o amor dos meus meninos, por esta
+(e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma hora mais n'esta casa!</p>
+
+<p>&mdash;Está bom, Brizida de Souza, está bom! Não se inflamme. Sabe que a estimo,
+que todos em casa lhe queremos muito.... mas não me toque n'essa córda. Sei que
+me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que elles não teem uma
+tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa aos meus livros!...</p>
+
+<p>&mdash;«Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» resmungou a velha ainda irada
+e incorregivel.</p>
+
+<p>&mdash;Mas eu é que não quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos,
+mulher!&mdash;bradou o frade fazendo-se côr de purpura e sorvendo duas pitadas com o
+ruido de um furacão..&mdash;Safa! Vossê é capaz<span class="pn">{92}</span> de fazer
+perder a paciencia ao proprio Job!... Bem! Não fallemos mais n'isto, e não faça
+caso dos meus repentes.... Sabe que não sou tão mau como pareço e que trago
+sempre no coração os meus dois rapazes...</p>
+
+<p>&mdash;Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. João berra, esbraceja, é um
+destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos Deus de
+uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o dente calados....</p>
+
+<p>&mdash;Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa intenção. Chame os pequenos. A
+ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella como Santiago aos
+mouros!.. Vamos.</p>
+
+<p>A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra,
+regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. João proclamou
+rival do melhor que se podesse beber á meza de el-rei. As proezas gastronomicas
+do erudito dominicano tinham assombrado o proprio feitor, cujo estomago
+insondavel sepultava sem incommodo alimentos de todas as qualidades, e se
+carregava de quantidades que eram o espanto e maravilha dos que assistiam ás
+suas repetidas campanhas pantagruelicas. D'esta reputação merecida Antonio
+Rodrigues viu-se obrigado a arrear bandeiras. O padre mestre não comia,
+devorava, não bebia, absorvia! Regando de copiosas libações cada iguaria
+rustica, absolvendo as<span class="pn">{93}</span> indigestas com um exorcismo
+culinario, fazendo desaparecer do prato as menos pesadas com milagrosa rapidez,
+dir-se-hia que a fome iberica e peninsular, a fome de dentes caninos e apetite
+insaciavel, tomára a figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos
+uma verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porém, e Fr. João, exalando um
+suspiro, e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por
+concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda suffocada do
+esforço: <em>Deus nobis hæc otia fecit!</em></p>
+
+<p>O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no
+espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o barretinho de
+seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não offerecia de certo a imagem
+dos piedosos e extenuados monges, que em epochas de mais fé edificavam os fieis
+com o exemplo de sua vida frugal e contricta. Parecia mais um hippopotamo
+encalhado, do que um devoto filho de S. Domingos. Os instinctos animaes
+prevaleciam, e a fadiga de uma digestão laboriosa fazia arfar aquella machina
+de mastigação continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admiração
+sincera de creaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas
+atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em oração
+atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o padre<span
+class="pn">{94}</span> coloçal fulminado por um ataque apopletico. Romão Pires
+ainda não podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel
+do irmão do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam no
+brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente com a unha,
+e dizia comsigo, que o frade, medindo as forças pela alimentação, devia
+prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em dous, como o faria qualquer
+mastim faminto ao gato descuidado, que lhe caisse debaixo das prezas.</p>
+
+<p>&mdash;<em>Deus nobis hæc otia fecit!</em> tornou a repetir Fr. João depois de
+uma pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e
+agilidade.&mdash;Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!.. Minha
+sobrinha! Não gostei de a ver tão triste. Que nuvem pesa sobre esse coração?
+São receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver são e escorreito....</p>
+
+<p>&mdash;Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida.</p>
+
+<p>&mdash;Pois quem hade ser senão aquelle cavalleiro andante que se despedio de nós
+e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me agora?</p>
+
+<p>&mdash;Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza.</p>
+
+<p>&mdash;Está bom! Está bom! Não digo mais nada.... Romão Pires sabe que os
+castelhanos tomaram Evora,<span class="pn">{95}</span> e que a estas horas hão
+de estar as mãos com o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem
+vence?!..</p>
+
+<p>&mdash;Essa é boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa Flor.
+</p>
+
+<p>&mdash;Deus o ouça! Bom é ter fé!.. Mas!&mdash;E a larga fronte do frade enrrugou-se
+aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de lhe cobrirem quasi as
+palpebras superiores&mdash;<em>Deus super omnia</em>! murmurou.</p>
+
+<p>Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se com
+estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou impetuosamente
+pelo aposento, com os olhos espantados, as faces contraidas, e os cabellos
+ruivos espetados, representando a imagem viva do terror e da consternação.</p>
+
+<p>&mdash;Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!...</p>
+
+<p>A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de pé, não menos
+assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora.</p>
+
+<p>&mdash;Os castelhanos!?.. gritou Fr. João, saltando da cadeira e empunhando
+machinalmente um bastão enorme, especie de clava, que o acaso lhe mostrou
+encostado a um canto.</p>
+
+<p>&mdash;Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e
+erguendo as mãos.<span class="pn">{96}</span></p>
+
+<p>&mdash;Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a longa
+navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em quanto Romão Pires
+sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiçosa.</p>
+
+<p>D. Maria, branca de cêra e silenciosa, encostou-se á mesa para não cair. D.
+Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes, e a
+fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de côrte, e deu alguns
+passos como se quizesse sair ao encontro do perigo.</p>
+
+<p>&mdash;Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. João. Ás armas! sr. Antonio Rodrigues
+chame os criados!... Façamos de Tancos e de Almourol uma segunda
+Aljubarrota!...</p>
+
+<p>Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de
+impaciencia batia o pé como o corsel insofrido escarva o chão desejoso de
+soltar a carreira.</p>
+
+<p>&mdash;Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a
+noticia, e aonde estão os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com
+extrema serenidade.</p>
+
+<p>&mdash;<em>Do manus!</em> <em>Rem acu tetegiste, puer!</em><a name="tex2html4"
+href="#foot178"><sup>[4]</sup></a> gritou o frade sentando-se commovido e ainda
+tremulo. Façâmos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em primeiro<span
+class="pn">{97}</span> logar: quem é e como se chama este correio de más
+novas?..</p>
+
+<p>&mdash;É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais
+secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue á falla o sr.
+Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a má noticia que nos trouxe?...</p>
+
+<p>&mdash;Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!...</p>
+
+<p>&mdash;E que disse o almocreve?...</p>
+
+<p>&mdash;Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no campo,
+e que as guardas avançadas de D. João de Austria estavam a entrar no Crato!...
+</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha?</p>
+
+<p>&mdash;Não m'o soube dizer.</p>
+
+<p>&mdash;Hum! E o seu almocreve aonde está?...</p>
+
+<p>&mdash;Partiu, caminho de Lisboa.</p>
+
+<p>&mdash;Oh! E não sabe mais nada?</p>
+
+<p>&mdash;Mais nada, sr. padre mestre.</p>
+
+<p>&mdash;Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de
+amigo?...</p>
+
+<p>&mdash;Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!..</p>
+
+<p>&mdash;Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve,<span
+class="pn">{98}</span> durma sobre o caso, como nós vamos dormir, e creia que
+amanhã acorda convencido de que engulio uma peta mais comprida do que a sua
+pessoa, o que já não é pouco.</p>
+
+<p>Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas
+como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e hypocrita de uma
+annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam soffrivelmente
+um sorriso boçal.</p>
+
+<p>&mdash;<em>Macte puer!</em> gritou Fr. João, batendo no hombro de D. Pedro.
+Tiveste mais juizo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e mentira mal
+armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um
+almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma até Almeida! Romão
+Pires, enfie-me na baínha esse eterno chifarote, espanto e censura viva das
+espadas de hoje!...</p>
+
+<p>&mdash;Então vossa reverendissima já não quer que ponha de aviso os criados?
+disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com o
+genro, colloquio, que apesar de curto, não escapara a Fr. João.</p>
+
+<p>&mdash;Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro
+mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma boa ceia
+é o melhor remedio para estas molestias. Aonde é o meu quarto?</p>
+
+<p>O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador<span
+class="pn">{99}</span> ao sobrinho, que lhe respondeu com um aceno quasi
+imperceptivel de cabeça, e, pegando em um maciço castiçal de prata denegrido,
+precedeu a especie de procissão de toda a familia até ao aposento, aonde o
+douto dominicano havia de passar a noute. A porta abria-se no topo do comprido
+corredor do centro; a camara de D. Pedro ficava-lhe á esquerda, e o pequeno
+camarim de Romão Pires á direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados,
+e seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brizida de
+Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. João, nada inculcava de
+notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de peitos e uma sacada,
+cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a par de largos pedaços das
+colgaduras de couro, que em melhores dias as tinham ornado, altos e grandes
+armarios de pau santo. Os tectos altos e enegrecidos e o pavimento carunchoso,
+gemendo e estalando com o peso dos passos, atestavam a velhice e o desamparo.
+Um leito antigo, enorme, com sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de
+pau santo arruinado, e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou
+quatro cadeiras coxas dos pés, ou mutiladas dos braços, a mobilia nada commoda,
+nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruição minava, e
+esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram alguns<span
+class="pn">{100}</span> paineis grandes, retratos de corpo inteiro de
+guerreiros, damas, e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras
+de carvalho, lavradas de talha alta.</p>
+
+<p>O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou, sorrindo-se, ao
+feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas almas do outro mundo.
+Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda cabeça, e Brizida benzeu-se
+devotamente.</p>
+
+<p>&mdash;Bem!... N'esse caso é preciso estar armado e vigilante para a batalha! Se
+escaparmos aos castelhanos do Crato, não quero que acabemos nas garras dos
+trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz favor! Mande trazer
+para aqui o meu alforge, que ficou na sala de entrada. Sr. Pedro Lavareda
+(exquisito nome (!)) é bom caçador por certo, e hade ter uma espingarda de
+mais. Eu tambem gosto de dar o meu tiro de manhã cedo ás perdizes e ás
+calhandras por essa charneca. Conto levantar-me com o sol, e dar um passeio
+pelas fazendas, para tornar a ver estas terras em que não ponho os olhos ha um
+bom par de annos. Para não ir com as mãos abanando levarei a sua espingarda...
+Não a heide tratar mal, descanse!..</p>
+
+<p>&mdash;Essa é boa, sr. Fr. João! A espingarda, eu, e tudo o que mandar estão ás
+ordens de vossa reverendissima....<span class="pn">{101}</span></p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigado!... Olhe não se esqueça de me trazer um frasquinho de
+polvora.</p>
+
+<p>O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a Romão
+Pires, e pondo as mãos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em voz baixa:
+</p>
+
+<p>&mdash;<em>Latet anguis!</em> Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella
+face compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous, elle
+e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão conjurados contra nós... Porquê
+e para quê? O tempo o dirá. Olho vivo, pois, Romão Pires! Se lhe apparecer
+visão, ou espectro, receba-m'o ás cutiladas. Eu cá espero a pé firme os que
+vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes deitar, hade chamuscal-os de
+véras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous velhacos.</p>
+
+<p>De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a
+espingarda e o frasco. Fr. João fallou um pedaço com elles, sempre com a boca
+cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar até pela manhã, e
+despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiança.</p>
+
+<p>&mdash;O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse Antonio
+Rodrigues com o rosto carregado.</p>
+
+<p>&mdash;Veremos, sr. meu tio.</p>
+
+<p>&mdash;Guarda-te de elle te pôr as mãos. É capaz de estourar um boi.<span
+class="pn">{102}</span></p>
+
+<p>&mdash;Melhor o fará Deus!</p>
+
+<p>&mdash;Boas noutes.</p>
+
+<p>&mdash;Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda.</p>
+
+<p>&mdash;Sentido! Nem uma beliscadura!</p>
+
+<p>Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do
+corredor, Fr. João Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e parecia ficar
+inteirado de que as paredes e os armarios não encobriam portas falsas, nem os
+sobrados alçapões. Abrindo o alforge depois, tirou de dentro um par de
+pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as escorvas, e passando á
+espingarda, carregou-a com todo o cuidado, metteu-lhe uma bala, e pousou-a
+engatilhada á cabeceira da cama. Feito isto foi á porta pé ante pé, descerrou-a
+de manso, e em passo subtil encaminhou-se ao camarim de Romão Pires, aonde se
+demorou. Á volta&mdash;davam onze horas&mdash;achou tudo como o deixara, rezou pelo seu
+breviario, e despindo só o habito, abafou-se, conchegou as colchas, recostou a
+cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um somno profundo
+annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato, as almas penadas, e os
+virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade não julgára de bons quilates.</p>
+
+<p>Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito, pesado e
+maciço, arfava, balouçado<span class="pn">{103}</span> como um barco sobre
+vagas inquietas. O frade entre-abriu os olhos. A vela do castiçal estava em um
+terço, e a luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e
+silencioso. Entretanto o leito não parára de dansar, e, facto mais singular
+ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mão, ou braço que lhe
+tocasse. Fr. João deixou-se ficar, tomando sómente uma posição que lhe
+consentisse saltar ao chão de um pulo para travar a lucta com os duendes e
+spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador á cabeceira, e a espingarda ao
+pé. Entretanto, apesar de animoso e resoluto, o suor principiava a
+borbolhar-lhe na testa, e um calefrio suspeito a correr-lhe a espinha dorsal.
+</p>
+
+<p>&mdash;Isto não vae bem! Queria antes ruido, grilhões arrastados.... a scena do
+costume. Esta calada e estes empuchões invisiveis.... sinceramente sería de
+fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!.. Lá se foi a roupa até
+aos pés da cama.... Não gosto da graça! Que é aquillo? As pinturas andam!?..
+Oh!...</p>
+
+<p>Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos cabellos,
+que lhe restavam, erriçados em volta da calva, com as feições contrahidas e a
+boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no painel, que lhe ficava
+fronteiro e que representava um cavalleiro da edade média coberto de toda a
+armadura, mas com o rosto sem viseira e<span class="pn">{104}</span> os olhos
+ameaçadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura, parecia
+mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. João quiz duvidar do testemunho dos
+sentidos, e convencer-se de que era victima de uma illusão. Esfregou as
+palpebras, beliscou os braços para despertar a sensibilidade, mas o retrato
+continuava a adiantar-se, e um sorriso tetrico como que lhe franzia os beiços.
+Ao mesmo tempo os ouvidos afiados do dominicano colheram, não sem grande pavor,
+o som amortecido de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante
+ao gemido doloroso de afflictivo estertor.</p>
+
+<p>&mdash;<em>Vade retro, Satanaz!</em> murmurou saindo da cama cheio de terror.
+<em>Ne nos inducas in tentatione!</em></p>
+
+<p>Apenas soltára a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furacão
+medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes.</p>
+
+<p>Fr. João recuou até ás cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os joelhos,
+e fugir-lhe o animo. Estendendo a mão nas trevas machinalmente, encontrou uma
+das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos apertaram tambem
+machinalmente a coronha.</p>
+
+<p>De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz
+sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma gigantesca
+envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta figura descommunal,
+cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas cavidades dos olhos, e
+acenava<span class="pn">{105}</span> com os longos ossos de esqueleto. O frade
+tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos
+recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas
+espirituaes não produziram effeito, e, apesar da perturbação momentanea, tornou
+a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle espectaculo uma
+visualidade, ensaiada para zombar da sua boa fé. Revestindo-se, pois, de valor
+e decisão, apontou rapidamente ao vulto, que tinha diante, a pistola, que não
+largara da mão, e disparou-a. Observando que o tiro não causára abalo no
+phantasma, pegou depois na outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou
+o gatilho. Uma risada estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o
+spectro, mostrando as duas balas, arremessou-as ao chão, aonde o padre mestre
+as ouviu rolar. Logo em seguida o clarão sumiu-se de subito, espessas trevas
+envolveram o quarto. Fr. João, quasi desmaiado, caiu em uma das cadeiras
+proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os membros, e
+paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo terror.</p>
+
+<p>Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas não eram menos activas e violentas
+nas camaras dos outros hospedes. Romão Pires, apenas se deitára, e escondera a
+cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco em harmonia com os brios de
+suas falladas campanhas, sentio apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe<span
+class="pn">{106}</span> pelos pés o magro e aprumado corpo até o estatelarem de
+pancada e sem dó nas taboas do sobrado. O grito de mêdo e de dor, que soltára
+estremunhado, teve em resposta um côro de risadas em falsete. Brizida de Souza
+acordou espavorida ao frio gelado de um verdadeiro regador de agua que lhe
+entornavam sobre a cabeça, e saltando por a casa em roupas menores, e com a
+boca escancarada, para bradar, era comida no ar por mãos pouco caridosas e nada
+leves, que de empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde
+veiu encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma das
+mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem accusava uma
+força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de pavor, não padecera
+senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito gargalhadas dissonantes, e
+arrastar ferros.</p>
+
+<p>No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque tinham
+chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido, sereno em
+presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na intervenção dos poderes
+infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute sem se despir, e com a espada nua
+ao lado, tinha-se entregado á leitura de um livro novo, que em breve lhe
+absorveu a attenção. Feriu-lhe de repente o ouvido a matinada das investidas no
+corredor e nos aposentos proximos. Apagando<span class="pn">{107}</span> a luz,
+e empunhando a espada, aguardou silencioso.</p>
+
+<p>A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber dous
+vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se debruçava
+sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava d'elle sons roucos
+e medonhos, caiu ás pranchadas sobre o musico do Averno, ao qual o instrumento
+escapou dos dedos, e que, amedrontado, principiava a revolver-se pela casa,
+gritando como um simples mortal derreado por uma sova. O outro phantasma volveu
+logo em auxilio do agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao
+que pareceu, deitou-o pela porta fóra como um vendaval, em quanto o companheiro
+tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.</p>
+
+<p>D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castiçal e a
+candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão um buzio
+dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com lagrimas de tinta
+encarnada, e uma caveira de papelão pintada de amarello.</p>
+
+<p>O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao mesmo
+tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gôtas de sangue, caidas no
+pavimento desde metade da casa até á porta, provaram-lhe que um dos actores do
+drama nocturno retirara ferido e assignalado. D. Pedro pegou<span
+class="pn">{108}</span> no castiçal, e seguindo o rasto de sangue pelo
+corredor, notou que parava no topo, aonde só existia uma parede grossa, sem
+nenhuma saida apparente. Informado do que desejava verificar, voltou atraz, e
+encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á porta viu duas figuras brancas
+ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se affirmar. A velha aia e o dorido
+escudeiro, ambos de joelhos, e ambos transidos de medo e de frio, esgotavam um
+defronte do outro todo o vocabulario de rezas e de interjeições atribuladas,
+sem se atreverem a volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso,
+fallou-lhes, animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a
+camara de Fr. João.</p>
+
+<p>O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quasi exanime na ampla
+cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e a espada nua
+debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas não se moveu.</p>
+
+<p>D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir palavra
+examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo triumphante não
+deixára despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em cima do velador,
+collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para junto da cadeira, d'onde
+o tio, como paralysado, observava tudo silencioso, disse-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Mas o que foi isto?!..<span class="pn">{109}</span></p>
+
+<p>Fr. João respondeu com um suspiro, e, correu a mão pela testa ainda inundada
+de suor.</p>
+
+<p>&mdash;Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!.. Não me dirá o que
+succedeu?!...»</p>
+
+<p>Outro suspiro mais alto.</p>
+
+<p>&mdash;Por onde entraram elles?...</p>
+
+<p>O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco, meneou
+a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio corpo da cadeira, e
+apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos antes soltar-se da
+moldura, e encaminhar-se para elle.</p>
+
+<p>&mdash;Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castiçal e
+correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou: Olhe?!
+</p>
+
+<p>&mdash;O que? disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido e tremulo, como se
+acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade.</p>
+
+<p>&mdash;Venha meu tio, e veja!</p>
+
+<p>De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um botão
+debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo á pressão, abriu-se
+lentamente.</p>
+
+<p>&mdash;Ah!.. exclamou fr. João.</p>
+
+<p>&mdash;Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo.</p>
+
+<p>&mdash;Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as
+côres, a elasticidade dos<span class="pn">{110}</span> membros, e a viveza dos
+olhos. Mas abaixando a vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no chão,
+e uma nuvem torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o
+que succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os
+duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um immenso
+ponto de interrogação.</p>
+
+<p>&mdash;Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro.</p>
+
+<p>&mdash;Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão Pires.</p>
+
+<p>&mdash;Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo?</p>
+
+<p>&mdash;Como de te estar vendo.</p>
+
+<p>&mdash;E metteu-lhe uma bala de calibre?</p>
+
+<p>&mdash;Seguramente.</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem, quer vêr?</p>
+
+<p>E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a
+polvora. Da bala não achou noticia.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os dentes,
+plectorico de colera.</p>
+
+<p>&mdash;Podiam atirar-lhe com tres balas aos pés em vez de duas! Tinham tido o
+cuidado...</p>
+
+<p>&mdash;De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão de pagar-m'o caro!... Só
+atazanados!<span class="pn">{111}</span></p>
+
+<p>&mdash;Dá licença que lhe dê um conselho?...</p>
+
+<p>&mdash;Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais, do que nós todos.
+</p>
+
+<p>&mdash;Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha.</p>
+
+<p>&mdash;Bem! Bem! <em>Do manus!</em> <em>Qui nescit dissimulare nescit
+regnare</em>, acudiu fr. João, esfregando as mãos. Ah! patifes! O que elles se
+terão rido á minha custa!...</p>
+
+<p>&mdash;Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Bôas noites meu tio. Socegue, que
+bem o precisa.<span class="pn">{112}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{113}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00400000000000000000">A CAMISA DO NOIVADO</a></h1>
+
+<h2><a name="SECTION00410000000000000000">I</a></h2>
+
+<blockquote>
+ <p>Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu tempo
+ certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos quaes disserom,
+ que as Leis e justiça erom como teias de aranha nas quaes os mosquitos
+ pequenos, caindo, são reteudos e morrem em ella, e as moscas grandes e que
+ som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as e vão-se.</p>
+
+ <p>Fernão Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoço, na provincia de
+Traz-os-Montes, erguia a cabeça soberba acima dos outros logares. As muralhas
+de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo castello, debruçadas
+sobre um precipicio despenhado, concordavam com a melancolia<span
+class="pn">{114}</span> do sitio e com as sombrias tradições, de que as
+memorias do povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de
+aguias, a vista, relanceando, abraçava toda a campina, mosqueada aqui de
+arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas além, e empolada mais adiante em
+collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam até beijarem o cinto
+de cabeços alpestres, ultima barreira dos horisontes. Ao sopé da montanha,
+aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma torrente. Era o Angueira
+bramindo entalado na bronca penedia do leito. Mais ao longe, na coroa dos
+cerros, os pinheiros meneavam as copas verde-tristes, e os ciprestes solitarios
+balouçavam ao vento as pontas esguias. Por ultimo, ao largo, já quasi aonde não
+enxergavam os olhos, recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de
+Seabra na fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de
+Nogueira, toucadas de gelos eternos.</p>
+
+<p>De tarde, quando começava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens do
+rio em cóllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e envolvia n'uma
+cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu caprichoso, cujas dobras
+sacudia a briza, ora se despregava, deixando entrever confusamente os vultos,
+ora condensado cerrava tudo em volta do solar.</p>
+
+<p>Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo<span
+class="pn">{115}</span> e de nebrina eram tambem as horas dos feitiços. Uma
+princeza encantada junto da fonte de S. João guardava os thesouros enterrados
+de certo magico. Linda como as estrellas, a maldade do encantador condemnara-a
+a arrastar-se todo o anno em figura de serpente. Só na vespera do festejado
+santo, á meia noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, é que o
+fado mau se quebrava até ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a
+moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as escamas
+luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a formosura rara de uma
+belleza admiravel.</p>
+
+<p>Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e
+copados ulmeiros á beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de branco,
+desnastrando as tranças com um pente de ouro, e cantando aos espiritos do ar
+com tão maviosa voz, que se cortava o coração de a ouvir.</p>
+
+<p>Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira já inclinada sobre o
+espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da côr da
+açucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se áquella hora qualquer
+lograsse fallar á moura antes de tornar á fórma de serpente, alcançaria da bella
+captiva, que era fada, as primeiras tres cousas que lhe pedisse; mas os acasos
+ditosos são raros, e em cem annos pelo menos não havia<span
+class="pn">{116}</span> lembrança de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido
+batia os pés, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo, como
+sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas aguas, e uma leve
+nebrina por entre as arvores.<span class="pn">{117}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00420000000000000000">II</a></h2>
+
+<p>Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o
+<em>Justiceiro</em>, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e
+humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer punisse, quer
+premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos, os maus tremiam
+diante da sua face, porque o castigo de suas mãos seria vingador como a ira de
+Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos. No seu tempo a lei era de um
+só rosto e a pena não coxeava atraz da culpa. Entre o crime e a expiação não se
+interpunham annos, promessas, ou favores. Devedor honrado,<span
+class="pn">{118}</span> o principe ajustava logo a sua conta a cada um, e
+pagava-a immediatamente. Só aos moradores de Algouço, coitados! é que ainda não
+chegára a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo sentiam sua fé tão viva
+n'elle, que nas maiores afflicções a voz de todos era sempre: «Valha-nos aqui
+el-rei D. Pedro!» Por fim valeu, e o caso devia ser escripto com lettras de
+ouro pela penna d'aquelle honrado e singelo chronista Fernão Lopes, mais poeta
+do que toda uma arcadia, e grande pintor de vultos e de cousas.</p>
+
+<p>Ainda então se aninhava a povoação de Algouço em volta do castello,
+construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a sombra
+misericordiosa dos braços da sua cruz. Por ambas as encostas até á corôa da
+montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos armados nos
+eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da aldeia,
+pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e arruinadas de velhice,
+estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas e remoçadas dissimulando a
+pobreza com os ares quasi festivos!! «Deus nos livre de tão mau senhor!» era o
+voto dos burguezes de Miranda, compadecidos da escravidão dos moradores de
+Algouço, e ainda não diziam desgraçadamente toda a verdade. Ali o suor de
+sangue regava os banquetes da sala de armas e as pompas quasi regias do
+rico-homem.<span class="pn">{119}</span> O pranto da viuva e as lagrimas dos
+orphãos molhavam suas mãos, sempre alçadas contra a miseria dos desditosos para
+destruir o tecto, que lhes abrigava o berço, e revolver ás vezes até o chão
+sagrado do cemiterio aonde repousavam seus paes, avós, e irmãos.</p>
+
+<p>O mordomo trazia de cór os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A
+vontade do amo e a cubiça dos servos deixavam mendigos á noite os que tinham
+amanhecido remediados!</p>
+
+<p>D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raça o sangue nobre
+confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o casamento de
+Diogo Lopes com a Dama-pé-de-Cabra. Verdadeira, ou fabulosa, a alliança dos
+altivos barões com os demonios tinha sido fertil em crimes. N'uma epocha, em
+que a lança e a espada cortavam as contendas, calando as leis, e calcando os
+direitos, os cavalleiros de Algoço excediam os mais ferozes na braveza, e na
+crueldade ferina. Vêr correr prantos, e derramar sangue, para elles era um
+deleite. Pizar aos pés dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes
+das matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro objecto
+das estrondosas caçadas, em que talavam campos e vinhas a pretexto de montear
+lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta familia impia. Tres esposas, em
+seis annos, haviam passado do leito<span class="pn">{120}</span> nupcial para o
+tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de tão mal agourada união. Rosas
+pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em flor, fanava-as logo?
+O segredo não transpirou dos labios gelados das victimas; mas sabia-se que os
+sorrisos do amor nunca lhes tinham alegrado a vida. Desceram ao sepulcro,
+tristes e silenciosas como existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas
+sombrias portas. D. Sueiro não soltára um suspiro! Se uma lagrima congelada
+n'aquelle coração de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se
+queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida estampava-se na
+fronte maldicta. O crime das tres esposas fôra a esterilidade. O ferro, ou o
+veneno, rompera o laço conjugal. A sepultura quebrára o vinculo apertado no
+altar! Era calumnia? Era verdade? Quem sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes
+podiam espantar os mais ousados.<span class="pn">{121}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00430000000000000000">III</a></h2>
+
+<p>Tinha fama de grande monteiro o castellão. Mál o dia despontava, saltava
+logo no cavallo, e a galope, por sarças e estevaes, por montes e campinas, no
+meio dos caçadores, entre risos, juras e brados, corria até á noite. Uma tarde,
+na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas terras de um colono, e a
+despeito das supplicas do velho, cães e corseis, salvando valados, e calcando
+pavêas, arrazaram em minutos o trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e
+relinchos soavam, sem cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca!
+Tocavam buzinas, estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu<span
+class="pn">{122}</span> atraz da pista. Garcia de Marnel, o dono do campo, fôra
+o melhor besteiro dos sitios. O mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas
+mãos, e a seta da sua aljava atravessara sempre o alvo. De avôs a netos esta
+robusta e laboriosa raça lançára raizes profundas no solo, remido pelo seu
+braço. Os mais fundos affectos prendiam-a á terra rôta e lavrada com o suor do
+trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viçosas as primeiras
+esperanças, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e dos filhos. No
+altar da egreja haviam sido abençoadas as promessas de mutua ternura; e agora
+debaixo da cupula frondosa dos álamos, á sua porta, o avô, no inverno dos
+annos, sentia-se renascer nas graças infantis da neta, mimosa e unica
+vergontea, que sobrevivia dos ramos decepados pela morte no velho tronco da
+familia. Garcia amava tudo isto com o ardor calado, mas intenso das almas
+viris, retemperadas pelo infortunio.</p>
+
+<p>A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabeça, nem o peso da enxada lhe
+desfallecera o braço. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do coração, a
+dor mesmo não lhe prostrára o animo. A esposa, por tantos annos alegria e
+conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho da vida para ir
+esperal-o na mansão de paz. Dois filhos, amparo da sua velhice, orgulho da sua
+alma, ceifados em flôr seguiram a mãe, em quanto o ancião desgraçado,<span
+class="pn">{123}</span> só e de joelhos não via a seu lado no desterro da vida,
+êrmo de consolações, senão a infancia fragil e graciosa de Silvaninha, duas
+vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu sangue. Inclinado sobre
+tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as sombras da morte,
+converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em um extremo louco e quasi
+delirante. Só esta saudade, só este amor o prendia ainda ao mundo, mas com tal
+encanto, que muitas vezes pedira a Deus que lhe dilatasse os dias para não se
+unir aos que o chamavam do ceu, senão depois de a ver mulher e feliz.</p>
+
+<p>Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos pés dos cavallos os fructos de um anno, o
+sangue do velho, remoçado pela ira, pulou nas veias; as faces cavadas coráram
+de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo ao encontro do
+cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas não de mêdo.</p>
+
+<p>Aquelle campo era o dote da neta, e só por causa d'ella é que supportava o
+peso aborrecido de setenta annos de fadigas. «Senhor! Senhor! dizia elle
+correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caçada contra um velho e
+uma donzella!» O rico homem não respondeu. As matilhas e os cavallos,
+precipitando-se, partiam á róda d'elle, envoltos em nuvens de pó, e o afflicto
+lavrador, de pé e coberto, tinha lançado mão das redeas do corsel.<span
+class="pn">{124}</span></p>
+
+<p>Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o látego, silvando,
+cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe ameaçou o
+peito com ás patas «Fóra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do conselho!» Garcia
+desviou-se quasi cego de dôr, e Sueiro, cravando as esporas nos ilhaes, voou á
+redea larga por cima das hortas e ceáras, bradando: «Sus! Abóca!»</p>
+
+<p>O açoute infamante não cortou o corpo, cortou a alma ao desgraçado. Recuando
+para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as pupilas inflammadas,
+poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um rujido surdo expirava ao mesmo
+tempo á flôr dos labios. A vida do homem orgulhoso e máu estava á mercê
+d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o ajustou a seta. O que no intimo peito
+diziam o desespero e a colera era medonho. O rosto não o encobria. Ao apontar o
+tiro a vista ardente elevou-se ao ceu. Pedia perdão, ou auxilio?</p>
+
+<p>De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e
+melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram então dos olhos seccos do
+velho; os braços descairam. Quiz vencer-se e resistir, não pôde. O arco
+fugiu-lhe das mãos, e a bocca murmurou:</p>
+
+<p>«Fôra matal-a tambem a ella!» Enxugando depois as palpebras entregou a Deus
+o castigo do oppressor.<span class="pn">{125}</span></p>
+
+<p>Mas a desgraça entrára no seu campo com Sueiro Lopes.</p>
+
+<p>O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fôra
+aviltado, Garcia não parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o.
+Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos, acudindo
+ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma oliveira plantada
+pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre orphã, confiscada caiu nas
+mãos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha, sem parentes, e protectores,
+teria morrido de frio e de fome se lhe não valesse a caridade dos amigos do
+besteiro. Um deu-lhe a casa e o sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de
+sua gentilesa, soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a
+donzella em edade e formosura; mas á medida que os annos corriam, o rosto
+pallido e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas
+faces as lagrimas e não as entendia. É que o pão da esmola, mesmo dado com
+amor, sempre tráva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando para o
+tecto da casinha, de que fôra desherdada, apertava-se-lhe o coração por medo
+tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da sepultura, aonde seu avô
+descansava, aonde todos os seus dormiam!<span class="pn">{126}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{127}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00440000000000000000">IV</a></h2>
+
+<p>Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoço tinham
+lançado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de terra. Sueiro
+Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras tantas viuvo, cada vez se
+havia feito mais aspero e cruel.</p>
+
+<p>Mal raiava a manhã as buzinas acordavam logo as solidões. Assim que a noite
+se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem, illumminando-se,
+reverberavam o clarão das tochas do festim. Os gritos, as risadas, as
+blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham perto do castello.
+Os<span class="pn">{128}</span> vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os
+deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O abutre já
+não empolgava só a vida e os bens dos villãos; abrazado em ardor impuro cevava
+a sensualidade na honra das filhas da aldeia. Rindo-se do temor de Deus,
+arrastava sem piedade pelo lodo de amores infames a innocencia das mais
+formosas e a virtude das mais honestas. Um sorriso, um olhar d'elle era como a
+fascinação do reptil. Por onde passava, as flores mais frescas, e mais puras
+caiam desmaiadas.</p>
+
+<p>Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces realçava
+a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura contemplativa dos
+olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava os mais suaves affectos. O
+vivo carmim dos labios abotoando as rosas da bocca, redobrava os encantos ao
+sorriso meigo, tornando irresistivel o requebro e a graça virginal da
+phisionomia namorada. A voz, fresca e melodiosa, insinuando-se no coração, era
+o seu maior attrativo. Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para
+quem havia de levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia
+palpitar de esperança, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubiçal-a
+foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso
+sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o não
+fugindo<span class="pn">{129}</span> a suas caricias? Mas ás primeiras palavras
+o rubor do pejo incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de
+esmeralda fuzilou a ira. Soltando as mãos envergonhada e offendida, furtou-se
+ás garras do açor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento saltou-lhe da
+bocca por entre sorrisos lividos.</p>
+
+<p>&mdash;Não serás esposa sem primeiro seres amante! Pedirás de joelhos o que hoje
+engeitas! Sei atalhar os rodeios á corsa. Sei aonde o golpe fere seguro!</p>
+
+<p>Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e
+soffocada não suspendeu a carreira senão á porta da cabana aonde morava a velha
+Aldonça, conselho e consolação de toda a aldeia. As linguas maldizentes
+affirmavam, que a velha não era decrepita, nem mendiga, mas fada, e que sabia
+ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam prodigios do seu poder! Alguns
+chegaram a asseverar até, que ella e a serpente encantada tinham nascido
+irmans, e se juntavam em colloquio á meia noute. Quando a donzella appareceu,
+Aldonça, sentada em um penedo diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a
+e sorriu-se. Enrolou depois a estriga, puxou o fio, e á medida que o fuso
+girava, e que a linha se enrolava, meneava a cabeça, como se estivesse vendo,
+ou ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto.</p>
+
+<p>&mdash;Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim
+assustada. O açor cubiçou a rolinha?<span class="pn">{130}</span> Havia de ser!
+Estava escripto lá em cima, e o que ha de acontecer muita força tem. Conta-me
+tudo. O que te disse? O que lhe respondeste?</p>
+
+<p>Quando Silvana terminou, redarguiu a velha:</p>
+
+<p>&mdash;Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o homem. A
+aguia real já a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes novidades,
+filha! Apesar de agudas, as garras do açor não hão de ferir-te. Vai d'aqui á
+fonte da moura e dize que sim a quem lá encontráres. Não te demores. D'onde se
+não espera vem o remedio. Has de ser feliz!</p>
+
+<p>Ditas estas palavras, abysmou-se em tão profundo scismar, que parecia morta.
+Não quiz saber mais a donzella. Voou á fonte com a fé viva dos quinze annos e
+da esperança. Ao pé do primeiro álamo parou e tremeu. Não vira a serpente, nem
+a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e gentil, filho do mais abastado
+cavalleiro villão das cercanias. Porque lhe esmorece a ella de subito a
+vermelhidão das faces affrontadas da corrida? porque lhe bateu o coração no
+peito tão atropellado? Tello Vasques, o melhor besteiro depois da morte de
+Garcia do Marnel, era o noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas
+disputavam com mais inveja. Debalde! A vista d'elle não se baixára para
+nenhuma, nem a sua bocca se abrira para dizer uma palavra terna á mais galante.
+Silvaninha fôra a sua<span class="pn">{131}</span> primeira e unica paixão.
+Combateu-a e calou-a por muito tempo, com receio dos pais, mas por fim, não se
+podendo conter, decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mão. Ninguem sabia o
+segredo do mancebo senão Aldonça, porque d'essa nada se escondia. E a
+donzella?... Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio
+coração, que, alvoroçado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor. Quando
+parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli. Sem forças
+para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe ás faces o rubor em ondas, e a
+vista não ousou despregar-se do chão. O tremor convulso que a agitava fazia-lhe
+arfar o seio.<span class="pn">{132}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{133}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00450000000000000000">V</a></h2>
+
+<p>Tello Vasques não estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural dos
+olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas. Encobrindo que
+a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe, e uma especie de
+deslumbramento turvou-lhe a vista. A mão suspensa, a cabeça inclinada, o gesto
+cheio de timidez retratavam a vontade presa do enlevo sem força para
+dissimular, e ainda menos para combater. Assim ficaram por minutos. Immoveis,
+calados, contemplando-se, e fallando só com o coração. A felicidade era tão
+grande, que não achavam termos que a pintassem. Quem encostasse<span
+class="pn">{134}</span> a mão ao peito do robusto besteiro, sentindo-o pulsar
+agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem escutasse o palpitar
+ancioso do seio de Silvaninha não precisava perguntar-lhe se tambem amava!</p>
+
+<p>Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro
+recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua,
+sussurrando preguiçosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas relvas que
+aveludavam o chão. Mais longe, a pequena levada afundava-se com estrepito pelas
+fendas musgosas dos penhascos debruçados sobre o valle. Em baixo, no fim da
+encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos, de pomares, e de campos viçosos,
+contrastando com o arvoredo sombrio, que entristecia ao largo a paisagem.
+Depois, a perder de vista, a côr arida e melancolica das charnecas desatando-se
+até aos cabeços da serra, cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens.
+Uma brisa louca, mas amena, doudejáva na campina, ramalhando as folhas,
+brincando com os arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os
+rouxinóes nas moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra
+casava a voz estridula com o coaxar das rãs. As sombras, delgadas ainda,
+começavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam a
+pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino<span
+class="pn">{135}</span> azul do firmamento e o verde fresco das arvores e
+plantas.</p>
+
+<p>Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si
+primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de travessa
+ameaça e disse:</p>
+
+<p>&mdash;Vós aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que quereis
+que digam da pobre Silvana, que não tem senão o seu nome?...</p>
+
+<p>A voz era queixosa, e não irada. O timbre harmonioso avivou no peito do
+mancebo o ardor da paixão. Depois os olhos sorriam animados de malicia tão
+innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperança, leu amor. De repente
+ficou outro. Pegando-lhe na mão, e beijando-a, a voz soltou-se-lhe, e a vista,
+cobrando valor na vista d'ella, tornou-se tão eloquente, tão avida de ternura,
+que ella baixou outra vez as palpebras.</p>
+
+<p>&mdash;Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um não
+podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Dás-me o sim?</p>
+
+<p>O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das faces
+sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se de lagrimas,
+lançaram sobre o rosto as sombras da mais resignada tristesa. Sem retirar, ou
+entregar a mão, que o mancebo prendia nas suas, a neta de Garcia<span
+class="pn">{136}</span> do Marnel, esquecido o conselho de Aldonça, respondeu
+singelamente:</p>
+
+<p>&mdash;Tello, não vos darei já o sim; não quero arrepender-me. O filho de Ayres
+Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, não deve escolher a sua
+noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de Algoço. Amo! Porque hei de
+negal-o? Mas pelo muito amor é que receio acceitar. O que ha de trazer em dote
+a orphã sustentada pela caridade dos visinhos senão lagrimas e saudades
+d'aquelle chão, aonde dorme sem vingança, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar,
+o velho que duas vezes foi seu pai, e que por ella morreu de dôr? Não, Tello!
+Não pode ser!</p>
+
+<p>Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo
+admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dôr fazia
+irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa a magoa
+intima, por tal modo lhe realçavam a formosura, que o besteiro não sabia se era
+anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil attractivos.
+Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle, o homem forte, o
+filho de uma raça leal e rude, como o seculo em que vivia, sentiu rebentar o
+pranto, e não se envergonhou de o deixar correr.</p>
+
+<p>&mdash;A tua vontade, Silvana, será a minha! disse por fim. Mas por amor te
+quero, e não é justo que<span class="pn">{137}</span> por amor te perca. O que
+vale dizer a bocca não, se os olhos, mau pesar teu, estão dizendo sim? Dizes
+que o dote que me trazes é de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas
+lagrimas piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse
+coração é o teu maior thesouro. Hontem não podia viver sem ti, hoje morria se
+te perdesse. Silvana!... Não n'o escondas! O senhor tentou-te de amores, e
+jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus será comnosco. O meu arco não erra.
+A seta vae sempre aonde a mando!</p>
+
+<p>Não cedeu ainda a donzella, mas Tello não se enganára: o coração desmentia a
+bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accêsa em pejo desappareceu como se
+toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado, que no seguinte dia iria Tello
+ao solar pedir licença a Sueiro Lopes. Os noivos sem ella não podiam receber-se
+na igreja de Algoço, e Silvana desejava tanto que seus amores fossem
+abençoados, aonde o tinham sido os de seu pai e seu avô, que o besteiro não
+ousou contrarial-a. Altos juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente
+dos senhores de Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria
+todas as culpas da sua geração, todos os crimes da sua vida.<span
+class="pn">{138}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{139}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00460000000000000000">VI</a></h2>
+
+<p>Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro, correndo
+a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos que findava á
+porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha de monteiros, de
+guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e folgando, em quanto os moços
+de monte sustinham das tréllas as matilhas impacientes, cujos saltos e latidos
+formavam condigno acompanhamento aos alaridos dos caçadores. No meio do
+prestito jovial uma azemola conduzia atravessado em duas varas o corpo de um
+javardo, victima enorme e cerdosa sacrificada depois de aturada<span
+class="pn">{140}</span> fadiga e renhido combate, segundo attestavam os golpes,
+com que suas navalhadas presas tinham descosido os mais valentes e fugosos
+cães.</p>
+
+<p>Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso,
+trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava, entre
+chufas e galhofas, a oração funebre do pingue eremita, que todos haviam corrido
+sem parar desde a madrugada até ao pôr do sol.</p>
+
+<p>D. Sueiro, que se apartára d'elles ao pé da fonte da moura, era o unico
+serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda, e nem
+o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu venabulo, lhe
+arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a levantar. Que magoa,
+ou que remorso entristecia o senhor de Algoço? Nas trevas, nas horas
+atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a visão terrivel, com que na
+raça de Biscaia a sombra de Diogo Lopes avisava a cabeça da familia de estar
+proximo o dia dos ultimos e tardios arrependimentos? Ao pé da fonte apeiou-se,
+e, com a cabeça entre as mãos, alongou a vista até aos montes fronteiros. O
+olhar vago e perdido dizia que o espirito não se achava ali. De repente
+rangeram e estalaram os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma
+figura. Ao ruido o rico-homem levou a mão ao punho da espada, inculcando
+sobresalto sem receio. O mêdo<span class="pn">{141}</span> nunca entrára
+n'aquelle peito inaccessivel á piedade.</p>
+
+<p>&mdash;Quem és? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o robusto
+e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mão, e frechas passadas no cinto, se
+lhe descobria subitamente.</p>
+
+<p>Este não se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas
+accusavam, assomou-lhe ás faces morenas um leve rubor e as pupillas negras
+faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais força os copos da espada.
+</p>
+
+<p>&mdash;Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vós buscava!</p>
+
+<p>A firmesa do tom e a concisão da resposta desagradaram ao cavalleiro.
+Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os beiços.</p>
+
+<p>&mdash;O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoço, fóra do seu
+castello, n'este logar deserto?</p>
+
+<p>A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo.</p>
+
+<p>&mdash;Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em vossas
+terras a donzella que ha de ser minha mulher.</p>
+
+<p>&mdash;Ah! Só isso?! E é bonita e moça a tua noiva? Por força a conheço então.
+Como se chama?</p>
+
+<p>Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as
+furias do ciume se levantaram<span class="pn">{142}</span> no peito do mancebo.
+Conteve-se, porem, e retorquiu:</p>
+
+<p>&mdash;A mais formosa da aldeia. É a Silvana do Marnel.</p>
+
+<p>&mdash;A Silvaninha? A perola de Algoço? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pões
+alto o pensamento, villão. Muito alto! Manjares de senhor não se dão a servos.
+</p>
+
+<p>Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o braço a Tello. A mão procurou
+a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram no peito do
+rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas disfarçou. Continuando a
+pungir o mancebo com mofas, proseguiu:</p>
+
+<p>&mdash;Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor
+cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o resgate de
+um barão? Cuida o villão que eu havia de enterrar na sua posilga a roza dos
+nossos sitios?</p>
+
+<p>&mdash;Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume.</p>
+
+<p>&mdash;Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o pé no estribo e sacudindo o látego
+no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com mil ameaças nos
+olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisavô te juro, que tantas noutes dormirás
+na cisterna do meu castello, que de lá te arranquem cego e doudo!<span
+class="pn">{143}</span></p>
+
+<p>&mdash;Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. Só Deus sabe aonde vós
+dormireis hoje!</p>
+
+<p>O cavalleiro ja tínha cravado esporas no corsel, e começára a levantar o
+galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as, parou o
+cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a vista sobre elle,
+disse-lhe rindo affrontosamente:</p>
+
+<p>&mdash;Villão! Não has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer de
+fios de ortigas, nascidas na sepultura do avô, duas camisas para mim, dou
+licença que se chame tua mulher. É uma joia por um ceitil! uma das camisas será
+o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar com ella no dia
+seguinte. Até lá que não vos torne a ver a ambos!</p>
+
+<p>A esperança acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco, fugiu-lhe
+a luz da vista, e sentiu-se tão prostrado, como se o sangue se lhe esvaisse
+todo. Quiz fallar e correr, mas os pés arraigavam-se ao chão. A mão inerte não
+se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi suspendido a vida. Quando volveu a si
+para olhar em roda, avistou ao longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito,
+e pareceu-lhe ouvir estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou
+então ao ceu a vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu
+a noute sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas<span
+class="pn">{144}</span> arvores sem elle o sentir; e as primeiras gotas da
+chuva, nuncias da tempestade, orvalharam-lhe a cabeça nua, sem o despertarem da
+amargura. Ao rebombo dos trovões é que acordou, e que principiou a afastar-se
+com passos vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illusões lhe sorrira
+alegre, e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanças da
+existencia.<span class="pn">{145}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00470000000000000000">VII</a></h2>
+
+<p>&mdash;O açor encontrará a aguia. Sinto-a já voar! Não chores, Silvana, serás
+feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar na
+aljava. Esta noite, á meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja. Ajoelhai e
+rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e estão n'ella
+viçosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e duas, e traz-m'as no
+regaço á fonte da Moura. Vespera de S. João ha de torcer-se o fio. As duas
+camisas não hão de faltar. A semana que vem será a do noivado e a do enterro.
+Ouvis dobrar o sino? A aguia não tarda. Enxugai os olhos.<span
+class="pn">{146}</span></p>
+
+<p>E a velha Aldonça, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da
+feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condição, que só
+daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da sepultura do avô
+duas camisas.</p>
+
+<p>&mdash;Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando.</p>
+
+<p>&mdash;Por que não fugimos nós? acudiu elle a meia voz.</p>
+
+<p>&mdash;Por que ninguem foge á sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a mão
+alva e breve de Silvana entre as suas. Não vos demoreis. Á meia noite, ao
+romper da lua, todos tres na fonte da Moura!</p>
+
+<p>Era já escuro, e as estrellas começavam a scintillar. Suspirava a viração
+por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de sombra as
+sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza silvestre
+entrelaçava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da egreja, entre
+rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um arco no topo. Ali
+repousava de setenta annos de edade e de fadigas o avô da donzella. Segundo
+afirmára Aldonça, uma seára de ortigas vestia o chão. Como o pranto se corre
+pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a oração sobe pura e fervorosa de seus
+labios ao regaço dos anjos, que vão depor aos pés do Senhor! Mais afastado,
+Tello, tambem de joelhos, orava com ardor; mas aquelle peito, menos
+brando,<span class="pn">{147}</span> mistura com as preces vozes de vingança.
+Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o pó dos que amára se
+volvera ao pó, principiou a cumprir as ordens de Aldonça. A duas e duas foi
+apanhando as ortigas. Quando acabava chispou no outeiro mais proximo a labareda
+da primeira fogueira, e soou na voz de bronze do sino o primeiro repique. A lua
+rompia de traz da serra, e o seu clarão branco allumiava toda a campina. Era a
+hora aprazada. O mancebo deu a mão a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro
+d'alma, que nenhum fallou em todo o caminho.</p>
+
+<p>Quando chegaram não viram senão uma serpente, fugindo por cima dos
+penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha Aldonça
+appareceu de repente ao pé da fonte, e acenou-lhes. Recebendo das mãos da
+donzella as tres regaçadas de ortigas, banhou-as outras tantas vezes na agua
+encantada, pronunciando algumas palavras a meia voz. Passados minutos tirou-as
+do tanque reduzidas a feveras finas, como o fio que tece a aranha. Tres dias
+decorreram. Em todos elles não cessou de girar o fuso da velha.</p>
+
+<p>No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear.</p>
+
+<p>Quando a semana pendia só de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo
+pela choupana, olhou, e viu Aldonça á porta, cozendo com Silvana<span
+class="pn">{148}</span> uma tela tão branca e transparente, que deslumbrava.
+</p>
+
+<p>&mdash;Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta pressa?
+</p>
+
+<p>E o cavalleiro não tirava a vista dos dedos afilados da donzella que voavam
+sobre a costura.</p>
+
+<p>&mdash;Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabeça.
+Aquella é a camisa do noivado, esta é a camisa do enterro. Ortigas do cemiterio
+nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres dias estarão
+acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o morto no caixão.
+</p>
+
+<p>Ouvindo-a, o rico-homem mudou de côr e largou as redeas ao cavallo. A velha,
+vendo-o correr, exclamou, meneando a cabeça:</p>
+
+<p>&mdash;Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa!<span
+class="pn">{149}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00480000000000000000">VIII</a></h2>
+
+<p>Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se á saida
+do estreito portal, e mais de um moço airoso, de rosto bronzeado, distrahe a
+vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos cheios de
+reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos pés, o borburinho e
+os alaridos das creanças, saltando pelo adro, animam de ar festivo a scena
+popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se encaminha de vagar para a sua
+morada, estendendo a benção pelos aldeãos,<span class="pn">{150}</span>
+Silvana, sempre pallida, ampara no braço delicado o corpo de Aldonça. Os
+villãos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as mulheres
+acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras, tomam-as por
+intercessoras de suas petições. Encostado a uma oliveira antiga, Tello, de
+braços crusados, e com o arco a tiracollo, não desprega a vista namorada da
+neta de Garcia.</p>
+
+<p>Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as está esperando, um homem
+de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos, apressando o passo,
+adianta-se, e chega primeiro. É simples o seu trajo. Guarda-coz de ipre verde
+desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo estofo, sem plumas, assenta com
+desgarre fragueiro sobre os cabellos pretos, cujos anneis se debruçam sobre o
+cabeção da golla. Era de villão o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam
+condição mais nobre. Nas pupillas inquietas, e por vezes desvairadas,
+retrata-se a indole ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos.</p>
+
+<p>As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaços a
+serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas rapidas ao
+semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam as feições de um
+caracter afeito a dominar, de um coração ferido de golpe irreparavel, de uma
+mão que no combate das paixões<span class="pn">{151}</span> nem sempre ha de
+conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos.</p>
+
+<p>Afagando com a mão direita as compridas barbas, e concertando com a esquerda
+o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que não póde contar
+ainda quarenta annos, e que entrára na egreja sem nenhum dos fieis se lembrar
+de o ter visto nunca, começou á saida a fallar com uns e com outros, fazendo
+perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por entre o povo veiu collocar-se no
+sitio, aonde o descobrimos diante de Aldonça e Silvana, tão proximo de Tello
+que este não perdeu palavra do que disse. Sem saber porque, o besteiro, de
+ordinario cioso e assomado, em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia
+do monteiro. Parecia que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia
+n'este momento a sua sorte. Era tão grande n'elle a tranquillidade de animo,
+como se a noiva adorada estivesse debaixo da protecção d'aquelle que duas vezes
+chamára pae. A velha Aldonça, apenas divisara o hospede, exclamou como
+rejuvenescida de repente:</p>
+
+<p>&mdash;Filha! Não t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto.
+Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder. Muita
+fé em Deus e na justiça de Elrei D. Pedro.</p>
+
+<p>&mdash;Não é a fé que me falta, redarguiu melancholica<span
+class="pn">{152}</span> a donzella, é a esperança, mãe!... Elrei está longe e
+tão alto, que não podem vencer de certo metade do caminho as queixas da orphã.
+</p>
+
+<p>&mdash;Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a
+formosura de Silvana. Pegando-lhe na mão, ajuntou:</p>
+
+<p>&mdash;El-rei D. Pedro, filha, vê e ouve de longe. Conta-me tuas magoas.</p>
+
+<p>Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava, sentiu
+renascer a esperança, e insensivelmente socegou do maior cuidado. Ora pallida,
+ora córada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte dolorosa do avô, as
+lastimas da sua infancia, e os amores infames que a perseguiam. As palavras
+pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que vingativa, procurava atenuar as
+crueldades do senhor. Quando terminou, o desconhecido, sorrindo-se, e
+soltando-lhe a mão, disse:</p>
+
+<p>&mdash;Descansai! Está perto El-rei D. Pedro. É como se vos ouvisse. Mandai a
+Sueiro Lopes a camisa da mortalha, não a pediu de balde! Se o cavalleiro fôr
+desleal, ou se vos quizer tirar por força, enviai-me este signal. Deus e El-rei
+serão comvosco!</p>
+
+<p>Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello,
+accrescentava:</p>
+
+<p>&mdash;É o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... Não córeis, Silvana!
+Se o besteiro fôr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle em Miranda.<span
+class="pn">{153}</span> Adeus! Não vos esqueça!... Ao primeiro perigo, um
+recado e o signal. O mais fica para mim.</p>
+
+<p>Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos pés
+da noiva, que Aldonça animava, annunciando-lhe proximo o termo de seus
+pezares.<span class="pn">{154}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{155}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION00490000000000000000">IX</a></h2>
+
+<p>Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do
+castello de Algoço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas
+escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes; alma
+negra do senhor, aonde alcançára com o braço deixára sempre vestigios
+dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia, o villico (era o
+seu titulo n'aquelle tempo) não pôde conter o sorriso, rosnando por entre
+dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de Silvana desprezou o riso, e
+continuou o caminho; mas á porta despediram-o asperamente, respondendo<span
+class="pn">{156}</span> que Sua Mercê repousava, e que ninguem o despertaria
+para dar audiencia a um villão. A principio Tello pôde sopear a ira, mas a
+pouco e pouco a altercação irritou-o, e levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de
+repente á porta. Inteirado do motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e
+perguntou:</p>
+
+<p>&mdash;A que vens aqui?</p>
+
+<p>&mdash;Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu elle
+friamente.</p>
+
+<p>O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que não soube vencer, sacudiu-lhe
+os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que vira na choupana
+de Aldonça, e tremeu pela primeira vez da sua vida. Depressa se recobrou e
+medindo o mancebo com indizivel escarneo, replicou:</p>
+
+<p>&mdash;Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da sepultura
+de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha mortalha. Palavra de
+cavalleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de faltar. As camisas?...</p>
+
+<p>&mdash;Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o panno.
+</p>
+
+<p>Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o noivo
+de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem mostrava não
+ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro tremia. Sobre o peito,
+em lettras côr de sangue, viu as iniciaes de seu nome e pondo<span
+class="pn">{157}</span> o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das
+tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito.</p>
+
+<p>&mdash;Bem! exclamou. Silvana é tua se a achares. Quanto á mortalha.... Veremos
+esta noite quem a veste!</p>
+
+<p>Não esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho da
+choupana de Aldonça. Um presentimento vago advertia-o de perigo incerto. A
+tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a bôa nova, que levava, devia
+alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado. Rugindo no pinhal o
+vento arrancava por entre as ramas das arvores gemidos lugubres. No céu
+apagavam-se as estrellas umas apóz outras debaixo do pesado toldo de nuvens, e
+a lua encobria-se de todo por cima do ultimo outeiro. Sem saber porque,
+sentiu-se Tello desalentado. Elle, o melhor caminheiro dos arredores, o
+besteiro mais destro dos contornos, deu por si mais de uma vez arrastando os
+passos e tremendo. Quando chegou á choupana, achou a casa êrma e a porta
+arrombada, e acabou de crer que os pressagios não mentem. Bastava olhar para
+dentro para adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e
+luz mortiça deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as
+arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em um
+feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar<span class="pn">{158}</span> as
+ideias. O golpe inopinado tinha-lhe quebrádo as forças. Nem o animo, nem a
+razão se prestavam a ajudal-o.</p>
+
+<p>Fôra rapto? Fôra vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia!
+Saltaram-lhe então as lagrimas, e a dôr foi tão penetrante, que a não se
+encostar caíra desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes, e
+percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do Castello, e
+áquella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para ella eram as portas
+do sepulchro. <em>É tua se a achares!</em> dissera o roubador. A quem iria
+Tello pedir justiça? Luctando com a agonia sentiu que ia enlouquecer. Mas,
+louco, o que restava á donzella senão a morte depois da infamia? No auge da
+desesperação, erguendo as mãos, bradou atribulado: «Senhor! A vingança é mais
+vossa, do que minha! Não embainheis a espada da justiça!»</p>
+
+<p>No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no hombro.
+Olhou. Viu Aldonça. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito que iam
+soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a um logar
+deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco de uma arvore,
+disse-lhe rapidamente:</p>
+
+<p>&mdash;Monta!</p>
+
+<p>O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha
+ajuntou:<span class="pn">{159}</span></p>
+
+<p>&mdash;O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva. Corre,
+que por tua felicidade corres, e não pares senão na villa de Miranda. Busca os
+Paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és, dize que procuras o
+senhor. Já o viste. É o monteiro d'esta manhã. Dá-lhe a trompa, conta-lhe o
+succedido, e faze o que te mandar. Antes de sol nado estaremos todos juntos
+outra vez. As duas camisas terão cumprido o seu fado.</p>
+
+<p>O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu direito
+á villa.<span class="pn">{160}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{161}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION004100000000000000000">X</a></h2>
+
+<p>Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os
+penedos do seu leito! Que trovões rebramam as aguas despenhadas em cascatas
+contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a noute se cobre
+de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos bramidos do vento responde
+o estampido longinquo da tempestade. Os relampagos fuzilam sobre as eminencias.
+</p>
+
+<p>Lá em cima, nos penhascos fragosos, que villa é aquella, cujas torres negras
+estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a margem do<span
+class="pn">{162}</span> rio, Tello Vasques não sente fadiga; o brioso corsel
+devora a distancia. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo
+atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pára no terreiro, defronte
+dos Paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os degraus a dois e
+dois até ao portal da primeira sala. Os guardas intentam detel-o; mas sem
+voltar a cabeça, e continuando, responde: busco o senhor! Ninguem o suspende.
+De corredor em corredor, de aposento em aposento chega á sala de armas. Entre
+os cavalleiros, que passeiam, divisa o monteiro desconhecido com o mesmo
+guarda-coz ainda.</p>
+
+<p>Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de armas
+brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em caprichosos ornatos
+enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados sustentam os fechos da abobada. O
+monteiro, apercebendo Tello, encaminhou-se para elle. O mancebo vinha tão
+soffocado, que pôde dobrar apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi
+preciso que elle sorrisse para o besteiro narrar o successo, que o trazia
+áquella hora. Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com a vista inflammada
+bradou:</p>
+
+<p>&mdash;Levai-me aos pés de El-rei D. Pedro. Dizem que não conhece grandes, nem
+pequenos. A donzella, que roubaram, é pura e santa como a mais pura e nobre de
+vossas filhas. Não deixeis sem castigo<span class="pn">{163}</span> o
+rico-homem por ella ter nascido no berço de um villão!</p>
+
+<p>Á medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de
+aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e jovial,
+empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O gesto infundia medo
+até nos que se achavam distantes. Quando Tello poz termo a suas queixas, e
+levantou a vista, recuou assustado. A expressão dos olhos do seu protector era
+terrivel. Ensanguentados e delirantes mais se assimilhavam ás pupillas
+encandeadas do tigre, do que a olhar humano. A voz cheia, mas presa,
+gaguejando, fallava tão convulsa, que pouco se entendia. Adiantando-se, o
+desconhecido clamou em grandes brados:</p>
+
+<p>&mdash;Lourenço Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas
+filhas!</p>
+
+<p>O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Lourenço Gonsalves
+era o corregedor da côrte. Ninguem ousaria chamal-o assim senão el-rei. Tello
+prostrou-se cheio de esperança.</p>
+
+<p>&mdash;Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado á porta! A minha
+capellina de aço! Gonsalo Vasques de Goes, escrivão da Puridade! Chamae os
+desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentença. Por alma de Ignez
+de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de<span
+class="pn">{164}</span> nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino,
+e mais uma justiça de minhas mãos no livro de suas chronicas!</p>
+
+<p>Fallando assim enlaçava a capellina, calçava as luvas de gamo, e com o
+açoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.</p>
+
+<p>O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns
+apoz outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atraz do cavallo o
+proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de Algoço. Por cima
+d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes. A procella abria os
+ceus em clarões lividos, desarraigando as arvores annosas. Quando D. Pedro
+assomava diante da porta do castello, um vulto surgiu, que tomou-lhe as redeas,
+convidando-o a apeiar-se. De um salto estava em terra e levantando a cabeça via
+as frestas da torre illuminadas. O vulto travou-lhe do braço, e disse:</p>
+
+<p>&mdash;É ali!</p>
+
+<p>&mdash;Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiança.</p>
+
+<p>Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu á chave e ao impulso.</p>
+
+<p>&mdash;Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz.</p>
+
+<p>Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro
+subiu. No topo da escada<span class="pn">{165}</span> de caracol, a scena que
+se lhe representou excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar
+do nome Justiceiro se perdoasse aquelle crime.</p>
+
+<p>Era espaçoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto
+mergulhava-se em meia escuridão. No centro da sala, em um leito, com as mãos
+ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a bocca até os ais lhe
+suffocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados de lagrimas pediam a Deus a
+morte, remedio extremo da infamia. Sueiro Lopes, defronte, sorria-se medindo
+com a vista a queda lenta da areia d'uma ampulheta. A seu lado o villico
+silencioso corria os dados sobre a mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com
+as ortigas do tumulo, estava nas mãos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas
+como punhaes, atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos
+senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos.</p>
+
+<p>&mdash;Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo por
+um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste não. A tua prenda foi esta
+mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e os anjos porque
+chamavas! Brada pelo besteiro villão, que preferiste ao rico-homem! Grita por
+el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço as portas chapeadas d'este
+castello ainda são<span class="pn">{166}</span> mais fortes. Em esta areia, que
+está por instantes, cahindo toda...</p>
+
+<p>Faltou-lhe a voz. A mão erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo
+dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um clarão
+terrivel. A pesada acha reluzia em suas mãos.</p>
+
+<p>&mdash;Traidor! bradou o principe. Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe
+todas as portas. Vais ver!... Villão! ajuntou fallando ao villico. Solta as
+mãos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta bem os
+grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais comparecer na
+presença de Deus!</p>
+
+<p>O orgulho indomito do cavalleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto que
+pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu:</p>
+
+<p>&mdash;Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro
+Gonsalves? O rei carrasco, falso á sua alma e á alma de seu pae? Imaginas que
+farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a quem entra de noite e
+á má fé chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os laços da captiva. No alto e no
+baixo, irado e pagado, não entrego o castello senão a Deus. A mim, homens
+d'armas!</p>
+
+<p>&mdash;Deus é justo! clamou el-rei, cuja furia não conhecia limites. O matador de
+tres mulheres levanta-se<span class="pn">{167}</span> contra o seu rei. O
+perseguidor cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como
+villão ás mãos dos teus villãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha
+acha. Villãos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido. Sou D.
+Pedro! Sou o rei! Esse que ahi está, rebelde e traidor, prendei-m'o em quanto
+os meus não chegam!</p>
+
+<p>A presença e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens
+d'armas temiam, mas não amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida. Depois de
+curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou á mercê de el-rei.</p>
+
+<p>&mdash;Passae um laço na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle subir,
+e cingi-lhe o nó na garganta! proseguiu o soberano indignado.</p>
+
+<p>&mdash;Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, caírá sobre
+vós e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-hão contas d'ella, verdugo! gritou
+o cavalleiro estorcendo-se.</p>
+
+<p>&mdash;A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas não é
+cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro.</p>
+
+<p>Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico
+enrolava-lhe o laço. Commovida e tremula, Silvana lançou-se supplicante aos pés
+do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:<span
+class="pn">{168}</span></p>
+
+<p>&mdash;Pedes perdão a Deus e ao teu rei?</p>
+
+<p>&mdash;Não!</p>
+
+<p>O pé do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras do
+cavalleiro.<span class="pn">{169}</span></p>
+
+<h2><a name="SECTION004110000000000000000">XI</a></h2>
+
+<p>A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do castello,
+annunciou á aldeia alvoroçada a vinda do monarcha. Tello Vasques apparecia á
+porta quando Sueiro Lopes expirava.</p>
+
+<p>&mdash;Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro.
+Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A justiça
+do rei ainda andou mais veloz do que o amor!</p>
+
+<p>Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na capella, e
+os noivos recebiam a benção nupcial, tendo el-rei D. Pedro por seu
+padrinho.<span class="pn">{170}</span></p>
+
+<p>Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não esqueceu nunca foi a
+justiça que fizera em Algoço a severidade do monarcha.</p>
+
+<p>O castello devolveu-se á corôa, e parece que fôra doado depois ao
+primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi verdade
+ou fabula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de fazer cavalleiro um
+villão, como de justiçar como villão um cavalleiro.<span
+class="pn">{171}</span></p>
+
+<h1><a name="SECTION00500000000000000000">ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM
+SALVATERRA</a></h1>
+
+<h2><a name="SECTION00510000000000000000">I</a></h2>
+
+<p>O Senhor D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias. A
+verdade é que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em Lisboa
+estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O proloquio fundava-se
+na habilidade mechanica do monarcha como torneiro, e no caracter dominador do
+marquez como ministro.</p>
+
+<p>Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de flôres, os
+bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e a brisa doudejava
+indiscreta arregaçando o lenço á donzella que passava, ou roubando um beijo á
+rosa<span class="pn">{172}</span> perfumada. Tudo eram alegrias e canticos...
+os rouxinoes nas moutas, o coração nos amores, e a naturesa nos sorrisos ao sol
+esplendido que a dourava.</p>
+
+<p>Uma tourada real chamára a côrte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam
+n'estas occasiões menos opprimidos. Não os assombrava tão de perto a privança
+do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o amphiteatro
+pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na bocca de todos. Por
+cumulo de venturas o marquez de Pombal ficára em Lisboa, retido pelo conflicto
+com o embaixador de Hespanha.</p>
+
+<p>Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o
+enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em alta
+voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio, crucificando-o outros
+sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e os fidalgos puritanos eram
+pelo hespanhol, e pediam a Deus que os rebates da guerra proxima despenhassem o
+plebeu nobilitado. Os magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o
+marquez e respondiam com meios sorrisos ás fogosas jaculatorias dos zelosos do
+throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa ás
+concessões exigidas imperiosamente pelo governo castelhano.</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito<span class="pn">{173}</span>
+de sessenta mil homens entrará em Portugal e fará...</p>
+
+<p>&mdash;O quê? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta assestada e
+no tom mais indifferente.</p>
+
+<p>&mdash;Fará entender a rasão e a justiça de el-rei, meu amo, a Sua Magestade e a
+vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo o ministro
+fulminado.</p>
+
+<p>Sebastião José de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira, e
+cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente:</p>
+
+<p>&mdash;Sessenta mil homens muita gente é para casa tão pequena, mas, querendo
+Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa hospedal-a.
+Mais pequena era Aljubarrota e lá couberam os que D. João de Castella trouxe.
+Vossa excellencia póde responder isto ao seu governo.</p>
+
+<p>E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou:</p>
+
+<p>&mdash;Bem sabe vossa excellencia que póde tanto cada um em sua casa, que mesmo
+depois de morto são precisos quatro homens para o tirarem!</p>
+
+<p>O embaixador saíu jurando por <em>Dios y la Virgen Santisima</em> e o
+marquez preparou-se para a guerra. O caso é como dizia o nosso Zeferino na
+<em>Sobrinha do Marquez</em>, que Sebastião José de Carvalho foi um grande
+ministro e que fez muito pela nação.<span class="pn">{174}</span> Hoje ha menos
+quem responda assim á lettra ás ameaças dos estrangeiros. Berra-se muito,
+dorme-se a somno solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello
+de madrugada e está salva a patria!</p>
+
+<p>O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes medias.
+Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a industria nunca acabou
+de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos maus governos que succederam ao
+seu, e tambem do povo que não quiz trabalhar deveras... Mas vamos aos touros
+reaes. D'esses é que o ministro não gostava nada. Queria-os ao arado e não á
+farpa, e parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o
+Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem,
+tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e á nação.</p>
+
+<p>Mas el-rei D. José, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros não
+admittia reflexões. N'isto era rei a valer e Bragança legitimo. Os fidalgos
+sabiam-o e por isso disfructavam dôces prazeres&mdash;a satisfação do gosto
+nacional, e a contradicção da vontade do ministro. Desatendel-a sem perigo e
+pela mão do soberano era para elles um deleite e um triumpho.</p>
+
+<p>N'estas funcções não vigorava a severidade das ultimas pragmaticas. Outro
+motivo de jubilo. Quem<span class="pn">{175}</span> queria podia arruinar-se em
+luxuosos vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os
+veludos e sedas de fóra, talhados á franceza, resplandeciam constellados de
+perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais vistosas côres
+desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas cabelleiras. As damas
+ostentavam as graças de seus donaires e tufados, e emoldurando o bello oval dos
+rostos nos penteados caprichosos sorriam-se para os gentis campeadores, e seus
+olhos cheios de luz e de promessas estimulavam até os timidos.</p>
+
+<p>Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou el-rei, e
+logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se ondear um oceano
+de cabeças e de plumas. Na praça resoam brava alegria as trombetas, as
+charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros, fidalgos distinctos todos,
+com o conto das lanças nos estribos e os brazões bordados no veludo das
+gualdrapas dos cavallos. As plumas dos chapeus debruçam-se em matisados
+cocares, e as espadas em bainhas lavradas pendem de soberbos talins. Os
+capinhas e forcados vestem com garbo á castelhana antiga. No semblante de todos
+brilha o ardor e o enthusiasmo.</p>
+
+<p>O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O seu
+trajo, cortado á moda da<span class="pn">{176}</span> côrte de Luiz XV, de
+veludo preto, fazia realçar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete
+sobresaiam as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas
+bordadas deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O
+conde não excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os
+seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais, porém
+animadas de grande expressão, e o fulgor das pupillas negras fuzilava tão vivo
+e por vezes tão recobrado, que se tornava irresistivel. Filho do marquez de
+Marialva, e discipulo querido de seu pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e
+talvez da Europa, a cavallo, a nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam
+os olhos. Elle e o corsel, como que ajustados em uma só peça, realisavam a
+imagem do centauro antigo.</p>
+
+<p>A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso corsel,
+arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta, obrigando o
+cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que uma dama escondesse
+torvada no lenço as rosas vivissimas do rosto, que de certo descobririam o
+melindroso segredo da sua alma, se em momentos rapidos como o faiscar do
+relampago podesse alguem adivinhar o que só dois sabiam.</p>
+
+<p>El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e disse
+voltando-se:<span class="pn">{177}</span></p>
+
+<p>&mdash;Por que virá o conde quasi de luto á festa?</p>
+
+<p>Principiou o combate.</p>
+
+<p>Não é proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem
+assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de notavel.
+Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se corriam
+desembolados, á hespanhola. Nada diminuia, portanto, as probabilidades do
+perigo e a poesia da lucta.</p>
+
+<p>Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um touro
+preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas compridas e
+reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de grande ligeireza,
+e movimentos rapidos e bruscos, signal de força prodigiosa. Apenas tocára o
+centro da praça, estacou como deslumbrado, sacudiu a fronte e escarvando a
+terra impaciente, soltou um mugido feroz no meio do silencio, que succedera ás
+palmas e gritos dos espectadores. Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos
+as trincheiras, fugiam á velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres
+cavallos expirantes denunciavam a sua furia.</p>
+
+<p>Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa. O
+touro pisava a arena ameaçador e parecia desafiar em vão um contendor. De
+repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da féra e a
+hastea flexivel do rojão<span class="pn">{178}</span> ranger e estalar,
+embebendo o ferro no pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma
+acclamação immensa do amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas
+e charamellas encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a
+galope por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o
+cavallo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde,
+curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem afrouxar a
+carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo depois com o
+touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o estreitando em volta
+d'elle os circulos até chegar quasi a pôr-lhe a mão na anca.</p>
+
+<p>O mancebo despresava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que seus
+olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro com a ponta
+da lança. Precipitou-se então o animal com furia cega e irresistivel. O cavallo
+baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na perna, não pôde levantar-se.
+Voltando sobre elle o boi enraivecido arremessou-o aos ares, esperou-lhe a
+quéda nas armas, e não se arredou senão quando, assentando-lhe as patas sobre o
+peito, conheceu que o seu inimigo era um cadaver.</p>
+
+<p>Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja consummada
+a tragedia e não havia expirado ainda o echo dos ultimos aplausos.<span
+class="pn">{179}</span></p>
+
+<p>De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias, emudeceu o
+circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fóra dos camarotes, fitavam a praça
+sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como para seguir a alma, que
+para lá voava envolta em sangue.</p>
+
+<p>Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o chão, um
+gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadaver com uma lagrima
+de fogo. Uma dama desmaiada nos braços de outras senhoras soltára aquelle grito
+estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar no peito.</p>
+
+<p>El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado.</p>
+
+<p>A côrte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dôr.</p>
+
+<p>Mas o drama ainda não tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade iam
+cortar de novas magoas o peito a todos.</p>
+
+<p>O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na gentileza
+do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando radiosos a cada sorte
+feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se de uma nuvem o semblante do
+ancião. Quando o conde dos Arcos sahiu a farpeal-o, as feições do pae
+contrairam-se e a sua vista não se despregou mais da arriscada lucta.<span
+class="pn">{180}</span></p>
+
+<p>De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos, apertando
+depois as mãos na cabeça. Os seus receios haviam-se realisado. Cavallo e
+cavalleiro rolavam na arena, e a esperança pendia de um fio tenue! Cortou-lh'o
+rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho, luz da sua alma e ufania de
+suas cãs, não proferiu uma palavra, não derramou uma lagrima; mas os joelhos
+fugiam-lhe tremulos, e a elevada estatura inclinou-se vergando ao peso da magua
+excruciante.</p>
+
+<p>Volveu, porém, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto
+tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e hirtos
+revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas da juba de um
+leão irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo, mas terrivel, o
+sombrio clarão de uma colera, em que todas as ancias insofridas da vingança se
+accumulavam.</p>
+
+<p>Em um impeto a presença reassumiu as proporções magestosas e erectas como se
+lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando por acto
+instinctivo a mão ao lado, para arrancar da espada, meneou tristemente a
+cabeça. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho n'este dia que se
+convertera para a sua casa em dia de eterno luto!</p>
+
+<p>Sem querer ouvir nada, desceu os degraus<span class="pn">{181}</span>
+amphiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta annos lhe não
+branqueassem a cabeça.</p>
+
+<p>&mdash;Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas ordens!
+disse um camarista detendo-o pelo braço.</p>
+
+<p>O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no
+interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado d'um
+pensamento immutavel. Desviando depois a mão, que o suspendia, baixou mais dois
+degraus.</p>
+
+<p>&mdash;Sua magestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não quer
+perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece ás ordens de el-rei?!...
+</p>
+
+<p>&mdash;El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancião em voz aspera,
+mas sumida. Aquelle é o corpo de meu filho! e apontava para o cadaver. «Está
+ali! Sua magestade póde tudo menos desarmar o braço do pae, menos deshonrar os
+cabellos brancos do criado que o serve ha tantos annos. Deixe-me passar, e diga
+isto.»</p>
+
+<p>D. José vira o marquez levantar-se e percebera a sua resolução. Amava no
+estribeiro-mór as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da sua
+bocca não ouvira senão a verdade, e a idéa de o perder assim era-lhe
+insupportavel. Apenas lhe constou que elle não accedia á sua vontade, fez-se
+branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado<span class="pn">{182}</span>
+para fóra da tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe.
+</p>
+
+<p>A esse tempo já o marquez pisava a praça, firme e intrepido como os antigos
+romanos diante da morte. Dentro do peito o seu coração chorava, mas os olhos
+aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por elles. Primeiro do
+que tudo queria a vingança.</p>
+
+<p>Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de pé. Os semblantes
+consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa contensão
+do espirito, em que um sentido parece concentrar todos.</p>
+
+<p>Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, não tem egual. O
+fogo, que lhe presta vida e forças, é a desesperação. Deixae-o ir, e de
+joelhos! Saudae a magestade do infortunio!</p>
+
+<p>O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo na
+fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do chão a
+espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes. Passou depois
+a capa no braço e cobriu-se. Decorridos instantes estava no meio da praça e
+devorava o touro com a vista chammejante, provocando-o para o combate.</p>
+
+<p>Cortado de commoções tão crueis, não lhe tremia o braço, e os pés
+arraigavam-se na arena como se um<span class="pn">{183}</span> poder occulto e
+superior lh'os tivesse ligado repentinamente á terra.</p>
+
+<p>Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e tão profundo, que poderiam
+ouvir-se até as pulsações do coração do marquez se n'aquella alma de bronze o
+coração valesse mais do que a vontade.</p>
+
+<p>O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e irado,
+mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada.</p>
+
+<p>Os ilhaes da féra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as pernas
+vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansaço. O ancião zomba da sua
+furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os golpes sem recuar um
+passo.</p>
+
+<p>O combate demora-se.</p>
+
+<p>A vida dos espectadores resume-se nos olhos.</p>
+
+<p>Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça.</p>
+
+<p>A immensidade da catastrophe immobilisa todos.</p>
+
+<p>De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O velho
+aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos ajoelharam para
+resarem por alma do ultimo marquez de Marialva.</p>
+
+<p>A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a
+pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a espada
+fuzilar nos ares e logo apóz sumir-se até aos copos entre a nuca do animal. Um
+bramido, que atroou<span class="pn">{184}</span> o circo, e o baque do corpo
+agigantado na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama.</p>
+
+<p>Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o
+joelho, com a força do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver. Sem
+fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraçar-se com o corpo do filho,
+banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos.</p>
+
+<p>O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão da morte, veiu apalpar o sitio
+aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem vida ao lado
+do cavallo do conde dos Arcos.</p>
+
+<p>N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram.
+El-rei, de pé e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal, coberto
+de pó e com signaes de ter viajado depressa.</p>
+
+<p>Sebastião José de Carvalho voltava de proposito as costas á praça fallando
+com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo.</p>
+
+<p>&mdash;Temos guerra com a Hespanha, senhor. É inevitavel. Vossa magestade não
+póde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se
+continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal á vela.</p>
+
+<p>&mdash;Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os touros
+reaes emquanto eu reinar.</p>
+
+<p>&mdash;Assim o espero da sabedoria de vossa magestade.<span
+class="pn">{185}</span> Não ha tanta gente nos seus reinos, que possa dar-se um
+homem por um touro. El-rei consente que vá em seu nome consolar o marquez de
+Marialva?</p>
+
+<p>&mdash;Vá! É pae. Sabe o que ha de dizer-lhe...</p>
+
+<p>&mdash;O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como está o conde.
+</p>
+
+<p>El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praça em toda a
+magestade de sua elevada estatura, levantou nos braços o velho fidalgo,
+dizendo-lhe com voz meiga e triste:</p>
+
+<p>&mdash;Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia são para darem
+exemplos de grandeza d'alma e não para os receberem. Tinha um filho e Deus
+levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e el-rei, meu
+amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa excellencia.</p>
+
+<p>E travando-lhe da mão, levou-o quasi nos braços até o metterem na carruagem.
+</p>
+
+<p>D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca mais
+se picaram touros reaes em Salvaterra.<span class="pn">{186}</span></p>
+
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div class="rodape">
+<p><a name="foot326" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> A prematura morte do
+illustre auctor d'este livro não lhe permittiu concluir este admiravel
+romancinho. As paginas, porém, escriptas representam um tal primor de
+litteratura, que fôra falta imperdoavel condemnal-as á obscuridade. Os amadores
+de boas letras de certo nos agradecerão a resolução tomada de não os privarmos
+de alguns momentos de não muito vulgar leitura.</p>
+
+<p style="text-align:right;">E<small>DITOR</small></p>
+
+<p><a name="foot327" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> O castello de
+Almourol já figurava na epocha da dominação dos romanos. D. Gualdim restaurou-o
+das ruinas e povoou a terra por carta de foral.</p>
+
+<p style="text-align:right;">E<small>LUCIDARIO.</small> Tom. II p. 346&mdash;374.</p>
+
+<p><a name="foot323" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> A balça ou bandeira
+do Templo era bipartida de branco e preto com a cruz vermelha no centro e a
+lenda: <em>non nobis, sed nomini tuo da gloriam</em>.</p>
+
+<p><a name="foot178" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> Concordo. Puzeste o
+dedo na difficuldade, menino.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p><span class="pn">{187}<br>{188}</span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align: center;">
+<p>DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS</p>
+
+<p>Por L. A. REBELLO DA SILVA</p>
+
+<p>Remette-se <small>FRANCO DE PORTE</small> para a provincia.</p>
+
+<p>Correspondencia a Mattos Moreira &amp; C.ª. LIVRARIA EDITORA. Praça de D.
+Pedro, 68, Lisboa</p>
+
+<p>PREÇO 600 RÉIS</p>
+
+<p>LISBOA</p>
+
+<p>TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA &amp; C.ª</p>
+
+<p>67, Praça de D. Pedro, 67</p>
+
+<p>1873</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Luís Augusto Rebelo da Silva
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS ***
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+Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
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+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
+</body>
+</html>