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+The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03, by
+Alexandre Herculano
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+
+Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03
+
+Author: Alexandre Herculano
+
+Release Date: November 30, 2009 [EBook #30566]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 ***
+
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+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
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+ *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
+ existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
+ versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
+ o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
+ corrigidos.
+
+ Rita Farinha (Nov. 2009)
+
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+
+OPUSCULOS
+
+
+
+
+OPUSCULOS
+
+POR
+
+A. HERCULANO
+
+
+SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
+SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
+SOCIO CORRESPONDENTE
+DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
+DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES)
+DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
+DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
+
+
+TOMO III
+
+CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS
+
+
+TOMO I
+
+
+LISBOA
+
+
+VIUVA BERTRAND & C.^a--SUCCESSORES, CARVALHO & C.^a
+Chiado, 78
+
+M DCCC LXXVI
+
+
+
+
+Lisboa--Imprensa Nacional
+
+
+
+
+Contem este volume diversos escriptos sobre duas questões historicas. A
+primeira, que se refere ás tradições fabulosas ácerca da batalha de
+Ourique, quasi que não tem valor algum á luz da sciencia. Expôr
+semelhantes tradições era, por assim dizer, refutá-las, e perante a
+historia tal refutação seria de sobra. A segunda, relativa á situação
+das classes servas na Hespanha desde o VIII até o XII seculo, versa
+sobre a legitimidade da solução que adoptei n'um dos mais difficeis
+problemas que se me offereceram ao escrever o terceiro volume da
+Historia de Portugal na epocha decorrida desde a fundação da monarchia
+até o fim do reinado de Affonso III. As phases da lenta transformação do
+escravo das sociedades antigas no obreiro, cidadão livre das sociedades
+modernas, obscuras ainda em parte na historia da civilisação e do
+progresso humano entre as nações d'além dos Pireneus, muito mais o são
+áquem delles. As divergencias, e divergencias profundas, entre os que se
+dedicam a estudar o assumpto nascem dessa obscuridade, e é dos debates
+que elle pode suscitar que ha de surgir a final a luz.
+
+Como tantas vezes succede, não foi a questão grave e difficil que
+alevantou arruido: foi a insignificante que despertou as attenções e que
+produziu viva agitação na imprensa e fóra da imprensa, dividindo em dous
+campos o publico que lê. É que na primeira interessava apenas a
+sciencia, e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade e as
+preoccupações dos espiritos vulgares, que constituem o grande numero. Se
+a religião era extranha ao assumpto, ou antes ganhava na suppressão de
+uma pia fraude, perdia com isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje
+mais que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres em que parece
+querer amortalhar o catholicismo. Escrevendo um livro serio, eu
+affastara brandamente para o limbo das fabulas aquellas ficções
+ridiculas, porque era forçoso fazê-lo. Nem tivera a intenção do
+escandalo, nem a cousa o valia. A maioria, porêm, do clero não o
+entendeu assim.
+
+Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual este volume começa, está a
+resumida noticia das aggressões de que fui alvo e que por algum tempo
+supportei com resignação ou indifferença, resignação ou indifferença em
+que provavelmente, hoje, que sei melhor o que taes aggressões valem,
+continuaria a permanecer. Estava, porêm, então naquella epocha da vida
+em que a paciencia christan não é a virtude mais vulgar do homem. O
+leitor ajuizará se os prelados portugueses foram ou não imprudentes em
+tolerarem ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes manifestações
+da ignorancia e do interesse ferido.
+
+Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das classes servas da Peninsula
+no decurso dos seculos VIII a XII, destinado a combater as opiniões do
+erudito Muñoz y Romero, é bem de crer que ao meu illustre adversario não
+faltassem argumentos para contrapôr ás objecções que lhe fiz; mas
+affastaram-no do debate outros estudos, até que veio salteá-lo a morte,
+quando a Hespanha tinha a esperar os melhores fructos da alta
+intelligencia daquelle incansavel cultor da historia. Buscando ambos a
+verdade, a discussão encetada conduzir-nos-hia, provavelmente, a
+modificarmos, tanto um como outro, as nossas ideas, talvez absolutas em
+demasia, e a estabelecermos uma doutrina solida sobre tão espinhoso
+assumpto. Entretanto, ainda hoje me persuado de que, para nos
+aproximar-mos, seria elle que teria de andar mais caminho. Julgá-lo-hão
+os que, depois de lerem attentamente o meu modesto trabalho, examinarem
+com igual attenção o escripto de Muñoz y Romero e a apreciação desse
+escripto por Mr. de Rozière.
+
+ Janeiro de 1876
+
+
+
+
+
+A BATALHA DE OURIQUE
+
+
+
+
+I
+
+EU E O CLERO
+
+
+AO PATRIARCHA DE LISBOA
+
+(_Junho, 1850_)
+
+
+É debaixo da impressão de vivo desgosto, e cedendo emfim ao impulso de
+justa indignação, que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa
+que merece um animo turbado por offensas immerecidas, e o favor que
+sempre encontrei em vossa eminencia me fazem esperar que esse favor não
+padecerá quebra, se alguma phrase mais forte do que eu desejara me fugir
+da penna ao escrever este papel; papel que, solemnemente o declaro desde
+já, não tem por objecto, como alguem poderia suppôr, pedir desaggravo
+das offensas a que alludo. De natureza são ellas, que nem preciso nem
+quero que outrem as puna. Sei e posso eu fazê-lo, se cumprir, de um modo
+que sirva de escarmento á ignorancia perversa e á hypocrisia insensata.
+O meu intuito é apenas rogar directamente a vossa eminencia, e
+indirectamente aos demais prelados de Portugal a cujas mãos chegar esta
+carta por intervenção da imprensa, que, obstando a novas provocações da
+parte do clero, me poupem a dar uma dura licção a individuos, que,
+desconhecendo os deveres do sacerdocio e incapazes de sentimentos de
+moderação, tentam excitar as paixões odientas de um fanatismo que já
+nem, talvez, o povo comprehende contra um homem que nunca lhes fez mal,
+e que nem sequer se lembra delles, porque tem cousas um pouco mais
+sérias em que cogitar.
+
+Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume de uma Historia de
+Portugal, que tem feito certa impressão no paiz, e ainda fóra delle. Na
+benevolencia com que esse livro foi recebido por naturaes e extranhos
+nada ha provavelmente que deva lisonjear o amor-proprio litterario do
+auctor, mas ha uma prova de que o publico reconheceu nelle certa
+independencia de espirito e uma estricta imparcialidade, para a qual o
+longo e severo exame dos factos o habilitava. Como eu o previra na
+advertencia posta á frente daquelle primeiro volume, a sinceridade da
+narrativa, estribada em monumentos indisputaveis, destruindo muitas
+dessas tradições, mais ou menos improvaveis, que deturpam a historia de
+todos os povos, suscitou contradictores. Era cousa natural. As
+manifestações de colera, as injurias vertidas contra mim na imprensa,
+não podiam causar-me nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a
+guardar silencio perante ellas e a proseguir na senda que abrira, sem me
+distrahir com luctas estereis. A verdade fica, e as preoccupações
+passam. Ao mesmo tempo a minha resolução inabalavel era, e é, desprezar
+todos os respeitos humanos que se contraponham á voz da propria
+consciencia. Todavia o não nos affastarmos dos seus dictames é empenho
+que não sae de graça neste mundo de paixões pequenas e más; e bem louca
+esperança seria a minha, se a tivesse de evitar os effeitos de uma lei
+universal. Era por isso que estava resolvido a esgotar resignadamente o
+meu calix.
+
+Pouco depois da publicação do primeiro volume da Historia de Portugal,
+n'um periodico litterario da universidade de Dublin um critico inglês
+punha em duvida se eu, que expurgara de lendas fradescas a historia do
+berço da monarchia, teria esforço bastante para avaliar como cumpria as
+longas e violentas dissensões dos reis da primeira dynastia com os
+bispos e com a curia romana. Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma
+conjunctura publicava-se em Lisboa o meu segundo volume, onde se
+continha a narrativa de boa parte daquellas discordias. Ahi me parece
+ter dado documento de que os receios manifestados na imprensa inglesa
+não eram dos mais bem fundados.
+
+Mas esse volume, accendendo novas coleras, despertou em alguem a idéa de
+me refutar de modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de Braga, da
+antiga metropole, onde ainda devem estar bem vivas as memorias do
+veneravel Caetano Brandão, do illustre prelado que pretendia reformar o
+breviario e missal bracharenses por causa _das suas intoleraveis
+patranhas e falsidades_ (phrase do grande arcebispo), o meu nome foi
+lançado ás multidões ladeado dos epithetos de hereje, de impio e de
+outros semelhantes. Um egresso fanatico e ignorante (como o são
+centenares de sacerdotes no meio do nosso clero, que não recebe ha
+muitos annos nem educação moral nem educação litteraria) cubriu-me de
+injurias diante de um concurso numeroso, segundo me informaram, porque
+no meu livro usara do direito de historiador, qualificando devidamente
+essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, violentas e
+cubiçosas que cingiram a thiara papal, e que se chamaram Gregorio,
+Innocencio ou Honorio. A principio acreditei que isto não passara de um
+impulso de fanatismo individual; mas em breve me desenganei de que o
+facto pertencia a um systema organisado de aggressão. A imprensa
+politica noticiou procedimentos analogos para comigo em outros lugares
+do arcebispado. Se o objecto das invectivas era o mesmo, se igual a
+violencia das expressões, ignoro-o: mas o que me pareceu evidente foi
+que havia, como disse, em tão insolito proceder um systema uniforme e
+combinado.
+
+Calei-me. A minha equanimidade foi bastante para tolerar este ataque
+brutal á liberdade do pensamento; foi tamanha como a do respectivo
+prelado, que guardou silencio, e que devera ter advertido o seu clero de
+que, não havendo eu offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me
+limitado a julgar os homens e os factos da epocha sobre que escrevia,
+por mais erradas que fossem as minhas opiniões, ellas não podiam ser
+qualificadas publicamente de hereticas, concitando-se assim contra mim a
+credulidade popular. Um sermão não é o meio de refutar erros
+litterarios, e muito menos o é qualificar taes erros como offensas da fé
+para os transformar em crimes religiosos. Em semelhante terreno a lucta
+sería impossivel, porque delle brota o risco pessoal, ou pelo menos a
+perda da reputação moral para um dos contendores, ou melhor direi para a
+victima indefensa, amarrada ao poste desse novo genero de patibulo. Os
+ignorantes olhariam com horror para o Luthero ou Calvino que surge na
+terra da patria, e esse odio publico é uma verdadeira coacção á
+liberdade legitima do escriptor: legitima, digo, porque, apesar de
+tantas declamações e queixas, é evidente que no meu livro não ha uma
+unica palavra que offenda a orthodoxia da igreja. Se eu tivesse
+proferido alguma heresia, os prelados portugueses, e em particular vossa
+eminencia como meu pastor, não seriam capazes de faltar aos seus mais
+estrictos deveres, deixando de me advertir do erro com caridade
+evangelica, e de me condemnar se eu insistisse n'elle. Era então que aos
+bispos, e não a qualquer desses cirzidores de farrapos de sermões
+velhos, desses inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do senso
+commum, denominados, por antiphrase, prégadores ou oradores, que era
+licito, que cumpria lançar sobre mim o anathema.
+
+A guerra desleal que uma parte do clero (digo uma parte, porque no seu
+gremio ha muitos homens leaes e verdadeiramente illustrados) me
+declarara no norte do reino não tardou a apparecer no meio-dia, no
+recincto da propria capital. O primeiro commettimento foi tentado n'uma
+solemnidade notavel, e n'um dos templos mais frequentados de Lisboa.
+Nesse acto o absurdo da aggressão nasceu antes da impropriedade do
+logar, do que das formulas empregadas pelo aggressor, que se absteve de
+injurias grosseiras. Lisboa não é Braga, e o negocio precisava aqui de
+maior circumspecção. Entretanto a tentativa desagradou geralmente, e eu
+pensei que emfim me deixariam em paz.
+
+Não succedeu assim. Ultimamente na minha propria parochia, e dous dias
+depois n'outra igreja da capital, fui de novo arrastado perante as
+turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no primeiro caso houve a
+intenção de se me administrar face a face uma correcção fraterna, o
+calculo falhou. Creio que vossa eminencia me faz a justiça de acreditar
+que não me deleito excessivamente em ir ouvir máus sermões de ha
+sessenta annos, ou traducções detestaveis de fragmentos de sermonarios
+franceses, declamadas, ou antes carpidas, em tom ainda mais detestavel.
+O annuncio de um sermão é para mim por via de regra a espada percuciente
+do anjo do paraiso flamejando á porta do templo. Salvo em rarissimos
+casos, não haveria forças que podessem arrastar-me a assistir aos partos
+da oratoria, que, por irrisão sacrilega, se denomina sagrada. A
+resistencia dos meus nervos em tal conjunctura seria mais forte do que a
+propria vontade.
+
+Em Braga, e creio que nos outros logares daquella diocese, a censura
+tinha sido fulminada contra a liberdade com que falei dos chefes da
+igreja nos seculos médios, da curia romana, e talvez dos bispos
+portugueses de então. Ao menos lá a invectiva tinha certa originalidade.
+No patriarchado, porém, as accusações, postoque menos brutaes, tiveram o
+defeito de ser um verdadeiro plagio.
+
+Narrando no primeiro volume da Historia de Portugal o recontro de julho
+de 1139 em Ourique, reduzido ás dimensões que suppús e supponho exactas,
+ommitti a fabula do apparecimento de Christo, como cousa indigna da
+gravidade da historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente para
+com o sublime Fundador do Christianismo. Apenas n'uma nota alludi a essa
+tradição absurda, affirmando que se estribava n'um documento falso, o
+celebre juramento attribuido a Affonso I, juramento que ainda existe no
+supposto original. Eis o grande escandalo para os prégadores de Lisboa.
+Confesso que ahi tractei esse embuste com o desprezo que elle merece,
+porque, na verdade, conhecendo eu muitos diplomas forjados com maior ou
+menor destreza, este é, sem contradicção, o mais inhabilmente executado.
+
+As poucas palavras que dediquei a semelhante ninharia suscitaram o zelo
+de alguns individuos, persuadidos de que eu tinha despedaçado, com as
+tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi, o palladio da
+independencia nacional, que bem fraca independencia sería se estivesse
+como adscripta á crença ou á descrença n'um conto de velhas. Houve até
+um pobre homem, o qual, no meio das discordias civis que assolaram o
+reino pouco depois da publicação do meu livro, dirigiu aos povos do
+Alemtéjo uma proclamação, em que affirmava que, ligado por um pacto
+infernal com os membros do governo então derribado, eu ia demolindo as
+glorias portuguesas para vendermos de commum accordo a independencia da
+patria. Não me recordo agora do preço, nem de quem foi o comprador, mas
+a venda parece que era indubitavel.
+
+Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e folhetos avulsos contra
+mim. Nada mais legitimo; nada mais liberal. Se os corsarios da palavra
+de Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de um logar aonde eu não
+posso subir, do alto do pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco
+malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu tão ridiculo como o
+instrumento da apparição, se disso me queixasse a vossa eminencia ou aos
+outros prelados do reino. A imprensa é uma estacada onde nos julgadores
+do combate, e sobretudo de um combate litterario ou scientifico, ha já
+um grau de illustração, que até certo ponto affiança uma decisão justa.
+Reptado ahi, eu podia erguer a luva, ou deixar, quando assim o
+entendesse, que o livro delatado servisse por si mesmo de resposta aos
+accusadores. Em um e outro caso procederia livremente, e não ficaria,
+como no campo em que sou aggredido, collocado debaixo de uma coacção
+moral. Ahi os reverendos prégadores, que tem tido a condescendencia de
+tractar da minha humilde pessoa, até poderiam appellidar-me, se
+quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado: eu respondia-lhes
+que elles estavam bem livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos
+perfeitamente pagos.
+
+Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a Historia de Portugal, que
+me chegaram ás mãos, tractavam justamente desse gravissimo negocio da
+apparição, que em parte me tem feito victima, por me servir de uma
+phrase do padre Isla, da _dialectica eloquencia dos selvagens da
+Europa_. Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo que produziam no meu
+animo um sentimento de tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda
+quando não estivesse, como ha pouco disse a vossa eminencia, no firme
+proposito de evitar luctas estereis. A tristeza que senti á leitura
+daquelles folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia a que
+tinham chegado neste paiz os estudos historicos. N'um livro que, com
+bons ou maus fundamentos, mudava completamente o aspecto até aqui
+attribuido ao complexo dos successos do nosso paiz, na infancia da
+sociedade portuguesa, havia por certo mais de uma inexacção, mais de um
+defeito importante, como obra que era de homem--de homem desajudado
+n'uma empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos proprios recursos
+e forças. Ácerca, porém, das materias positivas, historicas,
+susceptiveis de serio exame, apenas appareceu, que me conste, um artigo
+no periodico litterario a _Revista Universal_, e outro no _Observador_
+de Coimbra. As duas publicações avulsas que me vieram ás mãos, ambas,
+como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar o milagre da
+apparição, milagre do qual (atrevo-me quasi a affirmá-lo) ainda que os
+meus adversarios o tivessem sustentado com boas razões _historicas,_ me
+parece que eu, vossa eminencia, toda a gente, que não seja algum leigo
+capucho, haviamos de continuar a rir, cada qual segundo o papel que
+acceitou nesta grande comedia humana--uns em publico, outros em
+particular.
+
+Agora pelo que respeita aos motivos que, além da razão geral já dada, me
+inhibiam de responder aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia
+que eu dilate um pouco o discurso a este proposito. Não é a digressão
+alheia ao assumpto. O meu silencio ante contendores francos e leaes, que
+me buscavam com armas corteses no campo da imprensa, interpretou-o a
+ignorancia como um signal de fraqueza. Não contribuiria isto para
+despertar a audacia dos meus anathematisadores? Não seria eu proprio o
+culpado da minha affronta? Desculpe vossa eminencia uma comparação,
+acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de se referir a uma fabula, e
+nós achamo-nos n'uma questão de fabulas. Quando o leão jazia moribundo,
+foram as feras valentes e generosas que arrostaram o perigo. O onagro só
+veio ferir-lhe a fronte pendida, depois que, averiguada a situação do
+rei das florestas, se persuadiu de que podia injuriá-lo a seu salvo.
+
+Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar o silencio que o gerou.
+É a esse alvo que se dirige a digressão de que falo.
+
+Um dos folhetos era escripto por um ancião respeitavel, não só pelas
+suas cans, mas tambem pelos seus padecimentos physicos, consideração
+fortissima para mim, que entendo ser sempre digna de respeito a
+desgraça; era producção de um homem chegado áquelle quartel da vida, em
+que o espirito parece eivado da ruina do corpo, que vem annunciando a
+proximidade do tumulo. Com a mão na consciencia eu protesto a vossa
+eminencia que ainda hoje sentiria remorsos, se, na força da vida e do
+pouco talento que Deus repartiu comigo, não tivera sabido domar os
+impulsos de um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar a
+afflicção sobre o leito de dor do afflicto, para saborear o triste e
+vergonhoso prazer de ouvir os apupos do publico a um pobre velho, que
+queria, que tinha direito de morrer em paz abraçado com as tradições da
+sua infancia; que precisava de protestar contra um homem, o qual, embora
+involuntariamente, ia prostituir-lhe no coração idéas e affectos, amigos
+constantes da sua larga existencia. Se Deus podesse fazer milagres
+absurdos e inuteis, como o da apparição, eu preferiria ver-me convertido
+em cirzidor e carpidor de farrapos pareneticos a ter de accusar-me de
+uma acção, que não sei qual seria mais, se covarde, se despiedada.
+
+Quanto ao outro folheto, composto por um homem de talento, instruido, e
+no vigor da idade, não militavam as mesmas razões de conveniencia moral;
+militavam, porém, outras assaz fortes, e de natureza analoga. Affastadas
+as considerações poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos
+colligidos naquella publicação a favor do milagre de Ourique dividiam-se
+em duas categorias, ou antes eram apenas dous argumentos. Um consistia
+no consenso de certo numero de escriptores, todos de epochas mais
+recentes que o meado do seculo XV. A futilidade desta argumentação é
+evidente. Os _classicos_ são respeitaveis como mestres de lingua; mas
+como testemunhas de um facto, que se diz acontecido pelo menos trezentos
+annos antes que elles escrevessem, de nada servem. A qualidade de
+classicos não exclue a de credulos, e nem sequer a de inventores de
+patranhas. A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda, a de Palmeirim
+d'Inglaterra são escriptas por tres classicos como Barros, Jorge
+Ferreira, e Francisco de Moraes, e eu supponho, não sei se me engano,
+que esses livros não encerram senão mentiras. Se o auctor queria
+provar-me a perpetuidade da tradição de Ourique, não devia esquecer o
+_criterium_ estabelecido por Vicente de Lerins, e com elle pelo senso
+commum, para distinguirmos das falsas as tradições verdadeiras: _Quod
+semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est_. Era-lhe necessario
+mostrar-me essa tradição através de todos os seculos, e sobretudo dos
+seculos onde ella desapparece, os tres immediatos ao supposto facto.
+Confesso a vossa eminencia um peccado, e alliviarei delle a consciencia,
+porque o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia foi
+demasiado orgulhosa para descer a refutar semelhantes objecções. Que me
+importava, de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo,
+nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu tempo e monumentos para
+averiguar os successos verdadeiros e as suas causas, circumstancias e
+effeitos. Genealogico d'embustes é mistér para o qual me falta
+inteiramente a vocação.
+
+A segunda categoria de argumentos, ou antes, o segundo argumento em
+favor do milagre era a citação de dous textos precisos, de duas
+auctoridades contemporaneas, que relatavam o successo. Uma era nada
+menos que a de S. Bernardo; outra a de uma copia coeva do juramento,
+copia conservada em Roma, e transcripta no volume 51 da _Symmitica
+Lusitana_, manuscripto da Bibliotheca Real, de cuja existencia é
+abonador o illustre Cenaculo. Este argumento estava longe da obvia
+fraqueza de est'outro. A tradição ía assim prender-se do seculo XV ao
+XII, embora obscurecida no periodo intermedio. Alguem imaginará,
+portanto, que para não responder a objecções deste valor apparente só me
+conteve o proposito de evitar disputas escusadas. Não foi assim.
+Contiveram-me considerações de maior monta. Se o eram ou não, vossa
+eminencia o julgará.
+
+Antes de tudo, observará vossa eminencia que eu digo _disputas
+escusadas_. Digo-o, porque esses testemunhos contemporaneos não bastam,
+como vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres da idade
+média. Á excessiva devassidão e bruteza aquelles tempos de trevas uniam
+uma crença fervorosa, confundida com superstição extrema. A idéa
+religiosa formulava-se em tudo, na guerra, na vida civil, nos affectos
+do coração, nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma idéa
+domina assim a sociedade, converte-se em prisma através do qual as
+cousas se illuminam com as côres que elle lhes transmitte. O maravilhoso
+introduzia-se em todos os factos em que as imaginações, possuidas de uma
+especie de febre moral, achavam pretextos mais ou menos plausiveis para
+lh'o attribuir. Accrescia a tendencia innata dos homens para indagar as
+causas dos diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente de ignorancia e
+rudeza (ambiente em que vive boa parte do nosso clero), essa tendencia
+dilatava-se, respirava pelo unico resfolgadouro possivel, pela facil
+theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel. Nas chronicas d'então
+quasi que o miraculoso é o regular, e o natural a excepção. Dos
+chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado é o benedictino
+inglês Matheus Paris. Todavia centenares, que não dezenas, de milagres
+absurdos são gravemente narrados na _Historia Major_. Permitte-me vossa
+eminencia que lhe recorde um exemplo do modo de vêr daquellas eras? Sem
+sairmos do reino, nem do seculo XII, e até limitando-nos á vida do
+personagem a quem se attribue o singular favor de Ourique, temos á mão
+um exercito de milagres, postoque em sentido inverso ao da apparição.
+Alludo aos desgostos de S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do
+sancto, _escripta no seculo XII_, foi, como vossa eminencia sabe,
+publicada por Florez, e uma copia, talvez coeva, ou quando muito do
+seculo XIII, existe ainda entre os manuscriptos de Alcobaça (codice
+133). Ahi lemos que o rei português fora obrigado a levantar o sitio do
+castello Sandino, nas margens do Arnoia, por uma tempestade de raios que
+o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos o pio agiographo, o seu
+implacavel heroe nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por tres vezes a
+diversas pessoas para protestar vingança contra o principe, que nas suas
+correrias na Galliza não respeitara as terras do mosteiro de Cellanova.
+Nesta lucta atroz entre o grande da terra e o grande do ceu, S. Rosendo
+não poupava maravilhas. Debalde; porque, como observa o monge
+historiador, o coração do rei, que elle compara caritativamente a Simão
+Mago, estava obdurado, qual o de Pharaó, _para maior cumulo da sua
+condemnação_. A malevolencia milagreira do sancto não abandonou Affonso
+Henriques senão no tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do reinado
+do fundador da monarchia, incluindo o desbarato de Badajoz, a fractura
+da perna, o aleijão com que ficou até a morte, tudo foi obra de S.
+Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter visto o sancto revestido do
+corpo humano e muito atarefado, na occasião em que o rei de Portugal
+caíu prisioneiro do genro. São pelo menos vinte milagres attestados por
+um escriptor desses tempos. Penso que não me accusarão de avaro ou de
+desagradecido os que querem enriquecer á força o thesouro das minhas
+crenças com a apparição de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente eu
+sou muito mais rico do que elles em provisão de milagres.
+
+De todas essas maravilhas, porém, apesar de subministrarem á credulidade
+melhores fundamentos que a de Ourique, faço eu tanto caso como desta
+ultima, pelas considerações que indiquei, aliàs bem escusadas para a
+comprehensão e litteratura de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente o
+preceito que a mim proprio impusera de não malbaratar o tempo em
+questões desta ordem, nem essas considerações, que obstaram a que eu
+respondesse a um escripto, em que o erro, e talvez o despeito, vinham
+envoltos em fórmas tão corteses, que tocavam a raia de lisonjeiras, e em
+que a argumentação tomava emfim o aspecto de uma cousa séria. Não,
+eminentissimo senhor! A refutação sería na verdade facil, decisiva,
+fulminante; mas ella lançaria uma torpe mancha sobre nomes illustres e
+caros á igreja portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta idéa. Por maiores
+precauções de que eu me rodeasse, a logica implacavel do publico tiraria
+as legitimas illações das minhas palavras, e convertê-las-hia em
+desdouro commum de uma classe que nenhum mal me havia feito. Se hoje a
+necessidade de repellir a insolencia covarde, como a insolencia o é
+sempre, me obriga a expôr actos vergonhosos e inqualificaveis, a culpa
+não m'a lancem. Dous annos de paciencia provam que o faço constrangido
+por aggressões demasiado graves, não por si, nem por seus auctores,
+cousas profundamente insignificantes, mas pelo logar onde se commettem,
+por serem feitas com a intenção de excitar contra mim animadversões
+immerecidas, por se tentar, emfim, converter atraiçoadamente uma
+questão, que nem chega a ser historica, em questão religiosa. A gloria
+do escandalo deixo-a inteira aos que o provocaram. Se vou bater sobre
+campas, que cobrem cinzas envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a
+paz dos mortos para lhes bradar--«_Falsarios!_»--esta mão que se estende
+para indicar os criminosos, esta voz que se ergue para os condemnar, são
+minhas, mas protesto a vossa eminencia, que quem as suscitou não foi o
+meu coração, nem a minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que sem
+deshonra não é licito ultrapassar. Consta-me que o mais recente dos meus
+reverendos accusadores clamara no excesso do seu _sincero_ zelo pela
+historieta da apparição, que _melhor fora que eu não houvera falado em
+tal_. Melhor ainda do que isso me parece teria sido que elle não
+houvesse feito trasbordar o calix, já demasiado cheio, de uma justa
+indignação.
+
+A affirmativa de que no volume 51 da _Symmitica Lusitana_ se encontra
+trasladada uma còpia do instrumento da apparição, coeva de Affonso I, É
+MENTIRA.
+
+O texto de S. Bernardo, relativo á mesma apparição, que se encontra
+inserido no Breviario, no officio das Chagas, É FALSO.
+
+Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim (é licito duvidar disso
+com a igreja, que manifestou a sua hesitação a este respeito mandando
+accentuar as palavras dos livros rituaes com temor das syllabadas) que
+venha á Bibliotheca Real, e ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas
+128, lerá ou soletrará as seguintes palavras, escriptas na lingua
+latina, por baixo do traslado do instrumento da apparição, nota escripta
+pela mesma letra do copista==_Brandão, Monarchia Lusitana, Parte 3.^a
+pagina 127. Extrahido de um codice que o auctor viu em Lisboa._==Eis em
+que consiste o traslado da copia _coeva_. Cenaculo, citando o documento
+pelo indice, quando podia citá-lo pelo logar competente da collecção, o
+que lhe era igualmente facil, commetteu uma daquellas levezas que não
+raro occorrem nos seus escriptos, ou practicou uma _pia fraude_? O bello
+e nobre caracter do bispo de Béja me faria adoptar sem hesitação o
+primeiro supposto, se o empenho em que elle entrara de provar a farça de
+Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente havia de
+sentir, não podesse perturbá-lo a ponto de practicar um acto indigno de
+quem, como elle, era um homem de letras, um prelado virtuoso, e a todos
+os respeitos um varão singular.
+
+A historia da passagem falsamente attribuida a S. Bernardo, é, porém,
+materia mais grave, porque nessa vergonhosa historia se acha
+compromettida a honra e a dignidade moral e litteraria do alto clero
+português no meiado do seculo passado. Não direi da curia romana, porque
+nesse ponto não ha já para ella compromettimento possivel: vossa
+eminencia conhece tão bem e melhor do que eu os seus annaes. A narrativa
+desse escandalo é em resumo a seguinte:
+
+O patriarcha D. Thomás d'Almeida requereu a Bento XIV que concedesse ao
+clero de Portugal o officio proprio e missa das cinco Chagas, que, por
+decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido a certas freiras de
+Florença. Accrescentava-se na supplica dirigida ao pontifice que na
+sexta lição se houvessem de addicionar as seguintes palavras==_Quas
+lusitanum imperium etc._==que constituem o texto allegado contra mim.
+Consistindo, porém, a sexta lição daquelle officio n'uma passagem de S.
+Bernardo, uma vez que não houvesse a devida distincção entre essa
+passagem e o novo additamento, este se converteria n'um testemunho
+importante a favor da lenda da apparição, de que provavelmente os homens
+instruidos começavam a rir-se depois do impulso que aos estudos
+historicos dera o governo no reinado de D. João V.
+
+Accedeu Bento XIV á supplica do prelado português. O decreto de
+concessão, o officio e a missa expediram-se para Portugal impressos na
+typographia da camara apostolica. Segundo parece, a impressão foi feita
+no estio, e o compositor romano, no acto de compor a fatal sexta licção,
+estava perturbado pela febre da _malaria_. O additamento ficou enxertado
+nas phrases solemnes do grande abbade de Claraval com tão subtil sutura,
+que faria honra a um operador de rhinoplastica. Atacado tambem pelos
+miasmas putridos das lagoas pontinas o revedor da camara apostolica
+_esqueceu-se_ de emendar o erro. Aquelle _innocente_ engano partiu,
+emfim, para Portugal.
+
+Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos do clero não tinham chegado á
+decadencia em que hoje os vemos e de certo vossa eminencia lamenta como
+eu, e em que as cadeiras episcopaes do reino estavam occupadas por
+muitos homens notaveis por sciencia e virtudes, o antecessor de vossa
+eminencia que então presidia á metropole de Lisboa _esqueceu-se_ de que
+essa passagem perfilhada a S. Bernardo tinha um auctor bem moderno, e
+entre os bispos, entre os theologos do clero secular não houve um só que
+_advertisse_ no falso testemunho que na sexta licção do novo officio se
+alevantava ao fundador dos cistercienses. Os seus filhos, os seus
+proprios monges, calaram-se. Os prelos têm gemido durante um seculo com
+as reimpressões do breviario, e neste longo periodo nem uma voz, que eu
+saiba, se ergueu para dizer que em nenhuma edição, em nenhuma codice
+manuscripto das obras de S. Bernardo se encontra a supposta passagem.
+
+«E que admiração?--respondeu-me um malicioso, a quem manifestava em
+certa occasião o meu espanto á vista deste phenomeno singular.--O clero
+não lê os padres da igreja: deixou essa tarefa aos seculares. E para que
+os havia de ler, se lhes é de sobra o Larraga?»
+
+Dou a minha palavra a vossa eminencia de que repelli com todas as minhas
+forças este rude epigramma. Eu sei que ha, conheço, até, sacerdotes cuja
+instrucção é tão solida como vasta. O tracto de vossa eminencia, durante
+a epocha em que fomos collegas no parlamento, me fez conhecer um dos
+mais distinctos entre elles. Infelizmente, esse epigramma, injusto na
+sua fórma absoluta, não deixa de ser merecido em muitos, talvez no maior
+numero de casos.
+
+Sabe vossa eminencia quem protestou contra essa falsificação audaz,
+contra essa fingida ignorancia, contra esse torpor inexplicavel ou
+explicavel de mais? Foi aquella ordem ácerca da qual então se repetiam,
+e hoje se repetem diariamente graves accusações de immoralidade. Foram
+os jesuitas, que n'uma edição do novo officio, feita para o proprio uso,
+separaram com um asterisco o texto de S. Bernardo da invenção moderna.
+Acaso este procedimento deu origem a um livro, _os Novos Testemunhos_,
+do celebre e implacavel inimigo dos jesuitas, o padre Pereira, livro que
+se o não tomarmos como uma longa ironia, deshonra a memoria de uma das
+mais fortes intelligencias que Portugal tem gerado.
+
+Agora fica vossa eminencia habilitado para avaliar se eu procedi com
+circumspecção guardando silencio ante as refutações que se me dirigiam
+pela imprensa; se não houve no meu proceder uma dessas abnegações que
+não são vulgares, em desprezar um triumpho tão facil como decisivo,
+preferindo ficar como vencido e humilhado aos olhos dos menos instruidos
+a salvar o meu nome de uma nodoa litteraria e até certo ponto moral. Se,
+emfim, é justo, se é decente, que membros do clero aggridam de um modo
+illicito, e profanando a sanctidade dos templos e a sanctidade do seu
+ministerio, um homem que sacrificou o proprio orgulho para não rasgar o
+véu de uma fraude dessas, que os hypocritas qualificam de pias, e que eu
+qualificarei de immoraes.
+
+Como Sem e Japhet queria encubrir a falta de pudor de Noé: o sacerdocio
+obrigou-me emfim a ser como Cham. Fizeram-me voltar a face:
+contrangeram-me a descerrar os olhos. Practicaram uma boa obra: devem
+della gloriar-se.
+
+E quem é o homem que os prégadores de Portugal offerecem á execração
+publica, porque não quiz vender a sua alma ao demonio da mentira; porque
+não quiz deshonrar-se e deshonrar com embustes o seu livro? Que vossa
+eminencia me consinta fazer aqui esta dolorosa pergunta á minha
+consciencia; interrogar severamente o meu passado. Tem o clero a
+combater em mim um inveterado e perigoso inimigo? É o seu tão insolito
+proceder um impeto de vingança, que o excita a repellir um perseguidor
+implacavel? Ha quinze annos que trabalho na imprensa, e senão por merito
+proprio, ao menos por circumstancias, que não importa aqui recordar,
+muitas das paginas avulsas que tenho deixado após mim na carreira da
+vida se derramaram por todos os angulos do paiz, penetraram aonde livros
+e jornaes de mais alto pensar nunca haviam chegado, e talvez nunca
+depois chegaram. Haverá nessas pobres paginas alguma cousa que possa
+incitar a colera sacerdotal? Como procedi eu sempre ácerca da igreja e
+do clero? As idéas do seculo, recalcadas por uma compressão violenta, a
+que, força é confessá-lo, a maioria do sacerdocio se havia associado,
+tinham reagido violentamente, e assentavam-se triumphantes sobre as
+ruinas do passado quando eu entrei no campo da imprensa, no campo das
+batalhas do espirito. De roda de mim jaziam os fragmentos da sociedade
+que fora, e no meio delles o clero, disperso, empobrecido, cuberto de
+affrontas, experimentava as consequencias do predominio de um partido
+adverso e irritado. A situação da igreja portuguesa nessa epocha, e
+sobretudo a situação dos regulares, sabemos todos qual era. Foram
+feridas de que, porventura, ainda mais de uma goteja sangue. Os homens
+das velhas opiniões politicas, no meio do terror, vergados pelo
+desalento de uma quéda tremenda, duplicadamente dolorosa pela
+desesperança, calavam. Nem uma voz amiga se alevantava nesta terra de
+Portugal a favor da igreja batida pela tempestade. Ainda então esse
+grupo de mancebos cheios de talento, de inspirações grandiosas e de
+crença fervente na liberdade humana, e pela liberdade na eterna justiça;
+essa phalange, no meio da qual todos os dias apparecem novos soldados, e
+que não se envergonha de Deus nem do seu Christo, não tinha ainda
+começado a surgir para ser generosa, amplamente generosa, com os
+adversarios das suas idéas, quando a desventura os sanctifica. Na
+imprensa liberal, revolucionaria, impia, como quizerem chamar-lhe, eu,
+só eu, tive por muito tempo palavras de affeição e consolo para a
+desgraça; só eu tive animo para accusar os homens do meu partido
+d'espoliadores e d'insensatos; para tentar revocá-los á poesia do
+christianismo, do eterno alliado da liberdade. A voz que do campo do
+progresso saudava o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera: a
+mão que se estendia para amparar o sacerdote curvado sob o peso da
+agonia era bem pouco robusta, mas era leal! Como Yorick guardava a caixa
+do pobre franciscano entre os symbolos da sua religião de affectos, eu
+guardo para mim, e só para mim, mais de um papel escripto por mãos
+trémulas de velho monge, e talvez regado por lagrymas, em que se
+reconhecia a possibilidade de haver um homem das novas idéas que não
+fosse absolutamente um malvado. É sobre estas reliquias que eu quero
+encostar a cabeça para dormir tranquillo o ultimo e longo somno em que
+todos devemos repousar. Não receiem pois os que me chamam hoje impio e
+herege, que eu os envergonhe com o testemunho dos que valiam mais do que
+elles, dos verdadeiros martyres do passado. São cousas queridas e
+sanctas para mim. Estejam certos de que não as prostituirei jámais.
+
+Depois, pouco a pouco, foi-se estabelecendo nos animos uma reacção
+salutar: começou-se a sentir que o templo e o sacerdote eram importantes
+elementos de paz, e que podiam ser instrumentos de liberdade. Vieram
+outros pelejadores, todos mais fortes e déstros, combater na arena onde
+por tanto tempo eu me tinha achado só. Não foi de certo a minha
+influencia litteraria que trouxe este resultado. Trouxe-o o progresso da
+razão humana, a força irresistivel da verdade. Entretanto, parece que,
+retirando-me do posto que defendera com os limitados recursos que Deus
+repartira comigo, merecia do clero, por si e pela igreja, um _vale_ de
+paz.
+
+Em logar disso tenho a guerra, acerba, covarde, atraiçoada. Porque?
+Porque trouxe para o campo da historia o mesmo amor da verdade singela,
+que tinha mostrado n'uma das mais graves questões sociaes.
+
+Não me arrependo do que fiz. Cumpri um dever que me impunham Deos e a
+minha consciencia. Não espero arrepender-me do que faço. Cumpro uma
+obrigação litteraria, e estou certo de que bem mereço da terra em que
+nasci escrevendo a verdade.
+
+Sabe vossa eminencia sobre que eu hesito? É sobre a legitimidade
+absoluta das minhas queixas; é sobre se, no que supponho um dever
+d'honra, não haverá um pouco da obcecação da vaidade.
+
+Quando Roma, que parece ter jurado nas aras de Jupiter Stator o
+exterminio do catholicismo, crucifica no seu _Index_ nomes como os de
+Chateaubriand e Lamartine; nomes como os de Gioberti e Ventura, terei
+eu, verme que passo á sombra do meu nada, direito de offender-me porque
+de pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa, alguns clerigos maus
+ou ignorantes lançam sobre mim o vilipendio das suas palavras?
+
+Quando a igreja, envolvendo a fronte no véu da sua immensa tristeza, e
+sentindo humedecer-lhe os pés o sangue humano vertido pelo ferro
+sacerdotal, contempla atterrada o futuro, ha dor de individuos a que
+seja licito um brado?
+
+Cerrarei aqui o discurso, porque temo ir mais longe do que eu quizera.
+Permitta-me vossa eminencia que conclua fazendo um voto, ao qual sei que
+vossa eminencia se associa, bem como os outros prelados de
+Portugal:--Oxalá venha em breve o dia em que o clero d'este paiz possa
+receber uma educação digna do seu elevado destino, e conhecer, por
+estudos severos e bem dirigidos, que o ser christão não é ser nem
+hypocrita nem fanatico.
+
+
+
+
+II
+
+CONSIDERAÇÕES PACIFICAS
+
+SOBRE O OPÚSCULO EU E O CLERO
+
+
+AO REDACTOR DA NAÇÃO
+
+(_Julho, 1850_)
+
+
+A necessidade de reprimir o abuso do ministerio do pulpito que contra
+mim se estava practicando obrigou-me a dirigir a sua eminencia o
+Patriarcha de Lisboa uma carta, na qual, sem faltar á consideração
+devida ao prelado da diocese, nem aos outros bispos do reino, entendi
+que cumpria usar de uma linguagem severa, mas justa, para com a maioria
+do clero. Habituado a patentear livre e singelamente as minha opiniões
+ácerca dos homens e das cousas, não soube nem quiz buscar rodeios, ou
+adoçar as phrases para me exprimir de modo menos aspero n'uma questão
+que me respeitava pessoalmente, e em que até certo ponto estava
+compromettido, não só o meu caracter litterario, mas tambem, o que mais
+importa, o meu caracter moral. Toda a imprensa periodica, politica e não
+politica, sem distincção de partidos, foi unanime em condemnar actos que
+me obrigavam a dar um passo a que bem desejaria me houvessem poupado.
+Como os outros jornaes, a _Nação_ reprovou as aggressões inauditas
+perpetradas por uma parte do clero, e toleradas por outra. O
+procedimento de v.. para comigo foi nessa conjunctura tanto mais nobre,
+quanto é certo que a indole do seu jornal deveria talvez levá-lo a
+rebater a opinião de diversas publicações periodicas, se o sentimento da
+justiça não fosse mais forte no animo de v.. do que outras quaesquer
+considerações. É assim que o sacerdocio da imprensa cumpre a sua grave
+missão, e remedeia do modo possivel a decadencia do sacerdocio
+religioso. Continuando, porém, a tractar de uma questão, que, embora
+interessasse um simples e quasi obscuro individuo, era demasiado
+importante pelo alcance e significação dos factos que a haviam
+suscitado, v.. teve a bondade de dirigir-me algumas observações, que me
+pareceu exigirem de mim explicações como christão e como homem de
+letras. Não as dei logo, porque não tardou a annunciar-se publicamente
+uma refutação da minha carta, em desaggravo do clero. Falava-se n'um
+milagre de sciencia e de raciocinio, diante do qual eu teria de fugir
+desalentado como os sarracenos de Ourique diante do da apparição.
+Citavam-se, até, nomes: falava-se em summidades da igreja e da eschola.
+Como entendo que não é bom fugir sem ver de que, esperei que rebentasse
+o temporal. Se fosse por elle submergido, de que aproveitariam as
+explicações dadas a v..? Se, porém, podesse salvar o meu fragil baixel,
+pediria misericordia aos vencedores, e daria ao mesmo tempo a v.. razão
+de mim. Fiquei, portanto, como o sentenciado no oratorio, com o ouvido
+attento ao som que devia annunciar a hora do supplicio. Esta hora,
+todavia, segundo creio, passou. A dizer a verdade, eu alimentava
+esperanças de salvação com um argumento que fazia a mim mesmo. Não é
+provavel, dizia comigo, que um membro do clero illustrado e honesto
+queira vir combater-me no terreno desigual e escorregadio em que a
+imprudencia collocou o sacerdocio, e o vulgo clerical tem impedimento
+dirimente para entrar neste empenho. Para escrever é preciso saber ler e
+ter lido; saber reflectir, e ter reflectido muito. Por este lado podia
+eu estar tranquillo.
+
+É certo que o annuncio feito nos jornaes não foi materialmente vão.
+Appareceu um folheto, que parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me
+que é de um mancebo principiante. Revela, sem dúvida, algum talento no
+auctor. Com o tempo, e estudando, este póde vir a ser um escriptor
+soffrivel, e habilitar-se emfim, para tractar d'estas ou d'outras
+questões com honra sua e proveito do paiz.
+
+
+ Non ragioniam di lui, ma guarda, e passa.
+
+
+É pois tempo de me explicar com v.. e fa-lo-hei do modo mais breve que
+me for possivel. Se alguma phrase menos comedida me fugir da penna,
+declaro desde já que a retiro. Dirigindo-me a um escriptor como v.., tão
+urbano nas proprias censuras que me faz, embora sobre tão melindrosa
+materia como o são as cousas da fé, espero que v.. não veja por caso
+algum nas minhas palavras a menor intenção offensiva.
+
+Tres censuras irroga v.. ao conteúdo da minha carta; a primeira contra a
+antithese contida no titulo do opusculo _Eu e o clero_: a segunda contra
+as expressões de _intelligencias vastas e energicas, mas corruptas,
+violentas e cubiçosas_, de que me servi para qualificar alguns papas: a
+terceira contra a phrase, _Roma que parece ter jurado nas aras de
+Jupiter Stator o exterminio do catholicismo_, e contra os terrores que
+attribuo á igreja ácerca do futuro. Considerarei em especial cada uma
+dessas tres censuras.
+
+Diz v.. que me era licito collocar-me em antagonismo com um ou outro
+clerigo, porém não com o clero em geral, por honra e credito meu, que
+nada podia ganhar em lucta tão desigual, e que, a existir, seria a minha
+condemnação. Antes de tudo é necessario observar duas cousas: 1.^a, que
+o antagonismo não o creei eu: resultou de factos practicados pelo clero,
+que tolerei com paciencia durante annos, e que toleraria talvez sempre
+em silencio, se não receiasse que no progresso da aggressão chegassem a
+levantar-me um pulpito diante da porta, para d'ahi me fazerem um sermão
+sobre a sanctidade dos papas da idade média, ou sobre os milagres
+referidos por S. Bernardo: 2.^a, que é pelo opusculo e não pelo seu
+titulo, que se há de avaliar até onde esse antagonismo vai, e se elle é
+legitimo. Não apparece uma unica passagem da minha carta em que eu me
+refira com phrases hostis a _todo_ o clero português. Os homens que ha
+no meio delle illustrados e virtuosos, respeito-os; respeito-os
+duplicadamente pela sua illustração e pelas suas virtudes; pelo seu
+caracter litterario, e pelo seu caracter sacerdotal. Esses não sobem aos
+pulpitos a dizer despropositos; não me querem mal, nem a mim nem aos
+meus pobres escriptos. Ao que eu me contrapús foi ás turbas tonsuradas;
+foi á maioria material e numerica; minoria nos dominios da
+intellectualidade, das idéas, e dos puros e nobres affectos. Faria uma
+offensa gratuita; practicaria uma brutalidade indesculpavel, estaria em
+contradicção comigo mesmo, com as minhas opiniões, se assim, sem motivo,
+sem provocação, tivesse o proposito de maltractar aquell'outra parte do
+clero.
+
+É esta a idéa que ha de resultar da leitura da minha carta para todos os
+animos desprevenidos; para v.. mesmo, se tiver bastante paciencia para a
+reler. Quanto a esses de quem me queixo, não sou eu homem que esconda as
+proprias convicções. Na minha vida litteraria tenho dado mais de um
+documento de que costumo ser sincero. Estou persuadido de que a maioria
+do nosso clero é tal como eu a qualifiquei, e se não fosse a natural
+repugnancia a despedaçar um cadaver, daria aqui as razões da minha
+persuasão. Em todo o caso, acceito inteira a responsabilidade della: não
+tergiverso, não me arrependo. Tenho dicto e escripto muitas verdades,
+senão mais deploraveis, por certo mais perigosas para mim, sem que o meu
+somno deixasse de ser profundo, como o é habitualmente.
+
+Postas as cousas nestes termos, que são os exactos, não me é possivel
+comprehender a affirmativa de v.. de que o meu credito e honra
+padeceriam pelo antagonismo com a maioria do clero, _nessa lucta
+desigual, que envolveria a minha condemnação_. Se v.. viu naquella fatal
+antithese um peccado de orgulho, talvez o seja; mas eu vi nella apenas
+um acto de humildade. Pois, em consciencia, eu não valerei mais,
+litteraria e moralmente, do que um clerigo mau ou insipiente? Mas cem,
+mas mil, mas dez mil clerigos máus ou insipientes, ainda que os fundam e
+os acrisolem, chegarão, acaso, a produzir o equivalente de um homem de
+alguma intelligencia e de alguma honestidade? Não. O resultado de todas
+essas operações será sempre, a meu ver, um _substratum_ de parvoice ou
+de corrupção. Peccado de soberba não creio, portanto, tê-lo commettido.
+Por este lado mal posso ser condemnado. Referir-se-hia, porém, v.. ao
+perigo litterario? Tambem não póde ser. É v.. assaz instruido para
+sentir que por esse lado a lucta me dá tanto cuidado como daria a v.. se
+estivesse no meu logar. É o perigo religioso? A idéa da condemnação
+antes de contestada a lide, e envolvida na proposição da causa, torna
+talvez plausivel esta interpretação. Nessa hypothese, v.. não teria
+advertido n'um facto indubitavel. A maioria do clero português não é a
+maioria do clero catholico: a maioria do clero catholico não constitue
+por si a igreja de Deus. Bem infeliz seria eu se me visse em opposição
+com esta; mas confio em que a Providencia me livrará de cair nesse
+abysmo, não só agora, mas sempre.
+
+Todavia a minha linguagem severa, embora justa e legitima, será
+condemnavel, senão pela substancia, ao menos pelos accidentes? Será
+condemnavel porque vai ferir duramente um grande numero de sacerdotes,
+de homens, infelizmente, ungidos do Senhor? Que v.. me consinta invocar
+em meu auxilio um exemplo acima de toda a excepção. É de um padre da
+igreja, a cujas obras o nosso clero foi tão affeiçoado, que até lh'as
+quiz augmentar, com grande gloria do sancto e proveito destes reinos.
+Alludo a S. Bernardo. As phrases da minha carta são de suprema doçura
+comparadas com as que o celebre cluniacence empregava para qualificar a
+corrupção, não do clero de um paiz, não da maioria desse clero, mas em
+geral do sacerdocio do seu tempo. «_Manou a iniquidade_--dizia S.
+Bernardo--_dos anciãos, dos juizes, dos teus vigarios, oh Deus;
+daquelles que parecem governar o teu povo! Já não é licito dizer_--_tal
+o povo, tal o sacerdocio; porque este é peior. Oh meu Deus, meu Deus! Os
+teus maiores perseguidores são os que mais ambicionam a primazia, e
+exercem na igreja o mando supremo_[1]». E, como se estas acres
+expressões não bastassem, o terrivel benedictino desfecha, n'uma carta
+dirigida, não a algum prelado metropolitano, mas ao proprio Innocencio
+II, na seguinte diatribe: _A insolencia do clero_, a qual nasce da
+indulgencia dos bispos, _turba o mundo e afflige a igreja. Entregam os
+bispos as cousas sanctas_ a cães, _e as pedras preciosas_ a porcos, _e
+elles em paga mettem-nas debaixo dos pés. Assim o quizeram, assim o
+tenham_[2]». Se eu me servisse de semelhante linguagem, imagine v.. que
+matinada se alevantaria contra mim!
+
+Dir-me-ha v.. que S. Bernardo foi um sancto padre da igreja, e eu não
+passo de um peccador e obscuro christão? Assim é. Por isso o segui de
+longe, _non passibus æquis_. Comtudo, v.. não deixará de advertir em
+que, quando elle escrevia essas phrases violentas, era um pobre monge,
+humilde, simples, sem pretensões orgulhosas, sem presciencia de que
+tinha de ser um sancto e um luminar da igreja. E que lhe importava? O
+espectaculo do procedimento do clero arrancou da sua bôca esses brados
+d'indignação, como loucas provocações arrancaram da minha penna palavras
+muito menos violentas.
+
+Já agora consinta-me v.. que cite ainda um veneravel prelado português
+quasi do nosso tempo, a quem tambem tive occasião de alludir na minha
+carta; que recorde as palavras geraes de D. Fr. Caetano Brandão ácerca
+do clero português no principio deste seculo. O metropolita explicava
+n'uma carta a certo ministro d'estado quem era que fazia recair a
+desconsideração sobre o poder pontificio: «_São aquelles_--dizia o
+arcebispo de Braga--_que á força de supplicas importunas, de respeitos
+humanos, e outros motivos_ ainda mais vergonhosos, _costumam extorquir
+da curia romana provisões beneficiaes_, que mais parecem titulos de
+contractos de predios rusticos, do que de beneficios ecclesiasticos;
+_provisões a favor das quaes tem infestado as parochias e córos_
+(collegiadas e cabidos) de todo o reino _uma tropa confusa de_ sujeitos
+indignos, etc.[3]». Que se leia inteira a passagem impressa daquella
+carta, e ver-se-ha se foi o arcebispo, se eu, quem usou de mais
+desabrida linguagem.
+
+Apesar disso, suas reverencias hão de tolerar-me a crença de que não
+estão no inferno nem a alma de D. Fr. Caetano Brandão, nem a de S.
+Bernardo.
+
+Ainda algumas palavras sobre o antagonismo, em que de nenhum modo v.. me
+quer ver collocado, em relação á maioria do clero. Foram apenas alguns
+que me provocaram do pulpito, e eu chamo á autoria o grande numero. É
+verdade. Não sei com certeza senão de alguns factos de aggressão, mas a
+noticia de parte d'esses factos obtive-a casualmente: alguns
+constaram-me apenas, porque um jornal a elles alludiu de passagem,
+dizendo que se practicavam por diversos logares de Entre-Douro e Minho.
+É acaso provavel que se não repetissem por outras dioceses? Em Lisboa,
+onde eu resido, onde os sacerdotes podem ter mais illustração, onde,
+até, o fanatismo deve ser mais raro, porque a propria fé é mais tibia,
+onde, emfim, os prégadores mais devem receiar que o seu auditorio se ria
+delles, houve dous exemplos. Não me será licito inferir que, não tendo
+eu uma policia ás minhas ordens, ignoro muitos successos analogos?
+Depois, houve, á vista desses factos repetidos, não digo punição de
+semelhante abuso do ministerio sagrado, o que não peço, o que até me
+contristaria, porque me lembro das palavras de Christo «_Perdoa-lhes
+Pae, que não sabem o que fazem_, mas a minima providencia para impedir a
+renovação de taes escandalos? Para que servem os vigarios da vara, os
+arcediagos, os representantes ou delegados do poder episcopal? Como
+informam os respectivos prelados do que se passa entre o clero
+diocesano? Não tenho eu direito de suppôr que elles tambem entendem que
+a sanctidade dos papas da idade média ou o apparecimento de Ourique são
+partes integrantes da crença catholica, e que se trepassem ao pulpito, e
+lhes viesse a talho, me chamariam do mesmo modo impio ou herege? Se não
+estão de accordo com os prégadores, como se esquecem de que os padres de
+Trento prohibiram aos bispos que consentissem aos oradores sagrados
+_divulgar ou tractar factos incertos, ou que tenham caracteres de
+falsidades_[4], e de que os do concilio 1.^o de Colonia ordenam aos
+mesmos oradores que _não falem imprudentemente de milagres, limitando-se
+aos que refere a Biblia, ou aos que forem narrados por escriptores de
+peso, estribados em solidos fundamentos historicos_[5]? Como quer pois
+v.. que eu não increpe o maior numero e que não o supponha alistado
+contra mim nesta vergonhosa cruzada d'ignorancia?
+
+Passando ao segundo capitulo de accusação, sinto verdadeira magoa em ser
+constrangido a dizer que v.. leu menos attentamente o que escrevi ácerca
+dos papas na minha carta ao eminentissimo senhor Cardeal Patriarcha.
+Qualifiquei ahi de intelligencias vastas, energicas, mas corruptas,
+violentas e cubiçosas, alguns delles que se chamaram Gregorio,
+Innocencio ou Honorio, e v.. reprehende-me por classificar como taes
+Gregorio VII e Innocencio III!? Onde me refiro eu a estes dous papas no
+meu opusculo? Na epocha abrangida pelo que se acha publicado da Historia
+Portugal houve diversos pontifices desses nomes. A cada um delles fiz,
+creio eu, justiça, e Gregorio VII foi aquelle em que menos falei, porque
+viveu antes de nascer a monarchia. É singular como v.. pôde perceber
+que, entre tantos, alludi a esses dous em particular! Não teria eu
+direito de dizer, que uma voz da propria consciencia trahiu e tornou van
+a benevolencia para com elles manifestada nas palavras de v..? O que me
+parece indubitavel é que alguma convicção historica preoccupava o
+espirito de v.. quando nas minhas expressões vagas e geraes viu um
+ataque directo e especial á memoria daquelles homens extraordinarios,
+cujos meritos não neguei, nem tenho empenho em negar.
+
+Entretanto não pense v.. que com isto pretendo lançar fóra de mim a
+responsabilidade de julgar severamente Hildebrando ou Innocencio III.
+Não tenho a minima dúvida em lhes applicar as designações de
+intelligencias violentas e cubiçosas, como não a tenho em chamar
+corruptos a outros papas, como, por exemplo, a Innocencio IV. É verdade
+que v.. cobre Hildebrando com a egide da canonisação, e Innocencio III
+com a da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a sciencia e
+litteratura sejam synonimos de virtude, nem creio que uma canonisação
+constitua dogma de fé, e obste á liberdade do historiador para avaliar
+como entender os caracteres historicos. V.. sabe perfeitamente que,
+fundando-se as canonisações em provas humanas, e não em factos
+revelados, as decisões pontificias a tal respeito são sempre falliveis,
+o que bem se manifesta da oração que ainda no seculo XIV os papas faziam
+na solemnidade das canonisações, pedindo a Deus permittisse que não se
+houvessem enganado. Esta doutrina é corrente, e v.. não a ignora, nem
+poderia ignorá-la[6].
+
+Recorda-me v.. que os escriptores protestantes fazem a estes dous
+pontifices a justiça que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como a
+entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo ao papado, em mais
+de um logar do meu livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos
+que a civilisação lhes deve. Dos historiadores protestantes modernos não
+conheço nenhum mais celebre, dos que exaltam Gregorio VII, do que o
+professor Leo. Mas, para isso, elle proprio sentiu a necessidade de se
+valer exclusivamente da idéa em que se resume a historia do progresso
+humano. Esta idéa é a _lucta do espirito com a sua manifestação, com a
+fórma, com a materia; o desenvolvimento do raciocinio predominando no
+meio da força do acaso_[7]. Elle vê-a representada, incarnada, digamos
+assim, em Gregorio VII e nos seus immediatos successores, na indole e
+tendencias desses individuos; eu vejo-a no papado, na indole da
+instituição. É inquestionavel que nenhuns pontifices levaram mais longe
+a manifestação da idéa, e em philosophia historica os defeitos desses
+papas desapparecem, quando se considera a maneira _vasta e energica_ por
+que elles desempenharam a missão providencial do papado n'aquella
+epocha. Todavia, na apreciação _moral_ dos seus actos como individuos, é
+por outros principios que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo
+conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado a essa luz, que a excluiu
+da historia «_No mundo dos phenomenos_--diz elle--_a luz da verdade não
+se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se por todas. Não são os
+phenomenos individualmente que constituem a verdade, mas sim o complexo
+delles_.» Para avaliar o pontifice como representante e typo da
+instituição, a regra é exacta; para o avaliar como homem, não; porque a
+_intenção_, a causa moral dos actos, é necessaria para a apreciação
+abstracta de um caracter. A suberba, a ambição e até a cubiça de
+Gregorio VII estão pintadas nos factos a que accidentalmente me referi
+n'um logar do meu livro[8]. Destruam, se é possivel, documentos
+irrefragaveis.
+
+Queremos, porém, saber, por testemunho insuspeito, qual era essa
+intenção moral, qual o caracter de Hildebrando? Ouçamos um seu
+contemporaneo, um sancto padre. Tenho gosto especial em citar nestas
+cousas os sanctos padres. São respeitaveis auctoridades! «_De
+resto_--diz um delles--_rogo humildemente ao meu S. Satanaz que não se
+enfureça tanto comigo, e que a sua veneranda suberba não me fustigue com
+tão longa flagellação_[9]».
+
+De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando. Quem o escrevia? Um
+pobre velho: S. Pedro Damião n'uma carta dirigida a Alexandre II e ao
+proprio cardeal. Verdade é que não sabía quão grande sancto havia de vir
+a ser o seu _S. Satanaz_. Nessas palavras amargas do veneravel monge
+está explicada a actividade irresistivel com que Gregorio VII proseguiu
+na lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior
+intellectualmente aos outros homens, a ambição de os dominar a todos
+fê-lo até negar a realeza, não só como facto, mas tambem como principio.
+Houve, ha hoje um democrata mais virulento do que Hildebrando? Não o
+creio. V.. conhece por certo uma passagem singular das suas cartas.
+«Que!--diz elle--uma dignidade inventada pelos homens do seculo (a dos
+principes) não estará sujeita á que Deus estabeleceu para gloria
+propria? Quem não sabe que os reis, que os chefes procedem dos principes
+pagãos, os quaes por instigações do diabo, _que é o verdadeiro principe
+do mundo_, movidos por cega paixão e levados por intoleravel presumpção,
+_usurparam o poder supremo sobre os seus iguaes_, pondo por obra, com
+esse intuito, a rapina, a perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os
+crimes?[10]» Não lhe parece a v.. que se hoje Hildebrando resuscitasse,
+o tinhamos presidente da republica democratica e social? Veja v.. o caso
+que o sancto varão fazia do famoso texto biblico: _Per me reges
+regnant._ Dir-se-hia que tinha lido: _Per diabolum reges regnant._
+Podemos nós os monarchistas (embora o sejamos por differente feitio)
+acceitar as idéas do celebre S. Satanaz? Não ha nessas idéas um orgulho,
+uma intolerancia para com os poderes da terra, que não
+comprehenderiamos, talvez, hoje, se não tivesse vivido no nosso seculo
+uma intelligencia igualmente _vasta e energica_, chamada Napoleão
+Bonaparte?
+
+Vamos ás ultimas censuras de v.. em que me parece não ter mais razão do
+que nas primeiras. Diz v.. que Roma, _significando o poder pontificio_,
+não póde jurar o exterminio do catholicismo. Que!?--Pela palavra Roma
+não se póde entender senão o poder pontificio, não se póde significar
+senão o papa? V.. ha de permittir-me que eu recorra ainda uma vez a S.
+Bernardo para me salvar da condemnação eminente. Nesta contenda, não sei
+porque, o meu espirito recorda-se a cada momento daquelle illustre padre
+da igreja. Falando das horriveis desordens que produziam as appellações
+para o papa, e alludindo a dous bispos allemães carregados de crimes,
+que, tendo appellado para Roma e levando comsigo bastante dinheiro,
+haviam sido repellidos nas suas pretensões e offertas, S. Bernardo
+exclama: «_Grande novidade! Quando até o dia de hoje rejeitou Roma
+dinheiro?_[11]» Note-se que o sancto vivia no seculo immediato ao
+governo de Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso ao papa
+Eugenio III, que frequentemente louva, e a quem, por certo, não
+pretendia affrontar. Que significa pois a palavra _Roma_ na bôca do
+grande abbade de Claraval? A curia romana; essa curia, onde, segundo a
+opinião do severo cluniacense, «_era mais facil entrar honesto, do que
+tornar-se lá homem de bem_[12]»; essa curia que me obrigaria a encher
+paginas e paginas de citações se quizesse colligir as passagens
+relativas ao seu desprezo por todas as leis divinas e humanas, quando se
+tractava de receber ouro, passagens que se encontram ás dezenas nos
+escriptores mais respeitaveis, e onde se memoram, até, versos das
+cantigas populares contra a cubiça da curia, o que prova ter-se tornado
+proverbial a corrupção de Roma[13].
+
+Mas concedamos que, ultrapassando além da curia romana, eu tivesse em
+mente o pontifice. Como homem, como principe temporal, os seus actos
+publicos são do dominio da imprensa; se esses actos pelos seus effeitos
+moraes e politicos poderem trazer graves turbações, dias de amargura á
+igreja, não é licito a todo e qualquer christão deplorar essas
+consequencias, reprehender esses actos? Quando eu digo que Roma _parece_
+ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso o papa, a curia, alguem
+de ter a intenção directa de o destruir? Ou eu não sei português, ou
+empreguei uma phrase trivial, cujo alcance todos comprehendem. Que se
+diz do valetudinario que despreza os conselhos dos medicos? _Parece que
+se quer matar!_ E quando dizemos isto passa-nos acaso pelo espirito a
+idéa de attribuir a esse individuo a intenção directa do suicidio? Ou
+será que as expressões simples, as phrases innocentes dos outros homens
+se convertem em peste e veneno, quando saem da bôca do feroz herege que
+ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem posthumo, de S. Bernardo
+ácerca do milagre de Ourique?
+
+Em que tempos estamos nós? Para onde caminha a reacção religiosa? Que!?
+Eu não poderia apreciar como entendesse o procedimento politico de um
+papa, em relação aos futuros destinos da igreja, e S. Thomás de
+Cantuaria poderia sem ser um reprobo lançar em rosto a Alexandre III as
+gravissimas accusações de o trahir, e de querer conduzi-lo á morte[14]?
+Poderia S. Thomás de Aquino, o mais profundo philosopho do seculo XIII,
+ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado o tempo em que S. Pedro
+dizia «_não possuo nem ouro nem prata_»--responder-lhe «_que tambem era
+passado o tempo em que S. Pedro dizia ao paralitico--levanta-te e
+anda_[15]» epigramma pungente atirado ás faces de um papa, cuja cubiça
+não conheceu limites; poderia, digo, S. Thomás ser um doutor da igreja,
+depois deste attentado? Podia sequer ser papa o successor do mesmo
+Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o _vendilhão de igrejas_[16]?
+Riscae do catalogo dos bemaventurados S. Antonino de Florença, que não
+duvidou de pintar com as mais negras côres os vicios hediondos de
+Clemente V[17]. Não chameis o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque
+taxou de velhaco o papa Eugenio IV[18]. Rejeitae do gremio catholico o
+erudito e pio Fleury, porque escreveu o 4.^o discurso sobre a historia
+Ecclesiastica. Para serdes logicos despovoae a igreja de sanctos, de
+doutores, de homens illustres, se credes que, dentro della, eu, que não
+sou nenhuma dessas cousas, não tenho direito de aferir pelos principios
+eternos da moral, da justiça e da caridade evangelica as acções dos
+papas sem renegar da igreja.
+
+Não disputarei com v.. sobre os successos de Roma nos ultimos tempos.
+Cada qual póde vê-los á luz que julgar verdadeira. Ao que, porém, eu
+tenho jus é a averiguar se é exacta a proposição absoluta de v.., de que
+o futuro da igreja é muito sabido, claro e indisputavel _para os
+catholicos_. Por este modo v.. parece excluir-me do gremio do
+catholicismo, porque hesito sobre o seu futuro. Advertiu acaso v.. em
+que a proposição assim absolutamente enunciada, conduziria ao
+impossivel? O que é certo, sabido e claro para a igreja, e para cada um
+dos seus membros, é que ella será perpetua, indestructivel. Mas por
+quaes phases tem de passar; se a esperam dias serenos, se dias de
+tribulação; se acres resentimentos, imprudentemente preparados, virão ou
+não como a procella despir a folhagem, lascar os troncos da arvore
+eterna do christianismo, eis o que nem a igreja, nem eu, nem v..
+sabemos. Está acaso v.., que eu creio profundamente catholico,
+habilitado para me dizer de um modo _certo e claro_, se a idea
+revolucionaria da Italia apodreceu para sempre encharcada no sangue que
+as balas e bayonetas francesas e austriacas derramaram á voz da curia
+romana? Se a politica das masmorras, dos desterros, da compressão
+inexoravel, preferida á politica evangelica da tolerancia, do perdão das
+injurias, da caridade sem limites, poderá varrer para sempre dos animos
+italianos o odio do dominio estrangeiro (quer directo quer indirecto) e
+o amor da liberdade politica? Esse odio e esse amor póde v.. julgá-los
+legitimos ou illegitimos: não disputarei sobre isso. Mas que elles não
+existam; que elles não possam triumphar algum dia, eis o que v.., por
+certo, não affirmará com a mão na consciencia. E nessa hypothese, quem
+saberá dizer até onde chegarão os excessos da colera e da vingança,
+azedadas pelo padecer, e até certo ponto legitimadas por elle, se
+legitimidade se póde dar em taes sentimentos? Parece-me que ao homem
+catholico é licito imaginar, sem que por isso vacille a sua fé ácerca da
+perpetuidade do catholicismo, que a igreja se entristece, ou deve
+entristecer, aterrada pelo porvir; é licito suppôr que as lagrymas dos
+seus futuros martyres vem já de antemão cair-lhe ardentes sobre o seio
+materno. Se attribuir ao gremio dos fiéis, composto de homens, os
+affectos de dor e amargura desdiz de alguma cousa, não é, de certo, das
+tradições evangelicas, nem das tradições dos antigos padres. Já no
+seculo IV S. Hilario de Poitiers observava quão frequente era pintar-nos
+o evangelho como triste e afflicto o Filho de Deus[19]; e S. Gregorio
+Magno não duvidava de dizer: «_A sancta igreja, emquanto vive esta vida
+de corrupção, não cessa de chorar os damnos das vicissitudes por que
+passa_»: e n'outra parte: «_A dor esmaga a igreja quando vê os perversos
+prosperarem na propria maldade_»[20]. É dessas vicissitudes a que allude
+o sancto pontifice que eu falo; é a essas vicissitudes, demasiado
+provaveis, que os erros dos homens, as paixões anti-christans do
+sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas previsões, um caracter de
+terribilidade.
+
+Tenho dado razão de mim. Diz v.. que poderia accrescentar mais. Sinto
+que o limitado espaço de uma folha periodica, ou outro qualquer motivo,
+o inhibisse de assim o practicar. Gósto de ser advertido dos erros em
+que caio, quando é a sciencia e o talento quem se incumbe deste mister,
+e certifico a v.. de que facilmente me retractaria, se nas suas
+ulteriores observações v.. me convencesse de que eu errava. Á ignorancia
+presumida, ou á insolencia estupida, é que não costumo fazer a honra de
+responder. Quanto a esta questão, que não suscitei, e que até deploro,
+ella terminou para mim. Que os hypocritas façam visagens beatas contra a
+minha impiedade; que me proclamem herege ou o que elles quizerem, cousas
+são essas com que nenhum homem de juizo se afflige, porque as assaduras
+inquisitoriaes, mercê de Deus, acabaram para sempre. A raça dos escribas
+e phariseus, o peior flagello que Christo encontrou na terra, e que elle
+mais cordealmente amaldiçoou, é immortal e immutavel; mas deixá-la
+viver. Quem diz ao sapo:--«não sejas asqueroso?»--Quem diz á
+vibora:--«não sejas peçonhenta?»--Babem e mordam; é o seu destino,
+coitados!
+
+O que não tolerarei é que me chamem de novo, a mim ou aos meus
+escriptos, a figurarmos no meio das parvoices sacrilegas com que se
+deshonram os pulpitos. Que os prelados façam ou não o seu dever a este
+respeito, pouco me importa. Estejam certos de que não será a suas
+excellencias que pedirei desaggravo.
+
+
+
+
+III
+
+SOLEMNIA VERBA
+
+
+AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES
+
+(_Outubro, 1850_)
+
+
+
+ Porque virá tempo em que muitos homens não soffrerão a san
+ doutrina; mas..... accumularão para si mestres conforme aos seus
+ desejos:
+
+ E assim apartarão os ouvidos da verdade e os applicarão ás fabulas.
+
+ _S. Paulo, Epistola II a Thimoteo c. 4. v. 3, 4._
+
+
+Permitta-me v.. que, sem existirem entre nós outras relações que não
+sejam aquellas que fortuitamente nascem entre os homens de letras quando
+se encontram no campo da imprensa, eu dirija, por essa mesma imprensa,
+uma carta a v..
+
+Esta carta será um pouco extensa. Será talvez seguida de outras. Não o
+sei ainda. N'uma questão litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que o
+procedimento de alguns individuos da ordem sacerdotal converteu n'uma
+contenda que não sei até onde chegará, v.. fez-me a honra de ser meu
+adversario, escrevendo dous opusculos em que combate as minhas opiniões
+n'um, ou para melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria.
+Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas epochas, v.. se houve
+sempre para comigo com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia de
+um espirito cultivado. Póde haver ahi uma ou outra expressão mais viva,
+que feriria certas vaidades demasiado mimosas; se, porém, as ha, não me
+feriram a mim, endurecido já nestes recontros, e que tambem não sou dos
+menos sujeitos a ceder ás vezes aos impulsos da vivacidade.
+
+No meio dos que me tem combatido, v.. representa a meus olhos a parte
+san, os homens sinceros do gremio, da eschola, do partido (como quizerem
+chamar-lhe, porque os nomes importam pouco) a que v.. pertence.
+Representa, digo, essa parte, postoque, e ainda bem que assim é, não a
+resuma. Igual testemunho devo deixar aqui, se os meus escriptos tem de
+viver mais algum dia que eu, ácerca dos Redactores do jornal _A Nação_.
+Meus adversarios tambem, não recebi delles na impugnação das minhas
+doutrinas, senão provas de consideração e de urbanidade.
+
+Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita em que quiz encerrar-se no
+seu ultimo e recente opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses
+homens probos e leaes que estimo e respeito, embora julgue erroneas,
+deploraveis até, as suas opiniões n'uma contenda, que, não por minha
+culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma direcção fatal. Deus
+queira que os imprudentes que lhe deram origem não tenham de chorar a
+sua loucura com lagrymas amargas!
+
+Sería bem triste que essa porção de compatricios meus em cujos corações
+o amor do passado é um sentimento puro, postoque, a meu ver, ás vezes se
+manifeste de modo pouco reflectido, me cressem traidor á sancta causa da
+patria. Se os erros de nossos paes e os erros de todos nós os que
+vivemos, erros que nos trouxeram a uma situação que não posso, que não
+quero definir aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal, ameaçado
+na sua independencia e nacionalidade, brade por todos os seus filhos
+para um esforço supremo, para o salvarem ou para morrerem, espero em
+Deus, e depois de Deus na minha consciencia, que, sem crer no milagre de
+Ourique, não serei o ultimo a acceitar esse terrivel convite. O passado!
+Quem mais o amou do que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos com
+mais saudade para as suas tradições? Mas as tradições de que tenho
+saudade; mas o passado que eu amo, não o são essas lendas absurdas
+(desculpe v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas por
+interesses mundanos, dos quaes, por mais graves que sejam, nem a
+philosophia nem o christianismo consentem se faça o céu instrumento. Nos
+tempos que foram o que me sorri, não só como saudade, mas (porque não
+direi agora o que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem como
+esperança, são as tradições dessa liberdade primitiva, postoque
+incompleta, filha primogenita do evangelho, que elle gerara para mãe,
+para abrigo das sociedades da Peninsula; dessa liberdade, rude e
+turbulenta como uma creança educada á lei da natureza, mas como ella
+robusta e viçosa; dessa liberdade que se estribava nos habitos, que
+resultava de instituições positivas e exequiveis, e não de instituições
+copiadas quasi ao acaso da primeira theoria que tivesse transposto os
+Pyreneus; dessa liberdade que tornava a monarchia uma cousa sancta,
+necessaria, indestructivel, e que a monarchia, por desgraça sua e nossa,
+foi lentamente esmagando debaixo do seu throno, formado dos infolio,
+politicamente fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas e Commentarios
+das escholas d'Italia; dessa liberdade, que, desenvolvida e organisada
+logicamente com a sua origem, nos teria poupado talvez á gloria immensa,
+mas para nós mais que esteril, de nos convertermos em victimas da
+civilisação da Europa, de revelar o Oriente á sua cubiça, para logo
+virmos assentar-nos extenuados n'um occaso de tres seculos; dessa
+liberdade que nos teria salvado por certo de um longo estrebuxar em
+esforços impotentes de emancipação, que tomámos como licções
+d'extranhos, e que era mais velha para nós do que o era para elles.
+Eis-aqui a maravilha, melhor que milagres imaginarios, na qual não só
+creio, mas tambem espero.
+
+Peço a v.. e aos animos honestos que pensam como v.. se persuadam de que
+o homem que não admitte certas narrativas infundadas, nem por isso deixa
+de ser bom português, e que, se não está excessivamente inclinado a
+adorar o Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em Deus.
+
+Com elles, com v.. a discussão grave, pausada, modesta, é possivel; é
+mais, é uma necessidade do espirito, em que este se sente viver da vida,
+a elle tão congenita, do raciocinio. Mas como replicar seriamente a
+homens, não só ignorantes e ineptos, do que elles não tem culpa, mas que
+falsificam, truncam, omittem as palavras do adversario, que lhe alteram
+as ideas, que, mettidos no charco mais fetido dos becos da Alfama ou do
+Bairro Alto, atíram ás faces do _impio_ que passa quanto lodo lhes cabe
+nas mãos, contrahidas e convulsas pela colera? A taes desgraçados que se
+póde fazer, senão dar-lhes a triste celebridade dos Cotins ou dos freis
+Gerundios, e enviá-los á geração futura, envolvidos no sudario do
+escarneo, para lhe distrahir os tedios?
+
+Se as expressões, talvez severas e acres em demasia, que me escaparam
+n'um impeto de indignação contra a maioria do nosso clero, e não contra
+os homens honestos e instruidos que pertencem a essa classe, como sem
+pudor se inculca, não estivessem justificadas pelos actos que as
+suscitaram, as consequencias do meu escripto tê-las-hiam remido. Dos que
+me impugnaram, foi aos seculares que coube a moderação, a lealdade, e a
+elevação dos pensamentos; foi a sacerdotes que couberam as manifestações
+de odio incrivel[21], a transfiguração das minhas ideas, e a linguagem
+sem nome das prostitutas. Isto é significativo. É que esses seculares
+nunca tinham trajado a roupeta, usada a cubrir mais hypocritas e
+devassos ignorantes do que varões religiosos e sabios: tinham, sim,
+vestido a farda de soldado, costumada a despertar tantas vezes nobres e
+grandes instinctos. E que me importam a mim esse odio impotente, essa
+linguagem vergonhosa? O que o futuro ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o
+v.. As ameaças, que ahi se murmuram pelos cantos, essas causam-me dó. Se
+ao poder publico faltasse a força para manter illesa a segurança dos
+cidadãos, devolvia-se a estes o direito da propria defesa. Mas os
+Jacques-Clementes não apparecem senão onde a sinceridade das convicções
+degenerou em delirio, e não onde as crenças são especulação. Para ser
+Jacques-Clemente requer-se mais alguma cousa do que saber assassinar; é
+necessario saber morrer.
+
+Entrarei na materia.
+
+Na questão suscitada pelo modo como tractei na Historia de Portugal a
+lenda de Ourique, e ainda outras lendas analogas, é necessario confessar
+que se tem partido sempre de um ponto nebuloso e fluctuante. Para se
+chegar a um resultado preciso era necessario ter convindo em certo
+numero de principios, acceitar certas formulas de raciocinio. Não se fez
+isso. E todavia, a crítica historica tem regras para a credibilidade,
+regras a que todo aquelle que tracta de taes materias deve sujeitar-se,
+porque se estribam, não só na acceitação dos homens de sciencia, mas
+tambem na razão commum. Estes preceitos são no nosso seculo, em que os
+estudos historicos têm feito na Europa tantos ou mais progressos que as
+outras sciencias, assaz severos; mas essa severidade começou a
+desenvolver-se desde os fins do seculo XVII, em que a congregação de S.
+Mauro, aquelle brilhante seminario de homens illustres, creou a
+diplomatica. O estudo dos archivos, estudo alumiado pela philosophia
+crítica, mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas compilações de
+trabalhos historicos dos seculos anteriores. É de S. Germão dos Prados,
+de S. Brás da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos da França
+e da Allemanha, que partiu o movimento intellectual da Europa nesta
+parte do saber humano. O que o seculo presente, amestrado por maior
+experiencia, tem feito é apertar mais as condições da credibilidade,
+evitando ao mesmo tempo todo o genero de preoccupação que possa proceder
+dos interesses de partido politico ou da incredulidade em materias de
+religião; é tambem o ter dirigido as indagações historicas mais para o
+estudo da indole das sociedades, do que para os actos dos individuos.
+Não nega as tradições da antiga sciencia; completa-as, aperfeiçoa-as. No
+exame dos monumentos, na sua confrontação, tem dado exemplos de
+imparcialidade e de paciencia, que mereceriam os applausos dos grandes
+reformadores benedictinos, se podessem contemplar os resultados da
+eschola que elles crearam, embora a sciencia moderna, como era natural,
+os tenha deixado bem longe de si. Os doutos que têm comparado os
+_Monumenta Germaniæ Historica_ de Pertz, os _Monumenta Historiæ Patriæ_,
+publicados em Turin, a Collecção dos Archivos d'Inglaterra, a
+continuação dos _Scriptores Rerum Francicarum_, e emfim as demais
+publicações desta ordem com o que os maurienses nos deixaram nesse
+genero, sabem que passos gigantes tem dado a crítica das fontes
+historicas. O uso dessas fontes, a applicação dos preceitos a ellas, tem
+produzido historiadores como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Amári,
+Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira conhece e admira. É a
+estes typos que hoje forçosamente ha-de tentar aproximar-se quem
+escrever historia, se não quizer deshonrar-se e deshonrar a litteratura
+do seu paiz. Foi essa aproximação que eu tentei, persuadido de que bem
+merecia por isso da terra em que nasci. Se é assim ou não, pertence
+decidi-lo áquelles que vierem após nós. No meio de uma revolução
+litteraria não ha desafogo de animo bastante para se fazer inteira
+justiça, nem aos meus esforços, nem á candura das minhas intenções.
+Conheço a difficuldade de se abandonarem antigas preoccupações, e seria
+louco se me irritasse com isso.
+
+Mas para refutar as impugnações que até aqui têm apparecido não me
+parece necessario invocar a sciencia no seu estado actual, e nem sequer
+a sciencia anterior na sua applicação á historia profana. Bastam-me as
+regras acceitas pelos historiadores ecclesiasticos mais respeitaveis,
+inculcadas por theologos, estabelecidas por membros illustres do clero,
+a quem nem uma unica voz ousará accusar de menos crentes, ou sequer de
+menos piedosos. É, creio eu, e v.. o julgará, acceitar a situação mais
+desvantajosa possivel: é tambem o que eu já tinha feito invocando a
+regra de Vicente de Lerins. Se a religião (cuja base é a crença em
+cousas que excedem a comprehensão humana, e que nos impõe a synthese, o
+dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente á analyse) exige dos
+factos tradicionaes, antes de os acceitarmos, as condições de terem sido
+acreditados _sempre, em toda a parte, e por todos_, quem pede para crer
+ou deixar de crer factos puramente humanos (sujeitos pela sua natureza a
+toda a discussão possivel) apenas as garantias de liberdade intellectual
+que a igreja, tão parca em concedê-las, concede aos fiéis para
+acceitarem uma parte das suas crenças, não abdica evidentemente de uma
+liberdade, de uma vantagem que é sua, que ninguem lhe disputaria? Mais
+de uma vez terei talvez de appellar para a probidade litteraria e para a
+intelligencia de v.. e dos homens sinceros e honestos que pensam como
+v..; mas aqui, parece-me tão evidente a materia, que a deixo á discrição
+do espirito mais vulgar, da consciencia mais prevenida. Se Galileu,
+quando descobriu que era a terra e não o sol que andava, tivesse
+presentes as condições do Comonitorio, não o teria affirmado, e evitaria
+as perseguições da inquisição, postoque deixaria para outro a gloria de
+ter descuberto um facto importante. Aquelle canon, applicado á sciencia,
+é mais perigoso para a verdade nova do que para o erro antigo.
+
+Eu disse que as auctoridades que estabeleceram as regras historicas
+acceitas por mim serão ineluctaveis para aquelles mesmos que mais
+ferrenhos se mostram em conservar quanto os tempos passados nos
+transmittiram. Essas regras, pois, ao menos as principaes, permitta-me
+v.. que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver uma parte do clero
+insultar-me nos pulpitos e na imprensa, calumniar-me nas praças e
+corrilhos, porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas
+_para se estudar e escrever a historia da igreja_ por homens que são a
+gloria e honra da classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos, na
+consciencia de todos não estivesse quanto escrevi ácerca da decadencia
+intellectual da maioria do nosso clero, parece-me que o que vou
+transcrever sería medida sobeja para por ella se aferir essa verdade. Já
+que falei dos religiosos da congregação de S. Mauro, começarei pelo mais
+celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon. Eis o que elle nos
+ensina:
+
+1.^o «Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos no estudo da
+historia é em evitar todos esses vicios em que é facil cair; quero
+dizer, evitar admittir por verdadeiro o que é falso, ou deixar-nos
+dominar pelas affeições particulares dos historiadores. É necessario,
+primeiro que tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se é idoneo e
+sincero; o que o moveu a escrever; se pertence a algum bando ou
+seita...»
+
+2.^o «Devemos averiguar _se o auctor que lemos é synchrono_
+(contemporaneo); se escreveu elle proprio, ou se copiou outro; se é
+prudente nas suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas;
+porquanto, dada a paridade no demais, deve preferir-se a opinião do
+auctor coevo á do mais moderno. Digo--dada a paridade no demais--porque
+póde acontecer, e acontece ás vezes, escrever a historia com inteira
+madureza o auctor não synchrono, estribado _em monumentos serios_ e boas
+razões, e o contemporaneo muito ao contrario, ou seja por negligencia,
+ou seja por ignorancia dos factos, ou seja por alguma prevenção, ou
+finalmente porque o _subjuga a força do proprio interesse_.»
+
+3.^o «Segue-se d'aqui _não se dever confiar demasiado naquelles factos
+sobre que os escriptores rigorosamente contemporaneos, ou quasi
+contemporaneos, guardaram silencio_; postoque possa acontecer que um
+auctor mais moderno consultasse alguns monumentos importantes, guardados
+em logar occulto quando os factos aconteceram, ou visse escriptores
+synchronos, ou quasi synchronos, cujas obras depois se perdessem.
+
+«_Se, porém, esses escriptores, ou os que lhes succederam, no intervallo
+de um até dous seculos, nada dizem a tal respeito, e não obstante isso,
+um historiador mais moderno, sem se estribar em testemunho ou
+auctoridade alguma, se atreve a asseverar temerariamente esses factos,
+bem pequena conta se deve fazer delle_, aliás abririamos ampla estrada
+para errarmos, e para enganarmos os outros.»
+
+4.^o «Com todo o cuidado nos devemos premunir para não sermos
+illaqueados por alguns auctores suppositicios, inventados nestes nossos
+tempos...»
+
+5.^o «Não se deve proscrever qualquer auctor por um ou outro defeito de
+paixão ou allucinação, pela rudeza do estylo, ou por outra imperfeição
+propria da natureza humana, comtanto que seja sincero e pontual no
+resto...»
+
+6.^o «Não se devem desprezar os antiquarios, auctores de resumos
+historicos, e compiladores...»
+
+7.^o «Quando as narrativas variam, não nos devemos deixar attrahir pela
+consideração do numero, mas sim pelo merito e gravidade[22] dos
+auctores; visto que muitas vezes acontece que a auctoridade de um auctor
+grave e sincero merece preferir-se ao testemunho de cem de menos fé,
+_porque estes se foram repetindo uns aos outros sem madura discussão e
+diligente exame das cousas_...»
+
+8.^o «Por este mesmo motivo não deve fazer-se grande fundamento na quasi
+innumeravel multidão de casos que muitos modernos costumam amontoar nas
+vidas de certos sanctos... Dizendo isto, sinto apertar-se-me o coração,
+e com magua devo accrescentar, que são muitissimo mais exactos os
+auctores profanos escrevendo vidas de ethnicos, do que muitos christãos
+relatando vidas de sanctos, o que já não receou affirmar Melchior Cano,
+referindo-se a Diogenes Laercio e a Suetonio.»
+
+Ouçamos ainda n'outra parte o fundador da diplomatica francesa:
+
+«É necessaria a crítica para distinguirmos as historias verdadeiras das
+falsas; para não darmos temerariamente credito a narrações
+supersticiosas, a vans opiniões, a delirios aereos, a _milagres fingidos
+ou duvidosos_, a _escriptos suppostos dos sanctos padres_. O veneravel
+Guigo, quinto geral dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma de
+crítica: ..._Buscae a prova de tudo; o bom respeitae-o. Quem crê de
+prompto é leve de coração._»
+
+Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador da igreja catholica.
+Depois de varias considerações sobre os documentos falsos com que o
+clero innundou a Europa nos seculos de trevas, e da falta de instrucção
+que entre elle reinava, o historiador observa:
+
+«Outro resultado da ignorancia é tornarem-se os homens credulos e
+supersticiosos, por falta de principios seguros de crença e de exacto
+conhecimento dos deveres religiosos. Deus é poderosissimo, e os sanctos
+têm alto valimento para com elle: verdades são estas que nenhum
+catholico rejeita: logo devo acreditar todos os milagres attribuidos á
+intercessão dos sanctos. Má conclusão. Cumpre examinar as provas delles,
+e com tanta mais exacção, quanto esses factos mais incriveis e
+importantes forem. Porque, dar por certo um milagre falso nada menos é,
+segundo S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus, como mui
+judiciosamente observa S. Pedro Damião. Assim, longe de ser acto de
+piedade crê-los de leve, é a propria piedade que nos obriga a
+averiguarmos com rigor as provas em que se fundam. _O mesmo se deve
+dizer das revelações, das apparições de espiritos, das operações do
+demonio... Em summa, toda a pessoa dotada de bom juizo e religiosidade
+deve ser cautelosissima em acreditar factos sobrenaturaes._»
+
+Mas observemos as precauções de que Fleury se rodeava, as balisas que
+para si proprio punha, ao começar o immenso lavor da sua _Historia
+Ecclesiastica_, ainda hoje não substituida, apesar de tantas
+monographias excellentes com que depois tem sido illuminada, por um ou
+por outro aspecto, n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis os
+limites que elle estabeleceu á credibilidade n'um genero de escriptos
+onde esta poderia ser mais ampla, limites que á _fortiori_ não será
+nunca licito ultrapassar em matéria de tradições humanas. Mas antes
+permitta-me v.. que cite algumas passagens, as quaes me parecem
+grandemente applicaveis a essa parte do clero, que, em vomitando, no
+pulpito ou na imprensa, contra quem diz a verdade, quantos adjectivos
+injuriosos contém o diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra
+dessas fabulas e crendices que estão costumados a propalar entre o povo,
+provavelmente pela mesma razão por que prégam mal, isto é _porque os
+festeiros gostam d'isso_, embora os concilios lh'o prohibam, os
+apostolos os condemnem, os membros mais doutos e pios da igreja
+catholica lhes mostrem o abysmo em que se precipitam! Para onde has tu
+fugido, oh religião de Christo?!
+
+«Vejo bem--diz Fleury--que a minha historia não ha-de agradar aos
+espiritos acanhados, atidos ás suas preoccupações, e sempre promptos em
+condemnar os que pretendem desenganá-los; aos que tapam os ouvidos
+quando a verdade soa, para se abraçarem com as fabulas, buscando
+doutores que vão com elles. Não lhes faltarão livros acommodados ao
+paladar. Escrevo em vulgar para ser util aos homens de juizo...»
+
+«Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um de credulidade, outro de
+critica. Nem só a simpleza faz credulos. Pessoas ha que o são por
+politica e por deploravel sobranceria. _Julgam que o povo é incapaz ou
+indigno de saber a verdade; e tem por necessario alimentar-lhe todas as
+opiniões que lhe foram inculcadas como religião_, receiosos de abalar o
+que é solido, atacando o que é frivolo. Na essencia, estes suberbos
+politicos são ignorantissimos. Desconhecendo a religião, não a tomam a
+serio, e nada os liga a ella senão as preoccupações da infancia e os
+interesses temporaes. Nunca examinaram as seguras provas do evangelho,
+nem sentiram a excellencia da sua moral e a esperança dos bens eternos.
+_É por isso que não ousam profundar as cousas antigas e temem
+conhecê-las_: sabem que lhes não são favoraveis. Querem crer que sempre
+se viveu como hoje, porque não querem mudar de vida, como se nos fosse
+proveitoso enganar-nos a nós mesmos, ou se a verdade podesse trocar-se
+em mentira á força de averiguações. Graças a Deus, a fé christan passou
+pelo chrysol; o que ella _teme_[23] é que não a conheçam.
+
+«A outra especie de pessoas credulas em demasia são christãos sinceros,
+mas fracos e escrupulisadores, que á propria sombra da religião
+respeitam, e sempre receiam crer de menos. Falta a uns a instrucção;
+cerram os outros os olhos, e não querem fazer uso do entendimento. É
+para os taes objecto de devoção crer quanto escreveram os auctores
+catholicos e quanto crê o ignorante vulgo. A meu vêr, a _legitima
+devoção consiste em prezar a verdade e a pureza da religião, e em
+observar, primeiro que tudo, os preceitos expressamente estabelecidos na
+sagrada escriptura_. Ora, vemos que S. Paulo recommenda repetidas vezes
+a Tito e a Timotheo que evitem as fabulas, predizendo tambem que uma das
+desordens do fim do mundo será o affastarem-se os homens da verdade para
+se aterem a crendices; vemos que as fabulas eruditas não merecem menos
+desprezo a S. Pedro que os contos de velhas de S. Paulo; e do mesmo modo
+que elle condemna as fabulas judaicas, teria condemnado as christans, se
+já então as houvesse. Que dirão a isto aquelles que a timidez torna tão
+credulos? Não terão escrupulo em menosprezar semelhante auctoridade?
+Dirão que nunca houve fabulas entre os christãos? Seria desmentir a
+antiguidade em peso...»
+
+«A critica é portanto, necessaria. Sem deixar de respeitar as tradições,
+deve averiguar-se quaes são dignas de credito; devemos fazê-lo, até, se
+não queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as com as falsas. Sem
+que duvidemos da omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar se os
+milagres estão bem provados, para lhe não levantarmos falso testemunho,
+attribuindo-lhe os que elle não fez.»
+
+Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico ácerca dos milagres,
+estribado nos livros que Deus inspirou. Quem será, pois, o impio, o
+incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos e as doutrinas dos
+homens mais piedosos e sabios do gremio catholico, ou aquelles que
+esquecidos dos deveres, não digo do sacerdocio (porque neste caracter, o
+seu procedimento não tem nome), mas do simples christão, ousam perguntar
+ao historiador sincero: «_Se é necessario, se é util que o historiador
+se constitua campeão acerrimo contra essas tradições que deturpam a
+historia?_ e que respondem:--_É um arrojo mui imprudente e reprehensivel
+no historiador semelhante intento. Que precisão, que vantagem ha em
+destruir as crenças theocraticas[24], que uma tradição de seculos fora
+radicando no coração do povo? Nenhuma ha:_» e depois accrescentam esta
+maxima impia de Laharpe--«_a politica sabia e devia tirar partido do
+poderoso movel da geral crença, cujos effeitos são geralmente bons em
+todo o governo, mesmo quando a crença é erronea!_» Não peço a v.. tão
+cavalheiro e tão indulgente para comigo; peço ao homem que mais me
+odiar, mas que conserve um resto de pudor, que seja juiz entre mim e os
+desgraçados que não se envergonham, christãos e sacerdotes, de invocar
+contra a Historia de Portugal taes principios e taes maximas, e que
+insultam, não a mim, nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia,
+mas os escriptores mais sabios, mais respeitados do catholicismo.
+
+Mancebos, cujos corações generosos a indignação póde desvairar! No meio
+destas saturnaes hediondas que vedes passar; no meio dos gritos
+descompostos da hypocrisia, que, embriagada de colera, deixa tombar dos
+hombros seu velho e já tão roto manto, e nua e vinolenta pragueja a
+verdade, atira com a fé aos pés da politica, rasga as sacras paginas,
+maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres, e dos sabios, não volteis,
+cheios de horror e de tedio, as costas ao Calvario. Não! A philosophia,
+a honesta liberdade do pensamento, bem vedes que estão sanctificadas no
+livro dos livros, O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes no
+templo ouvirdes dizer que a mentira é sancta, que o povo só póde ser
+virtuoso se crer em falsos milagres, saí, porque o templo está polluido
+pela blasphemia e pela calumnia; mas não renegueis da cruz. A cruz está
+pura; a cruz será eterna. Se esta gangrena que corroe o sacerdocio
+chegasse, o que não creio, a corrompê-lo inteiramente; se não achassemos
+uma ara, juncto da qual orassemos _em espirito e verdade_, a cruz lá
+está hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos paes, para nos
+irmos abraçar com ella: os mortos não tem ouro, os mortos não são
+festeiros, que paguem para se lhes falar a sabor: ahi não se tem
+blasphemado.
+
+Mas, reprimindo a amargura que deve causar a todo o christão sincero o
+ver sacerdotes sacrificarem assim a conveniencias mundanas o verbo de
+Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem e recontarem o preço
+por que o venderam, acolhamo-nos ás placidas discussões da sciencia, e
+vejamos, como já disse, as mais importantes dessas regras que o pio e
+douto Fleury punha a si proprio para evitar os erros da nimia
+credulidade.
+
+«Não tenho em conta de provas, senão o testemunho dos auctores
+originaes, isto é, daquelles que escreveram _contemporaneamente, ou
+pouco depois_. Porque a memoria dos successos não póde subsistir por
+muito tempo sem ser escripta. _Bastante será se durar um seculo._ O
+filho póde lembrar-se passados cincoenta annos do que o pae ou avô lhe
+referiram cincoenta annos depois de o haverem presenciado. Os successos
+que tem passado por varias gerações não obtem a mesma certeza: cada qual
+lhes vai accrescentando alguma cousa de sua lavra, talvez sem o pensar.
+_É por isso que as tradições vagas de factos muito antigos, que tarde ou
+nunca se escreveram, nenhum credito merecem_, principalmente repugnando
+a factos provados. _Nem se diga que as historias pódem ter-se perdido;
+porque, dizendo-se isso sem provas, posso tambem eu affirmar que ellas
+nunca existiram._ O mesmo direi dos escriptores que escreveram successos
+anteriores a elles muitos seculos; _se não citam os auctores d'onde os
+tiraram, temos o direito de desconfiar de que acreditaram de leve os
+rumores vulgares_.....»
+
+«Os proprios auctores contemporaneos não devem adoptar-se sem exame...
+deve averiguar-se bem se o escriptor é digno de fé, quasi como quem
+inquire testemunhas n'um processo... _O que se encontra em cartas, ou em
+outros diplomas da epocha, deve ser preferido ás narrativas dos
+historiadores._»
+
+Até aqui Fleury. Para estas largas citações preferi dous homens de
+indubitavel sciencia e de catholicismo insuspeito. V.. sabe que eu
+poderia tambem citar escriptores da primeira ordem, pagãos ou
+protestantes, mas cuja auctoridade nem por isso seria menor n'uma
+questão que evidentemente não interessa os dogmas da nossa fé. Poderia
+invocar a bella sentença de Cicero: _«Quem ignora que a primeira lei da
+historia é não ousar dizer a menor falsidade, e a segunda não nos faltar
+jámais valor para dizermos a verdade?_» É certo que uma parte do clero
+português do seculo XIX se ergueria para lhe responder:--«_Ignoramo-lo
+nós._»--Eu poderia tambem repetir as palavras do luminar da critica no
+seculo XVII, as palavras de João Leclerc:--«Quando se escreve a
+historia, _sobretudo de tempos antigos_, não é licito dissimular a
+minima cousa; porque a verdade, sem ser nociva aos mortos, aproveita
+muito aos vivos; e pelo contrario a dissimulação, inutil para aquelles,
+é profundamente damnosa a estes.»--Não me quiz aproveitar dessas
+auctoridades summas, porque um não era christão, outro não era
+catholico. Parece-me que é levar longe o escrupulo. E todavia, o
+protestante Leclerc estribava-se na opinião de S. Isidoro
+Pelusiota--«Aquelles--diz o sancto--que com artificiosas palavras
+encobrem a verdade, muito mais desgraçados me parecem de que os que não
+a comprehenderam. Porquanto, os que por curteza de engenho não a
+alcançaram, estes não são talvez indignos de desculpa; mas os que, sendo
+dotados de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente a occultam,
+commettem mais grave e imperdoavel peccado.»
+
+Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e Fleury eram sobretudo
+eruditos. Haveria nelles menos luzes theologicas? Serão os theologos de
+profissão mais indulgentes para com as lendas e tradições não provadas?
+Exigirão, ao menos em referencia á historia da igreja, maior credulidade
+nos que a estudam ou escrevem? Ouçamos o celebre Melchior Cano, o qual
+ninguem accusará de excessivo amor pelos fóros e liberdades do
+raciocinio: eis algumas das suas observações ácerca do credito que deve
+dar-se ás tradições infundadas.
+
+«A principal regra (para distinguir as narrativas falsas das
+verdadeiras) deduz-se da probidade e inteireza humanas; regra
+perfeitamente applicavel quando os historiadores _testificam terem
+presenciado os successos que narram, ou terem-nos sabido daquelles que
+os presenciaram_...»
+
+«É cousa averiguada que esses que escrevem fingida e enganosamente a
+historia ecclesiastica não podem ser gente boa e sincera, e que toda a
+sua narrativa é tecida _para d'ahi tirarem lucro_, ou para persuadirem o
+erro; _torpes no primeiro caso_, perniciosos no segundo. Justissimas são
+as queixas de Luiz Vives ácerca das historias inventadas no seio da
+igreja; _prudentes e graves as arguições que dirige áquelles que julgam
+obra pia fazerem de mentiras religião_, cousa altamente perigosa e
+profundamente inutil. Do mentiroso nem a propria verdade ousamos
+acreditar. Por isso _os que pretendem concitar os animos ao culto dos
+bemaventurados com falsos e mentirosos escriptos, nenhum outro resultado
+tirarão, talvez, se não negar-se fé ás cousas verdadeiras por causa das
+falsas, e tornar-se duvidoso aquillo mesmo que referem com severa
+consciencia auctores de inteira veracidade_.»
+
+Preciso de implorar toda a indulgencia de v.. para transcrever em
+seguimento a esta passagem, admiravel de cordura e de legitima piedade,
+outro bem diverso extracto. Juro que não o faço com o intento de
+humilhar os homens sinceros e honestos, a quem, a meu vêr, cega um erro
+deploravel. É para vingar a religião injuriada; é para dar ao paiz um
+desses espectaculos repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios
+recorriam para evitar um vicio hediondo, mandando assistir um escravo em
+completa embriaguez ao jantar commum da mocidade d'Esparta. Só advirto
+que a passagem é concepção de um sacerdote, que celebra por certo
+tranquillamente o tremendo sacrificio do altar, sem que em todas as
+paginas do missal[25] leia, escriptas em letras de fogo, estas palavras
+que Jesus, o inimigo da mentira, dizia aos escribas e phariseus de outro
+tempo:
+
+«Hypocritas! Bem prophetisou ácerca de vós Isaias, quando disse:
+
+«Esta gente honra-me com os labios; mas o seu coração está affastado de
+mim.»
+
+Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma vez, peço venia de lançar,
+depois das doutrinas de Melchior Cano, n'um papel que é dirigido a um
+homem tão delicado como v..
+
+«Os historiadores têm advertido que os factos maravilhosos, os prodigios
+singulares, que registavam em seus escriptos _não eram fundados senão em
+rumores populares_; outras muitas vezes tem-nos tambem referido sem esta
+precaução, já porque _elles mesmos fossem povo a tal respeito_... já
+porque elles não julgassem dever abalar a crença vulgar; bem convencidos
+que á sombra de um prejuizo repousava ás vezes uma verdade util, a que
+talvez tivessem vergonha de prejudicar.»
+
+«Eis aqui os _dictames prudenciaes_, adoptados pelos mais distinctos
+historiadores, ácerca dos successos de caracter maravilhoso, que devem
+dirigir todo o escriptor sensato. _O contrario é querer campar por uma
+anomalia extravagante e ridicula..._»
+
+«Se, porém, gravemente offende o melindre patriotico de uma nação
+aquelle que simplesmente contradiz os pontos _theocraticos_ das suas
+tradições historicas constantemente recebidos e venerados; quanto não se
+torna mais altamente _réu d'este attentado_ aquelle escriptor, que não
+só os nega, mas tem a _asquerosa villania_ de á cara descuberta os vir
+insultar? Se alguem ha no orbe litterario que mais demonstrativamente
+tenha commettido _tão reprehensivel e extranho excesso_, é por certo o
+auctor da carta aviltante, a respeito da Apparição de Christo a D.
+Affonso Henriques. _É uma das ulceras mais pustulentas que conspurcam e
+aviltam esse escripto sandeu_, que rancorosamente a impropéra...»
+
+«Como é crivel que uma fabula... fosse sustentada como facto verdadeiro
+por seculos...? _Quando, porventura, o tivesse sido, teria, não receio
+dizê-lo_, por effeito dessa universal crença dos sabios, _perdido a sua
+natureza e deixado de o ser!!!_...»
+
+Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo, para continuarmos a
+averiguar tranquillamente se os theologos de profissão concordam com os
+eruditos de reconhecida piedade nas bases da critica historica. Ainda
+algumas palavras de Melchior Cano.
+
+«Achareis outros, não tão ineptos, mas quasi tão imprudentes, que não
+buscam a verdade das cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar
+onde é raro encontrá-la, _em aereos e vagos rumores_. Acontece isto
+frequentemente aos inconstantes e leves de cabeça; _porque os homens
+graves e severos não costumam andar á caça dos dictos vãos do vulgo_.»
+
+Desçamos já aos fins do seculo XVIII, quando a incredulidade corria como
+lava ardente pela face da Europa, e devorava as crenças mais sanctas e
+legitimas em milhares de corações. Vacillou, acaso, por isso a critica
+dos homens probos e pios nos seus principios de severidade? No meio de
+tantas ruinas, quizeram elles salvar com os restos do edificio a sua
+falsa miragem? V.. o julgará pelas doutrinas de muitos varões religiosos
+dos ultimos tempos, inteiramente accordes com as dos que os haviam
+precedido. Por exemplo, o theologo piemontês Denina, diz-nos:
+
+«Acontecem algumas cousas fóra da ordem natural, que, de per si só, são
+incriveis... a esta categoria pertencem, na igreja de Deus, os milagres,
+os quaes, _nem é licito rejeitar na sua totalidade, nem se devem
+acceitar todos sem selecção_...»
+
+«Pertence á prudencia do historiador _nada escrever, que não saiba por
+si proprio, ou não se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas_,
+cumprindo-lhe, não menos, ser pouco credulo. Mas _ninguem póde ter
+conhecimento do que narra, se não viveu no tempo em que os factos
+aconteceram; nem sabê-los de pessoas fidedignas, se estas não os
+presenciaram_; nem escapa de credulo, se não explicar e expender as
+razões, causas e circumstancias do que relata. Auctores que assim o
+fazem _nenhum credito merecem_...»
+
+«Nem tudo quanto o historiador relata do seu tempo se ha-de acreditar;
+salvo constando que fôra curioso em indagar e explorar...»
+
+«Se o historiador referir cousas, não do seu tempo, mas succedidas
+muitissimo antes, dar-se-lhe-ha credito, _se individuar os auctores
+d'onde as tirou_, sendo _aliàs daquelles que as podiam saber_...»
+
+«Não duvido de chamar _máu historiador_ a todo aquelle que devendo ter
+por norma o não ousar dizer a menor falsidade, _nem faltar-lhe animo
+para dizer qualquer verdade_, encubrir esta aos leitores, _seja por que
+motivo for_...»
+
+Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins do seculo passado: assim
+pensavam tambem os theologos catholicos da Allemanha, ou antes do paiz
+mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous, um dos quaes, ou ambos,
+a nossa universidade honrou, escolhendo as suas instituições de historia
+ecclesiastica para compendios nas faculdades de theologia e de direito
+canonico. Falo de Gmeiner e Dannenmayr. As secções desses compendios
+relativas ao _criterium_ da verdade historica nada mais são do que o
+desenvolvimento das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury, de
+Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de Muratori, de Baumeister; em
+summa de todos os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram
+ex-professo ou accidentalmente da crítica historica. Andam esses livros
+nas mãos de todos, menos nas do clero ignorante e corrupto, porque este,
+coitado, não sabe ler. Não serei, por isso, demasiado extenso em
+citá-los, escolhendo apenas as passagens mais frisantes, e que fazem
+sobretudo ao intento.
+
+«Como os narradores--diz Gmeiner--por falta de _habilidade_ sufficiente,
+ou de sciencia, nos _possam_ enganar, ou por falta de _sinceridade_, ou
+por vontade nos _queiram_ illudir, só podêmos acquiescer ao seu
+testemunho, se não houver razões sufficientes para duvidar da sua
+habilidade ou sinceridade.»
+
+«A auctoridade das testemunhas não é uma e a mesma, e portanto deve
+attender-se a esta diversidade. Observa-se ella 1.^o em relação aos
+sentidos, 2.^o em relação ao entendimento, 3.^o em relação á vontade. Em
+relação aos sentidos, essas testemunhas ou são de vista ou de ouvida.
+_As de ouvida ou são coevas, ou não coevas mas que ouviram aos coevos o
+que narram_...»
+
+«D'aqui se segue, _que pouca fé deve dar-se áquillo que os escriptores
+ou absolutamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos deixaram de
+mencionar_...»
+
+«A verdade dos conhecimentos historicos não depende de modo nenhum da
+abundancia dos historiadores, visto que _não provém maior certeza a um
+facto historico de ser relatado em livros de muitos auctores mais
+modernos, cada um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto. Todos
+elles junctos não valem mais do que o primeiro que o referiu_...»
+
+«A consideração do paiz em que o escriptor viveu, e do tempo em que
+escreveu importa muito em relação ao seu intuito de falar verdade.
+N'alguns paizes a liberdade de escrever é franca; n'outros opprimida;
+n'outros, emfim, ha premios para a lisonja, odio e castigo para a
+verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores lisonjeiros da curia
+romana receberam ás vezes em premio _de suas fadigas_ o barrete
+cardinalicio ou a dignidade do episcopado. _Naquellas provincias onde
+vigorou o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta
+para a verdade._»
+
+«Não faltaram impostores e falsarios, que trabalharam em alterar varias
+passagens nos antigos monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram a
+outros.»
+
+Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas linhas do theologo
+Dannenmayr:
+
+«Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica--diz elle--devemos
+principalmente ter em mira, _que nem se nos inculquem fabulas sobcolor
+de verdades, nem consideremos como duvidosos factos absolutamente certos
+e largamente provados._»
+
+Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario estabelecer uma doutrina,
+uma norma, por onde os animos imparciaes, e ainda os prevenidos, mas
+sinceros nas suas prevenções, houvessem de julgar-me, não tanto no foro
+da sciencia, que era o meu foro, que era aquelle para onde eu tinha
+direito de trazer o litigio, mas nó da mais restricta piedade. Em these,
+a contenda dos que blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia (e
+que apologia, meu Deus!) das tradições fabulosas, não é comigo; é com os
+apostolos, com os sanctos, com os historiadores do catholicismo, com os
+theologos, com todos aquelles e com tudo aquillo a que mais importava á
+hypocrisia mentir acatamento nesta comedia beata. A tonta e imprudente
+não se lembrou de que lhe caía a mascara, e de que alguem poderia
+levantá-la para a entregar ao povo, que nos seus grandes instinctos de
+justiça lhe fustigaria as faces com ella. Na hypothese, no que me diz
+respeito, o meu dever é provar aos homens sinceramente pios que,
+rejeitando falsas lendas, não ultrapassei os limites de uma crítica
+irreprehensivel. Será esse o objecto da carta immediata, que em breve
+espero dirigir a v.. Nas seguintes darei razão das minhas opiniões
+ácerca da maioria do nosso clero, e ácerca da curia romana.
+Compelliram-me a isso; fá-lo-hei gemendo. Quizeram que o paiz os
+conhecesse: hão-de ser satisfeitos.
+
+Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos choram em silencio a
+vergonha da sua classe, e emquanto os prelados dormem tranquillos nas
+suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa dos tristes
+dias de tempestade!
+
+
+
+
+IV
+
+SOLEMNIA VERBA
+
+
+SEGUNDA CARTA
+
+AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES
+
+(_Novembro, 1850_)
+
+
+Na minha antecedente carta deixei eu, ou para me exprimir com mais
+exacção, deixaram muitos e mui piedosos escriptores catholicos apontadas
+as principaes regras da critica, em relação ás fontes historicas. Dessas
+regras resulta o que a boa razão está por si indicando; que é necessario
+premunir-nos contra a credulidade, não só por honra da sciencia e pela
+consideração do proprio credito litterario, mas tambem, o que é mais
+grave, para não deslizarmos da doutrina dos apostolos, inculcada nos
+livros sanctos. O mais necessario canon, em que de certo modo todos os
+outros se consubstanciam, é o atermo-nos unicamente aos testemunhos
+synchronos ou quasi synchronos, aos testemunhos daquelles que
+presenciaram os factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos
+contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes e criveis, quer
+sobrenaturaes e incriveis para a razão humana; quer elles nos sejam
+transmittidos por narrativas coevas ou quasi coevas, quer por documentos
+do tempo, embora descubertos por escriptores modernos. Quando, porém, se
+tractar de milagres, a critica deve ser tanto mais severa, quanto é
+certo que a isso nos constrange o dever religioso, que nos impõe as
+palavras de S. Paulo, o dever de não levantarmos falsos testemunhos a
+Deus.
+
+Que podia eu fazer em relação ao supposto milagre de Ourique, escrevendo
+a historia do reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente chronicas,
+historias, documentos coevos ou quasi coevos, que o narrassem. O exame
+attento de quanto modernamente se escrevera para supprir a falta de
+provas daquella celebre tradição, só tinha servido de convencer-me das
+aberrações em que se podem transviar ainda os espiritos mais elevados,
+quando, em vez de buscarem simplesmente a verdade, buscam accommodar os
+caracteres desta a um preconceito. Não me era possivel omittir a batalha
+de Ourique. Que podia eu fazer, repito, ácerca do milagre da apparição?
+Ou mentir á minha consciencia, alevantar um testemunho a Deus, pospôr as
+doutrinas dos homens mais pios e eruditos do orbe catholico, que falaram
+de critica historica, calcar aos pés a maxima do mais illustre escriptor
+romano, ou então manifestar sem hesitação as proprias convicções, que
+julgava e julgo legitimas, isto é, proceder de um modo que v.. mesmo crê
+nobre e honroso[26]; affirmativa, que, seja dicto em boa paz, não sei se
+está em perfeita harmonia com a idéa geral que predomina nas
+considerações que v.. tem tido a bondade de dirigir-me sobre os
+inconvenientes que resultam, no entender de v.. para a nossa patria
+commum, da manifestação das minhas doutrinas.
+
+Disse, pois, o que suppús e supponho verdade: disse-o sem sobre isso me
+dilatar, sem exaggeração, sem pretensões a ter feito um importante
+descobrimento historico; porque realmente o não era: disse-o
+singelamente, simplesmente: indiquei apenas de passagem as
+incongruencias historicas, que desmentiam a importancia que se costuma
+attribuir ao successo. E n'esta parte, seja-me licito dizê-lo, nem v..
+nem ninguem se encarregou de me refutar; porque, na verdade, seria um
+pouco difficil de admittir que houvesse centenas de milhares de
+sarracenos para virem combater em Ourique, quando os almoravides
+concentravam todas as forças em Africa, para salvarem o imperio da
+ultima ruina, exhaurindo a Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem
+a heroica guarnição de uma praça como Aurelia ao seu triste destino. A
+narrativa anterior, o quadro da situação dos lamtunitas e das
+perturbações quo agitavam as provincias mussulmanas do Gharb habilitavam
+o leitor para por si fazer conceito das dimensões da batalha de Ourique.
+Se em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia foi em procurar,
+talvez em demasia, achar resultados moraes dessa batalha, para de algum
+modo desculpar a significação exaggerada que depois se lhe attribuiu.
+Sobre a apparição disse apenas o restrictamente necessario para o leitor
+vulgar conhecer que eu não a admittia. Se tivesse o proposito deliberado
+de combater quando podesse ferir o chamado sentimento religioso do povo,
+crê v.. que eu não teria recursos para aproveitar o lado contradictorio
+e até ridiculo, (que cousa ha neste mundo onde elle se não possa
+encontrar?) do celebre milagre, sem todavia abandonar o estylo grave da
+historia? Crê v.. que se eu intentasse buscar as causas provaveis da
+invenção dessa maravilha, e avaliá-las severa ou, se quizerem,
+malevolamente, me faltariam meios para assim o practicar? Permitta-se-me
+dizer que foi necessaria demasiada prevenção contra mim, ou a favor da
+inviolabilidade da apparição, para se não ver que procurei, quanto me
+era possivel sem offender a verdade, não converter os factos que se
+prendem a esse falso milagre n'um escandalo historico. As extensas notas
+com que finalisa cada volume do meu livro são destinadas para os homens
+da sciencia, para debater os fundamentos das minhas opiniões. Estas
+notas são, portanto, para poucos. A generalidade dos leitores não se
+cansa com essas discussões tediosas. Foi, porém, ahi que eu alludi ao
+ridiculo instrumento do cartorio d'Alcobaça, o que fiz apenas pelo
+desejo de dar uma satisfação aos homens professionaes. Se eu fosse o
+impio, o atheu, e não sei que mais, que por ahi me chamam os padres
+ignorantes e mal procedidos, não tiraria vantagem dessa falsificação
+insigne, para mostrar como a hypocrisia costuma fazer joguete das cousas
+do céu para fins terrenos? Não practicaria ao menos aquillo que a
+justissima indignação de qualquer homem religioso o levaria talvez a
+practicar? Se tal se houvesse de crer, não deveriam qualificar-me de
+impio, mas sim de insigne mentecapto.
+
+Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra de escrever contra as
+minhas opiniões, v.. insiste em que, citando naquella nota a Memoria de
+Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade do diploma de
+juramento conservado em Alcobaça, eu fiz uma citação
+contraproducente[27]. Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano não
+nega ahi redondamente a authenticidade do diploma? O que dizia eu ao
+citar a Memoria sobre os codices d'Alcobaça?--«_Quem desejar conhecer a
+impostura desse documento famoso consulte a Memoria, etc._»--Se o auctor
+concorda comigo em que elle é falso, onde está a improcedencia da
+citação? Se v.. me permitte que seja interprete do seu pensamento, o que
+v.. queria talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho affirma
+que acreditava na apparição, posto negasse a genuinidade do pergaminho
+de Alcobaça, e que eu não creio nem no documento, nem no facto.
+Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo. Não era, porém, para a
+opinião manifestada pelo academico em relação ao successo, mas sim para
+as suas razões contra o diploma que eu remettia o leitor. E realmente, o
+que elle diz em favor do facto não é mais do que repetir o que outros
+disseram antes delle, e citar uma copia de 1597 existente em S. Vicente
+de Fóra vista por elle, e a qual, duas paginas adiante, dá como
+provavelmente tirada _de outro original falso_. O que se vê de tudo
+aquillo é que o pobre frade, conhecendo o risco de mostrar o que era e o
+que valia O ridiculo thesouro dos monges d'Alcobaça, quiz ao menos
+salvar-se, protestando pela pureza da sua crença no milagre de Ourique.
+Talvez, se eu vivesse então, fizesse o mesmo, em attenção á
+circumstancia que nos recorda Gmeiner: «_onde vigorou o terrivel
+tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta para a verdade_».
+
+Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho pelo meu paiz desta
+necessidade de disputar ácerca de um diploma falso, que se acha
+depositado nos archivos do estado, onde qualquer pessoa póde examiná-lo.
+Qualquer pessoa, sim; porque não é preciso ter a menor idéa de
+paleographia para o reconhecer por falso. Basta pôr-lhe ao lado dous ou
+tres diplomas genuinos do meiado do seculo XII, e comparar. Esses
+multiplicados recursos que possue a diplomatica para desmascarar
+falsarios são aqui perfeitamente inuteis. Estou certo de que v.. nunca o
+viu; porque tambem estou certo de que, se o houvera visto, eu acharia
+v.. a meu lado para dizer aos homens sem pudor que ainda ousam inculcar
+como legitima essa invenção torpe: «_Sois uns miseraveis!_»
+
+Sinto sinceramente que v.. se dignasse de tomar para si, a favor da
+apparição, um argumento que devia pertencer precipuo aos apologistas dos
+clerigos ignorantes e devassos. Consiste elle em que, negando eu que a
+tradição de Ourique remonte aos tempos a que se refere, devo dizer
+quando, como, e para que a forjaram. Onde existe semelhante canon de
+critica historica? O que sei é que ella começou a apparecer no ultimo
+quartel do seculo XV, mais de trezentos annos depois da epocha em que se
+diz succedido o milagre; o que sei é que em nenhum escriptor, nem em
+nenhum documento legitimo, coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de
+semelhante tradição; o que sei é que os escriptores modernos que a
+publicaram não se referem a testemunho contemporaneo ou proximo; o que
+sei, portanto, é que as regras de critica adoptadas por homens não menos
+pios que sabios me obrigam a rejeitá-la. Diga-me v..: se um devedor seu
+pretendesse pagar-lhe certa quantia em moeda falsa, v.., depois de a
+examinar e convencer-se da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios
+por que pretende julgar-me, devia reconhecê-la por boa e acceitá-la,
+emquanto não podesse mostrar quando, como, por quem e para que fora
+forjada. Não vê v.. que uma tal regra de critica nos obrigaria a adoptar
+como verdadeiras até as lendas indicas de Vishnú e de Brahma?
+
+Outro argumento me faz v.. que eu tambem desejara tivesse deixado aos
+ex-frades ignorantes e hypocritas: é o da impossibilidade de nossos avós
+terem adoptado uma tradição que não fosse verdadeira. Quer v.. que lhes
+concedamos a mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma honra, o
+mesmo amor da propria fama e dignidade que nós temos. Concedo por um
+momento. Mas o patriotismo de v.. não será tão inimigo da logica, nem
+tão cego, que recuse os mesmos dotes aos avós dos actuaes castelhanos,
+franceses, italianos e allemães. Por aquella doutrina, v.. deve
+acreditar todas as lendas desses paizes, ainda quando a critica
+historica as tenha feito abandonar aos castelhanos, franceses, italianos
+e allemães de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo, acreditar _à fortiori_
+a historia da papisa Joanna, embora já os proprios protestantes se riam
+dessa calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou por
+seculos. Mais ainda: v.. é assaz instruido para não ignorar qual foi a
+civilisação dos arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes
+hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura, qual a nobreza do seu
+caracter. Apesar disso, elles nunca deixaram de crer na tradição dos
+milagres de Mafoma. Não é de esperar da justiça de v.. que recuse a esse
+povo tão culto os dotes intellectuaes e moraes que attribue a nossos
+avós. Adoptará v.. as lendas mussulmanas ácerca do propheta de Mekka?
+Principios que provam tanto, ou antes que provam tudo, permitta-me v..
+desconfiar de que não provam nada. Deus nos livre de pensar que uma
+fabula que se generalisa, se converte por isso em verdade. Semelhantes
+doutrinas, deixe-as v.., christão, cavalheiro, e homem de letras, para
+essa parte da cleresia, que quer lucrar com as illusões populares. A
+nós, christãos, incumbe recordar-nos daquellas tremendas palavras do
+divino Mestre:
+
+«Guardae-vos do fermento dos phariseus, que é a hypocrisia:»
+
+«_Porque nenhuma cousa ha occulta que não venha a descubrir-se; e
+nenhuma ha escondida que não venha a saber-se_....»
+
+«E todo o que proferir uma palavra contra o filho do Homem ser-lhe-ha
+dado perdão; mas _áquelle que blasphemar contra o Espirito Sancto, não
+lhe será perdoado_.»
+
+V.. sabe, tão bem como eu, que, segundo Sancto Agostinho, uma das
+blasphemias contra o Espirito Sancto _é o negar a verdade conhecida por
+tal_.
+
+E é isto o que responde a todas as considerações que v.. me faz sobre a
+conveniencia de não desilludir o povo ácerca das suas tradições
+mentirosas: são estas palavras do Salvador, que fulminam os phariseus
+modernos, como fulminaram os antigos, que me obrigam a falar verdade
+escrevendo a historia. Ainda que essas considerações fossem exactas, a
+patria verdadeira do christão é o céu, cujas portas ficarão cerradas,
+conforme a doutrina de Christo, aos que tiverem desmentido a verdade na
+terra. A patria deste mundo é nosso dever amá-la, sacrificar-lhe tudo,
+menos a honra, menos as esperanças de além do tumulo, menos a fé. É esta
+a mais sancta das tradições que herdámos de nossos paes. O crucifixo
+sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os que nos geraram, não o
+insultemos na vida, para podermos tambem despedir o ultimo alento,
+abraçados com elle, sem terror, sem remorsos, e para o legarmos
+immaculado a nossos filhos; para que elles, no momento de o
+transmittirem moribundos a nossos netos, não se lembrem horrorisados de
+que essa imagem do Redemptor já foi bafejada pelo extremo respirar de um
+blasphemo. Amemos e respeitemos a tradição divina, e tenhamos esforço
+bastante para repellir mentiras, sobretudo quando, segundo as palavras
+do apostolo, ellas envolvem um falso testemunho contra Deus.
+
+Isto é para os christãos. Para os falsos politicos, que cuidam ser a
+religião apenas um instrumento que serve para conter os humildes e
+pobres, a que Christo chama os grandes do seu reino, e a que elles
+chamam massas brutas; para esses, que não crendo acaso em Deus, accusam
+os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores de nossa gloria;
+para esses liberaes e até democratas, que desprezam o povo ainda mais do
+que o desprezavam os poderosos de outros tempos; para os taes não
+applico eu só o dicto de Fleury, de que são ignorantissimos em materias
+de religião; digo tambem que o são em materias de politica. Para o povo
+ser livre, é necessario que seja religioso e honesto; não que seja
+credulo. Para que elle seja religioso e honesto é necessario que conheça
+as doutrinas do evangelho, que não são mais do que a confirmação divina
+da moral universal. Em vez de inculcar crendices ao povo, cumpre
+inculcar-lhe os principios do christinanismo, e as consequencias
+daquelles principios: cumpre illustrá-lo, em vez de o conservar na
+ignorancia; fazer-lhe sentir que a força de practicar grandes e nobres
+sacrificios, tão recommendados por Jesus, é o caracter que distingue o
+espirito immortal do homem do instincto que anima as alimarias. É
+preciso convencê-lo de que o patriotismo, de que esse puro e sancto
+affecto que nos faz abandonar os commodos domesticos, as affeições do
+coração, e arrostar com a fome, com a sede, com a nudez, com a
+intemperie das estações, para irmos morrer n'um campo de batalha,
+salvando a terra em que dormem nossos maiores, defendendo a cruz do
+nosso adro, a vida de nossos paes, a honra de nossas irmãs e mulheres, é
+a manifestação mais solemne da energia do espirito humano, e da
+abnegação christan. E estas verdades eternas; estas verdades, que,
+gravadas nos corações do povo, tantas vezes têm salvado as pequenas
+nações dos intentos ambiciosos das grandes, d'onde se deduzem? É das
+invenções dos milagreiros e falsarios, ou das divinas paginas da biblia?
+
+V.. deve conhecer, como homem de letras que é, a historia dos povos
+mussulmanos. Houve nunca no mundo crença que se estribasse tanto como o
+islamismo em falsos milagres, quasi sempre conducentes a inspirar o amor
+da guerra e o enthusiasmo das multidões credulas? E todavia, quaes foram
+os effeitos desse enthusiasmo, que não correspondia a doutrinas accordes
+com os instinctos naturaes da nossa alma, que não se fundava em
+convicções reflectidas, na certeza moral do dever, mas que se inspirava
+de promessas fingidas do céu? Os mussulmanos devastaram e submetteram a
+melhor porção da Asia e da Africa, e ainda uma pequena parte da Europa:
+formaram quinze ou vinte nações de falsos crentes, e estas nações
+cresceram e civilisaram-se combatendo sempre. E depois? Depois, quando
+foi preciso conservar o edificio; quando se tractou de defender a
+patria, em vez de a tirar aos outros; quando foi preciso repellir em vez
+de aggredir, mostrar essa perseverança, que nem se exalta com o
+triumpho, nem desanima com o revés; que padece, calada e soffrida; essa
+perseverança que é a mais poderosa arma dos povos ameaçados na sua
+existencia, tudo faltou. As nações mussulmanas desmembraram-se,
+fundiram-se, annullaram-se umas, desappareceram outras, e conservando
+todas as suas crenças, todos os seus milagres, ei-las ahi estão as que
+restam, ludibrio da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo ao
+crepusculo da passada gloria, lançando nos dias da afflicção e do perigo
+os olhos para o occidente, a vêr se os filhos da cruz estendem o braço
+para proteger o crescente. As tradições das victorias, as maravilhas
+celestes dos tempos heroicos de Islam lá estão gravadas na memoria de
+todos. Porque não salvam, não regeneram ellas essas sociedades
+atrophiadas e moribundas?
+
+Ainda hoje ha homens das novas idéas, os quaes se dizem cheios de
+illustração e de philosophia, que, abandonando os milagres suppostos,
+não porque os tenham por infundados ou absurdos em si, mas porque suppõe
+que o fanatismo póde lucrar com elles, não querem que se toque nas
+tradições humanas que se ligam á gloria nacional. É verdade que não
+sabem bem que deva consistir a gloria de uma nação, porque nunca
+pensaram nisso. Para elles, que vivem no seculo XIX, onde quer que
+pereceram milhares de homens, combatendo por interesses que não
+comprehendiam, ou por torpe cubiça; onde quer que o ferro e o fogo
+arrasaram as cidades, despovoaram os campos, embora dessas cidades e
+campos nenhum mal tivesse vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem
+mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos e pacificos dos
+gigantes da assolação, dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans,
+avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens as façanhas dos
+proprios avós. Se a historia pergunta:--«Acaso esses combates, em que,
+sem duvida, se practicaram grandes feitos, foram uteis ao progresso
+moral e material do povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram a sua
+decadencia? Está ou não essa gloria militar, aliàs indisputavel,
+assombrada por grandes crimes? Foi a intenção, a qual só determina o
+valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura, ou teve motivos menos
+elevados? Foi um arrojo, um impeto nacional, ou um impulso dado pela
+ambição, ou pelo capricho de algum principe?»--A historia que faz estas
+perguntas ou outras analogas, porque esse é o seu dever, commette aos
+olhos dos taes um crime de leso-patriotismo. O castelhano, por exemplo,
+que disser:--«As barbaridades e crimes commettidos por Cortez, Pizarro,
+ou Almagro, na conquista da America, deshonram as emprezas arriscadas e
+longinquas dos filhos da Peninsula, embora o descubrimento do Novo Mundo
+demonstre a sua pericia, o seu ardimento de navegadores e de soldados.
+Os effeitos dessa conquista foram o corromperem-se os costumes, morrerem
+as industrias nascentes, despovoarem-se os campos da Hespanha,
+seccarem-se, em summa, todas as fontes da sua prosperidade solida e
+legitima: foram amontoarem-se nas mãos do fisco e dos poderosos o ouro e
+a prata, que, obtidos sem custo pelos crimes, se desbarataram sem pudor
+pelos vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades, e com ellas o
+sentimento da dignidade humana, cujo ultimo brado soou nas rebelliões
+contra a tyrannia de Carlos V:»--o hespanhol que disser isto é um mau
+cidadão aos olhos dos mansos guerreadores destes nossos tempos. E
+porque? Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se, elevar-se
+pelas tradições da sua grandeza e gloria. O povo! Pois o povo que tantas
+vezes tracta de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde o berço de
+farrapos até a enxerga rota em que fenece, vai travada de receios, de
+sobresaltos, de desalentos, e de agonias, pensa lá nas cutiladas que se
+deram, nas bombardadas que se despediram, ha tres ou quatro seculos, por
+mãos d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se memoram n'uns livros
+que elle nunca leu, porque não sabe ler, nem tem dinheiro para pão,
+quanto mais para livros? Que são essas palavras retumbantes de
+regeneração pelas tradições, senão sons ôcos, que não correspondem a
+nenhuma idéa? Supponhamos, porém, que todas essas recordações chegavam
+ao povo. Podem ellas servir-lhe de exemplo, de licção para as suas
+necessidades actuaes? N'um paiz onde a riqueza passageira destruiu os
+habitos do trabalho e da economia, entorpeceu pela miseria, resultado
+infallivel da prosperidade ficticia, a energia do coração, que faz
+luctar o homem com a adversidade e vencê-la, de que serve estar de
+contínuo a prégar ao povo:--«Teus avós levaram o terror do seu nome aos
+confins do mundo, saquearam e queimaram emporios opulentos em plagas
+remotas, metteram a pique poderosas armadas, derribaram os templos
+alheios, violaram as mulheres extranhas, passaram á espada os que eram
+menos valorosos que elles, abriram caminho ao engrandecimento dos outros
+povos da Europa, e affeitos a gosos faceis, deposeram aos pés do
+absolutismo as suas velhas franquias, beijaram os grilhões que lhes
+deitavam aos pulsos por que eram dourados, e tornaram-se ludibrio do
+mundo.»--Estas licções é que hão-de ensinar a actividade no trabalho, a
+severidade nos costumes, o amor da liberdade moderada, mas verdadeira, o
+desejo de cultivar as artes da paz, no meio de um paiz decadente, cuja
+unica esperança de salvação está em se desenvolverem nelle essas e
+outras tendencias analogas? Não! O povo, que tem mais logica do que os
+prégadores de vãos apophtegmas, ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de
+concluir que é assaz fidalgo para não contrahir habitos villãos e ruins.
+De historias d'aggressões e de conquistas brilhantes não se deduz a
+necessidade de morrer obscuramente em defesa da terra da patria; não se
+deduz a moderação revestida de firmeza, que faz respeitar pelas grandes
+as nações pequenas; não se deduzem nem o amor do trabalho, nem o amor da
+virtude. Em vez de contarem ao povo as façanhas da Africa e do Oriente,
+contem-lhe qual era o commercio de Lisboa, e o movimento agricola do
+paiz no no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia desses e de
+outros factos analogos lhe é mais proveitosa, material e moralmente, de
+que recordar-lhe a gloria de batalhas e de conquistas.
+
+Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras lendas humanas nunca
+salvaram um paiz, quando a podridão penetrou no amago da arvore social.
+Onde e quando o homem renega da sua origem divina, vende a liberdade a
+troco de delicias, esquece que o elevar-se acima de viciosas paixões
+traz um goso interior que vale bem todos os que dão os sentidos, não é
+lisonjeando-lhe vaidades, que, nem sequer respeitam a magestade de Deus,
+que o havemos de revocar ao sentimento da dignidade e do dever. V..
+sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio romano, e
+nomeadamente a historia do baixo-imperio. Não leio essas paginas
+melancholicas, sem que involuntariamente volva os olhos para o estado
+actual de algumas nações modernas: as analogias que encontramos entre
+estas e aquella são symptomas dolorosos; mas não vem para aqui. Eu peço
+a v.. que reflicta sobre essa historia em relação á efficacia das
+tradições. Ella completa o quadro que nos offerecem as nações
+mussulmanas. Não foi no tempo da republica, foi sob o ferreo dominio dos
+cesares, que os poetas cantaram os mythos da gente romana, que os
+historiadores celebraram as suas glorias, e deram a importancia da
+verdade a centenares de lendas tradicionaes e fabulosas, que a sciencia
+moderna, as investigações do grande Niebuhr, reduziram já ao seu justo
+valor. De que serviram, porém, essas glorias, esses milagres do
+polytheismo, contados gravemente a um povo servo e gasto, que apodrecia
+aos pés dos tyrannos? Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos
+espraiavam-se em exaggerações sobre as grandezas passadas, emquanto os
+cidadãos recusavam combater por uma patria que se tornara em nome vão, e
+preferiam o jugo dos barbaros a uma nacionalidade mentida. Os hymnos, as
+gloriosas recordações romanas serviram só para acompanhar ao cemiterio
+da historia o ataúde de Roma.
+
+Consinta v.. que a estas rapidas considerações eu ajuncte ainda um
+exemplo domestico, sobre o qual peço a v.. que medite. Na lucta violenta
+e tenaz que Portugal sustentou nos fins do seculo XIV para repellir o
+dominio estrangeiro, ninguem se lembrou de fortalecer os animos
+invocando o milagre de Ourique; ao menos não espero que v.. me aponte o
+menor vestigio historico que me desminta. A razão para desaproveitar tal
+auxilio foi demasiado forte; foi a razão do cordeiro da fabula--_o
+milagre ainda não era nascido_. E todavia o triumpho coroou os heroicos
+esforços de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente ser livre.
+
+Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava, absoluto e não
+contradicto, no commum dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de
+modo innegavel. E todavia, quasi sem combate, as espadas castelhanas
+acabaram com a independencia de Portugal n'um dia.
+
+Entre os dous factos está, além do milagre, a grande gloria das
+conquistas, gloria que não era uma tradição remota, quasi oblitterada na
+memoria do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a bem dizer actual.
+Alguns dos que mais tinham contribuido para ella ainda viviam.
+
+Estes dous phenomenos, que determinam duas epochas principaes da nossa
+historia, assim aproximados, são a negação mais solemne da utilidade dos
+embustes religiosos, ou para melhor dizer, anti-religiosos, e do orgulho
+selvagem de ter annaes escriptos com o sangue humano vertido em guerras
+não provocadas, em guerras de aggressão, e sobretudo de cubiça.
+
+Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso singular, um general ou um
+homem d'estado tirasse vantagem dessa deploravel força moral que se
+estriba nas superstições, ou nas idéas de uma gloria feroz. A questão é,
+se hoje o povo português tem alguma vantagem que tirar dessas tradições,
+na situação em que a Providencia o collocou. Sejamos sinceros. Póde elle
+sonhar em ser conquistador, ou sequer em constituir uma potencia
+maritima ou continental que pése com demasiada força na balança dos
+acontecimentos politicos? Parece-me que nenhum sisudo o dirá. Somos
+pequenos; mas nem isso é vergonha, nem impedirá que as grandes nações
+nos respeitem, se formos respeitaveis. Para obtermos consideração basta
+que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem á Europa que
+sabemos, queremos, e podemos regenerar-nos pela sciencia, pelo trabalho
+e pela morigeração.
+
+Morigeração, trabalho, sciencia, eis as armas com que a philosophia
+politica deste seculo ensina as nações civilisadas a combaterem n'uma
+lucta generosa. Os espiritos mais altos, seja qual fôr a sua crença
+religiosa e politica, proclamam a paz e a fraternidade entre os homens.
+E não só as proclamam, mas até empregam a poderosa alavanca da
+associação para promoverem, digamos assim, uma cruzada sancta contra as
+tendencias guerreiras. Os esforços collectivos desses homens summos
+serão baldados? Não o cremos. Elles tem um alliado irresistivel. Quando
+os exercitos permanentes e as grandes marinhas militares tiverem
+devorado todo o peculio de cada povo, e exhaurido a melhor e mais pura
+seiva da sua vida economica, é então que a philosophia politica hade
+alcançar um triumpho decisivo. Mas esse triumpho que outra cousa será
+senão o ultimo termo de uma sorites immensa, composta dos factos de
+dezenove seculos, de uma demonstração practica e invencivel, de que a
+lei moralmente necessaria das sociedades modernas é o christianismo, é o
+verbo de amor e da paz revelado no Evangelho?
+
+Nesses dias, que porventura tardam menos do que muitos pensam, que
+destino darão os sacerdotes da bombarda, da lança e da espada aos seus
+deuses fulminados? As palavras «façanhas, gloria guerreira, conquistas,»
+como serão definidas nos diccionarios das linguas vivas, dentro de um ou
+dous seculos? Como julgará a historia os milagres inventados para
+sanctificar o derramamento de sangue humano?
+
+Desculpe v.. esta digressão, que não creio nem inutil nem extranha ao
+assumpto. De novo entrarei directamente nelle, para proseguir nas
+explicações que devo aos meus adversarios sinceros, honestos e
+instruidos, e não á ignorancia malevola e presumida de hypocritas
+insignificantes.
+
+Começarei por dar a v.. a razão moral, a razão suprema, porque rejeito
+não só o milagre de Ourique, mas tambem os outros milagres, como o de
+Alcacer, a que ou a má fé, ou a piedade pouco illustrada quizeram
+attribuir a sorte das batalhas, sorte dependente dos occultos designios
+da Providencia e de mil accidentes, previstos ou fortuitos, explicaveis
+ou inexplicaveis para a historia. Não creio que essas guerras contra os
+infiéis fossem cousa excessivamente christan, e por isso o meu espirito
+recusa-se a acceitar como factos verdadeiros os testemunhos de
+approvação divina a um procedimento anti-evangelico. Na idade média
+passava como cousa corrente, que o guerrear os infiéis e fazer-lhes
+acceitar á força o jugo, aliàs tão suave e tão livre, do christianismo,
+era obra meritoria. Os principes aproveitavam-se desta doutrina, ou,
+para sermos justos, acreditavam-na, em geral, sinceramente:
+acreditavam-na, até, a maior parte dos homens intelligentes e pios.
+Entre estes se distingue o proprio S. Bernardo, que o excessivo zelo da
+gloria do christianismo incitou a promover a segunda cruzada, cujo
+infeliz resultado lhe acarretou tantas accusações amargas, tantos
+desgostos pungentes. A favor das guerras contra os mussulmanos durante a
+idade média, principalmente a favor da que se fazia na Peninsula, podem
+militar boas razões de politica, e até de direito, porque essa guerra
+não era mais do que a reacção contra uma conquista. Razão religiosa é
+que eu não vejo nenhuma que a favoreça. Repugna-me á consciencia que o
+Christo, o Deus de paz e misericordia, viesse pessoalmente ou enviasse
+os seus anjos a incitar christãos a derramarem o sangue humano, a
+levarem a assolação e a morte ao meio daquelles que não o adoravam. Será
+este um modo errado de vêr? A S. Thomás de Aquino, que ainda alcançou os
+tempos das cruzadas, não fizeram força alguma as opiniões que haviam
+dado origem áquellas expedições longinquas, para deixar de estabelecer
+que a diversidade de crença não é motivo bastante para um povo atacar
+outro. Reprovando a guerra de religião, não era possivel cresse que Deus
+approvava essas luctas crueis com manifestações sensiveis. Vê-se,
+portanto, que os _milagres militares_, que então se contavam a tal
+respeito, pouco credito mereciam a um dos homens mais pios do seculo
+XIII, e sem contradicção ao mais profundo philosopho do seu tempo.
+Ouçamos, porém, o grande historiador da igreja, falando dessas guerras
+contra os mussulmanos.
+
+«Os christãos--diz Fleury--devem applicar-se, não a destruir mas sim a
+converter os infiéis... Quando Jesus disse que tinha vindo trazer ao
+mundo a guerra, da sequencia do seu discurso, e do procedimento dos seus
+discipulos se manifesta claramente que só se referia ás turbações que
+havia de excitar a sua doutrina celestial, turbações em que a violencia
+havia de vir toda dos inimigos, a quem os christãos opporiam a
+resistencia que as ovelhas oppõem aos lobos. A verdadeira religião deve
+conservar-se e dilatar-se pelos mesmos meios por que se estabeleceu,
+pela prédica discreta, pelas obras virtuosas, e mais que tudo por
+illimitada paciencia. Se a isso Deus quizer ajunctar o dom dos milagres,
+mais prompto será o effeito. Quando Machiavello dizia que os prophetas
+desarmados nunca saíram com seus intentos, mostrava-se a um tempo
+ignorante e impio; porque Jesu-Christo, o mais desarmado de todos, foi o
+que fez conquistas mais rapidas e firmes; conquistas como elle as
+queria, ganhando as almas, mudando de todo os homens, e tornando-os de
+maus em bons, o que nenhum conquistador jámais fez....»
+
+«Repito pois, que não se deve tractar de diminuir as falsas religiões,
+ou dilatar a verdadeira pelas armas e pela violencia: não são os infiéis
+que se devem destruir, mas sim a infidelidade, conservando os homens, e
+illustrando-os ácerca dos seus erros. Em summa, para isso não ha senão
+um meio, persuadir e converter....»
+
+Imagine v.. se Fleury acreditaria nos milagres d'Alcacer e de Ourique,
+milagres em que se faz intervir o céu para o derramamento do sangue
+humano; milagres, que nem tem o merito de originalidade, porque não
+havia por essa épocha paiz da Europa, onde tambem a credulidade de
+muitos, e a má fé de alguns não tivessem associado largamente o céu ás
+luctas sanguinolentas daquelles tempos tumultuarios e rudes; milagres,
+emfim, que, por sua natureza, são, religiosa e moralmente, absurdos.
+
+De passagem lembrarei a v.. que não é bem fundada a accusação que me
+dirige, de que não appliquei ao milagre de Alcacer a regra de Vicente de
+Lerins, quando foi exactamente o contrario que fiz. Dos tres testemunhos
+presenciaes que temos ácerca daquelle celebre recontro, só em dous se
+allude aos signaes miraculosos que se viram no céu. O auctor da Historia
+Damiatana, que assistiu ao successo, ommitte a circumstancia milagrosa.
+Não acha v.. significativo este silencio? Em todo o caso falta o _ab
+omnibus_ de Vicente de Lerins, e v.. ha de ter presente a doutrina de
+Mabillon, citada por mim na carta antecedente, de que é _temerario_, não
+só o acreditarmos em milagres falsos, mas até nos simplesmente
+_duvidosos_. Quando o sentimento religioso, o respeito das doutrinas
+evangelicas não obstasse á crença nesse favor do céu, obstar-lhe-hia a
+severa doutrina do grande benedictino.
+
+Se não fosse o desejo de dar satisfação plena aos homens escrupulosos,
+mas capazes de se convencerem da verdade, como v.. talvez concluisse
+aqui esta carta, porque as grosserias parvoas da ignorancia e os rugidos
+do interesse ferido, que vê fugir atraz da apparição de Ourique todos os
+milagres rendosos, só se punem com a immortalidade do ridiculo.
+
+Não concluirei, porém, sem dizer alguma cousa em especial sobre a
+tradição do apparecimento de Christo a Affonso I, considerada na sua
+origem, e no modo como foi propagada e defendida. Os principios mais
+solidos da critica, o silencio absoluto, não só dos contemporaneos, mas
+tambem de dez gerações successivas, bastaria para condemnar a tradição
+aos olhos dos desapaixonados, quando ella não fosse absurda em si,
+porque é absurdo pôr Deus em contradicção com a indole do christianismo.
+Ha, porém, na historia da invenção, propagação, e aperfeiçoamento dessa
+lenda tanta hesitação, tantas contradições, tanta imprudencia, tanta
+falsificação, tantos desejos de se illudir ou de illudir os outros, em
+homens que parece deveriam ser superiores a taes fraquezas, que o
+colligir as provas disso é offerecer uma licção salutar do perigo que ha
+em abusar do sentimento religioso do povo para fins mundanos, e da
+miseria a que podem chegar ainda os altos engenhos, quando se esquecem
+das doutrinas evangelicas, e de que as duas cousas que o Salvador mais
+solemnemente amaldicçoou neste mundo foram a mentira e a hypocrisia.
+
+O silencio de mais de tres seculos sobre um facto estrondoso, que
+deveria andar na memoria de todos, como o milagre de Ourique, não é só
+negativo, por assim nos exprimirmos; é tambem positivo. Conjuncturas
+houve, antes dos fins do seculo XV, em que elle se teria publicamente
+invocado, se não fosse uma fabula ainda não inventada. Citarei duas.
+Seria inexplicavel, se admittissemos a existencia da tradição cem annos
+antes de 1485, que nem um só dos prégadores, letrados, e capitães de D.
+João I, os quaes mais de uma vez, nas suas allocuções ao povo e aos
+soldados, reccorreram ás cousas religiosas para accender os animos
+contra os castelhanos, e para crear a confiança de victoria final na
+lucta brilhante da independencia; que nem um só desses prégadores,
+letrados e capitães, os quaes não cessavam de accusar os inimigos de
+scismaticos, pretendendo ligar á sua causa a causa de Deus, se lembrasse
+jámais de citar as promessas feitas por Christo a Affonso I, o que era
+decisivo. Antes disso, tambem, nos principios do seculo XIV,
+tractando-se com grande empenho da separação da ordem de Sanctiago em
+Portugal do grão-mestrado de Castella, o mestre e os freires portugueses
+dirigiram ao papa um longo arrazoado em que argumentavam, que, sendo os
+bens que a ordem possuia em Portugal, reino separado e independente de
+Castella, dados pelos reis deste paiz, não era justo que o grão-mestre
+castelhano os continuasse a desbaratar a seu bel-prazer. Para firmar na
+origem do reino a independencia daquella parte dos cavalleiros que nelle
+residiam, o mestre Pedro Escacho e os seus commendadores allegavam ao
+papa um facto novo, mas do qual era quasi impossivel que separassem a
+historia da apparição, se della houvesse vestigios. O facto novo era a
+acclamação de Affonso I em Ourique.
+
+«Outr'ora--diziam em Roma os procuradores dos spatharios--o rei de
+Portugal, D. Affonso I de clara memoria, o qual, esmagando com mão
+poderosa a barbara fereza dos sarracenos no campo de Ourique, foi
+elevado a rei pelos seus nobres e _pelos outros concelhos_, combateu os
+dictos sarracenos inimigos da religião orthodoxa com todas as forças,
+para exaltação da fé catholica e defensão do proprio reino. O mesmo rei,
+debellando e expugnando os infiéis, acommetteu-os e tirou-lhes
+castellos, fortalezas e muitas terras. Acceso em zelo da fé, e
+attendendo ao esforço do mestre e freires de Sanctiago que então viviam,
+concedeu-lhes, etc.»
+
+Não fazendo caso da ignorancia dos procuradores de Pedro Escacho[28]
+ácerca do estado da sociedade portuguesa no meiado do seculo XII, quando
+mencionam os villãos dos concelhos como intervindo n'uma eleição de rei,
+não faz peso a v.. que não se lembrem do milagre da apparição? Se
+existisse a tradição, poderiam elles ignorá-la, e não a ignorando
+ommitti-la, quando tanto convinha invocá-la? Não era evidente que o
+titulo e a independencia do rei obtinham incomparavelmente mais
+importancia e firmeza dos mandados positivos de Christo, do que das
+acclamações da soldadesca? Deixo á imparcialidade de v.. o resolver
+estas questões.
+
+Eis-aqui por que eu digo que o silencio de todas as memorias e
+documentos anteriores a 1485 ácerca da apparição não é só negativo; que
+é tambem positivo. Mas existe realmente este silencio?--perguntar-me-ha
+v.. Conforme a sua opinião, estribada na de Cenaculo e Pereira, elle não
+existe. No folheto recentemente publicado, que v.. intitulou _Nova
+Insistencia_, com lealdade de cavalheiro e de homem de letras v..
+abandonou o texto forjado de S. Bernardo, e entendo que tambem o antigo
+documento da _Symmicta_ ao destino que elles mereciam; mas insiste nos
+outros documentos que se citam. Examinarei se v.. tem razão na
+insistencia. Mas antes disso cabe-me consolar aqui v.. das injurias que
+a bruta ignorancia de um pobre tonto vomitou indirectamente contra v..
+por não distinguir o texto attribuido no breviario a S. Bernardo;
+cabe-me, digo, consolá-lo com o meu exemplo, e com o de um sacerdote
+instruido, que, enganado com v.. por aquella insigne falsificação,
+expondo-lhe eu as minhas opiniões ácerca do milagre de Ourique, me
+contrapunha o testemunho do grande abbade de Claraval, inserto no
+breviario. Como, porém, para escrever a historia do nosso paiz é
+necessario caminhar como quem passa pelo pinhal d'Azambuja, lá com todas
+as prevenções contra os salteadores, cá attentos sempre a que não nos
+illuda a cada momento um fabricante de mentiras ou um falsificador de
+documentos e textos, amestrado pela experiencia repliquei que duvidava
+da passagem do breviario, e que duvidava sobretudo pelo adjectivo
+_lusitanum_, que nella se lê, e que eu tinha a certeza de não se
+encontrar em monumento nenhum do seculo XII para significar _português,
+cousa portuguesa_. Na duvida, passámos a examinar o texto do sancto, e a
+falsificação appareceu-nos logo mais clara que o dia. Assim v.. teve
+companheiros na illusão; nem creia que tem tido só dous: ha-de ter tido
+milhares delles. Ria-se destes eruditos que adivinham tudo quanto se
+lhes diz: ria-se dos Mabillons de agua chilra, que logo distinguem _pelo
+estylo_ quatro ou cinco linhas interpoladas nas obras de qualquer
+escriptor.
+
+Mas, voltando ás cousas sérias, v.., repito, insiste nas outras provas,
+desprezadas as evidentemente falsas. E quaes são as que ficam? Creio que
+v.. tem presentes a regra de Gmeiner, de Mabillon, e de toda a gente que
+não esteja em guerra declarada com o senso-commum, _de que não provém
+maior certeza a um facto historico de ser relatado em livros de muitos
+auctores mais modernos, cada um dos quaes foi copiando o que o outro
+tinha dicto. Todos elles junctos não valem mais do que o primeiro que o
+referiu._ Assim, tendo nos escriptores dos fins do seculo XV que relatam
+o milagre, todas as auctoridades que v.. cita do seculo XVI annullam-se
+completamente. Ha, porém, outras anteriores, dirá talvez v.. É verdade
+que Cenaculo as propõe. Mas quaes são ellas? Examinemos.
+
+1.^o Um indice, escripto em Roma, de documentos relativos a Portugal em
+que se memora o facto da apparição.
+
+Como Cenaculo nos não diz a data do indice, estamos desobrigados de
+discutir o documento a que se refere: provavelmente havia de ser pelo
+gosto do da Symmicta.
+
+2.^o A doação ao mosteiro de Claraval, feita por Affonso Henriques.
+
+Tem o pequeno inconveniente de ser falsa. João Pedro Ribeiro reduziu-a a
+lastimoso estado na segunda das suas Dissertações Chronologicas. Estou
+certo de que o bispo de Béja, se resuscitasse, não havia de ter vontade
+de tornar a falar nella.
+
+3.^o Nos _Commentarios_ de Affonso sabio, traduzidos em português no
+tempo de Affonso IV, termina o capitulo 416 por uma passagem, em que
+Cenaculo quiz ver a memoria do milagre, embora nella não haja uma
+palavra a semelhante respeito.
+
+Este testemunho, ainda suppondo que a passagem diga o que não diz, tem
+tambem outro pequeno inconveniente. É que Affonso sabio não escreveu
+Commentarios nenhuns. Veja v.. se os encontra mencionados no extenso e
+minucioso artigo ácerca de Affonso X, na _Bibliotheca Hespanhola_ de
+Rodrigues de Castro, ou se acha em parte alguma vestigios de taes
+Commentarios.
+
+4.^o Uma passagem de uma chronica inedita dos reis de Portugal, que,
+_pela fórma da letra e pela linguagem_, se conhece ser do tempo de
+Affonso IV. Esta passagem diz-se transcripta de um codice da camara
+d'Evora.
+
+Pedirei pela primeira vez um favor a v.. É que não acredite demasiado na
+pericia paleographica de Cenaculo. A diplomatica ainda não acho meios
+sufficientes para distinguir com certeza pela fórma dos caracteres, nos
+codices portugueses, os que são do seculo XIV ou do XV. Tanto em letra
+assentada como em cursivo, não ha nelles senão a alleman pura, ou a
+francesa com maior ou menor resabio de monachal ou alleman. Isto é
+commum a ambos os seculos. A mesma romana pura ou restaurada, que começa
+a apparecer nos fins do XV, tem ainda resabio da monachal. Pelo que
+respeita á outra adivinhação de Cenaculo relativamente á linguagem, v..
+como homem de letras, está por certo habilitado para avaliar a _força_
+deste meio de apreciação. Se o bispo de Béja vivesse, eu compromettia-me
+a apresentar-lhe passagens extensas, escriptas em vulgar no meio do
+seculo XIV e outras escriptas já na segunda metade do XV, e se elle
+fosse capaz de dizer quaes eram as antigas e quaes as modernas, dava-lhe
+a minha palavra de honra de ficar crendo no milagre de Ourique. Esta
+experiencia que eu offereceria ao erudito bispo, estou prompto a
+offerecê-la a quem quer que pretender tentá-la.
+
+Agora accrescentarei mais alguma cousa. No archivo da camara d'Evora,
+que examinei por meus proprios olhos, posso certificar a v.. que nada ha
+anterior a D. João I; nem diplomas, nem codices. Que é feito da tal
+chronica que o bispo de Béja diz existir no archivo da camara d'Evora? O
+que havia de estimação naquelle archivo foi distrahido pelo antiquario
+Lopes de Mira, que viveu um pouco antes de Cenaculo. Isto é sabido pelas
+pessoas eruditas d'aquella cidade. V.. deduzirá d'aqui as conclusões
+legitimas.
+
+A erudição immensa de Cenaculo tem um defeito que nelle provinha do
+excesso de uma util faculdade unida a uma indole inquieta e impetuosa.
+Era essa faculdade a da memoria comprehensiva e tenaz. Lia muito e
+fiava-se na força da propria reminiscencia. Seria facil provar pelos
+seus escriptos que grande numero das citações que fazia e das
+auctoridades em que se estribava não as verificava, e que a memoria o
+trahia ás vezes, quando menos em particularidades e accidentes que
+modificavam a significação dos textos, servindo mal os intuitos do bom
+do prelado e tornando suspeita a sua candura.
+
+Os _Commentarios_, por exemplo, de Affonso sabio, traduzidos em
+português, podiam ser, não uma invenção, mas sim uma reminiscencia, ou
+uma nota tomada á pressa por Cenaculo, e talvez a chronica inedita dos
+reis de Portugal, que _pela fórma da letra e pela linguagem_ se conhecia
+ser do tempo de Affonso IV, fosse cousa analoga aos taes _Commentarios_,
+isto é, apenas uma confusão de idéas, ou, quando muito, uma inexacção de
+apontamentos.
+
+Existe uma compilação historica em vulgar, ou colligida ou accrescentada
+nos meiados do seculo XV, visto que na parte relativa a Portugal abrange
+a regencia e morte do infante D. Pedro (cap. 438) e nada contém
+posterior a este facto, continuando nos capitulos seguintes a historia
+dos outros estados da Peninsula. Conhecem-se tres exemplares desta
+compilação, que constitue, ao menos intencionalmente, uma historia geral
+das Hespanhas desde os tempos mais remotos até os seculos XIV e XV. Em
+París e em Madrid conservam-se os dous exemplares mais antigos. O de
+París trasladou-o o dr. Nunes de Carvalho com o intuito de imprimir
+aquelle curioso inedito. Dadiva do meu tão erudito como modesto amigo
+José Gomes Monteiro, possuo eu o terceiro exemplar, que parece ter
+pertencido a Manuel Severim de Faria. O codice de Madrid é talvez o
+mesmo que menciona pouco explicitamente Ferreira Gordo nas Memorias de
+Litteratura da Academia, Tom. 3, pag. 49. A _Cronica General_ attribuida
+a Affonso sabio subministrou ao compilador a historia fabulosa e a
+historia antiga da Peninsula atè a epocha leonosa. A corographia
+d'Hespanha, bem como a narração da entrada e conquista desta pelos
+mussulmanos e dos primeiros tempos do seu predominio são extrahidas da
+historia arabe de Arrazi, conhecido vulgarmente pelo nome de Mouro
+Rasis. Attribue-se ao reinado de D. Dinis e á iniciativa daquelle
+principe uma traducção do livro do historiador musulmano, e
+effectivamente esta parte da compilação é uma daquellas que parecem mais
+antigas pela rudeza da linguagem. A chronica do Cid, publicada
+modernamente pelo P. Risco, e cuja authencidade foi disputada por
+Masdeu, era conhecida já do compilador, que largamente a aproveitou na
+composição do seu livro.
+
+No exemplar de París, conforme o que se vê da copia de Nunes de
+Carvalho, faltam os capitulos 411 a 441. Ignoro se o mesmo succede no
+exemplar de Madrid. Encontram-se, porém, no que pertenceu a Severim de
+Faria; e é justamente nestes capitulos, desde o 412 até o 438 que está
+inserida a chronica dos reis de Portugal, começando na vinda do conde D.
+Henrique e finalisando nos primeiros annos do governo de Affonso V. É
+uma narrativa assás resumida, distinguindo-se apenas a parte relativa
+aos reinados de Affonso I e de D. Dinis, cujos successos verdadeiros ou
+fabulosos são mais particularisados.
+
+Conserva-se na Bibliotheca Publica do Porto, com o n.^o 79, um antigo
+codice transferido para alli em 1834 do archivo de Sancta Cruz de
+Coimbra. Contém varias memorias historicas e outros papeis avulsos
+escriptos por diversas mãos, tudo colligido, segundo parece, nos fins do
+seculo XV. Acaba o codice por dous chronicons em vulgar[29]. Um tem por
+titulo «_Como e donde descenderom os reis de Portugal_»: o outro «_Aqui
+se compeça a istoria dos reys de Portugal_»: Ambos se referem em breves
+palavras ao conde Henrique, dilatando-se com os successos e lendas da
+vida de Affonso Henriques, successos e lendas aproveitados pelo
+chronista Galvão. Ao passo, porém, que o primeiro chronicon não
+ultrapassa a epocha de Affonso I, o segundo abrange, postoque em breve
+resumo, as vidas dos seus successores até D. Dinis. Em relação aos
+tempos de Affonso Henriques são em parte identicos, não só no contexto,
+mas até nas phrases. Ha todavia entre elles uma differença digna de
+reparo: é a de que no primeiro se repetem mais de uma vez as palavras
+_conta a historia_, que não apparecem no segundo, ao passo que n'aquelle
+se referem tradições relativas a Affonso I ommittidas neste, donde se
+conclue que o primeiro foi tirado de um trabalho historico mais antigo,
+de que talvez o segundo seja apenas um extracto, embora accrescentado
+com leves traços dos subsequentes reinados.
+
+No exemplar da compilação que pertenceu a Severim de Faria a narrativa
+dos successos de Portugal durante a vida de Affonso I póde dizer-se que
+é um complexo dos dous chronicons de Sancta Cruz, ás vezes perfeitamente
+semelhante, outras variando nos vocabulos e phrases. Aproveitaram-se os
+chronicons na compilação ou tiraram-se della? Por outra: qual dos tres
+monumentos é mais antigo? É o que não importa nem eu me atrevo a
+resolver.
+
+O que importa é o que se lê nestes monumentos, os mais remotos que nos
+restam escriptos em vulgar, ácerca da batalha de Ourique. Vejamos se lá
+se encontram vestigios do celebre milagre.
+
+O primeiro chronicon de Sancta Cruz diz-nos que Affonso Henriques,
+acclamado rei pelo exercito antes do combate, depois deste, _por memoria
+daquelle boo aquecimento que lhe deus dera pôs no seu pendam cinquo
+escudos por aquelles cinquo reis e pose-os em cruz por renembrança da
+cruz de nosso senhor ieshu christo, e pôs em cada huum XXX dinheiros por
+memoria daquelles XXX dinheiros por que iudas vendeo Ieshu christo._
+
+No segundo chronicon, entre a narrativa particularisada da lucta de
+Affonso Henriques com sua mãe e com o conde de Trava (a que faz seguir
+immediatamente o recontro de Valdevez) e a lenda do cardeal legado e do
+bispo negro medeia a noticia da batalha de Ourique por estas simples
+palavras: _E depois ouve batalha em nos quanpos dourique e venceo a._
+Indicio notavel de que ainda no seculo XV havia quem desse áquelle
+acontecimento uma importancia secundaria.
+
+Na compilação a passagem relativa á jornada de Ourique é a seguinte:
+«Ajuntou suas gentes e foyse sobre os mouros e correolhes a terra dês
+coimbra ataa santarem, e deshy passou o tejo e correo toda a terra ataa
+o campo de Ourique, onde achou elRey ismar, que a essa sazon era Rey da
+estremadura, com sinco Reys que o vinham buscar sabendo o grande dapno
+que lhes fazia em sua terra, e entrou com elles em batalha no lugar que
+se chama crasto verde, e vencêos e prendêos e matou a mayor parte de
+todas suas gentes; mas antes que entrasse em na batalha os seus o
+alçaram por Rey, e dês enton se chamou Rey de portugal: e depois que os
+Reis forom vencidos, elRey dom Affom de portogal, por memoria daquelle
+boo acontecimento que lhe deus dera trouve por armas sinco escudos por
+aquelles sinco Reis e pozeos em cruz por nembrança da cruz de nosso
+senhor jesu cristo, e poz em cada huum escudo trinta dinheiros por os
+trinta dinheiros por que judas o vendêo, e dêsi tornouse para sua terra
+muy honradamente».
+
+Onde estará o milagre em qualquer destas tres passagens não posteriores
+aos meados do seculo XV e que por ventura são mais antigas?
+
+É muito possivel que Cenaculo, homem d'immensa e variadissima leitura,
+tivesse visto alguma copia dos chronicons de Sancta Cruz, e igualmente a
+compilação no exemplar de Severim de Faria, que viveu no Alemtejo, onde
+tambem Cenaculo residiu longamente, e onde o manuscripto podia
+conservar-se ainda no tempo do bispo de Beja. Uma circumstancia digna de
+notar-se torna mais plausivel esta suspeita. Cenaculo cita o fim do
+capitulo 416 dos suppostos _Commentarios_, e na compilação os ultimos
+periodos do capitulo 415 são os que se referem á batalha de Ourique e
+aos seus resultados. O logar do capitulo citado é o mesmo: a differença
+está na numeração deste, e essa differença é apenas de uma unidade.
+Preoccupado pela idea do milagre, do qual se faz derivar o imaginario
+escudo de Affonso Henriques, nada mais facil do que Cenaculo, citando de
+memoria, dar á compilação, tirada em grande parte da _Cronica general_,
+o titulo de Commentarios d'Affonso sabio, e aos chronicons de Sancta
+Cruz o de chronica inedita, confundindo ao mesmo tempo a lenda do escudo
+d'armas com a lenda da apparição, acerca da qual não ha ahi uma palavra.
+Tudo isto não passa de conjecturas, mas de conjecturas que põem em salvo
+a probidade litteraria de um dos nossos mais illustres prelados de uma
+epocha ainda pouco remota, em que os bispos portugueses eram bispos, e
+não vigarios do papa[30].
+
+Em Cenaculo a defensão do milagre de Ourique era empenho cego. Não sei,
+nem me importam os motivos. Importa-me o facto, que annullaria melhores
+testemunhos do que esses que cita, quando elle fosse o seu unico
+abonador. Quer v.. uma prova decisiva da cegueira do douto prelado? Eu
+lh'a dou, e irrefragavel: é o seguinte periodo:
+
+«O advertido padre Pereira faz ver que desde o seculo XV se acham
+escriptores mui auctorisados, que referem o acontecimento como de cousa
+_então vulgar entre as pessoas que haviam tractado os immediatos
+contemporaneos do successo, em maneira que a tradição é coetanea._»
+
+Traduzido em linguagem chan, quer isto dizer que em 1485 (epocha do
+primeiro testemunho preciso sobre a apparição, o de Vasco Fernandes de
+Lucena), havia gente que tinha conhecido individuos do tempo da batalha
+de Ourique, ou por outra, que no seculo XV havia pessoas _com trezentos
+annos de idade._
+
+Quem diz isto póde dizer livremente o que lhe aprouver. Quando um
+espirito não-vulgar chega a este estado, que nos resta senão
+confessarmos o nosso nada diante da summa intelligencia de Deus?
+
+Aqui tem v.. por que eu me limitei, quanto me foi possivel, a falar de
+leve na apparição; eis porque tenho até hoje reluctado em descer á
+discussão especial dessa mentira ridicula, com que os prégadores vão
+ludibriar o povo na cadeira do evangelho. Estas miserias e vergonhas, e
+as que successivamente apontarei, sobre quem recaem? Sobre homens que
+aliàs têm direito á reputação que adquiriram na historia litteraria do
+paiz e nos annaes da igreja portuguesa, mas que um impulso talvez de
+amor proprio[31], talvez uma piedade ou um patriotismo irreflectido,
+fizeram com que, em vez de buscarem a verdade, buscassem a prova de que
+tal ou tal cousa era verdade, caminho deploravel em cujo termo é certo o
+precipicio.
+
+Fóra dos testemunhos cujo nenhum fundamento acabo de mostrar, Cenaculo
+reduziu-se a adoptar as pretendidas provas do padre Pereira, sem
+exceptuar o juramento de Alcobaça. E note v.. que elle o conhecia tão
+pouco ou era tão fraco diplomatico, que não hesitou em escrever estas
+palavras memoraveis:--«_Duvidar da apparição_ emquanto o desconhecimento
+dos testemunhos a faz presumir de piedade popular e crença apaixonada,
+_pode ser critica_; mas a interpretação livre e esquerda da palavra real
+e fundada (o juramento de Alcobaça) merece ser sempre vista com
+desapprovação e desagrado».--Isto quer dizer que, se não houvesse o
+instrumento da apparição, podiamos com boa critica deixar de crer no
+milagre. Assim, se o bispo de Béja vivesse hoje, á vista da declaração
+official da falsidade do documento, que o meu amigo Rebello da Silva
+arrancou ao juiz mais competente na materia, o lente de diplomatica e
+guarda-mór interino do Archivo Nacional, elle teria de passar com armas
+e bagagens para o campo dos _impios_, se quizesse (havia de querer)
+intitular-se bom critico.
+
+Mas, deixando de parte o conjecturar qual seria hoje a opinião de
+Cenaculo, vamos aos _Novos Testemunhos_ do padre Pereira. Disse eu que
+este escripto traria deshonra ao auctor da _Tentativa Theologica_, e da
+_Vida de Gregorio VII_, se não fosse uma ironia. Confesso a v.., que
+antes quero salvar, por esta hypothese, a reputação de um nome illustre
+na nossa litteratura, do que acceitar a anecdota, a que alguns attribuem
+a concepção dos _Novos Testemunhos_, anecdota que mais de uma vez tenho
+ouvido referir. Conta-se, que, sendo o padre Pereira pouco aferrado ao
+dinheiro (é defeito de classe: não creia v.. que usurario nenhum fosse
+nunca homem de letras) veio a achar-se um dia com a bolsa completamente
+vazia. Advertido da apertura da situação pelo creado, pegou n'algumas
+folhas de papel, escreveu os _Novos Testemunhos_, mandou-os ao seu
+editor, e recebeu dez moedas, com que ficou rico, ao menos por dous ou
+tres dias. Eu prefiro a ironia á anecdota, que não sei se é verdadeira.
+Mas ou a musa do opusculo fosse a precisão de dinheiro, ou fosse a
+vontade de gracejar, o que tenho por certo é que, a não ser assim, a
+obra fora indigna de um homem, que pulverisou as pretensões illegitimas
+e insolentes da curia romana, e que fez tremer boa meia duzia de
+hypocritas e pedantes do seu tempo. As provas de que os _Novos
+Testemunhos_ precisam da minha explicação, ou d'outra qualquer, vou
+dá-las a v.., começando por transcrever uma passagem da introducção do
+opusculo. Depois de apresentar como demonstração de não ser forjado _o
+juramento d'Alcobaça_ o haver, antes de Brito o publicar, testemunhos
+_da tradição_ de Ourique (argumento na verdade singular!) o padre
+Pereira prosegue:
+
+«Mas quanto a verificar o caso da apparição, tem a dita demonstração _o
+defeito de que nenhum dos testemunhos em que ella se funda remonta a
+maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel_. E assim _poderão_ os
+emulos das nossas glorias _repôr_ que uns _testemunhos do principio do
+XVI não são sufficientes_ para extorquir delles o assenso a um facto,
+que se suppõe _acontecido no meio do seculo XII_.»
+
+Depois d'isto, que digam todas as pessoas que lerem esta carta, não
+sendo algum clerigo mau e ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte
+quaesquer prevenções, o que se deve esperar no opusculo? O auctor
+confessa que a favor da apparição não bastam os testemunhos posteriores
+ao anno de 1495, insufficientes para provas de um facto succedido em
+1139, logo elle vai offerecer-nos documentos, trezentos, ou, pelo menos,
+duzentos annos anteriores. Eu digo o que nos offerece Pereira em logar
+dos _testemunhos insufficientes_.
+
+1.^o A narrativa de Olivier de la Marche na introducção ás suas
+Memorias.
+
+Esta introducção foi começada a escrever em 1492, conforme o proprio
+auctor das Memorias declara[32]: isto é, as passagens relativas ás armas
+reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres annos antes de começar a
+epocha em que os testemunhos ácerca de um milagre succedido 357 annos
+antes nada provam, segundo confessa o padre Pereira, advertindo que, por
+esses não prestarem, nos ía expor quatro novos, _todos de tanto peso e
+authoridade, que não ha para que se desejem outros mais graves_. Destas
+premissas segue-se, que o testemunho dado a favor de um facto 357 annos
+depois do tempo em que se diz succedido é _defeituoso e insufficiente_,
+mas dado 354 annos depois do successo é igual ao de qualquer pessoa, ou
+de muitas pessoas que houvessem presenciado este, visto que _nada ha
+mais grave_, do que um testemunho posterior de 354 annos, emquanto o
+posterior de 357 não presta para nada.
+
+Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico? Deixo a escolha a v..
+postoque estou certo de que das duas explicações ha-de preferir a
+ultima.
+
+Mas o caso não pára aqui. Tenha v.. paciencia, porque não fui eu que
+quiz discutir o milagre de Ourique; foram os padres, que me têm
+insultado porque o tractei como elle merecia, que me compelliram a isso.
+Hão-de esgotar o calix da ignominia até as fézes. Elles dizem do pulpito
+abaixo que era melhor que eu não tivesse falado em tal; e eu digo-lhes
+da imprensa, do meu pulpito, que era melhor continuarem a aleijar o
+latim do breviario e do missal, e deixarem-me em paz escrever a historia
+verdadeira do meu paiz.
+
+Digo que o caso não pára aqui, porque o modo como é narrada a historia
+da apparição por Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas,
+é curiosissimo. Segundo elle, o conde Henrique tinha escudo branco:
+depois este escudo adornou-se por quatro vezes: 1.^a quando Affonso I,
+passando o Tejo, desbaratou em campo d'Ourique (_Cambdorick_) os cinco
+reis mouros, e, em allusão a cinco bandeiras que lhes tomou, pôs no
+escudo branco cinco escudetes azues. 2.^a Houve nova mudança quando _o
+mesmo rei foi a Roma_ emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno
+consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu pondo-se
+inteiramente nú, e desafiando o papa e os cardeaes para que lhe
+mostrassem todos junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes das
+que elle tinha recebido pela fé de Christo. Era maravilhoso, de feito, o
+numero d'ellas: cinco com visiveis indicios de deverem ter sido mortaes,
+a não se haver dado milagre no caso. O argumento fora peremptorio. O
+papa e os cardeaes disseram-lhe que vestisse a camisa; e para lhe darem
+uma satisfação da injusta pronuncia, mandaram-lhe que em cada um dos
+escudetes posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria daquellas
+famosissimas lançadas de que os mouros o haviam servido. 3.^a Tendo o
+infante D. Fernando, rei de Portugal, casado em França com a condessa
+Maria de Bolonha, teve um filho, chamado Henrique, o qual accrescentou a
+orla do escudo em que estão os castellos. E sobre este ponto discute o
+auctor o erro que havia nos dictos castellos, estribando-se na opinião
+de portuguêses notaveis. Entre estes devo advertir, para o que v.. logo
+verá, que elle havia já mencionado especialmente _e com elogios
+extraordinarios_ o celebre Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a
+dignidade de escanção de Madama Margarida, viuva de Carlos o
+Temerario[33]. A 4.^a alteração, que vinha a ser a quinta fórma das
+armas reaes portuguesas, foi o pôr-lhes uma cruz firmada no escudo um
+rei de Portugal (já se vê que muito posterior a Affonso I), facto cuja
+origem _alguns attribuiam (aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido uma
+cruz no céu_ durante uma batalha com os sarracenos, o que vendo o
+principe dissera, orando a Deus, que _mostrasse_ antes a _cruz_ aos
+infieis, e _assim se fez_, com o que os mouros ficaram desbaratados.
+Accrescenta Olivier de La Marche que talvez o milagre seja verdadeiro;
+mas que _para elle a verdade é que o bom rei João_ (D. João I) foi quem
+ajunctou ás armas portuguesas os quatro braços floreteados firmados no
+escudo.
+
+Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la Marche em toda a sua força e
+pureza, postoque resumido. Não lhe faço commentarios. Deixo a v.. e a
+todos homens instruidos que os façam. Eu por mim estou satisfeito.
+
+Inverterei aqui a serie dos quatro _irrecusaveis_ testemunhos do padre
+Pereira, porque tenho uma razão de ordem que me obriga a reservar o
+segundo para o ultimo logar. Falarei, portanto, do terceiro.
+
+Gomes Eannes de Azurara, na continuação da chronica de D. João I por
+Fernão Lopes, transcreve um discurso feito áquelle principe pelos seus
+confessores, frei Vasco Pereira e frei João Xira, a quem elrei pedira
+lhe dissessem se era serviço de Deus intentar a conquista de Ceuta. A
+resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se no exemplo de muitos
+outros principes e cavalleiros famosos, que haviam acommettido os
+infiéis na persuasão de que practicavam uma obra meritoria,
+offerecendo-se á morte. Os que a tinham alcançado, entendiam os dous
+frades que ficavam equiparados no céu aos martyres, e que os que não a
+haviam obtido, nem por isso deixavam de ser sanctos, estando resolvidos
+a morrer alegremente pela fé. Os theologos terminaram a serie dos
+exemplos (nos quaes figuram entre aquella especie singular de
+bemaventurados o Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fernão Gonçalves,
+que nunca desconfiaram de que eram sanctos) pela seguinte passagem,
+conforme se lê na edição de 1644:
+
+«...temos ante nossos olhos a memoria do mui notavel, fiel e catholico
+christão elrei D. Affonso Henriques, cujas reliquias tractamos entre
+nossas mãos. Vêde, senhor, os signaes que trazeis em vossas bandeiras, e
+perguntai e sabei como e por que guisa foram ganhados; os quaes
+certamente de todas as partes mostram a paixão de Nosso Senhor
+Jesu-Christo, _por cuja reverencia e amor o bemaventurado_ rei offereceu
+o seu corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles cinco reis, como
+vossa mercê sabe. Considerae _isso mesmo_ (do mesmo modo) Senhor, _se
+elle duvidara se o seguinte trabalho era serviço de Deus, não tivereis
+vós hoje em dia esta mui nobre cidade_ (Lisboa) nem a villa de Santarem,
+com outros logares, etc.»
+
+Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque illustrava o sentido das
+phrases relativas á batalha de Ourique. O que frei João Xira queria
+dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera a morrer por
+Christo em Ourique, entendendo que fazia serviço a Deus, como depois, na
+tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala aqui no milagre? Se
+houvesse outras testemunhas daquella epocha (1415), que positivamente
+referissem a apparição, ainda se poderia, embora com violencia, suppôr
+nas phrases do frade uma allusão ao successo; mas faltando-nos
+absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa tal supposição. Trazer
+esta passagem para provar, que já em 1415 existia a tradição, ao passo
+que, para ella poder ter a significação forçada que se lhe quer dar é
+necessario suppôr a existencia da mesma tradição, o que é, senão um
+circulo vicioso, uma petição de principio? Não é, porém, só isso. Nestas
+lendas, inventadas com fins humanos por milagreiros e falsarios, quasi
+que não é possivel dar um passo sem encontrar falsificação. A chronica
+de Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra contra os castelhanos,
+depois da revolução de 1640, e precedida por uma gravura representando a
+apparição, foi viciada nesta passagem, provavelmente para se ver nella
+uma allusão obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu ver, o padre
+Pereira. No codice authentico do Archivo nacional, onde no impresso se
+lê «_vencendo_», está escripto «_vendo_». «Vendo» torna o sentido da
+passagem claro. O rei _vendo_ os _cinco_ reis mouros, offereceu o seu
+corpo a Jesus, e pôs nas suas bandeiras os _cinco_ escudos. Substituida,
+porém, a palavra _vendo_ por _vencendo_, a phrase obscurece-se; a causa
+de se pôrem os cincos escudos nas bandeiras, isto é, o serem os reis
+mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que se cria tirar vantagem em
+1644, ganha em frei João Xira um novo, postoque bem debil, alliado.
+
+Mas supponhamos tudo quanto quizerem. Adoptemos como exacto o texto
+impresso de Azurara: vejamos ahi a apparição, embora não haja lá uma
+unica palavra a semelhante respeito. O testemunho singular de frei João
+Xira em 1415 não seria um pouco tardio para provar um successo de 1139,
+profundamente esquecido nos chronicons e monumentos coevos? Não o
+rejeitam as regras da critica sincera; regras estabelecidas accordemente
+por tantos e tão respeitaveis escriptores ecclesiasticos; regras, emfim,
+cuja solidez a experiencia demonstra de contínuo aos que se votam a
+serios estudos historicos? Quer v.. um exemplo domestico da utilidade
+das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos, dos Fleurys,
+desprezadas só por aquelles que desprezam tudo, menos os dezeseis
+tostões de um sermão de milagres? É exemplo que não está no cartorio da
+camara de Evora, nem nos Commentarios ideaes de Affonso X, mas no
+Archivo Nacional, onde todos o podem vêr. Consiste n'uma especie de
+summario historico dos reis de Portugal, lançado no 4.^o volume de
+Inquirições de Affonso III, no reinado de D. João I. No preambulo
+daquelle summario, destinado a avaliar-se, á vista dos factos
+historicos, a genuinidade das doações dos reis anteriores, affirma-se
+que para o escrever se averiguara com extrema exacção a verdade,
+fixando-se assim a serie chronologica dos principes portugueses. Sabe
+v.. qual é a exacção desse monumento destinado a servir de padrão legal,
+para por elle se afferirem diplomas que importavam á fortuna particular
+e aos direitos da corôa? Citarei só os erros relativos a Affonso I.
+Segundo o summario official, elle nasceu em 1092, foi casado com a filha
+de D. Affonso de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em dezembro
+de 1184. D'aqui verá v.. o credito que deveriam merecer-nos os
+testemunhos do seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre do seculo
+XII, quando esses testemunhos existissem, e não fossem um rol vergonhoso
+de falsificações e mentiras.
+
+O quarto testemunho do padre Pereira é o proprio instrumento da
+apparição, que existiu em Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o
+de Alcobaça. O auctor dos Novos Testemunhos diz que não sabe se os dous
+foram uma e a mesma cousa, passando o celebre documento do archivo
+daquelle mosteiro para o d'Alcobaça. Como demonstra elle, porém, essa
+existencia? Pelo depoimento de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556, e
+publicado por outro frade cruzio, insigne forjador de textos e diplomas,
+e chronista da ordem, frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario
+pelos seus proprios confrades[34]. Se acreditarmos este, os conegos de
+Sancta Cruz, _empenhados em fazer canonisar Affonso I_, requereram se
+tirasse um depoimento de testemunhas sobre os milagres do primeiro rei
+português, do _Pharaó obdurado_ dos monges de Cella-Nova. Quem
+primeiramente depôs foi um _dos conegos empenhados_, e foi este que
+disse constar o milagre de Ourique pelo juramento que existia do mesmo
+rei. Desse juramento original tiraram-se então em duplicado copias
+authenticas; uma para se guardar no mosteiro, outra para ir a Roma, o
+que não chegou a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz o original e
+uma copia em instrumento, e fóra d'alli outra copia authentica. Tudo
+isto se perdeu, e nada resta de um documento de tanta valia, que
+forçosamente se havia de guardar com recato, senão a grosseira impostura
+dos frades bernardos, restando tambem, nos fins do seculo passado, um
+traslado que se dizia transcripto de _um original_, diverso no seu theor
+do _outro original_ de Alcobaça, e só semelhante a elle em ter sellos
+pendentes, cousa que não existia na epocha em que o juramento se diz
+exarado.
+
+O que tudo isto vem a ser é uma serie de vergonhas e miserias
+repugnantes, e sobretudo de falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios,
+elles nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os seus embustes. Se
+frei Nicolau, ou os conegos de 1156 (porque eu não sei se a historia do
+depoimento se verificou, ou se é invenção do chronista) se lembrassem do
+que passou antes d'elles, teriam procedido com mais cautela nas suas
+mentiras. Quem lê a façanhosa chronica dos conegos regrantes conclue que
+no tempo de frei Nicolau os pergaminhos originaes eram aos milhares em
+Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui está o que não só elle proprio,
+postoque fraca testemunha, mas tambem escriptores mais serios, que se
+reportam a um documento coevo, nos referem como acontecido em 1411. No
+dia de Corpo de Deus desse anno, uma tempestade que estourou sobre
+Coimbra produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu o mosteiro de
+Sancta Cruz. «A agua (diz o auto que sobre isto se redigiu) levou, além
+de muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas de memorias
+antigas e de doações que os reis fizeram ao dicto mosteiro, que _todas_
+foram molhadas _e a mór parte dellas perdida_». Sabendo elrei D. João I
+do successo, segundo confessa o mesmo frei Nicolau, ordenou se
+trasladassem em publica fórma as _doações e mais escripturas_ que
+restavam dando-se a este transumpto a mesma força dos originaes, «_com o
+que_, prosegue o chronista, _se restaurou parte da perda de tantas e tão
+antigas escripturas que hoje nos fazem grande falta_». De duas uma: ou o
+instrumento da apparição depositado em Sancta Cruz pereceu em 1411, ou
+escapou. Se escapou, devia ser trasladado no chartulario em que, segundo
+a ordem delrei, se lançou o que restava. Esse chartulario existia ainda
+no tempo do chronista, e provavelmente existe ainda hoje. Para que
+inventaram, pois, o ridiculo pergaminho de Alcobaça? Porque, em vez de
+imaginarem cem mentiras para amparar a tradição, não foram a Sancta Cruz
+extrahir desse traslado authentico dez ou cem traslados novos, que
+tambem seriam historica e até legalmente authenticos? Porque não vão lá
+buscá-los ainda hoje para confundirem a minha impiedade? Se, porém, o
+pergaminho original pereceu em 1411, que são essas historias de
+publicas-fórmas _do original_ feitas pelos notarios Manso e Thomé da
+Cruz, e não sei por quem mais, senão embustes, ou copias tiradas de um
+documento falso. Porque eu não disputo, nem me importa, que elle fosse
+forjado pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de S. Bernardo.
+
+Falta o segundo testemunho, que deixei para ultimo logar, porque se
+prende com o que me resta a dizer a v.. sobre a lenda da apparição. Esse
+testemunho é o de Vasco Fernandes de Lucena, que, indo como orador da
+embaixada enviada por D. João II ao papa em 1485, referiu a historia da
+apparição no discurso que recitou perante Innocencio VIII e perante a
+curia. Como prova do successo, elle tem pouco mais ou menos o valor do
+de Olivier de la Marche. Se aos historiadores que escreveram depois de
+1495 se não póde attribuir, segundo Pereira, e muito mais segundo as
+doutrinas dos pios e eruditos escriptores a que me referi na carta
+antecedente, auctoridade bastante para nos compellirem a acceitar a
+tradição de Ourique, tê-la-ha, porventura, o testemunho singular de um
+homem que o refere apenas dez annos antes, tractando-se de um milagre
+que se diz succedido n'uma epocha anterior de mais de tres seculos? É
+impossivel que v.. não sinta que semelhante auctoridade nada vale.
+
+Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu. O primeiro e o segundo são
+dos fins do seculo XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a um só.
+Persuadem-no o affirmar Olivier de la Marche que sobre a questão das
+armas portuguesas ouvira pessoas _notaveis_ de Portugal com quem
+tractara[35] tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos elogios á
+sciencia e talento de Vasco de Lucena. O terceiro é uma passagem, aliàs
+viciada, de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer correcta, não
+contém uma unica palavra ácerca da apparição. Finalmente, o quarto é o
+juramento de Affonso Henriques, que _consta_ existia em Sancta Cruz
+muito antes de Fr. Bernardo de Brito encontrar o de Alcobaça, o qual se
+não sabe se é o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas que nós sabemos
+perfeitamente que é falso. Eis aqui os testemunhos do milagre de
+Ourique, «_de tanto peso e auctoridade, que não ha para que se desejem
+outros mais graves_».
+
+Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo a decidir se o padre Pereira
+escreveu isto em seu juizo, ou se estava dando largas á sua jovialidade.
+
+Resta-me só fazer um esforço para acceder, até onde é possivel, a uma
+pretensão de v.. embora já ficasse provado que ella era infundada. Diz
+v.. que para refutar plenamente a fabula da apparição deveria eu dizer
+quando, como, para que, e por quem fora inventada. É evidente que o
+falsario havia de precaver-se para não o descubrirem, e só elle poderia
+dizer positivamente qual era o seu intuito quando forjou a patranha.
+Sendo homem astuto, saberia não somente guardar segredo, mas tambem
+fazer espalhar com arte a fabula. Que calumnias não tem alevantado uns
+aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos? Muitas dellas,
+passando primeiro de boca em boca, vindo á imprensa, combatidas pelos
+calumniados, nem por isso hão deixado de generalisar-se, e de tomar ás
+vezes tal consistencia, que é possivel passarem algumas, d'aqui a um
+seculo, por factos historicos, até que uma critica severa e
+desapaixonada as reduza ao seu justo valor. Sobre a origem da fabula de
+Ourique não se podem produzir factos decisivos, mas podem reunir-se
+alguns, que, assim aproximados, offerecerão fundamento a suspeitas
+vehementes sobre a epocha do nascimento da tradição, sobre seus
+auctores, e sobre os fins com que foi inventada. Note v.. que eu falo da
+tradição e não do juramento, que provavelmente, no estado em que hoje o
+temos, é mais moderno. Quanto a esse invento grosseiro, considerado em
+si, confesso que me fallece o animo para o analysar.
+
+Partamos de um facto. O primeiro testemunho sobre a existencia da
+tradição relativa ao milagre de Ourique, preciso, incontroverso, é o de
+Vasco Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais são chronicas que _se
+perderam_, vestigios que _se apagaram_, obras que _ninguem conhece_.
+Isto faz lembrar o gracioso livro das _Antiguidades de Evora_, que
+muitos tem tomado por obra de um tolo, e que na realidade são a satyra
+dos falsarios e crendeiros, feita por um homem espirituoso e engraçado.
+Tudo quanto se cita anterior a 1485 são embustes e ridicularias, sem
+exceptuar as chronicas do tempo de Affonso Henriques attribuidas aos
+imaginarios chronistas João Camello e Pedro Alfarde, onde se diz que
+_talvez_ se achasse a tradição. A invenção dos taes chronistas, frades
+de Sancta Cruz, tinha já sido reduzida a pó pelo cruzio D. Thomás da
+Incarnação, e por frei Manuel de Figueiredo, frade d'Alcobaça. A
+referencia a semelhantes mentiras feita por Pereira e por Cenaculo, que
+escreveram depois de ellas estarem refutadas, prova a _sinceridade_ com
+que foram redigidos nesta parte os _Cuidados Litterarios_, e tambem os
+_Novos Testemunhos_.
+
+Temos, pois, um homem celebre, um castelhano, erudito, valido de D. João
+II, que, n'um discurso recitado perante Innocencio VIII, menciona pela
+primeira vez a apparição. Singular origem de uma fabula, que, revelada
+por um estrangeiro, vem á luz em terra estrangeira, regida por um
+governo theocratico, que tem por fundamento primitivo do seu dominio
+temporal um titulo falso.
+
+A memoria de D. João II é odiosa. Entre todos os reis legitimos
+portugueses, é elle o unico ao qual sem injustiça a historia póde
+attribuir a qualificação de tyranno. Elle foi quem deu o golpe mortal
+nas velhas liberdades desta nossa terra. No seu reinado tem de ir buscar
+o historiador a causa fundamental da nossa decadencia, que começa com o
+estabelecimento do absolutismo, embora a podridão que corroe a arvore se
+esconda por alguns annos no cerne. É tambem singular por esta
+circumstancia a origem da tradição. Nasce, dilata-se, cresce, firmando
+as raizes no tumulo da liberdade.
+
+Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado do _principe perfeito_ um
+foragido português, seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da
+Costa. Depois do assassinio judicial do duque de Bragança, o cardeal
+aproveitou o ensejo para malquistar o rei português com Sixto IV. Em
+consequencia d'isso (ao menos assim se acreditava), o papa enviou em
+1483 um nuncio a Portugal, a queixar-se dos abusos do poder temporal
+contra as pretendidas immunidades da igreja, que o filho de Affonso V
+respeitava tanto como os foros politicos do reino. Foi o rei emprazado
+para apparecer ante o papa, por si ou por procurador, para dar
+explicações ácerca do seu procedimento. Nomearam-se embaixadores; mas
+antes de partirem, Sixto IV relevou o rei da citação, diz-se que a
+instancias do mesmo cardeal que excitara a tempestade, receioso de que
+os ministros portugueses, chegando a Roma, lhe pagassem em igual moeda,
+fazendo-lhe perder parte do poder e credito de que gosava[36].
+
+Parece, porém, que, emquanto proseguia em Portugal a lucta tenebrosa e
+encarniçada de uma aristocracia suberba com um rei ambicioso e
+inexoravel, o cardeal não dormia em Roma. Invectivava-se ahi ou
+fingia-se invectivar contra a frouxidão de Sixto IV, que deixava o rei
+português quebrar os privilegios do clero sem se lhe comminarem
+censuras[37]. Deste clamor sincero, ou desta farça, resultou uma bulla
+concebida em durissimos termos, que se expediu nos primeiros mezes de
+1484. A linguagem della era a linguagem habitual da curia, insolente e
+grosseira; mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo. O papa
+recordava uma cousa de que os reis portugueses se haviam esquecido;
+recordava a D. João II que _tinha a dignidade real por dadiva da sé
+apostolica e de que era seu tributario[38]_. Uma bulla destas faria hoje
+desatar a rir quaesquer ministros portugueses, até em pleno parlamento.
+Naquelle tempo, porém, ainda o negocio era um pouco serio. D. João II,
+se riu, foi em particular.
+
+O arcebispo D. João Galvão, um dos valídos do rei e inimigo figadal da
+familia de Bragança[39], tinha sido transferido, ainda em tempo de
+Affonso V, da sé suffraganea de Coimbra para a metropolitana de Braga. O
+arcebispo olhava para as cousas ecclesiasticas como certos prégadores
+d'hoje olham para a prédica; pelo lado solido. Sem lhe importar obter o
+pallio, foi usando do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas da
+mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava devorar pacificamente tão bom
+quinhão na mesa ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir o
+clero[40]; mas até que ponto eram graves as culpas do arcebispo, que
+assim se arriscava a perder a dignidade archiepiscopal (como tem
+succedido a muitos outros) não sei eu dizer: falo pela boca do papa, que
+lhe dirigiu tambem uma carta de ameaças. O que é certo é que o movedor
+das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal da Costa, não devia
+esquecer-se de carregar a mão no valído do seu adversario. Odio de padre
+contra padre ainda é mais profundo e tenaz do que contra qualquer
+secular.
+
+As relações com Roma offereciam, pois, um aspecto pouco agradavel,
+quando Sixto IV veio a fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura em
+que elrei apunhalava em Setubal o Duque de Viseu, mandava envenenar o
+Bispo d'Evora, assassinar D. Gotterre no fundo de um calabouço, e
+degolar e esquartejar em praça outros fidalgos. D. João I tomara da
+côrte de Inglaterra o esplendor, os habitos cavalleirosos, o amor da
+cultura litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje distinguem as
+classes elevadas na Gran-Bretanha. Seu bisneto tomava da côrte de França
+apenas um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava modelar as manifestações
+da sua alma.
+
+A casa de Bragança procedia de D. João I, mas de D. João I antes de rei
+e simples mestre da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se enlaçado
+com as armas de Portugal, porque D. João I não se esquecera, depois de
+rei, de que fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava.
+
+Com as mãos tinctas do sangue do duque de Viseu, D. João II arrancou a
+cruz do escudo de Portugal, e alterou a posição dos escudetes lateraes,
+collocados até ahi horisontalmente, dando assim nova fórma ás armas do
+reino. Dir-se-hia que até d'alli quizera affastar a memoria da linhagem
+dos seus principaes adversarios.
+
+Era essa a causa da mudança? Não o sei. Ruy de Pina, um dos amoucos do
+principe perfeito, attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar ou
+recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O que é certo é que a
+alteração se fez no mesmo anno de 1484.
+
+Hoje a heraldica e os brasões são dixes com que se entretem as creanças
+barbadas: o jogo do xadrez é cousa incomparavelmente mais grave. Nos
+fins do seculo XV não era, porém, assim. A attenção da Europa devia
+volver-se principalmente para o ensanguentado drama que se representava
+na côrte de Portugal; mas a cruz de Christo expulsa das moedas, dos
+sellos e das bandeiras do reino, pelas mãos de um rei algoz, havia de
+dar occasião a mais de um commentario pouco favoravel.
+
+Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco escudetes representassem
+uma cruz, e ao mesmo tempo contivessem uma allusão mysteriosa á paixão
+de Christo; se as arruellas que os ornavam representassem os trinta
+dinheiros por que Judas vendeu o Senhor, que falta faria a cruz
+floreteada de Aviz nas armas de Portugal? Não ficava ahi uma cruz
+mystica, um symbolo piedoso?
+
+Fallecido o papa que recordara a D. João II qual era a origem da
+independencia de Portugal relativamente a Leão, e que ainda ousava
+lembrar-se do signal de vassallagem que outr'ora se offerecera á igreja
+de Roma, elle fora substituido por Innocencio VIII. Sabido o successo,
+elrei resolveu mandar a Roma uma embaixada, para orador da qual escolheu
+um homem de plena confiança, o castelhano Vasco de Lucena.
+
+Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor que as bullas de Lucio II e
+de Alexandre III ácerca da independencia do reino, e que talvez Affonso
+Henriques houvesse dado a guardar aos seus chronistas, João Camello e
+Pedro Alfarde? Se o tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem
+dessa circumstancia o novo papa, tirando assim á curia a vontade de
+repetir as doutrinas carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV.
+
+Porei aqui a parte mais interessante do discurso, que o orador de
+Portugal fez ao papa rodeado dos seus cardeaes, em cujo numero se
+contava o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre Pereira já
+traduziu uma porção desse discurso; mas era um preguiçoso aquelle bom do
+padre Pereira. V.. hade permittir que eu o seja menos, e dê um talho
+mais largo.
+
+Depois de indicar em poucas phrases as origens de Portugal, o orador
+fala dos primeiros annos do governo de Affonso I e da pequenez dos seus
+estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas e conquistas: Leiria,
+Santarem, Lisboa tomadas, o Tejo transposto, a provincia transtagana
+submettida, com Evora sua capital, Cezimbra e Palmela, fortalezas
+inexpugnaveis, reduzidas, sendo por elle desbaratados _milhares
+infinitos_[41] de mouros com poucos cavalleiros. «Outra vez (ou
+_novamente_)--prosegue Lucena--no campo de Ourique, naquelle sitio a que
+o _vulgo_ chama _agora_ Cabeças dos Reis, com um pequeno exercito venceu
+cinco poderosissimos reis mouros. Na qual batalha, para se ver quão
+porfiada fosse, e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram
+as lanças dos barbaros os escudos que embraçava na mão esquerda. Desta
+singular e famosa victoria procedeu _fixar elle as insignias e armas dos
+reis de Portugal_, pondo nellas cinco escudos, e collocando em cada um
+delles cinco dinheiros, sendo sabido que até então as armas eram um
+escudo só, todo semeado de besantes. Estes cinco escudos _postos em
+fórma de cruz_, e estes besantes quinarios _tambem distribuidos em
+cruz_, que nos indicam senão os trinta dinheiros, preço do sangue de
+Christo, pelo qual este foi entregue aos judeus pelo crudelissimo Judas?
+Antes de dar o signal para a batalha, este rei, orando de joelhos, viu o
+Salvador pendente da cruz, e foi tal a confiança do regio animo, tal a
+fé gravada no seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda
+maravilha, _se atreveu_ a dizer que _não convinha_ que Christo
+apparecesse a um firmissimo crente, mas que tal apparecimento era
+necessario aos hereges, aos que se afastavam da fé christan. D'isto e
+d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa sanctidade conhecerá mais
+claro que esta luz que nos alumia _por qual constancia d'animo, por qual
+ardor de virtude, por que prendas, por quaes degráus e successos subiu
+ao fastigio regio_; como esse varão tão religioso, forte e pio augmentou
+os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo jugo da
+servidão; com que razão, por força da _clarissima vontade e da suprema
+direcção_ (optimo auspicio) _da eterna magestade_, com _auxilio do povo_
+e _adjutorio_ da sancta igreja romana, _tomou o regio nome com direito
+perfeito_ (optimo jure) _e o legou aos seus successores_; mais feliz
+nisto que outros principes, dos quaes muitos aspiraram ao titulo real
+pelo favor dos povos; outros por temor dos seus satellites armados;
+poucos, a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro caminho da
+virtude.»
+
+Aqui tem v.. o que se lê na oração de Lucena relativamente a Affonso I.
+Note v.. que o orador passava por um dos homens mais instruidos do seu
+tempo, e não podia por ignorancia fazer o que fez; isto é, inverter a
+ordem dos successos do reinado d'aquelle principe. Deste discurso o que
+se deduz é que a batalha de Ourique foi a ultima façanha notavel delle,
+posterior a tudo, inclusivamente á tomada de Evora, e quem sabe se á
+bulla de Alexandre III, que concedeu ao principe português a
+qualificação de rei? O que é certo é que, se a chronologia fingida por
+Lucena fosse verdadeira, a batalha e o milagre de Ourique, em que elle
+visivelmente quer fundar a independencia de Portugal, _embora com o
+favor do povo e de Roma_, teriam sido posteriores á carta de feudo á sé
+apostolica e á bulla de acceitação de homenagem expedida por Lucio II.
+Assim, a dignidade do rei e a independencia de Affonso I assentariam
+n'um titulo, não só incomparavelmente melhor, qual era a vontade de Deus
+milagrosamente manifestada, mas tambem posterior á offerta e acceitação
+da homenagem feita em 1144, que por esse facto ficavam invalidadas por
+inuteis. Presupposto isto, a impertinente recordação da curia romana,
+inserida na bulla «_Ut saluti_» de Sisto IV, ficava tambem de todo o
+ponto refutada.
+
+Mas dirá v..--o cardeal D. Jorge da Costa, presente ao acto, não podia
+impugnar este inaudito milagre?--Não se impugnam assim milagres.
+Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra mim, porque no seculo
+XIX não creio n'uma fabula provada tal até a saciedade, e imagine se um
+padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre nos fins do seculo XV; e
+quando se atrevesse a dizer alguma cousa, seria em particular ao papa e
+aos cardeaes. Outra flagrante mentira dizia ahi Lucena sem temor de que
+D. Jorge o contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros em cada
+escudete, desmentida por todas as armas reaes gravadas nos sêllos e
+moedas dos nossos antigos reis da primeira dynastia, começando em Sancho
+I. Restam muitos desses sêllos e moedas; muitos mais deviam restar
+naquella epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa notavel: havia
+de ter visto muitissimos; mas nem por isso Lucena titubeou, antes nesta
+parte o seu discurso, geralmente frio, melifluo, calculado, tem certo
+sabor de colerica invectiva contra os que disso duvidassem. O
+descaramento é, ha muitos seculos, um dos dotes do homem d'estado.
+
+Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador de Portugal no concilio
+de Basiléa, e na embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as orações de
+abertura nas côrtes de 1478 e de 1481. Todas essas orações, que não
+deviam ser menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas escapou a da
+embaixada de Roma de 1485, e não só escapou, mas tambem foi impressa, e
+não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se della duas edições em
+caracteres gothicos e sem data, ao que parece, estampadas _fóra do
+reino_ e com todos os signaes de _pertencerem aos primeiros tempos da
+arte da impressão_[42]. Se de feito a oração foi reproduzida pela
+imprensa pouco depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino, onde a
+imprensa de livros latinos e vulgares não consta que existisse ainda.
+Mas duas edições da mesma epocha, que provam, senão que _alguem
+interessava em dar áquelle discurso a maxima publicidade_?
+
+Recorde-se v.. do que eu disse a proposito de Olivier de la Marche, e da
+influencia que é provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista
+flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se que em 1492, em que este
+escrevia, as opiniões andavam encontradas. As armas que ahi mais se
+deviam conhecer eram as antigas com a cruz d'Aviz, porque a reforma de
+D. João II tinha apenas oito annos. Entretanto a noticia do milagre de
+Ourique, postoque alterada, corria já alli, e a alteração provinha de
+quererem _alguns_ acommodar a fabula ás armas antigas. Consequentemente,
+outros não queriam: logo disputava-se ácerca disso: logo a historia da
+apparição era uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a explicação
+sabida e ordinaria, como Lucena dissera em Roma, teria De la Marche
+accumulado a serie de despropositos que anteriormente transcrevi? Elle
+falara ácerca d'isto com muitos portugueses, e escrevia á vista das suas
+informações. O que indica essa completa confusão d'idéas do chronista?
+Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente no meio das lendas que
+se ligavam ao brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente
+baralhado.
+
+Agora note v.. que por estes mesmos annos de 1491 e 92 Lucena devia
+estar em Flandres, porque é neste tempo que elle começa a intitular-se
+conde palatino (titulo que parece provir-lhe do cargo d'escanção da
+viuva de Carlos o Temerario), ao passo que nessa conjunctura o achamos
+ausente de Portugal[43]. V.. ajuisará das illações que destes factos se
+podem tirar.
+
+Mais ou menos inexactas que sejam as noticias que nos restam ácerca da
+existencia em Sancta Cruz de Coimbra de um monumento relativo á
+apparição, parece todavia que alguma cousa ahi houve, e o transumpto do
+juramento de Affonso I, feito pelo notario Manso _em tempo d'elrei D.
+João II_, não é de desprezar, logo que um homem como frei Francisco
+Brandão affirma tê-lo visto. Tal transumpto, se não prova a existencia
+de um documento verdadeiro, faz crer que _alguma cousa sobre a apparição
+tinha_ apparecido _em Sancta Cruz no tempo daquelle rei_.
+
+Advirta, porém, v.. que D. João Galvão, o arcebispo de Braga, valído de
+João II, tinha sido prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar
+estreitas relações com os frades, e que a familia Galvão parece ter tido
+particular tendencia para aquelle mosteiro; um outro D. João Galvão era
+seu prior crasteiro no principio do seculo XVI, e, como vimos, diz-se
+que em 1556 um frade cruzio, velho de oitenta annos, o _cartorario_ D.
+Manuel Galvão, depôs que existia o auto do juramento de Affonso I, _em
+que os prelados e os grandes da corte estavam assignados_, grossa
+mentira, seja de passagem dicto, porque o estylo constante, sem excepção
+no seculo XII e ainda no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo
+notario que os exarava os nomes dos prelados e ricos-homens
+confirmantes. Mas os Galvões não acabam aqui. Duarte Galvão, _irmão do
+arcebispo valído_, escrevendo depois de 1500 a chronica de Affonso
+Henriques (no fim da qual adverte _innocentemente_ que seu irmão o
+arcebispo lhe dissera que tinha motivos para crer _que Affonso Henriques
+fora sancto_,) introduz na narrativa da batalha de Ourique a historia da
+apparição, aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera a Lucena.
+Galvão refere-se nesta parte ao que _elle mesmo_ (Affonso I) _disse, e
+dentro da sua historia se contém_, o que parece alludir a uma especie de
+memoria ou diploma em que figura o filho de D. Theresa, o _Pharaó
+obdurado_. Tudo o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em fama;
+isto é, a reprehensão dada pelo rei a Christo por lhe apparecer a elle;
+as promessas da protecção perpetua do reino feitas por Deus; emfim tudo
+aquillo que os frades de Alcobaça metteram para dentro do _seu original_
+do juramento, porque em verdade era pena que andasse tanta cousa boa só
+em _confirmada fama_, como diz Duarte Galvão. Mas se os frades bernardos
+souberam aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem um
+juramento vistoso, e de uma apparição rachitica uma apparição ancha e
+acabada, o chronista não tinha mostrado menos juizo em lhe dar uma
+applicação util. Para D. João II, morto e sepultado, não servia ella já
+de nada. A bulla _Ut Saluti_, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio
+VIII tinham desapparecido da scena politica. Na cadeira de S. Pedro
+estava assentado o sancto padre Alexandre Borgia, que tinha assaz que
+fazer em administrar piamente a igreja de Deus, para não cogitar na
+sujeição politica de Portugal á sancta sé. O milagre de Ourique andava
+de todo desaproveitado. Era uma lastima. O chronista olhou para o
+mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro dos Galvões, e entendeu que
+a apparição lhe podia ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente
+da apparição, no que ninguem até ahi sonhara. Fora a causa de tamanha
+mercê do céu o ter Affonso I fundado e enriquecido Sancta Cruz _com
+grande devoção_. Na verdade isto era em parte mentira; porque as grandes
+doações de terras, castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques
+áquelles frades, são todas posteriores a 1139 e anterior á batalha de
+Ourique apenas a de uma horta em Coimbra[44]. Antes, porém, da
+pontilhuda dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão perto para
+as cousas. A mentira util tornava-se em verdade pelo consenso dos
+sabios, e sabios eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade de
+explorar a tradição em beneficio dos conegos cruzios era indisputavel.
+Os caseiros e emphyteutas do mosteiro, raça dura e rebelde em pagar suas
+rendas e foros, não pagava, e ria-se das excommunhões; os officiaes da
+coroa quebravam impiamente os privilegios da ordem, e até,
+anteriormente, os villãos de Montemor tinham ousado accusá-la de haver
+obtido com dolo e mentira parte das suas rendas e direitos
+senhoriaes[45]. Depois, naquella conjunctura, o mosteiro estava gasto e
+desbaratado das guerras que pouco antes o prior D. João de Noronha
+tivera com o bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de carne furtada da
+cozinha do bispo pelos criados do prior; guerras em que se deram cruas
+batalhas nas praças de Coimbra, sendo necessario que o poder publico
+mandasse marchar tropas para pacificar á força os dous reverendos
+campeões[46]. Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes, os bens
+e rendas de Sancta Cruz sob a protecção de um bom milagre, naquella
+occasião desoccupado, d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios sem
+damno de terceiro. Valia a pena, por isso, de achar a causa verdadeira
+do milagre de Ourique, com que ninguem ainda tinha atinado.
+
+Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha linguagem. Ha cousas que
+nenhuma equanimidade basta para dellas se falar sem indignação, ou sem
+riso. É necessario escolher, e eu prefiro o ultimo quando se tracta de
+embustes e miserias que já não fazem mal. V.. tomará na conta que
+merecem os factos e as reflexões que no decurso desta carta lhe
+submetto, e de que no seu foro intimo tirará as conclusões que julgar
+razoaveis. Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado pela
+imprensa que se retirava da arena da discussão. Por mais oppostas que
+sejam em tantas cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica com um
+homem honesto, cortez e instruido, era-me summamente agradavel. Mas
+d'hoje avante, dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que não faria uma
+acção boa. Até certo ponto sería ferir pelas costas um adversario leal.
+Cessou por isso a nossa correspondencia. Restam mil outros meios de
+falar com o geral dos homens de bem e sinceros, e de dizer ao meu paiz
+as verdades em que a guerra da maioria do clero me obriga, por propria
+defesa, a fazê-lo pensar.
+
+
+
+
+V
+
+A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA
+
+
+AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO
+
+(_Março, 1851_)
+
+
+Meu amigo.--Remette-me v.. o folheto de A. C. P. (que me diz ser um
+«academico» o sr. Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os
+crimes, as fabulas, as contradicções, as ignorancias e não sei quantas
+cousas mais, em que o peccador de mim caiu na narrativa da batalha de
+Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa no seu jornal acerca desta
+publicação, a qual fez, segundo v.. affirma, certo effeito, por causa
+das garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por lithographia ao
+folheto, como prova dos progressos da arte typographica entre nós, que é
+o mais que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas. Sabe o bom
+redactor da _Semana_ a primeira impressão que o folheto me causou? A que
+em mim produzem muitas cousas que se publicam nesta nossa terra.
+Lembrei-me da Divina Providencia, para lhe agradecer que o estudo da
+nossa lingua esteja tão pouco generalisado na Europa. A reputação
+litteraria do paiz ganha immensamente com isso. Dizem que não se deve
+nunca desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que litterariamente
+desesperava della, se não fosse a mocidade, á qual Deus queira dar
+bastante amor do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a cruzar os
+umbraes da Academia. A dizer a verdade, meu amigo, começa a fallecer-me
+a paciencia e a vontade para discutir cousas que nos escorregam para o
+chão quando tentamos submettê-las á analyse. Demais, do que eu tracto
+agora é de pôr quanto antes na imprensa o quarto volume da _Historia de
+Portugal_, que, em consciencia, me tem dado mais que pensar do que todas
+as criticas academicas, presentes e futuras. Com a mão no coração,
+digo-lhe que, _exceptis excipiendis_, o areopago censorio mais
+inoffensivo, mais divertido até, que ha em todo o mundo é a Academia de
+Lisboa. Collectivas ou individuaes, as censuras que partem d'alli nem
+sequer arranham a supposta victima. Se não escorchassem, por via de
+regra, a grammatica e o senso commum, não só seriam suaves e morbidas;
+seriam até, permitta-me dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em chim,
+tomavam-nas por obra de algum collegio de mandarins letrados do celeste
+imperio. O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso no genero: é um
+botaréu da maravilhosa fabrica das memorias e actas academicas tirado do
+seu logar, e a que fizeram perder aquella parte de formosura que lhe
+houvera resultado da harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa que
+lastimo.
+
+Agora o que, tambem sinceramente, eu não esperava era achar no opusculo
+certa cortezia nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que se estava
+imprimindo contra mim um cartapacio mourisco. Pensei que fosse obra dos
+reverendos, que, tão pobres de saber e de intelligencia como ricos de
+odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria a colera que os abafa. E
+ainda bem! Apesar do nojo que tenho desses pobres-diabos, não quero que
+elles estourem, porque são meus irmãos, como em gira jesuitica se
+costuma dizer a cada punhalada que se dá no proximo. Estou já tão
+affeito aos improperios da imprensa devota, á caridade dos nossos
+khatibs e ul-máis, que não esperava no imminente opusculo senão mais uma
+prova a favor da minha crença na atrophia moral e intellectual da
+maioria do nosso clero, crença que elle se encarregou de demonstrar até
+a saciedade. Enganei-me: era obra secular; academica, porém cortez;
+cortez (entendamo-nos) até o ponto de não usar o auctor das phrases dos
+prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto de respeitar o meu
+caracter moral, porque ahi sou accusado de _falto de sinceridade_ (pag.
+10), de _critico cheio de fel_, de _criminoso_ (pag. 15), de _aviltador
+do valor português_ (pag. 18). Isto, porém, pode ser violento, mas não é
+immundo. Os mentecaptos indecentes são os que a minha dignidade de
+escriptor e de homem me não consente refutar. Assim, ser-me-ha licito
+satisfazer aos desejos do bom redactor da _Semana_ e remetter-lhe
+algumas notas ácerca deste curioso papel.
+
+Uma explicação. Quando digo que não posso refutar mentecaptos
+indecentes, não quero significar que essa guerra que se me faz, atroz na
+intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar sem punição. Não sou homem
+disso; mas tambem não sou homem que gaste polvora com guerrilhas. Hei de
+ir buscar a seu tempo as columnas de infanteria e os macissos de
+cavallaria que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão pela imprensa
+contra mim são um veu que encobre, ou antes descobre por demasiado raro,
+negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se a Europa catholica se
+hade infeudar de novo ás corrupções da curia romana, com o seu cortejo
+de jesuitas de todos os formatos, de todas as idades e de todas as
+mascaras; com os seus titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas em
+miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal: manda-se hostilisar em mim o
+progresso das novas idéas, a independencia das opiniões, não porque eu
+seja o mais forte, mas porque circumstancias, que não preparei nem
+provoquei, me collocaram na primeira linha do combate. O que é certo é
+que alguem se ha de enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós, ou esse
+grupo, essa cousa, que por ahi anda a ajunctar quanto pó e podridão ha
+no cemiterio dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida; essa cousa
+hedionda, que, incapaz das ambições grandiosas, do despotismo esplendido
+da Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho que ella desmente,
+fulminada pela philosophia que ella detesta, depois de apurar as suas
+doutrinas espirituaes nas fontes catholicas das margens do Neva, vem
+refocilar-se para a peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens
+atraz dos olhos buliçosos da madona de Frosinone. Aqui, no ultimo
+occidente, o recontro final ha de ser mais tarde. Que a mocidade não
+durma, porém! Prepare-se para os dias de prova, e talvez de tribulação,
+com a severidade dos costumes, que dá a energia moral, e com a
+severidade do estudo, que subministra as armas para a victoria. Por ora
+pedem-nos só jesuitas; o perigo da petição não é grande. A igreja da
+_Memoria_, cujas grimpas vejo d'aqui, collocada lá a meia encosta, vigia
+a foz do Tejo. Os filhos de Loiola não passariam áquem da barra sem que
+o sangue de D. José I gemesse nos fundamentos do templo, e este gemido
+retumbaria pelo reino de Portugal, porque a imprensa tem echos.
+
+Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por não deshonrar esta terra:
+empreguemos unidos os nossos esforços para augmentar os thesouros da
+civilisação no paiz; associemo-nos lealmente a quantas idéas generosas e
+puras de progresso material e intellectual surgirem no meio de nós.
+Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos; mas é necessario
+cumpri-los. Porque estou eu tranquillo no meio da tormenta que ruge?
+Porque tenho a consciencia de os haver desempenhado escrevendo a
+historia. Se transigisse com vaidades e mentiras; se vendesse a minha
+penna a paixões pequenas e más; se recuasse diante de considerações
+miseraveis, as horas da solidão e do silencio, que são as mais da minha
+vida, não seriam tão repousadas para mim. Alumiado por essa luz moral,
+que nunca devemos perder de vista, espero levar ao cabo o empenho que
+tomei, até porque a historia de Portugal é uma das mais ricas em licções
+para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas, e essas licções
+são hoje altamente proficuas. Não ha nella, sob tal aspecto, uma só
+epocha infertil, desde os tempos barbaros em que o arcebispo João
+Peculiar, furioso contra o seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos
+paços episcopaes deste, convertia a cathedral em estabulo dos seus
+cavallos, e espalhava por terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta
+colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos, em que os devotos e
+pios inquisidores, depois de mandarem desconjunctar nos tractos do potro
+os membros delicados das virgens hebreas, ou das tidas por taes, iam,
+curvados sobre o leito da dôr, pousar mollemente os olhos lubricos nos
+debeis corpos das martyres, e fartar a sua luxuria de tigres palpando
+aquellas carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça de Deus põe a
+penna na dextra do historiador, ao passo que lhe põe na esquerda os
+documentos indubitaveis de crimes que pareciam escondidos para sempre
+debaixo das lousas, elle deve seguir ávante sem hesitar, embora a
+hypocrisia ruja em redor, porque a missão do historiador tem nesse caso
+o que quer que seja de divina.
+
+E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo! O opusculo tinha-me
+profundamente esquecido.
+
+O eruditissímo academico meu adversario declara-me inhabilitado para
+escrever a historia do dominio mussulmano na Hespanha, porque não sei
+arabe.
+
+Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo de historiador; mas
+consolo-me com a boa companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam
+arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal não sabia as linguas bunda,
+tupinamba e iroquesa; Bossuet não sabia as setenta e duas linguas da
+torre de Babel.
+
+O auctor do opusculo passa a demonstrar como eu não sei arabe. Não era
+preciso: nas notas do meu livro estou mais que confesso. Nunca citei um
+texto escripto nessa lingua, que não dissesse de que traducção me tinha
+valido.
+
+Eis, todavia, as provas _da minha_ insciencia:
+
+Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem phenicia.
+
+E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do rio é _Ana_: e os
+eruditos concordam geralmente em que a palavra é phenicia. _Guadi_,
+_wadi_, ou como em mouro direito for, é árabe, e significa rio. Até ahi
+chega o meu arabismo. Mas não são essas syllabas que o distinguem,
+porque os sarracenos as ajunctavam a muitos _nomes proprios_ de rios.
+_Guadiana_ nada mais é que o _rio Ana_.
+
+Segunda: Digo que _Alcacer_ significa _paços reaes_.
+
+E porque não o havia de dizer? Os _Vestigios arabicos_ de Moura dão-lhe
+a significação de _palacio acastellado_; e eu, que não sei arabe, mas
+que sei outras cousas que o auctor do opusculo ignora, affirmo-lhe que
+naquella epocha o _Al-kassr_ ou _Al-kassba_ (aqui me colhe n'alguma
+tropelia arabica) era isso, ou mais exactamente, um _castello
+apalaçado_. Quanto ao adjectivo _reaes_, asseguro-lhe á fé de christão
+(e tanto da gemma, que não entendo o alcorão) que em virtude das
+instituições politicas d'aquelles tempos, assim entre sarracenos como
+entre nazarenos, o _alcacer_ era necessariamente _real_, isto é,
+dependente do poder publico.
+
+Terceira: Chamo a _Ourique_ nome proprio de logar.
+
+Sobre isso falaremos d'espaço.
+
+Quarta: Interpreto _Iman_ dignidade religiosa.
+
+Esta accusação deixou-me quasi academico. Para um arabista parece-me
+gracejo forte de mais. Pois _Iman_ não significa dignidade religiosa? O
+auctor do opusculo devia então dizer-nos se o _iman_ era algum capitão
+de mar e guerra, mercador de retalho, dentista, ou que demonio era o
+_iman_. Quem a mim me metteu nestes trabalhos sei eu. Foi o celebre
+traductor e refutador do alcorão, Marraccio, que teve a insolencia de
+dar sempre á palavra _iman_ a significação de _chefe do culto_, de
+_principal sacerdote (sacrorum antistes)_[47]: foi o orientalista
+Von-Hammer[48], que sabe mais das cousas mussulmanas, que toda a eschola
+arabica de Lisboa desde a sua fundação até hoje: foram todas as
+exposições da organisação religiosa entre os mussulmanos, não só da
+Peninsula, mas de todo o mundo.
+
+Quinta: Digo ser _Ismar_ corrupção de _Omar_ ou de _Ismael_.
+
+É possivel que eu me enganasse: todavia, porque não me fez o auctor do
+opusculo um favor especial; porque não me citou na historia de
+Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou na de Al-Keiruani, onde
+se mencionam milhares de individuos mussulmanos, um só que se chamasse
+_Ismar_? Assim fico em duvida, e desconfiado de que tenhamos outra
+anecdota como a d'_Iman_.
+
+Felizmente as provas não continuam. Se o auctor proseguisse, temo que
+demonstrasse contra mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que me
+punha; porque na realidade eu não sei decifrar um unico daquelles
+engaços de passas, que elle lithographou ao cabo do seu opusculo.
+
+Passado o preambulo, o auctor annuncia que vai provar-me pelos
+historiadores arabes que a batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o
+_golpe fatal dado no dominio mussulmano_. Sancto breve da marca! Sempre
+são mouros! Se tal affirmam, digo ao illustre arabista que não os
+acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais exaggerados, não contam
+tanto. O dominio mussulmano ficou como estava depois da jornada
+d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para os seus estados, ao
+norte do Mondego, porque sabía do officio de soldado. Sessenta annos de
+lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram para expulsar de todo do
+actual territorio português os mussulmanos. Apesar da celebre jornada de
+1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando palmo a palmo a
+Estremadura e o Alemtejo. Que _golpe fatal_ foi, portanto, esse de
+Ourique? Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o proximo.
+
+Depois de citar o que eu refiro como introducção á narrativa da batalha,
+o opusculo vem deitar-me tudo por terra com um sopro. Errei a
+chronologia, os nomes dos imperadores almoravides, tudo. Oh peccador de
+mim!
+
+Lá vai o texto do nosso academico arabico:
+
+
+ «Nada tem o facto de Ourique, succedido no reinado de
+ Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este Aly-Ibn-Iussuf foi
+ o primeiro imperador da dynastia dos morabethins e falleceu no anno
+ 496 da Hegira, 1103 da era Christã...»
+
+ «Não foi, _portanto_, no reinado de Aly-Ibn-Iussuf, nem durante o
+ de Aly-Ben-Taxefin, que começou a pretensão do celebre El-Mohdy,
+ mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly, que succedeu a
+ Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou no reinado do III imperador e
+ só tomou seu maior incremento no meio do reinado do IV imperador da
+ dynastia dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin: logo no
+ reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi a batalha de Ourique,
+ não houve revolução, nem politica, nem religiosa, que distrahisse
+ as tropas; o que tudo confirmamos, convidando nossos leitores a que
+ leiam os capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia
+ Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por
+ Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.»
+
+
+Transcrevi todas estas blasphemias historicas, para que se veja com
+quanta razão dou graças a Deus de que a nossa lingua seja pouco
+conhecida, e o que se deve esperar de uma academia onde ha destes
+eruditos. Pús á vista de todos o corpo de delicto. Vamos ao auto.
+
+A serie dos imperadores almoravides que resulta das precedentes
+passagens é a seguinte.
+
+
+ 1.^o Aly-Ibn-Iussuf 1103 (morto)
+ 2.^o Aly-Ben-Taxefin 1139 (batalha d'Ourique)
+ 3.^o Taxefin-Ben-Aly (apparecimento do Mahadi)
+ 4.^o Ibrahim-Ben-Taxefin.
+
+
+Em que se funda o auctor? Que é o que cita em seu abono?
+
+Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia de Assaleh-Ben-Abdel-Halim,
+ou Salihn Abd-Alihim, conforme for em mouro a graça de sua mercê, porque
+não ha dous arabistas que escrevam um nome de gente do mesmo feitio.
+
+Ora os capitulos citados[49] têem apenas o pequeno inconveniente de se
+referirem ás primeiras conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento
+do seu dominio na Africa _na segunda metade do seculo XI_. É no capitulo
+37 que se narra a primeira passagem á Hespanha de Iussuf-Ibn-Tachfin e a
+victoria de Zalaka em 1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a terceira
+em que Iussuf incorporou nos seus dominios os estados mussulmanos da
+Peninsula, que tinham invocado o seu auxilio. Iussuf foi o primeiro
+imperador almoravide d'Africa e de Hespanha.
+
+A serie dos imperadores, que resulta dos capitulos 39 e seguintes da
+Historia de Assaleh-Abdel-halim é:
+
+
+ 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin (fallecido) em 1106
+ 2.^o Aly-Ibn-Iussuf (appel. Abu-Hassan) (fallecido) em 1142
+ 3.^o Tachfin-Ibn-Aly (morto em) 1145
+
+
+Se o meu amigo comparar isto com o que se diz no opusculo, não me ha-de
+acreditar. Tem razão. É monstruoso, é incrivel, é absurdo; mas está la.
+Se quizer desenganar-se, procure a versão de Assaleh pelo padre Moura
+esplendidamente impressa pela Academia em papel pardo e letra safada.
+Veja o que diz o historiador arabe, o que eu digo, e o que diz o
+opusculo. Depois julgue-nos; e, ainda depois, faça idea do que irá pela
+_Classe de Sciencias Moraes e Bellas-letras_ (ou, como quem o dissesse
+em português, _e Boas-letras_) da Academia[50].
+
+É assim que esta gente salva a gloria nacional e vindica a bulha
+d'Ourique contra a minha má fé, contra o fel da minha critica.
+
+A má fé é minha. Repare bem nisso.
+
+Mas haverá outros textos de Abdel-halim, que tenham alguns capitulos 32
+a 36, que nos contem essas historias do opusculo?
+
+Na parte da _Historia do Dominio dos Arabes_ por D. J. Conde, relativa á
+dynastia almoravide, o erudito hespanhol seguiu Assaleh. Esta parte do
+seu trabalho ficou imperfeita e por isso deve aproveitar-se com cautela.
+Todavia Conde era incapaz de commetter um erro tão grosseiro como
+transtornar completamente a chronologia daquella epocha. Isto estava
+reservado para um membro da nossa academia.
+
+Eis o resumo da chronologia de Conde quanto á dynastia almoravide[51]:
+
+
+ 1.^o Abu-Bekr-Ibn-Omar (unicamente na Africa)
+ 2.^o Iussuf-Ibn-Tachfin, fallecido na egira 500
+ (1106-1107)
+ 3.^o Aly-Ibn-Iussuf, fallecido na egira 534
+ (1139-1140)
+ 4.^o Tachfin-Ibn-Aly fallecido na egira 541
+ (1146-1147)
+
+
+A ordem dos imperadores é a mesma. Conde atraza dous annos a morte de
+Aly-Ibn-Iussuf e adianta um a de seu filho. Ainda admittida a
+chronologia Conde, a jornada de Ourique cai dentro do reinado de
+Aly-Ibn-Iussuf; porque a Egira 534 correu de _agosto_ de 1139 a agosto
+de 1140.
+
+Os historiadores sarracenos Ibn-Khallekan e Ibn-Al-Khatib consideram
+Iussuf-Ibn-Tachfin como o fundador da dynastia almoravide. Eis a
+chronologia seguida por elles:
+
+
+ 1.^o Iussuf, fallecido na egira 500 (1106-7)
+ 2.^o Aly, fallecido na egira 537 (1142-3)
+ 3.^o Tachfin, fallecido na egira 539 (1144-5)[52]
+
+
+Já se vê que, segundo a chronologia de Ibn-Khallekan e de Ibn-Al-Khatib,
+a ordem da dynastia é a mesma, e que o successo d'Ourique tambem cai no
+reinado de Aly-Ibn-Iussuf. O celebre Abu-l-Feda concorda com elles. «Na
+Egira de 500--diz Abu-l-Feda--morreu Iussuf-Ibn-Tachfin, _amir
+al-moslemin_. Succedeu-lhe Aly seu filho (Aly-Ibn-Iussuf) que tomou o
+titulo de _amir al-moslemin_, como seu pae[53].»
+
+Resta apontar o que resulta da narrativa do principal historiador arabe
+do dominio mussulmano Peninsula, Al-Makkari, ácerca da dynastia
+almoravide:
+
+
+ 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin 1052 a 1106
+ 2.^o Aly-Ibn-Iussuf 1106 a 1143
+ 3.^o Tachfin-Ibn-Aly 1143 a 1145
+ 4.^o Abu-Ishak-Ibrahim-Ibn-Tachfin 1145 a 1147[54]
+
+
+Que tal parece ao meu amigo a erudição arabica da parte sarracena da
+nossa Academia?
+
+Nos arabes vê-se que se encontra exactamente o contrario do que se lê no
+opusculo. Certamente o auctor descubriu essa deliciosa historia dos
+almoravides, que nos conta, nos escriptores christãos coevos ou quasi
+coevos. Sempre era gente que se confessava. Mouro e judeu mentem por
+officio. Vejamos:
+
+A chronica dos godos nas suas referencias aos imperadores almoravides:
+
+
+ 1.^o Iussuf (batalha de Zalaka) 1085 aliàs 1086
+ 2.^o Aly-Ibn-Iussuf (cerco de Coimbra) 1117[55]
+
+
+A conimbricense:
+
+
+ 2.^o Aly (cerco de Coimbra) 1117[56]
+
+
+Rodrigo de Toledo, o escriptor do seculo XIII mais instruido na
+litteratura arabe e christã da Peninsula, estabelece para a dynastia
+almoravide d'Africa e de Hespanha, que diz ter durado 55 annos desde a
+Egira 484 até a Egira 539, a seguinte chronologia:
+
+
+ 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin (principio da dynastia) 1091-2
+ 2.^o Aly-Ibn-Iussuf
+ 3.^o Tachfin-Ibn-Aly (fim da dynastia) 1144-5[57]
+
+
+Ao _digno_ academico restam talvez para estribar as suas famosas
+historias _almoraviditicas_ (na falta de arabes e christãos) alguns
+historiadores tartaros, mongoles, ou chinas.
+
+É provavel que seja assim.
+
+Perdôe, meu amigo, estas extensas citações. Era necessario dar uma
+prova, que não admittisse subterfugios, dos deploraveis, por não dizer
+vergonhosos, extremos a que o desejo de me combater tem levado certas
+pessoas.
+
+O auctor do opusculo negou, com a mesma sem cerimonia com que
+transtornou a serie dos imperadores, que o Mahadi ou Al-mohdi
+(Mohammed-Ibn-Tiumarta) começasse a revolução almohade no reinado de
+Aly, e que nos ultimos annos deste reinado, isto é, na epocha da batalha
+ou recontro de Ourique, essa revolução houvesse tomado um incremento
+irresistivel. Todavia são os mesmos escriptores arabes que contam o
+successo como eu o narrei: conta-o o proprio Abdel-halim, em que elle
+finge estribar-se com uma citação _falsa_; _falsa_, digo, porque tanta
+confusão involuntaria é moralmente impossivel. A narrativa de
+Abdel-halim é, que em 1120 appareceu o Mahadi; que de 1122 a 1125 já se
+achava com forças para vir assentar campo perto de Marrocos; que, tendo
+fallecido em 1130, tomou o commando dos almohades Abdel-mumen, o qual
+foi acclamado imperador em 1133, continuando guerra incessante contra os
+almoravides até os destruir[58]. É elle que, depois de narrar as
+victorias de Tachfin-Ibn-Aly contra os christãos desde 1126 até 1137,
+refere que logo passara á Africa[59]. Conde diz-nos que fora chamado por
+seu pae ameaçado da ultima ruina[60]. Habil e feliz general contra os
+christãos, esta causa da sua partida parece confirmada, não só pela
+razão, mas tambem pelo texto de Al-Khatib[61]. Um monumento christão,
+escripto por individuo do mesmo seculo, a _Chronica Adefonsi
+Imperatoris_, confirma e particularisa o facto. Narrando os successos de
+1138, diz que Tachfin levara comsigo, retirando-se para a Africa, até os
+mosarabes e os prisioneiros christãos para os oppôr aos almohades[62].
+Deixaria acaso em Hespanha a flor das tropas almoravides, quando a
+defesa de Marrocos o obrigava a converter em soldados os proprios
+nazarenos captivos? Destroem-se estes factos com citações falsas? Como
+se explica o abandono d'Aurelia, suppondo a existencia de uma grande
+batalha dada (exactamente na conjunctura do cerco) no occidente da
+Peninsula entre almoravides e portugueses, quando de Africa se não
+dispensava um soldado para a salvação d'aquella chave da fronteira
+musulmana? Que se póde dizer que tenha um vislumbre de senso commum
+contra o que a este proposito reflecti?
+
+Quem dá documentos de má fé? Sou eu ou os meus adversarios?
+
+Ia-me irritando! Em boa paz, o nosso academico arabe não vale a pena
+disso.
+
+Depois d'estas façanhas, o auctor do opusculo prosegue com accusações
+curiosissimas. Fora extenso de mais citá-las todas. Uma d'ellas é que
+chamo á serie dos imperadores almoravides _dynastia lamtunense_ para
+explicar o apparecimento das mulheres no recontro de Ourique, e para
+taxar de covardes os mesmos almoravides. O auctor faz a mercê de
+dizer-me que o vocabulo _lamtunense, ou antes almolatamenense_, não
+serve para indicar covardia. Devéras? E eu que não caía em nada! Isto é
+incrivel, amigo redactor da _Semana_. Digo mais: era impossivel haver
+quem fizesse d'estas, se não houvesse academias. Chamei aos principes
+almoravides _dynastia lamtunense_, ou _lamtunita_, porque todos os
+historiadores arabes, Ibn-Khaldun, Abdel-halim, Al-Makkari, Al-Khatib,
+Al-Keiruani, lh'o chamam, e chamam-lh'o para indicar valentia ou
+covardia tanto como eu. Chamam-lh'o porque, entre as raças bereberes que
+serviram de nucleo ao imperio almoravide, a de Lamtuna ou Lamta[63] era
+a principal, e porque Iussuf, o primeiro imperador almoravide, era da
+tribu de Masufah pertencente a essa raça. Aquella phrase do opusculo
+«_ou antes almolatamenense_», é deliciosa. Como o nosso arabista
+precisava de mostrar a sua pobre erudição, fez pouco mais ou menos este
+raciocinio: «o auctor da Historia de Portugal denomina os principes
+almoravides _lamtunenses_; eu digo-lhe, _ex auctoritate qua fungor_ que
+era melhor chamar-lhes _almolatamenenses_»: ora como esta denominação
+provinha de terem os almoravides cuberto o rosto com veus de mulheres
+n'uma batalha, e possa crer-se um epigramma contra o seu esforço, embora
+elle não usasse de tal vocabulo, devia usar, para eu poder reprehendê-lo
+por isso; porque é uma violencia negar a um pobre escholar arabico a
+occasião de mostrar erudições _reconditas_. Sabe o meu amigo o que isto
+faz lembrar? Faz lembrar o prégador que punha o barrete na borda do
+pulpito, encarregava-o do papel do diabo, e depois convencia-o á sua
+vontade. Vamos a outro exemplo. No opusculo mourisco affirma-se contra
+mim:
+
+Que os principes almoravides usaram do titulo de _amir-el-muminin_[64].
+
+A prova disto é curiosa, como tudo o mais. Os almoravides usaram-no,
+segundo o opusculo sarraceno, porque Abdel-halim diz que foi usado
+duzentos annos antes pelos Benu-Umeyyah (ommiadas) soberanos arabes de
+Cordova. Não o diz Abdel-halim; di-lo toda a gente; mas que tem o que
+fizeram os ommiadas com o que fizeram os almoravides? Isto, meu amigo, é
+incrivel! Acima transcrevi uma passagem de Abu-l-Feda, pela qual se vê
+que o titulo dos soberanos lamtunenses era _amir-al-moslémin_ (principe
+dos mussulmanos). Ouçamos agora o sr. Gayangos: «Não consta da
+historia--diz elle--que Iussuf-Ibn-Tachfin ou algum dos seus successores
+tomasse nunca o titulo de _Amiru-l-muminin_, que era reservado para o
+khalifa, ou vigario do propheta no oriente. Contentaram-se pelo
+contrario, ao que parece, com o titulo mais modesto de
+_Amiru-l-muslemin_, ou _principe dos moslems_ (de Africa e de Hespanha).
+Os proprios sultões de Cordova, postoque descendentes do tronco dos
+Benu-Umeyyah, e tão intimamente ligados com a familia do propheta, não
+se atreveram a tomar este titulo honorifico emquanto a familia de Abbás
+não chegou a ser quasi extincta na Asia pelos turcos; e ainda assim, o
+uso desse titulo foi reputado sacrilego por alguns theologos de Cordova
+e d'outras cidades da Peninsula[65]». Effectivamente Abu-l-Feda nos
+certifica que Abderrahman III «foi o primeiro entre os principes
+ommiadicos do Andalus que se arrogou o titulo de _amir-al-muminin
+proprio do Khalifa_[66].»
+
+Isto não são citações falsas. Por ellas póde ver o meu amigo com quanta
+exacção eu escrevi ácerca dos almoravides, embora não fosse esse o
+objecto essencial do meu trabalho, e com quanta leveza foi escripto o
+opusculo sarraceno destinado a refutar-me. Não fica, porém, aqui o
+negocio. O academico auctor do opusculo accusa-me de ignorancia da
+lingua arabe e de historia por dizer que os principes da dynastia
+almohade adoptaram o titulo de khalifa ou de _amir-al-muminin_, porque,
+diz elle, o de khalifa só se deu aos imperadores do oriente, e estas
+palavras khalifa e amir-al-muminin significam diversas cousas. Agradeço
+a ultima novidade; mas eu não escrevia grammatica; escrevia historia, e,
+politicamente, as duas expressões eram synonimas. Que se pensaria de
+quem accusasse d'ignorancia de grammatica e de historia aquelle que,
+falando do imperador da Russia, dissesse «_o czar ou autocrata_?» Por
+outra parte para o academico auctor do opusculo affirmar que o titulo de
+khalifa se deu ou não se deu aos principes mussulmanos do occidente,
+ainda tem que estudar muito a historia moslemica d'Africa e de Hespanha,
+cujos rudimentos parece ignorar. Se ler o capitulo 5 do livro 6
+d'Al-Makkari, ahi achará que o imperador ommiada de Cordova Abderrahmam
+III «foi o primeiro soberano da sua familia que assumiu _os titulos de
+khalifa e de amiru-l-muminin_». Se tambem quizer saber se os principes
+almohades tomaram ou não o titulo de khalifas, leia Al-Keiruani, e lá
+achará este periodo: «El-Mohdi _elevou o khalifado_ para os que lhe
+succederam[67]», e mais adiante, onde se conta certa anecdota do
+primeiro imperador almohade, Abd-el-mumen, lerá que um poeta da côrte
+dizia a outro: «Até quando importunarás tu _o khalifa_?»; porque é de
+advertir que naquelle tempo havia poetas impertinentes, como hoje ha
+criticos academicamente originaes.
+
+Mas, em consciencia, meu amigo, eu ás vezes merecia ser feito socio
+effectivo da classe de sciencias moraes e bellas-letras! Pois ha
+simpleza maior do que citar ao auctor do opusculo sarraceno tanta
+mourisma, quando o proprio Abdel-halim, que, segundo parece, constitue
+toda a matalotagem arabica do _digno_ academico, se lhe rebella e
+tumultua dentro do bornal litterario em que o traz mettido? E senão,
+ouçamo-lo. As palavras mandadas ensinar ao leão e ao papagaio, de que
+Abdel-mumen se serviu para os almohades o acclamarem imperador,
+traduzidas por Moura na sua versão de Abdel-halim, são «_as victorias e
+o poder competem ao califa Abdelmumen_[68]». É verdade que o auctor do
+folheto, que repete a historia do leão e do papagaio, não sei para me
+provar o que, traduz, em logar de _califa_, _successor_. Mas aqui para
+nós, meu amigo, postoque eu não saiba arabe, apostava que isso foi uma
+esperteza, e que naquella expressão _algalifatu_ (ou, como Moura lê,
+_el-califa_) anda o que quer que seja de _khalifa_.
+
+Estou com pressa de chegar ao fim, porque temo fazer uma carta tamanha
+como o opusculo, o que seria para o publico, em vez de uma desgraça,
+duas. Mas faltou-me o animo quando fui a saltar por cima do precioso
+paragrapho 8, que o auctor destinou para me provar que Ourique não é
+nome proprio de logar, como eu disse, mas sim appellativo, que significa
+_adversidade_ ou _infortunio_.
+
+Sou, porém, nesta parte absolvido do peccado, porque quem me deitou a
+perder foi o padre Moura, conforme resa o folheto. Ao menos, valha-nos
+isso! A consequencia, todavia, immediata deste importante descubrimento,
+que o digno academico fez, é exactamente a contraria da que elle
+desejava. Se assim é, torna-se impossivel achar jámais uma passagem de
+auctor arabe que se refira com certeza ao conflicto de Ourique. Embora
+até aqui não tenha apparecido essa passagem, podia ainda apparecer; mas
+desde que a palavra ourique (tirei-lhe o _O_ maiusculo, não pensem que
+teimo em fazê-la nome proprio) significa só _adversidade_ ou
+_infortunio_, o caso muda de figura. O combate que Affonso I teve, no
+fossado de julho de 1139, com os mouros do Alemtéjo é um facto provado
+pelos testimunhos que eu colligi; o que não está provado, nem se ha de
+provar nunca, é que elle fosse um successo importante. N'algum escriptor
+arabe, ainda inedito, que particularisasse muito os acontecimentos de
+Hespanha naquella epocha podia vir mencionado o recontro do _campo de
+Ourique_; mas como o auctor do opusculo não consente que esse pobre _o_
+tome as dimensões de letra maiuscula, qualquer passagem que appareça ha
+de ser traduzida pelos arabistas da seguinte maneira: «Houve em 1139 um
+combate entre os moslems e os infieis _no campo da adversidade ou do
+infortunio_». Ora como nesse anno, do mesmo modo que nos antecedentes e
+consequentes, houve muitos recontros entre os christãos e os
+mussulmanos, segue-se que não saberemos a que conflicto allude o auctor
+arabe; porque todos os campos de combate são de adversidade ou
+infortunio para um dos contendores, e talvez para ambos. Realmente este
+modo de defender a importancia da batalha de Ourique é galantissimo.
+
+O que, porém, é verdadeiramente academico e digno do pincel de Molière é
+o que pondera o auctor do folheto sobre o erro de Moura ácerca da
+etymologia de Ourique. «É bem clara--diz elle--_ainda para os que não
+sabem arabe_, a nenhuma analogia que se nota _com o ouvido_ entre
+_orique_ e _arique_». Agora, quer o meu amigo saber com que palavra
+arabe _orique_ se parece muito? É com _araka_. Isto não precisa de
+commentario. Nas contendas dos nossos rapazes ácerca da Stoltz e da
+Novello, quem devia dar a sentença definitiva era o illustre arabista.
+Proponham a questão á Academia.
+
+Mas a cousa mais sublime, talvez, de todo o folheto vem neste mesmo
+paragrapho. É uma novidade que escapou a todos os etymologistas e
+ethnographos. Na translação das palavras de umas linguas para as outras,
+ellas se transfiguram com a irregularidade que necessariamente resulta
+da ignorancia das multidões, que são quem ordinariamente faz essas
+adopções de termos peregrinos. As proprias transformações das linguas
+são assim, e assim foi que a latina se transformou nos modernos idiomas
+da Europa occidental. Nestas mudanças e adopções não ha letra que não
+possa alterar-se; e basta ter uns rudimentos de linguistica para não o
+ignorar. Agora ouça o meu amigo um mysterio da lingua arabe: «Moura--diz
+o opusculo--foi buscar a raiz de tal vocabulo no verbo _araka_, cuja
+primeira letra radical, que é um _alif, não soffre a conversão_ para a
+letra _o_ nas linguas europeas». Isto quer dizer que aos rudes
+portugueses do seculo XII, que escorchavam sem piedade quantas letras,
+quantas palavras celticas, phenicias, gregas, romanas, germanicas lhes
+caíam nas unhas, era prohibido tocar no _alif_, especie de
+_noli-me-tangere_ arabico. Certamente, meu amigo, no alcorão ha uma sura
+intitulada «_Dos escorchamentos etymologicos_» onde o propheta diz:
+«Todo o infiel nazareno que bulir na sancta letra _alif_ para della
+engenhar um dos seus maldictos _ós_, vai preso». Foram peccados meus que
+me impediram d'aprender arabe: teria com isso evitado deixar-me embair
+por aquelle herege do padre Moura, que pelo que vejo, era um pessimo
+sarraceno.
+
+Depois vem uma longa chicana (perdoe, meu amigo, o gallicismo, mas como
+isto ha de ser lido pelo digno academico arabista membro da classe de
+sciencias moraes e bellas-letras, elle entenderá assim melhor a phrase);
+vem uma longa chicana sobre as palavras _fossado_, _correria_,
+_entrada_, e não sei que mais, em que o auctor desenvolve uma erudição
+pasmosa em diccionario de Moraes. Chamei fossado á expedição de Affonso
+I em 1139, porque todas as etymologias do mundo não podem fazer com que
+uma cousa deixe de ser o que é. O fossado era uma expedição que se fazia
+em regra todos os annos no começo do verão ás terras inimigas:
+questionar sobre isto não sería mais do que mostrar-se profundamente
+ignorante das nossas cousas antigas. _Correria_ é um nome que cabe ao
+fossado tão bem como _expedição_; porque correria é uma especie do
+genero expedição, mais nada. Quem faz uma expedição, fossado, ou
+correria no territorio inimigo, entra nelle (emquanto o alcorão ou a
+Academia não mandarem o contrario) e por consequencia faz uma _entrada_.
+Não é uma miseria, além disso, affirmar-se n'um papel que tem a
+pretensão de ser cousa séria, que eu me contradigo, porque, chamando
+correria ao fossado de 1139, exprimo ao mesmo tempo a idéa de que os
+mussulmanos hespanhoes buscaram em si proprios recursos para atalhar o
+passo aos invasores na falta das tropas almoravides, visto que (diz-se
+ahi), sendo a correria um acto repentino, os mussulmanos não podiam
+precaver-se? Que resposta séria se póde dar a isto? Fique-se entendendo
+que quando um paiz é invadido rapidamente, os habitantes deixam-se matar
+como carneiros e não se unem para se defenderem, ou que os soldados que
+fazem correrias, não andam, mas voam, ou vão em aerostatos descer aonde
+e quando querem sem que ninguem os veja passar. Dizer que no fossado de
+Ourique não houve audacia, a ser como eu o narrei, embora as tropas
+almoravides, ou a melhoria dellas, faltassem, é cousa tão absurda,
+quanto é certo que essa expedição importava uma longa marcha de
+cincoenta leguas (que tantas irão de Coimbra ao campo de Ourique) quasi
+toda por paiz inimigo, porque, como bem observa a chronica dos godos,
+Ourique ficava _no coração das terras mussulmanas_. Qualquer cabo de
+esquadra sabe que difficuldades se offerecem á marcha de tropas, embora
+disciplinadas (como de certo não eram as de Affonso I) atravez de um
+paiz excitado contra essas tropas pelo fanatismo politico e religioso. O
+principe português deixava, além disso, na sua retaguarda, por um e por
+outro lado, logares importantes fortificados, e bem ou mal guarnecidos,
+taes como Santarem, Lisboa, Alcacer, Elvas, Evora, etc.; o que tornava a
+volta de Affonso I aos proprios estados duplicadamente arriscada. Emfim,
+meu amigo, eu deixo nesta parte aos homens intelligentes avaliar se o
+fossado de Ourique, com as poucas circumstancias que delle sabemos,
+embora não tivesse as dimensões que lhe attribuiram depois, foi ou não
+foi um acto de bastante ousadia.
+
+De passagem, meu amigo, deixe-me protestar contra um falso testimunho
+que me levanta o auctor do opusculo, quando, citando textualmente as
+minhas palavras, me attribue o uso do vocabulo _derrota_ por _destroço_
+ou _desbarato_ (dos sarracenos em Ourique). Não escrevi o meu livro para
+se inserir nas actas da Academia: escrevi-o para o publico português, e
+por isso na sua lingua, ao menos até onde eu a sabía.
+
+Vamos á questão principal. Para a tractar não me parece que fosse
+necessario accumular previamente tanta inexacção e tanto desproposito.
+Eu tinha affirmado que os diversos escriptores arabes que nos
+transmittiram a historia daquella epocha guardaram silencio ácerca da
+batalha de Ourique. O auctor do opusculo sarraceno firma a proposição
+_contraria_, isto é, que nesses diversos escriptores arabes se
+encontram, não só vestigios della, mas tambem a sua _descripção_, e as
+suas _consequencias terriveis_.
+
+Algum de nós, pois, engana o publico; algum de nós commette uma acção
+indigna de homens de letras affirmando uma cousa opposta á verdade. Eu
+consultei os historiadores arabes que escreveram a historia do dominio
+mussulmano na Peninsula, e que estão traduzidos. Era essa unicamente a
+minha obrigação, porque não sei arabe. O auctor do opusculo _devia_
+tê-los visto antes de escrever, e _podia_ ter lido outros, porque diz
+que sabe arabe. Se a minha narrativa fosse conforme com os primeiros
+comparados com os monumentos christãos, e o auctor achasse que esses
+não-traduzidos os desmentiam, devia provar que o seu testimunho era
+preferivel ao delles e ao dos monumentos christãos, sendo accordes uns
+com outros. Sem isso nada tinha feito. Ora eu estribei-me na narrativa
+de Abdel-halim, como a haviam vertido Moura e Conde, e esta narrativa
+concorda em geral com a chronica latina de Affonso VII, escripta ainda
+no seculo XII ou nos começos do XIII. Das tres fontes historicas resulta
+ou não resulta o que eu disse? Resulta ou não resulta, que antes de
+julho de 1139 Tachfin-Ibn-Aly tinha partido para Africa, levando comsigo
+as tropas que pôde, sem exceptuar os mosarabes e os captivos christãos?
+É verdade que o cerco de Aurelia ou Cazorla durou _de abril a setembro
+ou outubro_[69]? É verdade que os seus defensores pediram debalde
+soccorro a Tachfin, _que se achava então em Africa_? São, portanto, bem
+deduzidas as minhas inferencias de que é absurdo imaginar que havia
+trezentos ou quatrocentos mil mouros para saltarem por cima do exercito
+do imperador Affonso VII, e virem dar uma batalha campal a Affonso
+Henriques, e não os havia para descercarem uma praça daquella
+importancia? É para responder negativamente a estas perguntas de um modo
+tão categorico como eu as faço, que desafio o auctor do opusculo
+sarraceno.
+
+Ao que se colhe dos monumentos christãos e mussulmanos coevos ou quasi
+coevos[70] que textos exquisitos e reconditos vem, porém, oppôr o
+_digno_ academico? Vejamos:
+
+Um mouro chamado Hamed-el-Nabil, _que viveu no principio do seculo_
+XVII, vindo a Hespanha, escreveu um itinerario. Nelle diz, falando da
+epocha em que succedeu o caso d'Ourique, as palavras seguintes, que vou
+transcrever, porque gósto de apresentar o corpo de delicto:
+
+«E dizem alguns dos sabios precedentes _sobre_ o governo da Andaluzia
+(_sic_) que ella muito se engrandeceu: _e na verdade conquistou com boa
+posse_ (_sic_) muitos dos logares _os_ (_sic_) mais notaveis: e foi isto
+depois que l'Enrick _derrotou_ os mussulmanos; (_sic_) não persistiram
+estes depois disso no paiz senão quando obravam pacificamente; e _por
+isso_ (_sic_) ficaram os christãos neste paiz senhores de suas terras e
+de suas riquezas (_sic_), (_sic_), (_sic_).»
+
+O meu amigo ha de ficar espantado quando souber que nesta salsada, que
+até certo ponto simula lingua portuguesa, ha, _não só claros vestigios_
+da batalha de Ourique, mas tambem a _descripção della e das suas
+consequencias_. Pois saiba que ha. Saiba tambem que, um ou dous mezes
+antes de se imprimir o opusculo sarraceno, se dizia pelos cantos, que na
+Academia se lera uma cousa mourisca, que excitara o enthusiasmo d'alguns
+daquelles padres-conscriptos, porque ahi se me provava com textos arabes
+que eu não soubera o que tinha dicto quando falei com tanta irreverencia
+e falta de patriotismo nesse facto d'Ourique. Rogia-se de um papel
+achado n'uma tenda de Marrocos, que desmanchava todas as minhas opiniões
+aereas. No fim de contas era o sr. Hamed, que no principio do seculo
+XVII tinha escripto em mouro o que o meu amigo ahi vê em meio-mouro.
+Realmente a cousa é séria, sobretudo exornada com as erudições e
+commentarios do traductor, a quem Deus dê alguma inclinação mais
+proveitosa do que esta de traduzir para lingua franca os itinerarios dos
+viajantes marroquinos.
+
+Pretende-se nesses commentarios que o mouro Hamed, na phrase relativa a
+l'Enrik (que é possivel seja Affonso Henriques) se refira aos mesmos
+escriptores a quem, sob o nome de sabios precedentes, allude no
+principio do periodo, e que por sabios precedentes se devem entender
+antigos escriptores sarracenos, porque os arabes servem-se da palavra
+_ulmá-i_ para significarem os _seus_ historiadores. Vamos por partes. Se
+o sr. Hamed escreveu _sabios precedentes_, é porque já tinha dicto quem
+elles eram: nesse caso, em vez de uma dissertação ácerca da palavra
+_ulmá-i_, não seria mais simples e mais a proposito dizer-nos o
+traductor os nomes delles? Teriamos a Bibliotheca de Haji-Khalfah
+traduzida por Fluegel; teriamos a Bibliotheca de Casiri; teriamos as
+notas de sr. Gayangos á versão de Al-Makkari, notas preciosas como fonte
+de erudição arabica; teriamos, emfim, estes ou outros recursos para
+sabermos que importancia deveriamos dar aos _sabios precedentes_ como
+auctoridades para os successos do seculo XII, que era o que importava.
+Hamed ou trinta Hameds, que vivessem em tempos modernos ou houvessem
+vindo a Hespanha e repetissem o que por cá tivessem ouvido ácerca do
+recontro d'Ourique ou de outra qualquer cousa succedida 400 ou 500 annos
+antes, provariam tanto a favor della como a _precedente_ traducção prova
+que o auctor do opusculo sabe grammatica e conhece a indole da nossa
+lingua. Suppondo, porém, que Hamed se refira no principio do periodo a
+historiadores arabes, e que esses historiadores sejam assaz antigos, o
+que é certo é que a phrase relativa a l'Enrik não é dos taes _sabios
+precedentes_, mas do proprio Hamed-el-Nabil. Creio que o meu amigo sabe
+bastante da lingua franca para ver que desde as palavras «_e na
+verdade_» não são os _sabios precedentes_, mas sim o proprio Hamed, em
+corpo e alma, quem fala; quem parece querer confirmar com o seu
+testimunho o dicto delles, se é possivel perceber aquelle _imbroglio_
+que o traductor alli arranjou. Mas a curiosidade maior é que o proprio
+texto está provando que Hamed, longe de alludir ao facto d'Ourique ou a
+facto algum especial, se refere em geral ás victorias e conquistas de
+Affonso I, (se é que se refere a isto) as quaes ninguem contesta, e que
+eu particularisei com a miudeza e exacção, a que os _sabios
+precedentes_, os _ulmá-i_ da nossa terra, não tinham chegado. Se Hamed
+se referisse a Ourique falando do desbarato dos mussulmanos por l'Enrik,
+tudo o mais que vem na passagem seria um rol de mentiras; porque as
+consequencias materiaes desse recontro foram nenhumas. Como já disse,
+Affonso Henriques voltou aos seus estados sem conquistar um palmo de
+terra, e foi annos depois que submetteu a Estremadura e o Alemtéjo,
+ficando no paiz os mussulmanos que curvaram a cabeça ao jugo christão.
+
+Aqui tem o bom redactor da _Semana_ o que é e o que vale o papel da
+tenda de Marrocos, que devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos
+monumentos coevos, e em argumentos de congruencia irresistiveis. É o
+dicto vago e obscuro de um viajante moderno, dicto que se torce para se
+fazer com que o pobre mouro diga aquillo em que nem sequer pensou. Que
+terra esta nossa, meu amigo, em que o auctor de um livro serio é ás
+vezes obrigado a acceitar o triste encargo de refutar taes miserias!
+
+O famoso texto do viajante marroquino é reforçado com um contraforte
+tirado do Abdel-halim do uso particular do auctor do opusculo; digo do
+uso particular, porque nem em Conde, nem em Moura se encontra semelhante
+passagem, nem no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos ver o
+texto _inedito_ de Assaleh ou de Ibn-Abi-Zara, que o meu critico trouxe
+á luz do dia:
+
+«E neste anno 533 (8 de septembro de 1138 a 27 d'agosto de 1139)
+desbaratou o general Taxefin as multidões dos christãos _nos campos de
+Attibbat_; e fez perecer delles um numero extraordinario; e levou de
+seus prisioneiros _seis mil captivos: em consequencia do que_ partiu
+para Marrocos, e á sua chegada _lhe saiu ao encontro seu pae_, o
+imperador dos mussulmanos, _que ficou em profundo desgosto e cheio de
+grande susto_.»
+
+No capitulo 33 do Karttás traduzido pelo padre Moura não vem esta
+passagem. Entretanto não devo crer que o auctor do opusculo a
+inventásse. Cumpre suppôr que elle se serviu de algum exemplar mutilado,
+viciado, ou extremamente incorrecto da obra de Abdel-halim. Na versão de
+Moura é no capitulo 40 que se contém as ultimas acções do Tachfin na
+Hespanha, antes de partir para a Africa. Eis o que ella nos diz:
+
+«No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7 de septembro de 1138) passou o
+principe Taxefin de Hespanha para a Mauritania, depois do ter combatido
+e tomado de assalto _a cidade de Segovia_, levando comsigo _seis mil
+captivos_; e tendo chegado a Marrocos _veio seu pae encontrá-lo_ com
+grande pompa e _se alegrou com elle_, etc.[71]»
+
+As duas passagens são, se não identicas, por certo parallelas. Tracta-se
+em ambas da partida de Tachfin para a Africa, depois de obtido um
+triumpho em que captivou seis mil homens. A differença está nas
+circumstancias, e _na data_. Qual dessas se deve preferir? Vejamos.
+
+Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente: mas põe-na como
+immediata á reducção de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro de
+1136 a 18 de septembro de 1137) e assim concorda com Assaleh quanto ao
+anno da partida, visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins de 531, a
+saída do principe almoradive para a Africa devia verificar-se já em 532,
+isto é, nos fins de 1137 ou nos principios de 1138.
+
+Com esta data concorda o auctor da chronica de Affonso VII, mencionando
+a partida de Tachfin para além-mar entre os successos de 1138, e
+descrevendo a mensagem que lhe enviaram á Africa os defensores de
+Aurelia durante o cerco posto a esse castello por Affonso VII _em abril
+de_ 1139. O chronista christão vai de accordo na chronologia com os
+historiadores arabes sem os conhecer, e limitando-se a narrar os factos
+que _ouvira ás pessoas que os tinham presenciado_[72].
+
+Não quero suppôr, torno a repetir, que o auctor do opusculo forjasse a
+passagem que cita, ou que alterasse a data da hegira para provar que
+Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139. N'uma questão em que se tem
+procurado associar á idéa de que caí n'um erro historico a de que tive
+em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento fora duplicadamente
+torpe. Todavia o _digno_ academico ainda assim tem d'escolher entre a
+ignorancia e a má fé. Se conhecia a chronica de Affonso VII, a narrativa
+de Conde e a versão de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas:
+primeira, provar que essas auctoridades em que eu me estribava eram
+insufficientes; segunda, mostrar que o seu manuscripto tinha uma
+importancia, uma auctoridade tal, que as annullava. Onde o fez? Como o
+fez? Acaso só porque se mandaram escrever n'uma pedra lithographica uns
+poucos de caracteres arabicos ou o que quer que seja, provou-se que as
+palavras que resultam da sua união são indubitaveis como o evangelho, ou
+sequer que é preferivel a leitura do codice de que se tiraram á leitura
+de codices já conhecidos e traduzidos por outros arabistas, que pelo
+menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo?
+
+Á vista destas simples e claras reflexões, o texto de Abdel-halim citado
+pelo digno academico vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil.
+Eu, porém, acceito-o por um momento. Vamos a discuti-lo em si.
+
+Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no campo da total destruição
+(Attibbat) as multidões dos christãos; que aprisionou seis mil homens, e
+que partiu para Marrocos, com o que seu pae ficou cheio de desgosto e de
+susto. Onde se fala aqui em Ourique? Para entender _Ourique_ por
+_Attibbat_ o auctor faz o seguinte raciocinio:--«a batalha de Ourique
+foi de _total destruição_ para os mussulmanos, logo _Attibbat_ é
+Ourique:»--e querendo provar que o recontro de Ourique foi uma grande
+batalha, faz outro raciocinio do mesmo jaez:--«Attibbat quer dizer
+Ourique, logo em Ourique houve uma _total destruição_.»--Todos os
+argumentos, todas as erudições do folheto nesta parte, embora por outras
+phrases, reduzem-se a isso; reduzem-se a duas petições de principio.
+Depois, não é admiravel o desgosto e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu
+filho voltar á Africa depois de uma victoria em que desbarata os
+christãos, mata muitos, e leva seis mil captivos? Felizmente para Aly,
+Tachfin não levou, em vez de seis, doze mil captivos, e não deixou o
+resto passado inteiramente á espada. Se tal acontece, o pobre amir
+el-moslemin caía fulminado por uma apoplexia. Até o auctor do opusculo
+achou a cousa absurda. Mas como saíu da difficuldade? Dizendo-nos que o
+texto arabe tanto póde significar «_Tachfin desbaratou os christãos_»
+como «_os christãos desbarataram Tachfin_.» Estava eu tão desgostoso por
+não saber arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias, quando
+veio esta declaração consolar-me. A historia é impossivel na lingua
+arabe; porque a mesma phrase significa branco e significa preto; exprime
+os dous factos mais oppostos. Os traductores de historias sarracenas tem
+andado a debicar com a Europa: onde dizem que tal batalha foi ganhada
+por A contra B, podiam ter dicto com a mesma veracidade que fora ganhada
+por B contra A. Isto, meu amigo, não se discute: está discutido por si.
+
+Depois de vermos sacrificada a logica e até o simples senso commum á
+necessidade de achar um texto arabe que prove a importancia da batalha
+de Ourique, o que é mais divertido é o completo esquecimento em que o
+auctor do opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim _particular_,
+deixa os monumentos christãos coevos que referem o successo. A chronica
+lamecense, a conimbricense, a dos godos, todas dizem que o general
+sarraceno era Ismar (_præside rege Smare_). Se Ismar não significa
+Tachfin como Attibbat significa Ourique, segue-se que ou mentem as
+chronicas coevas, ou mente o Abdel-halim _particular_, que diz ter sido
+o general dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a passagem citada não se
+refere ao successo de Ourique. Daqui parece-me que não ha fugir. A
+ultima explicação é sem duvida a verdadeira. Essa passagem é
+evidentemente a que Moura traduziu, e Conde substanciou; passagem que se
+combina chronologicamente com a narrativa da chronica de Affonso VII, e
+que no opusculo apparece alterada nas circumstancias e na data. Quem a
+alterou, e para que fim? Isso pertence a Deus, que vê os corações, e nos
+ha de julgar a todos no dia de juizo.
+
+Depois, como accommodar os factos, que o auctor do opusculo acceita do
+seu Abdel-halim particular em demonstração da grandeza da batalha, com o
+que nos diz a chronica dos godos e com o resultado daquella jornada?
+Pois os mussulmanos são postos em fuga ao primeiro recontro, por um
+troço de cavalleiros escolhidos (_electi milites_) ficando
+entrincheirados os restantes dos poucos soldados (_paucis suorum_), de
+Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva seis mil prisioneiros? Que
+digo eu, seis mil! Segundo o commentario do digno academico eram muitos
+mais. Aquelles seis mil foram escolhidos um a um, no meio do grande
+vagar que para isso tinham os sarracenos fugitivos, entre milhares de
+christãos de rebotalho, aos quaes iam cortando os pescoços. As causas
+determinantes da escolha (que eu deixarei nas paginas do opusculo,
+porque não as consentem as paginas da _Semana_) deviam tornar os bons
+dos sarracenos demasiado pechosos na selecção, e pelas minhas contas,
+para apurarem seis mil como lhes eram precisos, não podiam deixar de
+refugar os seus cento e noventa quatro mil, esmando pelo baixo. A mim
+parece-me, salvo o respeito devido a um representante da parte sarracena
+da Academia, que era melhor ter traduzido do Abdel-halim particular,
+(lithographando tambem no fim do opusculo o original mourisco e
+subministrando assim mais abundante alimento á pasmaceira dos parvos)
+uma carta de Tachfin dirigida ao principe português, escripta ao começar
+a retirada, e concebida pouco mais ou menos nos seguintes termos: «Meu
+Affonso-Ibn-Errik. Estou capaz de renegar Mafoma com a grande róta que
+me déste. Vou para Africa amuado, metter-me em casa de meu pae, que se
+chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os _ulmá-i_ academicos da tua terra queiram
+á fina força chamar-lhe Aly-Ben-Taxefin. A guerra é guerra, e uma
+batalha perdida ou ganhada não é motivo para nos desestimarmos. Eu
+preciso de levar comigo em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes
+christãos airosos e bempostos. Se os podéres dispensar, far-me-has nisso
+particular favor e uma acção de cortezia. Só Deus é Deus e Mohammed o
+seu propheta. Aos 26 de zilkhada da Hegira 533.»--Com isto ficava tudo
+explicado. Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade do
+_Pharaó obdurado_, embora fingida; porque, tendo Christo acabado de lhe
+asseverar que havia de vencer sempre os sarracenos, não só podia fazer
+presente a Tachfin de todos os soldados imberbes do exercito, mas tambem
+de quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse alli á mão vasculhando
+o acampamento, os quaes, se não prestassem para mais nada, prestariam
+para bichos da cozinha do amir-el-moslémin.
+
+Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia, cujos membros fossem
+capazes de escrever opusculos destes, dissolvia-se para se reconstruir
+com outros elementos, aproveitando só, e com grandes cautellas, o pouco
+que ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia, especie de congregação
+bernarda que come e dorme, acodem-lhe ás vezes á pelle estes tumores
+litterarios, estas secreções eruditas, que, longe de a matarem, lhe
+fortificam a compleição. Deus lhe dê uma longa vida.
+
+
+
+
+DO ESTADO
+
+DAS
+
+CLASSES SERVAS NA PENINSULA
+
+DESDE O VIII ATÉ O XII SECULO
+
+
+1858
+
+
+
+
+I
+
+
+Por mais que a tradição de antigas malquerenças e o ciume da nossa
+autonomia nos affaste dos outros povos da Hespanha, dos quaes os eventos
+politicos fizeram, mais ou menos forçadamente, uma só nação, é certo
+que, apesar de todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes, nas
+opiniões, nos costumes, nas tendencias moraes de ambas as nações se está
+revelando a cada passo uma origem commum. Postoque cada uma dellas tenha
+defeitos especiaes, como os ha de provincia para provincia, dão-se
+alguns tão nossos e tão hespanhoes, que de per si, sem outros
+adminiculos, provam de sobejo essa communidade de origem.
+
+Esta reflexão occorreu-me naturalmente ao começar um escripto, em que
+tenho de dizer poucas palavras ácêrca do homem a quem elle é dirigido.
+Ha na Academia da Historia, de Madrid, um modesto empregado, envolvido
+na obscuridade da sua situação, sem cargos publicos, sem condecorações,
+sem pingues sinecuras, e de que talvez se podesse dizer--sem pão--se a
+Academia não o houvera encarregado das suas collecções litterarias. Este
+empregado modesto, este homem socialmente obscuro, é todavia um dos
+maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais profundamente e com mais
+san consciencia (dote raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica e
+tão pouco explorada mina das antigas instituições e costumes da
+Peninsula, isto é, do que na historia della ha mais serio, mais
+importante e mais difficil d'estudar. Falo de Thomás Muñoz y Romero, do
+auctor da _Colleccion de Fueros Municipales_, obra notavel, que, sendo
+de um homem só, honraria uma corporação litteraria, que a houvesse
+emprehendido e executado. E todavia, esse livro importante foi
+interrompido, segundo me affirmam, por falta de protecção; e Muñoz y
+Romero ainda nada mais é hoje do que era ha dez annos, quando publicou
+aquelle seu primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca da
+Academia da Historia!
+
+É o que provavelmente succederia ao livro e ao homem nesta terra, neste
+fragmento da Peninsula chamado Portugal, irmão gemeo desse maior
+fragmento, que chamam especialmente a Hespanha.
+
+Na _Revista Española de Ambos-Mundos_, nos numeros correspondentes a
+novembro de 1854, appareceram successivamente dous artigos, assignados
+por Muñoz y Romero, sobre o estado das pessoas nos reinos de Asturias e
+Leão nos primeiros seculos posteriores á invasão dos Arabes. Escriptos
+como aquelles, manifestações tão brilhantes de verdadeira sciencia, não
+são frequentes em publicações periodicas, ainda além dos Pirenéus. Li-os
+com avidez e interesse sempre crescentes. Ahi encontrei que aprender, e
+sobretudo pude emfim assentar as minhas idéas ácêrca da origem, ou antes
+da denominação dos malados e das maladias, ponto em que a propria
+opinião que adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal não me
+satisfazia completamente. Vi, porém, que discordavamos n'uma questão
+capital d'historia; no modo de apreciar o estado das classes servis nas
+Asturias e Leão durante os seculos immediatos á reacção christan, e tive
+o desgosto de não poder, apesar de todas as considerações do sr. Muñoz,
+abandonar a propria opinião para adoptar a sua. Ou seja por um modo
+errado de interpretar os antigos monumentos, a que o meu espirito se
+tenha affeito, ou porque a razão esteja do meu lado, é certo que nenhum
+dos muitos documentos que o sr. Muñoz oppõe ás minhas opiniões me
+pareceu contrariá-las: alguns, pareceu-me que até serviam para as
+corroborar. Desde esse momento entendi que não sería absolutamente
+inutil ao progresso dos estudos historicos da Peninsula expôr as duvidas
+e reflexões que me occorriam sobre a materia, deixando depois aos homens
+competentes comparar os dous systemas e escolher entre elles.
+
+Quando pensava em realisar este designio, sobrevieram acontecimentos que
+durante quasi dous annos me forçaram a abster-me dos trabalhos
+historicos. Affastado por tão largo tempo dos meus habituaes estudos,
+se, á custa de serios desgostos, aprendi muito a respeito dos homens e
+das cousas do meu tempo e do meu paiz, esqueci tambem muito do que sabía
+ou cria saber ácêrca dos homens e das cousas do passado. Aberto para mim
+de novo o caminho dos trabalhos historicos pela força da opinião em
+lucta com a immoralidade do poder, renovei esses abandonados estudos,
+mas renovei-os como um dever de consciencia, como um serviço que me
+exigem, como o cumprimento de um contracto tacito com o publico. O amor,
+diria antes a religião ardente, com que cultivava a sciencia da
+historia, perdi-o no campo de batalha. Escrever é hoje para mim o mesmo
+que ser vereador, jurado, ou membro de um conselho de districto: é um
+encargo e mais nada. No horisonte das minhas ambições, e Deus sabe se
+falo sincero, só vejo o dia em que possa depôr a penna, e sumir-me em
+completa obscuridade. Será esse o melhor da minha vida. Na situação
+d'animo em que por tanto tempo me achei, a questão dos servos na
+Peninsula durante os seculos medios esqueceu-me completamente. Veio
+recordar-m'a, porêm, uma circumstancia casual. Tendo de examinar um
+volume da _Revue Historique du Droit Français et Étranger_, passou-me
+pelos olhos um artigo de M. de Rozière (julho e agosto de 1855) sobre o
+escripto do sr. Muñoz, escripto que o illustre professor, a quem devo
+mais de uma prova de benevolencia, resume com a sua habitual lucidez, e
+cuja doutrina acceita como a mais verosimil. A doutrina, porêm,
+expressamente combatida pelo auctor do opusculo sobre o estado das
+pessoas nos reinos de Asturias e Leão, nos primeiros seculos depois da
+invasão arabe, é unicamente a minha. É de mim que elle declara discordar
+completamente sobre a natureza da servidão na monarchia néo-gothica
+desde o VIII até o XII seculo. A verosimilhança da sua opinião torna
+portanto menos provavel para o illustre professor da _École des Chartes_
+a doutrina que estabeleci. Se a questão pendesse tão sómente entre mim e
+o sr. Muñoz, demorar, ou, até, pospôr completamente a defesa da minha
+theoria ácêrca da servidão n'aquelle periodo não teria grande
+inconveniente. Os documentos invocados pelo sr. Muñoz e as suas
+ponderações, e bem assim os documentos que eu citei e as conclusões que
+delles deduzi estão ao alcance dos homens de letras da Peninsula que se
+dedicam aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal e de
+Hespanha encerram centenares de outros monumentos ainda não estudados,
+que poderiam lançar nova luz sobre o assumpto. Nada mais facil, até, do
+que conduzirem-nos novas investigações, a mim ou ao sr. Muñoz, a
+abandonar o proprio systema, porque ambos buscamos sinceramente a
+verdade. Mas desde que a materia do debate, transpondo os Pirenéus, foi
+exposta a uma luz que não creio verdadeira, por um homem como Mr. de
+Rozière, e a um publico privado dos meios de apreciar por si proprio os
+documentos e raciocinios em que se fundam as duas opiniões oppostas,
+entendo que é do meu dever publicar as observações que se me offerecem
+relendo os artigos do sr. Muñoz, observações que, feitas ha dous annos,
+quando estas materias eram quasi a unica occupação do meu espirito,
+seriam sem duvida mais efficazes para a defesa de um systema que ainda
+hoje me parece ser o que melhor se estriba nos antigos documentos, e que
+ao mesmo tempo melhor os explica.
+
+Antes de tudo cumpre determinar bem a materia controversa e
+circumscrevê-la. Tanto eu como o sr. Muñoz falámos da servidão no
+periodo em que por successivas transformações o homem de trabalho, o
+homem escravo, o homem _cousa_ dos romanos chegou a ser a pessoa civil,
+a pessoa livre, o cidadão mais ou menos humilde dos tempos modernos.
+Deixando de parte maiores ou menores differenças de opinião entre nós
+quanto aos tempos da monarchia gothica, ou que se possam deduzir das
+nossas palavras quanto aos tres ultimos seculos da idade média,
+limitar-me-hei a expôr o que contradictoriamente entendemos ácerca da
+situação das classes servis do VIII até o XII seculo. Escrevendo um
+artigo e não um livro, procurarei affastar todas as questões secundarias
+que se ligam a esse grande facto da transformação das classes
+trabalhadoras, e abstrahindo das causas e consequencias da situação em
+que se acharam os servos depois da invasão arabe e da reacção asturiana
+(successos coevos e quasi simultaneos) em tudo o que não fôr
+indispensavel para a clareza da materia, reduzirei o discurso ao que a
+razão persuade e os monumentos confirmam ácerca do facto geral da
+transformação gradativa da população serva naquelle periodo de quatro
+para cinco seculos.
+
+
+
+
+II
+
+
+O estudo reflectido dos historiadores arabes e dos monumentos christãos
+da épocha da conquista e do dominio sarraceno tem feito sentir que essa
+conquista e esse dominio extranho foram, na historia das invasões e da
+sujeição de raça a raça, de povo a povo, entre os factos de semelhante
+ordem, um dos que custaram á humanidade menos tyrannias, menos lagrymas
+e menos sangue. Tem-se dado o devido desconto ás exaggerações das
+chronicas e á linguagem de certos escriptores christãos contemporaneos,
+aonde auctores mais modernos foram buscar os lineamentos dos seus
+quadros de terror, quando ahi mesmo se encontram as provas de que os
+factos não correspondem ás expressões genericas com que é descripto como
+um dos mais crueis flagellos o predominio dos sarracenos na Peninsula.
+Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio dos godos, a sociedade
+wisigothica ficou. As provincias ou as cidades que acceitaram sem
+resistencia o jugo dos novos senhores não tiveram que padecer senão as
+consequencias dos grandes movimentos militares sobre qualquer
+territorio, as violencias accidentaes e individuaes durante a lucta. Em
+geral, a ordem das relações civis, e uma parte das publicas continuam a
+subsistir do mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio das altas
+funcções da administração do Estado é que mudam. Nas provincias
+meridionaes da Hespanha fica, até, por algum tempo um simulachro do
+imperio gothico, o reino de Theodemiro, tributario mas livre, que se
+incorpora obscuramente depois nos dominios do khalifa. No meu livro
+busquei desenhar com fidelidade essa nova situação; dar aos successos o
+seu verdadeiro valor, estribando-me nos monumentos coevos, e fazer
+sobresair a população mosarabe (godo-romana), tão esquecida em geral
+pelos historiadores.
+
+Entre os mosarabes a situação dos servos devia ser a mesma que entre os
+godos antes da conquista. Não é provavel que esta formula da sociedade
+civil se alterasse quando todas as outras se mantinham. Nessa parte a
+conquista arabe não trouxe o que trazem sempre os grandes abalos
+politicos, um progresso de civilisação.
+
+Succedeu o mesmo com a reacção asturiana? Podia succeder? Pús este
+problema a mim mesmo, e resolvi-o negativamente; porque a razão e os
+documentos me forçavam a essa solução negativa.
+
+O levantamento de Pelaio não chegou a ser uma revolução: foi uma
+resistencia: resistencia feliz nos primeiros passos e que não tardou a
+converter-se n'um perigo serio para o dominio mussulmano. Dentro de
+poucos annos a reacção obscura de um punhado de soldados godos fundava
+uma monarchia christan e independente, que se contrapunha ao islamismo
+triumphante, que estabelecia fronteiras, embora variaveis, e que tomava
+ou fundava logares fortes, onde os novos senhores da Hespanha
+encontravam dura repulsa ás suas diligencias para suffocar esta perigosa
+entidade politica. Da desproporção das forças entre as duas potencias
+mussulmana e christan, se o nome de potencia póde dar-se aos estados de
+Pelaio e dos seus immediatos successores, resultava necessariamente um
+facto. Todo o homem válido devia ser chamado ás armas nas Asturias, mas
+de um modo em que interviesse a espontaneidade individual. Não alcanço
+sequer como podesse ser de outro modo. A servidão dos godos; os senhores
+levando os servos armados ao combate, sem crença, sem ardor, sem
+interesses moraes ou materiaes que defender, como nos tempos gothicos,
+sería um facto que não sei como poderia dar em resultado a fundação e
+engrandecimento da monarchia de Oviedo.
+
+Na verdade, com o tempo, as instituições wisigothicas foram-se
+restaurando á medida que se engrandecia o novo reino, que uma parte do
+territorio deixava de ser perenne campo de batalha, e que a segurança,
+maior ou menor, favorecia o maior ou menor desenvolvimento da
+agricultura e de uma especie de industria. Uma parte da população
+mosarabe, ou pelas migrações tanto forçadas como espontaneas, ou pela
+aggregação successiva de territorios habitados por ella, incorporava-se
+gradualmente na sociedade néo-gothica, e, trazendo comsigo a
+jurisprudencia antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo
+sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma influencia, digamos assim,
+reaccionaria. Mas o que não podia era destruir a força das
+circumstancias; o que não podia, n'uma sociedade em cuja origem, em cujo
+amago estava a resistencia, a espontaneidade, a liberdade, era
+restabelecer a servidão pessoal antiga em toda a sua plenitude.
+
+Supponhâmos um nobre, e até um simples _possessor_, acolhendo-se ás
+Asturias, a Oviedo, nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos
+successores. Como arrastará elle comsigo os servos que o rodeiam?
+Invocará a força publica, a auctoridade mussulmana para os constranger a
+acompanharem-no? Sería absurda a hypothese. Esse nobre, ou esse
+_possessor_ ha-de descer á persuasão; ha-de falar de manumissão, ha-de
+approximar de si o homem envilecido, ha-de recorrer aos afagos, ás
+promessas. Ficar onde se acha é para o servo a liberdade, quando o
+senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso crer que nelle estão
+inteiramente mortos todos os instinctos humanos?
+
+Supponhâmos a conquista; a accessão de territorio. O mosarabe senhor de
+servos, que se incorpora por esse facto na sociedade ovetense, acha
+actuando energicamente nesta o sentimento da liberdade e da
+espontaneidade individuaes, as classes servis armadas, os antigos laços
+hierarchicos quebrados em grande parte. Esse facto não influirá em nada
+nas suas relações com os proprios servos? Depois, além, pouco além,
+estão os castellos sarracenos, a administração mussulmana. Se elle não
+affrouxar os rigores da servidão; se não ligar a si o homem de trabalho
+por algum interesse, por algum motivo racional, será difficil que esse
+homem o abandone, e que conquiste pela fuga, e talvez pela mudança de
+fé, a sua emancipação?
+
+Se os documentos nos não provassem que a servidão de gleba fora o passo
+immediato dado pelas classes infimas para a liberdade, a razão, longe de
+nos persuadir que a servidão se mantivera em Oviedo e Leão como nos
+tempos gothicos, far-nos-hia antes acreditar que ella fora substituida
+pelo colonato espontaneo. O colonato, eis o grande meio de ligar o homem
+de trabalho á terra, por este instincto, por este amor quasi connubial,
+que une a mãe commum ao individuo que a faz fructificar. Da servidão
+gothica, porém, para a adscripção havia um passo gigante, e as classes
+servis eram assás rudes para não perceberem toda a differença do
+colonato á adscripção, porque essas differenças são pela maior parte de
+ordem moral. Na practica, materialmente, sobretudo em tempos de bruteza
+e violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante, as distincções
+entre a posse e o uso da terra pelo colonato ou pela adscripção não
+podiam ser demasiado sensiveis. O sentimento, a aspiração do individuo
+que cultivou o solo, que construiu a choupana, que plantou a arvore é
+principalmente o não separar-se do campo, da choupana, da arvore. A este
+sentimento correspondem ambas as formulas de consorcio entre o homem e a
+terra, mais ou menos imperfeitamente, não tanto em virtude das condições
+theoricas de cada uma das duas formulas, como do estado mais ou menos
+civilisado da épocha em que se applicam. Acaso a historia não nos
+subministra provas de oppressões exercidas sobre colonos espontaneos, e
+consagradas até por contractos, tão barbaras como as que padeciam os
+adstrictos á gleba, quando já a adscripção do homem tinha cedido o campo
+á servidão exclusiva da terra?
+
+Assim comprehende-se como a transformação do servo em adscripto podia
+resultar da situação em que se achou a monarchia ovetense-leonesa no
+seculo VIII, em vez de resultar della o colonato livre, que á primeira
+vista a razão nos pinta como mais provavel, e que de feito o era, se
+abstrahirmos das circumstancias sociaes para só attendermos ás
+politicas.
+
+Mr. de Rozière, expondo o debate entre mim e o sr. Muñoz, diz: «Esta
+transformação (a da servidão para a adscripção) tinha-se realisado de
+todo quando os christãos se refugiaram nas Asturias sob o mando de
+Pelaio? Não o crê o sr. Muñoz, e combate, neste ponto, a opinião dos
+historiadores de maior credito. Os exemplos, em que esteia o seu pensar,
+dão a este um alto gráu de verosimilhança. Nelles se vêem escravos
+destinados ao serviço domestico; uns são cozinheiros, padeiros,
+sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se no commercio e servem nas
+lojas de venda. Nada ha fixo nas suas funcções, que dependem do capricho
+do dono. A sorte dos escravos agricolas não é mais segura: uns
+trocam-nos por cavalgaduras; outros entregam-nos aos mussulmanos em
+resgate de captivos: todos podem ser separados da propria familia e do
+campo que cultivaram».
+
+N'esta exposição ha uma inexacção chronologica: a doutrina que eu
+estabeleci não é que a adscripção se tinha já substituido á servidão
+quando occorreu o alevantamento de Pelaio: é que este alevantamento e a
+fundação do reino de Oviedo trouxeram de necessidade essa transformação.
+Sejam quaes forem a differença ou a semelhança entre o meu modo de
+pensar e o sentir do sr. Muñoz sobre a servidão gothica, não é ahi que
+está a profunda divergencia entre nós. A divergencia completa refere-se
+aos tempos posteriores á invasão dos arabes. É, até, o que se deduz do
+titulo do opusculo do sr. Muñoz: é a essa épocha que verdadeiramente se
+refere o trabalho publicado na _Revista de Ambos-Mundos_. Eis as suas
+palavras: «Um escriptor... do vizinho reino de Portugal estabelece a
+doutrina de que a servidão se distinguia, _na épocha de que tractamos_,
+em estar vinculada ao solo, não admittindo outra classe de servos senão
+a dos adscriptos á gleba. A seu vêr não existia nenhuma outra servidão
+pessoal senão a dos arabes captivos na guerra, o que cremos não ser
+conforme com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte, isto é, que o
+serviço domestico dos senhores e nobres parece ter sido desempenhado,
+sob o dominio leonês, por membros das familias adscriptas, e que este
+serviço se converteu n'um acto espontaneo no seculo XIII. Se os homens e
+familias podiam contra sua vontade ser separados da gleba, onde se
+achavam estabelecidos, para o serviço domestico, não podiam chamar-se
+adscriptos, porque este nome traz comsigo a idéa de inamovibilidade do
+colono do torrão que cultiva. Além d'isso, a sua opinião não concorda
+com os monumentos da nossa historia.»
+
+N'outra parte do opusculo do sr. Muñoz leem-se as seguintes passagens,
+em que elle estabelece positivamente a sua theoria relativa á servidão
+dos tempos neo-gothicos. «A condição dos servos era indubitavelmente a
+de cousas. Podiam ser vendidos ou dados como um animal domestico, como
+uma alfaia... Esta opinião, que sustentámos n'uma obra publicada ha
+annos, foi impugnada pelo sr. Herculano n'uma extensa nota sobre o
+caracter da servidão na monarchia néo-gothica... Na monarchia
+néo-gothica continuaram os servos a ser o mesmo que na dos godos... E se
+em Asturias e em Leão se encontram vestigios de servidão diversa da dos
+adscriptos, poderão julgá-lo os que examinarem os documentos que já
+publicámos e os que damos agora á luz.»
+
+Effectivamente aos documentos impressos na _Colleccion de Fueros
+Municipales_, o sr. Muñoz ajuncta muitos outros tendentes, segundo crê,
+a corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar na apreciação delles,
+me seja permittido fazer breves reflexões.
+
+O sr. Muñoz, limitando o debate aos textos dos documentos pospôs os
+factos sociaes e politicos de que deduzi, digâmos assim _à priorì_, a
+necessidade de uma profunda alteração das classes servis nas origens da
+sociedade néo-gothica. Os factos podem não ser como eu os expús, ou as
+consequencias que delles tirei ser inexactas, ou finalmente essas
+consequencias não ter tido força bastante para mudar a situação
+d'aquellas classes: podem peccar de muitos modos as largas observações
+que fiz a este proposito no terceiro volume da Historia de Portugal, e
+que tentei resumir em poucos periodos deste modesto trabalho. Mas seria
+licito deixar ou esquecidas ou inconcussas essas ponderações? O methodo
+que segui foi estudar os acontecimentos, examinar qual devia ser a sua
+influencia na condição dos servos, e verificar se os documentos
+confirmavam _à posteriori_ as illações deduzidas dos mesmos
+acontecimentos. Bem sei que, prevenido por essas illações, era possivel,
+era até facil, se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos; não
+poderia, porém, o sr. Muñoz, interpretando-os sem attender aos factos
+geraes, ás consequencias naturaes dos successos historicos, ás leis
+moraes que regem as phases das sociedades, dar-lhes uma significação
+diversa da verdadeira? Foi, se não me engano, o que de feito lhe
+succedeu.
+
+É essa justamente uma das difficuldades capitaes dos trabalhos
+historicos relativos á idade media. O historiador tem de attender
+constantemente á acção e á reacção mutuas dos factos politicos e dos
+factos sociaes uns sobre os outros para d'ahi deduzir factos
+desconhecidos; tem de substituir por illações fundadas nas leis que
+actuam nas sociedades humanas, independentes da vontade dellas, o
+silencio tantas vezes inopportuno dos monumentos. Quando estes existem e
+são genuinos, claros e precisos, sem duvida constituem o guia mais
+seguro para determinar os factos, e se as illações que tirámos os
+contradizem, é necessario confessar que os principios eram inapplicaveis
+á hypothese, ou que se applicaram mal. Mas, abstrahindo da questão de
+genuinidade, são a clareza e a precisão qualidades vulgares nos
+documentos dessas épochas tenebrosas? O sr. Muñoz sabe tão bem como eu
+quão raros são os que achamos com taes condições; quantos annos, quantas
+vigilias é necessario applicar ao estudo dessas fontes historicas para
+nos habituarmos a comprehendê-las. Á difficuldade, que resulta das
+referencias a cousas vulgares no tempo em que o documento se redigiu, e
+que actualmente são desconhecidas ou conhecidas imperfeitamente,
+ajuncta-se a lingua barbara, ás vezes horrivelmente barbara, que nelles
+se empregava, mistura monstruosa de latim de todas as epochas com uma
+linguagem vulgar que hoje se pode reputar morta, tão transformada se
+acha nas linguas modernas da Peninsula: accresce a isto a differença
+profunda entre os homens daquelle tempo e os do nosso, no modo de
+conceber e exprimir as idéas; ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel,
+para vermos as cousas da idade media através do prisma dos habitos, das
+opiniões, dos costumes, e direi, até, das preoccupações actuaes.
+Subjugar esta tendencia é difficil; porque presuppoem um esforço de
+abstracção, de que não são capazes ás vezes os mais robustos espiritos.
+
+Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta ainda a vencer o que resulta
+da comparação dos proprios documentos, especialmente quando nelles
+estudamos as instituições, a organisação da sociedade. É ahi que o
+talento historico tem de passar por mais dura prova, e onde o
+discernimento nas apreciações precisa de ser mais subtil. A idade media
+não procedia sempre como nós das idéas geraes para a applicação
+especial, ou antes possuia poucas idéas geraes. Os costumes, as
+instituições, os usos, os factos tinham principalmente o caracter
+individual, local. Essas poucas idéas geraes que havia eram pela maior
+parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias nas
+doutrinas, a contradicção frequente nos factos. Na verdade o senso
+moral, a tendencia instinctiva para a generalisação produziam a maior
+parte das vezes em contraposição ao desordenado, ao repugnante, as
+analogias ou a identidade de factos, quando se davam as analogias ou a
+identidade de circumstancias; mas o phenomeno era mais casual do que
+intencional, e nem por isso faltavam as excepções, a desharmonia, quando
+as paixões, os interesses ou a inexperiencia vinham augmentar a confusão
+natural dos tempos barbaros. Saber deduzir os caracteres geraes de uma
+épocha, debaixo dos seus diversos aspectos, não dos principios que
+guiavam os homens na vida practica, porque a maior parte das vezes não
+os havia, mas dos factos isolados, dos monumentos especiaes; differençar
+a regra da excepção, regra e excepção, que não raro existem só por uma
+abstracção para nós, e que não existiam para elles, eis a summa
+difficuldade no estudo dos documentos, da legislação, e das memorias
+historicas da idade média, mas difficuldade que cumpre superar para se
+escrever de modo util a historia daquellas obscuras éras.
+
+Longe de mim a pretensão vaidosa de ter navegado sem naufragios nesse
+mar d'escolhos; mas seja-me ainda permittido duvidar de que tal
+infortunio me occorresse na questão do estado dos servos do VIII até o
+XII seculo; seja-me licito por emquanto suspeitar que fiz fazer um
+progresso á historia da Peninsula, collocando á sua verdadeira luz a
+situação dessa classe durante aquelle periodo.
+
+Como já disse, o sr. Muñoz, abstrahindo das considerações _à priori_ que
+fiz a semelhante respeito, limita-se a combater a minha opinião e a
+propugnar a sua com os factos que elle crê resultarem de um grande
+numero de documentos que invoca: limitar-me-hei tambem por isso a
+apreciar esses documentos e a examinar o que elles provam, recorrendo
+sómente a outros quando o julgar indispensavel para estribar melhor as
+minhas affirmativas.
+
+
+
+
+III
+
+
+Estabelecendo a doutrina de que o servo continúa a ser na monarchia de
+Oviedo e Leão o que era entre os godos, o sr. Muñoz funda-a n'uma serie
+de factos, que em seu entender resultam dos documentos e caracterisam a
+condição do escravo, a posse e dominio absolutos do homem sobre o homem,
+a servidão na sua fórma mais completa e humilhante, a do homem-cousa, a
+do homem animal de trabalho. Estes factos consistem na venda, doação e
+troca dos individuos sem dependencia de um contracto ácêrca do solo em
+que elles habitam; em serem arrebatados nas guerras privadas os colonos
+de herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas, reduzidos á
+escravidão dos raptores e vendidos por estes como escravos; na entrega
+dos servos christãos aos sarracenos como preço de resgate de nobres
+captivos (pag. 5 a 7)[73]; em exercerem os servos os diversos misteres
+do serviço domestico e os officios mechanicos, sendo parte de taes
+misteres incompativeis com o cultivo do solo; em viverem alguns nos
+coutos de igrejas e mosteiros obrigados a serviços geraes, isto é, a
+quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12 a 13). Excluidos da
+representação em juizo pela lei (wisigothica), que não admittia o seu
+testemunho senão á falta de outras provas, não tinham acção para
+perseguir um delicto contra a propria pessoa ou contra os filhos; ao
+dono competia sollicitar a indemnisação do damno padecido pelo servo
+como de cousa sua. No caso de homicidio, era elle quem tambem obtinha a
+compensação pecuniaria; e do mesmo modo se o servo matava, feria, ou
+atacava propriedade alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e seg.).
+Os filhos de um servo e de uma serva de diversos donos eram pessoalmente
+divididos entre elles (pag. 24 e 25).
+
+Taes são os factos sociaes que o sr. Muñoz apresenta como contrariando a
+minha opinião: esses factos estriba-os nos documentos cujas passagens
+correlativas transcreve, referindo-se outras vezes aos monumentos por
+elle já publicados na _Colleccion de Fueros_, ou a alguns que se
+encontram em outros escriptos, principalmente nos appendices da _España
+Sagrada_.
+
+Se o meu animo não fosse sincero; se eu não quizesse trazer á evidencia
+o erro em que me parece laborar o sr. Muñoz, limitando-me ao que menos
+importa, á defesa do meu livro, facil me seria annullar as illações
+tiradas dos documentos invocados contra mim, visto que o sr. Muñoz não
+nos mostra, nem talvez lhe sería possivel mostrar, que elles se referem
+a servos de raça e não a prisioneiros de guerra, a sarracenos captivos
+nas continuas luctas entre os reis de Oviedo e Leão e os principes
+mussulmanos, ou aos filhos e descendentes desses captivos[74]. Um ponto
+em que estamos ambos de acôrdo é que a sorte destes era a de verdadeiros
+escravos. Das chronicas de Sebastião de Salamanca, de Sampiro, do
+Silense e de outros vemos que o systema de exterminio adoptado a
+principio pelos immediatos successores de Pelaio não tardou em ser
+modificado, e que milhares de captivos vinham successivamente caír nos
+ferros da escravidão, ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os
+pelos seus guerreiros. Uma parte dos edificios religiosos alevantados
+por Fernando-magno foram construidos por esses desgraçados, salvos da
+morte por uma politica menos deshumana que a dos barbaros reis das
+Asturias.
+
+Com um monumento, porém, tão incontroverso como explicito, eu provei[75]
+que ainda no meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes, aprisionados
+com as armas na mão pelos soldados dos principes christãos, era analoga
+á dos crentes do islam, sendo como elles reduzidos á escravidão. Não é
+crivel que a sua sorte fosse melhor nos seculos anteriores. Ainda
+suppondo que os documentos citados pelo sr. Muñoz se devessem entender
+em geral como elle pretende que se entendam, ninguem poderia affirmar
+que os nomes gothicos a que ahi se allude não fossem sempre e em todos
+elles de captivos mosarabes ou de filhos seus e não de mouros
+convertidos ou não convertidos. Tambem me parece que poderia limitar-me
+a advertir que, fundando-se a minha opinião em muitos documentos, que o
+sr. Muñoz não se encarrega de interpretar de um modo acorde com a sua
+doutrina, e tendo, alêm disso, a meu favor as illações que tirei dos
+successos politicos, poderia considerar todos esses diplomas a que elle
+recorre apenas como manifestações das violencias, das excepções; como
+mais uma prova da falta de caracteres constantes, de regras geraes
+absolutas nos factos sociaes de uma épocha de barbaria e de
+transformação.
+
+Mas estas soluções, que talvez bastassem ao debate, não bastariam á
+minha consciencia: poderiam abonar uma opinião, aliás estribada em
+outros fundamentos, mas deixariam certa duvida no espirito dos que
+estudassem o assumpto. Desçamos, por isso, á analyse dos factos e
+documentos a que o sr. Muñoz recorre para assentar a existencia da
+escravidão pessoal como regra nos quatro primeiros seculos da monarchia
+leonesa.
+
+
+
+
+IV
+
+
+A venda, troca e doação dos individuos da classe servil sem dependencia
+de um contracto relativo ao solo em que habitam é o primeiro facto que
+affirma o sr. Muñoz, e que estriba nos seguintes documentos:
+
+1.^o Carta de doação á sé de Oviedo por Affonso II em 812. Incluem-se
+entre as dadivas _mancipia, id est, clericos sacricantores_, dos quaes
+um é presbytero, outro diacono, e os mais simples _clericos_, talvez
+ostiarios, psalmistas, exorcistas, etc. Alguns, declara-se terem sido
+comprados pelo rei. Os outros _mancipia_ são seculares, declarando-se
+tambem que alguns foram havidos por compra. Os nomes tanto de uns como
+de outros são godos.
+
+2.^o Carta de dote de 887. O noivo doa á esposa, além de alfaias, bens
+semoventes e dinheiro, dez _pueros_ e dez _puellas_, 30 villas (aldeias
+granjas) as quaes diz serem situadas _in Nemitos_, e enumera-as
+_Generoso_, _Vivente_ etc.
+
+3.^o Doação de marido a mulher, de 1029. Doa, entre outras cousas,
+_mancipios et mancipiellas quos fuerunt ex gente hismaelitarum et
+agareni_, os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros nomes arabes.
+Além destes, doa-lhe _de avolengarum criazone parentum_ varios
+individuos cujos nomes parece serem todos godos.
+
+4.^o Carta de agnição de 962 em resultado de uma demanda entre o
+mosteiro de Cella-nova e o conde Ordonho Romaniz. Versava a questão
+sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde tirar _homines et
+hereditates de jure monasterii volens eos ad servitutem abdigare_.
+Apresentaram os monges os seus titulos perante elrei, e quando iam a
+provar, diz o sr. Muñoz, que o rei Ramiro dera os homens que o conde
+usurpava, e o bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o conde
+supplicou aos magnates que obtivessem dos monges darem-lhe as duas
+villas em prestamo vitalicio, _absque homines in adtonitum_, no que os
+monges convieram.
+
+5.^o Carta de agnição de 1074, em resultado da demanda entre o mosteiro
+de Cella-nova e a condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro
+tirado do testamento (predio ecclesiastico) de Vanate dez homens, os
+quaes dera ao mosteiro de Porcária. Replicava o abbade de Cella-nova que
+_de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum fuit istum tale verbum_.
+Julgou-se a favor do abbade.
+
+6.^o Doação de 1094 feita á sé de Lugo por Suario Moniz de varias
+_villas cum sua criacione et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz
+et suos filios_.
+
+7.^o Carta de arrhas de 1108 em que o noivo doa varios bens de raiz, e
+alêm disso, um cavallo baio e _uno homine de creacione_.
+
+8.^o Doação do mosteiro de Sobrado em 1118 feita pela rainha D. Urraca a
+Fernando Peres e a seu irmão com todos os termos e coutos antigos e suas
+pertenças, _et cum sua criacione, servos et ancillas, exceptis
+quibusdam_.
+
+9.^o Memoria da divisão de Rovoredo, sem data, caractéres do seculo
+XIII. Na opinião do sr. Muñoz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo
+Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome godo) que fora visavô de
+Diogo Erit. Este foi a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira
+de Ardio Dias, uma de duas irmans, que, herdando Rovoredo, haviam
+dividido entre si o predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz
+(provavelmente herdeiro ou representante de Vermudo Cresconiz) e levou-o
+comsigo. Seguiu-se uma manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que
+terminou por uma composição, em virtude da qual ficou Diogo Erit em
+Rovoredo e foi dada em trôco delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias.
+
+Taes são os documentos de doação, vendas e escambos, exclusivamente de
+individuos, que o sr. Muñoz cita em prova da inexacção da minha
+doutrina.
+
+No 1.^o documento peço que se note que as pessoas doadas são denominadas
+_mancipia_, e não _servos_, e que entre elles um é presbytero, outro
+diacono, e outros simples clerigos; que os seculares são tambem
+denominados _mancipia_, e que todos elles tem nomes godos. Pergunto:
+tolerava a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula naquella
+epocha, que homens servos, e que continuavam a ser servos, doados ou
+vendidos depois a bel-prazer de seus donos, fossem elevados não ás menos
+importantes funcções do culto, mas á ordem do presbyterado e ainda do
+diaconado? Não era impossivel acumular as condições da servidão e do
+sacerdocio? Basta abrir o resumo dos canones da igreja d'Hespanha
+publicados por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos da impossibilidade
+desta associação monstruosa. Todavia o facto da venda de um presbytero,
+de um diacono e de outros clerigos deu-se no principio do seculo IX,
+como o prova este documento. Não haverá, porêm, atraz desse facto outro
+ou outros que o expliquem?
+
+A designação de _mancipium_, applicada a individuos dos mais elevados
+gráus do sacerdocio, o presbyterado e o diaconado, é não menos singular.
+Notei mais de uma vez no meu livro[76] que a palavra _mancipium_, entre
+os godos, sem deixar de se tomar ás vezes na significação lata de servo,
+significava de ordinario o servo infimo, o _escravo_, o individuo
+reduzido á ultima degradação; significava antes uma _situação_ de
+aviltamento do que uma _condição_ originaria. São notaveis a este
+proposito dous logares do codigo wisigothico, a lei que tracta dos
+_escravos dos servos fiscaes_, e a que tracta dos _mancipia_ dos judeus,
+quer _ingenuos_, quer servos. Antes de mim já Masdeu tinha feito com
+pouca differença a mesma observação. Entre os romanos _mancipium_ era
+synonimo de _servus_, mas a origem dos vocabulos era diversa: _servus_
+de _servire_; _mancipium_ de _manu captum_, do homem aprehendido, do
+prisioneiro reduzido á á escravidão. Evidentemente a designação de
+_mancipium_ serviu a principio para indicar o captivo, o individuo a
+quem se deu a vida, que se lhe podia tirar, para o collocar na situação
+de um animal de carga, de uma alfaia; representou um facto accidental,
+personalissimo, differente da servidão herdada, da servidão de raça, ou
+para exprimirmos com dous vocabulos modernos duas idéas semelhantes, mas
+diversas, o _mancipium_ era servo, mas _escravo_. Na Russia ha _servos_;
+na America ha _escravos_. Note-se, porêm, que com este exemplo não quero
+estabelecer analogia completa entre a distincção primitiva e a
+distincção actual.
+
+Baste, porém, que _mancipium_ servisse entre os godos para exprimir
+especialmente a mais vil servidão, a escravidão. Não teria a palavra na
+monarchia neo-gothica este mesmo valor especial, embora ás vezes pela
+fluctuação da linguagem (fluctuação que existe sempre, mas que é
+grandissima nas epochas barbaras) se tomasse como synonimo de servo, por
+isso que, n'um grande numero de relações, a sorte de um e a sorte de
+outro eram identicas? No 3.^o documento que cita o sr. Muñoz, os
+individuos doados são denominados _mancipios_ e _mancipiellas_, e
+exprime-se que são da gente ismaelita e agarena; que são captivos. N'uma
+carta de doação á sé de Lugo[77] de 897 Affonso III doa-lhe, além de
+outras cousas, _mancipia, quae ex hismaelitarum terra captiva duximus_.
+No meio de uma lucta odienta e atroz, como foi durante o seculo VIII e
+ainda durante o IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, é natural, é
+crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros de guerra que não eram
+passados á espada fosse inteiramente a mesma dos servos de raça, classe
+a que, além de outros, um documento de 985 chama _servos
+originales_[78], por infima que se reputasse a condição destes? E não
+haveria um meio de expressar por palavra ou por escripto a differença
+das duas situações, quando fosse necessario fazê-la sentir?
+
+É indubitavel, á vista das chronicas coevas e dos documentos, que os
+reis de Oviedo e Leão e os seus capitães, alargando os limites da
+monarchia ou reduzindo o poder mussulmano por victorias repetidas, por
+saltos e correrias inesperadas, por devastações e incendios, conduziam
+annualmente para o interior das provincias ovetense-leonesas milhares e
+milhares de captivos. Devemos acaso suppôr que nenhum desses contractos
+sobre individuos pessoalmente escravos, em que se calla a procedencia
+dos mesmos individuos, se refira a prisioneiros de guerra, e que entre
+estes não houvesse muitos mosarabes? A pretensão parece-me que sería
+insustentavel. Embora eu não queira, nem seja preciso explicar por esse
+facto muitos dos documentos citados pelo sr. Muñoz, ha outros em que
+semelhante explicação é a mais simples e natural, e a este numero
+pertence indubitavelmente a doação de 812.
+
+Civilmente, socialmente, os mosarabes eram sarracenos. Do modo como essa
+grande maioria da população romano-gothica buscava em geral assimilar-se
+aos conquistadores temos sobejas provas nos escriptos contemporaneos de
+Alvaro de Cordova, d'Eulogio, do biographo de João de Gorze, nas actas
+dos martyres Voto e Felix e em outros monumentos. Os mosarabes serviam
+nos exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam contra os seus
+correligionarios. Entre os altos officiaes da coroa na corte de Cordova
+figuram condes godos, e apparecem-nos a cada passo magistrados,
+funccionarios, prelados, sacerdotes godo-romanos nas provincias do vasto
+imperio dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as questões
+religiosas, e adoptando a tolerancia dos dominadores arabes, seriam
+verdadeiramente addictos á situação politica em que se achavam, elles
+que abraçavam não raro os nomes proprios, os costumes, as usanças, a
+civilisação e a lingua dos mussulmanos, a ponto de esquecerem
+completamente o idioma neo-latino, segundo o testemunho de Alvaro de
+Cordova; elles que admittiam, até, a circumcisão, se acreditarmos o
+_Indiculum_ e a biographia de João de Gorze? Não achamos nós ainda no
+seculo XI os bispos mosarabes, esquecidos das funcções episcopaes, e
+dedicados inteiramente á vida politica, empregarem-se no serviço profano
+dos respectivos soberanos sarracenos?[79] Se nos proprios estados dos
+reis de Leão a mistura dos usos mussulmanos com os christãos dava ás
+vezes, nas exterioridades do culto, occasião a factos que seriam
+comicos, se não fossem irreverentes[80], o que seria essa mistura entre
+mosarabes e ismaelitas nos estados mahometanos?
+
+Imaginar, portanto, que entre os milhares de captivos que annualmente
+eram arrastados da Spania para os sertões das Asturias e de Leão não
+vinha um grande numero, digamos assim, de _sarracenos christãos_; que
+entre uns e outros captivos se fazia distincção, se poderia sequer
+fazer; que os violentos e brutaes barões e cavalleiros dos reis leoneses
+consentiriam em perder uma parte dos seus escravos, que exteriormente em
+nada se differençavam dos restantes, dos verdadeiros mussulmanos, ainda
+admittindo gratuitamente que os principes o desejassem, seria suppôr uma
+cousa inacreditavel, embora não existisse o testemunho do biographo de
+S. Theotonio, testemunho preciso de que a praxe era inteiramente
+contraria.
+
+Na adiantada civilisação de hoje não se comprehenderia o direito de vida
+ou de morte sobre os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravidão
+para o vencido, ou que possa haver outros prisioneiros senão
+combatentes. Deste estado da civilisação derivam a distincção entre
+prisioneiro e prisioneiro, e os diversos gráus de benevolencia e de
+attenções para com os mais qualificados. Entre barbaros ou nas eras
+barbaras, o nosso proceder, as nossas idéas actuaes a este respeito
+seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade o senhor do captivo,
+sabendo que se apoderara de um homem opulento, importante entre os
+adversarios, podia por calculo de cubiça tractá-lo melhor, evitar-lhe os
+padecimentos e as injurias á espera de avultado resgate. Mas a regra, o
+principio, a idéa de então consistia em ser o captivo, fosse quem fosse,
+como um ente novo, a cujo nascimento, digamos assim, não se tinha
+opposto o gume da espada. O passado desse ente não importava para nada.
+Era um animal, uma propriedade do que o captivara e que licitamente
+poderia ter feito com que não existisse: era o _manu-captum_, a
+acquisição, o escravo; emfim, o _homem-cousa_.
+
+Tendo presentes todos estes factos, que o sr. Muñoz não ignora, mas que
+me era necessario recordar aqui, entende-se facilmente a doação de
+Affonso II á sé de Oviedo: entende-se como esses clerigos podiam ser em
+parte comprados, em parte libertados pelo rei, e unidos á sé ovetense.
+Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por occasião de alguma
+correria. Pelos canones da igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma
+especie de adscripção canonica á igreja a que pertenciam, e Affonso II,
+conforme o chronicon de Albaida, foi quem restabeleceu em Oviedo as
+jerarchias civis e ecclesiasticas dos godos[81]. Resgatando aquelles
+individuos da escravidão, e ligando-os indissoluvelmente á sé ovetense,
+respeitava as idéas do seu tempo e mantinha a antiga disciplina
+ecclesiastica, embora o fizesse de modo um tanto rude. Se admittissemos,
+porêm, a hypothese de que elles eram servos originarios semelhantes aos
+servos dos tempos gothicos, que como taes haviam recebido ordens sacras,
+que, depois de doados á sé de Oviedo, continuavam a ser o que eram,
+segundo a theoria do sr. Muñoz, isto é cousas e não pessoas, e que,
+portanto, podiam ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem os
+mais abjectos misteres, o diploma de 812 ficaria não só repugnando á
+historia, mas sendo, alêm disso, um indecifravel mysterio.
+
+Este documento não me escapou quando redigia o VII livro da Historia de
+Portugal; mas tinha de attender a muitos outros, de condensar muitos
+factos sociaes em poucos periodos. Não podia descer á analyse minuciosa
+delle. Estava tão convencido da verdade da doutrina que estabeleci, que
+não o julguei sufficiente para a destruir. O leitor avaliará se elle
+effectivamente a destroe. Suppús que, quando muito, era uma das
+anomalias tão frequentes nos factos sociaes dos tempos barbaros, a
+manifestação da anarchia que reinava ainda nas idéas e nos factos. A
+analyse parece-me provar que nem sequer isso era.
+
+O 2.^o documento explica-se como o antecedente pela existencia
+d'escravos captivos. É notavel que nelle tambem se evite a palavra
+_servos_, mais generica, para se empregar a singular expressão _pueros_
+e _puellas_. Parece haver a necessidade de recorrer a um vocabulo
+especial para exprimir uma variedade da servidão. Além disso, este
+documento parece igualmente entrar na categoria de varios outros que
+citei no meu livro para provar a adhesão do servo originario á gleba,
+pelo modo por que indistinctamente se empregava o nome do individuo ou o
+da propriedade para designar esta. Doando trinta granjas, o doador
+declara que são situadas no districto de Nemitos, e que são _Generoso_,
+_Vivente_ &c. nomes proprios de individuos e não de predios.
+
+O 3.^o documento creio servir antes para combater a opinião de sr. Muñoz
+do que a minha. O doador distingue em dous grupos os servos doados: a
+1.^a dos _mancipios_ e _mancipiellas que foram das gentes dos ismaelitas
+e agarenos_, e dos quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes
+arabes: a 2.^a dos _homens de creação havidos de avoengas_ (heranças de
+familia) _dos antepassados_ (do doador) e cujos nomes são todos godos.
+Porque a divisão em dous grupos, se a condição dos que pertencem a uma e
+a dos que pertencem a outra é absolutamente identica? Porque uns são
+chamados _mancipios_, outros _homens de creação_, equivalente de servos
+de raça? Porque entre os _mancipios_ tem uns nomes godos e outros
+arabes, emquanto os de _criazione_ são todos godos? Peço ao sr. Muñoz
+que aproxime estes factos das ponderações que acima fiz, e que decida
+depois se o documento prova contra a minha, se contra a sua doutrina.
+
+Refere-se no 4.^o documento a historia de uma demanda entre o conde
+Ordonho Romaniz e o mosteiro de Cellanova ácêrca de certas herdades do
+mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O que neste documento importa
+para a questão é o desfecho da contenda. Convencido de que não tinha
+razão, o conde propôs aos monges uma transacção, que acceitaram, e que
+consistia em elle possuir as granjas emquanto vivo _absque homines in
+adtonitum_. Nestas ultimas palavras o sr. Muñoz vê a separação dos
+homens da terra. Será essa a verdadeira interpretação?
+
+_Adtonitum_ é evidentemente a traducção latino-barbara da palavra
+_atondo_. _Atondo_ significava alfaia, _traste de uso_, _objecto de
+serviço_. As obrigações do servo de gleba, como depois as dos colonos
+livres em seculos mais proximos de nós, eram, em relação ao senhor da
+gleba, e depois em relação ao senhorio directo do predio, de duas
+especies--prestações agrarias e serviços pessoaes; estes abrangiam
+serviços de todo o genero, ainda os mais baixos; alguns, até, que
+poderiam ser feitos por animaes domesticos. Nada mais facil, portanto,
+do que applicar a palavra _atondo_ ao serviço pessoal dos servos, n'uma
+épocha que de certo se não distinguia pela precisão rigorosa da
+linguagem[82]. Que ficava percebendo Ordonho por aquella concessão dos
+frades? As prestações agrarias. Os serviços pessoaes ficavam ao
+mosteiro. E os monges procediam assisadamente fazendo uma concessão
+restricta ao homem poderoso. Pelos individuos que agricultavam as
+glebas, cujos redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao conde,
+ficando aliás esses individuos ligados pelos serviços pessoaes ao
+mosteiro, era facil provar a todo o tempo a quem o solo pertencia, se,
+como eu creio, o servo se achava unido ao predio que agricultava e onde
+vivia.
+
+Não comprehendo como possa applicar-se á materia debatida o 5.^o
+documento citado pelo sr. Muñoz. Para elle servir ao intento era
+necessario que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava. Não o
+provou, porque a sentença deu-se a favor dos frades. Logo a separação
+dos dez homens pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o que pretendia o
+abbade de Cellanova. Supponhamos, porém, que fosse verdade o que ella
+dizia. N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez glebas do
+testamento de Vanate não passaram com os dez homens para o dominio do
+mosteiro de Porcária? A contenda podia versar sobre os dez servos e os
+dez predios, embora se falasse unicamente de homens: esta confusão da
+linguagem juridica nos documentos daquelles tempos é uma cousa que me
+parece ter demonstrado no meu livro até a evidencia.
+
+No 6.^o documento doam-se varias granjas _com sua criacione et homines
+pertinentes_, exceptuando um d'estes homens com seus filhos. Não
+comprehendo igualmente como se possa invocar contra mim um documento de
+que me poderia ter servido, cumulativamente com tantos outros, para
+estribar a minha theoria, se o houvera conhecido. A phrase
+latino-barbara acima citada exprime exactamente a situação dos servos:
+doam-se as glebas com a _sua_ creação, com os homens _que lhes
+pertencem_. Supponhamos que a reserva que se faz de uma familia
+signifique o que o sr. Muñoz pretende. Sería um acto legitimo ou
+illegitimo; mas o que é certo, pelo menos, é que até ahi essa familia
+pertencia áquellas glebas como os outros homens de creação. Isoladamente
+este documento não seria bastante para provar o facto geral da
+adscripção, embora prove que havia adscriptos; mas o que elle de certo
+não prova é que a situação dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma
+dos tempos gothicos.
+
+A adhesão á gleba era um facto de indole complexa. Por um lado era um
+progresso immenso das classes laboriosas no caminho da liberdade; por
+outro uma garantia para os donos do solo; porque, circumscrevendo,
+coarctando a acção do senhor sobre o servo, a tornava por isso mais
+legitima e por consequencia mais solida. Nas relações entre ambos havia
+vantagens mutuas, de que espontaneamente se podia ceder de parte a parte
+para as trocar por outras vantagens maiores. A adscripção não era uma
+lei escripta, como na Russia moderna; pelo menos nenhuns vestigios
+restam de que o fosse: era um facto social, um costume, uma praxe, que
+resultava da natureza das cousas, de factos politicos anteriores. É
+possivel apparecerem exemplos de separação entre o servo e a gleba por
+um acto violento do senhor. De que actos violentos deixa de nos
+subministrar exemplos a idade media? Mas o senhor tambem podia quebrar
+os laços que prendiam o servo ao predio com vantagem e assenso delle,
+como por exemplo para o unir a uma gleba mais productiva ou mais vasta,
+sem que por isso se reputasse offendida a praxe, a especie de lei mental
+que a força das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir d'ahi a
+não existencia do facto contrario como regra. Isto explicaria a reserva
+de Alvito Pepiz e seus filhos na doação de 1094 á sé de Lugo, se não se
+podesse tambem entender que com elles fora exceptuada a respectiva
+gleba.
+
+Depois do que fica dicto a analyse dos 7.^o, 8.^o e 9.^o documento do
+sr. Muñoz parece-me inutil, e a theoria da adscripção não obstará por
+certo á sua facil interpretação. Seja-me, todavia, licito fazer algumas
+observações a respeito do ultimo documento. Não me lembra ter jámais
+visto mencionado, nem nos historiadores nem nos monumentos, um unico
+mussulmano cujo nome seja godo. E comtudo na memoria da divisão de
+Rovoredo menciona-se o _sarraceno_ Sendimiro. Não sería um captivo
+mosarabe? Mosarabe, porêm, ou arabe, elle não fora um homem de creação,
+fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo casou ahi. Mas porque
+não sería a mulher da sua condição e da sua raça? E então porque não se
+daria em troco d'elle uma irmã da sua mulher? Que póde esse facto provar
+contra a adscripção dos servos originarios? Onde neguei eu que a
+escravidão dos sarracenos ou de seus filhos fosse a servidão pessoal?
+
+
+
+
+V
+
+
+Outra ordem de factos, que o sr. Muñoz recorda como vehemente indicio de
+que a condição dos servos era a mesma dos tempos gothicos, é que ás
+vezes os poderosos nas suas depredações roubavam uns aos outros os
+colonos e iam vendê-los, o que não poderia acontecer se a servidão
+pessoal não existisse; que se davam servos aos mouros em resgate
+d'illustres captivos[83]; que os servos eram obrigados ao serviço
+domestico, a trabalhos mechanicos da industria, como por exemplo, a
+serem cozinheiros, padeiros, tecelões, carpinteiros, ferreiros,
+alfaiates, etc.; que alguns tinham os mais baixos encargos, como limpar
+os logares immundos, concertar os caminhos, tractar das cubas em que
+seus senhores se banhavam etc.[84]; o que tudo, no entender do sr.
+Muñoz, repugnava á adscripção. Lembra-se então de alguns monumentos em
+que esses factos podem estribar-se, e que crê servirem para condemnar a
+minha opinião. Examinemo-los.
+
+N'uma doação de Bermudo III á sé de Santiago fala-se de um certo
+Galiariz, que, entre outras rapinas que fez, roubou seis homens alheios
+e vendeu-os como captivos (_et vendivit eos sicut captivos_). Se eu
+procurasse um documento que positivamente contradissesse a doutrina do
+sr. Muñoz, não o acharia por certo mais a proposito. Galiariz vendeu os
+servos alheios _como se fossem captivos_, e este acto enumera-se entre
+os seus delictos. O que pois se vendia sem offensa dos usos e costumes
+era o prisioneiro, _captivum_. Vender como tal o servo alheio é uma
+circumstancia que aggrava o roubo, e porque? Porque o servo, o homem
+d'alguem, não era um captivo, uma _cousa_ venal. Peço que se reflicta
+neste documento.
+
+Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia Compostellana, foram
+aprisionados pelos sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se
+para os remir LX _captivos christianos, tamen ex servili conditione_. E
+é sobre semelhante texto que o sr. Muñoz assenta a idéa de que se
+entregavam servos originarios aos sarracenos em resgate de cavalleiros
+leoneses! Que é o que se deu pelos dous nobres? Captivos christãos. Pois
+_captivo_ foi nunca synonimo da palavra generica _servo_? _Captivo_, na
+idade media, significava o que significa hoje, o que significou sempre,
+o prisioneiro. O que houve foi uma troca de prisioneiros. Deram-se por
+dous sessenta, facto que o historiador explica: _tamen ex servili
+conditione_. Se dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro, ou
+seis. Não tinham prisioneiros de mais elevada jerarchia ou não os
+quizeram entregar: deram sessenta de condição servil. Mas esses homens
+eram christãos. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente captivos. A
+Compostellana é igualmente explicita a ambos os respeitos. Eis a
+necessidade de nunca esquecer a população mosarabe. Por ella se explica
+facilmente a existencia de prisioneiros christãos em poder de christãos.
+Aprisionados com seus senhores ou sem elles n'uma batalha ou n'uma
+correria dos leoneses na _Spania_, tinham mudado de donos, e agora
+entregavam-nos a outros donos em cujo poder de certo a sua condição
+desgraçada não melhoraria. Eis o que unicamente se pode inferir com
+plausibilidade da narrativa da Compostellana.
+
+Não escrevendo a historia de Leão, ou dos outros estados da Peninsula,
+mas a de Portugal, eu era obrigado a esboçar rapidamente a organisação
+social da Hespanha de que se desmembrara a monarchia portuguesa; só,
+porêm, até onde fosse necessario para se entender a historia social do
+meu paiz. Apesar disso, creio que fui o primeiro que tentei fazer sentir
+aos escriptores hespanhoes a importancia de dedicar profundas
+investigações á historia dos mosarabes, dessa população distincta, que,
+em meu entender, devia constituir a maioria dos habitantes da Peninsula,
+ainda dous ou tres seculos depois da invasão dos arabes e da tentativa
+de Pelaio, pela simples razão de que a grande massa da população de um
+vasto paiz não se pode substituir como o poder supremo, como o
+predominio de um precedente conquistador, sobretudo quando se tracta de
+uma nação civilisada, e não de tribus selvagens, sempre insignificantes
+em numero, e que a atrocidade fria e permanente dos vencedores chega a
+destruir no decurso de seculos. Depois das invasões e conquistas
+germanicas, a grande massa da população do imperio romano ficou sendo
+celto-romana: depois da invasão e conquista da China pelos tartaros
+mantchús, a maioria dos habitantes daquelle immenso paiz ficou sendo
+chim: o sangue inglês é o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio
+normando. E todavia nenhuma daquellas raças de conquistadores foi tão
+moderada, tão benigna para com os vencidos como os arabes na Hespanha.
+Por essa mesma brandura e tolerancia certa ordem de factos politicos e
+sociaes, que se dão depois dos grandes cataclysmos das nações, deviam
+ser mais prominentes, mais efficazes na Hespanha, e portanto influir
+mais poderosamente nas phases dos acontecimentos posteriores tanto
+politicos como sociaes. Nós, os homens d'hoje, que vimos ou ouvimos
+contar a nossos paes as scenas do dominio francês na Peninsula no
+principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar o estado moral da
+população romano-gothica depois do estabelecimento do imperio dos
+khalifas, se aliás os monumentos fossem menos explicitos ou guardassem
+silencio a tal respeito. O transitorio dominio francês na Peninsula não
+deixou de produzir logo um grande numero de _afrancesados_ na Hespanha e
+de _jacobinos_ em Portugal. Qual sería o jacobinismo, permitta-se-me a
+expressão, entre os godo-romanos em relação aos sarracenos pode
+imaginar-se tendo presente o estado de dissolução moral do imperio
+wisigothico, anniquilado n'uma unica batalha; o longo dominio dos
+arabes; a superioridade da sua civilisação material; a sua tolerancia
+para com a religião dos vencidos; o respeito guardado ás instituições
+civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes mussulmanos para com
+os seus subditos christãos. Não quero dizer com isto que o patriotismo
+wisigothico; que a impaciencia do jugo extranho; que o sentimento de
+hostilidade religiosa não ardessem em muitos corações, e até subissem ao
+gráu de fanatismo. Pelo contrario. Não era preciso que os monumentos nos
+dissessem que a reacção se manifestava até na corte de Cordova. O
+conhecimento da indole das paixões humanas dispensa ás vezes em historia
+o testemunho dos monumentos. O homem é essencialmente o mesmo em todas
+as epochas. Mas é por isso que os interesses, a reflexão, os vicios, as
+virtudes, os habitos, a educação, as mil causas moraes que impellem e
+dirigem o individuo e lhe determinam os affectos e as tendencias, deviam
+impellir outros, e talvez o maior numero, a manifestações oppostas. O
+_Indiculo Luminoso_ de Alvaro de Cordova, especie de extenso artigo de
+fundo de jornal partidario, libello apaixonado contra o mosarabismo,
+revela-nos quão numeroso e importante era o partido arabe entre os
+romano-godos da Spania, partido que abrangia nobres, guerreiros,
+prelados, sacerdotes, magistrados, povo. Se não existisse este
+testemunho insuspeito, a razão e a experiencia nos diriam o mesmo que
+elle nos diz[85].
+
+Imagine-se agora qual sería durante a lucta entre a monarchia
+néo-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas o papel dessa maxima parte da
+população peninsular chamada os mosarabes: uns indifferentes á contenda,
+acceitando do mesmo modo o dominio dos reis d'Asturias e Leão ou o dos
+principes sarracenos, no meio dos éstos da guerra; outros forcejando por
+identificar-se com a nova sociedade que se constituia á semelhança da
+patria wisigothica; outros, emfim, addictos por esperanças, por cubiça,
+por beneficios recebidos, e até por laços de sangue, resultado dos
+consorcios mixtos, á manutenção do dominio mussulmano, e calcule-se
+quantos factos politicos haviam de dimanar de um estado de cousas tal;
+quantas peripecias, quantas violencias se dariam em qualquer districto
+ou provincia da Hespanha a cada invasão, a cada correria, quer dos
+sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam em vinganças acerbas
+os odios occultos; como as paixões mais oppostas trariam a mudança de
+partido e até de crença; como os homens da mesma raça e da mesma
+religião se perseguiriam, se denunciariam por desleaes a um ou a outro
+dos dous poderes publicos, que pelos accidentes da guerra se succediam
+tão frequentemente nos variaveis limites dos dous estados; como a
+condição do mesmo individuo mudaria mais de uma vez; como o nobre, o
+rico, o funccionario, o sacerdote poderiam cair de repente da situação
+mais elevada na mais abjecta servidão, e os mais humildes elevarem-se
+por acontecimentos imprevistos até as mais altas graduações sociaes;
+como, finalmente, os monumentos na sua linguagem, nos factos que delles
+resultam podem illudir-nos, se entre os elementos a que devemos recorrer
+para a sua apreciação esquecermos o elemento mosarabico.
+
+Que se me permitta referir aqui uma anecdota que pinta a vida agitada da
+população mosarabe nos territorios submettidos ora pelos arabes, ora
+pelos leoneses, no meio das vicissitudes da guerra, e que está
+confirmando o que precedentemente disse ácêrca do mosarabismo e das
+peripecias a que estavam sujeitos os individuos naquella situação
+incerta e cambiante. Dos territorios da Hespanha nenhum, talvez, mudou
+mais vezes de senhores durante a lucta do que os districtos d'entre
+Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades do oceano, e porventura que em
+nenhum ficaram mais vestigios da existencia da sociedade mosarabica, da
+sua civilisação material, das suas paixões, dos seus interesses
+encontrados, e até dos seus crimes e virtudes. A publicação, que a
+Academia prepara, dos documentos dessas epochas, e especialmente dos que
+nos foram conservados nos archivos da cathedral de Coimbra e do mosteiro
+de Lorvão, lançará grande luz sobre o assumpto. É um desses documentos,
+tirado do chartulario de Lorvão, o Livro dos Testamentos, e que foi
+publicado já por Fr. Munuel da Rocha, mas horrivelmente deturpado, que
+me subministra os elementos de uma narrativa, a qual reproduz, embora
+apenas n'uma das suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos.
+
+Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo o cenobio de Lorvão.
+Coimbra, em cujo territorio estava situado o mosteiro, pertencia á coroa
+leonesa pouco antes da epocha em que a espada irresistivel do hadjib
+Al-manssor fez recuar de novo as fronteiras da monarchia néo-gothica
+para além do Douro (987). Os districtos ao sul deste rio, que depois da
+invasão de Tarik e Musa tinham pertencido a maior parte do tempo aos
+sarracenos, encerravam uma população essencialmente mosarabe. Cordova
+era ainda para ella a capital da industria, das artes, da civilisação. O
+architecto cordovês Zacharias viera a Lorvão, provavelmente chamado pelo
+abbade Primo para alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores de
+Coimbra falaram com o abbade para que o architecto cordovês construisse
+algumas pontes sobre os rios das circumvizinhanças. Primo accedeu, e
+acompanhou Zacharias na empreza. Edificaram-se então quatro pontes, em
+Alviaster (Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera Buzat (Ladeiras
+do Bussaco?) e na ribeira de Forma (Bossão?) Aqui, em memoria da ambos,
+e por conselho do architecto, Primo construiu umas azenhas que ficaram
+pertencendo ao mosteiro. Taes foram os factos succedidos nos fins do
+seculo X que narra o documento de Lorvão.
+
+Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o seu territorio, submettidos
+de novo por Al-manssor, tinham-se conservado sob o jugo do islam.
+Fernando magno veio, porêm, a unir definitivamente aquella provincia á
+coroa de Leão nos meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de Forma
+já não eram do mosteiro. Fernando I restituiu-lh'as, ajunctando o
+senhorio da ponte. Pelagio Halaf, nome que indica um mosarabe christão,
+fora, segundo parece, espoliado naquella restituição. Demandou os
+monges, affirmando que seu avô Ezerag edificara as azenhas, ao passo que
+o abbade Arias invocava os nomes de Primo e Zacharias. O mosarabe
+Sisnando, conde ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de Arias
+ácêrca do que este affirmava, manteve a restituição. Surgiu então novo
+contendor. Era Zuleiman Alafla, primo-coirmão de Pelagio, talvez
+mussulmano, talvez christão, mas como elle da raça mosarabe. Sisnando
+enviou os contendores á curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu
+direito na fundação do avô, Zuleiman recorreu a um titulo que hoje sería
+singular, mas que então elle cria assás natural, e sufficiente para
+legitimar a sua pretensão. Era a historia do que se havia passado quando
+Al-manssor se apoderara de Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando
+se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto da invasão os
+habitantes das aldeias internavam-se nos bosques. Ezerag pensou então
+que a desordem geral podia enriquecê-lo. Dirigiu-se ao chefe sarraceno
+Farfon-ibn-Abdallah, e abraçou o islamismo. Depois pediu trinta soldados
+sarracenos, escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se á gente foragida,
+aconselhou-os a voltarem aos seus lares, asseverando-lhes que tudo
+estava pacificado. Acreditaram-no e voltaram ás aldeias. Os soldados
+sarracenos, saindo então dos escondrijos, captivaram muitos, e
+levando-os a Santarem venderam-nos por grossas sommas. Os captivos foram
+conduzidos a Cordova com guia de Ibn-Abdallah e com o preço por que
+tinham sido vendidos. Então Ezerag pediu em recompensa os moinhos de
+Forma e diversas aldeias. Al-manssor concedeu-lhe tudo; porque
+Al-manssor era um heroe, e os heroes não tem tempo para pensar nos
+direitos da humanidade conculcados[86]. Era nesta concessão que Zuleiman
+fundamentava a sua justiça.
+
+A doação do hadjib aos olhos de Alafla, do neto do renegado, era um
+titulo legitimo, embora essa mercê tivesse tido por causa uma atroz
+villania, e procedesse de um acto de auctoridade que o tribunal leonês,
+conforme as ideas de hoje, não poderia reconhecer. Zuleiman, porêm,
+suppunha tão legitima, tão respeitavel a concessão de Al-manssor como o
+julgamento da curia de Fernando-magno. Era um poder que passara na
+terra: era outro que nella existia agora. Nisto se resumia,
+necessariamente, a crença politica de uma grande parte dos proprietarios
+e agricultores mosarabes. Mas o mais importante neste documento é o
+proceder d'Ezerag e os factos que d'ahi resultaram. Elles nos explicam
+como quaesquer individuos da grande maioria da população podiam descer
+ao misero estado d'escravos. Sem duvida a historia de Ezerag não é a
+unica da sua especie succedida naquelles quatro seculos de uma terrivel
+lucta: devia repetir-se com circumstancias variadas. E é mais que
+provavel que as conversões ao christianismo por baixos intuitos de
+cubiça, de vingança ou de traição, fossem, pelo menos, tão frequentes
+como as conversões mussulmanas.
+
+Insisti neste ponto, porque o reputo capital. Passemos agora á objecção
+deduzida de serem os servos originarios obrigados a trabalhos
+industriaes e ao serviço domestico dos senhores, trabalhos e serviços
+que, no entender do sr. Muñoz, repugnavam á adscripção da gleba.
+
+No opusculo do sr. Muñoz parece-me haver duas preoccupações que
+allucinam o illustre escriptor. A primeira é a das idéas modernas
+applicadas ás expressões, ás phrases e aos factos da idade media. Desta
+é facil possuirmo-nos, e nella terei eu caído mais de uma vez. A outra é
+na verdade singular, mas em boa parte deriva da primeira. Consiste em
+suppôr a impossibilidade de accumular os trabalhos da vida rural com os
+industriaes e mechanicos, ou com os serviços pessoaes feitos a outro
+individuo. Entre as nações onde o progresso das industrias fez
+predominar quasi exclusivamente o principio economico da divisão do
+trabalho, effectivamente não se dá tal associação: o official mechanico,
+o operario fabril, o creado domestico não associa de ordinario a
+occupação a que se entregou com o grangeio dos campos. Mas assim como a
+divisão e subdivisão dos misteres se vai multiplicando com o
+desenvolvimento industrial, assim quanto mais atrazado se acha um povo,
+mais o homem varía de occupações, porque é obrigado a variar, e porque
+justamente a imperfeição das industrias, a simplicidade e grosseria dos
+artefactos favorecem a accumulação e a variedade das occupações
+individuaes. Não sei o que succede em Hespanha: em Portugal, nos
+districtos ruraes, mais de uma industria fabril se associa com a
+agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia, por atrazado que esteja
+este paiz nos progressos fabris, está sem comparação mais adiantado do
+que a monarchia leonesa no seculo X ou XI.
+
+Recusar admittir que o servo da gleba podesse separar-se do cultivo da
+mesma gleba para se empregar de outro modo no serviço do senhor, não é
+só negar o passado; é negar o presente. O camponês russo é servo da
+gleba, e nem por isso deixa de separar-se della para exercer outros
+misteres. O que não pode é ser vendido como os brutos. Muda de senhor,
+ao menos legalmente, só quando é alienada a terra a que pertence.
+
+O V volume da Historia de Portugal, ainda não publicado, conterá uma
+parte relativa ao systema do tributo, da renda, e do serviço publico nos
+seculos XII e XIII. Ahi se encontrarão numerosas provas de que n'uma
+épocha em que já a adscripção voluntaria succedera á forçada existiam
+para o colono, pessoalmente livre, ao lado das prestações agrarias esses
+mesmos encargos de serviço pessoal que ao sr. Muñoz parece repugnarem,
+não ao colonato livre, mas á propria servidão da gleba; e o mais é que
+continuamos a encontrá-los ainda nos contractos emphyteuticos de seculos
+mais modernos. Por singulares, por extranhos á vida rural que esses
+serviços se nos affigurem nos documentos citados no opusculo que
+examino, os dos colonos portugueses do seculo XIII, colonos
+indubitavelmente livres de uma gleba serva, não são menos singulares e
+extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo que pesava sobre os
+moradores de tres casaes de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias
+em Leão quando a isso os enviassem.[87] Era, por certo, um serviço mais
+abjecto do que o _purgare tristigas_ de que falam os documentos
+leoneses.
+
+Mas o mais notavel é que o proprio sr. Muñoz se encarregou de combater a
+sua opinião. Ao lado da servidão _pessoal_ dos servos _originarios_
+admitte a existencia da servidão de gleba, a existencia simultanea de
+adscriptos, de que fórma uma classe á parte. Depois de enumerar as
+prestações agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos, o sr.
+Muñoz adverte[88] que, além de uma quota de fructos, e de variadas
+foragens, esses colonos forçados estavam adstrictos a serviços pessoaes,
+que consistiam nos amanhos de predios diversos da propria gleba, em
+construcções de edificios, e _em fazer quanto se lhes ordenasse_. Suppôs
+o sr. Muñoz que havia contradicção em dizer eu que os servos originarios
+eram todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a serviços pessoaes
+fóra da respectiva gleba, e todavia não só acceita essa doutrina
+contradictoria no seu mesmo opusculo, mas, além disso, acceita-a depois
+de affirmar a sua impossibilidade, para desta inferir contra mim a
+continuação na monarchia ovetense-leonesa da servidão wisigothica. Se os
+serviços pessoaes alheios ao cultivo da gleba importavam forçosamente a
+não-adscripção, é necessario confessar que a adscripção, cuja existencia
+o sr. Muñoz crê descubrir ligada com quaesquer encargos de serviço
+pessoal ao senhor, é um sonho, e que os documentos que se referem a esse
+estado de cousas, ou são falsos, ou se hão de entender, custe o que
+custar, de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou aos captivos
+sarracenos.
+
+Na _Colleccion de Fueros Municipales_[89] publicou o sr. Muñoz dous
+interessantes documentos sem data, mas que parecem do seculo IX,
+relativos aos encargos pessoaes dos servos originarios. A estes
+documentos se reporta igualmente no seu opusculo para abonar a these que
+estabelece da existencia simultanea de adscriptos e de escravos
+originarios. É o primeiro uma memoria dos serviços a que era obrigada
+para com a sé de Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon: é o
+segundo uma memoria especial das obrigações dos servos de Pravia, logar
+ou aldeia incluida no mesmo territorio de Gauzon. Na _Colleccion_ vê-se
+que as idéas do sr. Muñoz fluctuavam ainda. Estas duas memorias
+suppõe-nas elle ahi relativas indistinctamente aos servos da sé ovetense
+residentes naquelle territorio, quer adscriptos, quer não: no
+opusculo[90] suppõe-nas, porém, relativas exclusivamente aos
+não-adscriptos, isto é, aos servos de raça, que, segundo a sua doutrina,
+continuaram a ser na monarchia néo-gothica de condição identica á dos
+servos do VI e do VII seculos.
+
+Permitta-me, todavia, o sr. Muñoz pensar que se houvera reflectido mais
+detidamente nestes documentos elles o teriam, talvez, conduzido a
+diverso resultado. Suppondo que se refiram a servos que, no seu
+entender, equivaliam a cousas, e de que seu antes dono que senhor podia
+dispôr livremente, a propria existencia dessa especie de memorias sería
+incomprehensivel. Na idade media não se escreviam cousas absolutamente
+inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam, e até a materia da
+escriptura era assaz rara. Ora nada mais completamente inutil do que
+esses _cobrinellos_ ou ementas, dada a theoria do sr. Muñoz. Para que
+escrever n'um pergaminho: _a familia de fulano de tal aldeia ou granja_
+(villa) _é obrigada a tal serviço_? Pois uma familia de escravos, que
+pode ser empregada a bel prazer do senhor nos mais oppostos misteres
+dentro do mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia, como um animal
+domestico; que por arbitrio delle pode mudar de domicilio quando isso
+convier; que, em summa, pode collectiva ou individualmente ser vendida,
+escambada, doada; uma tal familia, digo, tem acaso obrigações
+determinadas, de que seja necessario conservar a memoria para o futuro?
+De que serve declarar a granja, o villar, o casal onde cada uma dessas
+familias reside, se, no dia seguinte ao da redacção da ementa, o senhor
+pode achar mais conveniente outra distribuição dos seus escravos? Apesar
+da facilidade com que hoje se escrevem cousas inuteis, não se reputaria
+louco o proprietario que escrevesse e archivasse a seguinte memoria: _A
+raça do cavallo N. tem de conduzir madeiras; a raça do touro_ _N. tem de
+lavrar taes terras; tal vehiculo tem de servir de transporte a tal
+objecto; tal alfaia é destinada a tal uso_?
+
+Na minha opinião, o que estas memorias provam é o mesmo que provam
+directa ou indirectamente todos os documentos que se referem á condição
+ou aos encargos dos servos originarios, ou homens de creação: é que
+estes estão unidos a certos predios indissoluvelmente; que desse
+complexo do homem e do predio o senhor tem de auferir prestações
+agrarias e serviços determinados. Nesta hypothese o _cobrinellum_ é uma
+cousa racional. A _casata_, isto é, a familia que vive n'uma certa
+choupana ou grupo de choupanas, (_casa_) tem de satisfazer, de geração
+em geração, perpetuamente, aquelles encargos. Os enlaces inevitaveis com
+outras familias podem produzir complicações de direitos entre diversos
+senhores, mas o _cobrinellum_ ou ementa particular de cada um servirá
+para os deslindar, indicando os serviços, independentes das prestações
+agrarias, que essas familias devem, _debent_. Esta idéa de dever que se
+manifesta nos documentos presuppõem a do direito. O escravo não tem
+deveres; porque as _cousas_ são incapazes delles. Nos proprios tempos
+barbaros dever e direito são inseparaveis; porque as duas idéas são
+forçosamente correlativas.
+
+Conforme o que n'outro logar adverti, a adscripção não era de feito
+simplesmente uma grande restricção da liberdade; importava tambem
+vantagens, as de uma especie de co-propriedade do servo colono na sua
+gleba. O sentimento do servo de gleba devia ser analogo ao do camponês
+russo dos nossos tempos. «No momento em que os servos separados da
+terra--diz o marquez de Custine--vissem vendê-la, arrendá-la, cultivá-la
+independentemente delles, amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os
+despojavam _dos seus bens_[91]. Do mesmo modo que na Russia, onde se
+caminha da barbaria para a civilisação, nas origens barbaras da
+monarchia néo-gothica a adscripção como regra succedeu naturalmente á
+servidão pessoal, e a servidão da terra cultivada por um colono
+pessoalmente livre succedeu á adscripção nos seculos XII e XIII, como me
+persuado que demonstrei no meu livro. Suppôr que da escravidão se passou
+de salto á liberdade pessoal affigura-se-me a supposição de um
+impossivel historico.
+
+Effectivamente: como achamos mais geralmente estabelecido o colonato nos
+seculos XII e XIII? O colono é _obrigado_ a morar no predio que cultiva,
+mas não é forçado a isso. Se delle sai, não lhe é licito cultivá-lo;
+perde-o; não o reconduzem, porém, violentamente a elle. A união do homem
+á terra subsiste, mas essa união não é indissoluvel. A liberdade pessoal
+nasceu. Entre esta situação e a do homem-cousa, do escravo, ha um
+abysmo. Como se transpôs? O meio principal consistiu na servidão da
+gleba. O homem-cousa foi-se transformando em _pessoa_ serva: a pessoa
+serva em pessoa livre; mas ficou ainda adscripta na qualidade de colono.
+Para ser plenamente pessoa livre precisava de desaggregar de si esta
+qualidade; de divorciar-se da gleba, a que aliás o prende esse amor
+ardente do homem de trabalho ao solo que cultiva. E que importava, se
+_podia_ fazê-lo? É por isso que disse no meu livro que a servidão desceu
+do homem para a terra. Depois, lentamente, é que veio o colonato na sua
+fórma quasi definitiva: o laço unico que liga o colono é a solução do
+canon e a prestação dos serviços pessoaes ao já não _senhor_, mas
+_senhorio_. Depois, finalmente, chegou-se á formula definitiva: os
+serviços pessoaes ou desappareceram ou poderam ser substituidos, á
+vontade do colono, pela solução de um _quantum_ que os representasse.
+Desde este momento o colonato não conteve mais em si elemento algum que
+repugne ás nossas idéas actuaes de direito, e nem sequer ás da economia
+politica.
+
+Eu cri ver a liberdade humana despontando tenue nos horisontes da vida
+do povo desde os tempos wisigothicos. Para o sr. Muñoz a noite profunda
+da escravidão durou nesses horisontes até a fatal jornada do Guadalete.
+E não só, na sua opinião, durou até aquella epocha, como tambem
+subsistia ainda com todo o peso das suas sombras no seculo XI. Mas em
+que periodo collocar a transição para a liberdade pessoal dos seculos
+XII e XIII, cuja existencia demonstrei como facto predominante no
+colonato dessa epocha, se não for no estado dos servos originarios da
+monarchia leonesa? Se assim não houvera sido, singular excepção á lei de
+desenvolvimento gradual e constante do progresso humano sería a historia
+da Peninsula durante quatro seculos!
+
+
+
+
+VI
+
+
+O sr. Muñoz contrapõe ainda á minha opinião varios factos, que entende
+provarem ser o estado dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo e
+Leão. Um delles é não ter o servo representação em juizo, nem poder
+servir de testimunha, havendo outro meio de prova.
+
+De se me oppôr este facto parece poder inferir-se ter eu affirmado em
+alguma parte que o servo se convertera em homem plenamente livre na
+monarchia leonesa. Nesta hypothese a objecção poderia parecer plausivel,
+ainda que realmente o não seja; porque não se segue da plena liberdade
+do individuo, em qualquer estado social, a necessidade positiva de ser
+igual em direitos, ainda civis, a todos os individuos livres. O que,
+porêm, affirmei, e o que julgo poder continuar a affirmar é que a
+servidão mais ou menos absoluta dos wisigodos se tornou na monarchia
+néo-gothica em servidão da gleba, e que esta modificação foi um grande
+passo para a emancipação das classes populares. Se o servo não podia
+desaggregar-se da gleba, é evidente que a gleba tambem não podia
+desaggregar-se do servo, e que desse estado resultava para elle uma
+especie de co-propriedade de facto, que, por indestructivel, creava um
+direito positivo. O alcance deste direito era tal que as suas
+consequencias, na successão dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais
+cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram. Eis o que eu
+estabeleci. Objectivamente, a existencia da pessoa civil resulta da
+manifestação da sua capacidade juridica, embora essa manifestação seja
+incompleta. Entre os romanos, o servo considerava-se como cousa, porque
+objectivamente era incapaz, não de um ou de outro direito, mas de todos
+elles, e por isso perdia a personalidade: nas sociedades modernas,
+porêm, o privilegio, a jerarchia, a idade do homem, o seu estado physico
+ou moral produziram sempre e produzem ainda differenças de direitos, até
+civis, que nem por isso destroem a personalidade de ninguem. Fosse o
+poder publico, fosse o proprio adscripto que podesse invocar o principio
+da adscripção para não ser violentamente separado da gleba nativa; fosse
+o costume, a opinião, ou a lei que sanctificasse a união da terra com o
+seu cultor, o que é certo é que se invocava, sanctificava e mantinha um
+direito, uma vantagem importantissima do adscripto. Fosse qual fosse a
+dependencia deste do respectivo senhor, a sua personalidade existia.
+
+Assim, quaesquer que fossem as restricções que houvesse a respeito dos
+servos no systema judicial desde o seculo VIII até o XII, essas
+restricções nem provam contra a personalidade objectiva dos servos, nem
+importam á adscripção ou não adscripção. Sobre aquelle systema judicial
+e sobre o papel que os servos representavam nos pleitos poderia
+accrescentar aqui algumas ponderações que me parece mereceriam a
+attenção do sr. Muñoz, mas que me levariam mais longe do que comportam
+as dimensões deste pequeno trabalho, e que seriam sobejas para o fim que
+me proponho. Deixando, pois, de parte questões agora inuteis, venhamos a
+outros factos juridicos em que o sr. Muñoz vê a morte da personalidade,
+e que evidentemente não provam o que elle pretende, antes em parte
+demonstram que do mais ou menos incompleto dos direitos civis em
+individuos desta ou daquella classe nunca se poderá deduzir a
+escravidão, a não-personalidade, a suppressão absoluta desses direitos.
+
+«Competia ao dono sómente--diz o sr. Muñoz--reclamar a indemnisação do
+damno padecido pelo servo como cousa de sua propriedade[92].» Os
+documentos, aliás numerosos, em que esta affirmativa póde estribar-se
+não servem de modo algum para dirimir a contenda; porque para provarem a
+não-personalidade dos servos e a sua não-adhesão á gleba (suppondo que o
+facto o provasse) cumpria mostrar que elles se referiam aos servos
+originarios, e não a escravos captivos. Admittindo, porêm, que taes
+documentos se refiram a servos originarios, essa concessão de nada
+servirá para revalidar a opinião do sr. Muñoz. A representação pelo
+senhor não se limitava ao escravo, e nem mesmo a este e ao servo de
+gleba: estendia-se a individuos livres collocados na dependencia
+juridica de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes individuos eram
+cousas; não tinham personalidade?
+
+O sr. Muñoz estabeleceu excellentemente no seu opusculo[93] a natureza
+da maladía. O malado era o homem livre, que se collocava n'uma especie
+de vassalagem para com seu senhor adoptivo, e esta especie de relações
+provei eu que eram inteiramente pessoaes e independentes do caracter de
+colono, situação em que o malado podia estar em relação a outro senhor,
+bem como mostrei a transmissão da maladia de paes a filhos[94]. A
+reparação, porêm, dos damnos feitos aos malados revertia ainda no seculo
+XI em beneficio do patrono[95]. Admittida a doutrina estabelecida depois
+pelo sr. Muñoz, esta jurisprudencia provaria contra elle proprio;
+provaria que o malado, longe de ser, como tal, homem livre, era apenas
+uma cousa, apenas uma propriedade do _dominus_.
+
+Como os malados, os solarengos (solariegos) eram colonos livres. Di-lo o
+sr. Muñoz, e com elle dizem-no os monumentos. Todavia nós lemos no Foro
+Velho de Castella[96]: «_Ninguem deve pousar nem entrar por força em
+casa de nenhum solarengo, e se alguem o fizer deve pagar 300 soldos ao
+senhor, de quem for o solar, e o damno em dobro ao lavrador que recebeu
+o aggravo_». Nos foraes do typo de Salamanca lemos tambem: «_Se alguem
+matar o creado de qualquer vizinho, receba este a multa do homicidio. O
+mesmo é applicavel ao seu hortelão, ao caseiro que lhe paga quartos, ao
+seu moleiro e ao seu solarengo_[97]».
+
+A simples relação de vassalagem e clientela produzia ás vezes os mesmos
+effeitos. Assim, em alguns desses foraes do typo de Salamanca se estatue
+tambem que _se forem assassinados homens que alguem tenha nas suas
+herdades, ou que sejam seus vassalos pertencerá ao senhor a multa do
+homicidio_[98].
+
+Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor ou patrono havia a
+multa dos crimes commettidos contra os seus dependentes, sem que d'ahi
+se possa nem por sombras inferir que a dependencia do cliente, do
+vassalo, do malado, do solarengo ou do creado fosse a da escravidão.
+Nada direi acerca de o sr. Muñoz qualificar a _calumnia_, a multa
+judicial, _de compensação pecuniaria imposta como pena ao matador_. O
+sr. Muñoz sabe perfeitamente que não era essa a indole de taes multas:
+foi uma phrase inexacta que lhe escapou na rapidez da composição, como
+talvez me terão escapado a mim outras analogas. Mas o que não posso
+deixar de observar é uma circumstancia que prova como os espiritos mais
+elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se quando
+subjugados por um preconceito. Possuido da idéa da escravidão dos servos
+originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia leonesa, o sr.
+Muñoz, ao passo que viu dimanar a não-personalidade do servo do direito
+do senhor ás multas dos crimes perpetrados contra elle, não viu,
+buscando estribar-se em documentos, que o primeiro que citava, tirado de
+um chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a refutação
+peremptoria da sua doutrina. Este documento do anno 940 é uma carta ao
+mesmo tempo de _agnição_ e de _incommuniação_, em que Pelagio
+_incommunía_ os bens que tinha em certas aldeias a D. Ilduara e a seus
+filhos, por elle haver com uns clientes seus espancado por tal modo
+Froila, _junior_ de D. Ilduara, que o espancado morrera, e Pelagio, não
+podendo talvez pagar a D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria
+ao expediente de lhe _incommuniar_ aquelles bens[99]. Mas Froila era um
+_junior_, colono da mais humilde classe, porêm livre. O texto das cortes
+de Leão de 1020 e a sua antiga versão em vulgar não consentem que se
+interprete de outro modo a palavra _junior_: nisto o sr. Muñoz está
+perfeitamente de acôrdo comigo no seu commentario áquelle celebre
+monumento legislativo[100]. Como, pois, se invoca um diploma que
+formalmente contradiz a doutrina que é destinado a sustentar?
+
+
+
+
+VII
+
+
+Os consorcios entre individuos das classes servis offereciam varias
+hypotheses juridicas: o servo podia casar com uma serva do mesmo senhor,
+ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum: o marido podia ir
+viver na residencia anterior da mulher, ou a mulher na residencia
+anterior do marido: materialmente, essas translações de domicilio podiam
+occorrer com licença do senhor ou sem ella. Estes diversos factos
+influiam necessariamente nas relações do senhor e do servo. Restam em
+Portugal e em Hespanha bastantes documentos de que elles se davam, e de
+que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades que d'ahi
+procediam. Achamos contractos, inqueritos, memorias particulares,
+sentenças, em que se previnem, se memoram, ou se remedeiam as
+consequencias dessas varias hypotheses em relação aos direitos dos
+senhores, e em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se haverem dado
+desde o VIII até o XII seculo. Para occorrer aos conflictos de
+interesses e de direitos, vê-se dos mesmos documentos que se recorria á
+divisão das familias. Em que consistia esta divisão? O que é que se
+passava na realidade?
+
+O desacôrdo entre mim e o sr. Muñoz já se vê que deve ser completo na
+apreciação dos documentos relativos a semelhante assumpto. Elle vê a
+escravidão como condição geral dos individuos da classe servil do seculo
+VIII ao XII: eu vejo-a só em relação aos captivos sarracenos, e a
+servidão da gleba em relação aos _homines de creatione_, aos _servi
+originales_. N'uma nota do meu livro[101] mostrei, segundo creio, que os
+documentos com que elle pretendera provar que os filhos do servo e da
+serva de differentes senhores se dividiam entre estes[102] se deviam
+entender de um modo diverso. Na minha opinião, o que se dividia eram os
+serviços pessoaes, e em certos casos (como na incerteza de pertencer a
+um ou a outro senhor o dominio da gleba habitada pelo homem de creação)
+as prestações agrarias. Em relação ás glebas possuidas de paes a filhos
+pelas familias servas, a minha theoria era e é que o _dominio_ e o _uso_
+de qualquer desses predios se moviam em duas espheras: que o _dominio_,
+manifestado, traduzido materialmente na percepção das prestações
+agrarias e na exigencia de serviços, era a propriedade do senhor;
+constituia o objecto de uma grande parte desses milhares de contractos
+do seculo VIII ao XII que restam nos archivos da Peninsula; que o que se
+vendia, doava, escambava mais ordinariamente era o direito a haver dos
+servos, dos _juniores_, dos malados, dos solarengos, do homem de
+trabalho, em summa, ingenuo ou não ingenuo, certas prestações agrarias e
+certos serviços pessoaes, que nas glebas servis derivavam da duplicada
+servidão do homem e da terra a que estava unido, e que na herdade ou
+casal do peão (_junior_), na maladia, no solar, derivavam de um
+contracto voluntario, tacito ou expresso; que as prestações e os
+serviços do adscripto, representando a renda da terra e a obrigação
+servil do individuo nella incorporado, eram duas cousas que facilmente
+podiam distinguir-se quando por consorcios, ou por outra qualquer
+eventualidade, o direito ás prestações da gleba e aos serviços do homem
+ou da familia vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios
+(_domini_) diversos; que, assim distinctos, tanto aquellas prestações,
+como aquelles serviços podiam não só affastar-se, unir-se de novo, mudar
+de proprietario separadamente por toda a especie de transmissão, mas até
+fraccionar-se em si mesmos ou accumular-se, sem que por isso mudasse a
+condição do individuo que usufruia o predio, quer como adscripto, quer
+como colono livre.
+
+Não sei se varios documentos que o sr. Muñoz cita, logo no principio do
+seu opusculo[103], provam, como elle pretende, que as palavras _servus_,
+_homo_, _creatio_, _familia_ se applicavam indistinctamente aos servos,
+ás familias da mesma origem, aos adscriptos, e não poucas vezes aos
+homens livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem. Não vem
+isso para esta questão. O que sei é que mostram, como muitos outros, a
+verdade da precedente theoria, por ser ella unicamente que os explica.
+Assim, lemos alli que em 934 Eximina doou a aldeia ou granja de Malares
+ao mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e pertenças, _e com todos
+os seus homens, assim servos como livres, que serviram na mesma aldeia
+no tempo de meus paes e avós_; lemos que em 1016 o mesmo mosteiro fez um
+escambo com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario com as suas
+dependencias e _com a sua creação, servos e libertos e homens livres,
+quantos servem na mesma aldeia_; vemos que na doação de certas aldeias
+ao mosteiro de S. Salvador, em 932, se diz doarem-se _com a familia,
+libertos e pessoas livres (que façam) ao dicto mosteiro e aos dictos
+senhores o serviço que costumavam fazer_. Como explicar doações e
+escambos de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente com os de
+servos e com os das aldeias em que tantos estes como aquelles moravam,
+se entendermos esses documentos ao pé da letra? Não é evidente que se
+tracta das prestações agrarias, que pagavam tanto as glebas servis, como
+os predios colonisados por homens livres, e dos serviços que tanto os
+adscriptos como os ingenuos, forçadamente uns e por contractos
+espontaneos outros, eram obrigados a fazer? Não vemos, até, no 1.^o
+documento que os individuos de ambas as categorias são, sem distincção,
+_herdeiros_, uns nos predios colonisados, outros nos predios de
+adscripção, porque os serviços que delles devem uns e outros vem de
+tempos remotos: _tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam
+deservierunt in vita aviorum et parentum meorum_?
+
+A hereditariedade do servo na gleba, consequencia forçosa da adscripção,
+eis, como já disse n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula,
+desde o seculo VIII até o XII, pelo homem de trabalho, pelo antigo
+escravo, para a liberdade. Quando o artigo VII do concilio ou cortes de
+Leão de 1020 diz:--_Ninguem compre_ a herdade do servo da igreja, do rei
+ou de alguem. _Quem a comprar perca-a e o que deu por ella_--faz-nos
+recordar a doutrina parallela do codigo wisigothico[104]. Mas ha na lei
+de 1020 duas palavras que assignalam um abysmo entre as duas
+legislações: _haereditatem servi_, phrase que seria monstruosa no seculo
+VII, mas que no XI indica apenas um facto assás trivial para exigir
+providencias que o regulem e limitem. _Haereditas_ é nas actas daquella
+assembléa, como em geral nos documentos das Hespanhas, o _hereditagium_
+de além dos Pirenéus; é o predio possuido de paes a filhos, o predio em
+que se succede por herança. O servo ligado á gleba sabe que, quando
+morrer, ficarão ahi os proprios descendentes; porque tambem sabe que
+elles e a gleba mutuamente se pertencem. Nas palavras _herdade do servo_
+está resumida a historia de uma transformação social.
+
+Que oppõe o sr. Muñoz a um facto que as leis, os contractos, as decisões
+forenses conspiram em mostrar não só como existente, mas tambem como
+universal em relação a todos os servos originarios ou homens de creação?
+Uma difficuldade practica. Suppõe que o servo de uma gleba poderia ir
+casar com uma mulher de uma gleba remota e de diverso senhor. Prestações
+agrarias não as podia pagar, porque a terra era de outro dono; serviços
+pessoaes não os podia prestar, pela distancia em que vivia. Assim seus
+filhos. Dividindo-se estes materialmente, e levando o senhor do pae
+metade delles, emquanto a outra metade ficava na gleba materna, aquelles
+podiam ter o destino que conviesse a seu dono se eram escravos, ser
+repostos na gleba paterna se fossem de raça adscripta. D'aqui a
+necessidade de entender os documentos no seu sentido apparente, e de
+crer que a praxe de se dividir a prole dos servos de dífferentes
+senhores era a geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando a classe
+servil aos bens semoventes e aos moveis, destruia a personalidade dos
+individuos de semelhante classe, escrava em tal hypothese, situação que
+o opusculo do sr. Muñoz tende a provar ser a dos servos desde o VIII até
+o XII seculo.
+
+Mas este argumento pécca pela sua propria indole. Inferir que não
+existiu, ou pelo menos que não foi geral e predominante certa
+instituição, de ter ella inconvenientes, que aliás não existiriam
+predominando uma instituição diversa ou contraria, e concluir d'ahi que
+foi esta a que existiu ou predominou, parece-me que seria um pessimo
+raciocinio na historia de épochas e de paizes altamente civilisados,
+quanto mais na de eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro. Que
+havia em Oviedo e Leão desde o VIII seculo até o XII no direito publico,
+na administração, no estado das pessoas, nas relações civis, que fosse
+absoluto, uniforme, sem excepção na practica? Que condições sociaes
+havia que não fossem incompletas, antinomicas, obscuras sob um ou sob
+outro aspecto? Que foi a idade média, senão a infancia dolorosa e longa
+da civilisação moderna; que foi, senão uma serie de experiencias e
+tentativas de organisação das nações, que surgiam do singular consorcio
+da sociedade romana, corrupta e dissolvida, com as aggregações quasi
+selvagens das hostes e das tribus germanicas, mixto tornado ainda mais
+confuso na Peninsula pelo influxo da cultura arabe? Que cousa mais
+enredada, mais desharmonica, mais cheia de soluções difficeis do que a
+vida social d'então? Sem duvida que certas leis supremas, que regem a
+humanidade em qualquer situação que ella se ache, actuavam então entre
+os povos, como sempre, e as paixões impelliam os individuos do mesmo
+modo e produziam effeitos identicos ao que produzem em todos os tempos;
+mas disto á perfeição, á harmonia das instituições vai uma distancia
+immensa.
+
+Acceitando, porêm, a doutrina do sr. Muñoz sobre a escravidão absoluta
+dos servos originarios ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de
+applicação practica que elle vê na existencia da servidão de gleba? A
+hypothese que lembrou póde modificar-se. Supponhamos que o escravo, ido
+para outro logar e ahi casado com uma escrava de diverso dono, tinha um
+filho só. Como se dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos
+que tinha um filho e uma filha. Á luz a que os escravos eram
+considerados, isto é, como animaes de carga, como machinas de trabalho,
+como cousas, emfim, o sexo dos individuos representava forçosamente um
+valor diverso. A quem cabia o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos a
+união infecunda. Conforme quer o sr. Muñoz, o meio ordinario de reparar
+a perda do escravo ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba de
+um senhor differente, era a repartição material dos filhos. Na falta
+destes, resignava-se, acaso, o senhor do servo fugido a perder os
+serviços delle, porque, não podendo dissolver-se o matrimonio e vivendo
+a familia escrava a grande distancia, não era possivel exigi-los?
+
+A lei wisigothica, porêm, ainda em vigor na monarchia néo-gothica,
+estatuia a respeito destes consorcios, não devidamente consentidos,
+entre servos de differentes donos uma regra clara e exequivel. Aquelle
+dos dous senhores que se aproveitara desse acto irregular, que se
+appropriara por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia os dous
+conjuges e a respectiva prole em beneficio do que fora espoliado[105].
+Se a situação dos servos originarios não tinha mudado, porque não se
+applicava a lei? Que a divisão das familias, quer como a entende o sr.
+Muñoz, quer como eu a entendo, constituia já a jurisprudencia ordinaria
+do seculo XI é uma cousa de que os documentos citados por elle, e outros
+que poderia citar, não permittem que se duvide. Porque se oblitterou a
+lei wisigothica nesta parte? É evidentemente porque, tendo mudado a
+situação dos individuos a que ella era applicavel, devia buscar-se um
+meio de reparar a offensa do direito sem tractar os servos como bens
+semoventes.
+
+O direito dos senhores das glebas, ás quaes os servos pertenciam, sobre
+as prestações agrarias das mesmas glebas e aos serviços dos individuos
+ou familias a ellas adscriptos não offereceria realmente os
+inconvenientes practicos que suscitaria o systema supposto pelo sr.
+Muñoz. Já notei que este argumento é máu; mas é certo que nem esse máu
+argamento favorece a sua opinião. O servo, que se desaggregava da gleba
+sem consentimento do senhor, podia ser reconduzido violentamente a ella.
+Este era o principio. Mas se elle lhe fizesse os serviços pessoaes que
+d'antes fazia, parece que devia ser facil o chegar-se a uma transacção,
+a um acôrdo. A gleba lá ficava cultivada pelo resto da familia adscripta
+e produzindo as mesmas prestações agrarias, ao passo que o individuo
+desempenhava os mesmos deveres pessoaes. Suppondo que este fosse residir
+a grande distancia (hypothese rarissima n'uma epocha em que não existia
+a menor facilidade de communicações) esses serviços podiam ser
+transformados em prestações em generos, ou em moeda. Se o servo se
+casava e tinha filhos, metade dos serviços da nova familia pertenciam ao
+seu antigo senhor, obrigação herdada, que podia ser satisfeita do mesmo
+modo. Era um systema complicado, e que daria, como dava, origem a mais
+de um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece não offereceria
+hypotheses insoluveis como a theoria adoptada pelo sr. Muñoz.
+
+Na _noticia_ dos homens do mosteiro de Cartavio publicada na _Colleccion
+de Fueros_[106] lê-se _in Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis
+mediis... in Mirites... Savaricum integrum... in Mintes... Petrum Vistiz
+integrum cum suis filiis mediis_, etc. Temos, pois, nos proprios
+documentos publicados pelo sr. Muñoz a prova de que um individuo morador
+em certa granja ou aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente
+ao dono dessas glebas. É uma das hypotheses que eu figurei, e que o sr.
+Muñoz nos não diz como se resolveria no seu systema.[107]
+
+A interpretação que dou aos documentos que se referem á divisão dos
+servos originarios, e que eu supponho geralmente adscriptos, é tão
+obvia; esses documentos provam tão pouco que a divisão dos membros da
+familia serva se haja forçosamente de entender como uma divisão
+material; era tão possivel moverem-se os individuos, em relação ao
+dominio, n'uma esphera diversa daquella em que se moviam as prestações
+agrarias e os serviços pessoaes; a confusão da terra com o homem, da
+obrigação com a pessoa a quem ella imcumbia, era tão vulgar na linguagem
+juridica, que o proprio sr. Muñoz adopta o meu systema de interpretação
+a proposito de documentos analogos nas expressões áquelles com que
+pretende refutar o mesmo systema. Falando de diplomas, em que se faz
+doação, venda, ou permutação de solares incluindo os solarengos,
+accrescenta: _Obstam muito pouco alguns documentos de venda, doação e
+troca feitas junctamente com os solarengos. Não quer isto dizer que se
+vendessem as pessoas; mas sim os tributos e serviços que estas tinham
+obrigação de prestar._ Se a linguagem dos documentos se póde tomar como
+figurada em relação aos solarengos, porque não se poderá entender do
+mesmo modo em relação aos servos originarios ou homens de creação? Como
+se pretende deduzir dessa linguagem um argumento para provar que estes
+eram vendidos, escambados, ou doados como cousas, como bens semoventes,
+e sem personalidade, não se permittindo tirar igual inferencia a
+respeito dos solarengos?
+
+A questão do estado das classes servas na monarchia néo-gothica
+comportava maiores desenvolvimentos. Esses desenvolvimentos não cabem,
+porêm, neste breve opusculo e na forma de publicação a que é destinado:
+por isso pararei aqui. Permitta-me o sr. Muñoz y Romero que repita,
+acabando, as expressões de sincero apreço pelo seu alto merito
+litterario, e pelos seus esforços para derramar luz nas trevas da nossa
+idade media. O que ha de abnegação, de zelo pela sciencia, de forças
+intellectuaes consummidas em desbravar os desvios por onde o sr. Muñoz
+se embrenhou só o conhece aquelle que nesse duro lavor deixou passar os
+melhores dias da vida, sem saber o que a mocidade tem de gozos, a idade
+viril de ambições, e a velhice de vaidades, e cuja recompensa unica será
+escrever-se-lhe na campa: _Aqui dorme um homem que conquistou para a
+grande mestra do futuro, para a historia, algumas importantes verdades._
+
+
+
+
+INDICE
+
+
+
+*A batalha de Ourique*
+
+
+I Eu e o Clero 3
+II Considerações pacificas 35
+III Solemnia Verba 1.^a 72
+IV Solemnia Verba 2.^a 99
+V A Sciencia arabico-academica 185
+
+
+*Do estado das classes servas na Peninsula*
+
+
+I 237
+II 245
+III 263
+IV 265
+V 285
+VI 317
+VII 318
+
+
+
+
+Notas:
+
+[1] Sermo De Convers. S. Paul.
+
+[2] Epistolar. Epist. 152.
+
+[3] Mem. de D. Fr. Caetano Brandão, T. II, p. 411.
+
+[4] Concil. Trident. Sess. 25, Decr. de Purgat.
+
+[5] Concil. Colon I, tit. 6 c. 25.
+
+[6] Van-Espen, Jus Eccles. P. 1 tit. 22 cap. 10.
+
+[7] Gesch. der Italienisch. Staat. IV B., 4 kap. § 6.
+
+[8] Vol. 1 Nota 3 p. 466 e segg.
+
+[9] S. P. Damiani Epistol. ad Sum. Pontif. L. 1 Epist. 16.
+
+[10] Greg. VII Epistolar. Liv. 8 Epist. 21.
+
+[11] De Considerat. L. 3 c. 3.
+
+[12] Ibid. Liv. 4 c. 4.
+
+[13] Um grande numero dessas passagens e cantigas, relativas aos seculos
+XI, XII e XIII, acham-se colligidas na Historia dos Hohenstaufen de
+Raumer, Vol. 6, pag. 178 e segg.
+
+[14] Scriptores Rer. Francicar., T. XVII p. 558.
+
+[15] Art de Verif. les Dates, vol. 1 pag. 299.
+
+[16] Matth. Paris, p. mihi 607 col. 2.
+
+[17] Chronic. pag. mihi 287.
+
+[18] Def. de la Declar. I. 6.
+
+[19] D. Hilar. Pictav., In Psalm. 53.
+
+[20] D. Gregor., Expos. in Job L. 8 c. 6, L. 13 c. 4.
+
+[21] Recordo-me de ler em a _Nação_ um communicado de Coimbra, assignado
+por um parocho, em que se me dizia que, se as assaduras da inquisição
+tinham acabado, cá estavam os bispos. O bom do homem ainda espera que os
+bispos de Portugal possam queimar gente. É uma doce illusão como
+qualquer outra.
+
+[22] «ne ab uberiori auctorum copia alliciamur, sed potiùs ab ipsorum
+merito et _gravitate_; multotiès enim fit, ut _gravis_, periti atque
+sinceri scriptoris auctoritas, etc.»
+
+Que diria um desses furiosos que crêm que o vocabolario dos prostibulos
+póde supprir os rudimentos da sciencia, e que me condemnou como
+ignorante por falar em _gravidade da historia_ em relação, não ao
+estylo, mas sim á materia, se ouvisse o venerando Mabillon falar na
+gravidade do historiador tambem em relação á essencia e não á forma, e
+isso duas vezes n'um unico paragrapho!! Chamava-lhe ignorantissimo. Oh
+clero português, clero português!
+
+[23] «Elle _ne craint que_ de n'être pas connue»: Fleury diz que, não a
+igreja, mas o proprio christianismo _teme_. Em Portugal a theologia das
+tabernas entende-o d'outro modo. É uma consolação ser impio e herege com
+o virtuoso prior de Argenteuil. Pobre igreja portuguesa.
+
+[24] Todas as pessoas mediocremente instruidas sabem o que quer dizer
+_theocratico_; mas o demente que escreveu estas blasphemias não sabe
+português, quanto mais grego. Fez uma phrase ridicula para introduzir
+ahi um vocabulo que os ignorantes não entendessem e que portanto
+admirassem.
+
+[25] Accentuado por causa das freiras que dizem missa. A ignorancia das
+freiras é a razão capital da accentuação nos livros rituaes, segundo o
+digno sacerdote que, por vingança, acceitou das _capellas_ o pio mister
+de me injuriar e calumniar sanctamente.
+
+[26] Nova Insistencia, etc., pag. 34.
+
+[27] Demonstração pag. 34.--Insistencia pag. 10.
+
+[28] Poucos annos antes, os embaixadores de D. Dinis tinham offerecido
+inutilmente ao pontifice uns artigos com o mesmo intuito, e contendo em
+substancia o mesmo que os de Pedro Escacho. Ahi nem uma palavra se diz
+sobre a acclamação em Ourique, em que tambem não fala nenhum dos
+chronicons coevos. Assim, a invenção da historia da acclamação póde
+fixar-se no principio do seculo XIV, tendo talvez em parte dado motivo a
+ella esta questão da desmembração da ordem de Sanctiago, negocio que foi
+assaz rudioso e importante. Veja-se a Historia de Portugal, Vol. I, pag.
+489 (Nota XVIII).
+
+[29] Estes chronicons estão publicados nos _Portugaliae Monumenta
+Historica_, Vol. 1, p. 26.
+
+[30] Tanto este como os dez paragraphos precedentes foram supprimidos
+nas edições avulsas das _Solemnia Verba_. Era uma digressão que pouco
+servia para rebater as opiniões adversas, e que entretanto affrouxava o
+cerrado da argumentação.
+
+[31] Os Cuidados Litterarios de Cenaculo, a Memoria de frei Joaquim de
+Sancto Agostinho sobre os codices d'Alcobaça, o Elucidario de Viterbo,
+as Observações de J. P. Ribeiro publicaram-se proximamente pelo mesmo
+tempo. Viterbo, frei Joaquim de Sancto Agostinho, Ribeiro eram
+_innovadores perigosos_ então, como eu o sou hoje. Cenaculo era um bispo
+erudito. Quantas palestras litterarias, quantas contendas oraes
+precederiam a publicação daquelles escriptos oppostos!
+
+[32] «à l'heure que je commence a dicter ce present escrit je suis en la
+soixante sexieme année de ma vie.» Petitot fá-lo nascido em 1426.
+Falleceu no 1.^o de fevereiro de 1502, segundo se deprehende da sua
+inscripção sepulchral, com 76 annos d'idade.
+
+[33] D'aqui vinha por certo o titulo de _conde palatino_ de que usava
+Vasco de Lucena, titulo que tanto tem feito scismar os nossos
+antiquarios.
+
+[34] Vejam-se as provas indisputaveis d'isto em Ribeiro, Observações de
+Diplomatica, pag. 79 e seg.
+
+[35] Et cette opinion je tiens de plusieures notables gens portugalois
+qui ont esté de ma congnoissance.
+
+[36] Pina, Chron. de D. João II, c. 15.
+
+[37] Bulla: _Ut saluti_ 5 febr. 13.^o Sixti IV.
+
+[38] Preafatae ecclesiae, a qua regiae dignitatis culmen accepisti,
+cuique annuum censum debes: Ibid.
+
+[39] Bulla: _Venerabilis frater_: 6 febr. 13.^o Sixti IV.
+
+[40] Carta de D. Alvaro de Bragança escripta de Castella a D. João II.
+(Ms. da Biblioth. R.)
+
+[41] Talvez seja gente de mais. Mas deixe v.. passar; porque isto era já
+estylo peninsular naquella epocha.
+
+[42] Jorn. de Coimbra, 1813, Abril, p. 310.
+
+[43] Memor. do R. Archivo, pag. 59.
+
+[44] Chancell. d'Aff. II. (M. 12 de For. Ant. N.^o 3).
+
+[45] Veja-se o alvará de D. Manuel, de 1502, no Liv. dos Privileg. de
+Sancta Cruz fl. 2, o doc. de 1458 a fl. 157 do mesmo Liv., o do L. 5 da
+Estremadura fl. 116 v. no Arch. Nac., etc.
+
+[46] Chron. dos Coneg. Regr., L. 9, c. 29.
+
+[47] Prodrom. ad refutat. Alcorani _passim_.
+
+[48] Uber die Länderverwaltung unter dem Khalifate (Berlim 1835)
+Schaefer, Gesch. Span. 3 Th. S. 145.
+
+[49] O _digno_ academico refere-se evidentemente á traducção de Moura;
+porque nem o commum dos leitores, que elle convida para lerem esses
+capitulos, entendem o arabe, nem o original tem capitulos, como se
+deprehende do prologo de Moura, e se vê das citações do texto arabe
+feitas pelo sr. Gayangos nas suas notas á versão inglesa de Al-Makkari.
+
+[50] Nesta classe, como em todas, ha excepções respeitaveis: falo em
+geral.
+
+[51] Dominac. de los Arab., P. 3 in fine.
+
+[52] Al-Khatib, Bibl. apud Casiri Bibl. Arab., T. 2, p. 216 e segg.
+
+[53] Abu-l-Feda, Annales Moslemici, T. 3, p. 359.
+
+[54] Al-Makkari (versão de Gayangos), Liv. 7 c. 5 e segg. L. 8 c. 1 e 2.
+Veja-se tambem a taboa chronologica a p. 89 dos Append. do 2 vol., e os
+extractos no livro _Kitabu-l-iktifá_ (Append. C. ad fin.). O reinado de
+Abu-Is'hák, sitiado em Marrocos pelos almohades, foi apenas nominal.
+
+[55] Chron. Gothor. ad aer. 1125-1155.
+
+[56] Chron. Conimbric, ad aer. 1155.
+
+[57] Roder. Tolet. Histor. Arabum, cap. 49.
+
+[58] Assaleh, versão de Moura, c. 43, 44, 45.
+
+[59] Ibid. c. 40.
+
+[60] Conde, P. 3, c. 33.
+
+[61] Casiri, T. 2, p. 218, col. 2.
+
+[62] España Sagr., 21, 373.
+
+[63] O nome mais geral nos auctores arabes é _Lamtuna_; mas Ibn-Khaldun
+(Gayangos, vol. 1, p. 408 nota _a_) chama-lhe _Lamtah_ e Leão Africano
+(Casiri, vol. 2, p. 219) _Lemta_.
+
+[64] A pag. 22 do opusculo diz-se que escrever _emir_ é erro do vulgo
+dos traductores em vez de _amir_ (o caso é serio), e a pag. 11 diz-se
+que em vez de _emir-el-muminin_ eu deveria escrever _emir el-muminina_.
+Em que ficamos? Em _emir_ ou em _amir_? Quanto a _muminina_, Gayangos,
+Casiri, etc. escrevem sempre _muminin_.
+
+[65] Gayang. vers. d'Al-Makkari, Vol. 2, p. 386
+
+[66] Abulfeda, Annal. Mosl., T. 2, p. 471.
+
+[67] Versão francesa de Pellissier et Rémusat p. 192. Ibn-Khalddun
+denomina frequentemente khalifas os imperadores almohades. (Gayangos,
+Vol. 2, App. D.)
+
+[68] Assaleh. c. 45. Neste capitulo fala-se muitas vezes no _califado_ e
+no _califa_ Abdelmumen.
+
+[69] Não é só a chronica de Affonso VII que refere a queda de Aurelia:
+os Annaes Toledanos referem-na igualmente.
+
+[70] O Karttás (titulo da historia d'Abdel-halim), é propriamente,
+segundo o testimunho de Haji-Khalfah, e conforme o que se lê em diversos
+exemplares da obra, escripto por Ibn-Abi-Zara, que viveu no seculo XIII.
+Ab-del-halim parece ter sido um copista, ou talvez um abbreviador.
+Veja-se a nota do sr. Gayangos ao L. 8, c. 2 de Al-Makkari.
+
+[71] Assaleh--vers. de Moura, c. 40 p. 182.
+
+[72] Chronica Adef. Imper. Praef. et § 64.
+
+[73] Sigo a paginação do opusculo, tirado á parte depois d'impresso na
+_Revista de Ambos-Mundos_. Um exemplar delle que possuo, devo-o á
+urbanidade e benevolencia do sr. Muñoz, que teve a bondade de m'o
+remetter.
+
+[74] Em documentos do seculo XIII vemos ainda a designação de servos
+applicada aos escravos mouros. N'um testamento de 1232 são legados ao
+mosteiro d'Alcobaça _sarracenos et sarracenas servos et servas_. Doc. de
+Alcobaça na Collecç. Especial, Gav. 81 na Torre do Tombo.
+
+[75] Hist. de Port., T. 3, p. 313 da 3.^a edic.
+
+[76] Hist. de Port., T. 3.^o, p. 255 (nota 4) 274 &c.
+
+[77] Esp. Sagr., T. 40, Append. 19.
+
+[78] Doc. de Moreira na Torre do Tombo, Collecç. Especial, G. 78.
+
+[79] Por exemplo, o 1.^o bispo de Coimbra depois da restauração,
+Paterno, que, sendo bispo de Tortosa e vindo por embaixador dos
+Beni-Huds de Saragoça a Fernando-magno, foi alliciado pelo alvasir
+Sesnando para acceitar o episcopado de Coimbra, o que fez alguns annos
+depois. _Qui suprafatus episcopus_ (diz o documento do Livro Preto da Sé
+de Coimbra que refere o facto) _eo tempore Tortuosane Urbis sedem
+tenebat, sed propter societatem paganorumofficium et ordinem suum minimè
+adimplere valebat_.
+
+[80] N'uma doação de 1083 á igreja de Vouséla (Livro Preto f. 144)
+mencionam-se entre outras alfaias _una casula tiraz et una dalmadiga
+tiraz_. O _tiraz_ era um estofo precioso de fabrica sarracena, de que
+usavam as pessoas principaes entre os mussulmanos, onde se liam bordadas
+orações do culto islamitico e sentenças de koran. Quando os sacerdotes
+da igreja de Arcozelo á qual tinham pertencido aquelles paramentos, ou
+os da de Vouséla, á qual se doaram, celebrassem, revestidos com elles,
+os officios divinos, os assistentes que não ignorassem a leitura do
+arabe poderiam ir misturando as preces da igreja com as do islamismo, e
+lendo as sentenças do koran, emquanto os celebrantes repetiam os textos
+do evangelho.
+
+[81] Gothorum ordinem... tam in ecclesia... quam in palatio... statuit:
+Chron. Albeld § 58.
+
+[82] Martim Moniz (genro do conde Sesnando e seu successor no governo de
+Coimbra) doa perpetuamente a João Gosendes os bens na villa de S.
+Martinho _que ibi obtinuit Cidel Pelagis in autondo de consule domno
+Sesnando_. (Livro Preto da Sé de Coimbra f...) Aqui _atondo_ significa
+serviço (_no serviço do conde Sesnando_) ou retribuição por serviço, mas
+temporaria, por isso que os bens se doam depois hereditariamente a
+outro.
+
+Documento hoje publicado nos _Portugaliæ Monumenta Historica, Diplomata
+et Chartæ_, Pars. 1.^o N.^o 770.
+
+[83] Pag. 7.
+
+[84] Pag. 12 e 13.
+
+[85] surda aure cum inimicis summi Dei amicitias conligamus, et
+placentes eis nostrae fidei derogamus--Quotidie opprobriis et mille
+contumeliorum fascibus obrupti, persecutionem nos dicimus non
+habere--Christianos contra fidei suae socios, pro regis gratia et pro
+vendibilibus muneribus et defensione gentilium praeliantes, non
+maledicimus nec detestamus, sed religiosos pro vero Deo certantes
+anathemate percutimus et infamamus--Nonne ipsi qui videbantur columnae,
+qui putabantur ecclesiae petrae... nullo cogente... Dei martyres
+infamaverunt? Nonne pastores Christi, doctores ecclesiae, episcopi,
+abbates, presbyteres, proceres et magnates haereticos eos esse publicè
+clamaverunt?--Dùm enim circumcisionem ob improperantium ignominiam
+devitandam... cum dolore etiam non medio corporis exercemus--Et dùm
+eorum versibus et fabellis mille suis delectamus, eisque inservire, vel
+ipsis nequissimis obsecundare etiam premio emimus... ex inlicito
+servitio et execrando ministerio abundantiores opes congregantes,
+fulgores, odores, vestimentorumque, sive opum diversarum opulentiam, in
+longa tempora nobis filiisque nostris atque nepotibus praevidentes,--ob
+honores saeculi fratres cum crimine regibus impiis accusamus,.. inimicis
+summi Dei ad occidendum gregem Domini gladium revelationis porrigimus,
+ducatumque eorum et ministerium ad ipsum facinus exercendum pecuniis
+emimus.--Nonne omnes juvenes christiani, vultu decori, linguae disserti,
+habitu gestuque conspicui, gentilitia eruditione praeclari, arabico
+eloquio sublimati, volumina chaldaeorum avidissimè tractant,
+intentissimè legunt, ardentissimè disserunt?--linguam suam nesciunt
+christiani, et linguam propriam non advertunt latini, ita ut omni
+Christi collegio vix inveniatur unus in milleno hominum numero, qui
+salutatorias fratri possit rationabiliter dirigere litteras, et
+reperitur absque numero multiplex turba qui eruditè chaldaicas verborum
+explicet pompas. _Alvar. Cordub. Indicul. Lumin. passim._
+
+[86] ille dixit quomodo fuit suo avolo Ezerag de Condeixa, et quando
+filarunt mauros Colimbria fuit ille Ezerag ad Farfon ibn Abdella et
+fecit se mauro et petibit XXX.^a mauros de arragaza et metivit illos in
+matos et dixit ad illos christianos de illas villas exite gente
+benedicta quia jam pace filavi cum mauros et exibant de illos matos et
+populabant illas villas et exiebant illos mauros de illos matos et
+levarunt eos ad Sanctaren et venundabant eos et fecerunt in illos VI
+haretas de argento et inderenzarunt illos ad Cordova cum carta de Farfon
+et cum isto ganato, et petivit illos molinos de Forma et alias villas
+multas et donavit illos. Almanzor: _Lib. Testamentor. f. 76 v._
+
+[87] Na freguesia de S. Martinho, aldeia de Valloura, districto de
+Aguiar de Pena, havia 3 casaes, cujos moradores, além de outros onus,
+tinham o seguinte: _et vadunt in mandatum ad Legionem, ut sciatur per
+ipsos quid facit rex legionensis_: Inquirições de 1220: Liv. 5 de D.
+Diniz f. 118 v.
+
+[88] Pag. 19 e 20.
+
+[89] Pag. 124 e 153.
+
+[90] Pag. 12.
+
+[91] La Russie, Lettre X.
+
+[92] Pag. 15.
+
+[93] Pag. 44 e segg.
+
+[94] Hist. de Port., T. 4, pag. 336 e 482.
+
+[95] Doação de Diogo Olidiz a Tructesindo Gutierriz da igreja de S.
+Marina: «damus ad vobis illa pro plagas et feridas malas que cemus
+(_sic_) ad vestros malados, et non abuimus unde illas pectare:» Doc.
+original do mosteiro de Moreira de 1075 no Arch. Nacional.
+
+[96] Liv. 1, Tit. 7, l. 2.
+
+[97] Qui conductarium alienum occiderit dominus ejus accipiat inde
+homicidium. Similiter de suo ortolano et de suo quartario et de suo
+molendinario et de suo solarengo.
+
+[98] Et homo de Nomam qui suos homines habuerit in suis hereditatibus,
+aut sui vassali fuerint, et aliquis illum mactaverit, suus senior
+colligat inde homicidium: For. de Numão de 1130.
+
+[99] ...... peccato impediente battivimus vestro junior, nomine Froila,
+cum alios meos galiasianes... et pervenit ipse Froila de ipsa badtedura
+ad mortem, et pro ipso homicidium abui vobis ad dare in judicato quinque
+boves, et pro ipsis quinque boves incommunio vobis pro medio &. Est. de
+las Person., pag. 15.
+
+[100] Collecc. de Fuer. Municip., pag. 130 e seg.
+
+[101] Hist. de Port., Vol. 3., Nota final XVI.
+
+[102] Collecc. de Fuer. Municip., pag. 126.
+
+[103] Pag. 2.
+
+[104] Liv. 5, tit. 4, l. 13.
+
+[105] Liv. 2, tit. 4, l. 5.
+
+[106] Pag. 160
+
+[107] A confusão, na phrase, entre o colono e o predio, tomados um pelo
+outro, confusão que sobretudo se deduz claramente das singulares
+expressões _homem inteiro_, _meio homem_, etc. apparece ainda ás vezes
+nos nossos monumentos do seculo XIII. Nas Inquirições da terra de Faria,
+feitas naquella epocha, lê-se, por exemplo: «S. Leocadia de Pedrafurada:
+homines de ista collacione solebant pectare vocem et calumniam, sed modo
+non pectant nisi quinque homines et medium qui dant annuatim singulas
+gallinas, et _medius homo_ dat mediam gallinam: et ista casalia... dant
+vocem et calumniam et singulas gallinas et duos, duos solidos, tribus
+vicibus in pedida, sed _medium casale_ medium forum facit. Inquir.
+d'Affons. III, L. 7, f. 14 v.
+
+
+
+
+Lista de erros corrigidos
+
+Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:
+
+
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | | Original | Correcção |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ |#pág. 21| a a que | a que |
+ |#pág. 36| aggresssões | aggressões |
+ |#pág. 50| encarnada | incarnada* |
+ |#pág. 106| esse invenção | essa invenção |
+ |#pág. 137| instinctos | intuitos* |
+ |#pág. 157| desprezados | desprezadas* |
+ |#pág. 160| de | do* |
+ |#pág. 171| as creança | as creanças |
+ |#pág. 187| giria | gira* |
+ |#pág. 191| pena | penna* |
+ |#pág. 249| ?uccessores | successores |
+ |#pág. 287| da | de* |
+ |#pág. 288| prudente | precedente* |
+ |#pág. 292| conpição | condição* |
+ | | | |
+ |#nota 80| celebran | celebrantes* |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+
+* correcções feitas com base na errata do próprio livro.
+
+Aspas foram adicionadas nos locais onde deveriam existir: (#pág. 50:
+delles.» Para)
+
+O número da nota de rodapé #55 (#pág. 202) encontra-se omitido na obra,
+tendo sido acrescentado neste e-book.
+
+Variantes da palavra "mussulmano" foram mantidas de acordo com o
+original.
+
+
+
+
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+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
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+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
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+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
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+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
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+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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@@ -0,0 +1,14140 @@
+<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd">
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+The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03, by
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03
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+Author: Alexandre Herculano
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+Release Date: November 30, 2009 [EBook #30566]
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+Language: Portuguese
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+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 ***
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+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was
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+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<div class="fbox"> <b>Nota de editor:</b>
+Devido &agrave;
+exist&ecirc;ncia de erros tipogr&aacute;ficos neste texto,
+foram tomadas v&aacute;rias decis&otilde;es quanto &agrave;
+vers&atilde;o final. Em caso de d&uacute;vida, a grafia foi
+mantida de acordo com o original. No final deste livro
+encontrar&aacute; a lista de erros corrigidos.<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita
+Farinha (Nov. 2009)
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h1>OPUSCULOS
+</h1>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox"><br />
+
+<h1>OPUSCULOS
+</h1>
+
+<h4>POR<br />
+
+<br />
+
+A. HERCULANO
+</h4>
+
+<h5>SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
+SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
+SOCIO CORRESPONDENTE
+DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
+DO INSTITUTO DE FRAN&Ccedil;A (ACADEMIA DAS
+INSCRIP&Ccedil;&Otilde;ES)
+DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
+DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
+</h5>
+
+<br />
+
+<div class="bbreak">
+<hr /></div>
+
+<h3>TOMO III
+</h3>
+
+<div class="bbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<h3>
+CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS
+</h3>
+
+<h4>
+TOMO I
+</h4>
+
+<br />
+
+<h4>LISBOA
+</h4>
+
+<h5>
+VIUVA BERTRAND &amp; C.<sup>a</sup>&#8213;SUCCESSORES,
+CARVALHO &amp;
+C.<sup>a</sup><br />
+
+Chiado, 78<br />
+
+<br />
+
+M DCCC LXXVI<br />
+
+</h5>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<hr />
+<div style="text-align: center;">Lisboa&#8213;Imprensa Nacional
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Contem este volume diversos escriptos sobre
+duas quest&otilde;es historicas. A primeira, que se refere
+&aacute;s tradi&ccedil;&otilde;es fabulosas
+&aacute;cerca da batalha de
+Ourique, quasi que n&atilde;o tem valor algum &aacute; luz da
+sciencia. Exp&ocirc;r semelhantes tradi&ccedil;&otilde;es
+era, por
+assim dizer, refut&aacute;-las, e perante a historia tal
+refuta&ccedil;&atilde;o seria de sobra. A segunda, relativa
+&aacute;
+situa&ccedil;&atilde;o das classes servas na Hespanha desde o
+VIII at&eacute; o XII seculo, versa sobre a legitimidade
+da solu&ccedil;&atilde;o que adoptei n'um dos mais difficeis
+problemas que se me offereceram ao escrever o
+terceiro volume da Historia de Portugal na epocha
+decorrida desde a funda&ccedil;&atilde;o da monarchia
+at&eacute; o fim do reinado de Affonso III. As phases
+da lenta transforma&ccedil;&atilde;o do escravo das sociedades
+<span class="pagenum">[VI]</span>
+antigas no obreiro, cidad&atilde;o livre das sociedades
+modernas, obscuras ainda em parte na
+historia da civilisa&ccedil;&atilde;o e do progresso humano
+entre as na&ccedil;&otilde;es d'al&eacute;m dos Pireneus,
+muito mais
+o s&atilde;o &aacute;quem delles. As divergencias, e
+divergencias
+profundas, entre os que se dedicam a estudar
+o assumpto nascem dessa obscuridade, e &eacute;
+dos debates que elle pode suscitar que ha de surgir
+a final a luz.
+<br />
+
+<br />
+
+Como tantas vezes succede, n&atilde;o foi a quest&atilde;o
+grave e difficil que alevantou arruido: foi a insignificante
+que despertou as atten&ccedil;&otilde;es e que produziu
+viva agita&ccedil;&atilde;o na imprensa e f&oacute;ra da
+imprensa,
+dividindo em dous campos o publico que l&ecirc;.
+&Eacute; que na primeira interessava apenas a sciencia,
+e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade
+e as preoccupa&ccedil;&otilde;es dos espiritos vulgares,
+que constituem o grande numero. Se a religi&atilde;o
+era extranha ao assumpto, ou antes ganhava
+na suppress&atilde;o de uma pia fraude, perdia com
+isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje mais
+que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres
+<span class="pagenum">[VII]</span>
+em que parece querer amortalhar o catholicismo.
+Escrevendo um livro serio, eu affastara
+brandamente para o limbo das fabulas aquellas
+fic&ccedil;&otilde;es ridiculas, porque era for&ccedil;oso
+faz&ecirc;-lo.
+Nem tivera a inten&ccedil;&atilde;o do escandalo, nem a cousa
+o valia. A maioria, por&ecirc;m, do clero n&atilde;o o entendeu
+assim.
+<br />
+
+<br />
+
+Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual
+este volume come&ccedil;a, est&aacute; a resumida noticia das
+aggress&otilde;es de que fui alvo e que por algum tempo
+supportei com resigna&ccedil;&atilde;o ou
+indifferen&ccedil;a, resigna&ccedil;&atilde;o
+ou indifferen&ccedil;a em que provavelmente,
+hoje, que sei melhor o que taes aggress&otilde;es valem,
+continuaria a permanecer. Estava, por&ecirc;m,
+ent&atilde;o naquella epocha da vida em que a paciencia
+christan n&atilde;o &eacute; a virtude mais vulgar do
+homem. O leitor ajuizar&aacute; se os prelados portugueses
+foram ou n&atilde;o imprudentes em tolerarem
+ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes
+manifesta&ccedil;&otilde;es da ignorancia e do interesse
+ferido.
+<br />
+
+<br />
+
+Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das
+classes servas da Peninsula no decurso dos seculos
+<span class="pagenum">[VIII]</span>
+VIII a XII, destinado a combater as opini&otilde;es
+do erudito Mu&ntilde;oz y Romero, &eacute; bem de crer que
+ao meu illustre adversario n&atilde;o faltassem argumentos
+para contrap&ocirc;r &aacute;s objec&ccedil;&otilde;es
+que lhe fiz;
+mas affastaram-no do debate outros estudos, at&eacute;
+que veio salte&aacute;-lo a morte, quando a Hespanha
+tinha a esperar os melhores fructos da alta intelligencia
+daquelle incansavel cultor da historia.
+Buscando ambos a verdade, a discuss&atilde;o encetada
+conduzir-nos-hia, provavelmente, a modificarmos,
+tanto um como outro, as nossas ideas, talvez
+absolutas em demasia, e a estabelecermos
+uma doutrina solida sobre t&atilde;o espinhoso assumpto.
+Entretanto, ainda hoje me persuado de que,
+para nos aproximar-mos, seria elle que teria de
+andar mais caminho. Julg&aacute;-lo-h&atilde;o os que, depois
+de lerem attentamente o meu modesto trabalho,
+examinarem com igual atten&ccedil;&atilde;o o escripto de
+Mu&ntilde;oz y Romero e a aprecia&ccedil;&atilde;o desse
+escripto
+por Mr. de Rozi&egrave;re.
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote">
+Janeiro de 1876
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h2>A BATALHA DE OURIQUE
+</h2>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c1"></a>I<br />
+
+<br />
+
+EU E O CLERO<br />
+
+</h3>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h4>AO PATRIARCHA DE LISBOA
+</h4>
+
+<h4>
+(<em>Junho, 1850</em>)
+</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; debaixo da impress&atilde;o de vivo desgosto, e
+cedendo emfim ao impulso de justa indigna&ccedil;&atilde;o,
+que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa
+que merece um animo turbado por offensas
+immerecidas, e o favor que sempre encontrei
+em vossa eminencia me fazem esperar que esse
+favor n&atilde;o padecer&aacute; quebra, se alguma phrase
+mais forte do que eu desejara me fugir da penna
+ao escrever este papel; papel que, solemnemente
+o declaro desde j&aacute;, n&atilde;o tem por objecto,
+como alguem poderia supp&ocirc;r, pedir desaggravo
+das offensas a que alludo. De natureza s&atilde;o ellas,
+que nem preciso nem quero que outrem as puna.
+Sei e posso eu faz&ecirc;-lo, se cumprir, de um modo
+que sirva de escarmento &aacute; ignorancia perversa e
+<span class="pagenum">[4]</span>
+&aacute; hypocrisia insensata. O meu intuito &eacute; apenas
+rogar directamente a vossa eminencia, e indirectamente
+aos demais prelados de Portugal a
+cujas m&atilde;os chegar esta carta por
+interven&ccedil;&atilde;o da
+imprensa, que, obstando a novas provoca&ccedil;&otilde;es da
+parte do clero, me poupem a dar uma dura lic&ccedil;&atilde;o
+a individuos, que, desconhecendo os deveres do
+sacerdocio e incapazes de sentimentos de
+modera&ccedil;&atilde;o,
+tentam excitar as paix&otilde;es odientas de um
+fanatismo que j&aacute; nem, talvez, o povo comprehende
+contra um homem que nunca lhes fez mal, e
+que nem sequer se lembra delles, porque tem
+cousas um pouco mais s&eacute;rias em que cogitar.
+<br />
+
+<br />
+
+Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume
+de uma Historia de Portugal, que tem feito
+certa impress&atilde;o no paiz, e ainda f&oacute;ra delle. Na
+benevolencia com que esse livro foi recebido por
+naturaes e extranhos nada ha provavelmente que
+deva lisonjear o amor-proprio litterario do auctor,
+mas ha uma prova de que o publico reconheceu
+nelle certa independencia de espirito e uma estricta
+imparcialidade, para a qual o longo e severo
+exame dos factos o habilitava. Como eu o previra
+na advertencia posta &aacute; frente daquelle primeiro
+volume, a sinceridade da narrativa, estribada
+em monumentos indisputaveis, destruindo
+<span class="pagenum">[5]</span>
+muitas dessas tradi&ccedil;&otilde;es, mais ou menos
+improvaveis,
+que deturpam a historia de todos os povos,
+suscitou contradictores. Era cousa natural.
+As manifesta&ccedil;&otilde;es de colera, as injurias vertidas
+contra mim na imprensa, n&atilde;o podiam causar-me
+nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a
+guardar silencio perante ellas e a proseguir na
+senda que abrira, sem me distrahir com luctas
+estereis. A verdade fica, e as preoccupa&ccedil;&otilde;es
+passam.
+Ao mesmo tempo a minha resolu&ccedil;&atilde;o inabalavel
+era, e &eacute;, desprezar todos os respeitos humanos
+que se contraponham &aacute; voz da propria consciencia.
+Todavia o n&atilde;o nos affastarmos dos seus
+dictames &eacute; empenho que n&atilde;o sae de
+gra&ccedil;a neste
+mundo de paix&otilde;es pequenas e m&aacute;s; e bem louca
+esperan&ccedil;a seria a minha, se a tivesse de evitar
+os effeitos de uma lei universal. Era por isso que
+estava resolvido a esgotar resignadamente o meu
+calix.
+<br />
+
+<br />
+
+Pouco depois da publica&ccedil;&atilde;o do primeiro volume
+da Historia de Portugal, n'um periodico litterario
+da universidade de Dublin um critico ingl&ecirc;s
+punha em duvida se eu, que expurgara de
+lendas fradescas a historia do ber&ccedil;o da monarchia,
+teria esfor&ccedil;o bastante para avaliar como cumpria
+as longas e violentas dissens&otilde;es dos reis da primeira
+<span class="pagenum">[6]</span>
+dynastia com os bispos e com a curia romana.
+Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma conjunctura
+publicava-se em Lisboa o meu segundo
+volume, onde se continha a narrativa de boa parte
+daquellas discordias. Ahi me parece ter dado
+documento de que os receios manifestados na
+imprensa inglesa n&atilde;o eram dos mais bem fundados.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas esse volume, accendendo novas coleras,
+despertou em alguem a id&eacute;a de me refutar de
+modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de
+Braga, da antiga metropole, onde ainda devem
+estar bem vivas as memorias do veneravel Caetano
+Brand&atilde;o, do illustre prelado que pretendia
+reformar o breviario e missal bracharenses por
+causa <em>das suas intoleraveis patranhas e
+falsidades</em>
+(phrase do grande arcebispo), o meu nome
+foi lan&ccedil;ado &aacute;s multid&otilde;es ladeado dos
+epithetos
+de hereje, de impio e de outros semelhantes.
+Um egresso fanatico e ignorante (como o s&atilde;o centenares
+de sacerdotes no meio do nosso clero,
+que n&atilde;o recebe ha muitos annos nem
+educa&ccedil;&atilde;o
+moral nem educa&ccedil;&atilde;o litteraria) cubriu-me de
+injurias
+diante de um concurso numeroso, segundo
+me informaram, porque no meu livro usara do
+direito de historiador, qualificando devidamente
+<span class="pagenum">[7]</span>
+essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas,
+violentas e cubi&ccedil;osas que cingiram a thiara
+papal, e que se chamaram Gregorio, Innocencio
+ou Honorio. A principio acreditei que isto n&atilde;o
+passara de um impulso de fanatismo individual;
+mas em breve me desenganei de que o facto pertencia
+a um systema organisado de aggress&atilde;o. A
+imprensa politica noticiou procedimentos analogos
+para comigo em outros lugares do arcebispado.
+Se o objecto das invectivas era o mesmo,
+se igual a violencia das express&otilde;es, ignoro-o: mas
+o que me pareceu evidente foi que havia, como
+disse, em t&atilde;o insolito proceder um systema uniforme
+e combinado.
+<br />
+
+<br />
+
+Calei-me. A minha equanimidade foi bastante
+para tolerar este ataque brutal &aacute; liberdade do
+pensamento; foi tamanha como a do respectivo
+prelado, que guardou silencio, e que devera ter
+advertido o seu clero de que, n&atilde;o havendo eu
+offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me
+limitado a julgar os homens e os factos da epocha
+sobre que escrevia, por mais erradas que fossem
+as minhas opini&otilde;es, ellas n&atilde;o podiam ser
+qualificadas
+publicamente de hereticas, concitando-se
+assim contra mim a credulidade popular. Um serm&atilde;o
+n&atilde;o &eacute; o meio de refutar erros litterarios, e
+<span class="pagenum">[8]</span>
+muito menos o &eacute; qualificar taes erros como offensas
+da f&eacute; para os transformar em crimes religiosos.
+Em semelhante terreno a lucta ser&iacute;a impossivel,
+porque delle brota o risco pessoal, ou
+pelo menos a perda da reputa&ccedil;&atilde;o moral para um
+dos contendores, ou melhor direi para a victima
+indefensa, amarrada ao poste desse novo genero
+de patibulo. Os ignorantes olhariam com horror
+para o Luthero ou Calvino que surge na terra
+da patria, e esse odio publico &eacute; uma verdadeira
+coac&ccedil;&atilde;o &aacute; liberdade legitima do
+escriptor: legitima,
+digo, porque, apesar de tantas declama&ccedil;&otilde;es
+e queixas, &eacute; evidente que no meu livro n&atilde;o ha
+uma unica palavra que offenda a orthodoxia da
+igreja. Se eu tivesse proferido alguma heresia,
+os prelados portugueses, e em particular vossa
+eminencia como meu pastor, n&atilde;o seriam capazes
+de faltar aos seus mais estrictos deveres, deixando
+de me advertir do erro com caridade evangelica,
+e de me condemnar se eu insistisse n'elle.
+Era ent&atilde;o que aos bispos, e n&atilde;o a qualquer desses
+cirzidores de farrapos de serm&otilde;es velhos, desses
+inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do
+senso commum, denominados, por antiphrase,
+pr&eacute;gadores ou oradores, que era licito, que cumpria
+lan&ccedil;ar sobre mim o anathema.
+<span class="pagenum">[9]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A guerra desleal que uma parte do clero (digo
+uma parte, porque no seu gremio ha muitos homens
+leaes e verdadeiramente illustrados) me
+declarara no norte do reino n&atilde;o tardou a apparecer
+no meio-dia, no recincto da propria capital.
+O primeiro commettimento foi tentado n'uma solemnidade
+notavel, e n'um dos templos mais frequentados
+de Lisboa. Nesse acto o absurdo da
+aggress&atilde;o nasceu antes da impropriedade do logar,
+do que das formulas empregadas pelo aggressor,
+que se absteve de injurias grosseiras.
+Lisboa n&atilde;o &eacute; Braga, e o negocio precisava aqui
+de maior circumspec&ccedil;&atilde;o. Entretanto a tentativa
+desagradou geralmente, e eu pensei que emfim
+me deixariam em paz.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o succedeu assim. Ultimamente na minha
+propria parochia, e dous dias depois n'outra igreja
+da capital, fui de novo arrastado perante as
+turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no
+primeiro caso houve a inten&ccedil;&atilde;o de se me
+administrar
+face a face uma correc&ccedil;&atilde;o fraterna, o calculo
+falhou. Creio que vossa eminencia me faz a
+justi&ccedil;a de acreditar que n&atilde;o me deleito
+excessivamente
+em ir ouvir m&aacute;us serm&otilde;es de ha sessenta
+annos, ou traduc&ccedil;&otilde;es detestaveis de fragmentos
+de sermonarios franceses, declamadas, ou antes
+<span class="pagenum">[10]</span>
+carpidas, em tom ainda mais detestavel. O annuncio
+de um serm&atilde;o &eacute; para mim por via de regra a
+espada percuciente do anjo do paraiso flamejando
+&aacute; porta do templo. Salvo em rarissimos casos,
+n&atilde;o haveria for&ccedil;as que podessem arrastar-me a
+assistir aos partos da oratoria, que, por irris&atilde;o
+sacrilega, se denomina sagrada. A resistencia dos
+meus nervos em tal conjunctura seria mais forte
+do que a propria vontade.
+<br />
+
+<br />
+
+Em Braga, e creio que nos outros logares daquella
+diocese, a censura tinha sido fulminada
+contra a liberdade com que falei dos chefes da
+igreja nos seculos m&eacute;dios, da curia romana, e
+talvez dos bispos portugueses de ent&atilde;o. Ao menos
+l&aacute; a invectiva tinha certa originalidade. No
+patriarchado, por&eacute;m, as accusa&ccedil;&otilde;es,
+postoque
+menos brutaes, tiveram o defeito de ser um verdadeiro
+plagio.
+<br />
+
+<br />
+
+Narrando no primeiro volume da Historia de
+Portugal o recontro de julho de 1139 em Ourique,
+reduzido &aacute;s dimens&otilde;es que supp&uacute;s e
+supponho
+exactas, ommitti a fabula do apparecimento
+de Christo, como cousa indigna da gravidade da
+historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente
+para com o sublime Fundador do Christianismo.
+Apenas n'uma nota alludi a essa tradi&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[11]</span>
+absurda, affirmando que se estribava n'um documento
+falso, o celebre juramento attribuido a Affonso
+I, juramento que ainda existe no supposto
+original. Eis o grande escandalo para os pr&eacute;gadores
+de Lisboa. Confesso que ahi tractei esse
+embuste com o desprezo que elle merece, porque,
+na verdade, conhecendo eu muitos diplomas
+forjados com maior ou menor destreza, este &eacute;,
+sem contradic&ccedil;&atilde;o, o mais inhabilmente executado.
+<br />
+
+<br />
+
+As poucas palavras que dediquei a semelhante
+ninharia suscitaram o zelo de alguns individuos,
+persuadidos de que eu tinha despeda&ccedil;ado, com
+as tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi,
+o palladio da independencia nacional, que
+bem fraca independencia ser&iacute;a se estivesse como
+adscripta &aacute; cren&ccedil;a ou &aacute;
+descren&ccedil;a n'um conto de
+velhas. Houve at&eacute; um pobre homem, o qual, no
+meio das discordias civis que assolaram o reino
+pouco depois da publica&ccedil;&atilde;o do meu livro, dirigiu
+aos povos do Alemt&eacute;jo uma proclama&ccedil;&atilde;o,
+em que
+affirmava que, ligado por um pacto infernal com
+os membros do governo ent&atilde;o derribado, eu ia
+demolindo as glorias portuguesas para vendermos
+de commum accordo a independencia da patria.
+N&atilde;o me recordo agora do pre&ccedil;o, nem de
+<span class="pagenum">[12]</span>
+quem foi o comprador, mas a venda parece que
+era indubitavel.
+<br />
+
+<br />
+
+Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e
+folhetos avulsos contra mim. Nada mais legitimo;
+nada mais liberal. Se os corsarios da palavra de
+Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de
+um logar aonde eu n&atilde;o posso subir, do alto do
+pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco
+malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu
+t&atilde;o ridiculo como o instrumento da
+appari&ccedil;&atilde;o, se
+disso me queixasse a vossa eminencia ou aos outros
+prelados do reino. A imprensa &eacute; uma estacada
+onde nos julgadores do combate, e sobretudo
+de um combate litterario ou scientifico, ha j&aacute; um
+grau de illustra&ccedil;&atilde;o, que at&eacute; certo
+ponto affian&ccedil;a
+uma decis&atilde;o justa. Reptado ahi, eu podia erguer
+a luva, ou deixar, quando assim o entendesse, que
+o livro delatado servisse por si mesmo de resposta
+aos accusadores. Em um e outro caso procederia
+livremente, e n&atilde;o ficaria, como no campo em
+que sou aggredido, collocado debaixo de uma
+coac&ccedil;&atilde;o moral. Ahi os reverendos
+pr&eacute;gadores,
+que tem tido a condescendencia de tractar da minha
+humilde pessoa, at&eacute; poderiam appellidar-me,
+se quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado:
+eu respondia-lhes que elles estavam bem
+<span class="pagenum">[13]</span>
+livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos
+perfeitamente pagos.
+<br />
+
+<br />
+
+Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a
+Historia de Portugal, que me chegaram &aacute;s m&atilde;os,
+tractavam justamente desse gravissimo negocio
+da appari&ccedil;&atilde;o, que em parte me tem feito victima,
+por me servir de uma phrase do padre Isla, da
+<em>dialectica eloquencia dos selvagens da
+Europa</em>.
+Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo
+que produziam no meu animo um sentimento de
+tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda
+quando n&atilde;o estivesse, como ha pouco disse a vossa
+eminencia, no firme proposito de evitar luctas
+estereis. A tristeza que senti &aacute; leitura daquelles
+folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia
+a que tinham chegado neste paiz os estudos
+historicos. N'um livro que, com bons ou
+maus fundamentos, mudava completamente o aspecto
+at&eacute; aqui attribuido ao complexo dos successos
+do nosso paiz, na infancia da sociedade
+portuguesa, havia por certo mais de uma
+inexac&ccedil;&atilde;o,
+mais de um defeito importante, como obra
+que era de homem&#8213;de homem desajudado n'uma
+empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos
+proprios recursos e for&ccedil;as. &Aacute;cerca,
+por&eacute;m, das
+materias positivas, historicas, susceptiveis de serio
+<span class="pagenum">[14]</span>
+exame, apenas appareceu, que me conste, um
+artigo no periodico litterario a <em>Revista
+Universal</em>,
+e outro no <em>Observador</em> de Coimbra. As
+duas publica&ccedil;&otilde;es
+avulsas que me vieram &aacute;s m&atilde;os, ambas,
+como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar
+o milagre da appari&ccedil;&atilde;o, milagre do qual
+(atrevo-me quasi a affirm&aacute;-lo) ainda que os meus
+adversarios o tivessem sustentado com boas raz&otilde;es
+<em>historicas,</em> me parece que eu, vossa
+eminencia,
+toda a gente, que n&atilde;o seja algum leigo capucho,
+haviamos de continuar a rir, cada qual segundo
+o papel que acceitou nesta grande comedia
+humana&#8213;uns em publico, outros em particular.
+<br />
+
+<br />
+
+Agora pelo que respeita aos motivos que, al&eacute;m
+da raz&atilde;o geral j&aacute; dada, me inhibiam de responder
+aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia
+que eu dilate um pouco o discurso a este
+proposito. N&atilde;o &eacute; a digress&atilde;o alheia ao
+assumpto.
+O meu silencio ante contendores francos e leaes,
+que me buscavam com armas corteses no campo
+da imprensa, interpretou-o a ignorancia como um
+signal de fraqueza. N&atilde;o contribuiria isto para despertar
+a audacia dos meus anathematisadores?
+N&atilde;o seria eu proprio o culpado da minha affronta?
+Desculpe vossa eminencia uma compara&ccedil;&atilde;o,
+<span class="pagenum">[15]</span>
+acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de
+se referir a uma fabula, e n&oacute;s achamo-nos n'uma
+quest&atilde;o de fabulas. Quando o le&atilde;o jazia
+moribundo,
+foram as feras valentes e generosas que
+arrostaram o perigo. O onagro s&oacute; veio ferir-lhe a
+fronte pendida, depois que, averiguada a situa&ccedil;&atilde;o
+do rei das florestas, se persuadiu de que podia
+injuri&aacute;-lo a seu salvo.
+<br />
+
+<br />
+
+Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar
+o silencio que o gerou. &Eacute; a esse alvo que se dirige
+a digress&atilde;o de que falo.
+<br />
+
+<br />
+
+Um dos folhetos era escripto por um anci&atilde;o respeitavel,
+n&atilde;o s&oacute; pelas suas cans, mas tambem pelos
+seus padecimentos physicos, considera&ccedil;&atilde;o
+fortissima
+para mim, que entendo ser sempre digna de
+respeito a desgra&ccedil;a; era produc&ccedil;&atilde;o de
+um homem
+chegado &aacute;quelle quartel da vida, em que o espirito
+parece eivado da ruina do corpo, que vem
+annunciando a proximidade do tumulo. Com a
+m&atilde;o na consciencia eu protesto a vossa eminencia
+que ainda hoje sentiria remorsos, se, na for&ccedil;a
+da vida e do pouco talento que Deus repartiu
+comigo, n&atilde;o tivera sabido domar os impulsos de
+um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar
+a afflic&ccedil;&atilde;o sobre o leito de dor do afflicto,
+para saborear o triste e vergonhoso prazer de ouvir
+<span class="pagenum">[16]</span>
+os apupos do publico a um pobre velho, que
+queria, que tinha direito de morrer em paz abra&ccedil;ado
+com as tradi&ccedil;&otilde;es da sua infancia; que precisava
+de protestar contra um homem, o qual, embora
+involuntariamente, ia prostituir-lhe no cora&ccedil;&atilde;o
+id&eacute;as e affectos, amigos constantes da sua larga
+existencia. Se Deus podesse fazer milagres absurdos
+e inuteis, como o da appari&ccedil;&atilde;o, eu preferiria
+ver-me convertido em cirzidor e carpidor de farrapos
+pareneticos a ter de accusar-me de uma
+ac&ccedil;&atilde;o, que n&atilde;o sei qual seria mais, se
+covarde,
+se despiedada.
+<br />
+
+<br />
+
+Quanto ao outro folheto, composto por um homem
+de talento, instruido, e no vigor da idade,
+n&atilde;o militavam as mesmas raz&otilde;es de conveniencia
+moral; militavam, por&eacute;m, outras assaz fortes, e
+de natureza analoga. Affastadas as considera&ccedil;&otilde;es
+poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos
+colligidos naquella publica&ccedil;&atilde;o a favor do
+milagre de Ourique dividiam-se em duas categorias,
+ou antes eram apenas dous argumentos. Um
+consistia no consenso de certo numero de escriptores,
+todos de epochas mais recentes que o
+meado do seculo XV. A futilidade desta
+argumenta&ccedil;&atilde;o
+&eacute; evidente. Os <em>classicos</em>
+s&atilde;o respeitaveis
+como mestres de lingua; mas como testemunhas
+<span class="pagenum">[17]</span>
+de um facto, que se diz acontecido pelo menos
+trezentos annos antes que elles escrevessem, de
+nada servem. A qualidade de classicos n&atilde;o exclue
+a de credulos, e nem sequer a de inventores de patranhas.
+A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda,
+a de Palmeirim d'Inglaterra s&atilde;o escriptas
+por tres classicos como Barros, Jorge Ferreira, e
+Francisco de Moraes, e eu supponho, n&atilde;o sei se me
+engano, que esses livros n&atilde;o encerram sen&atilde;o
+mentiras.
+Se o auctor queria provar-me a perpetuidade
+da tradi&ccedil;&atilde;o de Ourique, n&atilde;o devia
+esquecer o <em>criterium</em>
+estabelecido por Vicente de Lerins, e com
+elle pelo senso commum, para distinguirmos das
+falsas as tradi&ccedil;&otilde;es verdadeiras:
+<em>Quod semper,
+quod ubique, quod ab omnibus creditum est</em>. Era-lhe
+necessario mostrar-me essa tradi&ccedil;&atilde;o
+atrav&eacute;s
+de todos os seculos, e sobretudo dos seculos
+onde ella desapparece, os tres immediatos ao
+supposto facto. Confesso a vossa eminencia um
+peccado, e alliviarei delle a consciencia, porque
+o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia
+foi demasiado orgulhosa para descer a refutar
+semelhantes objec&ccedil;&otilde;es. Que me importava,
+de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo,
+nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu
+tempo e monumentos para averiguar os successos
+<span class="pagenum">[18]</span>
+verdadeiros e as suas causas, circumstancias e
+effeitos. Genealogico d'embustes &eacute; mist&eacute;r para o
+qual me falta inteiramente a voca&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A segunda categoria de argumentos, ou antes,
+o segundo argumento em favor do milagre era
+a cita&ccedil;&atilde;o de dous textos precisos, de duas
+auctoridades
+contemporaneas, que relatavam o successo.
+Uma era nada menos que a de S. Bernardo;
+outra a de uma copia coeva do juramento, copia
+conservada em Roma, e transcripta no volume 51
+da <em>Symmitica Lusitana</em>, manuscripto
+da Bibliotheca
+Real, de cuja existencia &eacute; abonador o illustre
+Cenaculo. Este argumento estava longe da
+obvia fraqueza de est'outro. A tradi&ccedil;&atilde;o
+&iacute;a assim
+prender-se do seculo XV ao XII, embora obscurecida
+no periodo intermedio. Alguem imaginar&aacute;,
+portanto, que para n&atilde;o responder a
+objec&ccedil;&otilde;es
+deste valor apparente s&oacute; me conteve o proposito
+de evitar disputas escusadas. N&atilde;o foi assim. Contiveram-me
+considera&ccedil;&otilde;es de maior monta. Se o
+eram ou n&atilde;o, vossa eminencia o julgar&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Antes de tudo, observar&aacute; vossa eminencia que
+eu digo <em>disputas escusadas</em>. Digo-o,
+porque esses
+testemunhos contemporaneos n&atilde;o bastam, como
+vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres
+da idade m&eacute;dia. &Aacute; excessiva devassid&atilde;o
+e
+<span class="pagenum">[19]</span>
+bruteza aquelles tempos de trevas uniam uma
+cren&ccedil;a fervorosa, confundida com
+supersti&ccedil;&atilde;o extrema.
+A id&eacute;a religiosa formulava-se em tudo,
+na guerra, na vida civil, nos affectos do
+cora&ccedil;&atilde;o,
+nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma
+id&eacute;a domina assim a sociedade, converte-se em
+prisma atrav&eacute;s do qual as cousas se illuminam
+com as c&ocirc;res que elle lhes transmitte. O maravilhoso
+introduzia-se em todos os factos em que
+as imagina&ccedil;&otilde;es, possuidas de uma especie de febre
+moral, achavam pretextos mais ou menos
+plausiveis para lh'o attribuir. Accrescia a tendencia
+innata dos homens para indagar as causas dos
+diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente
+de ignorancia e rudeza (ambiente em que vive
+boa parte do nosso clero), essa tendencia dilatava-se,
+respirava pelo unico resfolgadouro possivel,
+pela facil theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel.
+Nas chronicas d'ent&atilde;o quasi que o miraculoso
+&eacute; o regular, e o natural a excep&ccedil;&atilde;o.
+Dos
+chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado
+&eacute; o benedictino ingl&ecirc;s Matheus Paris. Todavia
+centenares, que n&atilde;o dezenas, de milagres
+absurdos s&atilde;o gravemente narrados na
+<em>Historia
+Major</em>. Permitte-me vossa eminencia que lhe recorde
+um exemplo do modo de v&ecirc;r daquellas eras?
+<span class="pagenum">[20]</span>
+Sem sairmos do reino, nem do seculo XII, e at&eacute;
+limitando-nos &aacute; vida do personagem a quem se
+attribue o singular favor de Ourique, temos &aacute; m&atilde;o
+um exercito de milagres, postoque em sentido
+inverso ao da appari&ccedil;&atilde;o. Alludo aos desgostos de
+S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do
+sancto, <em>escripta no seculo XII</em>, foi,
+como vossa
+eminencia sabe, publicada por Florez, e uma copia,
+talvez coeva, ou quando muito do seculo XIII,
+existe ainda entre os manuscriptos de Alcoba&ccedil;a
+(codice 133). Ahi lemos que o rei portugu&ecirc;s fora
+obrigado a levantar o sitio do castello Sandino,
+nas margens do Arnoia, por uma tempestade de
+raios que o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos
+o pio agiographo, o seu implacavel heroe
+nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por
+tres vezes a diversas pessoas para protestar vingan&ccedil;a
+contra o principe, que nas suas correrias na
+Galliza n&atilde;o respeitara as terras do mosteiro de Cellanova.
+Nesta lucta atroz entre o grande da terra
+e o grande do ceu, S. Rosendo n&atilde;o poupava maravilhas.
+Debalde; porque, como observa o monge
+historiador, o cora&ccedil;&atilde;o do rei, que elle compara
+caritativamente a Sim&atilde;o Mago, estava obdurado,
+qual o de Phara&oacute;, <em>para maior cumulo da sua
+condemna&ccedil;&atilde;o</em>. A malevolencia
+milagreira do sancto
+<span class="pagenum"><a name="p21" id="p21">[21]</a></span>
+n&atilde;o abandonou Affonso Henriques sen&atilde;o no
+tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do
+reinado do fundador da monarchia, incluindo o
+desbarato de Badajoz, a fractura da perna, o aleij&atilde;o
+com que ficou at&eacute; a morte, tudo foi obra de
+S. Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter
+visto o sancto revestido do corpo humano e muito
+atarefado, na occasi&atilde;o em que o rei de Portugal
+ca&iacute;u prisioneiro do genro. S&atilde;o pelo menos
+vinte milagres attestados por um escriptor desses
+tempos. Penso que n&atilde;o me accusar&atilde;o de avaro ou
+de desagradecido os que querem enriquecer &aacute;
+for&ccedil;a o thesouro das minhas cren&ccedil;as com a
+appari&ccedil;&atilde;o
+de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente
+eu sou muito mais rico do que elles em
+provis&atilde;o de milagres.
+<br />
+
+<br />
+
+De todas essas maravilhas, por&eacute;m, apesar de
+subministrarem &aacute; credulidade melhores fundamentos
+que a de Ourique, fa&ccedil;o eu tanto caso como
+desta ultima, pelas considera&ccedil;&otilde;es que indiquei,
+ali&agrave;s bem escusadas para a comprehens&atilde;o e
+litteratura
+de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente
+o preceito que a mim proprio impusera de
+n&atilde;o malbaratar o tempo em quest&otilde;es desta ordem,
+nem essas considera&ccedil;&otilde;es, que obstaram <a href="#e1">a que</a> eu respondesse a um escripto, em
+que o
+<span class="pagenum">[22]</span>
+erro, e talvez o despeito, vinham envoltos em
+f&oacute;rmas t&atilde;o corteses, que tocavam a raia de
+lisonjeiras,
+e em que a argumenta&ccedil;&atilde;o tomava emfim
+o aspecto de uma cousa s&eacute;ria. N&atilde;o, eminentissimo
+senhor! A refuta&ccedil;&atilde;o ser&iacute;a na verdade
+facil, decisiva, fulminante; mas ella lan&ccedil;aria uma
+torpe mancha sobre nomes illustres e caros &aacute; igreja
+portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta
+id&eacute;a. Por maiores precau&ccedil;&otilde;es de que eu
+me rodeasse,
+a logica implacavel do publico tiraria as
+legitimas illa&ccedil;&otilde;es das minhas palavras, e
+convert&ecirc;-las-hia
+em desdouro commum de uma classe
+que nenhum mal me havia feito. Se hoje a necessidade
+de repellir a insolencia covarde, como a
+insolencia o &eacute; sempre, me obriga a exp&ocirc;r actos
+vergonhosos e inqualificaveis, a culpa n&atilde;o m'a
+lancem. Dous annos de paciencia provam que o
+fa&ccedil;o constrangido por aggress&otilde;es demasiado
+graves,
+n&atilde;o por si, nem por seus auctores, cousas
+profundamente insignificantes, mas pelo logar
+onde se commettem, por serem feitas com a
+inten&ccedil;&atilde;o
+de excitar contra mim animadvers&otilde;es immerecidas,
+por se tentar, emfim, converter atrai&ccedil;oadamente
+uma quest&atilde;o, que nem chega a ser
+historica, em quest&atilde;o religiosa. A gloria do escandalo
+deixo-a inteira aos que o provocaram.
+<span class="pagenum">[23]</span>
+Se vou bater sobre campas, que cobrem cinzas
+envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a
+paz dos mortos para lhes
+bradar&#8213;&laquo;<em>Falsarios!</em>&raquo;&#8213;esta
+m&atilde;o que se estende para indicar os criminosos,
+esta voz que se ergue para os condemnar,
+s&atilde;o minhas, mas protesto a vossa eminencia, que
+quem as suscitou n&atilde;o foi o meu
+cora&ccedil;&atilde;o, nem a
+minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que
+sem deshonra n&atilde;o &eacute; licito ultrapassar. Consta-me
+que o mais recente dos meus reverendos accusadores
+clamara no excesso do seu <em>sincero</em>
+zelo
+pela historieta da appari&ccedil;&atilde;o, que
+<em>melhor fora que
+eu n&atilde;o houvera falado em tal</em>. Melhor ainda
+do
+que isso me parece teria sido que elle n&atilde;o houvesse
+feito trasbordar o calix, j&aacute; demasiado
+cheio, de uma justa indigna&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A affirmativa de que no volume 51 da <em>Symmitica
+Lusitana</em> se encontra trasladada uma c&ograve;pia
+do instrumento da appari&ccedil;&atilde;o, coeva de Affonso I,
+&Eacute; MENTIRA.
+<br />
+
+<br />
+
+O texto de S. Bernardo, relativo &aacute; mesma
+appari&ccedil;&atilde;o,
+que se encontra inserido no Breviario,
+no officio das Chagas, &Eacute; FALSO.
+<br />
+
+<br />
+
+Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim
+(&eacute; licito duvidar disso com a igreja, que manifestou
+a sua hesita&ccedil;&atilde;o a este respeito mandando
+<span class="pagenum">[24]</span>
+accentuar as palavras dos livros rituaes com temor
+das syllabadas) que venha &aacute; Bibliotheca Real, e
+ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas 128, ler&aacute;
+ou soletrar&aacute; as seguintes palavras, escriptas
+na lingua latina, por baixo do traslado do instrumento
+da appari&ccedil;&atilde;o, nota escripta pela mesma
+letra do copista==<em>Brand&atilde;o, Monarchia
+Lusitana,
+Parte 3.&ordf; pagina 127. Extrahido de um codice
+que o auctor viu em Lisboa.</em>==Eis em que consiste
+o traslado da copia <em>coeva</em>. Cenaculo,
+citando
+o documento pelo indice, quando podia cit&aacute;-lo
+pelo logar competente da collec&ccedil;&atilde;o, o que lhe
+era igualmente facil, commetteu uma daquellas
+levezas que n&atilde;o raro occorrem nos seus escriptos,
+ou practicou uma <em>pia fraude</em>? O bello
+e
+nobre caracter do bispo de B&eacute;ja me faria adoptar
+sem hesita&ccedil;&atilde;o o primeiro supposto, se o empenho
+em que elle entrara de provar a far&ccedil;a de
+Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente
+havia de sentir, n&atilde;o podesse perturb&aacute;-lo
+a ponto de practicar um acto indigno
+de quem, como elle, era um homem de letras,
+um prelado virtuoso, e a todos os respeitos um
+var&atilde;o singular.
+<br />
+
+<br />
+
+A historia da passagem falsamente attribuida
+a S. Bernardo, &eacute;, por&eacute;m, materia mais grave,
+porque
+<span class="pagenum">[25]</span>
+nessa vergonhosa historia se acha compromettida
+a honra e a dignidade moral e litteraria
+do alto clero portugu&ecirc;s no meiado do seculo passado.
+N&atilde;o direi da curia romana, porque nesse
+ponto n&atilde;o ha j&aacute; para ella compromettimento
+possivel:
+vossa eminencia conhece t&atilde;o bem e melhor
+do que eu os seus annaes. A narrativa desse escandalo
+&eacute; em resumo a seguinte:
+<br />
+
+<br />
+
+O patriarcha D. Thom&aacute;s d'Almeida requereu a
+Bento XIV que concedesse ao clero de Portugal
+o officio proprio e missa das cinco Chagas, que,
+por decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido
+a certas freiras de Floren&ccedil;a. Accrescentava-se
+na supplica dirigida ao pontifice que na sexta
+li&ccedil;&atilde;o
+se houvessem de addicionar as seguintes
+palavras==<em>Quas lusitanum imperium
+etc.</em>==que
+constituem o texto allegado contra mim. Consistindo,
+por&eacute;m, a sexta li&ccedil;&atilde;o daquelle officio
+n'uma passagem de S. Bernardo, uma vez que
+n&atilde;o houvesse a devida distinc&ccedil;&atilde;o entre
+essa passagem
+e o novo additamento, este se converteria
+n'um testemunho importante a favor da lenda da
+appari&ccedil;&atilde;o, de que provavelmente os homens
+instruidos
+come&ccedil;avam a rir-se depois do impulso
+que aos estudos historicos dera o governo no reinado
+de D. Jo&atilde;o V.
+<span class="pagenum">[26]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Accedeu Bento XIV &aacute; supplica do prelado portugu&ecirc;s.
+O decreto de concess&atilde;o, o officio e a missa
+expediram-se para Portugal impressos na typographia
+da camara apostolica. Segundo parece,
+a impress&atilde;o foi feita no estio, e o compositor
+romano, no acto de compor a fatal sexta lic&ccedil;&atilde;o,
+estava perturbado pela febre da
+<em>malaria</em>. O additamento
+ficou enxertado nas phrases solemnes
+do grande abbade de Claraval com t&atilde;o subtil sutura,
+que faria honra a um operador de rhinoplastica.
+Atacado tambem pelos miasmas putridos
+das lagoas pontinas o revedor da camara
+apostolica <em>esqueceu-se</em> de emendar o
+erro. Aquelle
+<em>innocente</em> engano partiu, emfim, para
+Portugal.
+<br />
+
+<br />
+
+Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos
+do clero n&atilde;o tinham chegado &aacute; decadencia em
+que hoje os vemos e de certo vossa eminencia
+lamenta como eu, e em que as cadeiras episcopaes
+do reino estavam occupadas por muitos
+homens notaveis por sciencia e virtudes, o antecessor
+de vossa eminencia que ent&atilde;o presidia &aacute;
+metropole de Lisboa <em>esqueceu-se</em> de
+que essa
+passagem perfilhada a S. Bernardo tinha um auctor
+bem moderno, e entre os bispos, entre os
+theologos do clero secular n&atilde;o houve um s&oacute; que
+<em>advertisse</em> no falso testemunho que
+na sexta lic&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[27]</span>
+do novo officio se alevantava ao fundador
+dos cistercienses. Os seus filhos, os seus proprios
+monges, calaram-se. Os prelos t&ecirc;m gemido
+durante um seculo com as reimpress&otilde;es do breviario,
+e neste longo periodo nem uma voz, que
+eu saiba, se ergueu para dizer que em nenhuma
+edi&ccedil;&atilde;o, em nenhuma codice manuscripto das
+obras de S. Bernardo se encontra a supposta
+passagem.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;E que admira&ccedil;&atilde;o?&#8213;respondeu-me um
+malicioso,
+a quem manifestava em certa occasi&atilde;o o
+meu espanto &aacute; vista deste phenomeno singular.&#8213;O
+clero n&atilde;o l&ecirc; os padres da igreja: deixou essa
+tarefa aos seculares. E para que os havia de
+ler, se lhes &eacute; de sobra o Larraga?&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Dou a minha palavra a vossa eminencia de que
+repelli com todas as minhas for&ccedil;as este rude epigramma.
+Eu sei que ha, conhe&ccedil;o, at&eacute;, sacerdotes
+cuja instruc&ccedil;&atilde;o &eacute; t&atilde;o
+solida como vasta. O tracto
+de vossa eminencia, durante a epocha em que
+fomos collegas no parlamento, me fez conhecer
+um dos mais distinctos entre elles. Infelizmente,
+esse epigramma, injusto na sua f&oacute;rma absoluta,
+n&atilde;o deixa de ser merecido em muitos, talvez no
+maior numero de casos.
+<br />
+
+<br />
+
+Sabe vossa eminencia quem protestou contra
+<span class="pagenum">[28]</span>
+essa falsifica&ccedil;&atilde;o audaz, contra essa fingida
+ignorancia,
+contra esse torpor inexplicavel ou explicavel
+de mais? Foi aquella ordem &aacute;cerca da qual
+ent&atilde;o se repetiam, e hoje se repetem diariamente
+graves accusa&ccedil;&otilde;es de immoralidade. Foram os
+jesuitas, que n'uma edi&ccedil;&atilde;o do novo officio, feita
+para o proprio uso, separaram com um asterisco
+o texto de S. Bernardo da inven&ccedil;&atilde;o moderna.
+Acaso este procedimento deu origem a um livro,
+<em>os Novos Testemunhos</em>, do celebre e
+implacavel
+inimigo dos jesuitas, o padre Pereira, livro que
+se o n&atilde;o tomarmos como uma longa ironia, deshonra
+a memoria de uma das mais fortes intelligencias
+que Portugal tem gerado.
+<br />
+
+<br />
+
+Agora fica vossa eminencia habilitado para avaliar
+se eu procedi com circumspec&ccedil;&atilde;o guardando
+silencio ante as refuta&ccedil;&otilde;es que se me dirigiam
+pela
+imprensa; se n&atilde;o houve no meu proceder uma
+dessas abnega&ccedil;&otilde;es que n&atilde;o
+s&atilde;o vulgares, em
+desprezar um triumpho t&atilde;o facil como decisivo,
+preferindo ficar como vencido e humilhado aos
+olhos dos menos instruidos a salvar o meu nome
+de uma nodoa litteraria e at&eacute; certo ponto moral.
+Se, emfim, &eacute; justo, se &eacute; decente, que membros
+do clero aggridam de um modo illicito, e profanando
+a sanctidade dos templos e a sanctidade
+<span class="pagenum">[29]</span>
+do seu ministerio, um homem que sacrificou o
+proprio orgulho para n&atilde;o rasgar o v&eacute;u de uma
+fraude dessas, que os hypocritas qualificam de
+pias, e que eu qualificarei de immoraes.
+<br />
+
+<br />
+
+Como Sem e Japhet queria encubrir a falta
+de pudor de No&eacute;: o sacerdocio obrigou-me emfim
+a ser como Cham. Fizeram-me voltar a face:
+contrangeram-me a descerrar os olhos. Practicaram
+uma boa obra: devem della gloriar-se.
+<br />
+
+<br />
+
+E quem &eacute; o homem que os pr&eacute;gadores de Portugal
+offerecem &aacute; execra&ccedil;&atilde;o publica, porque
+n&atilde;o
+quiz vender a sua alma ao demonio da mentira;
+porque n&atilde;o quiz deshonrar-se e deshonrar com
+embustes o seu livro? Que vossa eminencia me
+consinta fazer aqui esta dolorosa pergunta &aacute; minha
+consciencia; interrogar severamente o meu
+passado. Tem o clero a combater em mim um inveterado
+e perigoso inimigo? &Eacute; o seu t&atilde;o insolito
+proceder um impeto de vingan&ccedil;a, que o excita
+a repellir um perseguidor implacavel? Ha quinze
+annos que trabalho na imprensa, e sen&atilde;o por merito
+proprio, ao menos por circumstancias, que
+n&atilde;o importa aqui recordar, muitas das paginas
+avulsas que tenho deixado ap&oacute;s mim na carreira
+da vida se derramaram por todos os angulos
+do paiz, penetraram aonde livros e jornaes de
+<span class="pagenum">[30]</span>
+mais alto pensar nunca haviam chegado, e talvez
+nunca depois chegaram. Haver&aacute; nessas pobres
+paginas alguma cousa que possa incitar a colera
+sacerdotal? Como procedi eu sempre &aacute;cerca da
+igreja e do clero? As id&eacute;as do seculo, recalcadas
+por uma compress&atilde;o violenta, a que, for&ccedil;a
+&eacute; confess&aacute;-lo,
+a maioria do sacerdocio se havia associado,
+tinham reagido violentamente, e assentavam-se
+triumphantes sobre as ruinas do passado quando
+eu entrei no campo da imprensa, no campo
+das batalhas do espirito. De roda de mim jaziam
+os fragmentos da sociedade que fora, e no meio
+delles o clero, disperso, empobrecido, cuberto
+de affrontas, experimentava as consequencias do
+predominio de um partido adverso e irritado. A
+situa&ccedil;&atilde;o da igreja portuguesa nessa epocha, e
+sobretudo a situa&ccedil;&atilde;o dos regulares, sabemos todos
+qual era. Foram feridas de que, porventura,
+ainda mais de uma goteja sangue. Os homens
+das velhas opini&otilde;es politicas, no meio do terror,
+vergados pelo desalento de uma qu&eacute;da tremenda,
+duplicadamente dolorosa pela desesperan&ccedil;a,
+calavam. Nem uma voz amiga se alevantava nesta
+terra de Portugal a favor da igreja batida pela
+tempestade. Ainda ent&atilde;o esse grupo de mancebos
+cheios de talento, de inspira&ccedil;&otilde;es grandiosas e
+<span class="pagenum">[31]</span>
+de cren&ccedil;a fervente na liberdade humana, e pela
+liberdade na eterna justi&ccedil;a; essa phalange, no
+meio da qual todos os dias apparecem novos soldados,
+e que n&atilde;o se envergonha de Deus nem do
+seu Christo, n&atilde;o tinha ainda come&ccedil;ado a surgir
+para ser generosa, amplamente generosa, com
+os adversarios das suas id&eacute;as, quando a desventura
+os sanctifica. Na imprensa liberal, revolucionaria,
+impia, como quizerem chamar-lhe, eu,
+s&oacute; eu, tive por muito tempo palavras de
+affei&ccedil;&atilde;o
+e consolo para a desgra&ccedil;a; s&oacute; eu tive animo para
+accusar os homens do meu partido d'espoliadores
+e d'insensatos; para tentar revoc&aacute;-los &aacute; poesia
+do christianismo, do eterno alliado da liberdade.
+A voz que do campo do progresso saudava
+o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera:
+a m&atilde;o que se estendia para amparar o sacerdote
+curvado sob o peso da agonia era bem
+pouco robusta, mas era leal! Como Yorick guardava
+a caixa do pobre franciscano entre os symbolos
+da sua religi&atilde;o de affectos, eu guardo para
+mim, e s&oacute; para mim, mais de um papel escripto
+por m&atilde;os tr&eacute;mulas de velho monge, e talvez regado
+por lagrymas, em que se reconhecia a possibilidade
+de haver um homem das novas id&eacute;as
+que n&atilde;o fosse absolutamente um malvado. &Eacute; sobre
+<span class="pagenum">[32]</span>
+estas reliquias que eu quero encostar a cabe&ccedil;a
+para dormir tranquillo o ultimo e longo
+somno em que todos devemos repousar. N&atilde;o
+receiem pois os que me chamam hoje impio e
+herege, que eu os envergonhe com o testemunho
+dos que valiam mais do que elles, dos verdadeiros
+martyres do passado. S&atilde;o cousas queridas
+e sanctas para mim. Estejam certos de que n&atilde;o
+as prostituirei j&aacute;mais.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, pouco a pouco, foi-se estabelecendo
+nos animos uma reac&ccedil;&atilde;o salutar:
+come&ccedil;ou-se a
+sentir que o templo e o sacerdote eram importantes
+elementos de paz, e que podiam ser instrumentos
+de liberdade. Vieram outros pelejadores,
+todos mais fortes e d&eacute;stros, combater na
+arena onde por tanto tempo eu me tinha achado
+s&oacute;. N&atilde;o foi de certo a minha influencia
+litteraria
+que trouxe este resultado. Trouxe-o o progresso
+da raz&atilde;o humana, a for&ccedil;a irresistivel da verdade.
+Entretanto, parece que, retirando-me do posto
+que defendera com os limitados recursos que
+Deus repartira comigo, merecia do clero, por si
+e pela igreja, um <em>vale</em> de paz.
+<br />
+
+<br />
+
+Em logar disso tenho a guerra, acerba, covarde,
+atrai&ccedil;oada. Porque? Porque trouxe para o campo
+da historia o mesmo amor da verdade singela,
+<span class="pagenum">[33]</span>
+que tinha mostrado n'uma das mais graves quest&otilde;es
+sociaes.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o me arrependo do que fiz. Cumpri um dever
+que me impunham Deos e a minha consciencia.
+N&atilde;o espero arrepender-me do que fa&ccedil;o. Cumpro
+uma obriga&ccedil;&atilde;o litteraria, e estou certo de que
+bem mere&ccedil;o da terra em que nasci escrevendo a
+verdade.
+<br />
+
+<br />
+
+Sabe vossa eminencia sobre que eu hesito? &Eacute;
+sobre a legitimidade absoluta das minhas queixas;
+&eacute; sobre se, no que supponho um dever d'honra,
+n&atilde;o haver&aacute; um pouco da
+obceca&ccedil;&atilde;o da vaidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Roma, que parece ter jurado nas aras
+de Jupiter Stator o exterminio do catholicismo,
+crucifica no seu <em>Index</em> nomes como os
+de Chateaubriand
+e Lamartine; nomes como os de Gioberti
+e Ventura, terei eu, verme que passo &aacute; sombra
+do meu nada, direito de offender-me porque
+de pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa,
+alguns clerigos maus ou ignorantes lan&ccedil;am
+sobre mim o vilipendio das suas palavras?
+<br />
+
+<br />
+
+Quando a igreja, envolvendo a fronte no v&eacute;u
+da sua immensa tristeza, e sentindo humedecer-lhe
+os p&eacute;s o sangue humano vertido pelo ferro
+sacerdotal, contempla atterrada o futuro, ha dor
+de individuos a que seja licito um brado?
+<span class="pagenum">[34]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Cerrarei aqui o discurso, porque temo ir mais
+longe do que eu quizera. Permitta-me vossa
+eminencia que conclua fazendo um voto, ao qual
+sei que vossa eminencia se associa, bem como
+os outros prelados de Portugal:&#8213;Oxal&aacute; venha em
+breve o dia em que o clero d'este paiz possa receber
+uma educa&ccedil;&atilde;o digna do seu elevado destino,
+e conhecer, por estudos severos e bem dirigidos,
+que o ser christ&atilde;o n&atilde;o &eacute; ser nem
+hypocrita
+nem fanatico.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><br />
+
+<a name="c2"></a>II<br />
+
+<br />
+
+CONSIDERA&Ccedil;&Otilde;ES PACIFICAS<br />
+
+</h3>
+
+<h5>SOBRE O OP&Uacute;SCULO EU E O CLERO<br />
+
+</h5>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h4>
+AO REDACTOR DA NA&Ccedil;&Atilde;O</h4>
+
+<h4>
+(<em>Julho, 1850</em>)
+</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+A necessidade de reprimir o abuso do ministerio
+do pulpito que contra mim se estava practicando
+obrigou-me a dirigir a sua eminencia o
+Patriarcha de Lisboa uma carta, na qual, sem
+faltar &aacute; considera&ccedil;&atilde;o devida ao
+prelado da diocese,
+nem aos outros bispos do reino, entendi
+que cumpria usar de uma linguagem severa, mas
+justa, para com a maioria do clero. Habituado a
+patentear livre e singelamente as minha opini&otilde;es
+&aacute;cerca dos homens e das cousas, n&atilde;o soube nem
+quiz buscar rodeios, ou ado&ccedil;ar as phrases para
+me exprimir de modo menos aspero n'uma quest&atilde;o
+que me respeitava pessoalmente, e em que
+at&eacute; certo ponto estava compromettido, n&atilde;o
+s&oacute; o
+<span class="pagenum"><a name="p36" id="p36">[36]</a></span>
+meu caracter litterario, mas tambem, o que mais
+importa, o meu caracter moral. Toda a imprensa
+periodica, politica e n&atilde;o politica, sem
+distinc&ccedil;&atilde;o
+de partidos, foi unanime em condemnar actos
+que me obrigavam a dar um passo a que bem
+desejaria me houvessem poupado. Como os outros
+jornaes, a
+<em>Na&ccedil;&atilde;o</em> reprovou
+as <a href="#e2">aggress&otilde;es</a>
+inauditas perpetradas por uma parte do clero, e
+toleradas por outra. O procedimento de v.. para
+comigo foi nessa conjunctura tanto mais nobre,
+quanto &eacute; certo que a indole do seu jornal
+deveria talvez lev&aacute;-lo a rebater a opini&atilde;o de
+diversas
+publica&ccedil;&otilde;es periodicas, se o sentimento
+da justi&ccedil;a n&atilde;o fosse mais forte no animo de v..
+do que outras quaesquer considera&ccedil;&otilde;es.
+&Eacute; assim
+que o sacerdocio da imprensa cumpre a sua grave
+miss&atilde;o, e remedeia do modo possivel a decadencia
+do sacerdocio religioso. Continuando, por&eacute;m,
+a tractar de uma quest&atilde;o, que, embora
+interessasse um simples e quasi obscuro individuo,
+era demasiado importante pelo alcance e
+significa&ccedil;&atilde;o dos factos que a haviam suscitado,
+v.. teve a bondade de dirigir-me algumas
+observa&ccedil;&otilde;es,
+que me pareceu exigirem de mim
+explica&ccedil;&otilde;es como christ&atilde;o e como homem
+de letras.
+N&atilde;o as dei logo, porque n&atilde;o tardou a annunciar-se
+<span class="pagenum">[37]</span>
+publicamente uma refuta&ccedil;&atilde;o da minha carta,
+em desaggravo do clero. Falava-se n'um milagre
+de sciencia e de raciocinio, diante do qual eu
+teria de fugir desalentado como os sarracenos de
+Ourique diante do da appari&ccedil;&atilde;o. Citavam-se,
+at&eacute;,
+nomes: falava-se em summidades da igreja e da
+eschola. Como entendo que n&atilde;o &eacute; bom fugir sem
+ver de que, esperei que rebentasse o temporal. Se
+fosse por elle submergido, de que aproveitariam
+as explica&ccedil;&otilde;es dadas a v..? Se, por&eacute;m,
+podesse
+salvar o meu fragil baixel, pediria misericordia
+aos vencedores, e daria ao mesmo tempo a v..
+raz&atilde;o de mim. Fiquei, portanto, como o sentenciado
+no oratorio, com o ouvido attento ao som
+que devia annunciar a hora do supplicio. Esta hora,
+todavia, segundo creio, passou. A dizer a verdade,
+eu alimentava esperan&ccedil;as de salva&ccedil;&atilde;o
+com
+um argumento que fazia a mim mesmo. N&atilde;o &eacute;
+provavel, dizia comigo, que um membro do clero
+illustrado e honesto queira vir combater-me
+no terreno desigual e escorregadio em que a imprudencia
+collocou o sacerdocio, e o vulgo clerical
+tem impedimento dirimente para entrar neste
+empenho. Para escrever &eacute; preciso saber ler e ter
+lido; saber reflectir, e ter reflectido muito. Por
+este lado podia eu estar tranquillo.
+<span class="pagenum">[38]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; certo que o annuncio feito nos jornaes n&atilde;o
+foi materialmente v&atilde;o. Appareceu um folheto, que
+parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me que
+&eacute; de um mancebo principiante. Revela, sem d&uacute;vida,
+algum talento no auctor. Com o tempo, e estudando,
+este p&oacute;de vir a ser um escriptor soffrivel,
+e habilitar-se emfim, para tractar d'estas ou
+d'outras quest&otilde;es com honra sua e proveito do
+paiz.
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Non ragioniam di lui, ma
+guarda, e passa.<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+&Eacute; pois tempo de me explicar com v.. e fa-lo-hei
+do modo mais breve que me for possivel.
+Se alguma phrase menos comedida me fugir da
+penna, declaro desde j&aacute; que a retiro. Dirigindo-me
+a um escriptor como v.., t&atilde;o urbano nas
+proprias censuras que me faz, embora sobre t&atilde;o
+melindrosa materia como o s&atilde;o as cousas da f&eacute;,
+espero que v.. n&atilde;o veja por caso algum nas
+minhas palavras a menor inten&ccedil;&atilde;o offensiva.
+<br />
+
+<br />
+
+Tres censuras irroga v.. ao conte&uacute;do da minha
+carta; a primeira contra a antithese contida
+no titulo do opusculo <em>Eu e o clero</em>:
+a segunda
+contra as express&otilde;es de <em>intelligencias
+vastas e
+energicas, mas corruptas, violentas e
+cubi&ccedil;osas</em>,
+de que me servi para qualificar alguns papas: a
+terceira contra a phrase, <em>Roma que parece
+ter</em>
+<span class="pagenum">[39]</span>
+<em>jurado nas aras de Jupiter Stator o exterminio
+do catholicismo</em>, e contra os terrores que attribuo
+&aacute; igreja &aacute;cerca do futuro. Considerarei em
+especial
+cada uma dessas tres censuras.
+<br />
+
+<br />
+
+Diz v.. que me era licito collocar-me em
+antagonismo com um ou outro clerigo, por&eacute;m
+n&atilde;o com o clero em geral, por honra e credito
+meu, que nada podia ganhar em lucta t&atilde;o desigual,
+e que, a existir, seria a minha condemna&ccedil;&atilde;o.
+Antes de tudo &eacute; necessario observar duas
+cousas: 1.&ordf;, que o antagonismo n&atilde;o o creei eu:
+resultou de factos practicados pelo clero, que
+tolerei com paciencia durante annos, e que toleraria
+talvez sempre em silencio, se n&atilde;o receiasse
+que no progresso da aggress&atilde;o chegassem
+a levantar-me um pulpito diante da porta,
+para d'ahi me fazerem um serm&atilde;o sobre a sanctidade
+dos papas da idade m&eacute;dia, ou sobre os
+milagres referidos por S. Bernardo: 2.&ordf;, que &eacute;
+pelo opusculo e n&atilde;o pelo seu titulo, que se h&aacute;
+de avaliar at&eacute; onde esse antagonismo vai, e se
+elle &eacute; legitimo. N&atilde;o apparece uma unica passagem
+da minha carta em que eu me refira com
+phrases hostis a <em>todo</em> o clero
+portugu&ecirc;s. Os homens
+que ha no meio delle illustrados e virtuosos,
+respeito-os; respeito-os duplicadamente pela
+<span class="pagenum">[40]</span>
+sua illustra&ccedil;&atilde;o e pelas suas virtudes; pelo seu
+caracter litterario, e pelo seu caracter sacerdotal.
+Esses n&atilde;o sobem aos pulpitos a dizer despropositos;
+n&atilde;o me querem mal, nem a mim nem aos
+meus pobres escriptos. Ao que eu me contrap&uacute;s
+foi &aacute;s turbas tonsuradas; foi &aacute; maioria material
+e numerica; minoria nos dominios da intellectualidade,
+das id&eacute;as, e dos puros e nobres affectos.
+Faria uma offensa gratuita; practicaria
+uma brutalidade indesculpavel, estaria em
+contradic&ccedil;&atilde;o
+comigo mesmo, com as minhas opini&otilde;es,
+se assim, sem motivo, sem provoca&ccedil;&atilde;o,
+tivesse o proposito de maltractar aquell'outra
+parte do clero.
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; esta a id&eacute;a que ha de resultar da leitura da
+minha carta para todos os animos desprevenidos;
+para v.. mesmo, se tiver bastante paciencia
+para a reler. Quanto a esses de quem me queixo,
+n&atilde;o sou eu homem que esconda as proprias
+convic&ccedil;&otilde;es.
+Na minha vida litteraria tenho dado mais
+de um documento de que costumo ser sincero.
+Estou persuadido de que a maioria do nosso clero
+&eacute; tal como eu a qualifiquei, e se n&atilde;o fosse a
+natural repugnancia a despeda&ccedil;ar um cadaver,
+daria aqui as raz&otilde;es da minha persuas&atilde;o. Em
+todo o caso, acceito inteira a responsabilidade
+<span class="pagenum">[41]</span>
+della: n&atilde;o tergiverso, n&atilde;o me arrependo. Tenho
+dicto e escripto muitas verdades, sen&atilde;o mais deploraveis,
+por certo mais perigosas para mim,
+sem que o meu somno deixasse de ser profundo,
+como o &eacute; habitualmente.
+<br />
+
+<br />
+
+Postas as cousas nestes termos, que s&atilde;o os
+exactos, n&atilde;o me &eacute; possivel comprehender a
+affirmativa
+de v.. de que o meu credito e honra
+padeceriam pelo antagonismo com a maioria do
+clero, <em>nessa lucta desigual, que envolveria a minha
+condemna&ccedil;&atilde;o</em>. Se v.. viu
+naquella fatal antithese
+um peccado de orgulho, talvez o seja; mas
+eu vi nella apenas um acto de humildade. Pois,
+em consciencia, eu n&atilde;o valerei mais, litteraria e
+moralmente, do que um clerigo mau ou insipiente?
+Mas cem, mas mil, mas dez mil clerigos m&aacute;us
+ou insipientes, ainda que os fundam e os acrisolem,
+chegar&atilde;o, acaso, a produzir o equivalente
+de um homem de alguma intelligencia e de alguma
+honestidade? N&atilde;o. O resultado de todas
+essas opera&ccedil;&otilde;es ser&aacute; sempre, a meu
+ver, um
+<em>substratum</em> de parvoice ou de
+corrup&ccedil;&atilde;o. Peccado
+de soberba n&atilde;o creio, portanto, t&ecirc;-lo commettido.
+Por este lado mal posso ser condemnado.
+Referir-se-hia, por&eacute;m, v.. ao perigo litterario?
+Tambem n&atilde;o p&oacute;de ser. &Eacute; v.. assaz
+<span class="pagenum">[42]</span>
+instruido para sentir que por esse lado a lucta
+me d&aacute; tanto cuidado como daria a v.. se estivesse
+no meu logar. &Eacute; o perigo religioso? A
+id&eacute;a da condemna&ccedil;&atilde;o antes de
+contestada a lide,
+e envolvida na proposi&ccedil;&atilde;o da causa, torna
+talvez plausivel esta interpreta&ccedil;&atilde;o. Nessa
+hypothese,
+v.. n&atilde;o teria advertido n'um facto indubitavel.
+A maioria do clero portugu&ecirc;s n&atilde;o &eacute;
+a maioria do clero catholico: a maioria do clero
+catholico n&atilde;o constitue por si a igreja de Deus.
+Bem infeliz seria eu se me visse em opposi&ccedil;&atilde;o
+com esta; mas confio em que a Providencia me
+livrar&aacute; de cair nesse abysmo, n&atilde;o s&oacute;
+agora, mas
+sempre.
+<br />
+
+<br />
+
+Todavia a minha linguagem severa, embora
+justa e legitima, ser&aacute; condemnavel, sen&atilde;o pela
+substancia, ao menos pelos accidentes? Ser&aacute; condemnavel
+porque vai ferir duramente um grande
+numero de sacerdotes, de homens, infelizmente,
+ungidos do Senhor? Que v.. me consinta invocar
+em meu auxilio um exemplo acima de toda
+a excep&ccedil;&atilde;o. &Eacute; de um padre da igreja, a
+cujas obras
+o nosso clero foi t&atilde;o affei&ccedil;oado, que
+at&eacute; lh'as quiz
+augmentar, com grande gloria do sancto e proveito
+destes reinos. Alludo a S. Bernardo. As
+phrases da minha carta s&atilde;o de suprema do&ccedil;ura
+<span class="pagenum">[43]</span>
+comparadas com as que o celebre cluniacence
+empregava para qualificar a corrup&ccedil;&atilde;o,
+n&atilde;o do
+clero de um paiz, n&atilde;o da maioria desse clero, mas
+em geral do sacerdocio do seu tempo. &laquo;<em>Manou
+a
+iniquidade</em>&#8213;dizia S. Bernardo&#8213;<em>dos
+anci&atilde;os,
+dos juizes, dos teus vigarios, oh Deus; daquelles
+que parecem governar o teu povo! J&aacute; n&atilde;o
+&eacute; licito
+dizer</em>&#8213;<em>tal o povo, tal o sacerdocio;
+porque
+este &eacute; peior. Oh meu Deus, meu Deus! Os teus
+maiores perseguidores s&atilde;o os que mais ambicionam
+a primazia, e exercem na igreja o mando
+supremo</em><sup><a href="#f1">[1]</a></sup>&raquo;.
+E, como se estas acres
+express&otilde;es
+n&atilde;o bastassem, o terrivel benedictino desfecha,
+n'uma carta dirigida, n&atilde;o a algum prelado metropolitano,
+mas ao proprio Innocencio II, na
+seguinte diatribe: <em>A insolencia do
+clero</em>, a qual
+nasce da indulgencia dos bispos, <em>turba o mundo
+e afflige a igreja. Entregam os bispos as cousas
+sanctas</em> a c&atilde;es, <em>e as
+pedras preciosas</em> a porcos,
+<em>e elles em paga mettem-nas debaixo dos p&eacute;s.
+Assim
+o quizeram, assim o tenham</em><sup><a href="#f2">[2]</a></sup>&raquo;.
+Se eu me
+servisse de semelhante linguagem, imagine v..
+que matinada se alevantaria contra mim!
+<span class="pagenum">[44]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Dir-me-ha v.. que S. Bernardo foi um sancto
+padre da igreja, e eu n&atilde;o passo de um peccador
+e obscuro christ&atilde;o? Assim &eacute;. Por isso o segui de
+longe, <em>non passibus &aelig;quis</em>.
+Comtudo, v.. n&atilde;o
+deixar&aacute; de advertir em que, quando elle escrevia
+essas phrases violentas, era um pobre monge,
+humilde, simples, sem pretens&otilde;es orgulhosas,
+sem presciencia de que tinha de ser um sancto e
+um luminar da igreja. E que lhe importava? O
+espectaculo do procedimento do clero arrancou
+da sua b&ocirc;ca esses brados d'indigna&ccedil;&atilde;o,
+como
+loucas provoca&ccedil;&otilde;es arrancaram da minha penna
+palavras muito menos violentas.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; agora consinta-me v.. que cite ainda um
+veneravel prelado portugu&ecirc;s quasi do nosso tempo,
+a quem tambem tive occasi&atilde;o de alludir na
+minha carta; que recorde as palavras geraes de
+D. Fr. Caetano Brand&atilde;o &aacute;cerca do clero
+portugu&ecirc;s
+no principio deste seculo. O metropolita explicava
+n'uma carta a certo ministro d'estado
+quem era que fazia recair a desconsidera&ccedil;&atilde;o sobre
+o poder pontificio: &laquo;<em>S&atilde;o
+aquelles</em>&#8213;dizia o
+arcebispo de Braga&#8213;<em>que &aacute; for&ccedil;a
+de supplicas
+importunas, de respeitos humanos, e outros motivos</em>
+ainda mais vergonhosos, <em>costumam extorquir
+da curia romana provis&otilde;es beneficiaes</em>, que
+<span class="pagenum">[45]</span>
+mais parecem titulos de contractos de predios
+rusticos, do que de beneficios ecclesiasticos;
+<em>provis&otilde;es a favor das quaes tem infestado
+as parochias
+e c&oacute;ros</em> (collegiadas e cabidos) de todo o
+reino <em>uma tropa confusa de</em> sujeitos
+indignos,
+etc.<sup><a href="#f3">[3]</a></sup>&raquo;.
+Que se leia inteira a passagem impressa
+daquella carta, e ver-se-ha se foi o arcebispo, se
+eu, quem usou de mais desabrida linguagem.
+<br />
+
+<br />
+
+Apesar disso, suas reverencias h&atilde;o de tolerar-me
+a cren&ccedil;a de que n&atilde;o est&atilde;o no inferno
+nem a
+alma de D. Fr. Caetano Brand&atilde;o, nem a de S. Bernardo.
+<br />
+
+<br />
+
+Ainda algumas palavras sobre o antagonismo,
+em que de nenhum modo v.. me quer ver collocado,
+em rela&ccedil;&atilde;o &aacute; maioria do clero. Foram
+apenas alguns que me provocaram do pulpito, e
+eu chamo &aacute; autoria o grande numero. &Eacute; verdade.
+N&atilde;o sei com certeza sen&atilde;o de alguns factos
+de aggress&atilde;o, mas a noticia de parte d'esses factos
+obtive-a casualmente: alguns constaram-me apenas,
+porque um jornal a elles alludiu de passagem,
+dizendo que se practicavam por diversos
+logares de Entre-Douro e Minho. &Eacute; acaso provavel
+que se n&atilde;o repetissem por outras dioceses?
+<span class="pagenum">[46]</span>
+Em Lisboa, onde eu resido, onde os sacerdotes
+podem ter mais illustra&ccedil;&atilde;o, onde, at&eacute;,
+o fanatismo
+deve ser mais raro, porque a propria f&eacute; &eacute; mais
+tibia, onde, emfim, os pr&eacute;gadores mais devem
+receiar que o seu auditorio se ria delles, houve
+dous exemplos. N&atilde;o me ser&aacute; licito inferir que,
+n&atilde;o tendo eu uma policia &aacute;s minhas ordens, ignoro
+muitos successos analogos? Depois, houve, &aacute;
+vista desses factos repetidos, n&atilde;o digo
+puni&ccedil;&atilde;o
+de semelhante abuso do ministerio sagrado, o
+que n&atilde;o pe&ccedil;o, o que at&eacute; me
+contristaria, porque
+me lembro das palavras de Christo
+&laquo;<em>Perdoa-lhes
+Pae, que n&atilde;o sabem o que fazem</em>, mas a
+minima
+providencia para impedir a renova&ccedil;&atilde;o de taes
+escandalos?
+Para que servem os vigarios da vara,
+os arcediagos, os representantes ou delegados do
+poder episcopal? Como informam os respectivos
+prelados do que se passa entre o clero diocesano?
+N&atilde;o tenho eu direito de supp&ocirc;r que elles tambem
+entendem que a sanctidade dos papas da idade
+m&eacute;dia ou o apparecimento de Ourique s&atilde;o partes
+integrantes da cren&ccedil;a catholica, e que se trepassem
+ao pulpito, e lhes viesse a talho, me chamariam
+do mesmo modo impio ou herege? Se n&atilde;o
+est&atilde;o de accordo com os pr&eacute;gadores, como se
+esquecem
+de que os padres de Trento prohibiram
+<span class="pagenum">[47]</span>
+aos bispos que consentissem aos oradores sagrados
+<em>divulgar ou tractar factos incertos, ou que
+tenham caracteres de falsidades</em><sup><a href="#f4">[4]</a></sup>,
+e de que os do
+concilio 1.&ordm; de Colonia ordenam aos mesmos oradores
+que <em>n&atilde;o falem imprudentemente de milagres,
+limitando-se aos que refere a Biblia, ou
+aos que forem narrados por escriptores de peso,
+estribados em solidos fundamentos historicos</em><sup><a href="#f5">[5]</a></sup>?
+Como quer pois v.. que eu n&atilde;o increpe o maior
+numero e que n&atilde;o o supponha alistado contra
+mim nesta vergonhosa cruzada d'ignorancia?
+<br />
+
+<br />
+
+Passando ao segundo capitulo de accusa&ccedil;&atilde;o,
+sinto verdadeira magoa em ser constrangido a
+dizer que v.. leu menos attentamente o que
+escrevi &aacute;cerca dos papas na minha carta ao eminentissimo
+senhor Cardeal Patriarcha. Qualifiquei
+ahi de intelligencias vastas, energicas, mas corruptas,
+violentas e cubi&ccedil;osas, alguns delles que se
+chamaram Gregorio, Innocencio ou Honorio, e
+v.. reprehende-me por classificar como taes
+Gregorio VII e Innocencio III!? Onde me refiro
+eu a estes dous papas no meu opusculo? Na epocha
+abrangida pelo que se acha publicado da Historia
+<span class="pagenum">[48]</span>
+Portugal houve diversos pontifices desses
+nomes. A cada um delles fiz, creio eu, justi&ccedil;a, e
+Gregorio VII foi aquelle em que menos falei, porque
+viveu antes de nascer a monarchia. &Eacute; singular
+como v.. p&ocirc;de perceber que, entre tantos,
+alludi a esses dous em particular! N&atilde;o teria eu
+direito de dizer, que uma voz da propria consciencia
+trahiu e tornou van a benevolencia para
+com elles manifestada nas palavras de v..? O
+que me parece indubitavel &eacute; que alguma
+convic&ccedil;&atilde;o
+historica preoccupava o espirito de v..
+quando nas minhas express&otilde;es vagas e geraes
+viu um ataque directo e especial &aacute; memoria daquelles
+homens extraordinarios, cujos meritos
+n&atilde;o neguei, nem tenho empenho em negar.
+<br />
+
+<br />
+
+Entretanto n&atilde;o pense v.. que com isto pretendo
+lan&ccedil;ar f&oacute;ra de mim a responsabilidade de
+julgar severamente Hildebrando ou Innocencio
+III. N&atilde;o tenho a minima d&uacute;vida em lhes applicar
+as designa&ccedil;&otilde;es de intelligencias violentas e
+cubi&ccedil;osas,
+como n&atilde;o a tenho em chamar corruptos a
+outros papas, como, por exemplo, a Innocencio
+IV. &Eacute; verdade que v.. cobre Hildebrando com
+a egide da canonisa&ccedil;&atilde;o, e Innocencio III com a
+da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a
+sciencia e litteratura sejam synonimos de virtude,
+<span class="pagenum">[49]</span>
+nem creio que uma canonisa&ccedil;&atilde;o constitua dogma
+de f&eacute;, e obste &aacute; liberdade do historiador para
+avaliar como entender os caracteres historicos.
+V.. sabe perfeitamente que, fundando-se as
+canonisa&ccedil;&otilde;es
+em provas humanas, e n&atilde;o em factos
+revelados, as decis&otilde;es pontificias a tal respeito
+s&atilde;o sempre falliveis, o que bem se manifesta
+da ora&ccedil;&atilde;o que ainda no seculo XIV os papas
+faziam na solemnidade das canonisa&ccedil;&otilde;es, pedindo
+a Deus permittisse que n&atilde;o se houvessem enganado.
+Esta doutrina &eacute; corrente, e v.. n&atilde;o a
+ignora, nem poderia ignor&aacute;-la<sup><a href="#f6">[6]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+Recorda-me v.. que os escriptores protestantes
+fazem a estes dous pontifices a justi&ccedil;a
+que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como
+a entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo
+ao papado, em mais de um logar do meu
+livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos
+que a civilisa&ccedil;&atilde;o lhes deve. Dos historiadores
+protestantes modernos n&atilde;o conhe&ccedil;o nenhum
+mais celebre, dos que exaltam Gregorio
+VII, do que o professor Leo. Mas, para isso, elle
+proprio sentiu a necessidade de se valer exclusivamente
+da id&eacute;a em que se resume a historia
+<span class="pagenum"><a name="p50" id="p50">[50]</a></span>
+do progresso humano. Esta id&eacute;a &eacute; a
+<em>lucta do
+espirito com a sua manifesta&ccedil;&atilde;o, com a
+f&oacute;rma,
+com a materia; o desenvolvimento do raciocinio
+predominando no meio da for&ccedil;a do acaso</em><sup><a href="#f7">[7]</a></sup>&raquo;.
+Elle v&ecirc;-a representada, <a href="#e3">incarnada</a>,
+digamos assim,
+em Gregorio VII e nos seus immediatos
+successores, na indole e tendencias desses individuos;
+eu vejo-a no papado, na indole da institui&ccedil;&atilde;o.
+&Eacute; inquestionavel que nenhuns pontifices
+levaram mais longe a manifesta&ccedil;&atilde;o da
+id&eacute;a, e em
+philosophia historica os defeitos desses papas
+desapparecem, quando se considera a maneira
+<em>vasta e energica</em> por que elles
+desempenharam
+a miss&atilde;o providencial do papado n'aquella epocha.
+Todavia, na aprecia&ccedil;&atilde;o
+<em>moral</em> dos seus
+actos como individuos, &eacute; por outros principios
+que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo
+conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado
+a essa luz, que a excluiu da historia &laquo;<em>No
+mundo
+dos phenomenos</em>&#8213;diz elle&#8213;<em>a luz da
+verdade
+n&atilde;o se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se
+por todas. N&atilde;o s&atilde;o os phenomenos individualmente
+que constituem a verdade, mas sim
+o complexo delles</em>.&raquo; Para avaliar o
+pontifice como
+<span class="pagenum">[51]</span>
+representante e typo da institui&ccedil;&atilde;o, a regra
+&eacute;
+exacta; para o avaliar como homem, n&atilde;o; porque
+a <em>inten&ccedil;&atilde;o</em>, a
+causa moral dos actos, &eacute; necessaria
+para a aprecia&ccedil;&atilde;o abstracta de um caracter.
+A suberba, a ambi&ccedil;&atilde;o e at&eacute; a
+cubi&ccedil;a de
+Gregorio VII est&atilde;o pintadas nos factos a que accidentalmente
+me referi n'um logar do meu livro<sup><a href="#f8">[8]</a></sup>.
+Destruam, se &eacute; possivel, documentos irrefragaveis.
+<br />
+
+<br />
+
+Queremos, por&eacute;m, saber, por testemunho insuspeito,
+qual era essa inten&ccedil;&atilde;o moral, qual o
+caracter de Hildebrando? Ou&ccedil;amos um seu contemporaneo,
+um sancto padre. Tenho gosto especial
+em citar nestas cousas os sanctos padres.
+S&atilde;o respeitaveis auctoridades!
+&laquo;<em>De resto</em>&#8213;diz
+um delles&#8213;<em>rogo humildemente ao meu S. Satanaz
+que n&atilde;o se enfure&ccedil;a tanto comigo, e que a
+sua veneranda suberba n&atilde;o me fustigue com t&atilde;o
+longa
+flagella&ccedil;&atilde;o</em><sup><a href="#f9">[9]</a></sup>&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando.
+Quem o escrevia? Um pobre velho: S.
+Pedro Dami&atilde;o n'uma carta dirigida a Alexandre
+<span class="pagenum">[52]</span>
+II e ao proprio cardeal. Verdade &eacute; que n&atilde;o
+sab&iacute;a qu&atilde;o grande sancto havia de vir a ser o
+seu <em>S. Satanaz</em>. Nessas palavras
+amargas do veneravel
+monge est&aacute; explicada a actividade irresistivel
+com que Gregorio VII proseguiu na
+lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior
+intellectualmente aos outros homens, a
+ambi&ccedil;&atilde;o de os dominar a todos f&ecirc;-lo
+at&eacute; negar
+a realeza, n&atilde;o s&oacute; como facto, mas tambem como
+principio. Houve, ha hoje um democrata mais
+virulento do que Hildebrando? N&atilde;o o creio. V..
+conhece por certo uma passagem singular das
+suas cartas. &laquo;Que!&#8213;diz elle&#8213;uma dignidade
+inventada pelos homens do seculo (a dos principes)
+n&atilde;o estar&aacute; sujeita &aacute; que Deus
+estabeleceu
+para gloria propria? Quem n&atilde;o sabe que os reis,
+que os chefes procedem dos principes pag&atilde;os,
+os quaes por instiga&ccedil;&otilde;es do diabo,
+<em>que &eacute; o verdadeiro
+principe do mundo</em>, movidos por cega
+paix&atilde;o e levados por intoleravel
+presump&ccedil;&atilde;o,
+<em>usurparam o poder supremo sobre os seus
+iguaes</em>,
+pondo por obra, com esse intuito, a rapina, a
+perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os
+crimes?<sup><a href="#f10">[10]</a></sup>&raquo;
+N&atilde;o lhe parece a v.. que se hoje
+<span class="pagenum">[53]</span>
+Hildebrando resuscitasse, o tinhamos presidente
+da republica democratica e social? Veja v..
+o caso que o sancto var&atilde;o fazia do famoso texto
+biblico: <em>Per me reges regnant.</em>
+Dir-se-hia que
+tinha lido: <em>Per diabolum reges
+regnant.</em> Podemos
+n&oacute;s os monarchistas (embora o sejamos
+por differente feitio) acceitar as id&eacute;as do celebre
+S. Satanaz? N&atilde;o ha nessas id&eacute;as um orgulho,
+uma intolerancia para com os poderes da terra,
+que n&atilde;o comprehenderiamos, talvez, hoje, se
+n&atilde;o tivesse vivido no nosso seculo uma intelligencia
+igualmente <em>vasta e energica</em>, chamada
+Napole&atilde;o Bonaparte?
+<br />
+
+<br />
+
+Vamos &aacute;s ultimas censuras de v.. em que
+me parece n&atilde;o ter mais raz&atilde;o do que nas
+primeiras.
+Diz v.. que Roma, <em>significando o poder
+pontificio</em>, n&atilde;o p&oacute;de jurar o
+exterminio do
+catholicismo. Que!?&#8213;Pela palavra Roma n&atilde;o se
+p&oacute;de entender sen&atilde;o o poder pontificio,
+n&atilde;o se
+p&oacute;de significar sen&atilde;o o papa? V.. ha de
+permittir-me
+que eu recorra ainda uma vez a S. Bernardo
+para me salvar da condemna&ccedil;&atilde;o eminente.
+Nesta contenda, n&atilde;o sei porque, o meu espirito
+recorda-se a cada momento daquelle illustre padre
+da igreja. Falando das horriveis desordens
+que produziam as appella&ccedil;&otilde;es para o papa, e
+<span class="pagenum">[54]</span>
+alludindo a dous bispos allem&atilde;es carregados de
+crimes, que, tendo appellado para Roma e levando
+comsigo bastante dinheiro, haviam sido repellidos
+nas suas pretens&otilde;es e offertas, S. Bernardo
+exclama: &laquo;<em>Grande novidade! Quando
+at&eacute; o dia
+de hoje rejeitou Roma dinheiro?</em><sup><a href="#f11">[11]</a></sup>&raquo;
+Note-se que o
+sancto vivia no seculo immediato ao governo de
+Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso
+ao papa Eugenio III, que frequentemente louva,
+e a quem, por certo, n&atilde;o pretendia affrontar. Que
+significa pois a palavra <em>Roma</em> na
+b&ocirc;ca do grande
+abbade de Claraval? A curia romana; essa curia,
+onde, segundo a opini&atilde;o do severo cluniacense,
+&laquo;<em>era mais facil entrar honesto, do que
+tornar-se
+l&aacute; homem de bem</em><sup><a href="#f12">[12]</a></sup>&raquo;;
+essa curia
+que me obrigaria
+a encher paginas e paginas de cita&ccedil;&otilde;es se
+quizesse
+colligir as passagens relativas ao seu desprezo por
+todas as leis divinas e humanas, quando se tractava
+de receber ouro, passagens que se encontram
+&aacute;s dezenas nos escriptores mais respeitaveis, e
+onde se memoram, at&eacute;, versos das cantigas populares
+contra a cubi&ccedil;a da curia, o que prova ter-se
+tornado proverbial a corrup&ccedil;&atilde;o de Roma<sup><a href="#f13">[13]</a></sup>.
+<span class="pagenum">[55]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas concedamos que, ultrapassando al&eacute;m da
+curia romana, eu tivesse em mente o pontifice.
+Como homem, como principe temporal, os seus
+actos publicos s&atilde;o do dominio da imprensa; se
+esses actos pelos seus effeitos moraes e politicos
+poderem trazer graves turba&ccedil;&otilde;es, dias de amargura
+&aacute; igreja, n&atilde;o &eacute; licito a todo e
+qualquer christ&atilde;o
+deplorar essas consequencias, reprehender
+esses actos? Quando eu digo que Roma
+<em>parece</em>
+ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso
+o papa, a curia, alguem de ter a inten&ccedil;&atilde;o directa
+de o destruir? Ou eu n&atilde;o sei portugu&ecirc;s, ou
+empreguei
+uma phrase trivial, cujo alcance todos
+comprehendem. Que se diz do valetudinario que
+despreza os conselhos dos medicos? <em>Parece que
+se quer matar!</em> E quando dizemos isto passa-nos
+acaso pelo espirito a id&eacute;a de attribuir a esse individuo
+a inten&ccedil;&atilde;o directa do suicidio? Ou
+ser&aacute;
+que as express&otilde;es simples, as phrases innocentes
+dos outros homens se convertem em peste e veneno,
+quando saem da b&ocirc;ca do feroz herege que
+ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem
+<span class="pagenum">[56]</span>
+posthumo, de S. Bernardo &aacute;cerca do milagre de
+Ourique?
+<br />
+
+<br />
+
+Em que tempos estamos n&oacute;s? Para onde caminha
+a reac&ccedil;&atilde;o religiosa? Que!? Eu n&atilde;o
+poderia
+apreciar como entendesse o procedimento politico
+de um papa, em rela&ccedil;&atilde;o aos futuros destinos
+da igreja, e S. Thom&aacute;s de Cantuaria poderia sem
+ser um reprobo lan&ccedil;ar em rosto a Alexandre III
+as gravissimas accusa&ccedil;&otilde;es de o trahir, e de
+querer
+conduzi-lo &aacute; morte<sup><a href="#f14">[14]</a></sup>?
+Poderia S. Thom&aacute;s de
+Aquino, o mais profundo philosopho do seculo
+XIII, ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado
+o tempo em que S. Pedro dizia
+&laquo;<em>n&atilde;o possuo
+nem ouro nem prata</em>&raquo;&#8213;responder-lhe
+&laquo;<em>que tambem
+era passado o tempo em que S. Pedro dizia
+ao paralitico&#8213;levanta-te e anda</em><sup><a href="#f15">[15]</a></sup>&raquo;
+epigramma
+pungente atirado &aacute;s faces de um papa, cuja cubi&ccedil;a
+n&atilde;o conheceu limites; poderia, digo, S. Thom&aacute;s
+ser um doutor da igreja, depois deste attentado?
+Podia sequer ser papa o successor do mesmo
+Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o
+<em>vendilh&atilde;o de igrejas</em><sup><a href="#f16">[16]</a></sup>?
+Riscae do catalogo dos
+<span class="pagenum">[57]</span>
+bemaventurados S. Antonino de Floren&ccedil;a, que n&atilde;o
+duvidou de pintar com as mais negras c&ocirc;res os
+vicios hediondos de Clemente V<sup><a href="#f17">[17]</a></sup>.
+N&atilde;o chameis
+o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque taxou
+de velhaco o papa Eugenio IV<sup><a href="#f18">[18]</a></sup>.
+Rejeitae
+do gremio catholico o erudito e pio Fleury, porque
+escreveu o 4.&ordm; discurso sobre a historia Ecclesiastica.
+Para serdes logicos despovoae a igreja
+de sanctos, de doutores, de homens illustres, se
+credes que, dentro della, eu, que n&atilde;o sou nenhuma
+dessas cousas, n&atilde;o tenho direito de aferir pelos
+principios eternos da moral, da justi&ccedil;a e da caridade
+evangelica as ac&ccedil;&otilde;es dos papas sem renegar
+da igreja.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o disputarei com v.. sobre os successos
+de Roma nos ultimos tempos. Cada qual p&oacute;de
+v&ecirc;-los &aacute; luz que julgar verdadeira. Ao que,
+por&eacute;m,
+eu tenho jus &eacute; a averiguar se &eacute; exacta a
+proposi&ccedil;&atilde;o absoluta de v.., de que o futuro da
+igreja &eacute; muito sabido, claro e indisputavel
+<em>para
+os catholicos</em>. Por este modo v.. parece excluir-me
+do gremio do catholicismo, porque hesito sobre
+o seu futuro. Advertiu acaso v.. em que a
+<span class="pagenum">[58]</span>
+proposi&ccedil;&atilde;o assim absolutamente enunciada,
+conduziria
+ao impossivel? O que &eacute; certo, sabido e claro
+para a igreja, e para cada um dos seus membros,
+&eacute; que ella ser&aacute; perpetua, indestructivel. Mas
+por quaes phases tem de passar; se a esperam
+dias serenos, se dias de tribula&ccedil;&atilde;o; se acres
+resentimentos,
+imprudentemente preparados, vir&atilde;o
+ou n&atilde;o como a procella despir a folhagem, lascar
+os troncos da arvore eterna do christianismo, eis
+o que nem a igreja, nem eu, nem v.. sabemos.
+Est&aacute; acaso v.., que eu creio profundamente catholico,
+habilitado para me dizer de um modo <em>certo
+e claro</em>, se a idea revolucionaria da Italia apodreceu
+para sempre encharcada no sangue que as balas
+e bayonetas francesas e austriacas derramaram
+&aacute; voz da curia romana? Se a politica das masmorras,
+dos desterros, da compress&atilde;o inexoravel,
+preferida &aacute; politica evangelica da tolerancia, do
+perd&atilde;o das injurias, da caridade sem limites,
+poder&aacute;
+varrer para sempre dos animos italianos o
+odio do dominio estrangeiro (quer directo quer
+indirecto) e o amor da liberdade politica? Esse
+odio e esse amor p&oacute;de v.. julg&aacute;-los legitimos
+ou illegitimos: n&atilde;o disputarei sobre isso. Mas que
+elles n&atilde;o existam; que elles n&atilde;o possam triumphar
+algum dia, eis o que v.., por certo, n&atilde;o
+<span class="pagenum">[59]</span>
+affirmar&aacute; com a m&atilde;o na consciencia. E nessa
+hypothese,
+quem saber&aacute; dizer at&eacute; onde chegar&atilde;o
+os excessos da colera e da vingan&ccedil;a, azedadas
+pelo padecer, e at&eacute; certo ponto legitimadas por
+elle, se legitimidade se p&oacute;de dar em taes sentimentos?
+Parece-me que ao homem catholico &eacute;
+licito imaginar, sem que por isso vacille a sua f&eacute;
+&aacute;cerca da perpetuidade do catholicismo, que a
+igreja se entristece, ou deve entristecer, aterrada
+pelo porvir; &eacute; licito supp&ocirc;r que as lagrymas dos
+seus futuros martyres vem j&aacute; de antem&atilde;o cair-lhe
+ardentes sobre o seio materno. Se attribuir ao gremio
+dos fi&eacute;is, composto de homens, os affectos
+de dor e amargura desdiz de alguma cousa, n&atilde;o
+&eacute;, de certo, das tradi&ccedil;&otilde;es
+evangelicas, nem das
+tradi&ccedil;&otilde;es dos antigos padres. J&aacute; no
+seculo IV S. Hilario
+de Poitiers observava qu&atilde;o frequente era pintar-nos
+o evangelho como triste e afflicto o Filho
+de Deus<sup><a href="#f19">[19]</a></sup>;
+e S. Gregorio Magno n&atilde;o duvidava de
+dizer: &laquo;<em>A sancta igreja, emquanto vive esta
+vida
+de corrup&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o cessa de chorar os
+damnos
+das vicissitudes por que passa</em>&raquo;: e n'outra
+parte:
+&laquo;<em>A dor esmaga a igreja quando v&ecirc;
+os perversos
+<span class="pagenum">[60]</span>
+prosperarem na propria maldade</em>&raquo;<sup><a href="#f20">[20]</a></sup>.
+&Eacute; dessas
+vicissitudes a que allude o sancto pontifice que eu
+falo; &eacute; a essas vicissitudes, demasiado provaveis,
+que os erros dos homens, as paix&otilde;es anti-christans
+do sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas
+previs&otilde;es, um caracter de terribilidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Tenho dado raz&atilde;o de mim. Diz v.. que poderia
+accrescentar mais. Sinto que o limitado espa&ccedil;o
+de uma folha periodica, ou outro qualquer
+motivo, o inhibisse de assim o practicar. G&oacute;sto
+de ser advertido dos erros em que caio, quando
+&eacute; a sciencia e o talento quem se incumbe deste
+mister, e certifico a v.. de que facilmente me
+retractaria, se nas suas ulteriores observa&ccedil;&otilde;es
+v.. me convencesse de que eu errava. &Aacute; ignorancia
+presumida, ou &aacute; insolencia estupida, &eacute;
+que n&atilde;o costumo fazer a honra de responder.
+Quanto a esta quest&atilde;o, que n&atilde;o suscitei, e que
+at&eacute; deploro, ella terminou para mim. Que os
+hypocritas fa&ccedil;am visagens beatas contra a minha
+impiedade; que me proclamem herege ou o que
+elles quizerem, cousas s&atilde;o essas com que nenhum
+homem de juizo se afflige, porque as assaduras
+inquisitoriaes, merc&ecirc; de Deus, acabaram
+<span class="pagenum">[61]</span>
+para sempre. A ra&ccedil;a dos escribas e phariseus, o
+peior flagello que Christo encontrou na terra, e
+que elle mais cordealmente amaldi&ccedil;oou, &eacute; immortal
+e immutavel; mas deix&aacute;-la viver. Quem
+diz ao sapo:&#8213;&laquo;n&atilde;o sejas
+asqueroso?&raquo;&#8213;Quem
+diz &aacute; vibora:&#8213;&laquo;n&atilde;o sejas
+pe&ccedil;onhenta?&raquo;&#8213;Babem
+e mordam; &eacute; o seu destino, coitados!
+<br />
+
+<br />
+
+O que n&atilde;o tolerarei &eacute; que me chamem de
+novo, a mim ou aos meus escriptos, a figurarmos
+no meio das parvoices sacrilegas com que se
+deshonram os pulpitos. Que os prelados fa&ccedil;am
+ou n&atilde;o o seu dever a este respeito, pouco me
+importa. Estejam certos de que n&atilde;o ser&aacute; a suas
+excellencias que pedirei desaggravo.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c3"></a>III<br />
+
+<br />
+
+SOLEMNIA VERBA<br />
+
+</h3>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h4>
+AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES</h4>
+
+<h4>
+(<em>Outubro, 1850</em>)
+</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote1">Porque vir&aacute; tempo em que
+muitos
+homens n&atilde;o soffrer&atilde;o a san doutrina;
+mas..... accumular&atilde;o para si mestres
+conforme aos seus desejos:
+<br />
+
+<br />
+
+E assim apartar&atilde;o os ouvidos da
+verdade e os applicar&atilde;o &aacute;s fabulas.
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">
+<div style="text-align: right;"><em>S. Paulo,
+Epistola II a
+Thimoteo</em><br />
+
+</div>
+
+<em>c. 4. v. 3, 4.</em></div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Permitta-me v.. que, sem existirem entre n&oacute;s
+outras rela&ccedil;&otilde;es que n&atilde;o sejam aquellas
+que fortuitamente
+nascem entre os homens de letras quando
+se encontram no campo da imprensa, eu dirija,
+por essa mesma imprensa, uma carta a v..
+<br />
+
+<br />
+
+Esta carta ser&aacute; um pouco extensa. Ser&aacute; talvez
+seguida de outras. N&atilde;o o sei ainda. N'uma quest&atilde;o
+litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que
+o procedimento de alguns individuos da ordem
+sacerdotal converteu n'uma contenda que n&atilde;o sei
+<span class="pagenum">[63]</span>
+at&eacute; onde chegar&aacute;, v.. fez-me a honra de ser
+meu adversario, escrevendo dous opusculos em
+que combate as minhas opini&otilde;es n'um, ou para
+melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria.
+Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas
+epochas, v.. se houve sempre para comigo
+com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia
+de um espirito cultivado. P&oacute;de haver ahi uma
+ou outra express&atilde;o mais viva, que feriria certas
+vaidades demasiado mimosas; se, por&eacute;m, as ha,
+n&atilde;o me feriram a mim, endurecido j&aacute; nestes
+recontros,
+e que tambem n&atilde;o sou dos menos sujeitos
+a ceder &aacute;s vezes aos impulsos da vivacidade.
+<br />
+
+<br />
+
+No meio dos que me tem combatido, v.. representa
+a meus olhos a parte san, os homens
+sinceros do gremio, da eschola, do partido (como
+quizerem chamar-lhe, porque os nomes importam
+pouco) a que v.. pertence. Representa, digo,
+essa parte, postoque, e ainda bem que assim &eacute;,
+n&atilde;o a resuma. Igual testemunho devo deixar aqui,
+se os meus escriptos tem de viver mais algum dia
+que eu, &aacute;cerca dos Redactores do jornal <em>A
+Na&ccedil;&atilde;o</em>.
+Meus adversarios tambem, n&atilde;o recebi delles na
+impugna&ccedil;&atilde;o das minhas doutrinas, sen&atilde;o
+provas
+de considera&ccedil;&atilde;o e de urbanidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita
+<span class="pagenum">[64]</span>
+em que quiz encerrar-se no seu ultimo e recente
+opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses
+homens probos e leaes que estimo e respeito,
+embora julgue erroneas, deploraveis at&eacute;, as suas
+opini&otilde;es n'uma contenda, que, n&atilde;o por minha
+culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma
+direc&ccedil;&atilde;o fatal. Deus queira que os imprudentes
+que lhe deram origem n&atilde;o tenham de chorar a
+sua loucura com lagrymas amargas!
+<br />
+
+<br />
+
+Ser&iacute;a bem triste que essa por&ccedil;&atilde;o de
+compatricios
+meus em cujos cora&ccedil;&otilde;es o amor do passado
+&eacute; um sentimento puro, postoque, a meu ver, &aacute;s
+vezes se manifeste de modo pouco reflectido, me
+cressem traidor &aacute; sancta causa da patria. Se os
+erros de nossos paes e os erros de todos n&oacute;s os
+que vivemos, erros que nos trouxeram a uma
+situa&ccedil;&atilde;o que n&atilde;o posso, que
+n&atilde;o quero definir
+aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal,
+amea&ccedil;ado na sua independencia e nacionalidade,
+brade por todos os seus filhos para um
+esfor&ccedil;o supremo, para o salvarem ou para morrerem,
+espero em Deus, e depois de Deus na
+minha consciencia, que, sem crer no milagre de
+Ourique, n&atilde;o serei o ultimo a acceitar esse terrivel
+convite. O passado! Quem mais o amou do
+que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos
+<span class="pagenum">[65]</span>
+com mais saudade para as suas tradi&ccedil;&otilde;es? Mas as
+tradi&ccedil;&otilde;es de que tenho saudade; mas o passado
+que eu amo, n&atilde;o o s&atilde;o essas lendas absurdas
+(desculpe
+v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas
+por interesses mundanos, dos quaes,
+por mais graves que sejam, nem a philosophia nem
+o christianismo consentem se fa&ccedil;a o c&eacute;u
+instrumento.
+Nos tempos que foram o que me sorri, n&atilde;o
+s&oacute; como saudade, mas (porque n&atilde;o direi agora o
+que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem
+como esperan&ccedil;a, s&atilde;o as
+tradi&ccedil;&otilde;es dessa
+liberdade primitiva, postoque incompleta, filha
+primogenita do evangelho, que elle gerara para
+m&atilde;e, para abrigo das sociedades da Peninsula;
+dessa liberdade, rude e turbulenta como uma
+crean&ccedil;a educada &aacute; lei da natureza, mas como ella
+robusta e vi&ccedil;osa; dessa liberdade que se estribava
+nos habitos, que resultava de institui&ccedil;&otilde;es
+positivas e exequiveis, e n&atilde;o de
+institui&ccedil;&otilde;es copiadas
+quasi ao acaso da primeira theoria que
+tivesse transposto os Pyreneus; dessa liberdade
+que tornava a monarchia uma cousa sancta, necessaria,
+indestructivel, e que a monarchia, por
+desgra&ccedil;a sua e nossa, foi lentamente esmagando
+debaixo do seu throno, formado dos infolio, politicamente
+fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas
+<span class="pagenum">[66]</span>
+e Commentarios das escholas d'Italia; dessa
+liberdade, que, desenvolvida e organisada logicamente
+com a sua origem, nos teria poupado talvez
+&aacute; gloria immensa, mas para n&oacute;s mais que esteril,
+de nos convertermos em victimas da civilisa&ccedil;&atilde;o
+da Europa, de revelar o Oriente &aacute; sua cubi&ccedil;a,
+para logo virmos assentar-nos extenuados n'um
+occaso de tres seculos; dessa liberdade que nos
+teria salvado por certo de um longo estrebuxar
+em esfor&ccedil;os impotentes de emancipa&ccedil;&atilde;o,
+que tom&aacute;mos
+como lic&ccedil;&otilde;es d'extranhos, e que era mais
+velha para n&oacute;s do que o era para elles. Eis-aqui a
+maravilha, melhor que milagres imaginarios, na
+qual n&atilde;o s&oacute; creio, mas tambem espero.
+<br />
+
+<br />
+
+Pe&ccedil;o a v.. e aos animos honestos que pensam
+como v.. se persuadam de que o homem que
+n&atilde;o admitte certas narrativas infundadas, nem
+por isso deixa de ser bom portugu&ecirc;s, e que, se
+n&atilde;o est&aacute; excessivamente inclinado a adorar o
+Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em
+Deus.
+<br />
+
+<br />
+
+Com elles, com v.. a discuss&atilde;o grave, pausada,
+modesta, &eacute; possivel; &eacute; mais, &eacute; uma
+necessidade
+do espirito, em que este se sente viver da
+vida, a elle t&atilde;o congenita, do raciocinio. Mas como
+replicar seriamente a homens, n&atilde;o s&oacute; ignorantes
+<span class="pagenum">[67]</span>
+e ineptos, do que elles n&atilde;o tem culpa, mas
+que falsificam, truncam, omittem as palavras do
+adversario, que lhe alteram as ideas, que, mettidos
+no charco mais fetido dos becos da Alfama ou
+do Bairro Alto, at&iacute;ram &aacute;s faces do
+<em>impio</em> que passa
+quanto lodo lhes cabe nas m&atilde;os, contrahidas
+e convulsas pela colera? A taes desgra&ccedil;ados que
+se p&oacute;de fazer, sen&atilde;o dar-lhes a triste
+celebridade
+dos Cotins ou dos freis Gerundios, e envi&aacute;-los &aacute;
+gera&ccedil;&atilde;o futura, envolvidos no sudario do
+escarneo,
+para lhe distrahir os tedios?
+<br />
+
+<br />
+
+Se as express&otilde;es, talvez severas e acres em
+demasia, que me escaparam n'um impeto de
+indigna&ccedil;&atilde;o
+contra a maioria do nosso clero, e n&atilde;o
+contra os homens honestos e instruidos que pertencem
+a essa classe, como sem pudor se inculca,
+n&atilde;o estivessem justificadas pelos actos que as suscitaram,
+as consequencias do meu escripto t&ecirc;-las-hiam
+remido. Dos que me impugnaram, foi aos
+seculares que coube a modera&ccedil;&atilde;o, a lealdade, e
+a eleva&ccedil;&atilde;o dos pensamentos; foi a sacerdotes que
+couberam as manifesta&ccedil;&otilde;es de odio incrivel<sup><a href="#f21">[21]</a></sup>, a
+<span class="pagenum">[68]</span>
+transfigura&ccedil;&atilde;o das minhas ideas, e a linguagem
+sem nome das prostitutas. Isto &eacute; significativo. &Eacute;
+que esses seculares nunca tinham trajado a roupeta,
+usada a cubrir mais hypocritas e devassos
+ignorantes do que var&otilde;es religiosos e sabios: tinham,
+sim, vestido a farda de soldado, costumada
+a despertar tantas vezes nobres e grandes instinctos.
+E que me importam a mim esse odio impotente,
+essa linguagem vergonhosa? O que o futuro
+ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o v.. As
+amea&ccedil;as, que ahi se murmuram pelos cantos, essas
+causam-me d&oacute;. Se ao poder publico faltasse
+a for&ccedil;a para manter illesa a seguran&ccedil;a dos
+cidad&atilde;os,
+devolvia-se a estes o direito da propria defesa.
+Mas os Jacques-Clementes n&atilde;o apparecem
+sen&atilde;o onde a sinceridade das
+convic&ccedil;&otilde;es degenerou
+em delirio, e n&atilde;o onde as cren&ccedil;as s&atilde;o
+especula&ccedil;&atilde;o.
+Para ser Jacques-Clemente requer-se
+mais alguma cousa do que saber assassinar; &eacute;
+necessario saber morrer.
+<br />
+
+<br />
+
+Entrarei na materia.
+<br />
+
+<br />
+
+Na quest&atilde;o suscitada pelo modo como tractei
+<span class="pagenum">[69]</span>
+na Historia de Portugal a lenda de Ourique, e
+ainda outras lendas analogas, &eacute; necessario confessar
+que se tem partido sempre de um ponto
+nebuloso e fluctuante. Para se chegar a um resultado
+preciso era necessario ter convindo em
+certo numero de principios, acceitar certas formulas
+de raciocinio. N&atilde;o se fez isso. E todavia, a
+cr&iacute;tica historica tem regras para a credibilidade,
+regras a que todo aquelle que tracta de taes materias
+deve sujeitar-se, porque se estribam, n&atilde;o
+s&oacute; na acceita&ccedil;&atilde;o dos homens de
+sciencia, mas
+tambem na raz&atilde;o commum. Estes preceitos s&atilde;o
+no nosso seculo, em que os estudos historicos
+t&ecirc;m feito na Europa tantos ou mais progressos
+que as outras sciencias, assaz severos; mas essa
+severidade come&ccedil;ou a desenvolver-se desde os
+fins do seculo XVII, em que a congrega&ccedil;&atilde;o de S.
+Mauro, aquelle brilhante seminario de homens
+illustres, creou a diplomatica. O estudo dos archivos,
+estudo alumiado pela philosophia cr&iacute;tica,
+mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas
+compila&ccedil;&otilde;es de trabalhos historicos dos seculos
+anteriores. &Eacute; de S. Germ&atilde;o dos Prados, de S.
+Br&aacute;s da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos
+da Fran&ccedil;a e da Allemanha, que partiu
+o movimento intellectual da Europa nesta parte
+<span class="pagenum">[70]</span>
+do saber humano. O que o seculo presente, amestrado
+por maior experiencia, tem feito &eacute; apertar
+mais as condi&ccedil;&otilde;es da credibilidade, evitando ao
+mesmo tempo todo o genero de preoccupa&ccedil;&atilde;o
+que possa proceder dos interesses de partido politico
+ou da incredulidade em materias de religi&atilde;o;
+&eacute; tambem o ter dirigido as indaga&ccedil;&otilde;es
+historicas
+mais para o estudo da indole das sociedades,
+do que para os actos dos individuos. N&atilde;o
+nega as tradi&ccedil;&otilde;es da antiga sciencia;
+completa-as,
+aperfei&ccedil;oa-as. No exame dos monumentos, na sua
+confronta&ccedil;&atilde;o, tem dado exemplos de imparcialidade
+e de paciencia, que mereceriam os applausos
+dos grandes reformadores benedictinos, se podessem
+contemplar os resultados da eschola que
+elles crearam, embora a sciencia moderna, como
+era natural, os tenha deixado bem longe de si.
+Os doutos que t&ecirc;m comparado os <em>Monumenta
+Germani&aelig; Historica</em> de Pertz, os
+<em>Monumenta
+Histori&aelig; Patri&aelig;</em>, publicados em
+Turin, a Collec&ccedil;&atilde;o
+dos Archivos d'Inglaterra, a continua&ccedil;&atilde;o dos
+<em>Scriptores Rerum Francicarum</em>, e
+emfim as demais
+publica&ccedil;&otilde;es desta ordem com o que os maurienses
+nos deixaram nesse genero, sabem que
+passos gigantes tem dado a cr&iacute;tica das fontes historicas.
+O uso dessas fontes, a applica&ccedil;&atilde;o dos
+<span class="pagenum">[71]</span>
+preceitos a ellas, tem produzido historiadores
+como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Am&aacute;ri,
+Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira
+conhece e admira. &Eacute; a estes typos que hoje
+for&ccedil;osamente
+ha-de tentar aproximar-se quem escrever
+historia, se n&atilde;o quizer deshonrar-se e deshonrar
+a litteratura do seu paiz. Foi essa aproxima&ccedil;&atilde;o
+que eu tentei, persuadido de que bem
+merecia por isso da terra em que nasci. Se &eacute; assim
+ou n&atilde;o, pertence decidi-lo &aacute;quelles que vierem
+ap&oacute;s n&oacute;s. No meio de uma
+revolu&ccedil;&atilde;o litteraria
+n&atilde;o ha desafogo de animo bastante para se fazer
+inteira justi&ccedil;a, nem aos meus esfor&ccedil;os, nem
+&aacute; candura das minhas inten&ccedil;&otilde;es.
+Conhe&ccedil;o a difficuldade
+de se abandonarem antigas preoccupa&ccedil;&otilde;es,
+e seria louco se me irritasse com isso.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas para refutar as impugna&ccedil;&otilde;es que
+at&eacute; aqui
+t&ecirc;m apparecido n&atilde;o me parece necessario invocar
+a sciencia no seu estado actual, e nem sequer a
+sciencia anterior na sua applica&ccedil;&atilde;o &aacute;
+historia profana.
+Bastam-me as regras acceitas pelos historiadores
+ecclesiasticos mais respeitaveis, inculcadas
+por theologos, estabelecidas por membros illustres
+do clero, a quem nem uma unica voz ousar&aacute;
+accusar de menos crentes, ou sequer de menos
+piedosos. &Eacute;, creio eu, e v.. o julgar&aacute;, acceitar
+<span class="pagenum">[72]</span>
+a situa&ccedil;&atilde;o mais desvantajosa possivel:
+&eacute;
+tambem o que eu j&aacute; tinha feito invocando a regra
+de Vicente de Lerins. Se a religi&atilde;o (cuja base
+&eacute; a cren&ccedil;a em cousas que excedem a
+comprehens&atilde;o
+humana, e que nos imp&otilde;e a synthese, o
+dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente
+&aacute; analyse) exige dos factos tradicionaes,
+antes de os acceitarmos, as condi&ccedil;&otilde;es de terem
+sido acreditados <em>sempre, em toda a parte, e por
+todos</em>, quem pede para crer ou deixar de crer factos
+puramente humanos (sujeitos pela sua natureza
+a toda a discuss&atilde;o possivel) apenas as garantias
+de liberdade intellectual que a igreja, t&atilde;o
+parca em conced&ecirc;-las, concede aos fi&eacute;is para
+acceitarem
+uma parte das suas cren&ccedil;as, n&atilde;o abdica
+evidentemente de uma liberdade, de uma vantagem
+que &eacute; sua, que ninguem lhe disputaria? Mais
+de uma vez terei talvez de appellar para a probidade
+litteraria e para a intelligencia de v.. e
+dos homens sinceros e honestos que pensam como
+v..; mas aqui, parece-me t&atilde;o evidente a materia,
+que a deixo &aacute; discri&ccedil;&atilde;o do espirito
+mais vulgar,
+da consciencia mais prevenida. Se Galileu,
+quando descobriu que era a terra e n&atilde;o o sol que
+andava, tivesse presentes as condi&ccedil;&otilde;es do
+Comonitorio,
+n&atilde;o o teria affirmado, e evitaria as
+persegui&ccedil;&otilde;es
+<span class="pagenum">[73]</span>
+da inquisi&ccedil;&atilde;o, postoque deixaria para
+outro a gloria de ter descuberto um facto importante.
+Aquelle canon, applicado &aacute; sciencia, &eacute; mais
+perigoso para a verdade nova do que para o erro
+antigo.
+<br />
+
+<br />
+
+Eu disse que as auctoridades que estabeleceram
+as regras historicas acceitas por mim ser&atilde;o
+ineluctaveis para aquelles mesmos que mais ferrenhos
+se mostram em conservar quanto os tempos
+passados nos transmittiram. Essas regras,
+pois, ao menos as principaes, permitta-me v..
+que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver
+uma parte do clero insultar-me nos pulpitos e na
+imprensa, calumniar-me nas pra&ccedil;as e corrilhos,
+porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas
+<em>para se estudar e escrever a historia da
+igreja</em> por homens que s&atilde;o a gloria e honra
+da
+classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos,
+na consciencia de todos n&atilde;o estivesse quanto escrevi
+&aacute;cerca da decadencia intellectual da maioria
+do nosso clero, parece-me que o que vou transcrever
+ser&iacute;a medida sobeja para por ella se aferir
+essa verdade. J&aacute; que falei dos religiosos da
+congrega&ccedil;&atilde;o de S. Mauro, come&ccedil;arei
+pelo mais
+celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon.
+Eis o que elle nos ensina:
+<span class="pagenum">[74]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+1.&ordm; &laquo;Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos
+no estudo da historia &eacute; em evitar todos
+esses vicios em que &eacute; facil cair; quero dizer,
+evitar admittir por verdadeiro o que &eacute; falso, ou
+deixar-nos dominar pelas affei&ccedil;&otilde;es particulares
+dos historiadores. &Eacute; necessario, primeiro que
+tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se
+&eacute; idoneo e sincero; o que o moveu a escrever;
+se pertence a algum bando ou seita...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+2.&ordm; &laquo;Devemos averiguar <em>se o auctor que
+lemos
+&eacute; synchrono</em> (contemporaneo); se escreveu
+elle
+proprio, ou se copiou outro; se &eacute; prudente nas
+suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas;
+porquanto, dada a paridade no demais,
+deve preferir-se a opini&atilde;o do auctor coevo &aacute; do
+mais moderno. Digo&#8213;dada a paridade no demais&#8213;porque
+p&oacute;de acontecer, e acontece &aacute;s vezes,
+escrever a historia com inteira madureza o
+auctor n&atilde;o synchrono, estribado <em>em
+monumentos
+serios</em> e boas raz&otilde;es, e o contemporaneo
+muito
+ao contrario, ou seja por negligencia, ou seja por
+ignorancia dos factos, ou seja por alguma
+preven&ccedil;&atilde;o,
+ou finalmente porque o <em>subjuga a for&ccedil;a
+do proprio interesse</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+3.&ordm; &laquo;Segue-se d'aqui <em>n&atilde;o se
+dever confiar demasiado
+naquelles factos sobre que os escriptores</em>
+<span class="pagenum">[75]</span>
+<em>rigorosamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos,
+guardaram silencio</em>; postoque possa
+acontecer que um auctor mais moderno consultasse
+alguns monumentos importantes, guardados
+em logar occulto quando os factos aconteceram,
+ou visse escriptores synchronos, ou quasi
+synchronos, cujas obras depois se perdessem.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;<em>Se, por&eacute;m, esses escriptores, ou
+os que lhes succederam,
+no intervallo de um at&eacute; dous seculos,
+nada dizem a tal respeito, e n&atilde;o obstante isso,
+um historiador mais moderno, sem se estribar
+em testemunho ou auctoridade alguma, se atreve
+a asseverar temerariamente esses factos, bem pequena
+conta se deve fazer delle</em>, ali&aacute;s
+abririamos
+ampla estrada para errarmos, e para enganarmos
+os outros.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+4.&ordm; &laquo;Com todo o cuidado nos devemos premunir
+para n&atilde;o sermos illaqueados por alguns auctores
+suppositicios, inventados nestes nossos tempos...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+5.&ordm; &laquo;N&atilde;o se deve proscrever qualquer
+auctor
+por um ou outro defeito de paix&atilde;o ou
+allucina&ccedil;&atilde;o,
+pela rudeza do estylo, ou por outra imperfei&ccedil;&atilde;o
+propria da natureza humana, comtanto que seja
+sincero e pontual no resto...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+6.&ordm; &laquo;N&atilde;o se devem desprezar os
+antiquarios,
+<span class="pagenum">[76]</span>
+auctores de resumos historicos, e compiladores...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+7.&ordm; &laquo;Quando as narrativas variam, n&atilde;o nos
+devemos
+deixar attrahir pela considera&ccedil;&atilde;o do numero,
+mas sim pelo merito e gravidade<sup><a href="#f22">[22]</a></sup>
+dos auctores;
+visto que muitas vezes acontece que a auctoridade
+de um auctor grave e sincero merece
+preferir-se ao testemunho de cem de menos f&eacute;,
+<em>porque estes se foram repetindo uns aos outros
+sem madura discuss&atilde;o e diligente exame das
+cousas</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+8.&ordm; &laquo;Por este mesmo motivo n&atilde;o deve
+fazer-se
+grande fundamento na quasi innumeravel
+multid&atilde;o de casos que muitos modernos costumam
+amontoar nas vidas de certos sanctos... Dizendo
+isto, sinto apertar-se-me o cora&ccedil;&atilde;o, e com
+magua devo accrescentar, que s&atilde;o muitissimo
+mais exactos os auctores profanos escrevendo vidas
+de ethnicos, do que muitos christ&atilde;os relatando
+vidas de sanctos, o que j&aacute; n&atilde;o receou affirmar
+<span class="pagenum">[77]</span>
+Melchior Cano, referindo-se a Diogenes Laercio
+e a Suetonio.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Ou&ccedil;amos ainda n'outra parte o fundador da
+diplomatica francesa:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;&Eacute; necessaria a cr&iacute;tica para
+distinguirmos as
+historias verdadeiras das falsas; para n&atilde;o darmos
+temerariamente credito a narra&ccedil;&otilde;es
+supersticiosas,
+a vans opini&otilde;es, a delirios aereos, a
+<em>milagres
+fingidos ou duvidosos</em>, a <em>escriptos
+suppostos dos
+sanctos padres</em>. O veneravel Guigo, quinto geral
+dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma
+de cr&iacute;tica: ...<em>Buscae a prova de tudo; o
+bom
+respeitae-o. Quem cr&ecirc; de prompto &eacute; leve de
+cora&ccedil;&atilde;o.</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador
+da igreja catholica. Depois de varias
+considera&ccedil;&otilde;es
+sobre os documentos falsos com que o
+clero innundou a Europa nos seculos de trevas,
+e da falta de instruc&ccedil;&atilde;o que entre elle reinava,
+o
+historiador observa:
+<span class="pagenum">[78]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Outro resultado da ignorancia &eacute; tornarem-se
+os homens credulos e supersticiosos, por falta de
+principios seguros de cren&ccedil;a e de exacto conhecimento
+dos deveres religiosos. Deus &eacute; poderosissimo,
+e os sanctos t&ecirc;m alto valimento para com
+elle: verdades s&atilde;o estas que nenhum catholico
+rejeita: logo devo acreditar todos os milagres
+attribuidos &aacute; intercess&atilde;o dos sanctos.
+M&aacute; conclus&atilde;o.
+Cumpre examinar as provas delles, e com
+tanta mais exac&ccedil;&atilde;o, quanto esses factos mais
+incriveis
+e importantes forem. Porque, dar por
+certo um milagre falso nada menos &eacute;, segundo
+S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus,
+como mui judiciosamente observa S. Pedro Dami&atilde;o.
+Assim, longe de ser acto de piedade cr&ecirc;-los
+de leve, &eacute; a propria piedade que nos obriga
+a averiguarmos com rigor as provas em que se
+fundam. <em>O mesmo se deve dizer das
+revela&ccedil;&otilde;es,
+das appari&ccedil;&otilde;es de espiritos, das
+opera&ccedil;&otilde;es do demonio...
+Em summa, toda a pessoa dotada de
+bom juizo e religiosidade deve ser cautelosissima
+em acreditar factos sobrenaturaes.</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Mas observemos as precau&ccedil;&otilde;es de que Fleury
+se rodeava, as balisas que para si proprio punha,
+ao come&ccedil;ar o immenso lavor da sua <em>Historia
+Ecclesiastica</em>,
+ainda hoje n&atilde;o substituida, apesar de
+<span class="pagenum">[79]</span>
+tantas monographias excellentes com que depois
+tem sido illuminada, por um ou por outro aspecto,
+n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis
+os limites que elle estabeleceu &aacute; credibilidade
+n'um genero de escriptos onde esta poderia ser
+mais ampla, limites que &aacute;
+<em>fortiori</em> n&atilde;o
+ser&aacute; nunca
+licito ultrapassar em mat&eacute;ria de
+tradi&ccedil;&otilde;es humanas.
+Mas antes permitta-me v.. que cite algumas
+passagens, as quaes me parecem grandemente applicaveis
+a essa parte do clero, que, em vomitando,
+no pulpito ou na imprensa, contra quem diz a
+verdade, quantos adjectivos injuriosos cont&eacute;m o
+diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra
+dessas fabulas e crendices que est&atilde;o costumados
+a propalar entre o povo, provavelmente pela mesma
+raz&atilde;o por que pr&eacute;gam mal, isto &eacute;
+<em>porque os
+festeiros gostam d'isso</em>, embora os concilios lh'o
+prohibam, os apostolos os condemnem, os membros
+mais doutos e pios da igreja catholica lhes
+mostrem o abysmo em que se precipitam! Para
+onde has tu fugido, oh religi&atilde;o de Christo?!
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Vejo bem&#8213;diz Fleury&#8213;que a minha historia
+n&atilde;o ha-de agradar aos espiritos acanhados,
+atidos &aacute;s suas preoccupa&ccedil;&otilde;es, e sempre
+promptos
+em condemnar os que pretendem desengan&aacute;-los;
+aos que tapam os ouvidos quando a verdade soa,
+<span class="pagenum">[80]</span>
+para se abra&ccedil;arem com as fabulas, buscando doutores
+que v&atilde;o com elles. N&atilde;o lhes faltar&atilde;o
+livros
+acommodados ao paladar. Escrevo em vulgar
+para ser util aos homens de juizo...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um
+de credulidade, outro de critica. Nem s&oacute; a simpleza
+faz credulos. Pessoas ha que o s&atilde;o por politica
+e por deploravel sobranceria. <em>Julgam que
+o povo &eacute; incapaz ou indigno de saber a verdade;
+e tem por necessario alimentar-lhe todas as opini&otilde;es
+que lhe foram inculcadas como religi&atilde;o</em>,
+receiosos
+de abalar o que &eacute; solido, atacando o que
+&eacute; frivolo. Na essencia, estes suberbos politicos
+s&atilde;o ignorantissimos. Desconhecendo a religi&atilde;o,
+n&atilde;o a tomam a serio, e nada os liga a ella sen&atilde;o
+as preoccupa&ccedil;&otilde;es da infancia e os interesses
+temporaes.
+Nunca examinaram as seguras provas do
+evangelho, nem sentiram a excellencia da sua moral
+e a esperan&ccedil;a dos bens eternos.
+<em>&Eacute; por isso que
+n&atilde;o ousam profundar as cousas antigas e temem
+conhec&ecirc;-las</em>: sabem que lhes n&atilde;o
+s&atilde;o favoraveis.
+Querem crer que sempre se viveu como hoje,
+porque n&atilde;o querem mudar de vida, como se nos
+fosse proveitoso enganar-nos a n&oacute;s mesmos, ou
+se a verdade podesse trocar-se em mentira &aacute; for&ccedil;a
+de averigua&ccedil;&otilde;es. Gra&ccedil;as a Deus, a
+f&eacute; christan
+<span class="pagenum">[81]</span>
+passou pelo chrysol; o que ella
+<em>teme</em><sup><a href="#f23">[23]</a></sup>
+&eacute; que
+n&atilde;o
+a conhe&ccedil;am.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;A outra especie de pessoas credulas em demasia
+s&atilde;o christ&atilde;os sinceros, mas fracos e
+escrupulisadores,
+que &aacute; propria sombra da religi&atilde;o
+respeitam, e sempre receiam crer de menos.
+Falta a uns a instruc&ccedil;&atilde;o; cerram os outros os
+olhos, e n&atilde;o querem fazer uso do entendimento.
+&Eacute; para os taes objecto de devo&ccedil;&atilde;o crer
+quanto
+escreveram os auctores catholicos e quanto cr&ecirc;
+o ignorante vulgo. A meu v&ecirc;r, a <em>legitima
+devo&ccedil;&atilde;o
+consiste em prezar a verdade e a pureza da religi&atilde;o,
+e em observar, primeiro que tudo, os preceitos
+expressamente estabelecidos na sagrada
+escriptura</em>. Ora, vemos que S. Paulo recommenda
+repetidas vezes a Tito e a Timotheo que evitem
+as fabulas, predizendo tambem que uma das
+desordens do fim do mundo ser&aacute; o affastarem-se
+os homens da verdade para se aterem a crendices;
+vemos que as fabulas eruditas n&atilde;o merecem
+menos desprezo a S. Pedro que os contos de velhas
+<span class="pagenum">[82]</span>
+de S. Paulo; e do mesmo modo que elle condemna
+as fabulas judaicas, teria condemnado as
+christans, se j&aacute; ent&atilde;o as houvesse. Que
+dir&atilde;o a
+isto aquelles que a timidez torna t&atilde;o credulos?
+N&atilde;o ter&atilde;o escrupulo em menosprezar semelhante
+auctoridade? Dir&atilde;o que nunca houve fabulas
+entre os christ&atilde;os? Seria desmentir a antiguidade
+em peso...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;A critica &eacute; portanto, necessaria. Sem deixar
+de respeitar as tradi&ccedil;&otilde;es, deve averiguar-se
+quaes
+s&atilde;o dignas de credito; devemos faz&ecirc;-lo,
+at&eacute;, se
+n&atilde;o queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as
+com as falsas. Sem que duvidemos da
+omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar
+se os milagres est&atilde;o bem provados, para
+lhe n&atilde;o levantarmos falso testemunho, attribuindo-lhe
+os que elle n&atilde;o fez.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico
+&aacute;cerca dos milagres, estribado nos livros
+que Deus inspirou. Quem ser&aacute;, pois, o impio, o
+incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos
+e as doutrinas dos homens mais piedosos e
+sabios do gremio catholico, ou aquelles que esquecidos
+dos deveres, n&atilde;o digo do sacerdocio
+(porque neste caracter, o seu procedimento n&atilde;o
+tem nome), mas do simples christ&atilde;o, ousam perguntar
+<span class="pagenum">[83]</span>
+ao historiador sincero: &laquo;<em>Se &eacute;
+necessario,
+se &eacute; util que o historiador se constitua campe&atilde;o
+acerrimo contra essas tradi&ccedil;&otilde;es que deturpam a
+historia?</em> e que
+respondem:&#8213;<em>&Eacute; um arrojo mui
+imprudente e reprehensivel no historiador semelhante
+intento. Que precis&atilde;o, que vantagem ha
+em destruir as cren&ccedil;as theocraticas</em><sup><a href="#f24">[24]</a></sup><em>, que uma
+tradi&ccedil;&atilde;o de seculos fora radicando no
+cora&ccedil;&atilde;o
+do povo? Nenhuma ha:</em>&raquo; e depois accrescentam
+esta maxima impia de Laharpe&#8213;&laquo;<em>a politica
+sabia
+e devia tirar partido do poderoso movel da
+geral cren&ccedil;a, cujos effeitos s&atilde;o geralmente bons
+em todo o governo, mesmo quando a cren&ccedil;a &eacute;
+erronea!</em>&raquo; N&atilde;o pe&ccedil;o a
+v.. t&atilde;o cavalheiro e t&atilde;o
+indulgente para comigo; pe&ccedil;o ao homem que mais
+me odiar, mas que conserve um resto de pudor,
+que seja juiz entre mim e os desgra&ccedil;ados que n&atilde;o
+se envergonham, christ&atilde;os e sacerdotes, de invocar
+contra a Historia de Portugal taes principios
+e taes maximas, e que insultam, n&atilde;o a mim,
+nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia,
+<span class="pagenum">[84]</span>
+mas os escriptores mais sabios, mais respeitados
+do catholicismo.
+<br />
+
+<br />
+
+Mancebos, cujos cora&ccedil;&otilde;es generosos a
+indigna&ccedil;&atilde;o
+p&oacute;de desvairar! No meio destas saturnaes hediondas
+que vedes passar; no meio dos gritos descompostos
+da hypocrisia, que, embriagada de colera,
+deixa tombar dos hombros seu velho e j&aacute; t&atilde;o
+roto manto, e nua e vinolenta pragueja a verdade,
+atira com a f&eacute; aos p&eacute;s da politica, rasga as
+sacras
+paginas, maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres,
+e dos sabios, n&atilde;o volteis, cheios de horror e
+de tedio, as costas ao Calvario. N&atilde;o! A philosophia,
+a honesta liberdade do pensamento, bem
+vedes que est&atilde;o sanctificadas no livro dos livros,
+O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes
+no templo ouvirdes dizer que a mentira &eacute; sancta,
+que o povo s&oacute; p&oacute;de ser virtuoso se crer em falsos
+milagres, sa&iacute;, porque o templo est&aacute; polluido
+pela blasphemia e pela calumnia; mas n&atilde;o renegueis
+da cruz. A cruz est&aacute; pura; a cruz ser&aacute; eterna.
+Se esta gangrena que corroe o sacerdocio chegasse,
+o que n&atilde;o creio, a corromp&ecirc;-lo inteiramente;
+se n&atilde;o achassemos uma ara, juncto da qual
+orassemos <em>em espirito e verdade</em>, a
+cruz l&aacute; est&aacute;
+hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos
+paes, para nos irmos abra&ccedil;ar com ella: os
+<span class="pagenum">[85]</span>
+mortos n&atilde;o tem ouro, os mortos n&atilde;o s&atilde;o
+festeiros,
+que paguem para se lhes falar a sabor: ahi
+n&atilde;o se tem blasphemado.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, reprimindo a amargura que deve causar
+a todo o christ&atilde;o sincero o ver sacerdotes sacrificarem
+assim a conveniencias mundanas o verbo
+de Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem
+e recontarem o pre&ccedil;o por que o venderam,
+acolhamo-nos &aacute;s placidas discuss&otilde;es da sciencia,
+e vejamos, como j&aacute; disse, as mais importantes
+dessas regras que o pio e douto Fleury punha a
+si proprio para evitar os erros da nimia credulidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;N&atilde;o tenho em conta de provas, sen&atilde;o o
+testemunho
+dos auctores originaes, isto &eacute;, daquelles
+que escreveram <em>contemporaneamente, ou pouco
+depois</em>. Porque a memoria dos successos n&atilde;o
+p&oacute;de subsistir por muito tempo sem ser escripta.
+<em>Bastante ser&aacute; se durar um
+seculo.</em> O filho p&oacute;de
+lembrar-se passados cincoenta annos do que o
+pae ou av&ocirc; lhe referiram cincoenta annos depois
+de o haverem presenciado. Os successos que tem
+passado por varias gera&ccedil;&otilde;es n&atilde;o obtem
+a mesma
+certeza: cada qual lhes vai accrescentando alguma
+cousa de sua lavra, talvez sem o pensar. <em>&Eacute;
+por
+isso que as tradi&ccedil;&otilde;es vagas de factos muito
+antigos,
+<span class="pagenum">[86]</span>
+que tarde ou nunca se escreveram, nenhum
+credito merecem</em>, principalmente repugnando a
+factos provados. <em>Nem se diga que as historias
+p&oacute;dem
+ter-se perdido; porque, dizendo-se isso sem
+provas, posso tambem eu affirmar que ellas nunca
+existiram.</em> O mesmo direi dos escriptores que
+escreveram successos anteriores a elles muitos seculos;
+<em>se n&atilde;o citam os auctores d'onde os tiraram,
+temos o direito de desconfiar de que acreditaram
+de leve os rumores vulgares</em>.....&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Os proprios auctores contemporaneos n&atilde;o devem
+adoptar-se sem exame... deve averiguar-se
+bem se o escriptor &eacute; digno de f&eacute;, quasi como
+quem inquire testemunhas n'um processo... <em>O
+que se encontra em cartas, ou em outros diplomas
+da epocha, deve ser preferido &aacute;s narrativas
+dos historiadores.</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+At&eacute; aqui Fleury. Para estas largas
+cita&ccedil;&otilde;es preferi
+dous homens de indubitavel sciencia e de catholicismo
+insuspeito. V.. sabe que eu poderia
+tambem citar escriptores da primeira ordem, pag&atilde;os
+ou protestantes, mas cuja auctoridade nem
+por isso seria menor n'uma quest&atilde;o que evidentemente
+n&atilde;o interessa os dogmas da nossa f&eacute;. Poderia
+invocar a bella senten&ccedil;a de Cicero:
+<em>&laquo;Quem
+ignora que a primeira lei da historia &eacute; n&atilde;o ousar
+<span class="pagenum">[87]</span>
+dizer a menor falsidade, e a segunda n&atilde;o nos
+faltar j&aacute;mais valor para dizermos a
+verdade?</em>&raquo;
+&Eacute; certo que uma parte do clero portugu&ecirc;s do seculo
+XIX se ergueria para lhe
+responder:&#8213;&laquo;<em>Ignoramo-lo
+n&oacute;s.</em>&raquo;&#8213;Eu poderia tambem repetir
+as
+palavras do luminar da critica no seculo XVII, as
+palavras de Jo&atilde;o Leclerc:&#8213;&laquo;Quando se escreve
+a historia, <em>sobretudo de tempos
+antigos</em>, n&atilde;o &eacute; licito
+dissimular a minima cousa; porque a verdade,
+sem ser nociva aos mortos, aproveita muito
+aos vivos; e pelo contrario a dissimula&ccedil;&atilde;o,
+inutil
+para aquelles, &eacute; profundamente damnosa a
+estes.&raquo;&#8213;N&atilde;o
+me quiz aproveitar dessas auctoridades
+summas, porque um n&atilde;o era christ&atilde;o, outro
+n&atilde;o era catholico. Parece-me que &eacute; levar longe o
+escrupulo. E todavia, o protestante Leclerc estribava-se
+na opini&atilde;o de S. Isidoro Pelusiota&#8213;&laquo;Aquelles&#8213;diz
+o sancto&#8213;que com artificiosas
+palavras encobrem a verdade, muito mais desgra&ccedil;ados
+me parecem de que os que n&atilde;o a comprehenderam.
+Porquanto, os que por curteza de
+engenho n&atilde;o a alcan&ccedil;aram, estes n&atilde;o
+s&atilde;o talvez
+indignos de desculpa; mas os que, sendo dotados
+de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente
+a occultam, commettem mais grave e
+imperdoavel peccado.&raquo;
+<span class="pagenum">[88]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e
+Fleury eram sobretudo eruditos. Haveria nelles
+menos luzes theologicas? Ser&atilde;o os theologos de
+profiss&atilde;o mais indulgentes para com as lendas e
+tradi&ccedil;&otilde;es n&atilde;o provadas?
+Exigir&atilde;o, ao menos em
+referencia &aacute; historia da igreja, maior credulidade
+nos que a estudam ou escrevem? Ou&ccedil;amos o celebre
+Melchior Cano, o qual ninguem accusar&aacute;
+de excessivo amor pelos f&oacute;ros e liberdades do
+raciocinio: eis algumas das suas observa&ccedil;&otilde;es
+&aacute;cerca
+do credito que deve dar-se &aacute;s
+tradi&ccedil;&otilde;es infundadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;A principal regra (para distinguir as narrativas
+falsas das verdadeiras) deduz-se da probidade
+e inteireza humanas; regra perfeitamente applicavel
+quando os historiadores <em>testificam terem
+presenciado os successos que narram, ou terem-nos
+sabido daquelles que os presenciaram</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;&Eacute; cousa averiguada que esses que escrevem
+fingida e enganosamente a historia ecclesiastica
+n&atilde;o podem ser gente boa e sincera, e que toda a
+sua narrativa &eacute; tecida <em>para d'ahi tirarem
+lucro</em>,
+ou para persuadirem o erro; <em>torpes no primeiro
+caso</em>, perniciosos no segundo. Justissimas
+s&atilde;o as
+queixas de Luiz Vives &aacute;cerca das historias inventadas
+no seio da igreja; <em>prudentes e graves as
+<span class="pagenum">[89]</span>
+argui&ccedil;&otilde;es que dirige &aacute;quelles que
+julgam obra
+pia fazerem de mentiras religi&atilde;o</em>, cousa
+altamente
+perigosa e profundamente inutil. Do mentiroso
+nem a propria verdade ousamos acreditar.
+Por isso <em>os que pretendem concitar os animos ao
+culto dos bemaventurados com falsos e mentirosos
+escriptos, nenhum outro resultado tirar&atilde;o,
+talvez, se n&atilde;o negar-se f&eacute; &aacute;s cousas
+verdadeiras
+por causa das falsas, e tornar-se duvidoso aquillo
+mesmo que referem com severa consciencia auctores
+de inteira veracidade</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Preciso de implorar toda a indulgencia de
+v.. para transcrever em seguimento a esta passagem,
+admiravel de cordura e de legitima piedade,
+outro bem diverso extracto. Juro que n&atilde;o
+o fa&ccedil;o com o intento de humilhar os homens sinceros
+e honestos, a quem, a meu v&ecirc;r, cega um
+erro deploravel. &Eacute; para vingar a religi&atilde;o
+injuriada;
+&eacute; para dar ao paiz um desses espectaculos
+repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios
+recorriam para evitar um vicio hediondo,
+mandando assistir um escravo em completa embriaguez
+ao jantar commum da mocidade d'Esparta.
+S&oacute; advirto que a passagem &eacute;
+concep&ccedil;&atilde;o
+de um sacerdote, que celebra por certo tranquillamente
+o tremendo sacrificio do altar, sem que
+<span class="pagenum">[90]</span>
+em todas as paginas do missal<sup><a href="#f25">[25]</a></sup>
+leia, escriptas em
+letras de fogo, estas palavras que Jesus, o inimigo
+da mentira, dizia aos escribas e phariseus de
+outro tempo:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Hypocritas! Bem prophetisou &aacute;cerca de
+v&oacute;s
+Isaias, quando disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Esta gente honra-me com os labios; mas o
+seu cora&ccedil;&atilde;o est&aacute; affastado de
+mim.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma
+vez, pe&ccedil;o venia de lan&ccedil;ar, depois das doutrinas
+de Melchior Cano, n'um papel que &eacute; dirigido a um
+homem t&atilde;o delicado como v..
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Os historiadores t&ecirc;m advertido que os factos
+maravilhosos, os prodigios singulares, que registavam
+em seus escriptos <em>n&atilde;o eram fundados
+sen&atilde;o
+em rumores populares</em>; outras muitas vezes tem-nos
+tambem referido sem esta precau&ccedil;&atilde;o, j&aacute;
+porque
+<em>elles mesmos fossem povo a tal
+respeito</em>... j&aacute;
+porque elles n&atilde;o julgassem dever abalar a cren&ccedil;a
+vulgar; bem convencidos que &aacute; sombra de um
+<span class="pagenum">[91]</span>
+prejuizo repousava &aacute;s vezes uma verdade util, a
+que talvez tivessem vergonha de prejudicar.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Eis aqui os <em>dictames
+prudenciaes</em>, adoptados
+pelos mais distinctos historiadores, &aacute;cerca dos
+successos de caracter maravilhoso, que devem
+dirigir todo o escriptor sensato. <em>O contrario
+&eacute;
+querer campar por uma anomalia extravagante
+e ridicula...</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Se, por&eacute;m, gravemente offende o melindre
+patriotico de uma na&ccedil;&atilde;o aquelle que simplesmente
+contradiz os pontos <em>theocraticos</em> das
+suas tradi&ccedil;&otilde;es
+historicas constantemente recebidos e venerados;
+quanto n&atilde;o se torna mais altamente
+<em>r&eacute;u
+d'este attentado</em> aquelle escriptor, que
+n&atilde;o s&oacute; os
+nega, mas tem a <em>asquerosa villania</em>
+de &aacute; cara
+descuberta os vir insultar? Se alguem ha no orbe
+litterario que mais demonstrativamente tenha
+commettido <em>t&atilde;o reprehensivel e extranho
+excesso</em>,
+&eacute; por certo o auctor da carta aviltante, a respeito
+da Appari&ccedil;&atilde;o de Christo a D. Affonso Henriques.
+<em>&Eacute; uma das ulceras mais pustulentas que
+conspurcam
+e aviltam esse escripto sandeu</em>, que rancorosamente
+a improp&eacute;ra...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Como &eacute; crivel que uma fabula... fosse sustentada
+como facto verdadeiro por seculos...?
+<em>Quando, porventura, o tivesse sido, teria,
+n&atilde;o
+<span class="pagenum">[92]</span>
+receio diz&ecirc;-lo</em>, por effeito dessa universal
+cren&ccedil;a
+dos sabios, <em>perdido a sua natureza e deixado de
+o ser!!!</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo,
+para continuarmos a averiguar tranquillamente
+se os theologos de profiss&atilde;o concordam com os
+eruditos de reconhecida piedade nas bases da
+critica historica. Ainda algumas palavras de Melchior
+Cano.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Achareis outros, n&atilde;o t&atilde;o ineptos, mas
+quasi
+t&atilde;o imprudentes, que n&atilde;o buscam a verdade das
+cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar
+onde &eacute; raro encontr&aacute;-la, <em>em
+aereos e vagos rumores</em>.
+Acontece isto frequentemente aos inconstantes
+e leves de cabe&ccedil;a; <em>porque os homens graves
+e
+severos n&atilde;o costumam andar &aacute; ca&ccedil;a dos
+dictos
+v&atilde;os do vulgo</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Des&ccedil;amos j&aacute; aos fins do seculo XVIII, quando
+a incredulidade corria como lava ardente pela face
+da Europa, e devorava as cren&ccedil;as mais sanctas
+e legitimas em milhares de cora&ccedil;&otilde;es. Vacillou,
+acaso, por isso a critica dos homens probos e
+pios nos seus principios de severidade? No meio
+de tantas ruinas, quizeram elles salvar com os
+restos do edificio a sua falsa miragem? V.. o
+julgar&aacute; pelas doutrinas de muitos var&otilde;es
+religiosos
+<span class="pagenum">[93]</span>
+dos ultimos tempos, inteiramente accordes
+com as dos que os haviam precedido. Por exemplo,
+o theologo piemont&ecirc;s Denina, diz-nos:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Acontecem algumas cousas f&oacute;ra da ordem
+natural, que, de per si s&oacute;, s&atilde;o incriveis... a
+esta
+categoria pertencem, na igreja de Deus, os
+milagres, os quaes, <em>nem &eacute; licito rejeitar
+na
+sua totalidade, nem se devem acceitar todos sem
+selec&ccedil;&atilde;o</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Pertence &aacute; prudencia do historiador
+<em>nada
+escrever, que n&atilde;o saiba por si proprio, ou n&atilde;o
+se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas</em>,
+cumprindo-lhe, n&atilde;o menos, ser pouco credulo.
+Mas <em>ninguem p&oacute;de ter conhecimento do que
+narra,
+se n&atilde;o viveu no tempo em que os factos aconteceram;
+nem sab&ecirc;-los de pessoas fidedignas, se
+estas n&atilde;o os presenciaram</em>; nem escapa de
+credulo,
+se n&atilde;o explicar e expender as raz&otilde;es, causas
+e circumstancias do que relata. Auctores que
+assim o fazem <em>nenhum credito
+merecem</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Nem tudo quanto o historiador relata do seu
+tempo se ha-de acreditar; salvo constando que
+f&ocirc;ra curioso em indagar e explorar...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Se o historiador referir cousas, n&atilde;o do seu
+tempo, mas succedidas muitissimo antes, dar-se-lhe-ha
+credito, <em>se individuar os auctores d'onde
+<span class="pagenum">[94]</span>
+as tirou</em>, sendo <em>ali&agrave;s
+daquelles que as podiam
+saber</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;N&atilde;o duvido de chamar
+<em>m&aacute;u historiador</em> a
+todo aquelle que devendo ter por norma o n&atilde;o
+ousar dizer a menor falsidade, <em>nem faltar-lhe
+animo para dizer qualquer verdade</em>, encubrir
+esta aos leitores, <em>seja por que motivo
+for</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins
+do seculo passado: assim pensavam tambem os
+theologos catholicos da Allemanha, ou antes do
+paiz mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous,
+um dos quaes, ou ambos, a nossa universidade
+honrou, escolhendo as suas institui&ccedil;&otilde;es de
+historia
+ecclesiastica para compendios nas faculdades
+de theologia e de direito canonico. Falo de
+Gmeiner e Dannenmayr. As sec&ccedil;&otilde;es desses
+compendios
+relativas ao <em>criterium</em> da verdade
+historica
+nada mais s&atilde;o do que o desenvolvimento
+das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury,
+de Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de
+Muratori, de Baumeister; em summa de todos
+os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram
+ex-professo ou accidentalmente da cr&iacute;tica
+historica. Andam esses livros nas m&atilde;os de todos,
+menos nas do clero ignorante e corrupto, porque
+este, coitado, n&atilde;o sabe ler. N&atilde;o serei, por isso,
+<span class="pagenum">[95]</span>
+demasiado extenso em cit&aacute;-los, escolhendo apenas
+as passagens mais frisantes, e que fazem sobretudo
+ao intento.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Como os narradores&#8213;diz Gmeiner&#8213;por
+falta de <em>habilidade</em> sufficiente, ou
+de sciencia, nos
+<em>possam</em> enganar, ou por falta de
+<em>sinceridade</em>, ou
+por vontade nos <em>queiram</em> illudir,
+s&oacute; pod&ecirc;mos
+acquiescer ao seu testemunho, se n&atilde;o houver
+raz&otilde;es sufficientes para duvidar da sua habilidade
+ou sinceridade.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;A auctoridade das testemunhas n&atilde;o &eacute;
+uma e
+a mesma, e portanto deve attender-se a esta diversidade.
+Observa-se ella 1.&ordm; em rela&ccedil;&atilde;o aos
+sentidos,
+2.&ordm; em rela&ccedil;&atilde;o ao entendimento,
+3.&ordm; em
+rela&ccedil;&atilde;o &aacute; vontade. Em
+rela&ccedil;&atilde;o aos sentidos, essas
+testemunhas ou s&atilde;o de vista ou de ouvida.
+<em>As de
+ouvida ou s&atilde;o coevas, ou n&atilde;o coevas mas que
+ouviram
+aos coevos o que narram</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;D'aqui se segue, <em>que pouca f&eacute;
+deve dar-se
+&aacute;quillo que os escriptores ou absolutamente contemporaneos,
+ou quasi contemporaneos deixaram
+de mencionar</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;A verdade dos conhecimentos historicos n&atilde;o
+depende de modo nenhum da abundancia dos
+historiadores, visto que <em>n&atilde;o
+prov&eacute;m maior certeza
+a um facto historico de ser relatado em livros
+<span class="pagenum">[96]</span>
+de muitos auctores mais modernos, cada
+um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto.
+Todos elles junctos n&atilde;o valem mais do que
+o primeiro que o referiu</em>...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;A considera&ccedil;&atilde;o do paiz em que o
+escriptor
+viveu, e do tempo em que escreveu importa
+muito em rela&ccedil;&atilde;o ao seu intuito de falar verdade.
+N'alguns paizes a liberdade de escrever &eacute;
+franca; n'outros opprimida; n'outros, emfim,
+ha premios para a lisonja, odio e castigo para
+a verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores
+lisonjeiros da curia romana receberam
+&aacute;s vezes em premio <em>de suas
+fadigas</em> o barrete
+cardinalicio ou a dignidade do episcopado.
+<em>Naquellas provincias onde vigorou o terrivel tribunal
+da inquisi&ccedil;&atilde;o, a fogueira estava prompta
+para a verdade.</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;N&atilde;o faltaram impostores e falsarios, que
+trabalharam
+em alterar varias passagens nos antigos
+monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram
+a outros.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas
+linhas do theologo Dannenmayr:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica&#8213;diz
+elle&#8213;devemos principalmente ter
+em mira, <em>que nem se nos inculquem fabulas
+sobcolor</em>
+<span class="pagenum">[97]</span>
+<em>de verdades, nem consideremos como duvidosos
+factos absolutamente certos e largamente
+provados.</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario
+estabelecer uma doutrina, uma norma, por onde
+os animos imparciaes, e ainda os prevenidos,
+mas sinceros nas suas preven&ccedil;&otilde;es, houvessem
+de julgar-me, n&atilde;o tanto no foro da sciencia, que
+era o meu foro, que era aquelle para onde eu
+tinha direito de trazer o litigio, mas n&oacute; da mais
+restricta piedade. Em these, a contenda dos que
+blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia
+(e que apologia, meu Deus!) das tradi&ccedil;&otilde;es
+fabulosas, n&atilde;o &eacute; comigo; &eacute; com os
+apostolos,
+com os sanctos, com os historiadores do catholicismo,
+com os theologos, com todos aquelles e
+com tudo aquillo a que mais importava &aacute; hypocrisia
+mentir acatamento nesta comedia beata.
+A tonta e imprudente n&atilde;o se lembrou de que lhe
+ca&iacute;a a mascara, e de que alguem poderia
+levant&aacute;-la
+para a entregar ao povo, que nos seus grandes
+instinctos de justi&ccedil;a lhe fustigaria as faces
+com ella. Na hypothese, no que me diz respeito,
+o meu dever &eacute; provar aos homens sinceramente
+pios que, rejeitando falsas lendas, n&atilde;o ultrapassei
+os limites de uma cr&iacute;tica irreprehensivel. Ser&aacute;
+<span class="pagenum">[98]</span>
+esse o objecto da carta immediata, que em breve
+espero dirigir a v.. Nas seguintes darei raz&atilde;o
+das minhas opini&otilde;es &aacute;cerca da maioria do nosso
+clero, e &aacute;cerca da curia romana. Compelliram-me
+a isso; f&aacute;-lo-hei gemendo. Quizeram que o
+paiz os conhecesse: h&atilde;o-de ser satisfeitos.
+<br />
+
+<br />
+
+Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos
+choram em silencio a vergonha da sua classe,
+e emquanto os prelados dormem tranquillos nas
+suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa
+dos tristes dias de tempestade!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c4"></a>IV<br />
+
+<br />
+
+SOLEMNIA VERBA<br />
+
+</h3>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h5>
+SEGUNDA CARTA<br />
+
+</h5>
+
+<h4>AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES</h4>
+
+<h4>
+(<em>Novembro, 1850</em>)
+</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Na minha antecedente carta deixei eu, ou para
+me exprimir com mais exac&ccedil;&atilde;o, deixaram muitos
+e mui piedosos escriptores catholicos apontadas
+as principaes regras da critica, em rela&ccedil;&atilde;o
+&aacute;s fontes historicas. Dessas regras resulta o que
+a boa raz&atilde;o est&aacute; por si indicando; que
+&eacute; necessario
+premunir-nos contra a credulidade, n&atilde;o s&oacute; por
+honra da sciencia e pela considera&ccedil;&atilde;o do proprio
+credito litterario, mas tambem, o que &eacute; mais grave,
+para n&atilde;o deslizarmos da doutrina dos apostolos,
+inculcada nos livros sanctos. O mais necessario
+canon, em que de certo modo todos os outros se
+consubstanciam, &eacute; o atermo-nos unicamente aos
+testemunhos synchronos ou quasi synchronos,
+<span class="pagenum">[100]</span>
+aos testemunhos daquelles que presenciaram os
+factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos
+contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes
+e criveis, quer sobrenaturaes e incriveis para
+a raz&atilde;o humana; quer elles nos sejam transmittidos
+por narrativas coevas ou quasi coevas, quer
+por documentos do tempo, embora descubertos
+por escriptores modernos. Quando, por&eacute;m, se tractar
+de milagres, a critica deve ser tanto mais
+severa, quanto &eacute; certo que a isso nos constrange
+o dever religioso, que nos imp&otilde;e as palavras de
+S. Paulo, o dever de n&atilde;o levantarmos falsos testemunhos
+a Deus.
+<br />
+
+<br />
+
+Que podia eu fazer em rela&ccedil;&atilde;o ao supposto
+milagre de Ourique, escrevendo a historia do
+reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente
+chronicas, historias, documentos coevos ou
+quasi coevos, que o narrassem. O exame attento
+de quanto modernamente se escrevera para supprir
+a falta de provas daquella celebre tradi&ccedil;&atilde;o,
+s&oacute; tinha servido de convencer-me das
+aberra&ccedil;&otilde;es
+em que se podem transviar ainda os espiritos
+mais elevados, quando, em vez de buscarem simplesmente
+a verdade, buscam accommodar os
+caracteres desta a um preconceito. N&atilde;o me era
+possivel omittir a batalha de Ourique. Que podia
+<span class="pagenum">[101]</span>
+eu fazer, repito, &aacute;cerca do milagre da
+appari&ccedil;&atilde;o?
+Ou mentir &aacute; minha consciencia, alevantar um testemunho
+a Deus, posp&ocirc;r as doutrinas dos homens
+mais pios e eruditos do orbe catholico, que
+falaram de critica historica, calcar aos p&eacute;s a maxima
+do mais illustre escriptor romano, ou ent&atilde;o
+manifestar sem hesita&ccedil;&atilde;o as proprias
+convic&ccedil;&otilde;es,
+que julgava e julgo legitimas, isto &eacute;, proceder
+de um modo que v.. mesmo cr&ecirc; nobre e honroso<sup><a href="#f26">[26]</a></sup>;
+affirmativa, que, seja dicto em boa paz, n&atilde;o
+sei se est&aacute; em perfeita harmonia com a id&eacute;a geral
+que predomina nas considera&ccedil;&otilde;es que v..
+tem tido a bondade de dirigir-me sobre os inconvenientes
+que resultam, no entender de v..
+para a nossa patria commum, da manifesta&ccedil;&atilde;o
+das minhas doutrinas.
+<br />
+
+<br />
+
+Disse, pois, o que supp&uacute;s e supponho verdade:
+disse-o sem sobre isso me dilatar, sem
+exaggera&ccedil;&atilde;o,
+sem pretens&otilde;es a ter feito um importante
+descobrimento historico; porque realmente
+o n&atilde;o era: disse-o singelamente, simplesmente:
+indiquei apenas de passagem as incongruencias
+historicas, que desmentiam a importancia que se
+costuma attribuir ao successo. E n'esta parte,
+<span class="pagenum">[102]</span>
+seja-me licito diz&ecirc;-lo, nem v.. nem ninguem se
+encarregou de me refutar; porque, na verdade,
+seria um pouco difficil de admittir que houvesse
+centenas de milhares de sarracenos para virem
+combater em Ourique, quando os almoravides
+concentravam todas as for&ccedil;as em Africa, para salvarem
+o imperio da ultima ruina, exhaurindo a
+Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem
+a heroica guarni&ccedil;&atilde;o de uma pra&ccedil;a como
+Aurelia
+ao seu triste destino. A narrativa anterior, o quadro
+da situa&ccedil;&atilde;o dos lamtunitas e das
+perturba&ccedil;&otilde;es
+quo agitavam as provincias mussulmanas do
+Gharb habilitavam o leitor para por si fazer conceito
+das dimens&otilde;es da batalha de Ourique. Se
+em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia
+foi em procurar, talvez em demasia, achar resultados
+moraes dessa batalha, para de algum modo
+desculpar a significa&ccedil;&atilde;o exaggerada que depois
+se lhe attribuiu. Sobre a appari&ccedil;&atilde;o disse apenas
+o restrictamente necessario para o leitor vulgar
+conhecer que eu n&atilde;o a admittia. Se tivesse o proposito
+deliberado de combater quando podesse
+ferir o chamado sentimento religioso do povo,
+cr&ecirc; v.. que eu n&atilde;o teria recursos para aproveitar
+o lado contradictorio e at&eacute; ridiculo, (que cousa
+ha neste mundo onde elle se n&atilde;o possa encontrar?)
+<span class="pagenum">[103]</span>
+do celebre milagre, sem todavia abandonar
+o estylo grave da historia? Cr&ecirc; v.. que se eu intentasse
+buscar as causas provaveis da inven&ccedil;&atilde;o
+dessa maravilha, e avali&aacute;-las severa ou, se quizerem,
+malevolamente, me faltariam meios para
+assim o practicar? Permitta-se-me dizer que foi
+necessaria demasiada preven&ccedil;&atilde;o contra mim, ou
+a favor da inviolabilidade da appari&ccedil;&atilde;o, para se
+n&atilde;o ver que procurei, quanto me era possivel sem
+offender a verdade, n&atilde;o converter os factos que
+se prendem a esse falso milagre n'um escandalo
+historico. As extensas notas com que finalisa cada
+volume do meu livro s&atilde;o destinadas para os homens
+da sciencia, para debater os fundamentos
+das minhas opini&otilde;es. Estas notas s&atilde;o, portanto,
+para poucos. A generalidade dos leitores n&atilde;o se
+cansa com essas discuss&otilde;es tediosas. Foi, por&eacute;m,
+ahi que eu alludi ao ridiculo instrumento do cartorio
+d'Alcoba&ccedil;a, o que fiz apenas pelo desejo de
+dar uma satisfa&ccedil;&atilde;o aos homens professionaes. Se
+eu fosse o impio, o atheu, e n&atilde;o sei que mais,
+que por ahi me chamam os padres ignorantes e
+mal procedidos, n&atilde;o tiraria vantagem dessa
+falsifica&ccedil;&atilde;o
+insigne, para mostrar como a hypocrisia
+costuma fazer joguete das cousas do c&eacute;u para
+fins terrenos? N&atilde;o practicaria ao menos aquillo
+<span class="pagenum">[104]</span>
+que a justissima indigna&ccedil;&atilde;o de qualquer homem
+religioso o levaria talvez a practicar? Se tal se houvesse
+de crer, n&atilde;o deveriam qualificar-me de impio,
+mas sim de insigne mentecapto.
+<br />
+
+<br />
+
+Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra
+de escrever contra as minhas opini&otilde;es, v.. insiste
+em que, citando naquella nota a Memoria de
+Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade
+do diploma de juramento conservado em
+Alcoba&ccedil;a, eu fiz uma cita&ccedil;&atilde;o
+contraproducente<sup><a href="#f27">[27]</a></sup>.
+Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano
+n&atilde;o nega ahi redondamente a authenticidade do
+diploma? O que dizia eu ao citar a Memoria sobre
+os codices d'Alcoba&ccedil;a?&#8213;&laquo;<em>Quem
+desejar conhecer
+a impostura desse documento famoso consulte
+a Memoria, etc.</em>&raquo;&#8213;Se o auctor concorda
+comigo
+em que elle &eacute; falso, onde est&aacute; a improcedencia
+da cita&ccedil;&atilde;o? Se v.. me permitte que seja
+interprete do seu pensamento, o que v.. queria
+talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho
+affirma que acreditava na appari&ccedil;&atilde;o, posto
+negasse a genuinidade do pergaminho de Alcoba&ccedil;a,
+e que eu n&atilde;o creio nem no documento, nem
+no facto. Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo.
+<span class="pagenum">[105]</span>
+N&atilde;o era, por&eacute;m, para a opini&atilde;o
+manifestada
+pelo academico em rela&ccedil;&atilde;o ao successo,
+mas sim para as suas raz&otilde;es contra o diploma
+que eu remettia o leitor. E realmente, o que elle
+diz em favor do facto n&atilde;o &eacute; mais do que repetir o
+que outros disseram antes delle, e citar uma copia
+de 1597 existente em S. Vicente de F&oacute;ra vista por
+elle, e a qual, duas paginas adiante, d&aacute; como provavelmente
+tirada <em>de outro original falso</em>. O
+que
+se v&ecirc; de tudo aquillo &eacute; que o pobre frade,
+conhecendo
+o risco de mostrar o que era e o que valia
+O ridiculo thesouro dos monges d'Alcoba&ccedil;a, quiz
+ao menos salvar-se, protestando pela pureza da sua
+cren&ccedil;a no milagre de Ourique. Talvez, se eu vivesse
+ent&atilde;o, fizesse o mesmo, em atten&ccedil;&atilde;o
+&aacute; circumstancia
+que nos recorda Gmeiner: &laquo;<em>onde vigorou
+o terrivel tribunal da inquisi&ccedil;&atilde;o, a fogueira
+estava prompta para a verdade</em>&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho
+pelo meu paiz desta necessidade de disputar
+&aacute;cerca de um diploma falso, que se acha depositado
+nos archivos do estado, onde qualquer pessoa
+p&oacute;de examin&aacute;-lo. Qualquer pessoa, sim; porque
+n&atilde;o &eacute; preciso ter a menor id&eacute;a de
+paleographia
+para o reconhecer por falso. Basta p&ocirc;r-lhe ao
+lado dous ou tres diplomas genuinos do meiado
+<span class="pagenum"><a name="p106" id="p106">[106]</a></span>
+do seculo XII, e comparar. Esses multiplicados
+recursos que possue a diplomatica para desmascarar
+falsarios s&atilde;o aqui perfeitamente inuteis.
+Estou certo de que v.. nunca o viu; porque tambem
+estou certo de que, se o houvera visto, eu
+acharia v.. a meu lado para dizer aos homens
+sem pudor que ainda ousam inculcar como legitima <a href="#e4">essa
+inven&ccedil;&atilde;o</a>
+torpe:
+&laquo;<em>Sois uns
+miseraveis!</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Sinto sinceramente que v.. se dignasse de
+tomar para si, a favor da appari&ccedil;&atilde;o, um argumento
+que devia pertencer precipuo aos apologistas
+dos clerigos ignorantes e devassos. Consiste
+elle em que, negando eu que a tradi&ccedil;&atilde;o de
+Ourique remonte aos tempos a que se refere,
+devo dizer quando, como, e para que a forjaram.
+Onde existe semelhante canon de critica historica?
+O que sei &eacute; que ella come&ccedil;ou a apparecer
+no ultimo quartel do seculo XV, mais de trezentos
+annos depois da epocha em que se diz succedido
+o milagre; o que sei &eacute; que em nenhum
+escriptor, nem em nenhum documento legitimo,
+coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de semelhante
+tradi&ccedil;&atilde;o; o que sei &eacute; que os
+escriptores
+modernos que a publicaram n&atilde;o se referem a
+testemunho contemporaneo ou proximo; o que
+sei, portanto, &eacute; que as regras de critica adoptadas
+<span class="pagenum">[107]</span>
+por homens n&atilde;o menos pios que sabios me
+obrigam a rejeit&aacute;-la. Diga-me v..: se um devedor
+seu pretendesse pagar-lhe certa quantia
+em moeda falsa, v.., depois de a examinar e convencer-se
+da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios
+por que pretende julgar-me, devia reconhec&ecirc;-la
+por boa e acceit&aacute;-la, emquanto n&atilde;o podesse
+mostrar quando, como, por quem e para que fora
+forjada. N&atilde;o v&ecirc; v.. que uma tal regra de critica
+nos obrigaria a adoptar como verdadeiras at&eacute; as
+lendas indicas de Vishn&uacute; e de Brahma?
+<br />
+
+<br />
+
+Outro argumento me faz v.. que eu tambem
+desejara tivesse deixado aos ex-frades ignorantes
+e hypocritas: &eacute; o da impossibilidade de nossos
+av&oacute;s terem adoptado uma tradi&ccedil;&atilde;o que
+n&atilde;o fosse
+verdadeira. Quer v.. que lhes concedamos a
+mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma
+honra, o mesmo amor da propria fama e dignidade
+que n&oacute;s temos. Concedo por um momento.
+Mas o patriotismo de v.. n&atilde;o ser&aacute; t&atilde;o
+inimigo
+da logica, nem t&atilde;o cego, que recuse os mesmos
+dotes aos av&oacute;s dos actuaes castelhanos, franceses,
+italianos e allem&atilde;es. Por aquella doutrina, v..
+deve acreditar todas as lendas desses paizes, ainda
+quando a critica historica as tenha feito abandonar
+aos castelhanos, franceses, italianos e allem&atilde;es
+<span class="pagenum">[108]</span>
+de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo,
+acreditar <em>&agrave; fortiori</em> a
+historia da papisa Joanna,
+embora j&aacute; os proprios protestantes se riam dessa
+calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou
+por seculos. Mais ainda: v.. &eacute; assaz instruido
+para n&atilde;o ignorar qual foi a
+civilisa&ccedil;&atilde;o dos
+arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes
+hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura,
+qual a nobreza do seu caracter. Apesar disso, elles
+nunca deixaram de crer na tradi&ccedil;&atilde;o dos milagres
+de Mafoma. N&atilde;o &eacute; de esperar da justi&ccedil;a
+de v.. que
+recuse a esse povo t&atilde;o culto os dotes intellectuaes
+e moraes que attribue a nossos av&oacute;s. Adoptar&aacute;
+v.. as lendas mussulmanas &aacute;cerca do propheta
+de Mekka? Principios que provam tanto, ou antes
+que provam tudo, permitta-me v.. desconfiar
+de que n&atilde;o provam nada. Deus nos livre de
+pensar que uma fabula que se generalisa, se converte
+por isso em verdade. Semelhantes doutrinas,
+deixe-as v.., christ&atilde;o, cavalheiro, e homem
+de letras, para essa parte da cleresia, que quer
+lucrar com as illus&otilde;es populares. A n&oacute;s,
+christ&atilde;os,
+incumbe recordar-nos daquellas tremendas
+palavras do divino Mestre:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Guardae-vos do fermento dos phariseus, que
+&eacute; a hypocrisia:&raquo;
+<span class="pagenum">[109]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;<em>Porque nenhuma cousa ha occulta que
+n&atilde;o
+venha a descubrir-se; e nenhuma ha escondida
+que n&atilde;o venha a saber-se</em>....&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;E todo o que proferir uma palavra contra o
+filho do Homem ser-lhe-ha dado perd&atilde;o; mas
+<em>&aacute;quelle que blasphemar contra o Espirito
+Sancto,
+n&atilde;o lhe ser&aacute;
+perdoado</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+V.. sabe, t&atilde;o bem como eu, que, segundo
+Sancto Agostinho, uma das blasphemias contra o
+Espirito Sancto <em>&eacute; o negar a verdade
+conhecida por
+tal</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+E &eacute; isto o que responde a todas as
+considera&ccedil;&otilde;es
+que v.. me faz sobre a conveniencia de n&atilde;o
+desilludir o povo &aacute;cerca das suas
+tradi&ccedil;&otilde;es mentirosas:
+s&atilde;o estas palavras do Salvador, que fulminam
+os phariseus modernos, como fulminaram
+os antigos, que me obrigam a falar verdade escrevendo
+a historia. Ainda que essas considera&ccedil;&otilde;es
+fossem exactas, a patria verdadeira do christ&atilde;o
+&eacute; o c&eacute;u, cujas portas ficar&atilde;o
+cerradas, conforme
+a doutrina de Christo, aos que tiverem
+desmentido a verdade na terra. A patria deste
+mundo &eacute; nosso dever am&aacute;-la, sacrificar-lhe tudo,
+menos a honra, menos as esperan&ccedil;as de al&eacute;m do
+tumulo, menos a f&eacute;. &Eacute; esta a mais sancta das
+tradi&ccedil;&otilde;es
+que herd&aacute;mos de nossos paes. O crucifixo
+<span class="pagenum">[110]</span>
+sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os
+que nos geraram, n&atilde;o o insultemos na vida, para
+podermos tambem despedir o ultimo alento, abra&ccedil;ados
+com elle, sem terror, sem remorsos, e para
+o legarmos immaculado a nossos filhos; para que
+elles, no momento de o transmittirem moribundos
+a nossos netos, n&atilde;o se lembrem horrorisados
+de que essa imagem do Redemptor j&aacute; foi bafejada
+pelo extremo respirar de um blasphemo.
+Amemos e respeitemos a tradi&ccedil;&atilde;o divina, e
+tenhamos
+esfor&ccedil;o bastante para repellir mentiras,
+sobretudo quando, segundo as palavras do apostolo,
+ellas envolvem um falso testemunho contra
+Deus.
+<br />
+
+<br />
+
+Isto &eacute; para os christ&atilde;os. Para os falsos
+politicos,
+que cuidam ser a religi&atilde;o apenas um instrumento
+que serve para conter os humildes e pobres,
+a que Christo chama os grandes do seu reino,
+e a que elles chamam massas brutas; para
+esses, que n&atilde;o crendo acaso em Deus, accusam
+os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores
+de nossa gloria; para esses liberaes e
+at&eacute; democratas, que desprezam o povo ainda mais
+do que o desprezavam os poderosos de outros
+tempos; para os taes n&atilde;o applico eu s&oacute; o dicto
+de Fleury, de que s&atilde;o ignorantissimos em materias
+<span class="pagenum">[111]</span>
+de religi&atilde;o; digo tambem que o s&atilde;o em materias
+de politica. Para o povo ser livre, &eacute; necessario
+que seja religioso e honesto; n&atilde;o que seja
+credulo. Para que elle seja religioso e honesto &eacute;
+necessario que conhe&ccedil;a as doutrinas do evangelho,
+que n&atilde;o s&atilde;o mais do que a
+confirma&ccedil;&atilde;o divina
+da moral universal. Em vez de inculcar crendices
+ao povo, cumpre inculcar-lhe os principios do
+christinanismo, e as consequencias daquelles principios:
+cumpre illustr&aacute;-lo, em vez de o conservar
+na ignorancia; fazer-lhe sentir que a for&ccedil;a de
+practicar grandes e nobres sacrificios, t&atilde;o recommendados
+por Jesus, &eacute; o caracter que distingue
+o espirito immortal do homem do instincto que
+anima as alimarias. &Eacute; preciso convenc&ecirc;-lo de que
+o patriotismo, de que esse puro e sancto affecto
+que nos faz abandonar os commodos domesticos,
+as affei&ccedil;&otilde;es do cora&ccedil;&atilde;o, e
+arrostar com a fome,
+com a sede, com a nudez, com a intemperie das
+esta&ccedil;&otilde;es, para irmos morrer n'um campo de
+batalha,
+salvando a terra em que dormem nossos
+maiores, defendendo a cruz do nosso adro, a vida
+de nossos paes, a honra de nossas irm&atilde;s e mulheres,
+&eacute; a manifesta&ccedil;&atilde;o mais solemne da
+energia
+do espirito humano, e da abnega&ccedil;&atilde;o christan. E
+estas verdades eternas; estas verdades, que,
+<span class="pagenum">[112]</span>
+gravadas nos cora&ccedil;&otilde;es do povo, tantas vezes
+t&ecirc;m
+salvado as pequenas na&ccedil;&otilde;es dos intentos
+ambiciosos
+das grandes, d'onde se deduzem? &Eacute; das
+inven&ccedil;&otilde;es dos milagreiros e falsarios, ou das
+divinas
+paginas da biblia?
+<br />
+
+<br />
+
+V.. deve conhecer, como homem de letras
+que &eacute;, a historia dos povos mussulmanos. Houve
+nunca no mundo cren&ccedil;a que se estribasse tanto
+como o islamismo em falsos milagres, quasi
+sempre conducentes a inspirar o amor da guerra
+e o enthusiasmo das multid&otilde;es credulas? E todavia,
+quaes foram os effeitos desse enthusiasmo,
+que n&atilde;o correspondia a doutrinas accordes com
+os instinctos naturaes da nossa alma, que n&atilde;o se
+fundava em convic&ccedil;&otilde;es reflectidas, na certeza
+moral
+do dever, mas que se inspirava de promessas
+fingidas do c&eacute;u? Os mussulmanos devastaram e
+submetteram a melhor por&ccedil;&atilde;o da Asia e da Africa,
+e ainda uma pequena parte da Europa: formaram
+quinze ou vinte na&ccedil;&otilde;es de falsos crentes,
+e estas na&ccedil;&otilde;es cresceram e civilisaram-se
+combatendo
+sempre. E depois? Depois, quando foi preciso
+conservar o edificio; quando se tractou de
+defender a patria, em vez de a tirar aos outros;
+quando foi preciso repellir em vez de aggredir,
+mostrar essa perseveran&ccedil;a, que nem se exalta
+<span class="pagenum">[113]</span>
+com o triumpho, nem desanima com o rev&eacute;s;
+que padece, calada e soffrida; essa perseveran&ccedil;a
+que &eacute; a mais poderosa arma dos povos amea&ccedil;ados
+na sua existencia, tudo faltou. As na&ccedil;&otilde;es
+mussulmanas desmembraram-se, fundiram-se,
+annullaram-se umas, desappareceram outras, e
+conservando todas as suas cren&ccedil;as, todos os seus
+milagres, ei-las ahi est&atilde;o as que restam, ludibrio
+da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo
+ao crepusculo da passada gloria, lan&ccedil;ando nos
+dias da afflic&ccedil;&atilde;o e do perigo os olhos para o
+occidente,
+a v&ecirc;r se os filhos da cruz estendem o bra&ccedil;o
+para proteger o crescente. As tradi&ccedil;&otilde;es das
+victorias, as maravilhas celestes dos tempos heroicos
+de Islam l&aacute; est&atilde;o gravadas na memoria
+de todos. Porque n&atilde;o salvam, n&atilde;o regeneram ellas
+essas sociedades atrophiadas e moribundas?
+<br />
+
+<br />
+
+Ainda hoje ha homens das novas id&eacute;as, os
+quaes se dizem cheios de illustra&ccedil;&atilde;o e de
+philosophia,
+que, abandonando os milagres suppostos,
+n&atilde;o porque os tenham por infundados
+ou absurdos em si, mas porque supp&otilde;e que o
+fanatismo p&oacute;de lucrar com elles, n&atilde;o querem
+que se toque nas tradi&ccedil;&otilde;es humanas que se ligam
+&aacute; gloria nacional. &Eacute; verdade que n&atilde;o
+sabem
+bem que deva consistir a gloria de uma na&ccedil;&atilde;o,
+<span class="pagenum">[114]</span>
+porque nunca pensaram nisso. Para elles,
+que vivem no seculo XIX, onde quer que pereceram
+milhares de homens, combatendo por interesses
+que n&atilde;o comprehendiam, ou por torpe
+cubi&ccedil;a; onde quer que o ferro e o fogo arrasaram
+as cidades, despovoaram os campos, embora
+dessas cidades e campos nenhum mal tivesse
+vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem
+mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos
+e pacificos dos gigantes da assola&ccedil;&atilde;o,
+dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans,
+avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens
+as fa&ccedil;anhas dos proprios av&oacute;s. Se a historia
+pergunta:&#8213;&laquo;Acaso esses combates, em
+que, sem duvida, se practicaram grandes feitos,
+foram uteis ao progresso moral e material do
+povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram
+a sua decadencia? Est&aacute; ou n&atilde;o essa gloria
+militar,
+ali&agrave;s indisputavel, assombrada por grandes
+crimes? Foi a inten&ccedil;&atilde;o, a qual s&oacute;
+determina o
+valor moral das ac&ccedil;&otilde;es, nobre, grandiosa, pura,
+ou teve motivos menos elevados? Foi um arrojo,
+um impeto nacional, ou um impulso dado
+pela ambi&ccedil;&atilde;o, ou pelo capricho de algum
+principe?&raquo;&#8213;A
+historia que faz estas perguntas ou
+outras analogas, porque esse &eacute; o seu dever, commette
+<span class="pagenum">[115]</span>
+aos olhos dos taes um crime de leso-patriotismo.
+O castelhano, por exemplo, que disser:&#8213;&laquo;As
+barbaridades e crimes commettidos
+por Cortez, Pizarro, ou Almagro, na conquista
+da America, deshonram as emprezas arriscadas
+e longinquas dos filhos da Peninsula, embora o
+descubrimento do Novo Mundo demonstre a sua
+pericia, o seu ardimento de navegadores e de
+soldados. Os effeitos dessa conquista foram o
+corromperem-se os costumes, morrerem as industrias
+nascentes, despovoarem-se os campos
+da Hespanha, seccarem-se, em summa, todas as
+fontes da sua prosperidade solida e legitima: foram
+amontoarem-se nas m&atilde;os do fisco e dos poderosos
+o ouro e a prata, que, obtidos sem custo
+pelos crimes, se desbarataram sem pudor pelos
+vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades,
+e com ellas o sentimento da dignidade humana,
+cujo ultimo brado soou nas rebelli&otilde;es contra
+a tyrannia de Carlos V:&raquo;&#8213;o hespanhol que
+disser isto &eacute; um mau cidad&atilde;o aos olhos dos mansos
+guerreadores destes nossos tempos. E porque?
+Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se,
+elevar-se pelas tradi&ccedil;&otilde;es da sua grandeza e
+gloria. O povo! Pois o povo que tantas vezes tracta
+de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde
+<span class="pagenum">[116]</span>
+o ber&ccedil;o de farrapos at&eacute; a enxerga rota em que
+fenece, vai travada de receios, de sobresaltos,
+de desalentos, e de agonias, pensa l&aacute; nas cutiladas
+que se deram, nas bombardadas que se despediram,
+ha tres ou quatro seculos, por m&atilde;os
+d'uns homens, cujos nomes e cujas fa&ccedil;anhas se
+memoram n'uns livros que elle nunca leu, porque
+n&atilde;o sabe ler, nem tem dinheiro para p&atilde;o,
+quanto mais para livros? Que s&atilde;o essas palavras
+retumbantes de regenera&ccedil;&atilde;o pelas
+tradi&ccedil;&otilde;es, sen&atilde;o
+sons &ocirc;cos, que n&atilde;o correspondem a nenhuma
+id&eacute;a? Supponhamos, por&eacute;m, que todas essas
+recorda&ccedil;&otilde;es
+chegavam ao povo. Podem ellas servir-lhe
+de exemplo, de lic&ccedil;&atilde;o para as suas necessidades
+actuaes? N'um paiz onde a riqueza
+passageira destruiu os habitos do trabalho e da
+economia, entorpeceu pela miseria, resultado infallivel
+da prosperidade ficticia, a energia do cora&ccedil;&atilde;o,
+que faz luctar o homem com a adversidade
+e venc&ecirc;-la, de que serve estar de cont&iacute;nuo a
+pr&eacute;gar ao povo:&#8213;&laquo;Teus av&oacute;s levaram o
+terror
+do seu nome aos confins do mundo, saquearam
+e queimaram emporios opulentos em plagas remotas,
+metteram a pique poderosas armadas,
+derribaram os templos alheios, violaram as mulheres
+extranhas, passaram &aacute; espada os que eram
+<span class="pagenum">[117]</span>
+menos valorosos que elles, abriram caminho ao
+engrandecimento dos outros povos da Europa, e
+affeitos a gosos faceis, deposeram aos p&eacute;s do absolutismo
+as suas velhas franquias, beijaram os
+grilh&otilde;es que lhes deitavam aos pulsos por que
+eram dourados, e tornaram-se ludibrio do mundo.&raquo;&#8213;Estas
+lic&ccedil;&otilde;es &eacute; que h&atilde;o-de
+ensinar a actividade
+no trabalho, a severidade nos costumes,
+o amor da liberdade moderada, mas verdadeira,
+o desejo de cultivar as artes da paz, no meio de
+um paiz decadente, cuja unica esperan&ccedil;a de
+salva&ccedil;&atilde;o
+est&aacute; em se desenvolverem nelle essas e outras
+tendencias analogas? N&atilde;o! O povo, que tem
+mais logica do que os pr&eacute;gadores de v&atilde;os
+apophtegmas,
+ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de
+concluir que &eacute; assaz fidalgo para n&atilde;o contrahir
+habitos vill&atilde;os e ruins. De historias
+d'aggress&otilde;es
+e de conquistas brilhantes n&atilde;o se deduz a
+necessidade de morrer obscuramente em defesa
+da terra da patria; n&atilde;o se deduz a
+modera&ccedil;&atilde;o revestida
+de firmeza, que faz respeitar pelas grandes
+as na&ccedil;&otilde;es pequenas; n&atilde;o se deduzem nem
+o
+amor do trabalho, nem o amor da virtude. Em
+vez de contarem ao povo as fa&ccedil;anhas da Africa e
+do Oriente, contem-lhe qual era o commercio
+de Lisboa, e o movimento agricola do paiz no
+<span class="pagenum">[118]</span>
+no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia
+desses e de outros factos analogos lhe &eacute; mais
+proveitosa, material e moralmente, de que recordar-lhe
+a gloria de batalhas e de conquistas.
+<br />
+
+<br />
+
+Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras
+lendas humanas nunca salvaram um paiz,
+quando a podrid&atilde;o penetrou no amago da arvore
+social. Onde e quando o homem renega
+da sua origem divina, vende a liberdade a troco
+de delicias, esquece que o elevar-se acima de
+viciosas paix&otilde;es traz um goso interior que vale
+bem todos os que d&atilde;o os sentidos, n&atilde;o
+&eacute; lisonjeando-lhe
+vaidades, que, nem sequer respeitam
+a magestade de Deus, que o havemos de revocar
+ao sentimento da dignidade e do dever. V..
+sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio
+romano, e nomeadamente a historia do baixo-imperio.
+N&atilde;o leio essas paginas melancholicas,
+sem que involuntariamente volva os olhos
+para o estado actual de algumas na&ccedil;&otilde;es modernas:
+as analogias que encontramos entre estas
+e aquella s&atilde;o symptomas dolorosos; mas n&atilde;o
+vem para aqui. Eu pe&ccedil;o a v.. que reflicta sobre
+essa historia em rela&ccedil;&atilde;o &aacute; efficacia
+das tradi&ccedil;&otilde;es.
+Ella completa o quadro que nos offerecem as
+<span class="pagenum">[119]</span>
+na&ccedil;&otilde;es mussulmanas. N&atilde;o foi no tempo
+da republica,
+foi sob o ferreo dominio dos cesares,
+que os poetas cantaram os mythos da gente romana,
+que os historiadores celebraram as suas
+glorias, e deram a importancia da verdade a centenares
+de lendas tradicionaes e fabulosas, que
+a sciencia moderna, as investiga&ccedil;&otilde;es do grande
+Niebuhr, reduziram j&aacute; ao seu justo valor. De que
+serviram, por&eacute;m, essas glorias, esses milagres
+do polytheismo, contados gravemente a um povo
+servo e gasto, que apodrecia aos p&eacute;s dos tyrannos?
+Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos
+espraiavam-se em exaggera&ccedil;&otilde;es sobre as
+grandezas passadas, emquanto os cidad&atilde;os recusavam
+combater por uma patria que se tornara
+em nome v&atilde;o, e preferiam o jugo dos barbaros
+a uma nacionalidade mentida. Os hymnos,
+as gloriosas recorda&ccedil;&otilde;es romanas serviram
+s&oacute;
+para acompanhar ao cemiterio da historia o ata&uacute;de
+de Roma.
+<br />
+
+<br />
+
+Consinta v.. que a estas rapidas considera&ccedil;&otilde;es
+eu ajuncte ainda um exemplo domestico,
+sobre o qual pe&ccedil;o a v.. que medite. Na lucta
+violenta e tenaz que Portugal sustentou nos fins
+do seculo XIV para repellir o dominio estrangeiro,
+ninguem se lembrou de fortalecer os animos
+<span class="pagenum">[120]</span>
+invocando o milagre de Ourique; ao menos n&atilde;o
+espero que v.. me aponte o menor vestigio historico
+que me desminta. A raz&atilde;o para desaproveitar
+tal auxilio foi demasiado forte; foi a raz&atilde;o
+do cordeiro da fabula&#8213;<em>o milagre ainda n&atilde;o
+era
+nascido</em>. E todavia o triumpho coroou os heroicos
+esfor&ccedil;os de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente
+ser livre.
+<br />
+
+<br />
+
+Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava,
+absoluto e n&atilde;o contradicto, no commum
+dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de
+modo innegavel. E todavia, quasi sem combate,
+as espadas castelhanas acabaram com a independencia
+de Portugal n'um dia.
+<br />
+
+<br />
+
+Entre os dous factos est&aacute;, al&eacute;m do milagre, a
+grande gloria das conquistas, gloria que n&atilde;o era
+uma tradi&ccedil;&atilde;o remota, quasi oblitterada na memoria
+do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a
+bem dizer actual. Alguns dos que mais tinham
+contribuido para ella ainda viviam.
+<br />
+
+<br />
+
+Estes dous phenomenos, que determinam duas
+epochas principaes da nossa historia, assim aproximados,
+s&atilde;o a nega&ccedil;&atilde;o mais solemne da
+utilidade
+dos embustes religiosos, ou para melhor dizer,
+anti-religiosos, e do orgulho selvagem de ter
+annaes escriptos com o sangue humano vertido
+<span class="pagenum">[121]</span>
+em guerras n&atilde;o provocadas, em guerras de
+aggress&atilde;o,
+e sobretudo de cubi&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso
+singular, um general ou um homem d'estado tirasse
+vantagem dessa deploravel for&ccedil;a moral que
+se estriba nas supersti&ccedil;&otilde;es, ou nas
+id&eacute;as de uma
+gloria feroz. A quest&atilde;o &eacute;, se hoje o povo
+portugu&ecirc;s
+tem alguma vantagem que tirar dessas tradi&ccedil;&otilde;es,
+na situa&ccedil;&atilde;o em que a Providencia o collocou.
+Sejamos sinceros. P&oacute;de elle sonhar em ser
+conquistador, ou sequer em constituir uma potencia
+maritima ou continental que p&eacute;se com demasiada
+for&ccedil;a na balan&ccedil;a dos acontecimentos politicos?
+Parece-me que nenhum sisudo o dir&aacute;.
+Somos pequenos; mas nem isso &eacute; vergonha, nem
+impedir&aacute; que as grandes na&ccedil;&otilde;es nos
+respeitem,
+se formos respeitaveis. Para obtermos
+considera&ccedil;&atilde;o
+basta que os nossos progressos intellectuaes
+e moraes mostrem &aacute; Europa que sabemos, queremos,
+e podemos regenerar-nos pela sciencia,
+pelo trabalho e pela morigera&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Morigera&ccedil;&atilde;o, trabalho, sciencia, eis as armas
+com que a philosophia politica deste seculo ensina
+as na&ccedil;&otilde;es civilisadas a combaterem n'uma lucta
+generosa. Os espiritos mais altos, seja qual
+f&ocirc;r a sua cren&ccedil;a religiosa e politica, proclamam
+<span class="pagenum">[122]</span>
+a paz e a fraternidade entre os homens. E n&atilde;o s&oacute;
+as proclamam, mas at&eacute; empregam a poderosa
+alavanca da associa&ccedil;&atilde;o para promoverem, digamos
+assim, uma cruzada sancta contra as tendencias
+guerreiras. Os esfor&ccedil;os collectivos desses
+homens summos ser&atilde;o baldados? N&atilde;o o cremos.
+Elles tem um alliado irresistivel. Quando os
+exercitos permanentes e as grandes marinhas militares
+tiverem devorado todo o peculio de cada
+povo, e exhaurido a melhor e mais pura seiva
+da sua vida economica, &eacute; ent&atilde;o que a philosophia
+politica hade alcan&ccedil;ar um triumpho decisivo.
+Mas esse triumpho que outra cousa ser&aacute;
+sen&atilde;o o ultimo termo de uma sorites immensa,
+composta dos factos de dezenove seculos, de uma
+demonstra&ccedil;&atilde;o practica e invencivel, de que a lei
+moralmente necessaria das sociedades modernas
+&eacute; o christianismo, &eacute; o verbo de amor e da paz
+revelado
+no Evangelho?
+<br />
+
+<br />
+
+Nesses dias, que porventura tardam menos do
+que muitos pensam, que destino dar&atilde;o os sacerdotes
+da bombarda, da lan&ccedil;a e da espada aos
+seus deuses fulminados? As palavras &laquo;fa&ccedil;anhas,
+gloria guerreira, conquistas,&raquo; como ser&atilde;o
+definidas
+nos diccionarios das linguas vivas, dentro de
+um ou dous seculos? Como julgar&aacute; a historia os
+<span class="pagenum">[123]</span>
+milagres inventados para sanctificar o derramamento
+de sangue humano?
+<br />
+
+<br />
+
+Desculpe v.. esta digress&atilde;o, que n&atilde;o creio
+nem inutil nem extranha ao assumpto. De novo
+entrarei directamente nelle, para proseguir nas
+explica&ccedil;&otilde;es que devo aos meus adversarios
+sinceros,
+honestos e instruidos, e n&atilde;o &aacute; ignorancia
+malevola e presumida de hypocritas insignificantes.
+<br />
+
+<br />
+
+Come&ccedil;arei por dar a v.. a raz&atilde;o moral, a
+raz&atilde;o
+suprema, porque rejeito n&atilde;o s&oacute; o milagre de
+Ourique, mas tambem os outros milagres, como
+o de Alcacer, a que ou a m&aacute; f&eacute;, ou a piedade
+pouco illustrada quizeram attribuir a sorte das
+batalhas, sorte dependente dos occultos designios
+da Providencia e de mil accidentes, previstos ou
+fortuitos, explicaveis ou inexplicaveis para a historia.
+N&atilde;o creio que essas guerras contra os infi&eacute;is
+fossem cousa excessivamente christan, e
+por isso o meu espirito recusa-se a acceitar como
+factos verdadeiros os testemunhos de approva&ccedil;&atilde;o
+divina a um procedimento anti-evangelico.
+Na idade m&eacute;dia passava como cousa corrente,
+que o guerrear os infi&eacute;is e fazer-lhes acceitar &aacute;
+for&ccedil;a
+o jugo, ali&agrave;s t&atilde;o suave e t&atilde;o livre,
+do christianismo,
+era obra meritoria. Os principes aproveitavam-se
+<span class="pagenum">[124]</span>
+desta doutrina, ou, para sermos justos,
+acreditavam-na, em geral, sinceramente: acreditavam-na,
+at&eacute;, a maior parte dos homens intelligentes
+e pios. Entre estes se distingue o proprio
+S. Bernardo, que o excessivo zelo da gloria do
+christianismo incitou a promover a segunda cruzada,
+cujo infeliz resultado lhe acarretou tantas
+accusa&ccedil;&otilde;es amargas, tantos desgostos pungentes.
+A favor das guerras contra os mussulmanos durante
+a idade m&eacute;dia, principalmente a favor da
+que se fazia na Peninsula, podem militar boas
+raz&otilde;es de politica, e at&eacute; de direito, porque essa
+guerra n&atilde;o era mais do que a reac&ccedil;&atilde;o
+contra
+uma conquista. Raz&atilde;o religiosa &eacute; que eu
+n&atilde;o vejo
+nenhuma que a favore&ccedil;a. Repugna-me &aacute; consciencia
+que o Christo, o Deus de paz e misericordia,
+viesse pessoalmente ou enviasse os seus
+anjos a incitar christ&atilde;os a derramarem o sangue
+humano, a levarem a assola&ccedil;&atilde;o e a morte ao meio
+daquelles que n&atilde;o o adoravam. Ser&aacute; este um modo
+errado de v&ecirc;r? A S. Thom&aacute;s de Aquino, que
+ainda alcan&ccedil;ou os tempos das cruzadas, n&atilde;o
+fizeram
+for&ccedil;a alguma as opini&otilde;es que haviam dado
+origem &aacute;quellas expedi&ccedil;&otilde;es longinquas,
+para deixar
+de estabelecer que a diversidade de cren&ccedil;a
+n&atilde;o &eacute; motivo bastante para um povo atacar outro.
+<span class="pagenum">[125]</span>
+Reprovando a guerra de religi&atilde;o, n&atilde;o era
+possivel cresse que Deus approvava essas luctas
+crueis com manifesta&ccedil;&otilde;es sensiveis.
+V&ecirc;-se, portanto,
+que os <em>milagres militares</em>, que
+ent&atilde;o se contavam
+a tal respeito, pouco credito mereciam a
+um dos homens mais pios do seculo XIII, e sem
+contradic&ccedil;&atilde;o ao mais profundo philosopho do seu
+tempo. Ou&ccedil;amos, por&eacute;m, o grande historiador
+da igreja, falando dessas guerras contra os mussulmanos.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Os christ&atilde;os&#8213;diz Fleury&#8213;devem applicar-se,
+n&atilde;o a destruir mas sim a converter os
+infi&eacute;is... Quando Jesus disse que tinha vindo trazer
+ao mundo a guerra, da sequencia do seu
+discurso, e do procedimento dos seus discipulos
+se manifesta claramente que s&oacute; se referia &aacute;s
+turba&ccedil;&otilde;es que havia de excitar a sua doutrina
+celestial, turba&ccedil;&otilde;es em que a violencia havia de
+vir toda dos inimigos, a quem os christ&atilde;os opporiam
+a resistencia que as ovelhas opp&otilde;em aos
+lobos. A verdadeira religi&atilde;o deve conservar-se
+e dilatar-se pelos mesmos meios por que se estabeleceu,
+pela pr&eacute;dica discreta, pelas obras virtuosas,
+e mais que tudo por illimitada paciencia.
+Se a isso Deus quizer ajunctar o dom dos milagres,
+mais prompto ser&aacute; o effeito. Quando Machiavello
+<span class="pagenum">[126]</span>
+dizia que os prophetas desarmados nunca
+sa&iacute;ram com seus intentos, mostrava-se a um
+tempo ignorante e impio; porque Jesu-Christo,
+o mais desarmado de todos, foi o que fez conquistas
+mais rapidas e firmes; conquistas como
+elle as queria, ganhando as almas, mudando de
+todo os homens, e tornando-os de maus em bons,
+o que nenhum conquistador j&aacute;mais fez....&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Repito pois, que n&atilde;o se deve tractar de diminuir
+as falsas religi&otilde;es, ou dilatar a verdadeira
+pelas armas e pela violencia: n&atilde;o s&atilde;o os
+infi&eacute;is que se devem destruir, mas sim a infidelidade,
+conservando os homens, e illustrando-os
+&aacute;cerca dos seus erros. Em summa, para isso n&atilde;o
+ha sen&atilde;o um meio, persuadir e converter....&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Imagine v.. se Fleury acreditaria nos milagres
+d'Alcacer e de Ourique, milagres em que se faz
+intervir o c&eacute;u para o derramamento do sangue
+humano; milagres, que nem tem o merito de
+originalidade, porque n&atilde;o havia por essa &eacute;pocha
+paiz da Europa, onde tambem a credulidade de
+muitos, e a m&aacute; f&eacute; de alguns n&atilde;o
+tivessem associado
+largamente o c&eacute;u &aacute;s luctas sanguinolentas
+daquelles tempos tumultuarios e rudes; milagres,
+emfim, que, por sua natureza, s&atilde;o, religiosa
+e moralmente, absurdos.
+<span class="pagenum">[127]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+De passagem lembrarei a v.. que n&atilde;o &eacute; bem
+fundada a accusa&ccedil;&atilde;o que me dirige, de que
+n&atilde;o
+appliquei ao milagre de Alcacer a regra de Vicente
+de Lerins, quando foi exactamente o contrario
+que fiz. Dos tres testemunhos presenciaes
+que temos &aacute;cerca daquelle celebre recontro, s&oacute;
+em dous se allude aos signaes miraculosos que
+se viram no c&eacute;u. O auctor da Historia Damiatana,
+que assistiu ao successo, ommitte a circumstancia
+milagrosa. N&atilde;o acha v.. significativo este
+silencio? Em todo o caso falta o <em>ab
+omnibus</em> de
+Vicente de Lerins, e v.. ha de ter presente a
+doutrina de Mabillon, citada por mim na carta
+antecedente, de que &eacute;
+<em>temerario</em>, n&atilde;o
+s&oacute; o acreditarmos
+em milagres falsos, mas at&eacute; nos simplesmente
+<em>duvidosos</em>. Quando o sentimento
+religioso,
+o respeito das doutrinas evangelicas
+n&atilde;o obstasse &aacute; cren&ccedil;a nesse favor do
+c&eacute;u, obstar-lhe-hia
+a severa doutrina do grande benedictino.
+<br />
+
+<br />
+
+Se n&atilde;o fosse o desejo de dar
+satisfa&ccedil;&atilde;o plena
+aos homens escrupulosos, mas capazes de se convencerem
+da verdade, como v.. talvez concluisse
+aqui esta carta, porque as grosserias parvoas
+da ignorancia e os rugidos do interesse ferido,
+que v&ecirc; fugir atraz da appari&ccedil;&atilde;o de
+Ourique todos
+<span class="pagenum">[128]</span>
+os milagres rendosos, s&oacute; se punem com a immortalidade
+do ridiculo.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o concluirei, por&eacute;m, sem dizer alguma cousa
+em especial sobre a tradi&ccedil;&atilde;o do apparecimento
+de Christo a Affonso I, considerada na sua origem,
+e no modo como foi propagada e defendida.
+Os principios mais solidos da critica, o silencio
+absoluto, n&atilde;o s&oacute; dos contemporaneos, mas tambem
+de dez gera&ccedil;&otilde;es successivas, bastaria para
+condemnar a tradi&ccedil;&atilde;o aos olhos dos
+desapaixonados,
+quando ella n&atilde;o fosse absurda em si,
+porque &eacute; absurdo p&ocirc;r Deus em
+contradic&ccedil;&atilde;o com
+a indole do christianismo. Ha, por&eacute;m, na historia
+da inven&ccedil;&atilde;o, propaga&ccedil;&atilde;o, e
+aperfei&ccedil;oamento dessa
+lenda tanta hesita&ccedil;&atilde;o, tantas
+contradi&ccedil;&otilde;es, tanta
+imprudencia, tanta falsifica&ccedil;&atilde;o, tantos desejos
+de se illudir ou de illudir os outros, em homens
+que parece deveriam ser superiores a taes fraquezas,
+que o colligir as provas disso &eacute; offerecer
+uma lic&ccedil;&atilde;o salutar do perigo que ha em abusar
+do sentimento religioso do povo para fins mundanos,
+e da miseria a que podem chegar ainda
+os altos engenhos, quando se esquecem das doutrinas
+evangelicas, e de que as duas cousas que o
+Salvador mais solemnemente amaldic&ccedil;oou neste
+mundo foram a mentira e a hypocrisia.
+<span class="pagenum">[129]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O silencio de mais de tres seculos sobre um
+facto estrondoso, que deveria andar na memoria
+de todos, como o milagre de Ourique, n&atilde;o &eacute;
+s&oacute;
+negativo, por assim nos exprimirmos; &eacute; tambem
+positivo. Conjuncturas houve, antes dos fins do
+seculo XV, em que elle se teria publicamente invocado,
+se n&atilde;o fosse uma fabula ainda n&atilde;o inventada.
+Citarei duas. Seria inexplicavel, se admittissemos
+a existencia da tradi&ccedil;&atilde;o cem annos antes
+de 1485, que nem um s&oacute; dos pr&eacute;gadores, letrados,
+e capit&atilde;es de D. Jo&atilde;o I, os quaes mais de
+uma vez, nas suas allocu&ccedil;&otilde;es ao povo e aos
+soldados,
+reccorreram &aacute;s cousas religiosas para accender
+os animos contra os castelhanos, e para
+crear a confian&ccedil;a de victoria final na lucta brilhante
+da independencia; que nem um s&oacute; desses
+pr&eacute;gadores,
+letrados e capit&atilde;es, os quaes n&atilde;o cessavam
+de accusar os inimigos de scismaticos,
+pretendendo ligar &aacute; sua causa a causa de Deus,
+se lembrasse j&aacute;mais de citar as promessas feitas
+por Christo a Affonso I, o que era decisivo. Antes
+disso, tambem, nos principios do seculo XIV,
+tractando-se com grande empenho da separa&ccedil;&atilde;o
+da ordem de Sanctiago em Portugal do gr&atilde;o-mestrado
+de Castella, o mestre e os freires portugueses
+dirigiram ao papa um longo arrazoado em
+<span class="pagenum">[130]</span>
+que argumentavam, que, sendo os bens que a ordem
+possuia em Portugal, reino separado e independente
+de Castella, dados pelos reis deste
+paiz, n&atilde;o era justo que o gr&atilde;o-mestre castelhano
+os continuasse a desbaratar a seu bel-prazer. Para
+firmar na origem do reino a independencia daquella
+parte dos cavalleiros que nelle residiam, o
+mestre Pedro Escacho e os seus commendadores
+allegavam ao papa um facto novo, mas do qual
+era quasi impossivel que separassem a historia
+da appari&ccedil;&atilde;o, se della houvesse vestigios. O
+facto
+novo era a acclama&ccedil;&atilde;o de Affonso I em Ourique.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Outr'ora&#8213;diziam em Roma os procuradores
+dos spatharios&#8213;o rei de Portugal, D. Affonso I
+de clara memoria, o qual, esmagando com m&atilde;o
+poderosa a barbara fereza dos sarracenos no campo
+de Ourique, foi elevado a rei pelos seus nobres
+e <em>pelos outros concelhos</em>, combateu
+os dictos
+sarracenos inimigos da religi&atilde;o orthodoxa com
+todas as for&ccedil;as, para exalta&ccedil;&atilde;o da
+f&eacute; catholica e
+defens&atilde;o do proprio reino. O mesmo rei, debellando
+e expugnando os infi&eacute;is, acommetteu-os e
+tirou-lhes castellos, fortalezas e muitas terras.
+Acceso em zelo da f&eacute;, e attendendo ao esfor&ccedil;o do
+mestre e freires de Sanctiago que ent&atilde;o viviam,
+concedeu-lhes, etc.&raquo;
+<span class="pagenum">[131]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o fazendo caso da ignorancia dos procuradores
+de Pedro Escacho<sup><a href="#f28">[28]</a></sup>
+&aacute;cerca do estado da
+sociedade portuguesa no meiado do seculo XII,
+quando mencionam os vill&atilde;os dos concelhos como
+intervindo n'uma elei&ccedil;&atilde;o de rei, n&atilde;o
+faz peso
+a v.. que n&atilde;o se lembrem do milagre da
+appari&ccedil;&atilde;o?
+Se existisse a tradi&ccedil;&atilde;o, poderiam elles
+ignor&aacute;-la,
+e n&atilde;o a ignorando ommitti-la, quando tanto
+convinha invoc&aacute;-la? N&atilde;o era evidente que o titulo
+e a independencia do rei obtinham incomparavelmente
+mais importancia e firmeza dos mandados
+positivos de Christo, do que das acclama&ccedil;&otilde;es
+da soldadesca? Deixo &aacute; imparcialidade de v.. o
+resolver estas quest&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+Eis-aqui por que eu digo que o silencio de todas
+as memorias e documentos anteriores a 1485
+&aacute;cerca da appari&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+&eacute; s&oacute; negativo; que &eacute; tambem
+positivo. Mas existe realmente este silencio?&#8213;perguntar-me-ha
+v.. Conforme a sua opini&atilde;o,
+estribada na de Cenaculo e Pereira, elle n&atilde;o
+<span class="pagenum">[132]</span>
+existe. No folheto recentemente publicado, que
+v.. intitulou <em>Nova Insistencia</em>, com
+lealdade de
+cavalheiro e de homem de letras v.. abandonou
+o texto forjado de S. Bernardo, e entendo que
+tambem o antigo documento da
+<em>Symmicta</em> ao destino
+que elles mereciam; mas insiste nos outros
+documentos que se citam. Examinarei se v.. tem
+raz&atilde;o na insistencia. Mas antes disso cabe-me consolar
+aqui v.. das injurias que a bruta ignorancia
+de um pobre tonto vomitou indirectamente contra
+v.. por n&atilde;o distinguir o texto attribuido no breviario
+a S. Bernardo; cabe-me, digo, consol&aacute;-lo
+com o meu exemplo, e com o de um sacerdote
+instruido, que, enganado com v.. por aquella
+insigne falsifica&ccedil;&atilde;o, expondo-lhe eu as minhas
+opini&otilde;es &aacute;cerca do milagre de Ourique, me
+contrapunha
+o testemunho do grande abbade de Claraval,
+inserto no breviario. Como, por&eacute;m, para
+escrever a historia do nosso paiz &eacute; necessario
+caminhar como quem passa pelo pinhal d'Azambuja,
+l&aacute; com todas as preven&ccedil;&otilde;es contra os
+salteadores,
+<span class="pagenum">[133]</span>
+c&aacute; attentos sempre a que n&atilde;o nos illuda
+a cada momento um fabricante de mentiras ou
+um falsificador de documentos e textos, amestrado
+pela experiencia repliquei que duvidava da
+passagem do breviario, e que duvidava sobretudo
+pelo adjectivo <em>lusitanum</em>, que nella
+se l&ecirc;, e que
+eu tinha a certeza de n&atilde;o se encontrar em monumento
+nenhum do seculo XII para significar
+<em>portugu&ecirc;s,
+cousa portuguesa</em>. Na duvida, pass&aacute;mos
+a examinar o texto do sancto, e a falsifica&ccedil;&atilde;o
+appareceu-nos
+logo mais clara que o dia. Assim v..
+teve companheiros na illus&atilde;o; nem creia que tem
+tido s&oacute; dous: ha-de ter tido milhares delles. Ria-se
+destes eruditos que adivinham tudo quanto
+se lhes diz: ria-se dos Mabillons de agua chilra,
+que logo distinguem <em>pelo estylo</em>
+quatro ou cinco
+linhas interpoladas nas obras de qualquer escriptor.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, voltando &aacute;s cousas s&eacute;rias, v.., repito,
+insiste
+nas outras provas, desprezadas as evidentemente
+falsas. E quaes s&atilde;o as que ficam? Creio que
+v.. tem presentes a regra de Gmeiner, de Mabillon,
+e de toda a gente que n&atilde;o esteja em guerra declarada
+com o senso-commum, <em>de que n&atilde;o
+prov&eacute;m
+maior certeza a um facto historico de ser relatado
+em livros de muitos auctores mais modernos,
+<span class="pagenum">[134]</span>
+cada um dos quaes foi copiando o que o outro
+tinha dicto. Todos elles junctos n&atilde;o valem mais
+do que o primeiro que o referiu.</em> Assim, tendo
+nos escriptores dos fins do seculo XV que relatam
+o milagre, todas as auctoridades que v.. cita do
+seculo XVI annullam-se completamente. Ha, por&eacute;m,
+outras anteriores, dir&aacute; talvez v.. &Eacute; verdade
+que Cenaculo as prop&otilde;e. Mas quaes s&atilde;o ellas?
+Examinemos.
+<br />
+
+<br />
+
+1.&ordm; Um indice, escripto em Roma, de documentos
+relativos a Portugal em que se memora o
+facto da appari&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Como Cenaculo nos n&atilde;o diz a data do indice,
+estamos desobrigados de discutir o documento
+a que se refere: provavelmente havia de ser pelo
+gosto do da Symmicta.
+<br />
+
+<br />
+
+2.&ordm; A doa&ccedil;&atilde;o ao mosteiro de Claraval,
+feita
+por Affonso Henriques.
+<br />
+
+<br />
+
+Tem o pequeno inconveniente de ser falsa.
+Jo&atilde;o Pedro Ribeiro reduziu-a a lastimoso estado
+na segunda das suas Disserta&ccedil;&otilde;es Chronologicas.
+Estou certo de que o bispo de B&eacute;ja, se resuscitasse,
+n&atilde;o havia de ter vontade de tornar a falar
+nella.
+<br />
+
+<br />
+
+3.&ordm; Nos <em>Commentarios</em> de Affonso
+sabio, traduzidos
+em portugu&ecirc;s no tempo de Affonso IV,
+<span class="pagenum">[135]</span>
+termina o capitulo 416 por uma passagem, em
+que Cenaculo quiz ver a memoria do milagre,
+embora nella n&atilde;o haja uma palavra a semelhante
+respeito.
+<br />
+
+<br />
+
+Este testemunho, ainda suppondo que a passagem
+diga o que n&atilde;o diz, tem tambem outro
+pequeno inconveniente. &Eacute; que Affonso sabio n&atilde;o
+escreveu Commentarios nenhuns. Veja v.. se
+os encontra mencionados no extenso e minucioso
+artigo &aacute;cerca de Affonso X, na <em>Bibliotheca
+Hespanhola</em> de Rodrigues de Castro, ou se acha
+em parte alguma vestigios de taes Commentarios.
+<br />
+
+<br />
+
+4.&ordm; Uma passagem de uma chronica inedita
+dos reis de Portugal, que, <em>pela f&oacute;rma da
+letra e
+pela linguagem</em>, se conhece ser do tempo de
+Affonso IV. Esta passagem diz-se transcripta
+de um codice da camara d'Evora.
+<br />
+
+<br />
+
+Pedirei pela primeira vez um favor a v.. &Eacute;
+que n&atilde;o acredite demasiado na pericia paleographica
+de Cenaculo. A diplomatica ainda n&atilde;o
+acho meios sufficientes para distinguir com
+certeza pela f&oacute;rma dos caracteres, nos codices
+portugueses, os que s&atilde;o do seculo XIV ou do
+XV. Tanto em letra assentada como em cursivo,
+n&atilde;o ha nelles sen&atilde;o a alleman pura, ou a francesa
+<span class="pagenum">[136]</span>
+com maior ou menor resabio de monachal
+ou alleman. Isto &eacute; commum a ambos os seculos.
+A mesma romana pura ou restaurada, que come&ccedil;a
+a apparecer nos fins do XV, tem ainda resabio
+da monachal. Pelo que respeita &aacute; outra
+adivinha&ccedil;&atilde;o de Cenaculo relativamente
+&aacute; linguagem,
+v.. como homem de letras, est&aacute; por certo
+habilitado para avaliar a
+<em>for&ccedil;a</em> deste meio de
+aprecia&ccedil;&atilde;o. Se o bispo de B&eacute;ja
+vivesse, eu compromettia-me
+a apresentar-lhe passagens extensas,
+escriptas em vulgar no meio do seculo XIV
+e outras escriptas j&aacute; na segunda metade do XV,
+e se elle fosse capaz de dizer quaes eram as antigas
+e quaes as modernas, dava-lhe a minha palavra
+de honra de ficar crendo no milagre de
+Ourique. Esta experiencia que eu offereceria ao
+erudito bispo, estou prompto a offerec&ecirc;-la a
+quem quer que pretender tent&aacute;-la.
+<br />
+
+<br />
+
+Agora accrescentarei mais alguma cousa. No
+archivo da camara d'Evora, que examinei por
+meus proprios olhos, posso certificar a v.. que
+nada ha anterior a D. Jo&atilde;o I; nem diplomas,
+nem codices. Que &eacute; feito da tal chronica que
+o bispo de B&eacute;ja diz existir no archivo da camara
+d'Evora? O que havia de estima&ccedil;&atilde;o naquelle
+archivo foi distrahido pelo antiquario
+<span class="pagenum"><a name="p137" id="p137">[137]</a></span>
+Lopes de Mira, que viveu um pouco antes de
+Cenaculo. Isto &eacute; sabido pelas pessoas eruditas
+d'aquella cidade. V.. deduzir&aacute; d'aqui as
+conclus&otilde;es
+legitimas.
+<br />
+
+<br />
+
+A erudi&ccedil;&atilde;o immensa de Cenaculo tem um defeito
+que nelle provinha do excesso de uma util
+faculdade unida a uma indole inquieta e impetuosa.
+Era essa faculdade a da memoria comprehensiva
+e tenaz. Lia muito e fiava-se na for&ccedil;a
+da propria reminiscencia. Seria facil provar pelos
+seus escriptos que grande numero das cita&ccedil;&otilde;es
+que fazia e das auctoridades em que se
+estribava n&atilde;o as verificava, e que a memoria o
+trahia &aacute;s vezes, quando menos em particularidades
+e accidentes que modificavam a significa&ccedil;&atilde;o
+dos textos, servindo mal os <a href="#e5">intuitos</a>
+do
+bom do prelado e tornando suspeita a sua candura.
+<br />
+
+<br />
+
+Os <em>Commentarios</em>, por exemplo, de
+Affonso
+sabio, traduzidos em portugu&ecirc;s, podiam ser, n&atilde;o
+uma inven&ccedil;&atilde;o, mas sim uma reminiscencia, ou
+uma nota tomada &aacute; pressa por Cenaculo, e talvez
+a chronica inedita dos reis de Portugal, que
+<em>pela f&oacute;rma da letra e pela
+linguagem</em> se conhecia
+ser do tempo de Affonso IV, fosse cousa
+analoga aos taes <em>Commentarios</em>, isto
+&eacute;, apenas
+<span class="pagenum">[138]</span>
+uma confus&atilde;o de id&eacute;as, ou, quando muito, uma
+inexac&ccedil;&atilde;o de apontamentos.
+<br />
+
+<br />
+
+Existe uma compila&ccedil;&atilde;o historica em vulgar,
+ou colligida ou accrescentada nos meiados do
+seculo XV, visto que na parte relativa a Portugal
+abrange a regencia e morte do infante D. Pedro
+(cap. 438) e nada cont&eacute;m posterior a este facto,
+continuando nos capitulos seguintes a historia
+dos outros estados da Peninsula. Conhecem-se
+tres exemplares desta compila&ccedil;&atilde;o, que constitue,
+ao menos intencionalmente, uma historia
+geral das Hespanhas desde os tempos mais
+remotos at&eacute; os seculos XIV e XV. Em Par&iacute;s e em
+Madrid conservam-se os dous exemplares mais
+antigos. O de Par&iacute;s trasladou-o o dr. Nunes de
+Carvalho com o intuito de imprimir aquelle curioso
+inedito. Dadiva do meu t&atilde;o erudito como
+modesto amigo Jos&eacute; Gomes Monteiro, possuo
+eu o terceiro exemplar, que parece ter pertencido
+a Manuel Severim de Faria. O codice de
+Madrid &eacute; talvez o mesmo que menciona pouco
+explicitamente Ferreira Gordo nas Memorias de
+Litteratura da Academia, Tom. 3, pag. 49. A
+<em>Cronica General</em> attribuida a Affonso
+sabio subministrou
+ao compilador a historia fabulosa e a
+historia antiga da Peninsula at&egrave; a epocha leonosa.
+<span class="pagenum">[139]</span>
+A corographia d'Hespanha, bem como a narra&ccedil;&atilde;o
+da entrada e conquista desta pelos mussulmanos
+e dos primeiros tempos do seu predominio
+s&atilde;o extrahidas da historia arabe de Arrazi,
+conhecido vulgarmente pelo nome de Mouro
+Rasis. Attribue-se ao reinado de D. Dinis e &aacute;
+iniciativa daquelle principe uma traduc&ccedil;&atilde;o do
+livro
+do historiador musulmano, e effectivamente
+esta parte da compila&ccedil;&atilde;o &eacute; uma
+daquellas que parecem
+mais antigas pela rudeza da linguagem. A
+chronica do Cid, publicada modernamente pelo
+P. Risco, e cuja authencidade foi disputada por
+Masdeu, era conhecida j&aacute; do compilador, que largamente
+a aproveitou na composi&ccedil;&atilde;o do seu livro.
+<br />
+
+<br />
+
+No exemplar de Par&iacute;s, conforme o que se v&ecirc;
+da copia de Nunes de Carvalho, faltam os capitulos
+411 a 441. Ignoro se o mesmo succede no
+exemplar de Madrid. Encontram-se, por&eacute;m, no
+que pertenceu a Severim de Faria; e &eacute; justamente
+nestes capitulos, desde o 412 at&eacute; o 438
+que est&aacute; inserida a chronica dos reis de Portugal,
+come&ccedil;ando na vinda do conde D. Henrique
+e finalisando nos primeiros annos do governo
+de Affonso V. &Eacute; uma narrativa ass&aacute;s resumida,
+distinguindo-se apenas a parte relativa aos reinados
+de Affonso I e de D. Dinis, cujos successos
+<span class="pagenum">[140]</span>
+verdadeiros ou fabulosos s&atilde;o mais particularisados.
+<br />
+
+<br />
+
+Conserva-se na Bibliotheca Publica do Porto,
+com o n.&ordm; 79, um antigo codice transferido para
+alli em 1834 do archivo de Sancta Cruz de Coimbra.
+Cont&eacute;m varias memorias historicas e outros
+papeis avulsos escriptos por diversas m&atilde;os, tudo
+colligido, segundo parece, nos fins do seculo XV.
+Acaba o codice por dous chronicons em vulgar<sup><a href="#f29">[29]</a></sup>.
+Um tem por titulo &laquo;<em>Como e donde descenderom
+os reis de Portugal</em>&raquo;: o outro
+&laquo;<em>Aqui
+se compe&ccedil;a a istoria dos reys de
+Portugal</em>&raquo;: Ambos
+se referem em breves palavras ao conde Henrique,
+dilatando-se com os successos e lendas da
+vida de Affonso Henriques, successos e lendas
+aproveitados pelo chronista Galv&atilde;o. Ao passo,
+por&eacute;m, que o primeiro chronicon n&atilde;o ultrapassa
+a epocha de Affonso I, o segundo abrange, postoque
+em breve resumo, as vidas dos seus successores
+at&eacute; D. Dinis. Em rela&ccedil;&atilde;o aos tempos de
+Affonso Henriques s&atilde;o em parte identicos, n&atilde;o
+s&oacute;
+no contexto, mas at&eacute; nas phrases. Ha todavia entre
+elles uma differen&ccedil;a digna de reparo: &eacute; a de
+<span class="pagenum">[141]</span>
+que no primeiro se repetem mais de uma vez as
+palavras <em>conta a historia</em>, que
+n&atilde;o apparecem no
+segundo, ao passo que n'aquelle se referem
+tradi&ccedil;&otilde;es
+relativas a Affonso I ommittidas neste, donde
+se conclue que o primeiro foi tirado de um trabalho
+historico mais antigo, de que talvez o segundo
+seja apenas um extracto, embora accrescentado
+com leves tra&ccedil;os dos subsequentes reinados.
+<br />
+
+<br />
+
+No exemplar da compila&ccedil;&atilde;o que pertenceu
+a Severim de Faria a narrativa dos successos de
+Portugal durante a vida de Affonso I p&oacute;de dizer-se
+que &eacute; um complexo dos dous chronicons de
+Sancta Cruz, &aacute;s vezes perfeitamente semelhante,
+outras variando nos vocabulos e phrases. Aproveitaram-se
+os chronicons na compila&ccedil;&atilde;o ou tiraram-se
+della? Por outra: qual dos tres monumentos
+&eacute; mais antigo? &Eacute; o que n&atilde;o importa nem
+eu me
+atrevo a resolver.
+<br />
+
+<br />
+
+O que importa &eacute; o que se l&ecirc; nestes monumentos,
+os mais remotos que nos restam escriptos
+em vulgar, &aacute;cerca da batalha de Ourique.
+Vejamos se l&aacute; se encontram vestigios do celebre
+milagre.
+<br />
+
+<br />
+
+O primeiro chronicon de Sancta Cruz diz-nos
+que Affonso Henriques, acclamado rei pelo exercito
+antes do combate, depois deste, <em>por
+memoria</em>
+<span class="pagenum">[142]</span>
+<em>daquelle boo aquecimento que lhe deus dera
+p&ocirc;s no seu pendam cinquo escudos por aquelles
+cinquo reis e pose-os em cruz por renembran&ccedil;a
+da cruz de nosso senhor ieshu christo, e p&ocirc;s em
+cada huum XXX dinheiros por memoria daquelles
+XXX dinheiros por que iudas vendeo Ieshu
+christo.</em>
+<br />
+
+<br />
+
+No segundo chronicon, entre a narrativa particularisada
+da lucta de Affonso Henriques com
+sua m&atilde;e e com o conde de Trava (a que faz seguir
+immediatamente o recontro de Valdevez) e
+a lenda do cardeal legado e do bispo negro medeia
+a noticia da batalha de Ourique por estas
+simples palavras: <em>E depois ouve batalha em nos
+quanpos dourique e venceo a.</em> Indicio notavel de
+que ainda no seculo XV havia quem desse &aacute;quelle
+acontecimento uma importancia secundaria.
+<br />
+
+<br />
+
+Na compila&ccedil;&atilde;o a passagem relativa &aacute;
+jornada
+de Ourique &eacute; a seguinte: &laquo;Ajuntou suas gentes
+e foyse sobre os mouros e correolhes a terra d&ecirc;s
+coimbra ataa santarem, e deshy passou o tejo e
+correo toda a terra ataa o campo de Ourique,
+onde achou elRey ismar, que a essa sazon era
+Rey da estremadura, com sinco Reys que o vinham
+buscar sabendo o grande dapno que lhes
+fazia em sua terra, e entrou com elles em batalha
+<span class="pagenum">[143]</span>
+no lugar que se chama crasto verde, e venc&ecirc;os
+e prend&ecirc;os e matou a mayor parte de todas
+suas gentes; mas antes que entrasse em na batalha
+os seus o al&ccedil;aram por Rey, e d&ecirc;s enton se
+chamou Rey de portugal: e depois que os Reis
+forom vencidos, elRey dom Affom de portogal,
+por memoria daquelle boo acontecimento que lhe
+deus dera trouve por armas sinco escudos por
+aquelles sinco Reis e pozeos em cruz por nembran&ccedil;a
+da cruz de nosso senhor jesu cristo, e
+poz em cada huum escudo trinta dinheiros por
+os trinta dinheiros por que judas o vend&ecirc;o, e
+d&ecirc;si tornouse para sua terra muy honradamente&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Onde estar&aacute; o milagre em qualquer destas tres
+passagens n&atilde;o posteriores aos meados do seculo
+XV e que por ventura s&atilde;o mais antigas?
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; muito possivel que Cenaculo, homem d'immensa
+e variadissima leitura, tivesse visto alguma
+copia dos chronicons de Sancta Cruz, e igualmente
+a compila&ccedil;&atilde;o no exemplar de Severim de Faria,
+que viveu no Alemtejo, onde tambem Cenaculo
+residiu longamente, e onde o manuscripto
+podia conservar-se ainda no tempo do bispo de
+Beja. Uma circumstancia digna de notar-se torna
+mais plausivel esta suspeita. Cenaculo cita o fim
+do capitulo 416 dos suppostos
+<em>Commentarios</em>, e
+<span class="pagenum">[144]</span>
+na compila&ccedil;&atilde;o os ultimos periodos do capitulo
+415 s&atilde;o os que se referem &aacute; batalha de Ourique
+e aos seus resultados. O logar do capitulo citado
+&eacute; o mesmo: a differen&ccedil;a est&aacute; na
+numera&ccedil;&atilde;o deste,
+e essa differen&ccedil;a &eacute; apenas de uma unidade.
+Preoccupado pela idea do milagre, do qual se faz
+derivar o imaginario escudo de Affonso Henriques,
+nada mais facil do que Cenaculo, citando
+de memoria, dar &aacute; compila&ccedil;&atilde;o, tirada
+em grande
+parte da <em>Cronica general</em>, o titulo
+de Commentarios
+d'Affonso sabio, e aos chronicons de Sancta
+Cruz o de chronica inedita, confundindo ao mesmo
+tempo a lenda do escudo d'armas com a lenda
+da appari&ccedil;&atilde;o, acerca da qual n&atilde;o ha
+ahi uma
+palavra. Tudo isto n&atilde;o passa de conjecturas, mas
+de conjecturas que p&otilde;em em salvo a probidade
+litteraria de um dos nossos mais illustres prelados
+de uma epocha ainda pouco remota, em
+que os bispos portugueses eram bispos, e n&atilde;o
+vigarios do papa<sup><a href="#f30">[30]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+Em Cenaculo a defens&atilde;o do milagre de Ourique
+<span class="pagenum">[145]</span>
+era empenho cego. N&atilde;o sei, nem me importam
+os motivos. Importa-me o facto, que annullaria
+melhores testemunhos do que esses que cita,
+quando elle fosse o seu unico abonador. Quer
+v.. uma prova decisiva da cegueira do douto
+prelado? Eu lh'a dou, e irrefragavel: &eacute; o seguinte
+periodo:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;O advertido padre Pereira faz ver que desde o
+seculo XV se acham escriptores mui auctorisados,
+que referem o acontecimento como de cousa
+<em>ent&atilde;o
+vulgar entre as pessoas que haviam tractado
+os immediatos contemporaneos do successo, em
+maneira que a tradi&ccedil;&atilde;o &eacute;
+coetanea.</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Traduzido em linguagem chan, quer isto dizer
+que em 1485 (epocha do primeiro testemunho
+preciso sobre a appari&ccedil;&atilde;o, o de Vasco Fernandes
+de Lucena), havia gente que tinha conhecido
+individuos do tempo da batalha de Ourique,
+ou por outra, que no seculo XV havia pessoas <em>com
+trezentos annos de idade.</em>
+<br />
+
+<br />
+
+Quem diz isto p&oacute;de dizer livremente o que lhe
+aprouver. Quando um espirito n&atilde;o-vulgar chega
+a este estado, que nos resta sen&atilde;o confessarmos
+o nosso nada diante da summa intelligencia de
+Deus?
+<br />
+
+<br />
+
+Aqui tem v.. por que eu me limitei, quanto
+<span class="pagenum">[146]</span>
+me foi possivel, a falar de leve na appari&ccedil;&atilde;o;
+eis
+porque tenho at&eacute; hoje reluctado em descer &aacute;
+discuss&atilde;o
+especial dessa mentira ridicula, com que
+os pr&eacute;gadores v&atilde;o ludibriar o povo na cadeira do
+evangelho. Estas miserias e vergonhas, e as que
+successivamente apontarei, sobre quem recaem?
+Sobre homens que ali&agrave;s t&ecirc;m direito &aacute;
+reputa&ccedil;&atilde;o
+que adquiriram na historia litteraria do paiz e nos
+annaes da igreja portuguesa, mas que um impulso
+talvez de amor proprio<sup><a href="#f31">[31]</a></sup>,
+talvez uma piedade
+ou um patriotismo irreflectido, fizeram com que,
+em vez de buscarem a verdade, buscassem a prova
+de que tal ou tal cousa era verdade, caminho
+deploravel em cujo termo &eacute; certo o precipicio.
+<br />
+
+<br />
+
+F&oacute;ra dos testemunhos cujo nenhum fundamento
+acabo de mostrar, Cenaculo reduziu-se a adoptar
+as pretendidas provas do padre Pereira, sem
+exceptuar o juramento de Alcoba&ccedil;a. E note v..
+que elle o conhecia t&atilde;o pouco ou era t&atilde;o fraco
+diplomatico, que n&atilde;o hesitou em escrever estas
+palavras memoraveis:&#8213;&laquo;<em>Duvidar da
+appari&ccedil;&atilde;o</em>
+<span class="pagenum">[147]</span>
+emquanto o desconhecimento dos testemunhos a
+faz presumir de piedade popular e cren&ccedil;a apaixonada,
+<em>pode ser critica</em>; mas a
+interpreta&ccedil;&atilde;o livre
+e esquerda da palavra real e fundada (o juramento
+de Alcoba&ccedil;a) merece ser sempre vista com
+desapprova&ccedil;&atilde;o e desagrado&raquo;.&#8213;Isto quer
+dizer
+que, se n&atilde;o houvesse o instrumento da
+appari&ccedil;&atilde;o,
+podiamos com boa critica deixar de crer no
+milagre. Assim, se o bispo de B&eacute;ja vivesse hoje,
+&aacute; vista da declara&ccedil;&atilde;o official da
+falsidade do documento,
+que o meu amigo Rebello da Silva arrancou
+ao juiz mais competente na materia, o
+lente de diplomatica e guarda-m&oacute;r interino do
+Archivo Nacional, elle teria de passar com armas
+e bagagens para o campo dos <em>impios</em>,
+se quizesse
+(havia de querer) intitular-se bom critico.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, deixando de parte o conjecturar qual seria
+hoje a opini&atilde;o de Cenaculo, vamos aos <em>Novos
+Testemunhos</em> do padre Pereira. Disse eu que este
+escripto traria deshonra ao auctor da <em>Tentativa
+Theologica</em>, e da <em>Vida de Gregorio
+VII</em>, se n&atilde;o
+<span class="pagenum">[148]</span>
+fosse uma ironia. Confesso a v.., que antes quero
+salvar, por esta hypothese, a reputa&ccedil;&atilde;o de um
+nome illustre na nossa litteratura, do que acceitar
+a anecdota, a que alguns attribuem a concep&ccedil;&atilde;o
+dos <em>Novos Testemunhos</em>, anecdota que
+mais
+de uma vez tenho ouvido referir. Conta-se, que,
+sendo o padre Pereira pouco aferrado ao dinheiro
+(&eacute; defeito de classe: n&atilde;o creia v.. que usurario
+nenhum fosse nunca homem de letras) veio a
+achar-se um dia com a bolsa completamente vazia.
+Advertido da apertura da situa&ccedil;&atilde;o pelo creado,
+pegou n'algumas folhas de papel, escreveu os
+<em>Novos Testemunhos</em>, mandou-os ao seu
+editor, e
+recebeu dez moedas, com que ficou rico, ao menos
+por dous ou tres dias. Eu prefiro a ironia &aacute;
+anecdota, que n&atilde;o sei se &eacute; verdadeira. Mas ou a
+musa do opusculo fosse a precis&atilde;o de dinheiro,
+ou fosse a vontade de gracejar, o que tenho por
+certo &eacute; que, a n&atilde;o ser assim, a obra fora indigna
+de um homem, que pulverisou as pretens&otilde;es
+illegitimas e insolentes da curia romana, e que
+fez tremer boa meia duzia de hypocritas e pedantes
+do seu tempo. As provas de que os <em>Novos
+Testemunhos</em> precisam da minha
+explica&ccedil;&atilde;o,
+ou d'outra qualquer, vou d&aacute;-las a v.., come&ccedil;ando
+por transcrever uma passagem da introduc&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[149]</span>
+do opusculo. Depois de apresentar como
+demonstra&ccedil;&atilde;o de n&atilde;o ser forjado
+<em>o juramento
+d'Alcoba&ccedil;a</em> o haver, antes de Brito o
+publicar,
+testemunhos <em>da
+tradi&ccedil;&atilde;o</em> de Ourique (argumento
+na verdade singular!) o padre Pereira prosegue:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Mas quanto a verificar o caso da
+appari&ccedil;&atilde;o,
+tem a dita demonstra&ccedil;&atilde;o <em>o
+defeito de que nenhum
+dos testemunhos em que ella se funda remonta a
+maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel</em>.
+E assim <em>poder&atilde;o</em> os emulos
+das nossas glorias
+<em>rep&ocirc;r</em> que uns
+<em>testemunhos do principio do
+XVI n&atilde;o s&atilde;o sufficientes</em> para
+extorquir delles o
+assenso a um facto, que se supp&otilde;e
+<em>acontecido no
+meio do seculo XII</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Depois d'isto, que digam todas as pessoas que
+lerem esta carta, n&atilde;o sendo algum clerigo mau e
+ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte
+quaesquer preven&ccedil;&otilde;es, o que se deve esperar no
+opusculo? O auctor confessa que a favor da
+appari&ccedil;&atilde;o
+n&atilde;o bastam os testemunhos posteriores ao
+anno de 1495, insufficientes para provas de um
+facto succedido em 1139, logo elle vai offerecer-nos
+documentos, trezentos, ou, pelo menos, duzentos
+annos anteriores. Eu digo o que nos offerece
+Pereira em logar dos <em>testemunhos
+insufficientes</em>.
+<span class="pagenum">[150]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+1.&ordm; A narrativa de Olivier de la Marche na
+introduc&ccedil;&atilde;o
+&aacute;s suas Memorias.
+<br />
+
+<br />
+
+Esta introduc&ccedil;&atilde;o foi come&ccedil;ada a
+escrever em
+1492, conforme o proprio auctor das Memorias
+declara<sup><a href="#f32">[32]</a></sup>:
+isto &eacute;, as passagens relativas &aacute;s
+armas
+reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres
+annos antes de come&ccedil;ar a epocha em que os testemunhos
+&aacute;cerca de um milagre succedido 357
+annos antes nada provam, segundo confessa o
+padre Pereira, advertindo que, por esses n&atilde;o prestarem,
+nos &iacute;a expor quatro novos, <em>todos de tanto
+peso e authoridade, que n&atilde;o ha para que se desejem
+outros mais graves</em>. Destas premissas segue-se,
+que o testemunho dado a favor de um
+facto 357 annos depois do tempo em que se diz
+succedido &eacute; <em>defeituoso e
+insufficiente</em>, mas dado
+354 annos depois do successo &eacute; igual ao de qualquer
+pessoa, ou de muitas pessoas que houvessem
+presenciado este, visto que <em>nada ha mais
+grave</em>, do que um testemunho posterior de 354
+<span class="pagenum">[151]</span>
+annos, emquanto o posterior de 357 n&atilde;o presta
+para nada.
+<br />
+
+<br />
+
+Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico?
+Deixo a escolha a v.. postoque estou certo
+de que das duas explica&ccedil;&otilde;es ha-de preferir a
+ultima.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o caso n&atilde;o p&aacute;ra aqui. Tenha v.. paciencia,
+porque n&atilde;o fui eu que quiz discutir o milagre de
+Ourique; foram os padres, que me t&ecirc;m insultado
+porque o tractei como elle merecia, que me
+compelliram a isso. H&atilde;o-de esgotar o calix da
+ignominia at&eacute; as f&eacute;zes. Elles dizem do pulpito
+abaixo que era melhor que eu n&atilde;o tivesse falado
+em tal; e eu digo-lhes da imprensa, do meu pulpito,
+que era melhor continuarem a aleijar o
+latim do breviario e do missal, e deixarem-me
+em paz escrever a historia verdadeira do meu
+paiz.
+<br />
+
+<br />
+
+Digo que o caso n&atilde;o p&aacute;ra aqui, porque o modo
+como &eacute; narrada a historia da appari&ccedil;&atilde;o
+por
+Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas,
+&eacute; curiosissimo. Segundo elle, o conde
+Henrique tinha escudo branco: depois este escudo
+adornou-se por quatro vezes: 1.&ordf; quando Affonso
+I, passando o Tejo, desbaratou em campo
+d'Ourique (<em>Cambdorick</em>) os cinco reis
+mouros, e,
+<span class="pagenum">[152]</span>
+em allus&atilde;o a cinco bandeiras que lhes tomou, p&ocirc;s
+no escudo branco cinco escudetes azues. 2.&ordf; Houve
+nova mudan&ccedil;a quando <em>o mesmo rei foi a
+Roma</em>
+emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno
+consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu
+pondo-se inteiramente n&uacute;, e desafiando
+o papa e os cardeaes para que lhe mostrassem todos
+junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes
+das que elle tinha recebido pela f&eacute; de Christo.
+Era maravilhoso, de feito, o numero d'ellas: cinco
+com visiveis indicios de deverem ter sido
+mortaes, a n&atilde;o se haver dado milagre no caso. O
+argumento fora peremptorio. O papa e os cardeaes
+disseram-lhe que vestisse a camisa; e para
+lhe darem uma satisfa&ccedil;&atilde;o da injusta pronuncia,
+mandaram-lhe que em cada um dos escudetes
+posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria
+daquellas famosissimas lan&ccedil;adas de que os
+mouros o haviam servido. 3.&ordf; Tendo o infante D.
+Fernando, rei de Portugal, casado em Fran&ccedil;a com
+a condessa Maria de Bolonha, teve um filho, chamado
+Henrique, o qual accrescentou a orla do
+escudo em que est&atilde;o os castellos. E sobre este
+ponto discute o auctor o erro que havia nos dictos
+castellos, estribando-se na opini&atilde;o de portugu&ecirc;ses
+notaveis. Entre estes devo advertir, para o que
+<span class="pagenum">[153]</span>
+v.. logo ver&aacute;, que elle havia j&aacute; mencionado
+especialmente
+<em>e com elogios extraordinarios</em> o
+celebre
+Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a dignidade
+de escan&ccedil;&atilde;o de Madama Margarida, viuva
+de Carlos o Temerario<sup><a href="#f33">[33]</a></sup>.
+A 4.&ordm; altera&ccedil;&atilde;o, que
+vinha a ser a quinta f&oacute;rma das armas reaes portuguesas,
+foi o p&ocirc;r-lhes uma cruz firmada no escudo
+um rei de Portugal (j&aacute; se v&ecirc; que muito posterior
+a Affonso I), facto cuja origem <em>alguns attribuiam
+(aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido
+uma cruz no c&eacute;u</em> durante uma batalha com os
+sarracenos,
+o que vendo o principe dissera, orando
+a Deus, que <em>mostrasse</em> antes a
+<em>cruz</em> aos infieis, e
+<em>assim se fez</em>, com o que os mouros
+ficaram desbaratados.
+Accrescenta Olivier de La Marche que
+talvez o milagre seja verdadeiro; mas que <em>para
+elle a verdade &eacute; que o bom rei
+Jo&atilde;o</em> (D. Jo&atilde;o I)
+foi quem ajunctou &aacute;s armas portuguesas os quatro
+bra&ccedil;os floreteados firmados no escudo.
+<br />
+
+<br />
+
+Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la
+Marche em toda a sua for&ccedil;a e pureza, postoque
+resumido. N&atilde;o lhe fa&ccedil;o commentarios. Deixo a
+<span class="pagenum">[154]</span>
+v.. e a todos homens instruidos que os fa&ccedil;am.
+Eu por mim estou satisfeito.
+<br />
+
+<br />
+
+Inverterei aqui a serie dos quatro
+<em>irrecusaveis</em>
+testemunhos do padre Pereira, porque tenho uma
+raz&atilde;o de ordem que me obriga a reservar o segundo
+para o ultimo logar. Falarei, portanto, do
+terceiro.
+<br />
+
+<br />
+
+Gomes Eannes de Azurara, na continua&ccedil;&atilde;o da
+chronica de D. Jo&atilde;o I por Fern&atilde;o Lopes,
+transcreve
+um discurso feito &aacute;quelle principe pelos
+seus confessores, frei Vasco Pereira e frei Jo&atilde;o
+Xira, a quem elrei pedira lhe dissessem se era
+servi&ccedil;o de Deus intentar a conquista de Ceuta. A
+resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se
+no exemplo de muitos outros principes e cavalleiros
+famosos, que haviam acommettido os infi&eacute;is
+na persuas&atilde;o de que practicavam uma obra
+meritoria, offerecendo-se &aacute; morte. Os que a tinham
+alcan&ccedil;ado, entendiam os dous frades que
+ficavam equiparados no c&eacute;u aos martyres, e que
+os que n&atilde;o a haviam obtido, nem por isso deixavam
+de ser sanctos, estando resolvidos a morrer
+alegremente pela f&eacute;. Os theologos terminaram a
+serie dos exemplos (nos quaes figuram entre
+aquella especie singular de bemaventurados o
+Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fern&atilde;o
+Gon&ccedil;alves,
+<span class="pagenum">[155]</span>
+que nunca desconfiaram de que eram sanctos)
+pela seguinte passagem, conforme se l&ecirc; na
+edi&ccedil;&atilde;o de 1644:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...temos ante nossos olhos a memoria do
+mui notavel, fiel e catholico christ&atilde;o elrei D. Affonso
+Henriques, cujas reliquias tractamos entre
+nossas m&atilde;os. V&ecirc;de, senhor, os signaes que trazeis
+em vossas bandeiras, e perguntai e sabei
+como e por que guisa foram ganhados; os quaes
+certamente de todas as partes mostram a paix&atilde;o
+de Nosso Senhor Jesu-Christo, <em>por cuja reverencia
+e amor o bemaventurado</em> rei offereceu o seu
+corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles
+cinco reis, como vossa merc&ecirc; sabe. Considerae
+<em>isso mesmo</em> (do mesmo modo) Senhor,
+<em>se elle
+duvidara se o seguinte trabalho era servi&ccedil;o de
+Deus, n&atilde;o tivereis v&oacute;s hoje em dia esta mui
+nobre cidade</em> (Lisboa) nem a villa de Santarem,
+com outros logares, etc.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque
+illustrava o sentido das phrases relativas &aacute;
+batalha de Ourique. O que frei Jo&atilde;o Xira queria
+dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera
+a morrer por Christo em Ourique, entendendo
+que fazia servi&ccedil;o a Deus, como depois, na
+tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala
+<span class="pagenum">[156]</span>
+aqui no milagre? Se houvesse outras testemunhas
+daquella epocha (1415), que positivamente
+referissem a appari&ccedil;&atilde;o, ainda se poderia, embora
+com violencia, supp&ocirc;r nas phrases do frade
+uma allus&atilde;o ao successo; mas faltando-nos
+absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa
+tal supposi&ccedil;&atilde;o. Trazer esta passagem para
+provar, que j&aacute; em 1415 existia a
+tradi&ccedil;&atilde;o, ao
+passo que, para ella poder ter a significa&ccedil;&atilde;o
+for&ccedil;ada que se lhe quer dar &eacute; necessario
+supp&ocirc;r
+a existencia da mesma tradi&ccedil;&atilde;o, o que
+&eacute;,
+sen&atilde;o um circulo vicioso, uma peti&ccedil;&atilde;o
+de principio?
+N&atilde;o &eacute;, por&eacute;m, s&oacute; isso.
+Nestas lendas, inventadas
+com fins humanos por milagreiros e
+falsarios, quasi que n&atilde;o &eacute; possivel dar um passo
+sem encontrar falsifica&ccedil;&atilde;o. A chronica de
+Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra
+contra os castelhanos, depois da revolu&ccedil;&atilde;o de
+1640, e precedida por uma gravura representando
+a appari&ccedil;&atilde;o, foi viciada nesta passagem,
+provavelmente para se ver nella uma allus&atilde;o
+obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu
+ver, o padre Pereira. No codice authentico do
+Archivo nacional, onde no impresso se l&ecirc;
+&laquo;<em>vencendo</em>&raquo;,
+est&aacute; escripto
+&laquo;<em>vendo</em>&raquo;.
+&laquo;Vendo&raquo; torna o
+sentido da passagem claro. O rei
+<em>vendo</em> os
+<em>cinco</em>
+<span class="pagenum"><a name="p157" id="p157">[157]</a></span>
+reis mouros, offereceu o seu corpo a Jesus, e p&ocirc;s
+nas suas bandeiras os <em>cinco</em> escudos.
+Substituida,
+por&eacute;m, a palavra <em>vendo</em>
+por <em>vencendo</em>, a phrase
+obscurece-se; a causa de se p&ocirc;rem os cincos escudos
+nas bandeiras, isto &eacute;, o serem os reis
+mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que
+se cria tirar vantagem em 1644, ganha em frei
+Jo&atilde;o Xira um novo, postoque bem debil, alliado.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas supponhamos tudo quanto quizerem.
+Adoptemos como exacto o texto impresso de
+Azurara: vejamos ahi a appari&ccedil;&atilde;o, embora
+n&atilde;o
+haja l&aacute; uma unica palavra a semelhante respeito.
+O testemunho singular de frei Jo&atilde;o Xira em 1415
+n&atilde;o seria um pouco tardio para provar um successo
+de 1139, profundamente esquecido nos
+chronicons e monumentos coevos? N&atilde;o o rejeitam
+as regras da critica sincera; regras estabelecidas
+accordemente por tantos e t&atilde;o respeitaveis
+escriptores ecclesiasticos; regras, emfim,
+cuja solidez a experiencia demonstra de cont&iacute;nuo
+aos que se votam a serios estudos historicos?
+Quer v.. um exemplo domestico da utilidade
+das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos,
+dos Fleurys, <a href="#e6">desprezadas</a>
+s&oacute; por aquelles que
+desprezam tudo, menos os dezeseis tost&otilde;es de
+um serm&atilde;o de milagres? &Eacute; exemplo que
+n&atilde;o est&aacute;
+<span class="pagenum">[158]</span>
+no cartorio da camara de Evora, nem nos Commentarios
+ideaes de Affonso X, mas no Archivo
+Nacional, onde todos o podem v&ecirc;r. Consiste n'uma
+especie de summario historico dos reis de Portugal,
+lan&ccedil;ado no 4.&ordm; volume de
+Inquiri&ccedil;&otilde;es
+de
+Affonso III, no reinado de D. Jo&atilde;o I. No preambulo
+daquelle summario, destinado a avaliar-se,
+&aacute; vista dos factos historicos, a genuinidade das
+doa&ccedil;&otilde;es dos reis anteriores, affirma-se que para
+o escrever se averiguara com extrema exac&ccedil;&atilde;o
+a verdade, fixando-se assim a serie chronologica
+dos principes portugueses. Sabe v.. qual &eacute; a
+exac&ccedil;&atilde;o desse monumento destinado a servir de
+padr&atilde;o legal, para por elle se afferirem diplomas
+que importavam &aacute; fortuna particular e aos direitos
+da cor&ocirc;a? Citarei s&oacute; os erros relativos a Affonso
+I. Segundo o summario official, elle nasceu
+em 1092, foi casado com a filha de D. Affonso
+de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em
+dezembro de 1184. D'aqui ver&aacute; v.. o credito
+que deveriam merecer-nos os testemunhos do
+seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre
+do seculo XII, quando esses testemunhos existissem,
+e n&atilde;o fossem um rol vergonhoso de
+falsifica&ccedil;&otilde;es
+e mentiras.
+<br />
+
+<br />
+
+O quarto testemunho do padre Pereira &eacute; o proprio
+<span class="pagenum">[159]</span>
+instrumento da appari&ccedil;&atilde;o, que existiu em
+Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o
+de Alcoba&ccedil;a. O auctor dos Novos Testemunhos diz
+que n&atilde;o sabe se os dous foram uma e a mesma
+cousa, passando o celebre documento do archivo
+daquelle mosteiro para o d'Alcoba&ccedil;a. Como demonstra
+elle, por&eacute;m, essa existencia? Pelo depoimento
+de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556,
+e publicado por outro frade cruzio, insigne forjador
+de textos e diplomas, e chronista da ordem,
+frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario
+pelos seus proprios confrades<sup><a href="#f34">[34]</a></sup>.
+Se acreditarmos
+este, os conegos de Sancta Cruz, <em>empenhados em
+fazer canonisar Affonso I</em>, requereram se tirasse
+um depoimento de testemunhas sobre os milagres
+do primeiro rei portugu&ecirc;s, do
+<em>Phara&oacute; obdurado</em>
+dos monges de Cella-Nova. Quem primeiramente
+dep&ocirc;s foi um <em>dos conegos
+empenhados</em>, e foi
+este que disse constar o milagre de Ourique pelo
+juramento que existia do mesmo rei. Desse juramento
+original tiraram-se ent&atilde;o em duplicado
+copias authenticas; uma para se guardar no
+mosteiro, outra para ir a Roma, o que n&atilde;o chegou
+<span class="pagenum"><a name="p160" id="p160">[160]</a></span>
+a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz
+o original e uma copia em instrumento, e f&oacute;ra
+d'alli outra copia authentica. Tudo isto se perdeu,
+e nada resta de um documento de tanta
+valia, que for&ccedil;osamente se havia de guardar com
+recato, sen&atilde;o a grosseira impostura dos frades
+bernardos, restando tambem, nos fins do seculo
+passado, um traslado que se dizia transcripto
+de <em>um original</em>, diverso no seu theor
+<a href="#e7">do</a> <em>outro
+original</em> de Alcoba&ccedil;a, e s&oacute;
+semelhante a elle em
+ter sellos pendentes, cousa que n&atilde;o existia na
+epocha em que o juramento se diz exarado.
+<br />
+
+<br />
+
+O que tudo isto vem a ser &eacute; uma serie de vergonhas
+e miserias repugnantes, e sobretudo de
+falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios, elles
+nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os
+seus embustes. Se frei Nicolau, ou os conegos de
+1156 (porque eu n&atilde;o sei se a historia do depoimento
+se verificou, ou se &eacute; inven&ccedil;&atilde;o do
+chronista)
+se lembrassem do que passou antes d'elles,
+teriam procedido com mais cautela nas suas mentiras.
+Quem l&ecirc; a fa&ccedil;anhosa chronica dos conegos
+regrantes conclue que no tempo de frei Nicolau
+os pergaminhos originaes eram aos milhares em
+Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui est&aacute; o que n&atilde;o
+s&oacute; elle proprio, postoque fraca testemunha, mas
+<span class="pagenum">[161]</span>
+tambem escriptores mais serios, que se reportam
+a um documento coevo, nos referem como acontecido
+em 1411. No dia de Corpo de Deus desse
+anno, uma tempestade que estourou sobre Coimbra
+produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu
+o mosteiro de Sancta Cruz. &laquo;A agua (diz o
+auto que sobre isto se redigiu) levou, al&eacute;m de
+muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas
+de memorias antigas e de doa&ccedil;&otilde;es que os reis
+fizeram ao dicto mosteiro, que <em>todas</em>
+foram molhadas
+<em>e a m&oacute;r parte dellas
+perdida</em>&raquo;. Sabendo
+elrei D. Jo&atilde;o I do successo, segundo confessa o
+mesmo frei Nicolau, ordenou se trasladassem
+em publica f&oacute;rma as
+<em>doa&ccedil;&otilde;es e mais
+escripturas</em>
+que restavam dando-se a este transumpto a
+mesma for&ccedil;a dos originaes, &laquo;<em>com o
+que</em>, prosegue
+o chronista, <em>se restaurou parte da perda
+de tantas e t&atilde;o antigas escripturas que hoje nos
+fazem grande falta</em>&raquo;. De duas uma: ou o
+instrumento
+da appari&ccedil;&atilde;o depositado em Sancta Cruz
+pereceu em 1411, ou escapou. Se escapou, devia
+ser trasladado no chartulario em que, segundo
+a ordem delrei, se lan&ccedil;ou o que restava. Esse
+chartulario existia ainda no tempo do chronista,
+e provavelmente existe ainda hoje. Para que inventaram,
+pois, o ridiculo pergaminho de Alcoba&ccedil;a?
+<span class="pagenum">[162]</span>
+Porque, em vez de imaginarem cem mentiras
+para amparar a tradi&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o foram a
+Sancta
+Cruz extrahir desse traslado authentico dez
+ou cem traslados novos, que tambem seriam
+historica e at&eacute; legalmente authenticos? Porque
+n&atilde;o v&atilde;o l&aacute; busc&aacute;-los ainda
+hoje para confundirem
+a minha impiedade? Se, por&eacute;m, o pergaminho
+original pereceu em 1411, que s&atilde;o essas
+historias de publicas-f&oacute;rmas <em>do
+original</em> feitas
+pelos notarios Manso e Thom&eacute; da Cruz, e n&atilde;o
+sei por quem mais, sen&atilde;o embustes, ou copias
+tiradas de um documento falso. Porque eu n&atilde;o
+disputo, nem me importa, que elle fosse forjado
+pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de
+S. Bernardo.
+<br />
+
+<br />
+
+Falta o segundo testemunho, que deixei para
+ultimo logar, porque se prende com o que me
+resta a dizer a v.. sobre a lenda da appari&ccedil;&atilde;o.
+Esse testemunho &eacute; o de Vasco Fernandes de
+Lucena, que, indo como orador da embaixada
+enviada por D. Jo&atilde;o II ao papa em 1485, referiu
+a historia da appari&ccedil;&atilde;o no discurso que recitou
+perante Innocencio VIII e perante a curia.
+Como prova do successo, elle tem pouco
+mais ou menos o valor do de Olivier de la Marche.
+Se aos historiadores que escreveram depois
+<span class="pagenum">[163]</span>
+de 1495 se n&atilde;o p&oacute;de attribuir, segundo Pereira,
+e muito mais segundo as doutrinas dos pios e
+eruditos escriptores a que me referi na carta antecedente,
+auctoridade bastante para nos compellirem
+a acceitar a tradi&ccedil;&atilde;o de Ourique,
+t&ecirc;-la-ha,
+porventura, o testemunho singular de um homem
+que o refere apenas dez annos antes, tractando-se
+de um milagre que se diz succedido
+n'uma epocha anterior de mais de tres seculos?
+&Eacute; impossivel que v.. n&atilde;o sinta que semelhante
+auctoridade nada vale.
+<br />
+
+<br />
+
+Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu.
+O primeiro e o segundo s&atilde;o dos fins do seculo
+XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a
+um s&oacute;. Persuadem-no o affirmar Olivier de la
+Marche que sobre a quest&atilde;o das armas portuguesas
+ouvira pessoas <em>notaveis</em> de Portugal
+com quem
+tractara<sup><a href="#f35">[35]</a></sup>
+tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos
+elogios &aacute; sciencia e talento de Vasco de
+Lucena. O terceiro &eacute; uma passagem, ali&agrave;s viciada,
+de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer
+correcta, n&atilde;o cont&eacute;m uma unica palavra
+&aacute;cerca
+da appari&ccedil;&atilde;o. Finalmente, o quarto &eacute; o
+juramento
+<span class="pagenum">[164]</span>
+de Affonso Henriques, que <em>consta</em>
+existia em
+Sancta Cruz muito antes de Fr. Bernardo de Brito
+encontrar o de Alcoba&ccedil;a, o qual se n&atilde;o sabe
+se &eacute; o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas
+que n&oacute;s sabemos perfeitamente que &eacute; falso. Eis
+aqui os testemunhos do milagre de Ourique,
+&laquo;<em>de
+tanto peso e auctoridade, que n&atilde;o ha para que se
+desejem outros mais graves</em>&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo
+a decidir se o padre Pereira escreveu isto em seu
+juizo, ou se estava dando largas &aacute; sua jovialidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Resta-me s&oacute; fazer um esfor&ccedil;o para acceder,
+at&eacute;
+onde &eacute; possivel, a uma pretens&atilde;o de v.. embora
+j&aacute; ficasse provado que ella era infundada. Diz
+v.. que para refutar plenamente a fabula da
+appari&ccedil;&atilde;o
+deveria eu dizer quando, como, para que,
+e por quem fora inventada. &Eacute; evidente que o falsario
+havia de precaver-se para n&atilde;o o descubrirem,
+e s&oacute; elle poderia dizer positivamente qual
+era o seu intuito quando forjou a patranha. Sendo
+homem astuto, saberia n&atilde;o somente guardar
+segredo, mas tambem fazer espalhar com arte a
+fabula. Que calumnias n&atilde;o tem alevantado uns
+aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos?
+Muitas dellas, passando primeiro de boca em
+boca, vindo &aacute; imprensa, combatidas pelos calumniados,
+<span class="pagenum">[165]</span>
+nem por isso h&atilde;o deixado de generalisar-se,
+e de tomar &aacute;s vezes tal consistencia, que &eacute;
+possivel passarem algumas, d'aqui a um seculo,
+por factos historicos, at&eacute; que uma critica severa
+e desapaixonada as reduza ao seu justo
+valor. Sobre a origem da fabula de Ourique n&atilde;o
+se podem produzir factos decisivos, mas podem
+reunir-se alguns, que, assim aproximados, offerecer&atilde;o
+fundamento a suspeitas vehementes sobre
+a epocha do nascimento da tradi&ccedil;&atilde;o, sobre
+seus auctores, e sobre os fins com que foi inventada.
+Note v.. que eu falo da tradi&ccedil;&atilde;o e n&atilde;o
+do
+juramento, que provavelmente, no estado em que
+hoje o temos, &eacute; mais moderno. Quanto a esse invento
+grosseiro, considerado em si, confesso que
+me fallece o animo para o analysar.
+<br />
+
+<br />
+
+Partamos de um facto. O primeiro testemunho
+sobre a existencia da tradi&ccedil;&atilde;o relativa ao
+milagre
+de Ourique, preciso, incontroverso, &eacute; o de Vasco
+Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais s&atilde;o
+chronicas que <em>se perderam</em>, vestigios
+que <em>se apagaram</em>,
+obras que <em>ninguem conhece</em>. Isto faz
+lembrar
+o gracioso livro das <em>Antiguidades de
+Evora</em>,
+que muitos tem tomado por obra de um tolo, e
+que na realidade s&atilde;o a satyra dos falsarios e crendeiros,
+feita por um homem espirituoso e engra&ccedil;ado.
+<span class="pagenum">[166]</span>
+Tudo quanto se cita anterior a 1485 s&atilde;o
+embustes e ridicularias, sem exceptuar as chronicas
+do tempo de Affonso Henriques attribuidas
+aos imaginarios chronistas Jo&atilde;o Camello e
+Pedro Alfarde, onde se diz que
+<em>talvez</em> se achasse
+a tradi&ccedil;&atilde;o. A inven&ccedil;&atilde;o dos
+taes chronistas, frades
+de Sancta Cruz, tinha j&aacute; sido reduzida a p&oacute; pelo
+cruzio D. Thom&aacute;s da Incarna&ccedil;&atilde;o, e por
+frei Manuel
+de Figueiredo, frade d'Alcoba&ccedil;a. A referencia
+a semelhantes mentiras feita por Pereira e por
+Cenaculo, que escreveram depois de ellas estarem
+refutadas, prova a <em>sinceridade</em> com
+que foram
+redigidos nesta parte os <em>Cuidados
+Litterarios</em>,
+e tambem os <em>Novos Testemunhos</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Temos, pois, um homem celebre, um castelhano,
+erudito, valido de D. Jo&atilde;o II, que, n'um discurso
+recitado perante Innocencio VIII, menciona
+pela primeira vez a appari&ccedil;&atilde;o. Singular origem
+de uma fabula, que, revelada por um estrangeiro,
+vem &aacute; luz em terra estrangeira, regida por um
+governo theocratico, que tem por fundamento
+primitivo do seu dominio temporal um titulo
+falso.
+<br />
+
+<br />
+
+A memoria de D. Jo&atilde;o II &eacute; odiosa. Entre todos
+os reis legitimos portugueses, &eacute; elle o unico ao
+qual sem injusti&ccedil;a a historia p&oacute;de attribuir a
+<span class="pagenum">[167]</span>
+qualifica&ccedil;&atilde;o de tyranno. Elle foi quem deu o
+golpe
+mortal nas velhas liberdades desta nossa terra.
+No seu reinado tem de ir buscar o historiador a
+causa fundamental da nossa decadencia, que come&ccedil;a
+com o estabelecimento do absolutismo,
+embora a podrid&atilde;o que corroe a arvore se esconda
+por alguns annos no cerne. &Eacute; tambem singular
+por esta circumstancia a origem da tradi&ccedil;&atilde;o.
+Nasce, dilata-se, cresce, firmando as raizes no
+tumulo da liberdade.
+<br />
+
+<br />
+
+Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado
+do <em>principe perfeito</em> um foragido
+portugu&ecirc;s,
+seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da
+Costa. Depois do assassinio judicial do duque de
+Bragan&ccedil;a, o cardeal aproveitou o ensejo para
+malquistar o rei portugu&ecirc;s com Sixto IV. Em consequencia
+d'isso (ao menos assim se acreditava),
+o papa enviou em 1483 um nuncio a Portugal, a
+queixar-se dos abusos do poder temporal contra
+as pretendidas immunidades da igreja, que o filho
+de Affonso V respeitava tanto como os foros
+politicos do reino. Foi o rei emprazado para apparecer
+ante o papa, por si ou por procurador,
+para dar explica&ccedil;&otilde;es &aacute;cerca do seu
+procedimento.
+Nomearam-se embaixadores; mas antes de partirem,
+Sixto IV relevou o rei da cita&ccedil;&atilde;o, diz-se
+<span class="pagenum">[168]</span>
+que a instancias do mesmo cardeal que excitara
+a tempestade, receioso de que os ministros portugueses,
+chegando a Roma, lhe pagassem em
+igual moeda, fazendo-lhe perder parte do poder
+e credito de que gosava<sup><a href="#f36">[36]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+Parece, por&eacute;m, que, emquanto proseguia em
+Portugal a lucta tenebrosa e encarni&ccedil;ada de uma
+aristocracia suberba com um rei ambicioso e
+inexoravel, o cardeal n&atilde;o dormia em Roma. Invectivava-se
+ahi ou fingia-se invectivar contra a
+frouxid&atilde;o de Sixto IV, que deixava o rei portugu&ecirc;s
+quebrar os privilegios do clero sem se lhe
+comminarem censuras<sup><a href="#f37">[37]</a></sup>.
+Deste clamor sincero,
+ou desta far&ccedil;a, resultou uma bulla concebida em
+durissimos termos, que se expediu nos primeiros
+mezes de 1484. A linguagem della era a linguagem
+habitual da curia, insolente e grosseira;
+mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo.
+O papa recordava uma cousa de que os reis
+portugueses se haviam esquecido; recordava a
+D. Jo&atilde;o II que <em>tinha a dignidade real por
+dadiva
+da s&eacute; apostolica e de que era seu
+tributario</em><sup><a href="#f38">[38]</a></sup>.
+<span class="pagenum">[169]</span>
+Uma bulla destas faria hoje desatar a rir quaesquer
+ministros portugueses, at&eacute; em pleno parlamento.
+Naquelle tempo, por&eacute;m, ainda o negocio era
+um pouco serio. D. Jo&atilde;o II, se riu, foi em particular.
+<br />
+
+<br />
+
+O arcebispo D. Jo&atilde;o Galv&atilde;o, um dos
+val&iacute;dos
+do rei e inimigo figadal da familia de Bragan&ccedil;a<sup><a href="#f39">[39]</a></sup>,
+tinha sido transferido, ainda em tempo de Affonso
+V, da s&eacute; suffraganea de Coimbra para a
+metropolitana de Braga. O arcebispo olhava para
+as cousas ecclesiasticas como certos pr&eacute;gadores
+d'hoje olham para a pr&eacute;dica; pelo lado solido.
+Sem lhe importar obter o pallio, foi usando
+do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas
+da mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava
+devorar pacificamente t&atilde;o bom quinh&atilde;o na mesa
+ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir
+o clero<sup><a href="#f40">[40]</a></sup>;
+mas at&eacute; que ponto eram graves
+as culpas do arcebispo, que assim se arriscava a
+perder a dignidade archiepiscopal (como tem
+succedido a muitos outros) n&atilde;o sei eu dizer: falo
+pela boca do papa, que lhe dirigiu tambem uma
+<span class="pagenum">[170]</span>
+carta de amea&ccedil;as. O que &eacute; certo &eacute; que
+o movedor
+das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal
+da Costa, n&atilde;o devia esquecer-se de carregar a
+m&atilde;o no val&iacute;do do seu adversario. Odio de padre
+contra padre ainda &eacute; mais profundo e tenaz do
+que contra qualquer secular.
+<br />
+
+<br />
+
+As rela&ccedil;&otilde;es com Roma offereciam, pois, um
+aspecto pouco agradavel, quando Sixto IV veio a
+fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura
+em que elrei apunhalava em Setubal o Duque de
+Viseu, mandava envenenar o Bispo d'Evora, assassinar
+D. Gotterre no fundo de um calabou&ccedil;o,
+e degolar e esquartejar em pra&ccedil;a outros fidalgos.
+D. Jo&atilde;o I tomara da c&ocirc;rte de Inglaterra o
+esplendor,
+os habitos cavalleirosos, o amor da cultura
+litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje
+distinguem as classes elevadas na Gran-Bretanha.
+Seu bisneto tomava da c&ocirc;rte de Fran&ccedil;a apenas
+um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava
+modelar as manifesta&ccedil;&otilde;es da sua alma.
+<br />
+
+<br />
+
+A casa de Bragan&ccedil;a procedia de D. Jo&atilde;o I,
+mas de D. Jo&atilde;o I antes de rei e simples mestre
+da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se
+enla&ccedil;ado com as armas de Portugal, porque D.
+Jo&atilde;o I n&atilde;o se esquecera, depois de rei, de que
+fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava.
+<span class="pagenum"><a name="p171" id="p171">[171]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+Com as m&atilde;os tinctas do sangue do duque de
+Viseu, D. Jo&atilde;o II arrancou a cruz do escudo de
+Portugal, e alterou a posi&ccedil;&atilde;o dos escudetes
+lateraes,
+collocados at&eacute; ahi horisontalmente, dando
+assim nova f&oacute;rma &aacute;s armas do reino. Dir-se-hia
+que at&eacute; d'alli quizera affastar a memoria da linhagem
+dos seus principaes adversarios.
+<br />
+
+<br />
+
+Era essa a causa da mudan&ccedil;a? N&atilde;o o sei. Ruy
+de Pina, um dos amoucos do principe perfeito,
+attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar
+ou recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O
+que &eacute; certo &eacute; que a
+altera&ccedil;&atilde;o se fez no mesmo
+anno de 1484.
+<br />
+
+<br />
+
+Hoje a heraldica e os bras&otilde;es s&atilde;o dixes com
+que se entretem <a href="#e8">as
+crean&ccedil;as</a> barbadas: o jogo do
+xadrez &eacute; cousa incomparavelmente mais grave.
+Nos fins do seculo XV n&atilde;o era, por&eacute;m, assim. A
+atten&ccedil;&atilde;o da Europa devia volver-se principalmente
+para o ensanguentado drama que se representava
+na c&ocirc;rte de Portugal; mas a cruz de Christo
+expulsa das moedas, dos sellos e das bandeiras
+do reino, pelas m&atilde;os de um rei algoz, havia de
+dar occasi&atilde;o a mais de um commentario pouco
+favoravel.
+<br />
+
+<br />
+
+Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco
+escudetes representassem uma cruz, e ao mesmo
+<span class="pagenum">[172]</span>
+tempo contivessem uma allus&atilde;o mysteriosa &aacute;
+paix&atilde;o
+de Christo; se as arruellas que os ornavam
+representassem os trinta dinheiros por que Judas
+vendeu o Senhor, que falta faria a cruz floreteada
+de Aviz nas armas de Portugal? N&atilde;o ficava ahi
+uma cruz mystica, um symbolo piedoso?
+<br />
+
+<br />
+
+Fallecido o papa que recordara a D. Jo&atilde;o II
+qual era a origem da independencia de Portugal
+relativamente a Le&atilde;o, e que ainda ousava lembrar-se
+do signal de vassallagem que outr'ora se
+offerecera &aacute; igreja de Roma, elle fora substituido
+por Innocencio VIII. Sabido o successo, elrei resolveu
+mandar a Roma uma embaixada, para orador
+da qual escolheu um homem de plena confian&ccedil;a,
+o castelhano Vasco de Lucena.
+<br />
+
+<br />
+
+Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor
+que as bullas de Lucio II e de Alexandre III &aacute;cerca
+da independencia do reino, e que talvez Affonso
+Henriques houvesse dado a guardar aos seus
+chronistas, Jo&atilde;o Camello e Pedro Alfarde? Se o
+tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem
+dessa circumstancia o novo papa, tirando
+assim &aacute; curia a vontade de repetir as doutrinas
+carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV.
+<br />
+
+<br />
+
+Porei aqui a parte mais interessante do discurso,
+que o orador de Portugal fez ao papa rodeado
+<span class="pagenum">[173]</span>
+dos seus cardeaes, em cujo numero se contava
+o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre
+Pereira j&aacute; traduziu uma por&ccedil;&atilde;o desse
+discurso;
+mas era um pregui&ccedil;oso aquelle bom do padre Pereira.
+V.. hade permittir que eu o seja menos, e
+d&ecirc; um talho mais largo.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de indicar em poucas phrases as origens
+de Portugal, o orador fala dos primeiros annos
+do governo de Affonso I e da pequenez dos seus
+estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas
+e conquistas: Leiria, Santarem, Lisboa tomadas,
+o Tejo transposto, a provincia transtagana
+submettida, com Evora sua capital, Cezimbra
+e Palmela, fortalezas inexpugnaveis, reduzidas,
+sendo por elle desbaratados <em>milhares
+infinitos</em><sup><a href="#f41">[41]</a></sup>
+de mouros com poucos cavalleiros. &laquo;Outra vez
+(ou <em>novamente</em>)&#8213;prosegue Lucena&#8213;no
+campo
+de Ourique, naquelle sitio a que o
+<em>vulgo</em> chama
+<em>agora</em> Cabe&ccedil;as dos Reis,
+com um pequeno exercito
+venceu cinco poderosissimos reis mouros.
+Na qual batalha, para se ver qu&atilde;o porfiada fosse,
+e qu&atilde;o excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram
+as lan&ccedil;as dos barbaros os escudos que
+<span class="pagenum">[174]</span>
+embra&ccedil;ava na m&atilde;o esquerda. Desta singular e
+famosa
+victoria procedeu <em>fixar elle as insignias e
+armas dos reis de Portugal</em>, pondo nellas cinco
+escudos, e collocando em cada um delles cinco dinheiros,
+sendo sabido que at&eacute; ent&atilde;o as armas
+eram um escudo s&oacute;, todo semeado de besantes.
+Estes cinco escudos <em>postos em f&oacute;rma de
+cruz</em>, e
+estes besantes quinarios <em>tambem distribuidos em
+cruz</em>, que nos indicam sen&atilde;o os trinta
+dinheiros,
+pre&ccedil;o do sangue de Christo, pelo qual este foi entregue
+aos judeus pelo crudelissimo Judas? Antes
+de dar o signal para a batalha, este rei, orando de
+joelhos, viu o Salvador pendente da cruz, e foi
+tal a confian&ccedil;a do regio animo, tal a f&eacute; gravada
+no
+seu cora&ccedil;&atilde;o, que, sem se aterrar com a estupenda
+maravilha, <em>se atreveu</em> a dizer que
+<em>n&atilde;o convinha</em>
+que Christo apparecesse a um firmissimo crente,
+mas que tal apparecimento era necessario aos hereges,
+aos que se afastavam da f&eacute; christan. D'isto
+e d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa
+sanctidade conhecer&aacute; mais claro que esta luz que
+nos alumia <em>por qual constancia d'animo, por
+qual ardor de virtude, por que prendas, por quaes
+degr&aacute;us e successos subiu ao fastigio
+regio</em>; como
+esse var&atilde;o t&atilde;o religioso, forte e pio augmentou
+os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo
+<span class="pagenum">[175]</span>
+jugo da servid&atilde;o; com que raz&atilde;o, por
+for&ccedil;a
+da <em>clarissima vontade e da suprema
+direc&ccedil;&atilde;o</em>
+(optimo auspicio) <em>da eterna
+magestade</em>, com <em>auxilio
+do povo</em> e
+<em>adjutorio</em> da sancta igreja romana,
+<em>tomou o regio nome com direito
+perfeito</em> (optimo
+jure) <em>e o legou aos seus
+successores</em>; mais feliz nisto
+que outros principes, dos quaes muitos aspiraram
+ao titulo real pelo favor dos povos; outros
+por temor dos seus satellites armados; poucos,
+a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro
+caminho da virtude.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Aqui tem v.. o que se l&ecirc; na ora&ccedil;&atilde;o de
+Lucena
+relativamente a Affonso I. Note v.. que o
+orador passava por um dos homens mais instruidos
+do seu tempo, e n&atilde;o podia por ignorancia
+fazer o que fez; isto &eacute;, inverter a ordem dos
+successos do reinado d'aquelle principe. Deste
+discurso o que se deduz &eacute; que a batalha de Ourique
+foi a ultima fa&ccedil;anha notavel delle, posterior
+a tudo, inclusivamente &aacute; tomada de Evora,
+e quem sabe se &aacute; bulla de Alexandre III, que
+concedeu ao principe portugu&ecirc;s a
+qualifica&ccedil;&atilde;o
+de rei? O que &eacute; certo &eacute; que, se a chronologia
+fingida por Lucena fosse verdadeira, a batalha
+e o milagre de Ourique, em que elle visivelmente
+quer fundar a independencia de Portugal,
+<em>embora</em>
+<span class="pagenum">[176]</span>
+<em>com o favor do povo e de Roma</em>,
+teriam sido
+posteriores &aacute; carta de feudo &aacute; s&eacute;
+apostolica e &aacute;
+bulla de acceita&ccedil;&atilde;o de homenagem expedida
+por Lucio II. Assim, a dignidade do rei e a independencia
+de Affonso I assentariam n'um titulo,
+n&atilde;o s&oacute; incomparavelmente melhor, qual
+era a vontade de Deus milagrosamente manifestada,
+mas tambem posterior &aacute; offerta e
+acceita&ccedil;&atilde;o
+da homenagem feita em 1144, que
+por esse facto ficavam invalidadas por inuteis.
+Presupposto isto, a impertinente recorda&ccedil;&atilde;o da
+curia romana, inserida na bulla &laquo;<em>Ut
+saluti</em>&raquo; de
+Sisto IV, ficava tambem de todo o ponto refutada.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas dir&aacute; v..&#8213;o cardeal D. Jorge da Costa,
+presente ao acto, n&atilde;o podia impugnar este inaudito
+milagre?&#8213;N&atilde;o se impugnam assim milagres.
+Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra
+mim, porque no seculo XIX n&atilde;o creio n'uma fabula
+provada tal at&eacute; a saciedade, e imagine se
+um padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre
+nos fins do seculo XV; e quando se atrevesse
+a dizer alguma cousa, seria em particular
+ao papa e aos cardeaes. Outra flagrante mentira
+dizia ahi Lucena sem temor de que D. Jorge o
+contradissesse: era a historia dos cinco d&iacute;nheiros
+em cada escudete, desmentida por todas as
+<span class="pagenum">[177]</span>
+armas reaes gravadas nos s&ecirc;llos e moedas dos
+nossos antigos reis da primeira dynastia, come&ccedil;ando
+em Sancho I. Restam muitos desses s&ecirc;llos
+e moedas; muitos mais deviam restar naquella
+epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa
+notavel: havia de ter visto muitissimos; mas nem
+por isso Lucena titubeou, antes nesta parte o seu
+discurso, geralmente frio, melifluo, calculado,
+tem certo sabor de colerica invectiva contra os
+que disso duvidassem. O descaramento &eacute;, ha muitos
+seculos, um dos dotes do homem d'estado.
+<br />
+
+<br />
+
+Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador
+de Portugal no concilio de Basil&eacute;a, e na
+embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as
+ora&ccedil;&otilde;es de abertura nas c&ocirc;rtes de 1478
+e de
+1481. Todas essas ora&ccedil;&otilde;es, que n&atilde;o
+deviam ser
+menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas
+escapou a da embaixada de Roma de 1485,
+e n&atilde;o s&oacute; escapou, mas tambem foi impressa, e
+n&atilde;o s&oacute; foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se
+della duas edi&ccedil;&otilde;es em caracteres gothicos e sem
+data, ao que parece, estampadas <em>f&oacute;ra do
+reino</em>
+e com todos os signaes de <em>pertencerem aos primeiros
+tempos da arte da impress&atilde;o</em><sup><a href="#f42">[42]</a></sup>. Se de
+feito
+<span class="pagenum">[178]</span>
+a ora&ccedil;&atilde;o foi reproduzida pela imprensa pouco
+depois de recitada, devia s&ecirc;-lo f&oacute;ra do reino,
+onde a imprensa de livros latinos e vulgares n&atilde;o
+consta que existisse ainda. Mas duas edi&ccedil;&otilde;es da
+mesma epocha, que provam, sen&atilde;o que <em>alguem
+interessava em dar &aacute;quelle discurso a maxima
+publicidade</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+Recorde-se v.. do que eu disse a proposito
+de Olivier de la Marche, e da influencia que &eacute;
+provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista
+flamengo &aacute;cerca das armas de Portugal. V&ecirc;-se
+que em 1492, em que este escrevia, as opini&otilde;es
+andavam encontradas. As armas que ahi mais
+se deviam conhecer eram as antigas com a cruz
+d'Aviz, porque a reforma de D. Jo&atilde;o II tinha apenas
+oito annos. Entretanto a noticia do milagre
+de Ourique, postoque alterada, corria j&aacute; alli, e
+a altera&ccedil;&atilde;o provinha de quererem
+<em>alguns</em> acommodar
+a fabula &aacute;s armas antigas. Consequentemente,
+outros n&atilde;o queriam: logo disputava-se
+&aacute;cerca disso: logo a historia da
+appari&ccedil;&atilde;o era
+uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a
+explica&ccedil;&atilde;o
+sabida e ordinaria, como Lucena dissera
+em Roma, teria De la Marche accumulado a serie
+de despropositos que anteriormente transcrevi?
+Elle falara &aacute;cerca d'isto com muitos portugueses,
+<span class="pagenum">[179]</span>
+e escrevia &aacute; vista das suas
+informa&ccedil;&otilde;es. O que
+indica essa completa confus&atilde;o d'id&eacute;as do
+chronista?
+Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente
+no meio das lendas que se ligavam ao
+braz&atilde;o dos reis de Portugal, as tinha inteiramente
+baralhado.
+<br />
+
+<br />
+
+Agora note v.. que por estes mesmos annos
+de 1491 e 92 Lucena devia estar em Flandres,
+porque &eacute; neste tempo que elle come&ccedil;a a
+intitular-se
+conde palatino (titulo que parece provir-lhe
+do cargo d'escan&ccedil;&atilde;o da viuva de Carlos o
+Temerario),
+ao passo que nessa conjunctura o achamos
+ausente de Portugal<sup><a href="#f43">[43]</a></sup>.
+V.. ajuisar&aacute; das
+illa&ccedil;&otilde;es
+que destes factos se podem tirar.
+<br />
+
+<br />
+
+Mais ou menos inexactas que sejam as noticias
+que nos restam &aacute;cerca da existencia em Sancta
+Cruz de Coimbra de um monumento relativo &aacute;
+appari&ccedil;&atilde;o, parece todavia que alguma cousa ahi
+houve, e o transumpto do juramento de Affonso
+I, feito pelo notario Manso <em>em tempo d'elrei D.
+Jo&atilde;o II</em>, n&atilde;o &eacute; de
+desprezar, logo que um homem
+como frei Francisco Brand&atilde;o affirma t&ecirc;-lo visto.
+Tal transumpto, se n&atilde;o prova a existencia de um
+documento verdadeiro, faz crer que <em>alguma
+cousa</em>
+<span class="pagenum">[180]</span>
+<em>sobre a appari&ccedil;&atilde;o
+tinha</em> apparecido <em>em Sancta
+Cruz no tempo daquelle rei</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Advirta, por&eacute;m, v.. que D. Jo&atilde;o
+Galv&atilde;o, o arcebispo
+de Braga, val&iacute;do de Jo&atilde;o II, tinha sido
+prior m&oacute;r de Sancta Cruz, devendo por isso conservar
+estreitas rela&ccedil;&otilde;es com os frades, e que a
+familia Galv&atilde;o parece ter tido particular tendencia
+para aquelle mosteiro; um outro D. Jo&atilde;o
+Galv&atilde;o era seu prior crasteiro no principio do seculo
+XVI, e, como vimos, diz-se que em 1556 um
+frade cruzio, velho de oitenta annos, o
+<em>cartorario</em>
+D. Manuel Galv&atilde;o, dep&ocirc;s que existia o auto do
+juramento de Affonso I, <em>em que os prelados e os
+grandes da corte estavam assignados</em>, grossa mentira,
+seja de passagem dicto, porque o estylo
+constante, sem excep&ccedil;&atilde;o no seculo XII e ainda
+no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo
+notario que os exarava os nomes dos prelados
+e ricos-homens confirmantes. Mas os Galv&otilde;es
+n&atilde;o acabam aqui. Duarte Galv&atilde;o,
+<em>irm&atilde;o do arcebispo
+val&iacute;do</em>, escrevendo depois de 1500 a
+chronica
+de Affonso Henriques (no fim da qual adverte
+<em>innocentemente</em>
+que seu irm&atilde;o o arcebispo lhe dissera
+que tinha motivos para crer <em>que Affonso
+Henriques fora sancto</em>,) introduz na narrativa
+da batalha de Ourique a historia da appari&ccedil;&atilde;o,
+<span class="pagenum">[181]</span>
+aperfei&ccedil;oada com a scena do ermit&atilde;o que esquecera
+a Lucena. Galv&atilde;o refere-se nesta parte ao
+que <em>elle mesmo</em> (Affonso I)
+<em>disse, e dentro da sua
+historia se cont&eacute;m</em>, o que parece alludir a
+uma
+especie de memoria ou diploma em que figura o
+filho de D. Theresa, o <em>Phara&oacute;
+obdurado</em>. Tudo
+o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em
+fama; isto &eacute;, a reprehens&atilde;o dada pelo rei a
+Christo
+por lhe apparecer a elle; as promessas da
+protec&ccedil;&atilde;o
+perpetua do reino feitas por Deus; emfim
+tudo aquillo que os frades de Alcoba&ccedil;a metteram
+para dentro do <em>seu original</em> do
+juramento, porque
+em verdade era pena que andasse tanta cousa
+boa s&oacute; em <em>confirmada
+fama</em>, como diz Duarte
+Galv&atilde;o. Mas se os frades bernardos souberam
+aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem
+um juramento vistoso, e de uma appari&ccedil;&atilde;o
+rachitica uma appari&ccedil;&atilde;o ancha e acabada, o
+chronista
+n&atilde;o tinha mostrado menos juizo em lhe dar
+uma applica&ccedil;&atilde;o util. Para D. Jo&atilde;o II,
+morto e sepultado,
+n&atilde;o servia ella j&aacute; de nada. A bulla
+<em>Ut
+Saluti</em>, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio
+VIII tinham desapparecido da scena politica. Na
+cadeira de S. Pedro estava assentado o sancto padre
+Alexandre Borgia, que tinha assaz que fazer
+em administrar piamente a igreja de Deus, para
+<span class="pagenum">[182]</span>
+n&atilde;o cogitar na sujei&ccedil;&atilde;o politica de
+Portugal &aacute; sancta
+s&eacute;. O milagre de Ourique andava de todo desaproveitado.
+Era uma lastima. O chronista olhou
+para o mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro
+dos Galv&otilde;es, e entendeu que a
+appari&ccedil;&atilde;o lhe podia
+ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente
+da appari&ccedil;&atilde;o, no que ninguem at&eacute; ahi
+sonhara.
+Fora a causa de tamanha merc&ecirc; do c&eacute;u o ter Affonso
+I fundado e enriquecido Sancta Cruz <em>com
+grande devo&ccedil;&atilde;o</em>. Na verdade isto
+era em parte
+mentira; porque as grandes doa&ccedil;&otilde;es de terras,
+castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques
+&aacute;quelles frades, s&atilde;o todas posteriores a 1139
+e anterior &aacute; batalha de Ourique apenas a de uma
+horta em Coimbra<sup><a href="#f44">[44]</a></sup>.
+Antes, por&eacute;m, da pontilhuda
+dialectica dos diplomaticos n&atilde;o se olhava de t&atilde;o
+perto para as cousas. A mentira util tornava-se
+em verdade pelo consenso dos sabios, e sabios
+eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade
+de explorar a tradi&ccedil;&atilde;o em beneficio dos conegos
+cruzios era indisputavel. Os caseiros e emphyteutas
+do mosteiro, ra&ccedil;a dura e rebelde em
+pagar suas rendas e foros, n&atilde;o pagava, e ria-se
+das excommunh&otilde;es; os officiaes da coroa quebravam
+<span class="pagenum">[183]</span>
+impiamente os privilegios da ordem, e at&eacute;,
+anteriormente, os vill&atilde;os de Montemor tinham
+ousado accus&aacute;-la de haver obtido com dolo e
+mentira parte das suas rendas e direitos senhoriaes<sup><a href="#f45">[45]</a></sup>.
+Depois, naquella conjunctura, o mosteiro
+estava gasto e desbaratado das guerras que pouco
+antes o prior D. Jo&atilde;o de Noronha tivera com o
+bispo de Coimbra, em raz&atilde;o de uma pouca de
+carne furtada da cozinha do bispo pelos criados
+do prior; guerras em que se deram cruas batalhas
+nas pra&ccedil;as de Coimbra, sendo necessario que o
+poder publico mandasse marchar tropas para pacificar
+&aacute; for&ccedil;a os dous reverendos
+campe&otilde;es<sup><a href="#f46">[46]</a></sup>.
+Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes,
+os bens e rendas de Sancta Cruz sob a protec&ccedil;&atilde;o
+de um bom milagre, naquella occasi&atilde;o desoccupado,
+d'ahi s&oacute; podia provir utilidade aos cruzios
+sem damno de terceiro. Valia a pena, por isso,
+de achar a causa verdadeira do milagre de Ourique,
+com que ninguem ainda tinha atinado.
+<br />
+
+<br />
+
+Paro aqui; e pe&ccedil;o desculpa a v.. da minha
+<span class="pagenum">[184]</span>
+linguagem. Ha cousas que nenhuma equanimidade
+basta para dellas se falar sem indigna&ccedil;&atilde;o, ou
+sem riso. &Eacute; necessario escolher, e eu prefiro o
+ultimo quando se tracta de embustes e miserias
+que j&aacute; n&atilde;o fazem mal. V.. tomar&aacute; na
+conta que
+merecem os factos e as reflex&otilde;es que no decurso
+desta carta lhe submetto, e de que no seu foro
+intimo tirar&aacute; as conclus&otilde;es que julgar razoaveis.
+Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado
+pela imprensa que se retirava da arena da
+discuss&atilde;o. Por mais oppostas que sejam em tantas
+cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica
+com um homem honesto, cortez e instruido,
+era-me summamente agradavel. Mas d'hoje avante,
+dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que
+n&atilde;o faria uma ac&ccedil;&atilde;o boa.
+At&eacute; certo ponto ser&iacute;a
+ferir pelas costas um adversario leal. Cessou por
+isso a nossa correspondencia. Restam mil outros
+meios de falar com o geral dos homens de bem
+e sinceros, e de dizer ao meu paiz as verdades
+em que a guerra da maioria do clero me obriga,
+por propria defesa, a faz&ecirc;-lo pensar.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c5"></a>V<br />
+
+<br />
+
+A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA<br />
+
+</h3>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h4>AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO
+</h4>
+
+<h4>
+(<em>Mar&ccedil;o, 1851</em>)
+</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Meu amigo.&#8213;Remette-me v.. o folheto de
+A. C. P. (que me diz ser um &laquo;academico&raquo; o sr.
+Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os
+crimes, as fabulas, as contradic&ccedil;&otilde;es, as
+ignorancias
+e n&atilde;o sei quantas cousas mais, em que o peccador
+de mim caiu na narrativa da batalha de
+Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa
+no seu jornal acerca desta publica&ccedil;&atilde;o, a qual
+fez,
+segundo v.. affirma, certo effeito, por causa das
+garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por
+lithographia ao folheto, como prova dos progressos
+da arte typographica entre n&oacute;s, que &eacute; o mais
+que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas.
+Sabe o bom redactor da <em>Semana</em> a
+primeira
+impress&atilde;o que o folheto me causou? A que em
+<span class="pagenum">[186]</span>
+mim produzem muitas cousas que se publicam
+nesta nossa terra. Lembrei-me da Divina Providencia,
+para lhe agradecer que o estudo da nossa
+lingua esteja t&atilde;o pouco generalisado na Europa.
+A reputa&ccedil;&atilde;o litteraria do paiz ganha immensamente
+com isso. Dizem que n&atilde;o se deve nunca
+desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que
+litterariamente desesperava della, se n&atilde;o fosse a
+mocidade, &aacute; qual Deus queira dar bastante amor
+do estudo, e alumi&aacute;-la com um sancto horror a
+cruzar os umbraes da Academia. A dizer a verdade,
+meu amigo, come&ccedil;a a fallecer-me a paciencia
+e a vontade para discutir cousas que nos escorregam
+para o ch&atilde;o quando tentamos submett&ecirc;-las
+&aacute; analyse. Demais, do que eu tracto agora &eacute; de
+p&ocirc;r quanto antes na imprensa o quarto volume
+da <em>Historia de Portugal</em>, que, em
+consciencia,
+me tem dado mais que pensar do que todas as
+criticas academicas, presentes e futuras. Com a
+m&atilde;o no cora&ccedil;&atilde;o, digo-lhe que,
+<em>exceptis excipiendis</em>,
+o areopago censorio mais inoffensivo, mais
+divertido at&eacute;, que ha em todo o mundo &eacute; a
+Academia
+de Lisboa. Collectivas ou individuaes, as
+censuras que partem d'alli nem sequer arranham
+a supposta victima. Se n&atilde;o escorchassem, por via
+de regra, a grammatica e o senso commum, n&atilde;o
+<span class="pagenum"><a name="p187" id="p187">[187]</a></span>
+s&oacute; seriam suaves e morbidas; seriam at&eacute;,
+permitta-me
+diz&ecirc;-lo, voluptuosas. Traduzidas em
+chim, tomavam-nas por obra de algum collegio
+de mandarins letrados do celeste imperio.
+O opusculo que o meu amigo me remette &eacute; pasmoso
+no genero: &eacute; um botar&eacute;u da maravilhosa
+fabrica das memorias e actas academicas tirado
+do seu logar, e a que fizeram perder aquella parte
+de formosura que lhe houvera resultado da
+harmonia do todo. Sinceramente, &eacute; uma cousa
+que lastimo.
+<br />
+
+<br />
+
+Agora o que, tambem sinceramente, eu n&atilde;o
+esperava era achar no opusculo certa cortezia
+nas f&oacute;rmas que o auctor empregou. Sab&iacute;a que
+se estava imprimindo contra mim um cartapacio
+mourisco. Pensei que fosse obra dos reverendos,
+que, t&atilde;o pobres de saber e de intelligencia como
+ricos de odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria
+a colera que os abafa. E ainda bem! Apesar
+do nojo que tenho desses pobres-diabos, n&atilde;o
+quero que elles estourem, porque s&atilde;o meus irm&atilde;os,
+como em <a href="#e9">gira</a> jesuitica se costuma
+dizer a
+cada punhalada que se d&aacute; no proximo. Estou j&aacute;
+t&atilde;o affeito aos improperios da imprensa devota,
+&aacute; caridade dos nossos khatibs e ul-m&aacute;is, que
+n&atilde;o
+esperava no imminente opusculo sen&atilde;o mais uma
+<span class="pagenum">[188]</span>
+prova a favor da minha cren&ccedil;a na atrophia moral
+e intellectual da maioria do nosso clero, cren&ccedil;a
+que elle se encarregou de demonstrar at&eacute; a saciedade.
+Enganei-me: era obra secular; academica,
+por&eacute;m cortez; cortez (entendamo-nos) at&eacute;
+o ponto de n&atilde;o usar o auctor das phrases dos
+prostibulos e das tabernas, mas n&atilde;o at&eacute; o ponto
+de respeitar o meu caracter moral, porque ahi
+sou accusado de <em>falto de sinceridade</em>
+(pag. 10),
+de <em>critico cheio de fel</em>, de
+<em>criminoso</em> (pag. 15),
+de <em>aviltador do valor
+portugu&ecirc;s</em> (pag. 18). Isto,
+por&eacute;m, pode ser violento, mas n&atilde;o &eacute;
+immundo.
+Os mentecaptos indecentes s&atilde;o os que a minha
+dignidade de escriptor e de homem me n&atilde;o consente
+refutar. Assim, ser-me-ha licito satisfazer
+aos desejos do bom redactor da
+<em>Semana</em> e remetter-lhe
+algumas notas &aacute;cerca deste curioso
+papel.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma explica&ccedil;&atilde;o. Quando digo que n&atilde;o
+posso
+refutar mentecaptos indecentes, n&atilde;o quero significar
+que essa guerra que se me faz, atroz
+na inten&ccedil;&atilde;o, ridicula nos effeitos, ha de ficar
+sem puni&ccedil;&atilde;o. N&atilde;o sou homem disso; mas
+tambem
+n&atilde;o sou homem que gaste polvora com
+guerrilhas. Hei de ir buscar a seu tempo as columnas
+de infanteria e os macissos de cavallaria
+<span class="pagenum">[189]</span>
+que est&atilde;o atraz dellas. As miserias que ahi v&atilde;o
+pela imprensa contra mim s&atilde;o um veu que encobre,
+ou antes descobre por demasiado raro,
+negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se
+a Europa catholica se hade infeudar de novo &aacute;s
+corrup&ccedil;&otilde;es da curia romana, com o seu cortejo
+de jesuitas de todos os formatos, de todas as
+idades e de todas as mascaras; com os seus
+titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas
+em miniatura. Tent&ecirc;a-se este solo de Portugal:
+manda-se hostilisar em mim o progresso
+das novas id&eacute;as, a independencia das opini&otilde;es,
+n&atilde;o porque eu seja o mais forte, mas porque
+circumstancias, que n&atilde;o preparei nem provoquei,
+me collocaram na primeira linha do combate.
+O que &eacute; certo &eacute; que alguem se ha de
+enganar &aacute;cerca do desfecho da lucta, ou n&oacute;s,
+ou esse grupo, essa cousa, que por ahi anda
+a ajunctar quanto p&oacute; e podrid&atilde;o ha no cemiterio
+dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida;
+essa cousa hedionda, que, incapaz das ambi&ccedil;&otilde;es
+grandiosas, do despotismo esplendido da
+Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho
+que ella desmente, fulminada pela philosophia
+que ella detesta, depois de apurar as
+suas doutrinas espirituaes nas fontes catholicas
+<span class="pagenum">[190]</span>
+das margens do Neva, vem refocilar-se para a
+peleja, e desafiar a justi&ccedil;a de Deus e dos homens
+atraz dos olhos buli&ccedil;osos da madona de
+Frosinone. Aqui, no ultimo occidente, o recontro
+final ha de ser mais tarde. Que a mocidade
+n&atilde;o durma, por&eacute;m! Prepare-se para os dias de
+prova, e talvez de tribula&ccedil;&atilde;o, com a severidade
+dos costumes, que d&aacute; a energia moral, e
+com a severidade do estudo, que subministra
+as armas para a victoria. Por ora pedem-nos s&oacute;
+jesuitas; o perigo da peti&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+&eacute; grande. A
+igreja da <em>Memoria</em>, cujas grimpas
+vejo d'aqui,
+collocada l&aacute; a meia encosta, vigia a foz do Tejo.
+Os filhos de Loiola n&atilde;o passariam &aacute;quem da
+barra sem que o sangue de D. Jos&eacute; I gemesse
+nos fundamentos do templo, e este gemido retumbaria
+pelo reino de Portugal, porque a imprensa
+tem echos.
+<br />
+
+<br />
+
+Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por
+n&atilde;o deshonrar esta terra: empreguemos unidos
+os nossos esfor&ccedil;os para augmentar os thesouros
+da civilisa&ccedil;&atilde;o no paiz; associemo-nos lealmente
+a quantas id&eacute;as generosas e puras de progresso
+material e intellectual surgirem no meio de n&oacute;s.
+Filhos da imprensa, os nossos deveres s&atilde;o arduos;
+mas &eacute; necessario cumpri-los. Porque estou
+<span class="pagenum"><a name="p191" id="p191">[191]</a></span>
+eu tranquillo no meio da tormenta que ruge?
+Porque tenho a consciencia de os haver
+desempenhado escrevendo a historia. Se transigisse
+com vaidades e mentiras; se vendesse a
+minha <a href="#e10">penna</a> a paix&otilde;es
+pequenas e m&aacute;s; se recuasse
+diante de considera&ccedil;&otilde;es miseraveis, as
+horas da solid&atilde;o e do silencio, que s&atilde;o as mais
+da minha vida, n&atilde;o seriam t&atilde;o repousadas para
+mim. Alumiado por essa luz moral, que nunca
+devemos perder de vista, espero levar ao cabo
+o empenho que tomei, at&eacute; porque a historia
+de Portugal &eacute; uma das mais ricas em
+lic&ccedil;&otilde;es
+para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas,
+e essas lic&ccedil;&otilde;es s&atilde;o hoje altamente
+proficuas.
+N&atilde;o ha nella, sob tal aspecto, uma s&oacute;
+epocha infertil, desde os tempos barbaros em
+que o arcebispo Jo&atilde;o Peculiar, furioso contra o
+seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos
+pa&ccedil;os episcopaes deste, convertia a cathedral
+em estabulo dos seus cavallos, e espalhava por
+terra as sacras f&oacute;rmas, n'um impeto de bruta
+colera, at&eacute; aquelles, n&atilde;o barbaros mas corruptos,
+em que os devotos e pios inquisidores,
+depois de mandarem desconjunctar nos tractos
+do potro os membros delicados das virgens
+hebreas, ou das tidas por taes, iam, curvados
+<span class="pagenum">[192]</span>
+sobre o leito da d&ocirc;r, pousar mollemente os
+olhos lubricos nos debeis corpos das martyres,
+e fartar a sua luxuria de tigres palpando aquellas
+carnes pisadas e sangrentas. Quando a justi&ccedil;a
+de Deus p&otilde;e a penna na dextra do historiador,
+ao passo que lhe p&otilde;e na esquerda os documentos
+indubitaveis de crimes que pareciam
+escondidos para sempre debaixo das lousas, elle
+deve seguir &aacute;vante sem hesitar, embora a hypocrisia
+ruja em redor, porque a miss&atilde;o do historiador
+tem nesse caso o que quer que seja de
+divina.
+<br />
+
+<br />
+
+E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo!
+O opusculo tinha-me profundamente esquecido.
+<br />
+
+<br />
+
+O eruditiss&iacute;mo academico meu adversario declara-me
+inhabilitado para escrever a historia do
+dominio mussulmano na Hespanha, porque n&atilde;o
+sei arabe.
+<br />
+
+<br />
+
+Pois ent&atilde;o dou-a por n&atilde;o escripta. Largo o titulo
+de historiador; mas consolo-me com a boa
+companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras n&atilde;o sabiam
+arabe; Barros n&atilde;o sabia o sanskrito; Raynal
+n&atilde;o sabia as linguas bunda, tupinamba e iroquesa;
+Bossuet n&atilde;o sabia as setenta e duas linguas
+da torre de Babel.
+<br />
+
+<br />
+
+O auctor do opusculo passa a demonstrar como
+<span class="pagenum">[193]</span>
+eu n&atilde;o sei arabe. N&atilde;o era preciso: nas notas do
+meu livro estou mais que confesso. Nunca citei
+um texto escripto nessa lingua, que n&atilde;o dissesse
+de que traduc&ccedil;&atilde;o me tinha valido.
+<br />
+
+<br />
+
+Eis, todavia, as provas <em>da minha</em>
+insciencia:
+<br />
+
+<br />
+
+Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem
+phenicia.
+<br />
+
+<br />
+
+E contin&uacute;o a attribuir-lh'a. O nome radical do
+rio &eacute; <em>Ana</em>: e os eruditos
+concordam geralmente
+em que a palavra &eacute; phenicia.
+<em>Guadi</em>,
+<em>wadi</em>, ou
+como em mouro direito for, &eacute; &aacute;rabe, e significa
+rio. At&eacute; ahi chega o meu arabismo. Mas n&atilde;o
+s&atilde;o
+essas syllabas que o distinguem, porque os sarracenos
+as ajunctavam a muitos <em>nomes
+proprios</em>
+de rios. <em>Guadiana</em> nada mais
+&eacute; que o <em>rio Ana</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Segunda: Digo que <em>Alcacer</em> significa
+<em>pa&ccedil;os
+reaes</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+E porque n&atilde;o o havia de dizer? Os <em>Vestigios
+arabicos</em> de Moura d&atilde;o-lhe a
+significa&ccedil;&atilde;o de <em>palacio
+acastellado</em>; e eu, que n&atilde;o sei arabe, mas
+que sei outras cousas que o auctor do opusculo
+ignora, affirmo-lhe que naquella epocha o
+<em>Al-kassr</em>
+ou <em>Al-kassba</em> (aqui me colhe n'alguma
+tropelia
+arabica) era isso, ou mais exactamente, um
+<em>castello apala&ccedil;ado</em>.
+Quanto ao adjectivo <em>reaes</em>,
+asseguro-lhe
+&aacute; f&eacute; de christ&atilde;o (e tanto da gemma,
+que
+<span class="pagenum">[194]</span>
+n&atilde;o entendo o alcor&atilde;o) que em virtude das
+institui&ccedil;&otilde;es
+politicas d'aquelles tempos, assim entre
+sarracenos como entre nazarenos, o
+<em>alcacer</em> era
+necessariamente <em>real</em>, isto
+&eacute;, dependente do poder
+publico.
+<br />
+
+<br />
+
+Terceira: Chamo a <em>Ourique</em> nome
+proprio de
+logar.
+<br />
+
+<br />
+
+Sobre isso falaremos d'espa&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Quarta: Interpreto <em>Iman</em> dignidade
+religiosa.
+<br />
+
+<br />
+
+Esta accusa&ccedil;&atilde;o deixou-me quasi academico.
+Para um arabista parece-me gracejo forte de mais.
+Pois <em>Iman</em> n&atilde;o significa
+dignidade religiosa? O
+auctor do opusculo devia ent&atilde;o dizer-nos se o
+<em>iman</em> era algum capit&atilde;o de
+mar e guerra, mercador
+de retalho, dentista, ou que demonio era o
+<em>iman</em>. Quem a mim me metteu nestes
+trabalhos
+sei eu. Foi o celebre traductor e refutador do alcor&atilde;o,
+Marraccio, que teve a insolencia de dar
+sempre &aacute; palavra <em>iman</em> a
+significa&ccedil;&atilde;o de <em>chefe do
+culto</em>, de <em>principal sacerdote
+(sacrorum antistes)</em><sup><a href="#f47">[47]</a></sup>:
+foi o orientalista Von-Hammer<sup><a href="#f48">[48]</a></sup>,
+que sabe mais
+das cousas mussulmanas, que toda a eschola arabica
+de Lisboa desde a sua funda&ccedil;&atilde;o at&eacute;
+hoje: foram
+<span class="pagenum">[195]</span>
+todas as exposi&ccedil;&otilde;es da
+organisa&ccedil;&atilde;o religiosa
+entre os mussulmanos, n&atilde;o s&oacute; da Peninsula, mas
+de todo o mundo.
+<br />
+
+<br />
+
+Quinta: Digo ser <em>Ismar</em>
+corrup&ccedil;&atilde;o de
+<em>Omar</em>
+ou de <em>Ismael</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; possivel que eu me enganasse: todavia,
+porque n&atilde;o me fez o auctor do opusculo um favor
+especial; porque n&atilde;o me citou na historia de
+Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou
+na de Al-Keiruani, onde se mencionam milhares
+de individuos mussulmanos, um s&oacute; que se chamasse
+<em>Ismar</em>? Assim fico em duvida, e
+desconfiado
+de que tenhamos outra anecdota como a
+d'<em>Iman</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Felizmente as provas n&atilde;o continuam. Se o auctor
+proseguisse, temo que demonstrasse contra
+mim que eu sab&iacute;a arabe. Era um aperto em que
+me punha; porque na realidade eu n&atilde;o sei decifrar
+um unico daquelles enga&ccedil;os de passas, que
+elle lithographou ao cabo do seu opusculo.
+<br />
+
+<br />
+
+Passado o preambulo, o auctor annuncia que
+vai provar-me pelos historiadores arabes que a
+batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o
+<em>golpe fatal dado no dominio
+mussulmano</em>. Sancto
+breve da marca! Sempre s&atilde;o mouros! Se tal
+affirmam, digo ao illustre arabista que n&atilde;o os
+<span class="pagenum">[196]</span>
+acredite. Os monumentos christ&atilde;os, ainda os mais
+exaggerados, n&atilde;o contam tanto. O dominio mussulmano
+ficou como estava depois da jornada
+d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para
+os seus estados, ao norte do Mondego, porque
+sab&iacute;a do officio de soldado. Sessenta annos de
+lucta depois da bulha d'Ourique n&atilde;o bastaram
+para expulsar de todo do actual territorio portugu&ecirc;s
+os mussulmanos. Apesar da celebre jornada
+de 1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando
+palmo a palmo a Estremadura e o Alemtejo.
+Que <em>golpe fatal</em> foi, portanto, esse
+de Ourique?
+Ah mouros, mouros! Isso &eacute; debicar com o
+proximo.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de citar o que eu refiro como introduc&ccedil;&atilde;o
+&aacute; narrativa da batalha, o opusculo vem deitar-me
+tudo por terra com um sopro. Errei a
+chronologia, os nomes dos imperadores almoravides,
+tudo. Oh peccador de mim!
+<br />
+
+<br />
+
+L&aacute; vai o texto do nosso academico arabico:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="tinyl">&laquo;Nada tem o facto de Ourique,
+succedido no reinado
+de Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este
+Aly-Ibn-Iussuf foi o primeiro imperador da dynastia
+dos morabethins e falleceu no anno 496 da Hegira, 1103
+da era Christ&atilde;...&raquo;
+</div>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[197]</span>
+<div class="tinyl">&laquo;N&atilde;o foi,
+<em>portanto</em>, no reinado de
+Aly-Ibn-Iussuf, nem
+durante o de Aly-Ben-Taxefin, que come&ccedil;ou a
+pretens&atilde;o
+do celebre El-Mohdy, mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly,
+que succedeu a Aly-Ben-Taxefin, isto &eacute;, principiou
+no reinado do III imperador e s&oacute; tomou seu maior
+incremento no meio do reinado do IV imperador da dynastia
+dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin:
+logo no reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi
+a batalha de Ourique, n&atilde;o houve
+revolu&ccedil;&atilde;o, nem politica,
+nem religiosa, que distrahisse as tropas; o que tudo
+confirmamos, convidando nossos leitores a que leiam os
+capitulos desde 32 at&eacute; 36 inclusivamente da Historia
+Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por
+Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.&raquo;
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Transcrevi todas estas blasphemias historicas,
+para que se veja com quanta raz&atilde;o dou gra&ccedil;as a
+Deus de que a nossa lingua seja pouco conhecida,
+e o que se deve esperar de uma academia onde
+ha destes eruditos. P&uacute;s &aacute; vista de todos o corpo
+de delicto. Vamos ao auto.
+<br />
+
+<br />
+
+A serie dos imperadores almoravides que resulta
+das precedentes passagens &eacute; a seguinte.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 35%;">1.&ordm;
+Aly-Ibn-Iussuf</td>
+
+ <td style="width: 15%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 10%; text-align: right;">1103</td>
+
+ <td style="width: 40%;">(morto)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 35%;">2.&ordm;
+Aly-Ben-Taxefin</td>
+
+ <td style="width: 15%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 10%; text-align: right;">1139</td>
+
+ <td style="width: 40%;">(batalha d'Ourique)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 35%;">3.&ordm;
+Taxefin-Ben-Aly</td>
+
+ <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 15%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 40%;">(apparecimento do
+Mahadi)</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 35%;">4.&ordm;
+Ibrahim-Ben-Taxefin</td>
+
+ <td style="width: 15%;"></td>
+
+ <td style="width: 10%;"></td>
+
+ <td style="width: 40%;"></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Em que se funda o auctor? Que &eacute; o que cita
+em seu abono?
+<span class="pagenum">[198]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia
+de Assaleh-Ben-Abdel-Halim, ou Salihn Abd-Alihim,
+conforme for em mouro a gra&ccedil;a de sua merc&ecirc;,
+porque n&atilde;o ha dous arabistas que escrevam
+um nome de gente do mesmo feitio.
+<br />
+
+<br />
+
+Ora os capitulos citados<sup><a href="#f49">[49]</a></sup>
+t&ecirc;em apenas o pequeno
+inconveniente de se referirem &aacute;s primeiras
+conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento
+do seu dominio na Africa <em>na segunda
+metade do seculo XI</em>. &Eacute; no capitulo 37 que
+se
+narra a primeira passagem &aacute; Hespanha de
+Iussuf-Ibn-Tachfin e a victoria de Zalaka em
+1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a
+terceira em que Iussuf incorporou nos seus
+dominios os estados mussulmanos da Peninsula,
+que tinham invocado o seu auxilio. Iussuf
+foi o primeiro imperador almoravide d'Africa e
+de Hespanha.
+<br />
+
+<br />
+
+A serie dos imperadores, que resulta dos capitulos
+<span class="pagenum">[199]</span>
+39 e seguintes da Historia de Assaleh-Abdel-halim
+&eacute;:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 55%;">1.&ordm;
+Iussuf-Ibn-Tachfin (fallecido)
+em</td>
+
+ <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 35%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 10%; text-align: right;">1106</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 75%;">2.&ordm;
+Aly-Ibn-Iussuf
+(appel. Abu-Hassan) (fallecido) em </td>
+
+ <td style="width: 15%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 10%; text-align: right;">1142</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 55%;">3.&ordm; Tachfin-Ibn-Aly
+(morto
+em)</td>
+
+ <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 35%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 10%; text-align: right;">1145</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Se o meu amigo comparar isto com o que se
+diz no opusculo, n&atilde;o me ha-de acreditar. Tem
+raz&atilde;o. &Eacute; monstruoso, &eacute; incrivel,
+&eacute; absurdo; mas
+est&aacute; la. Se quizer desenganar-se, procure a
+vers&atilde;o
+de Assaleh pelo padre Moura esplendidamente
+impressa pela Academia em papel pardo e letra
+safada. Veja o que diz o historiador arabe, o
+que eu digo, e o que diz o opusculo. Depois julgue-nos;
+e, ainda depois, fa&ccedil;a idea do que ir&aacute;
+pela <em>Classe de Sciencias Moraes e
+Bellas-letras</em>
+(ou, como quem o dissesse em portugu&ecirc;s, <em>e
+Boas-letras</em>)
+da Academia<sup><a href="#f50">[50]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; assim que esta gente salva a gloria nacional
+e vindica a bulha d'Ourique contra a minha m&aacute;
+f&eacute;, contra o fel da minha critica.
+<br />
+
+<br />
+
+A m&aacute; f&eacute; &eacute; minha. Repare bem nisso.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas haver&aacute; outros textos de Abdel-halim, que
+<span class="pagenum">[200]</span>
+tenham alguns capitulos 32 a 36, que nos contem
+essas historias do opusculo?
+<br />
+
+<br />
+
+Na parte da <em>Historia do Dominio dos
+Arabes</em>
+por D. J. Conde, relativa &aacute; dynastia almoravide,
+o erudito hespanhol seguiu Assaleh. Esta parte
+do seu trabalho ficou imperfeita e por isso deve
+aproveitar-se com cautela. Todavia Conde era
+incapaz de commetter um erro t&atilde;o grosseiro
+como transtornar completamente a chronologia
+daquella epocha. Isto estava reservado para um
+membro da nossa academia.
+<br />
+
+<br />
+
+Eis o resumo da chronologia de Conde quanto
+&aacute; dynastia almoravide<sup><a href="#f51">[51]</a></sup>:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td colspan="2" rowspan="1">1.&ordm;
+Abu-Bekr-Ibn-Omar
+(unicamente na Africa)</td>
+
+ <td style="width: 10%;"></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 60%;">2.&ordm;
+Iussuf-Ibn-Tachfin,
+fallecido na
+egira<br />
+
+ <div class="quote2">(1106-1107)
+ </div>
+
+ </td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="vertical-align: top; text-align: right;">500</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>3.&ordm; Aly-Ibn-Iussuf, fallecido na
+egira<br />
+
+ <div class="quote2">(1139-1140)</div>
+
+ </td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="vertical-align: top; text-align: right;">534</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>4.&ordm; Tachfin-Ibn-Aly fallecido na
+egira<br />
+
+ <div class="quote2">(1146-1147)</div>
+
+ </td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="vertical-align: top; text-align: right;">541</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+A ordem dos imperadores &eacute; a mesma. Conde
+atraza dous annos a morte de Aly-Ibn-Iussuf e
+adianta um a de seu filho. Ainda admittida a chronologia
+<span class="pagenum">[201]</span>
+Conde, a jornada de Ourique cai dentro
+do reinado de Aly-Ibn-Iussuf; porque a Egira
+534 correu de <em>agosto</em> de 1139 a
+agosto de 1140.
+<br />
+
+<br />
+
+Os historiadores sarracenos Ibn-Khallekan
+e Ibn-Al-Khatib consideram Iussuf-Ibn-Tachfin
+como o fundador da dynastia almoravide. Eis a
+chronologia seguida por elles:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 50%;">1.&ordm; Iussuf,
+fallecido na
+egira</td>
+
+ <td style="width: 25%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right; width: 20%;">500
+(1106-7)</td>
+
+ <td style="width: 5%;"></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>2.&ordm; Aly, fallecido na
+egira</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">537 (1142-3)</td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>3.&ordm; Tachfin, fallecido na
+egira</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">539
+(1144-5)</td>
+
+ <td><sup><a href="#f52">[52]</a></sup></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; se v&ecirc; que, segundo a chronologia de
+Ibn-Khallekan
+e de Ibn-Al-Khatib, a ordem da dynastia
+&eacute; a mesma, e que o successo d'Ourique tambem
+cai no reinado de Aly-Ibn-Iussuf. O celebre
+Abu-l-Feda concorda com elles. &laquo;Na Egira de
+500&#8213;diz Abu-l-Feda&#8213;morreu Iussuf-Ibn-Tachfin,
+<em>amir al-moslemin</em>. Succedeu-lhe Aly
+seu filho
+(Aly-Ibn-Iussuf) que tomou o titulo de <em>amir
+al-moslemin</em>, como seu pae<sup><a href="#f53">[53]</a></sup>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Resta apontar o que resulta da narrativa do
+principal historiador arabe do dominio mussulmano
+<span class="pagenum"><a name="p202" id="p202">[202]</a></span>
+Peninsula, Al-Makkari, &aacute;cerca da dynastia
+almoravide:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 50%;">1.&ordm;
+Iussuf-Ibn-Tachfin</td>
+
+ <td style="width: 25%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right; width: 20%;">1052 a
+1106</td>
+
+ <td style="width: 5%;"></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>2.&ordm;
+Aly-Ibn-Iussuf</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">1106 a 1143</td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>3.&ordm;
+Tachfin-Ibn-Aly</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">1143 a 1145</td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>4.&ordm;
+Abu-Ishak-Ibrahim-Ibn-Tachfin</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">1145 a 1147</td>
+
+ <td><sup><a href="#f54">[54]</a></sup></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Que tal parece ao meu amigo a erudi&ccedil;&atilde;o arabica
+da parte sarracena da nossa Academia?
+<br />
+
+<br />
+
+Nos arabes v&ecirc;-se que se encontra exactamente
+o contrario do que se l&ecirc; no opusculo. Certamente
+o auctor descubriu essa deliciosa historia dos
+almoravides, que nos conta, nos escriptores
+christ&atilde;os coevos ou quasi coevos. Sempre era
+gente que se confessava. Mouro e judeu mentem
+por officio. Vejamos:
+<br />
+
+<br />
+
+A chronica dos godos nas suas referencias aos
+imperadores almoravides:
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 30%;">1.&ordm;
+Iussuf</td>
+
+ <td style="width: 10%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">(batalha de Zalaka)</td>
+
+ <td>1085 ali&agrave;s 1086</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>2.&ordm; Aly-Ibn-Iussuf</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">(cerco de
+Coimbra)</td>
+
+ <td>1117<sup><a href="#f55">[55]</a></sup></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<span class="pagenum">[203]</span>
+<br />
+
+A conimbricense:
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 15%;">2.&ordm; Aly</td>
+
+ <td style="width: 45%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right; width: 40%;">(cerco de
+Coimbra) 1117<sup><a href="#f56">[56]</a></sup></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Rodrigo de Toledo, o escriptor do seculo XIII
+mais instruido na litteratura arabe e christ&atilde; da
+Peninsula, estabelece para a dynastia almoravide
+d'Africa e de Hespanha, que diz ter durado 55
+annos desde a Egira 484 at&eacute; a Egira 539, a seguinte
+chronologia:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="width: 65%;">1.&ordm;
+Iussuf-Ibn-Tachfin
+(principio da dynastia)</td>
+
+ <td style="width: 20%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">1091-2</td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>2.&ordm; Aly-Ibn-Iussuf</td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td>3.&ordm; Tachfin-Ibn-Aly (fim da
+dynastia)</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;">1144-5</td>
+
+ <td><sup><a href="#f57">[57]</a></sup></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao <em>digno</em> academico restam talvez
+para estribar
+as suas famosas historias
+<em>almoraviditicas</em> (na
+falta de arabes e christ&atilde;os) alguns historiadores
+tartaros, mongoles, ou chinas.
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; provavel que seja assim.
+<br />
+
+<br />
+
+Perd&ocirc;e, meu amigo, estas extensas
+cita&ccedil;&otilde;es.
+Era necessario dar uma prova, que n&atilde;o admittisse
+subterfugios, dos deploraveis, por n&atilde;o dizer
+vergonhosos, extremos a que o desejo de me
+combater tem levado certas pessoas.
+<span class="pagenum">[204]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O auctor do opusculo negou, com a mesma
+sem cerimonia com que transtornou a serie dos
+imperadores, que o Mahadi ou Al-mohdi (Mohammed-Ibn-Tiumarta)
+come&ccedil;asse a revolu&ccedil;&atilde;o almohade
+no reinado de Aly, e que nos ultimos annos
+deste reinado, isto &eacute;, na epocha da batalha ou
+recontro de Ourique, essa revolu&ccedil;&atilde;o houvesse
+tomado um incremento irresistivel. Todavia s&atilde;o
+os mesmos escriptores arabes que contam o successo
+como eu o narrei: conta-o o proprio Abdel-halim,
+em que elle finge estribar-se com uma
+cita&ccedil;&atilde;o <em>falsa</em>;
+<em>falsa</em>, digo, porque tanta
+confus&atilde;o
+involuntaria &eacute; moralmente impossivel. A narrativa
+de Abdel-halim &eacute;, que em 1120 appareceu
+o Mahadi; que de 1122 a 1125 j&aacute; se achava com
+for&ccedil;as para vir assentar campo perto de Marrocos;
+que, tendo fallecido em 1130, tomou o commando
+dos almohades Abdel-mumen, o qual foi acclamado
+imperador em 1133, continuando guerra
+incessante contra os almoravides at&eacute; os destruir<sup><a href="#f58">[58]</a></sup>.
+&Eacute; elle que, depois de narrar as victorias de Tachfin-Ibn-Aly
+contra os christ&atilde;os desde 1126
+at&eacute; 1137, refere que logo passara &aacute; Africa<sup><a href="#f59">[59]</a></sup>.
+<span class="pagenum">[205]</span>
+Conde diz-nos que fora chamado por seu pae
+amea&ccedil;ado da ultima ruina<sup><a href="#f60">[60]</a></sup>.
+Habil e feliz general
+contra os christ&atilde;os, esta causa da sua partida
+parece confirmada, n&atilde;o s&oacute; pela raz&atilde;o,
+mas
+tambem pelo texto de Al-Khatib<sup><a href="#f61">[61]</a></sup>.
+Um monumento
+christ&atilde;o, escripto por individuo do mesmo
+seculo, a <em>Chronica Adefonsi
+Imperatoris</em>,
+confirma e particularisa o facto. Narrando os successos
+de 1138, diz que Tachfin levara comsigo,
+retirando-se para a Africa, at&eacute; os mosarabes e os
+prisioneiros christ&atilde;os para os opp&ocirc;r aos
+almohades<sup><a href="#f62">[62]</a></sup>.
+Deixaria acaso em Hespanha a flor das tropas
+almoravides, quando a defesa de Marrocos o
+obrigava a converter em soldados os proprios nazarenos
+captivos? Destroem-se estes factos com
+cita&ccedil;&otilde;es falsas? Como se explica o abandono
+d'Aurelia, suppondo a existencia de uma grande
+batalha dada (exactamente na conjunctura do cerco)
+no occidente da Peninsula entre almoravides
+e portugueses, quando de Africa se n&atilde;o dispensava
+um soldado para a salva&ccedil;&atilde;o d'aquella chave
+da fronteira musulmana? Que se p&oacute;de dizer que
+<span class="pagenum">[206]</span>
+tenha um vislumbre de senso commum contra o
+que a este proposito reflecti?
+<br />
+
+<br />
+
+Quem d&aacute; documentos de m&aacute; f&eacute;? Sou eu ou
+os
+meus adversarios?
+<br />
+
+<br />
+
+Ia-me irritando! Em boa paz, o nosso academico
+arabe n&atilde;o vale a pena disso.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois d'estas fa&ccedil;anhas, o auctor do opusculo
+prosegue com accusa&ccedil;&otilde;es curiosissimas. Fora
+extenso de mais cit&aacute;-las todas. Uma d'ellas &eacute; que
+chamo &aacute; serie dos imperadores almoravides
+<em>dynastia
+lamtunense</em> para explicar o apparecimento
+das mulheres no recontro de Ourique, e para
+taxar de covardes os mesmos almoravides. O auctor
+faz a merc&ecirc; de dizer-me que o vocabulo
+<em>lamtunense,
+ou antes almolatamenense</em>, n&atilde;o serve
+para indicar covardia. Dev&eacute;ras? E eu que n&atilde;o
+ca&iacute;a em nada! Isto &eacute; incrivel, amigo redactor da
+<em>Semana</em>. Digo mais: era impossivel
+haver quem
+fizesse d'estas, se n&atilde;o houvesse academias. Chamei
+aos principes almoravides <em>dynastia
+lamtunense</em>,
+ou <em>lamtunita</em>, porque todos os
+historiadores
+arabes, Ibn-Khaldun, Abdel-halim, Al-Makkari,
+Al-Khatib, Al-Keiruani, lh'o chamam, e chamam-lh'o
+para indicar valentia ou covardia tanto
+como eu. Chamam-lh'o porque, entre as ra&ccedil;as
+bereberes que serviram de nucleo ao imperio almoravide,
+<span class="pagenum">[207]</span>
+a de Lamtuna ou Lamta<sup><a href="#f63">[63]</a></sup>
+era a principal,
+e porque Iussuf, o primeiro imperador almoravide,
+era da tribu de Masufah pertencente a
+essa ra&ccedil;a. Aquella phrase do opusculo
+&laquo;<em>ou antes
+almolatamenense</em>&raquo;, &eacute; deliciosa.
+Como o nosso
+arabista precisava de mostrar a sua pobre
+erudi&ccedil;&atilde;o,
+fez pouco mais ou menos este raciocinio:
+&laquo;o auctor da Historia de Portugal denomina os
+principes almoravides <em>lamtunenses</em>;
+eu digo-lhe,
+<em>ex auctoritate qua fungor</em> que era
+melhor chamar-lhes
+<em>almolatamenenses</em>&raquo;: ora
+como esta denomina&ccedil;&atilde;o
+provinha de terem os almoravides cuberto
+o rosto com veus de mulheres n'uma batalha,
+e possa crer-se um epigramma contra o seu
+esfor&ccedil;o, embora elle n&atilde;o usasse de tal vocabulo,
+devia usar, para eu poder reprehend&ecirc;-lo por isso;
+porque &eacute; uma violencia negar a um pobre escholar
+arabico a occasi&atilde;o de mostrar
+erudi&ccedil;&otilde;es
+<em>reconditas</em>.
+Sabe o meu amigo o que isto faz lembrar?
+Faz lembrar o pr&eacute;gador que punha o barrete na
+borda do pulpito, encarregava-o do papel do
+diabo, e depois convencia-o &aacute; sua vontade. Vamos
+<span class="pagenum">[208]</span>
+a outro exemplo. No opusculo mourisco
+affirma-se contra mim:
+<br />
+
+<br />
+
+Que os principes almoravides usaram do titulo
+de <em>amir-el-muminin</em><sup><a href="#f64">[64]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+A prova disto &eacute; curiosa, como tudo o mais. Os
+almoravides usaram-no, segundo o opusculo sarraceno,
+porque Abdel-halim diz que foi usado
+duzentos annos antes pelos Benu-Umeyyah (ommiadas)
+soberanos arabes de Cordova. N&atilde;o o diz
+Abdel-halim; di-lo toda a gente; mas que tem o
+que fizeram os ommiadas com o que fizeram os
+almoravides? Isto, meu amigo, &eacute; incrivel! Acima
+transcrevi uma passagem de Abu-l-Feda, pela
+qual se v&ecirc; que o titulo dos soberanos lamtunenses
+era <em>amir-al-mosl&eacute;min</em>
+(principe dos mussulmanos).
+Ou&ccedil;amos agora o sr. Gayangos: &laquo;N&atilde;o
+consta da historia&#8213;diz elle&#8213;que Iussuf-Ibn-Tachfin
+ou algum dos seus successores tomasse
+nunca o titulo de <em>Amiru-l-muminin</em>,
+que era reservado
+para o khalifa, ou vigario do propheta no
+<span class="pagenum">[209]</span>
+oriente. Contentaram-se pelo contrario, ao que
+parece, com o titulo mais modesto de
+<em>Amiru-l-muslemin</em>,
+ou <em>principe dos moslems</em> (de Africa e
+de
+Hespanha). Os proprios sult&otilde;es de Cordova, postoque
+descendentes do tronco dos Benu-Umeyyah,
+e t&atilde;o intimamente ligados com a familia do propheta,
+n&atilde;o se atreveram a tomar este titulo honorifico
+emquanto a familia de Abb&aacute;s n&atilde;o chegou a
+ser quasi extincta na Asia pelos turcos; e ainda
+assim, o uso desse titulo foi reputado sacrilego
+por alguns theologos de Cordova e d'outras cidades
+da Peninsula<sup><a href="#f65">[65]</a></sup>&raquo;.
+Effectivamente Abu-l-Feda
+nos certifica que Abderrahman III &laquo;foi o primeiro
+entre os principes ommiadicos do Andalus
+que se arrogou o titulo de <em>amir-al-muminin proprio
+do Khalifa</em><sup><a href="#f66">[66]</a></sup>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Isto n&atilde;o s&atilde;o cita&ccedil;&otilde;es
+falsas. Por ellas p&oacute;de ver
+o meu amigo com quanta exac&ccedil;&atilde;o eu escrevi
+&aacute;cerca dos almoravides, embora n&atilde;o fosse esse o
+objecto essencial do meu trabalho, e com quanta
+leveza foi escripto o opusculo sarraceno destinado
+a refutar-me. N&atilde;o fica, por&eacute;m, aqui o negocio.
+<span class="pagenum">[210]</span>
+O academico auctor do opusculo accusa-me
+de ignorancia da lingua arabe e de historia por
+dizer que os principes da dynastia almohade adoptaram
+o titulo de khalifa ou de
+<em>amir-al-muminin</em>,
+porque, diz elle, o de khalifa s&oacute; se deu aos imperadores
+do oriente, e estas palavras khalifa
+e amir-al-muminin significam diversas cousas.
+Agrade&ccedil;o a ultima novidade; mas eu n&atilde;o escrevia
+grammatica; escrevia historia, e, politicamente,
+as duas express&otilde;es eram synonimas. Que
+se pensaria de quem accusasse d'ignorancia de
+grammatica e de historia aquelle que, falando do
+imperador da Russia, dissesse &laquo;<em>o czar ou
+autocrata</em>?&raquo;
+Por outra parte para o academico auctor
+do opusculo affirmar que o titulo de khalifa se deu
+ou n&atilde;o se deu aos principes mussulmanos do occidente,
+ainda tem que estudar muito a historia
+moslemica d'Africa e de Hespanha, cujos rudimentos
+parece ignorar. Se ler o capitulo 5 do livro
+6 d'Al-Makkari, ahi achar&aacute; que o imperador
+ommiada de Cordova Abderrahmam III &laquo;foi o
+primeiro soberano da sua familia que assumiu <em>os
+titulos de khalifa e de amiru-l-muminin</em>&raquo;.
+Se tambem
+quizer saber se os principes almohades tomaram
+ou n&atilde;o o titulo de khalifas, leia Al-Keiruani,
+e l&aacute; achar&aacute; este periodo: &laquo;El-Mohdi
+<em>elevou</em>
+<span class="pagenum">[211]</span>
+<em>o khalifado</em> para os que lhe
+succederam<sup><a href="#f67">[67]</a></sup>&raquo;,
+e mais
+adiante, onde se conta certa anecdota do primeiro
+imperador almohade, Abd-el-mumen, ler&aacute; que
+um poeta da c&ocirc;rte dizia a outro: &laquo;At&eacute;
+quando
+importunar&aacute;s tu <em>o
+khalifa</em>?&raquo;; porque &eacute; de advertir
+que naquelle tempo havia poetas impertinentes,
+como hoje ha criticos academicamente
+originaes.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, em consciencia, meu amigo, eu &aacute;s vezes
+merecia ser feito socio effectivo da classe de
+sciencias moraes e bellas-letras! Pois ha simpleza
+maior do que citar ao auctor do opusculo sarraceno
+tanta mourisma, quando o proprio Abdel-halim,
+que, segundo parece, constitue toda a
+matalotagem arabica do <em>digno</em>
+academico, se lhe
+rebella e tumultua dentro do bornal litterario
+em que o traz mettido? E sen&atilde;o, ou&ccedil;amo-lo. As
+palavras mandadas ensinar ao le&atilde;o e ao papagaio,
+de que Abdel-mumen se serviu para os almohades
+o acclamarem imperador, traduzidas
+por Moura na sua vers&atilde;o de Abdel-halim, s&atilde;o
+&laquo;<em>as victorias e o poder competem ao califa
+Abdelmumen</em><sup><a href="#f68">[68]</a></sup>&raquo;.
+<span class="pagenum">[212]</span>
+&Eacute; verdade que o auctor do folheto,
+que repete a historia do le&atilde;o e do papagaio,
+n&atilde;o sei para me provar o que, traduz, em
+logar de <em>califa</em>,
+<em>successor</em>. Mas aqui para
+n&oacute;s,
+meu amigo, postoque eu n&atilde;o saiba arabe, apostava
+que isso foi uma esperteza, e que naquella
+express&atilde;o <em>algalifatu</em> (ou,
+como Moura l&ecirc;, <em>el-califa</em>)
+anda o que quer que seja de <em>khalifa</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Estou com pressa de chegar ao fim, porque
+temo fazer uma carta tamanha como o opusculo,
+o que seria para o publico, em vez de uma desgra&ccedil;a,
+duas. Mas faltou-me o animo quando fui a
+saltar por cima do precioso paragrapho 8, que o
+auctor destinou para me provar que Ourique n&atilde;o &eacute;
+nome proprio de logar, como eu disse, mas sim appellativo,
+que significa <em>adversidade</em> ou
+<em>infortunio</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Sou, por&eacute;m, nesta parte absolvido do peccado,
+porque quem me deitou a perder foi o padre
+Moura, conforme resa o folheto. Ao menos,
+valha-nos isso! A consequencia, todavia, immediata
+deste importante descubrimento, que o digno
+academico fez, &eacute; exactamente a contraria da
+que elle desejava. Se assim &eacute;, torna-se impossivel
+<span class="pagenum">[213]</span>
+achar j&aacute;mais uma passagem de auctor arabe
+que se refira com certeza ao conflicto de Ourique.
+Embora at&eacute; aqui n&atilde;o tenha apparecido essa
+passagem, podia ainda apparecer; mas desde
+que a palavra ourique (tirei-lhe o <em>O</em>
+maiusculo,
+n&atilde;o pensem que teimo em faz&ecirc;-la nome proprio)
+significa s&oacute; <em>adversidade</em>
+ou <em>infortunio</em>, o caso
+muda de figura. O combate que Affonso I teve,
+no fossado de julho de 1139, com os mouros
+do Alemt&eacute;jo &eacute; um facto provado pelos testimunhos
+que eu colligi; o que n&atilde;o est&aacute; provado,
+nem se ha de provar nunca, &eacute; que elle fosse um
+successo importante. N'algum escriptor arabe,
+ainda inedito, que particularisasse muito os
+acontecimentos de Hespanha naquella epocha podia
+vir mencionado o recontro do <em>campo de
+Ourique</em>;
+mas como o auctor do opusculo n&atilde;o
+consente que esse pobre <em>o</em> tome as
+dimens&otilde;es de
+letra maiuscula, qualquer passagem que appare&ccedil;a
+ha de ser traduzida pelos arabistas da seguinte
+maneira: &laquo;Houve em 1139 um combate entre
+os moslems e os infieis <em>no campo da adversidade
+ou do infortunio</em>&raquo;. Ora como nesse anno, do
+mesmo modo que nos antecedentes e consequentes,
+houve muitos recontros entre os christ&atilde;os
+e os mussulmanos, segue-se que n&atilde;o saberemos
+<span class="pagenum">[214]</span>
+a que conflicto allude o auctor arabe;
+porque todos os campos de combate s&atilde;o de adversidade
+ou infortunio para um dos contendores,
+e talvez para ambos. Realmente este modo
+de defender a importancia da batalha de Ourique
+&eacute; galantissimo.
+<br />
+
+<br />
+
+O que, por&eacute;m, &eacute; verdadeiramente academico
+e digno do pincel de Moli&egrave;re &eacute; o que pondera o
+auctor do folheto sobre o erro de Moura &aacute;cerca
+da etymologia de Ourique. &laquo;&Eacute; bem clara&#8213;diz
+elle&#8213;<em>ainda para os que n&atilde;o sabem
+arabe</em>, a
+nenhuma analogia que se nota <em>com o
+ouvido</em>
+entre <em>orique</em> e
+<em>arique</em>&raquo;. Agora, quer o meu
+amigo saber com que palavra arabe
+<em>orique</em> se parece
+muito? &Eacute; com <em>araka</em>. Isto
+n&atilde;o precisa de
+commentario. Nas contendas dos nossos rapazes
+&aacute;cerca da Stoltz e da Novello, quem devia dar a
+senten&ccedil;a definitiva era o illustre arabista. Proponham
+a quest&atilde;o &aacute; Academia.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a cousa mais sublime, talvez, de todo o
+folheto vem neste mesmo paragrapho. &Eacute; uma
+novidade que escapou a todos os etymologistas
+e ethnographos. Na transla&ccedil;&atilde;o das palavras de
+umas linguas para as outras, ellas se transfiguram
+com a irregularidade que necessariamente
+resulta da ignorancia das multid&otilde;es, que s&atilde;o
+<span class="pagenum">[215]</span>
+quem ordinariamente faz essas adop&ccedil;&otilde;es de termos
+peregrinos. As proprias transforma&ccedil;&otilde;es das
+linguas s&atilde;o assim, e assim foi que a latina se
+transformou nos modernos idiomas da Europa
+occidental. Nestas mudan&ccedil;as e adop&ccedil;&otilde;es
+n&atilde;o ha
+letra que n&atilde;o possa alterar-se; e basta ter uns
+rudimentos de linguistica para n&atilde;o o ignorar.
+Agora ou&ccedil;a o meu amigo um mysterio da lingua
+arabe: &laquo;Moura&#8213;diz o opusculo&#8213;foi buscar a
+raiz de tal vocabulo no verbo <em>araka</em>,
+cuja primeira
+letra radical, que &eacute; um <em>alif,
+n&atilde;o soffre a convers&atilde;o</em>
+para a letra <em>o</em> nas linguas
+europeas&raquo;. Isto
+quer dizer que aos rudes portugueses do seculo
+XII, que escorchavam sem piedade quantas letras,
+quantas palavras celticas, phenicias, gregas,
+romanas, germanicas lhes ca&iacute;am nas unhas,
+era prohibido tocar no <em>alif</em>, especie
+de <em>noli-me-tangere</em>
+arabico. Certamente, meu amigo, no alcor&atilde;o
+ha uma sura intitulada &laquo;<em>Dos escorchamentos
+etymologicos</em>&raquo; onde o propheta diz:
+&laquo;Todo o
+infiel nazareno que bulir na sancta letra
+<em>alif</em> para
+della engenhar um dos seus maldictos
+<em>&oacute;s</em>, vai preso&raquo;.
+Foram peccados meus que me impediram
+d'aprender arabe: teria com isso evitado deixar-me
+embair por aquelle herege do padre Moura,
+que pelo que vejo, era um pessimo sarraceno.
+<span class="pagenum">[216]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Depois vem uma longa chicana (perdoe, meu
+amigo, o gallicismo, mas como isto ha de ser lido
+pelo digno academico arabista membro da classe
+de sciencias moraes e bellas-letras, elle entender&aacute;
+assim melhor a phrase); vem uma longa chicana
+sobre as palavras <em>fossado</em>,
+<em>correria</em>,
+<em>entrada</em>, e
+n&atilde;o sei que mais, em que o auctor desenvolve
+uma erudi&ccedil;&atilde;o pasmosa em diccionario de Moraes.
+Chamei fossado &aacute; expedi&ccedil;&atilde;o de Affonso
+I em
+1139, porque todas as etymologias do mundo n&atilde;o
+podem fazer com que uma cousa deixe de ser o
+que &eacute;. O fossado era uma expedi&ccedil;&atilde;o que
+se fazia em
+regra todos os annos no come&ccedil;o do ver&atilde;o
+&aacute;s terras
+inimigas: questionar sobre isto n&atilde;o ser&iacute;a mais
+do que mostrar-se profundamente ignorante das
+nossas cousas antigas. <em>Correria</em>
+&eacute; um nome que
+cabe ao fossado t&atilde;o bem como
+<em>expedi&ccedil;&atilde;o</em>;
+porque
+correria &eacute; uma especie do genero
+expedi&ccedil;&atilde;o, mais
+nada. Quem faz uma expedi&ccedil;&atilde;o, fossado, ou
+correria
+no territorio inimigo, entra nelle (emquanto
+o alcor&atilde;o ou a Academia n&atilde;o mandarem o contrario)
+e por consequencia faz uma <em>entrada</em>.
+N&atilde;o &eacute;
+uma miseria, al&eacute;m disso, affirmar-se n'um papel
+que tem a pretens&atilde;o de ser cousa s&eacute;ria, que
+eu me contradigo, porque, chamando correria ao
+fossado de 1139, exprimo ao mesmo tempo a
+<span class="pagenum">[217]</span>
+id&eacute;a de que os mussulmanos hespanhoes buscaram
+em si proprios recursos para atalhar o passo
+aos invasores na falta das tropas almoravides,
+visto que (diz-se ahi), sendo a correria um acto
+repentino, os mussulmanos n&atilde;o podiam precaver-se?
+Que resposta s&eacute;ria se p&oacute;de dar a isto?
+Fique-se entendendo que quando um paiz &eacute; invadido
+rapidamente, os habitantes deixam-se matar
+como carneiros e n&atilde;o se unem para se defenderem,
+ou que os soldados que fazem correrias,
+n&atilde;o andam, mas voam, ou v&atilde;o em aerostatos descer
+aonde e quando querem sem que ninguem os
+veja passar. Dizer que no fossado de Ourique n&atilde;o
+houve audacia, a ser como eu o narrei, embora
+as tropas almoravides, ou a melhoria dellas, faltassem,
+&eacute; cousa t&atilde;o absurda, quanto &eacute; certo
+que
+essa expedi&ccedil;&atilde;o importava uma longa marcha de
+cincoenta leguas (que tantas ir&atilde;o de Coimbra ao
+campo de Ourique) quasi toda por paiz inimigo,
+porque, como bem observa a chronica dos godos,
+Ourique ficava <em>no cora&ccedil;&atilde;o das
+terras mussulmanas</em>.
+Qualquer cabo de esquadra sabe que difficuldades
+se offerecem &aacute; marcha de tropas, embora
+disciplinadas (como de certo n&atilde;o eram as de Affonso
+I) atravez de um paiz excitado contra essas
+tropas pelo fanatismo politico e religioso. O principe
+<span class="pagenum">[218]</span>
+portugu&ecirc;s deixava, al&eacute;m disso, na sua retaguarda,
+por um e por outro lado, logares importantes
+fortificados, e bem ou mal guarnecidos,
+taes como Santarem, Lisboa, Alcacer, Elvas,
+Evora, etc.; o que tornava a volta de Affonso I
+aos proprios estados duplicadamente arriscada.
+Emfim, meu amigo, eu deixo nesta parte aos homens
+intelligentes avaliar se o fossado de Ourique,
+com as poucas circumstancias que delle
+sabemos, embora n&atilde;o tivesse as dimens&otilde;es que
+lhe attribuiram depois, foi ou n&atilde;o foi um acto de
+bastante ousadia.
+<br />
+
+<br />
+
+De passagem, meu amigo, deixe-me protestar
+contra um falso testimunho que me levanta o
+auctor do opusculo, quando, citando textualmente
+as minhas palavras, me attribue o uso do
+vocabulo <em>derrota</em> por
+<em>destro&ccedil;o</em> ou
+<em>desbarato</em> (dos
+sarracenos em Ourique). N&atilde;o escrevi o meu livro
+para se inserir nas actas da Academia: escrevi-o
+para o publico portugu&ecirc;s, e por isso na
+sua lingua, ao menos at&eacute; onde eu a sab&iacute;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Vamos &aacute; quest&atilde;o principal. Para a tractar
+n&atilde;o
+me parece que fosse necessario accumular previamente
+tanta inexac&ccedil;&atilde;o e tanto desproposito.
+Eu tinha affirmado que os diversos escriptores
+arabes que nos transmittiram a historia daquella
+<span class="pagenum">[219]</span>
+epocha guardaram silencio &aacute;cerca da batalha de
+Ourique. O auctor do opusculo sarraceno firma
+a proposi&ccedil;&atilde;o
+<em>contraria</em>, isto &eacute;, que
+nesses diversos
+escriptores arabes se encontram, n&atilde;o s&oacute;
+vestigios della, mas tambem a sua
+<em>descrip&ccedil;&atilde;o</em>,
+e as suas <em>consequencias terriveis</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Algum de n&oacute;s, pois, engana o publico; algum
+de n&oacute;s commette uma ac&ccedil;&atilde;o indigna de
+homens
+de letras affirmando uma cousa opposta &aacute; verdade.
+Eu consultei os historiadores arabes que
+escreveram a historia do dominio mussulmano
+na Peninsula, e que est&atilde;o traduzidos. Era essa
+unicamente a minha obriga&ccedil;&atilde;o, porque
+n&atilde;o sei
+arabe. O auctor do opusculo <em>devia</em>
+t&ecirc;-los visto
+antes de escrever, e <em>podia</em> ter lido
+outros, porque
+diz que sabe arabe. Se a minha narrativa
+fosse conforme com os primeiros comparados
+com os monumentos christ&atilde;os, e o auctor achasse
+que esses n&atilde;o-traduzidos os desmentiam, devia
+provar que o seu testimunho era preferivel
+ao delles e ao dos monumentos christ&atilde;os,
+sendo accordes uns com outros. Sem isso nada
+tinha feito. Ora eu estribei-me na narrativa de
+Abdel-halim, como a haviam vertido Moura e
+Conde, e esta narrativa concorda em geral com
+a chronica latina de Affonso VII, escripta ainda
+<span class="pagenum">[220]</span>
+no seculo XII ou nos come&ccedil;os do XIII. Das
+tres fontes historicas resulta ou n&atilde;o resulta o
+que eu disse? Resulta ou n&atilde;o resulta, que antes
+de julho de 1139 Tachfin-Ibn-Aly tinha partido
+para Africa, levando comsigo as tropas
+que p&ocirc;de, sem exceptuar os mosarabes e os captivos
+christ&atilde;os? &Eacute; verdade que o cerco de Aurelia
+ou Cazorla durou <em>de abril a setembro ou
+outubro</em><sup><a href="#f69">[69]</a></sup>?
+&Eacute; verdade que os seus
+defensores pediram
+debalde soccorro a Tachfin, <em>que se achava
+ent&atilde;o em Africa</em>? S&atilde;o, portanto,
+bem deduzidas
+as minhas inferencias de que &eacute; absurdo imaginar
+que havia trezentos ou quatrocentos mil mouros
+para saltarem por cima do exercito do imperador
+Affonso VII, e virem dar uma batalha campal a
+Affonso Henriques, e n&atilde;o os havia para descercarem
+uma pra&ccedil;a daquella importancia? &Eacute; para
+responder negativamente a estas perguntas de um
+modo t&atilde;o categorico como eu as fa&ccedil;o, que desafio
+o auctor do opusculo sarraceno.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao que se colhe dos monumentos christ&atilde;os e
+mussulmanos coevos ou quasi coevos<sup><a href="#f70">[70]</a></sup>
+que textos
+<span class="pagenum">[221]</span>
+exquisitos e reconditos vem, por&eacute;m, opp&ocirc;r
+o <em>digno</em> academico? Vejamos:
+<br />
+
+<br />
+
+Um mouro chamado Hamed-el-Nabil, <em>que viveu
+no principio do seculo</em> XVII, vindo a Hespanha,
+escreveu um itinerario. Nelle diz, falando da
+epocha em que succedeu o caso d'Ourique, as
+palavras seguintes, que vou transcrever, porque
+g&oacute;sto de apresentar o corpo de delicto:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;E dizem alguns dos sabios precedentes
+<em>sobre</em>
+o governo da Andaluzia (<em>sic</em>) que
+ella muito se
+engrandeceu: <em>e na verdade conquistou com boa
+posse</em> (<em>sic</em>) muitos
+dos logares <em>os</em>
+(<em>sic</em>) mais notaveis:
+e foi isto depois que l'Enrick
+<em>derrotou</em> os
+mussulmanos; (<em>sic</em>) n&atilde;o
+persistiram estes depois
+disso no paiz sen&atilde;o quando obravam pacificamente;
+e <em>por isso</em>
+(<em>sic</em>) ficaram os
+christ&atilde;os neste
+paiz senhores de suas terras e de suas riquezas
+(<em>sic</em>),
+(<em>sic</em>),
+(<em>sic</em>).&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+O meu amigo ha de ficar espantado quando
+souber que nesta salsada, que at&eacute; certo ponto
+simula lingua portuguesa, ha, <em>n&atilde;o
+s&oacute; claros vestigios</em>
+da batalha de Ourique, mas tambem a
+<em>descrip&ccedil;&atilde;o</em>
+<span class="pagenum">[222]</span>
+<em>della e das suas consequencias</em>. Pois
+saiba
+que ha. Saiba tambem que, um ou dous mezes
+antes de se imprimir o opusculo sarraceno,
+se dizia pelos cantos, que na Academia se lera
+uma cousa mourisca, que excitara o enthusiasmo
+d'alguns daquelles padres-conscriptos, porque
+ahi se me provava com textos arabes que eu
+n&atilde;o soubera o que tinha dicto quando falei com
+tanta irreverencia e falta de patriotismo nesse
+facto d'Ourique. Rogia-se de um papel achado
+n'uma tenda de Marrocos, que desmanchava todas
+as minhas opini&otilde;es aereas. No fim de contas
+era o sr. Hamed, que no principio do seculo XVII
+tinha escripto em mouro o que o meu amigo ahi
+v&ecirc; em meio-mouro. Realmente a cousa &eacute;
+s&eacute;ria,
+sobretudo exornada com as erudi&ccedil;&otilde;es e
+commentarios
+do traductor, a quem Deus d&ecirc; alguma
+inclina&ccedil;&atilde;o mais proveitosa do que esta de
+traduzir
+para lingua franca os itinerarios dos viajantes
+marroquinos.
+<br />
+
+<br />
+
+Pretende-se nesses commentarios que o mouro
+Hamed, na phrase relativa a l'Enrik (que &eacute;
+possivel seja Affonso Henriques) se refira aos
+<span class="pagenum">[223]</span>
+mesmos escriptores a quem, sob o nome de sabios
+precedentes, allude no principio do periodo,
+e que por sabios precedentes se devem entender
+antigos escriptores sarracenos, porque os arabes
+servem-se da palavra
+<em>ulm&aacute;-i</em> para significarem
+os <em>seus</em> historiadores. Vamos por
+partes. Se o
+sr. Hamed escreveu <em>sabios
+precedentes</em>, &eacute; porque
+j&aacute; tinha dicto quem elles eram: nesse caso,
+em vez de uma disserta&ccedil;&atilde;o &aacute;cerca da
+palavra <em>ulm&aacute;-i</em>,
+n&atilde;o seria mais simples e mais a proposito
+dizer-nos o traductor os nomes delles? Teriamos
+a Bibliotheca de Haji-Khalfah traduzida por
+Fluegel; teriamos a Bibliotheca de Casiri; teriamos
+as notas de sr. Gayangos &aacute; vers&atilde;o de Al-Makkari,
+notas preciosas como fonte de erudi&ccedil;&atilde;o
+arabica; teriamos, emfim, estes ou outros
+recursos para sabermos que importancia deveriamos
+dar aos <em>sabios precedentes</em> como
+auctoridades
+para os successos do seculo XII, que era o
+que importava. Hamed ou trinta Hameds, que
+vivessem em tempos modernos ou houvessem
+vindo a Hespanha e repetissem o que por c&aacute; tivessem
+ouvido &aacute;cerca do recontro d'Ourique ou
+de outra qualquer cousa succedida 400 ou 500
+annos antes, provariam tanto a favor della como
+a <em>precedente</em>
+traduc&ccedil;&atilde;o prova que o auctor do
+<span class="pagenum">[224]</span>
+opusculo sabe grammatica e conhece a indole da
+nossa lingua. Suppondo, por&eacute;m, que Hamed se
+refira no principio do periodo a historiadores
+arabes, e que esses historiadores sejam assaz
+antigos, o que &eacute; certo &eacute; que a phrase relativa a
+l'Enrik n&atilde;o &eacute; dos taes <em>sabios
+precedentes</em>, mas
+do proprio Hamed-el-Nabil. Creio que o meu
+amigo sabe bastante da lingua franca para ver
+que desde as palavras &laquo;<em>e na
+verdade</em>&raquo; n&atilde;o s&atilde;o
+os <em>sabios precedentes</em>, mas sim o
+proprio Hamed,
+em corpo e alma, quem fala; quem parece
+querer confirmar com o seu testimunho o dicto
+delles, se &eacute; possivel perceber aquelle
+<em>imbroglio</em>
+que o traductor alli arranjou. Mas a curiosidade
+maior &eacute; que o proprio texto est&aacute; provando que
+Hamed, longe de alludir ao facto d'Ourique ou a
+facto algum especial, se refere em geral &aacute;s victorias
+e conquistas de Affonso I, (se &eacute; que se refere
+a isto) as quaes ninguem contesta, e que eu
+particularisei com a miudeza e exac&ccedil;&atilde;o, a que os
+<em>sabios precedentes</em>, os
+<em>ulm&aacute;-i</em> da nossa terra,
+n&atilde;o tinham chegado. Se Hamed se referisse a
+Ourique falando do desbarato dos mussulmanos
+por l'Enrik, tudo o mais que vem na passagem
+seria um rol de mentiras; porque as consequencias
+materiaes desse recontro foram nenhumas.
+<span class="pagenum">[225]</span>
+Como j&aacute; disse, Affonso Henriques voltou aos
+seus estados sem conquistar um palmo de terra,
+e foi annos depois que submetteu a Estremadura
+e o Alemt&eacute;jo, ficando no paiz os mussulmanos
+que curvaram a cabe&ccedil;a ao jugo christ&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Aqui tem o bom redactor da <em>Semana</em> o
+que &eacute;
+e o que vale o papel da tenda de Marrocos, que
+devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos
+monumentos coevos, e em argumentos de congruencia
+irresistiveis. &Eacute; o dicto vago e obscuro de
+um viajante moderno, dicto que se torce para se
+fazer com que o pobre mouro diga aquillo em
+que nem sequer pensou. Que terra esta nossa,
+meu amigo, em que o auctor de um livro serio &eacute;
+&aacute;s vezes obrigado a acceitar o triste encargo de
+refutar taes miserias!
+<br />
+
+<br />
+
+O famoso texto do viajante marroquino &eacute; refor&ccedil;ado
+com um contraforte tirado do Abdel-halim
+do uso particular do auctor do opusculo; digo
+do uso particular, porque nem em Conde, nem
+em Moura se encontra semelhante passagem, nem
+no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos
+ver o texto <em>inedito</em> de Assaleh ou de
+Ibn-Abi-Zara,
+que o meu critico trouxe &aacute; luz do dia:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;E neste anno 533 (8 de septembro de 1138
+a 27 d'agosto de 1139) desbaratou o general Taxefin
+<span class="pagenum">[226]</span>
+as multid&otilde;es dos christ&atilde;os <em>nos
+campos de
+Attibbat</em>; e fez perecer delles um numero
+extraordinario;
+e levou de seus prisioneiros <em>seis mil captivos:
+em consequencia do que</em> partiu para Marrocos,
+e &aacute; sua chegada <em>lhe saiu ao encontro seu
+pae</em>, o imperador dos mussulmanos,
+<em>que ficou em
+profundo desgosto e cheio de grande susto</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+No capitulo 33 do Kartt&aacute;s traduzido pelo padre
+Moura n&atilde;o vem esta passagem. Entretanto n&atilde;o
+devo crer que o auctor do opusculo a invent&aacute;sse.
+Cumpre supp&ocirc;r que elle se serviu de algum
+exemplar mutilado, viciado, ou extremamente
+incorrecto da obra de Abdel-halim. Na vers&atilde;o de
+Moura &eacute; no capitulo 40 que se cont&eacute;m as ultimas
+ac&ccedil;&otilde;es do Tachfin na Hespanha, antes de partir
+para a Africa. Eis o que ella nos diz:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7
+de septembro de 1138) passou o principe Taxefin
+de Hespanha para a Mauritania, depois do ter
+combatido e tomado de assalto <em>a cidade de
+Segovia</em>,
+levando comsigo <em>seis mil captivos</em>; e
+tendo
+chegado a Marrocos <em>veio seu pae
+encontr&aacute;-lo</em> com
+grande pompa e <em>se alegrou com elle</em>,
+etc.<sup><a href="#f71">[71]</a></sup>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+As duas passagens s&atilde;o, se n&atilde;o identicas, por
+<span class="pagenum">[227]</span>
+certo parallelas. Tracta-se em ambas da partida de
+Tachfin para a Africa, depois de obtido um triumpho
+em que captivou seis mil homens. A differen&ccedil;a
+est&aacute; nas circumstancias, e <em>na
+data</em>. Qual dessas
+se deve preferir? Vejamos.
+<br />
+
+<br />
+
+Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente:
+mas p&otilde;e-na como immediata &aacute;
+reduc&ccedil;&atilde;o
+de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro
+de 1136 a 18 de septembro de 1137) e assim
+concorda com Assaleh quanto ao anno da partida,
+visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins
+de 531, a sa&iacute;da do principe almoradive para a
+Africa devia verificar-se j&aacute; em 532, isto &eacute;, nos
+fins de 1137 ou nos principios de 1138.
+<br />
+
+<br />
+
+Com esta data concorda o auctor da chronica
+de Affonso VII, mencionando a partida de Tachfin
+para al&eacute;m-mar entre os successos de 1138, e descrevendo
+a mensagem que lhe enviaram &aacute; Africa
+os defensores de Aurelia durante o cerco posto a
+esse castello por Affonso VII <em>em abril
+de</em> 1139.
+O chronista christ&atilde;o vai de accordo na chronologia
+com os historiadores arabes sem os conhecer,
+e limitando-se a narrar os factos que <em>ouvira
+&aacute;s
+pessoas que os tinham presenciado</em><sup><a href="#f72">[72]</a></sup>.
+<span class="pagenum">[228]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o quero supp&ocirc;r, torno a repetir, que o auctor
+do opusculo forjasse a passagem que cita,
+ou que alterasse a data da hegira para provar que
+Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139.
+N'uma quest&atilde;o em que se tem procurado associar
+&aacute; id&eacute;a de que ca&iacute; n'um erro historico
+a de
+que tive em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento
+fora duplicadamente torpe. Todavia o
+<em>digno</em> academico ainda assim tem
+d'escolher entre
+a ignorancia e a m&aacute; f&eacute;. Se conhecia a chronica
+de Affonso VII, a narrativa de Conde e a vers&atilde;o
+de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas:
+primeira, provar que essas auctoridades em
+que eu me estribava eram insufficientes; segunda,
+mostrar que o seu manuscripto tinha uma
+importancia, uma auctoridade tal, que as annullava.
+Onde o fez? Como o fez? Acaso s&oacute; porque
+se mandaram escrever n'uma pedra lithographica
+uns poucos de caracteres arabicos ou o que quer
+que seja, provou-se que as palavras que resultam
+da sua uni&atilde;o s&atilde;o indubitaveis como o evangelho,
+ou sequer que &eacute; preferivel a leitura do codice de
+que se tiraram &aacute; leitura de codices j&aacute; conhecidos
+e traduzidos por outros arabistas, que pelo
+menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo?
+<span class="pagenum">[229]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; vista destas simples e claras reflex&otilde;es, o
+texto de Abdel-halim citado pelo digno academico
+vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil.
+Eu, por&eacute;m, acceito-o por um momento.
+Vamos a discuti-lo em si.
+<br />
+
+<br />
+
+Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no
+campo da total destrui&ccedil;&atilde;o (Attibbat) as
+multid&otilde;es
+dos christ&atilde;os; que aprisionou seis mil homens,
+e que partiu para Marrocos, com o que seu pae
+ficou cheio de desgosto e de susto. Onde se fala
+aqui em Ourique? Para entender
+<em>Ourique</em> por
+<em>Attibbat</em> o auctor faz o seguinte
+raciocinio:&#8213;&laquo;a
+batalha de Ourique foi de <em>total
+destrui&ccedil;&atilde;o</em> para os
+mussulmanos, logo <em>Attibbat</em>
+&eacute; Ourique:&raquo;&#8213;e querendo
+provar que o recontro de Ourique foi uma
+grande batalha, faz outro raciocinio do mesmo
+jaez:&#8213;&laquo;Attibbat quer dizer Ourique, logo em
+Ourique houve uma <em>total
+destrui&ccedil;&atilde;o</em>.&raquo;&#8213;Todos
+os argumentos, todas as erudi&ccedil;&otilde;es do folheto
+nesta parte, embora por outras phrases, reduzem-se
+a isso; reduzem-se a duas peti&ccedil;&otilde;es de
+principio. Depois, n&atilde;o &eacute; admiravel o desgosto
+e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu filho voltar
+&aacute; Africa depois de uma victoria em que desbarata
+os christ&atilde;os, mata muitos, e leva seis
+mil captivos? Felizmente para Aly, Tachfin n&atilde;o
+<span class="pagenum">[230]</span>
+levou, em vez de seis, doze mil captivos, e n&atilde;o
+deixou o resto passado inteiramente &aacute; espada.
+Se tal acontece, o pobre amir el-moslemin ca&iacute;a
+fulminado por uma apoplexia. At&eacute; o auctor do
+opusculo achou a cousa absurda. Mas como sa&iacute;u
+da difficuldade? Dizendo-nos que o texto arabe
+tanto p&oacute;de significar &laquo;<em>Tachfin
+desbaratou os
+christ&atilde;os</em>&raquo; como
+&laquo;<em>os christ&atilde;os desbarataram
+Tachfin</em>.&raquo;
+Estava eu t&atilde;o desgostoso por n&atilde;o saber
+arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias,
+quando veio esta declara&ccedil;&atilde;o consolar-me.
+A historia &eacute; impossivel na lingua arabe; porque
+a mesma phrase significa branco e significa
+preto; exprime os dous factos mais oppostos.
+Os traductores de historias sarracenas tem andado
+a debicar com a Europa: onde dizem que tal
+batalha foi ganhada por A contra B, podiam ter
+dicto com a mesma veracidade que fora ganhada
+por B contra A. Isto, meu amigo, n&atilde;o se
+discute: est&aacute; discutido por si.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de vermos sacrificada a logica e at&eacute; o
+simples senso commum &aacute; necessidade de achar
+um texto arabe que prove a importancia da
+batalha de Ourique, o que &eacute; mais divertido &eacute;
+o completo esquecimento em que o auctor do
+opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim
+<span class="pagenum">[231]</span>
+<em>particular</em>, deixa os monumentos
+christ&atilde;os
+coevos que referem o successo. A chronica lamecense,
+a conimbricense, a dos godos, todas
+dizem que o general sarraceno era Ismar
+(<em>pr&aelig;side
+rege Smare</em>). Se Ismar n&atilde;o significa
+Tachfin
+como Attibbat significa Ourique, segue-se que
+ou mentem as chronicas coevas, ou mente o
+Abdel-halim <em>particular</em>, que diz ter
+sido o general
+dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a
+passagem citada n&atilde;o se refere ao successo de
+Ourique. Daqui parece-me que n&atilde;o ha fugir. A
+ultima explica&ccedil;&atilde;o &eacute; sem duvida a
+verdadeira.
+Essa passagem &eacute; evidentemente a que Moura
+traduziu, e Conde substanciou; passagem que
+se combina chronologicamente com a narrativa
+da chronica de Affonso VII, e que no opusculo
+apparece alterada nas circumstancias e na data.
+Quem a alterou, e para que fim? Isso pertence
+a Deus, que v&ecirc; os cora&ccedil;&otilde;es, e nos ha de
+julgar
+a todos no dia de juizo.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, como accommodar os factos, que o
+auctor do opusculo acceita do seu Abdel-halim
+particular em demonstra&ccedil;&atilde;o da grandeza da
+batalha,
+com o que nos diz a chronica dos godos e
+com o resultado daquella jornada? Pois os mussulmanos
+s&atilde;o postos em fuga ao primeiro recontro,
+<span class="pagenum">[232]</span>
+por um tro&ccedil;o de cavalleiros escolhidos
+(<em>electi milites</em>) ficando
+entrincheirados os restantes
+dos poucos soldados (<em>paucis suorum</em>),
+de
+Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva
+seis mil prisioneiros? Que digo eu, seis mil!
+Segundo o commentario do digno academico
+eram muitos mais. Aquelles seis mil foram escolhidos
+um a um, no meio do grande vagar
+que para isso tinham os sarracenos fugitivos,
+entre milhares de christ&atilde;os de rebotalho, aos
+quaes iam cortando os pesco&ccedil;os. As causas determinantes
+da escolha (que eu deixarei nas paginas
+do opusculo, porque n&atilde;o as consentem as
+paginas da <em>Semana</em>) deviam tornar os
+bons dos
+sarracenos demasiado pechosos na selec&ccedil;&atilde;o, e
+pelas minhas contas, para apurarem seis mil
+como lhes eram precisos, n&atilde;o podiam deixar
+de refugar os seus cento e noventa quatro mil,
+esmando pelo baixo. A mim parece-me, salvo
+o respeito devido a um representante da parte
+sarracena da Academia, que era melhor ter traduzido
+do Abdel-halim particular, (lithographando
+tambem no fim do opusculo o original mourisco
+e subministrando assim mais abundante
+alimento &aacute; pasmaceira dos parvos) uma carta
+de Tachfin dirigida ao principe portugu&ecirc;s, escripta
+<span class="pagenum">[233]</span>
+ao come&ccedil;ar a retirada, e concebida pouco
+mais ou menos nos seguintes termos: &laquo;Meu Affonso-Ibn-Errik.
+Estou capaz de renegar Mafoma
+com a grande r&oacute;ta que me d&eacute;ste. Vou para Africa
+amuado, metter-me em casa de meu pae, que
+se chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os
+<em>ulm&aacute;-i</em> academicos
+da tua terra queiram &aacute; fina for&ccedil;a chamar-lhe
+Aly-Ben-Taxefin. A guerra &eacute; guerra, e
+uma batalha perdida ou ganhada n&atilde;o &eacute; motivo
+para nos desestimarmos. Eu preciso de levar comigo
+em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes
+christ&atilde;os airosos e bempostos. Se os pod&eacute;res
+dispensar, far-me-has nisso particular favor e
+uma ac&ccedil;&atilde;o de cortezia. S&oacute; Deus
+&eacute; Deus e Mohammed
+o seu propheta. Aos 26 de zilkhada da
+Hegira 533.&raquo;&#8213;Com isto ficava tudo explicado.
+Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade
+do <em>Phara&oacute; obdurado</em>,
+embora fingida;
+porque, tendo Christo acabado de lhe asseverar
+que havia de vencer sempre os sarracenos, n&atilde;o
+s&oacute; podia fazer presente a Tachfin de todos os soldados
+imberbes do exercito, mas tambem de
+quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse
+alli &aacute; m&atilde;o vasculhando o acampamento, os quaes,
+se n&atilde;o prestassem para mais nada, prestariam
+para bichos da cozinha do amir-el-mosl&eacute;min.
+<span class="pagenum">[234]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia,
+cujos membros fossem capazes de escrever
+opusculos destes, dissolvia-se para se
+reconstruir com outros elementos, aproveitando
+s&oacute;, e com grandes cautellas, o pouco que
+ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia,
+especie de congrega&ccedil;&atilde;o bernarda que come e
+dorme, acodem-lhe &aacute;s vezes &aacute; pelle estes tumores
+litterarios, estas secre&ccedil;&otilde;es eruditas, que,
+longe de a matarem, lhe fortificam a complei&ccedil;&atilde;o.
+Deus lhe d&ecirc; uma longa vida.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h2>DO ESTADO
+</h2>
+
+<h4>
+DAS<br />
+
+</h4>
+
+<h2>CLASSES SERVAS NA PENINSULA
+<br />
+
+</h2>
+
+<h3>
+DESDE O VIII AT&Eacute; O XII SECULO</h3>
+
+<h2>
+1858
+</h2>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c6"></a>I
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Por mais que a tradi&ccedil;&atilde;o de antigas
+malqueren&ccedil;as
+e o ciume da nossa autonomia nos affaste
+dos outros povos da Hespanha, dos quaes os
+eventos politicos fizeram, mais ou menos for&ccedil;adamente,
+uma s&oacute; na&ccedil;&atilde;o, &eacute; certo que,
+apesar de
+todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes,
+nas opini&otilde;es, nos costumes, nas tendencias
+moraes de ambas as na&ccedil;&otilde;es se est&aacute;
+revelando
+a cada passo uma origem commum. Postoque
+cada uma dellas tenha defeitos especiaes,
+como os ha de provincia para provincia, d&atilde;o-se
+alguns t&atilde;o nossos e t&atilde;o hespanhoes, que de per
+si, sem outros adminiculos, provam de sobejo essa
+communidade de origem.
+<br />
+
+<br />
+
+Esta reflex&atilde;o occorreu-me naturalmente ao
+come&ccedil;ar um escripto, em que tenho de dizer
+poucas palavras &aacute;c&ecirc;rca do homem a quem elle
+&eacute;
+dirigido. Ha na Academia da Historia, de Madrid,
+um modesto empregado, envolvido na obscuridade
+da sua situa&ccedil;&atilde;o, sem cargos publicos, sem
+condecora&ccedil;&otilde;es, sem pingues sinecuras, e de que
+<span class="pagenum">[238]</span>
+talvez se podesse dizer&#8213;sem p&atilde;o&#8213;se a Academia
+n&atilde;o o houvera encarregado das suas
+collec&ccedil;&otilde;es
+litterarias. Este empregado modesto, este
+homem socialmente obscuro, &eacute; todavia um dos
+maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais
+profundamente e com mais san consciencia (dote
+raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica
+e t&atilde;o pouco explorada mina das antigas
+institui&ccedil;&otilde;es
+e costumes da Peninsula, isto &eacute;, do que
+na historia della ha mais serio, mais importante
+e mais difficil d'estudar. Falo de Thom&aacute;s Mu&ntilde;oz
+y Romero, do auctor da <em>Colleccion de Fueros
+Municipales</em>, obra notavel, que, sendo de um homem
+s&oacute;, honraria uma corpora&ccedil;&atilde;o
+litteraria, que
+a houvesse emprehendido e executado. E todavia,
+esse livro importante foi interrompido, segundo
+me affirmam, por falta de protec&ccedil;&atilde;o; e
+Mu&ntilde;oz y Romero ainda nada mais &eacute; hoje do que
+era ha dez annos, quando publicou aquelle seu
+primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca
+da Academia da Historia!
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; o que provavelmente succederia ao livro e
+ao homem nesta terra, neste fragmento da Peninsula
+chamado Portugal, irm&atilde;o gemeo desse
+maior fragmento, que chamam especialmente a
+Hespanha.
+<span class="pagenum">[239]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Na <em>Revista Espa&ntilde;ola de
+Ambos-Mundos</em>, nos
+numeros correspondentes a novembro de 1854,
+appareceram successivamente dous artigos, assignados
+por Mu&ntilde;oz y Romero, sobre o estado das
+pessoas nos reinos de Asturias e Le&atilde;o nos primeiros
+seculos posteriores &aacute; invas&atilde;o dos Arabes.
+Escriptos como aquelles, manifesta&ccedil;&otilde;es
+t&atilde;o brilhantes
+de verdadeira sciencia, n&atilde;o s&atilde;o frequentes
+em publica&ccedil;&otilde;es periodicas, ainda al&eacute;m
+dos Piren&eacute;us.
+Li-os com avidez e interesse sempre crescentes.
+Ahi encontrei que aprender, e sobretudo
+pude emfim assentar as minhas id&eacute;as
+&aacute;c&ecirc;rca da
+origem, ou antes da denomina&ccedil;&atilde;o dos malados e
+das maladias, ponto em que a propria opini&atilde;o que
+adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal
+n&atilde;o me satisfazia completamente. Vi, por&eacute;m,
+que discordavamos n'uma quest&atilde;o capital d'historia;
+no modo de apreciar o estado das classes servis
+nas Asturias e Le&atilde;o durante os seculos immediatos
+&aacute; reac&ccedil;&atilde;o christan, e tive o desgosto
+de n&atilde;o
+poder, apesar de todas as considera&ccedil;&otilde;es do sr.
+Mu&ntilde;oz,
+abandonar a propria opini&atilde;o para adoptar a
+sua. Ou seja por um modo errado de interpretar
+os antigos monumentos, a que o meu espirito se
+tenha affeito, ou porque a raz&atilde;o esteja do meu
+lado, &eacute; certo que nenhum dos muitos documentos
+<span class="pagenum">[240]</span>
+que o sr. Mu&ntilde;oz opp&otilde;e &aacute;s minhas
+opini&otilde;es me
+pareceu contrari&aacute;-las: alguns, pareceu-me que at&eacute;
+serviam para as corroborar. Desde esse momento
+entendi que n&atilde;o ser&iacute;a absolutamente inutil ao
+progresso
+dos estudos historicos da Peninsula exp&ocirc;r
+as duvidas e reflex&otilde;es que me occorriam sobre a
+materia, deixando depois aos homens competentes
+comparar os dous systemas e escolher entre elles.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando pensava em realisar este designio,
+sobrevieram acontecimentos que durante quasi
+dous annos me for&ccedil;aram a abster-me dos trabalhos
+historicos. Affastado por t&atilde;o largo tempo
+dos meus habituaes estudos, se, &aacute; custa de
+serios desgostos, aprendi muito a respeito dos
+homens e das cousas do meu tempo e do meu
+paiz, esqueci tambem muito do que sab&iacute;a ou
+cria saber &aacute;c&ecirc;rca dos homens e das cousas do
+passado. Aberto para mim de novo o caminho
+dos trabalhos historicos pela for&ccedil;a da opini&atilde;o
+em lucta com a immoralidade do poder, renovei
+esses abandonados estudos, mas renovei-os
+como um dever de consciencia, como um servi&ccedil;o
+que me exigem, como o cumprimento de
+um contracto tacito com o publico. O amor, diria
+antes a religi&atilde;o ardente, com que cultivava
+a sciencia da historia, perdi-o no campo de batalha.
+<span class="pagenum">[241]</span>
+Escrever &eacute; hoje para mim o mesmo que
+ser vereador, jurado, ou membro de um conselho
+de districto: &eacute; um encargo e mais nada.
+No horisonte das minhas ambi&ccedil;&otilde;es, e Deus sabe
+se falo sincero, s&oacute; vejo o dia em que possa
+dep&ocirc;r a penna, e sumir-me em completa obscuridade.
+Ser&aacute; esse o melhor da minha vida. Na
+situa&ccedil;&atilde;o d'animo em que por tanto tempo me
+achei, a quest&atilde;o dos servos na Peninsula durante
+os seculos medios esqueceu-me completamente.
+Veio recordar-m'a, por&ecirc;m, uma circumstancia
+casual. Tendo de examinar um volume
+da <em>Revue Historique du Droit Fran&ccedil;ais et
+&Eacute;tranger</em>, passou-me pelos olhos um artigo
+de
+M. de Rozi&egrave;re (julho e agosto de 1855) sobre o
+escripto do sr. Mu&ntilde;oz, escripto que o illustre
+professor, a quem devo mais de uma prova de
+benevolencia, resume com a sua habitual lucidez,
+e cuja doutrina acceita como a mais verosimil.
+A doutrina, por&ecirc;m, expressamente combatida
+pelo auctor do opusculo sobre o estado
+das pessoas nos reinos de Asturias e Le&atilde;o, nos
+primeiros seculos depois da invas&atilde;o arabe, &eacute;
+unicamente a minha. &Eacute; de mim que elle declara
+discordar completamente sobre a natureza da
+servid&atilde;o na monarchia n&eacute;o-gothica desde o VIII
+<span class="pagenum">[242]</span>
+at&eacute; o XII seculo. A verosimilhan&ccedil;a da sua
+opini&atilde;o
+torna portanto menos provavel para o illustre
+professor da <em>&Eacute;cole des
+Chartes</em> a doutrina
+que estabeleci. Se a quest&atilde;o pendesse t&atilde;o
+s&oacute;mente
+entre mim e o sr. Mu&ntilde;oz, demorar, ou, at&eacute;,
+posp&ocirc;r
+completamente a defesa da minha theoria
+&aacute;c&ecirc;rca da servid&atilde;o n'aquelle periodo
+n&atilde;o teria
+grande inconveniente. Os documentos invocados
+pelo sr. Mu&ntilde;oz e as suas pondera&ccedil;&otilde;es,
+e bem
+assim os documentos que eu citei e as conclus&otilde;es
+que delles deduzi est&atilde;o ao alcance dos homens
+de letras da Peninsula que se dedicam
+aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal
+e de Hespanha encerram centenares de
+outros monumentos ainda n&atilde;o estudados, que
+poderiam lan&ccedil;ar nova luz sobre o assumpto.
+Nada mais facil, at&eacute;, do que conduzirem-nos
+novas investiga&ccedil;&otilde;es, a mim ou ao sr.
+Mu&ntilde;oz, a
+abandonar o proprio systema, porque ambos
+buscamos sinceramente a verdade. Mas desde
+que a materia do debate, transpondo os Piren&eacute;us,
+foi exposta a uma luz que n&atilde;o creio
+verdadeira, por um homem como Mr. de Rozi&egrave;re,
+e a um publico privado dos meios de apreciar
+por si proprio os documentos e raciocinios
+em que se fundam as duas opini&otilde;es oppostas,
+<span class="pagenum">[243]</span>
+entendo que &eacute; do meu dever publicar as
+observa&ccedil;&otilde;es
+que se me offerecem relendo os artigos
+do sr. Mu&ntilde;oz, observa&ccedil;&otilde;es que, feitas
+ha dous
+annos, quando estas materias eram quasi a unica
+occupa&ccedil;&atilde;o do meu espirito, seriam sem duvida
+mais efficazes para a defesa de um systema
+que ainda hoje me parece ser o que melhor se
+estriba nos antigos documentos, e que ao mesmo
+tempo melhor os explica.
+<br />
+
+<br />
+
+Antes de tudo cumpre determinar bem a materia
+controversa e circumscrev&ecirc;-la. Tanto eu como
+o sr. Mu&ntilde;oz fal&aacute;mos da servid&atilde;o no
+periodo em
+que por successivas transforma&ccedil;&otilde;es o homem de
+trabalho, o homem escravo, o homem
+<em>cousa</em> dos
+romanos chegou a ser a pessoa civil, a pessoa livre,
+o cidad&atilde;o mais ou menos humilde dos tempos
+modernos. Deixando de parte maiores ou
+menores differen&ccedil;as de opini&atilde;o entre
+n&oacute;s quanto
+aos tempos da monarchia gothica, ou que se
+possam deduzir das nossas palavras quanto aos
+tres ultimos seculos da idade m&eacute;dia, limitar-me-hei
+a exp&ocirc;r o que contradictoriamente entendemos
+&aacute;cerca da situa&ccedil;&atilde;o das classes servis
+do VIII
+at&eacute; o XII seculo. Escrevendo um artigo e n&atilde;o um
+livro, procurarei affastar todas as quest&otilde;es secundarias
+que se ligam a esse grande facto da
+<span class="pagenum">[244]</span>
+transforma&ccedil;&atilde;o das classes trabalhadoras, e
+abstrahindo
+das causas e consequencias da situa&ccedil;&atilde;o
+em que se acharam os servos depois da invas&atilde;o
+arabe e da reac&ccedil;&atilde;o asturiana (successos coevos e
+quasi simultaneos) em tudo o que n&atilde;o f&ocirc;r
+indispensavel
+para a clareza da materia, reduzirei o
+discurso ao que a raz&atilde;o persuade e os monumentos
+confirmam &aacute;cerca do facto geral da
+transforma&ccedil;&atilde;o
+gradativa da popula&ccedil;&atilde;o serva naquelle
+periodo de quatro para cinco seculos.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c7"></a>II
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O estudo reflectido dos historiadores arabes e
+dos monumentos christ&atilde;os da &eacute;pocha da conquista
+e do dominio sarraceno tem feito sentir
+que essa conquista e esse dominio extranho foram,
+na historia das invas&otilde;es e da sujei&ccedil;&atilde;o
+de ra&ccedil;a
+a ra&ccedil;a, de povo a povo, entre os factos de semelhante
+ordem, um dos que custaram &aacute; humanidade
+menos tyrannias, menos lagrymas e menos
+sangue. Tem-se dado o devido desconto &aacute;s
+exaggera&ccedil;&otilde;es das chronicas e &aacute;
+linguagem de certos
+escriptores christ&atilde;os contemporaneos, aonde
+auctores mais modernos foram buscar os lineamentos
+dos seus quadros de terror, quando ahi
+mesmo se encontram as provas de que os factos
+n&atilde;o correspondem &aacute;s express&otilde;es
+genericas com
+que &eacute; descripto como um dos mais crueis flagellos
+o predominio dos sarracenos na Peninsula.
+Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio
+dos godos, a sociedade wisigothica ficou. As
+provincias ou as cidades que acceitaram sem resistencia
+o jugo dos novos senhores n&atilde;o tiveram
+<span class="pagenum">[246]</span>
+que padecer sen&atilde;o as consequencias dos grandes
+movimentos militares sobre qualquer territorio,
+as violencias accidentaes e individuaes durante a
+lucta. Em geral, a ordem das rela&ccedil;&otilde;es civis, e
+uma parte das publicas continuam a subsistir do
+mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio
+das altas func&ccedil;&otilde;es da
+administra&ccedil;&atilde;o do Estado
+&eacute; que mudam. Nas provincias meridionaes da
+Hespanha fica, at&eacute;, por algum tempo um simulachro
+do imperio gothico, o reino de Theodemiro,
+tributario mas livre, que se incorpora obscuramente
+depois nos dominios do khalifa. No meu
+livro busquei desenhar com fidelidade essa nova
+situa&ccedil;&atilde;o; dar aos successos o seu verdadeiro
+valor,
+estribando-me nos monumentos coevos, e
+fazer sobresair a popula&ccedil;&atilde;o mosarabe
+(godo-romana),
+t&atilde;o esquecida em geral pelos historiadores.
+<br />
+
+<br />
+
+Entre os mosarabes a situa&ccedil;&atilde;o dos servos devia
+ser a mesma que entre os godos antes da
+conquista. N&atilde;o &eacute; provavel que esta formula da
+sociedade civil se alterasse quando todas as outras
+se mantinham. Nessa parte a conquista arabe
+n&atilde;o trouxe o que trazem sempre os grandes
+abalos politicos, um progresso de civilisa&ccedil;&atilde;o.
+<span class="pagenum">[247]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Succedeu o mesmo com a reac&ccedil;&atilde;o asturiana?
+Podia succeder? P&uacute;s este problema a mim mesmo,
+e resolvi-o negativamente; porque a raz&atilde;o
+e os documentos me for&ccedil;avam a essa
+solu&ccedil;&atilde;o
+negativa.
+<br />
+
+<br />
+
+O levantamento de Pelaio n&atilde;o chegou a ser
+uma revolu&ccedil;&atilde;o: foi uma resistencia: resistencia
+feliz nos primeiros passos e que n&atilde;o tardou
+a converter-se n'um perigo serio para o dominio
+mussulmano. Dentro de poucos annos a reac&ccedil;&atilde;o
+obscura de um punhado de soldados godos
+fundava uma monarchia christan e independente,
+que se contrapunha ao islamismo triumphante,
+que estabelecia fronteiras, embora variaveis,
+e que tomava ou fundava logares fortes,
+onde os novos senhores da Hespanha encontravam
+dura repulsa &aacute;s suas diligencias para suffocar
+esta perigosa entidade politica. Da despropor&ccedil;&atilde;o
+das for&ccedil;as entre as duas potencias
+mussulmana e christan, se o nome de potencia
+p&oacute;de dar-se aos estados de Pelaio e dos seus
+immediatos successores, resultava necessariamente
+um facto. Todo o homem v&aacute;lido devia
+ser chamado &aacute;s armas nas Asturias, mas de um
+modo em que interviesse a espontaneidade individual.
+N&atilde;o alcan&ccedil;o sequer como podesse ser
+<span class="pagenum">[248]</span>
+de outro modo. A servid&atilde;o dos godos; os senhores
+levando os servos armados ao combate,
+sem cren&ccedil;a, sem ardor, sem interesses moraes
+ou materiaes que defender, como nos tempos
+gothicos, ser&iacute;a um facto que n&atilde;o sei como
+poderia dar em resultado a funda&ccedil;&atilde;o e
+engrandecimento
+da monarchia de Oviedo.
+<br />
+
+<br />
+
+Na verdade, com o tempo, as institui&ccedil;&otilde;es
+wisigothicas
+foram-se restaurando &aacute; medida que
+se engrandecia o novo reino, que uma parte do
+territorio deixava de ser perenne campo de batalha,
+e que a seguran&ccedil;a, maior ou menor, favorecia
+o maior ou menor desenvolvimento da
+agricultura e de uma especie de industria. Uma
+parte da popula&ccedil;&atilde;o mosarabe, ou pelas
+migra&ccedil;&otilde;es
+tanto for&ccedil;adas como espontaneas, ou pela
+aggrega&ccedil;&atilde;o
+successiva de territorios habitados por
+ella, incorporava-se gradualmente na sociedade
+n&eacute;o-gothica, e, trazendo comsigo a jurisprudencia
+antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo
+sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma
+influencia, digamos assim, reaccionaria. Mas o
+que n&atilde;o podia era destruir a for&ccedil;a das
+circumstancias;
+o que n&atilde;o podia, n'uma sociedade em
+cuja origem, em cujo amago estava a resistencia,
+a espontaneidade, a liberdade, era restabelecer
+<span class="pagenum"><a name="p249" id="p249">[249]</a></span>
+a servid&atilde;o pessoal antiga em toda a sua
+plenitude.
+<br />
+
+<br />
+
+Supponh&acirc;mos um nobre, e at&eacute; um simples
+<em>possessor</em>, acolhendo-se
+&aacute;s Asturias, a Oviedo,
+nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos <a href="#e11">successores</a>.
+Como arrastar&aacute; elle comsigo os servos
+que o rodeiam? Invocar&aacute; a for&ccedil;a publica, a
+auctoridade mussulmana para os constranger a
+acompanharem-no? Ser&iacute;a absurda a hypothese.
+Esse nobre, ou esse <em>possessor</em> ha-de
+descer &aacute;
+persuas&atilde;o; ha-de falar de manumiss&atilde;o, ha-de
+approximar de si o homem envilecido, ha-de
+recorrer aos afagos, &aacute;s promessas. Ficar onde
+se acha &eacute; para o servo a liberdade, quando o
+senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso
+crer que nelle est&atilde;o inteiramente mortos todos
+os instinctos humanos?
+<br />
+
+<br />
+
+Supponh&acirc;mos a conquista; a access&atilde;o de territorio.
+O mosarabe senhor de servos, que se
+incorpora por esse facto na sociedade ovetense,
+acha actuando energicamente nesta o sentimento
+da liberdade e da espontaneidade individuaes,
+as classes servis armadas, os antigos la&ccedil;os hierarchicos
+quebrados em grande parte. Esse facto
+n&atilde;o influir&aacute; em nada nas suas
+rela&ccedil;&otilde;es com
+os proprios servos? Depois, al&eacute;m, pouco al&eacute;m,
+<span class="pagenum">[250]</span>
+est&atilde;o os castellos sarracenos, a
+administra&ccedil;&atilde;o
+mussulmana. Se elle n&atilde;o affrouxar os rigores
+da servid&atilde;o; se n&atilde;o ligar a si o homem de
+trabalho
+por algum interesse, por algum motivo
+racional, ser&aacute; difficil que esse homem o abandone,
+e que conquiste pela fuga, e talvez pela
+mudan&ccedil;a de f&eacute;, a sua
+emancipa&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+Se os documentos nos n&atilde;o provassem que a
+servid&atilde;o de gleba fora o passo immediato dado
+pelas classes infimas para a liberdade, a raz&atilde;o,
+longe de nos persuadir que a servid&atilde;o se mantivera
+em Oviedo e Le&atilde;o como nos tempos gothicos,
+far-nos-hia antes acreditar que ella fora
+substituida pelo colonato espontaneo. O colonato,
+eis o grande meio de ligar o homem de trabalho
+&aacute; terra, por este instincto, por este amor
+quasi connubial, que une a m&atilde;e commum ao individuo
+que a faz fructificar. Da servid&atilde;o gothica,
+por&eacute;m, para a adscrip&ccedil;&atilde;o havia um
+passo gigante,
+e as classes servis eram ass&aacute;s rudes para
+n&atilde;o perceberem toda a differen&ccedil;a do colonato
+&aacute;
+adscrip&ccedil;&atilde;o, porque essas differen&ccedil;as
+s&atilde;o pela
+maior parte de ordem moral. Na practica, materialmente,
+sobretudo em tempos de bruteza e
+violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante,
+as distinc&ccedil;&otilde;es entre a posse e o uso da terra
+<span class="pagenum">[251]</span>
+pelo colonato ou pela adscrip&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+podiam ser
+demasiado sensiveis. O sentimento, a aspira&ccedil;&atilde;o
+do individuo que cultivou o solo, que construiu
+a choupana, que plantou a arvore &eacute; principalmente
+o n&atilde;o separar-se do campo, da choupana,
+da arvore. A este sentimento correspondem ambas
+as formulas de consorcio entre o homem e a
+terra, mais ou menos imperfeitamente, n&atilde;o tanto
+em virtude das condi&ccedil;&otilde;es theoricas de cada uma
+das duas formulas, como do estado mais ou menos
+civilisado da &eacute;pocha em que se applicam.
+Acaso a historia n&atilde;o nos subministra provas de
+oppress&otilde;es exercidas sobre colonos espontaneos,
+e consagradas at&eacute; por contractos, t&atilde;o barbaras
+como as que padeciam os adstrictos &aacute; gleba,
+quando j&aacute; a adscrip&ccedil;&atilde;o do homem tinha
+cedido
+o campo &aacute; servid&atilde;o exclusiva da terra?
+<br />
+
+<br />
+
+Assim comprehende-se como a transforma&ccedil;&atilde;o
+do servo em adscripto podia resultar da situa&ccedil;&atilde;o
+em que se achou a monarchia ovetense-leonesa
+no seculo VIII, em vez de resultar della o
+colonato livre, que &aacute; primeira vista a raz&atilde;o nos
+pinta como mais provavel, e que de feito o era,
+se abstrahirmos das circumstancias sociaes para
+s&oacute; attendermos &aacute;s politicas.
+<br />
+
+<br />
+
+Mr. de Rozi&egrave;re, expondo o debate entre mim
+<span class="pagenum">[252]</span>
+e o sr. Mu&ntilde;oz, diz: &laquo;Esta
+transforma&ccedil;&atilde;o (a da
+servid&atilde;o para a adscrip&ccedil;&atilde;o) tinha-se
+realisado de
+todo quando os christ&atilde;os se refugiaram nas Asturias
+sob o mando de Pelaio? N&atilde;o o cr&ecirc; o sr.
+Mu&ntilde;oz, e combate, neste ponto, a opini&atilde;o dos
+historiadores de maior credito. Os exemplos, em
+que esteia o seu pensar, d&atilde;o a este um alto gr&aacute;u
+de verosimilhan&ccedil;a. Nelles se v&ecirc;em escravos
+destinados
+ao servi&ccedil;o domestico; uns s&atilde;o cozinheiros,
+padeiros, sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se
+no commercio e servem nas lojas de
+venda. Nada ha fixo nas suas func&ccedil;&otilde;es, que
+dependem
+do capricho do dono. A sorte dos escravos
+agricolas n&atilde;o &eacute; mais segura: uns trocam-nos
+por cavalgaduras; outros entregam-nos aos
+mussulmanos em resgate de captivos: todos podem
+ser separados da propria familia e do campo
+que cultivaram&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+N'esta exposi&ccedil;&atilde;o ha uma
+inexac&ccedil;&atilde;o chronologica:
+a doutrina que eu estabeleci n&atilde;o &eacute; que a
+adscrip&ccedil;&atilde;o se tinha j&aacute; substituido
+&aacute; servid&atilde;o
+quando occorreu o alevantamento de Pelaio: &eacute;
+que este alevantamento e a funda&ccedil;&atilde;o do reino de
+Oviedo trouxeram de necessidade essa
+transforma&ccedil;&atilde;o.
+Sejam quaes forem a differen&ccedil;a ou a semelhan&ccedil;a
+entre o meu modo de pensar e o sentir
+<span class="pagenum">[253]</span>
+do sr. Mu&ntilde;oz sobre a servid&atilde;o gothica,
+n&atilde;o &eacute;
+ahi que est&aacute; a profunda divergencia entre n&oacute;s.
+A divergencia completa refere-se aos tempos
+posteriores &aacute; invas&atilde;o dos arabes. &Eacute;,
+at&eacute;, o que
+se deduz do titulo do opusculo do sr. Mu&ntilde;oz: &eacute;
+a essa &eacute;pocha que verdadeiramente se refere o
+trabalho publicado na <em>Revista de
+Ambos-Mundos</em>.
+Eis as suas palavras: &laquo;Um escriptor... do vizinho
+reino de Portugal estabelece a doutrina de
+que a servid&atilde;o se distinguia, <em>na
+&eacute;pocha de que
+tractamos</em>, em estar vinculada ao solo, n&atilde;o
+admittindo
+outra classe de servos sen&atilde;o a dos adscriptos
+&aacute; gleba. A seu v&ecirc;r n&atilde;o existia nenhuma
+outra servid&atilde;o pessoal sen&atilde;o a dos arabes
+captivos
+na guerra, o que cremos n&atilde;o ser conforme
+com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte,
+isto &eacute;, que o servi&ccedil;o domestico dos senhores e
+nobres parece ter sido desempenhado, sob o dominio
+leon&ecirc;s, por membros das familias adscriptas,
+e que este servi&ccedil;o se converteu n'um acto
+espontaneo no seculo XIII. Se os homens e familias
+podiam contra sua vontade ser separados da
+gleba, onde se achavam estabelecidos, para o
+servi&ccedil;o domestico, n&atilde;o podiam chamar-se
+adscriptos,
+porque este nome traz comsigo a id&eacute;a de
+inamovibilidade do colono do torr&atilde;o que cultiva.
+<span class="pagenum">[254]</span>
+Al&eacute;m d'isso, a sua opini&atilde;o n&atilde;o
+concorda com os
+monumentos da nossa historia.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+N'outra parte do opusculo do sr. Mu&ntilde;oz leem-se
+as seguintes passagens, em que elle estabelece
+positivamente a sua theoria relativa &aacute; servid&atilde;o
+dos tempos neo-gothicos. &laquo;A condi&ccedil;&atilde;o
+dos servos
+era indubitavelmente a de cousas. Podiam
+ser vendidos ou dados como um animal domestico,
+como uma alfaia... Esta opini&atilde;o, que sustent&aacute;mos
+n'uma obra publicada ha annos, foi impugnada
+pelo sr. Herculano n'uma extensa nota
+sobre o caracter da servid&atilde;o na monarchia
+n&eacute;o-gothica...
+Na monarchia n&eacute;o-gothica continuaram
+os servos a ser o mesmo que na dos godos...
+E se em Asturias e em Le&atilde;o se encontram
+vestigios de servid&atilde;o diversa da dos adscriptos,
+poder&atilde;o julg&aacute;-lo os que examinarem os documentos
+que j&aacute; public&aacute;mos e os que damos agora
+&aacute; luz.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Effectivamente aos documentos impressos na
+<em>Colleccion de Fueros Municipales</em>, o
+sr. Mu&ntilde;oz
+ajuncta muitos outros tendentes, segundo cr&ecirc;, a
+corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar
+na aprecia&ccedil;&atilde;o delles, me seja permittido fazer
+breves reflex&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+O sr. Mu&ntilde;oz, limitando o debate aos textos
+<span class="pagenum">[255]</span>
+dos documentos posp&ocirc;s os factos sociaes e politicos
+de que deduzi, dig&acirc;mos assim <em>&agrave;
+prior&igrave;</em>, a
+necessidade de uma profunda altera&ccedil;&atilde;o das classes
+servis nas origens da sociedade n&eacute;o-gothica.
+Os factos podem n&atilde;o ser como eu os exp&uacute;s, ou as
+consequencias que delles tirei ser inexactas, ou
+finalmente essas consequencias n&atilde;o ter tido for&ccedil;a
+bastante para mudar a situa&ccedil;&atilde;o d'aquellas
+classes: podem peccar de muitos modos as largas
+observa&ccedil;&otilde;es que fiz a este proposito no terceiro
+volume da Historia de Portugal, e que tentei
+resumir em poucos periodos deste modesto
+trabalho. Mas seria licito deixar ou esquecidas
+ou inconcussas essas pondera&ccedil;&otilde;es? O methodo
+que segui foi estudar os acontecimentos, examinar
+qual devia ser a sua influencia na condi&ccedil;&atilde;o
+dos servos, e verificar se os documentos confirmavam
+<em>&agrave; posteriori</em> as
+illa&ccedil;&otilde;es deduzidas dos
+mesmos acontecimentos. Bem sei que, prevenido
+por essas illa&ccedil;&otilde;es, era possivel, era
+at&eacute; facil,
+se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos;
+n&atilde;o poderia, por&eacute;m, o sr. Mu&ntilde;oz,
+interpretando-os
+sem attender aos factos geraes, &aacute;s
+consequencias naturaes dos successos historicos,
+&aacute;s leis moraes que regem as phases das sociedades,
+dar-lhes uma significa&ccedil;&atilde;o diversa da verdadeira?
+<span class="pagenum">[256]</span>
+Foi, se n&atilde;o me engano, o que de feito lhe
+succedeu.
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; essa justamente uma das difficuldades capitaes
+dos trabalhos historicos relativos &aacute; idade
+media. O historiador tem de attender constantemente
+&aacute; ac&ccedil;&atilde;o e &aacute;
+reac&ccedil;&atilde;o mutuas dos factos politicos
+e dos factos sociaes uns sobre os outros
+para d'ahi deduzir factos desconhecidos; tem de
+substituir por illa&ccedil;&otilde;es fundadas nas leis que
+actuam nas sociedades humanas, independentes
+da vontade dellas, o silencio tantas vezes inopportuno
+dos monumentos. Quando estes existem
+e s&atilde;o genuinos, claros e precisos, sem duvida
+constituem o guia mais seguro para determinar
+os factos, e se as illa&ccedil;&otilde;es que
+tir&aacute;mos os
+contradizem, &eacute; necessario confessar que os principios
+eram inapplicaveis &aacute; hypothese, ou que
+se applicaram mal. Mas, abstrahindo da quest&atilde;o
+de genuinidade, s&atilde;o a clareza e a precis&atilde;o
+qualidades vulgares nos documentos dessas &eacute;pochas
+tenebrosas? O sr. Mu&ntilde;oz sabe t&atilde;o bem como
+eu qu&atilde;o raros s&atilde;o os que achamos com taes
+condi&ccedil;&otilde;es; quantos annos, quantas vigilias
+&eacute; necessario
+applicar ao estudo dessas fontes historicas
+para nos habituarmos a comprehend&ecirc;-las.
+&Aacute; difficuldade, que resulta das referencias a cousas
+<span class="pagenum">[257]</span>
+vulgares no tempo em que o documento se
+redigiu, e que actualmente s&atilde;o desconhecidas
+ou conhecidas imperfeitamente, ajuncta-se a lingua
+barbara, &aacute;s vezes horrivelmente barbara,
+que nelles se empregava, mistura monstruosa de
+latim de todas as epochas com uma linguagem
+vulgar que hoje se pode reputar morta, t&atilde;o
+transformada se acha nas linguas modernas da
+Peninsula: accresce a isto a differen&ccedil;a profunda
+entre os homens daquelle tempo e os do
+nosso, no modo de conceber e exprimir as id&eacute;as;
+ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel, para
+vermos as cousas da idade media atrav&eacute;s do
+prisma dos habitos, das opini&otilde;es, dos costumes,
+e direi, at&eacute;, das preoccupa&ccedil;&otilde;es
+actuaes. Subjugar
+esta tendencia &eacute; difficil; porque presuppoem um
+esfor&ccedil;o de abstrac&ccedil;&atilde;o, de que
+n&atilde;o s&atilde;o capazes &aacute;s
+vezes os mais robustos espiritos.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta
+ainda a vencer o que resulta da compara&ccedil;&atilde;o dos
+proprios documentos, especialmente quando nelles
+estudamos as institui&ccedil;&otilde;es, a
+organisa&ccedil;&atilde;o da
+sociedade. &Eacute; ahi que o talento historico tem de
+passar por mais dura prova, e onde o discernimento
+nas aprecia&ccedil;&otilde;es precisa de ser mais subtil.
+A idade media n&atilde;o procedia sempre como
+<span class="pagenum">[258]</span>
+n&oacute;s das id&eacute;as geraes para a
+applica&ccedil;&atilde;o especial,
+ou antes possuia poucas id&eacute;as geraes. Os costumes,
+as institui&ccedil;&otilde;es, os usos, os factos tinham
+principalmente o caracter individual, local. Essas
+poucas id&eacute;as geraes que havia eram pela maior
+parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias
+nas doutrinas, a contradic&ccedil;&atilde;o frequente
+nos factos. Na verdade o senso moral, a tendencia
+instinctiva para a generalisa&ccedil;&atilde;o produziam a
+maior parte das vezes em contraposi&ccedil;&atilde;o ao
+desordenado,
+ao repugnante, as analogias ou a identidade
+de factos, quando se davam as analogias ou
+a identidade de circumstancias; mas o phenomeno
+era mais casual do que intencional, e
+nem por isso faltavam as excep&ccedil;&otilde;es, a
+desharmonia,
+quando as paix&otilde;es, os interesses ou a inexperiencia
+vinham augmentar a confus&atilde;o natural
+dos tempos barbaros. Saber deduzir os
+caracteres geraes de uma &eacute;pocha, debaixo dos
+seus diversos aspectos, n&atilde;o dos principios que
+guiavam os homens na vida practica, porque a
+maior parte das vezes n&atilde;o os havia, mas dos
+factos isolados, dos monumentos especiaes; differen&ccedil;ar
+a regra da excep&ccedil;&atilde;o, regra e
+excep&ccedil;&atilde;o,
+que n&atilde;o raro existem s&oacute; por uma
+abstrac&ccedil;&atilde;o
+para n&oacute;s, e que n&atilde;o existiam para elles, eis a
+<span class="pagenum">[259]</span>
+summa difficuldade no estudo dos documentos,
+da legisla&ccedil;&atilde;o, e das memorias historicas da idade
+m&eacute;dia, mas difficuldade que cumpre superar
+para se escrever de modo util a historia daquellas
+obscuras &eacute;ras.
+<br />
+
+<br />
+
+Longe de mim a pretens&atilde;o vaidosa de ter navegado
+sem naufragios nesse mar d'escolhos;
+mas seja-me ainda permittido duvidar de que
+tal infortunio me occorresse na quest&atilde;o do estado
+dos servos do VIII at&eacute; o XII seculo; seja-me
+licito por emquanto suspeitar que fiz fazer
+um progresso &aacute; historia da Peninsula, collocando
+&aacute; sua verdadeira luz a situa&ccedil;&atilde;o dessa
+classe
+durante aquelle periodo.
+<br />
+
+<br />
+
+Como j&aacute; disse, o sr. Mu&ntilde;oz, abstrahindo das
+considera&ccedil;&otilde;es <em>&agrave;
+priori</em> que fiz a semelhante respeito,
+limita-se a combater a minha opini&atilde;o e
+a propugnar a sua com os factos que elle cr&ecirc;
+resultarem de um grande numero de documentos
+que invoca: limitar-me-hei tambem por isso
+a apreciar esses documentos e a examinar o que
+elles provam, recorrendo s&oacute;mente a outros quando
+o julgar indispensavel para estribar melhor
+as minhas affirmativas.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c8"></a>III
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Estabelecendo a doutrina de que o servo contin&uacute;a
+a ser na monarchia de Oviedo e Le&atilde;o o
+que era entre os godos, o sr. Mu&ntilde;oz funda-a
+n'uma serie de factos, que em seu entender
+resultam dos documentos e caracterisam a condi&ccedil;&atilde;o
+do escravo, a posse e dominio absolutos
+do homem sobre o homem, a servid&atilde;o na sua
+f&oacute;rma mais completa e humilhante, a do homem-cousa,
+a do homem animal de trabalho. Estes
+factos consistem na venda, doa&ccedil;&atilde;o e troca dos
+individuos sem dependencia de um contracto
+&aacute;c&ecirc;rca do solo em que elles habitam; em serem
+arrebatados nas guerras privadas os colonos de
+herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas,
+reduzidos &aacute; escravid&atilde;o dos raptores e vendidos
+por estes como escravos; na entrega dos
+servos christ&atilde;os aos sarracenos como pre&ccedil;o de
+resgate de nobres captivos (pag. 5 a 7)<sup><a href="#f73">[73]</a></sup>;
+em
+<span class="pagenum">[261]</span>
+exercerem os servos os diversos misteres do
+servi&ccedil;o domestico e os officios mechanicos, sendo
+parte de taes misteres incompativeis com o cultivo
+do solo; em viverem alguns nos coutos de igrejas
+e mosteiros obrigados a servi&ccedil;os geraes, isto
+&eacute;, a quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12
+a 13). Excluidos da representa&ccedil;&atilde;o em juizo
+pela lei (wisigothica), que n&atilde;o admittia o seu testemunho
+sen&atilde;o &aacute; falta de outras provas, n&atilde;o
+tinham
+ac&ccedil;&atilde;o para perseguir um delicto contra a
+propria pessoa ou contra os filhos; ao dono
+competia sollicitar a indemnisa&ccedil;&atilde;o do damno
+padecido
+pelo servo como de cousa sua. No caso
+de homicidio, era elle quem tambem obtinha a
+compensa&ccedil;&atilde;o pecuniaria; e do mesmo modo se
+o servo matava, feria, ou atacava propriedade
+alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e
+seg.). Os filhos de um servo e de uma serva de
+diversos donos eram pessoalmente divididos entre
+elles (pag. 24 e 25).
+<br />
+
+<br />
+
+Taes s&atilde;o os factos sociaes que o sr. Mu&ntilde;oz
+apresenta como contrariando a minha opini&atilde;o:
+esses factos estriba-os nos documentos cujas
+<span class="pagenum">[262]</span>
+passagens correlativas transcreve, referindo-se
+outras vezes aos monumentos por elle j&aacute; publicados
+na <em>Colleccion de Fueros</em>, ou a alguns
+que
+se encontram em outros escriptos, principalmente
+nos appendices da <em>Espa&ntilde;a
+Sagrada</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Se o meu animo n&atilde;o fosse sincero; se eu n&atilde;o
+quizesse trazer &aacute; evidencia o erro em que me
+parece laborar o sr. Mu&ntilde;oz, limitando-me ao
+que menos importa, &aacute; defesa do meu livro, facil
+me seria annullar as illa&ccedil;&otilde;es tiradas dos
+documentos
+invocados contra mim, visto que o sr.
+Mu&ntilde;oz n&atilde;o nos mostra, nem talvez lhe
+ser&iacute;a possivel
+mostrar, que elles se referem a servos de
+ra&ccedil;a e n&atilde;o a prisioneiros de guerra, a sarracenos
+captivos nas continuas luctas entre os reis de
+Oviedo e Le&atilde;o e os principes mussulmanos, ou
+aos filhos e descendentes desses captivos<sup><a href="#f74">[74]</a></sup>.
+Um
+ponto em que estamos ambos de ac&ocirc;rdo &eacute; que
+a sorte destes era a de verdadeiros escravos. Das
+chronicas de Sebasti&atilde;o de Salamanca, de Sampiro,
+do Silense e de outros vemos que o systema
+<span class="pagenum">[263]</span>
+de exterminio adoptado a principio pelos
+immediatos successores de Pelaio n&atilde;o tardou em
+ser modificado, e que milhares de captivos vinham
+successivamente ca&iacute;r nos ferros da escravid&atilde;o,
+ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os
+pelos seus guerreiros. Uma parte
+dos edificios religiosos alevantados por Fernando-magno
+foram construidos por esses desgra&ccedil;ados,
+salvos da morte por uma politica menos
+deshumana que a dos barbaros reis das Asturias.
+<br />
+
+<br />
+
+Com um monumento, por&eacute;m, t&atilde;o incontroverso
+como explicito, eu provei<sup><a href="#f75">[75]</a></sup>
+que ainda no
+meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes,
+aprisionados com as armas na m&atilde;o pelos soldados
+dos principes christ&atilde;os, era analoga &aacute; dos
+crentes do islam, sendo como elles reduzidos &aacute;
+escravid&atilde;o. N&atilde;o &eacute; crivel que a sua
+sorte fosse
+melhor nos seculos anteriores. Ainda suppondo
+que os documentos citados pelo sr. Mu&ntilde;oz se
+devessem entender em geral como elle pretende
+que se entendam, ninguem poderia affirmar que
+os nomes gothicos a que ahi se allude n&atilde;o fossem
+sempre e em todos elles de captivos mosarabes
+ou de filhos seus e n&atilde;o de mouros convertidos
+<span class="pagenum">[264]</span>
+ou n&atilde;o convertidos. Tambem me parece
+que poderia limitar-me a advertir que, fundando-se
+a minha opini&atilde;o em muitos documentos,
+que o sr. Mu&ntilde;oz n&atilde;o se encarrega de interpretar
+de um modo acorde com a sua doutrina, e tendo,
+al&ecirc;m disso, a meu favor as illa&ccedil;&otilde;es que
+tirei
+dos successos politicos, poderia considerar
+todos esses diplomas a que elle recorre apenas
+como manifesta&ccedil;&otilde;es das violencias, das
+excep&ccedil;&otilde;es;
+como mais uma prova da falta de caracteres
+constantes, de regras geraes absolutas
+nos factos sociaes de uma &eacute;pocha de barbaria e
+de transforma&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas estas solu&ccedil;&otilde;es, que talvez bastassem ao
+debate, n&atilde;o bastariam &aacute; minha consciencia:
+poderiam
+abonar uma opini&atilde;o, ali&aacute;s estribada em
+outros fundamentos, mas deixariam certa duvida
+no espirito dos que estudassem o assumpto.
+Des&ccedil;amos, por isso, &aacute; analyse dos factos e
+documentos a que o sr. Mu&ntilde;oz recorre para assentar
+a existencia da escravid&atilde;o pessoal como
+regra nos quatro primeiros seculos da monarchia
+leonesa.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c9"></a>IV
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+A venda, troca e doa&ccedil;&atilde;o dos individuos da
+classe servil sem dependencia de um contracto
+relativo ao solo em que habitam &eacute; o primeiro
+facto que affirma o sr. Mu&ntilde;oz, e que estriba nos
+seguintes documentos:
+<br />
+
+<br />
+
+1.&ordm; Carta de doa&ccedil;&atilde;o &aacute;
+s&eacute;
+de Oviedo por Affonso
+II em 812. Incluem-se entre as dadivas <em>mancipia,
+id est, clericos sacricantores</em>, dos quaes
+um &eacute; presbytero, outro diacono, e os mais simples
+<em>clericos</em>, talvez ostiarios,
+psalmistas, exorcistas,
+etc. Alguns, declara-se terem sido comprados
+pelo rei. Os outros <em>mancipia</em>
+s&atilde;o seculares, declarando-se
+tambem que alguns foram havidos
+por compra. Os nomes tanto de uns como de outros
+s&atilde;o godos.
+<br />
+
+<br />
+
+2.&ordm; Carta de dote de 887. O noivo doa &aacute; esposa,
+al&eacute;m de alfaias, bens semoventes e dinheiro,
+dez <em>pueros</em> e dez
+<em>puellas</em>, 30 villas (aldeias granjas)
+as quaes diz serem situadas <em>in
+Nemitos</em>, e
+enumera-as <em>Generoso</em>,
+<em>Vivente</em> etc.
+<br />
+
+<br />
+
+3.&ordm; Doa&ccedil;&atilde;o de marido a mulher, de 1029.
+Doa,
+<span class="pagenum">[266]</span>
+entre outras cousas, <em>mancipios et mancipiellas
+quos fuerunt ex gente hismaelitarum et agareni</em>,
+os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros
+nomes arabes. Al&eacute;m destes, doa-lhe <em>de
+avolengarum
+criazone parentum</em> varios individuos
+cujos nomes parece serem todos godos.
+<br />
+
+<br />
+
+4.&ordm; Carta de agni&ccedil;&atilde;o de 962 em resultado
+de
+uma demanda entre o mosteiro de Cella-nova e
+o conde Ordonho Romaniz. Versava a quest&atilde;o
+sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde
+tirar <em>homines et hereditates de jure monasterii
+volens eos ad servitutem abdigare</em>. Apresentaram
+os monges os seus titulos perante elrei, e quando
+iam a provar, diz o sr. Mu&ntilde;oz, que o rei Ramiro
+dera os homens que o conde usurpava, e o
+bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o
+conde supplicou aos magnates que obtivessem
+dos monges darem-lhe as duas villas em prestamo
+vitalicio, <em>absque homines in
+adtonitum</em>, no
+que os monges convieram.
+<br />
+
+<br />
+
+5.&ordm; Carta de agni&ccedil;&atilde;o de 1074, em
+resultado
+da demanda entre o mosteiro de Cella-nova e a
+condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro
+tirado do testamento (predio ecclesiastico)
+de Vanate dez homens, os quaes dera ao mosteiro
+de Porc&aacute;ria. Replicava o abbade de Cella-nova
+<span class="pagenum">[267]</span>
+que <em>de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum
+fuit istum tale verbum</em>. Julgou-se a favor
+do abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+6.&ordm; Doa&ccedil;&atilde;o de 1094 feita &aacute;
+s&eacute; de Lugo por
+Suario Moniz de varias <em>villas cum sua criacione
+et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz et
+suos filios</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+7.&ordm; Carta de arrhas de 1108 em que o noivo
+doa varios bens de raiz, e al&ecirc;m disso, um cavallo
+baio e <em>uno homine de creacione</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+8.&ordm; Doa&ccedil;&atilde;o do mosteiro de Sobrado em
+1118
+feita pela rainha D. Urraca a Fernando Peres e a
+seu irm&atilde;o com todos os termos e coutos antigos
+e suas perten&ccedil;as, <em>et cum sua criacione,
+servos et
+ancillas, exceptis quibusdam</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+9.&ordm; Memoria da divis&atilde;o de Rovoredo, sem data,
+caract&eacute;res do seculo XIII. Na opini&atilde;o do sr.
+Mu&ntilde;oz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo
+Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome
+godo) que fora visav&ocirc; de Diogo Erit. Este foi
+a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira
+de Ardio Dias, uma de duas irmans, que,
+herdando Rovoredo, haviam dividido entre si o
+predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz (provavelmente
+herdeiro ou representante de Vermudo
+Cresconiz) e levou-o comsigo. Seguiu-se uma
+<span class="pagenum">[268]</span>
+manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que
+terminou por uma composi&ccedil;&atilde;o, em virtude da
+qual ficou Diogo Erit em Rovoredo e foi dada em
+tr&ocirc;co delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias.
+<br />
+
+<br />
+
+Taes s&atilde;o os documentos de doa&ccedil;&atilde;o,
+vendas e
+escambos, exclusivamente de individuos, que o
+sr. Mu&ntilde;oz cita em prova da inexac&ccedil;&atilde;o
+da minha
+doutrina.
+<br />
+
+<br />
+
+No 1.&ordm; documento pe&ccedil;o que se note que as pessoas
+doadas s&atilde;o denominadas
+<em>mancipia</em>, e n&atilde;o
+<em>servos</em>, e que entre elles um
+&eacute; presbytero, outro
+diacono, e outros simples clerigos; que os seculares
+s&atilde;o tambem denominados
+<em>mancipia</em>, e que
+todos elles tem nomes godos. Pergunto: tolerava
+a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula
+naquella epocha, que homens servos, e que continuavam
+a ser servos, doados ou vendidos depois
+a bel-prazer de seus donos, fossem elevados
+n&atilde;o &aacute;s menos importantes
+func&ccedil;&otilde;es do culto, mas
+&aacute; ordem do presbyterado e ainda do diaconado?
+N&atilde;o era impossivel acumular as
+condi&ccedil;&otilde;es da
+servid&atilde;o e do sacerdocio? Basta abrir o resumo
+dos canones da igreja d'Hespanha publicados
+por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos
+da impossibilidade desta associa&ccedil;&atilde;o monstruosa.
+Todavia o facto da venda de um presbytero, de
+<span class="pagenum">[269]</span>
+um diacono e de outros clerigos deu-se no principio
+do seculo IX, como o prova este documento.
+N&atilde;o haver&aacute;, por&ecirc;m, atraz desse facto
+outro
+ou outros que o expliquem?
+<br />
+
+<br />
+
+A designa&ccedil;&atilde;o de
+<em>mancipium</em>, applicada a individuos
+dos mais elevados gr&aacute;us do sacerdocio, o
+presbyterado e o diaconado, &eacute; n&atilde;o menos singular.
+Notei mais de uma vez no meu livro<sup><a href="#f76">[76]</a></sup>
+que a
+palavra <em>mancipium</em>, entre os godos,
+sem deixar
+de se tomar &aacute;s vezes na significa&ccedil;&atilde;o
+lata de servo,
+significava de ordinario o servo infimo, o
+<em>escravo</em>,
+o individuo reduzido &aacute; ultima
+degrada&ccedil;&atilde;o; significava
+antes uma
+<em>situa&ccedil;&atilde;o</em> de
+aviltamento do que
+uma <em>condi&ccedil;&atilde;o</em>
+originaria. S&atilde;o notaveis a este proposito
+dous logares do codigo wisigothico, a lei
+que tracta dos <em>escravos dos servos
+fiscaes</em>, e a que
+tracta dos <em>mancipia</em> dos judeus, quer
+<em>ingenuos</em>,
+quer servos. Antes de mim j&aacute; Masdeu tinha feito
+com pouca differen&ccedil;a a mesma
+observa&ccedil;&atilde;o. Entre
+os romanos <em>mancipium</em> era synonimo de
+<em>servus</em>,
+mas a origem dos vocabulos era diversa:
+<em>servus</em> de
+<em>servire</em>;
+<em>mancipium</em> de <em>manu
+captum</em>,
+do homem aprehendido, do prisioneiro reduzido &aacute;
+&aacute; escravid&atilde;o. Evidentemente a
+designa&ccedil;&atilde;o de
+<span class="pagenum">[270]</span>
+<em>mancipium</em> serviu a principio para
+indicar o captivo,
+o individuo a quem se deu a vida, que se
+lhe podia tirar, para o collocar na situa&ccedil;&atilde;o de
+um
+animal de carga, de uma alfaia; representou um
+facto accidental, personalissimo, differente da
+servid&atilde;o herdada, da servid&atilde;o de ra&ccedil;a,
+ou para
+exprimirmos com dous vocabulos modernos duas
+id&eacute;as semelhantes, mas diversas, o
+<em>mancipium</em>
+era servo, mas <em>escravo</em>. Na Russia ha
+<em>servos</em>; na
+America ha <em>escravos</em>. Note-se,
+por&ecirc;m, que com
+este exemplo n&atilde;o quero estabelecer analogia completa
+entre a distinc&ccedil;&atilde;o primitiva e a
+distinc&ccedil;&atilde;o
+actual.
+<br />
+
+<br />
+
+Baste, por&eacute;m, que
+<em>mancipium</em> servisse entre
+os godos para exprimir especialmente a mais vil
+servid&atilde;o, a escravid&atilde;o. N&atilde;o teria a
+palavra na
+monarchia neo-gothica este mesmo valor especial,
+embora &aacute;s vezes pela fluctua&ccedil;&atilde;o da
+linguagem
+(fluctua&ccedil;&atilde;o que existe sempre, mas que
+&eacute; grandissima
+nas epochas barbaras) se tomasse como
+synonimo de servo, por isso que, n'um grande
+numero de rela&ccedil;&otilde;es, a sorte de um e a sorte de
+outro eram identicas? No 3.&ordm; documento que cita
+o sr. Mu&ntilde;oz, os individuos doados s&atilde;o denominados
+<em>mancipios</em> e
+<em>mancipiellas</em>, e exprime-se que
+s&atilde;o da gente ismaelita e agarena; que s&atilde;o
+captivos.
+<span class="pagenum">[271]</span>
+N'uma carta de doa&ccedil;&atilde;o &aacute; s&eacute;
+de Lugo<sup><a href="#f77">[77]</a></sup>
+de 897
+Affonso III doa-lhe, al&eacute;m de outras cousas,
+<em>mancipia,
+quae ex hismaelitarum terra captiva duximus</em>.
+No meio de uma lucta odienta e atroz,
+como foi durante o seculo VIII e ainda durante o
+IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, &eacute;
+natural, &eacute; crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros
+de guerra que n&atilde;o eram passados &aacute; espada
+fosse inteiramente a mesma dos servos de ra&ccedil;a,
+classe a que, al&eacute;m de outros, um documento
+de 985 chama <em>servos originales</em><sup><a href="#f78">[78]</a></sup>,
+por infima que
+se reputasse a condi&ccedil;&atilde;o destes? E n&atilde;o
+haveria
+um meio de expressar por palavra ou por escripto
+a differen&ccedil;a das duas situa&ccedil;&otilde;es,
+quando fosse
+necessario faz&ecirc;-la sentir?
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; indubitavel, &aacute; vista das chronicas coevas e
+dos documentos, que os reis de Oviedo e Le&atilde;o e
+os seus capit&atilde;es, alargando os limites da monarchia
+ou reduzindo o poder mussulmano por victorias
+repetidas, por saltos e correrias inesperadas,
+por devasta&ccedil;&otilde;es e incendios, conduziam
+annualmente
+para o interior das provincias ovetense-leonesas
+milhares e milhares de captivos. Devemos
+<span class="pagenum">[272]</span>
+acaso supp&ocirc;r que nenhum desses contractos
+sobre individuos pessoalmente escravos,
+em que se calla a procedencia dos mesmos individuos,
+se refira a prisioneiros de guerra, e
+que entre estes n&atilde;o houvesse muitos mosarabes?
+A pretens&atilde;o parece-me que ser&iacute;a insustentavel.
+Embora eu n&atilde;o queira, nem seja preciso
+explicar por esse facto muitos dos documentos
+citados pelo sr. Mu&ntilde;oz, ha outros em
+que semelhante explica&ccedil;&atilde;o &eacute; a mais
+simples e natural,
+e a este numero pertence indubitavelmente
+a doa&ccedil;&atilde;o de 812.
+<br />
+
+<br />
+
+Civilmente, socialmente, os mosarabes eram
+sarracenos. Do modo como essa grande maioria
+da popula&ccedil;&atilde;o romano-gothica buscava em geral
+assimilar-se aos conquistadores temos sobejas
+provas nos escriptos contemporaneos de Alvaro
+de Cordova, d'Eulogio, do biographo de Jo&atilde;o de
+Gorze, nas actas dos martyres Voto e Felix e em
+outros monumentos. Os mosarabes serviam nos
+exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam
+contra os seus correligionarios. Entre os
+altos officiaes da coroa na corte de Cordova figuram
+condes godos, e apparecem-nos a cada passo
+magistrados, funccionarios, prelados, sacerdotes
+godo-romanos nas provincias do vasto imperio
+<span class="pagenum">[273]</span>
+dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as
+quest&otilde;es religiosas, e adoptando a tolerancia dos
+dominadores arabes, seriam verdadeiramente addictos
+&aacute; situa&ccedil;&atilde;o politica em que se achavam,
+elles que abra&ccedil;avam n&atilde;o raro os nomes proprios,
+os costumes, as usan&ccedil;as, a civilisa&ccedil;&atilde;o
+e a lingua
+dos mussulmanos, a ponto de esquecerem completamente
+o idioma neo-latino, segundo o testemunho
+de Alvaro de Cordova; elles que admittiam,
+at&eacute;, a circumcis&atilde;o, se acreditarmos o
+<em>Indiculum</em>
+e a biographia de Jo&atilde;o de Gorze? N&atilde;o
+achamos n&oacute;s ainda no seculo XI os bispos mosarabes,
+esquecidos das func&ccedil;&otilde;es episcopaes, e dedicados
+inteiramente &aacute; vida politica, empregarem-se
+no servi&ccedil;o profano dos respectivos soberanos
+sarracenos?<sup><a href="#f79">[79]</a></sup>
+Se nos proprios estados dos
+reis de Le&atilde;o a mistura dos usos mussulmanos
+<span class="pagenum">[274]</span>
+com os christ&atilde;os dava &aacute;s vezes, nas
+exterioridades
+do culto, occasi&atilde;o a factos que seriam comicos,
+se n&atilde;o fossem irreverentes<sup><a href="#f80">[80]</a></sup>,
+o que seria
+essa mistura entre mosarabes e ismaelitas nos estados
+mahometanos?
+<br />
+
+<br />
+
+Imaginar, portanto, que entre os milhares de
+captivos que annualmente eram arrastados da
+Spania para os sert&otilde;es das Asturias e de Le&atilde;o
+n&atilde;o vinha um grande numero, digamos assim,
+de <em>sarracenos christ&atilde;os</em>;
+que entre uns e outros
+captivos se fazia distinc&ccedil;&atilde;o, se poderia sequer
+fazer;
+que os violentos e brutaes bar&otilde;es e cavalleiros
+dos reis leoneses consentiriam em perder uma
+parte dos seus escravos, que exteriormente em
+nada se differen&ccedil;avam dos restantes, dos verdadeiros
+mussulmanos, ainda admittindo gratuitamente
+que os principes o desejassem, seria supp&ocirc;r uma
+cousa inacreditavel, embora n&atilde;o existisse o testemunho
+<span class="pagenum">[275]</span>
+do biographo de S. Theotonio, testemunho
+preciso de que a praxe era inteiramente
+contraria.
+<br />
+
+<br />
+
+Na adiantada civilisa&ccedil;&atilde;o de hoje n&atilde;o
+se comprehenderia
+o direito de vida ou de morte sobre
+os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravid&atilde;o
+para o vencido, ou que possa haver outros
+prisioneiros sen&atilde;o combatentes. Deste estado da
+civilisa&ccedil;&atilde;o derivam a
+distinc&ccedil;&atilde;o entre prisioneiro e
+prisioneiro, e os diversos gr&aacute;us de benevolencia
+e de atten&ccedil;&otilde;es para com os mais qualificados.
+Entre barbaros ou nas eras barbaras, o nosso
+proceder, as nossas id&eacute;as actuaes a este respeito
+seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade
+o senhor do captivo, sabendo que se apoderara
+de um homem opulento, importante entre os
+adversarios, podia por calculo de cubi&ccedil;a
+tract&aacute;-lo
+melhor, evitar-lhe os padecimentos e as injurias
+&aacute; espera de avultado resgate. Mas a regra, o
+principio, a id&eacute;a de ent&atilde;o consistia em ser o
+captivo,
+fosse quem fosse, como um ente novo, a
+<span class="pagenum">[276]</span>
+cujo nascimento, digamos assim, n&atilde;o se tinha
+opposto o gume da espada. O passado desse ente
+n&atilde;o importava para nada. Era um animal, uma
+propriedade do que o captivara e que licitamente
+poderia ter feito com que n&atilde;o existisse: era o
+<em>manu-captum</em>, a
+acquisi&ccedil;&atilde;o, o escravo; emfim, o
+<em>homem-cousa</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Tendo presentes todos estes factos, que o sr.
+Mu&ntilde;oz n&atilde;o ignora, mas que me era necessario
+recordar
+aqui, entende-se facilmente a doa&ccedil;&atilde;o de Affonso
+II &aacute; s&eacute; de Oviedo: entende-se como esses
+clerigos podiam ser em parte comprados, em
+parte libertados pelo rei, e unidos &aacute; s&eacute;
+ovetense.
+Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por
+occasi&atilde;o de alguma correria. Pelos canones da
+igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma especie
+de adscrip&ccedil;&atilde;o canonica &aacute; igreja a que
+pertenciam,
+e Affonso II, conforme o chronicon de Albaida,
+foi quem restabeleceu em Oviedo as jerarchias
+civis e ecclesiasticas dos godos<sup><a href="#f81">[81]</a></sup>.
+Resgatando
+aquelles individuos da escravid&atilde;o, e ligando-os
+indissoluvelmente &aacute; s&eacute; ovetense, respeitava as
+id&eacute;as do seu tempo e mantinha a antiga disciplina
+<span class="pagenum">[277]</span>
+ecclesiastica, embora o fizesse de modo um
+tanto rude. Se admittissemos, por&ecirc;m, a hypothese
+de que elles eram servos originarios semelhantes
+aos servos dos tempos gothicos, que como
+taes haviam recebido ordens sacras, que, depois
+de doados &aacute; s&eacute; de Oviedo, continuavam a ser o
+que eram, segundo a theoria do sr. Mu&ntilde;oz, isto &eacute;
+cousas e n&atilde;o pessoas, e que, portanto, podiam
+ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem
+os mais abjectos misteres, o diploma de 812
+ficaria n&atilde;o s&oacute; repugnando &aacute; historia,
+mas sendo,
+al&ecirc;m disso, um indecifravel mysterio.
+<br />
+
+<br />
+
+Este documento n&atilde;o me escapou quando redigia
+o VII livro da Historia de Portugal; mas tinha
+de attender a muitos outros, de condensar muitos
+factos sociaes em poucos periodos. N&atilde;o podia
+descer &aacute; analyse minuciosa delle. Estava t&atilde;o
+convencido
+da verdade da doutrina que estabeleci,
+que n&atilde;o o julguei sufficiente para a destruir. O
+leitor avaliar&aacute; se elle effectivamente a destroe.
+Supp&uacute;s que, quando muito, era uma das anomalias
+t&atilde;o frequentes nos factos sociaes dos tempos
+barbaros, a manifesta&ccedil;&atilde;o da anarchia que reinava
+ainda nas id&eacute;as e nos factos. A analyse parece-me
+provar que nem sequer isso era.
+<br />
+
+<br />
+
+O 2.&ordm; documento explica-se como o antecedente
+<span class="pagenum">[278]</span>
+pela existencia d'escravos captivos. &Eacute; notavel
+que nelle tambem se evite a palavra
+<em>servos</em>, mais
+generica, para se empregar a singular express&atilde;o
+<em>pueros</em> e
+<em>puellas</em>. Parece haver a necessidade
+de
+recorrer a um vocabulo especial para exprimir
+uma variedade da servid&atilde;o. Al&eacute;m disso, este
+documento
+parece igualmente entrar na categoria
+de varios outros que citei no meu livro para provar
+a adhes&atilde;o do servo originario &aacute; gleba, pelo
+modo por que indistinctamente se empregava o
+nome do individuo ou o da propriedade para designar
+esta. Doando trinta granjas, o doador declara
+que s&atilde;o situadas no districto de Nemitos, e
+que s&atilde;o <em>Generoso</em>,
+<em>Vivente</em> &amp;c. nomes proprios
+de individuos e n&atilde;o de predios.
+<br />
+
+<br />
+
+O 3.&ordm; documento creio servir antes para combater
+a opini&atilde;o de sr. Mu&ntilde;oz do que a minha. O
+doador distingue em dous grupos os servos doados:
+a 1.&ordf; dos <em>mancipios</em> e
+<em>mancipiellas que foram
+das gentes dos ismaelitas e agarenos</em>, e dos
+quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes
+arabes: a 2.&ordf; dos <em>homens de
+crea&ccedil;&atilde;o havidos
+de avoengas</em> (heran&ccedil;as de familia)
+<em>dos antepassados</em>
+(do doador) e cujos nomes s&atilde;o todos godos.
+Porque a divis&atilde;o em dous grupos, se a
+condi&ccedil;&atilde;o
+dos que pertencem a uma e a dos que pertencem
+<span class="pagenum">[279]</span>
+a outra &eacute; absolutamente identica? Porque uns
+s&atilde;o chamados <em>mancipios</em>,
+outros <em>homens de
+crea&ccedil;&atilde;o</em>,
+equivalente de servos de ra&ccedil;a? Porque entre
+os <em>mancipios</em> tem uns nomes godos e
+outros
+arabes, emquanto os de <em>criazione</em>
+s&atilde;o todos godos?
+Pe&ccedil;o ao sr. Mu&ntilde;oz que aproxime estes factos
+das pondera&ccedil;&otilde;es que acima fiz, e que decida
+depois se o documento prova contra a minha, se
+contra a sua doutrina.
+<br />
+
+<br />
+
+Refere-se no 4.&ordm; documento a historia de uma
+demanda entre o conde Ordonho Romaniz e o
+mosteiro de Cellanova &aacute;c&ecirc;rca de certas herdades
+do mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O
+que neste documento importa para a quest&atilde;o &eacute; o
+desfecho da contenda. Convencido de que n&atilde;o tinha
+raz&atilde;o, o conde prop&ocirc;s aos monges uma
+transac&ccedil;&atilde;o,
+que acceitaram, e que consistia em elle
+possuir as granjas emquanto vivo <em>absque homines
+in adtonitum</em>. Nestas ultimas palavras o sr.
+Mu&ntilde;oz
+v&ecirc; a separa&ccedil;&atilde;o dos homens da terra.
+Ser&aacute; essa
+a verdadeira interpreta&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+<em>Adtonitum</em> &eacute; evidentemente
+a traduc&ccedil;&atilde;o latino-barbara
+da palavra <em>atondo</em>.
+<em>Atondo</em> significava alfaia,
+<em>traste de uso</em>,
+<em>objecto de servi&ccedil;o</em>. As
+obriga&ccedil;&otilde;es
+do servo de gleba, como depois as dos colonos
+livres em seculos mais proximos de n&oacute;s, eram,
+<span class="pagenum">[280]</span>
+em rela&ccedil;&atilde;o ao senhor da gleba, e depois em
+rela&ccedil;&atilde;o
+ao senhorio directo do predio, de duas
+especies&#8213;presta&ccedil;&otilde;es
+agrarias e servi&ccedil;os pessoaes;
+estes abrangiam servi&ccedil;os de todo o genero, ainda
+os mais baixos; alguns, at&eacute;, que poderiam ser
+feitos por animaes domesticos. Nada mais facil,
+portanto, do que applicar a palavra
+<em>atondo</em> ao
+servi&ccedil;o pessoal dos servos, n'uma &eacute;pocha que de
+certo se n&atilde;o distinguia pela precis&atilde;o rigorosa da
+linguagem<sup><a href="#f82">[82]</a></sup>.
+Que ficava percebendo Ordonho por
+aquella concess&atilde;o dos frades? As
+presta&ccedil;&otilde;es agrarias.
+Os servi&ccedil;os pessoaes ficavam ao mosteiro.
+E os monges procediam assisadamente fazendo
+uma concess&atilde;o restricta ao homem poderoso. Pelos
+individuos que agricultavam as glebas, cujos
+redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao
+conde, ficando ali&aacute;s esses individuos ligados pelos
+servi&ccedil;os pessoaes ao mosteiro, era facil provar
+a todo o tempo a quem o solo pertencia, se, como
+eu creio, o servo se achava unido ao predio que
+agricultava e onde vivia.
+<span class="pagenum">[281]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o comprehendo como possa applicar-se &aacute;
+materia debatida o 5.&ordm; documento citado pelo sr.
+Mu&ntilde;oz. Para elle servir ao intento era necessario
+que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava.
+N&atilde;o o provou, porque a senten&ccedil;a deu-se
+a favor dos frades. Logo a separa&ccedil;&atilde;o dos dez
+homens
+pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o
+que pretendia o abbade de Cellanova. Supponhamos,
+por&eacute;m, que fosse verdade o que ella dizia.
+N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez
+glebas do testamento de Vanate n&atilde;o passaram
+com os dez homens para o dominio do mosteiro
+de Porc&aacute;ria? A contenda podia versar sobre os
+dez servos e os dez predios, embora se falasse
+unicamente de homens: esta confus&atilde;o da linguagem
+juridica nos documentos daquelles tempos
+&eacute; uma cousa que me parece ter demonstrado no
+meu livro at&eacute; a evidencia.
+<br />
+
+<br />
+
+No 6.&ordm; documento doam-se varias granjas <em>com
+sua criacione et homines pertinentes</em>, exceptuando
+um d'estes homens com seus filhos. N&atilde;o comprehendo
+<span class="pagenum">[282]</span>
+igualmente como se possa invocar contra
+mim um documento de que me poderia ter servido,
+cumulativamente com tantos outros, para
+estribar a minha theoria, se o houvera conhecido.
+A phrase latino-barbara acima citada exprime
+exactamente a situa&ccedil;&atilde;o dos servos: doam-se as
+glebas com a <em>sua</em>
+crea&ccedil;&atilde;o, com os homens <em>que
+lhes pertencem</em>. Supponhamos que a reserva que
+se faz de uma familia signifique o que o sr. Mu&ntilde;oz
+pretende. Ser&iacute;a um acto legitimo ou illegitimo;
+mas o que &eacute; certo, pelo menos, &eacute; que
+at&eacute; ahi essa
+familia pertencia &aacute;quellas glebas como os outros
+homens de crea&ccedil;&atilde;o. Isoladamente este documento
+n&atilde;o seria bastante para provar o facto geral da
+adscrip&ccedil;&atilde;o, embora prove que havia adscriptos;
+mas o que elle de certo n&atilde;o prova &eacute; que a
+situa&ccedil;&atilde;o
+dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma
+dos tempos gothicos.
+<br />
+
+<br />
+
+A adhes&atilde;o &aacute; gleba era um facto de indole
+complexa.
+Por um lado era um progresso immenso
+das classes laboriosas no caminho da liberdade;
+por outro uma garantia para os donos do solo;
+porque, circumscrevendo, coarctando a ac&ccedil;&atilde;o do
+senhor sobre o servo, a tornava por isso mais legitima
+e por consequencia mais solida. Nas rela&ccedil;&otilde;es
+entre ambos havia vantagens mutuas, de que espontaneamente
+<span class="pagenum">[283]</span>
+se podia ceder de parte a parte para
+as trocar por outras vantagens maiores. A
+adscrip&ccedil;&atilde;o
+n&atilde;o era uma lei escripta, como na Russia
+moderna; pelo menos nenhuns vestigios restam
+de que o fosse: era um facto social, um costume,
+uma praxe, que resultava da natureza das cousas,
+de factos politicos anteriores. &Eacute; possivel apparecerem
+exemplos de separa&ccedil;&atilde;o entre o servo e a
+gleba por um acto violento do senhor. De que
+actos violentos deixa de nos subministrar exemplos
+a idade media? Mas o senhor tambem podia
+quebrar os la&ccedil;os que prendiam o servo ao predio
+com vantagem e assenso delle, como por exemplo
+para o unir a uma gleba mais productiva ou
+mais vasta, sem que por isso se reputasse offendida
+a praxe, a especie de lei mental que a for&ccedil;a
+das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir
+d'ahi a n&atilde;o existencia do facto contrario como
+regra. Isto explicaria a reserva de Alvito Pepiz e
+seus filhos na doa&ccedil;&atilde;o de 1094 &aacute;
+s&eacute; de Lugo, se
+n&atilde;o se podesse tambem entender que com elles
+fora exceptuada a respectiva gleba.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois do que fica dicto a analyse dos 7.&ordm;, 8.&ordm;
+e 9.&ordm; documento do sr. Mu&ntilde;oz parece-me inutil,
+e a theoria da adscrip&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+obstar&aacute; por certo &aacute;
+sua facil interpreta&ccedil;&atilde;o. Seja-me, todavia, licito
+<span class="pagenum">[284]</span>
+fazer algumas observa&ccedil;&otilde;es a respeito do ultimo
+documento. N&atilde;o me lembra ter j&aacute;mais visto
+mencionado,
+nem nos historiadores nem nos monumentos,
+um unico mussulmano cujo nome seja
+godo. E comtudo na memoria da divis&atilde;o de Rovoredo
+menciona-se o <em>sarraceno</em> Sendimiro.
+N&atilde;o
+ser&iacute;a um captivo mosarabe? Mosarabe, por&ecirc;m,
+ou arabe, elle n&atilde;o fora um homem de
+crea&ccedil;&atilde;o,
+fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo
+casou ahi. Mas porque n&atilde;o ser&iacute;a a mulher
+da sua condi&ccedil;&atilde;o e da sua ra&ccedil;a? E
+ent&atilde;o porque
+n&atilde;o se daria em troco d'elle uma irm&atilde; da sua
+mulher?
+Que p&oacute;de esse facto provar contra a
+adscrip&ccedil;&atilde;o
+dos servos originarios? Onde neguei eu que
+a escravid&atilde;o dos sarracenos ou de seus filhos fosse
+a servid&atilde;o pessoal?
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c10"></a>V
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Outra ordem de factos, que o sr. Mu&ntilde;oz recorda
+como vehemente indicio de que a condi&ccedil;&atilde;o
+dos servos era a mesma dos tempos gothicos, &eacute;
+que &aacute;s vezes os poderosos nas suas
+depreda&ccedil;&otilde;es
+roubavam uns aos outros os colonos e iam vend&ecirc;-los,
+o que n&atilde;o poderia acontecer se a servid&atilde;o
+pessoal n&atilde;o existisse; que se davam servos aos
+mouros em resgate d'illustres captivos<sup><a href="#f83">[83]</a></sup>;
+que os
+servos eram obrigados ao servi&ccedil;o domestico, a
+trabalhos mechanicos da industria, como por
+exemplo, a serem cozinheiros, padeiros, tecel&otilde;es,
+carpinteiros, ferreiros, alfaiates, etc.; que alguns
+tinham os mais baixos encargos, como limpar
+os logares immundos, concertar os caminhos,
+tractar das cubas em que seus senhores se banhavam
+etc.<sup><a href="#f84">[84]</a></sup>;
+o que tudo, no entender do sr.
+Mu&ntilde;oz, repugnava &aacute;
+adscrip&ccedil;&atilde;o. Lembra-se ent&atilde;o
+de alguns monumentos em que esses factos podem
+<span class="pagenum">[286]</span>
+estribar-se, e que cr&ecirc; servirem para condemnar
+a minha opini&atilde;o. Examinemo-los.
+<br />
+
+<br />
+
+N'uma doa&ccedil;&atilde;o de Bermudo III &aacute;
+s&eacute; de Santiago
+fala-se de um certo Galiariz, que, entre outras
+rapinas que fez, roubou seis homens alheios e
+vendeu-os como captivos (<em>et vendivit eos sicut
+captivos</em>). Se eu procurasse um documento que
+positivamente contradissesse a doutrina do sr.
+Mu&ntilde;oz, n&atilde;o o acharia por certo mais a proposito.
+Galiariz vendeu os servos alheios <em>como se fossem
+captivos</em>, e este acto enumera-se entre os seus
+delictos. O que pois se vendia sem offensa dos
+usos e costumes era o prisioneiro,
+<em>captivum</em>.
+Vender como tal o servo alheio &eacute; uma circumstancia
+que aggrava o roubo, e porque? Porque
+o servo, o homem d'alguem, n&atilde;o era um captivo,
+uma <em>cousa</em> venal. Pe&ccedil;o que
+se reflicta neste documento.
+<br />
+
+<br />
+
+Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia
+Compostellana, foram aprisionados pelos
+sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se
+para os remir LX <em>captivos christianos, tamen
+ex servili conditione</em>. E &eacute; sobre
+semelhante texto
+que o sr. Mu&ntilde;oz assenta a id&eacute;a de que se
+entregavam
+servos originarios aos sarracenos em
+resgate de cavalleiros leoneses! Que &eacute; o que se deu
+<span class="pagenum"><a name="p287" id="p287">[287]</a></span>
+pelos dous nobres? Captivos christ&atilde;os. Pois
+<em>captivo</em>
+foi nunca synonimo da palavra generica
+<em>servo</em>?
+<em>Captivo</em>, na idade media, significava
+o que
+significa hoje, o que significou sempre, o prisioneiro.
+O que houve foi uma troca de prisioneiros.
+Deram-se por dous sessenta, facto que o historiador
+explica: <em>tamen ex servili
+conditione</em>. Se
+dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro,
+ou seis. N&atilde;o tinham prisioneiros <a href="#e12">de</a>
+mais elevada
+jerarchia ou n&atilde;o os quizeram entregar: deram
+sessenta de condi&ccedil;&atilde;o servil. Mas esses homens
+eram christ&atilde;os. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente
+captivos. A Compostellana &eacute; igualmente
+explicita a ambos os respeitos. Eis a necessidade
+de nunca esquecer a popula&ccedil;&atilde;o mosarabe.
+Por ella se explica facilmente a existencia
+de prisioneiros christ&atilde;os em poder de christ&atilde;os.
+Aprisionados com seus senhores ou sem elles
+n'uma batalha ou n'uma correria dos leoneses na
+<em>Spania</em>, tinham mudado de donos, e
+agora entregavam-nos
+a outros donos em cujo poder de
+certo a sua condi&ccedil;&atilde;o desgra&ccedil;ada
+n&atilde;o melhoraria.
+Eis o que unicamente se pode inferir com plausibilidade
+da narrativa da Compostellana.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o escrevendo a historia de Le&atilde;o, ou dos outros
+estados da Peninsula, mas a de Portugal, eu
+<span class="pagenum"><a name="p288" id="p288">[288]</a></span>
+era obrigado a esbo&ccedil;ar rapidamente a
+organisa&ccedil;&atilde;o
+social da Hespanha de que se desmembrara
+a monarchia portuguesa; s&oacute;, por&ecirc;m, at&eacute;
+onde
+fosse necessario para se entender a historia social
+do meu paiz. Apesar disso, creio que fui o
+primeiro que tentei fazer sentir aos escriptores
+hespanhoes a importancia de dedicar profundas
+investiga&ccedil;&otilde;es &aacute; historia dos
+mosarabes, dessa popula&ccedil;&atilde;o
+distincta, que, em meu entender, devia
+constituir a maioria dos habitantes da Peninsula,
+ainda dous ou tres seculos depois da invas&atilde;o dos
+arabes e da tentativa de Pelaio, pela simples raz&atilde;o
+de que a grande massa da popula&ccedil;&atilde;o de um
+vasto paiz n&atilde;o se pode substituir como o poder supremo,
+como o predominio de um <a href="#e13">precedente</a>
+conquistador,
+sobretudo quando se tracta de uma na&ccedil;&atilde;o
+civilisada, e n&atilde;o de tribus selvagens, sempre
+insignificantes em numero, e que a atrocidade fria
+e permanente dos vencedores chega a destruir no
+decurso de seculos. Depois das invas&otilde;es e conquistas
+germanicas, a grande massa da popula&ccedil;&atilde;o
+do imperio romano ficou sendo celto-romana: depois
+da invas&atilde;o e conquista da China pelos tartaros
+mantch&uacute;s, a maioria dos habitantes daquelle
+immenso paiz ficou sendo chim: o sangue ingl&ecirc;s
+&eacute; o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio
+<span class="pagenum">[289]</span>
+normando. E todavia nenhuma daquellas ra&ccedil;as
+de conquistadores foi t&atilde;o moderada, t&atilde;o benigna
+para com os vencidos como os arabes na Hespanha.
+Por essa mesma brandura e tolerancia certa
+ordem de factos politicos e sociaes, que se d&atilde;o
+depois dos grandes cataclysmos das na&ccedil;&otilde;es, deviam
+ser mais prominentes, mais efficazes na
+Hespanha, e portanto influir mais poderosamente
+nas phases dos acontecimentos posteriores tanto
+politicos como sociaes. N&oacute;s, os homens d'hoje,
+que vimos ou ouvimos contar a nossos paes
+as scenas do dominio franc&ecirc;s na Peninsula no
+principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar
+o estado moral da popula&ccedil;&atilde;o romano-gothica
+depois do estabelecimento do imperio dos khalifas,
+se ali&aacute;s os monumentos fossem menos explicitos
+ou guardassem silencio a tal respeito. O
+transitorio dominio franc&ecirc;s na Peninsula n&atilde;o
+deixou
+de produzir logo um grande numero de
+<em>afrancesados</em> na Hespanha e de
+<em>jacobinos</em> em Portugal.
+Qual ser&iacute;a o jacobinismo, permitta-se-me
+a express&atilde;o, entre os godo-romanos em
+rela&ccedil;&atilde;o
+aos sarracenos pode imaginar-se tendo presente
+o estado de dissolu&ccedil;&atilde;o moral do imperio
+wisigothico,
+anniquilado n'uma unica batalha; o longo
+dominio dos arabes; a superioridade da sua
+civilisa&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[290]</span>
+material; a sua tolerancia para com a religi&atilde;o
+dos vencidos; o respeito guardado &aacute;s
+institui&ccedil;&otilde;es
+civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes
+mussulmanos para com os seus subditos christ&atilde;os.
+N&atilde;o quero dizer com isto que o patriotismo wisigothico;
+que a impaciencia do jugo extranho; que
+o sentimento de hostilidade religiosa n&atilde;o ardessem
+em muitos cora&ccedil;&otilde;es, e at&eacute; subissem ao
+gr&aacute;u
+de fanatismo. Pelo contrario. N&atilde;o era preciso
+que os monumentos nos dissessem que a reac&ccedil;&atilde;o
+se manifestava at&eacute; na corte de Cordova. O conhecimento
+da indole das paix&otilde;es humanas dispensa
+&aacute;s vezes em historia o testemunho dos monumentos.
+O homem &eacute; essencialmente o mesmo
+em todas as epochas. Mas &eacute; por isso que os interesses,
+a reflex&atilde;o, os vicios, as virtudes, os habitos,
+a educa&ccedil;&atilde;o, as mil causas moraes que impellem
+e dirigem o individuo e lhe determinam os
+affectos e as tendencias, deviam impellir outros,
+e talvez o maior numero, a manifesta&ccedil;&otilde;es
+oppostas.
+O <em>Indiculo Luminoso</em> de Alvaro de
+Cordova,
+especie de extenso artigo de fundo de jornal partidario,
+libello apaixonado contra o mosarabismo,
+revela-nos qu&atilde;o numeroso e importante era o
+partido arabe entre os romano-godos da Spania,
+partido que abrangia nobres, guerreiros, prelados,
+<span class="pagenum">[291]</span>
+sacerdotes, magistrados, povo. Se n&atilde;o existisse
+este testemunho insuspeito, a raz&atilde;o e a experiencia
+nos diriam o mesmo que elle nos diz<sup><a href="#f85">[85]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+Imagine-se agora qual ser&iacute;a durante a lucta entre
+a monarchia n&eacute;o-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas
+o papel dessa maxima parte da popula&ccedil;&atilde;o
+peninsular chamada os mosarabes: uns
+indifferentes &aacute; contenda, acceitando do mesmo
+modo o dominio dos reis d'Asturias e Le&atilde;o ou o
+dos principes sarracenos, no meio dos &eacute;stos da
+guerra; outros forcejando por identificar-se com
+a nova sociedade que se constituia &aacute; semelhan&ccedil;a
+da patria wisigothica; outros, emfim, addictos
+por esperan&ccedil;as, por cubi&ccedil;a, por beneficios
+recebidos,
+e at&eacute; por la&ccedil;os de sangue, resultado dos
+<span class="pagenum"><a name="p292" id="p292">[292]</a></span>
+consorcios mixtos, &aacute; manuten&ccedil;&atilde;o do
+dominio
+mussulmano, e calcule-se quantos factos politicos
+haviam de dimanar de um estado de cousas
+tal; quantas peripecias, quantas violencias se dariam
+em qualquer districto ou provincia da Hespanha
+a cada invas&atilde;o, a cada correria, quer dos
+sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam
+em vingan&ccedil;as acerbas os odios occultos; como
+as paix&otilde;es mais oppostas trariam a mudan&ccedil;a
+de partido e at&eacute; de cren&ccedil;a; como os homens da
+mesma ra&ccedil;a e da mesma religi&atilde;o se perseguiriam,
+se denunciariam por desleaes a um ou a outro
+dos dous poderes publicos, que pelos accidentes
+da guerra se succediam t&atilde;o frequentemente nos
+variaveis limites dos dous estados; como a <a href="#e14">condi&ccedil;&atilde;o</a>
+<span class="pagenum">[293]</span>
+do mesmo individuo mudaria mais de uma
+vez; como o nobre, o rico, o funccionario, o sacerdote
+poderiam cair de repente da situa&ccedil;&atilde;o
+mais elevada na mais abjecta servid&atilde;o, e os mais
+humildes elevarem-se por acontecimentos imprevistos
+at&eacute; as mais altas gradua&ccedil;&otilde;es sociaes;
+como,
+finalmente, os monumentos na sua linguagem,
+nos factos que delles resultam podem illudir-nos,
+se entre os elementos a que devemos recorrer
+para a sua aprecia&ccedil;&atilde;o esquecermos o elemento
+mosarabico.
+<br />
+
+<br />
+
+Que se me permitta referir aqui uma anecdota
+que pinta a vida agitada da popula&ccedil;&atilde;o mosarabe
+nos territorios submettidos ora pelos arabes,
+ora pelos leoneses, no meio das vicissitudes da
+<span class="pagenum">[294]</span>
+guerra, e que est&aacute; confirmando o que precedentemente
+disse &aacute;c&ecirc;rca do mosarabismo e das
+peripecias a que estavam sujeitos os individuos
+naquella situa&ccedil;&atilde;o incerta e cambiante. Dos
+territorios
+da Hespanha nenhum, talvez, mudou mais
+vezes de senhores durante a lucta do que os districtos
+d'entre Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades
+do oceano, e porventura que em nenhum
+ficaram mais vestigios da existencia da
+sociedade mosarabica, da sua civilisa&ccedil;&atilde;o
+material,
+das suas paix&otilde;es, dos seus interesses encontrados,
+e at&eacute; dos seus crimes e virtudes. A
+publica&ccedil;&atilde;o,
+que a Academia prepara, dos documentos
+dessas epochas, e especialmente dos que nos foram
+conservados nos archivos da cathedral de
+Coimbra e do mosteiro de Lorv&atilde;o,
+lan&ccedil;ar&aacute; grande
+luz sobre o assumpto. &Eacute; um desses documentos,
+tirado do chartulario de Lorv&atilde;o, o Livro dos
+Testamentos, e que foi publicado j&aacute; por Fr. Munuel
+da Rocha, mas horrivelmente deturpado,
+que me subministra os elementos de uma narrativa,
+a qual reproduz, embora apenas n'uma das
+suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos.
+<br />
+
+<br />
+
+Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo
+o cenobio de Lorv&atilde;o. Coimbra, em cujo territorio
+<span class="pagenum">[295]</span>
+estava situado o mosteiro, pertencia &aacute; coroa
+leonesa pouco antes da epocha em que a espada
+irresistivel do hadjib Al-manssor fez recuar de
+novo as fronteiras da monarchia n&eacute;o-gothica para
+al&eacute;m do Douro (987). Os districtos ao sul deste
+rio, que depois da invas&atilde;o de Tarik e Musa tinham
+pertencido a maior parte do tempo aos sarracenos,
+encerravam uma popula&ccedil;&atilde;o essencialmente
+mosarabe. Cordova era ainda para ella a
+capital da industria, das artes, da civilisa&ccedil;&atilde;o.
+O
+architecto cordov&ecirc;s Zacharias viera a Lorv&atilde;o,
+provavelmente chamado pelo abbade Primo para
+alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores
+de Coimbra falaram com o abbade para
+que o architecto cordov&ecirc;s construisse algumas
+pontes sobre os rios das circumvizinhan&ccedil;as. Primo
+accedeu, e acompanhou Zacharias na empreza.
+Edificaram-se ent&atilde;o quatro pontes, em Alviaster
+(Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera
+Buzat (Ladeiras do Bussaco?) e na ribeira de
+Forma (Boss&atilde;o?) Aqui, em memoria da ambos,
+e por conselho do architecto, Primo construiu
+umas azenhas que ficaram pertencendo ao mosteiro.
+Taes foram os factos succedidos nos fins do
+seculo X que narra o documento de Lorv&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o
+<span class="pagenum">[296]</span>
+seu territorio, submettidos de novo por Al-manssor,
+tinham-se conservado sob o jugo do islam.
+Fernando magno veio, por&ecirc;m, a unir definitivamente
+aquella provincia &aacute; coroa de Le&atilde;o nos
+meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de
+Forma j&aacute; n&atilde;o eram do mosteiro. Fernando I
+restituiu-lh'as,
+ajunctando o senhorio da ponte. Pelagio
+Halaf, nome que indica um mosarabe christ&atilde;o,
+fora, segundo parece, espoliado naquella
+restitui&ccedil;&atilde;o. Demandou os monges, affirmando
+que seu av&ocirc; Ezerag edificara as azenhas, ao passo
+que o abbade Arias invocava os nomes de
+Primo e Zacharias. O mosarabe Sisnando, conde
+ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de
+Arias &aacute;c&ecirc;rca do que este affirmava, manteve a
+restitui&ccedil;&atilde;o. Surgiu ent&atilde;o novo
+contendor. Era
+Zuleiman Alafla, primo-coirm&atilde;o de Pelagio, talvez
+mussulmano, talvez christ&atilde;o, mas como elle da
+ra&ccedil;a mosarabe. Sisnando enviou os contendores
+&aacute; curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu direito
+na funda&ccedil;&atilde;o do av&ocirc;, Zuleiman recorreu a
+um
+titulo que hoje ser&iacute;a singular, mas que ent&atilde;o
+elle
+cria ass&aacute;s natural, e sufficiente para legitimar
+a sua pretens&atilde;o. Era a historia do que se havia
+passado quando Al-manssor se apoderara de
+Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando
+<span class="pagenum">[297]</span>
+se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto
+da invas&atilde;o os habitantes das aldeias internavam-se
+nos bosques. Ezerag pensou ent&atilde;o que a
+desordem geral podia enriquec&ecirc;-lo. Dirigiu-se ao
+chefe sarraceno Farfon-ibn-Abdallah, e abra&ccedil;ou o
+islamismo. Depois pediu trinta soldados sarracenos,
+escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se &aacute;
+gente foragida, aconselhou-os a voltarem aos
+seus lares, asseverando-lhes que tudo estava pacificado.
+Acreditaram-no e voltaram &aacute;s aldeias.
+Os soldados sarracenos, saindo ent&atilde;o dos escondrijos,
+captivaram muitos, e levando-os a Santarem
+venderam-nos por grossas sommas. Os captivos
+foram conduzidos a Cordova com guia de
+Ibn-Abdallah e com o pre&ccedil;o por que tinham sido
+vendidos. Ent&atilde;o Ezerag pediu em recompensa os
+moinhos de Forma e diversas aldeias. Al-manssor
+concedeu-lhe tudo; porque Al-manssor era
+um heroe, e os heroes n&atilde;o tem tempo para pensar
+nos direitos da humanidade conculcados<sup><a href="#f86">[86]</a></sup>.
+<span class="pagenum">[298]</span>
+Era nesta concess&atilde;o que Zuleiman fundamentava
+a sua justi&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+A doa&ccedil;&atilde;o do hadjib aos olhos de Alafla, do neto
+do renegado, era um titulo legitimo, embora
+essa merc&ecirc; tivesse tido por causa uma atroz villania,
+e procedesse de um acto de auctoridade
+que o tribunal leon&ecirc;s, conforme as ideas de hoje,
+n&atilde;o poderia reconhecer. Zuleiman, por&ecirc;m, suppunha
+t&atilde;o legitima, t&atilde;o respeitavel a
+concess&atilde;o
+de Al-manssor como o julgamento da curia de
+Fernando-magno. Era um poder que passara na
+terra: era outro que nella existia agora. Nisto se
+resumia, necessariamente, a cren&ccedil;a politica de
+uma grande parte dos proprietarios e agricultores
+mosarabes. Mas o mais importante neste documento
+&eacute; o proceder d'Ezerag e os factos que
+d'ahi resultaram. Elles nos explicam como quaesquer
+individuos da grande maioria da popula&ccedil;&atilde;o
+podiam descer ao misero estado d'escravos. Sem
+<span class="pagenum">[299]</span>
+duvida a historia de Ezerag n&atilde;o &eacute; a unica da sua
+especie succedida naquelles quatro seculos de
+uma terrivel lucta: devia repetir-se com circumstancias
+variadas. E &eacute; mais que provavel que as
+convers&otilde;es ao christianismo por baixos intuitos
+de cubi&ccedil;a, de vingan&ccedil;a ou de
+trai&ccedil;&atilde;o, fossem,
+pelo menos, t&atilde;o frequentes como as convers&otilde;es
+mussulmanas.
+<br />
+
+<br />
+
+Insisti neste ponto, porque o reputo capital.
+Passemos agora &aacute; objec&ccedil;&atilde;o deduzida de
+serem
+os servos originarios obrigados a trabalhos industriaes
+e ao servi&ccedil;o domestico dos senhores,
+trabalhos e servi&ccedil;os que, no entender do sr.
+Mu&ntilde;oz,
+repugnavam &aacute; adscrip&ccedil;&atilde;o da gleba.
+<br />
+
+<br />
+
+No opusculo do sr. Mu&ntilde;oz parece-me haver
+duas preoccupa&ccedil;&otilde;es que allucinam o illustre
+escriptor.
+A primeira &eacute; a das id&eacute;as modernas applicadas
+&aacute;s express&otilde;es, &aacute;s phrases e aos factos
+da idade media. Desta &eacute; facil possuirmo-nos, e
+nella terei eu ca&iacute;do mais de uma vez. A outra &eacute;
+na verdade singular, mas em boa parte deriva
+da primeira. Consiste em supp&ocirc;r a impossibilidade
+de accumular os trabalhos da vida rural
+com os industriaes e mechanicos, ou com os servi&ccedil;os
+pessoaes feitos a outro individuo. Entre as
+na&ccedil;&otilde;es onde o progresso das industrias fez
+predominar
+<span class="pagenum">[300]</span>
+quasi exclusivamente o principio economico
+da divis&atilde;o do trabalho, effectivamente
+n&atilde;o se d&aacute; tal associa&ccedil;&atilde;o: o
+official mechanico, o
+operario fabril, o creado domestico n&atilde;o associa
+de ordinario a occupa&ccedil;&atilde;o a que se entregou com
+o grangeio dos campos. Mas assim como a divis&atilde;o
+e subdivis&atilde;o dos misteres se vai multiplicando
+com o desenvolvimento industrial, assim
+quanto mais atrazado se acha um povo, mais o
+homem var&iacute;a de occupa&ccedil;&otilde;es, porque
+&eacute; obrigado
+a variar, e porque justamente a imperfei&ccedil;&atilde;o das
+industrias, a simplicidade e grosseria dos artefactos
+favorecem a accumula&ccedil;&atilde;o e a variedade das
+occupa&ccedil;&otilde;es individuaes. N&atilde;o sei o que
+succede
+em Hespanha: em Portugal, nos districtos ruraes,
+mais de uma industria fabril se associa
+com a agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia,
+por atrazado que esteja este paiz nos progressos
+fabris, est&aacute; sem compara&ccedil;&atilde;o mais
+adiantado
+do que a monarchia leonesa no seculo X ou
+XI.
+<br />
+
+<br />
+
+Recusar admittir que o servo da gleba podesse
+separar-se do cultivo da mesma gleba para se
+empregar de outro modo no servi&ccedil;o do senhor,
+n&atilde;o &eacute; s&oacute; negar o passado; &eacute;
+negar o presente.
+O campon&ecirc;s russo &eacute; servo da gleba, e nem por
+<span class="pagenum">[301]</span>
+isso deixa de separar-se della para exercer outros
+misteres. O que n&atilde;o pode &eacute; ser vendido
+como os brutos. Muda de senhor, ao menos legalmente,
+s&oacute; quando &eacute; alienada a terra a que
+pertence.
+<br />
+
+<br />
+
+O V volume da Historia de Portugal, ainda
+n&atilde;o publicado, conter&aacute; uma parte relativa ao
+systema do tributo, da renda, e do servi&ccedil;o publico
+nos seculos XII e XIII. Ahi se encontrar&atilde;o numerosas
+provas de que n'uma &eacute;pocha em que j&aacute;
+a adscrip&ccedil;&atilde;o voluntaria succedera &aacute;
+for&ccedil;ada existiam
+para o colono, pessoalmente livre, ao lado
+das presta&ccedil;&otilde;es agrarias esses mesmos encargos
+de servi&ccedil;o pessoal que ao sr. Mu&ntilde;oz parece
+repugnarem,
+n&atilde;o ao colonato livre, mas &aacute; propria
+servid&atilde;o da gleba; e o mais &eacute; que continuamos
+a encontr&aacute;-los ainda nos contractos emphyteuticos
+de seculos mais modernos. Por singulares,
+por extranhos &aacute; vida rural que esses servi&ccedil;os se
+nos affigurem nos documentos citados no opusculo
+que examino, os dos colonos portugueses
+do seculo XIII, colonos indubitavelmente livres
+de uma gleba serva, n&atilde;o s&atilde;o menos singulares
+e extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo
+que pesava sobre os moradores de tres casaes
+de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias
+<span class="pagenum">[302]</span>
+em Le&atilde;o quando a isso os enviassem.<sup><a href="#f87">[87]</a></sup> Era,
+por certo, um servi&ccedil;o mais abjecto do que o
+<em>purgare tristigas</em> de que falam os
+documentos
+leoneses.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o mais notavel &eacute; que o proprio sr. Mu&ntilde;oz
+se encarregou de combater a sua opini&atilde;o. Ao
+lado da servid&atilde;o <em>pessoal</em>
+dos servos <em>originarios</em>
+admitte a existencia da servid&atilde;o de gleba, a existencia
+simultanea de adscriptos, de que f&oacute;rma
+uma classe &aacute; parte. Depois de enumerar as
+presta&ccedil;&otilde;es
+agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos,
+o sr. Mu&ntilde;oz adverte<sup><a href="#f88">[88]</a></sup>
+que, al&eacute;m de
+uma quota de fructos, e de variadas foragens,
+esses colonos for&ccedil;ados estavam adstrictos a
+servi&ccedil;os
+pessoaes, que consistiam nos amanhos de
+predios diversos da propria gleba, em
+construc&ccedil;&otilde;es
+de edificios, e <em>em fazer quanto se lhes
+ordenasse</em>.
+Supp&ocirc;s o sr. Mu&ntilde;oz que havia
+contradic&ccedil;&atilde;o
+em dizer eu que os servos originarios eram
+<span class="pagenum">[303]</span>
+todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a
+servi&ccedil;os pessoaes f&oacute;ra da respectiva gleba, e
+todavia
+n&atilde;o s&oacute; acceita essa doutrina contradictoria
+no seu mesmo opusculo, mas, al&eacute;m disso, acceita-a
+depois de affirmar a sua impossibilidade,
+para desta inferir contra mim a continua&ccedil;&atilde;o na
+monarchia ovetense-leonesa da servid&atilde;o wisigothica.
+Se os servi&ccedil;os pessoaes alheios ao cultivo
+da gleba importavam for&ccedil;osamente a
+n&atilde;o-adscrip&ccedil;&atilde;o,
+&eacute; necessario confessar que a
+adscrip&ccedil;&atilde;o,
+cuja existencia o sr. Mu&ntilde;oz cr&ecirc; descubrir ligada
+com quaesquer encargos de servi&ccedil;o pessoal ao
+senhor, &eacute; um sonho, e que os documentos que
+se referem a esse estado de cousas, ou s&atilde;o falsos,
+ou se h&atilde;o de entender, custe o que custar,
+de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou
+aos captivos sarracenos.
+<br />
+
+<br />
+
+Na <em>Colleccion de Fueros
+Municipales</em><sup><a href="#f89">[89]</a></sup>
+publicou
+o sr. Mu&ntilde;oz dous interessantes documentos sem
+data, mas que parecem do seculo IX, relativos
+aos encargos pessoaes dos servos originarios. A
+estes documentos se reporta igualmente no seu
+opusculo para abonar a these que estabelece da
+existencia simultanea de adscriptos e de escravos
+<span class="pagenum">[304]</span>
+originarios. &Eacute; o primeiro uma memoria dos
+servi&ccedil;os a que era obrigada para com a s&eacute; de
+Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon:
+&eacute; o segundo uma memoria especial das
+obriga&ccedil;&otilde;es
+dos servos de Pravia, logar ou aldeia incluida
+no mesmo territorio de Gauzon. Na
+<em>Colleccion</em>
+v&ecirc;-se que as id&eacute;as do sr. Mu&ntilde;oz
+fluctuavam
+ainda. Estas duas memorias supp&otilde;e-nas
+elle ahi relativas indistinctamente aos servos da
+s&eacute; ovetense residentes naquelle territorio, quer
+adscriptos, quer n&atilde;o: no opusculo<sup><a href="#f90">[90]</a></sup>
+supp&otilde;e-nas,
+por&eacute;m, relativas exclusivamente aos
+n&atilde;o-adscriptos,
+isto &eacute;, aos servos de ra&ccedil;a, que, segundo
+a sua doutrina, continuaram a ser na monarchia
+n&eacute;o-gothica de condi&ccedil;&atilde;o identica
+&aacute; dos servos do
+VI e do VII seculos.
+<br />
+
+<br />
+
+Permitta-me, todavia, o sr. Mu&ntilde;oz pensar que
+se houvera reflectido mais detidamente nestes
+documentos elles o teriam, talvez, conduzido a diverso
+resultado. Suppondo que se refiram a servos
+que, no seu entender, equivaliam a cousas, e
+de que seu antes dono que senhor podia disp&ocirc;r
+livremente, a propria existencia dessa especie
+de memorias ser&iacute;a incomprehensivel. Na idade
+<span class="pagenum">[305]</span>
+media n&atilde;o se escreviam cousas absolutamente
+inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam,
+e at&eacute; a materia da escriptura era assaz
+rara. Ora nada mais completamente inutil do que
+esses <em>cobrinellos</em> ou ementas, dada a
+theoria do
+sr. Mu&ntilde;oz. Para que escrever n'um pergaminho:
+<em>a familia de fulano de tal aldeia ou
+granja</em> (villa)
+<em>&eacute; obrigada a tal
+servi&ccedil;o</em>? Pois uma familia de
+escravos, que pode ser empregada a bel prazer
+do senhor nos mais oppostos misteres dentro do
+mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia,
+como um animal domestico; que por arbitrio delle
+pode mudar de domicilio quando isso convier;
+que, em summa, pode collectiva ou individualmente
+ser vendida, escambada, doada; uma tal
+familia, digo, tem acaso obriga&ccedil;&otilde;es determinadas,
+de que seja necessario conservar a memoria para
+o futuro? De que serve declarar a granja, o villar,
+o casal onde cada uma dessas familias reside,
+se, no dia seguinte ao da redac&ccedil;&atilde;o da ementa, o
+senhor pode achar mais conveniente outra
+distribui&ccedil;&atilde;o
+dos seus escravos? Apesar da facilidade
+com que hoje se escrevem cousas inuteis, n&atilde;o se
+reputaria louco o proprietario que escrevesse e
+archivasse a seguinte memoria: <em>A ra&ccedil;a do
+cavallo
+N. tem de conduzir madeiras; a ra&ccedil;a do
+touro</em>
+<span class="pagenum">[306]</span>
+<em>N. tem de lavrar taes terras; tal vehiculo tem
+de servir de transporte a tal objecto; tal alfaia &eacute;
+destinada a tal uso</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+Na minha opini&atilde;o, o que estas memorias provam
+&eacute; o mesmo que provam directa ou indirectamente
+todos os documentos que se referem
+&aacute; condi&ccedil;&atilde;o ou aos encargos dos servos
+originarios,
+ou homens de crea&ccedil;&atilde;o: &eacute; que estes
+est&atilde;o
+unidos a certos predios indissoluvelmente; que
+desse complexo do homem e do predio o senhor
+tem de auferir presta&ccedil;&otilde;es agrarias e
+servi&ccedil;os
+determinados. Nesta hypothese o
+<em>cobrinellum</em> &eacute;
+uma cousa racional. A <em>casata</em>, isto
+&eacute;, a familia
+que vive n'uma certa choupana ou grupo de
+choupanas, (<em>casa</em>) tem de satisfazer,
+de gera&ccedil;&atilde;o
+em gera&ccedil;&atilde;o, perpetuamente, aquelles encargos.
+Os enlaces inevitaveis com outras familias podem
+produzir complica&ccedil;&otilde;es de direitos entre diversos
+senhores, mas o <em>cobrinellum</em> ou
+ementa
+particular de cada um servir&aacute; para os deslindar,
+indicando os servi&ccedil;os, independentes das
+presta&ccedil;&otilde;es
+agrarias, que essas familias devem,
+<em>debent</em>.
+Esta id&eacute;a de dever que se manifesta nos
+documentos presupp&otilde;em a do direito. O escravo
+n&atilde;o tem deveres; porque as
+<em>cousas</em> s&atilde;o incapazes
+delles. Nos proprios tempos barbaros dever
+<span class="pagenum">[307]</span>
+e direito s&atilde;o inseparaveis; porque as duas id&eacute;as
+s&atilde;o for&ccedil;osamente correlativas.
+<br />
+
+<br />
+
+Conforme o que n'outro logar adverti, a
+adscrip&ccedil;&atilde;o
+n&atilde;o era de feito simplesmente uma
+grande restric&ccedil;&atilde;o da liberdade; importava tambem
+vantagens, as de uma especie de co-propriedade
+do servo colono na sua gleba. O sentimento
+do servo de gleba devia ser analogo ao
+do campon&ecirc;s russo dos nossos tempos. &laquo;No
+momento em que os servos separados da terra&#8213;diz
+o marquez de Custine&#8213;vissem vend&ecirc;-la,
+arrend&aacute;-la, cultiv&aacute;-la independentemente delles,
+amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os
+despojavam <em>dos seus bens</em><sup><a href="#f91">[91]</a></sup>. Do
+mesmo modo
+que na Russia, onde se caminha da barbaria para
+a civilisa&ccedil;&atilde;o, nas origens barbaras da monarchia
+n&eacute;o-gothica a adscrip&ccedil;&atilde;o como regra
+succedeu
+naturalmente &aacute; servid&atilde;o pessoal, e a
+servid&atilde;o
+da terra cultivada por um colono pessoalmente
+livre succedeu &aacute; adscrip&ccedil;&atilde;o nos
+seculos
+XII e XIII, como me persuado que demonstrei
+no meu livro. Supp&ocirc;r que da escravid&atilde;o se passou
+de salto &aacute; liberdade pessoal affigura-se-me
+a supposi&ccedil;&atilde;o de um impossivel historico.
+<span class="pagenum">[308]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Effectivamente: como achamos mais geralmente
+estabelecido o colonato nos seculos XII e XIII?
+O colono &eacute; <em>obrigado</em> a
+morar no predio que cultiva,
+mas n&atilde;o &eacute; for&ccedil;ado a isso. Se delle
+sai, n&atilde;o
+lhe &eacute; licito cultiv&aacute;-lo; perde-o; n&atilde;o
+o reconduzem,
+por&eacute;m, violentamente a elle. A uni&atilde;o do
+homem &aacute; terra subsiste, mas essa uni&atilde;o
+n&atilde;o &eacute;
+indissoluvel. A liberdade pessoal nasceu. Entre
+esta situa&ccedil;&atilde;o e a do homem-cousa, do escravo,
+ha um abysmo. Como se transp&ocirc;s? O meio principal
+consistiu na servid&atilde;o da gleba. O homem-cousa
+foi-se transformando em <em>pessoa</em>
+serva: a
+pessoa serva em pessoa livre; mas ficou ainda
+adscripta na qualidade de colono. Para ser plenamente
+pessoa livre precisava de desaggregar de
+si esta qualidade; de divorciar-se da gleba, a que
+ali&aacute;s o prende esse amor ardente do homem de
+trabalho ao solo que cultiva. E que importava,
+se <em>podia</em> faz&ecirc;-lo?
+&Eacute; por isso que disse no meu
+livro que a servid&atilde;o desceu do homem para a
+terra. Depois, lentamente, &eacute; que veio o colonato
+na sua f&oacute;rma quasi definitiva: o la&ccedil;o unico que
+liga o colono &eacute; a solu&ccedil;&atilde;o do canon e a
+presta&ccedil;&atilde;o
+dos servi&ccedil;os pessoaes ao j&aacute; n&atilde;o
+<em>senhor</em>, mas
+<em>senhorio</em>.
+Depois, finalmente, chegou-se &aacute; formula
+definitiva: os servi&ccedil;os pessoaes ou desappareceram
+<span class="pagenum">[309]</span>
+ou poderam ser substituidos, &aacute; vontade do
+colono, pela solu&ccedil;&atilde;o de um
+<em>quantum</em> que os representasse.
+Desde este momento o colonato n&atilde;o
+conteve mais em si elemento algum que repugne
+&aacute;s nossas id&eacute;as actuaes de direito, e nem sequer
+&aacute;s da economia politica.
+<br />
+
+<br />
+
+Eu cri ver a liberdade humana despontando
+tenue nos horisontes da vida do povo desde os
+tempos wisigothicos. Para o sr. Mu&ntilde;oz a noite
+profunda da escravid&atilde;o durou nesses horisontes
+at&eacute; a fatal jornada do Guadalete. E n&atilde;o
+s&oacute;, na sua
+opini&atilde;o, durou at&eacute; aquella epocha, como tambem
+subsistia ainda com todo o peso das suas
+sombras no seculo XI. Mas em que periodo collocar
+a transi&ccedil;&atilde;o para a liberdade pessoal dos seculos
+XII e XIII, cuja existencia demonstrei como
+facto predominante no colonato dessa epocha, se
+n&atilde;o for no estado dos servos originarios da monarchia
+leonesa? Se assim n&atilde;o houvera sido, singular
+excep&ccedil;&atilde;o &aacute; lei de desenvolvimento
+gradual
+e constante do progresso humano ser&iacute;a a historia
+da Peninsula durante quatro seculos!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c11"></a>VI
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O sr. Mu&ntilde;oz contrap&otilde;e ainda &aacute; minha
+opini&atilde;o
+varios factos, que entende provarem ser o estado
+dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo
+e Le&atilde;o. Um delles &eacute; n&atilde;o ter o servo
+representa&ccedil;&atilde;o
+em juizo, nem poder servir de testimunha,
+havendo outro meio de prova.
+<br />
+
+<br />
+
+De se me opp&ocirc;r este facto parece poder inferir-se
+ter eu affirmado em alguma parte que o
+servo se convertera em homem plenamente livre
+na monarchia leonesa. Nesta hypothese a objec&ccedil;&atilde;o
+poderia parecer plausivel, ainda que realmente
+o n&atilde;o seja; porque n&atilde;o se segue da plena
+liberdade
+do individuo, em qualquer estado social, a
+necessidade positiva de ser igual em direitos, ainda
+civis, a todos os individuos livres. O que, por&ecirc;m,
+affirmei, e o que julgo poder continuar a
+affirmar &eacute; que a servid&atilde;o mais ou menos absoluta
+dos wisigodos se tornou na monarchia n&eacute;o-gothica
+em servid&atilde;o da gleba, e que esta
+modifica&ccedil;&atilde;o
+foi um grande passo para a emancipa&ccedil;&atilde;o
+das classes populares. Se o servo n&atilde;o podia desaggregar-se
+<span class="pagenum">[311]</span>
+da gleba, &eacute; evidente que a gleba
+tambem n&atilde;o podia desaggregar-se do servo, e que
+desse estado resultava para elle uma especie de
+co-propriedade de facto, que, por indestructivel,
+creava um direito positivo. O alcance deste direito
+era tal que as suas consequencias, na success&atilde;o
+dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais
+cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram.
+Eis o que eu estabeleci. Objectivamente, a
+existencia da pessoa civil resulta da
+manifesta&ccedil;&atilde;o
+da sua capacidade juridica, embora essa
+manifesta&ccedil;&atilde;o
+seja incompleta. Entre os romanos, o servo
+considerava-se como cousa, porque objectivamente
+era incapaz, n&atilde;o de um ou de outro direito,
+mas de todos elles, e por isso perdia a personalidade:
+nas sociedades modernas, por&ecirc;m, o privilegio,
+a jerarchia, a idade do homem, o seu estado
+physico ou moral produziram sempre e produzem
+ainda differen&ccedil;as de direitos, at&eacute; civis,
+que nem por isso destroem a personalidade
+de ninguem. Fosse o poder publico, fosse o
+proprio adscripto que podesse invocar o principio
+da adscrip&ccedil;&atilde;o para n&atilde;o ser
+violentamente separado
+da gleba nativa; fosse o costume, a opini&atilde;o,
+ou a lei que sanctificasse a uni&atilde;o da terra
+com o seu cultor, o que &eacute; certo &eacute; que se
+invocava,
+<span class="pagenum">[312]</span>
+sanctificava e mantinha um direito, uma vantagem
+importantissima do adscripto. Fosse qual
+fosse a dependencia deste do respectivo senhor,
+a sua personalidade existia.
+<br />
+
+<br />
+
+Assim, quaesquer que fossem as restric&ccedil;&otilde;es que
+houvesse a respeito dos servos no systema judicial
+desde o seculo VIII at&eacute; o XII, essas
+restric&ccedil;&otilde;es
+nem provam contra a personalidade objectiva
+dos servos, nem importam &aacute; adscrip&ccedil;&atilde;o
+ou n&atilde;o
+adscrip&ccedil;&atilde;o. Sobre aquelle systema judicial e
+sobre
+o papel que os servos representavam nos pleitos
+poderia accrescentar aqui algumas pondera&ccedil;&otilde;es
+que me parece mereceriam a atten&ccedil;&atilde;o do sr.
+Mu&ntilde;oz,
+mas que me levariam mais longe do que
+comportam as dimens&otilde;es deste pequeno trabalho,
+e que seriam sobejas para o fim que me proponho.
+Deixando, pois, de parte quest&otilde;es agora
+inuteis, venhamos a outros factos juridicos em
+que o sr. Mu&ntilde;oz v&ecirc; a morte da personalidade,
+e que evidentemente n&atilde;o provam o que elle pretende,
+antes em parte demonstram que do mais
+ou menos incompleto dos direitos civis em individuos
+desta ou daquella classe nunca se poder&aacute;
+deduzir a escravid&atilde;o, a n&atilde;o-personalidade, a
+suppress&atilde;o absoluta desses direitos.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Competia ao dono s&oacute;mente&#8213;diz o sr.
+Mu&ntilde;oz&#8213;reclamar
+<span class="pagenum">[313]</span>
+a indemnisa&ccedil;&atilde;o do damno padecido
+pelo servo como cousa de sua propriedade<sup><a href="#f92">[92]</a></sup>.&raquo;
+Os documentos, ali&aacute;s numerosos, em
+que esta affirmativa p&oacute;de estribar-se n&atilde;o servem
+de modo algum para dirimir a contenda;
+porque para provarem a n&atilde;o-personalidade dos
+servos e a sua n&atilde;o-adhes&atilde;o &aacute; gleba
+(suppondo
+que o facto o provasse) cumpria mostrar que
+elles se referiam aos servos originarios, e n&atilde;o
+a escravos captivos. Admittindo, por&ecirc;m, que
+taes documentos se refiram a servos originarios,
+essa concess&atilde;o de nada servir&aacute; para revalidar a
+opini&atilde;o do sr. Mu&ntilde;oz. A
+representa&ccedil;&atilde;o pelo senhor
+n&atilde;o se limitava ao escravo, e nem mesmo
+a este e ao servo de gleba: estendia-se a individuos
+livres collocados na dependencia juridica
+de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes
+individuos eram cousas; n&atilde;o tinham personalidade?
+<br />
+
+<br />
+
+O sr. Mu&ntilde;oz estabeleceu excellentemente no
+seu opusculo<sup><a href="#f93">[93]</a></sup>
+a natureza da malad&iacute;a. O malado
+era o homem livre, que se collocava n'uma especie
+de vassalagem para com seu senhor adoptivo,
+<span class="pagenum">[314]</span>
+e esta especie de rela&ccedil;&otilde;es provei eu que
+eram inteiramente pessoaes e independentes do
+caracter de colono, situa&ccedil;&atilde;o em que o malado
+podia estar em rela&ccedil;&atilde;o a outro senhor, bem como
+mostrei a transmiss&atilde;o da maladia de paes a
+filhos<sup><a href="#f94">[94]</a></sup>.
+A repara&ccedil;&atilde;o, por&ecirc;m, dos
+damnos feitos
+aos malados revertia ainda no seculo XI em beneficio
+do patrono<sup><a href="#f95">[95]</a></sup>.
+Admittida a doutrina estabelecida
+depois pelo sr. Mu&ntilde;oz, esta jurisprudencia
+provaria contra elle proprio; provaria
+que o malado, longe de ser, como tal, homem
+livre, era apenas uma cousa, apenas uma propriedade
+do <em>dominus</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Como os malados, os solarengos (solariegos)
+eram colonos livres. Di-lo o sr. Mu&ntilde;oz, e com elle
+dizem-no os monumentos. Todavia n&oacute;s lemos
+no Foro Velho de Castella<sup><a href="#f96">[96]</a></sup>:
+&laquo;<em>Ninguem deve
+pousar nem entrar por for&ccedil;a em casa de nenhum
+solarengo, e se alguem o fizer deve pagar</em>
+<span class="pagenum">[315]</span>
+<em>300 soldos ao senhor, de quem for o solar, e o
+damno em dobro ao lavrador que recebeu o
+aggravo</em>&raquo;.
+Nos foraes do typo de Salamanca lemos
+tambem: &laquo;<em>Se alguem matar o creado de
+qualquer
+vizinho, receba este a multa do homicidio.
+O mesmo &eacute; applicavel ao seu hortel&atilde;o, ao caseiro
+que lhe paga quartos, ao seu moleiro e ao seu
+solarengo</em><sup><a href="#f97">[97]</a></sup>&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+A simples rela&ccedil;&atilde;o de vassalagem e clientela
+produzia &aacute;s vezes os mesmos effeitos. Assim,
+em alguns desses foraes do typo de Salamanca
+se estatue tambem que <em>se forem assassinados
+homens que alguem tenha nas suas herdades,
+ou que sejam seus vassalos pertencer&aacute; ao senhor
+a multa do homicidio</em><sup><a href="#f98">[98]</a></sup>.
+<br />
+
+<br />
+
+Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor
+ou patrono havia a multa dos crimes commettidos
+contra os seus dependentes, sem que
+<span class="pagenum">[316]</span>
+d'ahi se possa nem por sombras inferir que a dependencia
+do cliente, do vassalo, do malado, do
+solarengo ou do creado fosse a da escravid&atilde;o.
+Nada direi acerca de o sr. Mu&ntilde;oz qualificar a
+<em>calumnia</em>,
+a multa judicial, <em>de compensa&ccedil;&atilde;o
+pecuniaria
+imposta como pena ao matador</em>. O sr.
+Mu&ntilde;oz sabe perfeitamente que n&atilde;o era essa a
+indole
+de taes multas: foi uma phrase inexacta que
+lhe escapou na rapidez da composi&ccedil;&atilde;o, como talvez
+me ter&atilde;o escapado a mim outras analogas.
+Mas o que n&atilde;o posso deixar de observar &eacute; uma
+circumstancia que prova como os espiritos mais
+elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se
+quando subjugados por um preconceito.
+Possuido da id&eacute;a da escravid&atilde;o dos servos
+originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia
+leonesa, o sr. Mu&ntilde;oz, ao passo que viu
+dimanar a n&atilde;o-personalidade do servo do direito
+do senhor &aacute;s multas dos crimes perpetrados contra
+elle, n&atilde;o viu, buscando estribar-se em documentos,
+que o primeiro que citava, tirado de um
+chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a
+refuta&ccedil;&atilde;o peremptoria da sua doutrina. Este
+documento
+do anno 940 &eacute; uma carta ao mesmo
+tempo de
+<em>agni&ccedil;&atilde;o</em> e de
+<em>incommunia&ccedil;&atilde;o</em>,
+em que
+Pelagio <em>incommun&iacute;a</em> os
+bens que tinha em certas
+<span class="pagenum">[317]</span>
+aldeias a D. Ilduara e a seus filhos, por elle haver
+com uns clientes seus espancado por tal modo
+Froila, <em>junior</em> de D. Ilduara, que o
+espancado
+morrera, e Pelagio, n&atilde;o podendo talvez pagar a
+D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria
+ao expediente de lhe <em>incommuniar</em>
+aquelles
+bens<sup><a href="#f99">[99]</a></sup>.
+Mas Froila era um <em>junior</em>,
+colono da mais
+humilde classe, por&ecirc;m livre. O texto das cortes
+de Le&atilde;o de 1020 e a sua antiga vers&atilde;o em vulgar
+n&atilde;o consentem que se interprete de outro
+modo a palavra <em>junior</em>: nisto o sr.
+Mu&ntilde;oz est&aacute;
+perfeitamente de ac&ocirc;rdo comigo no seu commentario
+&aacute;quelle celebre monumento legislativo<sup><a href="#f100">[100]</a></sup>.
+Como, pois, se invoca um diploma que formalmente
+contradiz a doutrina que &eacute; destinado a
+sustentar?
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3><a name="c12"></a>VII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Os consorcios entre individuos das classes servis
+offereciam varias hypotheses juridicas: o servo
+podia casar com uma serva do mesmo senhor,
+ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum:
+o marido podia ir viver na residencia anterior
+da mulher, ou a mulher na residencia anterior
+do marido: materialmente, essas transla&ccedil;&otilde;es
+de domicilio podiam occorrer com licen&ccedil;a
+do senhor ou sem ella. Estes diversos factos influiam
+necessariamente nas rela&ccedil;&otilde;es do senhor e
+do servo. Restam em Portugal e em Hespanha
+bastantes documentos de que elles se davam, e
+de que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades
+que d'ahi procediam. Achamos contractos,
+inqueritos, memorias particulares, senten&ccedil;as,
+em que se previnem, se memoram, ou se
+remedeiam as consequencias dessas varias hypotheses
+em rela&ccedil;&atilde;o aos direitos dos senhores, e
+em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se
+haverem dado desde o VIII at&eacute; o XII seculo. Para
+occorrer aos conflictos de interesses e de direitos,
+<span class="pagenum">[319]</span>
+v&ecirc;-se dos mesmos documentos que se recorria
+&aacute; divis&atilde;o das familias. Em que consistia esta
+divis&atilde;o? O que &eacute; que se passava na realidade?
+<br />
+
+<br />
+
+O desac&ocirc;rdo entre mim e o sr. Mu&ntilde;oz j&aacute;
+se
+v&ecirc; que deve ser completo na aprecia&ccedil;&atilde;o
+dos documentos
+relativos a semelhante assumpto. Elle
+v&ecirc; a escravid&atilde;o como
+condi&ccedil;&atilde;o geral dos individuos
+da classe servil do seculo VIII ao XII: eu
+vejo-a s&oacute; em rela&ccedil;&atilde;o aos captivos
+sarracenos, e a
+servid&atilde;o da gleba em rela&ccedil;&atilde;o aos
+<em>homines de creatione</em>,
+aos <em>servi originales</em>. N'uma nota do
+meu
+livro<sup><a href="#f101">[101]</a></sup>
+mostrei, segundo creio, que os documentos
+com que elle pretendera provar que os filhos
+do servo e da serva de differentes senhores se
+dividiam entre estes<sup><a href="#f102">[102]</a></sup>
+se deviam entender de um
+modo diverso. Na minha opini&atilde;o, o que se dividia
+eram os servi&ccedil;os pessoaes, e em certos casos
+(como na incerteza de pertencer a um ou a
+outro senhor o dominio da gleba habitada pelo
+homem de crea&ccedil;&atilde;o) as
+presta&ccedil;&otilde;es agrarias. Em
+rela&ccedil;&atilde;o &aacute;s glebas possuidas de paes a
+filhos pelas
+familias servas, a minha theoria era e &eacute; que
+o <em>dominio</em> e o
+<em>uso</em> de qualquer desses predios se
+<span class="pagenum">[320]</span>
+moviam em duas espheras: que o
+<em>dominio</em>, manifestado,
+traduzido materialmente na percep&ccedil;&atilde;o
+das presta&ccedil;&otilde;es agrarias e na exigencia de
+servi&ccedil;os,
+era a propriedade do senhor; constituia o
+objecto de uma grande parte desses milhares de
+contractos do seculo VIII ao XII que restam nos archivos
+da Peninsula; que o que se vendia, doava,
+escambava mais ordinariamente era o direito a
+haver dos servos, dos <em>juniores</em>, dos
+malados,
+dos solarengos, do homem de trabalho, em summa,
+ingenuo ou n&atilde;o ingenuo, certas
+presta&ccedil;&otilde;es
+agrarias e certos servi&ccedil;os pessoaes, que nas glebas
+servis derivavam da duplicada servid&atilde;o do
+homem e da terra a que estava unido, e que na
+herdade ou casal do pe&atilde;o
+(<em>junior</em>), na maladia,
+no solar, derivavam de um contracto voluntario,
+tacito ou expresso; que as presta&ccedil;&otilde;es e os
+servi&ccedil;os
+do adscripto, representando a renda da terra
+e a obriga&ccedil;&atilde;o servil do individuo nella
+incorporado,
+eram duas cousas que facilmente podiam
+distinguir-se quando por consorcios, ou por outra
+qualquer eventualidade, o direito &aacute;s
+presta&ccedil;&otilde;es
+da gleba e aos servi&ccedil;os do homem ou da familia
+vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios
+(<em>domini</em>) diversos; que, assim
+distinctos,
+tanto aquellas presta&ccedil;&otilde;es, como aquelles
+<span class="pagenum">[321]</span>
+servi&ccedil;os podiam n&atilde;o s&oacute; affastar-se,
+unir-se de
+novo, mudar de proprietario separadamente por
+toda a especie de transmiss&atilde;o, mas at&eacute;
+fraccionar-se
+em si mesmos ou accumular-se, sem que
+por isso mudasse a condi&ccedil;&atilde;o do individuo que
+usufruia o predio, quer como adscripto, quer
+como colono livre.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o sei se varios documentos que o sr. Mu&ntilde;oz
+cita, logo no principio do seu opusculo<sup><a href="#f103">[103]</a></sup>,
+provam,
+como elle pretende, que as palavras
+<em>servus</em>,
+<em>homo</em>,
+<em>creatio</em>,
+<em>familia</em> se applicavam
+indistinctamente
+aos servos, &aacute;s familias da mesma origem,
+aos adscriptos, e n&atilde;o poucas vezes aos homens
+livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem.
+N&atilde;o vem isso para esta quest&atilde;o. O que
+sei &eacute; que mostram, como muitos outros, a verdade
+da precedente theoria, por ser ella unicamente
+que os explica. Assim, lemos alli que em 934
+Eximina doou a aldeia ou granja de Malares ao
+mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e
+perten&ccedil;as, <em>e com todos os seus homens,
+assim
+servos como livres, que serviram na mesma aldeia
+no tempo de meus paes e av&oacute;s</em>; lemos que
+em 1016 o mesmo mosteiro fez um escambo
+<span class="pagenum">[322]</span>
+com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario
+com as suas dependencias e <em>com a sua
+crea&ccedil;&atilde;o, servos e libertos e homens livres,
+quantos
+servem na mesma aldeia</em>; vemos que na
+doa&ccedil;&atilde;o
+de certas aldeias ao mosteiro de S. Salvador,
+em 932, se diz doarem-se <em>com a familia, libertos
+e pessoas livres (que fa&ccedil;am) ao dicto mosteiro
+e aos dictos senhores o servi&ccedil;o que costumavam
+fazer</em>. Como explicar doa&ccedil;&otilde;es e
+escambos
+de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente
+com os de servos e com os das aldeias
+em que tantos estes como aquelles moravam, se
+entendermos esses documentos ao p&eacute; da letra?
+N&atilde;o &eacute; evidente que se tracta das
+presta&ccedil;&otilde;es agrarias,
+que pagavam tanto as glebas servis, como
+os predios colonisados por homens livres, e dos
+servi&ccedil;os que tanto os adscriptos como os ingenuos,
+for&ccedil;adamente uns e por contractos espontaneos
+outros, eram obrigados a fazer? N&atilde;o vemos,
+at&eacute;, no 1.&ordm; documento que os individuos de
+ambas as categorias s&atilde;o, sem
+distinc&ccedil;&atilde;o,
+<em>herdeiros</em>,
+uns nos predios colonisados, outros nos predios
+de adscrip&ccedil;&atilde;o, porque os servi&ccedil;os que
+delles
+devem uns e outros vem de tempos remotos:
+<em>tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam
+deservierunt
+in vita aviorum et parentum meorum</em>?
+<span class="pagenum">[323]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A hereditariedade do servo na gleba, consequencia
+for&ccedil;osa da adscrip&ccedil;&atilde;o, eis, como
+j&aacute; disse
+n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula,
+desde o seculo VIII at&eacute; o XII, pelo homem de
+trabalho, pelo antigo escravo, para a liberdade.
+Quando o artigo VII do concilio ou cortes de
+Le&atilde;o de 1020 diz:&#8213;<em>Ninguem
+compre</em> a herdade
+do servo da igreja, do rei ou de alguem.
+<em>Quem a comprar perca-a e o que deu por
+ella</em>&#8213;faz-nos
+recordar a doutrina parallela do codigo
+wisigothico<sup><a href="#f104">[104]</a></sup>.
+Mas ha na lei de 1020 duas palavras
+que assignalam um abysmo entre as duas
+legisla&ccedil;&otilde;es: <em>haereditatem
+servi</em>, phrase que seria
+monstruosa no seculo VII, mas que no XI indica
+apenas um facto ass&aacute;s trivial para exigir providencias
+que o regulem e limitem. <em>Haereditas</em>
+&eacute; nas actas daquella assembl&eacute;a, como em geral
+nos documentos das Hespanhas, o
+<em>hereditagium</em>
+de al&eacute;m dos Piren&eacute;us; &eacute; o predio
+possuido de
+paes a filhos, o predio em que se succede por
+heran&ccedil;a. O servo ligado &aacute; gleba sabe que, quando
+morrer, ficar&atilde;o ahi os proprios descendentes;
+porque tambem sabe que elles e a gleba mutuamente
+se pertencem. Nas palavras <em>herdade
+do</em>
+<span class="pagenum">[324]</span>
+<em>servo</em> est&aacute; resumida a
+historia de uma transforma&ccedil;&atilde;o
+social.
+<br />
+
+<br />
+
+Que opp&otilde;e o sr. Mu&ntilde;oz a um facto que as leis,
+os contractos, as decis&otilde;es forenses conspiram
+em mostrar n&atilde;o s&oacute; como existente, mas tambem
+como universal em rela&ccedil;&atilde;o a todos os servos
+originarios ou homens de crea&ccedil;&atilde;o? Uma
+difficuldade
+practica. Supp&otilde;e que o servo de uma gleba
+poderia ir casar com uma mulher de uma gleba
+remota e de diverso senhor. Presta&ccedil;&otilde;es agrarias
+n&atilde;o as podia pagar, porque a terra era de
+outro dono; servi&ccedil;os pessoaes n&atilde;o os podia
+prestar,
+pela distancia em que vivia. Assim seus filhos.
+Dividindo-se estes materialmente, e levando
+o senhor do pae metade delles, emquanto a
+outra metade ficava na gleba materna, aquelles
+podiam ter o destino que conviesse a seu dono
+se eram escravos, ser repostos na gleba paterna
+se fossem de ra&ccedil;a adscripta. D'aqui a necessidade
+de entender os documentos no seu sentido apparente,
+e de crer que a praxe de se dividir a
+prole dos servos de d&iacute;fferentes senhores era a
+geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando
+a classe servil aos bens semoventes e aos
+moveis, destruia a personalidade dos individuos
+de semelhante classe, escrava em tal hypothese,
+<span class="pagenum">[325]</span>
+situa&ccedil;&atilde;o que o opusculo do sr. Mu&ntilde;oz
+tende a
+provar ser a dos servos desde o VIII at&eacute; o XII seculo.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas este argumento p&eacute;cca pela sua propria
+indole. Inferir que n&atilde;o existiu, ou pelo menos
+que n&atilde;o foi geral e predominante certa
+institui&ccedil;&atilde;o,
+de ter ella inconvenientes, que ali&aacute;s n&atilde;o
+existiriam
+predominando uma institui&ccedil;&atilde;o diversa ou
+contraria, e concluir d'ahi que foi esta a que
+existiu ou predominou, parece-me que seria um
+pessimo raciocinio na historia de &eacute;pochas e de
+paizes altamente civilisados, quanto mais na de
+eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro.
+Que havia em Oviedo e Le&atilde;o desde o VIII seculo
+at&eacute; o XII no direito publico, na
+administra&ccedil;&atilde;o,
+no estado das pessoas, nas rela&ccedil;&otilde;es civis, que
+fosse absoluto, uniforme, sem excep&ccedil;&atilde;o na
+practica?
+Que condi&ccedil;&otilde;es sociaes havia que n&atilde;o
+fossem
+incompletas, antinomicas, obscuras sob um
+ou sob outro aspecto? Que foi a idade m&eacute;dia,
+sen&atilde;o a infancia dolorosa e longa da
+civilisa&ccedil;&atilde;o
+moderna; que foi, sen&atilde;o uma serie de experiencias
+e tentativas de organisa&ccedil;&atilde;o das
+na&ccedil;&otilde;es, que
+surgiam do singular consorcio da sociedade romana,
+corrupta e dissolvida, com as aggrega&ccedil;&otilde;es
+quasi selvagens das hostes e das tribus germanicas,
+<span class="pagenum">[326]</span>
+mixto tornado ainda mais confuso na Peninsula
+pelo influxo da cultura arabe? Que cousa
+mais enredada, mais desharmonica, mais cheia
+de solu&ccedil;&otilde;es difficeis do que a vida social
+d'ent&atilde;o?
+Sem duvida que certas leis supremas, que
+regem a humanidade em qualquer situa&ccedil;&atilde;o que
+ella se ache, actuavam ent&atilde;o entre os povos, como
+sempre, e as paix&otilde;es impelliam os individuos
+do mesmo modo e produziam effeitos identicos
+ao que produzem em todos os tempos; mas
+disto &aacute; perfei&ccedil;&atilde;o, &aacute;
+harmonia das institui&ccedil;&otilde;es
+vai uma distancia immensa.
+<br />
+
+<br />
+
+Acceitando, por&ecirc;m, a doutrina do sr. Mu&ntilde;oz
+sobre a escravid&atilde;o absoluta dos servos originarios
+ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de
+applica&ccedil;&atilde;o practica que elle v&ecirc; na
+existencia da
+servid&atilde;o de gleba? A hypothese que lembrou p&oacute;de
+modificar-se. Supponhamos que o escravo,
+ido para outro logar e ahi casado com uma escrava
+de diverso dono, tinha um filho s&oacute;. Como se
+dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos
+que tinha um filho e uma filha. &Aacute; luz a
+que os escravos eram considerados, isto &eacute;, como
+animaes de carga, como machinas de trabalho, como
+cousas, emfim, o sexo dos individuos representava
+for&ccedil;osamente um valor diverso. A quem cabia
+<span class="pagenum">[327]</span>
+o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos
+a uni&atilde;o infecunda. Conforme quer o sr. Mu&ntilde;oz,
+o meio ordinario de reparar a perda do escravo
+ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba
+de um senhor differente, era a reparti&ccedil;&atilde;o
+material
+dos filhos. Na falta destes, resignava-se, acaso,
+o senhor do servo fugido a perder os servi&ccedil;os
+delle, porque, n&atilde;o podendo dissolver-se o
+matrimonio e vivendo a familia escrava a grande
+distancia, n&atilde;o era possivel exigi-los?
+<br />
+
+<br />
+
+A lei wisigothica, por&ecirc;m, ainda em vigor na
+monarchia n&eacute;o-gothica, estatuia a respeito destes
+consorcios, n&atilde;o devidamente consentidos, entre
+servos de differentes donos uma regra clara e
+exequivel. Aquelle dos dous senhores que se aproveitara
+desse acto irregular, que se appropriara
+por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia
+os dous conjuges e a respectiva prole em beneficio
+do que fora espoliado<sup><a href="#f105">[105]</a></sup>.
+Se a situa&ccedil;&atilde;o dos
+servos
+originarios n&atilde;o tinha mudado, porque n&atilde;o se
+applicava a lei? Que a divis&atilde;o das familias, quer
+como a entende o sr. Mu&ntilde;oz, quer como eu a entendo,
+constituia j&aacute; a jurisprudencia ordinaria do
+seculo XI &eacute; uma cousa de que os documentos citados
+<span class="pagenum">[328]</span>
+por elle, e outros que poderia citar, n&atilde;o
+permittem que se duvide. Porque se oblitterou a
+lei wisigothica nesta parte? &Eacute; evidentemente porque,
+tendo mudado a situa&ccedil;&atilde;o dos individuos a que
+ella era applicavel, devia buscar-se um meio de
+reparar a offensa do direito sem tractar os servos
+como bens semoventes.
+<br />
+
+<br />
+
+O direito dos senhores das glebas, &aacute;s quaes
+os servos pertenciam, sobre as presta&ccedil;&otilde;es
+agrarias
+das mesmas glebas e aos servi&ccedil;os dos individuos
+ou familias a ellas adscriptos n&atilde;o offereceria
+realmente os inconvenientes practicos que
+suscitaria o systema supposto pelo sr. Mu&ntilde;oz. J&aacute;
+notei que este argumento &eacute; m&aacute;u; mas &eacute;
+certo
+que nem esse m&aacute;u argamento favorece a sua
+opini&atilde;o.
+O servo, que se desaggregava da gleba sem
+consentimento do senhor, podia ser reconduzido
+violentamente a ella. Este era o principio. Mas se
+elle lhe fizesse os servi&ccedil;os pessoaes que d'antes fazia,
+parece que devia ser facil o chegar-se a uma
+transac&ccedil;&atilde;o, a um ac&ocirc;rdo. A gleba
+l&aacute; ficava cultivada
+pelo resto da familia adscripta e produzindo
+as mesmas presta&ccedil;&otilde;es agrarias, ao passo que
+o individuo desempenhava os mesmos deveres
+pessoaes. Suppondo que este fosse residir a grande
+distancia (hypothese rarissima n'uma epocha
+<span class="pagenum">[329]</span>
+em que n&atilde;o existia a menor facilidade de
+communica&ccedil;&otilde;es)
+esses servi&ccedil;os podiam ser transformados
+em presta&ccedil;&otilde;es em generos, ou em moeda. Se
+o servo se casava e tinha filhos, metade dos servi&ccedil;os
+da nova familia pertenciam ao seu antigo
+senhor, obriga&ccedil;&atilde;o herdada, que podia ser
+satisfeita
+do mesmo modo. Era um systema complicado,
+e que daria, como dava, origem a mais de
+um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece
+n&atilde;o offereceria hypotheses insoluveis como
+a theoria adoptada pelo sr. Mu&ntilde;oz.
+<br />
+
+<br />
+
+Na <em>noticia</em> dos homens do mosteiro de
+Cartavio
+publicada na <em>Colleccion de
+Fueros</em><sup><a href="#f106">[106]</a></sup>
+l&ecirc;-se <em>in
+Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis mediis...
+in Mirites... Savaricum integrum...
+in Mintes... Petrum Vistiz integrum cum suis
+filiis mediis</em>, etc. Temos, pois, nos proprios
+documentos
+publicados pelo sr. Mu&ntilde;oz a prova de
+que um individuo morador em certa granja ou
+aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente
+ao dono dessas glebas. &Eacute; uma das hypotheses
+que eu figurei, e que o sr. Mu&ntilde;oz nos n&atilde;o
+diz como se resolveria no seu systema.<sup><a href="#f107">[107]</a></sup><span class="pagenum">[330]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A interpreta&ccedil;&atilde;o que dou aos documentos que
+se referem &aacute; divis&atilde;o dos servos originarios, e
+que eu supponho geralmente adscriptos, &eacute; t&atilde;o
+obvia; esses documentos provam t&atilde;o pouco que
+a divis&atilde;o dos membros da familia serva se haja
+for&ccedil;osamente de entender como uma divis&atilde;o
+material;
+era t&atilde;o possivel moverem-se os individuos,
+em rela&ccedil;&atilde;o ao dominio, n'uma esphera diversa
+daquella em que se moviam as presta&ccedil;&otilde;es agrarias
+e os servi&ccedil;os pessoaes; a confus&atilde;o da terra
+com o homem, da obriga&ccedil;&atilde;o com a pessoa a quem
+ella imcumbia, era t&atilde;o vulgar na linguagem juridica,
+que o proprio sr. Mu&ntilde;oz adopta o meu systema
+de interpreta&ccedil;&atilde;o a proposito de documentos
+analogos nas express&otilde;es &aacute;quelles com que
+pretende refutar o mesmo systema. Falando de
+<span class="pagenum">[331]</span>
+diplomas, em que se faz doa&ccedil;&atilde;o, venda, ou
+permuta&ccedil;&atilde;o
+de solares incluindo os solarengos,
+accrescenta: <em>Obstam muito pouco alguns documentos
+de venda, doa&ccedil;&atilde;o e troca feitas junctamente
+com os solarengos. N&atilde;o quer isto dizer
+que se vendessem as pessoas; mas sim os tributos
+e servi&ccedil;os que estas tinham obriga&ccedil;&atilde;o
+de prestar.</em>
+Se a linguagem dos documentos se p&oacute;de tomar
+como figurada em rela&ccedil;&atilde;o aos solarengos,
+porque n&atilde;o se poder&aacute; entender do mesmo modo
+em rela&ccedil;&atilde;o aos servos originarios ou homens
+de crea&ccedil;&atilde;o? Como se pretende deduzir dessa
+linguagem
+um argumento para provar que estes
+eram vendidos, escambados, ou doados como
+cousas, como bens semoventes, e sem personalidade,
+n&atilde;o se permittindo tirar igual inferencia
+a respeito dos solarengos?
+<br />
+
+<br />
+
+A quest&atilde;o do estado das classes servas na monarchia
+n&eacute;o-gothica comportava maiores desenvolvimentos.
+Esses desenvolvimentos n&atilde;o cabem,
+por&ecirc;m, neste breve opusculo e na forma de
+publica&ccedil;&atilde;o
+a que &eacute; destinado: por isso pararei aqui.
+Permitta-me o sr. Mu&ntilde;oz y Romero que repita,
+acabando, as express&otilde;es de sincero apre&ccedil;o pelo
+seu alto merito litterario, e pelos seus esfor&ccedil;os
+para derramar luz nas trevas da nossa idade media.
+<span class="pagenum">[332]</span>
+O que ha de abnega&ccedil;&atilde;o, de zelo pela sciencia,
+de for&ccedil;as intellectuaes consummidas em desbravar
+os desvios por onde o sr. Mu&ntilde;oz se embrenhou
+s&oacute; o conhece aquelle que nesse duro lavor
+deixou passar os melhores dias da vida, sem
+saber o que a mocidade tem de gozos, a idade
+viril de ambi&ccedil;&otilde;es, e a velhice de vaidades, e
+cuja
+recompensa unica ser&aacute; escrever-se-lhe na campa:
+<em>Aqui dorme um homem que conquistou para a
+grande mestra do futuro, para a historia, algumas
+importantes verdades.</em>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>INDICE
+</h3>
+
+<br />
+
+<h4>A batalha de Ourique
+</h4>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 5%;">I</td>
+
+ <td style="width: 45%;">Eu e o
+Clero</td>
+
+ <td style="width: 40%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c1">3</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td>Considera&ccedil;&otilde;es
+pacificas</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c2">35</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td>Solemnia Verba
+1.&ordf;</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c3">72</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td>Solemnia Verba
+2.</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c4">99</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td>A Sciencia
+arabico-academica</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c5">185</a></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<h4>Do estado das classes servas na
+Peninsula
+</h4>
+
+<br />
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 5%;">I</td>
+
+ <td style="width: 85%;">
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="width: 10%; text-align: right;"><a href="#c6">237</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">II</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c7">245</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">III</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c8">263</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">IV</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c9">265</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">V</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c10">285</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VI</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c11">317</a></td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;">VII</td>
+
+ <td>
+ <div class="dots"></div>
+
+ </td>
+
+ <td style="text-align: right;"><a href="#c12">318</a></td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<b>Notas:</b>
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f1" id="f1"></a><sup>[1]</sup>
+Sermo De Convers. S. Paul.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f2" id="f2"></a><sup>[2]</sup>
+Epistolar. Epist. 152.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f3" id="f3"></a><sup>[3]</sup>
+Mem. de D. Fr. Caetano Brand&atilde;o, T. II, p. 411.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f4" id="f4"></a><sup>[4]</sup>
+Concil. Trident. Sess. 25, Decr. de Purgat.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f5" id="f5"></a><sup>[5]</sup>
+Concil. Colon I, tit. 6 c. 25.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f6" id="f6"></a><sup>[6]</sup>
+Van-Espen, Jus Eccles. P. 1 tit. 22 cap. 10.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f7" id="f7"></a><sup>[7]</sup>
+Gesch. der Italienisch. Staat. IV B., 4 kap. &sect; 6.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f8" id="f8"></a><sup>[8]</sup>
+Vol. 1 Nota 3 p. 466 e segg.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f9" id="f9"></a><sup>[9]</sup>
+S. P. Damiani Epistol. ad Sum. Pontif. L. 1 Epist.
+16.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f10" id="f10"></a><sup>[10]</sup>
+Greg. VII Epistolar. Liv. 8 Epist. 21.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f11" id="f11"></a><sup>[11]</sup>
+De Considerat. L. 3 c. 3.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f12" id="f12"></a><sup>[12]</sup>
+Ibid. Liv. 4 c. 4.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f13" id="f13"></a><sup>[13]</sup>
+Um grande numero dessas passagens e cantigas,
+relativas aos seculos XI, XII e XIII, acham-se colligidas
+na Historia dos Hohenstaufen de Raumer, Vol. 6, pag.
+178 e segg.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f14" id="f14"></a><sup>[14]</sup>
+Scriptores Rer. Francicar., T. XVII p. 558.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f15" id="f15"></a><sup>[15]</sup>
+Art de Verif. les Dates, vol. 1 pag. 299.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f16" id="f16"></a><sup>[16]</sup>
+Matth. Paris, p. mihi 607 col. 2.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f17" id="f17"></a><sup>[17]</sup>
+Chronic. pag. mihi 287.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f18" id="f18"></a><sup>[18]</sup>
+Def. de la Declar. I. 6.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f19" id="f19"></a><sup>[19]</sup>
+D. Hilar. Pictav., In Psalm. 53.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f20" id="f20"></a><sup>[20]</sup>
+D. Gregor., Expos. in Job L. 8 c. 6, L. 13 c. 4.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f21" id="f21"></a><sup>[21]</sup>
+Recordo-me de ler em a
+<em>Na&ccedil;&atilde;o</em> um
+communicado de
+Coimbra, assignado por um parocho, em que se me dizia
+que, se as assaduras da inquisi&ccedil;&atilde;o tinham
+acabado, c&aacute; estavam
+os bispos. O bom do homem ainda espera que os
+bispos de Portugal possam queimar gente. &Eacute; uma doce
+illus&atilde;o como qualquer outra.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f22" id="f22"></a><sup>[22]</sup>
+&laquo;ne ab uberiori auctorum copia alliciamur, sed
+poti&ugrave;s
+ab ipsorum merito et <em>gravitate</em>;
+multoti&egrave;s enim fit,
+ut <em>gravis</em>, periti atque sinceri
+scriptoris auctoritas, etc.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Que diria um desses furiosos que cr&ecirc;m que o vocabolario
+dos prostibulos p&oacute;de supprir os rudimentos da sciencia,
+e que me condemnou como ignorante por falar em
+<em>gravidade da historia</em> em
+rela&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o ao estylo, mas sim
+&aacute; materia, se ouvisse o venerando Mabillon falar na
+gravidade
+do historiador tambem em rela&ccedil;&atilde;o &aacute;
+essencia e
+n&atilde;o &aacute; forma, e isso duas vezes n'um unico
+paragrapho!!
+Chamava-lhe ignorantissimo. Oh clero portugu&ecirc;s, clero
+portugu&ecirc;s!
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f23" id="f23"></a><sup>[23]</sup>
+&laquo;Elle <em>ne craint que</em>
+de n'&ecirc;tre pas connue&raquo;: Fleury diz
+que, n&atilde;o a igreja, mas o proprio christianismo
+<em>teme</em>. Em
+Portugal a theologia das tabernas entende-o d'outro modo.
+&Eacute; uma consola&ccedil;&atilde;o ser impio e herege
+com o virtuoso prior
+de Argenteuil. Pobre igreja portuguesa.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f24" id="f24"></a><sup>[24]</sup>
+Todas as pessoas mediocremente instruidas sabem o que
+quer dizer <em>theocratico</em>; mas o
+demente que escreveu estas
+blasphemias n&atilde;o sabe portugu&ecirc;s, quanto mais grego.
+Fez
+uma phrase ridicula para introduzir ahi um vocabulo que
+os ignorantes n&atilde;o entendessem e que portanto admirassem.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f25" id="f25"></a><sup>[25]</sup>
+Accentuado por causa das freiras que dizem missa.
+A ignorancia das freiras &eacute; a raz&atilde;o capital da
+accentua&ccedil;&atilde;o
+nos livros rituaes, segundo o digno sacerdote que, por
+vingan&ccedil;a,
+acceitou das <em>capellas</em> o pio mister
+de me injuriar e
+calumniar sanctamente.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f26" id="f26"></a><sup>[26]</sup>
+Nova Insistencia, etc., pag. 34.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f27" id="f27"></a><sup>[27]</sup>
+Demonstra&ccedil;&atilde;o pag. 34.&#8213;Insistencia pag. 10.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f28" id="f28"></a><sup>[28]</sup>
+Poucos annos antes, os embaixadores de D. Dinis tinham
+offerecido inutilmente ao pontifice uns artigos com
+o mesmo intuito, e contendo em substancia o mesmo que os
+de Pedro Escacho. Ahi nem uma palavra se diz sobre a
+acclama&ccedil;&atilde;o em Ourique, em que tambem
+n&atilde;o fala nenhum
+dos chronicons coevos. Assim, a inven&ccedil;&atilde;o da
+historia da
+acclama&ccedil;&atilde;o p&oacute;de fixar-se no principio
+do seculo XIV, tendo
+talvez em parte dado motivo a ella esta quest&atilde;o da
+desmembra&ccedil;&atilde;o
+da ordem de Sanctiago, negocio que foi assaz
+rudioso e importante. Veja-se a Historia de Portugal, Vol. I,
+pag. 489 (Nota XVIII).
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f29" id="f29"></a><sup>[29]</sup>
+Estes chronicons est&atilde;o publicados nos
+<em>Portugaliae
+Monumenta Historica</em>, Vol. 1, p. 26.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f30" id="f30"></a><sup>[30]</sup>
+Tanto este como os dez paragraphos precedentes foram
+supprimidos nas edi&ccedil;&otilde;es avulsas das
+<em>Solemnia Verba</em>.
+Era uma digress&atilde;o que pouco servia para rebater as
+opini&otilde;es
+adversas, e que entretanto affrouxava o cerrado da
+argumenta&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f31" id="f31"></a><sup>[31]</sup>
+Os Cuidados Litterarios de Cenaculo, a Memoria de
+frei Joaquim de Sancto Agostinho sobre os codices
+d'Alcoba&ccedil;a,
+o Elucidario de Viterbo, as Observa&ccedil;&otilde;es de J. P.
+Ribeiro publicaram-se proximamente pelo mesmo tempo.
+Viterbo, frei Joaquim de Sancto Agostinho, Ribeiro eram
+<em>innovadores perigosos</em>
+ent&atilde;o, como eu o sou hoje. Cenaculo
+era um bispo erudito. Quantas palestras litterarias,
+quantas contendas oraes precederiam a publica&ccedil;&atilde;o
+daquelles
+escriptos oppostos!
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f32" id="f32"></a><sup>[32]</sup>
+&laquo;&agrave; l'heure que je commence a dicter ce
+present escrit
+je suis en la soixante sexieme ann&eacute;e de ma vie.&raquo;
+Petitot
+f&aacute;-lo nascido em 1426. Falleceu no 1.&ordm; de fevereiro
+de 1502, segundo se deprehende da sua inscrip&ccedil;&atilde;o
+sepulchral,
+com 76 annos d'idade.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f33" id="f33"></a><sup>[33]</sup>
+D'aqui vinha por certo o titulo de <em>conde
+palatino</em> de
+que usava Vasco de Lucena, titulo que tanto tem feito
+scismar os nossos antiquarios.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f34" id="f34"></a><sup>[34]</sup>
+Vejam-se as provas indisputaveis d'isto em Ribeiro,
+Observa&ccedil;&otilde;es de Diplomatica, pag. 79 e seg.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f35" id="f35"></a><sup>[35]</sup>
+Et cette opinion je tiens de plusieures notables gens
+portugalois qui ont est&eacute; de ma congnoissance.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f36" id="f36"></a><sup>[36]</sup>
+Pina, Chron. de D. Jo&atilde;o II, c. 15.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f37" id="f37"></a><sup>[37]</sup>
+Bulla: <em>Ut saluti</em> 5 febr. 13.&ordm;
+Sixti IV.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f38" id="f38"></a><sup>[38]</sup>
+Preafatae ecclesiae, a qua regiae dignitatis culmen
+accepisti, cuique annuum censum debes: Ibid.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f39" id="f39"></a><sup>[39]</sup>
+Bulla: <em>Venerabilis frater</em>: 6
+febr. 13.&ordm; Sixti IV.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f40" id="f40"></a><sup>[40]</sup>
+Carta de D. Alvaro de Bragan&ccedil;a escripta de Castella
+a D. Jo&atilde;o II. (Ms. da Biblioth. R.)
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f41" id="f41"></a><sup>[41]</sup>
+Talvez seja gente de mais. Mas deixe v.. passar;
+porque isto era j&aacute; estylo peninsular naquella epocha.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f42" id="f42"></a><sup>[42]</sup>
+Jorn. de Coimbra, 1813, Abril, p. 310.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f43" id="f43"></a><sup>[43]</sup>
+Memor. do R. Archivo, pag. 59.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f44" id="f44"></a><sup>[44]</sup>
+Chancell. d'Aff. II. (M. 12 de For. Ant. N.&ordm; 3).
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f45" id="f45"></a><sup>[45]</sup>
+Veja-se o alvar&aacute; de D. Manuel, de 1502, no Liv. dos
+Privileg. de Sancta Cruz fl. 2, o doc. de 1458 a fl. 157
+do mesmo Liv., o do L. 5 da Estremadura fl. 116 v. no
+Arch. Nac., etc.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f46" id="f46"></a><sup>[46]</sup>
+Chron. dos Coneg. Regr., L. 9, c. 29.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f47" id="f47"></a><sup>[47]</sup>
+Prodrom. ad refutat. Alcorani
+<em>passim</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f48" id="f48"></a><sup>[48]</sup>
+Uber die L&auml;nderverwaltung unter dem Khalifate
+(Berlim 1835) Schaefer, Gesch. Span. 3 Th. S. 145.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f49" id="f49"></a><sup>[49]</sup>
+O <em>digno</em> academico refere-se
+evidentemente &aacute; traduc&ccedil;&atilde;o
+de Moura; porque nem o commum dos leitores, que elle
+convida para lerem esses capitulos, entendem o arabe, nem
+o original tem capitulos, como se deprehende do prologo
+de Moura, e se v&ecirc; das cita&ccedil;&otilde;es do texto
+arabe feitas pelo
+sr. Gayangos nas suas notas &aacute; vers&atilde;o inglesa de
+Al-Makkari.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f50" id="f50"></a><sup>[50]</sup>
+Nesta classe, como em todas, ha excep&ccedil;&otilde;es
+respeitaveis:
+falo em geral.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f51" id="f51"></a><sup>[51]</sup>
+Dominac. de los Arab., P. 3 in fine.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f52" id="f52"></a><sup>[52]</sup>
+Al-Khatib, Bibl. apud Casiri Bibl. Arab., T. 2, p. 216
+e segg.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f53" id="f53"></a><sup>[53]</sup>
+Abu-l-Feda, Annales Moslemici, T. 3, p. 359.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f54" id="f54"></a><sup>[54]</sup>
+Al-Makkari (vers&atilde;o de Gayangos), Liv. 7 c. 5 e segg.
+L. 8 c. 1 e 2. Veja-se tambem a taboa chronologica a p.
+89 dos Append. do 2 vol., e os extractos no livro
+<em>Kitabu-l-iktif&aacute;</em>
+(Append. C. ad fin.). O reinado de Abu-Is'h&aacute;k,
+sitiado em Marrocos pelos almohades, foi apenas nominal.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f55" id="f55"></a><sup>[55]</sup>
+Chron. Gothor. ad aer. 1125-1155.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f56" id="f56"></a><sup>[56]</sup>
+Chron. Conimbric, ad aer. 1155.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f57" id="f57"></a><sup>[57]</sup>
+Roder. Tolet. Histor. Arabum, cap. 49.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f58" id="f58"></a><sup>[58]</sup>
+Assaleh, vers&atilde;o de Moura, c. 43, 44, 45.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f59" id="f59"></a><sup>[59]</sup>
+Ibid. c. 40.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f60" id="f60"></a><sup>[60]</sup>
+Conde, P. 3, c. 33.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f61" id="f61"></a><sup>[61]</sup>
+Casiri, T. 2, p. 218, col. 2.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f62" id="f62"></a><sup>[62]</sup>
+Espa&ntilde;a Sagr., 21, 373.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f63" id="f63"></a><sup>[63]</sup>
+O nome mais geral nos auctores arabes &eacute;
+<em>Lamtuna</em>;
+mas Ibn-Khaldun (Gayangos, vol. 1, p. 408 nota
+<em>a</em>) chama-lhe
+<em>Lamtah</em> e Le&atilde;o Africano
+(Casiri, vol. 2, p. 219) <em>Lemta</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f64" id="f64"></a><sup>[64]</sup>
+A pag. 22 do opusculo diz-se que escrever
+<em>emir</em> &eacute;
+erro do vulgo dos traductores em vez de
+<em>amir</em> (o caso &eacute;
+serio), e a pag. 11 diz-se que em vez de
+<em>emir-el-muminin</em>
+eu deveria escrever <em>emir
+el-muminina</em>. Em que ficamos?
+Em <em>emir</em> ou em
+<em>amir</em>? Quanto a
+<em>muminina</em>, Gayangos,
+Casiri, etc. escrevem sempre
+<em>muminin</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f65" id="f65"></a><sup>[65]</sup>
+Gayang. vers. d'Al-Makkari, Vol. 2, p. 386
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f66" id="f66"></a><sup>[66]</sup>
+Abulfeda, Annal. Mosl., T. 2, p. 471.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f67" id="f67"></a><sup>[67]</sup>
+Vers&atilde;o francesa de Pellissier et R&eacute;musat p.
+192. Ibn-Khalddun
+denomina frequentemente khalifas os imperadores
+almohades. (Gayangos, Vol. 2, App. D.)
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f68" id="f68"></a><sup>[68]</sup>
+Assaleh. c. 45. Neste capitulo fala-se muitas vezes no
+<em>califado</em> e no
+<em>califa</em> Abdelmumen.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f69" id="f69"></a><sup>[69]</sup>
+N&atilde;o &eacute; s&oacute; a chronica de Affonso
+VII que refere a
+queda de Aurelia: os Annaes Toledanos referem-na igualmente.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f70" id="f70"></a><sup>[70]</sup>
+O Kartt&aacute;s (titulo da historia d'Abdel-halim),
+&eacute; propriamente,
+segundo o testimunho de Haji-Khalfah, e conforme
+o que se l&ecirc; em diversos exemplares da obra,
+escripto por Ibn-Abi-Zara, que viveu no seculo XIII. Ab-del-halim
+parece ter sido um copista, ou talvez um abbreviador.
+Veja-se a nota do sr. Gayangos ao L. 8, c. 2 de
+Al-Makkari.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f71" id="f71"></a><sup>[71]</sup>
+Assaleh&#8213;vers. de Moura, c. 40 p. 182.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f72" id="f72"></a><sup>[72]</sup>
+Chronica Adef. Imper. Praef. et &sect; 64.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f73" id="f73"></a><sup>[73]</sup>
+Sigo a pagina&ccedil;&atilde;o do opusculo, tirado
+&aacute; parte depois
+d'impresso na <em>Revista de
+Ambos-Mundos</em>. Um exemplar
+delle que possuo, devo-o &aacute; urbanidade e benevolencia do
+sr. Mu&ntilde;oz, que teve a bondade de m'o remetter.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f74" id="f74"></a><sup>[74]</sup>
+Em documentos do seculo XIII vemos ainda a
+designa&ccedil;&atilde;o
+de servos applicada aos escravos mouros. N'um
+testamento de 1232 s&atilde;o legados ao mosteiro
+d'Alcoba&ccedil;a
+<em>sarracenos et sarracenas servos et
+servas</em>. Doc. de Alcoba&ccedil;a
+na Collec&ccedil;. Especial, Gav. 81 na Torre do Tombo.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f75" id="f75"></a><sup>[75]</sup>
+Hist. de Port., T. 3, p. 313 da 3.&ordf; edic.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f76" id="f76"></a><sup>[76]</sup>
+Hist. de Port., T. 3.&ordm;, p. 255 (nota 4) 274 &amp;c.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f77" id="f77"></a><sup>[77]</sup>
+Esp. Sagr., T. 40, Append. 19.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f78" id="f78"></a><sup>[78]</sup>
+Doc. de Moreira na Torre do Tombo, Collec&ccedil;. Especial,
+G. 78.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f79" id="f79"></a><sup>[79]</sup>
+Por exemplo, o 1.&ordm; bispo de Coimbra depois da
+restaura&ccedil;&atilde;o,
+Paterno, que, sendo bispo de Tortosa e vindo
+por embaixador dos Beni-Huds de Sarago&ccedil;a a Fernando-magno,
+foi alliciado pelo alvasir Sesnando para acceitar o
+episcopado de Coimbra, o que fez alguns annos depois.
+<em>Qui suprafatus episcopus</em> (diz o
+documento do Livro Preto
+da S&eacute; de Coimbra que refere o facto) <em>eo
+tempore Tortuosane
+Urbis sedem tenebat, sed propter societatem paganorumofficium et
+ordinem suum minim&egrave; adimplere valebat</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f80" id="f80"></a><sup>[80]</sup>
+N'uma doa&ccedil;&atilde;o de 1083 &aacute; igreja de
+Vous&eacute;la (Livro
+Preto f. 144) mencionam-se entre outras alfaias <em>una
+casula
+tiraz et una dalmadiga tiraz</em>. O
+<em>tiraz</em> era um estofo
+precioso de fabrica sarracena, de que usavam as pessoas
+principaes entre os mussulmanos, onde se liam bordadas
+ora&ccedil;&otilde;es do culto islamitico e
+senten&ccedil;as de koran. Quando
+os sacerdotes da igreja de Arcozelo &aacute; qual tinham pertencido
+aquelles paramentos, ou os da de Vous&eacute;la, &aacute; qual
+se
+doaram, celebrassem, revestidos com elles, os officios divinos,
+os assistentes que n&atilde;o ignorassem a leitura do arabe
+poderiam ir misturando as preces da igreja com as do
+islamismo, e lendo as senten&ccedil;as do koran, emquanto
+os <a href="#e15">celebrantes</a> repetiam
+os textos do evangelho.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f81" id="f81"></a><sup>[81]</sup>
+Gothorum ordinem... tam in ecclesia... quam in
+palatio... statuit: Chron. Albeld &sect; 58.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f82" id="f82"></a><sup>[82]</sup>
+Martim Moniz (genro do conde Sesnando e seu successor
+no governo de Coimbra) doa perpetuamente a Jo&atilde;o
+Gosendes os bens na villa de S. Martinho <em>que ibi
+obtinuit
+Cidel Pelagis in autondo de consule domno Sesnando</em>.
+(Livro
+Preto da S&eacute; de Coimbra f...) Aqui
+<em>atondo</em> significa
+servi&ccedil;o (<em>no servi&ccedil;o do conde
+Sesnando</em>) ou retribui&ccedil;&atilde;o
+por servi&ccedil;o, mas temporaria, por isso que os bens se
+doam depois hereditariamente a outro.
+<br />
+
+<br />
+
+Documento hoje publicado nos <em>Portugali&aelig;
+Monumenta
+Historica, Diplomata et Chart&aelig;</em>, Pars. 1.&ordm;
+N.&ordm; 770.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f83" id="f83"></a><sup>[83]</sup>
+Pag. 7.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f84" id="f84"></a><sup>[84]</sup>
+Pag. 12 e 13.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f85" id="f85"></a><sup>[85]</sup>
+surda aure cum inimicis summi Dei amicitias conligamus,
+et placentes eis nostrae fidei derogamus&#8213;Quotidie
+opprobriis et mille contumeliorum fascibus obrupti,
+persecutionem nos dicimus non habere&#8213;Christianos contra
+fidei suae socios, pro regis gratia et pro vendibilibus
+muneribus et defensione gentilium praeliantes, non maledicimus
+nec detestamus, sed religiosos pro vero Deo certantes
+anathemate percutimus et infamamus&#8213;Nonne ipsi
+qui videbantur columnae, qui putabantur ecclesiae petrae...
+nullo cogente... Dei martyres infamaverunt? Nonne
+pastores Christi, doctores ecclesiae, episcopi, abbates,
+presbyteres, proceres et magnates haereticos eos esse
+public&egrave;
+clamaverunt?&#8213;D&ugrave;m enim circumcisionem ob improperantium
+ignominiam devitandam... cum dolore
+etiam non medio corporis exercemus&#8213;Et d&ugrave;m eorum versibus
+et fabellis mille suis delectamus, eisque inservire,
+vel ipsis nequissimis obsecundare etiam premio emimus...
+ex inlicito servitio et execrando ministerio abundantiores
+opes congregantes, fulgores, odores, vestimentorumque,
+sive opum diversarum opulentiam, in longa tempora
+nobis filiisque nostris atque nepotibus praevidentes,&#8213;ob
+honores saeculi fratres cum crimine regibus impiis
+accusamus,.. inimicis summi Dei ad occidendum gregem
+Domini gladium revelationis porrigimus, ducatumque
+eorum et ministerium ad ipsum facinus exercendum pecuniis
+emimus.&#8213;Nonne omnes juvenes christiani, vultu
+decori, linguae disserti, habitu gestuque conspicui, gentilitia
+eruditione praeclari, arabico eloquio sublimati, volumina
+chaldaeorum avidissim&egrave; tractant, intentissim&egrave;
+legunt,
+ardentissim&egrave; disserunt?&#8213;linguam suam nesciunt christiani,
+et linguam propriam non advertunt latini, ita ut
+omni Christi collegio vix inveniatur unus in milleno hominum
+numero, qui salutatorias fratri possit rationabiliter
+dirigere litteras, et reperitur absque numero multiplex
+turba qui erudit&egrave; chaldaicas verborum explicet pompas.
+<em>Alvar. Cordub. Indicul. Lumin.
+passim.</em>
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f86" id="f86"></a><sup>[86]</sup>
+ille dixit quomodo fuit suo avolo Ezerag de Condeixa,
+et quando filarunt mauros Colimbria fuit ille Ezerag
+ad Farfon ibn Abdella et fecit se mauro et petibit XXX.&ordf;
+mauros de arragaza et metivit illos in matos et dixit ad
+illos christianos de illas villas exite gente benedicta quia
+jam pace filavi cum mauros et exibant de illos matos et
+populabant illas villas et exiebant illos mauros de illos
+matos et levarunt eos ad Sanctaren et venundabant eos et
+fecerunt in illos VI haretas de argento et inderenzarunt
+illos ad Cordova cum carta de Farfon et cum isto ganato,
+et petivit illos molinos de Forma et alias villas multas et
+donavit illos. Almanzor: <em>Lib. Testamentor. f. 76
+v.</em>
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f87" id="f87"></a><sup>[87]</sup>
+Na freguesia de S. Martinho, aldeia de Valloura, districto
+de Aguiar de Pena, havia 3 casaes, cujos moradores,
+al&eacute;m de outros onus, tinham o seguinte: <em>et
+vadunt in
+mandatum ad Legionem, ut sciatur per ipsos quid facit
+rex legionensis</em>: Inquiri&ccedil;&otilde;es de
+1220: Liv. 5 de D. Diniz
+f. 118 v.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f88" id="f88"></a><sup>[88]</sup>
+Pag. 19 e 20.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f89" id="f89"></a><sup>[89]</sup>
+Pag. 124 e 153.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f90" id="f90"></a><sup>[90]</sup>
+Pag. 12.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f91" id="f91"></a><sup>[91]</sup>
+La Russie, Lettre X.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f92" id="f92"></a><sup>[92]</sup>
+Pag. 15.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f93" id="f93"></a><sup>[93]</sup>
+Pag. 44 e segg.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f94" id="f94"></a><sup>[94]</sup>
+Hist. de Port., T. 4, pag. 336 e 482.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f95" id="f95"></a><sup>[95]</sup>
+Doa&ccedil;&atilde;o de Diogo Olidiz a Tructesindo
+Gutierriz da
+igreja de S. Marina: &laquo;damus ad vobis illa pro plagas et
+feridas malas que cemus (<em>sic</em>) ad
+vestros malados, et non
+abuimus unde illas pectare:&raquo; Doc. original do mosteiro
+de Moreira de 1075 no Arch. Nacional.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f96" id="f96"></a><sup>[96]</sup>
+Liv. 1, Tit. 7, l. 2.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f97" id="f97"></a><sup>[97]</sup>
+Qui conductarium alienum occiderit dominus ejus
+accipiat inde homicidium. Similiter de suo ortolano et
+de suo quartario et de suo molendinario et de suo solarengo.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f98" id="f98"></a><sup>[98]</sup>
+Et homo de Nomam qui suos homines habuerit in
+suis hereditatibus, aut sui vassali fuerint, et aliquis illum
+mactaverit, suus senior colligat inde homicidium: For.
+de Num&atilde;o de 1130.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f99" id="f99"></a><sup>[99]</sup>
+...... peccato impediente battivimus vestro junior,
+nomine Froila, cum alios meos galiasianes... et pervenit
+ipse Froila de ipsa badtedura ad mortem, et pro ipso homicidium
+abui vobis ad dare in judicato quinque boves,
+et pro ipsis quinque boves incommunio vobis pro medio
+&amp;. Est. de las Person., pag. 15.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f100" id="f100"></a><sup>[100]</sup>
+Collecc. de Fuer. Municip., pag. 130 e seg.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f101" id="f101"></a><sup>[101]</sup>
+Hist. de Port., Vol. 3., Nota final XVI.
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f102" id="f102"></a><sup>[102]</sup>
+Collecc. de Fuer. Municip., pag. 126.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f103" id="f103"></a><sup>[103]</sup>
+Pag. 2.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f104" id="f104"></a><sup>[104]</sup>
+Liv. 5, tit. 4, l. 13.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f105" id="f105"></a><sup>[105]</sup>
+Liv. 2, tit. 4, l. 5.<br />
+
+<br />
+
+<a name="f106" id="f106"></a><sup>[106]</sup>
+Pag. 160
+<br />
+
+<br />
+
+<a name="f107" id="f107"></a><sup>[107]</sup>
+A confus&atilde;o, na phrase, entre o colono e o predio,
+tomados
+um pelo outro, confus&atilde;o que sobretudo se deduz
+claramente das singulares express&otilde;es <em>homem
+inteiro</em>, <em>meio
+homem</em>, etc. apparece ainda &aacute;s vezes nos
+nossos monumentos
+do seculo XIII. Nas Inquiri&ccedil;&otilde;es da terra de
+Faria, feitas
+naquella epocha, l&ecirc;-se, por exemplo: &laquo;S. Leocadia
+de Pedrafurada:
+homines de ista collacione solebant pectare vocem
+et calumniam, sed modo non pectant nisi quinque homines
+et medium qui dant annuatim singulas gallinas, et
+<em>medius homo</em> dat mediam gallinam: et
+ista casalia... dant
+vocem et calumniam et singulas gallinas et duos, duos solidos,
+tribus vicibus in pedida, sed <em>medium
+casale</em> medium
+forum facit. Inquir. d'Affons. III, L. 7, f. 14 v.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="fbox">
+<h2>Lista de erros corrigidos</h2>
+
+<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se
+listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="right">
+
+ <td style="width: 61px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correc&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e1" id="e1"></a><a href="#p21">#p&aacute;g.
+21</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">a a que</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">a que</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e2" id="e2"></a><a href="#p36">#p&aacute;g.
+36</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">aggresss&otilde;es</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">aggress&otilde;es</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e3" id="e3"></a><a href="#p50">#p&aacute;g.
+50</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">encarnada</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">incarnada*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e4" id="e4"></a><a href="#p106">#p&aacute;g.
+106</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">esse
+inven&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">essa
+inven&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e5" id="e5"></a><a href="#p137">#p&aacute;g.
+137</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">instinctos</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">intuitos*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a><a href="#p157">#p&aacute;g.
+157</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">desprezados</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">desprezadas*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a><a href="#p160">#p&aacute;g.
+160</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">de</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">do*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e8" id="e8"></a><a href="#p171">#p&aacute;g.
+171</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">as
+crean&ccedil;a</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">as
+crean&ccedil;as</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e9" id="e9"></a><a href="#p187">#p&aacute;g.
+187</a>
+ </td>
+
+ <td style="text-align: center;">giria</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">gira*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e10" id="e10"></a><a href="#p191">#p&aacute;g.
+191</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">pena</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">penna*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e11" id="e11"></a><a href="#p249">#p&aacute;g.
+249</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">?uccessores</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">successores</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e12" id="e12"></a><a href="#p287">#p&aacute;g.
+287</a>
+ </td>
+
+ <td style="text-align: center;">da</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">de</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e13" id="e13"></a><a href="#p288">#p&aacute;g.
+288</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">prudente</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">precedente*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e14" id="e14"></a><a href="#p292">#p&aacute;g.
+292</a> </td>
+
+ <td style="text-align: center;">conpi&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">condi&ccedil;&atilde;o*</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td></td>
+
+ <td><br />
+
+ </td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e15" id="e15"></a><a href="#f80">#nota
+80</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">celebran</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">celebrantes*</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<div style="text-align: center;"><br />
+
+* correc&ccedil;&otilde;es feitas com base na errata do
+pr&oacute;prio livro.<br />
+
+<br />
+
+Aspas foram adicionadas nos locais onde deveriam existir<br />
+
+(<a href="#p50">#p&aacute;g. 50</a>: <em>delles</em>.&raquo;
+Para)
+<br />
+
+<br />
+
+O n&uacute;mero da nota de rodap&eacute; <a href="#f55">#55</a>
+(<a href="#p202">#p&aacute;g.
+202</a>) encontra-se omitido na obra, tendo sido acrescentado
+neste e-book.
+<br />
+
+<br />
+
+Variantes da palavra "mussulmano" foram mantidas de acordo com o
+original.<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano -
+Tomo 03, by Alexandre Herculano
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 ***
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+works. See paragraph 1.E below.
+
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+1.E.9.
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+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
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+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
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