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diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/30566-8.txt b/30566-8.txt new file mode 100644 index 0000000..17c3b35 --- /dev/null +++ b/30566-8.txt @@ -0,0 +1,6956 @@ +The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03, by +Alexandre Herculano + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03 + +Author: Alexandre Herculano + +Release Date: November 30, 2009 [EBook #30566] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + + *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos + existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à + versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com + o original. No final deste livro encontrará a lista de erros + corrigidos. + + Rita Farinha (Nov. 2009) + + + + +OPUSCULOS + + + + +OPUSCULOS + +POR + +A. HERCULANO + + +SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA +SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA +SOCIO CORRESPONDENTE +DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID +DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) +DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM +DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. + + +TOMO III + +CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS + + +TOMO I + + +LISBOA + + +VIUVA BERTRAND & C.^a--SUCCESSORES, CARVALHO & C.^a +Chiado, 78 + +M DCCC LXXVI + + + + +Lisboa--Imprensa Nacional + + + + +Contem este volume diversos escriptos sobre duas questões historicas. A +primeira, que se refere ás tradições fabulosas ácerca da batalha de +Ourique, quasi que não tem valor algum á luz da sciencia. Expôr +semelhantes tradições era, por assim dizer, refutá-las, e perante a +historia tal refutação seria de sobra. A segunda, relativa á situação +das classes servas na Hespanha desde o VIII até o XII seculo, versa +sobre a legitimidade da solução que adoptei n'um dos mais difficeis +problemas que se me offereceram ao escrever o terceiro volume da +Historia de Portugal na epocha decorrida desde a fundação da monarchia +até o fim do reinado de Affonso III. As phases da lenta transformação do +escravo das sociedades antigas no obreiro, cidadão livre das sociedades +modernas, obscuras ainda em parte na historia da civilisação e do +progresso humano entre as nações d'além dos Pireneus, muito mais o são +áquem delles. As divergencias, e divergencias profundas, entre os que se +dedicam a estudar o assumpto nascem dessa obscuridade, e é dos debates +que elle pode suscitar que ha de surgir a final a luz. + +Como tantas vezes succede, não foi a questão grave e difficil que +alevantou arruido: foi a insignificante que despertou as attenções e que +produziu viva agitação na imprensa e fóra da imprensa, dividindo em dous +campos o publico que lê. É que na primeira interessava apenas a +sciencia, e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade e as +preoccupações dos espiritos vulgares, que constituem o grande numero. Se +a religião era extranha ao assumpto, ou antes ganhava na suppressão de +uma pia fraude, perdia com isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje +mais que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres em que parece +querer amortalhar o catholicismo. Escrevendo um livro serio, eu +affastara brandamente para o limbo das fabulas aquellas ficções +ridiculas, porque era forçoso fazê-lo. Nem tivera a intenção do +escandalo, nem a cousa o valia. A maioria, porêm, do clero não o +entendeu assim. + +Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual este volume começa, está a +resumida noticia das aggressões de que fui alvo e que por algum tempo +supportei com resignação ou indifferença, resignação ou indifferença em +que provavelmente, hoje, que sei melhor o que taes aggressões valem, +continuaria a permanecer. Estava, porêm, então naquella epocha da vida +em que a paciencia christan não é a virtude mais vulgar do homem. O +leitor ajuizará se os prelados portugueses foram ou não imprudentes em +tolerarem ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes manifestações +da ignorancia e do interesse ferido. + +Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das classes servas da Peninsula +no decurso dos seculos VIII a XII, destinado a combater as opiniões do +erudito Muñoz y Romero, é bem de crer que ao meu illustre adversario não +faltassem argumentos para contrapôr ás objecções que lhe fiz; mas +affastaram-no do debate outros estudos, até que veio salteá-lo a morte, +quando a Hespanha tinha a esperar os melhores fructos da alta +intelligencia daquelle incansavel cultor da historia. Buscando ambos a +verdade, a discussão encetada conduzir-nos-hia, provavelmente, a +modificarmos, tanto um como outro, as nossas ideas, talvez absolutas em +demasia, e a estabelecermos uma doutrina solida sobre tão espinhoso +assumpto. Entretanto, ainda hoje me persuado de que, para nos +aproximar-mos, seria elle que teria de andar mais caminho. Julgá-lo-hão +os que, depois de lerem attentamente o meu modesto trabalho, examinarem +com igual attenção o escripto de Muñoz y Romero e a apreciação desse +escripto por Mr. de Rozière. + + Janeiro de 1876 + + + + + +A BATALHA DE OURIQUE + + + + +I + +EU E O CLERO + + +AO PATRIARCHA DE LISBOA + +(_Junho, 1850_) + + +É debaixo da impressão de vivo desgosto, e cedendo emfim ao impulso de +justa indignação, que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa +que merece um animo turbado por offensas immerecidas, e o favor que +sempre encontrei em vossa eminencia me fazem esperar que esse favor não +padecerá quebra, se alguma phrase mais forte do que eu desejara me fugir +da penna ao escrever este papel; papel que, solemnemente o declaro desde +já, não tem por objecto, como alguem poderia suppôr, pedir desaggravo +das offensas a que alludo. De natureza são ellas, que nem preciso nem +quero que outrem as puna. Sei e posso eu fazê-lo, se cumprir, de um modo +que sirva de escarmento á ignorancia perversa e á hypocrisia insensata. +O meu intuito é apenas rogar directamente a vossa eminencia, e +indirectamente aos demais prelados de Portugal a cujas mãos chegar esta +carta por intervenção da imprensa, que, obstando a novas provocações da +parte do clero, me poupem a dar uma dura licção a individuos, que, +desconhecendo os deveres do sacerdocio e incapazes de sentimentos de +moderação, tentam excitar as paixões odientas de um fanatismo que já +nem, talvez, o povo comprehende contra um homem que nunca lhes fez mal, +e que nem sequer se lembra delles, porque tem cousas um pouco mais +sérias em que cogitar. + +Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume de uma Historia de +Portugal, que tem feito certa impressão no paiz, e ainda fóra delle. Na +benevolencia com que esse livro foi recebido por naturaes e extranhos +nada ha provavelmente que deva lisonjear o amor-proprio litterario do +auctor, mas ha uma prova de que o publico reconheceu nelle certa +independencia de espirito e uma estricta imparcialidade, para a qual o +longo e severo exame dos factos o habilitava. Como eu o previra na +advertencia posta á frente daquelle primeiro volume, a sinceridade da +narrativa, estribada em monumentos indisputaveis, destruindo muitas +dessas tradições, mais ou menos improvaveis, que deturpam a historia de +todos os povos, suscitou contradictores. Era cousa natural. As +manifestações de colera, as injurias vertidas contra mim na imprensa, +não podiam causar-me nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a +guardar silencio perante ellas e a proseguir na senda que abrira, sem me +distrahir com luctas estereis. A verdade fica, e as preoccupações +passam. Ao mesmo tempo a minha resolução inabalavel era, e é, desprezar +todos os respeitos humanos que se contraponham á voz da propria +consciencia. Todavia o não nos affastarmos dos seus dictames é empenho +que não sae de graça neste mundo de paixões pequenas e más; e bem louca +esperança seria a minha, se a tivesse de evitar os effeitos de uma lei +universal. Era por isso que estava resolvido a esgotar resignadamente o +meu calix. + +Pouco depois da publicação do primeiro volume da Historia de Portugal, +n'um periodico litterario da universidade de Dublin um critico inglês +punha em duvida se eu, que expurgara de lendas fradescas a historia do +berço da monarchia, teria esforço bastante para avaliar como cumpria as +longas e violentas dissensões dos reis da primeira dynastia com os +bispos e com a curia romana. Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma +conjunctura publicava-se em Lisboa o meu segundo volume, onde se +continha a narrativa de boa parte daquellas discordias. Ahi me parece +ter dado documento de que os receios manifestados na imprensa inglesa +não eram dos mais bem fundados. + +Mas esse volume, accendendo novas coleras, despertou em alguem a idéa de +me refutar de modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de Braga, da +antiga metropole, onde ainda devem estar bem vivas as memorias do +veneravel Caetano Brandão, do illustre prelado que pretendia reformar o +breviario e missal bracharenses por causa _das suas intoleraveis +patranhas e falsidades_ (phrase do grande arcebispo), o meu nome foi +lançado ás multidões ladeado dos epithetos de hereje, de impio e de +outros semelhantes. Um egresso fanatico e ignorante (como o são +centenares de sacerdotes no meio do nosso clero, que não recebe ha +muitos annos nem educação moral nem educação litteraria) cubriu-me de +injurias diante de um concurso numeroso, segundo me informaram, porque +no meu livro usara do direito de historiador, qualificando devidamente +essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, violentas e +cubiçosas que cingiram a thiara papal, e que se chamaram Gregorio, +Innocencio ou Honorio. A principio acreditei que isto não passara de um +impulso de fanatismo individual; mas em breve me desenganei de que o +facto pertencia a um systema organisado de aggressão. A imprensa +politica noticiou procedimentos analogos para comigo em outros lugares +do arcebispado. Se o objecto das invectivas era o mesmo, se igual a +violencia das expressões, ignoro-o: mas o que me pareceu evidente foi +que havia, como disse, em tão insolito proceder um systema uniforme e +combinado. + +Calei-me. A minha equanimidade foi bastante para tolerar este ataque +brutal á liberdade do pensamento; foi tamanha como a do respectivo +prelado, que guardou silencio, e que devera ter advertido o seu clero de +que, não havendo eu offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me +limitado a julgar os homens e os factos da epocha sobre que escrevia, +por mais erradas que fossem as minhas opiniões, ellas não podiam ser +qualificadas publicamente de hereticas, concitando-se assim contra mim a +credulidade popular. Um sermão não é o meio de refutar erros +litterarios, e muito menos o é qualificar taes erros como offensas da fé +para os transformar em crimes religiosos. Em semelhante terreno a lucta +sería impossivel, porque delle brota o risco pessoal, ou pelo menos a +perda da reputação moral para um dos contendores, ou melhor direi para a +victima indefensa, amarrada ao poste desse novo genero de patibulo. Os +ignorantes olhariam com horror para o Luthero ou Calvino que surge na +terra da patria, e esse odio publico é uma verdadeira coacção á +liberdade legitima do escriptor: legitima, digo, porque, apesar de +tantas declamações e queixas, é evidente que no meu livro não ha uma +unica palavra que offenda a orthodoxia da igreja. Se eu tivesse +proferido alguma heresia, os prelados portugueses, e em particular vossa +eminencia como meu pastor, não seriam capazes de faltar aos seus mais +estrictos deveres, deixando de me advertir do erro com caridade +evangelica, e de me condemnar se eu insistisse n'elle. Era então que aos +bispos, e não a qualquer desses cirzidores de farrapos de sermões +velhos, desses inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do senso +commum, denominados, por antiphrase, prégadores ou oradores, que era +licito, que cumpria lançar sobre mim o anathema. + +A guerra desleal que uma parte do clero (digo uma parte, porque no seu +gremio ha muitos homens leaes e verdadeiramente illustrados) me +declarara no norte do reino não tardou a apparecer no meio-dia, no +recincto da propria capital. O primeiro commettimento foi tentado n'uma +solemnidade notavel, e n'um dos templos mais frequentados de Lisboa. +Nesse acto o absurdo da aggressão nasceu antes da impropriedade do +logar, do que das formulas empregadas pelo aggressor, que se absteve de +injurias grosseiras. Lisboa não é Braga, e o negocio precisava aqui de +maior circumspecção. Entretanto a tentativa desagradou geralmente, e eu +pensei que emfim me deixariam em paz. + +Não succedeu assim. Ultimamente na minha propria parochia, e dous dias +depois n'outra igreja da capital, fui de novo arrastado perante as +turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no primeiro caso houve a +intenção de se me administrar face a face uma correcção fraterna, o +calculo falhou. Creio que vossa eminencia me faz a justiça de acreditar +que não me deleito excessivamente em ir ouvir máus sermões de ha +sessenta annos, ou traducções detestaveis de fragmentos de sermonarios +franceses, declamadas, ou antes carpidas, em tom ainda mais detestavel. +O annuncio de um sermão é para mim por via de regra a espada percuciente +do anjo do paraiso flamejando á porta do templo. Salvo em rarissimos +casos, não haveria forças que podessem arrastar-me a assistir aos partos +da oratoria, que, por irrisão sacrilega, se denomina sagrada. A +resistencia dos meus nervos em tal conjunctura seria mais forte do que a +propria vontade. + +Em Braga, e creio que nos outros logares daquella diocese, a censura +tinha sido fulminada contra a liberdade com que falei dos chefes da +igreja nos seculos médios, da curia romana, e talvez dos bispos +portugueses de então. Ao menos lá a invectiva tinha certa originalidade. +No patriarchado, porém, as accusações, postoque menos brutaes, tiveram o +defeito de ser um verdadeiro plagio. + +Narrando no primeiro volume da Historia de Portugal o recontro de julho +de 1139 em Ourique, reduzido ás dimensões que suppús e supponho exactas, +ommitti a fabula do apparecimento de Christo, como cousa indigna da +gravidade da historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente para +com o sublime Fundador do Christianismo. Apenas n'uma nota alludi a essa +tradição absurda, affirmando que se estribava n'um documento falso, o +celebre juramento attribuido a Affonso I, juramento que ainda existe no +supposto original. Eis o grande escandalo para os prégadores de Lisboa. +Confesso que ahi tractei esse embuste com o desprezo que elle merece, +porque, na verdade, conhecendo eu muitos diplomas forjados com maior ou +menor destreza, este é, sem contradicção, o mais inhabilmente executado. + +As poucas palavras que dediquei a semelhante ninharia suscitaram o zelo +de alguns individuos, persuadidos de que eu tinha despedaçado, com as +tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi, o palladio da +independencia nacional, que bem fraca independencia sería se estivesse +como adscripta á crença ou á descrença n'um conto de velhas. Houve até +um pobre homem, o qual, no meio das discordias civis que assolaram o +reino pouco depois da publicação do meu livro, dirigiu aos povos do +Alemtéjo uma proclamação, em que affirmava que, ligado por um pacto +infernal com os membros do governo então derribado, eu ia demolindo as +glorias portuguesas para vendermos de commum accordo a independencia da +patria. Não me recordo agora do preço, nem de quem foi o comprador, mas +a venda parece que era indubitavel. + +Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e folhetos avulsos contra +mim. Nada mais legitimo; nada mais liberal. Se os corsarios da palavra +de Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de um logar aonde eu não +posso subir, do alto do pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco +malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu tão ridiculo como o +instrumento da apparição, se disso me queixasse a vossa eminencia ou aos +outros prelados do reino. A imprensa é uma estacada onde nos julgadores +do combate, e sobretudo de um combate litterario ou scientifico, ha já +um grau de illustração, que até certo ponto affiança uma decisão justa. +Reptado ahi, eu podia erguer a luva, ou deixar, quando assim o +entendesse, que o livro delatado servisse por si mesmo de resposta aos +accusadores. Em um e outro caso procederia livremente, e não ficaria, +como no campo em que sou aggredido, collocado debaixo de uma coacção +moral. Ahi os reverendos prégadores, que tem tido a condescendencia de +tractar da minha humilde pessoa, até poderiam appellidar-me, se +quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado: eu respondia-lhes +que elles estavam bem livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos +perfeitamente pagos. + +Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a Historia de Portugal, que +me chegaram ás mãos, tractavam justamente desse gravissimo negocio da +apparição, que em parte me tem feito victima, por me servir de uma +phrase do padre Isla, da _dialectica eloquencia dos selvagens da +Europa_. Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo que produziam no meu +animo um sentimento de tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda +quando não estivesse, como ha pouco disse a vossa eminencia, no firme +proposito de evitar luctas estereis. A tristeza que senti á leitura +daquelles folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia a que +tinham chegado neste paiz os estudos historicos. N'um livro que, com +bons ou maus fundamentos, mudava completamente o aspecto até aqui +attribuido ao complexo dos successos do nosso paiz, na infancia da +sociedade portuguesa, havia por certo mais de uma inexacção, mais de um +defeito importante, como obra que era de homem--de homem desajudado +n'uma empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos proprios recursos +e forças. Ácerca, porém, das materias positivas, historicas, +susceptiveis de serio exame, apenas appareceu, que me conste, um artigo +no periodico litterario a _Revista Universal_, e outro no _Observador_ +de Coimbra. As duas publicações avulsas que me vieram ás mãos, ambas, +como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar o milagre da +apparição, milagre do qual (atrevo-me quasi a affirmá-lo) ainda que os +meus adversarios o tivessem sustentado com boas razões _historicas,_ me +parece que eu, vossa eminencia, toda a gente, que não seja algum leigo +capucho, haviamos de continuar a rir, cada qual segundo o papel que +acceitou nesta grande comedia humana--uns em publico, outros em +particular. + +Agora pelo que respeita aos motivos que, além da razão geral já dada, me +inhibiam de responder aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia +que eu dilate um pouco o discurso a este proposito. Não é a digressão +alheia ao assumpto. O meu silencio ante contendores francos e leaes, que +me buscavam com armas corteses no campo da imprensa, interpretou-o a +ignorancia como um signal de fraqueza. Não contribuiria isto para +despertar a audacia dos meus anathematisadores? Não seria eu proprio o +culpado da minha affronta? Desculpe vossa eminencia uma comparação, +acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de se referir a uma fabula, e +nós achamo-nos n'uma questão de fabulas. Quando o leão jazia moribundo, +foram as feras valentes e generosas que arrostaram o perigo. O onagro só +veio ferir-lhe a fronte pendida, depois que, averiguada a situação do +rei das florestas, se persuadiu de que podia injuriá-lo a seu salvo. + +Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar o silencio que o gerou. +É a esse alvo que se dirige a digressão de que falo. + +Um dos folhetos era escripto por um ancião respeitavel, não só pelas +suas cans, mas tambem pelos seus padecimentos physicos, consideração +fortissima para mim, que entendo ser sempre digna de respeito a +desgraça; era producção de um homem chegado áquelle quartel da vida, em +que o espirito parece eivado da ruina do corpo, que vem annunciando a +proximidade do tumulo. Com a mão na consciencia eu protesto a vossa +eminencia que ainda hoje sentiria remorsos, se, na força da vida e do +pouco talento que Deus repartiu comigo, não tivera sabido domar os +impulsos de um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar a +afflicção sobre o leito de dor do afflicto, para saborear o triste e +vergonhoso prazer de ouvir os apupos do publico a um pobre velho, que +queria, que tinha direito de morrer em paz abraçado com as tradições da +sua infancia; que precisava de protestar contra um homem, o qual, embora +involuntariamente, ia prostituir-lhe no coração idéas e affectos, amigos +constantes da sua larga existencia. Se Deus podesse fazer milagres +absurdos e inuteis, como o da apparição, eu preferiria ver-me convertido +em cirzidor e carpidor de farrapos pareneticos a ter de accusar-me de +uma acção, que não sei qual seria mais, se covarde, se despiedada. + +Quanto ao outro folheto, composto por um homem de talento, instruido, e +no vigor da idade, não militavam as mesmas razões de conveniencia moral; +militavam, porém, outras assaz fortes, e de natureza analoga. Affastadas +as considerações poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos +colligidos naquella publicação a favor do milagre de Ourique dividiam-se +em duas categorias, ou antes eram apenas dous argumentos. Um consistia +no consenso de certo numero de escriptores, todos de epochas mais +recentes que o meado do seculo XV. A futilidade desta argumentação é +evidente. Os _classicos_ são respeitaveis como mestres de lingua; mas +como testemunhas de um facto, que se diz acontecido pelo menos trezentos +annos antes que elles escrevessem, de nada servem. A qualidade de +classicos não exclue a de credulos, e nem sequer a de inventores de +patranhas. A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda, a de Palmeirim +d'Inglaterra são escriptas por tres classicos como Barros, Jorge +Ferreira, e Francisco de Moraes, e eu supponho, não sei se me engano, +que esses livros não encerram senão mentiras. Se o auctor queria +provar-me a perpetuidade da tradição de Ourique, não devia esquecer o +_criterium_ estabelecido por Vicente de Lerins, e com elle pelo senso +commum, para distinguirmos das falsas as tradições verdadeiras: _Quod +semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est_. Era-lhe necessario +mostrar-me essa tradição através de todos os seculos, e sobretudo dos +seculos onde ella desapparece, os tres immediatos ao supposto facto. +Confesso a vossa eminencia um peccado, e alliviarei delle a consciencia, +porque o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia foi +demasiado orgulhosa para descer a refutar semelhantes objecções. Que me +importava, de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo, +nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu tempo e monumentos para +averiguar os successos verdadeiros e as suas causas, circumstancias e +effeitos. Genealogico d'embustes é mistér para o qual me falta +inteiramente a vocação. + +A segunda categoria de argumentos, ou antes, o segundo argumento em +favor do milagre era a citação de dous textos precisos, de duas +auctoridades contemporaneas, que relatavam o successo. Uma era nada +menos que a de S. Bernardo; outra a de uma copia coeva do juramento, +copia conservada em Roma, e transcripta no volume 51 da _Symmitica +Lusitana_, manuscripto da Bibliotheca Real, de cuja existencia é +abonador o illustre Cenaculo. Este argumento estava longe da obvia +fraqueza de est'outro. A tradição ía assim prender-se do seculo XV ao +XII, embora obscurecida no periodo intermedio. Alguem imaginará, +portanto, que para não responder a objecções deste valor apparente só me +conteve o proposito de evitar disputas escusadas. Não foi assim. +Contiveram-me considerações de maior monta. Se o eram ou não, vossa +eminencia o julgará. + +Antes de tudo, observará vossa eminencia que eu digo _disputas +escusadas_. Digo-o, porque esses testemunhos contemporaneos não bastam, +como vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres da idade +média. Á excessiva devassidão e bruteza aquelles tempos de trevas uniam +uma crença fervorosa, confundida com superstição extrema. A idéa +religiosa formulava-se em tudo, na guerra, na vida civil, nos affectos +do coração, nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma idéa +domina assim a sociedade, converte-se em prisma através do qual as +cousas se illuminam com as côres que elle lhes transmitte. O maravilhoso +introduzia-se em todos os factos em que as imaginações, possuidas de uma +especie de febre moral, achavam pretextos mais ou menos plausiveis para +lh'o attribuir. Accrescia a tendencia innata dos homens para indagar as +causas dos diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente de ignorancia e +rudeza (ambiente em que vive boa parte do nosso clero), essa tendencia +dilatava-se, respirava pelo unico resfolgadouro possivel, pela facil +theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel. Nas chronicas d'então +quasi que o miraculoso é o regular, e o natural a excepção. Dos +chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado é o benedictino +inglês Matheus Paris. Todavia centenares, que não dezenas, de milagres +absurdos são gravemente narrados na _Historia Major_. Permitte-me vossa +eminencia que lhe recorde um exemplo do modo de vêr daquellas eras? Sem +sairmos do reino, nem do seculo XII, e até limitando-nos á vida do +personagem a quem se attribue o singular favor de Ourique, temos á mão +um exercito de milagres, postoque em sentido inverso ao da apparição. +Alludo aos desgostos de S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do +sancto, _escripta no seculo XII_, foi, como vossa eminencia sabe, +publicada por Florez, e uma copia, talvez coeva, ou quando muito do +seculo XIII, existe ainda entre os manuscriptos de Alcobaça (codice +133). Ahi lemos que o rei português fora obrigado a levantar o sitio do +castello Sandino, nas margens do Arnoia, por uma tempestade de raios que +o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos o pio agiographo, o seu +implacavel heroe nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por tres vezes a +diversas pessoas para protestar vingança contra o principe, que nas suas +correrias na Galliza não respeitara as terras do mosteiro de Cellanova. +Nesta lucta atroz entre o grande da terra e o grande do ceu, S. Rosendo +não poupava maravilhas. Debalde; porque, como observa o monge +historiador, o coração do rei, que elle compara caritativamente a Simão +Mago, estava obdurado, qual o de Pharaó, _para maior cumulo da sua +condemnação_. A malevolencia milagreira do sancto não abandonou Affonso +Henriques senão no tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do reinado +do fundador da monarchia, incluindo o desbarato de Badajoz, a fractura +da perna, o aleijão com que ficou até a morte, tudo foi obra de S. +Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter visto o sancto revestido do +corpo humano e muito atarefado, na occasião em que o rei de Portugal +caíu prisioneiro do genro. São pelo menos vinte milagres attestados por +um escriptor desses tempos. Penso que não me accusarão de avaro ou de +desagradecido os que querem enriquecer á força o thesouro das minhas +crenças com a apparição de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente eu +sou muito mais rico do que elles em provisão de milagres. + +De todas essas maravilhas, porém, apesar de subministrarem á credulidade +melhores fundamentos que a de Ourique, faço eu tanto caso como desta +ultima, pelas considerações que indiquei, aliàs bem escusadas para a +comprehensão e litteratura de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente o +preceito que a mim proprio impusera de não malbaratar o tempo em +questões desta ordem, nem essas considerações, que obstaram a que eu +respondesse a um escripto, em que o erro, e talvez o despeito, vinham +envoltos em fórmas tão corteses, que tocavam a raia de lisonjeiras, e em +que a argumentação tomava emfim o aspecto de uma cousa séria. Não, +eminentissimo senhor! A refutação sería na verdade facil, decisiva, +fulminante; mas ella lançaria uma torpe mancha sobre nomes illustres e +caros á igreja portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta idéa. Por maiores +precauções de que eu me rodeasse, a logica implacavel do publico tiraria +as legitimas illações das minhas palavras, e convertê-las-hia em +desdouro commum de uma classe que nenhum mal me havia feito. Se hoje a +necessidade de repellir a insolencia covarde, como a insolencia o é +sempre, me obriga a expôr actos vergonhosos e inqualificaveis, a culpa +não m'a lancem. Dous annos de paciencia provam que o faço constrangido +por aggressões demasiado graves, não por si, nem por seus auctores, +cousas profundamente insignificantes, mas pelo logar onde se commettem, +por serem feitas com a intenção de excitar contra mim animadversões +immerecidas, por se tentar, emfim, converter atraiçoadamente uma +questão, que nem chega a ser historica, em questão religiosa. A gloria +do escandalo deixo-a inteira aos que o provocaram. Se vou bater sobre +campas, que cobrem cinzas envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a +paz dos mortos para lhes bradar--«_Falsarios!_»--esta mão que se estende +para indicar os criminosos, esta voz que se ergue para os condemnar, são +minhas, mas protesto a vossa eminencia, que quem as suscitou não foi o +meu coração, nem a minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que sem +deshonra não é licito ultrapassar. Consta-me que o mais recente dos meus +reverendos accusadores clamara no excesso do seu _sincero_ zelo pela +historieta da apparição, que _melhor fora que eu não houvera falado em +tal_. Melhor ainda do que isso me parece teria sido que elle não +houvesse feito trasbordar o calix, já demasiado cheio, de uma justa +indignação. + +A affirmativa de que no volume 51 da _Symmitica Lusitana_ se encontra +trasladada uma còpia do instrumento da apparição, coeva de Affonso I, É +MENTIRA. + +O texto de S. Bernardo, relativo á mesma apparição, que se encontra +inserido no Breviario, no officio das Chagas, É FALSO. + +Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim (é licito duvidar disso +com a igreja, que manifestou a sua hesitação a este respeito mandando +accentuar as palavras dos livros rituaes com temor das syllabadas) que +venha á Bibliotheca Real, e ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas +128, lerá ou soletrará as seguintes palavras, escriptas na lingua +latina, por baixo do traslado do instrumento da apparição, nota escripta +pela mesma letra do copista==_Brandão, Monarchia Lusitana, Parte 3.^a +pagina 127. Extrahido de um codice que o auctor viu em Lisboa._==Eis em +que consiste o traslado da copia _coeva_. Cenaculo, citando o documento +pelo indice, quando podia citá-lo pelo logar competente da collecção, o +que lhe era igualmente facil, commetteu uma daquellas levezas que não +raro occorrem nos seus escriptos, ou practicou uma _pia fraude_? O bello +e nobre caracter do bispo de Béja me faria adoptar sem hesitação o +primeiro supposto, se o empenho em que elle entrara de provar a farça de +Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente havia de +sentir, não podesse perturbá-lo a ponto de practicar um acto indigno de +quem, como elle, era um homem de letras, um prelado virtuoso, e a todos +os respeitos um varão singular. + +A historia da passagem falsamente attribuida a S. Bernardo, é, porém, +materia mais grave, porque nessa vergonhosa historia se acha +compromettida a honra e a dignidade moral e litteraria do alto clero +português no meiado do seculo passado. Não direi da curia romana, porque +nesse ponto não ha já para ella compromettimento possivel: vossa +eminencia conhece tão bem e melhor do que eu os seus annaes. A narrativa +desse escandalo é em resumo a seguinte: + +O patriarcha D. Thomás d'Almeida requereu a Bento XIV que concedesse ao +clero de Portugal o officio proprio e missa das cinco Chagas, que, por +decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido a certas freiras de +Florença. Accrescentava-se na supplica dirigida ao pontifice que na +sexta lição se houvessem de addicionar as seguintes palavras==_Quas +lusitanum imperium etc._==que constituem o texto allegado contra mim. +Consistindo, porém, a sexta lição daquelle officio n'uma passagem de S. +Bernardo, uma vez que não houvesse a devida distincção entre essa +passagem e o novo additamento, este se converteria n'um testemunho +importante a favor da lenda da apparição, de que provavelmente os homens +instruidos começavam a rir-se depois do impulso que aos estudos +historicos dera o governo no reinado de D. João V. + +Accedeu Bento XIV á supplica do prelado português. O decreto de +concessão, o officio e a missa expediram-se para Portugal impressos na +typographia da camara apostolica. Segundo parece, a impressão foi feita +no estio, e o compositor romano, no acto de compor a fatal sexta licção, +estava perturbado pela febre da _malaria_. O additamento ficou enxertado +nas phrases solemnes do grande abbade de Claraval com tão subtil sutura, +que faria honra a um operador de rhinoplastica. Atacado tambem pelos +miasmas putridos das lagoas pontinas o revedor da camara apostolica +_esqueceu-se_ de emendar o erro. Aquelle _innocente_ engano partiu, +emfim, para Portugal. + +Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos do clero não tinham chegado á +decadencia em que hoje os vemos e de certo vossa eminencia lamenta como +eu, e em que as cadeiras episcopaes do reino estavam occupadas por +muitos homens notaveis por sciencia e virtudes, o antecessor de vossa +eminencia que então presidia á metropole de Lisboa _esqueceu-se_ de que +essa passagem perfilhada a S. Bernardo tinha um auctor bem moderno, e +entre os bispos, entre os theologos do clero secular não houve um só que +_advertisse_ no falso testemunho que na sexta licção do novo officio se +alevantava ao fundador dos cistercienses. Os seus filhos, os seus +proprios monges, calaram-se. Os prelos têm gemido durante um seculo com +as reimpressões do breviario, e neste longo periodo nem uma voz, que eu +saiba, se ergueu para dizer que em nenhuma edição, em nenhuma codice +manuscripto das obras de S. Bernardo se encontra a supposta passagem. + +«E que admiração?--respondeu-me um malicioso, a quem manifestava em +certa occasião o meu espanto á vista deste phenomeno singular.--O clero +não lê os padres da igreja: deixou essa tarefa aos seculares. E para que +os havia de ler, se lhes é de sobra o Larraga?» + +Dou a minha palavra a vossa eminencia de que repelli com todas as minhas +forças este rude epigramma. Eu sei que ha, conheço, até, sacerdotes cuja +instrucção é tão solida como vasta. O tracto de vossa eminencia, durante +a epocha em que fomos collegas no parlamento, me fez conhecer um dos +mais distinctos entre elles. Infelizmente, esse epigramma, injusto na +sua fórma absoluta, não deixa de ser merecido em muitos, talvez no maior +numero de casos. + +Sabe vossa eminencia quem protestou contra essa falsificação audaz, +contra essa fingida ignorancia, contra esse torpor inexplicavel ou +explicavel de mais? Foi aquella ordem ácerca da qual então se repetiam, +e hoje se repetem diariamente graves accusações de immoralidade. Foram +os jesuitas, que n'uma edição do novo officio, feita para o proprio uso, +separaram com um asterisco o texto de S. Bernardo da invenção moderna. +Acaso este procedimento deu origem a um livro, _os Novos Testemunhos_, +do celebre e implacavel inimigo dos jesuitas, o padre Pereira, livro que +se o não tomarmos como uma longa ironia, deshonra a memoria de uma das +mais fortes intelligencias que Portugal tem gerado. + +Agora fica vossa eminencia habilitado para avaliar se eu procedi com +circumspecção guardando silencio ante as refutações que se me dirigiam +pela imprensa; se não houve no meu proceder uma dessas abnegações que +não são vulgares, em desprezar um triumpho tão facil como decisivo, +preferindo ficar como vencido e humilhado aos olhos dos menos instruidos +a salvar o meu nome de uma nodoa litteraria e até certo ponto moral. Se, +emfim, é justo, se é decente, que membros do clero aggridam de um modo +illicito, e profanando a sanctidade dos templos e a sanctidade do seu +ministerio, um homem que sacrificou o proprio orgulho para não rasgar o +véu de uma fraude dessas, que os hypocritas qualificam de pias, e que eu +qualificarei de immoraes. + +Como Sem e Japhet queria encubrir a falta de pudor de Noé: o sacerdocio +obrigou-me emfim a ser como Cham. Fizeram-me voltar a face: +contrangeram-me a descerrar os olhos. Practicaram uma boa obra: devem +della gloriar-se. + +E quem é o homem que os prégadores de Portugal offerecem á execração +publica, porque não quiz vender a sua alma ao demonio da mentira; porque +não quiz deshonrar-se e deshonrar com embustes o seu livro? Que vossa +eminencia me consinta fazer aqui esta dolorosa pergunta á minha +consciencia; interrogar severamente o meu passado. Tem o clero a +combater em mim um inveterado e perigoso inimigo? É o seu tão insolito +proceder um impeto de vingança, que o excita a repellir um perseguidor +implacavel? Ha quinze annos que trabalho na imprensa, e senão por merito +proprio, ao menos por circumstancias, que não importa aqui recordar, +muitas das paginas avulsas que tenho deixado após mim na carreira da +vida se derramaram por todos os angulos do paiz, penetraram aonde livros +e jornaes de mais alto pensar nunca haviam chegado, e talvez nunca +depois chegaram. Haverá nessas pobres paginas alguma cousa que possa +incitar a colera sacerdotal? Como procedi eu sempre ácerca da igreja e +do clero? As idéas do seculo, recalcadas por uma compressão violenta, a +que, força é confessá-lo, a maioria do sacerdocio se havia associado, +tinham reagido violentamente, e assentavam-se triumphantes sobre as +ruinas do passado quando eu entrei no campo da imprensa, no campo das +batalhas do espirito. De roda de mim jaziam os fragmentos da sociedade +que fora, e no meio delles o clero, disperso, empobrecido, cuberto de +affrontas, experimentava as consequencias do predominio de um partido +adverso e irritado. A situação da igreja portuguesa nessa epocha, e +sobretudo a situação dos regulares, sabemos todos qual era. Foram +feridas de que, porventura, ainda mais de uma goteja sangue. Os homens +das velhas opiniões politicas, no meio do terror, vergados pelo +desalento de uma quéda tremenda, duplicadamente dolorosa pela +desesperança, calavam. Nem uma voz amiga se alevantava nesta terra de +Portugal a favor da igreja batida pela tempestade. Ainda então esse +grupo de mancebos cheios de talento, de inspirações grandiosas e de +crença fervente na liberdade humana, e pela liberdade na eterna justiça; +essa phalange, no meio da qual todos os dias apparecem novos soldados, e +que não se envergonha de Deus nem do seu Christo, não tinha ainda +começado a surgir para ser generosa, amplamente generosa, com os +adversarios das suas idéas, quando a desventura os sanctifica. Na +imprensa liberal, revolucionaria, impia, como quizerem chamar-lhe, eu, +só eu, tive por muito tempo palavras de affeição e consolo para a +desgraça; só eu tive animo para accusar os homens do meu partido +d'espoliadores e d'insensatos; para tentar revocá-los á poesia do +christianismo, do eterno alliado da liberdade. A voz que do campo do +progresso saudava o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera: a +mão que se estendia para amparar o sacerdote curvado sob o peso da +agonia era bem pouco robusta, mas era leal! Como Yorick guardava a caixa +do pobre franciscano entre os symbolos da sua religião de affectos, eu +guardo para mim, e só para mim, mais de um papel escripto por mãos +trémulas de velho monge, e talvez regado por lagrymas, em que se +reconhecia a possibilidade de haver um homem das novas idéas que não +fosse absolutamente um malvado. É sobre estas reliquias que eu quero +encostar a cabeça para dormir tranquillo o ultimo e longo somno em que +todos devemos repousar. Não receiem pois os que me chamam hoje impio e +herege, que eu os envergonhe com o testemunho dos que valiam mais do que +elles, dos verdadeiros martyres do passado. São cousas queridas e +sanctas para mim. Estejam certos de que não as prostituirei jámais. + +Depois, pouco a pouco, foi-se estabelecendo nos animos uma reacção +salutar: começou-se a sentir que o templo e o sacerdote eram importantes +elementos de paz, e que podiam ser instrumentos de liberdade. Vieram +outros pelejadores, todos mais fortes e déstros, combater na arena onde +por tanto tempo eu me tinha achado só. Não foi de certo a minha +influencia litteraria que trouxe este resultado. Trouxe-o o progresso da +razão humana, a força irresistivel da verdade. Entretanto, parece que, +retirando-me do posto que defendera com os limitados recursos que Deus +repartira comigo, merecia do clero, por si e pela igreja, um _vale_ de +paz. + +Em logar disso tenho a guerra, acerba, covarde, atraiçoada. Porque? +Porque trouxe para o campo da historia o mesmo amor da verdade singela, +que tinha mostrado n'uma das mais graves questões sociaes. + +Não me arrependo do que fiz. Cumpri um dever que me impunham Deos e a +minha consciencia. Não espero arrepender-me do que faço. Cumpro uma +obrigação litteraria, e estou certo de que bem mereço da terra em que +nasci escrevendo a verdade. + +Sabe vossa eminencia sobre que eu hesito? É sobre a legitimidade +absoluta das minhas queixas; é sobre se, no que supponho um dever +d'honra, não haverá um pouco da obcecação da vaidade. + +Quando Roma, que parece ter jurado nas aras de Jupiter Stator o +exterminio do catholicismo, crucifica no seu _Index_ nomes como os de +Chateaubriand e Lamartine; nomes como os de Gioberti e Ventura, terei +eu, verme que passo á sombra do meu nada, direito de offender-me porque +de pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa, alguns clerigos maus +ou ignorantes lançam sobre mim o vilipendio das suas palavras? + +Quando a igreja, envolvendo a fronte no véu da sua immensa tristeza, e +sentindo humedecer-lhe os pés o sangue humano vertido pelo ferro +sacerdotal, contempla atterrada o futuro, ha dor de individuos a que +seja licito um brado? + +Cerrarei aqui o discurso, porque temo ir mais longe do que eu quizera. +Permitta-me vossa eminencia que conclua fazendo um voto, ao qual sei que +vossa eminencia se associa, bem como os outros prelados de +Portugal:--Oxalá venha em breve o dia em que o clero d'este paiz possa +receber uma educação digna do seu elevado destino, e conhecer, por +estudos severos e bem dirigidos, que o ser christão não é ser nem +hypocrita nem fanatico. + + + + +II + +CONSIDERAÇÕES PACIFICAS + +SOBRE O OPÚSCULO EU E O CLERO + + +AO REDACTOR DA NAÇÃO + +(_Julho, 1850_) + + +A necessidade de reprimir o abuso do ministerio do pulpito que contra +mim se estava practicando obrigou-me a dirigir a sua eminencia o +Patriarcha de Lisboa uma carta, na qual, sem faltar á consideração +devida ao prelado da diocese, nem aos outros bispos do reino, entendi +que cumpria usar de uma linguagem severa, mas justa, para com a maioria +do clero. Habituado a patentear livre e singelamente as minha opiniões +ácerca dos homens e das cousas, não soube nem quiz buscar rodeios, ou +adoçar as phrases para me exprimir de modo menos aspero n'uma questão +que me respeitava pessoalmente, e em que até certo ponto estava +compromettido, não só o meu caracter litterario, mas tambem, o que mais +importa, o meu caracter moral. Toda a imprensa periodica, politica e não +politica, sem distincção de partidos, foi unanime em condemnar actos que +me obrigavam a dar um passo a que bem desejaria me houvessem poupado. +Como os outros jornaes, a _Nação_ reprovou as aggressões inauditas +perpetradas por uma parte do clero, e toleradas por outra. O +procedimento de v.. para comigo foi nessa conjunctura tanto mais nobre, +quanto é certo que a indole do seu jornal deveria talvez levá-lo a +rebater a opinião de diversas publicações periodicas, se o sentimento da +justiça não fosse mais forte no animo de v.. do que outras quaesquer +considerações. É assim que o sacerdocio da imprensa cumpre a sua grave +missão, e remedeia do modo possivel a decadencia do sacerdocio +religioso. Continuando, porém, a tractar de uma questão, que, embora +interessasse um simples e quasi obscuro individuo, era demasiado +importante pelo alcance e significação dos factos que a haviam +suscitado, v.. teve a bondade de dirigir-me algumas observações, que me +pareceu exigirem de mim explicações como christão e como homem de +letras. Não as dei logo, porque não tardou a annunciar-se publicamente +uma refutação da minha carta, em desaggravo do clero. Falava-se n'um +milagre de sciencia e de raciocinio, diante do qual eu teria de fugir +desalentado como os sarracenos de Ourique diante do da apparição. +Citavam-se, até, nomes: falava-se em summidades da igreja e da eschola. +Como entendo que não é bom fugir sem ver de que, esperei que rebentasse +o temporal. Se fosse por elle submergido, de que aproveitariam as +explicações dadas a v..? Se, porém, podesse salvar o meu fragil baixel, +pediria misericordia aos vencedores, e daria ao mesmo tempo a v.. razão +de mim. Fiquei, portanto, como o sentenciado no oratorio, com o ouvido +attento ao som que devia annunciar a hora do supplicio. Esta hora, +todavia, segundo creio, passou. A dizer a verdade, eu alimentava +esperanças de salvação com um argumento que fazia a mim mesmo. Não é +provavel, dizia comigo, que um membro do clero illustrado e honesto +queira vir combater-me no terreno desigual e escorregadio em que a +imprudencia collocou o sacerdocio, e o vulgo clerical tem impedimento +dirimente para entrar neste empenho. Para escrever é preciso saber ler e +ter lido; saber reflectir, e ter reflectido muito. Por este lado podia +eu estar tranquillo. + +É certo que o annuncio feito nos jornaes não foi materialmente vão. +Appareceu um folheto, que parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me +que é de um mancebo principiante. Revela, sem dúvida, algum talento no +auctor. Com o tempo, e estudando, este póde vir a ser um escriptor +soffrivel, e habilitar-se emfim, para tractar d'estas ou d'outras +questões com honra sua e proveito do paiz. + + + Non ragioniam di lui, ma guarda, e passa. + + +É pois tempo de me explicar com v.. e fa-lo-hei do modo mais breve que +me for possivel. Se alguma phrase menos comedida me fugir da penna, +declaro desde já que a retiro. Dirigindo-me a um escriptor como v.., tão +urbano nas proprias censuras que me faz, embora sobre tão melindrosa +materia como o são as cousas da fé, espero que v.. não veja por caso +algum nas minhas palavras a menor intenção offensiva. + +Tres censuras irroga v.. ao conteúdo da minha carta; a primeira contra a +antithese contida no titulo do opusculo _Eu e o clero_: a segunda contra +as expressões de _intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, +violentas e cubiçosas_, de que me servi para qualificar alguns papas: a +terceira contra a phrase, _Roma que parece ter jurado nas aras de +Jupiter Stator o exterminio do catholicismo_, e contra os terrores que +attribuo á igreja ácerca do futuro. Considerarei em especial cada uma +dessas tres censuras. + +Diz v.. que me era licito collocar-me em antagonismo com um ou outro +clerigo, porém não com o clero em geral, por honra e credito meu, que +nada podia ganhar em lucta tão desigual, e que, a existir, seria a minha +condemnação. Antes de tudo é necessario observar duas cousas: 1.^a, que +o antagonismo não o creei eu: resultou de factos practicados pelo clero, +que tolerei com paciencia durante annos, e que toleraria talvez sempre +em silencio, se não receiasse que no progresso da aggressão chegassem a +levantar-me um pulpito diante da porta, para d'ahi me fazerem um sermão +sobre a sanctidade dos papas da idade média, ou sobre os milagres +referidos por S. Bernardo: 2.^a, que é pelo opusculo e não pelo seu +titulo, que se há de avaliar até onde esse antagonismo vai, e se elle é +legitimo. Não apparece uma unica passagem da minha carta em que eu me +refira com phrases hostis a _todo_ o clero português. Os homens que ha +no meio delle illustrados e virtuosos, respeito-os; respeito-os +duplicadamente pela sua illustração e pelas suas virtudes; pelo seu +caracter litterario, e pelo seu caracter sacerdotal. Esses não sobem aos +pulpitos a dizer despropositos; não me querem mal, nem a mim nem aos +meus pobres escriptos. Ao que eu me contrapús foi ás turbas tonsuradas; +foi á maioria material e numerica; minoria nos dominios da +intellectualidade, das idéas, e dos puros e nobres affectos. Faria uma +offensa gratuita; practicaria uma brutalidade indesculpavel, estaria em +contradicção comigo mesmo, com as minhas opiniões, se assim, sem motivo, +sem provocação, tivesse o proposito de maltractar aquell'outra parte do +clero. + +É esta a idéa que ha de resultar da leitura da minha carta para todos os +animos desprevenidos; para v.. mesmo, se tiver bastante paciencia para a +reler. Quanto a esses de quem me queixo, não sou eu homem que esconda as +proprias convicções. Na minha vida litteraria tenho dado mais de um +documento de que costumo ser sincero. Estou persuadido de que a maioria +do nosso clero é tal como eu a qualifiquei, e se não fosse a natural +repugnancia a despedaçar um cadaver, daria aqui as razões da minha +persuasão. Em todo o caso, acceito inteira a responsabilidade della: não +tergiverso, não me arrependo. Tenho dicto e escripto muitas verdades, +senão mais deploraveis, por certo mais perigosas para mim, sem que o meu +somno deixasse de ser profundo, como o é habitualmente. + +Postas as cousas nestes termos, que são os exactos, não me é possivel +comprehender a affirmativa de v.. de que o meu credito e honra +padeceriam pelo antagonismo com a maioria do clero, _nessa lucta +desigual, que envolveria a minha condemnação_. Se v.. viu naquella fatal +antithese um peccado de orgulho, talvez o seja; mas eu vi nella apenas +um acto de humildade. Pois, em consciencia, eu não valerei mais, +litteraria e moralmente, do que um clerigo mau ou insipiente? Mas cem, +mas mil, mas dez mil clerigos máus ou insipientes, ainda que os fundam e +os acrisolem, chegarão, acaso, a produzir o equivalente de um homem de +alguma intelligencia e de alguma honestidade? Não. O resultado de todas +essas operações será sempre, a meu ver, um _substratum_ de parvoice ou +de corrupção. Peccado de soberba não creio, portanto, tê-lo commettido. +Por este lado mal posso ser condemnado. Referir-se-hia, porém, v.. ao +perigo litterario? Tambem não póde ser. É v.. assaz instruido para +sentir que por esse lado a lucta me dá tanto cuidado como daria a v.. se +estivesse no meu logar. É o perigo religioso? A idéa da condemnação +antes de contestada a lide, e envolvida na proposição da causa, torna +talvez plausivel esta interpretação. Nessa hypothese, v.. não teria +advertido n'um facto indubitavel. A maioria do clero português não é a +maioria do clero catholico: a maioria do clero catholico não constitue +por si a igreja de Deus. Bem infeliz seria eu se me visse em opposição +com esta; mas confio em que a Providencia me livrará de cair nesse +abysmo, não só agora, mas sempre. + +Todavia a minha linguagem severa, embora justa e legitima, será +condemnavel, senão pela substancia, ao menos pelos accidentes? Será +condemnavel porque vai ferir duramente um grande numero de sacerdotes, +de homens, infelizmente, ungidos do Senhor? Que v.. me consinta invocar +em meu auxilio um exemplo acima de toda a excepção. É de um padre da +igreja, a cujas obras o nosso clero foi tão affeiçoado, que até lh'as +quiz augmentar, com grande gloria do sancto e proveito destes reinos. +Alludo a S. Bernardo. As phrases da minha carta são de suprema doçura +comparadas com as que o celebre cluniacence empregava para qualificar a +corrupção, não do clero de um paiz, não da maioria desse clero, mas em +geral do sacerdocio do seu tempo. «_Manou a iniquidade_--dizia S. +Bernardo--_dos anciãos, dos juizes, dos teus vigarios, oh Deus; +daquelles que parecem governar o teu povo! Já não é licito dizer_--_tal +o povo, tal o sacerdocio; porque este é peior. Oh meu Deus, meu Deus! Os +teus maiores perseguidores são os que mais ambicionam a primazia, e +exercem na igreja o mando supremo_[1]». E, como se estas acres +expressões não bastassem, o terrivel benedictino desfecha, n'uma carta +dirigida, não a algum prelado metropolitano, mas ao proprio Innocencio +II, na seguinte diatribe: _A insolencia do clero_, a qual nasce da +indulgencia dos bispos, _turba o mundo e afflige a igreja. Entregam os +bispos as cousas sanctas_ a cães, _e as pedras preciosas_ a porcos, _e +elles em paga mettem-nas debaixo dos pés. Assim o quizeram, assim o +tenham_[2]». Se eu me servisse de semelhante linguagem, imagine v.. que +matinada se alevantaria contra mim! + +Dir-me-ha v.. que S. Bernardo foi um sancto padre da igreja, e eu não +passo de um peccador e obscuro christão? Assim é. Por isso o segui de +longe, _non passibus æquis_. Comtudo, v.. não deixará de advertir em +que, quando elle escrevia essas phrases violentas, era um pobre monge, +humilde, simples, sem pretensões orgulhosas, sem presciencia de que +tinha de ser um sancto e um luminar da igreja. E que lhe importava? O +espectaculo do procedimento do clero arrancou da sua bôca esses brados +d'indignação, como loucas provocações arrancaram da minha penna palavras +muito menos violentas. + +Já agora consinta-me v.. que cite ainda um veneravel prelado português +quasi do nosso tempo, a quem tambem tive occasião de alludir na minha +carta; que recorde as palavras geraes de D. Fr. Caetano Brandão ácerca +do clero português no principio deste seculo. O metropolita explicava +n'uma carta a certo ministro d'estado quem era que fazia recair a +desconsideração sobre o poder pontificio: «_São aquelles_--dizia o +arcebispo de Braga--_que á força de supplicas importunas, de respeitos +humanos, e outros motivos_ ainda mais vergonhosos, _costumam extorquir +da curia romana provisões beneficiaes_, que mais parecem titulos de +contractos de predios rusticos, do que de beneficios ecclesiasticos; +_provisões a favor das quaes tem infestado as parochias e córos_ +(collegiadas e cabidos) de todo o reino _uma tropa confusa de_ sujeitos +indignos, etc.[3]». Que se leia inteira a passagem impressa daquella +carta, e ver-se-ha se foi o arcebispo, se eu, quem usou de mais +desabrida linguagem. + +Apesar disso, suas reverencias hão de tolerar-me a crença de que não +estão no inferno nem a alma de D. Fr. Caetano Brandão, nem a de S. +Bernardo. + +Ainda algumas palavras sobre o antagonismo, em que de nenhum modo v.. me +quer ver collocado, em relação á maioria do clero. Foram apenas alguns +que me provocaram do pulpito, e eu chamo á autoria o grande numero. É +verdade. Não sei com certeza senão de alguns factos de aggressão, mas a +noticia de parte d'esses factos obtive-a casualmente: alguns +constaram-me apenas, porque um jornal a elles alludiu de passagem, +dizendo que se practicavam por diversos logares de Entre-Douro e Minho. +É acaso provavel que se não repetissem por outras dioceses? Em Lisboa, +onde eu resido, onde os sacerdotes podem ter mais illustração, onde, +até, o fanatismo deve ser mais raro, porque a propria fé é mais tibia, +onde, emfim, os prégadores mais devem receiar que o seu auditorio se ria +delles, houve dous exemplos. Não me será licito inferir que, não tendo +eu uma policia ás minhas ordens, ignoro muitos successos analogos? +Depois, houve, á vista desses factos repetidos, não digo punição de +semelhante abuso do ministerio sagrado, o que não peço, o que até me +contristaria, porque me lembro das palavras de Christo «_Perdoa-lhes +Pae, que não sabem o que fazem_, mas a minima providencia para impedir a +renovação de taes escandalos? Para que servem os vigarios da vara, os +arcediagos, os representantes ou delegados do poder episcopal? Como +informam os respectivos prelados do que se passa entre o clero +diocesano? Não tenho eu direito de suppôr que elles tambem entendem que +a sanctidade dos papas da idade média ou o apparecimento de Ourique são +partes integrantes da crença catholica, e que se trepassem ao pulpito, e +lhes viesse a talho, me chamariam do mesmo modo impio ou herege? Se não +estão de accordo com os prégadores, como se esquecem de que os padres de +Trento prohibiram aos bispos que consentissem aos oradores sagrados +_divulgar ou tractar factos incertos, ou que tenham caracteres de +falsidades_[4], e de que os do concilio 1.^o de Colonia ordenam aos +mesmos oradores que _não falem imprudentemente de milagres, limitando-se +aos que refere a Biblia, ou aos que forem narrados por escriptores de +peso, estribados em solidos fundamentos historicos_[5]? Como quer pois +v.. que eu não increpe o maior numero e que não o supponha alistado +contra mim nesta vergonhosa cruzada d'ignorancia? + +Passando ao segundo capitulo de accusação, sinto verdadeira magoa em ser +constrangido a dizer que v.. leu menos attentamente o que escrevi ácerca +dos papas na minha carta ao eminentissimo senhor Cardeal Patriarcha. +Qualifiquei ahi de intelligencias vastas, energicas, mas corruptas, +violentas e cubiçosas, alguns delles que se chamaram Gregorio, +Innocencio ou Honorio, e v.. reprehende-me por classificar como taes +Gregorio VII e Innocencio III!? Onde me refiro eu a estes dous papas no +meu opusculo? Na epocha abrangida pelo que se acha publicado da Historia +Portugal houve diversos pontifices desses nomes. A cada um delles fiz, +creio eu, justiça, e Gregorio VII foi aquelle em que menos falei, porque +viveu antes de nascer a monarchia. É singular como v.. pôde perceber +que, entre tantos, alludi a esses dous em particular! Não teria eu +direito de dizer, que uma voz da propria consciencia trahiu e tornou van +a benevolencia para com elles manifestada nas palavras de v..? O que me +parece indubitavel é que alguma convicção historica preoccupava o +espirito de v.. quando nas minhas expressões vagas e geraes viu um +ataque directo e especial á memoria daquelles homens extraordinarios, +cujos meritos não neguei, nem tenho empenho em negar. + +Entretanto não pense v.. que com isto pretendo lançar fóra de mim a +responsabilidade de julgar severamente Hildebrando ou Innocencio III. +Não tenho a minima dúvida em lhes applicar as designações de +intelligencias violentas e cubiçosas, como não a tenho em chamar +corruptos a outros papas, como, por exemplo, a Innocencio IV. É verdade +que v.. cobre Hildebrando com a egide da canonisação, e Innocencio III +com a da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a sciencia e +litteratura sejam synonimos de virtude, nem creio que uma canonisação +constitua dogma de fé, e obste á liberdade do historiador para avaliar +como entender os caracteres historicos. V.. sabe perfeitamente que, +fundando-se as canonisações em provas humanas, e não em factos +revelados, as decisões pontificias a tal respeito são sempre falliveis, +o que bem se manifesta da oração que ainda no seculo XIV os papas faziam +na solemnidade das canonisações, pedindo a Deus permittisse que não se +houvessem enganado. Esta doutrina é corrente, e v.. não a ignora, nem +poderia ignorá-la[6]. + +Recorda-me v.. que os escriptores protestantes fazem a estes dous +pontifices a justiça que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como a +entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo ao papado, em mais +de um logar do meu livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos +que a civilisação lhes deve. Dos historiadores protestantes modernos não +conheço nenhum mais celebre, dos que exaltam Gregorio VII, do que o +professor Leo. Mas, para isso, elle proprio sentiu a necessidade de se +valer exclusivamente da idéa em que se resume a historia do progresso +humano. Esta idéa é a _lucta do espirito com a sua manifestação, com a +fórma, com a materia; o desenvolvimento do raciocinio predominando no +meio da força do acaso_[7]. Elle vê-a representada, incarnada, digamos +assim, em Gregorio VII e nos seus immediatos successores, na indole e +tendencias desses individuos; eu vejo-a no papado, na indole da +instituição. É inquestionavel que nenhuns pontifices levaram mais longe +a manifestação da idéa, e em philosophia historica os defeitos desses +papas desapparecem, quando se considera a maneira _vasta e energica_ por +que elles desempenharam a missão providencial do papado n'aquella +epocha. Todavia, na apreciação _moral_ dos seus actos como individuos, é +por outros principios que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo +conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado a essa luz, que a excluiu +da historia «_No mundo dos phenomenos_--diz elle--_a luz da verdade não +se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se por todas. Não são os +phenomenos individualmente que constituem a verdade, mas sim o complexo +delles_.» Para avaliar o pontifice como representante e typo da +instituição, a regra é exacta; para o avaliar como homem, não; porque a +_intenção_, a causa moral dos actos, é necessaria para a apreciação +abstracta de um caracter. A suberba, a ambição e até a cubiça de +Gregorio VII estão pintadas nos factos a que accidentalmente me referi +n'um logar do meu livro[8]. Destruam, se é possivel, documentos +irrefragaveis. + +Queremos, porém, saber, por testemunho insuspeito, qual era essa +intenção moral, qual o caracter de Hildebrando? Ouçamos um seu +contemporaneo, um sancto padre. Tenho gosto especial em citar nestas +cousas os sanctos padres. São respeitaveis auctoridades! «_De +resto_--diz um delles--_rogo humildemente ao meu S. Satanaz que não se +enfureça tanto comigo, e que a sua veneranda suberba não me fustigue com +tão longa flagellação_[9]». + +De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando. Quem o escrevia? Um +pobre velho: S. Pedro Damião n'uma carta dirigida a Alexandre II e ao +proprio cardeal. Verdade é que não sabía quão grande sancto havia de vir +a ser o seu _S. Satanaz_. Nessas palavras amargas do veneravel monge +está explicada a actividade irresistivel com que Gregorio VII proseguiu +na lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior +intellectualmente aos outros homens, a ambição de os dominar a todos +fê-lo até negar a realeza, não só como facto, mas tambem como principio. +Houve, ha hoje um democrata mais virulento do que Hildebrando? Não o +creio. V.. conhece por certo uma passagem singular das suas cartas. +«Que!--diz elle--uma dignidade inventada pelos homens do seculo (a dos +principes) não estará sujeita á que Deus estabeleceu para gloria +propria? Quem não sabe que os reis, que os chefes procedem dos principes +pagãos, os quaes por instigações do diabo, _que é o verdadeiro principe +do mundo_, movidos por cega paixão e levados por intoleravel presumpção, +_usurparam o poder supremo sobre os seus iguaes_, pondo por obra, com +esse intuito, a rapina, a perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os +crimes?[10]» Não lhe parece a v.. que se hoje Hildebrando resuscitasse, +o tinhamos presidente da republica democratica e social? Veja v.. o caso +que o sancto varão fazia do famoso texto biblico: _Per me reges +regnant._ Dir-se-hia que tinha lido: _Per diabolum reges regnant._ +Podemos nós os monarchistas (embora o sejamos por differente feitio) +acceitar as idéas do celebre S. Satanaz? Não ha nessas idéas um orgulho, +uma intolerancia para com os poderes da terra, que não +comprehenderiamos, talvez, hoje, se não tivesse vivido no nosso seculo +uma intelligencia igualmente _vasta e energica_, chamada Napoleão +Bonaparte? + +Vamos ás ultimas censuras de v.. em que me parece não ter mais razão do +que nas primeiras. Diz v.. que Roma, _significando o poder pontificio_, +não póde jurar o exterminio do catholicismo. Que!?--Pela palavra Roma +não se póde entender senão o poder pontificio, não se póde significar +senão o papa? V.. ha de permittir-me que eu recorra ainda uma vez a S. +Bernardo para me salvar da condemnação eminente. Nesta contenda, não sei +porque, o meu espirito recorda-se a cada momento daquelle illustre padre +da igreja. Falando das horriveis desordens que produziam as appellações +para o papa, e alludindo a dous bispos allemães carregados de crimes, +que, tendo appellado para Roma e levando comsigo bastante dinheiro, +haviam sido repellidos nas suas pretensões e offertas, S. Bernardo +exclama: «_Grande novidade! Quando até o dia de hoje rejeitou Roma +dinheiro?_[11]» Note-se que o sancto vivia no seculo immediato ao +governo de Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso ao papa +Eugenio III, que frequentemente louva, e a quem, por certo, não +pretendia affrontar. Que significa pois a palavra _Roma_ na bôca do +grande abbade de Claraval? A curia romana; essa curia, onde, segundo a +opinião do severo cluniacense, «_era mais facil entrar honesto, do que +tornar-se lá homem de bem_[12]»; essa curia que me obrigaria a encher +paginas e paginas de citações se quizesse colligir as passagens +relativas ao seu desprezo por todas as leis divinas e humanas, quando se +tractava de receber ouro, passagens que se encontram ás dezenas nos +escriptores mais respeitaveis, e onde se memoram, até, versos das +cantigas populares contra a cubiça da curia, o que prova ter-se tornado +proverbial a corrupção de Roma[13]. + +Mas concedamos que, ultrapassando além da curia romana, eu tivesse em +mente o pontifice. Como homem, como principe temporal, os seus actos +publicos são do dominio da imprensa; se esses actos pelos seus effeitos +moraes e politicos poderem trazer graves turbações, dias de amargura á +igreja, não é licito a todo e qualquer christão deplorar essas +consequencias, reprehender esses actos? Quando eu digo que Roma _parece_ +ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso o papa, a curia, alguem +de ter a intenção directa de o destruir? Ou eu não sei português, ou +empreguei uma phrase trivial, cujo alcance todos comprehendem. Que se +diz do valetudinario que despreza os conselhos dos medicos? _Parece que +se quer matar!_ E quando dizemos isto passa-nos acaso pelo espirito a +idéa de attribuir a esse individuo a intenção directa do suicidio? Ou +será que as expressões simples, as phrases innocentes dos outros homens +se convertem em peste e veneno, quando saem da bôca do feroz herege que +ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem posthumo, de S. Bernardo +ácerca do milagre de Ourique? + +Em que tempos estamos nós? Para onde caminha a reacção religiosa? Que!? +Eu não poderia apreciar como entendesse o procedimento politico de um +papa, em relação aos futuros destinos da igreja, e S. Thomás de +Cantuaria poderia sem ser um reprobo lançar em rosto a Alexandre III as +gravissimas accusações de o trahir, e de querer conduzi-lo á morte[14]? +Poderia S. Thomás de Aquino, o mais profundo philosopho do seculo XIII, +ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado o tempo em que S. Pedro +dizia «_não possuo nem ouro nem prata_»--responder-lhe «_que tambem era +passado o tempo em que S. Pedro dizia ao paralitico--levanta-te e +anda_[15]» epigramma pungente atirado ás faces de um papa, cuja cubiça +não conheceu limites; poderia, digo, S. Thomás ser um doutor da igreja, +depois deste attentado? Podia sequer ser papa o successor do mesmo +Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o _vendilhão de igrejas_[16]? +Riscae do catalogo dos bemaventurados S. Antonino de Florença, que não +duvidou de pintar com as mais negras côres os vicios hediondos de +Clemente V[17]. Não chameis o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque +taxou de velhaco o papa Eugenio IV[18]. Rejeitae do gremio catholico o +erudito e pio Fleury, porque escreveu o 4.^o discurso sobre a historia +Ecclesiastica. Para serdes logicos despovoae a igreja de sanctos, de +doutores, de homens illustres, se credes que, dentro della, eu, que não +sou nenhuma dessas cousas, não tenho direito de aferir pelos principios +eternos da moral, da justiça e da caridade evangelica as acções dos +papas sem renegar da igreja. + +Não disputarei com v.. sobre os successos de Roma nos ultimos tempos. +Cada qual póde vê-los á luz que julgar verdadeira. Ao que, porém, eu +tenho jus é a averiguar se é exacta a proposição absoluta de v.., de que +o futuro da igreja é muito sabido, claro e indisputavel _para os +catholicos_. Por este modo v.. parece excluir-me do gremio do +catholicismo, porque hesito sobre o seu futuro. Advertiu acaso v.. em +que a proposição assim absolutamente enunciada, conduziria ao +impossivel? O que é certo, sabido e claro para a igreja, e para cada um +dos seus membros, é que ella será perpetua, indestructivel. Mas por +quaes phases tem de passar; se a esperam dias serenos, se dias de +tribulação; se acres resentimentos, imprudentemente preparados, virão ou +não como a procella despir a folhagem, lascar os troncos da arvore +eterna do christianismo, eis o que nem a igreja, nem eu, nem v.. +sabemos. Está acaso v.., que eu creio profundamente catholico, +habilitado para me dizer de um modo _certo e claro_, se a idea +revolucionaria da Italia apodreceu para sempre encharcada no sangue que +as balas e bayonetas francesas e austriacas derramaram á voz da curia +romana? Se a politica das masmorras, dos desterros, da compressão +inexoravel, preferida á politica evangelica da tolerancia, do perdão das +injurias, da caridade sem limites, poderá varrer para sempre dos animos +italianos o odio do dominio estrangeiro (quer directo quer indirecto) e +o amor da liberdade politica? Esse odio e esse amor póde v.. julgá-los +legitimos ou illegitimos: não disputarei sobre isso. Mas que elles não +existam; que elles não possam triumphar algum dia, eis o que v.., por +certo, não affirmará com a mão na consciencia. E nessa hypothese, quem +saberá dizer até onde chegarão os excessos da colera e da vingança, +azedadas pelo padecer, e até certo ponto legitimadas por elle, se +legitimidade se póde dar em taes sentimentos? Parece-me que ao homem +catholico é licito imaginar, sem que por isso vacille a sua fé ácerca da +perpetuidade do catholicismo, que a igreja se entristece, ou deve +entristecer, aterrada pelo porvir; é licito suppôr que as lagrymas dos +seus futuros martyres vem já de antemão cair-lhe ardentes sobre o seio +materno. Se attribuir ao gremio dos fiéis, composto de homens, os +affectos de dor e amargura desdiz de alguma cousa, não é, de certo, das +tradições evangelicas, nem das tradições dos antigos padres. Já no +seculo IV S. Hilario de Poitiers observava quão frequente era pintar-nos +o evangelho como triste e afflicto o Filho de Deus[19]; e S. Gregorio +Magno não duvidava de dizer: «_A sancta igreja, emquanto vive esta vida +de corrupção, não cessa de chorar os damnos das vicissitudes por que +passa_»: e n'outra parte: «_A dor esmaga a igreja quando vê os perversos +prosperarem na propria maldade_»[20]. É dessas vicissitudes a que allude +o sancto pontifice que eu falo; é a essas vicissitudes, demasiado +provaveis, que os erros dos homens, as paixões anti-christans do +sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas previsões, um caracter de +terribilidade. + +Tenho dado razão de mim. Diz v.. que poderia accrescentar mais. Sinto +que o limitado espaço de uma folha periodica, ou outro qualquer motivo, +o inhibisse de assim o practicar. Gósto de ser advertido dos erros em +que caio, quando é a sciencia e o talento quem se incumbe deste mister, +e certifico a v.. de que facilmente me retractaria, se nas suas +ulteriores observações v.. me convencesse de que eu errava. Á ignorancia +presumida, ou á insolencia estupida, é que não costumo fazer a honra de +responder. Quanto a esta questão, que não suscitei, e que até deploro, +ella terminou para mim. Que os hypocritas façam visagens beatas contra a +minha impiedade; que me proclamem herege ou o que elles quizerem, cousas +são essas com que nenhum homem de juizo se afflige, porque as assaduras +inquisitoriaes, mercê de Deus, acabaram para sempre. A raça dos escribas +e phariseus, o peior flagello que Christo encontrou na terra, e que elle +mais cordealmente amaldiçoou, é immortal e immutavel; mas deixá-la +viver. Quem diz ao sapo:--«não sejas asqueroso?»--Quem diz á +vibora:--«não sejas peçonhenta?»--Babem e mordam; é o seu destino, +coitados! + +O que não tolerarei é que me chamem de novo, a mim ou aos meus +escriptos, a figurarmos no meio das parvoices sacrilegas com que se +deshonram os pulpitos. Que os prelados façam ou não o seu dever a este +respeito, pouco me importa. Estejam certos de que não será a suas +excellencias que pedirei desaggravo. + + + + +III + +SOLEMNIA VERBA + + +AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES + +(_Outubro, 1850_) + + + + Porque virá tempo em que muitos homens não soffrerão a san + doutrina; mas..... accumularão para si mestres conforme aos seus + desejos: + + E assim apartarão os ouvidos da verdade e os applicarão ás fabulas. + + _S. Paulo, Epistola II a Thimoteo c. 4. v. 3, 4._ + + +Permitta-me v.. que, sem existirem entre nós outras relações que não +sejam aquellas que fortuitamente nascem entre os homens de letras quando +se encontram no campo da imprensa, eu dirija, por essa mesma imprensa, +uma carta a v.. + +Esta carta será um pouco extensa. Será talvez seguida de outras. Não o +sei ainda. N'uma questão litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que o +procedimento de alguns individuos da ordem sacerdotal converteu n'uma +contenda que não sei até onde chegará, v.. fez-me a honra de ser meu +adversario, escrevendo dous opusculos em que combate as minhas opiniões +n'um, ou para melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria. +Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas epochas, v.. se houve +sempre para comigo com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia de +um espirito cultivado. Póde haver ahi uma ou outra expressão mais viva, +que feriria certas vaidades demasiado mimosas; se, porém, as ha, não me +feriram a mim, endurecido já nestes recontros, e que tambem não sou dos +menos sujeitos a ceder ás vezes aos impulsos da vivacidade. + +No meio dos que me tem combatido, v.. representa a meus olhos a parte +san, os homens sinceros do gremio, da eschola, do partido (como quizerem +chamar-lhe, porque os nomes importam pouco) a que v.. pertence. +Representa, digo, essa parte, postoque, e ainda bem que assim é, não a +resuma. Igual testemunho devo deixar aqui, se os meus escriptos tem de +viver mais algum dia que eu, ácerca dos Redactores do jornal _A Nação_. +Meus adversarios tambem, não recebi delles na impugnação das minhas +doutrinas, senão provas de consideração e de urbanidade. + +Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita em que quiz encerrar-se no +seu ultimo e recente opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses +homens probos e leaes que estimo e respeito, embora julgue erroneas, +deploraveis até, as suas opiniões n'uma contenda, que, não por minha +culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma direcção fatal. Deus +queira que os imprudentes que lhe deram origem não tenham de chorar a +sua loucura com lagrymas amargas! + +Sería bem triste que essa porção de compatricios meus em cujos corações +o amor do passado é um sentimento puro, postoque, a meu ver, ás vezes se +manifeste de modo pouco reflectido, me cressem traidor á sancta causa da +patria. Se os erros de nossos paes e os erros de todos nós os que +vivemos, erros que nos trouxeram a uma situação que não posso, que não +quero definir aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal, ameaçado +na sua independencia e nacionalidade, brade por todos os seus filhos +para um esforço supremo, para o salvarem ou para morrerem, espero em +Deus, e depois de Deus na minha consciencia, que, sem crer no milagre de +Ourique, não serei o ultimo a acceitar esse terrivel convite. O passado! +Quem mais o amou do que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos com +mais saudade para as suas tradições? Mas as tradições de que tenho +saudade; mas o passado que eu amo, não o são essas lendas absurdas +(desculpe v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas por +interesses mundanos, dos quaes, por mais graves que sejam, nem a +philosophia nem o christianismo consentem se faça o céu instrumento. Nos +tempos que foram o que me sorri, não só como saudade, mas (porque não +direi agora o que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem como +esperança, são as tradições dessa liberdade primitiva, postoque +incompleta, filha primogenita do evangelho, que elle gerara para mãe, +para abrigo das sociedades da Peninsula; dessa liberdade, rude e +turbulenta como uma creança educada á lei da natureza, mas como ella +robusta e viçosa; dessa liberdade que se estribava nos habitos, que +resultava de instituições positivas e exequiveis, e não de instituições +copiadas quasi ao acaso da primeira theoria que tivesse transposto os +Pyreneus; dessa liberdade que tornava a monarchia uma cousa sancta, +necessaria, indestructivel, e que a monarchia, por desgraça sua e nossa, +foi lentamente esmagando debaixo do seu throno, formado dos infolio, +politicamente fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas e Commentarios +das escholas d'Italia; dessa liberdade, que, desenvolvida e organisada +logicamente com a sua origem, nos teria poupado talvez á gloria immensa, +mas para nós mais que esteril, de nos convertermos em victimas da +civilisação da Europa, de revelar o Oriente á sua cubiça, para logo +virmos assentar-nos extenuados n'um occaso de tres seculos; dessa +liberdade que nos teria salvado por certo de um longo estrebuxar em +esforços impotentes de emancipação, que tomámos como licções +d'extranhos, e que era mais velha para nós do que o era para elles. +Eis-aqui a maravilha, melhor que milagres imaginarios, na qual não só +creio, mas tambem espero. + +Peço a v.. e aos animos honestos que pensam como v.. se persuadam de que +o homem que não admitte certas narrativas infundadas, nem por isso deixa +de ser bom português, e que, se não está excessivamente inclinado a +adorar o Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em Deus. + +Com elles, com v.. a discussão grave, pausada, modesta, é possivel; é +mais, é uma necessidade do espirito, em que este se sente viver da vida, +a elle tão congenita, do raciocinio. Mas como replicar seriamente a +homens, não só ignorantes e ineptos, do que elles não tem culpa, mas que +falsificam, truncam, omittem as palavras do adversario, que lhe alteram +as ideas, que, mettidos no charco mais fetido dos becos da Alfama ou do +Bairro Alto, atíram ás faces do _impio_ que passa quanto lodo lhes cabe +nas mãos, contrahidas e convulsas pela colera? A taes desgraçados que se +póde fazer, senão dar-lhes a triste celebridade dos Cotins ou dos freis +Gerundios, e enviá-los á geração futura, envolvidos no sudario do +escarneo, para lhe distrahir os tedios? + +Se as expressões, talvez severas e acres em demasia, que me escaparam +n'um impeto de indignação contra a maioria do nosso clero, e não contra +os homens honestos e instruidos que pertencem a essa classe, como sem +pudor se inculca, não estivessem justificadas pelos actos que as +suscitaram, as consequencias do meu escripto tê-las-hiam remido. Dos que +me impugnaram, foi aos seculares que coube a moderação, a lealdade, e a +elevação dos pensamentos; foi a sacerdotes que couberam as manifestações +de odio incrivel[21], a transfiguração das minhas ideas, e a linguagem +sem nome das prostitutas. Isto é significativo. É que esses seculares +nunca tinham trajado a roupeta, usada a cubrir mais hypocritas e +devassos ignorantes do que varões religiosos e sabios: tinham, sim, +vestido a farda de soldado, costumada a despertar tantas vezes nobres e +grandes instinctos. E que me importam a mim esse odio impotente, essa +linguagem vergonhosa? O que o futuro ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o +v.. As ameaças, que ahi se murmuram pelos cantos, essas causam-me dó. Se +ao poder publico faltasse a força para manter illesa a segurança dos +cidadãos, devolvia-se a estes o direito da propria defesa. Mas os +Jacques-Clementes não apparecem senão onde a sinceridade das convicções +degenerou em delirio, e não onde as crenças são especulação. Para ser +Jacques-Clemente requer-se mais alguma cousa do que saber assassinar; é +necessario saber morrer. + +Entrarei na materia. + +Na questão suscitada pelo modo como tractei na Historia de Portugal a +lenda de Ourique, e ainda outras lendas analogas, é necessario confessar +que se tem partido sempre de um ponto nebuloso e fluctuante. Para se +chegar a um resultado preciso era necessario ter convindo em certo +numero de principios, acceitar certas formulas de raciocinio. Não se fez +isso. E todavia, a crítica historica tem regras para a credibilidade, +regras a que todo aquelle que tracta de taes materias deve sujeitar-se, +porque se estribam, não só na acceitação dos homens de sciencia, mas +tambem na razão commum. Estes preceitos são no nosso seculo, em que os +estudos historicos têm feito na Europa tantos ou mais progressos que as +outras sciencias, assaz severos; mas essa severidade começou a +desenvolver-se desde os fins do seculo XVII, em que a congregação de S. +Mauro, aquelle brilhante seminario de homens illustres, creou a +diplomatica. O estudo dos archivos, estudo alumiado pela philosophia +crítica, mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas compilações de +trabalhos historicos dos seculos anteriores. É de S. Germão dos Prados, +de S. Brás da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos da França +e da Allemanha, que partiu o movimento intellectual da Europa nesta +parte do saber humano. O que o seculo presente, amestrado por maior +experiencia, tem feito é apertar mais as condições da credibilidade, +evitando ao mesmo tempo todo o genero de preoccupação que possa proceder +dos interesses de partido politico ou da incredulidade em materias de +religião; é tambem o ter dirigido as indagações historicas mais para o +estudo da indole das sociedades, do que para os actos dos individuos. +Não nega as tradições da antiga sciencia; completa-as, aperfeiçoa-as. No +exame dos monumentos, na sua confrontação, tem dado exemplos de +imparcialidade e de paciencia, que mereceriam os applausos dos grandes +reformadores benedictinos, se podessem contemplar os resultados da +eschola que elles crearam, embora a sciencia moderna, como era natural, +os tenha deixado bem longe de si. Os doutos que têm comparado os +_Monumenta Germaniæ Historica_ de Pertz, os _Monumenta Historiæ Patriæ_, +publicados em Turin, a Collecção dos Archivos d'Inglaterra, a +continuação dos _Scriptores Rerum Francicarum_, e emfim as demais +publicações desta ordem com o que os maurienses nos deixaram nesse +genero, sabem que passos gigantes tem dado a crítica das fontes +historicas. O uso dessas fontes, a applicação dos preceitos a ellas, tem +produzido historiadores como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Amári, +Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira conhece e admira. É a +estes typos que hoje forçosamente ha-de tentar aproximar-se quem +escrever historia, se não quizer deshonrar-se e deshonrar a litteratura +do seu paiz. Foi essa aproximação que eu tentei, persuadido de que bem +merecia por isso da terra em que nasci. Se é assim ou não, pertence +decidi-lo áquelles que vierem após nós. No meio de uma revolução +litteraria não ha desafogo de animo bastante para se fazer inteira +justiça, nem aos meus esforços, nem á candura das minhas intenções. +Conheço a difficuldade de se abandonarem antigas preoccupações, e seria +louco se me irritasse com isso. + +Mas para refutar as impugnações que até aqui têm apparecido não me +parece necessario invocar a sciencia no seu estado actual, e nem sequer +a sciencia anterior na sua applicação á historia profana. Bastam-me as +regras acceitas pelos historiadores ecclesiasticos mais respeitaveis, +inculcadas por theologos, estabelecidas por membros illustres do clero, +a quem nem uma unica voz ousará accusar de menos crentes, ou sequer de +menos piedosos. É, creio eu, e v.. o julgará, acceitar a situação mais +desvantajosa possivel: é tambem o que eu já tinha feito invocando a +regra de Vicente de Lerins. Se a religião (cuja base é a crença em +cousas que excedem a comprehensão humana, e que nos impõe a synthese, o +dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente á analyse) exige dos +factos tradicionaes, antes de os acceitarmos, as condições de terem sido +acreditados _sempre, em toda a parte, e por todos_, quem pede para crer +ou deixar de crer factos puramente humanos (sujeitos pela sua natureza a +toda a discussão possivel) apenas as garantias de liberdade intellectual +que a igreja, tão parca em concedê-las, concede aos fiéis para +acceitarem uma parte das suas crenças, não abdica evidentemente de uma +liberdade, de uma vantagem que é sua, que ninguem lhe disputaria? Mais +de uma vez terei talvez de appellar para a probidade litteraria e para a +intelligencia de v.. e dos homens sinceros e honestos que pensam como +v..; mas aqui, parece-me tão evidente a materia, que a deixo á discrição +do espirito mais vulgar, da consciencia mais prevenida. Se Galileu, +quando descobriu que era a terra e não o sol que andava, tivesse +presentes as condições do Comonitorio, não o teria affirmado, e evitaria +as perseguições da inquisição, postoque deixaria para outro a gloria de +ter descuberto um facto importante. Aquelle canon, applicado á sciencia, +é mais perigoso para a verdade nova do que para o erro antigo. + +Eu disse que as auctoridades que estabeleceram as regras historicas +acceitas por mim serão ineluctaveis para aquelles mesmos que mais +ferrenhos se mostram em conservar quanto os tempos passados nos +transmittiram. Essas regras, pois, ao menos as principaes, permitta-me +v.. que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver uma parte do clero +insultar-me nos pulpitos e na imprensa, calumniar-me nas praças e +corrilhos, porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas +_para se estudar e escrever a historia da igreja_ por homens que são a +gloria e honra da classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos, na +consciencia de todos não estivesse quanto escrevi ácerca da decadencia +intellectual da maioria do nosso clero, parece-me que o que vou +transcrever sería medida sobeja para por ella se aferir essa verdade. Já +que falei dos religiosos da congregação de S. Mauro, começarei pelo mais +celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon. Eis o que elle nos +ensina: + +1.^o «Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos no estudo da +historia é em evitar todos esses vicios em que é facil cair; quero +dizer, evitar admittir por verdadeiro o que é falso, ou deixar-nos +dominar pelas affeições particulares dos historiadores. É necessario, +primeiro que tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se é idoneo e +sincero; o que o moveu a escrever; se pertence a algum bando ou +seita...» + +2.^o «Devemos averiguar _se o auctor que lemos é synchrono_ +(contemporaneo); se escreveu elle proprio, ou se copiou outro; se é +prudente nas suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas; +porquanto, dada a paridade no demais, deve preferir-se a opinião do +auctor coevo á do mais moderno. Digo--dada a paridade no demais--porque +póde acontecer, e acontece ás vezes, escrever a historia com inteira +madureza o auctor não synchrono, estribado _em monumentos serios_ e boas +razões, e o contemporaneo muito ao contrario, ou seja por negligencia, +ou seja por ignorancia dos factos, ou seja por alguma prevenção, ou +finalmente porque o _subjuga a força do proprio interesse_.» + +3.^o «Segue-se d'aqui _não se dever confiar demasiado naquelles factos +sobre que os escriptores rigorosamente contemporaneos, ou quasi +contemporaneos, guardaram silencio_; postoque possa acontecer que um +auctor mais moderno consultasse alguns monumentos importantes, guardados +em logar occulto quando os factos aconteceram, ou visse escriptores +synchronos, ou quasi synchronos, cujas obras depois se perdessem. + +«_Se, porém, esses escriptores, ou os que lhes succederam, no intervallo +de um até dous seculos, nada dizem a tal respeito, e não obstante isso, +um historiador mais moderno, sem se estribar em testemunho ou +auctoridade alguma, se atreve a asseverar temerariamente esses factos, +bem pequena conta se deve fazer delle_, aliás abririamos ampla estrada +para errarmos, e para enganarmos os outros.» + +4.^o «Com todo o cuidado nos devemos premunir para não sermos +illaqueados por alguns auctores suppositicios, inventados nestes nossos +tempos...» + +5.^o «Não se deve proscrever qualquer auctor por um ou outro defeito de +paixão ou allucinação, pela rudeza do estylo, ou por outra imperfeição +propria da natureza humana, comtanto que seja sincero e pontual no +resto...» + +6.^o «Não se devem desprezar os antiquarios, auctores de resumos +historicos, e compiladores...» + +7.^o «Quando as narrativas variam, não nos devemos deixar attrahir pela +consideração do numero, mas sim pelo merito e gravidade[22] dos +auctores; visto que muitas vezes acontece que a auctoridade de um auctor +grave e sincero merece preferir-se ao testemunho de cem de menos fé, +_porque estes se foram repetindo uns aos outros sem madura discussão e +diligente exame das cousas_...» + +8.^o «Por este mesmo motivo não deve fazer-se grande fundamento na quasi +innumeravel multidão de casos que muitos modernos costumam amontoar nas +vidas de certos sanctos... Dizendo isto, sinto apertar-se-me o coração, +e com magua devo accrescentar, que são muitissimo mais exactos os +auctores profanos escrevendo vidas de ethnicos, do que muitos christãos +relatando vidas de sanctos, o que já não receou affirmar Melchior Cano, +referindo-se a Diogenes Laercio e a Suetonio.» + +Ouçamos ainda n'outra parte o fundador da diplomatica francesa: + +«É necessaria a crítica para distinguirmos as historias verdadeiras das +falsas; para não darmos temerariamente credito a narrações +supersticiosas, a vans opiniões, a delirios aereos, a _milagres fingidos +ou duvidosos_, a _escriptos suppostos dos sanctos padres_. O veneravel +Guigo, quinto geral dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma de +crítica: ..._Buscae a prova de tudo; o bom respeitae-o. Quem crê de +prompto é leve de coração._» + +Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador da igreja catholica. +Depois de varias considerações sobre os documentos falsos com que o +clero innundou a Europa nos seculos de trevas, e da falta de instrucção +que entre elle reinava, o historiador observa: + +«Outro resultado da ignorancia é tornarem-se os homens credulos e +supersticiosos, por falta de principios seguros de crença e de exacto +conhecimento dos deveres religiosos. Deus é poderosissimo, e os sanctos +têm alto valimento para com elle: verdades são estas que nenhum +catholico rejeita: logo devo acreditar todos os milagres attribuidos á +intercessão dos sanctos. Má conclusão. Cumpre examinar as provas delles, +e com tanta mais exacção, quanto esses factos mais incriveis e +importantes forem. Porque, dar por certo um milagre falso nada menos é, +segundo S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus, como mui +judiciosamente observa S. Pedro Damião. Assim, longe de ser acto de +piedade crê-los de leve, é a propria piedade que nos obriga a +averiguarmos com rigor as provas em que se fundam. _O mesmo se deve +dizer das revelações, das apparições de espiritos, das operações do +demonio... Em summa, toda a pessoa dotada de bom juizo e religiosidade +deve ser cautelosissima em acreditar factos sobrenaturaes._» + +Mas observemos as precauções de que Fleury se rodeava, as balisas que +para si proprio punha, ao começar o immenso lavor da sua _Historia +Ecclesiastica_, ainda hoje não substituida, apesar de tantas +monographias excellentes com que depois tem sido illuminada, por um ou +por outro aspecto, n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis os +limites que elle estabeleceu á credibilidade n'um genero de escriptos +onde esta poderia ser mais ampla, limites que á _fortiori_ não será +nunca licito ultrapassar em matéria de tradições humanas. Mas antes +permitta-me v.. que cite algumas passagens, as quaes me parecem +grandemente applicaveis a essa parte do clero, que, em vomitando, no +pulpito ou na imprensa, contra quem diz a verdade, quantos adjectivos +injuriosos contém o diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra +dessas fabulas e crendices que estão costumados a propalar entre o povo, +provavelmente pela mesma razão por que prégam mal, isto é _porque os +festeiros gostam d'isso_, embora os concilios lh'o prohibam, os +apostolos os condemnem, os membros mais doutos e pios da igreja +catholica lhes mostrem o abysmo em que se precipitam! Para onde has tu +fugido, oh religião de Christo?! + +«Vejo bem--diz Fleury--que a minha historia não ha-de agradar aos +espiritos acanhados, atidos ás suas preoccupações, e sempre promptos em +condemnar os que pretendem desenganá-los; aos que tapam os ouvidos +quando a verdade soa, para se abraçarem com as fabulas, buscando +doutores que vão com elles. Não lhes faltarão livros acommodados ao +paladar. Escrevo em vulgar para ser util aos homens de juizo...» + +«Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um de credulidade, outro de +critica. Nem só a simpleza faz credulos. Pessoas ha que o são por +politica e por deploravel sobranceria. _Julgam que o povo é incapaz ou +indigno de saber a verdade; e tem por necessario alimentar-lhe todas as +opiniões que lhe foram inculcadas como religião_, receiosos de abalar o +que é solido, atacando o que é frivolo. Na essencia, estes suberbos +politicos são ignorantissimos. Desconhecendo a religião, não a tomam a +serio, e nada os liga a ella senão as preoccupações da infancia e os +interesses temporaes. Nunca examinaram as seguras provas do evangelho, +nem sentiram a excellencia da sua moral e a esperança dos bens eternos. +_É por isso que não ousam profundar as cousas antigas e temem +conhecê-las_: sabem que lhes não são favoraveis. Querem crer que sempre +se viveu como hoje, porque não querem mudar de vida, como se nos fosse +proveitoso enganar-nos a nós mesmos, ou se a verdade podesse trocar-se +em mentira á força de averiguações. Graças a Deus, a fé christan passou +pelo chrysol; o que ella _teme_[23] é que não a conheçam. + +«A outra especie de pessoas credulas em demasia são christãos sinceros, +mas fracos e escrupulisadores, que á propria sombra da religião +respeitam, e sempre receiam crer de menos. Falta a uns a instrucção; +cerram os outros os olhos, e não querem fazer uso do entendimento. É +para os taes objecto de devoção crer quanto escreveram os auctores +catholicos e quanto crê o ignorante vulgo. A meu vêr, a _legitima +devoção consiste em prezar a verdade e a pureza da religião, e em +observar, primeiro que tudo, os preceitos expressamente estabelecidos na +sagrada escriptura_. Ora, vemos que S. Paulo recommenda repetidas vezes +a Tito e a Timotheo que evitem as fabulas, predizendo tambem que uma das +desordens do fim do mundo será o affastarem-se os homens da verdade para +se aterem a crendices; vemos que as fabulas eruditas não merecem menos +desprezo a S. Pedro que os contos de velhas de S. Paulo; e do mesmo modo +que elle condemna as fabulas judaicas, teria condemnado as christans, se +já então as houvesse. Que dirão a isto aquelles que a timidez torna tão +credulos? Não terão escrupulo em menosprezar semelhante auctoridade? +Dirão que nunca houve fabulas entre os christãos? Seria desmentir a +antiguidade em peso...» + +«A critica é portanto, necessaria. Sem deixar de respeitar as tradições, +deve averiguar-se quaes são dignas de credito; devemos fazê-lo, até, se +não queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as com as falsas. Sem +que duvidemos da omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar se os +milagres estão bem provados, para lhe não levantarmos falso testemunho, +attribuindo-lhe os que elle não fez.» + +Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico ácerca dos milagres, +estribado nos livros que Deus inspirou. Quem será, pois, o impio, o +incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos e as doutrinas dos +homens mais piedosos e sabios do gremio catholico, ou aquelles que +esquecidos dos deveres, não digo do sacerdocio (porque neste caracter, o +seu procedimento não tem nome), mas do simples christão, ousam perguntar +ao historiador sincero: «_Se é necessario, se é util que o historiador +se constitua campeão acerrimo contra essas tradições que deturpam a +historia?_ e que respondem:--_É um arrojo mui imprudente e reprehensivel +no historiador semelhante intento. Que precisão, que vantagem ha em +destruir as crenças theocraticas[24], que uma tradição de seculos fora +radicando no coração do povo? Nenhuma ha:_» e depois accrescentam esta +maxima impia de Laharpe--«_a politica sabia e devia tirar partido do +poderoso movel da geral crença, cujos effeitos são geralmente bons em +todo o governo, mesmo quando a crença é erronea!_» Não peço a v.. tão +cavalheiro e tão indulgente para comigo; peço ao homem que mais me +odiar, mas que conserve um resto de pudor, que seja juiz entre mim e os +desgraçados que não se envergonham, christãos e sacerdotes, de invocar +contra a Historia de Portugal taes principios e taes maximas, e que +insultam, não a mim, nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia, +mas os escriptores mais sabios, mais respeitados do catholicismo. + +Mancebos, cujos corações generosos a indignação póde desvairar! No meio +destas saturnaes hediondas que vedes passar; no meio dos gritos +descompostos da hypocrisia, que, embriagada de colera, deixa tombar dos +hombros seu velho e já tão roto manto, e nua e vinolenta pragueja a +verdade, atira com a fé aos pés da politica, rasga as sacras paginas, +maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres, e dos sabios, não volteis, +cheios de horror e de tedio, as costas ao Calvario. Não! A philosophia, +a honesta liberdade do pensamento, bem vedes que estão sanctificadas no +livro dos livros, O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes no +templo ouvirdes dizer que a mentira é sancta, que o povo só póde ser +virtuoso se crer em falsos milagres, saí, porque o templo está polluido +pela blasphemia e pela calumnia; mas não renegueis da cruz. A cruz está +pura; a cruz será eterna. Se esta gangrena que corroe o sacerdocio +chegasse, o que não creio, a corrompê-lo inteiramente; se não achassemos +uma ara, juncto da qual orassemos _em espirito e verdade_, a cruz lá +está hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos paes, para nos +irmos abraçar com ella: os mortos não tem ouro, os mortos não são +festeiros, que paguem para se lhes falar a sabor: ahi não se tem +blasphemado. + +Mas, reprimindo a amargura que deve causar a todo o christão sincero o +ver sacerdotes sacrificarem assim a conveniencias mundanas o verbo de +Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem e recontarem o preço +por que o venderam, acolhamo-nos ás placidas discussões da sciencia, e +vejamos, como já disse, as mais importantes dessas regras que o pio e +douto Fleury punha a si proprio para evitar os erros da nimia +credulidade. + +«Não tenho em conta de provas, senão o testemunho dos auctores +originaes, isto é, daquelles que escreveram _contemporaneamente, ou +pouco depois_. Porque a memoria dos successos não póde subsistir por +muito tempo sem ser escripta. _Bastante será se durar um seculo._ O +filho póde lembrar-se passados cincoenta annos do que o pae ou avô lhe +referiram cincoenta annos depois de o haverem presenciado. Os successos +que tem passado por varias gerações não obtem a mesma certeza: cada qual +lhes vai accrescentando alguma cousa de sua lavra, talvez sem o pensar. +_É por isso que as tradições vagas de factos muito antigos, que tarde ou +nunca se escreveram, nenhum credito merecem_, principalmente repugnando +a factos provados. _Nem se diga que as historias pódem ter-se perdido; +porque, dizendo-se isso sem provas, posso tambem eu affirmar que ellas +nunca existiram._ O mesmo direi dos escriptores que escreveram successos +anteriores a elles muitos seculos; _se não citam os auctores d'onde os +tiraram, temos o direito de desconfiar de que acreditaram de leve os +rumores vulgares_.....» + +«Os proprios auctores contemporaneos não devem adoptar-se sem exame... +deve averiguar-se bem se o escriptor é digno de fé, quasi como quem +inquire testemunhas n'um processo... _O que se encontra em cartas, ou em +outros diplomas da epocha, deve ser preferido ás narrativas dos +historiadores._» + +Até aqui Fleury. Para estas largas citações preferi dous homens de +indubitavel sciencia e de catholicismo insuspeito. V.. sabe que eu +poderia tambem citar escriptores da primeira ordem, pagãos ou +protestantes, mas cuja auctoridade nem por isso seria menor n'uma +questão que evidentemente não interessa os dogmas da nossa fé. Poderia +invocar a bella sentença de Cicero: _«Quem ignora que a primeira lei da +historia é não ousar dizer a menor falsidade, e a segunda não nos faltar +jámais valor para dizermos a verdade?_» É certo que uma parte do clero +português do seculo XIX se ergueria para lhe responder:--«_Ignoramo-lo +nós._»--Eu poderia tambem repetir as palavras do luminar da critica no +seculo XVII, as palavras de João Leclerc:--«Quando se escreve a +historia, _sobretudo de tempos antigos_, não é licito dissimular a +minima cousa; porque a verdade, sem ser nociva aos mortos, aproveita +muito aos vivos; e pelo contrario a dissimulação, inutil para aquelles, +é profundamente damnosa a estes.»--Não me quiz aproveitar dessas +auctoridades summas, porque um não era christão, outro não era +catholico. Parece-me que é levar longe o escrupulo. E todavia, o +protestante Leclerc estribava-se na opinião de S. Isidoro +Pelusiota--«Aquelles--diz o sancto--que com artificiosas palavras +encobrem a verdade, muito mais desgraçados me parecem de que os que não +a comprehenderam. Porquanto, os que por curteza de engenho não a +alcançaram, estes não são talvez indignos de desculpa; mas os que, sendo +dotados de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente a occultam, +commettem mais grave e imperdoavel peccado.» + +Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e Fleury eram sobretudo +eruditos. Haveria nelles menos luzes theologicas? Serão os theologos de +profissão mais indulgentes para com as lendas e tradições não provadas? +Exigirão, ao menos em referencia á historia da igreja, maior credulidade +nos que a estudam ou escrevem? Ouçamos o celebre Melchior Cano, o qual +ninguem accusará de excessivo amor pelos fóros e liberdades do +raciocinio: eis algumas das suas observações ácerca do credito que deve +dar-se ás tradições infundadas. + +«A principal regra (para distinguir as narrativas falsas das +verdadeiras) deduz-se da probidade e inteireza humanas; regra +perfeitamente applicavel quando os historiadores _testificam terem +presenciado os successos que narram, ou terem-nos sabido daquelles que +os presenciaram_...» + +«É cousa averiguada que esses que escrevem fingida e enganosamente a +historia ecclesiastica não podem ser gente boa e sincera, e que toda a +sua narrativa é tecida _para d'ahi tirarem lucro_, ou para persuadirem o +erro; _torpes no primeiro caso_, perniciosos no segundo. Justissimas são +as queixas de Luiz Vives ácerca das historias inventadas no seio da +igreja; _prudentes e graves as arguições que dirige áquelles que julgam +obra pia fazerem de mentiras religião_, cousa altamente perigosa e +profundamente inutil. Do mentiroso nem a propria verdade ousamos +acreditar. Por isso _os que pretendem concitar os animos ao culto dos +bemaventurados com falsos e mentirosos escriptos, nenhum outro resultado +tirarão, talvez, se não negar-se fé ás cousas verdadeiras por causa das +falsas, e tornar-se duvidoso aquillo mesmo que referem com severa +consciencia auctores de inteira veracidade_.» + +Preciso de implorar toda a indulgencia de v.. para transcrever em +seguimento a esta passagem, admiravel de cordura e de legitima piedade, +outro bem diverso extracto. Juro que não o faço com o intento de +humilhar os homens sinceros e honestos, a quem, a meu vêr, cega um erro +deploravel. É para vingar a religião injuriada; é para dar ao paiz um +desses espectaculos repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios +recorriam para evitar um vicio hediondo, mandando assistir um escravo em +completa embriaguez ao jantar commum da mocidade d'Esparta. Só advirto +que a passagem é concepção de um sacerdote, que celebra por certo +tranquillamente o tremendo sacrificio do altar, sem que em todas as +paginas do missal[25] leia, escriptas em letras de fogo, estas palavras +que Jesus, o inimigo da mentira, dizia aos escribas e phariseus de outro +tempo: + +«Hypocritas! Bem prophetisou ácerca de vós Isaias, quando disse: + +«Esta gente honra-me com os labios; mas o seu coração está affastado de +mim.» + +Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma vez, peço venia de lançar, +depois das doutrinas de Melchior Cano, n'um papel que é dirigido a um +homem tão delicado como v.. + +«Os historiadores têm advertido que os factos maravilhosos, os prodigios +singulares, que registavam em seus escriptos _não eram fundados senão em +rumores populares_; outras muitas vezes tem-nos tambem referido sem esta +precaução, já porque _elles mesmos fossem povo a tal respeito_... já +porque elles não julgassem dever abalar a crença vulgar; bem convencidos +que á sombra de um prejuizo repousava ás vezes uma verdade util, a que +talvez tivessem vergonha de prejudicar.» + +«Eis aqui os _dictames prudenciaes_, adoptados pelos mais distinctos +historiadores, ácerca dos successos de caracter maravilhoso, que devem +dirigir todo o escriptor sensato. _O contrario é querer campar por uma +anomalia extravagante e ridicula..._» + +«Se, porém, gravemente offende o melindre patriotico de uma nação +aquelle que simplesmente contradiz os pontos _theocraticos_ das suas +tradições historicas constantemente recebidos e venerados; quanto não se +torna mais altamente _réu d'este attentado_ aquelle escriptor, que não +só os nega, mas tem a _asquerosa villania_ de á cara descuberta os vir +insultar? Se alguem ha no orbe litterario que mais demonstrativamente +tenha commettido _tão reprehensivel e extranho excesso_, é por certo o +auctor da carta aviltante, a respeito da Apparição de Christo a D. +Affonso Henriques. _É uma das ulceras mais pustulentas que conspurcam e +aviltam esse escripto sandeu_, que rancorosamente a impropéra...» + +«Como é crivel que uma fabula... fosse sustentada como facto verdadeiro +por seculos...? _Quando, porventura, o tivesse sido, teria, não receio +dizê-lo_, por effeito dessa universal crença dos sabios, _perdido a sua +natureza e deixado de o ser!!!_...» + +Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo, para continuarmos a +averiguar tranquillamente se os theologos de profissão concordam com os +eruditos de reconhecida piedade nas bases da critica historica. Ainda +algumas palavras de Melchior Cano. + +«Achareis outros, não tão ineptos, mas quasi tão imprudentes, que não +buscam a verdade das cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar +onde é raro encontrá-la, _em aereos e vagos rumores_. Acontece isto +frequentemente aos inconstantes e leves de cabeça; _porque os homens +graves e severos não costumam andar á caça dos dictos vãos do vulgo_.» + +Desçamos já aos fins do seculo XVIII, quando a incredulidade corria como +lava ardente pela face da Europa, e devorava as crenças mais sanctas e +legitimas em milhares de corações. Vacillou, acaso, por isso a critica +dos homens probos e pios nos seus principios de severidade? No meio de +tantas ruinas, quizeram elles salvar com os restos do edificio a sua +falsa miragem? V.. o julgará pelas doutrinas de muitos varões religiosos +dos ultimos tempos, inteiramente accordes com as dos que os haviam +precedido. Por exemplo, o theologo piemontês Denina, diz-nos: + +«Acontecem algumas cousas fóra da ordem natural, que, de per si só, são +incriveis... a esta categoria pertencem, na igreja de Deus, os milagres, +os quaes, _nem é licito rejeitar na sua totalidade, nem se devem +acceitar todos sem selecção_...» + +«Pertence á prudencia do historiador _nada escrever, que não saiba por +si proprio, ou não se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas_, +cumprindo-lhe, não menos, ser pouco credulo. Mas _ninguem póde ter +conhecimento do que narra, se não viveu no tempo em que os factos +aconteceram; nem sabê-los de pessoas fidedignas, se estas não os +presenciaram_; nem escapa de credulo, se não explicar e expender as +razões, causas e circumstancias do que relata. Auctores que assim o +fazem _nenhum credito merecem_...» + +«Nem tudo quanto o historiador relata do seu tempo se ha-de acreditar; +salvo constando que fôra curioso em indagar e explorar...» + +«Se o historiador referir cousas, não do seu tempo, mas succedidas +muitissimo antes, dar-se-lhe-ha credito, _se individuar os auctores +d'onde as tirou_, sendo _aliàs daquelles que as podiam saber_...» + +«Não duvido de chamar _máu historiador_ a todo aquelle que devendo ter +por norma o não ousar dizer a menor falsidade, _nem faltar-lhe animo +para dizer qualquer verdade_, encubrir esta aos leitores, _seja por que +motivo for_...» + +Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins do seculo passado: assim +pensavam tambem os theologos catholicos da Allemanha, ou antes do paiz +mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous, um dos quaes, ou ambos, +a nossa universidade honrou, escolhendo as suas instituições de historia +ecclesiastica para compendios nas faculdades de theologia e de direito +canonico. Falo de Gmeiner e Dannenmayr. As secções desses compendios +relativas ao _criterium_ da verdade historica nada mais são do que o +desenvolvimento das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury, de +Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de Muratori, de Baumeister; em +summa de todos os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram +ex-professo ou accidentalmente da crítica historica. Andam esses livros +nas mãos de todos, menos nas do clero ignorante e corrupto, porque este, +coitado, não sabe ler. Não serei, por isso, demasiado extenso em +citá-los, escolhendo apenas as passagens mais frisantes, e que fazem +sobretudo ao intento. + +«Como os narradores--diz Gmeiner--por falta de _habilidade_ sufficiente, +ou de sciencia, nos _possam_ enganar, ou por falta de _sinceridade_, ou +por vontade nos _queiram_ illudir, só podêmos acquiescer ao seu +testemunho, se não houver razões sufficientes para duvidar da sua +habilidade ou sinceridade.» + +«A auctoridade das testemunhas não é uma e a mesma, e portanto deve +attender-se a esta diversidade. Observa-se ella 1.^o em relação aos +sentidos, 2.^o em relação ao entendimento, 3.^o em relação á vontade. Em +relação aos sentidos, essas testemunhas ou são de vista ou de ouvida. +_As de ouvida ou são coevas, ou não coevas mas que ouviram aos coevos o +que narram_...» + +«D'aqui se segue, _que pouca fé deve dar-se áquillo que os escriptores +ou absolutamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos deixaram de +mencionar_...» + +«A verdade dos conhecimentos historicos não depende de modo nenhum da +abundancia dos historiadores, visto que _não provém maior certeza a um +facto historico de ser relatado em livros de muitos auctores mais +modernos, cada um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto. Todos +elles junctos não valem mais do que o primeiro que o referiu_...» + +«A consideração do paiz em que o escriptor viveu, e do tempo em que +escreveu importa muito em relação ao seu intuito de falar verdade. +N'alguns paizes a liberdade de escrever é franca; n'outros opprimida; +n'outros, emfim, ha premios para a lisonja, odio e castigo para a +verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores lisonjeiros da curia +romana receberam ás vezes em premio _de suas fadigas_ o barrete +cardinalicio ou a dignidade do episcopado. _Naquellas provincias onde +vigorou o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta +para a verdade._» + +«Não faltaram impostores e falsarios, que trabalharam em alterar varias +passagens nos antigos monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram a +outros.» + +Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas linhas do theologo +Dannenmayr: + +«Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica--diz elle--devemos +principalmente ter em mira, _que nem se nos inculquem fabulas sobcolor +de verdades, nem consideremos como duvidosos factos absolutamente certos +e largamente provados._» + +Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario estabelecer uma doutrina, +uma norma, por onde os animos imparciaes, e ainda os prevenidos, mas +sinceros nas suas prevenções, houvessem de julgar-me, não tanto no foro +da sciencia, que era o meu foro, que era aquelle para onde eu tinha +direito de trazer o litigio, mas nó da mais restricta piedade. Em these, +a contenda dos que blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia (e +que apologia, meu Deus!) das tradições fabulosas, não é comigo; é com os +apostolos, com os sanctos, com os historiadores do catholicismo, com os +theologos, com todos aquelles e com tudo aquillo a que mais importava á +hypocrisia mentir acatamento nesta comedia beata. A tonta e imprudente +não se lembrou de que lhe caía a mascara, e de que alguem poderia +levantá-la para a entregar ao povo, que nos seus grandes instinctos de +justiça lhe fustigaria as faces com ella. Na hypothese, no que me diz +respeito, o meu dever é provar aos homens sinceramente pios que, +rejeitando falsas lendas, não ultrapassei os limites de uma crítica +irreprehensivel. Será esse o objecto da carta immediata, que em breve +espero dirigir a v.. Nas seguintes darei razão das minhas opiniões +ácerca da maioria do nosso clero, e ácerca da curia romana. +Compelliram-me a isso; fá-lo-hei gemendo. Quizeram que o paiz os +conhecesse: hão-de ser satisfeitos. + +Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos choram em silencio a +vergonha da sua classe, e emquanto os prelados dormem tranquillos nas +suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa dos tristes +dias de tempestade! + + + + +IV + +SOLEMNIA VERBA + + +SEGUNDA CARTA + +AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES + +(_Novembro, 1850_) + + +Na minha antecedente carta deixei eu, ou para me exprimir com mais +exacção, deixaram muitos e mui piedosos escriptores catholicos apontadas +as principaes regras da critica, em relação ás fontes historicas. Dessas +regras resulta o que a boa razão está por si indicando; que é necessario +premunir-nos contra a credulidade, não só por honra da sciencia e pela +consideração do proprio credito litterario, mas tambem, o que é mais +grave, para não deslizarmos da doutrina dos apostolos, inculcada nos +livros sanctos. O mais necessario canon, em que de certo modo todos os +outros se consubstanciam, é o atermo-nos unicamente aos testemunhos +synchronos ou quasi synchronos, aos testemunhos daquelles que +presenciaram os factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos +contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes e criveis, quer +sobrenaturaes e incriveis para a razão humana; quer elles nos sejam +transmittidos por narrativas coevas ou quasi coevas, quer por documentos +do tempo, embora descubertos por escriptores modernos. Quando, porém, se +tractar de milagres, a critica deve ser tanto mais severa, quanto é +certo que a isso nos constrange o dever religioso, que nos impõe as +palavras de S. Paulo, o dever de não levantarmos falsos testemunhos a +Deus. + +Que podia eu fazer em relação ao supposto milagre de Ourique, escrevendo +a historia do reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente chronicas, +historias, documentos coevos ou quasi coevos, que o narrassem. O exame +attento de quanto modernamente se escrevera para supprir a falta de +provas daquella celebre tradição, só tinha servido de convencer-me das +aberrações em que se podem transviar ainda os espiritos mais elevados, +quando, em vez de buscarem simplesmente a verdade, buscam accommodar os +caracteres desta a um preconceito. Não me era possivel omittir a batalha +de Ourique. Que podia eu fazer, repito, ácerca do milagre da apparição? +Ou mentir á minha consciencia, alevantar um testemunho a Deus, pospôr as +doutrinas dos homens mais pios e eruditos do orbe catholico, que falaram +de critica historica, calcar aos pés a maxima do mais illustre escriptor +romano, ou então manifestar sem hesitação as proprias convicções, que +julgava e julgo legitimas, isto é, proceder de um modo que v.. mesmo crê +nobre e honroso[26]; affirmativa, que, seja dicto em boa paz, não sei se +está em perfeita harmonia com a idéa geral que predomina nas +considerações que v.. tem tido a bondade de dirigir-me sobre os +inconvenientes que resultam, no entender de v.. para a nossa patria +commum, da manifestação das minhas doutrinas. + +Disse, pois, o que suppús e supponho verdade: disse-o sem sobre isso me +dilatar, sem exaggeração, sem pretensões a ter feito um importante +descobrimento historico; porque realmente o não era: disse-o +singelamente, simplesmente: indiquei apenas de passagem as +incongruencias historicas, que desmentiam a importancia que se costuma +attribuir ao successo. E n'esta parte, seja-me licito dizê-lo, nem v.. +nem ninguem se encarregou de me refutar; porque, na verdade, seria um +pouco difficil de admittir que houvesse centenas de milhares de +sarracenos para virem combater em Ourique, quando os almoravides +concentravam todas as forças em Africa, para salvarem o imperio da +ultima ruina, exhaurindo a Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem +a heroica guarnição de uma praça como Aurelia ao seu triste destino. A +narrativa anterior, o quadro da situação dos lamtunitas e das +perturbações quo agitavam as provincias mussulmanas do Gharb habilitavam +o leitor para por si fazer conceito das dimensões da batalha de Ourique. +Se em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia foi em procurar, +talvez em demasia, achar resultados moraes dessa batalha, para de algum +modo desculpar a significação exaggerada que depois se lhe attribuiu. +Sobre a apparição disse apenas o restrictamente necessario para o leitor +vulgar conhecer que eu não a admittia. Se tivesse o proposito deliberado +de combater quando podesse ferir o chamado sentimento religioso do povo, +crê v.. que eu não teria recursos para aproveitar o lado contradictorio +e até ridiculo, (que cousa ha neste mundo onde elle se não possa +encontrar?) do celebre milagre, sem todavia abandonar o estylo grave da +historia? Crê v.. que se eu intentasse buscar as causas provaveis da +invenção dessa maravilha, e avaliá-las severa ou, se quizerem, +malevolamente, me faltariam meios para assim o practicar? Permitta-se-me +dizer que foi necessaria demasiada prevenção contra mim, ou a favor da +inviolabilidade da apparição, para se não ver que procurei, quanto me +era possivel sem offender a verdade, não converter os factos que se +prendem a esse falso milagre n'um escandalo historico. As extensas notas +com que finalisa cada volume do meu livro são destinadas para os homens +da sciencia, para debater os fundamentos das minhas opiniões. Estas +notas são, portanto, para poucos. A generalidade dos leitores não se +cansa com essas discussões tediosas. Foi, porém, ahi que eu alludi ao +ridiculo instrumento do cartorio d'Alcobaça, o que fiz apenas pelo +desejo de dar uma satisfação aos homens professionaes. Se eu fosse o +impio, o atheu, e não sei que mais, que por ahi me chamam os padres +ignorantes e mal procedidos, não tiraria vantagem dessa falsificação +insigne, para mostrar como a hypocrisia costuma fazer joguete das cousas +do céu para fins terrenos? Não practicaria ao menos aquillo que a +justissima indignação de qualquer homem religioso o levaria talvez a +practicar? Se tal se houvesse de crer, não deveriam qualificar-me de +impio, mas sim de insigne mentecapto. + +Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra de escrever contra as +minhas opiniões, v.. insiste em que, citando naquella nota a Memoria de +Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade do diploma de +juramento conservado em Alcobaça, eu fiz uma citação +contraproducente[27]. Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano não +nega ahi redondamente a authenticidade do diploma? O que dizia eu ao +citar a Memoria sobre os codices d'Alcobaça?--«_Quem desejar conhecer a +impostura desse documento famoso consulte a Memoria, etc._»--Se o auctor +concorda comigo em que elle é falso, onde está a improcedencia da +citação? Se v.. me permitte que seja interprete do seu pensamento, o que +v.. queria talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho affirma +que acreditava na apparição, posto negasse a genuinidade do pergaminho +de Alcobaça, e que eu não creio nem no documento, nem no facto. +Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo. Não era, porém, para a +opinião manifestada pelo academico em relação ao successo, mas sim para +as suas razões contra o diploma que eu remettia o leitor. E realmente, o +que elle diz em favor do facto não é mais do que repetir o que outros +disseram antes delle, e citar uma copia de 1597 existente em S. Vicente +de Fóra vista por elle, e a qual, duas paginas adiante, dá como +provavelmente tirada _de outro original falso_. O que se vê de tudo +aquillo é que o pobre frade, conhecendo o risco de mostrar o que era e o +que valia O ridiculo thesouro dos monges d'Alcobaça, quiz ao menos +salvar-se, protestando pela pureza da sua crença no milagre de Ourique. +Talvez, se eu vivesse então, fizesse o mesmo, em attenção á +circumstancia que nos recorda Gmeiner: «_onde vigorou o terrivel +tribunal da inquisição, a fogueira estava prompta para a verdade_». + +Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho pelo meu paiz desta +necessidade de disputar ácerca de um diploma falso, que se acha +depositado nos archivos do estado, onde qualquer pessoa póde examiná-lo. +Qualquer pessoa, sim; porque não é preciso ter a menor idéa de +paleographia para o reconhecer por falso. Basta pôr-lhe ao lado dous ou +tres diplomas genuinos do meiado do seculo XII, e comparar. Esses +multiplicados recursos que possue a diplomatica para desmascarar +falsarios são aqui perfeitamente inuteis. Estou certo de que v.. nunca o +viu; porque tambem estou certo de que, se o houvera visto, eu acharia +v.. a meu lado para dizer aos homens sem pudor que ainda ousam inculcar +como legitima essa invenção torpe: «_Sois uns miseraveis!_» + +Sinto sinceramente que v.. se dignasse de tomar para si, a favor da +apparição, um argumento que devia pertencer precipuo aos apologistas dos +clerigos ignorantes e devassos. Consiste elle em que, negando eu que a +tradição de Ourique remonte aos tempos a que se refere, devo dizer +quando, como, e para que a forjaram. Onde existe semelhante canon de +critica historica? O que sei é que ella começou a apparecer no ultimo +quartel do seculo XV, mais de trezentos annos depois da epocha em que se +diz succedido o milagre; o que sei é que em nenhum escriptor, nem em +nenhum documento legitimo, coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de +semelhante tradição; o que sei é que os escriptores modernos que a +publicaram não se referem a testemunho contemporaneo ou proximo; o que +sei, portanto, é que as regras de critica adoptadas por homens não menos +pios que sabios me obrigam a rejeitá-la. Diga-me v..: se um devedor seu +pretendesse pagar-lhe certa quantia em moeda falsa, v.., depois de a +examinar e convencer-se da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios +por que pretende julgar-me, devia reconhecê-la por boa e acceitá-la, +emquanto não podesse mostrar quando, como, por quem e para que fora +forjada. Não vê v.. que uma tal regra de critica nos obrigaria a adoptar +como verdadeiras até as lendas indicas de Vishnú e de Brahma? + +Outro argumento me faz v.. que eu tambem desejara tivesse deixado aos +ex-frades ignorantes e hypocritas: é o da impossibilidade de nossos avós +terem adoptado uma tradição que não fosse verdadeira. Quer v.. que lhes +concedamos a mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma honra, o +mesmo amor da propria fama e dignidade que nós temos. Concedo por um +momento. Mas o patriotismo de v.. não será tão inimigo da logica, nem +tão cego, que recuse os mesmos dotes aos avós dos actuaes castelhanos, +franceses, italianos e allemães. Por aquella doutrina, v.. deve +acreditar todas as lendas desses paizes, ainda quando a critica +historica as tenha feito abandonar aos castelhanos, franceses, italianos +e allemães de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo, acreditar _à fortiori_ +a historia da papisa Joanna, embora já os proprios protestantes se riam +dessa calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou por +seculos. Mais ainda: v.. é assaz instruido para não ignorar qual foi a +civilisação dos arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes +hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura, qual a nobreza do seu +caracter. Apesar disso, elles nunca deixaram de crer na tradição dos +milagres de Mafoma. Não é de esperar da justiça de v.. que recuse a esse +povo tão culto os dotes intellectuaes e moraes que attribue a nossos +avós. Adoptará v.. as lendas mussulmanas ácerca do propheta de Mekka? +Principios que provam tanto, ou antes que provam tudo, permitta-me v.. +desconfiar de que não provam nada. Deus nos livre de pensar que uma +fabula que se generalisa, se converte por isso em verdade. Semelhantes +doutrinas, deixe-as v.., christão, cavalheiro, e homem de letras, para +essa parte da cleresia, que quer lucrar com as illusões populares. A +nós, christãos, incumbe recordar-nos daquellas tremendas palavras do +divino Mestre: + +«Guardae-vos do fermento dos phariseus, que é a hypocrisia:» + +«_Porque nenhuma cousa ha occulta que não venha a descubrir-se; e +nenhuma ha escondida que não venha a saber-se_....» + +«E todo o que proferir uma palavra contra o filho do Homem ser-lhe-ha +dado perdão; mas _áquelle que blasphemar contra o Espirito Sancto, não +lhe será perdoado_.» + +V.. sabe, tão bem como eu, que, segundo Sancto Agostinho, uma das +blasphemias contra o Espirito Sancto _é o negar a verdade conhecida por +tal_. + +E é isto o que responde a todas as considerações que v.. me faz sobre a +conveniencia de não desilludir o povo ácerca das suas tradições +mentirosas: são estas palavras do Salvador, que fulminam os phariseus +modernos, como fulminaram os antigos, que me obrigam a falar verdade +escrevendo a historia. Ainda que essas considerações fossem exactas, a +patria verdadeira do christão é o céu, cujas portas ficarão cerradas, +conforme a doutrina de Christo, aos que tiverem desmentido a verdade na +terra. A patria deste mundo é nosso dever amá-la, sacrificar-lhe tudo, +menos a honra, menos as esperanças de além do tumulo, menos a fé. É esta +a mais sancta das tradições que herdámos de nossos paes. O crucifixo +sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os que nos geraram, não o +insultemos na vida, para podermos tambem despedir o ultimo alento, +abraçados com elle, sem terror, sem remorsos, e para o legarmos +immaculado a nossos filhos; para que elles, no momento de o +transmittirem moribundos a nossos netos, não se lembrem horrorisados de +que essa imagem do Redemptor já foi bafejada pelo extremo respirar de um +blasphemo. Amemos e respeitemos a tradição divina, e tenhamos esforço +bastante para repellir mentiras, sobretudo quando, segundo as palavras +do apostolo, ellas envolvem um falso testemunho contra Deus. + +Isto é para os christãos. Para os falsos politicos, que cuidam ser a +religião apenas um instrumento que serve para conter os humildes e +pobres, a que Christo chama os grandes do seu reino, e a que elles +chamam massas brutas; para esses, que não crendo acaso em Deus, accusam +os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores de nossa gloria; +para esses liberaes e até democratas, que desprezam o povo ainda mais do +que o desprezavam os poderosos de outros tempos; para os taes não +applico eu só o dicto de Fleury, de que são ignorantissimos em materias +de religião; digo tambem que o são em materias de politica. Para o povo +ser livre, é necessario que seja religioso e honesto; não que seja +credulo. Para que elle seja religioso e honesto é necessario que conheça +as doutrinas do evangelho, que não são mais do que a confirmação divina +da moral universal. Em vez de inculcar crendices ao povo, cumpre +inculcar-lhe os principios do christinanismo, e as consequencias +daquelles principios: cumpre illustrá-lo, em vez de o conservar na +ignorancia; fazer-lhe sentir que a força de practicar grandes e nobres +sacrificios, tão recommendados por Jesus, é o caracter que distingue o +espirito immortal do homem do instincto que anima as alimarias. É +preciso convencê-lo de que o patriotismo, de que esse puro e sancto +affecto que nos faz abandonar os commodos domesticos, as affeições do +coração, e arrostar com a fome, com a sede, com a nudez, com a +intemperie das estações, para irmos morrer n'um campo de batalha, +salvando a terra em que dormem nossos maiores, defendendo a cruz do +nosso adro, a vida de nossos paes, a honra de nossas irmãs e mulheres, é +a manifestação mais solemne da energia do espirito humano, e da +abnegação christan. E estas verdades eternas; estas verdades, que, +gravadas nos corações do povo, tantas vezes têm salvado as pequenas +nações dos intentos ambiciosos das grandes, d'onde se deduzem? É das +invenções dos milagreiros e falsarios, ou das divinas paginas da biblia? + +V.. deve conhecer, como homem de letras que é, a historia dos povos +mussulmanos. Houve nunca no mundo crença que se estribasse tanto como o +islamismo em falsos milagres, quasi sempre conducentes a inspirar o amor +da guerra e o enthusiasmo das multidões credulas? E todavia, quaes foram +os effeitos desse enthusiasmo, que não correspondia a doutrinas accordes +com os instinctos naturaes da nossa alma, que não se fundava em +convicções reflectidas, na certeza moral do dever, mas que se inspirava +de promessas fingidas do céu? Os mussulmanos devastaram e submetteram a +melhor porção da Asia e da Africa, e ainda uma pequena parte da Europa: +formaram quinze ou vinte nações de falsos crentes, e estas nações +cresceram e civilisaram-se combatendo sempre. E depois? Depois, quando +foi preciso conservar o edificio; quando se tractou de defender a +patria, em vez de a tirar aos outros; quando foi preciso repellir em vez +de aggredir, mostrar essa perseverança, que nem se exalta com o +triumpho, nem desanima com o revés; que padece, calada e soffrida; essa +perseverança que é a mais poderosa arma dos povos ameaçados na sua +existencia, tudo faltou. As nações mussulmanas desmembraram-se, +fundiram-se, annullaram-se umas, desappareceram outras, e conservando +todas as suas crenças, todos os seus milagres, ei-las ahi estão as que +restam, ludibrio da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo ao +crepusculo da passada gloria, lançando nos dias da afflicção e do perigo +os olhos para o occidente, a vêr se os filhos da cruz estendem o braço +para proteger o crescente. As tradições das victorias, as maravilhas +celestes dos tempos heroicos de Islam lá estão gravadas na memoria de +todos. Porque não salvam, não regeneram ellas essas sociedades +atrophiadas e moribundas? + +Ainda hoje ha homens das novas idéas, os quaes se dizem cheios de +illustração e de philosophia, que, abandonando os milagres suppostos, +não porque os tenham por infundados ou absurdos em si, mas porque suppõe +que o fanatismo póde lucrar com elles, não querem que se toque nas +tradições humanas que se ligam á gloria nacional. É verdade que não +sabem bem que deva consistir a gloria de uma nação, porque nunca +pensaram nisso. Para elles, que vivem no seculo XIX, onde quer que +pereceram milhares de homens, combatendo por interesses que não +comprehendiam, ou por torpe cubiça; onde quer que o ferro e o fogo +arrasaram as cidades, despovoaram os campos, embora dessas cidades e +campos nenhum mal tivesse vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem +mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos e pacificos dos +gigantes da assolação, dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans, +avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens as façanhas dos +proprios avós. Se a historia pergunta:--«Acaso esses combates, em que, +sem duvida, se practicaram grandes feitos, foram uteis ao progresso +moral e material do povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram a sua +decadencia? Está ou não essa gloria militar, aliàs indisputavel, +assombrada por grandes crimes? Foi a intenção, a qual só determina o +valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura, ou teve motivos menos +elevados? Foi um arrojo, um impeto nacional, ou um impulso dado pela +ambição, ou pelo capricho de algum principe?»--A historia que faz estas +perguntas ou outras analogas, porque esse é o seu dever, commette aos +olhos dos taes um crime de leso-patriotismo. O castelhano, por exemplo, +que disser:--«As barbaridades e crimes commettidos por Cortez, Pizarro, +ou Almagro, na conquista da America, deshonram as emprezas arriscadas e +longinquas dos filhos da Peninsula, embora o descubrimento do Novo Mundo +demonstre a sua pericia, o seu ardimento de navegadores e de soldados. +Os effeitos dessa conquista foram o corromperem-se os costumes, morrerem +as industrias nascentes, despovoarem-se os campos da Hespanha, +seccarem-se, em summa, todas as fontes da sua prosperidade solida e +legitima: foram amontoarem-se nas mãos do fisco e dos poderosos o ouro e +a prata, que, obtidos sem custo pelos crimes, se desbarataram sem pudor +pelos vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades, e com ellas o +sentimento da dignidade humana, cujo ultimo brado soou nas rebelliões +contra a tyrannia de Carlos V:»--o hespanhol que disser isto é um mau +cidadão aos olhos dos mansos guerreadores destes nossos tempos. E +porque? Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se, elevar-se +pelas tradições da sua grandeza e gloria. O povo! Pois o povo que tantas +vezes tracta de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde o berço de +farrapos até a enxerga rota em que fenece, vai travada de receios, de +sobresaltos, de desalentos, e de agonias, pensa lá nas cutiladas que se +deram, nas bombardadas que se despediram, ha tres ou quatro seculos, por +mãos d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se memoram n'uns livros +que elle nunca leu, porque não sabe ler, nem tem dinheiro para pão, +quanto mais para livros? Que são essas palavras retumbantes de +regeneração pelas tradições, senão sons ôcos, que não correspondem a +nenhuma idéa? Supponhamos, porém, que todas essas recordações chegavam +ao povo. Podem ellas servir-lhe de exemplo, de licção para as suas +necessidades actuaes? N'um paiz onde a riqueza passageira destruiu os +habitos do trabalho e da economia, entorpeceu pela miseria, resultado +infallivel da prosperidade ficticia, a energia do coração, que faz +luctar o homem com a adversidade e vencê-la, de que serve estar de +contínuo a prégar ao povo:--«Teus avós levaram o terror do seu nome aos +confins do mundo, saquearam e queimaram emporios opulentos em plagas +remotas, metteram a pique poderosas armadas, derribaram os templos +alheios, violaram as mulheres extranhas, passaram á espada os que eram +menos valorosos que elles, abriram caminho ao engrandecimento dos outros +povos da Europa, e affeitos a gosos faceis, deposeram aos pés do +absolutismo as suas velhas franquias, beijaram os grilhões que lhes +deitavam aos pulsos por que eram dourados, e tornaram-se ludibrio do +mundo.»--Estas licções é que hão-de ensinar a actividade no trabalho, a +severidade nos costumes, o amor da liberdade moderada, mas verdadeira, o +desejo de cultivar as artes da paz, no meio de um paiz decadente, cuja +unica esperança de salvação está em se desenvolverem nelle essas e +outras tendencias analogas? Não! O povo, que tem mais logica do que os +prégadores de vãos apophtegmas, ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de +concluir que é assaz fidalgo para não contrahir habitos villãos e ruins. +De historias d'aggressões e de conquistas brilhantes não se deduz a +necessidade de morrer obscuramente em defesa da terra da patria; não se +deduz a moderação revestida de firmeza, que faz respeitar pelas grandes +as nações pequenas; não se deduzem nem o amor do trabalho, nem o amor da +virtude. Em vez de contarem ao povo as façanhas da Africa e do Oriente, +contem-lhe qual era o commercio de Lisboa, e o movimento agricola do +paiz no no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia desses e de +outros factos analogos lhe é mais proveitosa, material e moralmente, de +que recordar-lhe a gloria de batalhas e de conquistas. + +Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras lendas humanas nunca +salvaram um paiz, quando a podridão penetrou no amago da arvore social. +Onde e quando o homem renega da sua origem divina, vende a liberdade a +troco de delicias, esquece que o elevar-se acima de viciosas paixões +traz um goso interior que vale bem todos os que dão os sentidos, não é +lisonjeando-lhe vaidades, que, nem sequer respeitam a magestade de Deus, +que o havemos de revocar ao sentimento da dignidade e do dever. V.. +sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio romano, e +nomeadamente a historia do baixo-imperio. Não leio essas paginas +melancholicas, sem que involuntariamente volva os olhos para o estado +actual de algumas nações modernas: as analogias que encontramos entre +estas e aquella são symptomas dolorosos; mas não vem para aqui. Eu peço +a v.. que reflicta sobre essa historia em relação á efficacia das +tradições. Ella completa o quadro que nos offerecem as nações +mussulmanas. Não foi no tempo da republica, foi sob o ferreo dominio dos +cesares, que os poetas cantaram os mythos da gente romana, que os +historiadores celebraram as suas glorias, e deram a importancia da +verdade a centenares de lendas tradicionaes e fabulosas, que a sciencia +moderna, as investigações do grande Niebuhr, reduziram já ao seu justo +valor. De que serviram, porém, essas glorias, esses milagres do +polytheismo, contados gravemente a um povo servo e gasto, que apodrecia +aos pés dos tyrannos? Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos +espraiavam-se em exaggerações sobre as grandezas passadas, emquanto os +cidadãos recusavam combater por uma patria que se tornara em nome vão, e +preferiam o jugo dos barbaros a uma nacionalidade mentida. Os hymnos, as +gloriosas recordações romanas serviram só para acompanhar ao cemiterio +da historia o ataúde de Roma. + +Consinta v.. que a estas rapidas considerações eu ajuncte ainda um +exemplo domestico, sobre o qual peço a v.. que medite. Na lucta violenta +e tenaz que Portugal sustentou nos fins do seculo XIV para repellir o +dominio estrangeiro, ninguem se lembrou de fortalecer os animos +invocando o milagre de Ourique; ao menos não espero que v.. me aponte o +menor vestigio historico que me desminta. A razão para desaproveitar tal +auxilio foi demasiado forte; foi a razão do cordeiro da fabula--_o +milagre ainda não era nascido_. E todavia o triumpho coroou os heroicos +esforços de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente ser livre. + +Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava, absoluto e não +contradicto, no commum dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de +modo innegavel. E todavia, quasi sem combate, as espadas castelhanas +acabaram com a independencia de Portugal n'um dia. + +Entre os dous factos está, além do milagre, a grande gloria das +conquistas, gloria que não era uma tradição remota, quasi oblitterada na +memoria do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a bem dizer actual. +Alguns dos que mais tinham contribuido para ella ainda viviam. + +Estes dous phenomenos, que determinam duas epochas principaes da nossa +historia, assim aproximados, são a negação mais solemne da utilidade dos +embustes religiosos, ou para melhor dizer, anti-religiosos, e do orgulho +selvagem de ter annaes escriptos com o sangue humano vertido em guerras +não provocadas, em guerras de aggressão, e sobretudo de cubiça. + +Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso singular, um general ou um +homem d'estado tirasse vantagem dessa deploravel força moral que se +estriba nas superstições, ou nas idéas de uma gloria feroz. A questão é, +se hoje o povo português tem alguma vantagem que tirar dessas tradições, +na situação em que a Providencia o collocou. Sejamos sinceros. Póde elle +sonhar em ser conquistador, ou sequer em constituir uma potencia +maritima ou continental que pése com demasiada força na balança dos +acontecimentos politicos? Parece-me que nenhum sisudo o dirá. Somos +pequenos; mas nem isso é vergonha, nem impedirá que as grandes nações +nos respeitem, se formos respeitaveis. Para obtermos consideração basta +que os nossos progressos intellectuaes e moraes mostrem á Europa que +sabemos, queremos, e podemos regenerar-nos pela sciencia, pelo trabalho +e pela morigeração. + +Morigeração, trabalho, sciencia, eis as armas com que a philosophia +politica deste seculo ensina as nações civilisadas a combaterem n'uma +lucta generosa. Os espiritos mais altos, seja qual fôr a sua crença +religiosa e politica, proclamam a paz e a fraternidade entre os homens. +E não só as proclamam, mas até empregam a poderosa alavanca da +associação para promoverem, digamos assim, uma cruzada sancta contra as +tendencias guerreiras. Os esforços collectivos desses homens summos +serão baldados? Não o cremos. Elles tem um alliado irresistivel. Quando +os exercitos permanentes e as grandes marinhas militares tiverem +devorado todo o peculio de cada povo, e exhaurido a melhor e mais pura +seiva da sua vida economica, é então que a philosophia politica hade +alcançar um triumpho decisivo. Mas esse triumpho que outra cousa será +senão o ultimo termo de uma sorites immensa, composta dos factos de +dezenove seculos, de uma demonstração practica e invencivel, de que a +lei moralmente necessaria das sociedades modernas é o christianismo, é o +verbo de amor e da paz revelado no Evangelho? + +Nesses dias, que porventura tardam menos do que muitos pensam, que +destino darão os sacerdotes da bombarda, da lança e da espada aos seus +deuses fulminados? As palavras «façanhas, gloria guerreira, conquistas,» +como serão definidas nos diccionarios das linguas vivas, dentro de um ou +dous seculos? Como julgará a historia os milagres inventados para +sanctificar o derramamento de sangue humano? + +Desculpe v.. esta digressão, que não creio nem inutil nem extranha ao +assumpto. De novo entrarei directamente nelle, para proseguir nas +explicações que devo aos meus adversarios sinceros, honestos e +instruidos, e não á ignorancia malevola e presumida de hypocritas +insignificantes. + +Começarei por dar a v.. a razão moral, a razão suprema, porque rejeito +não só o milagre de Ourique, mas tambem os outros milagres, como o de +Alcacer, a que ou a má fé, ou a piedade pouco illustrada quizeram +attribuir a sorte das batalhas, sorte dependente dos occultos designios +da Providencia e de mil accidentes, previstos ou fortuitos, explicaveis +ou inexplicaveis para a historia. Não creio que essas guerras contra os +infiéis fossem cousa excessivamente christan, e por isso o meu espirito +recusa-se a acceitar como factos verdadeiros os testemunhos de +approvação divina a um procedimento anti-evangelico. Na idade média +passava como cousa corrente, que o guerrear os infiéis e fazer-lhes +acceitar á força o jugo, aliàs tão suave e tão livre, do christianismo, +era obra meritoria. Os principes aproveitavam-se desta doutrina, ou, +para sermos justos, acreditavam-na, em geral, sinceramente: +acreditavam-na, até, a maior parte dos homens intelligentes e pios. +Entre estes se distingue o proprio S. Bernardo, que o excessivo zelo da +gloria do christianismo incitou a promover a segunda cruzada, cujo +infeliz resultado lhe acarretou tantas accusações amargas, tantos +desgostos pungentes. A favor das guerras contra os mussulmanos durante a +idade média, principalmente a favor da que se fazia na Peninsula, podem +militar boas razões de politica, e até de direito, porque essa guerra +não era mais do que a reacção contra uma conquista. Razão religiosa é +que eu não vejo nenhuma que a favoreça. Repugna-me á consciencia que o +Christo, o Deus de paz e misericordia, viesse pessoalmente ou enviasse +os seus anjos a incitar christãos a derramarem o sangue humano, a +levarem a assolação e a morte ao meio daquelles que não o adoravam. Será +este um modo errado de vêr? A S. Thomás de Aquino, que ainda alcançou os +tempos das cruzadas, não fizeram força alguma as opiniões que haviam +dado origem áquellas expedições longinquas, para deixar de estabelecer +que a diversidade de crença não é motivo bastante para um povo atacar +outro. Reprovando a guerra de religião, não era possivel cresse que Deus +approvava essas luctas crueis com manifestações sensiveis. Vê-se, +portanto, que os _milagres militares_, que então se contavam a tal +respeito, pouco credito mereciam a um dos homens mais pios do seculo +XIII, e sem contradicção ao mais profundo philosopho do seu tempo. +Ouçamos, porém, o grande historiador da igreja, falando dessas guerras +contra os mussulmanos. + +«Os christãos--diz Fleury--devem applicar-se, não a destruir mas sim a +converter os infiéis... Quando Jesus disse que tinha vindo trazer ao +mundo a guerra, da sequencia do seu discurso, e do procedimento dos seus +discipulos se manifesta claramente que só se referia ás turbações que +havia de excitar a sua doutrina celestial, turbações em que a violencia +havia de vir toda dos inimigos, a quem os christãos opporiam a +resistencia que as ovelhas oppõem aos lobos. A verdadeira religião deve +conservar-se e dilatar-se pelos mesmos meios por que se estabeleceu, +pela prédica discreta, pelas obras virtuosas, e mais que tudo por +illimitada paciencia. Se a isso Deus quizer ajunctar o dom dos milagres, +mais prompto será o effeito. Quando Machiavello dizia que os prophetas +desarmados nunca saíram com seus intentos, mostrava-se a um tempo +ignorante e impio; porque Jesu-Christo, o mais desarmado de todos, foi o +que fez conquistas mais rapidas e firmes; conquistas como elle as +queria, ganhando as almas, mudando de todo os homens, e tornando-os de +maus em bons, o que nenhum conquistador jámais fez....» + +«Repito pois, que não se deve tractar de diminuir as falsas religiões, +ou dilatar a verdadeira pelas armas e pela violencia: não são os infiéis +que se devem destruir, mas sim a infidelidade, conservando os homens, e +illustrando-os ácerca dos seus erros. Em summa, para isso não ha senão +um meio, persuadir e converter....» + +Imagine v.. se Fleury acreditaria nos milagres d'Alcacer e de Ourique, +milagres em que se faz intervir o céu para o derramamento do sangue +humano; milagres, que nem tem o merito de originalidade, porque não +havia por essa épocha paiz da Europa, onde tambem a credulidade de +muitos, e a má fé de alguns não tivessem associado largamente o céu ás +luctas sanguinolentas daquelles tempos tumultuarios e rudes; milagres, +emfim, que, por sua natureza, são, religiosa e moralmente, absurdos. + +De passagem lembrarei a v.. que não é bem fundada a accusação que me +dirige, de que não appliquei ao milagre de Alcacer a regra de Vicente de +Lerins, quando foi exactamente o contrario que fiz. Dos tres testemunhos +presenciaes que temos ácerca daquelle celebre recontro, só em dous se +allude aos signaes miraculosos que se viram no céu. O auctor da Historia +Damiatana, que assistiu ao successo, ommitte a circumstancia milagrosa. +Não acha v.. significativo este silencio? Em todo o caso falta o _ab +omnibus_ de Vicente de Lerins, e v.. ha de ter presente a doutrina de +Mabillon, citada por mim na carta antecedente, de que é _temerario_, não +só o acreditarmos em milagres falsos, mas até nos simplesmente +_duvidosos_. Quando o sentimento religioso, o respeito das doutrinas +evangelicas não obstasse á crença nesse favor do céu, obstar-lhe-hia a +severa doutrina do grande benedictino. + +Se não fosse o desejo de dar satisfação plena aos homens escrupulosos, +mas capazes de se convencerem da verdade, como v.. talvez concluisse +aqui esta carta, porque as grosserias parvoas da ignorancia e os rugidos +do interesse ferido, que vê fugir atraz da apparição de Ourique todos os +milagres rendosos, só se punem com a immortalidade do ridiculo. + +Não concluirei, porém, sem dizer alguma cousa em especial sobre a +tradição do apparecimento de Christo a Affonso I, considerada na sua +origem, e no modo como foi propagada e defendida. Os principios mais +solidos da critica, o silencio absoluto, não só dos contemporaneos, mas +tambem de dez gerações successivas, bastaria para condemnar a tradição +aos olhos dos desapaixonados, quando ella não fosse absurda em si, +porque é absurdo pôr Deus em contradicção com a indole do christianismo. +Ha, porém, na historia da invenção, propagação, e aperfeiçoamento dessa +lenda tanta hesitação, tantas contradições, tanta imprudencia, tanta +falsificação, tantos desejos de se illudir ou de illudir os outros, em +homens que parece deveriam ser superiores a taes fraquezas, que o +colligir as provas disso é offerecer uma licção salutar do perigo que ha +em abusar do sentimento religioso do povo para fins mundanos, e da +miseria a que podem chegar ainda os altos engenhos, quando se esquecem +das doutrinas evangelicas, e de que as duas cousas que o Salvador mais +solemnemente amaldicçoou neste mundo foram a mentira e a hypocrisia. + +O silencio de mais de tres seculos sobre um facto estrondoso, que +deveria andar na memoria de todos, como o milagre de Ourique, não é só +negativo, por assim nos exprimirmos; é tambem positivo. Conjuncturas +houve, antes dos fins do seculo XV, em que elle se teria publicamente +invocado, se não fosse uma fabula ainda não inventada. Citarei duas. +Seria inexplicavel, se admittissemos a existencia da tradição cem annos +antes de 1485, que nem um só dos prégadores, letrados, e capitães de D. +João I, os quaes mais de uma vez, nas suas allocuções ao povo e aos +soldados, reccorreram ás cousas religiosas para accender os animos +contra os castelhanos, e para crear a confiança de victoria final na +lucta brilhante da independencia; que nem um só desses prégadores, +letrados e capitães, os quaes não cessavam de accusar os inimigos de +scismaticos, pretendendo ligar á sua causa a causa de Deus, se lembrasse +jámais de citar as promessas feitas por Christo a Affonso I, o que era +decisivo. Antes disso, tambem, nos principios do seculo XIV, +tractando-se com grande empenho da separação da ordem de Sanctiago em +Portugal do grão-mestrado de Castella, o mestre e os freires portugueses +dirigiram ao papa um longo arrazoado em que argumentavam, que, sendo os +bens que a ordem possuia em Portugal, reino separado e independente de +Castella, dados pelos reis deste paiz, não era justo que o grão-mestre +castelhano os continuasse a desbaratar a seu bel-prazer. Para firmar na +origem do reino a independencia daquella parte dos cavalleiros que nelle +residiam, o mestre Pedro Escacho e os seus commendadores allegavam ao +papa um facto novo, mas do qual era quasi impossivel que separassem a +historia da apparição, se della houvesse vestigios. O facto novo era a +acclamação de Affonso I em Ourique. + +«Outr'ora--diziam em Roma os procuradores dos spatharios--o rei de +Portugal, D. Affonso I de clara memoria, o qual, esmagando com mão +poderosa a barbara fereza dos sarracenos no campo de Ourique, foi +elevado a rei pelos seus nobres e _pelos outros concelhos_, combateu os +dictos sarracenos inimigos da religião orthodoxa com todas as forças, +para exaltação da fé catholica e defensão do proprio reino. O mesmo rei, +debellando e expugnando os infiéis, acommetteu-os e tirou-lhes +castellos, fortalezas e muitas terras. Acceso em zelo da fé, e +attendendo ao esforço do mestre e freires de Sanctiago que então viviam, +concedeu-lhes, etc.» + +Não fazendo caso da ignorancia dos procuradores de Pedro Escacho[28] +ácerca do estado da sociedade portuguesa no meiado do seculo XII, quando +mencionam os villãos dos concelhos como intervindo n'uma eleição de rei, +não faz peso a v.. que não se lembrem do milagre da apparição? Se +existisse a tradição, poderiam elles ignorá-la, e não a ignorando +ommitti-la, quando tanto convinha invocá-la? Não era evidente que o +titulo e a independencia do rei obtinham incomparavelmente mais +importancia e firmeza dos mandados positivos de Christo, do que das +acclamações da soldadesca? Deixo á imparcialidade de v.. o resolver +estas questões. + +Eis-aqui por que eu digo que o silencio de todas as memorias e +documentos anteriores a 1485 ácerca da apparição não é só negativo; que +é tambem positivo. Mas existe realmente este silencio?--perguntar-me-ha +v.. Conforme a sua opinião, estribada na de Cenaculo e Pereira, elle não +existe. No folheto recentemente publicado, que v.. intitulou _Nova +Insistencia_, com lealdade de cavalheiro e de homem de letras v.. +abandonou o texto forjado de S. Bernardo, e entendo que tambem o antigo +documento da _Symmicta_ ao destino que elles mereciam; mas insiste nos +outros documentos que se citam. Examinarei se v.. tem razão na +insistencia. Mas antes disso cabe-me consolar aqui v.. das injurias que +a bruta ignorancia de um pobre tonto vomitou indirectamente contra v.. +por não distinguir o texto attribuido no breviario a S. Bernardo; +cabe-me, digo, consolá-lo com o meu exemplo, e com o de um sacerdote +instruido, que, enganado com v.. por aquella insigne falsificação, +expondo-lhe eu as minhas opiniões ácerca do milagre de Ourique, me +contrapunha o testemunho do grande abbade de Claraval, inserto no +breviario. Como, porém, para escrever a historia do nosso paiz é +necessario caminhar como quem passa pelo pinhal d'Azambuja, lá com todas +as prevenções contra os salteadores, cá attentos sempre a que não nos +illuda a cada momento um fabricante de mentiras ou um falsificador de +documentos e textos, amestrado pela experiencia repliquei que duvidava +da passagem do breviario, e que duvidava sobretudo pelo adjectivo +_lusitanum_, que nella se lê, e que eu tinha a certeza de não se +encontrar em monumento nenhum do seculo XII para significar _português, +cousa portuguesa_. Na duvida, passámos a examinar o texto do sancto, e a +falsificação appareceu-nos logo mais clara que o dia. Assim v.. teve +companheiros na illusão; nem creia que tem tido só dous: ha-de ter tido +milhares delles. Ria-se destes eruditos que adivinham tudo quanto se +lhes diz: ria-se dos Mabillons de agua chilra, que logo distinguem _pelo +estylo_ quatro ou cinco linhas interpoladas nas obras de qualquer +escriptor. + +Mas, voltando ás cousas sérias, v.., repito, insiste nas outras provas, +desprezadas as evidentemente falsas. E quaes são as que ficam? Creio que +v.. tem presentes a regra de Gmeiner, de Mabillon, e de toda a gente que +não esteja em guerra declarada com o senso-commum, _de que não provém +maior certeza a um facto historico de ser relatado em livros de muitos +auctores mais modernos, cada um dos quaes foi copiando o que o outro +tinha dicto. Todos elles junctos não valem mais do que o primeiro que o +referiu._ Assim, tendo nos escriptores dos fins do seculo XV que relatam +o milagre, todas as auctoridades que v.. cita do seculo XVI annullam-se +completamente. Ha, porém, outras anteriores, dirá talvez v.. É verdade +que Cenaculo as propõe. Mas quaes são ellas? Examinemos. + +1.^o Um indice, escripto em Roma, de documentos relativos a Portugal em +que se memora o facto da apparição. + +Como Cenaculo nos não diz a data do indice, estamos desobrigados de +discutir o documento a que se refere: provavelmente havia de ser pelo +gosto do da Symmicta. + +2.^o A doação ao mosteiro de Claraval, feita por Affonso Henriques. + +Tem o pequeno inconveniente de ser falsa. João Pedro Ribeiro reduziu-a a +lastimoso estado na segunda das suas Dissertações Chronologicas. Estou +certo de que o bispo de Béja, se resuscitasse, não havia de ter vontade +de tornar a falar nella. + +3.^o Nos _Commentarios_ de Affonso sabio, traduzidos em português no +tempo de Affonso IV, termina o capitulo 416 por uma passagem, em que +Cenaculo quiz ver a memoria do milagre, embora nella não haja uma +palavra a semelhante respeito. + +Este testemunho, ainda suppondo que a passagem diga o que não diz, tem +tambem outro pequeno inconveniente. É que Affonso sabio não escreveu +Commentarios nenhuns. Veja v.. se os encontra mencionados no extenso e +minucioso artigo ácerca de Affonso X, na _Bibliotheca Hespanhola_ de +Rodrigues de Castro, ou se acha em parte alguma vestigios de taes +Commentarios. + +4.^o Uma passagem de uma chronica inedita dos reis de Portugal, que, +_pela fórma da letra e pela linguagem_, se conhece ser do tempo de +Affonso IV. Esta passagem diz-se transcripta de um codice da camara +d'Evora. + +Pedirei pela primeira vez um favor a v.. É que não acredite demasiado na +pericia paleographica de Cenaculo. A diplomatica ainda não acho meios +sufficientes para distinguir com certeza pela fórma dos caracteres, nos +codices portugueses, os que são do seculo XIV ou do XV. Tanto em letra +assentada como em cursivo, não ha nelles senão a alleman pura, ou a +francesa com maior ou menor resabio de monachal ou alleman. Isto é +commum a ambos os seculos. A mesma romana pura ou restaurada, que começa +a apparecer nos fins do XV, tem ainda resabio da monachal. Pelo que +respeita á outra adivinhação de Cenaculo relativamente á linguagem, v.. +como homem de letras, está por certo habilitado para avaliar a _força_ +deste meio de apreciação. Se o bispo de Béja vivesse, eu compromettia-me +a apresentar-lhe passagens extensas, escriptas em vulgar no meio do +seculo XIV e outras escriptas já na segunda metade do XV, e se elle +fosse capaz de dizer quaes eram as antigas e quaes as modernas, dava-lhe +a minha palavra de honra de ficar crendo no milagre de Ourique. Esta +experiencia que eu offereceria ao erudito bispo, estou prompto a +offerecê-la a quem quer que pretender tentá-la. + +Agora accrescentarei mais alguma cousa. No archivo da camara d'Evora, +que examinei por meus proprios olhos, posso certificar a v.. que nada ha +anterior a D. João I; nem diplomas, nem codices. Que é feito da tal +chronica que o bispo de Béja diz existir no archivo da camara d'Evora? O +que havia de estimação naquelle archivo foi distrahido pelo antiquario +Lopes de Mira, que viveu um pouco antes de Cenaculo. Isto é sabido pelas +pessoas eruditas d'aquella cidade. V.. deduzirá d'aqui as conclusões +legitimas. + +A erudição immensa de Cenaculo tem um defeito que nelle provinha do +excesso de uma util faculdade unida a uma indole inquieta e impetuosa. +Era essa faculdade a da memoria comprehensiva e tenaz. Lia muito e +fiava-se na força da propria reminiscencia. Seria facil provar pelos +seus escriptos que grande numero das citações que fazia e das +auctoridades em que se estribava não as verificava, e que a memoria o +trahia ás vezes, quando menos em particularidades e accidentes que +modificavam a significação dos textos, servindo mal os intuitos do bom +do prelado e tornando suspeita a sua candura. + +Os _Commentarios_, por exemplo, de Affonso sabio, traduzidos em +português, podiam ser, não uma invenção, mas sim uma reminiscencia, ou +uma nota tomada á pressa por Cenaculo, e talvez a chronica inedita dos +reis de Portugal, que _pela fórma da letra e pela linguagem_ se conhecia +ser do tempo de Affonso IV, fosse cousa analoga aos taes _Commentarios_, +isto é, apenas uma confusão de idéas, ou, quando muito, uma inexacção de +apontamentos. + +Existe uma compilação historica em vulgar, ou colligida ou accrescentada +nos meiados do seculo XV, visto que na parte relativa a Portugal abrange +a regencia e morte do infante D. Pedro (cap. 438) e nada contém +posterior a este facto, continuando nos capitulos seguintes a historia +dos outros estados da Peninsula. Conhecem-se tres exemplares desta +compilação, que constitue, ao menos intencionalmente, uma historia geral +das Hespanhas desde os tempos mais remotos até os seculos XIV e XV. Em +París e em Madrid conservam-se os dous exemplares mais antigos. O de +París trasladou-o o dr. Nunes de Carvalho com o intuito de imprimir +aquelle curioso inedito. Dadiva do meu tão erudito como modesto amigo +José Gomes Monteiro, possuo eu o terceiro exemplar, que parece ter +pertencido a Manuel Severim de Faria. O codice de Madrid é talvez o +mesmo que menciona pouco explicitamente Ferreira Gordo nas Memorias de +Litteratura da Academia, Tom. 3, pag. 49. A _Cronica General_ attribuida +a Affonso sabio subministrou ao compilador a historia fabulosa e a +historia antiga da Peninsula atè a epocha leonosa. A corographia +d'Hespanha, bem como a narração da entrada e conquista desta pelos +mussulmanos e dos primeiros tempos do seu predominio são extrahidas da +historia arabe de Arrazi, conhecido vulgarmente pelo nome de Mouro +Rasis. Attribue-se ao reinado de D. Dinis e á iniciativa daquelle +principe uma traducção do livro do historiador musulmano, e +effectivamente esta parte da compilação é uma daquellas que parecem mais +antigas pela rudeza da linguagem. A chronica do Cid, publicada +modernamente pelo P. Risco, e cuja authencidade foi disputada por +Masdeu, era conhecida já do compilador, que largamente a aproveitou na +composição do seu livro. + +No exemplar de París, conforme o que se vê da copia de Nunes de +Carvalho, faltam os capitulos 411 a 441. Ignoro se o mesmo succede no +exemplar de Madrid. Encontram-se, porém, no que pertenceu a Severim de +Faria; e é justamente nestes capitulos, desde o 412 até o 438 que está +inserida a chronica dos reis de Portugal, começando na vinda do conde D. +Henrique e finalisando nos primeiros annos do governo de Affonso V. É +uma narrativa assás resumida, distinguindo-se apenas a parte relativa +aos reinados de Affonso I e de D. Dinis, cujos successos verdadeiros ou +fabulosos são mais particularisados. + +Conserva-se na Bibliotheca Publica do Porto, com o n.^o 79, um antigo +codice transferido para alli em 1834 do archivo de Sancta Cruz de +Coimbra. Contém varias memorias historicas e outros papeis avulsos +escriptos por diversas mãos, tudo colligido, segundo parece, nos fins do +seculo XV. Acaba o codice por dous chronicons em vulgar[29]. Um tem por +titulo «_Como e donde descenderom os reis de Portugal_»: o outro «_Aqui +se compeça a istoria dos reys de Portugal_»: Ambos se referem em breves +palavras ao conde Henrique, dilatando-se com os successos e lendas da +vida de Affonso Henriques, successos e lendas aproveitados pelo +chronista Galvão. Ao passo, porém, que o primeiro chronicon não +ultrapassa a epocha de Affonso I, o segundo abrange, postoque em breve +resumo, as vidas dos seus successores até D. Dinis. Em relação aos +tempos de Affonso Henriques são em parte identicos, não só no contexto, +mas até nas phrases. Ha todavia entre elles uma differença digna de +reparo: é a de que no primeiro se repetem mais de uma vez as palavras +_conta a historia_, que não apparecem no segundo, ao passo que n'aquelle +se referem tradições relativas a Affonso I ommittidas neste, donde se +conclue que o primeiro foi tirado de um trabalho historico mais antigo, +de que talvez o segundo seja apenas um extracto, embora accrescentado +com leves traços dos subsequentes reinados. + +No exemplar da compilação que pertenceu a Severim de Faria a narrativa +dos successos de Portugal durante a vida de Affonso I póde dizer-se que +é um complexo dos dous chronicons de Sancta Cruz, ás vezes perfeitamente +semelhante, outras variando nos vocabulos e phrases. Aproveitaram-se os +chronicons na compilação ou tiraram-se della? Por outra: qual dos tres +monumentos é mais antigo? É o que não importa nem eu me atrevo a +resolver. + +O que importa é o que se lê nestes monumentos, os mais remotos que nos +restam escriptos em vulgar, ácerca da batalha de Ourique. Vejamos se lá +se encontram vestigios do celebre milagre. + +O primeiro chronicon de Sancta Cruz diz-nos que Affonso Henriques, +acclamado rei pelo exercito antes do combate, depois deste, _por memoria +daquelle boo aquecimento que lhe deus dera pôs no seu pendam cinquo +escudos por aquelles cinquo reis e pose-os em cruz por renembrança da +cruz de nosso senhor ieshu christo, e pôs em cada huum XXX dinheiros por +memoria daquelles XXX dinheiros por que iudas vendeo Ieshu christo._ + +No segundo chronicon, entre a narrativa particularisada da lucta de +Affonso Henriques com sua mãe e com o conde de Trava (a que faz seguir +immediatamente o recontro de Valdevez) e a lenda do cardeal legado e do +bispo negro medeia a noticia da batalha de Ourique por estas simples +palavras: _E depois ouve batalha em nos quanpos dourique e venceo a._ +Indicio notavel de que ainda no seculo XV havia quem desse áquelle +acontecimento uma importancia secundaria. + +Na compilação a passagem relativa á jornada de Ourique é a seguinte: +«Ajuntou suas gentes e foyse sobre os mouros e correolhes a terra dês +coimbra ataa santarem, e deshy passou o tejo e correo toda a terra ataa +o campo de Ourique, onde achou elRey ismar, que a essa sazon era Rey da +estremadura, com sinco Reys que o vinham buscar sabendo o grande dapno +que lhes fazia em sua terra, e entrou com elles em batalha no lugar que +se chama crasto verde, e vencêos e prendêos e matou a mayor parte de +todas suas gentes; mas antes que entrasse em na batalha os seus o +alçaram por Rey, e dês enton se chamou Rey de portugal: e depois que os +Reis forom vencidos, elRey dom Affom de portogal, por memoria daquelle +boo acontecimento que lhe deus dera trouve por armas sinco escudos por +aquelles sinco Reis e pozeos em cruz por nembrança da cruz de nosso +senhor jesu cristo, e poz em cada huum escudo trinta dinheiros por os +trinta dinheiros por que judas o vendêo, e dêsi tornouse para sua terra +muy honradamente». + +Onde estará o milagre em qualquer destas tres passagens não posteriores +aos meados do seculo XV e que por ventura são mais antigas? + +É muito possivel que Cenaculo, homem d'immensa e variadissima leitura, +tivesse visto alguma copia dos chronicons de Sancta Cruz, e igualmente a +compilação no exemplar de Severim de Faria, que viveu no Alemtejo, onde +tambem Cenaculo residiu longamente, e onde o manuscripto podia +conservar-se ainda no tempo do bispo de Beja. Uma circumstancia digna de +notar-se torna mais plausivel esta suspeita. Cenaculo cita o fim do +capitulo 416 dos suppostos _Commentarios_, e na compilação os ultimos +periodos do capitulo 415 são os que se referem á batalha de Ourique e +aos seus resultados. O logar do capitulo citado é o mesmo: a differença +está na numeração deste, e essa differença é apenas de uma unidade. +Preoccupado pela idea do milagre, do qual se faz derivar o imaginario +escudo de Affonso Henriques, nada mais facil do que Cenaculo, citando de +memoria, dar á compilação, tirada em grande parte da _Cronica general_, +o titulo de Commentarios d'Affonso sabio, e aos chronicons de Sancta +Cruz o de chronica inedita, confundindo ao mesmo tempo a lenda do escudo +d'armas com a lenda da apparição, acerca da qual não ha ahi uma palavra. +Tudo isto não passa de conjecturas, mas de conjecturas que põem em salvo +a probidade litteraria de um dos nossos mais illustres prelados de uma +epocha ainda pouco remota, em que os bispos portugueses eram bispos, e +não vigarios do papa[30]. + +Em Cenaculo a defensão do milagre de Ourique era empenho cego. Não sei, +nem me importam os motivos. Importa-me o facto, que annullaria melhores +testemunhos do que esses que cita, quando elle fosse o seu unico +abonador. Quer v.. uma prova decisiva da cegueira do douto prelado? Eu +lh'a dou, e irrefragavel: é o seguinte periodo: + +«O advertido padre Pereira faz ver que desde o seculo XV se acham +escriptores mui auctorisados, que referem o acontecimento como de cousa +_então vulgar entre as pessoas que haviam tractado os immediatos +contemporaneos do successo, em maneira que a tradição é coetanea._» + +Traduzido em linguagem chan, quer isto dizer que em 1485 (epocha do +primeiro testemunho preciso sobre a apparição, o de Vasco Fernandes de +Lucena), havia gente que tinha conhecido individuos do tempo da batalha +de Ourique, ou por outra, que no seculo XV havia pessoas _com trezentos +annos de idade._ + +Quem diz isto póde dizer livremente o que lhe aprouver. Quando um +espirito não-vulgar chega a este estado, que nos resta senão +confessarmos o nosso nada diante da summa intelligencia de Deus? + +Aqui tem v.. por que eu me limitei, quanto me foi possivel, a falar de +leve na apparição; eis porque tenho até hoje reluctado em descer á +discussão especial dessa mentira ridicula, com que os prégadores vão +ludibriar o povo na cadeira do evangelho. Estas miserias e vergonhas, e +as que successivamente apontarei, sobre quem recaem? Sobre homens que +aliàs têm direito á reputação que adquiriram na historia litteraria do +paiz e nos annaes da igreja portuguesa, mas que um impulso talvez de +amor proprio[31], talvez uma piedade ou um patriotismo irreflectido, +fizeram com que, em vez de buscarem a verdade, buscassem a prova de que +tal ou tal cousa era verdade, caminho deploravel em cujo termo é certo o +precipicio. + +Fóra dos testemunhos cujo nenhum fundamento acabo de mostrar, Cenaculo +reduziu-se a adoptar as pretendidas provas do padre Pereira, sem +exceptuar o juramento de Alcobaça. E note v.. que elle o conhecia tão +pouco ou era tão fraco diplomatico, que não hesitou em escrever estas +palavras memoraveis:--«_Duvidar da apparição_ emquanto o desconhecimento +dos testemunhos a faz presumir de piedade popular e crença apaixonada, +_pode ser critica_; mas a interpretação livre e esquerda da palavra real +e fundada (o juramento de Alcobaça) merece ser sempre vista com +desapprovação e desagrado».--Isto quer dizer que, se não houvesse o +instrumento da apparição, podiamos com boa critica deixar de crer no +milagre. Assim, se o bispo de Béja vivesse hoje, á vista da declaração +official da falsidade do documento, que o meu amigo Rebello da Silva +arrancou ao juiz mais competente na materia, o lente de diplomatica e +guarda-mór interino do Archivo Nacional, elle teria de passar com armas +e bagagens para o campo dos _impios_, se quizesse (havia de querer) +intitular-se bom critico. + +Mas, deixando de parte o conjecturar qual seria hoje a opinião de +Cenaculo, vamos aos _Novos Testemunhos_ do padre Pereira. Disse eu que +este escripto traria deshonra ao auctor da _Tentativa Theologica_, e da +_Vida de Gregorio VII_, se não fosse uma ironia. Confesso a v.., que +antes quero salvar, por esta hypothese, a reputação de um nome illustre +na nossa litteratura, do que acceitar a anecdota, a que alguns attribuem +a concepção dos _Novos Testemunhos_, anecdota que mais de uma vez tenho +ouvido referir. Conta-se, que, sendo o padre Pereira pouco aferrado ao +dinheiro (é defeito de classe: não creia v.. que usurario nenhum fosse +nunca homem de letras) veio a achar-se um dia com a bolsa completamente +vazia. Advertido da apertura da situação pelo creado, pegou n'algumas +folhas de papel, escreveu os _Novos Testemunhos_, mandou-os ao seu +editor, e recebeu dez moedas, com que ficou rico, ao menos por dous ou +tres dias. Eu prefiro a ironia á anecdota, que não sei se é verdadeira. +Mas ou a musa do opusculo fosse a precisão de dinheiro, ou fosse a +vontade de gracejar, o que tenho por certo é que, a não ser assim, a +obra fora indigna de um homem, que pulverisou as pretensões illegitimas +e insolentes da curia romana, e que fez tremer boa meia duzia de +hypocritas e pedantes do seu tempo. As provas de que os _Novos +Testemunhos_ precisam da minha explicação, ou d'outra qualquer, vou +dá-las a v.., começando por transcrever uma passagem da introducção do +opusculo. Depois de apresentar como demonstração de não ser forjado _o +juramento d'Alcobaça_ o haver, antes de Brito o publicar, testemunhos +_da tradição_ de Ourique (argumento na verdade singular!) o padre +Pereira prosegue: + +«Mas quanto a verificar o caso da apparição, tem a dita demonstração _o +defeito de que nenhum dos testemunhos em que ella se funda remonta a +maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel_. E assim _poderão_ os +emulos das nossas glorias _repôr_ que uns _testemunhos do principio do +XVI não são sufficientes_ para extorquir delles o assenso a um facto, +que se suppõe _acontecido no meio do seculo XII_.» + +Depois d'isto, que digam todas as pessoas que lerem esta carta, não +sendo algum clerigo mau e ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte +quaesquer prevenções, o que se deve esperar no opusculo? O auctor +confessa que a favor da apparição não bastam os testemunhos posteriores +ao anno de 1495, insufficientes para provas de um facto succedido em +1139, logo elle vai offerecer-nos documentos, trezentos, ou, pelo menos, +duzentos annos anteriores. Eu digo o que nos offerece Pereira em logar +dos _testemunhos insufficientes_. + +1.^o A narrativa de Olivier de la Marche na introducção ás suas +Memorias. + +Esta introducção foi começada a escrever em 1492, conforme o proprio +auctor das Memorias declara[32]: isto é, as passagens relativas ás armas +reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres annos antes de começar a +epocha em que os testemunhos ácerca de um milagre succedido 357 annos +antes nada provam, segundo confessa o padre Pereira, advertindo que, por +esses não prestarem, nos ía expor quatro novos, _todos de tanto peso e +authoridade, que não ha para que se desejem outros mais graves_. Destas +premissas segue-se, que o testemunho dado a favor de um facto 357 annos +depois do tempo em que se diz succedido é _defeituoso e insufficiente_, +mas dado 354 annos depois do successo é igual ao de qualquer pessoa, ou +de muitas pessoas que houvessem presenciado este, visto que _nada ha +mais grave_, do que um testemunho posterior de 354 annos, emquanto o +posterior de 357 não presta para nada. + +Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico? Deixo a escolha a v.. +postoque estou certo de que das duas explicações ha-de preferir a +ultima. + +Mas o caso não pára aqui. Tenha v.. paciencia, porque não fui eu que +quiz discutir o milagre de Ourique; foram os padres, que me têm +insultado porque o tractei como elle merecia, que me compelliram a isso. +Hão-de esgotar o calix da ignominia até as fézes. Elles dizem do pulpito +abaixo que era melhor que eu não tivesse falado em tal; e eu digo-lhes +da imprensa, do meu pulpito, que era melhor continuarem a aleijar o +latim do breviario e do missal, e deixarem-me em paz escrever a historia +verdadeira do meu paiz. + +Digo que o caso não pára aqui, porque o modo como é narrada a historia +da apparição por Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas, +é curiosissimo. Segundo elle, o conde Henrique tinha escudo branco: +depois este escudo adornou-se por quatro vezes: 1.^a quando Affonso I, +passando o Tejo, desbaratou em campo d'Ourique (_Cambdorick_) os cinco +reis mouros, e, em allusão a cinco bandeiras que lhes tomou, pôs no +escudo branco cinco escudetes azues. 2.^a Houve nova mudança quando _o +mesmo rei foi a Roma_ emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno +consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu pondo-se +inteiramente nú, e desafiando o papa e os cardeaes para que lhe +mostrassem todos junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes das +que elle tinha recebido pela fé de Christo. Era maravilhoso, de feito, o +numero d'ellas: cinco com visiveis indicios de deverem ter sido mortaes, +a não se haver dado milagre no caso. O argumento fora peremptorio. O +papa e os cardeaes disseram-lhe que vestisse a camisa; e para lhe darem +uma satisfação da injusta pronuncia, mandaram-lhe que em cada um dos +escudetes posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria daquellas +famosissimas lançadas de que os mouros o haviam servido. 3.^a Tendo o +infante D. Fernando, rei de Portugal, casado em França com a condessa +Maria de Bolonha, teve um filho, chamado Henrique, o qual accrescentou a +orla do escudo em que estão os castellos. E sobre este ponto discute o +auctor o erro que havia nos dictos castellos, estribando-se na opinião +de portuguêses notaveis. Entre estes devo advertir, para o que v.. logo +verá, que elle havia já mencionado especialmente _e com elogios +extraordinarios_ o celebre Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a +dignidade de escanção de Madama Margarida, viuva de Carlos o +Temerario[33]. A 4.^a alteração, que vinha a ser a quinta fórma das +armas reaes portuguesas, foi o pôr-lhes uma cruz firmada no escudo um +rei de Portugal (já se vê que muito posterior a Affonso I), facto cuja +origem _alguns attribuiam (aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido uma +cruz no céu_ durante uma batalha com os sarracenos, o que vendo o +principe dissera, orando a Deus, que _mostrasse_ antes a _cruz_ aos +infieis, e _assim se fez_, com o que os mouros ficaram desbaratados. +Accrescenta Olivier de La Marche que talvez o milagre seja verdadeiro; +mas que _para elle a verdade é que o bom rei João_ (D. João I) foi quem +ajunctou ás armas portuguesas os quatro braços floreteados firmados no +escudo. + +Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la Marche em toda a sua força e +pureza, postoque resumido. Não lhe faço commentarios. Deixo a v.. e a +todos homens instruidos que os façam. Eu por mim estou satisfeito. + +Inverterei aqui a serie dos quatro _irrecusaveis_ testemunhos do padre +Pereira, porque tenho uma razão de ordem que me obriga a reservar o +segundo para o ultimo logar. Falarei, portanto, do terceiro. + +Gomes Eannes de Azurara, na continuação da chronica de D. João I por +Fernão Lopes, transcreve um discurso feito áquelle principe pelos seus +confessores, frei Vasco Pereira e frei João Xira, a quem elrei pedira +lhe dissessem se era serviço de Deus intentar a conquista de Ceuta. A +resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se no exemplo de muitos +outros principes e cavalleiros famosos, que haviam acommettido os +infiéis na persuasão de que practicavam uma obra meritoria, +offerecendo-se á morte. Os que a tinham alcançado, entendiam os dous +frades que ficavam equiparados no céu aos martyres, e que os que não a +haviam obtido, nem por isso deixavam de ser sanctos, estando resolvidos +a morrer alegremente pela fé. Os theologos terminaram a serie dos +exemplos (nos quaes figuram entre aquella especie singular de +bemaventurados o Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fernão Gonçalves, +que nunca desconfiaram de que eram sanctos) pela seguinte passagem, +conforme se lê na edição de 1644: + +«...temos ante nossos olhos a memoria do mui notavel, fiel e catholico +christão elrei D. Affonso Henriques, cujas reliquias tractamos entre +nossas mãos. Vêde, senhor, os signaes que trazeis em vossas bandeiras, e +perguntai e sabei como e por que guisa foram ganhados; os quaes +certamente de todas as partes mostram a paixão de Nosso Senhor +Jesu-Christo, _por cuja reverencia e amor o bemaventurado_ rei offereceu +o seu corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles cinco reis, como +vossa mercê sabe. Considerae _isso mesmo_ (do mesmo modo) Senhor, _se +elle duvidara se o seguinte trabalho era serviço de Deus, não tivereis +vós hoje em dia esta mui nobre cidade_ (Lisboa) nem a villa de Santarem, +com outros logares, etc.» + +Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque illustrava o sentido das +phrases relativas á batalha de Ourique. O que frei João Xira queria +dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera a morrer por +Christo em Ourique, entendendo que fazia serviço a Deus, como depois, na +tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala aqui no milagre? Se +houvesse outras testemunhas daquella epocha (1415), que positivamente +referissem a apparição, ainda se poderia, embora com violencia, suppôr +nas phrases do frade uma allusão ao successo; mas faltando-nos +absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa tal supposição. Trazer +esta passagem para provar, que já em 1415 existia a tradição, ao passo +que, para ella poder ter a significação forçada que se lhe quer dar é +necessario suppôr a existencia da mesma tradição, o que é, senão um +circulo vicioso, uma petição de principio? Não é, porém, só isso. Nestas +lendas, inventadas com fins humanos por milagreiros e falsarios, quasi +que não é possivel dar um passo sem encontrar falsificação. A chronica +de Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra contra os castelhanos, +depois da revolução de 1640, e precedida por uma gravura representando a +apparição, foi viciada nesta passagem, provavelmente para se ver nella +uma allusão obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu ver, o padre +Pereira. No codice authentico do Archivo nacional, onde no impresso se +lê «_vencendo_», está escripto «_vendo_». «Vendo» torna o sentido da +passagem claro. O rei _vendo_ os _cinco_ reis mouros, offereceu o seu +corpo a Jesus, e pôs nas suas bandeiras os _cinco_ escudos. Substituida, +porém, a palavra _vendo_ por _vencendo_, a phrase obscurece-se; a causa +de se pôrem os cincos escudos nas bandeiras, isto é, o serem os reis +mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que se cria tirar vantagem em +1644, ganha em frei João Xira um novo, postoque bem debil, alliado. + +Mas supponhamos tudo quanto quizerem. Adoptemos como exacto o texto +impresso de Azurara: vejamos ahi a apparição, embora não haja lá uma +unica palavra a semelhante respeito. O testemunho singular de frei João +Xira em 1415 não seria um pouco tardio para provar um successo de 1139, +profundamente esquecido nos chronicons e monumentos coevos? Não o +rejeitam as regras da critica sincera; regras estabelecidas accordemente +por tantos e tão respeitaveis escriptores ecclesiasticos; regras, emfim, +cuja solidez a experiencia demonstra de contínuo aos que se votam a +serios estudos historicos? Quer v.. um exemplo domestico da utilidade +das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos, dos Fleurys, +desprezadas só por aquelles que desprezam tudo, menos os dezeseis +tostões de um sermão de milagres? É exemplo que não está no cartorio da +camara de Evora, nem nos Commentarios ideaes de Affonso X, mas no +Archivo Nacional, onde todos o podem vêr. Consiste n'uma especie de +summario historico dos reis de Portugal, lançado no 4.^o volume de +Inquirições de Affonso III, no reinado de D. João I. No preambulo +daquelle summario, destinado a avaliar-se, á vista dos factos +historicos, a genuinidade das doações dos reis anteriores, affirma-se +que para o escrever se averiguara com extrema exacção a verdade, +fixando-se assim a serie chronologica dos principes portugueses. Sabe +v.. qual é a exacção desse monumento destinado a servir de padrão legal, +para por elle se afferirem diplomas que importavam á fortuna particular +e aos direitos da corôa? Citarei só os erros relativos a Affonso I. +Segundo o summario official, elle nasceu em 1092, foi casado com a filha +de D. Affonso de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em dezembro +de 1184. D'aqui verá v.. o credito que deveriam merecer-nos os +testemunhos do seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre do seculo +XII, quando esses testemunhos existissem, e não fossem um rol vergonhoso +de falsificações e mentiras. + +O quarto testemunho do padre Pereira é o proprio instrumento da +apparição, que existiu em Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o +de Alcobaça. O auctor dos Novos Testemunhos diz que não sabe se os dous +foram uma e a mesma cousa, passando o celebre documento do archivo +daquelle mosteiro para o d'Alcobaça. Como demonstra elle, porém, essa +existencia? Pelo depoimento de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556, e +publicado por outro frade cruzio, insigne forjador de textos e diplomas, +e chronista da ordem, frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario +pelos seus proprios confrades[34]. Se acreditarmos este, os conegos de +Sancta Cruz, _empenhados em fazer canonisar Affonso I_, requereram se +tirasse um depoimento de testemunhas sobre os milagres do primeiro rei +português, do _Pharaó obdurado_ dos monges de Cella-Nova. Quem +primeiramente depôs foi um _dos conegos empenhados_, e foi este que +disse constar o milagre de Ourique pelo juramento que existia do mesmo +rei. Desse juramento original tiraram-se então em duplicado copias +authenticas; uma para se guardar no mosteiro, outra para ir a Roma, o +que não chegou a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz o original e +uma copia em instrumento, e fóra d'alli outra copia authentica. Tudo +isto se perdeu, e nada resta de um documento de tanta valia, que +forçosamente se havia de guardar com recato, senão a grosseira impostura +dos frades bernardos, restando tambem, nos fins do seculo passado, um +traslado que se dizia transcripto de _um original_, diverso no seu theor +do _outro original_ de Alcobaça, e só semelhante a elle em ter sellos +pendentes, cousa que não existia na epocha em que o juramento se diz +exarado. + +O que tudo isto vem a ser é uma serie de vergonhas e miserias +repugnantes, e sobretudo de falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios, +elles nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os seus embustes. Se +frei Nicolau, ou os conegos de 1156 (porque eu não sei se a historia do +depoimento se verificou, ou se é invenção do chronista) se lembrassem do +que passou antes d'elles, teriam procedido com mais cautela nas suas +mentiras. Quem lê a façanhosa chronica dos conegos regrantes conclue que +no tempo de frei Nicolau os pergaminhos originaes eram aos milhares em +Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui está o que não só elle proprio, +postoque fraca testemunha, mas tambem escriptores mais serios, que se +reportam a um documento coevo, nos referem como acontecido em 1411. No +dia de Corpo de Deus desse anno, uma tempestade que estourou sobre +Coimbra produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu o mosteiro de +Sancta Cruz. «A agua (diz o auto que sobre isto se redigiu) levou, além +de muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas de memorias +antigas e de doações que os reis fizeram ao dicto mosteiro, que _todas_ +foram molhadas _e a mór parte dellas perdida_». Sabendo elrei D. João I +do successo, segundo confessa o mesmo frei Nicolau, ordenou se +trasladassem em publica fórma as _doações e mais escripturas_ que +restavam dando-se a este transumpto a mesma força dos originaes, «_com o +que_, prosegue o chronista, _se restaurou parte da perda de tantas e tão +antigas escripturas que hoje nos fazem grande falta_». De duas uma: ou o +instrumento da apparição depositado em Sancta Cruz pereceu em 1411, ou +escapou. Se escapou, devia ser trasladado no chartulario em que, segundo +a ordem delrei, se lançou o que restava. Esse chartulario existia ainda +no tempo do chronista, e provavelmente existe ainda hoje. Para que +inventaram, pois, o ridiculo pergaminho de Alcobaça? Porque, em vez de +imaginarem cem mentiras para amparar a tradição, não foram a Sancta Cruz +extrahir desse traslado authentico dez ou cem traslados novos, que +tambem seriam historica e até legalmente authenticos? Porque não vão lá +buscá-los ainda hoje para confundirem a minha impiedade? Se, porém, o +pergaminho original pereceu em 1411, que são essas historias de +publicas-fórmas _do original_ feitas pelos notarios Manso e Thomé da +Cruz, e não sei por quem mais, senão embustes, ou copias tiradas de um +documento falso. Porque eu não disputo, nem me importa, que elle fosse +forjado pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de S. Bernardo. + +Falta o segundo testemunho, que deixei para ultimo logar, porque se +prende com o que me resta a dizer a v.. sobre a lenda da apparição. Esse +testemunho é o de Vasco Fernandes de Lucena, que, indo como orador da +embaixada enviada por D. João II ao papa em 1485, referiu a historia da +apparição no discurso que recitou perante Innocencio VIII e perante a +curia. Como prova do successo, elle tem pouco mais ou menos o valor do +de Olivier de la Marche. Se aos historiadores que escreveram depois de +1495 se não póde attribuir, segundo Pereira, e muito mais segundo as +doutrinas dos pios e eruditos escriptores a que me referi na carta +antecedente, auctoridade bastante para nos compellirem a acceitar a +tradição de Ourique, tê-la-ha, porventura, o testemunho singular de um +homem que o refere apenas dez annos antes, tractando-se de um milagre +que se diz succedido n'uma epocha anterior de mais de tres seculos? É +impossivel que v.. não sinta que semelhante auctoridade nada vale. + +Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu. O primeiro e o segundo são +dos fins do seculo XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a um só. +Persuadem-no o affirmar Olivier de la Marche que sobre a questão das +armas portuguesas ouvira pessoas _notaveis_ de Portugal com quem +tractara[35] tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos elogios á +sciencia e talento de Vasco de Lucena. O terceiro é uma passagem, aliàs +viciada, de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer correcta, não +contém uma unica palavra ácerca da apparição. Finalmente, o quarto é o +juramento de Affonso Henriques, que _consta_ existia em Sancta Cruz +muito antes de Fr. Bernardo de Brito encontrar o de Alcobaça, o qual se +não sabe se é o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas que nós sabemos +perfeitamente que é falso. Eis aqui os testemunhos do milagre de +Ourique, «_de tanto peso e auctoridade, que não ha para que se desejem +outros mais graves_». + +Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo a decidir se o padre Pereira +escreveu isto em seu juizo, ou se estava dando largas á sua jovialidade. + +Resta-me só fazer um esforço para acceder, até onde é possivel, a uma +pretensão de v.. embora já ficasse provado que ella era infundada. Diz +v.. que para refutar plenamente a fabula da apparição deveria eu dizer +quando, como, para que, e por quem fora inventada. É evidente que o +falsario havia de precaver-se para não o descubrirem, e só elle poderia +dizer positivamente qual era o seu intuito quando forjou a patranha. +Sendo homem astuto, saberia não somente guardar segredo, mas tambem +fazer espalhar com arte a fabula. Que calumnias não tem alevantado uns +aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos? Muitas dellas, +passando primeiro de boca em boca, vindo á imprensa, combatidas pelos +calumniados, nem por isso hão deixado de generalisar-se, e de tomar ás +vezes tal consistencia, que é possivel passarem algumas, d'aqui a um +seculo, por factos historicos, até que uma critica severa e +desapaixonada as reduza ao seu justo valor. Sobre a origem da fabula de +Ourique não se podem produzir factos decisivos, mas podem reunir-se +alguns, que, assim aproximados, offerecerão fundamento a suspeitas +vehementes sobre a epocha do nascimento da tradição, sobre seus +auctores, e sobre os fins com que foi inventada. Note v.. que eu falo da +tradição e não do juramento, que provavelmente, no estado em que hoje o +temos, é mais moderno. Quanto a esse invento grosseiro, considerado em +si, confesso que me fallece o animo para o analysar. + +Partamos de um facto. O primeiro testemunho sobre a existencia da +tradição relativa ao milagre de Ourique, preciso, incontroverso, é o de +Vasco Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais são chronicas que _se +perderam_, vestigios que _se apagaram_, obras que _ninguem conhece_. +Isto faz lembrar o gracioso livro das _Antiguidades de Evora_, que +muitos tem tomado por obra de um tolo, e que na realidade são a satyra +dos falsarios e crendeiros, feita por um homem espirituoso e engraçado. +Tudo quanto se cita anterior a 1485 são embustes e ridicularias, sem +exceptuar as chronicas do tempo de Affonso Henriques attribuidas aos +imaginarios chronistas João Camello e Pedro Alfarde, onde se diz que +_talvez_ se achasse a tradição. A invenção dos taes chronistas, frades +de Sancta Cruz, tinha já sido reduzida a pó pelo cruzio D. Thomás da +Incarnação, e por frei Manuel de Figueiredo, frade d'Alcobaça. A +referencia a semelhantes mentiras feita por Pereira e por Cenaculo, que +escreveram depois de ellas estarem refutadas, prova a _sinceridade_ com +que foram redigidos nesta parte os _Cuidados Litterarios_, e tambem os +_Novos Testemunhos_. + +Temos, pois, um homem celebre, um castelhano, erudito, valido de D. João +II, que, n'um discurso recitado perante Innocencio VIII, menciona pela +primeira vez a apparição. Singular origem de uma fabula, que, revelada +por um estrangeiro, vem á luz em terra estrangeira, regida por um +governo theocratico, que tem por fundamento primitivo do seu dominio +temporal um titulo falso. + +A memoria de D. João II é odiosa. Entre todos os reis legitimos +portugueses, é elle o unico ao qual sem injustiça a historia póde +attribuir a qualificação de tyranno. Elle foi quem deu o golpe mortal +nas velhas liberdades desta nossa terra. No seu reinado tem de ir buscar +o historiador a causa fundamental da nossa decadencia, que começa com o +estabelecimento do absolutismo, embora a podridão que corroe a arvore se +esconda por alguns annos no cerne. É tambem singular por esta +circumstancia a origem da tradição. Nasce, dilata-se, cresce, firmando +as raizes no tumulo da liberdade. + +Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado do _principe perfeito_ um +foragido português, seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da +Costa. Depois do assassinio judicial do duque de Bragança, o cardeal +aproveitou o ensejo para malquistar o rei português com Sixto IV. Em +consequencia d'isso (ao menos assim se acreditava), o papa enviou em +1483 um nuncio a Portugal, a queixar-se dos abusos do poder temporal +contra as pretendidas immunidades da igreja, que o filho de Affonso V +respeitava tanto como os foros politicos do reino. Foi o rei emprazado +para apparecer ante o papa, por si ou por procurador, para dar +explicações ácerca do seu procedimento. Nomearam-se embaixadores; mas +antes de partirem, Sixto IV relevou o rei da citação, diz-se que a +instancias do mesmo cardeal que excitara a tempestade, receioso de que +os ministros portugueses, chegando a Roma, lhe pagassem em igual moeda, +fazendo-lhe perder parte do poder e credito de que gosava[36]. + +Parece, porém, que, emquanto proseguia em Portugal a lucta tenebrosa e +encarniçada de uma aristocracia suberba com um rei ambicioso e +inexoravel, o cardeal não dormia em Roma. Invectivava-se ahi ou +fingia-se invectivar contra a frouxidão de Sixto IV, que deixava o rei +português quebrar os privilegios do clero sem se lhe comminarem +censuras[37]. Deste clamor sincero, ou desta farça, resultou uma bulla +concebida em durissimos termos, que se expediu nos primeiros mezes de +1484. A linguagem della era a linguagem habitual da curia, insolente e +grosseira; mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo. O papa +recordava uma cousa de que os reis portugueses se haviam esquecido; +recordava a D. João II que _tinha a dignidade real por dadiva da sé +apostolica e de que era seu tributario[38]_. Uma bulla destas faria hoje +desatar a rir quaesquer ministros portugueses, até em pleno parlamento. +Naquelle tempo, porém, ainda o negocio era um pouco serio. D. João II, +se riu, foi em particular. + +O arcebispo D. João Galvão, um dos valídos do rei e inimigo figadal da +familia de Bragança[39], tinha sido transferido, ainda em tempo de +Affonso V, da sé suffraganea de Coimbra para a metropolitana de Braga. O +arcebispo olhava para as cousas ecclesiasticas como certos prégadores +d'hoje olham para a prédica; pelo lado solido. Sem lhe importar obter o +pallio, foi usando do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas da +mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava devorar pacificamente tão bom +quinhão na mesa ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir o +clero[40]; mas até que ponto eram graves as culpas do arcebispo, que +assim se arriscava a perder a dignidade archiepiscopal (como tem +succedido a muitos outros) não sei eu dizer: falo pela boca do papa, que +lhe dirigiu tambem uma carta de ameaças. O que é certo é que o movedor +das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal da Costa, não devia +esquecer-se de carregar a mão no valído do seu adversario. Odio de padre +contra padre ainda é mais profundo e tenaz do que contra qualquer +secular. + +As relações com Roma offereciam, pois, um aspecto pouco agradavel, +quando Sixto IV veio a fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura em +que elrei apunhalava em Setubal o Duque de Viseu, mandava envenenar o +Bispo d'Evora, assassinar D. Gotterre no fundo de um calabouço, e +degolar e esquartejar em praça outros fidalgos. D. João I tomara da +côrte de Inglaterra o esplendor, os habitos cavalleirosos, o amor da +cultura litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje distinguem as +classes elevadas na Gran-Bretanha. Seu bisneto tomava da côrte de França +apenas um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava modelar as manifestações +da sua alma. + +A casa de Bragança procedia de D. João I, mas de D. João I antes de rei +e simples mestre da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se enlaçado +com as armas de Portugal, porque D. João I não se esquecera, depois de +rei, de que fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava. + +Com as mãos tinctas do sangue do duque de Viseu, D. João II arrancou a +cruz do escudo de Portugal, e alterou a posição dos escudetes lateraes, +collocados até ahi horisontalmente, dando assim nova fórma ás armas do +reino. Dir-se-hia que até d'alli quizera affastar a memoria da linhagem +dos seus principaes adversarios. + +Era essa a causa da mudança? Não o sei. Ruy de Pina, um dos amoucos do +principe perfeito, attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar ou +recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O que é certo é que a +alteração se fez no mesmo anno de 1484. + +Hoje a heraldica e os brasões são dixes com que se entretem as creanças +barbadas: o jogo do xadrez é cousa incomparavelmente mais grave. Nos +fins do seculo XV não era, porém, assim. A attenção da Europa devia +volver-se principalmente para o ensanguentado drama que se representava +na côrte de Portugal; mas a cruz de Christo expulsa das moedas, dos +sellos e das bandeiras do reino, pelas mãos de um rei algoz, havia de +dar occasião a mais de um commentario pouco favoravel. + +Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco escudetes representassem +uma cruz, e ao mesmo tempo contivessem uma allusão mysteriosa á paixão +de Christo; se as arruellas que os ornavam representassem os trinta +dinheiros por que Judas vendeu o Senhor, que falta faria a cruz +floreteada de Aviz nas armas de Portugal? Não ficava ahi uma cruz +mystica, um symbolo piedoso? + +Fallecido o papa que recordara a D. João II qual era a origem da +independencia de Portugal relativamente a Leão, e que ainda ousava +lembrar-se do signal de vassallagem que outr'ora se offerecera á igreja +de Roma, elle fora substituido por Innocencio VIII. Sabido o successo, +elrei resolveu mandar a Roma uma embaixada, para orador da qual escolheu +um homem de plena confiança, o castelhano Vasco de Lucena. + +Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor que as bullas de Lucio II e +de Alexandre III ácerca da independencia do reino, e que talvez Affonso +Henriques houvesse dado a guardar aos seus chronistas, João Camello e +Pedro Alfarde? Se o tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem +dessa circumstancia o novo papa, tirando assim á curia a vontade de +repetir as doutrinas carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV. + +Porei aqui a parte mais interessante do discurso, que o orador de +Portugal fez ao papa rodeado dos seus cardeaes, em cujo numero se +contava o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre Pereira já +traduziu uma porção desse discurso; mas era um preguiçoso aquelle bom do +padre Pereira. V.. hade permittir que eu o seja menos, e dê um talho +mais largo. + +Depois de indicar em poucas phrases as origens de Portugal, o orador +fala dos primeiros annos do governo de Affonso I e da pequenez dos seus +estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas e conquistas: Leiria, +Santarem, Lisboa tomadas, o Tejo transposto, a provincia transtagana +submettida, com Evora sua capital, Cezimbra e Palmela, fortalezas +inexpugnaveis, reduzidas, sendo por elle desbaratados _milhares +infinitos_[41] de mouros com poucos cavalleiros. «Outra vez (ou +_novamente_)--prosegue Lucena--no campo de Ourique, naquelle sitio a que +o _vulgo_ chama _agora_ Cabeças dos Reis, com um pequeno exercito venceu +cinco poderosissimos reis mouros. Na qual batalha, para se ver quão +porfiada fosse, e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram +as lanças dos barbaros os escudos que embraçava na mão esquerda. Desta +singular e famosa victoria procedeu _fixar elle as insignias e armas dos +reis de Portugal_, pondo nellas cinco escudos, e collocando em cada um +delles cinco dinheiros, sendo sabido que até então as armas eram um +escudo só, todo semeado de besantes. Estes cinco escudos _postos em +fórma de cruz_, e estes besantes quinarios _tambem distribuidos em +cruz_, que nos indicam senão os trinta dinheiros, preço do sangue de +Christo, pelo qual este foi entregue aos judeus pelo crudelissimo Judas? +Antes de dar o signal para a batalha, este rei, orando de joelhos, viu o +Salvador pendente da cruz, e foi tal a confiança do regio animo, tal a +fé gravada no seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda +maravilha, _se atreveu_ a dizer que _não convinha_ que Christo +apparecesse a um firmissimo crente, mas que tal apparecimento era +necessario aos hereges, aos que se afastavam da fé christan. D'isto e +d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa sanctidade conhecerá mais +claro que esta luz que nos alumia _por qual constancia d'animo, por qual +ardor de virtude, por que prendas, por quaes degráus e successos subiu +ao fastigio regio_; como esse varão tão religioso, forte e pio augmentou +os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo jugo da +servidão; com que razão, por força da _clarissima vontade e da suprema +direcção_ (optimo auspicio) _da eterna magestade_, com _auxilio do povo_ +e _adjutorio_ da sancta igreja romana, _tomou o regio nome com direito +perfeito_ (optimo jure) _e o legou aos seus successores_; mais feliz +nisto que outros principes, dos quaes muitos aspiraram ao titulo real +pelo favor dos povos; outros por temor dos seus satellites armados; +poucos, a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro caminho da +virtude.» + +Aqui tem v.. o que se lê na oração de Lucena relativamente a Affonso I. +Note v.. que o orador passava por um dos homens mais instruidos do seu +tempo, e não podia por ignorancia fazer o que fez; isto é, inverter a +ordem dos successos do reinado d'aquelle principe. Deste discurso o que +se deduz é que a batalha de Ourique foi a ultima façanha notavel delle, +posterior a tudo, inclusivamente á tomada de Evora, e quem sabe se á +bulla de Alexandre III, que concedeu ao principe português a +qualificação de rei? O que é certo é que, se a chronologia fingida por +Lucena fosse verdadeira, a batalha e o milagre de Ourique, em que elle +visivelmente quer fundar a independencia de Portugal, _embora com o +favor do povo e de Roma_, teriam sido posteriores á carta de feudo á sé +apostolica e á bulla de acceitação de homenagem expedida por Lucio II. +Assim, a dignidade do rei e a independencia de Affonso I assentariam +n'um titulo, não só incomparavelmente melhor, qual era a vontade de Deus +milagrosamente manifestada, mas tambem posterior á offerta e acceitação +da homenagem feita em 1144, que por esse facto ficavam invalidadas por +inuteis. Presupposto isto, a impertinente recordação da curia romana, +inserida na bulla «_Ut saluti_» de Sisto IV, ficava tambem de todo o +ponto refutada. + +Mas dirá v..--o cardeal D. Jorge da Costa, presente ao acto, não podia +impugnar este inaudito milagre?--Não se impugnam assim milagres. +Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra mim, porque no seculo +XIX não creio n'uma fabula provada tal até a saciedade, e imagine se um +padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre nos fins do seculo XV; e +quando se atrevesse a dizer alguma cousa, seria em particular ao papa e +aos cardeaes. Outra flagrante mentira dizia ahi Lucena sem temor de que +D. Jorge o contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros em cada +escudete, desmentida por todas as armas reaes gravadas nos sêllos e +moedas dos nossos antigos reis da primeira dynastia, começando em Sancho +I. Restam muitos desses sêllos e moedas; muitos mais deviam restar +naquella epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa notavel: havia +de ter visto muitissimos; mas nem por isso Lucena titubeou, antes nesta +parte o seu discurso, geralmente frio, melifluo, calculado, tem certo +sabor de colerica invectiva contra os que disso duvidassem. O +descaramento é, ha muitos seculos, um dos dotes do homem d'estado. + +Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador de Portugal no concilio +de Basiléa, e na embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as orações de +abertura nas côrtes de 1478 e de 1481. Todas essas orações, que não +deviam ser menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas escapou a da +embaixada de Roma de 1485, e não só escapou, mas tambem foi impressa, e +não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se della duas edições em +caracteres gothicos e sem data, ao que parece, estampadas _fóra do +reino_ e com todos os signaes de _pertencerem aos primeiros tempos da +arte da impressão_[42]. Se de feito a oração foi reproduzida pela +imprensa pouco depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino, onde a +imprensa de livros latinos e vulgares não consta que existisse ainda. +Mas duas edições da mesma epocha, que provam, senão que _alguem +interessava em dar áquelle discurso a maxima publicidade_? + +Recorde-se v.. do que eu disse a proposito de Olivier de la Marche, e da +influencia que é provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista +flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se que em 1492, em que este +escrevia, as opiniões andavam encontradas. As armas que ahi mais se +deviam conhecer eram as antigas com a cruz d'Aviz, porque a reforma de +D. João II tinha apenas oito annos. Entretanto a noticia do milagre de +Ourique, postoque alterada, corria já alli, e a alteração provinha de +quererem _alguns_ acommodar a fabula ás armas antigas. Consequentemente, +outros não queriam: logo disputava-se ácerca disso: logo a historia da +apparição era uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a explicação +sabida e ordinaria, como Lucena dissera em Roma, teria De la Marche +accumulado a serie de despropositos que anteriormente transcrevi? Elle +falara ácerca d'isto com muitos portugueses, e escrevia á vista das suas +informações. O que indica essa completa confusão d'idéas do chronista? +Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente no meio das lendas que +se ligavam ao brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente +baralhado. + +Agora note v.. que por estes mesmos annos de 1491 e 92 Lucena devia +estar em Flandres, porque é neste tempo que elle começa a intitular-se +conde palatino (titulo que parece provir-lhe do cargo d'escanção da +viuva de Carlos o Temerario), ao passo que nessa conjunctura o achamos +ausente de Portugal[43]. V.. ajuisará das illações que destes factos se +podem tirar. + +Mais ou menos inexactas que sejam as noticias que nos restam ácerca da +existencia em Sancta Cruz de Coimbra de um monumento relativo á +apparição, parece todavia que alguma cousa ahi houve, e o transumpto do +juramento de Affonso I, feito pelo notario Manso _em tempo d'elrei D. +João II_, não é de desprezar, logo que um homem como frei Francisco +Brandão affirma tê-lo visto. Tal transumpto, se não prova a existencia +de um documento verdadeiro, faz crer que _alguma cousa sobre a apparição +tinha_ apparecido _em Sancta Cruz no tempo daquelle rei_. + +Advirta, porém, v.. que D. João Galvão, o arcebispo de Braga, valído de +João II, tinha sido prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar +estreitas relações com os frades, e que a familia Galvão parece ter tido +particular tendencia para aquelle mosteiro; um outro D. João Galvão era +seu prior crasteiro no principio do seculo XVI, e, como vimos, diz-se +que em 1556 um frade cruzio, velho de oitenta annos, o _cartorario_ D. +Manuel Galvão, depôs que existia o auto do juramento de Affonso I, _em +que os prelados e os grandes da corte estavam assignados_, grossa +mentira, seja de passagem dicto, porque o estylo constante, sem excepção +no seculo XII e ainda no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo +notario que os exarava os nomes dos prelados e ricos-homens +confirmantes. Mas os Galvões não acabam aqui. Duarte Galvão, _irmão do +arcebispo valído_, escrevendo depois de 1500 a chronica de Affonso +Henriques (no fim da qual adverte _innocentemente_ que seu irmão o +arcebispo lhe dissera que tinha motivos para crer _que Affonso Henriques +fora sancto_,) introduz na narrativa da batalha de Ourique a historia da +apparição, aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera a Lucena. +Galvão refere-se nesta parte ao que _elle mesmo_ (Affonso I) _disse, e +dentro da sua historia se contém_, o que parece alludir a uma especie de +memoria ou diploma em que figura o filho de D. Theresa, o _Pharaó +obdurado_. Tudo o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em fama; +isto é, a reprehensão dada pelo rei a Christo por lhe apparecer a elle; +as promessas da protecção perpetua do reino feitas por Deus; emfim tudo +aquillo que os frades de Alcobaça metteram para dentro do _seu original_ +do juramento, porque em verdade era pena que andasse tanta cousa boa só +em _confirmada fama_, como diz Duarte Galvão. Mas se os frades bernardos +souberam aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem um +juramento vistoso, e de uma apparição rachitica uma apparição ancha e +acabada, o chronista não tinha mostrado menos juizo em lhe dar uma +applicação util. Para D. João II, morto e sepultado, não servia ella já +de nada. A bulla _Ut Saluti_, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio +VIII tinham desapparecido da scena politica. Na cadeira de S. Pedro +estava assentado o sancto padre Alexandre Borgia, que tinha assaz que +fazer em administrar piamente a igreja de Deus, para não cogitar na +sujeição politica de Portugal á sancta sé. O milagre de Ourique andava +de todo desaproveitado. Era uma lastima. O chronista olhou para o +mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro dos Galvões, e entendeu que +a apparição lhe podia ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente +da apparição, no que ninguem até ahi sonhara. Fora a causa de tamanha +mercê do céu o ter Affonso I fundado e enriquecido Sancta Cruz _com +grande devoção_. Na verdade isto era em parte mentira; porque as grandes +doações de terras, castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques +áquelles frades, são todas posteriores a 1139 e anterior á batalha de +Ourique apenas a de uma horta em Coimbra[44]. Antes, porém, da +pontilhuda dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão perto para +as cousas. A mentira util tornava-se em verdade pelo consenso dos +sabios, e sabios eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade de +explorar a tradição em beneficio dos conegos cruzios era indisputavel. +Os caseiros e emphyteutas do mosteiro, raça dura e rebelde em pagar suas +rendas e foros, não pagava, e ria-se das excommunhões; os officiaes da +coroa quebravam impiamente os privilegios da ordem, e até, +anteriormente, os villãos de Montemor tinham ousado accusá-la de haver +obtido com dolo e mentira parte das suas rendas e direitos +senhoriaes[45]. Depois, naquella conjunctura, o mosteiro estava gasto e +desbaratado das guerras que pouco antes o prior D. João de Noronha +tivera com o bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de carne furtada da +cozinha do bispo pelos criados do prior; guerras em que se deram cruas +batalhas nas praças de Coimbra, sendo necessario que o poder publico +mandasse marchar tropas para pacificar á força os dous reverendos +campeões[46]. Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes, os bens +e rendas de Sancta Cruz sob a protecção de um bom milagre, naquella +occasião desoccupado, d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios sem +damno de terceiro. Valia a pena, por isso, de achar a causa verdadeira +do milagre de Ourique, com que ninguem ainda tinha atinado. + +Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha linguagem. Ha cousas que +nenhuma equanimidade basta para dellas se falar sem indignação, ou sem +riso. É necessario escolher, e eu prefiro o ultimo quando se tracta de +embustes e miserias que já não fazem mal. V.. tomará na conta que +merecem os factos e as reflexões que no decurso desta carta lhe +submetto, e de que no seu foro intimo tirará as conclusões que julgar +razoaveis. Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado pela +imprensa que se retirava da arena da discussão. Por mais oppostas que +sejam em tantas cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica com um +homem honesto, cortez e instruido, era-me summamente agradavel. Mas +d'hoje avante, dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que não faria uma +acção boa. Até certo ponto sería ferir pelas costas um adversario leal. +Cessou por isso a nossa correspondencia. Restam mil outros meios de +falar com o geral dos homens de bem e sinceros, e de dizer ao meu paiz +as verdades em que a guerra da maioria do clero me obriga, por propria +defesa, a fazê-lo pensar. + + + + +V + +A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA + + +AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO + +(_Março, 1851_) + + +Meu amigo.--Remette-me v.. o folheto de A. C. P. (que me diz ser um +«academico» o sr. Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os +crimes, as fabulas, as contradicções, as ignorancias e não sei quantas +cousas mais, em que o peccador de mim caiu na narrativa da batalha de +Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa no seu jornal acerca desta +publicação, a qual fez, segundo v.. affirma, certo effeito, por causa +das garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por lithographia ao +folheto, como prova dos progressos da arte typographica entre nós, que é +o mais que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas. Sabe o bom +redactor da _Semana_ a primeira impressão que o folheto me causou? A que +em mim produzem muitas cousas que se publicam nesta nossa terra. +Lembrei-me da Divina Providencia, para lhe agradecer que o estudo da +nossa lingua esteja tão pouco generalisado na Europa. A reputação +litteraria do paiz ganha immensamente com isso. Dizem que não se deve +nunca desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que litterariamente +desesperava della, se não fosse a mocidade, á qual Deus queira dar +bastante amor do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a cruzar os +umbraes da Academia. A dizer a verdade, meu amigo, começa a fallecer-me +a paciencia e a vontade para discutir cousas que nos escorregam para o +chão quando tentamos submettê-las á analyse. Demais, do que eu tracto +agora é de pôr quanto antes na imprensa o quarto volume da _Historia de +Portugal_, que, em consciencia, me tem dado mais que pensar do que todas +as criticas academicas, presentes e futuras. Com a mão no coração, +digo-lhe que, _exceptis excipiendis_, o areopago censorio mais +inoffensivo, mais divertido até, que ha em todo o mundo é a Academia de +Lisboa. Collectivas ou individuaes, as censuras que partem d'alli nem +sequer arranham a supposta victima. Se não escorchassem, por via de +regra, a grammatica e o senso commum, não só seriam suaves e morbidas; +seriam até, permitta-me dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em chim, +tomavam-nas por obra de algum collegio de mandarins letrados do celeste +imperio. O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso no genero: é um +botaréu da maravilhosa fabrica das memorias e actas academicas tirado do +seu logar, e a que fizeram perder aquella parte de formosura que lhe +houvera resultado da harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa que +lastimo. + +Agora o que, tambem sinceramente, eu não esperava era achar no opusculo +certa cortezia nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que se estava +imprimindo contra mim um cartapacio mourisco. Pensei que fosse obra dos +reverendos, que, tão pobres de saber e de intelligencia como ricos de +odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria a colera que os abafa. E +ainda bem! Apesar do nojo que tenho desses pobres-diabos, não quero que +elles estourem, porque são meus irmãos, como em gira jesuitica se +costuma dizer a cada punhalada que se dá no proximo. Estou já tão +affeito aos improperios da imprensa devota, á caridade dos nossos +khatibs e ul-máis, que não esperava no imminente opusculo senão mais uma +prova a favor da minha crença na atrophia moral e intellectual da +maioria do nosso clero, crença que elle se encarregou de demonstrar até +a saciedade. Enganei-me: era obra secular; academica, porém cortez; +cortez (entendamo-nos) até o ponto de não usar o auctor das phrases dos +prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto de respeitar o meu +caracter moral, porque ahi sou accusado de _falto de sinceridade_ (pag. +10), de _critico cheio de fel_, de _criminoso_ (pag. 15), de _aviltador +do valor português_ (pag. 18). Isto, porém, pode ser violento, mas não é +immundo. Os mentecaptos indecentes são os que a minha dignidade de +escriptor e de homem me não consente refutar. Assim, ser-me-ha licito +satisfazer aos desejos do bom redactor da _Semana_ e remetter-lhe +algumas notas ácerca deste curioso papel. + +Uma explicação. Quando digo que não posso refutar mentecaptos +indecentes, não quero significar que essa guerra que se me faz, atroz na +intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar sem punição. Não sou homem +disso; mas tambem não sou homem que gaste polvora com guerrilhas. Hei de +ir buscar a seu tempo as columnas de infanteria e os macissos de +cavallaria que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão pela imprensa +contra mim são um veu que encobre, ou antes descobre por demasiado raro, +negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se a Europa catholica se +hade infeudar de novo ás corrupções da curia romana, com o seu cortejo +de jesuitas de todos os formatos, de todas as idades e de todas as +mascaras; com os seus titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas em +miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal: manda-se hostilisar em mim o +progresso das novas idéas, a independencia das opiniões, não porque eu +seja o mais forte, mas porque circumstancias, que não preparei nem +provoquei, me collocaram na primeira linha do combate. O que é certo é +que alguem se ha de enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós, ou esse +grupo, essa cousa, que por ahi anda a ajunctar quanto pó e podridão ha +no cemiterio dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida; essa cousa +hedionda, que, incapaz das ambições grandiosas, do despotismo esplendido +da Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho que ella desmente, +fulminada pela philosophia que ella detesta, depois de apurar as suas +doutrinas espirituaes nas fontes catholicas das margens do Neva, vem +refocilar-se para a peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens +atraz dos olhos buliçosos da madona de Frosinone. Aqui, no ultimo +occidente, o recontro final ha de ser mais tarde. Que a mocidade não +durma, porém! Prepare-se para os dias de prova, e talvez de tribulação, +com a severidade dos costumes, que dá a energia moral, e com a +severidade do estudo, que subministra as armas para a victoria. Por ora +pedem-nos só jesuitas; o perigo da petição não é grande. A igreja da +_Memoria_, cujas grimpas vejo d'aqui, collocada lá a meia encosta, vigia +a foz do Tejo. Os filhos de Loiola não passariam áquem da barra sem que +o sangue de D. José I gemesse nos fundamentos do templo, e este gemido +retumbaria pelo reino de Portugal, porque a imprensa tem echos. + +Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por não deshonrar esta terra: +empreguemos unidos os nossos esforços para augmentar os thesouros da +civilisação no paiz; associemo-nos lealmente a quantas idéas generosas e +puras de progresso material e intellectual surgirem no meio de nós. +Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos; mas é necessario +cumpri-los. Porque estou eu tranquillo no meio da tormenta que ruge? +Porque tenho a consciencia de os haver desempenhado escrevendo a +historia. Se transigisse com vaidades e mentiras; se vendesse a minha +penna a paixões pequenas e más; se recuasse diante de considerações +miseraveis, as horas da solidão e do silencio, que são as mais da minha +vida, não seriam tão repousadas para mim. Alumiado por essa luz moral, +que nunca devemos perder de vista, espero levar ao cabo o empenho que +tomei, até porque a historia de Portugal é uma das mais ricas em licções +para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas, e essas licções +são hoje altamente proficuas. Não ha nella, sob tal aspecto, uma só +epocha infertil, desde os tempos barbaros em que o arcebispo João +Peculiar, furioso contra o seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos +paços episcopaes deste, convertia a cathedral em estabulo dos seus +cavallos, e espalhava por terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta +colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos, em que os devotos e +pios inquisidores, depois de mandarem desconjunctar nos tractos do potro +os membros delicados das virgens hebreas, ou das tidas por taes, iam, +curvados sobre o leito da dôr, pousar mollemente os olhos lubricos nos +debeis corpos das martyres, e fartar a sua luxuria de tigres palpando +aquellas carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça de Deus põe a +penna na dextra do historiador, ao passo que lhe põe na esquerda os +documentos indubitaveis de crimes que pareciam escondidos para sempre +debaixo das lousas, elle deve seguir ávante sem hesitar, embora a +hypocrisia ruja em redor, porque a missão do historiador tem nesse caso +o que quer que seja de divina. + +E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo! O opusculo tinha-me +profundamente esquecido. + +O eruditissímo academico meu adversario declara-me inhabilitado para +escrever a historia do dominio mussulmano na Hespanha, porque não sei +arabe. + +Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo de historiador; mas +consolo-me com a boa companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam +arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal não sabia as linguas bunda, +tupinamba e iroquesa; Bossuet não sabia as setenta e duas linguas da +torre de Babel. + +O auctor do opusculo passa a demonstrar como eu não sei arabe. Não era +preciso: nas notas do meu livro estou mais que confesso. Nunca citei um +texto escripto nessa lingua, que não dissesse de que traducção me tinha +valido. + +Eis, todavia, as provas _da minha_ insciencia: + +Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem phenicia. + +E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do rio é _Ana_: e os +eruditos concordam geralmente em que a palavra é phenicia. _Guadi_, +_wadi_, ou como em mouro direito for, é árabe, e significa rio. Até ahi +chega o meu arabismo. Mas não são essas syllabas que o distinguem, +porque os sarracenos as ajunctavam a muitos _nomes proprios_ de rios. +_Guadiana_ nada mais é que o _rio Ana_. + +Segunda: Digo que _Alcacer_ significa _paços reaes_. + +E porque não o havia de dizer? Os _Vestigios arabicos_ de Moura dão-lhe +a significação de _palacio acastellado_; e eu, que não sei arabe, mas +que sei outras cousas que o auctor do opusculo ignora, affirmo-lhe que +naquella epocha o _Al-kassr_ ou _Al-kassba_ (aqui me colhe n'alguma +tropelia arabica) era isso, ou mais exactamente, um _castello +apalaçado_. Quanto ao adjectivo _reaes_, asseguro-lhe á fé de christão +(e tanto da gemma, que não entendo o alcorão) que em virtude das +instituições politicas d'aquelles tempos, assim entre sarracenos como +entre nazarenos, o _alcacer_ era necessariamente _real_, isto é, +dependente do poder publico. + +Terceira: Chamo a _Ourique_ nome proprio de logar. + +Sobre isso falaremos d'espaço. + +Quarta: Interpreto _Iman_ dignidade religiosa. + +Esta accusação deixou-me quasi academico. Para um arabista parece-me +gracejo forte de mais. Pois _Iman_ não significa dignidade religiosa? O +auctor do opusculo devia então dizer-nos se o _iman_ era algum capitão +de mar e guerra, mercador de retalho, dentista, ou que demonio era o +_iman_. Quem a mim me metteu nestes trabalhos sei eu. Foi o celebre +traductor e refutador do alcorão, Marraccio, que teve a insolencia de +dar sempre á palavra _iman_ a significação de _chefe do culto_, de +_principal sacerdote (sacrorum antistes)_[47]: foi o orientalista +Von-Hammer[48], que sabe mais das cousas mussulmanas, que toda a eschola +arabica de Lisboa desde a sua fundação até hoje: foram todas as +exposições da organisação religiosa entre os mussulmanos, não só da +Peninsula, mas de todo o mundo. + +Quinta: Digo ser _Ismar_ corrupção de _Omar_ ou de _Ismael_. + +É possivel que eu me enganasse: todavia, porque não me fez o auctor do +opusculo um favor especial; porque não me citou na historia de +Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou na de Al-Keiruani, onde +se mencionam milhares de individuos mussulmanos, um só que se chamasse +_Ismar_? Assim fico em duvida, e desconfiado de que tenhamos outra +anecdota como a d'_Iman_. + +Felizmente as provas não continuam. Se o auctor proseguisse, temo que +demonstrasse contra mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que me +punha; porque na realidade eu não sei decifrar um unico daquelles +engaços de passas, que elle lithographou ao cabo do seu opusculo. + +Passado o preambulo, o auctor annuncia que vai provar-me pelos +historiadores arabes que a batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o +_golpe fatal dado no dominio mussulmano_. Sancto breve da marca! Sempre +são mouros! Se tal affirmam, digo ao illustre arabista que não os +acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais exaggerados, não contam +tanto. O dominio mussulmano ficou como estava depois da jornada +d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para os seus estados, ao +norte do Mondego, porque sabía do officio de soldado. Sessenta annos de +lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram para expulsar de todo do +actual territorio português os mussulmanos. Apesar da celebre jornada de +1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando palmo a palmo a +Estremadura e o Alemtejo. Que _golpe fatal_ foi, portanto, esse de +Ourique? Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o proximo. + +Depois de citar o que eu refiro como introducção á narrativa da batalha, +o opusculo vem deitar-me tudo por terra com um sopro. Errei a +chronologia, os nomes dos imperadores almoravides, tudo. Oh peccador de +mim! + +Lá vai o texto do nosso academico arabico: + + + «Nada tem o facto de Ourique, succedido no reinado de + Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este Aly-Ibn-Iussuf foi + o primeiro imperador da dynastia dos morabethins e falleceu no anno + 496 da Hegira, 1103 da era Christã...» + + «Não foi, _portanto_, no reinado de Aly-Ibn-Iussuf, nem durante o + de Aly-Ben-Taxefin, que começou a pretensão do celebre El-Mohdy, + mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly, que succedeu a + Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou no reinado do III imperador e + só tomou seu maior incremento no meio do reinado do IV imperador da + dynastia dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin: logo no + reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi a batalha de Ourique, + não houve revolução, nem politica, nem religiosa, que distrahisse + as tropas; o que tudo confirmamos, convidando nossos leitores a que + leiam os capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia + Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por + Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.» + + +Transcrevi todas estas blasphemias historicas, para que se veja com +quanta razão dou graças a Deus de que a nossa lingua seja pouco +conhecida, e o que se deve esperar de uma academia onde ha destes +eruditos. Pús á vista de todos o corpo de delicto. Vamos ao auto. + +A serie dos imperadores almoravides que resulta das precedentes +passagens é a seguinte. + + + 1.^o Aly-Ibn-Iussuf 1103 (morto) + 2.^o Aly-Ben-Taxefin 1139 (batalha d'Ourique) + 3.^o Taxefin-Ben-Aly (apparecimento do Mahadi) + 4.^o Ibrahim-Ben-Taxefin. + + +Em que se funda o auctor? Que é o que cita em seu abono? + +Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia de Assaleh-Ben-Abdel-Halim, +ou Salihn Abd-Alihim, conforme for em mouro a graça de sua mercê, porque +não ha dous arabistas que escrevam um nome de gente do mesmo feitio. + +Ora os capitulos citados[49] têem apenas o pequeno inconveniente de se +referirem ás primeiras conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento +do seu dominio na Africa _na segunda metade do seculo XI_. É no capitulo +37 que se narra a primeira passagem á Hespanha de Iussuf-Ibn-Tachfin e a +victoria de Zalaka em 1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a terceira +em que Iussuf incorporou nos seus dominios os estados mussulmanos da +Peninsula, que tinham invocado o seu auxilio. Iussuf foi o primeiro +imperador almoravide d'Africa e de Hespanha. + +A serie dos imperadores, que resulta dos capitulos 39 e seguintes da +Historia de Assaleh-Abdel-halim é: + + + 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin (fallecido) em 1106 + 2.^o Aly-Ibn-Iussuf (appel. Abu-Hassan) (fallecido) em 1142 + 3.^o Tachfin-Ibn-Aly (morto em) 1145 + + +Se o meu amigo comparar isto com o que se diz no opusculo, não me ha-de +acreditar. Tem razão. É monstruoso, é incrivel, é absurdo; mas está la. +Se quizer desenganar-se, procure a versão de Assaleh pelo padre Moura +esplendidamente impressa pela Academia em papel pardo e letra safada. +Veja o que diz o historiador arabe, o que eu digo, e o que diz o +opusculo. Depois julgue-nos; e, ainda depois, faça idea do que irá pela +_Classe de Sciencias Moraes e Bellas-letras_ (ou, como quem o dissesse +em português, _e Boas-letras_) da Academia[50]. + +É assim que esta gente salva a gloria nacional e vindica a bulha +d'Ourique contra a minha má fé, contra o fel da minha critica. + +A má fé é minha. Repare bem nisso. + +Mas haverá outros textos de Abdel-halim, que tenham alguns capitulos 32 +a 36, que nos contem essas historias do opusculo? + +Na parte da _Historia do Dominio dos Arabes_ por D. J. Conde, relativa á +dynastia almoravide, o erudito hespanhol seguiu Assaleh. Esta parte do +seu trabalho ficou imperfeita e por isso deve aproveitar-se com cautela. +Todavia Conde era incapaz de commetter um erro tão grosseiro como +transtornar completamente a chronologia daquella epocha. Isto estava +reservado para um membro da nossa academia. + +Eis o resumo da chronologia de Conde quanto á dynastia almoravide[51]: + + + 1.^o Abu-Bekr-Ibn-Omar (unicamente na Africa) + 2.^o Iussuf-Ibn-Tachfin, fallecido na egira 500 + (1106-1107) + 3.^o Aly-Ibn-Iussuf, fallecido na egira 534 + (1139-1140) + 4.^o Tachfin-Ibn-Aly fallecido na egira 541 + (1146-1147) + + +A ordem dos imperadores é a mesma. Conde atraza dous annos a morte de +Aly-Ibn-Iussuf e adianta um a de seu filho. Ainda admittida a +chronologia Conde, a jornada de Ourique cai dentro do reinado de +Aly-Ibn-Iussuf; porque a Egira 534 correu de _agosto_ de 1139 a agosto +de 1140. + +Os historiadores sarracenos Ibn-Khallekan e Ibn-Al-Khatib consideram +Iussuf-Ibn-Tachfin como o fundador da dynastia almoravide. Eis a +chronologia seguida por elles: + + + 1.^o Iussuf, fallecido na egira 500 (1106-7) + 2.^o Aly, fallecido na egira 537 (1142-3) + 3.^o Tachfin, fallecido na egira 539 (1144-5)[52] + + +Já se vê que, segundo a chronologia de Ibn-Khallekan e de Ibn-Al-Khatib, +a ordem da dynastia é a mesma, e que o successo d'Ourique tambem cai no +reinado de Aly-Ibn-Iussuf. O celebre Abu-l-Feda concorda com elles. «Na +Egira de 500--diz Abu-l-Feda--morreu Iussuf-Ibn-Tachfin, _amir +al-moslemin_. Succedeu-lhe Aly seu filho (Aly-Ibn-Iussuf) que tomou o +titulo de _amir al-moslemin_, como seu pae[53].» + +Resta apontar o que resulta da narrativa do principal historiador arabe +do dominio mussulmano Peninsula, Al-Makkari, ácerca da dynastia +almoravide: + + + 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin 1052 a 1106 + 2.^o Aly-Ibn-Iussuf 1106 a 1143 + 3.^o Tachfin-Ibn-Aly 1143 a 1145 + 4.^o Abu-Ishak-Ibrahim-Ibn-Tachfin 1145 a 1147[54] + + +Que tal parece ao meu amigo a erudição arabica da parte sarracena da +nossa Academia? + +Nos arabes vê-se que se encontra exactamente o contrario do que se lê no +opusculo. Certamente o auctor descubriu essa deliciosa historia dos +almoravides, que nos conta, nos escriptores christãos coevos ou quasi +coevos. Sempre era gente que se confessava. Mouro e judeu mentem por +officio. Vejamos: + +A chronica dos godos nas suas referencias aos imperadores almoravides: + + + 1.^o Iussuf (batalha de Zalaka) 1085 aliàs 1086 + 2.^o Aly-Ibn-Iussuf (cerco de Coimbra) 1117[55] + + +A conimbricense: + + + 2.^o Aly (cerco de Coimbra) 1117[56] + + +Rodrigo de Toledo, o escriptor do seculo XIII mais instruido na +litteratura arabe e christã da Peninsula, estabelece para a dynastia +almoravide d'Africa e de Hespanha, que diz ter durado 55 annos desde a +Egira 484 até a Egira 539, a seguinte chronologia: + + + 1.^o Iussuf-Ibn-Tachfin (principio da dynastia) 1091-2 + 2.^o Aly-Ibn-Iussuf + 3.^o Tachfin-Ibn-Aly (fim da dynastia) 1144-5[57] + + +Ao _digno_ academico restam talvez para estribar as suas famosas +historias _almoraviditicas_ (na falta de arabes e christãos) alguns +historiadores tartaros, mongoles, ou chinas. + +É provavel que seja assim. + +Perdôe, meu amigo, estas extensas citações. Era necessario dar uma +prova, que não admittisse subterfugios, dos deploraveis, por não dizer +vergonhosos, extremos a que o desejo de me combater tem levado certas +pessoas. + +O auctor do opusculo negou, com a mesma sem cerimonia com que +transtornou a serie dos imperadores, que o Mahadi ou Al-mohdi +(Mohammed-Ibn-Tiumarta) começasse a revolução almohade no reinado de +Aly, e que nos ultimos annos deste reinado, isto é, na epocha da batalha +ou recontro de Ourique, essa revolução houvesse tomado um incremento +irresistivel. Todavia são os mesmos escriptores arabes que contam o +successo como eu o narrei: conta-o o proprio Abdel-halim, em que elle +finge estribar-se com uma citação _falsa_; _falsa_, digo, porque tanta +confusão involuntaria é moralmente impossivel. A narrativa de +Abdel-halim é, que em 1120 appareceu o Mahadi; que de 1122 a 1125 já se +achava com forças para vir assentar campo perto de Marrocos; que, tendo +fallecido em 1130, tomou o commando dos almohades Abdel-mumen, o qual +foi acclamado imperador em 1133, continuando guerra incessante contra os +almoravides até os destruir[58]. É elle que, depois de narrar as +victorias de Tachfin-Ibn-Aly contra os christãos desde 1126 até 1137, +refere que logo passara á Africa[59]. Conde diz-nos que fora chamado por +seu pae ameaçado da ultima ruina[60]. Habil e feliz general contra os +christãos, esta causa da sua partida parece confirmada, não só pela +razão, mas tambem pelo texto de Al-Khatib[61]. Um monumento christão, +escripto por individuo do mesmo seculo, a _Chronica Adefonsi +Imperatoris_, confirma e particularisa o facto. Narrando os successos de +1138, diz que Tachfin levara comsigo, retirando-se para a Africa, até os +mosarabes e os prisioneiros christãos para os oppôr aos almohades[62]. +Deixaria acaso em Hespanha a flor das tropas almoravides, quando a +defesa de Marrocos o obrigava a converter em soldados os proprios +nazarenos captivos? Destroem-se estes factos com citações falsas? Como +se explica o abandono d'Aurelia, suppondo a existencia de uma grande +batalha dada (exactamente na conjunctura do cerco) no occidente da +Peninsula entre almoravides e portugueses, quando de Africa se não +dispensava um soldado para a salvação d'aquella chave da fronteira +musulmana? Que se póde dizer que tenha um vislumbre de senso commum +contra o que a este proposito reflecti? + +Quem dá documentos de má fé? Sou eu ou os meus adversarios? + +Ia-me irritando! Em boa paz, o nosso academico arabe não vale a pena +disso. + +Depois d'estas façanhas, o auctor do opusculo prosegue com accusações +curiosissimas. Fora extenso de mais citá-las todas. Uma d'ellas é que +chamo á serie dos imperadores almoravides _dynastia lamtunense_ para +explicar o apparecimento das mulheres no recontro de Ourique, e para +taxar de covardes os mesmos almoravides. O auctor faz a mercê de +dizer-me que o vocabulo _lamtunense, ou antes almolatamenense_, não +serve para indicar covardia. Devéras? E eu que não caía em nada! Isto é +incrivel, amigo redactor da _Semana_. Digo mais: era impossivel haver +quem fizesse d'estas, se não houvesse academias. Chamei aos principes +almoravides _dynastia lamtunense_, ou _lamtunita_, porque todos os +historiadores arabes, Ibn-Khaldun, Abdel-halim, Al-Makkari, Al-Khatib, +Al-Keiruani, lh'o chamam, e chamam-lh'o para indicar valentia ou +covardia tanto como eu. Chamam-lh'o porque, entre as raças bereberes que +serviram de nucleo ao imperio almoravide, a de Lamtuna ou Lamta[63] era +a principal, e porque Iussuf, o primeiro imperador almoravide, era da +tribu de Masufah pertencente a essa raça. Aquella phrase do opusculo +«_ou antes almolatamenense_», é deliciosa. Como o nosso arabista +precisava de mostrar a sua pobre erudição, fez pouco mais ou menos este +raciocinio: «o auctor da Historia de Portugal denomina os principes +almoravides _lamtunenses_; eu digo-lhe, _ex auctoritate qua fungor_ que +era melhor chamar-lhes _almolatamenenses_»: ora como esta denominação +provinha de terem os almoravides cuberto o rosto com veus de mulheres +n'uma batalha, e possa crer-se um epigramma contra o seu esforço, embora +elle não usasse de tal vocabulo, devia usar, para eu poder reprehendê-lo +por isso; porque é uma violencia negar a um pobre escholar arabico a +occasião de mostrar erudições _reconditas_. Sabe o meu amigo o que isto +faz lembrar? Faz lembrar o prégador que punha o barrete na borda do +pulpito, encarregava-o do papel do diabo, e depois convencia-o á sua +vontade. Vamos a outro exemplo. No opusculo mourisco affirma-se contra +mim: + +Que os principes almoravides usaram do titulo de _amir-el-muminin_[64]. + +A prova disto é curiosa, como tudo o mais. Os almoravides usaram-no, +segundo o opusculo sarraceno, porque Abdel-halim diz que foi usado +duzentos annos antes pelos Benu-Umeyyah (ommiadas) soberanos arabes de +Cordova. Não o diz Abdel-halim; di-lo toda a gente; mas que tem o que +fizeram os ommiadas com o que fizeram os almoravides? Isto, meu amigo, é +incrivel! Acima transcrevi uma passagem de Abu-l-Feda, pela qual se vê +que o titulo dos soberanos lamtunenses era _amir-al-moslémin_ (principe +dos mussulmanos). Ouçamos agora o sr. Gayangos: «Não consta da +historia--diz elle--que Iussuf-Ibn-Tachfin ou algum dos seus successores +tomasse nunca o titulo de _Amiru-l-muminin_, que era reservado para o +khalifa, ou vigario do propheta no oriente. Contentaram-se pelo +contrario, ao que parece, com o titulo mais modesto de +_Amiru-l-muslemin_, ou _principe dos moslems_ (de Africa e de Hespanha). +Os proprios sultões de Cordova, postoque descendentes do tronco dos +Benu-Umeyyah, e tão intimamente ligados com a familia do propheta, não +se atreveram a tomar este titulo honorifico emquanto a familia de Abbás +não chegou a ser quasi extincta na Asia pelos turcos; e ainda assim, o +uso desse titulo foi reputado sacrilego por alguns theologos de Cordova +e d'outras cidades da Peninsula[65]». Effectivamente Abu-l-Feda nos +certifica que Abderrahman III «foi o primeiro entre os principes +ommiadicos do Andalus que se arrogou o titulo de _amir-al-muminin +proprio do Khalifa_[66].» + +Isto não são citações falsas. Por ellas póde ver o meu amigo com quanta +exacção eu escrevi ácerca dos almoravides, embora não fosse esse o +objecto essencial do meu trabalho, e com quanta leveza foi escripto o +opusculo sarraceno destinado a refutar-me. Não fica, porém, aqui o +negocio. O academico auctor do opusculo accusa-me de ignorancia da +lingua arabe e de historia por dizer que os principes da dynastia +almohade adoptaram o titulo de khalifa ou de _amir-al-muminin_, porque, +diz elle, o de khalifa só se deu aos imperadores do oriente, e estas +palavras khalifa e amir-al-muminin significam diversas cousas. Agradeço +a ultima novidade; mas eu não escrevia grammatica; escrevia historia, e, +politicamente, as duas expressões eram synonimas. Que se pensaria de +quem accusasse d'ignorancia de grammatica e de historia aquelle que, +falando do imperador da Russia, dissesse «_o czar ou autocrata_?» Por +outra parte para o academico auctor do opusculo affirmar que o titulo de +khalifa se deu ou não se deu aos principes mussulmanos do occidente, +ainda tem que estudar muito a historia moslemica d'Africa e de Hespanha, +cujos rudimentos parece ignorar. Se ler o capitulo 5 do livro 6 +d'Al-Makkari, ahi achará que o imperador ommiada de Cordova Abderrahmam +III «foi o primeiro soberano da sua familia que assumiu _os titulos de +khalifa e de amiru-l-muminin_». Se tambem quizer saber se os principes +almohades tomaram ou não o titulo de khalifas, leia Al-Keiruani, e lá +achará este periodo: «El-Mohdi _elevou o khalifado_ para os que lhe +succederam[67]», e mais adiante, onde se conta certa anecdota do +primeiro imperador almohade, Abd-el-mumen, lerá que um poeta da côrte +dizia a outro: «Até quando importunarás tu _o khalifa_?»; porque é de +advertir que naquelle tempo havia poetas impertinentes, como hoje ha +criticos academicamente originaes. + +Mas, em consciencia, meu amigo, eu ás vezes merecia ser feito socio +effectivo da classe de sciencias moraes e bellas-letras! Pois ha +simpleza maior do que citar ao auctor do opusculo sarraceno tanta +mourisma, quando o proprio Abdel-halim, que, segundo parece, constitue +toda a matalotagem arabica do _digno_ academico, se lhe rebella e +tumultua dentro do bornal litterario em que o traz mettido? E senão, +ouçamo-lo. As palavras mandadas ensinar ao leão e ao papagaio, de que +Abdel-mumen se serviu para os almohades o acclamarem imperador, +traduzidas por Moura na sua versão de Abdel-halim, são «_as victorias e +o poder competem ao califa Abdelmumen_[68]». É verdade que o auctor do +folheto, que repete a historia do leão e do papagaio, não sei para me +provar o que, traduz, em logar de _califa_, _successor_. Mas aqui para +nós, meu amigo, postoque eu não saiba arabe, apostava que isso foi uma +esperteza, e que naquella expressão _algalifatu_ (ou, como Moura lê, +_el-califa_) anda o que quer que seja de _khalifa_. + +Estou com pressa de chegar ao fim, porque temo fazer uma carta tamanha +como o opusculo, o que seria para o publico, em vez de uma desgraça, +duas. Mas faltou-me o animo quando fui a saltar por cima do precioso +paragrapho 8, que o auctor destinou para me provar que Ourique não é +nome proprio de logar, como eu disse, mas sim appellativo, que significa +_adversidade_ ou _infortunio_. + +Sou, porém, nesta parte absolvido do peccado, porque quem me deitou a +perder foi o padre Moura, conforme resa o folheto. Ao menos, valha-nos +isso! A consequencia, todavia, immediata deste importante descubrimento, +que o digno academico fez, é exactamente a contraria da que elle +desejava. Se assim é, torna-se impossivel achar jámais uma passagem de +auctor arabe que se refira com certeza ao conflicto de Ourique. Embora +até aqui não tenha apparecido essa passagem, podia ainda apparecer; mas +desde que a palavra ourique (tirei-lhe o _O_ maiusculo, não pensem que +teimo em fazê-la nome proprio) significa só _adversidade_ ou +_infortunio_, o caso muda de figura. O combate que Affonso I teve, no +fossado de julho de 1139, com os mouros do Alemtéjo é um facto provado +pelos testimunhos que eu colligi; o que não está provado, nem se ha de +provar nunca, é que elle fosse um successo importante. N'algum escriptor +arabe, ainda inedito, que particularisasse muito os acontecimentos de +Hespanha naquella epocha podia vir mencionado o recontro do _campo de +Ourique_; mas como o auctor do opusculo não consente que esse pobre _o_ +tome as dimensões de letra maiuscula, qualquer passagem que appareça ha +de ser traduzida pelos arabistas da seguinte maneira: «Houve em 1139 um +combate entre os moslems e os infieis _no campo da adversidade ou do +infortunio_». Ora como nesse anno, do mesmo modo que nos antecedentes e +consequentes, houve muitos recontros entre os christãos e os +mussulmanos, segue-se que não saberemos a que conflicto allude o auctor +arabe; porque todos os campos de combate são de adversidade ou +infortunio para um dos contendores, e talvez para ambos. Realmente este +modo de defender a importancia da batalha de Ourique é galantissimo. + +O que, porém, é verdadeiramente academico e digno do pincel de Molière é +o que pondera o auctor do folheto sobre o erro de Moura ácerca da +etymologia de Ourique. «É bem clara--diz elle--_ainda para os que não +sabem arabe_, a nenhuma analogia que se nota _com o ouvido_ entre +_orique_ e _arique_». Agora, quer o meu amigo saber com que palavra +arabe _orique_ se parece muito? É com _araka_. Isto não precisa de +commentario. Nas contendas dos nossos rapazes ácerca da Stoltz e da +Novello, quem devia dar a sentença definitiva era o illustre arabista. +Proponham a questão á Academia. + +Mas a cousa mais sublime, talvez, de todo o folheto vem neste mesmo +paragrapho. É uma novidade que escapou a todos os etymologistas e +ethnographos. Na translação das palavras de umas linguas para as outras, +ellas se transfiguram com a irregularidade que necessariamente resulta +da ignorancia das multidões, que são quem ordinariamente faz essas +adopções de termos peregrinos. As proprias transformações das linguas +são assim, e assim foi que a latina se transformou nos modernos idiomas +da Europa occidental. Nestas mudanças e adopções não ha letra que não +possa alterar-se; e basta ter uns rudimentos de linguistica para não o +ignorar. Agora ouça o meu amigo um mysterio da lingua arabe: «Moura--diz +o opusculo--foi buscar a raiz de tal vocabulo no verbo _araka_, cuja +primeira letra radical, que é um _alif, não soffre a conversão_ para a +letra _o_ nas linguas europeas». Isto quer dizer que aos rudes +portugueses do seculo XII, que escorchavam sem piedade quantas letras, +quantas palavras celticas, phenicias, gregas, romanas, germanicas lhes +caíam nas unhas, era prohibido tocar no _alif_, especie de +_noli-me-tangere_ arabico. Certamente, meu amigo, no alcorão ha uma sura +intitulada «_Dos escorchamentos etymologicos_» onde o propheta diz: +«Todo o infiel nazareno que bulir na sancta letra _alif_ para della +engenhar um dos seus maldictos _ós_, vai preso». Foram peccados meus que +me impediram d'aprender arabe: teria com isso evitado deixar-me embair +por aquelle herege do padre Moura, que pelo que vejo, era um pessimo +sarraceno. + +Depois vem uma longa chicana (perdoe, meu amigo, o gallicismo, mas como +isto ha de ser lido pelo digno academico arabista membro da classe de +sciencias moraes e bellas-letras, elle entenderá assim melhor a phrase); +vem uma longa chicana sobre as palavras _fossado_, _correria_, +_entrada_, e não sei que mais, em que o auctor desenvolve uma erudição +pasmosa em diccionario de Moraes. Chamei fossado á expedição de Affonso +I em 1139, porque todas as etymologias do mundo não podem fazer com que +uma cousa deixe de ser o que é. O fossado era uma expedição que se fazia +em regra todos os annos no começo do verão ás terras inimigas: +questionar sobre isto não sería mais do que mostrar-se profundamente +ignorante das nossas cousas antigas. _Correria_ é um nome que cabe ao +fossado tão bem como _expedição_; porque correria é uma especie do +genero expedição, mais nada. Quem faz uma expedição, fossado, ou +correria no territorio inimigo, entra nelle (emquanto o alcorão ou a +Academia não mandarem o contrario) e por consequencia faz uma _entrada_. +Não é uma miseria, além disso, affirmar-se n'um papel que tem a +pretensão de ser cousa séria, que eu me contradigo, porque, chamando +correria ao fossado de 1139, exprimo ao mesmo tempo a idéa de que os +mussulmanos hespanhoes buscaram em si proprios recursos para atalhar o +passo aos invasores na falta das tropas almoravides, visto que (diz-se +ahi), sendo a correria um acto repentino, os mussulmanos não podiam +precaver-se? Que resposta séria se póde dar a isto? Fique-se entendendo +que quando um paiz é invadido rapidamente, os habitantes deixam-se matar +como carneiros e não se unem para se defenderem, ou que os soldados que +fazem correrias, não andam, mas voam, ou vão em aerostatos descer aonde +e quando querem sem que ninguem os veja passar. Dizer que no fossado de +Ourique não houve audacia, a ser como eu o narrei, embora as tropas +almoravides, ou a melhoria dellas, faltassem, é cousa tão absurda, +quanto é certo que essa expedição importava uma longa marcha de +cincoenta leguas (que tantas irão de Coimbra ao campo de Ourique) quasi +toda por paiz inimigo, porque, como bem observa a chronica dos godos, +Ourique ficava _no coração das terras mussulmanas_. Qualquer cabo de +esquadra sabe que difficuldades se offerecem á marcha de tropas, embora +disciplinadas (como de certo não eram as de Affonso I) atravez de um +paiz excitado contra essas tropas pelo fanatismo politico e religioso. O +principe português deixava, além disso, na sua retaguarda, por um e por +outro lado, logares importantes fortificados, e bem ou mal guarnecidos, +taes como Santarem, Lisboa, Alcacer, Elvas, Evora, etc.; o que tornava a +volta de Affonso I aos proprios estados duplicadamente arriscada. Emfim, +meu amigo, eu deixo nesta parte aos homens intelligentes avaliar se o +fossado de Ourique, com as poucas circumstancias que delle sabemos, +embora não tivesse as dimensões que lhe attribuiram depois, foi ou não +foi um acto de bastante ousadia. + +De passagem, meu amigo, deixe-me protestar contra um falso testimunho +que me levanta o auctor do opusculo, quando, citando textualmente as +minhas palavras, me attribue o uso do vocabulo _derrota_ por _destroço_ +ou _desbarato_ (dos sarracenos em Ourique). Não escrevi o meu livro para +se inserir nas actas da Academia: escrevi-o para o publico português, e +por isso na sua lingua, ao menos até onde eu a sabía. + +Vamos á questão principal. Para a tractar não me parece que fosse +necessario accumular previamente tanta inexacção e tanto desproposito. +Eu tinha affirmado que os diversos escriptores arabes que nos +transmittiram a historia daquella epocha guardaram silencio ácerca da +batalha de Ourique. O auctor do opusculo sarraceno firma a proposição +_contraria_, isto é, que nesses diversos escriptores arabes se +encontram, não só vestigios della, mas tambem a sua _descripção_, e as +suas _consequencias terriveis_. + +Algum de nós, pois, engana o publico; algum de nós commette uma acção +indigna de homens de letras affirmando uma cousa opposta á verdade. Eu +consultei os historiadores arabes que escreveram a historia do dominio +mussulmano na Peninsula, e que estão traduzidos. Era essa unicamente a +minha obrigação, porque não sei arabe. O auctor do opusculo _devia_ +tê-los visto antes de escrever, e _podia_ ter lido outros, porque diz +que sabe arabe. Se a minha narrativa fosse conforme com os primeiros +comparados com os monumentos christãos, e o auctor achasse que esses +não-traduzidos os desmentiam, devia provar que o seu testimunho era +preferivel ao delles e ao dos monumentos christãos, sendo accordes uns +com outros. Sem isso nada tinha feito. Ora eu estribei-me na narrativa +de Abdel-halim, como a haviam vertido Moura e Conde, e esta narrativa +concorda em geral com a chronica latina de Affonso VII, escripta ainda +no seculo XII ou nos começos do XIII. Das tres fontes historicas resulta +ou não resulta o que eu disse? Resulta ou não resulta, que antes de +julho de 1139 Tachfin-Ibn-Aly tinha partido para Africa, levando comsigo +as tropas que pôde, sem exceptuar os mosarabes e os captivos christãos? +É verdade que o cerco de Aurelia ou Cazorla durou _de abril a setembro +ou outubro_[69]? É verdade que os seus defensores pediram debalde +soccorro a Tachfin, _que se achava então em Africa_? São, portanto, bem +deduzidas as minhas inferencias de que é absurdo imaginar que havia +trezentos ou quatrocentos mil mouros para saltarem por cima do exercito +do imperador Affonso VII, e virem dar uma batalha campal a Affonso +Henriques, e não os havia para descercarem uma praça daquella +importancia? É para responder negativamente a estas perguntas de um modo +tão categorico como eu as faço, que desafio o auctor do opusculo +sarraceno. + +Ao que se colhe dos monumentos christãos e mussulmanos coevos ou quasi +coevos[70] que textos exquisitos e reconditos vem, porém, oppôr o +_digno_ academico? Vejamos: + +Um mouro chamado Hamed-el-Nabil, _que viveu no principio do seculo_ +XVII, vindo a Hespanha, escreveu um itinerario. Nelle diz, falando da +epocha em que succedeu o caso d'Ourique, as palavras seguintes, que vou +transcrever, porque gósto de apresentar o corpo de delicto: + +«E dizem alguns dos sabios precedentes _sobre_ o governo da Andaluzia +(_sic_) que ella muito se engrandeceu: _e na verdade conquistou com boa +posse_ (_sic_) muitos dos logares _os_ (_sic_) mais notaveis: e foi isto +depois que l'Enrick _derrotou_ os mussulmanos; (_sic_) não persistiram +estes depois disso no paiz senão quando obravam pacificamente; e _por +isso_ (_sic_) ficaram os christãos neste paiz senhores de suas terras e +de suas riquezas (_sic_), (_sic_), (_sic_).» + +O meu amigo ha de ficar espantado quando souber que nesta salsada, que +até certo ponto simula lingua portuguesa, ha, _não só claros vestigios_ +da batalha de Ourique, mas tambem a _descripção della e das suas +consequencias_. Pois saiba que ha. Saiba tambem que, um ou dous mezes +antes de se imprimir o opusculo sarraceno, se dizia pelos cantos, que na +Academia se lera uma cousa mourisca, que excitara o enthusiasmo d'alguns +daquelles padres-conscriptos, porque ahi se me provava com textos arabes +que eu não soubera o que tinha dicto quando falei com tanta irreverencia +e falta de patriotismo nesse facto d'Ourique. Rogia-se de um papel +achado n'uma tenda de Marrocos, que desmanchava todas as minhas opiniões +aereas. No fim de contas era o sr. Hamed, que no principio do seculo +XVII tinha escripto em mouro o que o meu amigo ahi vê em meio-mouro. +Realmente a cousa é séria, sobretudo exornada com as erudições e +commentarios do traductor, a quem Deus dê alguma inclinação mais +proveitosa do que esta de traduzir para lingua franca os itinerarios dos +viajantes marroquinos. + +Pretende-se nesses commentarios que o mouro Hamed, na phrase relativa a +l'Enrik (que é possivel seja Affonso Henriques) se refira aos mesmos +escriptores a quem, sob o nome de sabios precedentes, allude no +principio do periodo, e que por sabios precedentes se devem entender +antigos escriptores sarracenos, porque os arabes servem-se da palavra +_ulmá-i_ para significarem os _seus_ historiadores. Vamos por partes. Se +o sr. Hamed escreveu _sabios precedentes_, é porque já tinha dicto quem +elles eram: nesse caso, em vez de uma dissertação ácerca da palavra +_ulmá-i_, não seria mais simples e mais a proposito dizer-nos o +traductor os nomes delles? Teriamos a Bibliotheca de Haji-Khalfah +traduzida por Fluegel; teriamos a Bibliotheca de Casiri; teriamos as +notas de sr. Gayangos á versão de Al-Makkari, notas preciosas como fonte +de erudição arabica; teriamos, emfim, estes ou outros recursos para +sabermos que importancia deveriamos dar aos _sabios precedentes_ como +auctoridades para os successos do seculo XII, que era o que importava. +Hamed ou trinta Hameds, que vivessem em tempos modernos ou houvessem +vindo a Hespanha e repetissem o que por cá tivessem ouvido ácerca do +recontro d'Ourique ou de outra qualquer cousa succedida 400 ou 500 annos +antes, provariam tanto a favor della como a _precedente_ traducção prova +que o auctor do opusculo sabe grammatica e conhece a indole da nossa +lingua. Suppondo, porém, que Hamed se refira no principio do periodo a +historiadores arabes, e que esses historiadores sejam assaz antigos, o +que é certo é que a phrase relativa a l'Enrik não é dos taes _sabios +precedentes_, mas do proprio Hamed-el-Nabil. Creio que o meu amigo sabe +bastante da lingua franca para ver que desde as palavras «_e na +verdade_» não são os _sabios precedentes_, mas sim o proprio Hamed, em +corpo e alma, quem fala; quem parece querer confirmar com o seu +testimunho o dicto delles, se é possivel perceber aquelle _imbroglio_ +que o traductor alli arranjou. Mas a curiosidade maior é que o proprio +texto está provando que Hamed, longe de alludir ao facto d'Ourique ou a +facto algum especial, se refere em geral ás victorias e conquistas de +Affonso I, (se é que se refere a isto) as quaes ninguem contesta, e que +eu particularisei com a miudeza e exacção, a que os _sabios +precedentes_, os _ulmá-i_ da nossa terra, não tinham chegado. Se Hamed +se referisse a Ourique falando do desbarato dos mussulmanos por l'Enrik, +tudo o mais que vem na passagem seria um rol de mentiras; porque as +consequencias materiaes desse recontro foram nenhumas. Como já disse, +Affonso Henriques voltou aos seus estados sem conquistar um palmo de +terra, e foi annos depois que submetteu a Estremadura e o Alemtéjo, +ficando no paiz os mussulmanos que curvaram a cabeça ao jugo christão. + +Aqui tem o bom redactor da _Semana_ o que é e o que vale o papel da +tenda de Marrocos, que devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos +monumentos coevos, e em argumentos de congruencia irresistiveis. É o +dicto vago e obscuro de um viajante moderno, dicto que se torce para se +fazer com que o pobre mouro diga aquillo em que nem sequer pensou. Que +terra esta nossa, meu amigo, em que o auctor de um livro serio é ás +vezes obrigado a acceitar o triste encargo de refutar taes miserias! + +O famoso texto do viajante marroquino é reforçado com um contraforte +tirado do Abdel-halim do uso particular do auctor do opusculo; digo do +uso particular, porque nem em Conde, nem em Moura se encontra semelhante +passagem, nem no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos ver o +texto _inedito_ de Assaleh ou de Ibn-Abi-Zara, que o meu critico trouxe +á luz do dia: + +«E neste anno 533 (8 de septembro de 1138 a 27 d'agosto de 1139) +desbaratou o general Taxefin as multidões dos christãos _nos campos de +Attibbat_; e fez perecer delles um numero extraordinario; e levou de +seus prisioneiros _seis mil captivos: em consequencia do que_ partiu +para Marrocos, e á sua chegada _lhe saiu ao encontro seu pae_, o +imperador dos mussulmanos, _que ficou em profundo desgosto e cheio de +grande susto_.» + +No capitulo 33 do Karttás traduzido pelo padre Moura não vem esta +passagem. Entretanto não devo crer que o auctor do opusculo a +inventásse. Cumpre suppôr que elle se serviu de algum exemplar mutilado, +viciado, ou extremamente incorrecto da obra de Abdel-halim. Na versão de +Moura é no capitulo 40 que se contém as ultimas acções do Tachfin na +Hespanha, antes de partir para a Africa. Eis o que ella nos diz: + +«No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7 de septembro de 1138) passou o +principe Taxefin de Hespanha para a Mauritania, depois do ter combatido +e tomado de assalto _a cidade de Segovia_, levando comsigo _seis mil +captivos_; e tendo chegado a Marrocos _veio seu pae encontrá-lo_ com +grande pompa e _se alegrou com elle_, etc.[71]» + +As duas passagens são, se não identicas, por certo parallelas. Tracta-se +em ambas da partida de Tachfin para a Africa, depois de obtido um +triumpho em que captivou seis mil homens. A differença está nas +circumstancias, e _na data_. Qual dessas se deve preferir? Vejamos. + +Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente: mas põe-na como +immediata á reducção de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro de +1136 a 18 de septembro de 1137) e assim concorda com Assaleh quanto ao +anno da partida, visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins de 531, a +saída do principe almoradive para a Africa devia verificar-se já em 532, +isto é, nos fins de 1137 ou nos principios de 1138. + +Com esta data concorda o auctor da chronica de Affonso VII, mencionando +a partida de Tachfin para além-mar entre os successos de 1138, e +descrevendo a mensagem que lhe enviaram á Africa os defensores de +Aurelia durante o cerco posto a esse castello por Affonso VII _em abril +de_ 1139. O chronista christão vai de accordo na chronologia com os +historiadores arabes sem os conhecer, e limitando-se a narrar os factos +que _ouvira ás pessoas que os tinham presenciado_[72]. + +Não quero suppôr, torno a repetir, que o auctor do opusculo forjasse a +passagem que cita, ou que alterasse a data da hegira para provar que +Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139. N'uma questão em que se tem +procurado associar á idéa de que caí n'um erro historico a de que tive +em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento fora duplicadamente +torpe. Todavia o _digno_ academico ainda assim tem d'escolher entre a +ignorancia e a má fé. Se conhecia a chronica de Affonso VII, a narrativa +de Conde e a versão de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas: +primeira, provar que essas auctoridades em que eu me estribava eram +insufficientes; segunda, mostrar que o seu manuscripto tinha uma +importancia, uma auctoridade tal, que as annullava. Onde o fez? Como o +fez? Acaso só porque se mandaram escrever n'uma pedra lithographica uns +poucos de caracteres arabicos ou o que quer que seja, provou-se que as +palavras que resultam da sua união são indubitaveis como o evangelho, ou +sequer que é preferivel a leitura do codice de que se tiraram á leitura +de codices já conhecidos e traduzidos por outros arabistas, que pelo +menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo? + +Á vista destas simples e claras reflexões, o texto de Abdel-halim citado +pelo digno academico vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil. +Eu, porém, acceito-o por um momento. Vamos a discuti-lo em si. + +Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no campo da total destruição +(Attibbat) as multidões dos christãos; que aprisionou seis mil homens, e +que partiu para Marrocos, com o que seu pae ficou cheio de desgosto e de +susto. Onde se fala aqui em Ourique? Para entender _Ourique_ por +_Attibbat_ o auctor faz o seguinte raciocinio:--«a batalha de Ourique +foi de _total destruição_ para os mussulmanos, logo _Attibbat_ é +Ourique:»--e querendo provar que o recontro de Ourique foi uma grande +batalha, faz outro raciocinio do mesmo jaez:--«Attibbat quer dizer +Ourique, logo em Ourique houve uma _total destruição_.»--Todos os +argumentos, todas as erudições do folheto nesta parte, embora por outras +phrases, reduzem-se a isso; reduzem-se a duas petições de principio. +Depois, não é admiravel o desgosto e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu +filho voltar á Africa depois de uma victoria em que desbarata os +christãos, mata muitos, e leva seis mil captivos? Felizmente para Aly, +Tachfin não levou, em vez de seis, doze mil captivos, e não deixou o +resto passado inteiramente á espada. Se tal acontece, o pobre amir +el-moslemin caía fulminado por uma apoplexia. Até o auctor do opusculo +achou a cousa absurda. Mas como saíu da difficuldade? Dizendo-nos que o +texto arabe tanto póde significar «_Tachfin desbaratou os christãos_» +como «_os christãos desbarataram Tachfin_.» Estava eu tão desgostoso por +não saber arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias, quando +veio esta declaração consolar-me. A historia é impossivel na lingua +arabe; porque a mesma phrase significa branco e significa preto; exprime +os dous factos mais oppostos. Os traductores de historias sarracenas tem +andado a debicar com a Europa: onde dizem que tal batalha foi ganhada +por A contra B, podiam ter dicto com a mesma veracidade que fora ganhada +por B contra A. Isto, meu amigo, não se discute: está discutido por si. + +Depois de vermos sacrificada a logica e até o simples senso commum á +necessidade de achar um texto arabe que prove a importancia da batalha +de Ourique, o que é mais divertido é o completo esquecimento em que o +auctor do opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim _particular_, +deixa os monumentos christãos coevos que referem o successo. A chronica +lamecense, a conimbricense, a dos godos, todas dizem que o general +sarraceno era Ismar (_præside rege Smare_). Se Ismar não significa +Tachfin como Attibbat significa Ourique, segue-se que ou mentem as +chronicas coevas, ou mente o Abdel-halim _particular_, que diz ter sido +o general dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a passagem citada não se +refere ao successo de Ourique. Daqui parece-me que não ha fugir. A +ultima explicação é sem duvida a verdadeira. Essa passagem é +evidentemente a que Moura traduziu, e Conde substanciou; passagem que se +combina chronologicamente com a narrativa da chronica de Affonso VII, e +que no opusculo apparece alterada nas circumstancias e na data. Quem a +alterou, e para que fim? Isso pertence a Deus, que vê os corações, e nos +ha de julgar a todos no dia de juizo. + +Depois, como accommodar os factos, que o auctor do opusculo acceita do +seu Abdel-halim particular em demonstração da grandeza da batalha, com o +que nos diz a chronica dos godos e com o resultado daquella jornada? +Pois os mussulmanos são postos em fuga ao primeiro recontro, por um +troço de cavalleiros escolhidos (_electi milites_) ficando +entrincheirados os restantes dos poucos soldados (_paucis suorum_), de +Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva seis mil prisioneiros? Que +digo eu, seis mil! Segundo o commentario do digno academico eram muitos +mais. Aquelles seis mil foram escolhidos um a um, no meio do grande +vagar que para isso tinham os sarracenos fugitivos, entre milhares de +christãos de rebotalho, aos quaes iam cortando os pescoços. As causas +determinantes da escolha (que eu deixarei nas paginas do opusculo, +porque não as consentem as paginas da _Semana_) deviam tornar os bons +dos sarracenos demasiado pechosos na selecção, e pelas minhas contas, +para apurarem seis mil como lhes eram precisos, não podiam deixar de +refugar os seus cento e noventa quatro mil, esmando pelo baixo. A mim +parece-me, salvo o respeito devido a um representante da parte sarracena +da Academia, que era melhor ter traduzido do Abdel-halim particular, +(lithographando tambem no fim do opusculo o original mourisco e +subministrando assim mais abundante alimento á pasmaceira dos parvos) +uma carta de Tachfin dirigida ao principe português, escripta ao começar +a retirada, e concebida pouco mais ou menos nos seguintes termos: «Meu +Affonso-Ibn-Errik. Estou capaz de renegar Mafoma com a grande róta que +me déste. Vou para Africa amuado, metter-me em casa de meu pae, que se +chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os _ulmá-i_ academicos da tua terra queiram +á fina força chamar-lhe Aly-Ben-Taxefin. A guerra é guerra, e uma +batalha perdida ou ganhada não é motivo para nos desestimarmos. Eu +preciso de levar comigo em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes +christãos airosos e bempostos. Se os podéres dispensar, far-me-has nisso +particular favor e uma acção de cortezia. Só Deus é Deus e Mohammed o +seu propheta. Aos 26 de zilkhada da Hegira 533.»--Com isto ficava tudo +explicado. Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade do +_Pharaó obdurado_, embora fingida; porque, tendo Christo acabado de lhe +asseverar que havia de vencer sempre os sarracenos, não só podia fazer +presente a Tachfin de todos os soldados imberbes do exercito, mas tambem +de quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse alli á mão vasculhando +o acampamento, os quaes, se não prestassem para mais nada, prestariam +para bichos da cozinha do amir-el-moslémin. + +Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia, cujos membros fossem +capazes de escrever opusculos destes, dissolvia-se para se reconstruir +com outros elementos, aproveitando só, e com grandes cautellas, o pouco +que ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia, especie de congregação +bernarda que come e dorme, acodem-lhe ás vezes á pelle estes tumores +litterarios, estas secreções eruditas, que, longe de a matarem, lhe +fortificam a compleição. Deus lhe dê uma longa vida. + + + + +DO ESTADO + +DAS + +CLASSES SERVAS NA PENINSULA + +DESDE O VIII ATÉ O XII SECULO + + +1858 + + + + +I + + +Por mais que a tradição de antigas malquerenças e o ciume da nossa +autonomia nos affaste dos outros povos da Hespanha, dos quaes os eventos +politicos fizeram, mais ou menos forçadamente, uma só nação, é certo +que, apesar de todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes, nas +opiniões, nos costumes, nas tendencias moraes de ambas as nações se está +revelando a cada passo uma origem commum. Postoque cada uma dellas tenha +defeitos especiaes, como os ha de provincia para provincia, dão-se +alguns tão nossos e tão hespanhoes, que de per si, sem outros +adminiculos, provam de sobejo essa communidade de origem. + +Esta reflexão occorreu-me naturalmente ao começar um escripto, em que +tenho de dizer poucas palavras ácêrca do homem a quem elle é dirigido. +Ha na Academia da Historia, de Madrid, um modesto empregado, envolvido +na obscuridade da sua situação, sem cargos publicos, sem condecorações, +sem pingues sinecuras, e de que talvez se podesse dizer--sem pão--se a +Academia não o houvera encarregado das suas collecções litterarias. Este +empregado modesto, este homem socialmente obscuro, é todavia um dos +maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais profundamente e com mais +san consciencia (dote raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica e +tão pouco explorada mina das antigas instituições e costumes da +Peninsula, isto é, do que na historia della ha mais serio, mais +importante e mais difficil d'estudar. Falo de Thomás Muñoz y Romero, do +auctor da _Colleccion de Fueros Municipales_, obra notavel, que, sendo +de um homem só, honraria uma corporação litteraria, que a houvesse +emprehendido e executado. E todavia, esse livro importante foi +interrompido, segundo me affirmam, por falta de protecção; e Muñoz y +Romero ainda nada mais é hoje do que era ha dez annos, quando publicou +aquelle seu primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca da +Academia da Historia! + +É o que provavelmente succederia ao livro e ao homem nesta terra, neste +fragmento da Peninsula chamado Portugal, irmão gemeo desse maior +fragmento, que chamam especialmente a Hespanha. + +Na _Revista Española de Ambos-Mundos_, nos numeros correspondentes a +novembro de 1854, appareceram successivamente dous artigos, assignados +por Muñoz y Romero, sobre o estado das pessoas nos reinos de Asturias e +Leão nos primeiros seculos posteriores á invasão dos Arabes. Escriptos +como aquelles, manifestações tão brilhantes de verdadeira sciencia, não +são frequentes em publicações periodicas, ainda além dos Pirenéus. Li-os +com avidez e interesse sempre crescentes. Ahi encontrei que aprender, e +sobretudo pude emfim assentar as minhas idéas ácêrca da origem, ou antes +da denominação dos malados e das maladias, ponto em que a propria +opinião que adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal não me +satisfazia completamente. Vi, porém, que discordavamos n'uma questão +capital d'historia; no modo de apreciar o estado das classes servis nas +Asturias e Leão durante os seculos immediatos á reacção christan, e tive +o desgosto de não poder, apesar de todas as considerações do sr. Muñoz, +abandonar a propria opinião para adoptar a sua. Ou seja por um modo +errado de interpretar os antigos monumentos, a que o meu espirito se +tenha affeito, ou porque a razão esteja do meu lado, é certo que nenhum +dos muitos documentos que o sr. Muñoz oppõe ás minhas opiniões me +pareceu contrariá-las: alguns, pareceu-me que até serviam para as +corroborar. Desde esse momento entendi que não sería absolutamente +inutil ao progresso dos estudos historicos da Peninsula expôr as duvidas +e reflexões que me occorriam sobre a materia, deixando depois aos homens +competentes comparar os dous systemas e escolher entre elles. + +Quando pensava em realisar este designio, sobrevieram acontecimentos que +durante quasi dous annos me forçaram a abster-me dos trabalhos +historicos. Affastado por tão largo tempo dos meus habituaes estudos, +se, á custa de serios desgostos, aprendi muito a respeito dos homens e +das cousas do meu tempo e do meu paiz, esqueci tambem muito do que sabía +ou cria saber ácêrca dos homens e das cousas do passado. Aberto para mim +de novo o caminho dos trabalhos historicos pela força da opinião em +lucta com a immoralidade do poder, renovei esses abandonados estudos, +mas renovei-os como um dever de consciencia, como um serviço que me +exigem, como o cumprimento de um contracto tacito com o publico. O amor, +diria antes a religião ardente, com que cultivava a sciencia da +historia, perdi-o no campo de batalha. Escrever é hoje para mim o mesmo +que ser vereador, jurado, ou membro de um conselho de districto: é um +encargo e mais nada. No horisonte das minhas ambições, e Deus sabe se +falo sincero, só vejo o dia em que possa depôr a penna, e sumir-me em +completa obscuridade. Será esse o melhor da minha vida. Na situação +d'animo em que por tanto tempo me achei, a questão dos servos na +Peninsula durante os seculos medios esqueceu-me completamente. Veio +recordar-m'a, porêm, uma circumstancia casual. Tendo de examinar um +volume da _Revue Historique du Droit Français et Étranger_, passou-me +pelos olhos um artigo de M. de Rozière (julho e agosto de 1855) sobre o +escripto do sr. Muñoz, escripto que o illustre professor, a quem devo +mais de uma prova de benevolencia, resume com a sua habitual lucidez, e +cuja doutrina acceita como a mais verosimil. A doutrina, porêm, +expressamente combatida pelo auctor do opusculo sobre o estado das +pessoas nos reinos de Asturias e Leão, nos primeiros seculos depois da +invasão arabe, é unicamente a minha. É de mim que elle declara discordar +completamente sobre a natureza da servidão na monarchia néo-gothica +desde o VIII até o XII seculo. A verosimilhança da sua opinião torna +portanto menos provavel para o illustre professor da _École des Chartes_ +a doutrina que estabeleci. Se a questão pendesse tão sómente entre mim e +o sr. Muñoz, demorar, ou, até, pospôr completamente a defesa da minha +theoria ácêrca da servidão n'aquelle periodo não teria grande +inconveniente. Os documentos invocados pelo sr. Muñoz e as suas +ponderações, e bem assim os documentos que eu citei e as conclusões que +delles deduzi estão ao alcance dos homens de letras da Peninsula que se +dedicam aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal e de +Hespanha encerram centenares de outros monumentos ainda não estudados, +que poderiam lançar nova luz sobre o assumpto. Nada mais facil, até, do +que conduzirem-nos novas investigações, a mim ou ao sr. Muñoz, a +abandonar o proprio systema, porque ambos buscamos sinceramente a +verdade. Mas desde que a materia do debate, transpondo os Pirenéus, foi +exposta a uma luz que não creio verdadeira, por um homem como Mr. de +Rozière, e a um publico privado dos meios de apreciar por si proprio os +documentos e raciocinios em que se fundam as duas opiniões oppostas, +entendo que é do meu dever publicar as observações que se me offerecem +relendo os artigos do sr. Muñoz, observações que, feitas ha dous annos, +quando estas materias eram quasi a unica occupação do meu espirito, +seriam sem duvida mais efficazes para a defesa de um systema que ainda +hoje me parece ser o que melhor se estriba nos antigos documentos, e que +ao mesmo tempo melhor os explica. + +Antes de tudo cumpre determinar bem a materia controversa e +circumscrevê-la. Tanto eu como o sr. Muñoz falámos da servidão no +periodo em que por successivas transformações o homem de trabalho, o +homem escravo, o homem _cousa_ dos romanos chegou a ser a pessoa civil, +a pessoa livre, o cidadão mais ou menos humilde dos tempos modernos. +Deixando de parte maiores ou menores differenças de opinião entre nós +quanto aos tempos da monarchia gothica, ou que se possam deduzir das +nossas palavras quanto aos tres ultimos seculos da idade média, +limitar-me-hei a expôr o que contradictoriamente entendemos ácerca da +situação das classes servis do VIII até o XII seculo. Escrevendo um +artigo e não um livro, procurarei affastar todas as questões secundarias +que se ligam a esse grande facto da transformação das classes +trabalhadoras, e abstrahindo das causas e consequencias da situação em +que se acharam os servos depois da invasão arabe e da reacção asturiana +(successos coevos e quasi simultaneos) em tudo o que não fôr +indispensavel para a clareza da materia, reduzirei o discurso ao que a +razão persuade e os monumentos confirmam ácerca do facto geral da +transformação gradativa da população serva naquelle periodo de quatro +para cinco seculos. + + + + +II + + +O estudo reflectido dos historiadores arabes e dos monumentos christãos +da épocha da conquista e do dominio sarraceno tem feito sentir que essa +conquista e esse dominio extranho foram, na historia das invasões e da +sujeição de raça a raça, de povo a povo, entre os factos de semelhante +ordem, um dos que custaram á humanidade menos tyrannias, menos lagrymas +e menos sangue. Tem-se dado o devido desconto ás exaggerações das +chronicas e á linguagem de certos escriptores christãos contemporaneos, +aonde auctores mais modernos foram buscar os lineamentos dos seus +quadros de terror, quando ahi mesmo se encontram as provas de que os +factos não correspondem ás expressões genericas com que é descripto como +um dos mais crueis flagellos o predominio dos sarracenos na Peninsula. +Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio dos godos, a sociedade +wisigothica ficou. As provincias ou as cidades que acceitaram sem +resistencia o jugo dos novos senhores não tiveram que padecer senão as +consequencias dos grandes movimentos militares sobre qualquer +territorio, as violencias accidentaes e individuaes durante a lucta. Em +geral, a ordem das relações civis, e uma parte das publicas continuam a +subsistir do mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio das altas +funcções da administração do Estado é que mudam. Nas provincias +meridionaes da Hespanha fica, até, por algum tempo um simulachro do +imperio gothico, o reino de Theodemiro, tributario mas livre, que se +incorpora obscuramente depois nos dominios do khalifa. No meu livro +busquei desenhar com fidelidade essa nova situação; dar aos successos o +seu verdadeiro valor, estribando-me nos monumentos coevos, e fazer +sobresair a população mosarabe (godo-romana), tão esquecida em geral +pelos historiadores. + +Entre os mosarabes a situação dos servos devia ser a mesma que entre os +godos antes da conquista. Não é provavel que esta formula da sociedade +civil se alterasse quando todas as outras se mantinham. Nessa parte a +conquista arabe não trouxe o que trazem sempre os grandes abalos +politicos, um progresso de civilisação. + +Succedeu o mesmo com a reacção asturiana? Podia succeder? Pús este +problema a mim mesmo, e resolvi-o negativamente; porque a razão e os +documentos me forçavam a essa solução negativa. + +O levantamento de Pelaio não chegou a ser uma revolução: foi uma +resistencia: resistencia feliz nos primeiros passos e que não tardou a +converter-se n'um perigo serio para o dominio mussulmano. Dentro de +poucos annos a reacção obscura de um punhado de soldados godos fundava +uma monarchia christan e independente, que se contrapunha ao islamismo +triumphante, que estabelecia fronteiras, embora variaveis, e que tomava +ou fundava logares fortes, onde os novos senhores da Hespanha +encontravam dura repulsa ás suas diligencias para suffocar esta perigosa +entidade politica. Da desproporção das forças entre as duas potencias +mussulmana e christan, se o nome de potencia póde dar-se aos estados de +Pelaio e dos seus immediatos successores, resultava necessariamente um +facto. Todo o homem válido devia ser chamado ás armas nas Asturias, mas +de um modo em que interviesse a espontaneidade individual. Não alcanço +sequer como podesse ser de outro modo. A servidão dos godos; os senhores +levando os servos armados ao combate, sem crença, sem ardor, sem +interesses moraes ou materiaes que defender, como nos tempos gothicos, +sería um facto que não sei como poderia dar em resultado a fundação e +engrandecimento da monarchia de Oviedo. + +Na verdade, com o tempo, as instituições wisigothicas foram-se +restaurando á medida que se engrandecia o novo reino, que uma parte do +territorio deixava de ser perenne campo de batalha, e que a segurança, +maior ou menor, favorecia o maior ou menor desenvolvimento da +agricultura e de uma especie de industria. Uma parte da população +mosarabe, ou pelas migrações tanto forçadas como espontaneas, ou pela +aggregação successiva de territorios habitados por ella, incorporava-se +gradualmente na sociedade néo-gothica, e, trazendo comsigo a +jurisprudencia antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo +sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma influencia, digamos assim, +reaccionaria. Mas o que não podia era destruir a força das +circumstancias; o que não podia, n'uma sociedade em cuja origem, em cujo +amago estava a resistencia, a espontaneidade, a liberdade, era +restabelecer a servidão pessoal antiga em toda a sua plenitude. + +Supponhâmos um nobre, e até um simples _possessor_, acolhendo-se ás +Asturias, a Oviedo, nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos +successores. Como arrastará elle comsigo os servos que o rodeiam? +Invocará a força publica, a auctoridade mussulmana para os constranger a +acompanharem-no? Sería absurda a hypothese. Esse nobre, ou esse +_possessor_ ha-de descer á persuasão; ha-de falar de manumissão, ha-de +approximar de si o homem envilecido, ha-de recorrer aos afagos, ás +promessas. Ficar onde se acha é para o servo a liberdade, quando o +senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso crer que nelle estão +inteiramente mortos todos os instinctos humanos? + +Supponhâmos a conquista; a accessão de territorio. O mosarabe senhor de +servos, que se incorpora por esse facto na sociedade ovetense, acha +actuando energicamente nesta o sentimento da liberdade e da +espontaneidade individuaes, as classes servis armadas, os antigos laços +hierarchicos quebrados em grande parte. Esse facto não influirá em nada +nas suas relações com os proprios servos? Depois, além, pouco além, +estão os castellos sarracenos, a administração mussulmana. Se elle não +affrouxar os rigores da servidão; se não ligar a si o homem de trabalho +por algum interesse, por algum motivo racional, será difficil que esse +homem o abandone, e que conquiste pela fuga, e talvez pela mudança de +fé, a sua emancipação? + +Se os documentos nos não provassem que a servidão de gleba fora o passo +immediato dado pelas classes infimas para a liberdade, a razão, longe de +nos persuadir que a servidão se mantivera em Oviedo e Leão como nos +tempos gothicos, far-nos-hia antes acreditar que ella fora substituida +pelo colonato espontaneo. O colonato, eis o grande meio de ligar o homem +de trabalho á terra, por este instincto, por este amor quasi connubial, +que une a mãe commum ao individuo que a faz fructificar. Da servidão +gothica, porém, para a adscripção havia um passo gigante, e as classes +servis eram assás rudes para não perceberem toda a differença do +colonato á adscripção, porque essas differenças são pela maior parte de +ordem moral. Na practica, materialmente, sobretudo em tempos de bruteza +e violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante, as distincções +entre a posse e o uso da terra pelo colonato ou pela adscripção não +podiam ser demasiado sensiveis. O sentimento, a aspiração do individuo +que cultivou o solo, que construiu a choupana, que plantou a arvore é +principalmente o não separar-se do campo, da choupana, da arvore. A este +sentimento correspondem ambas as formulas de consorcio entre o homem e a +terra, mais ou menos imperfeitamente, não tanto em virtude das condições +theoricas de cada uma das duas formulas, como do estado mais ou menos +civilisado da épocha em que se applicam. Acaso a historia não nos +subministra provas de oppressões exercidas sobre colonos espontaneos, e +consagradas até por contractos, tão barbaras como as que padeciam os +adstrictos á gleba, quando já a adscripção do homem tinha cedido o campo +á servidão exclusiva da terra? + +Assim comprehende-se como a transformação do servo em adscripto podia +resultar da situação em que se achou a monarchia ovetense-leonesa no +seculo VIII, em vez de resultar della o colonato livre, que á primeira +vista a razão nos pinta como mais provavel, e que de feito o era, se +abstrahirmos das circumstancias sociaes para só attendermos ás +politicas. + +Mr. de Rozière, expondo o debate entre mim e o sr. Muñoz, diz: «Esta +transformação (a da servidão para a adscripção) tinha-se realisado de +todo quando os christãos se refugiaram nas Asturias sob o mando de +Pelaio? Não o crê o sr. Muñoz, e combate, neste ponto, a opinião dos +historiadores de maior credito. Os exemplos, em que esteia o seu pensar, +dão a este um alto gráu de verosimilhança. Nelles se vêem escravos +destinados ao serviço domestico; uns são cozinheiros, padeiros, +sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se no commercio e servem nas +lojas de venda. Nada ha fixo nas suas funcções, que dependem do capricho +do dono. A sorte dos escravos agricolas não é mais segura: uns +trocam-nos por cavalgaduras; outros entregam-nos aos mussulmanos em +resgate de captivos: todos podem ser separados da propria familia e do +campo que cultivaram». + +N'esta exposição ha uma inexacção chronologica: a doutrina que eu +estabeleci não é que a adscripção se tinha já substituido á servidão +quando occorreu o alevantamento de Pelaio: é que este alevantamento e a +fundação do reino de Oviedo trouxeram de necessidade essa transformação. +Sejam quaes forem a differença ou a semelhança entre o meu modo de +pensar e o sentir do sr. Muñoz sobre a servidão gothica, não é ahi que +está a profunda divergencia entre nós. A divergencia completa refere-se +aos tempos posteriores á invasão dos arabes. É, até, o que se deduz do +titulo do opusculo do sr. Muñoz: é a essa épocha que verdadeiramente se +refere o trabalho publicado na _Revista de Ambos-Mundos_. Eis as suas +palavras: «Um escriptor... do vizinho reino de Portugal estabelece a +doutrina de que a servidão se distinguia, _na épocha de que tractamos_, +em estar vinculada ao solo, não admittindo outra classe de servos senão +a dos adscriptos á gleba. A seu vêr não existia nenhuma outra servidão +pessoal senão a dos arabes captivos na guerra, o que cremos não ser +conforme com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte, isto é, que o +serviço domestico dos senhores e nobres parece ter sido desempenhado, +sob o dominio leonês, por membros das familias adscriptas, e que este +serviço se converteu n'um acto espontaneo no seculo XIII. Se os homens e +familias podiam contra sua vontade ser separados da gleba, onde se +achavam estabelecidos, para o serviço domestico, não podiam chamar-se +adscriptos, porque este nome traz comsigo a idéa de inamovibilidade do +colono do torrão que cultiva. Além d'isso, a sua opinião não concorda +com os monumentos da nossa historia.» + +N'outra parte do opusculo do sr. Muñoz leem-se as seguintes passagens, +em que elle estabelece positivamente a sua theoria relativa á servidão +dos tempos neo-gothicos. «A condição dos servos era indubitavelmente a +de cousas. Podiam ser vendidos ou dados como um animal domestico, como +uma alfaia... Esta opinião, que sustentámos n'uma obra publicada ha +annos, foi impugnada pelo sr. Herculano n'uma extensa nota sobre o +caracter da servidão na monarchia néo-gothica... Na monarchia +néo-gothica continuaram os servos a ser o mesmo que na dos godos... E se +em Asturias e em Leão se encontram vestigios de servidão diversa da dos +adscriptos, poderão julgá-lo os que examinarem os documentos que já +publicámos e os que damos agora á luz.» + +Effectivamente aos documentos impressos na _Colleccion de Fueros +Municipales_, o sr. Muñoz ajuncta muitos outros tendentes, segundo crê, +a corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar na apreciação delles, +me seja permittido fazer breves reflexões. + +O sr. Muñoz, limitando o debate aos textos dos documentos pospôs os +factos sociaes e politicos de que deduzi, digâmos assim _à priorì_, a +necessidade de uma profunda alteração das classes servis nas origens da +sociedade néo-gothica. Os factos podem não ser como eu os expús, ou as +consequencias que delles tirei ser inexactas, ou finalmente essas +consequencias não ter tido força bastante para mudar a situação +d'aquellas classes: podem peccar de muitos modos as largas observações +que fiz a este proposito no terceiro volume da Historia de Portugal, e +que tentei resumir em poucos periodos deste modesto trabalho. Mas seria +licito deixar ou esquecidas ou inconcussas essas ponderações? O methodo +que segui foi estudar os acontecimentos, examinar qual devia ser a sua +influencia na condição dos servos, e verificar se os documentos +confirmavam _à posteriori_ as illações deduzidas dos mesmos +acontecimentos. Bem sei que, prevenido por essas illações, era possivel, +era até facil, se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos; não +poderia, porém, o sr. Muñoz, interpretando-os sem attender aos factos +geraes, ás consequencias naturaes dos successos historicos, ás leis +moraes que regem as phases das sociedades, dar-lhes uma significação +diversa da verdadeira? Foi, se não me engano, o que de feito lhe +succedeu. + +É essa justamente uma das difficuldades capitaes dos trabalhos +historicos relativos á idade media. O historiador tem de attender +constantemente á acção e á reacção mutuas dos factos politicos e dos +factos sociaes uns sobre os outros para d'ahi deduzir factos +desconhecidos; tem de substituir por illações fundadas nas leis que +actuam nas sociedades humanas, independentes da vontade dellas, o +silencio tantas vezes inopportuno dos monumentos. Quando estes existem e +são genuinos, claros e precisos, sem duvida constituem o guia mais +seguro para determinar os factos, e se as illações que tirámos os +contradizem, é necessario confessar que os principios eram inapplicaveis +á hypothese, ou que se applicaram mal. Mas, abstrahindo da questão de +genuinidade, são a clareza e a precisão qualidades vulgares nos +documentos dessas épochas tenebrosas? O sr. Muñoz sabe tão bem como eu +quão raros são os que achamos com taes condições; quantos annos, quantas +vigilias é necessario applicar ao estudo dessas fontes historicas para +nos habituarmos a comprehendê-las. Á difficuldade, que resulta das +referencias a cousas vulgares no tempo em que o documento se redigiu, e +que actualmente são desconhecidas ou conhecidas imperfeitamente, +ajuncta-se a lingua barbara, ás vezes horrivelmente barbara, que nelles +se empregava, mistura monstruosa de latim de todas as epochas com uma +linguagem vulgar que hoje se pode reputar morta, tão transformada se +acha nas linguas modernas da Peninsula: accresce a isto a differença +profunda entre os homens daquelle tempo e os do nosso, no modo de +conceber e exprimir as idéas; ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel, +para vermos as cousas da idade media através do prisma dos habitos, das +opiniões, dos costumes, e direi, até, das preoccupações actuaes. +Subjugar esta tendencia é difficil; porque presuppoem um esforço de +abstracção, de que não são capazes ás vezes os mais robustos espiritos. + +Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta ainda a vencer o que resulta +da comparação dos proprios documentos, especialmente quando nelles +estudamos as instituições, a organisação da sociedade. É ahi que o +talento historico tem de passar por mais dura prova, e onde o +discernimento nas apreciações precisa de ser mais subtil. A idade media +não procedia sempre como nós das idéas geraes para a applicação +especial, ou antes possuia poucas idéas geraes. Os costumes, as +instituições, os usos, os factos tinham principalmente o caracter +individual, local. Essas poucas idéas geraes que havia eram pela maior +parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias nas +doutrinas, a contradicção frequente nos factos. Na verdade o senso +moral, a tendencia instinctiva para a generalisação produziam a maior +parte das vezes em contraposição ao desordenado, ao repugnante, as +analogias ou a identidade de factos, quando se davam as analogias ou a +identidade de circumstancias; mas o phenomeno era mais casual do que +intencional, e nem por isso faltavam as excepções, a desharmonia, quando +as paixões, os interesses ou a inexperiencia vinham augmentar a confusão +natural dos tempos barbaros. Saber deduzir os caracteres geraes de uma +épocha, debaixo dos seus diversos aspectos, não dos principios que +guiavam os homens na vida practica, porque a maior parte das vezes não +os havia, mas dos factos isolados, dos monumentos especiaes; differençar +a regra da excepção, regra e excepção, que não raro existem só por uma +abstracção para nós, e que não existiam para elles, eis a summa +difficuldade no estudo dos documentos, da legislação, e das memorias +historicas da idade média, mas difficuldade que cumpre superar para se +escrever de modo util a historia daquellas obscuras éras. + +Longe de mim a pretensão vaidosa de ter navegado sem naufragios nesse +mar d'escolhos; mas seja-me ainda permittido duvidar de que tal +infortunio me occorresse na questão do estado dos servos do VIII até o +XII seculo; seja-me licito por emquanto suspeitar que fiz fazer um +progresso á historia da Peninsula, collocando á sua verdadeira luz a +situação dessa classe durante aquelle periodo. + +Como já disse, o sr. Muñoz, abstrahindo das considerações _à priori_ que +fiz a semelhante respeito, limita-se a combater a minha opinião e a +propugnar a sua com os factos que elle crê resultarem de um grande +numero de documentos que invoca: limitar-me-hei tambem por isso a +apreciar esses documentos e a examinar o que elles provam, recorrendo +sómente a outros quando o julgar indispensavel para estribar melhor as +minhas affirmativas. + + + + +III + + +Estabelecendo a doutrina de que o servo continúa a ser na monarchia de +Oviedo e Leão o que era entre os godos, o sr. Muñoz funda-a n'uma serie +de factos, que em seu entender resultam dos documentos e caracterisam a +condição do escravo, a posse e dominio absolutos do homem sobre o homem, +a servidão na sua fórma mais completa e humilhante, a do homem-cousa, a +do homem animal de trabalho. Estes factos consistem na venda, doação e +troca dos individuos sem dependencia de um contracto ácêrca do solo em +que elles habitam; em serem arrebatados nas guerras privadas os colonos +de herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas, reduzidos á +escravidão dos raptores e vendidos por estes como escravos; na entrega +dos servos christãos aos sarracenos como preço de resgate de nobres +captivos (pag. 5 a 7)[73]; em exercerem os servos os diversos misteres +do serviço domestico e os officios mechanicos, sendo parte de taes +misteres incompativeis com o cultivo do solo; em viverem alguns nos +coutos de igrejas e mosteiros obrigados a serviços geraes, isto é, a +quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12 a 13). Excluidos da +representação em juizo pela lei (wisigothica), que não admittia o seu +testemunho senão á falta de outras provas, não tinham acção para +perseguir um delicto contra a propria pessoa ou contra os filhos; ao +dono competia sollicitar a indemnisação do damno padecido pelo servo +como de cousa sua. No caso de homicidio, era elle quem tambem obtinha a +compensação pecuniaria; e do mesmo modo se o servo matava, feria, ou +atacava propriedade alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e seg.). +Os filhos de um servo e de uma serva de diversos donos eram pessoalmente +divididos entre elles (pag. 24 e 25). + +Taes são os factos sociaes que o sr. Muñoz apresenta como contrariando a +minha opinião: esses factos estriba-os nos documentos cujas passagens +correlativas transcreve, referindo-se outras vezes aos monumentos por +elle já publicados na _Colleccion de Fueros_, ou a alguns que se +encontram em outros escriptos, principalmente nos appendices da _España +Sagrada_. + +Se o meu animo não fosse sincero; se eu não quizesse trazer á evidencia +o erro em que me parece laborar o sr. Muñoz, limitando-me ao que menos +importa, á defesa do meu livro, facil me seria annullar as illações +tiradas dos documentos invocados contra mim, visto que o sr. Muñoz não +nos mostra, nem talvez lhe sería possivel mostrar, que elles se referem +a servos de raça e não a prisioneiros de guerra, a sarracenos captivos +nas continuas luctas entre os reis de Oviedo e Leão e os principes +mussulmanos, ou aos filhos e descendentes desses captivos[74]. Um ponto +em que estamos ambos de acôrdo é que a sorte destes era a de verdadeiros +escravos. Das chronicas de Sebastião de Salamanca, de Sampiro, do +Silense e de outros vemos que o systema de exterminio adoptado a +principio pelos immediatos successores de Pelaio não tardou em ser +modificado, e que milhares de captivos vinham successivamente caír nos +ferros da escravidão, ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os +pelos seus guerreiros. Uma parte dos edificios religiosos alevantados +por Fernando-magno foram construidos por esses desgraçados, salvos da +morte por uma politica menos deshumana que a dos barbaros reis das +Asturias. + +Com um monumento, porém, tão incontroverso como explicito, eu provei[75] +que ainda no meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes, aprisionados +com as armas na mão pelos soldados dos principes christãos, era analoga +á dos crentes do islam, sendo como elles reduzidos á escravidão. Não é +crivel que a sua sorte fosse melhor nos seculos anteriores. Ainda +suppondo que os documentos citados pelo sr. Muñoz se devessem entender +em geral como elle pretende que se entendam, ninguem poderia affirmar +que os nomes gothicos a que ahi se allude não fossem sempre e em todos +elles de captivos mosarabes ou de filhos seus e não de mouros +convertidos ou não convertidos. Tambem me parece que poderia limitar-me +a advertir que, fundando-se a minha opinião em muitos documentos, que o +sr. Muñoz não se encarrega de interpretar de um modo acorde com a sua +doutrina, e tendo, alêm disso, a meu favor as illações que tirei dos +successos politicos, poderia considerar todos esses diplomas a que elle +recorre apenas como manifestações das violencias, das excepções; como +mais uma prova da falta de caracteres constantes, de regras geraes +absolutas nos factos sociaes de uma épocha de barbaria e de +transformação. + +Mas estas soluções, que talvez bastassem ao debate, não bastariam á +minha consciencia: poderiam abonar uma opinião, aliás estribada em +outros fundamentos, mas deixariam certa duvida no espirito dos que +estudassem o assumpto. Desçamos, por isso, á analyse dos factos e +documentos a que o sr. Muñoz recorre para assentar a existencia da +escravidão pessoal como regra nos quatro primeiros seculos da monarchia +leonesa. + + + + +IV + + +A venda, troca e doação dos individuos da classe servil sem dependencia +de um contracto relativo ao solo em que habitam é o primeiro facto que +affirma o sr. Muñoz, e que estriba nos seguintes documentos: + +1.^o Carta de doação á sé de Oviedo por Affonso II em 812. Incluem-se +entre as dadivas _mancipia, id est, clericos sacricantores_, dos quaes +um é presbytero, outro diacono, e os mais simples _clericos_, talvez +ostiarios, psalmistas, exorcistas, etc. Alguns, declara-se terem sido +comprados pelo rei. Os outros _mancipia_ são seculares, declarando-se +tambem que alguns foram havidos por compra. Os nomes tanto de uns como +de outros são godos. + +2.^o Carta de dote de 887. O noivo doa á esposa, além de alfaias, bens +semoventes e dinheiro, dez _pueros_ e dez _puellas_, 30 villas (aldeias +granjas) as quaes diz serem situadas _in Nemitos_, e enumera-as +_Generoso_, _Vivente_ etc. + +3.^o Doação de marido a mulher, de 1029. Doa, entre outras cousas, +_mancipios et mancipiellas quos fuerunt ex gente hismaelitarum et +agareni_, os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros nomes arabes. +Além destes, doa-lhe _de avolengarum criazone parentum_ varios +individuos cujos nomes parece serem todos godos. + +4.^o Carta de agnição de 962 em resultado de uma demanda entre o +mosteiro de Cella-nova e o conde Ordonho Romaniz. Versava a questão +sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde tirar _homines et +hereditates de jure monasterii volens eos ad servitutem abdigare_. +Apresentaram os monges os seus titulos perante elrei, e quando iam a +provar, diz o sr. Muñoz, que o rei Ramiro dera os homens que o conde +usurpava, e o bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o conde +supplicou aos magnates que obtivessem dos monges darem-lhe as duas +villas em prestamo vitalicio, _absque homines in adtonitum_, no que os +monges convieram. + +5.^o Carta de agnição de 1074, em resultado da demanda entre o mosteiro +de Cella-nova e a condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro +tirado do testamento (predio ecclesiastico) de Vanate dez homens, os +quaes dera ao mosteiro de Porcária. Replicava o abbade de Cella-nova que +_de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum fuit istum tale verbum_. +Julgou-se a favor do abbade. + +6.^o Doação de 1094 feita á sé de Lugo por Suario Moniz de varias +_villas cum sua criacione et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz +et suos filios_. + +7.^o Carta de arrhas de 1108 em que o noivo doa varios bens de raiz, e +alêm disso, um cavallo baio e _uno homine de creacione_. + +8.^o Doação do mosteiro de Sobrado em 1118 feita pela rainha D. Urraca a +Fernando Peres e a seu irmão com todos os termos e coutos antigos e suas +pertenças, _et cum sua criacione, servos et ancillas, exceptis +quibusdam_. + +9.^o Memoria da divisão de Rovoredo, sem data, caractéres do seculo +XIII. Na opinião do sr. Muñoz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo +Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome godo) que fora visavô de +Diogo Erit. Este foi a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira +de Ardio Dias, uma de duas irmans, que, herdando Rovoredo, haviam +dividido entre si o predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz +(provavelmente herdeiro ou representante de Vermudo Cresconiz) e levou-o +comsigo. Seguiu-se uma manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que +terminou por uma composição, em virtude da qual ficou Diogo Erit em +Rovoredo e foi dada em trôco delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias. + +Taes são os documentos de doação, vendas e escambos, exclusivamente de +individuos, que o sr. Muñoz cita em prova da inexacção da minha +doutrina. + +No 1.^o documento peço que se note que as pessoas doadas são denominadas +_mancipia_, e não _servos_, e que entre elles um é presbytero, outro +diacono, e outros simples clerigos; que os seculares são tambem +denominados _mancipia_, e que todos elles tem nomes godos. Pergunto: +tolerava a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula naquella +epocha, que homens servos, e que continuavam a ser servos, doados ou +vendidos depois a bel-prazer de seus donos, fossem elevados não ás menos +importantes funcções do culto, mas á ordem do presbyterado e ainda do +diaconado? Não era impossivel acumular as condições da servidão e do +sacerdocio? Basta abrir o resumo dos canones da igreja d'Hespanha +publicados por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos da impossibilidade +desta associação monstruosa. Todavia o facto da venda de um presbytero, +de um diacono e de outros clerigos deu-se no principio do seculo IX, +como o prova este documento. Não haverá, porêm, atraz desse facto outro +ou outros que o expliquem? + +A designação de _mancipium_, applicada a individuos dos mais elevados +gráus do sacerdocio, o presbyterado e o diaconado, é não menos singular. +Notei mais de uma vez no meu livro[76] que a palavra _mancipium_, entre +os godos, sem deixar de se tomar ás vezes na significação lata de servo, +significava de ordinario o servo infimo, o _escravo_, o individuo +reduzido á ultima degradação; significava antes uma _situação_ de +aviltamento do que uma _condição_ originaria. São notaveis a este +proposito dous logares do codigo wisigothico, a lei que tracta dos +_escravos dos servos fiscaes_, e a que tracta dos _mancipia_ dos judeus, +quer _ingenuos_, quer servos. Antes de mim já Masdeu tinha feito com +pouca differença a mesma observação. Entre os romanos _mancipium_ era +synonimo de _servus_, mas a origem dos vocabulos era diversa: _servus_ +de _servire_; _mancipium_ de _manu captum_, do homem aprehendido, do +prisioneiro reduzido á á escravidão. Evidentemente a designação de +_mancipium_ serviu a principio para indicar o captivo, o individuo a +quem se deu a vida, que se lhe podia tirar, para o collocar na situação +de um animal de carga, de uma alfaia; representou um facto accidental, +personalissimo, differente da servidão herdada, da servidão de raça, ou +para exprimirmos com dous vocabulos modernos duas idéas semelhantes, mas +diversas, o _mancipium_ era servo, mas _escravo_. Na Russia ha _servos_; +na America ha _escravos_. Note-se, porêm, que com este exemplo não quero +estabelecer analogia completa entre a distincção primitiva e a +distincção actual. + +Baste, porém, que _mancipium_ servisse entre os godos para exprimir +especialmente a mais vil servidão, a escravidão. Não teria a palavra na +monarchia neo-gothica este mesmo valor especial, embora ás vezes pela +fluctuação da linguagem (fluctuação que existe sempre, mas que é +grandissima nas epochas barbaras) se tomasse como synonimo de servo, por +isso que, n'um grande numero de relações, a sorte de um e a sorte de +outro eram identicas? No 3.^o documento que cita o sr. Muñoz, os +individuos doados são denominados _mancipios_ e _mancipiellas_, e +exprime-se que são da gente ismaelita e agarena; que são captivos. N'uma +carta de doação á sé de Lugo[77] de 897 Affonso III doa-lhe, além de +outras cousas, _mancipia, quae ex hismaelitarum terra captiva duximus_. +No meio de uma lucta odienta e atroz, como foi durante o seculo VIII e +ainda durante o IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, é natural, é +crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros de guerra que não eram +passados á espada fosse inteiramente a mesma dos servos de raça, classe +a que, além de outros, um documento de 985 chama _servos +originales_[78], por infima que se reputasse a condição destes? E não +haveria um meio de expressar por palavra ou por escripto a differença +das duas situações, quando fosse necessario fazê-la sentir? + +É indubitavel, á vista das chronicas coevas e dos documentos, que os +reis de Oviedo e Leão e os seus capitães, alargando os limites da +monarchia ou reduzindo o poder mussulmano por victorias repetidas, por +saltos e correrias inesperadas, por devastações e incendios, conduziam +annualmente para o interior das provincias ovetense-leonesas milhares e +milhares de captivos. Devemos acaso suppôr que nenhum desses contractos +sobre individuos pessoalmente escravos, em que se calla a procedencia +dos mesmos individuos, se refira a prisioneiros de guerra, e que entre +estes não houvesse muitos mosarabes? A pretensão parece-me que sería +insustentavel. Embora eu não queira, nem seja preciso explicar por esse +facto muitos dos documentos citados pelo sr. Muñoz, ha outros em que +semelhante explicação é a mais simples e natural, e a este numero +pertence indubitavelmente a doação de 812. + +Civilmente, socialmente, os mosarabes eram sarracenos. Do modo como essa +grande maioria da população romano-gothica buscava em geral assimilar-se +aos conquistadores temos sobejas provas nos escriptos contemporaneos de +Alvaro de Cordova, d'Eulogio, do biographo de João de Gorze, nas actas +dos martyres Voto e Felix e em outros monumentos. Os mosarabes serviam +nos exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam contra os seus +correligionarios. Entre os altos officiaes da coroa na corte de Cordova +figuram condes godos, e apparecem-nos a cada passo magistrados, +funccionarios, prelados, sacerdotes godo-romanos nas provincias do vasto +imperio dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as questões +religiosas, e adoptando a tolerancia dos dominadores arabes, seriam +verdadeiramente addictos á situação politica em que se achavam, elles +que abraçavam não raro os nomes proprios, os costumes, as usanças, a +civilisação e a lingua dos mussulmanos, a ponto de esquecerem +completamente o idioma neo-latino, segundo o testemunho de Alvaro de +Cordova; elles que admittiam, até, a circumcisão, se acreditarmos o +_Indiculum_ e a biographia de João de Gorze? Não achamos nós ainda no +seculo XI os bispos mosarabes, esquecidos das funcções episcopaes, e +dedicados inteiramente á vida politica, empregarem-se no serviço profano +dos respectivos soberanos sarracenos?[79] Se nos proprios estados dos +reis de Leão a mistura dos usos mussulmanos com os christãos dava ás +vezes, nas exterioridades do culto, occasião a factos que seriam +comicos, se não fossem irreverentes[80], o que seria essa mistura entre +mosarabes e ismaelitas nos estados mahometanos? + +Imaginar, portanto, que entre os milhares de captivos que annualmente +eram arrastados da Spania para os sertões das Asturias e de Leão não +vinha um grande numero, digamos assim, de _sarracenos christãos_; que +entre uns e outros captivos se fazia distincção, se poderia sequer +fazer; que os violentos e brutaes barões e cavalleiros dos reis leoneses +consentiriam em perder uma parte dos seus escravos, que exteriormente em +nada se differençavam dos restantes, dos verdadeiros mussulmanos, ainda +admittindo gratuitamente que os principes o desejassem, seria suppôr uma +cousa inacreditavel, embora não existisse o testemunho do biographo de +S. Theotonio, testemunho preciso de que a praxe era inteiramente +contraria. + +Na adiantada civilisação de hoje não se comprehenderia o direito de vida +ou de morte sobre os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravidão +para o vencido, ou que possa haver outros prisioneiros senão +combatentes. Deste estado da civilisação derivam a distincção entre +prisioneiro e prisioneiro, e os diversos gráus de benevolencia e de +attenções para com os mais qualificados. Entre barbaros ou nas eras +barbaras, o nosso proceder, as nossas idéas actuaes a este respeito +seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade o senhor do captivo, +sabendo que se apoderara de um homem opulento, importante entre os +adversarios, podia por calculo de cubiça tractá-lo melhor, evitar-lhe os +padecimentos e as injurias á espera de avultado resgate. Mas a regra, o +principio, a idéa de então consistia em ser o captivo, fosse quem fosse, +como um ente novo, a cujo nascimento, digamos assim, não se tinha +opposto o gume da espada. O passado desse ente não importava para nada. +Era um animal, uma propriedade do que o captivara e que licitamente +poderia ter feito com que não existisse: era o _manu-captum_, a +acquisição, o escravo; emfim, o _homem-cousa_. + +Tendo presentes todos estes factos, que o sr. Muñoz não ignora, mas que +me era necessario recordar aqui, entende-se facilmente a doação de +Affonso II á sé de Oviedo: entende-se como esses clerigos podiam ser em +parte comprados, em parte libertados pelo rei, e unidos á sé ovetense. +Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por occasião de alguma +correria. Pelos canones da igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma +especie de adscripção canonica á igreja a que pertenciam, e Affonso II, +conforme o chronicon de Albaida, foi quem restabeleceu em Oviedo as +jerarchias civis e ecclesiasticas dos godos[81]. Resgatando aquelles +individuos da escravidão, e ligando-os indissoluvelmente á sé ovetense, +respeitava as idéas do seu tempo e mantinha a antiga disciplina +ecclesiastica, embora o fizesse de modo um tanto rude. Se admittissemos, +porêm, a hypothese de que elles eram servos originarios semelhantes aos +servos dos tempos gothicos, que como taes haviam recebido ordens sacras, +que, depois de doados á sé de Oviedo, continuavam a ser o que eram, +segundo a theoria do sr. Muñoz, isto é cousas e não pessoas, e que, +portanto, podiam ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem os +mais abjectos misteres, o diploma de 812 ficaria não só repugnando á +historia, mas sendo, alêm disso, um indecifravel mysterio. + +Este documento não me escapou quando redigia o VII livro da Historia de +Portugal; mas tinha de attender a muitos outros, de condensar muitos +factos sociaes em poucos periodos. Não podia descer á analyse minuciosa +delle. Estava tão convencido da verdade da doutrina que estabeleci, que +não o julguei sufficiente para a destruir. O leitor avaliará se elle +effectivamente a destroe. Suppús que, quando muito, era uma das +anomalias tão frequentes nos factos sociaes dos tempos barbaros, a +manifestação da anarchia que reinava ainda nas idéas e nos factos. A +analyse parece-me provar que nem sequer isso era. + +O 2.^o documento explica-se como o antecedente pela existencia +d'escravos captivos. É notavel que nelle tambem se evite a palavra +_servos_, mais generica, para se empregar a singular expressão _pueros_ +e _puellas_. Parece haver a necessidade de recorrer a um vocabulo +especial para exprimir uma variedade da servidão. Além disso, este +documento parece igualmente entrar na categoria de varios outros que +citei no meu livro para provar a adhesão do servo originario á gleba, +pelo modo por que indistinctamente se empregava o nome do individuo ou o +da propriedade para designar esta. Doando trinta granjas, o doador +declara que são situadas no districto de Nemitos, e que são _Generoso_, +_Vivente_ &c. nomes proprios de individuos e não de predios. + +O 3.^o documento creio servir antes para combater a opinião de sr. Muñoz +do que a minha. O doador distingue em dous grupos os servos doados: a +1.^a dos _mancipios_ e _mancipiellas que foram das gentes dos ismaelitas +e agarenos_, e dos quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes +arabes: a 2.^a dos _homens de creação havidos de avoengas_ (heranças de +familia) _dos antepassados_ (do doador) e cujos nomes são todos godos. +Porque a divisão em dous grupos, se a condição dos que pertencem a uma e +a dos que pertencem a outra é absolutamente identica? Porque uns são +chamados _mancipios_, outros _homens de creação_, equivalente de servos +de raça? Porque entre os _mancipios_ tem uns nomes godos e outros +arabes, emquanto os de _criazione_ são todos godos? Peço ao sr. Muñoz +que aproxime estes factos das ponderações que acima fiz, e que decida +depois se o documento prova contra a minha, se contra a sua doutrina. + +Refere-se no 4.^o documento a historia de uma demanda entre o conde +Ordonho Romaniz e o mosteiro de Cellanova ácêrca de certas herdades do +mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O que neste documento importa +para a questão é o desfecho da contenda. Convencido de que não tinha +razão, o conde propôs aos monges uma transacção, que acceitaram, e que +consistia em elle possuir as granjas emquanto vivo _absque homines in +adtonitum_. Nestas ultimas palavras o sr. Muñoz vê a separação dos +homens da terra. Será essa a verdadeira interpretação? + +_Adtonitum_ é evidentemente a traducção latino-barbara da palavra +_atondo_. _Atondo_ significava alfaia, _traste de uso_, _objecto de +serviço_. As obrigações do servo de gleba, como depois as dos colonos +livres em seculos mais proximos de nós, eram, em relação ao senhor da +gleba, e depois em relação ao senhorio directo do predio, de duas +especies--prestações agrarias e serviços pessoaes; estes abrangiam +serviços de todo o genero, ainda os mais baixos; alguns, até, que +poderiam ser feitos por animaes domesticos. Nada mais facil, portanto, +do que applicar a palavra _atondo_ ao serviço pessoal dos servos, n'uma +épocha que de certo se não distinguia pela precisão rigorosa da +linguagem[82]. Que ficava percebendo Ordonho por aquella concessão dos +frades? As prestações agrarias. Os serviços pessoaes ficavam ao +mosteiro. E os monges procediam assisadamente fazendo uma concessão +restricta ao homem poderoso. Pelos individuos que agricultavam as +glebas, cujos redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao conde, +ficando aliás esses individuos ligados pelos serviços pessoaes ao +mosteiro, era facil provar a todo o tempo a quem o solo pertencia, se, +como eu creio, o servo se achava unido ao predio que agricultava e onde +vivia. + +Não comprehendo como possa applicar-se á materia debatida o 5.^o +documento citado pelo sr. Muñoz. Para elle servir ao intento era +necessario que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava. Não o +provou, porque a sentença deu-se a favor dos frades. Logo a separação +dos dez homens pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o que pretendia o +abbade de Cellanova. Supponhamos, porém, que fosse verdade o que ella +dizia. N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez glebas do +testamento de Vanate não passaram com os dez homens para o dominio do +mosteiro de Porcária? A contenda podia versar sobre os dez servos e os +dez predios, embora se falasse unicamente de homens: esta confusão da +linguagem juridica nos documentos daquelles tempos é uma cousa que me +parece ter demonstrado no meu livro até a evidencia. + +No 6.^o documento doam-se varias granjas _com sua criacione et homines +pertinentes_, exceptuando um d'estes homens com seus filhos. Não +comprehendo igualmente como se possa invocar contra mim um documento de +que me poderia ter servido, cumulativamente com tantos outros, para +estribar a minha theoria, se o houvera conhecido. A phrase +latino-barbara acima citada exprime exactamente a situação dos servos: +doam-se as glebas com a _sua_ creação, com os homens _que lhes +pertencem_. Supponhamos que a reserva que se faz de uma familia +signifique o que o sr. Muñoz pretende. Sería um acto legitimo ou +illegitimo; mas o que é certo, pelo menos, é que até ahi essa familia +pertencia áquellas glebas como os outros homens de creação. Isoladamente +este documento não seria bastante para provar o facto geral da +adscripção, embora prove que havia adscriptos; mas o que elle de certo +não prova é que a situação dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma +dos tempos gothicos. + +A adhesão á gleba era um facto de indole complexa. Por um lado era um +progresso immenso das classes laboriosas no caminho da liberdade; por +outro uma garantia para os donos do solo; porque, circumscrevendo, +coarctando a acção do senhor sobre o servo, a tornava por isso mais +legitima e por consequencia mais solida. Nas relações entre ambos havia +vantagens mutuas, de que espontaneamente se podia ceder de parte a parte +para as trocar por outras vantagens maiores. A adscripção não era uma +lei escripta, como na Russia moderna; pelo menos nenhuns vestigios +restam de que o fosse: era um facto social, um costume, uma praxe, que +resultava da natureza das cousas, de factos politicos anteriores. É +possivel apparecerem exemplos de separação entre o servo e a gleba por +um acto violento do senhor. De que actos violentos deixa de nos +subministrar exemplos a idade media? Mas o senhor tambem podia quebrar +os laços que prendiam o servo ao predio com vantagem e assenso delle, +como por exemplo para o unir a uma gleba mais productiva ou mais vasta, +sem que por isso se reputasse offendida a praxe, a especie de lei mental +que a força das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir d'ahi a +não existencia do facto contrario como regra. Isto explicaria a reserva +de Alvito Pepiz e seus filhos na doação de 1094 á sé de Lugo, se não se +podesse tambem entender que com elles fora exceptuada a respectiva +gleba. + +Depois do que fica dicto a analyse dos 7.^o, 8.^o e 9.^o documento do +sr. Muñoz parece-me inutil, e a theoria da adscripção não obstará por +certo á sua facil interpretação. Seja-me, todavia, licito fazer algumas +observações a respeito do ultimo documento. Não me lembra ter jámais +visto mencionado, nem nos historiadores nem nos monumentos, um unico +mussulmano cujo nome seja godo. E comtudo na memoria da divisão de +Rovoredo menciona-se o _sarraceno_ Sendimiro. Não sería um captivo +mosarabe? Mosarabe, porêm, ou arabe, elle não fora um homem de creação, +fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo casou ahi. Mas porque +não sería a mulher da sua condição e da sua raça? E então porque não se +daria em troco d'elle uma irmã da sua mulher? Que póde esse facto provar +contra a adscripção dos servos originarios? Onde neguei eu que a +escravidão dos sarracenos ou de seus filhos fosse a servidão pessoal? + + + + +V + + +Outra ordem de factos, que o sr. Muñoz recorda como vehemente indicio de +que a condição dos servos era a mesma dos tempos gothicos, é que ás +vezes os poderosos nas suas depredações roubavam uns aos outros os +colonos e iam vendê-los, o que não poderia acontecer se a servidão +pessoal não existisse; que se davam servos aos mouros em resgate +d'illustres captivos[83]; que os servos eram obrigados ao serviço +domestico, a trabalhos mechanicos da industria, como por exemplo, a +serem cozinheiros, padeiros, tecelões, carpinteiros, ferreiros, +alfaiates, etc.; que alguns tinham os mais baixos encargos, como limpar +os logares immundos, concertar os caminhos, tractar das cubas em que +seus senhores se banhavam etc.[84]; o que tudo, no entender do sr. +Muñoz, repugnava á adscripção. Lembra-se então de alguns monumentos em +que esses factos podem estribar-se, e que crê servirem para condemnar a +minha opinião. Examinemo-los. + +N'uma doação de Bermudo III á sé de Santiago fala-se de um certo +Galiariz, que, entre outras rapinas que fez, roubou seis homens alheios +e vendeu-os como captivos (_et vendivit eos sicut captivos_). Se eu +procurasse um documento que positivamente contradissesse a doutrina do +sr. Muñoz, não o acharia por certo mais a proposito. Galiariz vendeu os +servos alheios _como se fossem captivos_, e este acto enumera-se entre +os seus delictos. O que pois se vendia sem offensa dos usos e costumes +era o prisioneiro, _captivum_. Vender como tal o servo alheio é uma +circumstancia que aggrava o roubo, e porque? Porque o servo, o homem +d'alguem, não era um captivo, uma _cousa_ venal. Peço que se reflicta +neste documento. + +Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia Compostellana, foram +aprisionados pelos sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se +para os remir LX _captivos christianos, tamen ex servili conditione_. E +é sobre semelhante texto que o sr. Muñoz assenta a idéa de que se +entregavam servos originarios aos sarracenos em resgate de cavalleiros +leoneses! Que é o que se deu pelos dous nobres? Captivos christãos. Pois +_captivo_ foi nunca synonimo da palavra generica _servo_? _Captivo_, na +idade media, significava o que significa hoje, o que significou sempre, +o prisioneiro. O que houve foi uma troca de prisioneiros. Deram-se por +dous sessenta, facto que o historiador explica: _tamen ex servili +conditione_. Se dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro, ou +seis. Não tinham prisioneiros de mais elevada jerarchia ou não os +quizeram entregar: deram sessenta de condição servil. Mas esses homens +eram christãos. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente captivos. A +Compostellana é igualmente explicita a ambos os respeitos. Eis a +necessidade de nunca esquecer a população mosarabe. Por ella se explica +facilmente a existencia de prisioneiros christãos em poder de christãos. +Aprisionados com seus senhores ou sem elles n'uma batalha ou n'uma +correria dos leoneses na _Spania_, tinham mudado de donos, e agora +entregavam-nos a outros donos em cujo poder de certo a sua condição +desgraçada não melhoraria. Eis o que unicamente se pode inferir com +plausibilidade da narrativa da Compostellana. + +Não escrevendo a historia de Leão, ou dos outros estados da Peninsula, +mas a de Portugal, eu era obrigado a esboçar rapidamente a organisação +social da Hespanha de que se desmembrara a monarchia portuguesa; só, +porêm, até onde fosse necessario para se entender a historia social do +meu paiz. Apesar disso, creio que fui o primeiro que tentei fazer sentir +aos escriptores hespanhoes a importancia de dedicar profundas +investigações á historia dos mosarabes, dessa população distincta, que, +em meu entender, devia constituir a maioria dos habitantes da Peninsula, +ainda dous ou tres seculos depois da invasão dos arabes e da tentativa +de Pelaio, pela simples razão de que a grande massa da população de um +vasto paiz não se pode substituir como o poder supremo, como o +predominio de um precedente conquistador, sobretudo quando se tracta de +uma nação civilisada, e não de tribus selvagens, sempre insignificantes +em numero, e que a atrocidade fria e permanente dos vencedores chega a +destruir no decurso de seculos. Depois das invasões e conquistas +germanicas, a grande massa da população do imperio romano ficou sendo +celto-romana: depois da invasão e conquista da China pelos tartaros +mantchús, a maioria dos habitantes daquelle immenso paiz ficou sendo +chim: o sangue inglês é o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio +normando. E todavia nenhuma daquellas raças de conquistadores foi tão +moderada, tão benigna para com os vencidos como os arabes na Hespanha. +Por essa mesma brandura e tolerancia certa ordem de factos politicos e +sociaes, que se dão depois dos grandes cataclysmos das nações, deviam +ser mais prominentes, mais efficazes na Hespanha, e portanto influir +mais poderosamente nas phases dos acontecimentos posteriores tanto +politicos como sociaes. Nós, os homens d'hoje, que vimos ou ouvimos +contar a nossos paes as scenas do dominio francês na Peninsula no +principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar o estado moral da +população romano-gothica depois do estabelecimento do imperio dos +khalifas, se aliás os monumentos fossem menos explicitos ou guardassem +silencio a tal respeito. O transitorio dominio francês na Peninsula não +deixou de produzir logo um grande numero de _afrancesados_ na Hespanha e +de _jacobinos_ em Portugal. Qual sería o jacobinismo, permitta-se-me a +expressão, entre os godo-romanos em relação aos sarracenos pode +imaginar-se tendo presente o estado de dissolução moral do imperio +wisigothico, anniquilado n'uma unica batalha; o longo dominio dos +arabes; a superioridade da sua civilisação material; a sua tolerancia +para com a religião dos vencidos; o respeito guardado ás instituições +civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes mussulmanos para com +os seus subditos christãos. Não quero dizer com isto que o patriotismo +wisigothico; que a impaciencia do jugo extranho; que o sentimento de +hostilidade religiosa não ardessem em muitos corações, e até subissem ao +gráu de fanatismo. Pelo contrario. Não era preciso que os monumentos nos +dissessem que a reacção se manifestava até na corte de Cordova. O +conhecimento da indole das paixões humanas dispensa ás vezes em historia +o testemunho dos monumentos. O homem é essencialmente o mesmo em todas +as epochas. Mas é por isso que os interesses, a reflexão, os vicios, as +virtudes, os habitos, a educação, as mil causas moraes que impellem e +dirigem o individuo e lhe determinam os affectos e as tendencias, deviam +impellir outros, e talvez o maior numero, a manifestações oppostas. O +_Indiculo Luminoso_ de Alvaro de Cordova, especie de extenso artigo de +fundo de jornal partidario, libello apaixonado contra o mosarabismo, +revela-nos quão numeroso e importante era o partido arabe entre os +romano-godos da Spania, partido que abrangia nobres, guerreiros, +prelados, sacerdotes, magistrados, povo. Se não existisse este +testemunho insuspeito, a razão e a experiencia nos diriam o mesmo que +elle nos diz[85]. + +Imagine-se agora qual sería durante a lucta entre a monarchia +néo-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas o papel dessa maxima parte da +população peninsular chamada os mosarabes: uns indifferentes á contenda, +acceitando do mesmo modo o dominio dos reis d'Asturias e Leão ou o dos +principes sarracenos, no meio dos éstos da guerra; outros forcejando por +identificar-se com a nova sociedade que se constituia á semelhança da +patria wisigothica; outros, emfim, addictos por esperanças, por cubiça, +por beneficios recebidos, e até por laços de sangue, resultado dos +consorcios mixtos, á manutenção do dominio mussulmano, e calcule-se +quantos factos politicos haviam de dimanar de um estado de cousas tal; +quantas peripecias, quantas violencias se dariam em qualquer districto +ou provincia da Hespanha a cada invasão, a cada correria, quer dos +sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam em vinganças acerbas +os odios occultos; como as paixões mais oppostas trariam a mudança de +partido e até de crença; como os homens da mesma raça e da mesma +religião se perseguiriam, se denunciariam por desleaes a um ou a outro +dos dous poderes publicos, que pelos accidentes da guerra se succediam +tão frequentemente nos variaveis limites dos dous estados; como a +condição do mesmo individuo mudaria mais de uma vez; como o nobre, o +rico, o funccionario, o sacerdote poderiam cair de repente da situação +mais elevada na mais abjecta servidão, e os mais humildes elevarem-se +por acontecimentos imprevistos até as mais altas graduações sociaes; +como, finalmente, os monumentos na sua linguagem, nos factos que delles +resultam podem illudir-nos, se entre os elementos a que devemos recorrer +para a sua apreciação esquecermos o elemento mosarabico. + +Que se me permitta referir aqui uma anecdota que pinta a vida agitada da +população mosarabe nos territorios submettidos ora pelos arabes, ora +pelos leoneses, no meio das vicissitudes da guerra, e que está +confirmando o que precedentemente disse ácêrca do mosarabismo e das +peripecias a que estavam sujeitos os individuos naquella situação +incerta e cambiante. Dos territorios da Hespanha nenhum, talvez, mudou +mais vezes de senhores durante a lucta do que os districtos d'entre +Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades do oceano, e porventura que em +nenhum ficaram mais vestigios da existencia da sociedade mosarabica, da +sua civilisação material, das suas paixões, dos seus interesses +encontrados, e até dos seus crimes e virtudes. A publicação, que a +Academia prepara, dos documentos dessas epochas, e especialmente dos que +nos foram conservados nos archivos da cathedral de Coimbra e do mosteiro +de Lorvão, lançará grande luz sobre o assumpto. É um desses documentos, +tirado do chartulario de Lorvão, o Livro dos Testamentos, e que foi +publicado já por Fr. Munuel da Rocha, mas horrivelmente deturpado, que +me subministra os elementos de uma narrativa, a qual reproduz, embora +apenas n'uma das suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos. + +Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo o cenobio de Lorvão. +Coimbra, em cujo territorio estava situado o mosteiro, pertencia á coroa +leonesa pouco antes da epocha em que a espada irresistivel do hadjib +Al-manssor fez recuar de novo as fronteiras da monarchia néo-gothica +para além do Douro (987). Os districtos ao sul deste rio, que depois da +invasão de Tarik e Musa tinham pertencido a maior parte do tempo aos +sarracenos, encerravam uma população essencialmente mosarabe. Cordova +era ainda para ella a capital da industria, das artes, da civilisação. O +architecto cordovês Zacharias viera a Lorvão, provavelmente chamado pelo +abbade Primo para alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores de +Coimbra falaram com o abbade para que o architecto cordovês construisse +algumas pontes sobre os rios das circumvizinhanças. Primo accedeu, e +acompanhou Zacharias na empreza. Edificaram-se então quatro pontes, em +Alviaster (Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera Buzat (Ladeiras +do Bussaco?) e na ribeira de Forma (Bossão?) Aqui, em memoria da ambos, +e por conselho do architecto, Primo construiu umas azenhas que ficaram +pertencendo ao mosteiro. Taes foram os factos succedidos nos fins do +seculo X que narra o documento de Lorvão. + +Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o seu territorio, submettidos +de novo por Al-manssor, tinham-se conservado sob o jugo do islam. +Fernando magno veio, porêm, a unir definitivamente aquella provincia á +coroa de Leão nos meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de Forma +já não eram do mosteiro. Fernando I restituiu-lh'as, ajunctando o +senhorio da ponte. Pelagio Halaf, nome que indica um mosarabe christão, +fora, segundo parece, espoliado naquella restituição. Demandou os +monges, affirmando que seu avô Ezerag edificara as azenhas, ao passo que +o abbade Arias invocava os nomes de Primo e Zacharias. O mosarabe +Sisnando, conde ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de Arias +ácêrca do que este affirmava, manteve a restituição. Surgiu então novo +contendor. Era Zuleiman Alafla, primo-coirmão de Pelagio, talvez +mussulmano, talvez christão, mas como elle da raça mosarabe. Sisnando +enviou os contendores á curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu +direito na fundação do avô, Zuleiman recorreu a um titulo que hoje sería +singular, mas que então elle cria assás natural, e sufficiente para +legitimar a sua pretensão. Era a historia do que se havia passado quando +Al-manssor se apoderara de Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando +se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto da invasão os +habitantes das aldeias internavam-se nos bosques. Ezerag pensou então +que a desordem geral podia enriquecê-lo. Dirigiu-se ao chefe sarraceno +Farfon-ibn-Abdallah, e abraçou o islamismo. Depois pediu trinta soldados +sarracenos, escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se á gente foragida, +aconselhou-os a voltarem aos seus lares, asseverando-lhes que tudo +estava pacificado. Acreditaram-no e voltaram ás aldeias. Os soldados +sarracenos, saindo então dos escondrijos, captivaram muitos, e +levando-os a Santarem venderam-nos por grossas sommas. Os captivos foram +conduzidos a Cordova com guia de Ibn-Abdallah e com o preço por que +tinham sido vendidos. Então Ezerag pediu em recompensa os moinhos de +Forma e diversas aldeias. Al-manssor concedeu-lhe tudo; porque +Al-manssor era um heroe, e os heroes não tem tempo para pensar nos +direitos da humanidade conculcados[86]. Era nesta concessão que Zuleiman +fundamentava a sua justiça. + +A doação do hadjib aos olhos de Alafla, do neto do renegado, era um +titulo legitimo, embora essa mercê tivesse tido por causa uma atroz +villania, e procedesse de um acto de auctoridade que o tribunal leonês, +conforme as ideas de hoje, não poderia reconhecer. Zuleiman, porêm, +suppunha tão legitima, tão respeitavel a concessão de Al-manssor como o +julgamento da curia de Fernando-magno. Era um poder que passara na +terra: era outro que nella existia agora. Nisto se resumia, +necessariamente, a crença politica de uma grande parte dos proprietarios +e agricultores mosarabes. Mas o mais importante neste documento é o +proceder d'Ezerag e os factos que d'ahi resultaram. Elles nos explicam +como quaesquer individuos da grande maioria da população podiam descer +ao misero estado d'escravos. Sem duvida a historia de Ezerag não é a +unica da sua especie succedida naquelles quatro seculos de uma terrivel +lucta: devia repetir-se com circumstancias variadas. E é mais que +provavel que as conversões ao christianismo por baixos intuitos de +cubiça, de vingança ou de traição, fossem, pelo menos, tão frequentes +como as conversões mussulmanas. + +Insisti neste ponto, porque o reputo capital. Passemos agora á objecção +deduzida de serem os servos originarios obrigados a trabalhos +industriaes e ao serviço domestico dos senhores, trabalhos e serviços +que, no entender do sr. Muñoz, repugnavam á adscripção da gleba. + +No opusculo do sr. Muñoz parece-me haver duas preoccupações que +allucinam o illustre escriptor. A primeira é a das idéas modernas +applicadas ás expressões, ás phrases e aos factos da idade media. Desta +é facil possuirmo-nos, e nella terei eu caído mais de uma vez. A outra é +na verdade singular, mas em boa parte deriva da primeira. Consiste em +suppôr a impossibilidade de accumular os trabalhos da vida rural com os +industriaes e mechanicos, ou com os serviços pessoaes feitos a outro +individuo. Entre as nações onde o progresso das industrias fez +predominar quasi exclusivamente o principio economico da divisão do +trabalho, effectivamente não se dá tal associação: o official mechanico, +o operario fabril, o creado domestico não associa de ordinario a +occupação a que se entregou com o grangeio dos campos. Mas assim como a +divisão e subdivisão dos misteres se vai multiplicando com o +desenvolvimento industrial, assim quanto mais atrazado se acha um povo, +mais o homem varía de occupações, porque é obrigado a variar, e porque +justamente a imperfeição das industrias, a simplicidade e grosseria dos +artefactos favorecem a accumulação e a variedade das occupações +individuaes. Não sei o que succede em Hespanha: em Portugal, nos +districtos ruraes, mais de uma industria fabril se associa com a +agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia, por atrazado que esteja +este paiz nos progressos fabris, está sem comparação mais adiantado do +que a monarchia leonesa no seculo X ou XI. + +Recusar admittir que o servo da gleba podesse separar-se do cultivo da +mesma gleba para se empregar de outro modo no serviço do senhor, não é +só negar o passado; é negar o presente. O camponês russo é servo da +gleba, e nem por isso deixa de separar-se della para exercer outros +misteres. O que não pode é ser vendido como os brutos. Muda de senhor, +ao menos legalmente, só quando é alienada a terra a que pertence. + +O V volume da Historia de Portugal, ainda não publicado, conterá uma +parte relativa ao systema do tributo, da renda, e do serviço publico nos +seculos XII e XIII. Ahi se encontrarão numerosas provas de que n'uma +épocha em que já a adscripção voluntaria succedera á forçada existiam +para o colono, pessoalmente livre, ao lado das prestações agrarias esses +mesmos encargos de serviço pessoal que ao sr. Muñoz parece repugnarem, +não ao colonato livre, mas á propria servidão da gleba; e o mais é que +continuamos a encontrá-los ainda nos contractos emphyteuticos de seculos +mais modernos. Por singulares, por extranhos á vida rural que esses +serviços se nos affigurem nos documentos citados no opusculo que +examino, os dos colonos portugueses do seculo XIII, colonos +indubitavelmente livres de uma gleba serva, não são menos singulares e +extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo que pesava sobre os +moradores de tres casaes de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias +em Leão quando a isso os enviassem.[87] Era, por certo, um serviço mais +abjecto do que o _purgare tristigas_ de que falam os documentos +leoneses. + +Mas o mais notavel é que o proprio sr. Muñoz se encarregou de combater a +sua opinião. Ao lado da servidão _pessoal_ dos servos _originarios_ +admitte a existencia da servidão de gleba, a existencia simultanea de +adscriptos, de que fórma uma classe á parte. Depois de enumerar as +prestações agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos, o sr. +Muñoz adverte[88] que, além de uma quota de fructos, e de variadas +foragens, esses colonos forçados estavam adstrictos a serviços pessoaes, +que consistiam nos amanhos de predios diversos da propria gleba, em +construcções de edificios, e _em fazer quanto se lhes ordenasse_. Suppôs +o sr. Muñoz que havia contradicção em dizer eu que os servos originarios +eram todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a serviços pessoaes +fóra da respectiva gleba, e todavia não só acceita essa doutrina +contradictoria no seu mesmo opusculo, mas, além disso, acceita-a depois +de affirmar a sua impossibilidade, para desta inferir contra mim a +continuação na monarchia ovetense-leonesa da servidão wisigothica. Se os +serviços pessoaes alheios ao cultivo da gleba importavam forçosamente a +não-adscripção, é necessario confessar que a adscripção, cuja existencia +o sr. Muñoz crê descubrir ligada com quaesquer encargos de serviço +pessoal ao senhor, é um sonho, e que os documentos que se referem a esse +estado de cousas, ou são falsos, ou se hão de entender, custe o que +custar, de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou aos captivos +sarracenos. + +Na _Colleccion de Fueros Municipales_[89] publicou o sr. Muñoz dous +interessantes documentos sem data, mas que parecem do seculo IX, +relativos aos encargos pessoaes dos servos originarios. A estes +documentos se reporta igualmente no seu opusculo para abonar a these que +estabelece da existencia simultanea de adscriptos e de escravos +originarios. É o primeiro uma memoria dos serviços a que era obrigada +para com a sé de Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon: é o +segundo uma memoria especial das obrigações dos servos de Pravia, logar +ou aldeia incluida no mesmo territorio de Gauzon. Na _Colleccion_ vê-se +que as idéas do sr. Muñoz fluctuavam ainda. Estas duas memorias +suppõe-nas elle ahi relativas indistinctamente aos servos da sé ovetense +residentes naquelle territorio, quer adscriptos, quer não: no +opusculo[90] suppõe-nas, porém, relativas exclusivamente aos +não-adscriptos, isto é, aos servos de raça, que, segundo a sua doutrina, +continuaram a ser na monarchia néo-gothica de condição identica á dos +servos do VI e do VII seculos. + +Permitta-me, todavia, o sr. Muñoz pensar que se houvera reflectido mais +detidamente nestes documentos elles o teriam, talvez, conduzido a +diverso resultado. Suppondo que se refiram a servos que, no seu +entender, equivaliam a cousas, e de que seu antes dono que senhor podia +dispôr livremente, a propria existencia dessa especie de memorias sería +incomprehensivel. Na idade media não se escreviam cousas absolutamente +inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam, e até a materia da +escriptura era assaz rara. Ora nada mais completamente inutil do que +esses _cobrinellos_ ou ementas, dada a theoria do sr. Muñoz. Para que +escrever n'um pergaminho: _a familia de fulano de tal aldeia ou granja_ +(villa) _é obrigada a tal serviço_? Pois uma familia de escravos, que +pode ser empregada a bel prazer do senhor nos mais oppostos misteres +dentro do mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia, como um animal +domestico; que por arbitrio delle pode mudar de domicilio quando isso +convier; que, em summa, pode collectiva ou individualmente ser vendida, +escambada, doada; uma tal familia, digo, tem acaso obrigações +determinadas, de que seja necessario conservar a memoria para o futuro? +De que serve declarar a granja, o villar, o casal onde cada uma dessas +familias reside, se, no dia seguinte ao da redacção da ementa, o senhor +pode achar mais conveniente outra distribuição dos seus escravos? Apesar +da facilidade com que hoje se escrevem cousas inuteis, não se reputaria +louco o proprietario que escrevesse e archivasse a seguinte memoria: _A +raça do cavallo N. tem de conduzir madeiras; a raça do touro_ _N. tem de +lavrar taes terras; tal vehiculo tem de servir de transporte a tal +objecto; tal alfaia é destinada a tal uso_? + +Na minha opinião, o que estas memorias provam é o mesmo que provam +directa ou indirectamente todos os documentos que se referem á condição +ou aos encargos dos servos originarios, ou homens de creação: é que +estes estão unidos a certos predios indissoluvelmente; que desse +complexo do homem e do predio o senhor tem de auferir prestações +agrarias e serviços determinados. Nesta hypothese o _cobrinellum_ é uma +cousa racional. A _casata_, isto é, a familia que vive n'uma certa +choupana ou grupo de choupanas, (_casa_) tem de satisfazer, de geração +em geração, perpetuamente, aquelles encargos. Os enlaces inevitaveis com +outras familias podem produzir complicações de direitos entre diversos +senhores, mas o _cobrinellum_ ou ementa particular de cada um servirá +para os deslindar, indicando os serviços, independentes das prestações +agrarias, que essas familias devem, _debent_. Esta idéa de dever que se +manifesta nos documentos presuppõem a do direito. O escravo não tem +deveres; porque as _cousas_ são incapazes delles. Nos proprios tempos +barbaros dever e direito são inseparaveis; porque as duas idéas são +forçosamente correlativas. + +Conforme o que n'outro logar adverti, a adscripção não era de feito +simplesmente uma grande restricção da liberdade; importava tambem +vantagens, as de uma especie de co-propriedade do servo colono na sua +gleba. O sentimento do servo de gleba devia ser analogo ao do camponês +russo dos nossos tempos. «No momento em que os servos separados da +terra--diz o marquez de Custine--vissem vendê-la, arrendá-la, cultivá-la +independentemente delles, amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os +despojavam _dos seus bens_[91]. Do mesmo modo que na Russia, onde se +caminha da barbaria para a civilisação, nas origens barbaras da +monarchia néo-gothica a adscripção como regra succedeu naturalmente á +servidão pessoal, e a servidão da terra cultivada por um colono +pessoalmente livre succedeu á adscripção nos seculos XII e XIII, como me +persuado que demonstrei no meu livro. Suppôr que da escravidão se passou +de salto á liberdade pessoal affigura-se-me a supposição de um +impossivel historico. + +Effectivamente: como achamos mais geralmente estabelecido o colonato nos +seculos XII e XIII? O colono é _obrigado_ a morar no predio que cultiva, +mas não é forçado a isso. Se delle sai, não lhe é licito cultivá-lo; +perde-o; não o reconduzem, porém, violentamente a elle. A união do homem +á terra subsiste, mas essa união não é indissoluvel. A liberdade pessoal +nasceu. Entre esta situação e a do homem-cousa, do escravo, ha um +abysmo. Como se transpôs? O meio principal consistiu na servidão da +gleba. O homem-cousa foi-se transformando em _pessoa_ serva: a pessoa +serva em pessoa livre; mas ficou ainda adscripta na qualidade de colono. +Para ser plenamente pessoa livre precisava de desaggregar de si esta +qualidade; de divorciar-se da gleba, a que aliás o prende esse amor +ardente do homem de trabalho ao solo que cultiva. E que importava, se +_podia_ fazê-lo? É por isso que disse no meu livro que a servidão desceu +do homem para a terra. Depois, lentamente, é que veio o colonato na sua +fórma quasi definitiva: o laço unico que liga o colono é a solução do +canon e a prestação dos serviços pessoaes ao já não _senhor_, mas +_senhorio_. Depois, finalmente, chegou-se á formula definitiva: os +serviços pessoaes ou desappareceram ou poderam ser substituidos, á +vontade do colono, pela solução de um _quantum_ que os representasse. +Desde este momento o colonato não conteve mais em si elemento algum que +repugne ás nossas idéas actuaes de direito, e nem sequer ás da economia +politica. + +Eu cri ver a liberdade humana despontando tenue nos horisontes da vida +do povo desde os tempos wisigothicos. Para o sr. Muñoz a noite profunda +da escravidão durou nesses horisontes até a fatal jornada do Guadalete. +E não só, na sua opinião, durou até aquella epocha, como tambem +subsistia ainda com todo o peso das suas sombras no seculo XI. Mas em +que periodo collocar a transição para a liberdade pessoal dos seculos +XII e XIII, cuja existencia demonstrei como facto predominante no +colonato dessa epocha, se não for no estado dos servos originarios da +monarchia leonesa? Se assim não houvera sido, singular excepção á lei de +desenvolvimento gradual e constante do progresso humano sería a historia +da Peninsula durante quatro seculos! + + + + +VI + + +O sr. Muñoz contrapõe ainda á minha opinião varios factos, que entende +provarem ser o estado dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo e +Leão. Um delles é não ter o servo representação em juizo, nem poder +servir de testimunha, havendo outro meio de prova. + +De se me oppôr este facto parece poder inferir-se ter eu affirmado em +alguma parte que o servo se convertera em homem plenamente livre na +monarchia leonesa. Nesta hypothese a objecção poderia parecer plausivel, +ainda que realmente o não seja; porque não se segue da plena liberdade +do individuo, em qualquer estado social, a necessidade positiva de ser +igual em direitos, ainda civis, a todos os individuos livres. O que, +porêm, affirmei, e o que julgo poder continuar a affirmar é que a +servidão mais ou menos absoluta dos wisigodos se tornou na monarchia +néo-gothica em servidão da gleba, e que esta modificação foi um grande +passo para a emancipação das classes populares. Se o servo não podia +desaggregar-se da gleba, é evidente que a gleba tambem não podia +desaggregar-se do servo, e que desse estado resultava para elle uma +especie de co-propriedade de facto, que, por indestructivel, creava um +direito positivo. O alcance deste direito era tal que as suas +consequencias, na successão dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais +cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram. Eis o que eu +estabeleci. Objectivamente, a existencia da pessoa civil resulta da +manifestação da sua capacidade juridica, embora essa manifestação seja +incompleta. Entre os romanos, o servo considerava-se como cousa, porque +objectivamente era incapaz, não de um ou de outro direito, mas de todos +elles, e por isso perdia a personalidade: nas sociedades modernas, +porêm, o privilegio, a jerarchia, a idade do homem, o seu estado physico +ou moral produziram sempre e produzem ainda differenças de direitos, até +civis, que nem por isso destroem a personalidade de ninguem. Fosse o +poder publico, fosse o proprio adscripto que podesse invocar o principio +da adscripção para não ser violentamente separado da gleba nativa; fosse +o costume, a opinião, ou a lei que sanctificasse a união da terra com o +seu cultor, o que é certo é que se invocava, sanctificava e mantinha um +direito, uma vantagem importantissima do adscripto. Fosse qual fosse a +dependencia deste do respectivo senhor, a sua personalidade existia. + +Assim, quaesquer que fossem as restricções que houvesse a respeito dos +servos no systema judicial desde o seculo VIII até o XII, essas +restricções nem provam contra a personalidade objectiva dos servos, nem +importam á adscripção ou não adscripção. Sobre aquelle systema judicial +e sobre o papel que os servos representavam nos pleitos poderia +accrescentar aqui algumas ponderações que me parece mereceriam a +attenção do sr. Muñoz, mas que me levariam mais longe do que comportam +as dimensões deste pequeno trabalho, e que seriam sobejas para o fim que +me proponho. Deixando, pois, de parte questões agora inuteis, venhamos a +outros factos juridicos em que o sr. Muñoz vê a morte da personalidade, +e que evidentemente não provam o que elle pretende, antes em parte +demonstram que do mais ou menos incompleto dos direitos civis em +individuos desta ou daquella classe nunca se poderá deduzir a +escravidão, a não-personalidade, a suppressão absoluta desses direitos. + +«Competia ao dono sómente--diz o sr. Muñoz--reclamar a indemnisação do +damno padecido pelo servo como cousa de sua propriedade[92].» Os +documentos, aliás numerosos, em que esta affirmativa póde estribar-se +não servem de modo algum para dirimir a contenda; porque para provarem a +não-personalidade dos servos e a sua não-adhesão á gleba (suppondo que o +facto o provasse) cumpria mostrar que elles se referiam aos servos +originarios, e não a escravos captivos. Admittindo, porêm, que taes +documentos se refiram a servos originarios, essa concessão de nada +servirá para revalidar a opinião do sr. Muñoz. A representação pelo +senhor não se limitava ao escravo, e nem mesmo a este e ao servo de +gleba: estendia-se a individuos livres collocados na dependencia +juridica de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes individuos eram +cousas; não tinham personalidade? + +O sr. Muñoz estabeleceu excellentemente no seu opusculo[93] a natureza +da maladía. O malado era o homem livre, que se collocava n'uma especie +de vassalagem para com seu senhor adoptivo, e esta especie de relações +provei eu que eram inteiramente pessoaes e independentes do caracter de +colono, situação em que o malado podia estar em relação a outro senhor, +bem como mostrei a transmissão da maladia de paes a filhos[94]. A +reparação, porêm, dos damnos feitos aos malados revertia ainda no seculo +XI em beneficio do patrono[95]. Admittida a doutrina estabelecida depois +pelo sr. Muñoz, esta jurisprudencia provaria contra elle proprio; +provaria que o malado, longe de ser, como tal, homem livre, era apenas +uma cousa, apenas uma propriedade do _dominus_. + +Como os malados, os solarengos (solariegos) eram colonos livres. Di-lo o +sr. Muñoz, e com elle dizem-no os monumentos. Todavia nós lemos no Foro +Velho de Castella[96]: «_Ninguem deve pousar nem entrar por força em +casa de nenhum solarengo, e se alguem o fizer deve pagar 300 soldos ao +senhor, de quem for o solar, e o damno em dobro ao lavrador que recebeu +o aggravo_». Nos foraes do typo de Salamanca lemos tambem: «_Se alguem +matar o creado de qualquer vizinho, receba este a multa do homicidio. O +mesmo é applicavel ao seu hortelão, ao caseiro que lhe paga quartos, ao +seu moleiro e ao seu solarengo_[97]». + +A simples relação de vassalagem e clientela produzia ás vezes os mesmos +effeitos. Assim, em alguns desses foraes do typo de Salamanca se estatue +tambem que _se forem assassinados homens que alguem tenha nas suas +herdades, ou que sejam seus vassalos pertencerá ao senhor a multa do +homicidio_[98]. + +Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor ou patrono havia a +multa dos crimes commettidos contra os seus dependentes, sem que d'ahi +se possa nem por sombras inferir que a dependencia do cliente, do +vassalo, do malado, do solarengo ou do creado fosse a da escravidão. +Nada direi acerca de o sr. Muñoz qualificar a _calumnia_, a multa +judicial, _de compensação pecuniaria imposta como pena ao matador_. O +sr. Muñoz sabe perfeitamente que não era essa a indole de taes multas: +foi uma phrase inexacta que lhe escapou na rapidez da composição, como +talvez me terão escapado a mim outras analogas. Mas o que não posso +deixar de observar é uma circumstancia que prova como os espiritos mais +elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se quando +subjugados por um preconceito. Possuido da idéa da escravidão dos servos +originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia leonesa, o sr. +Muñoz, ao passo que viu dimanar a não-personalidade do servo do direito +do senhor ás multas dos crimes perpetrados contra elle, não viu, +buscando estribar-se em documentos, que o primeiro que citava, tirado de +um chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a refutação +peremptoria da sua doutrina. Este documento do anno 940 é uma carta ao +mesmo tempo de _agnição_ e de _incommuniação_, em que Pelagio +_incommunía_ os bens que tinha em certas aldeias a D. Ilduara e a seus +filhos, por elle haver com uns clientes seus espancado por tal modo +Froila, _junior_ de D. Ilduara, que o espancado morrera, e Pelagio, não +podendo talvez pagar a D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria +ao expediente de lhe _incommuniar_ aquelles bens[99]. Mas Froila era um +_junior_, colono da mais humilde classe, porêm livre. O texto das cortes +de Leão de 1020 e a sua antiga versão em vulgar não consentem que se +interprete de outro modo a palavra _junior_: nisto o sr. Muñoz está +perfeitamente de acôrdo comigo no seu commentario áquelle celebre +monumento legislativo[100]. Como, pois, se invoca um diploma que +formalmente contradiz a doutrina que é destinado a sustentar? + + + + +VII + + +Os consorcios entre individuos das classes servis offereciam varias +hypotheses juridicas: o servo podia casar com uma serva do mesmo senhor, +ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum: o marido podia ir +viver na residencia anterior da mulher, ou a mulher na residencia +anterior do marido: materialmente, essas translações de domicilio podiam +occorrer com licença do senhor ou sem ella. Estes diversos factos +influiam necessariamente nas relações do senhor e do servo. Restam em +Portugal e em Hespanha bastantes documentos de que elles se davam, e de +que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades que d'ahi +procediam. Achamos contractos, inqueritos, memorias particulares, +sentenças, em que se previnem, se memoram, ou se remedeiam as +consequencias dessas varias hypotheses em relação aos direitos dos +senhores, e em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se haverem dado +desde o VIII até o XII seculo. Para occorrer aos conflictos de +interesses e de direitos, vê-se dos mesmos documentos que se recorria á +divisão das familias. Em que consistia esta divisão? O que é que se +passava na realidade? + +O desacôrdo entre mim e o sr. Muñoz já se vê que deve ser completo na +apreciação dos documentos relativos a semelhante assumpto. Elle vê a +escravidão como condição geral dos individuos da classe servil do seculo +VIII ao XII: eu vejo-a só em relação aos captivos sarracenos, e a +servidão da gleba em relação aos _homines de creatione_, aos _servi +originales_. N'uma nota do meu livro[101] mostrei, segundo creio, que os +documentos com que elle pretendera provar que os filhos do servo e da +serva de differentes senhores se dividiam entre estes[102] se deviam +entender de um modo diverso. Na minha opinião, o que se dividia eram os +serviços pessoaes, e em certos casos (como na incerteza de pertencer a +um ou a outro senhor o dominio da gleba habitada pelo homem de creação) +as prestações agrarias. Em relação ás glebas possuidas de paes a filhos +pelas familias servas, a minha theoria era e é que o _dominio_ e o _uso_ +de qualquer desses predios se moviam em duas espheras: que o _dominio_, +manifestado, traduzido materialmente na percepção das prestações +agrarias e na exigencia de serviços, era a propriedade do senhor; +constituia o objecto de uma grande parte desses milhares de contractos +do seculo VIII ao XII que restam nos archivos da Peninsula; que o que se +vendia, doava, escambava mais ordinariamente era o direito a haver dos +servos, dos _juniores_, dos malados, dos solarengos, do homem de +trabalho, em summa, ingenuo ou não ingenuo, certas prestações agrarias e +certos serviços pessoaes, que nas glebas servis derivavam da duplicada +servidão do homem e da terra a que estava unido, e que na herdade ou +casal do peão (_junior_), na maladia, no solar, derivavam de um +contracto voluntario, tacito ou expresso; que as prestações e os +serviços do adscripto, representando a renda da terra e a obrigação +servil do individuo nella incorporado, eram duas cousas que facilmente +podiam distinguir-se quando por consorcios, ou por outra qualquer +eventualidade, o direito ás prestações da gleba e aos serviços do homem +ou da familia vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios +(_domini_) diversos; que, assim distinctos, tanto aquellas prestações, +como aquelles serviços podiam não só affastar-se, unir-se de novo, mudar +de proprietario separadamente por toda a especie de transmissão, mas até +fraccionar-se em si mesmos ou accumular-se, sem que por isso mudasse a +condição do individuo que usufruia o predio, quer como adscripto, quer +como colono livre. + +Não sei se varios documentos que o sr. Muñoz cita, logo no principio do +seu opusculo[103], provam, como elle pretende, que as palavras _servus_, +_homo_, _creatio_, _familia_ se applicavam indistinctamente aos servos, +ás familias da mesma origem, aos adscriptos, e não poucas vezes aos +homens livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem. Não vem +isso para esta questão. O que sei é que mostram, como muitos outros, a +verdade da precedente theoria, por ser ella unicamente que os explica. +Assim, lemos alli que em 934 Eximina doou a aldeia ou granja de Malares +ao mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e pertenças, _e com todos +os seus homens, assim servos como livres, que serviram na mesma aldeia +no tempo de meus paes e avós_; lemos que em 1016 o mesmo mosteiro fez um +escambo com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario com as suas +dependencias e _com a sua creação, servos e libertos e homens livres, +quantos servem na mesma aldeia_; vemos que na doação de certas aldeias +ao mosteiro de S. Salvador, em 932, se diz doarem-se _com a familia, +libertos e pessoas livres (que façam) ao dicto mosteiro e aos dictos +senhores o serviço que costumavam fazer_. Como explicar doações e +escambos de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente com os de +servos e com os das aldeias em que tantos estes como aquelles moravam, +se entendermos esses documentos ao pé da letra? Não é evidente que se +tracta das prestações agrarias, que pagavam tanto as glebas servis, como +os predios colonisados por homens livres, e dos serviços que tanto os +adscriptos como os ingenuos, forçadamente uns e por contractos +espontaneos outros, eram obrigados a fazer? Não vemos, até, no 1.^o +documento que os individuos de ambas as categorias são, sem distincção, +_herdeiros_, uns nos predios colonisados, outros nos predios de +adscripção, porque os serviços que delles devem uns e outros vem de +tempos remotos: _tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam +deservierunt in vita aviorum et parentum meorum_? + +A hereditariedade do servo na gleba, consequencia forçosa da adscripção, +eis, como já disse n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula, +desde o seculo VIII até o XII, pelo homem de trabalho, pelo antigo +escravo, para a liberdade. Quando o artigo VII do concilio ou cortes de +Leão de 1020 diz:--_Ninguem compre_ a herdade do servo da igreja, do rei +ou de alguem. _Quem a comprar perca-a e o que deu por ella_--faz-nos +recordar a doutrina parallela do codigo wisigothico[104]. Mas ha na lei +de 1020 duas palavras que assignalam um abysmo entre as duas +legislações: _haereditatem servi_, phrase que seria monstruosa no seculo +VII, mas que no XI indica apenas um facto assás trivial para exigir +providencias que o regulem e limitem. _Haereditas_ é nas actas daquella +assembléa, como em geral nos documentos das Hespanhas, o _hereditagium_ +de além dos Pirenéus; é o predio possuido de paes a filhos, o predio em +que se succede por herança. O servo ligado á gleba sabe que, quando +morrer, ficarão ahi os proprios descendentes; porque tambem sabe que +elles e a gleba mutuamente se pertencem. Nas palavras _herdade do servo_ +está resumida a historia de uma transformação social. + +Que oppõe o sr. Muñoz a um facto que as leis, os contractos, as decisões +forenses conspiram em mostrar não só como existente, mas tambem como +universal em relação a todos os servos originarios ou homens de creação? +Uma difficuldade practica. Suppõe que o servo de uma gleba poderia ir +casar com uma mulher de uma gleba remota e de diverso senhor. Prestações +agrarias não as podia pagar, porque a terra era de outro dono; serviços +pessoaes não os podia prestar, pela distancia em que vivia. Assim seus +filhos. Dividindo-se estes materialmente, e levando o senhor do pae +metade delles, emquanto a outra metade ficava na gleba materna, aquelles +podiam ter o destino que conviesse a seu dono se eram escravos, ser +repostos na gleba paterna se fossem de raça adscripta. D'aqui a +necessidade de entender os documentos no seu sentido apparente, e de +crer que a praxe de se dividir a prole dos servos de dífferentes +senhores era a geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando a classe +servil aos bens semoventes e aos moveis, destruia a personalidade dos +individuos de semelhante classe, escrava em tal hypothese, situação que +o opusculo do sr. Muñoz tende a provar ser a dos servos desde o VIII até +o XII seculo. + +Mas este argumento pécca pela sua propria indole. Inferir que não +existiu, ou pelo menos que não foi geral e predominante certa +instituição, de ter ella inconvenientes, que aliás não existiriam +predominando uma instituição diversa ou contraria, e concluir d'ahi que +foi esta a que existiu ou predominou, parece-me que seria um pessimo +raciocinio na historia de épochas e de paizes altamente civilisados, +quanto mais na de eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro. Que +havia em Oviedo e Leão desde o VIII seculo até o XII no direito publico, +na administração, no estado das pessoas, nas relações civis, que fosse +absoluto, uniforme, sem excepção na practica? Que condições sociaes +havia que não fossem incompletas, antinomicas, obscuras sob um ou sob +outro aspecto? Que foi a idade média, senão a infancia dolorosa e longa +da civilisação moderna; que foi, senão uma serie de experiencias e +tentativas de organisação das nações, que surgiam do singular consorcio +da sociedade romana, corrupta e dissolvida, com as aggregações quasi +selvagens das hostes e das tribus germanicas, mixto tornado ainda mais +confuso na Peninsula pelo influxo da cultura arabe? Que cousa mais +enredada, mais desharmonica, mais cheia de soluções difficeis do que a +vida social d'então? Sem duvida que certas leis supremas, que regem a +humanidade em qualquer situação que ella se ache, actuavam então entre +os povos, como sempre, e as paixões impelliam os individuos do mesmo +modo e produziam effeitos identicos ao que produzem em todos os tempos; +mas disto á perfeição, á harmonia das instituições vai uma distancia +immensa. + +Acceitando, porêm, a doutrina do sr. Muñoz sobre a escravidão absoluta +dos servos originarios ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de +applicação practica que elle vê na existencia da servidão de gleba? A +hypothese que lembrou póde modificar-se. Supponhamos que o escravo, ido +para outro logar e ahi casado com uma escrava de diverso dono, tinha um +filho só. Como se dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos +que tinha um filho e uma filha. Á luz a que os escravos eram +considerados, isto é, como animaes de carga, como machinas de trabalho, +como cousas, emfim, o sexo dos individuos representava forçosamente um +valor diverso. A quem cabia o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos a +união infecunda. Conforme quer o sr. Muñoz, o meio ordinario de reparar +a perda do escravo ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba de +um senhor differente, era a repartição material dos filhos. Na falta +destes, resignava-se, acaso, o senhor do servo fugido a perder os +serviços delle, porque, não podendo dissolver-se o matrimonio e vivendo +a familia escrava a grande distancia, não era possivel exigi-los? + +A lei wisigothica, porêm, ainda em vigor na monarchia néo-gothica, +estatuia a respeito destes consorcios, não devidamente consentidos, +entre servos de differentes donos uma regra clara e exequivel. Aquelle +dos dous senhores que se aproveitara desse acto irregular, que se +appropriara por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia os dous +conjuges e a respectiva prole em beneficio do que fora espoliado[105]. +Se a situação dos servos originarios não tinha mudado, porque não se +applicava a lei? Que a divisão das familias, quer como a entende o sr. +Muñoz, quer como eu a entendo, constituia já a jurisprudencia ordinaria +do seculo XI é uma cousa de que os documentos citados por elle, e outros +que poderia citar, não permittem que se duvide. Porque se oblitterou a +lei wisigothica nesta parte? É evidentemente porque, tendo mudado a +situação dos individuos a que ella era applicavel, devia buscar-se um +meio de reparar a offensa do direito sem tractar os servos como bens +semoventes. + +O direito dos senhores das glebas, ás quaes os servos pertenciam, sobre +as prestações agrarias das mesmas glebas e aos serviços dos individuos +ou familias a ellas adscriptos não offereceria realmente os +inconvenientes practicos que suscitaria o systema supposto pelo sr. +Muñoz. Já notei que este argumento é máu; mas é certo que nem esse máu +argamento favorece a sua opinião. O servo, que se desaggregava da gleba +sem consentimento do senhor, podia ser reconduzido violentamente a ella. +Este era o principio. Mas se elle lhe fizesse os serviços pessoaes que +d'antes fazia, parece que devia ser facil o chegar-se a uma transacção, +a um acôrdo. A gleba lá ficava cultivada pelo resto da familia adscripta +e produzindo as mesmas prestações agrarias, ao passo que o individuo +desempenhava os mesmos deveres pessoaes. Suppondo que este fosse residir +a grande distancia (hypothese rarissima n'uma epocha em que não existia +a menor facilidade de communicações) esses serviços podiam ser +transformados em prestações em generos, ou em moeda. Se o servo se +casava e tinha filhos, metade dos serviços da nova familia pertenciam ao +seu antigo senhor, obrigação herdada, que podia ser satisfeita do mesmo +modo. Era um systema complicado, e que daria, como dava, origem a mais +de um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece não offereceria +hypotheses insoluveis como a theoria adoptada pelo sr. Muñoz. + +Na _noticia_ dos homens do mosteiro de Cartavio publicada na _Colleccion +de Fueros_[106] lê-se _in Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis +mediis... in Mirites... Savaricum integrum... in Mintes... Petrum Vistiz +integrum cum suis filiis mediis_, etc. Temos, pois, nos proprios +documentos publicados pelo sr. Muñoz a prova de que um individuo morador +em certa granja ou aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente +ao dono dessas glebas. É uma das hypotheses que eu figurei, e que o sr. +Muñoz nos não diz como se resolveria no seu systema.[107] + +A interpretação que dou aos documentos que se referem á divisão dos +servos originarios, e que eu supponho geralmente adscriptos, é tão +obvia; esses documentos provam tão pouco que a divisão dos membros da +familia serva se haja forçosamente de entender como uma divisão +material; era tão possivel moverem-se os individuos, em relação ao +dominio, n'uma esphera diversa daquella em que se moviam as prestações +agrarias e os serviços pessoaes; a confusão da terra com o homem, da +obrigação com a pessoa a quem ella imcumbia, era tão vulgar na linguagem +juridica, que o proprio sr. Muñoz adopta o meu systema de interpretação +a proposito de documentos analogos nas expressões áquelles com que +pretende refutar o mesmo systema. Falando de diplomas, em que se faz +doação, venda, ou permutação de solares incluindo os solarengos, +accrescenta: _Obstam muito pouco alguns documentos de venda, doação e +troca feitas junctamente com os solarengos. Não quer isto dizer que se +vendessem as pessoas; mas sim os tributos e serviços que estas tinham +obrigação de prestar._ Se a linguagem dos documentos se póde tomar como +figurada em relação aos solarengos, porque não se poderá entender do +mesmo modo em relação aos servos originarios ou homens de creação? Como +se pretende deduzir dessa linguagem um argumento para provar que estes +eram vendidos, escambados, ou doados como cousas, como bens semoventes, +e sem personalidade, não se permittindo tirar igual inferencia a +respeito dos solarengos? + +A questão do estado das classes servas na monarchia néo-gothica +comportava maiores desenvolvimentos. Esses desenvolvimentos não cabem, +porêm, neste breve opusculo e na forma de publicação a que é destinado: +por isso pararei aqui. Permitta-me o sr. Muñoz y Romero que repita, +acabando, as expressões de sincero apreço pelo seu alto merito +litterario, e pelos seus esforços para derramar luz nas trevas da nossa +idade media. O que ha de abnegação, de zelo pela sciencia, de forças +intellectuaes consummidas em desbravar os desvios por onde o sr. Muñoz +se embrenhou só o conhece aquelle que nesse duro lavor deixou passar os +melhores dias da vida, sem saber o que a mocidade tem de gozos, a idade +viril de ambições, e a velhice de vaidades, e cuja recompensa unica será +escrever-se-lhe na campa: _Aqui dorme um homem que conquistou para a +grande mestra do futuro, para a historia, algumas importantes verdades._ + + + + +INDICE + + + +*A batalha de Ourique* + + +I Eu e o Clero 3 +II Considerações pacificas 35 +III Solemnia Verba 1.^a 72 +IV Solemnia Verba 2.^a 99 +V A Sciencia arabico-academica 185 + + +*Do estado das classes servas na Peninsula* + + +I 237 +II 245 +III 263 +IV 265 +V 285 +VI 317 +VII 318 + + + + +Notas: + +[1] Sermo De Convers. S. Paul. + +[2] Epistolar. Epist. 152. + +[3] Mem. de D. Fr. Caetano Brandão, T. II, p. 411. + +[4] Concil. Trident. Sess. 25, Decr. de Purgat. + +[5] Concil. Colon I, tit. 6 c. 25. + +[6] Van-Espen, Jus Eccles. P. 1 tit. 22 cap. 10. + +[7] Gesch. der Italienisch. Staat. IV B., 4 kap. § 6. + +[8] Vol. 1 Nota 3 p. 466 e segg. + +[9] S. P. Damiani Epistol. ad Sum. Pontif. L. 1 Epist. 16. + +[10] Greg. VII Epistolar. Liv. 8 Epist. 21. + +[11] De Considerat. L. 3 c. 3. + +[12] Ibid. Liv. 4 c. 4. + +[13] Um grande numero dessas passagens e cantigas, relativas aos seculos +XI, XII e XIII, acham-se colligidas na Historia dos Hohenstaufen de +Raumer, Vol. 6, pag. 178 e segg. + +[14] Scriptores Rer. Francicar., T. XVII p. 558. + +[15] Art de Verif. les Dates, vol. 1 pag. 299. + +[16] Matth. Paris, p. mihi 607 col. 2. + +[17] Chronic. pag. mihi 287. + +[18] Def. de la Declar. I. 6. + +[19] D. Hilar. Pictav., In Psalm. 53. + +[20] D. Gregor., Expos. in Job L. 8 c. 6, L. 13 c. 4. + +[21] Recordo-me de ler em a _Nação_ um communicado de Coimbra, assignado +por um parocho, em que se me dizia que, se as assaduras da inquisição +tinham acabado, cá estavam os bispos. O bom do homem ainda espera que os +bispos de Portugal possam queimar gente. É uma doce illusão como +qualquer outra. + +[22] «ne ab uberiori auctorum copia alliciamur, sed potiùs ab ipsorum +merito et _gravitate_; multotiès enim fit, ut _gravis_, periti atque +sinceri scriptoris auctoritas, etc.» + +Que diria um desses furiosos que crêm que o vocabolario dos prostibulos +póde supprir os rudimentos da sciencia, e que me condemnou como +ignorante por falar em _gravidade da historia_ em relação, não ao +estylo, mas sim á materia, se ouvisse o venerando Mabillon falar na +gravidade do historiador tambem em relação á essencia e não á forma, e +isso duas vezes n'um unico paragrapho!! Chamava-lhe ignorantissimo. Oh +clero português, clero português! + +[23] «Elle _ne craint que_ de n'être pas connue»: Fleury diz que, não a +igreja, mas o proprio christianismo _teme_. Em Portugal a theologia das +tabernas entende-o d'outro modo. É uma consolação ser impio e herege com +o virtuoso prior de Argenteuil. Pobre igreja portuguesa. + +[24] Todas as pessoas mediocremente instruidas sabem o que quer dizer +_theocratico_; mas o demente que escreveu estas blasphemias não sabe +português, quanto mais grego. Fez uma phrase ridicula para introduzir +ahi um vocabulo que os ignorantes não entendessem e que portanto +admirassem. + +[25] Accentuado por causa das freiras que dizem missa. A ignorancia das +freiras é a razão capital da accentuação nos livros rituaes, segundo o +digno sacerdote que, por vingança, acceitou das _capellas_ o pio mister +de me injuriar e calumniar sanctamente. + +[26] Nova Insistencia, etc., pag. 34. + +[27] Demonstração pag. 34.--Insistencia pag. 10. + +[28] Poucos annos antes, os embaixadores de D. Dinis tinham offerecido +inutilmente ao pontifice uns artigos com o mesmo intuito, e contendo em +substancia o mesmo que os de Pedro Escacho. Ahi nem uma palavra se diz +sobre a acclamação em Ourique, em que tambem não fala nenhum dos +chronicons coevos. Assim, a invenção da historia da acclamação póde +fixar-se no principio do seculo XIV, tendo talvez em parte dado motivo a +ella esta questão da desmembração da ordem de Sanctiago, negocio que foi +assaz rudioso e importante. Veja-se a Historia de Portugal, Vol. I, pag. +489 (Nota XVIII). + +[29] Estes chronicons estão publicados nos _Portugaliae Monumenta +Historica_, Vol. 1, p. 26. + +[30] Tanto este como os dez paragraphos precedentes foram supprimidos +nas edições avulsas das _Solemnia Verba_. Era uma digressão que pouco +servia para rebater as opiniões adversas, e que entretanto affrouxava o +cerrado da argumentação. + +[31] Os Cuidados Litterarios de Cenaculo, a Memoria de frei Joaquim de +Sancto Agostinho sobre os codices d'Alcobaça, o Elucidario de Viterbo, +as Observações de J. P. Ribeiro publicaram-se proximamente pelo mesmo +tempo. Viterbo, frei Joaquim de Sancto Agostinho, Ribeiro eram +_innovadores perigosos_ então, como eu o sou hoje. Cenaculo era um bispo +erudito. Quantas palestras litterarias, quantas contendas oraes +precederiam a publicação daquelles escriptos oppostos! + +[32] «à l'heure que je commence a dicter ce present escrit je suis en la +soixante sexieme année de ma vie.» Petitot fá-lo nascido em 1426. +Falleceu no 1.^o de fevereiro de 1502, segundo se deprehende da sua +inscripção sepulchral, com 76 annos d'idade. + +[33] D'aqui vinha por certo o titulo de _conde palatino_ de que usava +Vasco de Lucena, titulo que tanto tem feito scismar os nossos +antiquarios. + +[34] Vejam-se as provas indisputaveis d'isto em Ribeiro, Observações de +Diplomatica, pag. 79 e seg. + +[35] Et cette opinion je tiens de plusieures notables gens portugalois +qui ont esté de ma congnoissance. + +[36] Pina, Chron. de D. João II, c. 15. + +[37] Bulla: _Ut saluti_ 5 febr. 13.^o Sixti IV. + +[38] Preafatae ecclesiae, a qua regiae dignitatis culmen accepisti, +cuique annuum censum debes: Ibid. + +[39] Bulla: _Venerabilis frater_: 6 febr. 13.^o Sixti IV. + +[40] Carta de D. Alvaro de Bragança escripta de Castella a D. João II. +(Ms. da Biblioth. R.) + +[41] Talvez seja gente de mais. Mas deixe v.. passar; porque isto era já +estylo peninsular naquella epocha. + +[42] Jorn. de Coimbra, 1813, Abril, p. 310. + +[43] Memor. do R. Archivo, pag. 59. + +[44] Chancell. d'Aff. II. (M. 12 de For. Ant. N.^o 3). + +[45] Veja-se o alvará de D. Manuel, de 1502, no Liv. dos Privileg. de +Sancta Cruz fl. 2, o doc. de 1458 a fl. 157 do mesmo Liv., o do L. 5 da +Estremadura fl. 116 v. no Arch. Nac., etc. + +[46] Chron. dos Coneg. Regr., L. 9, c. 29. + +[47] Prodrom. ad refutat. Alcorani _passim_. + +[48] Uber die Länderverwaltung unter dem Khalifate (Berlim 1835) +Schaefer, Gesch. Span. 3 Th. S. 145. + +[49] O _digno_ academico refere-se evidentemente á traducção de Moura; +porque nem o commum dos leitores, que elle convida para lerem esses +capitulos, entendem o arabe, nem o original tem capitulos, como se +deprehende do prologo de Moura, e se vê das citações do texto arabe +feitas pelo sr. Gayangos nas suas notas á versão inglesa de Al-Makkari. + +[50] Nesta classe, como em todas, ha excepções respeitaveis: falo em +geral. + +[51] Dominac. de los Arab., P. 3 in fine. + +[52] Al-Khatib, Bibl. apud Casiri Bibl. Arab., T. 2, p. 216 e segg. + +[53] Abu-l-Feda, Annales Moslemici, T. 3, p. 359. + +[54] Al-Makkari (versão de Gayangos), Liv. 7 c. 5 e segg. L. 8 c. 1 e 2. +Veja-se tambem a taboa chronologica a p. 89 dos Append. do 2 vol., e os +extractos no livro _Kitabu-l-iktifá_ (Append. C. ad fin.). O reinado de +Abu-Is'hák, sitiado em Marrocos pelos almohades, foi apenas nominal. + +[55] Chron. Gothor. ad aer. 1125-1155. + +[56] Chron. Conimbric, ad aer. 1155. + +[57] Roder. Tolet. Histor. Arabum, cap. 49. + +[58] Assaleh, versão de Moura, c. 43, 44, 45. + +[59] Ibid. c. 40. + +[60] Conde, P. 3, c. 33. + +[61] Casiri, T. 2, p. 218, col. 2. + +[62] España Sagr., 21, 373. + +[63] O nome mais geral nos auctores arabes é _Lamtuna_; mas Ibn-Khaldun +(Gayangos, vol. 1, p. 408 nota _a_) chama-lhe _Lamtah_ e Leão Africano +(Casiri, vol. 2, p. 219) _Lemta_. + +[64] A pag. 22 do opusculo diz-se que escrever _emir_ é erro do vulgo +dos traductores em vez de _amir_ (o caso é serio), e a pag. 11 diz-se +que em vez de _emir-el-muminin_ eu deveria escrever _emir el-muminina_. +Em que ficamos? Em _emir_ ou em _amir_? Quanto a _muminina_, Gayangos, +Casiri, etc. escrevem sempre _muminin_. + +[65] Gayang. vers. d'Al-Makkari, Vol. 2, p. 386 + +[66] Abulfeda, Annal. Mosl., T. 2, p. 471. + +[67] Versão francesa de Pellissier et Rémusat p. 192. Ibn-Khalddun +denomina frequentemente khalifas os imperadores almohades. (Gayangos, +Vol. 2, App. D.) + +[68] Assaleh. c. 45. Neste capitulo fala-se muitas vezes no _califado_ e +no _califa_ Abdelmumen. + +[69] Não é só a chronica de Affonso VII que refere a queda de Aurelia: +os Annaes Toledanos referem-na igualmente. + +[70] O Karttás (titulo da historia d'Abdel-halim), é propriamente, +segundo o testimunho de Haji-Khalfah, e conforme o que se lê em diversos +exemplares da obra, escripto por Ibn-Abi-Zara, que viveu no seculo XIII. +Ab-del-halim parece ter sido um copista, ou talvez um abbreviador. +Veja-se a nota do sr. Gayangos ao L. 8, c. 2 de Al-Makkari. + +[71] Assaleh--vers. de Moura, c. 40 p. 182. + +[72] Chronica Adef. Imper. Praef. et § 64. + +[73] Sigo a paginação do opusculo, tirado á parte depois d'impresso na +_Revista de Ambos-Mundos_. Um exemplar delle que possuo, devo-o á +urbanidade e benevolencia do sr. Muñoz, que teve a bondade de m'o +remetter. + +[74] Em documentos do seculo XIII vemos ainda a designação de servos +applicada aos escravos mouros. N'um testamento de 1232 são legados ao +mosteiro d'Alcobaça _sarracenos et sarracenas servos et servas_. Doc. de +Alcobaça na Collecç. Especial, Gav. 81 na Torre do Tombo. + +[75] Hist. de Port., T. 3, p. 313 da 3.^a edic. + +[76] Hist. de Port., T. 3.^o, p. 255 (nota 4) 274 &c. + +[77] Esp. Sagr., T. 40, Append. 19. + +[78] Doc. de Moreira na Torre do Tombo, Collecç. Especial, G. 78. + +[79] Por exemplo, o 1.^o bispo de Coimbra depois da restauração, +Paterno, que, sendo bispo de Tortosa e vindo por embaixador dos +Beni-Huds de Saragoça a Fernando-magno, foi alliciado pelo alvasir +Sesnando para acceitar o episcopado de Coimbra, o que fez alguns annos +depois. _Qui suprafatus episcopus_ (diz o documento do Livro Preto da Sé +de Coimbra que refere o facto) _eo tempore Tortuosane Urbis sedem +tenebat, sed propter societatem paganorumofficium et ordinem suum minimè +adimplere valebat_. + +[80] N'uma doação de 1083 á igreja de Vouséla (Livro Preto f. 144) +mencionam-se entre outras alfaias _una casula tiraz et una dalmadiga +tiraz_. O _tiraz_ era um estofo precioso de fabrica sarracena, de que +usavam as pessoas principaes entre os mussulmanos, onde se liam bordadas +orações do culto islamitico e sentenças de koran. Quando os sacerdotes +da igreja de Arcozelo á qual tinham pertencido aquelles paramentos, ou +os da de Vouséla, á qual se doaram, celebrassem, revestidos com elles, +os officios divinos, os assistentes que não ignorassem a leitura do +arabe poderiam ir misturando as preces da igreja com as do islamismo, e +lendo as sentenças do koran, emquanto os celebrantes repetiam os textos +do evangelho. + +[81] Gothorum ordinem... tam in ecclesia... quam in palatio... statuit: +Chron. Albeld § 58. + +[82] Martim Moniz (genro do conde Sesnando e seu successor no governo de +Coimbra) doa perpetuamente a João Gosendes os bens na villa de S. +Martinho _que ibi obtinuit Cidel Pelagis in autondo de consule domno +Sesnando_. (Livro Preto da Sé de Coimbra f...) Aqui _atondo_ significa +serviço (_no serviço do conde Sesnando_) ou retribuição por serviço, mas +temporaria, por isso que os bens se doam depois hereditariamente a +outro. + +Documento hoje publicado nos _Portugaliæ Monumenta Historica, Diplomata +et Chartæ_, Pars. 1.^o N.^o 770. + +[83] Pag. 7. + +[84] Pag. 12 e 13. + +[85] surda aure cum inimicis summi Dei amicitias conligamus, et +placentes eis nostrae fidei derogamus--Quotidie opprobriis et mille +contumeliorum fascibus obrupti, persecutionem nos dicimus non +habere--Christianos contra fidei suae socios, pro regis gratia et pro +vendibilibus muneribus et defensione gentilium praeliantes, non +maledicimus nec detestamus, sed religiosos pro vero Deo certantes +anathemate percutimus et infamamus--Nonne ipsi qui videbantur columnae, +qui putabantur ecclesiae petrae... nullo cogente... Dei martyres +infamaverunt? Nonne pastores Christi, doctores ecclesiae, episcopi, +abbates, presbyteres, proceres et magnates haereticos eos esse publicè +clamaverunt?--Dùm enim circumcisionem ob improperantium ignominiam +devitandam... cum dolore etiam non medio corporis exercemus--Et dùm +eorum versibus et fabellis mille suis delectamus, eisque inservire, vel +ipsis nequissimis obsecundare etiam premio emimus... ex inlicito +servitio et execrando ministerio abundantiores opes congregantes, +fulgores, odores, vestimentorumque, sive opum diversarum opulentiam, in +longa tempora nobis filiisque nostris atque nepotibus praevidentes,--ob +honores saeculi fratres cum crimine regibus impiis accusamus,.. inimicis +summi Dei ad occidendum gregem Domini gladium revelationis porrigimus, +ducatumque eorum et ministerium ad ipsum facinus exercendum pecuniis +emimus.--Nonne omnes juvenes christiani, vultu decori, linguae disserti, +habitu gestuque conspicui, gentilitia eruditione praeclari, arabico +eloquio sublimati, volumina chaldaeorum avidissimè tractant, +intentissimè legunt, ardentissimè disserunt?--linguam suam nesciunt +christiani, et linguam propriam non advertunt latini, ita ut omni +Christi collegio vix inveniatur unus in milleno hominum numero, qui +salutatorias fratri possit rationabiliter dirigere litteras, et +reperitur absque numero multiplex turba qui eruditè chaldaicas verborum +explicet pompas. _Alvar. Cordub. Indicul. Lumin. passim._ + +[86] ille dixit quomodo fuit suo avolo Ezerag de Condeixa, et quando +filarunt mauros Colimbria fuit ille Ezerag ad Farfon ibn Abdella et +fecit se mauro et petibit XXX.^a mauros de arragaza et metivit illos in +matos et dixit ad illos christianos de illas villas exite gente +benedicta quia jam pace filavi cum mauros et exibant de illos matos et +populabant illas villas et exiebant illos mauros de illos matos et +levarunt eos ad Sanctaren et venundabant eos et fecerunt in illos VI +haretas de argento et inderenzarunt illos ad Cordova cum carta de Farfon +et cum isto ganato, et petivit illos molinos de Forma et alias villas +multas et donavit illos. Almanzor: _Lib. Testamentor. f. 76 v._ + +[87] Na freguesia de S. Martinho, aldeia de Valloura, districto de +Aguiar de Pena, havia 3 casaes, cujos moradores, além de outros onus, +tinham o seguinte: _et vadunt in mandatum ad Legionem, ut sciatur per +ipsos quid facit rex legionensis_: Inquirições de 1220: Liv. 5 de D. +Diniz f. 118 v. + +[88] Pag. 19 e 20. + +[89] Pag. 124 e 153. + +[90] Pag. 12. + +[91] La Russie, Lettre X. + +[92] Pag. 15. + +[93] Pag. 44 e segg. + +[94] Hist. de Port., T. 4, pag. 336 e 482. + +[95] Doação de Diogo Olidiz a Tructesindo Gutierriz da igreja de S. +Marina: «damus ad vobis illa pro plagas et feridas malas que cemus +(_sic_) ad vestros malados, et non abuimus unde illas pectare:» Doc. +original do mosteiro de Moreira de 1075 no Arch. Nacional. + +[96] Liv. 1, Tit. 7, l. 2. + +[97] Qui conductarium alienum occiderit dominus ejus accipiat inde +homicidium. Similiter de suo ortolano et de suo quartario et de suo +molendinario et de suo solarengo. + +[98] Et homo de Nomam qui suos homines habuerit in suis hereditatibus, +aut sui vassali fuerint, et aliquis illum mactaverit, suus senior +colligat inde homicidium: For. de Numão de 1130. + +[99] ...... peccato impediente battivimus vestro junior, nomine Froila, +cum alios meos galiasianes... et pervenit ipse Froila de ipsa badtedura +ad mortem, et pro ipso homicidium abui vobis ad dare in judicato quinque +boves, et pro ipsis quinque boves incommunio vobis pro medio &. Est. de +las Person., pag. 15. + +[100] Collecc. de Fuer. Municip., pag. 130 e seg. + +[101] Hist. de Port., Vol. 3., Nota final XVI. + +[102] Collecc. de Fuer. Municip., pag. 126. + +[103] Pag. 2. + +[104] Liv. 5, tit. 4, l. 13. + +[105] Liv. 2, tit. 4, l. 5. + +[106] Pag. 160 + +[107] A confusão, na phrase, entre o colono e o predio, tomados um pelo +outro, confusão que sobretudo se deduz claramente das singulares +expressões _homem inteiro_, _meio homem_, etc. apparece ainda ás vezes +nos nossos monumentos do seculo XIII. Nas Inquirições da terra de Faria, +feitas naquella epocha, lê-se, por exemplo: «S. Leocadia de Pedrafurada: +homines de ista collacione solebant pectare vocem et calumniam, sed modo +non pectant nisi quinque homines et medium qui dant annuatim singulas +gallinas, et _medius homo_ dat mediam gallinam: et ista casalia... dant +vocem et calumniam et singulas gallinas et duos, duos solidos, tribus +vicibus in pedida, sed _medium casale_ medium forum facit. Inquir. +d'Affons. III, L. 7, f. 14 v. + + + + +Lista de erros corrigidos + +Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: + + + +----------+---------------------+----------------------+ + | | Original | Correcção | + +----------+---------------------+----------------------+ + |#pág. 21| a a que | a que | + |#pág. 36| aggresssões | aggressões | + |#pág. 50| encarnada | incarnada* | + |#pág. 106| esse invenção | essa invenção | + |#pág. 137| instinctos | intuitos* | + |#pág. 157| desprezados | desprezadas* | + |#pág. 160| de | do* | + |#pág. 171| as creança | as creanças | + |#pág. 187| giria | gira* | + |#pág. 191| pena | penna* | + |#pág. 249| ?uccessores | successores | + |#pág. 287| da | de* | + |#pág. 288| prudente | precedente* | + |#pág. 292| conpição | condição* | + | | | | + |#nota 80| celebran | celebrantes* | + +----------+---------------------+----------------------+ + +* correcções feitas com base na errata do próprio livro. + +Aspas foram adicionadas nos locais onde deveriam existir: (#pág. 50: +delles.» Para) + +O número da nota de rodapé #55 (#pág. 202) encontra-se omitido na obra, +tendo sido acrescentado neste e-book. + +Variantes da palavra "mussulmano" foram mantidas de acordo com o +original. + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - +Tomo 03, by Alexandre Herculano + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 *** + +***** This file should be named 30566-8.txt or 30566-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/0/5/6/30566/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/30566-8.zip b/30566-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..9cf5989 --- /dev/null +++ b/30566-8.zip diff --git a/30566-h.zip b/30566-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..03dec1e --- /dev/null +++ b/30566-h.zip diff --git a/30566-h/30566-h.htm b/30566-h/30566-h.htm new file mode 100644 index 0000000..f026d98 --- /dev/null +++ b/30566-h/30566-h.htm @@ -0,0 +1,14140 @@ +<!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> +<html xmlns="http://www.w3.org/1999/xhtml"> +<head> + <title>Opúsculos (Tomo III)</title> + + + <meta content="Alexandre Herculano" name="AUTHOR" /> + + <meta content="text/html; charset=ISO-8859-1" http-equiv="Content-Type" /> + + <style type="text/css"> +body {width: 50%; margin-left:10%; text-align: justify;} +h1, h2, h3, h4, h5 { text-align: center;} +h1 {margin: 2em; text-align: center;} +h2, h4 {margin-top: 2em;} +.bbox {border: solid black 1px; margin-left: 5%; margin-right: 5%;} +.fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 75%; margin-left: 10%; margin-right: 10%;} +.dots {color: #fff; background-color: inherit; border: 3px dotted #555; border-style: none none dotted;} +.tinyl { +font-size: 95%;} +.bbreak { +width: 20%; +margin-left:40%;} +.sbreak { +width: 10%; +margin-left:45%;} +.quote { +margin-left:7%;} +.quote1 { +margin-left:50%; +font-size: 90%;} +.quote2 { +margin-left:20%;} +.pagenum { position: absolute; right: 35%; +font-size: 75%; +text-align: right; +text-indent: 0em; +font-style: normal; +font-weight: normal; +color: silver; background-color: inherit; +font-variant: normal;} + </style> +</head> + + + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03, by +Alexandre Herculano + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 03 + +Author: Alexandre Herculano + +Release Date: November 30, 2009 [EBook #30566] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 *** + + + + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + + + + + +</pre> + + +<div> +<div class="fbox"> <b>Nota de editor:</b> +Devido à +existência de erros tipográficos neste texto, +foram tomadas várias decisões quanto à +versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi +mantida de acordo com o original. No final deste livro +encontrará a lista de erros corrigidos.<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita +Farinha (Nov. 2009) +</div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h1>OPUSCULOS +</h1> + +<br /> + +<br /> + +<div class="bbox"><br /> + +<h1>OPUSCULOS +</h1> + +<h4>POR<br /> + +<br /> + +A. HERCULANO +</h4> + +<h5>SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA +SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA +SOCIO CORRESPONDENTE +DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID +DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS +INSCRIPÇÕES) +DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM +DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. +</h5> + +<br /> + +<div class="bbreak"> +<hr /></div> + +<h3>TOMO III +</h3> + +<div class="bbreak"> +<hr /></div> + +<br /> + +<h3> +CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS +</h3> + +<h4> +TOMO I +</h4> + +<br /> + +<h4>LISBOA +</h4> + +<h5> +VIUVA BERTRAND & C.<sup>a</sup>―SUCCESSORES, +CARVALHO & +C.<sup>a</sup><br /> + +Chiado, 78<br /> + +<br /> + +M DCCC LXXVI<br /> + +</h5> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<hr /> +<div style="text-align: center;">Lisboa―Imprensa Nacional +<br /> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +Contem este volume diversos escriptos sobre +duas questões historicas. A primeira, que se refere +ás tradições fabulosas +ácerca da batalha de +Ourique, quasi que não tem valor algum á luz da +sciencia. Expôr semelhantes tradições +era, por +assim dizer, refutá-las, e perante a historia tal +refutação seria de sobra. A segunda, relativa +á +situação das classes servas na Hespanha desde o +VIII até o XII seculo, versa sobre a legitimidade +da solução que adoptei n'um dos mais difficeis +problemas que se me offereceram ao escrever o +terceiro volume da Historia de Portugal na epocha +decorrida desde a fundação da monarchia +até o fim do reinado de Affonso III. As phases +da lenta transformação do escravo das sociedades +<span class="pagenum">[VI]</span> +antigas no obreiro, cidadão livre das sociedades +modernas, obscuras ainda em parte na +historia da civilisação e do progresso humano +entre as nações d'além dos Pireneus, +muito mais +o são áquem delles. As divergencias, e +divergencias +profundas, entre os que se dedicam a estudar +o assumpto nascem dessa obscuridade, e é +dos debates que elle pode suscitar que ha de surgir +a final a luz. +<br /> + +<br /> + +Como tantas vezes succede, não foi a questão +grave e difficil que alevantou arruido: foi a insignificante +que despertou as attenções e que produziu +viva agitação na imprensa e fóra da +imprensa, +dividindo em dous campos o publico que lê. +É que na primeira interessava apenas a sciencia, +e a segunda contrariava os intuitos de uma parcialidade +e as preoccupações dos espiritos vulgares, +que constituem o grande numero. Se a religião +era extranha ao assumpto, ou antes ganhava +na suppressão de uma pia fraude, perdia com +isso a maioria do sacerdocio, atarefada, hoje mais +que nunca, em tecer a rede de suppostos milagres +<span class="pagenum">[VII]</span> +em que parece querer amortalhar o catholicismo. +Escrevendo um livro serio, eu affastara +brandamente para o limbo das fabulas aquellas +ficções ridiculas, porque era forçoso +fazê-lo. +Nem tivera a intenção do escandalo, nem a cousa +o valia. A maioria, porêm, do clero não o entendeu +assim. +<br /> + +<br /> + +Na carta ao patriarcha de Lisboa, com a qual +este volume começa, está a resumida noticia das +aggressões de que fui alvo e que por algum tempo +supportei com resignação ou +indifferença, resignação +ou indifferença em que provavelmente, +hoje, que sei melhor o que taes aggressões valem, +continuaria a permanecer. Estava, porêm, +então naquella epocha da vida em que a paciencia +christan não é a virtude mais vulgar do +homem. O leitor ajuizará se os prelados portugueses +foram ou não imprudentes em tolerarem +ou talvez favorecerem aquellas ineptas e brutaes +manifestações da ignorancia e do interesse +ferido. +<br /> + +<br /> + +Pelo que toca ao opusculo sobre o estado das +classes servas da Peninsula no decurso dos seculos +<span class="pagenum">[VIII]</span> +VIII a XII, destinado a combater as opiniões +do erudito Muñoz y Romero, é bem de crer que +ao meu illustre adversario não faltassem argumentos +para contrapôr ás objecções +que lhe fiz; +mas affastaram-no do debate outros estudos, até +que veio salteá-lo a morte, quando a Hespanha +tinha a esperar os melhores fructos da alta intelligencia +daquelle incansavel cultor da historia. +Buscando ambos a verdade, a discussão encetada +conduzir-nos-hia, provavelmente, a modificarmos, +tanto um como outro, as nossas ideas, talvez +absolutas em demasia, e a estabelecermos +uma doutrina solida sobre tão espinhoso assumpto. +Entretanto, ainda hoje me persuado de que, +para nos aproximar-mos, seria elle que teria de +andar mais caminho. Julgá-lo-hão os que, depois +de lerem attentamente o meu modesto trabalho, +examinarem com igual attenção o escripto de +Muñoz y Romero e a apreciação desse +escripto +por Mr. de Rozière. +<br /> + +<br /> + +<div class="quote"> +Janeiro de 1876 +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h2>A BATALHA DE OURIQUE +</h2> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c1"></a>I<br /> + +<br /> + +EU E O CLERO<br /> + +</h3> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<h4>AO PATRIARCHA DE LISBOA +</h4> + +<h4> +(<em>Junho, 1850</em>) +</h4> + +<br /> + +<br /> + +É debaixo da impressão de vivo desgosto, e +cedendo emfim ao impulso de justa indignação, +que dirijo a vossa eminencia esta carta. A desculpa +que merece um animo turbado por offensas +immerecidas, e o favor que sempre encontrei +em vossa eminencia me fazem esperar que esse +favor não padecerá quebra, se alguma phrase +mais forte do que eu desejara me fugir da penna +ao escrever este papel; papel que, solemnemente +o declaro desde já, não tem por objecto, +como alguem poderia suppôr, pedir desaggravo +das offensas a que alludo. De natureza são ellas, +que nem preciso nem quero que outrem as puna. +Sei e posso eu fazê-lo, se cumprir, de um modo +que sirva de escarmento á ignorancia perversa e +<span class="pagenum">[4]</span> +á hypocrisia insensata. O meu intuito é apenas +rogar directamente a vossa eminencia, e indirectamente +aos demais prelados de Portugal a +cujas mãos chegar esta carta por +intervenção da +imprensa, que, obstando a novas provocações da +parte do clero, me poupem a dar uma dura licção +a individuos, que, desconhecendo os deveres do +sacerdocio e incapazes de sentimentos de +moderação, +tentam excitar as paixões odientas de um +fanatismo que já nem, talvez, o povo comprehende +contra um homem que nunca lhes fez mal, e +que nem sequer se lembra delles, porque tem +cousas um pouco mais sérias em que cogitar. +<br /> + +<br /> + +Ha quatro annos que publiquei o primeiro volume +de uma Historia de Portugal, que tem feito +certa impressão no paiz, e ainda fóra delle. Na +benevolencia com que esse livro foi recebido por +naturaes e extranhos nada ha provavelmente que +deva lisonjear o amor-proprio litterario do auctor, +mas ha uma prova de que o publico reconheceu +nelle certa independencia de espirito e uma estricta +imparcialidade, para a qual o longo e severo +exame dos factos o habilitava. Como eu o previra +na advertencia posta á frente daquelle primeiro +volume, a sinceridade da narrativa, estribada +em monumentos indisputaveis, destruindo +<span class="pagenum">[5]</span> +muitas dessas tradições, mais ou menos +improvaveis, +que deturpam a historia de todos os povos, +suscitou contradictores. Era cousa natural. +As manifestações de colera, as injurias vertidas +contra mim na imprensa, não podiam causar-me +nem estranheza nem abalo. Estava resolvido a +guardar silencio perante ellas e a proseguir na +senda que abrira, sem me distrahir com luctas +estereis. A verdade fica, e as preoccupações +passam. +Ao mesmo tempo a minha resolução inabalavel +era, e é, desprezar todos os respeitos humanos +que se contraponham á voz da propria consciencia. +Todavia o não nos affastarmos dos seus +dictames é empenho que não sae de +graça neste +mundo de paixões pequenas e más; e bem louca +esperança seria a minha, se a tivesse de evitar +os effeitos de uma lei universal. Era por isso que +estava resolvido a esgotar resignadamente o meu +calix. +<br /> + +<br /> + +Pouco depois da publicação do primeiro volume +da Historia de Portugal, n'um periodico litterario +da universidade de Dublin um critico inglês +punha em duvida se eu, que expurgara de +lendas fradescas a historia do berço da monarchia, +teria esforço bastante para avaliar como cumpria +as longas e violentas dissensões dos reis da primeira +<span class="pagenum">[6]</span> +dynastia com os bispos e com a curia romana. +Quando li isto, sorri-me. Nessa mesma conjunctura +publicava-se em Lisboa o meu segundo +volume, onde se continha a narrativa de boa parte +daquellas discordias. Ahi me parece ter dado +documento de que os receios manifestados na +imprensa inglesa não eram dos mais bem fundados. +<br /> + +<br /> + +Mas esse volume, accendendo novas coleras, +despertou em alguem a idéa de me refutar de +modo inaudito. Do pulpito de uma das igrejas de +Braga, da antiga metropole, onde ainda devem +estar bem vivas as memorias do veneravel Caetano +Brandão, do illustre prelado que pretendia +reformar o breviario e missal bracharenses por +causa <em>das suas intoleraveis patranhas e +falsidades</em> +(phrase do grande arcebispo), o meu nome +foi lançado ás multidões ladeado dos +epithetos +de hereje, de impio e de outros semelhantes. +Um egresso fanatico e ignorante (como o são centenares +de sacerdotes no meio do nosso clero, +que não recebe ha muitos annos nem +educação +moral nem educação litteraria) cubriu-me de +injurias +diante de um concurso numeroso, segundo +me informaram, porque no meu livro usara do +direito de historiador, qualificando devidamente +<span class="pagenum">[7]</span> +essas intelligencias vastas e energicas, mas corruptas, +violentas e cubiçosas que cingiram a thiara +papal, e que se chamaram Gregorio, Innocencio +ou Honorio. A principio acreditei que isto não +passara de um impulso de fanatismo individual; +mas em breve me desenganei de que o facto pertencia +a um systema organisado de aggressão. A +imprensa politica noticiou procedimentos analogos +para comigo em outros lugares do arcebispado. +Se o objecto das invectivas era o mesmo, +se igual a violencia das expressões, ignoro-o: mas +o que me pareceu evidente foi que havia, como +disse, em tão insolito proceder um systema uniforme +e combinado. +<br /> + +<br /> + +Calei-me. A minha equanimidade foi bastante +para tolerar este ataque brutal á liberdade do +pensamento; foi tamanha como a do respectivo +prelado, que guardou silencio, e que devera ter +advertido o seu clero de que, não havendo eu +offendido doutrina alguma da igreja, e tendo-me +limitado a julgar os homens e os factos da epocha +sobre que escrevia, por mais erradas que fossem +as minhas opiniões, ellas não podiam ser +qualificadas +publicamente de hereticas, concitando-se +assim contra mim a credulidade popular. Um sermão +não é o meio de refutar erros litterarios, e +<span class="pagenum">[8]</span> +muito menos o é qualificar taes erros como offensas +da fé para os transformar em crimes religiosos. +Em semelhante terreno a lucta sería impossivel, +porque delle brota o risco pessoal, ou +pelo menos a perda da reputação moral para um +dos contendores, ou melhor direi para a victima +indefensa, amarrada ao poste desse novo genero +de patibulo. Os ignorantes olhariam com horror +para o Luthero ou Calvino que surge na terra +da patria, e esse odio publico é uma verdadeira +coacção á liberdade legitima do +escriptor: legitima, +digo, porque, apesar de tantas declamações +e queixas, é evidente que no meu livro não ha +uma unica palavra que offenda a orthodoxia da +igreja. Se eu tivesse proferido alguma heresia, +os prelados portugueses, e em particular vossa +eminencia como meu pastor, não seriam capazes +de faltar aos seus mais estrictos deveres, deixando +de me advertir do erro com caridade evangelica, +e de me condemnar se eu insistisse n'elle. +Era então que aos bispos, e não a qualquer desses +cirzidores de farrapos de sermões velhos, desses +inimigos figadaes da lingua, da grammatica e do +senso commum, denominados, por antiphrase, +prégadores ou oradores, que era licito, que cumpria +lançar sobre mim o anathema. +<span class="pagenum">[9]</span> +<br /> + +<br /> + +A guerra desleal que uma parte do clero (digo +uma parte, porque no seu gremio ha muitos homens +leaes e verdadeiramente illustrados) me +declarara no norte do reino não tardou a apparecer +no meio-dia, no recincto da propria capital. +O primeiro commettimento foi tentado n'uma solemnidade +notavel, e n'um dos templos mais frequentados +de Lisboa. Nesse acto o absurdo da +aggressão nasceu antes da impropriedade do logar, +do que das formulas empregadas pelo aggressor, +que se absteve de injurias grosseiras. +Lisboa não é Braga, e o negocio precisava aqui +de maior circumspecção. Entretanto a tentativa +desagradou geralmente, e eu pensei que emfim +me deixariam em paz. +<br /> + +<br /> + +Não succedeu assim. Ultimamente na minha +propria parochia, e dous dias depois n'outra igreja +da capital, fui de novo arrastado perante as +turbas na torrente da eloquencia clerical. Se no +primeiro caso houve a intenção de se me +administrar +face a face uma correcção fraterna, o calculo +falhou. Creio que vossa eminencia me faz a +justiça de acreditar que não me deleito +excessivamente +em ir ouvir máus sermões de ha sessenta +annos, ou traducções detestaveis de fragmentos +de sermonarios franceses, declamadas, ou antes +<span class="pagenum">[10]</span> +carpidas, em tom ainda mais detestavel. O annuncio +de um sermão é para mim por via de regra a +espada percuciente do anjo do paraiso flamejando +á porta do templo. Salvo em rarissimos casos, +não haveria forças que podessem arrastar-me a +assistir aos partos da oratoria, que, por irrisão +sacrilega, se denomina sagrada. A resistencia dos +meus nervos em tal conjunctura seria mais forte +do que a propria vontade. +<br /> + +<br /> + +Em Braga, e creio que nos outros logares daquella +diocese, a censura tinha sido fulminada +contra a liberdade com que falei dos chefes da +igreja nos seculos médios, da curia romana, e +talvez dos bispos portugueses de então. Ao menos +lá a invectiva tinha certa originalidade. No +patriarchado, porém, as accusações, +postoque +menos brutaes, tiveram o defeito de ser um verdadeiro +plagio. +<br /> + +<br /> + +Narrando no primeiro volume da Historia de +Portugal o recontro de julho de 1139 em Ourique, +reduzido ás dimensões que suppús e +supponho +exactas, ommitti a fabula do apparecimento +de Christo, como cousa indigna da gravidade da +historia, e, sob certo aspecto, demasiado irreverente +para com o sublime Fundador do Christianismo. +Apenas n'uma nota alludi a essa tradição +<span class="pagenum">[11]</span> +absurda, affirmando que se estribava n'um documento +falso, o celebre juramento attribuido a Affonso +I, juramento que ainda existe no supposto +original. Eis o grande escandalo para os prégadores +de Lisboa. Confesso que ahi tractei esse +embuste com o desprezo que elle merece, porque, +na verdade, conhecendo eu muitos diplomas +forjados com maior ou menor destreza, este é, +sem contradicção, o mais inhabilmente executado. +<br /> + +<br /> + +As poucas palavras que dediquei a semelhante +ninharia suscitaram o zelo de alguns individuos, +persuadidos de que eu tinha despedaçado, com +as tres ou quatro linhas que a tal proposito escrevi, +o palladio da independencia nacional, que +bem fraca independencia sería se estivesse como +adscripta á crença ou á +descrença n'um conto de +velhas. Houve até um pobre homem, o qual, no +meio das discordias civis que assolaram o reino +pouco depois da publicação do meu livro, dirigiu +aos povos do Alemtéjo uma proclamação, +em que +affirmava que, ligado por um pacto infernal com +os membros do governo então derribado, eu ia +demolindo as glorias portuguesas para vendermos +de commum accordo a independencia da patria. +Não me recordo agora do preço, nem de +<span class="pagenum">[12]</span> +quem foi o comprador, mas a venda parece que +era indubitavel. +<br /> + +<br /> + +Entretanto publicavam-se artigos de jornaes e +folhetos avulsos contra mim. Nada mais legitimo; +nada mais liberal. Se os corsarios da palavra de +Deus, que esbombardeam o meu pobre livro de +um logar aonde eu não posso subir, do alto do +pulpito, convertido em chapiteu de proa de junco +malaio, houvessem seguido este rumo, seria eu +tão ridiculo como o instrumento da +apparição, se +disso me queixasse a vossa eminencia ou aos outros +prelados do reino. A imprensa é uma estacada +onde nos julgadores do combate, e sobretudo +de um combate litterario ou scientifico, ha já um +grau de illustração, que até certo +ponto affiança +uma decisão justa. Reptado ahi, eu podia erguer +a luva, ou deixar, quando assim o entendesse, que +o livro delatado servisse por si mesmo de resposta +aos accusadores. Em um e outro caso procederia +livremente, e não ficaria, como no campo em +que sou aggredido, collocado debaixo de uma +coacção moral. Ahi os reverendos +prégadores, +que tem tido a condescendencia de tractar da minha +humilde pessoa, até poderiam appellidar-me, +se quizessem, hereje, impio, atheu, demonio incarnado: +eu respondia-lhes que elles estavam bem +<span class="pagenum">[13]</span> +livres de ser nenhuma dessas cousas, e ficavamos +perfeitamente pagos. +<br /> + +<br /> + +Dous dos folhetos avulsos dirigidos contra a +Historia de Portugal, que me chegaram ás mãos, +tractavam justamente desse gravissimo negocio +da apparição, que em parte me tem feito victima, +por me servir de uma phrase do padre Isla, da +<em>dialectica eloquencia dos selvagens da +Europa</em>. +Ambos comedidos e corteses, ao mesmo tempo +que produziam no meu animo um sentimento de +tristeza, inhibiam-me de responder-lhes, ainda +quando não estivesse, como ha pouco disse a vossa +eminencia, no firme proposito de evitar luctas +estereis. A tristeza que senti á leitura daquelles +folhetos nascia de achar nelles a prova da decadencia +a que tinham chegado neste paiz os estudos +historicos. N'um livro que, com bons ou +maus fundamentos, mudava completamente o aspecto +até aqui attribuido ao complexo dos successos +do nosso paiz, na infancia da sociedade +portuguesa, havia por certo mais de uma +inexacção, +mais de um defeito importante, como obra +que era de homem―de homem desajudado n'uma +empreza de tal ordem, e entregue unicamente aos +proprios recursos e forças. Ácerca, +porém, das +materias positivas, historicas, susceptiveis de serio +<span class="pagenum">[14]</span> +exame, apenas appareceu, que me conste, um +artigo no periodico litterario a <em>Revista +Universal</em>, +e outro no <em>Observador</em> de Coimbra. As +duas publicações +avulsas que me vieram ás mãos, ambas, +como disse, curavam exclusivamente de me demonstrar +o milagre da apparição, milagre do qual +(atrevo-me quasi a affirmá-lo) ainda que os meus +adversarios o tivessem sustentado com boas razões +<em>historicas,</em> me parece que eu, vossa +eminencia, +toda a gente, que não seja algum leigo capucho, +haviamos de continuar a rir, cada qual segundo +o papel que acceitou nesta grande comedia +humana―uns em publico, outros em particular. +<br /> + +<br /> + +Agora pelo que respeita aos motivos que, além +da razão geral já dada, me inhibiam de responder +aos dous escriptores, permitta-me vossa eminencia +que eu dilate um pouco o discurso a este +proposito. Não é a digressão alheia ao +assumpto. +O meu silencio ante contendores francos e leaes, +que me buscavam com armas corteses no campo +da imprensa, interpretou-o a ignorancia como um +signal de fraqueza. Não contribuiria isto para despertar +a audacia dos meus anathematisadores? +Não seria eu proprio o culpado da minha affronta? +Desculpe vossa eminencia uma comparação, +<span class="pagenum">[15]</span> +acaso ambiciosa em demasia. Tem o merito de +se referir a uma fabula, e nós achamo-nos n'uma +questão de fabulas. Quando o leão jazia +moribundo, +foram as feras valentes e generosas que +arrostaram o perigo. O onagro só veio ferir-lhe a +fronte pendida, depois que, averiguada a situação +do rei das florestas, se persuadiu de que podia +injuriá-lo a seu salvo. +<br /> + +<br /> + +Se fui, pois, o causador do mal, devo justificar +o silencio que o gerou. É a esse alvo que se dirige +a digressão de que falo. +<br /> + +<br /> + +Um dos folhetos era escripto por um ancião respeitavel, +não só pelas suas cans, mas tambem pelos +seus padecimentos physicos, consideração +fortissima +para mim, que entendo ser sempre digna de +respeito a desgraça; era producção de +um homem +chegado áquelle quartel da vida, em que o espirito +parece eivado da ruina do corpo, que vem +annunciando a proximidade do tumulo. Com a +mão na consciencia eu protesto a vossa eminencia +que ainda hoje sentiria remorsos, se, na força +da vida e do pouco talento que Deus repartiu +comigo, não tivera sabido domar os impulsos de +um ridiculo amor-proprio; se houvera ido derramar +a afflicção sobre o leito de dor do afflicto, +para saborear o triste e vergonhoso prazer de ouvir +<span class="pagenum">[16]</span> +os apupos do publico a um pobre velho, que +queria, que tinha direito de morrer em paz abraçado +com as tradições da sua infancia; que precisava +de protestar contra um homem, o qual, embora +involuntariamente, ia prostituir-lhe no coração +idéas e affectos, amigos constantes da sua larga +existencia. Se Deus podesse fazer milagres absurdos +e inuteis, como o da apparição, eu preferiria +ver-me convertido em cirzidor e carpidor de farrapos +pareneticos a ter de accusar-me de uma +acção, que não sei qual seria mais, se +covarde, +se despiedada. +<br /> + +<br /> + +Quanto ao outro folheto, composto por um homem +de talento, instruido, e no vigor da idade, +não militavam as mesmas razões de conveniencia +moral; militavam, porém, outras assaz fortes, e +de natureza analoga. Affastadas as considerações +poeticas, alheias a materias historicas, os argumentos +colligidos naquella publicação a favor do +milagre de Ourique dividiam-se em duas categorias, +ou antes eram apenas dous argumentos. Um +consistia no consenso de certo numero de escriptores, +todos de epochas mais recentes que o +meado do seculo XV. A futilidade desta +argumentação +é evidente. Os <em>classicos</em> +são respeitaveis +como mestres de lingua; mas como testemunhas +<span class="pagenum">[17]</span> +de um facto, que se diz acontecido pelo menos +trezentos annos antes que elles escrevessem, de +nada servem. A qualidade de classicos não exclue +a de credulos, e nem sequer a de inventores de patranhas. +A chronica de Clarimundo, a da Tavola-redonda, +a de Palmeirim d'Inglaterra são escriptas +por tres classicos como Barros, Jorge Ferreira, e +Francisco de Moraes, e eu supponho, não sei se me +engano, que esses livros não encerram senão +mentiras. +Se o auctor queria provar-me a perpetuidade +da tradição de Ourique, não devia +esquecer o <em>criterium</em> +estabelecido por Vicente de Lerins, e com +elle pelo senso commum, para distinguirmos das +falsas as tradições verdadeiras: +<em>Quod semper, +quod ubique, quod ab omnibus creditum est</em>. Era-lhe +necessario mostrar-me essa tradição +através +de todos os seculos, e sobretudo dos seculos +onde ella desapparece, os tres immediatos ao +supposto facto. Confesso a vossa eminencia um +peccado, e alliviarei delle a consciencia, porque +o confesso perante o meu pastor: a minha intelligencia +foi demasiado orgulhosa para descer a refutar +semelhantes objecções. Que me importava, +de feito, que a fabula tivesse este ou aquelle motivo, +nascesse no seculo XVI ou no XV? Tomara eu +tempo e monumentos para averiguar os successos +<span class="pagenum">[18]</span> +verdadeiros e as suas causas, circumstancias e +effeitos. Genealogico d'embustes é mistér para o +qual me falta inteiramente a vocação. +<br /> + +<br /> + +A segunda categoria de argumentos, ou antes, +o segundo argumento em favor do milagre era +a citação de dous textos precisos, de duas +auctoridades +contemporaneas, que relatavam o successo. +Uma era nada menos que a de S. Bernardo; +outra a de uma copia coeva do juramento, copia +conservada em Roma, e transcripta no volume 51 +da <em>Symmitica Lusitana</em>, manuscripto +da Bibliotheca +Real, de cuja existencia é abonador o illustre +Cenaculo. Este argumento estava longe da +obvia fraqueza de est'outro. A tradição +ía assim +prender-se do seculo XV ao XII, embora obscurecida +no periodo intermedio. Alguem imaginará, +portanto, que para não responder a +objecções +deste valor apparente só me conteve o proposito +de evitar disputas escusadas. Não foi assim. Contiveram-me +considerações de maior monta. Se o +eram ou não, vossa eminencia o julgará. +<br /> + +<br /> + +Antes de tudo, observará vossa eminencia que +eu digo <em>disputas escusadas</em>. Digo-o, +porque esses +testemunhos contemporaneos não bastam, como +vossa eminencia sabe, para acreditarmos nos milagres +da idade média. Á excessiva devassidão +e +<span class="pagenum">[19]</span> +bruteza aquelles tempos de trevas uniam uma +crença fervorosa, confundida com +superstição extrema. +A idéa religiosa formulava-se em tudo, +na guerra, na vida civil, nos affectos do +coração, +nas artes, na litteratura, na sciencia; e quando uma +idéa domina assim a sociedade, converte-se em +prisma através do qual as cousas se illuminam +com as côres que elle lhes transmitte. O maravilhoso +introduzia-se em todos os factos em que +as imaginações, possuidas de uma especie de febre +moral, achavam pretextos mais ou menos +plausiveis para lh'o attribuir. Accrescia a tendencia +innata dos homens para indagar as causas dos +diversos phenomenos. Comprimida n'um ambiente +de ignorancia e rudeza (ambiente em que vive +boa parte do nosso clero), essa tendencia dilatava-se, +respirava pelo unico resfolgadouro possivel, +pela facil theoria do maravilhoso, do sobreintelligivel. +Nas chronicas d'então quasi que o miraculoso +é o regular, e o natural a excepção. +Dos +chronistas dos seculos barbaros o mais despreoccupado +é o benedictino inglês Matheus Paris. Todavia +centenares, que não dezenas, de milagres +absurdos são gravemente narrados na +<em>Historia +Major</em>. Permitte-me vossa eminencia que lhe recorde +um exemplo do modo de vêr daquellas eras? +<span class="pagenum">[20]</span> +Sem sairmos do reino, nem do seculo XII, e até +limitando-nos á vida do personagem a quem se +attribue o singular favor de Ourique, temos á mão +um exercito de milagres, postoque em sentido +inverso ao da apparição. Alludo aos desgostos de +S. Rosendo com o nosso primeiro rei. A vida do +sancto, <em>escripta no seculo XII</em>, foi, +como vossa +eminencia sabe, publicada por Florez, e uma copia, +talvez coeva, ou quando muito do seculo XIII, +existe ainda entre os manuscriptos de Alcobaça +(codice 133). Ahi lemos que o rei português fora +obrigado a levantar o sitio do castello Sandino, +nas margens do Arnoia, por uma tempestade de +raios que o sancto desfechou contra elle. Se acreditarmos +o pio agiographo, o seu implacavel heroe +nunca perdoou a Affonso I, apparecendo por +tres vezes a diversas pessoas para protestar vingança +contra o principe, que nas suas correrias na +Galliza não respeitara as terras do mosteiro de Cellanova. +Nesta lucta atroz entre o grande da terra +e o grande do ceu, S. Rosendo não poupava maravilhas. +Debalde; porque, como observa o monge +historiador, o coração do rei, que elle compara +caritativamente a Simão Mago, estava obdurado, +qual o de Pharaó, <em>para maior cumulo da sua +condemnação</em>. A malevolencia +milagreira do sancto +<span class="pagenum"><a name="p21" id="p21">[21]</a></span> +não abandonou Affonso Henriques senão no +tumulo. Os contratempos dos ultimos annos do +reinado do fundador da monarchia, incluindo o +desbarato de Badajoz, a fractura da perna, o aleijão +com que ficou até a morte, tudo foi obra de +S. Rosendo, e havia mesmo quem affirmasse ter +visto o sancto revestido do corpo humano e muito +atarefado, na occasião em que o rei de Portugal +caíu prisioneiro do genro. São pelo menos +vinte milagres attestados por um escriptor desses +tempos. Penso que não me accusarão de avaro ou +de desagradecido os que querem enriquecer á +força o thesouro das minhas crenças com a +apparição +de Ourique. Vinte por um. Indisputavelmente +eu sou muito mais rico do que elles em +provisão de milagres. +<br /> + +<br /> + +De todas essas maravilhas, porém, apesar de +subministrarem á credulidade melhores fundamentos +que a de Ourique, faço eu tanto caso como +desta ultima, pelas considerações que indiquei, +aliàs bem escusadas para a comprehensão e +litteratura +de vossa eminencia. Mas nem foi unicamente +o preceito que a mim proprio impusera de +não malbaratar o tempo em questões desta ordem, +nem essas considerações, que obstaram <a href="#e1">a que</a> eu respondesse a um escripto, em +que o +<span class="pagenum">[22]</span> +erro, e talvez o despeito, vinham envoltos em +fórmas tão corteses, que tocavam a raia de +lisonjeiras, +e em que a argumentação tomava emfim +o aspecto de uma cousa séria. Não, eminentissimo +senhor! A refutação sería na verdade +facil, decisiva, fulminante; mas ella lançaria uma +torpe mancha sobre nomes illustres e caros á igreja +portuguesa. Repugnava-me sobretudo esta +idéa. Por maiores precauções de que eu +me rodeasse, +a logica implacavel do publico tiraria as +legitimas illações das minhas palavras, e +convertê-las-hia +em desdouro commum de uma classe +que nenhum mal me havia feito. Se hoje a necessidade +de repellir a insolencia covarde, como a +insolencia o é sempre, me obriga a expôr actos +vergonhosos e inqualificaveis, a culpa não m'a +lancem. Dous annos de paciencia provam que o +faço constrangido por aggressões demasiado +graves, +não por si, nem por seus auctores, cousas +profundamente insignificantes, mas pelo logar +onde se commettem, por serem feitas com a +intenção +de excitar contra mim animadversões immerecidas, +por se tentar, emfim, converter atraiçoadamente +uma questão, que nem chega a ser +historica, em questão religiosa. A gloria do escandalo +deixo-a inteira aos que o provocaram. +<span class="pagenum">[23]</span> +Se vou bater sobre campas, que cobrem cinzas +envoltas em vestes sacerdotaes; se perturbo a +paz dos mortos para lhes +bradar―«<em>Falsarios!</em>»―esta +mão que se estende para indicar os criminosos, +esta voz que se ergue para os condemnar, +são minhas, mas protesto a vossa eminencia, que +quem as suscitou não foi o meu +coração, nem a +minha vontade. Ha no soffrimento um ponto que +sem deshonra não é licito ultrapassar. Consta-me +que o mais recente dos meus reverendos accusadores +clamara no excesso do seu <em>sincero</em> +zelo +pela historieta da apparição, que +<em>melhor fora que +eu não houvera falado em tal</em>. Melhor ainda +do +que isso me parece teria sido que elle não houvesse +feito trasbordar o calix, já demasiado +cheio, de uma justa indignação. +<br /> + +<br /> + +A affirmativa de que no volume 51 da <em>Symmitica +Lusitana</em> se encontra trasladada uma còpia +do instrumento da apparição, coeva de Affonso I, +É MENTIRA. +<br /> + +<br /> + +O texto de S. Bernardo, relativo á mesma +apparição, +que se encontra inserido no Breviario, +no officio das Chagas, É FALSO. +<br /> + +<br /> + +Se algum dos reverendos cirzidores sabe latim +(é licito duvidar disso com a igreja, que manifestou +a sua hesitação a este respeito mandando +<span class="pagenum">[24]</span> +accentuar as palavras dos livros rituaes com temor +das syllabadas) que venha á Bibliotheca Real, e +ahi, no volume 51 da Symmitica a paginas 128, lerá +ou soletrará as seguintes palavras, escriptas +na lingua latina, por baixo do traslado do instrumento +da apparição, nota escripta pela mesma +letra do copista==<em>Brandão, Monarchia +Lusitana, +Parte 3.ª pagina 127. Extrahido de um codice +que o auctor viu em Lisboa.</em>==Eis em que consiste +o traslado da copia <em>coeva</em>. Cenaculo, +citando +o documento pelo indice, quando podia citá-lo +pelo logar competente da collecção, o que lhe +era igualmente facil, commetteu uma daquellas +levezas que não raro occorrem nos seus escriptos, +ou practicou uma <em>pia fraude</em>? O bello +e +nobre caracter do bispo de Béja me faria adoptar +sem hesitação o primeiro supposto, se o empenho +em que elle entrara de provar a farça de +Ourique, cuja vaidade o seu elevado espirito necessariamente +havia de sentir, não podesse perturbá-lo +a ponto de practicar um acto indigno +de quem, como elle, era um homem de letras, +um prelado virtuoso, e a todos os respeitos um +varão singular. +<br /> + +<br /> + +A historia da passagem falsamente attribuida +a S. Bernardo, é, porém, materia mais grave, +porque +<span class="pagenum">[25]</span> +nessa vergonhosa historia se acha compromettida +a honra e a dignidade moral e litteraria +do alto clero português no meiado do seculo passado. +Não direi da curia romana, porque nesse +ponto não ha já para ella compromettimento +possivel: +vossa eminencia conhece tão bem e melhor +do que eu os seus annaes. A narrativa desse escandalo +é em resumo a seguinte: +<br /> + +<br /> + +O patriarcha D. Thomás d'Almeida requereu a +Bento XIV que concedesse ao clero de Portugal +o officio proprio e missa das cinco Chagas, que, +por decreto de 4 de julho de 1733, fora concedido +a certas freiras de Florença. Accrescentava-se +na supplica dirigida ao pontifice que na sexta +lição +se houvessem de addicionar as seguintes +palavras==<em>Quas lusitanum imperium +etc.</em>==que +constituem o texto allegado contra mim. Consistindo, +porém, a sexta lição daquelle officio +n'uma passagem de S. Bernardo, uma vez que +não houvesse a devida distincção entre +essa passagem +e o novo additamento, este se converteria +n'um testemunho importante a favor da lenda da +apparição, de que provavelmente os homens +instruidos +começavam a rir-se depois do impulso +que aos estudos historicos dera o governo no reinado +de D. João V. +<span class="pagenum">[26]</span> +<br /> + +<br /> + +Accedeu Bento XIV á supplica do prelado português. +O decreto de concessão, o officio e a missa +expediram-se para Portugal impressos na typographia +da camara apostolica. Segundo parece, +a impressão foi feita no estio, e o compositor +romano, no acto de compor a fatal sexta licção, +estava perturbado pela febre da +<em>malaria</em>. O additamento +ficou enxertado nas phrases solemnes +do grande abbade de Claraval com tão subtil sutura, +que faria honra a um operador de rhinoplastica. +Atacado tambem pelos miasmas putridos +das lagoas pontinas o revedor da camara +apostolica <em>esqueceu-se</em> de emendar o +erro. Aquelle +<em>innocente</em> engano partiu, emfim, para +Portugal. +<br /> + +<br /> + +Aqui, n'uma epocha em que ainda os estudos +do clero não tinham chegado á decadencia em +que hoje os vemos e de certo vossa eminencia +lamenta como eu, e em que as cadeiras episcopaes +do reino estavam occupadas por muitos +homens notaveis por sciencia e virtudes, o antecessor +de vossa eminencia que então presidia á +metropole de Lisboa <em>esqueceu-se</em> de +que essa +passagem perfilhada a S. Bernardo tinha um auctor +bem moderno, e entre os bispos, entre os +theologos do clero secular não houve um só que +<em>advertisse</em> no falso testemunho que +na sexta licção +<span class="pagenum">[27]</span> +do novo officio se alevantava ao fundador +dos cistercienses. Os seus filhos, os seus proprios +monges, calaram-se. Os prelos têm gemido +durante um seculo com as reimpressões do breviario, +e neste longo periodo nem uma voz, que +eu saiba, se ergueu para dizer que em nenhuma +edição, em nenhuma codice manuscripto das +obras de S. Bernardo se encontra a supposta +passagem. +<br /> + +<br /> + +«E que admiração?―respondeu-me um +malicioso, +a quem manifestava em certa occasião o +meu espanto á vista deste phenomeno singular.―O +clero não lê os padres da igreja: deixou essa +tarefa aos seculares. E para que os havia de +ler, se lhes é de sobra o Larraga?» +<br /> + +<br /> + +Dou a minha palavra a vossa eminencia de que +repelli com todas as minhas forças este rude epigramma. +Eu sei que ha, conheço, até, sacerdotes +cuja instrucção é tão +solida como vasta. O tracto +de vossa eminencia, durante a epocha em que +fomos collegas no parlamento, me fez conhecer +um dos mais distinctos entre elles. Infelizmente, +esse epigramma, injusto na sua fórma absoluta, +não deixa de ser merecido em muitos, talvez no +maior numero de casos. +<br /> + +<br /> + +Sabe vossa eminencia quem protestou contra +<span class="pagenum">[28]</span> +essa falsificação audaz, contra essa fingida +ignorancia, +contra esse torpor inexplicavel ou explicavel +de mais? Foi aquella ordem ácerca da qual +então se repetiam, e hoje se repetem diariamente +graves accusações de immoralidade. Foram os +jesuitas, que n'uma edição do novo officio, feita +para o proprio uso, separaram com um asterisco +o texto de S. Bernardo da invenção moderna. +Acaso este procedimento deu origem a um livro, +<em>os Novos Testemunhos</em>, do celebre e +implacavel +inimigo dos jesuitas, o padre Pereira, livro que +se o não tomarmos como uma longa ironia, deshonra +a memoria de uma das mais fortes intelligencias +que Portugal tem gerado. +<br /> + +<br /> + +Agora fica vossa eminencia habilitado para avaliar +se eu procedi com circumspecção guardando +silencio ante as refutações que se me dirigiam +pela +imprensa; se não houve no meu proceder uma +dessas abnegações que não +são vulgares, em +desprezar um triumpho tão facil como decisivo, +preferindo ficar como vencido e humilhado aos +olhos dos menos instruidos a salvar o meu nome +de uma nodoa litteraria e até certo ponto moral. +Se, emfim, é justo, se é decente, que membros +do clero aggridam de um modo illicito, e profanando +a sanctidade dos templos e a sanctidade +<span class="pagenum">[29]</span> +do seu ministerio, um homem que sacrificou o +proprio orgulho para não rasgar o véu de uma +fraude dessas, que os hypocritas qualificam de +pias, e que eu qualificarei de immoraes. +<br /> + +<br /> + +Como Sem e Japhet queria encubrir a falta +de pudor de Noé: o sacerdocio obrigou-me emfim +a ser como Cham. Fizeram-me voltar a face: +contrangeram-me a descerrar os olhos. Practicaram +uma boa obra: devem della gloriar-se. +<br /> + +<br /> + +E quem é o homem que os prégadores de Portugal +offerecem á execração publica, porque +não +quiz vender a sua alma ao demonio da mentira; +porque não quiz deshonrar-se e deshonrar com +embustes o seu livro? Que vossa eminencia me +consinta fazer aqui esta dolorosa pergunta á minha +consciencia; interrogar severamente o meu +passado. Tem o clero a combater em mim um inveterado +e perigoso inimigo? É o seu tão insolito +proceder um impeto de vingança, que o excita +a repellir um perseguidor implacavel? Ha quinze +annos que trabalho na imprensa, e senão por merito +proprio, ao menos por circumstancias, que +não importa aqui recordar, muitas das paginas +avulsas que tenho deixado após mim na carreira +da vida se derramaram por todos os angulos +do paiz, penetraram aonde livros e jornaes de +<span class="pagenum">[30]</span> +mais alto pensar nunca haviam chegado, e talvez +nunca depois chegaram. Haverá nessas pobres +paginas alguma cousa que possa incitar a colera +sacerdotal? Como procedi eu sempre ácerca da +igreja e do clero? As idéas do seculo, recalcadas +por uma compressão violenta, a que, força +é confessá-lo, +a maioria do sacerdocio se havia associado, +tinham reagido violentamente, e assentavam-se +triumphantes sobre as ruinas do passado quando +eu entrei no campo da imprensa, no campo +das batalhas do espirito. De roda de mim jaziam +os fragmentos da sociedade que fora, e no meio +delles o clero, disperso, empobrecido, cuberto +de affrontas, experimentava as consequencias do +predominio de um partido adverso e irritado. A +situação da igreja portuguesa nessa epocha, e +sobretudo a situação dos regulares, sabemos todos +qual era. Foram feridas de que, porventura, +ainda mais de uma goteja sangue. Os homens +das velhas opiniões politicas, no meio do terror, +vergados pelo desalento de uma quéda tremenda, +duplicadamente dolorosa pela desesperança, +calavam. Nem uma voz amiga se alevantava nesta +terra de Portugal a favor da igreja batida pela +tempestade. Ainda então esse grupo de mancebos +cheios de talento, de inspirações grandiosas e +<span class="pagenum">[31]</span> +de crença fervente na liberdade humana, e pela +liberdade na eterna justiça; essa phalange, no +meio da qual todos os dias apparecem novos soldados, +e que não se envergonha de Deus nem do +seu Christo, não tinha ainda começado a surgir +para ser generosa, amplamente generosa, com +os adversarios das suas idéas, quando a desventura +os sanctifica. Na imprensa liberal, revolucionaria, +impia, como quizerem chamar-lhe, eu, +só eu, tive por muito tempo palavras de +affeição +e consolo para a desgraça; só eu tive animo para +accusar os homens do meu partido d'espoliadores +e d'insensatos; para tentar revocá-los á poesia +do christianismo, do eterno alliado da liberdade. +A voz que do campo do progresso saudava +o templo enlutado e deserto era debil, mas sincera: +a mão que se estendia para amparar o sacerdote +curvado sob o peso da agonia era bem +pouco robusta, mas era leal! Como Yorick guardava +a caixa do pobre franciscano entre os symbolos +da sua religião de affectos, eu guardo para +mim, e só para mim, mais de um papel escripto +por mãos trémulas de velho monge, e talvez regado +por lagrymas, em que se reconhecia a possibilidade +de haver um homem das novas idéas +que não fosse absolutamente um malvado. É sobre +<span class="pagenum">[32]</span> +estas reliquias que eu quero encostar a cabeça +para dormir tranquillo o ultimo e longo +somno em que todos devemos repousar. Não +receiem pois os que me chamam hoje impio e +herege, que eu os envergonhe com o testemunho +dos que valiam mais do que elles, dos verdadeiros +martyres do passado. São cousas queridas +e sanctas para mim. Estejam certos de que não +as prostituirei jámais. +<br /> + +<br /> + +Depois, pouco a pouco, foi-se estabelecendo +nos animos uma reacção salutar: +começou-se a +sentir que o templo e o sacerdote eram importantes +elementos de paz, e que podiam ser instrumentos +de liberdade. Vieram outros pelejadores, +todos mais fortes e déstros, combater na +arena onde por tanto tempo eu me tinha achado +só. Não foi de certo a minha influencia +litteraria +que trouxe este resultado. Trouxe-o o progresso +da razão humana, a força irresistivel da verdade. +Entretanto, parece que, retirando-me do posto +que defendera com os limitados recursos que +Deus repartira comigo, merecia do clero, por si +e pela igreja, um <em>vale</em> de paz. +<br /> + +<br /> + +Em logar disso tenho a guerra, acerba, covarde, +atraiçoada. Porque? Porque trouxe para o campo +da historia o mesmo amor da verdade singela, +<span class="pagenum">[33]</span> +que tinha mostrado n'uma das mais graves questões +sociaes. +<br /> + +<br /> + +Não me arrependo do que fiz. Cumpri um dever +que me impunham Deos e a minha consciencia. +Não espero arrepender-me do que faço. Cumpro +uma obrigação litteraria, e estou certo de que +bem mereço da terra em que nasci escrevendo a +verdade. +<br /> + +<br /> + +Sabe vossa eminencia sobre que eu hesito? É +sobre a legitimidade absoluta das minhas queixas; +é sobre se, no que supponho um dever d'honra, +não haverá um pouco da +obcecação da vaidade. +<br /> + +<br /> + +Quando Roma, que parece ter jurado nas aras +de Jupiter Stator o exterminio do catholicismo, +crucifica no seu <em>Index</em> nomes como os +de Chateaubriand +e Lamartine; nomes como os de Gioberti +e Ventura, terei eu, verme que passo á sombra +do meu nada, direito de offender-me porque +de pulpitos obscuros, n'um canto obscuro da Europa, +alguns clerigos maus ou ignorantes lançam +sobre mim o vilipendio das suas palavras? +<br /> + +<br /> + +Quando a igreja, envolvendo a fronte no véu +da sua immensa tristeza, e sentindo humedecer-lhe +os pés o sangue humano vertido pelo ferro +sacerdotal, contempla atterrada o futuro, ha dor +de individuos a que seja licito um brado? +<span class="pagenum">[34]</span> +<br /> + +<br /> + +Cerrarei aqui o discurso, porque temo ir mais +longe do que eu quizera. Permitta-me vossa +eminencia que conclua fazendo um voto, ao qual +sei que vossa eminencia se associa, bem como +os outros prelados de Portugal:―Oxalá venha em +breve o dia em que o clero d'este paiz possa receber +uma educação digna do seu elevado destino, +e conhecer, por estudos severos e bem dirigidos, +que o ser christão não é ser nem +hypocrita +nem fanatico. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><br /> + +<a name="c2"></a>II<br /> + +<br /> + +CONSIDERAÇÕES PACIFICAS<br /> + +</h3> + +<h5>SOBRE O OPÚSCULO EU E O CLERO<br /> + +</h5> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<h4> +AO REDACTOR DA NAÇÃO</h4> + +<h4> +(<em>Julho, 1850</em>) +</h4> + +<br /> + +<br /> + +A necessidade de reprimir o abuso do ministerio +do pulpito que contra mim se estava practicando +obrigou-me a dirigir a sua eminencia o +Patriarcha de Lisboa uma carta, na qual, sem +faltar á consideração devida ao +prelado da diocese, +nem aos outros bispos do reino, entendi +que cumpria usar de uma linguagem severa, mas +justa, para com a maioria do clero. Habituado a +patentear livre e singelamente as minha opiniões +ácerca dos homens e das cousas, não soube nem +quiz buscar rodeios, ou adoçar as phrases para +me exprimir de modo menos aspero n'uma questão +que me respeitava pessoalmente, e em que +até certo ponto estava compromettido, não +só o +<span class="pagenum"><a name="p36" id="p36">[36]</a></span> +meu caracter litterario, mas tambem, o que mais +importa, o meu caracter moral. Toda a imprensa +periodica, politica e não politica, sem +distincção +de partidos, foi unanime em condemnar actos +que me obrigavam a dar um passo a que bem +desejaria me houvessem poupado. Como os outros +jornaes, a +<em>Nação</em> reprovou +as <a href="#e2">aggressões</a> +inauditas perpetradas por uma parte do clero, e +toleradas por outra. O procedimento de v.. para +comigo foi nessa conjunctura tanto mais nobre, +quanto é certo que a indole do seu jornal +deveria talvez levá-lo a rebater a opinião de +diversas +publicações periodicas, se o sentimento +da justiça não fosse mais forte no animo de v.. +do que outras quaesquer considerações. +É assim +que o sacerdocio da imprensa cumpre a sua grave +missão, e remedeia do modo possivel a decadencia +do sacerdocio religioso. Continuando, porém, +a tractar de uma questão, que, embora +interessasse um simples e quasi obscuro individuo, +era demasiado importante pelo alcance e +significação dos factos que a haviam suscitado, +v.. teve a bondade de dirigir-me algumas +observações, +que me pareceu exigirem de mim +explicações como christão e como homem +de letras. +Não as dei logo, porque não tardou a annunciar-se +<span class="pagenum">[37]</span> +publicamente uma refutação da minha carta, +em desaggravo do clero. Falava-se n'um milagre +de sciencia e de raciocinio, diante do qual eu +teria de fugir desalentado como os sarracenos de +Ourique diante do da apparição. Citavam-se, +até, +nomes: falava-se em summidades da igreja e da +eschola. Como entendo que não é bom fugir sem +ver de que, esperei que rebentasse o temporal. Se +fosse por elle submergido, de que aproveitariam +as explicações dadas a v..? Se, porém, +podesse +salvar o meu fragil baixel, pediria misericordia +aos vencedores, e daria ao mesmo tempo a v.. +razão de mim. Fiquei, portanto, como o sentenciado +no oratorio, com o ouvido attento ao som +que devia annunciar a hora do supplicio. Esta hora, +todavia, segundo creio, passou. A dizer a verdade, +eu alimentava esperanças de salvação +com +um argumento que fazia a mim mesmo. Não é +provavel, dizia comigo, que um membro do clero +illustrado e honesto queira vir combater-me +no terreno desigual e escorregadio em que a imprudencia +collocou o sacerdocio, e o vulgo clerical +tem impedimento dirimente para entrar neste +empenho. Para escrever é preciso saber ler e ter +lido; saber reflectir, e ter reflectido muito. Por +este lado podia eu estar tranquillo. +<span class="pagenum">[38]</span> +<br /> + +<br /> + +É certo que o annuncio feito nos jornaes não +foi materialmente vão. Appareceu um folheto, que +parece ter por objecto refutar-me. Dizem-me que +é de um mancebo principiante. Revela, sem dúvida, +algum talento no auctor. Com o tempo, e estudando, +este póde vir a ser um escriptor soffrivel, +e habilitar-se emfim, para tractar d'estas ou +d'outras questões com honra sua e proveito do +paiz. +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;">Non ragioniam di lui, ma +guarda, e passa.<br /> + +</div> + +<br /> + +É pois tempo de me explicar com v.. e fa-lo-hei +do modo mais breve que me for possivel. +Se alguma phrase menos comedida me fugir da +penna, declaro desde já que a retiro. Dirigindo-me +a um escriptor como v.., tão urbano nas +proprias censuras que me faz, embora sobre tão +melindrosa materia como o são as cousas da fé, +espero que v.. não veja por caso algum nas +minhas palavras a menor intenção offensiva. +<br /> + +<br /> + +Tres censuras irroga v.. ao conteúdo da minha +carta; a primeira contra a antithese contida +no titulo do opusculo <em>Eu e o clero</em>: +a segunda +contra as expressões de <em>intelligencias +vastas e +energicas, mas corruptas, violentas e +cubiçosas</em>, +de que me servi para qualificar alguns papas: a +terceira contra a phrase, <em>Roma que parece +ter</em> +<span class="pagenum">[39]</span> +<em>jurado nas aras de Jupiter Stator o exterminio +do catholicismo</em>, e contra os terrores que attribuo +á igreja ácerca do futuro. Considerarei em +especial +cada uma dessas tres censuras. +<br /> + +<br /> + +Diz v.. que me era licito collocar-me em +antagonismo com um ou outro clerigo, porém +não com o clero em geral, por honra e credito +meu, que nada podia ganhar em lucta tão desigual, +e que, a existir, seria a minha condemnação. +Antes de tudo é necessario observar duas +cousas: 1.ª, que o antagonismo não o creei eu: +resultou de factos practicados pelo clero, que +tolerei com paciencia durante annos, e que toleraria +talvez sempre em silencio, se não receiasse +que no progresso da aggressão chegassem +a levantar-me um pulpito diante da porta, +para d'ahi me fazerem um sermão sobre a sanctidade +dos papas da idade média, ou sobre os +milagres referidos por S. Bernardo: 2.ª, que é +pelo opusculo e não pelo seu titulo, que se há +de avaliar até onde esse antagonismo vai, e se +elle é legitimo. Não apparece uma unica passagem +da minha carta em que eu me refira com +phrases hostis a <em>todo</em> o clero +português. Os homens +que ha no meio delle illustrados e virtuosos, +respeito-os; respeito-os duplicadamente pela +<span class="pagenum">[40]</span> +sua illustração e pelas suas virtudes; pelo seu +caracter litterario, e pelo seu caracter sacerdotal. +Esses não sobem aos pulpitos a dizer despropositos; +não me querem mal, nem a mim nem aos +meus pobres escriptos. Ao que eu me contrapús +foi ás turbas tonsuradas; foi á maioria material +e numerica; minoria nos dominios da intellectualidade, +das idéas, e dos puros e nobres affectos. +Faria uma offensa gratuita; practicaria +uma brutalidade indesculpavel, estaria em +contradicção +comigo mesmo, com as minhas opiniões, +se assim, sem motivo, sem provocação, +tivesse o proposito de maltractar aquell'outra +parte do clero. +<br /> + +<br /> + +É esta a idéa que ha de resultar da leitura da +minha carta para todos os animos desprevenidos; +para v.. mesmo, se tiver bastante paciencia +para a reler. Quanto a esses de quem me queixo, +não sou eu homem que esconda as proprias +convicções. +Na minha vida litteraria tenho dado mais +de um documento de que costumo ser sincero. +Estou persuadido de que a maioria do nosso clero +é tal como eu a qualifiquei, e se não fosse a +natural repugnancia a despedaçar um cadaver, +daria aqui as razões da minha persuasão. Em +todo o caso, acceito inteira a responsabilidade +<span class="pagenum">[41]</span> +della: não tergiverso, não me arrependo. Tenho +dicto e escripto muitas verdades, senão mais deploraveis, +por certo mais perigosas para mim, +sem que o meu somno deixasse de ser profundo, +como o é habitualmente. +<br /> + +<br /> + +Postas as cousas nestes termos, que são os +exactos, não me é possivel comprehender a +affirmativa +de v.. de que o meu credito e honra +padeceriam pelo antagonismo com a maioria do +clero, <em>nessa lucta desigual, que envolveria a minha +condemnação</em>. Se v.. viu +naquella fatal antithese +um peccado de orgulho, talvez o seja; mas +eu vi nella apenas um acto de humildade. Pois, +em consciencia, eu não valerei mais, litteraria e +moralmente, do que um clerigo mau ou insipiente? +Mas cem, mas mil, mas dez mil clerigos máus +ou insipientes, ainda que os fundam e os acrisolem, +chegarão, acaso, a produzir o equivalente +de um homem de alguma intelligencia e de alguma +honestidade? Não. O resultado de todas +essas operações será sempre, a meu +ver, um +<em>substratum</em> de parvoice ou de +corrupção. Peccado +de soberba não creio, portanto, tê-lo commettido. +Por este lado mal posso ser condemnado. +Referir-se-hia, porém, v.. ao perigo litterario? +Tambem não póde ser. É v.. assaz +<span class="pagenum">[42]</span> +instruido para sentir que por esse lado a lucta +me dá tanto cuidado como daria a v.. se estivesse +no meu logar. É o perigo religioso? A +idéa da condemnação antes de +contestada a lide, +e envolvida na proposição da causa, torna +talvez plausivel esta interpretação. Nessa +hypothese, +v.. não teria advertido n'um facto indubitavel. +A maioria do clero português não é +a maioria do clero catholico: a maioria do clero +catholico não constitue por si a igreja de Deus. +Bem infeliz seria eu se me visse em opposição +com esta; mas confio em que a Providencia me +livrará de cair nesse abysmo, não só +agora, mas +sempre. +<br /> + +<br /> + +Todavia a minha linguagem severa, embora +justa e legitima, será condemnavel, senão pela +substancia, ao menos pelos accidentes? Será condemnavel +porque vai ferir duramente um grande +numero de sacerdotes, de homens, infelizmente, +ungidos do Senhor? Que v.. me consinta invocar +em meu auxilio um exemplo acima de toda +a excepção. É de um padre da igreja, a +cujas obras +o nosso clero foi tão affeiçoado, que +até lh'as quiz +augmentar, com grande gloria do sancto e proveito +destes reinos. Alludo a S. Bernardo. As +phrases da minha carta são de suprema doçura +<span class="pagenum">[43]</span> +comparadas com as que o celebre cluniacence +empregava para qualificar a corrupção, +não do +clero de um paiz, não da maioria desse clero, mas +em geral do sacerdocio do seu tempo. «<em>Manou +a +iniquidade</em>―dizia S. Bernardo―<em>dos +anciãos, +dos juizes, dos teus vigarios, oh Deus; daquelles +que parecem governar o teu povo! Já não +é licito +dizer</em>―<em>tal o povo, tal o sacerdocio; +porque +este é peior. Oh meu Deus, meu Deus! Os teus +maiores perseguidores são os que mais ambicionam +a primazia, e exercem na igreja o mando +supremo</em><sup><a href="#f1">[1]</a></sup>». +E, como se estas acres +expressões +não bastassem, o terrivel benedictino desfecha, +n'uma carta dirigida, não a algum prelado metropolitano, +mas ao proprio Innocencio II, na +seguinte diatribe: <em>A insolencia do +clero</em>, a qual +nasce da indulgencia dos bispos, <em>turba o mundo +e afflige a igreja. Entregam os bispos as cousas +sanctas</em> a cães, <em>e as +pedras preciosas</em> a porcos, +<em>e elles em paga mettem-nas debaixo dos pés. +Assim +o quizeram, assim o tenham</em><sup><a href="#f2">[2]</a></sup>». +Se eu me +servisse de semelhante linguagem, imagine v.. +que matinada se alevantaria contra mim! +<span class="pagenum">[44]</span> +<br /> + +<br /> + +Dir-me-ha v.. que S. Bernardo foi um sancto +padre da igreja, e eu não passo de um peccador +e obscuro christão? Assim é. Por isso o segui de +longe, <em>non passibus æquis</em>. +Comtudo, v.. não +deixará de advertir em que, quando elle escrevia +essas phrases violentas, era um pobre monge, +humilde, simples, sem pretensões orgulhosas, +sem presciencia de que tinha de ser um sancto e +um luminar da igreja. E que lhe importava? O +espectaculo do procedimento do clero arrancou +da sua bôca esses brados d'indignação, +como +loucas provocações arrancaram da minha penna +palavras muito menos violentas. +<br /> + +<br /> + +Já agora consinta-me v.. que cite ainda um +veneravel prelado português quasi do nosso tempo, +a quem tambem tive occasião de alludir na +minha carta; que recorde as palavras geraes de +D. Fr. Caetano Brandão ácerca do clero +português +no principio deste seculo. O metropolita explicava +n'uma carta a certo ministro d'estado +quem era que fazia recair a desconsideração sobre +o poder pontificio: «<em>São +aquelles</em>―dizia o +arcebispo de Braga―<em>que á força +de supplicas +importunas, de respeitos humanos, e outros motivos</em> +ainda mais vergonhosos, <em>costumam extorquir +da curia romana provisões beneficiaes</em>, que +<span class="pagenum">[45]</span> +mais parecem titulos de contractos de predios +rusticos, do que de beneficios ecclesiasticos; +<em>provisões a favor das quaes tem infestado +as parochias +e córos</em> (collegiadas e cabidos) de todo o +reino <em>uma tropa confusa de</em> sujeitos +indignos, +etc.<sup><a href="#f3">[3]</a></sup>». +Que se leia inteira a passagem impressa +daquella carta, e ver-se-ha se foi o arcebispo, se +eu, quem usou de mais desabrida linguagem. +<br /> + +<br /> + +Apesar disso, suas reverencias hão de tolerar-me +a crença de que não estão no inferno +nem a +alma de D. Fr. Caetano Brandão, nem a de S. Bernardo. +<br /> + +<br /> + +Ainda algumas palavras sobre o antagonismo, +em que de nenhum modo v.. me quer ver collocado, +em relação á maioria do clero. Foram +apenas alguns que me provocaram do pulpito, e +eu chamo á autoria o grande numero. É verdade. +Não sei com certeza senão de alguns factos +de aggressão, mas a noticia de parte d'esses factos +obtive-a casualmente: alguns constaram-me apenas, +porque um jornal a elles alludiu de passagem, +dizendo que se practicavam por diversos +logares de Entre-Douro e Minho. É acaso provavel +que se não repetissem por outras dioceses? +<span class="pagenum">[46]</span> +Em Lisboa, onde eu resido, onde os sacerdotes +podem ter mais illustração, onde, até, +o fanatismo +deve ser mais raro, porque a propria fé é mais +tibia, onde, emfim, os prégadores mais devem +receiar que o seu auditorio se ria delles, houve +dous exemplos. Não me será licito inferir que, +não tendo eu uma policia ás minhas ordens, ignoro +muitos successos analogos? Depois, houve, á +vista desses factos repetidos, não digo +punição +de semelhante abuso do ministerio sagrado, o +que não peço, o que até me +contristaria, porque +me lembro das palavras de Christo +«<em>Perdoa-lhes +Pae, que não sabem o que fazem</em>, mas a +minima +providencia para impedir a renovação de taes +escandalos? +Para que servem os vigarios da vara, +os arcediagos, os representantes ou delegados do +poder episcopal? Como informam os respectivos +prelados do que se passa entre o clero diocesano? +Não tenho eu direito de suppôr que elles tambem +entendem que a sanctidade dos papas da idade +média ou o apparecimento de Ourique são partes +integrantes da crença catholica, e que se trepassem +ao pulpito, e lhes viesse a talho, me chamariam +do mesmo modo impio ou herege? Se não +estão de accordo com os prégadores, como se +esquecem +de que os padres de Trento prohibiram +<span class="pagenum">[47]</span> +aos bispos que consentissem aos oradores sagrados +<em>divulgar ou tractar factos incertos, ou que +tenham caracteres de falsidades</em><sup><a href="#f4">[4]</a></sup>, +e de que os do +concilio 1.º de Colonia ordenam aos mesmos oradores +que <em>não falem imprudentemente de milagres, +limitando-se aos que refere a Biblia, ou +aos que forem narrados por escriptores de peso, +estribados em solidos fundamentos historicos</em><sup><a href="#f5">[5]</a></sup>? +Como quer pois v.. que eu não increpe o maior +numero e que não o supponha alistado contra +mim nesta vergonhosa cruzada d'ignorancia? +<br /> + +<br /> + +Passando ao segundo capitulo de accusação, +sinto verdadeira magoa em ser constrangido a +dizer que v.. leu menos attentamente o que +escrevi ácerca dos papas na minha carta ao eminentissimo +senhor Cardeal Patriarcha. Qualifiquei +ahi de intelligencias vastas, energicas, mas corruptas, +violentas e cubiçosas, alguns delles que se +chamaram Gregorio, Innocencio ou Honorio, e +v.. reprehende-me por classificar como taes +Gregorio VII e Innocencio III!? Onde me refiro +eu a estes dous papas no meu opusculo? Na epocha +abrangida pelo que se acha publicado da Historia +<span class="pagenum">[48]</span> +Portugal houve diversos pontifices desses +nomes. A cada um delles fiz, creio eu, justiça, e +Gregorio VII foi aquelle em que menos falei, porque +viveu antes de nascer a monarchia. É singular +como v.. pôde perceber que, entre tantos, +alludi a esses dous em particular! Não teria eu +direito de dizer, que uma voz da propria consciencia +trahiu e tornou van a benevolencia para +com elles manifestada nas palavras de v..? O +que me parece indubitavel é que alguma +convicção +historica preoccupava o espirito de v.. +quando nas minhas expressões vagas e geraes +viu um ataque directo e especial á memoria daquelles +homens extraordinarios, cujos meritos +não neguei, nem tenho empenho em negar. +<br /> + +<br /> + +Entretanto não pense v.. que com isto pretendo +lançar fóra de mim a responsabilidade de +julgar severamente Hildebrando ou Innocencio +III. Não tenho a minima dúvida em lhes applicar +as designações de intelligencias violentas e +cubiçosas, +como não a tenho em chamar corruptos a +outros papas, como, por exemplo, a Innocencio +IV. É verdade que v.. cobre Hildebrando com +a egide da canonisação, e Innocencio III com a +da sua sciencia e litteratura. Mas nem vejo que a +sciencia e litteratura sejam synonimos de virtude, +<span class="pagenum">[49]</span> +nem creio que uma canonisação constitua dogma +de fé, e obste á liberdade do historiador para +avaliar como entender os caracteres historicos. +V.. sabe perfeitamente que, fundando-se as +canonisações +em provas humanas, e não em factos +revelados, as decisões pontificias a tal respeito +são sempre falliveis, o que bem se manifesta +da oração que ainda no seculo XIV os papas +faziam na solemnidade das canonisações, pedindo +a Deus permittisse que não se houvessem enganado. +Esta doutrina é corrente, e v.. não a +ignora, nem poderia ignorá-la<sup><a href="#f6">[6]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +Recorda-me v.. que os escriptores protestantes +fazem a estes dous pontifices a justiça +que merecem. Tambem eu a fiz, ao menos como +a entendi, a elles e aos seus successores, e sobretudo +ao papado, em mais de um logar do meu +livro. Ninguem admira mais do que eu os progressos +que a civilisação lhes deve. Dos historiadores +protestantes modernos não conheço nenhum +mais celebre, dos que exaltam Gregorio +VII, do que o professor Leo. Mas, para isso, elle +proprio sentiu a necessidade de se valer exclusivamente +da idéa em que se resume a historia +<span class="pagenum"><a name="p50" id="p50">[50]</a></span> +do progresso humano. Esta idéa é a +<em>lucta do +espirito com a sua manifestação, com a +fórma, +com a materia; o desenvolvimento do raciocinio +predominando no meio da força do acaso</em><sup><a href="#f7">[7]</a></sup>». +Elle vê-a representada, <a href="#e3">incarnada</a>, +digamos assim, +em Gregorio VII e nos seus immediatos +successores, na indole e tendencias desses individuos; +eu vejo-a no papado, na indole da instituição. +É inquestionavel que nenhuns pontifices +levaram mais longe a manifestação da +idéa, e em +philosophia historica os defeitos desses papas +desapparecem, quando se considera a maneira +<em>vasta e energica</em> por que elles +desempenharam +a missão providencial do papado n'aquella epocha. +Todavia, na apreciação +<em>moral</em> dos seus +actos como individuos, é por outros principios +que devemos regular-nos. Tanto o professor Leo +conhecia que Gregorio VII ficava mal collocado +a essa luz, que a excluiu da historia «<em>No +mundo +dos phenomenos</em>―diz elle―<em>a luz da +verdade +não se derrama sobre uma face unica, mas reparte-se +por todas. Não são os phenomenos individualmente +que constituem a verdade, mas sim +o complexo delles</em>.» Para avaliar o +pontifice como +<span class="pagenum">[51]</span> +representante e typo da instituição, a regra +é +exacta; para o avaliar como homem, não; porque +a <em>intenção</em>, a +causa moral dos actos, é necessaria +para a apreciação abstracta de um caracter. +A suberba, a ambição e até a +cubiça de +Gregorio VII estão pintadas nos factos a que accidentalmente +me referi n'um logar do meu livro<sup><a href="#f8">[8]</a></sup>. +Destruam, se é possivel, documentos irrefragaveis. +<br /> + +<br /> + +Queremos, porém, saber, por testemunho insuspeito, +qual era essa intenção moral, qual o +caracter de Hildebrando? Ouçamos um seu contemporaneo, +um sancto padre. Tenho gosto especial +em citar nestas cousas os sanctos padres. +São respeitaveis auctoridades! +«<em>De resto</em>―diz +um delles―<em>rogo humildemente ao meu S. Satanaz +que não se enfureça tanto comigo, e que a +sua veneranda suberba não me fustigue com tão +longa +flagellação</em><sup><a href="#f9">[9]</a></sup>». +<br /> + +<br /> + +De quem se escrevia isto? Do cardeal Hildebrando. +Quem o escrevia? Um pobre velho: S. +Pedro Damião n'uma carta dirigida a Alexandre +<span class="pagenum">[52]</span> +II e ao proprio cardeal. Verdade é que não +sabía quão grande sancto havia de vir a ser o +seu <em>S. Satanaz</em>. Nessas palavras +amargas do veneravel +monge está explicada a actividade irresistivel +com que Gregorio VII proseguiu na +lucta gigante entre o espirito e a materia. Superior +intellectualmente aos outros homens, a +ambição de os dominar a todos fê-lo +até negar +a realeza, não só como facto, mas tambem como +principio. Houve, ha hoje um democrata mais +virulento do que Hildebrando? Não o creio. V.. +conhece por certo uma passagem singular das +suas cartas. «Que!―diz elle―uma dignidade +inventada pelos homens do seculo (a dos principes) +não estará sujeita á que Deus +estabeleceu +para gloria propria? Quem não sabe que os reis, +que os chefes procedem dos principes pagãos, +os quaes por instigações do diabo, +<em>que é o verdadeiro +principe do mundo</em>, movidos por cega +paixão e levados por intoleravel +presumpção, +<em>usurparam o poder supremo sobre os seus +iguaes</em>, +pondo por obra, com esse intuito, a rapina, a +perfidia, o homicidio, em summa quasi todos os +crimes?<sup><a href="#f10">[10]</a></sup>» +Não lhe parece a v.. que se hoje +<span class="pagenum">[53]</span> +Hildebrando resuscitasse, o tinhamos presidente +da republica democratica e social? Veja v.. +o caso que o sancto varão fazia do famoso texto +biblico: <em>Per me reges regnant.</em> +Dir-se-hia que +tinha lido: <em>Per diabolum reges +regnant.</em> Podemos +nós os monarchistas (embora o sejamos +por differente feitio) acceitar as idéas do celebre +S. Satanaz? Não ha nessas idéas um orgulho, +uma intolerancia para com os poderes da terra, +que não comprehenderiamos, talvez, hoje, se +não tivesse vivido no nosso seculo uma intelligencia +igualmente <em>vasta e energica</em>, chamada +Napoleão Bonaparte? +<br /> + +<br /> + +Vamos ás ultimas censuras de v.. em que +me parece não ter mais razão do que nas +primeiras. +Diz v.. que Roma, <em>significando o poder +pontificio</em>, não póde jurar o +exterminio do +catholicismo. Que!?―Pela palavra Roma não se +póde entender senão o poder pontificio, +não se +póde significar senão o papa? V.. ha de +permittir-me +que eu recorra ainda uma vez a S. Bernardo +para me salvar da condemnação eminente. +Nesta contenda, não sei porque, o meu espirito +recorda-se a cada momento daquelle illustre padre +da igreja. Falando das horriveis desordens +que produziam as appellações para o papa, e +<span class="pagenum">[54]</span> +alludindo a dous bispos allemães carregados de +crimes, que, tendo appellado para Roma e levando +comsigo bastante dinheiro, haviam sido repellidos +nas suas pretensões e offertas, S. Bernardo +exclama: «<em>Grande novidade! Quando +até o dia +de hoje rejeitou Roma dinheiro?</em><sup><a href="#f11">[11]</a></sup>» +Note-se que o +sancto vivia no seculo immediato ao governo de +Hildebrando e que S. Bernardo dirigia o discurso +ao papa Eugenio III, que frequentemente louva, +e a quem, por certo, não pretendia affrontar. Que +significa pois a palavra <em>Roma</em> na +bôca do grande +abbade de Claraval? A curia romana; essa curia, +onde, segundo a opinião do severo cluniacense, +«<em>era mais facil entrar honesto, do que +tornar-se +lá homem de bem</em><sup><a href="#f12">[12]</a></sup>»; +essa curia +que me obrigaria +a encher paginas e paginas de citações se +quizesse +colligir as passagens relativas ao seu desprezo por +todas as leis divinas e humanas, quando se tractava +de receber ouro, passagens que se encontram +ás dezenas nos escriptores mais respeitaveis, e +onde se memoram, até, versos das cantigas populares +contra a cubiça da curia, o que prova ter-se +tornado proverbial a corrupção de Roma<sup><a href="#f13">[13]</a></sup>. +<span class="pagenum">[55]</span> +<br /> + +<br /> + +Mas concedamos que, ultrapassando além da +curia romana, eu tivesse em mente o pontifice. +Como homem, como principe temporal, os seus +actos publicos são do dominio da imprensa; se +esses actos pelos seus effeitos moraes e politicos +poderem trazer graves turbações, dias de amargura +á igreja, não é licito a todo e +qualquer christão +deplorar essas consequencias, reprehender +esses actos? Quando eu digo que Roma +<em>parece</em> +ter jurado o exterminio do catholicismo, accuso +o papa, a curia, alguem de ter a intenção directa +de o destruir? Ou eu não sei português, ou +empreguei +uma phrase trivial, cujo alcance todos +comprehendem. Que se diz do valetudinario que +despreza os conselhos dos medicos? <em>Parece que +se quer matar!</em> E quando dizemos isto passa-nos +acaso pelo espirito a idéa de attribuir a esse individuo +a intenção directa do suicidio? Ou +será +que as expressões simples, as phrases innocentes +dos outros homens se convertem em peste e veneno, +quando saem da bôca do feroz herege que +ousou duvidar do testemunho posthumo, e bem +<span class="pagenum">[56]</span> +posthumo, de S. Bernardo ácerca do milagre de +Ourique? +<br /> + +<br /> + +Em que tempos estamos nós? Para onde caminha +a reacção religiosa? Que!? Eu não +poderia +apreciar como entendesse o procedimento politico +de um papa, em relação aos futuros destinos +da igreja, e S. Thomás de Cantuaria poderia sem +ser um reprobo lançar em rosto a Alexandre III +as gravissimas accusações de o trahir, e de +querer +conduzi-lo á morte<sup><a href="#f14">[14]</a></sup>? +Poderia S. Thomás de +Aquino, o mais profundo philosopho do seculo +XIII, ao observar-lhe Innocencio IV que tinha passado +o tempo em que S. Pedro dizia +«<em>não possuo +nem ouro nem prata</em>»―responder-lhe +«<em>que tambem +era passado o tempo em que S. Pedro dizia +ao paralitico―levanta-te e anda</em><sup><a href="#f15">[15]</a></sup>» +epigramma +pungente atirado ás faces de um papa, cuja cubiça +não conheceu limites; poderia, digo, S. Thomás +ser um doutor da igreja, depois deste attentado? +Podia sequer ser papa o successor do mesmo +Innocencio, Alexandre IV, que lhe chamava o +<em>vendilhão de igrejas</em><sup><a href="#f16">[16]</a></sup>? +Riscae do catalogo dos +<span class="pagenum">[57]</span> +bemaventurados S. Antonino de Florença, que não +duvidou de pintar com as mais negras côres os +vicios hediondos de Clemente V<sup><a href="#f17">[17]</a></sup>. +Não chameis +o ultimo padre da igreja a Bossuet, porque taxou +de velhaco o papa Eugenio IV<sup><a href="#f18">[18]</a></sup>. +Rejeitae +do gremio catholico o erudito e pio Fleury, porque +escreveu o 4.º discurso sobre a historia Ecclesiastica. +Para serdes logicos despovoae a igreja +de sanctos, de doutores, de homens illustres, se +credes que, dentro della, eu, que não sou nenhuma +dessas cousas, não tenho direito de aferir pelos +principios eternos da moral, da justiça e da caridade +evangelica as acções dos papas sem renegar +da igreja. +<br /> + +<br /> + +Não disputarei com v.. sobre os successos +de Roma nos ultimos tempos. Cada qual póde +vê-los á luz que julgar verdadeira. Ao que, +porém, +eu tenho jus é a averiguar se é exacta a +proposição absoluta de v.., de que o futuro da +igreja é muito sabido, claro e indisputavel +<em>para +os catholicos</em>. Por este modo v.. parece excluir-me +do gremio do catholicismo, porque hesito sobre +o seu futuro. Advertiu acaso v.. em que a +<span class="pagenum">[58]</span> +proposição assim absolutamente enunciada, +conduziria +ao impossivel? O que é certo, sabido e claro +para a igreja, e para cada um dos seus membros, +é que ella será perpetua, indestructivel. Mas +por quaes phases tem de passar; se a esperam +dias serenos, se dias de tribulação; se acres +resentimentos, +imprudentemente preparados, virão +ou não como a procella despir a folhagem, lascar +os troncos da arvore eterna do christianismo, eis +o que nem a igreja, nem eu, nem v.. sabemos. +Está acaso v.., que eu creio profundamente catholico, +habilitado para me dizer de um modo <em>certo +e claro</em>, se a idea revolucionaria da Italia apodreceu +para sempre encharcada no sangue que as balas +e bayonetas francesas e austriacas derramaram +á voz da curia romana? Se a politica das masmorras, +dos desterros, da compressão inexoravel, +preferida á politica evangelica da tolerancia, do +perdão das injurias, da caridade sem limites, +poderá +varrer para sempre dos animos italianos o +odio do dominio estrangeiro (quer directo quer +indirecto) e o amor da liberdade politica? Esse +odio e esse amor póde v.. julgá-los legitimos +ou illegitimos: não disputarei sobre isso. Mas que +elles não existam; que elles não possam triumphar +algum dia, eis o que v.., por certo, não +<span class="pagenum">[59]</span> +affirmará com a mão na consciencia. E nessa +hypothese, +quem saberá dizer até onde chegarão +os excessos da colera e da vingança, azedadas +pelo padecer, e até certo ponto legitimadas por +elle, se legitimidade se póde dar em taes sentimentos? +Parece-me que ao homem catholico é +licito imaginar, sem que por isso vacille a sua fé +ácerca da perpetuidade do catholicismo, que a +igreja se entristece, ou deve entristecer, aterrada +pelo porvir; é licito suppôr que as lagrymas dos +seus futuros martyres vem já de antemão cair-lhe +ardentes sobre o seio materno. Se attribuir ao gremio +dos fiéis, composto de homens, os affectos +de dor e amargura desdiz de alguma cousa, não +é, de certo, das tradições +evangelicas, nem das +tradições dos antigos padres. Já no +seculo IV S. Hilario +de Poitiers observava quão frequente era pintar-nos +o evangelho como triste e afflicto o Filho +de Deus<sup><a href="#f19">[19]</a></sup>; +e S. Gregorio Magno não duvidava de +dizer: «<em>A sancta igreja, emquanto vive esta +vida +de corrupção, não cessa de chorar os +damnos +das vicissitudes por que passa</em>»: e n'outra +parte: +«<em>A dor esmaga a igreja quando vê +os perversos +<span class="pagenum">[60]</span> +prosperarem na propria maldade</em>»<sup><a href="#f20">[20]</a></sup>. +É dessas +vicissitudes a que allude o sancto pontifice que eu +falo; é a essas vicissitudes, demasiado provaveis, +que os erros dos homens, as paixões anti-christans +do sacerdocio triumphante ajunctam, nas minhas +previsões, um caracter de terribilidade. +<br /> + +<br /> + +Tenho dado razão de mim. Diz v.. que poderia +accrescentar mais. Sinto que o limitado espaço +de uma folha periodica, ou outro qualquer +motivo, o inhibisse de assim o practicar. Gósto +de ser advertido dos erros em que caio, quando +é a sciencia e o talento quem se incumbe deste +mister, e certifico a v.. de que facilmente me +retractaria, se nas suas ulteriores observações +v.. me convencesse de que eu errava. Á ignorancia +presumida, ou á insolencia estupida, é +que não costumo fazer a honra de responder. +Quanto a esta questão, que não suscitei, e que +até deploro, ella terminou para mim. Que os +hypocritas façam visagens beatas contra a minha +impiedade; que me proclamem herege ou o que +elles quizerem, cousas são essas com que nenhum +homem de juizo se afflige, porque as assaduras +inquisitoriaes, mercê de Deus, acabaram +<span class="pagenum">[61]</span> +para sempre. A raça dos escribas e phariseus, o +peior flagello que Christo encontrou na terra, e +que elle mais cordealmente amaldiçoou, é immortal +e immutavel; mas deixá-la viver. Quem +diz ao sapo:―«não sejas +asqueroso?»―Quem +diz á vibora:―«não sejas +peçonhenta?»―Babem +e mordam; é o seu destino, coitados! +<br /> + +<br /> + +O que não tolerarei é que me chamem de +novo, a mim ou aos meus escriptos, a figurarmos +no meio das parvoices sacrilegas com que se +deshonram os pulpitos. Que os prelados façam +ou não o seu dever a este respeito, pouco me +importa. Estejam certos de que não será a suas +excellencias que pedirei desaggravo. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c3"></a>III<br /> + +<br /> + +SOLEMNIA VERBA<br /> + +</h3> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<h4> +AO SR. A. L. MAGESSI TAVARES</h4> + +<h4> +(<em>Outubro, 1850</em>) +</h4> + +<br /> + +<br /> + +<div class="quote1">Porque virá tempo em que +muitos +homens não soffrerão a san doutrina; +mas..... accumularão para si mestres +conforme aos seus desejos: +<br /> + +<br /> + +E assim apartarão os ouvidos da +verdade e os applicarão ás fabulas. +<br /> + +<br /> + +<div style="text-align: center;"> +<div style="text-align: right;"><em>S. Paulo, +Epistola II a +Thimoteo</em><br /> + +</div> + +<em>c. 4. v. 3, 4.</em></div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +Permitta-me v.. que, sem existirem entre nós +outras relações que não sejam aquellas +que fortuitamente +nascem entre os homens de letras quando +se encontram no campo da imprensa, eu dirija, +por essa mesma imprensa, uma carta a v.. +<br /> + +<br /> + +Esta carta será um pouco extensa. Será talvez +seguida de outras. Não o sei ainda. N'uma questão +litteraria, a meu ver de bem pouco valor, que +o procedimento de alguns individuos da ordem +sacerdotal converteu n'uma contenda que não sei +<span class="pagenum">[63]</span> +até onde chegará, v.. fez-me a honra de ser +meu adversario, escrevendo dous opusculos em +que combate as minhas opiniões n'um, ou para +melhor dizer, em alguns pontos d'historia patria. +Naquelles dous opusculos, escriptos em diversas +epochas, v.. se houve sempre para comigo +com a nobreza de um cavalheiro, e com a cortesia +de um espirito cultivado. Póde haver ahi uma +ou outra expressão mais viva, que feriria certas +vaidades demasiado mimosas; se, porém, as ha, +não me feriram a mim, endurecido já nestes +recontros, +e que tambem não sou dos menos sujeitos +a ceder ás vezes aos impulsos da vivacidade. +<br /> + +<br /> + +No meio dos que me tem combatido, v.. representa +a meus olhos a parte san, os homens +sinceros do gremio, da eschola, do partido (como +quizerem chamar-lhe, porque os nomes importam +pouco) a que v.. pertence. Representa, digo, +essa parte, postoque, e ainda bem que assim é, +não a resuma. Igual testemunho devo deixar aqui, +se os meus escriptos tem de viver mais algum dia +que eu, ácerca dos Redactores do jornal <em>A +Nação</em>. +Meus adversarios tambem, não recebi delles na +impugnação das minhas doutrinas, senão +provas +de consideração e de urbanidade. +<br /> + +<br /> + +Consinta, pois, v.. que, alargando a orbita +<span class="pagenum">[64]</span> +em que quiz encerrar-se no seu ultimo e recente +opusculo, eu fale, dirigindo-me a v.., com esses +homens probos e leaes que estimo e respeito, +embora julgue erroneas, deploraveis até, as suas +opiniões n'uma contenda, que, não por minha +culpa, vai tomando na imprensa portuguesa uma +direcção fatal. Deus queira que os imprudentes +que lhe deram origem não tenham de chorar a +sua loucura com lagrymas amargas! +<br /> + +<br /> + +Sería bem triste que essa porção de +compatricios +meus em cujos corações o amor do passado +é um sentimento puro, postoque, a meu ver, ás +vezes se manifeste de modo pouco reflectido, me +cressem traidor á sancta causa da patria. Se os +erros de nossos paes e os erros de todos nós os +que vivemos, erros que nos trouxeram a uma +situação que não posso, que +não quero definir +aqui, fizerem algum dia com que o velho Portugal, +ameaçado na sua independencia e nacionalidade, +brade por todos os seus filhos para um +esforço supremo, para o salvarem ou para morrerem, +espero em Deus, e depois de Deus na +minha consciencia, que, sem crer no milagre de +Ourique, não serei o ultimo a acceitar esse terrivel +convite. O passado! Quem mais o amou do +que eu nesta terra? Quem volveu nunca os olhos +<span class="pagenum">[65]</span> +com mais saudade para as suas tradições? Mas as +tradições de que tenho saudade; mas o passado +que eu amo, não o são essas lendas absurdas +(desculpe +v.. o epitheto, que espero justificar) inventadas +por interesses mundanos, dos quaes, +por mais graves que sejam, nem a philosophia nem +o christianismo consentem se faça o céu +instrumento. +Nos tempos que foram o que me sorri, não +só como saudade, mas (porque não direi agora o +que hei-de dizer mais largamente um dia?) tambem +como esperança, são as +tradições dessa +liberdade primitiva, postoque incompleta, filha +primogenita do evangelho, que elle gerara para +mãe, para abrigo das sociedades da Peninsula; +dessa liberdade, rude e turbulenta como uma +creança educada á lei da natureza, mas como ella +robusta e viçosa; dessa liberdade que se estribava +nos habitos, que resultava de instituições +positivas e exequiveis, e não de +instituições copiadas +quasi ao acaso da primeira theoria que +tivesse transposto os Pyreneus; dessa liberdade +que tornava a monarchia uma cousa sancta, necessaria, +indestructivel, e que a monarchia, por +desgraça sua e nossa, foi lentamente esmagando +debaixo do seu throno, formado dos infolio, politicamente +fataes, do Digesto, do Codigo e das Glossas +<span class="pagenum">[66]</span> +e Commentarios das escholas d'Italia; dessa +liberdade, que, desenvolvida e organisada logicamente +com a sua origem, nos teria poupado talvez +á gloria immensa, mas para nós mais que esteril, +de nos convertermos em victimas da civilisação +da Europa, de revelar o Oriente á sua cubiça, +para logo virmos assentar-nos extenuados n'um +occaso de tres seculos; dessa liberdade que nos +teria salvado por certo de um longo estrebuxar +em esforços impotentes de emancipação, +que tomámos +como licções d'extranhos, e que era mais +velha para nós do que o era para elles. Eis-aqui a +maravilha, melhor que milagres imaginarios, na +qual não só creio, mas tambem espero. +<br /> + +<br /> + +Peço a v.. e aos animos honestos que pensam +como v.. se persuadam de que o homem que +não admitte certas narrativas infundadas, nem +por isso deixa de ser bom português, e que, se +não está excessivamente inclinado a adorar o +Deus de Ourique, nem por isso deixa de crer em +Deus. +<br /> + +<br /> + +Com elles, com v.. a discussão grave, pausada, +modesta, é possivel; é mais, é uma +necessidade +do espirito, em que este se sente viver da +vida, a elle tão congenita, do raciocinio. Mas como +replicar seriamente a homens, não só ignorantes +<span class="pagenum">[67]</span> +e ineptos, do que elles não tem culpa, mas +que falsificam, truncam, omittem as palavras do +adversario, que lhe alteram as ideas, que, mettidos +no charco mais fetido dos becos da Alfama ou +do Bairro Alto, atíram ás faces do +<em>impio</em> que passa +quanto lodo lhes cabe nas mãos, contrahidas +e convulsas pela colera? A taes desgraçados que +se póde fazer, senão dar-lhes a triste +celebridade +dos Cotins ou dos freis Gerundios, e enviá-los á +geração futura, envolvidos no sudario do +escarneo, +para lhe distrahir os tedios? +<br /> + +<br /> + +Se as expressões, talvez severas e acres em +demasia, que me escaparam n'um impeto de +indignação +contra a maioria do nosso clero, e não +contra os homens honestos e instruidos que pertencem +a essa classe, como sem pudor se inculca, +não estivessem justificadas pelos actos que as suscitaram, +as consequencias do meu escripto tê-las-hiam +remido. Dos que me impugnaram, foi aos +seculares que coube a moderação, a lealdade, e +a elevação dos pensamentos; foi a sacerdotes que +couberam as manifestações de odio incrivel<sup><a href="#f21">[21]</a></sup>, a +<span class="pagenum">[68]</span> +transfiguração das minhas ideas, e a linguagem +sem nome das prostitutas. Isto é significativo. É +que esses seculares nunca tinham trajado a roupeta, +usada a cubrir mais hypocritas e devassos +ignorantes do que varões religiosos e sabios: tinham, +sim, vestido a farda de soldado, costumada +a despertar tantas vezes nobres e grandes instinctos. +E que me importam a mim esse odio impotente, +essa linguagem vergonhosa? O que o futuro +ha-de deduzir delles sei eu; sabe-o v.. As +ameaças, que ahi se murmuram pelos cantos, essas +causam-me dó. Se ao poder publico faltasse +a força para manter illesa a segurança dos +cidadãos, +devolvia-se a estes o direito da propria defesa. +Mas os Jacques-Clementes não apparecem +senão onde a sinceridade das +convicções degenerou +em delirio, e não onde as crenças são +especulação. +Para ser Jacques-Clemente requer-se +mais alguma cousa do que saber assassinar; é +necessario saber morrer. +<br /> + +<br /> + +Entrarei na materia. +<br /> + +<br /> + +Na questão suscitada pelo modo como tractei +<span class="pagenum">[69]</span> +na Historia de Portugal a lenda de Ourique, e +ainda outras lendas analogas, é necessario confessar +que se tem partido sempre de um ponto +nebuloso e fluctuante. Para se chegar a um resultado +preciso era necessario ter convindo em +certo numero de principios, acceitar certas formulas +de raciocinio. Não se fez isso. E todavia, a +crítica historica tem regras para a credibilidade, +regras a que todo aquelle que tracta de taes materias +deve sujeitar-se, porque se estribam, não +só na acceitação dos homens de +sciencia, mas +tambem na razão commum. Estes preceitos são +no nosso seculo, em que os estudos historicos +têm feito na Europa tantos ou mais progressos +que as outras sciencias, assaz severos; mas essa +severidade começou a desenvolver-se desde os +fins do seculo XVII, em que a congregação de S. +Mauro, aquelle brilhante seminario de homens +illustres, creou a diplomatica. O estudo dos archivos, +estudo alumiado pela philosophia crítica, +mostrou quanto havia a desprezar nessas vastas +compilações de trabalhos historicos dos seculos +anteriores. É de S. Germão dos Prados, de S. +Brás da Selva Negra, e dos outros mosteiros benedictinos +da França e da Allemanha, que partiu +o movimento intellectual da Europa nesta parte +<span class="pagenum">[70]</span> +do saber humano. O que o seculo presente, amestrado +por maior experiencia, tem feito é apertar +mais as condições da credibilidade, evitando ao +mesmo tempo todo o genero de preoccupação +que possa proceder dos interesses de partido politico +ou da incredulidade em materias de religião; +é tambem o ter dirigido as indagações +historicas +mais para o estudo da indole das sociedades, +do que para os actos dos individuos. Não +nega as tradições da antiga sciencia; +completa-as, +aperfeiçoa-as. No exame dos monumentos, na sua +confrontação, tem dado exemplos de imparcialidade +e de paciencia, que mereceriam os applausos +dos grandes reformadores benedictinos, se podessem +contemplar os resultados da eschola que +elles crearam, embora a sciencia moderna, como +era natural, os tenha deixado bem longe de si. +Os doutos que têm comparado os <em>Monumenta +Germaniæ Historica</em> de Pertz, os +<em>Monumenta +Historiæ Patriæ</em>, publicados em +Turin, a Collecção +dos Archivos d'Inglaterra, a continuação dos +<em>Scriptores Rerum Francicarum</em>, e +emfim as demais +publicações desta ordem com o que os maurienses +nos deixaram nesse genero, sabem que +passos gigantes tem dado a crítica das fontes historicas. +O uso dessas fontes, a applicação dos +<span class="pagenum">[71]</span> +preceitos a ellas, tem produzido historiadores +como Ranke, Guizot, Eichhorn, Savigny, Amári, +Maccaulay e tantos outros que a Europa inteira +conhece e admira. É a estes typos que hoje +forçosamente +ha-de tentar aproximar-se quem escrever +historia, se não quizer deshonrar-se e deshonrar +a litteratura do seu paiz. Foi essa aproximação +que eu tentei, persuadido de que bem +merecia por isso da terra em que nasci. Se é assim +ou não, pertence decidi-lo áquelles que vierem +após nós. No meio de uma +revolução litteraria +não ha desafogo de animo bastante para se fazer +inteira justiça, nem aos meus esforços, nem +á candura das minhas intenções. +Conheço a difficuldade +de se abandonarem antigas preoccupações, +e seria louco se me irritasse com isso. +<br /> + +<br /> + +Mas para refutar as impugnações que +até aqui +têm apparecido não me parece necessario invocar +a sciencia no seu estado actual, e nem sequer a +sciencia anterior na sua applicação á +historia profana. +Bastam-me as regras acceitas pelos historiadores +ecclesiasticos mais respeitaveis, inculcadas +por theologos, estabelecidas por membros illustres +do clero, a quem nem uma unica voz ousará +accusar de menos crentes, ou sequer de menos +piedosos. É, creio eu, e v.. o julgará, acceitar +<span class="pagenum">[72]</span> +a situação mais desvantajosa possivel: +é +tambem o que eu já tinha feito invocando a regra +de Vicente de Lerins. Se a religião (cuja base +é a crença em cousas que excedem a +comprehensão +humana, e que nos impõe a synthese, o +dogma, sem que nos seja licito recorrer previamente +á analyse) exige dos factos tradicionaes, +antes de os acceitarmos, as condições de terem +sido acreditados <em>sempre, em toda a parte, e por +todos</em>, quem pede para crer ou deixar de crer factos +puramente humanos (sujeitos pela sua natureza +a toda a discussão possivel) apenas as garantias +de liberdade intellectual que a igreja, tão +parca em concedê-las, concede aos fiéis para +acceitarem +uma parte das suas crenças, não abdica +evidentemente de uma liberdade, de uma vantagem +que é sua, que ninguem lhe disputaria? Mais +de uma vez terei talvez de appellar para a probidade +litteraria e para a intelligencia de v.. e +dos homens sinceros e honestos que pensam como +v..; mas aqui, parece-me tão evidente a materia, +que a deixo á discrição do espirito +mais vulgar, +da consciencia mais prevenida. Se Galileu, +quando descobriu que era a terra e não o sol que +andava, tivesse presentes as condições do +Comonitorio, +não o teria affirmado, e evitaria as +perseguições +<span class="pagenum">[73]</span> +da inquisição, postoque deixaria para +outro a gloria de ter descuberto um facto importante. +Aquelle canon, applicado á sciencia, é mais +perigoso para a verdade nova do que para o erro +antigo. +<br /> + +<br /> + +Eu disse que as auctoridades que estabeleceram +as regras historicas acceitas por mim serão +ineluctaveis para aquelles mesmos que mais ferrenhos +se mostram em conservar quanto os tempos +passados nos transmittiram. Essas regras, +pois, ao menos as principaes, permitta-me v.. +que as transcreva aqui. Pasme Portugal de ver +uma parte do clero insultar-me nos pulpitos e na +imprensa, calumniar-me nas praças e corrilhos, +porque segui como historiador as doutrinas estabelecidas +<em>para se estudar e escrever a historia da +igreja</em> por homens que são a gloria e honra +da +classe sacerdotal. Se diante dos olhos de todos, +na consciencia de todos não estivesse quanto escrevi +ácerca da decadencia intellectual da maioria +do nosso clero, parece-me que o que vou transcrever +sería medida sobeja para por ella se aferir +essa verdade. Já que falei dos religiosos da +congregação de S. Mauro, começarei +pelo mais +celebre membro d'aquella ordem, o grande Mabillon. +Eis o que elle nos ensina: +<span class="pagenum">[74]</span> +<br /> + +<br /> + +1.º «Aquillo em que sobretudo devemos acautelar-nos +no estudo da historia é em evitar todos +esses vicios em que é facil cair; quero dizer, +evitar admittir por verdadeiro o que é falso, ou +deixar-nos dominar pelas affeições particulares +dos historiadores. É necessario, primeiro que +tudo, pesar attentamente os dotes do auctor; se +é idoneo e sincero; o que o moveu a escrever; +se pertence a algum bando ou seita...» +<br /> + +<br /> + +2.º «Devemos averiguar <em>se o auctor que +lemos +é synchrono</em> (contemporaneo); se escreveu +elle +proprio, ou se copiou outro; se é prudente nas +suas affirmativas, ou se apenas se estriba em conjecturas; +porquanto, dada a paridade no demais, +deve preferir-se a opinião do auctor coevo á do +mais moderno. Digo―dada a paridade no demais―porque +póde acontecer, e acontece ás vezes, +escrever a historia com inteira madureza o +auctor não synchrono, estribado <em>em +monumentos +serios</em> e boas razões, e o contemporaneo +muito +ao contrario, ou seja por negligencia, ou seja por +ignorancia dos factos, ou seja por alguma +prevenção, +ou finalmente porque o <em>subjuga a força +do proprio interesse</em>.» +<br /> + +<br /> + +3.º «Segue-se d'aqui <em>não se +dever confiar demasiado +naquelles factos sobre que os escriptores</em> +<span class="pagenum">[75]</span> +<em>rigorosamente contemporaneos, ou quasi contemporaneos, +guardaram silencio</em>; postoque possa +acontecer que um auctor mais moderno consultasse +alguns monumentos importantes, guardados +em logar occulto quando os factos aconteceram, +ou visse escriptores synchronos, ou quasi +synchronos, cujas obras depois se perdessem. +<br /> + +<br /> + +«<em>Se, porém, esses escriptores, ou +os que lhes succederam, +no intervallo de um até dous seculos, +nada dizem a tal respeito, e não obstante isso, +um historiador mais moderno, sem se estribar +em testemunho ou auctoridade alguma, se atreve +a asseverar temerariamente esses factos, bem pequena +conta se deve fazer delle</em>, aliás +abririamos +ampla estrada para errarmos, e para enganarmos +os outros.» +<br /> + +<br /> + +4.º «Com todo o cuidado nos devemos premunir +para não sermos illaqueados por alguns auctores +suppositicios, inventados nestes nossos tempos...» +<br /> + +<br /> + +5.º «Não se deve proscrever qualquer +auctor +por um ou outro defeito de paixão ou +allucinação, +pela rudeza do estylo, ou por outra imperfeição +propria da natureza humana, comtanto que seja +sincero e pontual no resto...» +<br /> + +<br /> + +6.º «Não se devem desprezar os +antiquarios, +<span class="pagenum">[76]</span> +auctores de resumos historicos, e compiladores...» +<br /> + +<br /> + +7.º «Quando as narrativas variam, não nos +devemos +deixar attrahir pela consideração do numero, +mas sim pelo merito e gravidade<sup><a href="#f22">[22]</a></sup> +dos auctores; +visto que muitas vezes acontece que a auctoridade +de um auctor grave e sincero merece +preferir-se ao testemunho de cem de menos fé, +<em>porque estes se foram repetindo uns aos outros +sem madura discussão e diligente exame das +cousas</em>...» +<br /> + +<br /> + +8.º «Por este mesmo motivo não deve +fazer-se +grande fundamento na quasi innumeravel +multidão de casos que muitos modernos costumam +amontoar nas vidas de certos sanctos... Dizendo +isto, sinto apertar-se-me o coração, e com +magua devo accrescentar, que são muitissimo +mais exactos os auctores profanos escrevendo vidas +de ethnicos, do que muitos christãos relatando +vidas de sanctos, o que já não receou affirmar +<span class="pagenum">[77]</span> +Melchior Cano, referindo-se a Diogenes Laercio +e a Suetonio.» +<br /> + +<br /> + +Ouçamos ainda n'outra parte o fundador da +diplomatica francesa: +<br /> + +<br /> + +«É necessaria a crítica para +distinguirmos as +historias verdadeiras das falsas; para não darmos +temerariamente credito a narrações +supersticiosas, +a vans opiniões, a delirios aereos, a +<em>milagres +fingidos ou duvidosos</em>, a <em>escriptos +suppostos dos +sanctos padres</em>. O veneravel Guigo, quinto geral +dos Brunos, estabeleceu utilmente uma norma +de crítica: ...<em>Buscae a prova de tudo; o +bom +respeitae-o. Quem crê de prompto é leve de +coração.</em>» +<br /> + +<br /> + +Agora Fleury, o pio mas illustrado historiador +da igreja catholica. Depois de varias +considerações +sobre os documentos falsos com que o +clero innundou a Europa nos seculos de trevas, +e da falta de instrucção que entre elle reinava, +o +historiador observa: +<span class="pagenum">[78]</span> +<br /> + +<br /> + +«Outro resultado da ignorancia é tornarem-se +os homens credulos e supersticiosos, por falta de +principios seguros de crença e de exacto conhecimento +dos deveres religiosos. Deus é poderosissimo, +e os sanctos têm alto valimento para com +elle: verdades são estas que nenhum catholico +rejeita: logo devo acreditar todos os milagres +attribuidos á intercessão dos sanctos. +Má conclusão. +Cumpre examinar as provas delles, e com +tanta mais exacção, quanto esses factos mais +incriveis +e importantes forem. Porque, dar por +certo um milagre falso nada menos é, segundo +S. Paulo, que dar testemunho falso contra Deus, +como mui judiciosamente observa S. Pedro Damião. +Assim, longe de ser acto de piedade crê-los +de leve, é a propria piedade que nos obriga +a averiguarmos com rigor as provas em que se +fundam. <em>O mesmo se deve dizer das +revelações, +das apparições de espiritos, das +operações do demonio... +Em summa, toda a pessoa dotada de +bom juizo e religiosidade deve ser cautelosissima +em acreditar factos sobrenaturaes.</em>» +<br /> + +<br /> + +Mas observemos as precauções de que Fleury +se rodeava, as balisas que para si proprio punha, +ao começar o immenso lavor da sua <em>Historia +Ecclesiastica</em>, +ainda hoje não substituida, apesar de +<span class="pagenum">[79]</span> +tantas monographias excellentes com que depois +tem sido illuminada, por um ou por outro aspecto, +n'uma ou n'outra epocha, a historia da igreja. Eis +os limites que elle estabeleceu á credibilidade +n'um genero de escriptos onde esta poderia ser +mais ampla, limites que á +<em>fortiori</em> não +será nunca +licito ultrapassar em matéria de +tradições humanas. +Mas antes permitta-me v.. que cite algumas +passagens, as quaes me parecem grandemente applicaveis +a essa parte do clero, que, em vomitando, +no pulpito ou na imprensa, contra quem diz a +verdade, quantos adjectivos injuriosos contém o +diccionario da lingua, pensam que salvaram a honra +dessas fabulas e crendices que estão costumados +a propalar entre o povo, provavelmente pela mesma +razão por que prégam mal, isto é +<em>porque os +festeiros gostam d'isso</em>, embora os concilios lh'o +prohibam, os apostolos os condemnem, os membros +mais doutos e pios da igreja catholica lhes +mostrem o abysmo em que se precipitam! Para +onde has tu fugido, oh religião de Christo?! +<br /> + +<br /> + +«Vejo bem―diz Fleury―que a minha historia +não ha-de agradar aos espiritos acanhados, +atidos ás suas preoccupações, e sempre +promptos +em condemnar os que pretendem desenganá-los; +aos que tapam os ouvidos quando a verdade soa, +<span class="pagenum">[80]</span> +para se abraçarem com as fabulas, buscando doutores +que vão com elles. Não lhes faltarão +livros +acommodados ao paladar. Escrevo em vulgar +para ser util aos homens de juizo...» +<br /> + +<br /> + +«Dous excessos vejo eu que ha a evitar: um +de credulidade, outro de critica. Nem só a simpleza +faz credulos. Pessoas ha que o são por politica +e por deploravel sobranceria. <em>Julgam que +o povo é incapaz ou indigno de saber a verdade; +e tem por necessario alimentar-lhe todas as opiniões +que lhe foram inculcadas como religião</em>, +receiosos +de abalar o que é solido, atacando o que +é frivolo. Na essencia, estes suberbos politicos +são ignorantissimos. Desconhecendo a religião, +não a tomam a serio, e nada os liga a ella senão +as preoccupações da infancia e os interesses +temporaes. +Nunca examinaram as seguras provas do +evangelho, nem sentiram a excellencia da sua moral +e a esperança dos bens eternos. +<em>É por isso que +não ousam profundar as cousas antigas e temem +conhecê-las</em>: sabem que lhes não +são favoraveis. +Querem crer que sempre se viveu como hoje, +porque não querem mudar de vida, como se nos +fosse proveitoso enganar-nos a nós mesmos, ou +se a verdade podesse trocar-se em mentira á força +de averiguações. Graças a Deus, a +fé christan +<span class="pagenum">[81]</span> +passou pelo chrysol; o que ella +<em>teme</em><sup><a href="#f23">[23]</a></sup> +é que +não +a conheçam. +<br /> + +<br /> + +«A outra especie de pessoas credulas em demasia +são christãos sinceros, mas fracos e +escrupulisadores, +que á propria sombra da religião +respeitam, e sempre receiam crer de menos. +Falta a uns a instrucção; cerram os outros os +olhos, e não querem fazer uso do entendimento. +É para os taes objecto de devoção crer +quanto +escreveram os auctores catholicos e quanto crê +o ignorante vulgo. A meu vêr, a <em>legitima +devoção +consiste em prezar a verdade e a pureza da religião, +e em observar, primeiro que tudo, os preceitos +expressamente estabelecidos na sagrada +escriptura</em>. Ora, vemos que S. Paulo recommenda +repetidas vezes a Tito e a Timotheo que evitem +as fabulas, predizendo tambem que uma das +desordens do fim do mundo será o affastarem-se +os homens da verdade para se aterem a crendices; +vemos que as fabulas eruditas não merecem +menos desprezo a S. Pedro que os contos de velhas +<span class="pagenum">[82]</span> +de S. Paulo; e do mesmo modo que elle condemna +as fabulas judaicas, teria condemnado as +christans, se já então as houvesse. Que +dirão a +isto aquelles que a timidez torna tão credulos? +Não terão escrupulo em menosprezar semelhante +auctoridade? Dirão que nunca houve fabulas +entre os christãos? Seria desmentir a antiguidade +em peso...» +<br /> + +<br /> + +«A critica é portanto, necessaria. Sem deixar +de respeitar as tradições, deve averiguar-se +quaes +são dignas de credito; devemos fazê-lo, +até, se +não queremos desacatar as verdadeiras, confundindo-as +com as falsas. Sem que duvidemos da +omnipotencia de Deus, podemos e devemos examinar +se os milagres estão bem provados, para +lhe não levantarmos falso testemunho, attribuindo-lhe +os que elle não fez.» +<br /> + +<br /> + +Eis como pensava o grande historiador ecclesiastico +ácerca dos milagres, estribado nos livros +que Deus inspirou. Quem será, pois, o impio, o +incredulo? O que seguiu os conselhos dos apostolos +e as doutrinas dos homens mais piedosos e +sabios do gremio catholico, ou aquelles que esquecidos +dos deveres, não digo do sacerdocio +(porque neste caracter, o seu procedimento não +tem nome), mas do simples christão, ousam perguntar +<span class="pagenum">[83]</span> +ao historiador sincero: «<em>Se é +necessario, +se é util que o historiador se constitua campeão +acerrimo contra essas tradições que deturpam a +historia?</em> e que +respondem:―<em>É um arrojo mui +imprudente e reprehensivel no historiador semelhante +intento. Que precisão, que vantagem ha +em destruir as crenças theocraticas</em><sup><a href="#f24">[24]</a></sup><em>, que uma +tradição de seculos fora radicando no +coração +do povo? Nenhuma ha:</em>» e depois accrescentam +esta maxima impia de Laharpe―«<em>a politica +sabia +e devia tirar partido do poderoso movel da +geral crença, cujos effeitos são geralmente bons +em todo o governo, mesmo quando a crença é +erronea!</em>» Não peço a +v.. tão cavalheiro e tão +indulgente para comigo; peço ao homem que mais +me odiar, mas que conserve um resto de pudor, +que seja juiz entre mim e os desgraçados que não +se envergonham, christãos e sacerdotes, de invocar +contra a Historia de Portugal taes principios +e taes maximas, e que insultam, não a mim, +nem o meu livro, mas os apostolos, mas a biblia, +<span class="pagenum">[84]</span> +mas os escriptores mais sabios, mais respeitados +do catholicismo. +<br /> + +<br /> + +Mancebos, cujos corações generosos a +indignação +póde desvairar! No meio destas saturnaes hediondas +que vedes passar; no meio dos gritos descompostos +da hypocrisia, que, embriagada de colera, +deixa tombar dos hombros seu velho e já tão +roto manto, e nua e vinolenta pragueja a verdade, +atira com a fé aos pés da politica, rasga as +sacras +paginas, maldiz as cinzas dos sanctos, dos martyres, +e dos sabios, não volteis, cheios de horror e +de tedio, as costas ao Calvario. Não! A philosophia, +a honesta liberdade do pensamento, bem +vedes que estão sanctificadas no livro dos livros, +O Christo foi o Deus da verdade. Se ao entrardes +no templo ouvirdes dizer que a mentira é sancta, +que o povo só póde ser virtuoso se crer em falsos +milagres, saí, porque o templo está polluido +pela blasphemia e pela calumnia; mas não renegueis +da cruz. A cruz está pura; a cruz será eterna. +Se esta gangrena que corroe o sacerdocio chegasse, +o que não creio, a corrompê-lo inteiramente; +se não achassemos uma ara, juncto da qual +orassemos <em>em espirito e verdade</em>, a +cruz lá está +hasteada nos cemiterios, sobre os ossos de nossos +paes, para nos irmos abraçar com ella: os +<span class="pagenum">[85]</span> +mortos não tem ouro, os mortos não são +festeiros, +que paguem para se lhes falar a sabor: ahi +não se tem blasphemado. +<br /> + +<br /> + +Mas, reprimindo a amargura que deve causar +a todo o christão sincero o ver sacerdotes sacrificarem +assim a conveniencias mundanas o verbo +de Deus, e semelhantes ao apostolo desleal contarem +e recontarem o preço por que o venderam, +acolhamo-nos ás placidas discussões da sciencia, +e vejamos, como já disse, as mais importantes +dessas regras que o pio e douto Fleury punha a +si proprio para evitar os erros da nimia credulidade. +<br /> + +<br /> + +«Não tenho em conta de provas, senão o +testemunho +dos auctores originaes, isto é, daquelles +que escreveram <em>contemporaneamente, ou pouco +depois</em>. Porque a memoria dos successos não +póde subsistir por muito tempo sem ser escripta. +<em>Bastante será se durar um +seculo.</em> O filho póde +lembrar-se passados cincoenta annos do que o +pae ou avô lhe referiram cincoenta annos depois +de o haverem presenciado. Os successos que tem +passado por varias gerações não obtem +a mesma +certeza: cada qual lhes vai accrescentando alguma +cousa de sua lavra, talvez sem o pensar. <em>É +por +isso que as tradições vagas de factos muito +antigos, +<span class="pagenum">[86]</span> +que tarde ou nunca se escreveram, nenhum +credito merecem</em>, principalmente repugnando a +factos provados. <em>Nem se diga que as historias +pódem +ter-se perdido; porque, dizendo-se isso sem +provas, posso tambem eu affirmar que ellas nunca +existiram.</em> O mesmo direi dos escriptores que +escreveram successos anteriores a elles muitos seculos; +<em>se não citam os auctores d'onde os tiraram, +temos o direito de desconfiar de que acreditaram +de leve os rumores vulgares</em>.....» +<br /> + +<br /> + +«Os proprios auctores contemporaneos não devem +adoptar-se sem exame... deve averiguar-se +bem se o escriptor é digno de fé, quasi como +quem inquire testemunhas n'um processo... <em>O +que se encontra em cartas, ou em outros diplomas +da epocha, deve ser preferido ás narrativas +dos historiadores.</em>» +<br /> + +<br /> + +Até aqui Fleury. Para estas largas +citações preferi +dous homens de indubitavel sciencia e de catholicismo +insuspeito. V.. sabe que eu poderia +tambem citar escriptores da primeira ordem, pagãos +ou protestantes, mas cuja auctoridade nem +por isso seria menor n'uma questão que evidentemente +não interessa os dogmas da nossa fé. Poderia +invocar a bella sentença de Cicero: +<em>«Quem +ignora que a primeira lei da historia é não ousar +<span class="pagenum">[87]</span> +dizer a menor falsidade, e a segunda não nos +faltar jámais valor para dizermos a +verdade?</em>» +É certo que uma parte do clero português do seculo +XIX se ergueria para lhe +responder:―«<em>Ignoramo-lo +nós.</em>»―Eu poderia tambem repetir +as +palavras do luminar da critica no seculo XVII, as +palavras de João Leclerc:―«Quando se escreve +a historia, <em>sobretudo de tempos +antigos</em>, não é licito +dissimular a minima cousa; porque a verdade, +sem ser nociva aos mortos, aproveita muito +aos vivos; e pelo contrario a dissimulação, +inutil +para aquelles, é profundamente damnosa a +estes.»―Não +me quiz aproveitar dessas auctoridades +summas, porque um não era christão, outro +não era catholico. Parece-me que é levar longe o +escrupulo. E todavia, o protestante Leclerc estribava-se +na opinião de S. Isidoro Pelusiota―«Aquelles―diz +o sancto―que com artificiosas +palavras encobrem a verdade, muito mais desgraçados +me parecem de que os que não a comprehenderam. +Porquanto, os que por curteza de +engenho não a alcançaram, estes não +são talvez +indignos de desculpa; mas os que, sendo dotados +de agudeza, investigaram a verdade e criminosamente +a occultam, commettem mais grave e +imperdoavel peccado.» +<span class="pagenum">[88]</span> +<br /> + +<br /> + +Mas, apesar de catholicos e pios, Mabillon e +Fleury eram sobretudo eruditos. Haveria nelles +menos luzes theologicas? Serão os theologos de +profissão mais indulgentes para com as lendas e +tradições não provadas? +Exigirão, ao menos em +referencia á historia da igreja, maior credulidade +nos que a estudam ou escrevem? Ouçamos o celebre +Melchior Cano, o qual ninguem accusará +de excessivo amor pelos fóros e liberdades do +raciocinio: eis algumas das suas observações +ácerca +do credito que deve dar-se ás +tradições infundadas. +<br /> + +<br /> + +«A principal regra (para distinguir as narrativas +falsas das verdadeiras) deduz-se da probidade +e inteireza humanas; regra perfeitamente applicavel +quando os historiadores <em>testificam terem +presenciado os successos que narram, ou terem-nos +sabido daquelles que os presenciaram</em>...» +<br /> + +<br /> + +«É cousa averiguada que esses que escrevem +fingida e enganosamente a historia ecclesiastica +não podem ser gente boa e sincera, e que toda a +sua narrativa é tecida <em>para d'ahi tirarem +lucro</em>, +ou para persuadirem o erro; <em>torpes no primeiro +caso</em>, perniciosos no segundo. Justissimas +são as +queixas de Luiz Vives ácerca das historias inventadas +no seio da igreja; <em>prudentes e graves as +<span class="pagenum">[89]</span> +arguições que dirige áquelles que +julgam obra +pia fazerem de mentiras religião</em>, cousa +altamente +perigosa e profundamente inutil. Do mentiroso +nem a propria verdade ousamos acreditar. +Por isso <em>os que pretendem concitar os animos ao +culto dos bemaventurados com falsos e mentirosos +escriptos, nenhum outro resultado tirarão, +talvez, se não negar-se fé ás cousas +verdadeiras +por causa das falsas, e tornar-se duvidoso aquillo +mesmo que referem com severa consciencia auctores +de inteira veracidade</em>.» +<br /> + +<br /> + +Preciso de implorar toda a indulgencia de +v.. para transcrever em seguimento a esta passagem, +admiravel de cordura e de legitima piedade, +outro bem diverso extracto. Juro que não +o faço com o intento de humilhar os homens sinceros +e honestos, a quem, a meu vêr, cega um +erro deploravel. É para vingar a religião +injuriada; +é para dar ao paiz um desses espectaculos +repugnantes, mas salutares, a que os lacedemonios +recorriam para evitar um vicio hediondo, +mandando assistir um escravo em completa embriaguez +ao jantar commum da mocidade d'Esparta. +Só advirto que a passagem é +concepção +de um sacerdote, que celebra por certo tranquillamente +o tremendo sacrificio do altar, sem que +<span class="pagenum">[90]</span> +em todas as paginas do missal<sup><a href="#f25">[25]</a></sup> +leia, escriptas em +letras de fogo, estas palavras que Jesus, o inimigo +da mentira, dizia aos escribas e phariseus de +outro tempo: +<br /> + +<br /> + +«Hypocritas! Bem prophetisou ácerca de +vós +Isaias, quando disse: +<br /> + +<br /> + +«Esta gente honra-me com os labios; mas o +seu coração está affastado de +mim.» +<br /> + +<br /> + +Eis a inqualificavel passagem, que, ainda uma +vez, peço venia de lançar, depois das doutrinas +de Melchior Cano, n'um papel que é dirigido a um +homem tão delicado como v.. +<br /> + +<br /> + +«Os historiadores têm advertido que os factos +maravilhosos, os prodigios singulares, que registavam +em seus escriptos <em>não eram fundados +senão +em rumores populares</em>; outras muitas vezes tem-nos +tambem referido sem esta precaução, já +porque +<em>elles mesmos fossem povo a tal +respeito</em>... já +porque elles não julgassem dever abalar a crença +vulgar; bem convencidos que á sombra de um +<span class="pagenum">[91]</span> +prejuizo repousava ás vezes uma verdade util, a +que talvez tivessem vergonha de prejudicar.» +<br /> + +<br /> + +«Eis aqui os <em>dictames +prudenciaes</em>, adoptados +pelos mais distinctos historiadores, ácerca dos +successos de caracter maravilhoso, que devem +dirigir todo o escriptor sensato. <em>O contrario +é +querer campar por uma anomalia extravagante +e ridicula...</em>» +<br /> + +<br /> + +«Se, porém, gravemente offende o melindre +patriotico de uma nação aquelle que simplesmente +contradiz os pontos <em>theocraticos</em> das +suas tradições +historicas constantemente recebidos e venerados; +quanto não se torna mais altamente +<em>réu +d'este attentado</em> aquelle escriptor, que +não só os +nega, mas tem a <em>asquerosa villania</em> +de á cara +descuberta os vir insultar? Se alguem ha no orbe +litterario que mais demonstrativamente tenha +commettido <em>tão reprehensivel e extranho +excesso</em>, +é por certo o auctor da carta aviltante, a respeito +da Apparição de Christo a D. Affonso Henriques. +<em>É uma das ulceras mais pustulentas que +conspurcam +e aviltam esse escripto sandeu</em>, que rancorosamente +a impropéra...» +<br /> + +<br /> + +«Como é crivel que uma fabula... fosse sustentada +como facto verdadeiro por seculos...? +<em>Quando, porventura, o tivesse sido, teria, +não +<span class="pagenum">[92]</span> +receio dizê-lo</em>, por effeito dessa universal +crença +dos sabios, <em>perdido a sua natureza e deixado de +o ser!!!</em>...» +<br /> + +<br /> + +Basta! Refujamos deste hediondo espectaculo, +para continuarmos a averiguar tranquillamente +se os theologos de profissão concordam com os +eruditos de reconhecida piedade nas bases da +critica historica. Ainda algumas palavras de Melchior +Cano. +<br /> + +<br /> + +«Achareis outros, não tão ineptos, mas +quasi +tão imprudentes, que não buscam a verdade das +cousas onde a deviam buscar, mas naquelle logar +onde é raro encontrá-la, <em>em +aereos e vagos rumores</em>. +Acontece isto frequentemente aos inconstantes +e leves de cabeça; <em>porque os homens graves +e +severos não costumam andar á caça dos +dictos +vãos do vulgo</em>.» +<br /> + +<br /> + +Desçamos já aos fins do seculo XVIII, quando +a incredulidade corria como lava ardente pela face +da Europa, e devorava as crenças mais sanctas +e legitimas em milhares de corações. Vacillou, +acaso, por isso a critica dos homens probos e +pios nos seus principios de severidade? No meio +de tantas ruinas, quizeram elles salvar com os +restos do edificio a sua falsa miragem? V.. o +julgará pelas doutrinas de muitos varões +religiosos +<span class="pagenum">[93]</span> +dos ultimos tempos, inteiramente accordes +com as dos que os haviam precedido. Por exemplo, +o theologo piemontês Denina, diz-nos: +<br /> + +<br /> + +«Acontecem algumas cousas fóra da ordem +natural, que, de per si só, são incriveis... a +esta +categoria pertencem, na igreja de Deus, os +milagres, os quaes, <em>nem é licito rejeitar +na +sua totalidade, nem se devem acceitar todos sem +selecção</em>...» +<br /> + +<br /> + +«Pertence á prudencia do historiador +<em>nada +escrever, que não saiba por si proprio, ou não +se estribe na auctoridade de pessoas fidedignas</em>, +cumprindo-lhe, não menos, ser pouco credulo. +Mas <em>ninguem póde ter conhecimento do que +narra, +se não viveu no tempo em que os factos aconteceram; +nem sabê-los de pessoas fidedignas, se +estas não os presenciaram</em>; nem escapa de +credulo, +se não explicar e expender as razões, causas +e circumstancias do que relata. Auctores que +assim o fazem <em>nenhum credito +merecem</em>...» +<br /> + +<br /> + +«Nem tudo quanto o historiador relata do seu +tempo se ha-de acreditar; salvo constando que +fôra curioso em indagar e explorar...» +<br /> + +<br /> + +«Se o historiador referir cousas, não do seu +tempo, mas succedidas muitissimo antes, dar-se-lhe-ha +credito, <em>se individuar os auctores d'onde +<span class="pagenum">[94]</span> +as tirou</em>, sendo <em>aliàs +daquelles que as podiam +saber</em>...» +<br /> + +<br /> + +«Não duvido de chamar +<em>máu historiador</em> a +todo aquelle que devendo ter por norma o não +ousar dizer a menor falsidade, <em>nem faltar-lhe +animo para dizer qualquer verdade</em>, encubrir +esta aos leitores, <em>seja por que motivo +for</em>...» +<br /> + +<br /> + +Assim pensavam os theologos d'Italia nos fins +do seculo passado: assim pensavam tambem os +theologos catholicos da Allemanha, ou antes do +paiz mais religioso d'ella, a Austria. Citarei dous, +um dos quaes, ou ambos, a nossa universidade +honrou, escolhendo as suas instituições de +historia +ecclesiastica para compendios nas faculdades +de theologia e de direito canonico. Falo de +Gmeiner e Dannenmayr. As secções desses +compendios +relativas ao <em>criterium</em> da verdade +historica +nada mais são do que o desenvolvimento +das doutrinas de Cicero, de Mabillon, de Fleury, +de Melchior Cano, de Riegger, de Leclerc, de +Muratori, de Baumeister; em summa de todos +os criticos, historiadores, e philosophos, que falaram +ex-professo ou accidentalmente da crítica +historica. Andam esses livros nas mãos de todos, +menos nas do clero ignorante e corrupto, porque +este, coitado, não sabe ler. Não serei, por isso, +<span class="pagenum">[95]</span> +demasiado extenso em citá-los, escolhendo apenas +as passagens mais frisantes, e que fazem sobretudo +ao intento. +<br /> + +<br /> + +«Como os narradores―diz Gmeiner―por +falta de <em>habilidade</em> sufficiente, ou +de sciencia, nos +<em>possam</em> enganar, ou por falta de +<em>sinceridade</em>, ou +por vontade nos <em>queiram</em> illudir, +só podêmos +acquiescer ao seu testemunho, se não houver +razões sufficientes para duvidar da sua habilidade +ou sinceridade.» +<br /> + +<br /> + +«A auctoridade das testemunhas não é +uma e +a mesma, e portanto deve attender-se a esta diversidade. +Observa-se ella 1.º em relação aos +sentidos, +2.º em relação ao entendimento, +3.º em +relação á vontade. Em +relação aos sentidos, essas +testemunhas ou são de vista ou de ouvida. +<em>As de +ouvida ou são coevas, ou não coevas mas que +ouviram +aos coevos o que narram</em>...» +<br /> + +<br /> + +«D'aqui se segue, <em>que pouca fé +deve dar-se +áquillo que os escriptores ou absolutamente contemporaneos, +ou quasi contemporaneos deixaram +de mencionar</em>...» +<br /> + +<br /> + +«A verdade dos conhecimentos historicos não +depende de modo nenhum da abundancia dos +historiadores, visto que <em>não +provém maior certeza +a um facto historico de ser relatado em livros +<span class="pagenum">[96]</span> +de muitos auctores mais modernos, cada +um dos quaes foi copiando o que outro tinha dicto. +Todos elles junctos não valem mais do que +o primeiro que o referiu</em>...» +<br /> + +<br /> + +«A consideração do paiz em que o +escriptor +viveu, e do tempo em que escreveu importa +muito em relação ao seu intuito de falar verdade. +N'alguns paizes a liberdade de escrever é +franca; n'outros opprimida; n'outros, emfim, +ha premios para a lisonja, odio e castigo para +a verdade... Ensina-nos a historia que os escriptores +lisonjeiros da curia romana receberam +ás vezes em premio <em>de suas +fadigas</em> o barrete +cardinalicio ou a dignidade do episcopado. +<em>Naquellas provincias onde vigorou o terrivel tribunal +da inquisição, a fogueira estava prompta +para a verdade.</em>» +<br /> + +<br /> + +«Não faltaram impostores e falsarios, que +trabalharam +em alterar varias passagens nos antigos +monumentos, e que tiraram a uns e accrescentaram +a outros.» +<br /> + +<br /> + +Consinta-me v.. que ainda transcreva poucas +linhas do theologo Dannenmayr: +<br /> + +<br /> + +«Para tirarmos proveito... da historia ecclesiastica―diz +elle―devemos principalmente ter +em mira, <em>que nem se nos inculquem fabulas +sobcolor</em> +<span class="pagenum">[97]</span> +<em>de verdades, nem consideremos como duvidosos +factos absolutamente certos e largamente +provados.</em>» +<br /> + +<br /> + +Tenho talvez sido prolixo. Mas era necessario +estabelecer uma doutrina, uma norma, por onde +os animos imparciaes, e ainda os prevenidos, +mas sinceros nas suas prevenções, houvessem +de julgar-me, não tanto no foro da sciencia, que +era o meu foro, que era aquelle para onde eu +tinha direito de trazer o litigio, mas nó da mais +restricta piedade. Em these, a contenda dos que +blasphemam contra a verdade, que fazem a apologia +(e que apologia, meu Deus!) das tradições +fabulosas, não é comigo; é com os +apostolos, +com os sanctos, com os historiadores do catholicismo, +com os theologos, com todos aquelles e +com tudo aquillo a que mais importava á hypocrisia +mentir acatamento nesta comedia beata. +A tonta e imprudente não se lembrou de que lhe +caía a mascara, e de que alguem poderia +levantá-la +para a entregar ao povo, que nos seus grandes +instinctos de justiça lhe fustigaria as faces +com ella. Na hypothese, no que me diz respeito, +o meu dever é provar aos homens sinceramente +pios que, rejeitando falsas lendas, não ultrapassei +os limites de uma crítica irreprehensivel. Será +<span class="pagenum">[98]</span> +esse o objecto da carta immediata, que em breve +espero dirigir a v.. Nas seguintes darei razão +das minhas opiniões ácerca da maioria do nosso +clero, e ácerca da curia romana. Compelliram-me +a isso; fá-lo-hei gemendo. Quizeram que o +paiz os conhecesse: hão-de ser satisfeitos. +<br /> + +<br /> + +Emquanto os ecclesiasticos virtuosos e instruidos +choram em silencio a vergonha da sua classe, +e emquanto os prelados dormem tranquillos nas +suas cadeiras episcopaes, Deus salve a igreja portuguesa +dos tristes dias de tempestade! +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c4"></a>IV<br /> + +<br /> + +SOLEMNIA VERBA<br /> + +</h3> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<h5> +SEGUNDA CARTA<br /> + +</h5> + +<h4>AO SR. A.L. MAGESSI TAVARES</h4> + +<h4> +(<em>Novembro, 1850</em>) +</h4> + +<br /> + +<br /> + +Na minha antecedente carta deixei eu, ou para +me exprimir com mais exacção, deixaram muitos +e mui piedosos escriptores catholicos apontadas +as principaes regras da critica, em relação +ás fontes historicas. Dessas regras resulta o que +a boa razão está por si indicando; que +é necessario +premunir-nos contra a credulidade, não só por +honra da sciencia e pela consideração do proprio +credito litterario, mas tambem, o que é mais grave, +para não deslizarmos da doutrina dos apostolos, +inculcada nos livros sanctos. O mais necessario +canon, em que de certo modo todos os outros se +consubstanciam, é o atermo-nos unicamente aos +testemunhos synchronos ou quasi synchronos, +<span class="pagenum">[100]</span> +aos testemunhos daquelles que presenciaram os +factos, ou, pelo menos, que os ouviram narrar aos +contemporaneos, quer esses factos sejam naturaes +e criveis, quer sobrenaturaes e incriveis para +a razão humana; quer elles nos sejam transmittidos +por narrativas coevas ou quasi coevas, quer +por documentos do tempo, embora descubertos +por escriptores modernos. Quando, porém, se tractar +de milagres, a critica deve ser tanto mais +severa, quanto é certo que a isso nos constrange +o dever religioso, que nos impõe as palavras de +S. Paulo, o dever de não levantarmos falsos testemunhos +a Deus. +<br /> + +<br /> + +Que podia eu fazer em relação ao supposto +milagre de Ourique, escrevendo a historia do +reinado de Affonso I? Faltavam-me absolutamente +chronicas, historias, documentos coevos ou +quasi coevos, que o narrassem. O exame attento +de quanto modernamente se escrevera para supprir +a falta de provas daquella celebre tradição, +só tinha servido de convencer-me das +aberrações +em que se podem transviar ainda os espiritos +mais elevados, quando, em vez de buscarem simplesmente +a verdade, buscam accommodar os +caracteres desta a um preconceito. Não me era +possivel omittir a batalha de Ourique. Que podia +<span class="pagenum">[101]</span> +eu fazer, repito, ácerca do milagre da +apparição? +Ou mentir á minha consciencia, alevantar um testemunho +a Deus, pospôr as doutrinas dos homens +mais pios e eruditos do orbe catholico, que +falaram de critica historica, calcar aos pés a maxima +do mais illustre escriptor romano, ou então +manifestar sem hesitação as proprias +convicções, +que julgava e julgo legitimas, isto é, proceder +de um modo que v.. mesmo crê nobre e honroso<sup><a href="#f26">[26]</a></sup>; +affirmativa, que, seja dicto em boa paz, não +sei se está em perfeita harmonia com a idéa geral +que predomina nas considerações que v.. +tem tido a bondade de dirigir-me sobre os inconvenientes +que resultam, no entender de v.. +para a nossa patria commum, da manifestação +das minhas doutrinas. +<br /> + +<br /> + +Disse, pois, o que suppús e supponho verdade: +disse-o sem sobre isso me dilatar, sem +exaggeração, +sem pretensões a ter feito um importante +descobrimento historico; porque realmente +o não era: disse-o singelamente, simplesmente: +indiquei apenas de passagem as incongruencias +historicas, que desmentiam a importancia que se +costuma attribuir ao successo. E n'esta parte, +<span class="pagenum">[102]</span> +seja-me licito dizê-lo, nem v.. nem ninguem se +encarregou de me refutar; porque, na verdade, +seria um pouco difficil de admittir que houvesse +centenas de milhares de sarracenos para virem +combater em Ourique, quando os almoravides +concentravam todas as forças em Africa, para salvarem +o imperio da ultima ruina, exhaurindo a +Hespanha de soldados, a ponto de abandonarem +a heroica guarnição de uma praça como +Aurelia +ao seu triste destino. A narrativa anterior, o quadro +da situação dos lamtunitas e das +perturbações +quo agitavam as provincias mussulmanas do +Gharb habilitavam o leitor para por si fazer conceito +das dimensões da batalha de Ourique. Se +em alguma cousa cedi da inflexibilidade da historia +foi em procurar, talvez em demasia, achar resultados +moraes dessa batalha, para de algum modo +desculpar a significação exaggerada que depois +se lhe attribuiu. Sobre a apparição disse apenas +o restrictamente necessario para o leitor vulgar +conhecer que eu não a admittia. Se tivesse o proposito +deliberado de combater quando podesse +ferir o chamado sentimento religioso do povo, +crê v.. que eu não teria recursos para aproveitar +o lado contradictorio e até ridiculo, (que cousa +ha neste mundo onde elle se não possa encontrar?) +<span class="pagenum">[103]</span> +do celebre milagre, sem todavia abandonar +o estylo grave da historia? Crê v.. que se eu intentasse +buscar as causas provaveis da invenção +dessa maravilha, e avaliá-las severa ou, se quizerem, +malevolamente, me faltariam meios para +assim o practicar? Permitta-se-me dizer que foi +necessaria demasiada prevenção contra mim, ou +a favor da inviolabilidade da apparição, para se +não ver que procurei, quanto me era possivel sem +offender a verdade, não converter os factos que +se prendem a esse falso milagre n'um escandalo +historico. As extensas notas com que finalisa cada +volume do meu livro são destinadas para os homens +da sciencia, para debater os fundamentos +das minhas opiniões. Estas notas são, portanto, +para poucos. A generalidade dos leitores não se +cansa com essas discussões tediosas. Foi, porém, +ahi que eu alludi ao ridiculo instrumento do cartorio +d'Alcobaça, o que fiz apenas pelo desejo de +dar uma satisfação aos homens professionaes. Se +eu fosse o impio, o atheu, e não sei que mais, +que por ahi me chamam os padres ignorantes e +mal procedidos, não tiraria vantagem dessa +falsificação +insigne, para mostrar como a hypocrisia +costuma fazer joguete das cousas do céu para +fins terrenos? Não practicaria ao menos aquillo +<span class="pagenum">[104]</span> +que a justissima indignação de qualquer homem +religioso o levaria talvez a practicar? Se tal se houvesse +de crer, não deveriam qualificar-me de impio, +mas sim de insigne mentecapto. +<br /> + +<br /> + +Em ambos os opusculos que v.. me fez a honra +de escrever contra as minhas opiniões, v.. insiste +em que, citando naquella nota a Memoria de +Fr. Joaquim de Sancto Agostinho contra a genuinidade +do diploma de juramento conservado em +Alcobaça, eu fiz uma citação +contraproducente<sup><a href="#f27">[27]</a></sup>. +Contraproducente?! Pois o erudito augustiniano +não nega ahi redondamente a authenticidade do +diploma? O que dizia eu ao citar a Memoria sobre +os codices d'Alcobaça?―«<em>Quem +desejar conhecer +a impostura desse documento famoso consulte +a Memoria, etc.</em>»―Se o auctor concorda +comigo +em que elle é falso, onde está a improcedencia +da citação? Se v.. me permitte que seja +interprete do seu pensamento, o que v.. queria +talvez dizer era, que Fr. Joaquim de Sancto Agostinho +affirma que acreditava na apparição, posto +negasse a genuinidade do pergaminho de Alcobaça, +e que eu não creio nem no documento, nem +no facto. Exprimindo-se assim, v.. teria sido exactissimo. +<span class="pagenum">[105]</span> +Não era, porém, para a opinião +manifestada +pelo academico em relação ao successo, +mas sim para as suas razões contra o diploma +que eu remettia o leitor. E realmente, o que elle +diz em favor do facto não é mais do que repetir o +que outros disseram antes delle, e citar uma copia +de 1597 existente em S. Vicente de Fóra vista por +elle, e a qual, duas paginas adiante, dá como provavelmente +tirada <em>de outro original falso</em>. O +que +se vê de tudo aquillo é que o pobre frade, +conhecendo +o risco de mostrar o que era e o que valia +O ridiculo thesouro dos monges d'Alcobaça, quiz +ao menos salvar-se, protestando pela pureza da sua +crença no milagre de Ourique. Talvez, se eu vivesse +então, fizesse o mesmo, em attenção +á circumstancia +que nos recorda Gmeiner: «<em>onde vigorou +o terrivel tribunal da inquisição, a fogueira +estava prompta para a verdade</em>». +<br /> + +<br /> + +Soffra-me v.. dizer eu aqui que me envergonho +pelo meu paiz desta necessidade de disputar +ácerca de um diploma falso, que se acha depositado +nos archivos do estado, onde qualquer pessoa +póde examiná-lo. Qualquer pessoa, sim; porque +não é preciso ter a menor idéa de +paleographia +para o reconhecer por falso. Basta pôr-lhe ao +lado dous ou tres diplomas genuinos do meiado +<span class="pagenum"><a name="p106" id="p106">[106]</a></span> +do seculo XII, e comparar. Esses multiplicados +recursos que possue a diplomatica para desmascarar +falsarios são aqui perfeitamente inuteis. +Estou certo de que v.. nunca o viu; porque tambem +estou certo de que, se o houvera visto, eu +acharia v.. a meu lado para dizer aos homens +sem pudor que ainda ousam inculcar como legitima <a href="#e4">essa +invenção</a> +torpe: +«<em>Sois uns +miseraveis!</em>» +<br /> + +<br /> + +Sinto sinceramente que v.. se dignasse de +tomar para si, a favor da apparição, um argumento +que devia pertencer precipuo aos apologistas +dos clerigos ignorantes e devassos. Consiste +elle em que, negando eu que a tradição de +Ourique remonte aos tempos a que se refere, +devo dizer quando, como, e para que a forjaram. +Onde existe semelhante canon de critica historica? +O que sei é que ella começou a apparecer +no ultimo quartel do seculo XV, mais de trezentos +annos depois da epocha em que se diz succedido +o milagre; o que sei é que em nenhum +escriptor, nem em nenhum documento legitimo, +coevo ou quasi coevo, ha o menor vestigio de semelhante +tradição; o que sei é que os +escriptores +modernos que a publicaram não se referem a +testemunho contemporaneo ou proximo; o que +sei, portanto, é que as regras de critica adoptadas +<span class="pagenum">[107]</span> +por homens não menos pios que sabios me +obrigam a rejeitá-la. Diga-me v..: se um devedor +seu pretendesse pagar-lhe certa quantia +em moeda falsa, v.., depois de a examinar e convencer-se +da sua falsidade, o que fazia? Pelos principios +por que pretende julgar-me, devia reconhecê-la +por boa e acceitá-la, emquanto não podesse +mostrar quando, como, por quem e para que fora +forjada. Não vê v.. que uma tal regra de critica +nos obrigaria a adoptar como verdadeiras até as +lendas indicas de Vishnú e de Brahma? +<br /> + +<br /> + +Outro argumento me faz v.. que eu tambem +desejara tivesse deixado aos ex-frades ignorantes +e hypocritas: é o da impossibilidade de nossos +avós terem adoptado uma tradição que +não fosse +verdadeira. Quer v.. que lhes concedamos a +mesma critica, a mesma intelligencia, a mesma +honra, o mesmo amor da propria fama e dignidade +que nós temos. Concedo por um momento. +Mas o patriotismo de v.. não será tão +inimigo +da logica, nem tão cego, que recuse os mesmos +dotes aos avós dos actuaes castelhanos, franceses, +italianos e allemães. Por aquella doutrina, v.. +deve acreditar todas as lendas desses paizes, ainda +quando a critica historica as tenha feito abandonar +aos castelhanos, franceses, italianos e allemães +<span class="pagenum">[108]</span> +de hoje. Mais: v.. deve, por exemplo, +acreditar <em>à fortiori</em> a +historia da papisa Joanna, +embora já os proprios protestantes se riam dessa +calumnia ridicula, porque a Europa inteira a acreditou +por seculos. Mais ainda: v.. é assaz instruido +para não ignorar qual foi a +civilisação dos +arabes nos seculos IX, X, XI, sobretudo dos arabes +hespanhoes, qual a sua sciencia e litteratura, +qual a nobreza do seu caracter. Apesar disso, elles +nunca deixaram de crer na tradição dos milagres +de Mafoma. Não é de esperar da justiça +de v.. que +recuse a esse povo tão culto os dotes intellectuaes +e moraes que attribue a nossos avós. Adoptará +v.. as lendas mussulmanas ácerca do propheta +de Mekka? Principios que provam tanto, ou antes +que provam tudo, permitta-me v.. desconfiar +de que não provam nada. Deus nos livre de +pensar que uma fabula que se generalisa, se converte +por isso em verdade. Semelhantes doutrinas, +deixe-as v.., christão, cavalheiro, e homem +de letras, para essa parte da cleresia, que quer +lucrar com as illusões populares. A nós, +christãos, +incumbe recordar-nos daquellas tremendas +palavras do divino Mestre: +<br /> + +<br /> + +«Guardae-vos do fermento dos phariseus, que +é a hypocrisia:» +<span class="pagenum">[109]</span> +<br /> + +<br /> + +«<em>Porque nenhuma cousa ha occulta que +não +venha a descubrir-se; e nenhuma ha escondida +que não venha a saber-se</em>....» +<br /> + +<br /> + +«E todo o que proferir uma palavra contra o +filho do Homem ser-lhe-ha dado perdão; mas +<em>áquelle que blasphemar contra o Espirito +Sancto, +não lhe será +perdoado</em>.» +<br /> + +<br /> + +V.. sabe, tão bem como eu, que, segundo +Sancto Agostinho, uma das blasphemias contra o +Espirito Sancto <em>é o negar a verdade +conhecida por +tal</em>. +<br /> + +<br /> + +E é isto o que responde a todas as +considerações +que v.. me faz sobre a conveniencia de não +desilludir o povo ácerca das suas +tradições mentirosas: +são estas palavras do Salvador, que fulminam +os phariseus modernos, como fulminaram +os antigos, que me obrigam a falar verdade escrevendo +a historia. Ainda que essas considerações +fossem exactas, a patria verdadeira do christão +é o céu, cujas portas ficarão +cerradas, conforme +a doutrina de Christo, aos que tiverem +desmentido a verdade na terra. A patria deste +mundo é nosso dever amá-la, sacrificar-lhe tudo, +menos a honra, menos as esperanças de além do +tumulo, menos a fé. É esta a mais sancta das +tradições +que herdámos de nossos paes. O crucifixo +<span class="pagenum">[110]</span> +sobre o qual deposeram o derradeiro suspiro os +que nos geraram, não o insultemos na vida, para +podermos tambem despedir o ultimo alento, abraçados +com elle, sem terror, sem remorsos, e para +o legarmos immaculado a nossos filhos; para que +elles, no momento de o transmittirem moribundos +a nossos netos, não se lembrem horrorisados +de que essa imagem do Redemptor já foi bafejada +pelo extremo respirar de um blasphemo. +Amemos e respeitemos a tradição divina, e +tenhamos +esforço bastante para repellir mentiras, +sobretudo quando, segundo as palavras do apostolo, +ellas envolvem um falso testemunho contra +Deus. +<br /> + +<br /> + +Isto é para os christãos. Para os falsos +politicos, +que cuidam ser a religião apenas um instrumento +que serve para conter os humildes e pobres, +a que Christo chama os grandes do seu reino, +e a que elles chamam massas brutas; para +esses, que não crendo acaso em Deus, accusam +os que escrevem sinceramente a historia, de demolidores +de nossa gloria; para esses liberaes e +até democratas, que desprezam o povo ainda mais +do que o desprezavam os poderosos de outros +tempos; para os taes não applico eu só o dicto +de Fleury, de que são ignorantissimos em materias +<span class="pagenum">[111]</span> +de religião; digo tambem que o são em materias +de politica. Para o povo ser livre, é necessario +que seja religioso e honesto; não que seja +credulo. Para que elle seja religioso e honesto é +necessario que conheça as doutrinas do evangelho, +que não são mais do que a +confirmação divina +da moral universal. Em vez de inculcar crendices +ao povo, cumpre inculcar-lhe os principios do +christinanismo, e as consequencias daquelles principios: +cumpre illustrá-lo, em vez de o conservar +na ignorancia; fazer-lhe sentir que a força de +practicar grandes e nobres sacrificios, tão recommendados +por Jesus, é o caracter que distingue +o espirito immortal do homem do instincto que +anima as alimarias. É preciso convencê-lo de que +o patriotismo, de que esse puro e sancto affecto +que nos faz abandonar os commodos domesticos, +as affeições do coração, e +arrostar com a fome, +com a sede, com a nudez, com a intemperie das +estações, para irmos morrer n'um campo de +batalha, +salvando a terra em que dormem nossos +maiores, defendendo a cruz do nosso adro, a vida +de nossos paes, a honra de nossas irmãs e mulheres, +é a manifestação mais solemne da +energia +do espirito humano, e da abnegação christan. E +estas verdades eternas; estas verdades, que, +<span class="pagenum">[112]</span> +gravadas nos corações do povo, tantas vezes +têm +salvado as pequenas nações dos intentos +ambiciosos +das grandes, d'onde se deduzem? É das +invenções dos milagreiros e falsarios, ou das +divinas +paginas da biblia? +<br /> + +<br /> + +V.. deve conhecer, como homem de letras +que é, a historia dos povos mussulmanos. Houve +nunca no mundo crença que se estribasse tanto +como o islamismo em falsos milagres, quasi +sempre conducentes a inspirar o amor da guerra +e o enthusiasmo das multidões credulas? E todavia, +quaes foram os effeitos desse enthusiasmo, +que não correspondia a doutrinas accordes com +os instinctos naturaes da nossa alma, que não se +fundava em convicções reflectidas, na certeza +moral +do dever, mas que se inspirava de promessas +fingidas do céu? Os mussulmanos devastaram e +submetteram a melhor porção da Asia e da Africa, +e ainda uma pequena parte da Europa: formaram +quinze ou vinte nações de falsos crentes, +e estas nações cresceram e civilisaram-se +combatendo +sempre. E depois? Depois, quando foi preciso +conservar o edificio; quando se tractou de +defender a patria, em vez de a tirar aos outros; +quando foi preciso repellir em vez de aggredir, +mostrar essa perseverança, que nem se exalta +<span class="pagenum">[113]</span> +com o triumpho, nem desanima com o revés; +que padece, calada e soffrida; essa perseverança +que é a mais poderosa arma dos povos ameaçados +na sua existencia, tudo faltou. As nações +mussulmanas desmembraram-se, fundiram-se, +annullaram-se umas, desappareceram outras, e +conservando todas as suas crenças, todos os seus +milagres, ei-las ahi estão as que restam, ludibrio +da humanidade, corruptas, decadentes, vivendo +ao crepusculo da passada gloria, lançando nos +dias da afflicção e do perigo os olhos para o +occidente, +a vêr se os filhos da cruz estendem o braço +para proteger o crescente. As tradições das +victorias, as maravilhas celestes dos tempos heroicos +de Islam lá estão gravadas na memoria +de todos. Porque não salvam, não regeneram ellas +essas sociedades atrophiadas e moribundas? +<br /> + +<br /> + +Ainda hoje ha homens das novas idéas, os +quaes se dizem cheios de illustração e de +philosophia, +que, abandonando os milagres suppostos, +não porque os tenham por infundados +ou absurdos em si, mas porque suppõe que o +fanatismo póde lucrar com elles, não querem +que se toque nas tradições humanas que se ligam +á gloria nacional. É verdade que não +sabem +bem que deva consistir a gloria de uma nação, +<span class="pagenum">[114]</span> +porque nunca pensaram nisso. Para elles, +que vivem no seculo XIX, onde quer que pereceram +milhares de homens, combatendo por interesses +que não comprehendiam, ou por torpe +cubiça; onde quer que o ferro e o fogo arrasaram +as cidades, despovoaram os campos, embora +dessas cidades e campos nenhum mal tivesse +vindo aos seus destruidores, ha uma gloria sem +mancha, immensa, immarcessivel. Herdeiros pequeninos +e pacificos dos gigantes da assolação, +dos Tamerlans, dos Attilas e dos Gengiskans, +avaliam pela estimativa daquelles illustres selvagens +as façanhas dos proprios avós. Se a historia +pergunta:―«Acaso esses combates, em +que, sem duvida, se practicaram grandes feitos, +foram uteis ao progresso moral e material do +povo em cujo nome se peleijaram, ou trouxeram +a sua decadencia? Está ou não essa gloria +militar, +aliàs indisputavel, assombrada por grandes +crimes? Foi a intenção, a qual só +determina o +valor moral das acções, nobre, grandiosa, pura, +ou teve motivos menos elevados? Foi um arrojo, +um impeto nacional, ou um impulso dado +pela ambição, ou pelo capricho de algum +principe?»―A +historia que faz estas perguntas ou +outras analogas, porque esse é o seu dever, commette +<span class="pagenum">[115]</span> +aos olhos dos taes um crime de leso-patriotismo. +O castelhano, por exemplo, que disser:―«As +barbaridades e crimes commettidos +por Cortez, Pizarro, ou Almagro, na conquista +da America, deshonram as emprezas arriscadas +e longinquas dos filhos da Peninsula, embora o +descubrimento do Novo Mundo demonstre a sua +pericia, o seu ardimento de navegadores e de +soldados. Os effeitos dessa conquista foram o +corromperem-se os costumes, morrerem as industrias +nascentes, despovoarem-se os campos +da Hespanha, seccarem-se, em summa, todas as +fontes da sua prosperidade solida e legitima: foram +amontoarem-se nas mãos do fisco e dos poderosos +o ouro e a prata, que, obtidos sem custo +pelos crimes, se desbarataram sem pudor pelos +vicios; foram o perderem-se as velhas liberdades, +e com ellas o sentimento da dignidade humana, +cujo ultimo brado soou nas rebelliões contra +a tyrannia de Carlos V:»―o hespanhol que +disser isto é um mau cidadão aos olhos dos mansos +guerreadores destes nossos tempos. E porque? +Porque, affirmam elles, o povo ha de moralisar-se, +elevar-se pelas tradições da sua grandeza e +gloria. O povo! Pois o povo que tantas vezes tracta +de perto a fome e a nudez; cuja vida, desde +<span class="pagenum">[116]</span> +o berço de farrapos até a enxerga rota em que +fenece, vai travada de receios, de sobresaltos, +de desalentos, e de agonias, pensa lá nas cutiladas +que se deram, nas bombardadas que se despediram, +ha tres ou quatro seculos, por mãos +d'uns homens, cujos nomes e cujas façanhas se +memoram n'uns livros que elle nunca leu, porque +não sabe ler, nem tem dinheiro para pão, +quanto mais para livros? Que são essas palavras +retumbantes de regeneração pelas +tradições, senão +sons ôcos, que não correspondem a nenhuma +idéa? Supponhamos, porém, que todas essas +recordações +chegavam ao povo. Podem ellas servir-lhe +de exemplo, de licção para as suas necessidades +actuaes? N'um paiz onde a riqueza +passageira destruiu os habitos do trabalho e da +economia, entorpeceu pela miseria, resultado infallivel +da prosperidade ficticia, a energia do coração, +que faz luctar o homem com a adversidade +e vencê-la, de que serve estar de contínuo a +prégar ao povo:―«Teus avós levaram o +terror +do seu nome aos confins do mundo, saquearam +e queimaram emporios opulentos em plagas remotas, +metteram a pique poderosas armadas, +derribaram os templos alheios, violaram as mulheres +extranhas, passaram á espada os que eram +<span class="pagenum">[117]</span> +menos valorosos que elles, abriram caminho ao +engrandecimento dos outros povos da Europa, e +affeitos a gosos faceis, deposeram aos pés do absolutismo +as suas velhas franquias, beijaram os +grilhões que lhes deitavam aos pulsos por que +eram dourados, e tornaram-se ludibrio do mundo.»―Estas +licções é que hão-de +ensinar a actividade +no trabalho, a severidade nos costumes, +o amor da liberdade moderada, mas verdadeira, +o desejo de cultivar as artes da paz, no meio de +um paiz decadente, cuja unica esperança de +salvação +está em se desenvolverem nelle essas e outras +tendencias analogas? Não! O povo, que tem +mais logica do que os prégadores de vãos +apophtegmas, +ha-de concluir outra cousa d'ahi: ha-de +concluir que é assaz fidalgo para não contrahir +habitos villãos e ruins. De historias +d'aggressões +e de conquistas brilhantes não se deduz a +necessidade de morrer obscuramente em defesa +da terra da patria; não se deduz a +moderação revestida +de firmeza, que faz respeitar pelas grandes +as nações pequenas; não se deduzem nem +o +amor do trabalho, nem o amor da virtude. Em +vez de contarem ao povo as façanhas da Africa e +do Oriente, contem-lhe qual era o commercio +de Lisboa, e o movimento agricola do paiz no +<span class="pagenum">[118]</span> +no seculo XIV. Estejam certos de que a noticia +desses e de outros factos analogos lhe é mais +proveitosa, material e moralmente, de que recordar-lhe +a gloria de batalhas e de conquistas. +<br /> + +<br /> + +Falsas lendas religiosas, falsas ou verdadeiras +lendas humanas nunca salvaram um paiz, +quando a podridão penetrou no amago da arvore +social. Onde e quando o homem renega +da sua origem divina, vende a liberdade a troco +de delicias, esquece que o elevar-se acima de +viciosas paixões traz um goso interior que vale +bem todos os que dão os sentidos, não +é lisonjeando-lhe +vaidades, que, nem sequer respeitam +a magestade de Deus, que o havemos de revocar +ao sentimento da dignidade e do dever. V.. +sabe, talvez melhor do que eu, a historia do imperio +romano, e nomeadamente a historia do baixo-imperio. +Não leio essas paginas melancholicas, +sem que involuntariamente volva os olhos +para o estado actual de algumas nações modernas: +as analogias que encontramos entre estas +e aquella são symptomas dolorosos; mas não +vem para aqui. Eu peço a v.. que reflicta sobre +essa historia em relação á efficacia +das tradições. +Ella completa o quadro que nos offerecem as +<span class="pagenum">[119]</span> +nações mussulmanas. Não foi no tempo +da republica, +foi sob o ferreo dominio dos cesares, +que os poetas cantaram os mythos da gente romana, +que os historiadores celebraram as suas +glorias, e deram a importancia da verdade a centenares +de lendas tradicionaes e fabulosas, que +a sciencia moderna, as investigações do grande +Niebuhr, reduziram já ao seu justo valor. De que +serviram, porém, essas glorias, esses milagres +do polytheismo, contados gravemente a um povo +servo e gasto, que apodrecia aos pés dos tyrannos? +Nos ultimos tempos do imperio os rhetoricos +espraiavam-se em exaggerações sobre as +grandezas passadas, emquanto os cidadãos recusavam +combater por uma patria que se tornara +em nome vão, e preferiam o jugo dos barbaros +a uma nacionalidade mentida. Os hymnos, +as gloriosas recordações romanas serviram +só +para acompanhar ao cemiterio da historia o ataúde +de Roma. +<br /> + +<br /> + +Consinta v.. que a estas rapidas considerações +eu ajuncte ainda um exemplo domestico, +sobre o qual peço a v.. que medite. Na lucta +violenta e tenaz que Portugal sustentou nos fins +do seculo XIV para repellir o dominio estrangeiro, +ninguem se lembrou de fortalecer os animos +<span class="pagenum">[120]</span> +invocando o milagre de Ourique; ao menos não +espero que v.. me aponte o menor vestigio historico +que me desminta. A razão para desaproveitar +tal auxilio foi demasiado forte; foi a razão +do cordeiro da fabula―<em>o milagre ainda não +era +nascido</em>. E todavia o triumpho coroou os heroicos +esforços de um povo pequeno, que quiz verdadeiramente +ser livre. +<br /> + +<br /> + +Dous seculos depois o milagre de Ourique dominava, +absoluto e não contradicto, no commum +dos espiritos. V.. se encarregou de o provar de +modo innegavel. E todavia, quasi sem combate, +as espadas castelhanas acabaram com a independencia +de Portugal n'um dia. +<br /> + +<br /> + +Entre os dous factos está, além do milagre, a +grande gloria das conquistas, gloria que não era +uma tradição remota, quasi oblitterada na memoria +do vulgo, mas um facto vivo, recente, e a +bem dizer actual. Alguns dos que mais tinham +contribuido para ella ainda viviam. +<br /> + +<br /> + +Estes dous phenomenos, que determinam duas +epochas principaes da nossa historia, assim aproximados, +são a negação mais solemne da +utilidade +dos embustes religiosos, ou para melhor dizer, +anti-religiosos, e do orgulho selvagem de ter +annaes escriptos com o sangue humano vertido +<span class="pagenum">[121]</span> +em guerras não provocadas, em guerras de +aggressão, +e sobretudo de cubiça. +<br /> + +<br /> + +Mas concedamos que, n'um ou n'outro caso +singular, um general ou um homem d'estado tirasse +vantagem dessa deploravel força moral que +se estriba nas superstições, ou nas +idéas de uma +gloria feroz. A questão é, se hoje o povo +português +tem alguma vantagem que tirar dessas tradições, +na situação em que a Providencia o collocou. +Sejamos sinceros. Póde elle sonhar em ser +conquistador, ou sequer em constituir uma potencia +maritima ou continental que pése com demasiada +força na balança dos acontecimentos politicos? +Parece-me que nenhum sisudo o dirá. +Somos pequenos; mas nem isso é vergonha, nem +impedirá que as grandes nações nos +respeitem, +se formos respeitaveis. Para obtermos +consideração +basta que os nossos progressos intellectuaes +e moraes mostrem á Europa que sabemos, queremos, +e podemos regenerar-nos pela sciencia, +pelo trabalho e pela morigeração. +<br /> + +<br /> + +Morigeração, trabalho, sciencia, eis as armas +com que a philosophia politica deste seculo ensina +as nações civilisadas a combaterem n'uma lucta +generosa. Os espiritos mais altos, seja qual +fôr a sua crença religiosa e politica, proclamam +<span class="pagenum">[122]</span> +a paz e a fraternidade entre os homens. E não só +as proclamam, mas até empregam a poderosa +alavanca da associação para promoverem, digamos +assim, uma cruzada sancta contra as tendencias +guerreiras. Os esforços collectivos desses +homens summos serão baldados? Não o cremos. +Elles tem um alliado irresistivel. Quando os +exercitos permanentes e as grandes marinhas militares +tiverem devorado todo o peculio de cada +povo, e exhaurido a melhor e mais pura seiva +da sua vida economica, é então que a philosophia +politica hade alcançar um triumpho decisivo. +Mas esse triumpho que outra cousa será +senão o ultimo termo de uma sorites immensa, +composta dos factos de dezenove seculos, de uma +demonstração practica e invencivel, de que a lei +moralmente necessaria das sociedades modernas +é o christianismo, é o verbo de amor e da paz +revelado +no Evangelho? +<br /> + +<br /> + +Nesses dias, que porventura tardam menos do +que muitos pensam, que destino darão os sacerdotes +da bombarda, da lança e da espada aos +seus deuses fulminados? As palavras «façanhas, +gloria guerreira, conquistas,» como serão +definidas +nos diccionarios das linguas vivas, dentro de +um ou dous seculos? Como julgará a historia os +<span class="pagenum">[123]</span> +milagres inventados para sanctificar o derramamento +de sangue humano? +<br /> + +<br /> + +Desculpe v.. esta digressão, que não creio +nem inutil nem extranha ao assumpto. De novo +entrarei directamente nelle, para proseguir nas +explicações que devo aos meus adversarios +sinceros, +honestos e instruidos, e não á ignorancia +malevola e presumida de hypocritas insignificantes. +<br /> + +<br /> + +Começarei por dar a v.. a razão moral, a +razão +suprema, porque rejeito não só o milagre de +Ourique, mas tambem os outros milagres, como +o de Alcacer, a que ou a má fé, ou a piedade +pouco illustrada quizeram attribuir a sorte das +batalhas, sorte dependente dos occultos designios +da Providencia e de mil accidentes, previstos ou +fortuitos, explicaveis ou inexplicaveis para a historia. +Não creio que essas guerras contra os infiéis +fossem cousa excessivamente christan, e +por isso o meu espirito recusa-se a acceitar como +factos verdadeiros os testemunhos de approvação +divina a um procedimento anti-evangelico. +Na idade média passava como cousa corrente, +que o guerrear os infiéis e fazer-lhes acceitar á +força +o jugo, aliàs tão suave e tão livre, +do christianismo, +era obra meritoria. Os principes aproveitavam-se +<span class="pagenum">[124]</span> +desta doutrina, ou, para sermos justos, +acreditavam-na, em geral, sinceramente: acreditavam-na, +até, a maior parte dos homens intelligentes +e pios. Entre estes se distingue o proprio +S. Bernardo, que o excessivo zelo da gloria do +christianismo incitou a promover a segunda cruzada, +cujo infeliz resultado lhe acarretou tantas +accusações amargas, tantos desgostos pungentes. +A favor das guerras contra os mussulmanos durante +a idade média, principalmente a favor da +que se fazia na Peninsula, podem militar boas +razões de politica, e até de direito, porque essa +guerra não era mais do que a reacção +contra +uma conquista. Razão religiosa é que eu +não vejo +nenhuma que a favoreça. Repugna-me á consciencia +que o Christo, o Deus de paz e misericordia, +viesse pessoalmente ou enviasse os seus +anjos a incitar christãos a derramarem o sangue +humano, a levarem a assolação e a morte ao meio +daquelles que não o adoravam. Será este um modo +errado de vêr? A S. Thomás de Aquino, que +ainda alcançou os tempos das cruzadas, não +fizeram +força alguma as opiniões que haviam dado +origem áquellas expedições longinquas, +para deixar +de estabelecer que a diversidade de crença +não é motivo bastante para um povo atacar outro. +<span class="pagenum">[125]</span> +Reprovando a guerra de religião, não era +possivel cresse que Deus approvava essas luctas +crueis com manifestações sensiveis. +Vê-se, portanto, +que os <em>milagres militares</em>, que +então se contavam +a tal respeito, pouco credito mereciam a +um dos homens mais pios do seculo XIII, e sem +contradicção ao mais profundo philosopho do seu +tempo. Ouçamos, porém, o grande historiador +da igreja, falando dessas guerras contra os mussulmanos. +<br /> + +<br /> + +«Os christãos―diz Fleury―devem applicar-se, +não a destruir mas sim a converter os +infiéis... Quando Jesus disse que tinha vindo trazer +ao mundo a guerra, da sequencia do seu +discurso, e do procedimento dos seus discipulos +se manifesta claramente que só se referia ás +turbações que havia de excitar a sua doutrina +celestial, turbações em que a violencia havia de +vir toda dos inimigos, a quem os christãos opporiam +a resistencia que as ovelhas oppõem aos +lobos. A verdadeira religião deve conservar-se +e dilatar-se pelos mesmos meios por que se estabeleceu, +pela prédica discreta, pelas obras virtuosas, +e mais que tudo por illimitada paciencia. +Se a isso Deus quizer ajunctar o dom dos milagres, +mais prompto será o effeito. Quando Machiavello +<span class="pagenum">[126]</span> +dizia que os prophetas desarmados nunca +saíram com seus intentos, mostrava-se a um +tempo ignorante e impio; porque Jesu-Christo, +o mais desarmado de todos, foi o que fez conquistas +mais rapidas e firmes; conquistas como +elle as queria, ganhando as almas, mudando de +todo os homens, e tornando-os de maus em bons, +o que nenhum conquistador jámais fez....» +<br /> + +<br /> + +«Repito pois, que não se deve tractar de diminuir +as falsas religiões, ou dilatar a verdadeira +pelas armas e pela violencia: não são os +infiéis que se devem destruir, mas sim a infidelidade, +conservando os homens, e illustrando-os +ácerca dos seus erros. Em summa, para isso não +ha senão um meio, persuadir e converter....» +<br /> + +<br /> + +Imagine v.. se Fleury acreditaria nos milagres +d'Alcacer e de Ourique, milagres em que se faz +intervir o céu para o derramamento do sangue +humano; milagres, que nem tem o merito de +originalidade, porque não havia por essa épocha +paiz da Europa, onde tambem a credulidade de +muitos, e a má fé de alguns não +tivessem associado +largamente o céu ás luctas sanguinolentas +daquelles tempos tumultuarios e rudes; milagres, +emfim, que, por sua natureza, são, religiosa +e moralmente, absurdos. +<span class="pagenum">[127]</span> +<br /> + +<br /> + +De passagem lembrarei a v.. que não é bem +fundada a accusação que me dirige, de que +não +appliquei ao milagre de Alcacer a regra de Vicente +de Lerins, quando foi exactamente o contrario +que fiz. Dos tres testemunhos presenciaes +que temos ácerca daquelle celebre recontro, só +em dous se allude aos signaes miraculosos que +se viram no céu. O auctor da Historia Damiatana, +que assistiu ao successo, ommitte a circumstancia +milagrosa. Não acha v.. significativo este +silencio? Em todo o caso falta o <em>ab +omnibus</em> de +Vicente de Lerins, e v.. ha de ter presente a +doutrina de Mabillon, citada por mim na carta +antecedente, de que é +<em>temerario</em>, não +só o acreditarmos +em milagres falsos, mas até nos simplesmente +<em>duvidosos</em>. Quando o sentimento +religioso, +o respeito das doutrinas evangelicas +não obstasse á crença nesse favor do +céu, obstar-lhe-hia +a severa doutrina do grande benedictino. +<br /> + +<br /> + +Se não fosse o desejo de dar +satisfação plena +aos homens escrupulosos, mas capazes de se convencerem +da verdade, como v.. talvez concluisse +aqui esta carta, porque as grosserias parvoas +da ignorancia e os rugidos do interesse ferido, +que vê fugir atraz da apparição de +Ourique todos +<span class="pagenum">[128]</span> +os milagres rendosos, só se punem com a immortalidade +do ridiculo. +<br /> + +<br /> + +Não concluirei, porém, sem dizer alguma cousa +em especial sobre a tradição do apparecimento +de Christo a Affonso I, considerada na sua origem, +e no modo como foi propagada e defendida. +Os principios mais solidos da critica, o silencio +absoluto, não só dos contemporaneos, mas tambem +de dez gerações successivas, bastaria para +condemnar a tradição aos olhos dos +desapaixonados, +quando ella não fosse absurda em si, +porque é absurdo pôr Deus em +contradicção com +a indole do christianismo. Ha, porém, na historia +da invenção, propagação, e +aperfeiçoamento dessa +lenda tanta hesitação, tantas +contradições, tanta +imprudencia, tanta falsificação, tantos desejos +de se illudir ou de illudir os outros, em homens +que parece deveriam ser superiores a taes fraquezas, +que o colligir as provas disso é offerecer +uma licção salutar do perigo que ha em abusar +do sentimento religioso do povo para fins mundanos, +e da miseria a que podem chegar ainda +os altos engenhos, quando se esquecem das doutrinas +evangelicas, e de que as duas cousas que o +Salvador mais solemnemente amaldicçoou neste +mundo foram a mentira e a hypocrisia. +<span class="pagenum">[129]</span> +<br /> + +<br /> + +O silencio de mais de tres seculos sobre um +facto estrondoso, que deveria andar na memoria +de todos, como o milagre de Ourique, não é +só +negativo, por assim nos exprimirmos; é tambem +positivo. Conjuncturas houve, antes dos fins do +seculo XV, em que elle se teria publicamente invocado, +se não fosse uma fabula ainda não inventada. +Citarei duas. Seria inexplicavel, se admittissemos +a existencia da tradição cem annos antes +de 1485, que nem um só dos prégadores, letrados, +e capitães de D. João I, os quaes mais de +uma vez, nas suas allocuções ao povo e aos +soldados, +reccorreram ás cousas religiosas para accender +os animos contra os castelhanos, e para +crear a confiança de victoria final na lucta brilhante +da independencia; que nem um só desses +prégadores, +letrados e capitães, os quaes não cessavam +de accusar os inimigos de scismaticos, +pretendendo ligar á sua causa a causa de Deus, +se lembrasse jámais de citar as promessas feitas +por Christo a Affonso I, o que era decisivo. Antes +disso, tambem, nos principios do seculo XIV, +tractando-se com grande empenho da separação +da ordem de Sanctiago em Portugal do grão-mestrado +de Castella, o mestre e os freires portugueses +dirigiram ao papa um longo arrazoado em +<span class="pagenum">[130]</span> +que argumentavam, que, sendo os bens que a ordem +possuia em Portugal, reino separado e independente +de Castella, dados pelos reis deste +paiz, não era justo que o grão-mestre castelhano +os continuasse a desbaratar a seu bel-prazer. Para +firmar na origem do reino a independencia daquella +parte dos cavalleiros que nelle residiam, o +mestre Pedro Escacho e os seus commendadores +allegavam ao papa um facto novo, mas do qual +era quasi impossivel que separassem a historia +da apparição, se della houvesse vestigios. O +facto +novo era a acclamação de Affonso I em Ourique. +<br /> + +<br /> + +«Outr'ora―diziam em Roma os procuradores +dos spatharios―o rei de Portugal, D. Affonso I +de clara memoria, o qual, esmagando com mão +poderosa a barbara fereza dos sarracenos no campo +de Ourique, foi elevado a rei pelos seus nobres +e <em>pelos outros concelhos</em>, combateu +os dictos +sarracenos inimigos da religião orthodoxa com +todas as forças, para exaltação da +fé catholica e +defensão do proprio reino. O mesmo rei, debellando +e expugnando os infiéis, acommetteu-os e +tirou-lhes castellos, fortalezas e muitas terras. +Acceso em zelo da fé, e attendendo ao esforço do +mestre e freires de Sanctiago que então viviam, +concedeu-lhes, etc.» +<span class="pagenum">[131]</span> +<br /> + +<br /> + +Não fazendo caso da ignorancia dos procuradores +de Pedro Escacho<sup><a href="#f28">[28]</a></sup> +ácerca do estado da +sociedade portuguesa no meiado do seculo XII, +quando mencionam os villãos dos concelhos como +intervindo n'uma eleição de rei, não +faz peso +a v.. que não se lembrem do milagre da +apparição? +Se existisse a tradição, poderiam elles +ignorá-la, +e não a ignorando ommitti-la, quando tanto +convinha invocá-la? Não era evidente que o titulo +e a independencia do rei obtinham incomparavelmente +mais importancia e firmeza dos mandados +positivos de Christo, do que das acclamações +da soldadesca? Deixo á imparcialidade de v.. o +resolver estas questões. +<br /> + +<br /> + +Eis-aqui por que eu digo que o silencio de todas +as memorias e documentos anteriores a 1485 +ácerca da apparição não +é só negativo; que é tambem +positivo. Mas existe realmente este silencio?―perguntar-me-ha +v.. Conforme a sua opinião, +estribada na de Cenaculo e Pereira, elle não +<span class="pagenum">[132]</span> +existe. No folheto recentemente publicado, que +v.. intitulou <em>Nova Insistencia</em>, com +lealdade de +cavalheiro e de homem de letras v.. abandonou +o texto forjado de S. Bernardo, e entendo que +tambem o antigo documento da +<em>Symmicta</em> ao destino +que elles mereciam; mas insiste nos outros +documentos que se citam. Examinarei se v.. tem +razão na insistencia. Mas antes disso cabe-me consolar +aqui v.. das injurias que a bruta ignorancia +de um pobre tonto vomitou indirectamente contra +v.. por não distinguir o texto attribuido no breviario +a S. Bernardo; cabe-me, digo, consolá-lo +com o meu exemplo, e com o de um sacerdote +instruido, que, enganado com v.. por aquella +insigne falsificação, expondo-lhe eu as minhas +opiniões ácerca do milagre de Ourique, me +contrapunha +o testemunho do grande abbade de Claraval, +inserto no breviario. Como, porém, para +escrever a historia do nosso paiz é necessario +caminhar como quem passa pelo pinhal d'Azambuja, +lá com todas as prevenções contra os +salteadores, +<span class="pagenum">[133]</span> +cá attentos sempre a que não nos illuda +a cada momento um fabricante de mentiras ou +um falsificador de documentos e textos, amestrado +pela experiencia repliquei que duvidava da +passagem do breviario, e que duvidava sobretudo +pelo adjectivo <em>lusitanum</em>, que nella +se lê, e que +eu tinha a certeza de não se encontrar em monumento +nenhum do seculo XII para significar +<em>português, +cousa portuguesa</em>. Na duvida, passámos +a examinar o texto do sancto, e a falsificação +appareceu-nos +logo mais clara que o dia. Assim v.. +teve companheiros na illusão; nem creia que tem +tido só dous: ha-de ter tido milhares delles. Ria-se +destes eruditos que adivinham tudo quanto +se lhes diz: ria-se dos Mabillons de agua chilra, +que logo distinguem <em>pelo estylo</em> +quatro ou cinco +linhas interpoladas nas obras de qualquer escriptor. +<br /> + +<br /> + +Mas, voltando ás cousas sérias, v.., repito, +insiste +nas outras provas, desprezadas as evidentemente +falsas. E quaes são as que ficam? Creio que +v.. tem presentes a regra de Gmeiner, de Mabillon, +e de toda a gente que não esteja em guerra declarada +com o senso-commum, <em>de que não +provém +maior certeza a um facto historico de ser relatado +em livros de muitos auctores mais modernos, +<span class="pagenum">[134]</span> +cada um dos quaes foi copiando o que o outro +tinha dicto. Todos elles junctos não valem mais +do que o primeiro que o referiu.</em> Assim, tendo +nos escriptores dos fins do seculo XV que relatam +o milagre, todas as auctoridades que v.. cita do +seculo XVI annullam-se completamente. Ha, porém, +outras anteriores, dirá talvez v.. É verdade +que Cenaculo as propõe. Mas quaes são ellas? +Examinemos. +<br /> + +<br /> + +1.º Um indice, escripto em Roma, de documentos +relativos a Portugal em que se memora o +facto da apparição. +<br /> + +<br /> + +Como Cenaculo nos não diz a data do indice, +estamos desobrigados de discutir o documento +a que se refere: provavelmente havia de ser pelo +gosto do da Symmicta. +<br /> + +<br /> + +2.º A doação ao mosteiro de Claraval, +feita +por Affonso Henriques. +<br /> + +<br /> + +Tem o pequeno inconveniente de ser falsa. +João Pedro Ribeiro reduziu-a a lastimoso estado +na segunda das suas Dissertações Chronologicas. +Estou certo de que o bispo de Béja, se resuscitasse, +não havia de ter vontade de tornar a falar +nella. +<br /> + +<br /> + +3.º Nos <em>Commentarios</em> de Affonso +sabio, traduzidos +em português no tempo de Affonso IV, +<span class="pagenum">[135]</span> +termina o capitulo 416 por uma passagem, em +que Cenaculo quiz ver a memoria do milagre, +embora nella não haja uma palavra a semelhante +respeito. +<br /> + +<br /> + +Este testemunho, ainda suppondo que a passagem +diga o que não diz, tem tambem outro +pequeno inconveniente. É que Affonso sabio não +escreveu Commentarios nenhuns. Veja v.. se +os encontra mencionados no extenso e minucioso +artigo ácerca de Affonso X, na <em>Bibliotheca +Hespanhola</em> de Rodrigues de Castro, ou se acha +em parte alguma vestigios de taes Commentarios. +<br /> + +<br /> + +4.º Uma passagem de uma chronica inedita +dos reis de Portugal, que, <em>pela fórma da +letra e +pela linguagem</em>, se conhece ser do tempo de +Affonso IV. Esta passagem diz-se transcripta +de um codice da camara d'Evora. +<br /> + +<br /> + +Pedirei pela primeira vez um favor a v.. É +que não acredite demasiado na pericia paleographica +de Cenaculo. A diplomatica ainda não +acho meios sufficientes para distinguir com +certeza pela fórma dos caracteres, nos codices +portugueses, os que são do seculo XIV ou do +XV. Tanto em letra assentada como em cursivo, +não ha nelles senão a alleman pura, ou a francesa +<span class="pagenum">[136]</span> +com maior ou menor resabio de monachal +ou alleman. Isto é commum a ambos os seculos. +A mesma romana pura ou restaurada, que começa +a apparecer nos fins do XV, tem ainda resabio +da monachal. Pelo que respeita á outra +adivinhação de Cenaculo relativamente +á linguagem, +v.. como homem de letras, está por certo +habilitado para avaliar a +<em>força</em> deste meio de +apreciação. Se o bispo de Béja +vivesse, eu compromettia-me +a apresentar-lhe passagens extensas, +escriptas em vulgar no meio do seculo XIV +e outras escriptas já na segunda metade do XV, +e se elle fosse capaz de dizer quaes eram as antigas +e quaes as modernas, dava-lhe a minha palavra +de honra de ficar crendo no milagre de +Ourique. Esta experiencia que eu offereceria ao +erudito bispo, estou prompto a offerecê-la a +quem quer que pretender tentá-la. +<br /> + +<br /> + +Agora accrescentarei mais alguma cousa. No +archivo da camara d'Evora, que examinei por +meus proprios olhos, posso certificar a v.. que +nada ha anterior a D. João I; nem diplomas, +nem codices. Que é feito da tal chronica que +o bispo de Béja diz existir no archivo da camara +d'Evora? O que havia de estimação naquelle +archivo foi distrahido pelo antiquario +<span class="pagenum"><a name="p137" id="p137">[137]</a></span> +Lopes de Mira, que viveu um pouco antes de +Cenaculo. Isto é sabido pelas pessoas eruditas +d'aquella cidade. V.. deduzirá d'aqui as +conclusões +legitimas. +<br /> + +<br /> + +A erudição immensa de Cenaculo tem um defeito +que nelle provinha do excesso de uma util +faculdade unida a uma indole inquieta e impetuosa. +Era essa faculdade a da memoria comprehensiva +e tenaz. Lia muito e fiava-se na força +da propria reminiscencia. Seria facil provar pelos +seus escriptos que grande numero das citações +que fazia e das auctoridades em que se +estribava não as verificava, e que a memoria o +trahia ás vezes, quando menos em particularidades +e accidentes que modificavam a significação +dos textos, servindo mal os <a href="#e5">intuitos</a> +do +bom do prelado e tornando suspeita a sua candura. +<br /> + +<br /> + +Os <em>Commentarios</em>, por exemplo, de +Affonso +sabio, traduzidos em português, podiam ser, não +uma invenção, mas sim uma reminiscencia, ou +uma nota tomada á pressa por Cenaculo, e talvez +a chronica inedita dos reis de Portugal, que +<em>pela fórma da letra e pela +linguagem</em> se conhecia +ser do tempo de Affonso IV, fosse cousa +analoga aos taes <em>Commentarios</em>, isto +é, apenas +<span class="pagenum">[138]</span> +uma confusão de idéas, ou, quando muito, uma +inexacção de apontamentos. +<br /> + +<br /> + +Existe uma compilação historica em vulgar, +ou colligida ou accrescentada nos meiados do +seculo XV, visto que na parte relativa a Portugal +abrange a regencia e morte do infante D. Pedro +(cap. 438) e nada contém posterior a este facto, +continuando nos capitulos seguintes a historia +dos outros estados da Peninsula. Conhecem-se +tres exemplares desta compilação, que constitue, +ao menos intencionalmente, uma historia +geral das Hespanhas desde os tempos mais +remotos até os seculos XIV e XV. Em París e em +Madrid conservam-se os dous exemplares mais +antigos. O de París trasladou-o o dr. Nunes de +Carvalho com o intuito de imprimir aquelle curioso +inedito. Dadiva do meu tão erudito como +modesto amigo José Gomes Monteiro, possuo +eu o terceiro exemplar, que parece ter pertencido +a Manuel Severim de Faria. O codice de +Madrid é talvez o mesmo que menciona pouco +explicitamente Ferreira Gordo nas Memorias de +Litteratura da Academia, Tom. 3, pag. 49. A +<em>Cronica General</em> attribuida a Affonso +sabio subministrou +ao compilador a historia fabulosa e a +historia antiga da Peninsula atè a epocha leonosa. +<span class="pagenum">[139]</span> +A corographia d'Hespanha, bem como a narração +da entrada e conquista desta pelos mussulmanos +e dos primeiros tempos do seu predominio +são extrahidas da historia arabe de Arrazi, +conhecido vulgarmente pelo nome de Mouro +Rasis. Attribue-se ao reinado de D. Dinis e á +iniciativa daquelle principe uma traducção do +livro +do historiador musulmano, e effectivamente +esta parte da compilação é uma +daquellas que parecem +mais antigas pela rudeza da linguagem. A +chronica do Cid, publicada modernamente pelo +P. Risco, e cuja authencidade foi disputada por +Masdeu, era conhecida já do compilador, que largamente +a aproveitou na composição do seu livro. +<br /> + +<br /> + +No exemplar de París, conforme o que se vê +da copia de Nunes de Carvalho, faltam os capitulos +411 a 441. Ignoro se o mesmo succede no +exemplar de Madrid. Encontram-se, porém, no +que pertenceu a Severim de Faria; e é justamente +nestes capitulos, desde o 412 até o 438 +que está inserida a chronica dos reis de Portugal, +começando na vinda do conde D. Henrique +e finalisando nos primeiros annos do governo +de Affonso V. É uma narrativa assás resumida, +distinguindo-se apenas a parte relativa aos reinados +de Affonso I e de D. Dinis, cujos successos +<span class="pagenum">[140]</span> +verdadeiros ou fabulosos são mais particularisados. +<br /> + +<br /> + +Conserva-se na Bibliotheca Publica do Porto, +com o n.º 79, um antigo codice transferido para +alli em 1834 do archivo de Sancta Cruz de Coimbra. +Contém varias memorias historicas e outros +papeis avulsos escriptos por diversas mãos, tudo +colligido, segundo parece, nos fins do seculo XV. +Acaba o codice por dous chronicons em vulgar<sup><a href="#f29">[29]</a></sup>. +Um tem por titulo «<em>Como e donde descenderom +os reis de Portugal</em>»: o outro +«<em>Aqui +se compeça a istoria dos reys de +Portugal</em>»: Ambos +se referem em breves palavras ao conde Henrique, +dilatando-se com os successos e lendas da +vida de Affonso Henriques, successos e lendas +aproveitados pelo chronista Galvão. Ao passo, +porém, que o primeiro chronicon não ultrapassa +a epocha de Affonso I, o segundo abrange, postoque +em breve resumo, as vidas dos seus successores +até D. Dinis. Em relação aos tempos de +Affonso Henriques são em parte identicos, não +só +no contexto, mas até nas phrases. Ha todavia entre +elles uma differença digna de reparo: é a de +<span class="pagenum">[141]</span> +que no primeiro se repetem mais de uma vez as +palavras <em>conta a historia</em>, que +não apparecem no +segundo, ao passo que n'aquelle se referem +tradições +relativas a Affonso I ommittidas neste, donde +se conclue que o primeiro foi tirado de um trabalho +historico mais antigo, de que talvez o segundo +seja apenas um extracto, embora accrescentado +com leves traços dos subsequentes reinados. +<br /> + +<br /> + +No exemplar da compilação que pertenceu +a Severim de Faria a narrativa dos successos de +Portugal durante a vida de Affonso I póde dizer-se +que é um complexo dos dous chronicons de +Sancta Cruz, ás vezes perfeitamente semelhante, +outras variando nos vocabulos e phrases. Aproveitaram-se +os chronicons na compilação ou tiraram-se +della? Por outra: qual dos tres monumentos +é mais antigo? É o que não importa nem +eu me +atrevo a resolver. +<br /> + +<br /> + +O que importa é o que se lê nestes monumentos, +os mais remotos que nos restam escriptos +em vulgar, ácerca da batalha de Ourique. +Vejamos se lá se encontram vestigios do celebre +milagre. +<br /> + +<br /> + +O primeiro chronicon de Sancta Cruz diz-nos +que Affonso Henriques, acclamado rei pelo exercito +antes do combate, depois deste, <em>por +memoria</em> +<span class="pagenum">[142]</span> +<em>daquelle boo aquecimento que lhe deus dera +pôs no seu pendam cinquo escudos por aquelles +cinquo reis e pose-os em cruz por renembrança +da cruz de nosso senhor ieshu christo, e pôs em +cada huum XXX dinheiros por memoria daquelles +XXX dinheiros por que iudas vendeo Ieshu +christo.</em> +<br /> + +<br /> + +No segundo chronicon, entre a narrativa particularisada +da lucta de Affonso Henriques com +sua mãe e com o conde de Trava (a que faz seguir +immediatamente o recontro de Valdevez) e +a lenda do cardeal legado e do bispo negro medeia +a noticia da batalha de Ourique por estas +simples palavras: <em>E depois ouve batalha em nos +quanpos dourique e venceo a.</em> Indicio notavel de +que ainda no seculo XV havia quem desse áquelle +acontecimento uma importancia secundaria. +<br /> + +<br /> + +Na compilação a passagem relativa á +jornada +de Ourique é a seguinte: «Ajuntou suas gentes +e foyse sobre os mouros e correolhes a terra dês +coimbra ataa santarem, e deshy passou o tejo e +correo toda a terra ataa o campo de Ourique, +onde achou elRey ismar, que a essa sazon era +Rey da estremadura, com sinco Reys que o vinham +buscar sabendo o grande dapno que lhes +fazia em sua terra, e entrou com elles em batalha +<span class="pagenum">[143]</span> +no lugar que se chama crasto verde, e vencêos +e prendêos e matou a mayor parte de todas +suas gentes; mas antes que entrasse em na batalha +os seus o alçaram por Rey, e dês enton se +chamou Rey de portugal: e depois que os Reis +forom vencidos, elRey dom Affom de portogal, +por memoria daquelle boo acontecimento que lhe +deus dera trouve por armas sinco escudos por +aquelles sinco Reis e pozeos em cruz por nembrança +da cruz de nosso senhor jesu cristo, e +poz em cada huum escudo trinta dinheiros por +os trinta dinheiros por que judas o vendêo, e +dêsi tornouse para sua terra muy honradamente». +<br /> + +<br /> + +Onde estará o milagre em qualquer destas tres +passagens não posteriores aos meados do seculo +XV e que por ventura são mais antigas? +<br /> + +<br /> + +É muito possivel que Cenaculo, homem d'immensa +e variadissima leitura, tivesse visto alguma +copia dos chronicons de Sancta Cruz, e igualmente +a compilação no exemplar de Severim de Faria, +que viveu no Alemtejo, onde tambem Cenaculo +residiu longamente, e onde o manuscripto +podia conservar-se ainda no tempo do bispo de +Beja. Uma circumstancia digna de notar-se torna +mais plausivel esta suspeita. Cenaculo cita o fim +do capitulo 416 dos suppostos +<em>Commentarios</em>, e +<span class="pagenum">[144]</span> +na compilação os ultimos periodos do capitulo +415 são os que se referem á batalha de Ourique +e aos seus resultados. O logar do capitulo citado +é o mesmo: a differença está na +numeração deste, +e essa differença é apenas de uma unidade. +Preoccupado pela idea do milagre, do qual se faz +derivar o imaginario escudo de Affonso Henriques, +nada mais facil do que Cenaculo, citando +de memoria, dar á compilação, tirada +em grande +parte da <em>Cronica general</em>, o titulo +de Commentarios +d'Affonso sabio, e aos chronicons de Sancta +Cruz o de chronica inedita, confundindo ao mesmo +tempo a lenda do escudo d'armas com a lenda +da apparição, acerca da qual não ha +ahi uma +palavra. Tudo isto não passa de conjecturas, mas +de conjecturas que põem em salvo a probidade +litteraria de um dos nossos mais illustres prelados +de uma epocha ainda pouco remota, em +que os bispos portugueses eram bispos, e não +vigarios do papa<sup><a href="#f30">[30]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +Em Cenaculo a defensão do milagre de Ourique +<span class="pagenum">[145]</span> +era empenho cego. Não sei, nem me importam +os motivos. Importa-me o facto, que annullaria +melhores testemunhos do que esses que cita, +quando elle fosse o seu unico abonador. Quer +v.. uma prova decisiva da cegueira do douto +prelado? Eu lh'a dou, e irrefragavel: é o seguinte +periodo: +<br /> + +<br /> + +«O advertido padre Pereira faz ver que desde o +seculo XV se acham escriptores mui auctorisados, +que referem o acontecimento como de cousa +<em>então +vulgar entre as pessoas que haviam tractado +os immediatos contemporaneos do successo, em +maneira que a tradição é +coetanea.</em>» +<br /> + +<br /> + +Traduzido em linguagem chan, quer isto dizer +que em 1485 (epocha do primeiro testemunho +preciso sobre a apparição, o de Vasco Fernandes +de Lucena), havia gente que tinha conhecido +individuos do tempo da batalha de Ourique, +ou por outra, que no seculo XV havia pessoas <em>com +trezentos annos de idade.</em> +<br /> + +<br /> + +Quem diz isto póde dizer livremente o que lhe +aprouver. Quando um espirito não-vulgar chega +a este estado, que nos resta senão confessarmos +o nosso nada diante da summa intelligencia de +Deus? +<br /> + +<br /> + +Aqui tem v.. por que eu me limitei, quanto +<span class="pagenum">[146]</span> +me foi possivel, a falar de leve na apparição; +eis +porque tenho até hoje reluctado em descer á +discussão +especial dessa mentira ridicula, com que +os prégadores vão ludibriar o povo na cadeira do +evangelho. Estas miserias e vergonhas, e as que +successivamente apontarei, sobre quem recaem? +Sobre homens que aliàs têm direito á +reputação +que adquiriram na historia litteraria do paiz e nos +annaes da igreja portuguesa, mas que um impulso +talvez de amor proprio<sup><a href="#f31">[31]</a></sup>, +talvez uma piedade +ou um patriotismo irreflectido, fizeram com que, +em vez de buscarem a verdade, buscassem a prova +de que tal ou tal cousa era verdade, caminho +deploravel em cujo termo é certo o precipicio. +<br /> + +<br /> + +Fóra dos testemunhos cujo nenhum fundamento +acabo de mostrar, Cenaculo reduziu-se a adoptar +as pretendidas provas do padre Pereira, sem +exceptuar o juramento de Alcobaça. E note v.. +que elle o conhecia tão pouco ou era tão fraco +diplomatico, que não hesitou em escrever estas +palavras memoraveis:―«<em>Duvidar da +apparição</em> +<span class="pagenum">[147]</span> +emquanto o desconhecimento dos testemunhos a +faz presumir de piedade popular e crença apaixonada, +<em>pode ser critica</em>; mas a +interpretação livre +e esquerda da palavra real e fundada (o juramento +de Alcobaça) merece ser sempre vista com +desapprovação e desagrado».―Isto quer +dizer +que, se não houvesse o instrumento da +apparição, +podiamos com boa critica deixar de crer no +milagre. Assim, se o bispo de Béja vivesse hoje, +á vista da declaração official da +falsidade do documento, +que o meu amigo Rebello da Silva arrancou +ao juiz mais competente na materia, o +lente de diplomatica e guarda-mór interino do +Archivo Nacional, elle teria de passar com armas +e bagagens para o campo dos <em>impios</em>, +se quizesse +(havia de querer) intitular-se bom critico. +<br /> + +<br /> + +Mas, deixando de parte o conjecturar qual seria +hoje a opinião de Cenaculo, vamos aos <em>Novos +Testemunhos</em> do padre Pereira. Disse eu que este +escripto traria deshonra ao auctor da <em>Tentativa +Theologica</em>, e da <em>Vida de Gregorio +VII</em>, se não +<span class="pagenum">[148]</span> +fosse uma ironia. Confesso a v.., que antes quero +salvar, por esta hypothese, a reputação de um +nome illustre na nossa litteratura, do que acceitar +a anecdota, a que alguns attribuem a concepção +dos <em>Novos Testemunhos</em>, anecdota que +mais +de uma vez tenho ouvido referir. Conta-se, que, +sendo o padre Pereira pouco aferrado ao dinheiro +(é defeito de classe: não creia v.. que usurario +nenhum fosse nunca homem de letras) veio a +achar-se um dia com a bolsa completamente vazia. +Advertido da apertura da situação pelo creado, +pegou n'algumas folhas de papel, escreveu os +<em>Novos Testemunhos</em>, mandou-os ao seu +editor, e +recebeu dez moedas, com que ficou rico, ao menos +por dous ou tres dias. Eu prefiro a ironia á +anecdota, que não sei se é verdadeira. Mas ou a +musa do opusculo fosse a precisão de dinheiro, +ou fosse a vontade de gracejar, o que tenho por +certo é que, a não ser assim, a obra fora indigna +de um homem, que pulverisou as pretensões +illegitimas e insolentes da curia romana, e que +fez tremer boa meia duzia de hypocritas e pedantes +do seu tempo. As provas de que os <em>Novos +Testemunhos</em> precisam da minha +explicação, +ou d'outra qualquer, vou dá-las a v.., começando +por transcrever uma passagem da introducção +<span class="pagenum">[149]</span> +do opusculo. Depois de apresentar como +demonstração de não ser forjado +<em>o juramento +d'Alcobaça</em> o haver, antes de Brito o +publicar, +testemunhos <em>da +tradição</em> de Ourique (argumento +na verdade singular!) o padre Pereira prosegue: +<br /> + +<br /> + +«Mas quanto a verificar o caso da +apparição, +tem a dita demonstração <em>o +defeito de que nenhum +dos testemunhos em que ella se funda remonta a +maior antiguidade que o reinado d'elrei D. Manuel</em>. +E assim <em>poderão</em> os emulos +das nossas glorias +<em>repôr</em> que uns +<em>testemunhos do principio do +XVI não são sufficientes</em> para +extorquir delles o +assenso a um facto, que se suppõe +<em>acontecido no +meio do seculo XII</em>.» +<br /> + +<br /> + +Depois d'isto, que digam todas as pessoas que +lerem esta carta, não sendo algum clerigo mau e +ignorante; diga v.. mesmo, pondo de parte +quaesquer prevenções, o que se deve esperar no +opusculo? O auctor confessa que a favor da +apparição +não bastam os testemunhos posteriores ao +anno de 1495, insufficientes para provas de um +facto succedido em 1139, logo elle vai offerecer-nos +documentos, trezentos, ou, pelo menos, duzentos +annos anteriores. Eu digo o que nos offerece +Pereira em logar dos <em>testemunhos +insufficientes</em>. +<span class="pagenum">[150]</span> +<br /> + +<br /> + +1.º A narrativa de Olivier de la Marche na +introducção +ás suas Memorias. +<br /> + +<br /> + +Esta introducção foi começada a +escrever em +1492, conforme o proprio auctor das Memorias +declara<sup><a href="#f32">[32]</a></sup>: +isto é, as passagens relativas ás +armas +reaes de Portugal foram escriptas dous ou tres +annos antes de começar a epocha em que os testemunhos +ácerca de um milagre succedido 357 +annos antes nada provam, segundo confessa o +padre Pereira, advertindo que, por esses não prestarem, +nos ía expor quatro novos, <em>todos de tanto +peso e authoridade, que não ha para que se desejem +outros mais graves</em>. Destas premissas segue-se, +que o testemunho dado a favor de um +facto 357 annos depois do tempo em que se diz +succedido é <em>defeituoso e +insufficiente</em>, mas dado +354 annos depois do successo é igual ao de qualquer +pessoa, ou de muitas pessoas que houvessem +presenciado este, visto que <em>nada ha mais +grave</em>, do que um testemunho posterior de 354 +<span class="pagenum">[151]</span> +annos, emquanto o posterior de 357 não presta +para nada. +<br /> + +<br /> + +Pereira estava doudo, ou gracejava com o publico? +Deixo a escolha a v.. postoque estou certo +de que das duas explicações ha-de preferir a +ultima. +<br /> + +<br /> + +Mas o caso não pára aqui. Tenha v.. paciencia, +porque não fui eu que quiz discutir o milagre de +Ourique; foram os padres, que me têm insultado +porque o tractei como elle merecia, que me +compelliram a isso. Hão-de esgotar o calix da +ignominia até as fézes. Elles dizem do pulpito +abaixo que era melhor que eu não tivesse falado +em tal; e eu digo-lhes da imprensa, do meu pulpito, +que era melhor continuarem a aleijar o +latim do breviario e do missal, e deixarem-me +em paz escrever a historia verdadeira do meu +paiz. +<br /> + +<br /> + +Digo que o caso não pára aqui, porque o modo +como é narrada a historia da apparição +por +Olivier de la Marche, descrevendo as armas portuguesas, +é curiosissimo. Segundo elle, o conde +Henrique tinha escudo branco: depois este escudo +adornou-se por quatro vezes: 1.ª quando Affonso +I, passando o Tejo, desbaratou em campo +d'Ourique (<em>Cambdorick</em>) os cinco reis +mouros, e, +<span class="pagenum">[152]</span> +em allusão a cinco bandeiras que lhes tomou, pôs +no escudo branco cinco escudetes azues. 2.ª Houve +nova mudança quando <em>o mesmo rei foi a +Roma</em> +emprazado pelo papa. Reprehendido em pleno +consistorio por varias culpas, o bom do rei respondeu +pondo-se inteiramente nú, e desafiando +o papa e os cardeaes para que lhe mostrassem todos +junctos tantas chagas no corpo como as cicatrizes +das que elle tinha recebido pela fé de Christo. +Era maravilhoso, de feito, o numero d'ellas: cinco +com visiveis indicios de deverem ter sido +mortaes, a não se haver dado milagre no caso. O +argumento fora peremptorio. O papa e os cardeaes +disseram-lhe que vestisse a camisa; e para +lhe darem uma satisfação da injusta pronuncia, +mandaram-lhe que em cada um dos escudetes +posesse cinco besantes ou arruellas, em memoria +daquellas famosissimas lançadas de que os +mouros o haviam servido. 3.ª Tendo o infante D. +Fernando, rei de Portugal, casado em França com +a condessa Maria de Bolonha, teve um filho, chamado +Henrique, o qual accrescentou a orla do +escudo em que estão os castellos. E sobre este +ponto discute o auctor o erro que havia nos dictos +castellos, estribando-se na opinião de portuguêses +notaveis. Entre estes devo advertir, para o que +<span class="pagenum">[153]</span> +v.. logo verá, que elle havia já mencionado +especialmente +<em>e com elogios extraordinarios</em> o +celebre +Vasco Fernandes de Lucena, que tinha a dignidade +de escanção de Madama Margarida, viuva +de Carlos o Temerario<sup><a href="#f33">[33]</a></sup>. +A 4.º alteração, que +vinha a ser a quinta fórma das armas reaes portuguesas, +foi o pôr-lhes uma cruz firmada no escudo +um rei de Portugal (já se vê que muito posterior +a Affonso I), facto cuja origem <em>alguns attribuiam +(aucuns veulent dire) a ter-lhe apparecido +uma cruz no céu</em> durante uma batalha com os +sarracenos, +o que vendo o principe dissera, orando +a Deus, que <em>mostrasse</em> antes a +<em>cruz</em> aos infieis, e +<em>assim se fez</em>, com o que os mouros +ficaram desbaratados. +Accrescenta Olivier de La Marche que +talvez o milagre seja verdadeiro; mas que <em>para +elle a verdade é que o bom rei +João</em> (D. João I) +foi quem ajunctou ás armas portuguesas os quatro +braços floreteados firmados no escudo. +<br /> + +<br /> + +Aqui tem v.. o testemunho de Olivier de la +Marche em toda a sua força e pureza, postoque +resumido. Não lhe faço commentarios. Deixo a +<span class="pagenum">[154]</span> +v.. e a todos homens instruidos que os façam. +Eu por mim estou satisfeito. +<br /> + +<br /> + +Inverterei aqui a serie dos quatro +<em>irrecusaveis</em> +testemunhos do padre Pereira, porque tenho uma +razão de ordem que me obriga a reservar o segundo +para o ultimo logar. Falarei, portanto, do +terceiro. +<br /> + +<br /> + +Gomes Eannes de Azurara, na continuação da +chronica de D. João I por Fernão Lopes, +transcreve +um discurso feito áquelle principe pelos +seus confessores, frei Vasco Pereira e frei João +Xira, a quem elrei pedira lhe dissessem se era +serviço de Deus intentar a conquista de Ceuta. A +resposta dos frades foi affirmativa, estribando-se +no exemplo de muitos outros principes e cavalleiros +famosos, que haviam acommettido os infiéis +na persuasão de que practicavam uma obra +meritoria, offerecendo-se á morte. Os que a tinham +alcançado, entendiam os dous frades que +ficavam equiparados no céu aos martyres, e que +os que não a haviam obtido, nem por isso deixavam +de ser sanctos, estando resolvidos a morrer +alegremente pela fé. Os theologos terminaram a +serie dos exemplos (nos quaes figuram entre +aquella especie singular de bemaventurados o +Cid Ruy Dias e o conde de Castella Fernão +Gonçalves, +<span class="pagenum">[155]</span> +que nunca desconfiaram de que eram sanctos) +pela seguinte passagem, conforme se lê na +edição de 1644: +<br /> + +<br /> + +«...temos ante nossos olhos a memoria do +mui notavel, fiel e catholico christão elrei D. Affonso +Henriques, cujas reliquias tractamos entre +nossas mãos. Vêde, senhor, os signaes que trazeis +em vossas bandeiras, e perguntai e sabei +como e por que guisa foram ganhados; os quaes +certamente de todas as partes mostram a paixão +de Nosso Senhor Jesu-Christo, <em>por cuja reverencia +e amor o bemaventurado</em> rei offereceu o seu +corpo em o campo de Ourique, vencendo aquelles +cinco reis, como vossa mercê sabe. Considerae +<em>isso mesmo</em> (do mesmo modo) Senhor, +<em>se elle +duvidara se o seguinte trabalho era serviço de +Deus, não tivereis vós hoje em dia esta mui +nobre cidade</em> (Lisboa) nem a villa de Santarem, +com outros logares, etc.» +<br /> + +<br /> + +Este ultimo periodo supprimiu-o Pereira, porque +illustrava o sentido das phrases relativas á +batalha de Ourique. O que frei João Xira queria +dizer era evidentemente, que Affonso I se offerecera +a morrer por Christo em Ourique, entendendo +que fazia serviço a Deus, como depois, na +tomada de Lisboa, Santarem, etc. Onde se fala +<span class="pagenum">[156]</span> +aqui no milagre? Se houvesse outras testemunhas +daquella epocha (1415), que positivamente +referissem a apparição, ainda se poderia, embora +com violencia, suppôr nas phrases do frade +uma allusão ao successo; mas faltando-nos +absolutamente esses testemunhos, nada auctorisa +tal supposição. Trazer esta passagem para +provar, que já em 1415 existia a +tradição, ao +passo que, para ella poder ter a significação +forçada que se lhe quer dar é necessario +suppôr +a existencia da mesma tradição, o que +é, +senão um circulo vicioso, uma petição +de principio? +Não é, porém, só isso. +Nestas lendas, inventadas +com fins humanos por milagreiros e +falsarios, quasi que não é possivel dar um passo +sem encontrar falsificação. A chronica de +Gomes-Eannes, publicada no fervor da guerra +contra os castelhanos, depois da revolução de +1640, e precedida por uma gravura representando +a apparição, foi viciada nesta passagem, +provavelmente para se ver nella uma allusão +obscura ao milagre, como depois viu, ou fingiu +ver, o padre Pereira. No codice authentico do +Archivo nacional, onde no impresso se lê +«<em>vencendo</em>», +está escripto +«<em>vendo</em>». +«Vendo» torna o +sentido da passagem claro. O rei +<em>vendo</em> os +<em>cinco</em> +<span class="pagenum"><a name="p157" id="p157">[157]</a></span> +reis mouros, offereceu o seu corpo a Jesus, e pôs +nas suas bandeiras os <em>cinco</em> escudos. +Substituida, +porém, a palavra <em>vendo</em> +por <em>vencendo</em>, a phrase +obscurece-se; a causa de se pôrem os cincos escudos +nas bandeiras, isto é, o serem os reis +mouros cinco, desapparece; e a lenda, de que +se cria tirar vantagem em 1644, ganha em frei +João Xira um novo, postoque bem debil, alliado. +<br /> + +<br /> + +Mas supponhamos tudo quanto quizerem. +Adoptemos como exacto o texto impresso de +Azurara: vejamos ahi a apparição, embora +não +haja lá uma unica palavra a semelhante respeito. +O testemunho singular de frei João Xira em 1415 +não seria um pouco tardio para provar um successo +de 1139, profundamente esquecido nos +chronicons e monumentos coevos? Não o rejeitam +as regras da critica sincera; regras estabelecidas +accordemente por tantos e tão respeitaveis +escriptores ecclesiasticos; regras, emfim, +cuja solidez a experiencia demonstra de contínuo +aos que se votam a serios estudos historicos? +Quer v.. um exemplo domestico da utilidade +das doutrinas dos Mabillons, dos Melchior-Canos, +dos Fleurys, <a href="#e6">desprezadas</a> +só por aquelles que +desprezam tudo, menos os dezeseis tostões de +um sermão de milagres? É exemplo que +não está +<span class="pagenum">[158]</span> +no cartorio da camara de Evora, nem nos Commentarios +ideaes de Affonso X, mas no Archivo +Nacional, onde todos o podem vêr. Consiste n'uma +especie de summario historico dos reis de Portugal, +lançado no 4.º volume de +Inquirições +de +Affonso III, no reinado de D. João I. No preambulo +daquelle summario, destinado a avaliar-se, +á vista dos factos historicos, a genuinidade das +doações dos reis anteriores, affirma-se que para +o escrever se averiguara com extrema exacção +a verdade, fixando-se assim a serie chronologica +dos principes portugueses. Sabe v.. qual é a +exacção desse monumento destinado a servir de +padrão legal, para por elle se afferirem diplomas +que importavam á fortuna particular e aos direitos +da corôa? Citarei só os erros relativos a Affonso +I. Segundo o summario official, elle nasceu +em 1092, foi casado com a filha de D. Affonso +de Molina, neta do rei de Castella, e morreu em +dezembro de 1184. D'aqui verá v.. o credito +que deveriam merecer-nos os testemunhos do +seculo XIV ou XV, para admittirmos um milagre +do seculo XII, quando esses testemunhos existissem, +e não fossem um rol vergonhoso de +falsificações +e mentiras. +<br /> + +<br /> + +O quarto testemunho do padre Pereira é o proprio +<span class="pagenum">[159]</span> +instrumento da apparição, que existiu em +Sancta Cruz de Coimbra, antes de se conhecer o +de Alcobaça. O auctor dos Novos Testemunhos diz +que não sabe se os dous foram uma e a mesma +cousa, passando o celebre documento do archivo +daquelle mosteiro para o d'Alcobaça. Como demonstra +elle, porém, essa existencia? Pelo depoimento +de um frade de Sancta Cruz, dado em 1556, +e publicado por outro frade cruzio, insigne forjador +de textos e diplomas, e chronista da ordem, +frei Nicolau de Sancta Maria, declarado falsario +pelos seus proprios confrades<sup><a href="#f34">[34]</a></sup>. +Se acreditarmos +este, os conegos de Sancta Cruz, <em>empenhados em +fazer canonisar Affonso I</em>, requereram se tirasse +um depoimento de testemunhas sobre os milagres +do primeiro rei português, do +<em>Pharaó obdurado</em> +dos monges de Cella-Nova. Quem primeiramente +depôs foi um <em>dos conegos +empenhados</em>, e foi +este que disse constar o milagre de Ourique pelo +juramento que existia do mesmo rei. Desse juramento +original tiraram-se então em duplicado +copias authenticas; uma para se guardar no +mosteiro, outra para ir a Roma, o que não chegou +<span class="pagenum"><a name="p160" id="p160">[160]</a></span> +a verificar-se. Havia, pois, em Sancta Cruz +o original e uma copia em instrumento, e fóra +d'alli outra copia authentica. Tudo isto se perdeu, +e nada resta de um documento de tanta +valia, que forçosamente se havia de guardar com +recato, senão a grosseira impostura dos frades +bernardos, restando tambem, nos fins do seculo +passado, um traslado que se dizia transcripto +de <em>um original</em>, diverso no seu theor +<a href="#e7">do</a> <em>outro +original</em> de Alcobaça, e só +semelhante a elle em +ter sellos pendentes, cousa que não existia na +epocha em que o juramento se diz exarado. +<br /> + +<br /> + +O que tudo isto vem a ser é uma serie de vergonhas +e miserias repugnantes, e sobretudo de +falta de juizo. Se o houvesse nos falsarios, elles +nos dariam hoje mais trabalho para atinar com os +seus embustes. Se frei Nicolau, ou os conegos de +1156 (porque eu não sei se a historia do depoimento +se verificou, ou se é invenção do +chronista) +se lembrassem do que passou antes d'elles, +teriam procedido com mais cautela nas suas mentiras. +Quem lê a façanhosa chronica dos conegos +regrantes conclue que no tempo de frei Nicolau +os pergaminhos originaes eram aos milhares em +Sancta Cruz de Coimbra. Pois aqui está o que não +só elle proprio, postoque fraca testemunha, mas +<span class="pagenum">[161]</span> +tambem escriptores mais serios, que se reportam +a um documento coevo, nos referem como acontecido +em 1411. No dia de Corpo de Deus desse +anno, uma tempestade que estourou sobre Coimbra +produziu uma chuva espantosa, que quasi destruiu +o mosteiro de Sancta Cruz. «A agua (diz o +auto que sobre isto se redigiu) levou, além de +muitas outras cousas, quatro caixas de escripturas +de memorias antigas e de doações que os reis +fizeram ao dicto mosteiro, que <em>todas</em> +foram molhadas +<em>e a mór parte dellas +perdida</em>». Sabendo +elrei D. João I do successo, segundo confessa o +mesmo frei Nicolau, ordenou se trasladassem +em publica fórma as +<em>doações e mais +escripturas</em> +que restavam dando-se a este transumpto a +mesma força dos originaes, «<em>com o +que</em>, prosegue +o chronista, <em>se restaurou parte da perda +de tantas e tão antigas escripturas que hoje nos +fazem grande falta</em>». De duas uma: ou o +instrumento +da apparição depositado em Sancta Cruz +pereceu em 1411, ou escapou. Se escapou, devia +ser trasladado no chartulario em que, segundo +a ordem delrei, se lançou o que restava. Esse +chartulario existia ainda no tempo do chronista, +e provavelmente existe ainda hoje. Para que inventaram, +pois, o ridiculo pergaminho de Alcobaça? +<span class="pagenum">[162]</span> +Porque, em vez de imaginarem cem mentiras +para amparar a tradição, não foram a +Sancta +Cruz extrahir desse traslado authentico dez +ou cem traslados novos, que tambem seriam +historica e até legalmente authenticos? Porque +não vão lá buscá-los ainda +hoje para confundirem +a minha impiedade? Se, porém, o pergaminho +original pereceu em 1411, que são essas +historias de publicas-fórmas <em>do +original</em> feitas +pelos notarios Manso e Thomé da Cruz, e não +sei por quem mais, senão embustes, ou copias +tiradas de um documento falso. Porque eu não +disputo, nem me importa, que elle fosse forjado +pelos frades de Sancto Agostinho ou pelos de +S. Bernardo. +<br /> + +<br /> + +Falta o segundo testemunho, que deixei para +ultimo logar, porque se prende com o que me +resta a dizer a v.. sobre a lenda da apparição. +Esse testemunho é o de Vasco Fernandes de +Lucena, que, indo como orador da embaixada +enviada por D. João II ao papa em 1485, referiu +a historia da apparição no discurso que recitou +perante Innocencio VIII e perante a curia. +Como prova do successo, elle tem pouco +mais ou menos o valor do de Olivier de la Marche. +Se aos historiadores que escreveram depois +<span class="pagenum">[163]</span> +de 1495 se não póde attribuir, segundo Pereira, +e muito mais segundo as doutrinas dos pios e +eruditos escriptores a que me referi na carta antecedente, +auctoridade bastante para nos compellirem +a acceitar a tradição de Ourique, +tê-la-ha, +porventura, o testemunho singular de um homem +que o refere apenas dez annos antes, tractando-se +de um milagre que se diz succedido +n'uma epocha anterior de mais de tres seculos? +É impossivel que v.. não sinta que semelhante +auctoridade nada vale. +<br /> + +<br /> + +Eis aqui os testemunhos que Pereira colligiu. +O primeiro e o segundo são dos fins do seculo +XV, e ainda assim, ao que parece, reduzem-se a +um só. Persuadem-no o affirmar Olivier de la +Marche que sobre a questão das armas portuguesas +ouvira pessoas <em>notaveis</em> de Portugal +com quem +tractara<sup><a href="#f35">[35]</a></sup> +tendo-se espraiado pouco antes em encarecidos +elogios á sciencia e talento de Vasco de +Lucena. O terceiro é uma passagem, aliàs viciada, +de Gomes Eannes, a qual, quer viciada, quer +correcta, não contém uma unica palavra +ácerca +da apparição. Finalmente, o quarto é o +juramento +<span class="pagenum">[164]</span> +de Affonso Henriques, que <em>consta</em> +existia em +Sancta Cruz muito antes de Fr. Bernardo de Brito +encontrar o de Alcobaça, o qual se não sabe +se é o mesmo que estava em Sancta Cruz, mas +que nós sabemos perfeitamente que é falso. Eis +aqui os testemunhos do milagre de Ourique, +«<em>de +tanto peso e auctoridade, que não ha para que se +desejem outros mais graves</em>». +<br /> + +<br /> + +Ainda uma vez lembrarei a v.. que lhe deixo +a decidir se o padre Pereira escreveu isto em seu +juizo, ou se estava dando largas á sua jovialidade. +<br /> + +<br /> + +Resta-me só fazer um esforço para acceder, +até +onde é possivel, a uma pretensão de v.. embora +já ficasse provado que ella era infundada. Diz +v.. que para refutar plenamente a fabula da +apparição +deveria eu dizer quando, como, para que, +e por quem fora inventada. É evidente que o falsario +havia de precaver-se para não o descubrirem, +e só elle poderia dizer positivamente qual +era o seu intuito quando forjou a patranha. Sendo +homem astuto, saberia não somente guardar +segredo, mas tambem fazer espalhar com arte a +fabula. Que calumnias não tem alevantado uns +aos outros os partidos politicos nestes nossos tempos? +Muitas dellas, passando primeiro de boca em +boca, vindo á imprensa, combatidas pelos calumniados, +<span class="pagenum">[165]</span> +nem por isso hão deixado de generalisar-se, +e de tomar ás vezes tal consistencia, que é +possivel passarem algumas, d'aqui a um seculo, +por factos historicos, até que uma critica severa +e desapaixonada as reduza ao seu justo +valor. Sobre a origem da fabula de Ourique não +se podem produzir factos decisivos, mas podem +reunir-se alguns, que, assim aproximados, offerecerão +fundamento a suspeitas vehementes sobre +a epocha do nascimento da tradição, sobre +seus auctores, e sobre os fins com que foi inventada. +Note v.. que eu falo da tradição e não +do +juramento, que provavelmente, no estado em que +hoje o temos, é mais moderno. Quanto a esse invento +grosseiro, considerado em si, confesso que +me fallece o animo para o analysar. +<br /> + +<br /> + +Partamos de um facto. O primeiro testemunho +sobre a existencia da tradição relativa ao +milagre +de Ourique, preciso, incontroverso, é o de Vasco +Fernandes de Lucena em 1485: tudo o mais são +chronicas que <em>se perderam</em>, vestigios +que <em>se apagaram</em>, +obras que <em>ninguem conhece</em>. Isto faz +lembrar +o gracioso livro das <em>Antiguidades de +Evora</em>, +que muitos tem tomado por obra de um tolo, e +que na realidade são a satyra dos falsarios e crendeiros, +feita por um homem espirituoso e engraçado. +<span class="pagenum">[166]</span> +Tudo quanto se cita anterior a 1485 são +embustes e ridicularias, sem exceptuar as chronicas +do tempo de Affonso Henriques attribuidas +aos imaginarios chronistas João Camello e +Pedro Alfarde, onde se diz que +<em>talvez</em> se achasse +a tradição. A invenção dos +taes chronistas, frades +de Sancta Cruz, tinha já sido reduzida a pó pelo +cruzio D. Thomás da Incarnação, e por +frei Manuel +de Figueiredo, frade d'Alcobaça. A referencia +a semelhantes mentiras feita por Pereira e por +Cenaculo, que escreveram depois de ellas estarem +refutadas, prova a <em>sinceridade</em> com +que foram +redigidos nesta parte os <em>Cuidados +Litterarios</em>, +e tambem os <em>Novos Testemunhos</em>. +<br /> + +<br /> + +Temos, pois, um homem celebre, um castelhano, +erudito, valido de D. João II, que, n'um discurso +recitado perante Innocencio VIII, menciona +pela primeira vez a apparição. Singular origem +de uma fabula, que, revelada por um estrangeiro, +vem á luz em terra estrangeira, regida por um +governo theocratico, que tem por fundamento +primitivo do seu dominio temporal um titulo +falso. +<br /> + +<br /> + +A memoria de D. João II é odiosa. Entre todos +os reis legitimos portugueses, é elle o unico ao +qual sem injustiça a historia póde attribuir a +<span class="pagenum">[167]</span> +qualificação de tyranno. Elle foi quem deu o +golpe +mortal nas velhas liberdades desta nossa terra. +No seu reinado tem de ir buscar o historiador a +causa fundamental da nossa decadencia, que começa +com o estabelecimento do absolutismo, +embora a podridão que corroe a arvore se esconda +por alguns annos no cerne. É tambem singular +por esta circumstancia a origem da tradição. +Nasce, dilata-se, cresce, firmando as raizes no +tumulo da liberdade. +<br /> + +<br /> + +Vivia em Roma nos primeiros annos do reinado +do <em>principe perfeito</em> um foragido +português, +seu inimigo entranhavel, o cardeal D. Jorge da +Costa. Depois do assassinio judicial do duque de +Bragança, o cardeal aproveitou o ensejo para +malquistar o rei português com Sixto IV. Em consequencia +d'isso (ao menos assim se acreditava), +o papa enviou em 1483 um nuncio a Portugal, a +queixar-se dos abusos do poder temporal contra +as pretendidas immunidades da igreja, que o filho +de Affonso V respeitava tanto como os foros +politicos do reino. Foi o rei emprazado para apparecer +ante o papa, por si ou por procurador, +para dar explicações ácerca do seu +procedimento. +Nomearam-se embaixadores; mas antes de partirem, +Sixto IV relevou o rei da citação, diz-se +<span class="pagenum">[168]</span> +que a instancias do mesmo cardeal que excitara +a tempestade, receioso de que os ministros portugueses, +chegando a Roma, lhe pagassem em +igual moeda, fazendo-lhe perder parte do poder +e credito de que gosava<sup><a href="#f36">[36]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +Parece, porém, que, emquanto proseguia em +Portugal a lucta tenebrosa e encarniçada de uma +aristocracia suberba com um rei ambicioso e +inexoravel, o cardeal não dormia em Roma. Invectivava-se +ahi ou fingia-se invectivar contra a +frouxidão de Sixto IV, que deixava o rei português +quebrar os privilegios do clero sem se lhe +comminarem censuras<sup><a href="#f37">[37]</a></sup>. +Deste clamor sincero, +ou desta farça, resultou uma bulla concebida em +durissimos termos, que se expediu nos primeiros +mezes de 1484. A linguagem della era a linguagem +habitual da curia, insolente e grosseira; +mas havia ahi uma circumstancia digna de reparo. +O papa recordava uma cousa de que os reis +portugueses se haviam esquecido; recordava a +D. João II que <em>tinha a dignidade real por +dadiva +da sé apostolica e de que era seu +tributario</em><sup><a href="#f38">[38]</a></sup>. +<span class="pagenum">[169]</span> +Uma bulla destas faria hoje desatar a rir quaesquer +ministros portugueses, até em pleno parlamento. +Naquelle tempo, porém, ainda o negocio era +um pouco serio. D. João II, se riu, foi em particular. +<br /> + +<br /> + +O arcebispo D. João Galvão, um dos +valídos +do rei e inimigo figadal da familia de Bragança<sup><a href="#f39">[39]</a></sup>, +tinha sido transferido, ainda em tempo de Affonso +V, da sé suffraganea de Coimbra para a +metropolitana de Braga. O arcebispo olhava para +as cousas ecclesiasticas como certos prégadores +d'hoje olham para a prédica; pelo lado solido. +Sem lhe importar obter o pallio, foi usando +do titulo de arcebispo e tomando conta das rendas +da mitra. Ligado com o rei, que lhe deixava +devorar pacificamente tão bom quinhão na mesa +ecclesiastica, ajudava-o do modo que podia a opprimir +o clero<sup><a href="#f40">[40]</a></sup>; +mas até que ponto eram graves +as culpas do arcebispo, que assim se arriscava a +perder a dignidade archiepiscopal (como tem +succedido a muitos outros) não sei eu dizer: falo +pela boca do papa, que lhe dirigiu tambem uma +<span class="pagenum">[170]</span> +carta de ameaças. O que é certo é que +o movedor +das fulminantes bullas de Sixto IV, o cardeal +da Costa, não devia esquecer-se de carregar a +mão no valído do seu adversario. Odio de padre +contra padre ainda é mais profundo e tenaz do +que contra qualquer secular. +<br /> + +<br /> + +As relações com Roma offereciam, pois, um +aspecto pouco agradavel, quando Sixto IV veio a +fallecer (agosto de 1484) na mesma conjunctura +em que elrei apunhalava em Setubal o Duque de +Viseu, mandava envenenar o Bispo d'Evora, assassinar +D. Gotterre no fundo de um calabouço, +e degolar e esquartejar em praça outros fidalgos. +D. João I tomara da côrte de Inglaterra o +esplendor, +os habitos cavalleirosos, o amor da cultura +litteraria, as virtudes domesticas, que ainda hoje +distinguem as classes elevadas na Gran-Bretanha. +Seu bisneto tomava da côrte de França apenas +um typo, o de Luiz XI, pelo qual buscava +modelar as manifestações da sua alma. +<br /> + +<br /> + +A casa de Bragança procedia de D. João I, +mas de D. João I antes de rei e simples mestre +da ordem d'Aviz. A cruz dessa ordem tinha-se +enlaçado com as armas de Portugal, porque D. +João I não se esquecera, depois de rei, de que +fora o chefe dos freires portugueses de Calatrava. +<span class="pagenum"><a name="p171" id="p171">[171]</a></span> +<br /> + +<br /> + +Com as mãos tinctas do sangue do duque de +Viseu, D. João II arrancou a cruz do escudo de +Portugal, e alterou a posição dos escudetes +lateraes, +collocados até ahi horisontalmente, dando +assim nova fórma ás armas do reino. Dir-se-hia +que até d'alli quizera affastar a memoria da linhagem +dos seus principaes adversarios. +<br /> + +<br /> + +Era essa a causa da mudança? Não o sei. Ruy +de Pina, um dos amoucos do principe perfeito, +attribue-a a outros motivos. Podemos acceitar +ou recusar o seu testemunho, assaz suspeito. O +que é certo é que a +alteração se fez no mesmo +anno de 1484. +<br /> + +<br /> + +Hoje a heraldica e os brasões são dixes com +que se entretem <a href="#e8">as +creanças</a> barbadas: o jogo do +xadrez é cousa incomparavelmente mais grave. +Nos fins do seculo XV não era, porém, assim. A +attenção da Europa devia volver-se principalmente +para o ensanguentado drama que se representava +na côrte de Portugal; mas a cruz de Christo +expulsa das moedas, dos sellos e das bandeiras +do reino, pelas mãos de um rei algoz, havia de +dar occasião a mais de um commentario pouco +favoravel. +<br /> + +<br /> + +Todavia, se, como resavam as lendas, os cinco +escudetes representassem uma cruz, e ao mesmo +<span class="pagenum">[172]</span> +tempo contivessem uma allusão mysteriosa á +paixão +de Christo; se as arruellas que os ornavam +representassem os trinta dinheiros por que Judas +vendeu o Senhor, que falta faria a cruz floreteada +de Aviz nas armas de Portugal? Não ficava ahi +uma cruz mystica, um symbolo piedoso? +<br /> + +<br /> + +Fallecido o papa que recordara a D. João II +qual era a origem da independencia de Portugal +relativamente a Leão, e que ainda ousava lembrar-se +do signal de vassallagem que outr'ora se +offerecera á igreja de Roma, elle fora substituido +por Innocencio VIII. Sabido o successo, elrei resolveu +mandar a Roma uma embaixada, para orador +da qual escolheu um homem de plena confiança, +o castelhano Vasco de Lucena. +<br /> + +<br /> + +Quem sabe se elrei tinha algum titulo melhor +que as bullas de Lucio II e de Alexandre III ácerca +da independencia do reino, e que talvez Affonso +Henriques houvesse dado a guardar aos seus +chronistas, João Camello e Pedro Alfarde? Se o +tivesse, bom seria que os embaixadores advertissem +dessa circumstancia o novo papa, tirando +assim á curia a vontade de repetir as doutrinas +carunchosas e oblitteradas da bulla de Sixto IV. +<br /> + +<br /> + +Porei aqui a parte mais interessante do discurso, +que o orador de Portugal fez ao papa rodeado +<span class="pagenum">[173]</span> +dos seus cardeaes, em cujo numero se contava +o implacavel velho D. Jorge da Costa. O padre +Pereira já traduziu uma porção desse +discurso; +mas era um preguiçoso aquelle bom do padre Pereira. +V.. hade permittir que eu o seja menos, e +dê um talho mais largo. +<br /> + +<br /> + +Depois de indicar em poucas phrases as origens +de Portugal, o orador fala dos primeiros annos +do governo de Affonso I e da pequenez dos seus +estados; diz-nos em seguida quaes as suas empresas +e conquistas: Leiria, Santarem, Lisboa tomadas, +o Tejo transposto, a provincia transtagana +submettida, com Evora sua capital, Cezimbra +e Palmela, fortalezas inexpugnaveis, reduzidas, +sendo por elle desbaratados <em>milhares +infinitos</em><sup><a href="#f41">[41]</a></sup> +de mouros com poucos cavalleiros. «Outra vez +(ou <em>novamente</em>)―prosegue Lucena―no +campo +de Ourique, naquelle sitio a que o +<em>vulgo</em> chama +<em>agora</em> Cabeças dos Reis, +com um pequeno exercito +venceu cinco poderosissimos reis mouros. +Na qual batalha, para se ver quão porfiada fosse, +e quão excessivo o seu valor, cinco vezes lhe quebraram +as lanças dos barbaros os escudos que +<span class="pagenum">[174]</span> +embraçava na mão esquerda. Desta singular e +famosa +victoria procedeu <em>fixar elle as insignias e +armas dos reis de Portugal</em>, pondo nellas cinco +escudos, e collocando em cada um delles cinco dinheiros, +sendo sabido que até então as armas +eram um escudo só, todo semeado de besantes. +Estes cinco escudos <em>postos em fórma de +cruz</em>, e +estes besantes quinarios <em>tambem distribuidos em +cruz</em>, que nos indicam senão os trinta +dinheiros, +preço do sangue de Christo, pelo qual este foi entregue +aos judeus pelo crudelissimo Judas? Antes +de dar o signal para a batalha, este rei, orando de +joelhos, viu o Salvador pendente da cruz, e foi +tal a confiança do regio animo, tal a fé gravada +no +seu coração, que, sem se aterrar com a estupenda +maravilha, <em>se atreveu</em> a dizer que +<em>não convinha</em> +que Christo apparecesse a um firmissimo crente, +mas que tal apparecimento era necessario aos hereges, +aos que se afastavam da fé christan. D'isto +e d'outras cousas, que por brevidade calo, vossa +sanctidade conhecerá mais claro que esta luz que +nos alumia <em>por qual constancia d'animo, por +qual ardor de virtude, por que prendas, por quaes +degráus e successos subiu ao fastigio +regio</em>; como +esse varão tão religioso, forte e pio augmentou +os estreitos limites do reino, e o libertou do tristissimo +<span class="pagenum">[175]</span> +jugo da servidão; com que razão, por +força +da <em>clarissima vontade e da suprema +direcção</em> +(optimo auspicio) <em>da eterna +magestade</em>, com <em>auxilio +do povo</em> e +<em>adjutorio</em> da sancta igreja romana, +<em>tomou o regio nome com direito +perfeito</em> (optimo +jure) <em>e o legou aos seus +successores</em>; mais feliz nisto +que outros principes, dos quaes muitos aspiraram +ao titulo real pelo favor dos povos; outros +por temor dos seus satellites armados; poucos, +a quem o justo Jupiter amou, pelo verdadeiro +caminho da virtude.» +<br /> + +<br /> + +Aqui tem v.. o que se lê na oração de +Lucena +relativamente a Affonso I. Note v.. que o +orador passava por um dos homens mais instruidos +do seu tempo, e não podia por ignorancia +fazer o que fez; isto é, inverter a ordem dos +successos do reinado d'aquelle principe. Deste +discurso o que se deduz é que a batalha de Ourique +foi a ultima façanha notavel delle, posterior +a tudo, inclusivamente á tomada de Evora, +e quem sabe se á bulla de Alexandre III, que +concedeu ao principe português a +qualificação +de rei? O que é certo é que, se a chronologia +fingida por Lucena fosse verdadeira, a batalha +e o milagre de Ourique, em que elle visivelmente +quer fundar a independencia de Portugal, +<em>embora</em> +<span class="pagenum">[176]</span> +<em>com o favor do povo e de Roma</em>, +teriam sido +posteriores á carta de feudo á sé +apostolica e á +bulla de acceitação de homenagem expedida +por Lucio II. Assim, a dignidade do rei e a independencia +de Affonso I assentariam n'um titulo, +não só incomparavelmente melhor, qual +era a vontade de Deus milagrosamente manifestada, +mas tambem posterior á offerta e +acceitação +da homenagem feita em 1144, que +por esse facto ficavam invalidadas por inuteis. +Presupposto isto, a impertinente recordação da +curia romana, inserida na bulla «<em>Ut +saluti</em>» de +Sisto IV, ficava tambem de todo o ponto refutada. +<br /> + +<br /> + +Mas dirá v..―o cardeal D. Jorge da Costa, +presente ao acto, não podia impugnar este inaudito +milagre?―Não se impugnam assim milagres. +Reflicta v.. na furia dos padres actuaes contra +mim, porque no seculo XIX não creio n'uma fabula +provada tal até a saciedade, e imagine se +um padre se atreveria a rejeitar o minimo milagre +nos fins do seculo XV; e quando se atrevesse +a dizer alguma cousa, seria em particular +ao papa e aos cardeaes. Outra flagrante mentira +dizia ahi Lucena sem temor de que D. Jorge o +contradissesse: era a historia dos cinco dínheiros +em cada escudete, desmentida por todas as +<span class="pagenum">[177]</span> +armas reaes gravadas nos sêllos e moedas dos +nossos antigos reis da primeira dynastia, começando +em Sancho I. Restam muitos desses sêllos +e moedas; muitos mais deviam restar naquella +epocha: o cardeal era homem instruido e pessoa +notavel: havia de ter visto muitissimos; mas nem +por isso Lucena titubeou, antes nesta parte o seu +discurso, geralmente frio, melifluo, calculado, +tem certo sabor de colerica invectiva contra os +que disso duvidassem. O descaramento é, ha muitos +seculos, um dos dotes do homem d'estado. +<br /> + +<br /> + +Outro facto: Vasco Fernandes tinha sido orador +de Portugal no concilio de Basiléa, e na +embaixada a Roma de 1450; tinha recitado as +orações de abertura nas côrtes de 1478 +e de +1481. Todas essas orações, que não +deviam ser +menos elegantes e curiosas, se perderam; apenas +escapou a da embaixada de Roma de 1485, +e não só escapou, mas tambem foi impressa, e +não só foi impressa, mas ainda mais; fizeram-se +della duas edições em caracteres gothicos e sem +data, ao que parece, estampadas <em>fóra do +reino</em> +e com todos os signaes de <em>pertencerem aos primeiros +tempos da arte da impressão</em><sup><a href="#f42">[42]</a></sup>. Se de +feito +<span class="pagenum">[178]</span> +a oração foi reproduzida pela imprensa pouco +depois de recitada, devia sê-lo fóra do reino, +onde a imprensa de livros latinos e vulgares não +consta que existisse ainda. Mas duas edições da +mesma epocha, que provam, senão que <em>alguem +interessava em dar áquelle discurso a maxima +publicidade</em>? +<br /> + +<br /> + +Recorde-se v.. do que eu disse a proposito +de Olivier de la Marche, e da influencia que é +provavel Lucena tivesse na narrativa do chronista +flamengo ácerca das armas de Portugal. Vê-se +que em 1492, em que este escrevia, as opiniões +andavam encontradas. As armas que ahi mais +se deviam conhecer eram as antigas com a cruz +d'Aviz, porque a reforma de D. João II tinha apenas +oito annos. Entretanto a noticia do milagre +de Ourique, postoque alterada, corria já alli, e +a alteração provinha de quererem +<em>alguns</em> acommodar +a fabula ás armas antigas. Consequentemente, +outros não queriam: logo disputava-se +ácerca disso: logo a historia da +apparição era +uma cousa nova e incerta. Se ella fosse a +explicação +sabida e ordinaria, como Lucena dissera +em Roma, teria De la Marche accumulado a serie +de despropositos que anteriormente transcrevi? +Elle falara ácerca d'isto com muitos portugueses, +<span class="pagenum">[179]</span> +e escrevia á vista das suas +informações. O que +indica essa completa confusão d'idéas do +chronista? +Que o milagre de Ourique, caindo inesperadamente +no meio das lendas que se ligavam ao +brazão dos reis de Portugal, as tinha inteiramente +baralhado. +<br /> + +<br /> + +Agora note v.. que por estes mesmos annos +de 1491 e 92 Lucena devia estar em Flandres, +porque é neste tempo que elle começa a +intitular-se +conde palatino (titulo que parece provir-lhe +do cargo d'escanção da viuva de Carlos o +Temerario), +ao passo que nessa conjunctura o achamos +ausente de Portugal<sup><a href="#f43">[43]</a></sup>. +V.. ajuisará das +illações +que destes factos se podem tirar. +<br /> + +<br /> + +Mais ou menos inexactas que sejam as noticias +que nos restam ácerca da existencia em Sancta +Cruz de Coimbra de um monumento relativo á +apparição, parece todavia que alguma cousa ahi +houve, e o transumpto do juramento de Affonso +I, feito pelo notario Manso <em>em tempo d'elrei D. +João II</em>, não é de +desprezar, logo que um homem +como frei Francisco Brandão affirma tê-lo visto. +Tal transumpto, se não prova a existencia de um +documento verdadeiro, faz crer que <em>alguma +cousa</em> +<span class="pagenum">[180]</span> +<em>sobre a apparição +tinha</em> apparecido <em>em Sancta +Cruz no tempo daquelle rei</em>. +<br /> + +<br /> + +Advirta, porém, v.. que D. João +Galvão, o arcebispo +de Braga, valído de João II, tinha sido +prior mór de Sancta Cruz, devendo por isso conservar +estreitas relações com os frades, e que a +familia Galvão parece ter tido particular tendencia +para aquelle mosteiro; um outro D. João +Galvão era seu prior crasteiro no principio do seculo +XVI, e, como vimos, diz-se que em 1556 um +frade cruzio, velho de oitenta annos, o +<em>cartorario</em> +D. Manuel Galvão, depôs que existia o auto do +juramento de Affonso I, <em>em que os prelados e os +grandes da corte estavam assignados</em>, grossa mentira, +seja de passagem dicto, porque o estylo +constante, sem excepção no seculo XII e ainda +no XIII, era escrever nos diplomas regios o mesmo +notario que os exarava os nomes dos prelados +e ricos-homens confirmantes. Mas os Galvões +não acabam aqui. Duarte Galvão, +<em>irmão do arcebispo +valído</em>, escrevendo depois de 1500 a +chronica +de Affonso Henriques (no fim da qual adverte +<em>innocentemente</em> +que seu irmão o arcebispo lhe dissera +que tinha motivos para crer <em>que Affonso +Henriques fora sancto</em>,) introduz na narrativa +da batalha de Ourique a historia da apparição, +<span class="pagenum">[181]</span> +aperfeiçoada com a scena do ermitão que esquecera +a Lucena. Galvão refere-se nesta parte ao +que <em>elle mesmo</em> (Affonso I) +<em>disse, e dentro da sua +historia se contém</em>, o que parece alludir a +uma +especie de memoria ou diploma em que figura o +filho de D. Theresa, o <em>Pharaó +obdurado</em>. Tudo +o mais, pelo que se colhe da narrativa, andava em +fama; isto é, a reprehensão dada pelo rei a +Christo +por lhe apparecer a elle; as promessas da +protecção +perpetua do reino feitas por Deus; emfim +tudo aquillo que os frades de Alcobaça metteram +para dentro do <em>seu original</em> do +juramento, porque +em verdade era pena que andasse tanta cousa +boa só em <em>confirmada +fama</em>, como diz Duarte +Galvão. Mas se os frades bernardos souberam +aproveitar esses fragmentos soltos para delles fazerem +um juramento vistoso, e de uma apparição +rachitica uma apparição ancha e acabada, o +chronista +não tinha mostrado menos juizo em lhe dar +uma applicação util. Para D. João II, +morto e sepultado, +não servia ella já de nada. A bulla +<em>Ut +Saluti</em>, e Sixto IV, e o seu successor Innocencio +VIII tinham desapparecido da scena politica. Na +cadeira de S. Pedro estava assentado o sancto padre +Alexandre Borgia, que tinha assaz que fazer +em administrar piamente a igreja de Deus, para +<span class="pagenum">[182]</span> +não cogitar na sujeição politica de +Portugal á sancta +sé. O milagre de Ourique andava de todo desaproveitado. +Era uma lastima. O chronista olhou +para o mosteiro de Sancta Cruz, especie de viveiro +dos Galvões, e entendeu que a +apparição lhe podia +ser util. Descobriu, portanto, a causa efficiente +da apparição, no que ninguem até ahi +sonhara. +Fora a causa de tamanha mercê do céu o ter Affonso +I fundado e enriquecido Sancta Cruz <em>com +grande devoção</em>. Na verdade isto +era em parte +mentira; porque as grandes doações de terras, +castellos e padroados, feitas por Affonso Henriques +áquelles frades, são todas posteriores a 1139 +e anterior á batalha de Ourique apenas a de uma +horta em Coimbra<sup><a href="#f44">[44]</a></sup>. +Antes, porém, da pontilhuda +dialectica dos diplomaticos não se olhava de tão +perto para as cousas. A mentira util tornava-se +em verdade pelo consenso dos sabios, e sabios +eram os inventores de pias fraudes. Ora a utilidade +de explorar a tradição em beneficio dos conegos +cruzios era indisputavel. Os caseiros e emphyteutas +do mosteiro, raça dura e rebelde em +pagar suas rendas e foros, não pagava, e ria-se +das excommunhões; os officiaes da coroa quebravam +<span class="pagenum">[183]</span> +impiamente os privilegios da ordem, e até, +anteriormente, os villãos de Montemor tinham +ousado accusá-la de haver obtido com dolo e +mentira parte das suas rendas e direitos senhoriaes<sup><a href="#f45">[45]</a></sup>. +Depois, naquella conjunctura, o mosteiro +estava gasto e desbaratado das guerras que pouco +antes o prior D. João de Noronha tivera com o +bispo de Coimbra, em razão de uma pouca de +carne furtada da cozinha do bispo pelos criados +do prior; guerras em que se deram cruas batalhas +nas praças de Coimbra, sendo necessario que o +poder publico mandasse marchar tropas para pacificar +á força os dous reverendos +campeões<sup><a href="#f46">[46]</a></sup>. +Postos o dominio directo, os direitos senhoriaes, +os bens e rendas de Sancta Cruz sob a protecção +de um bom milagre, naquella occasião desoccupado, +d'ahi só podia provir utilidade aos cruzios +sem damno de terceiro. Valia a pena, por isso, +de achar a causa verdadeira do milagre de Ourique, +com que ninguem ainda tinha atinado. +<br /> + +<br /> + +Paro aqui; e peço desculpa a v.. da minha +<span class="pagenum">[184]</span> +linguagem. Ha cousas que nenhuma equanimidade +basta para dellas se falar sem indignação, ou +sem riso. É necessario escolher, e eu prefiro o +ultimo quando se tracta de embustes e miserias +que já não fazem mal. V.. tomará na +conta que +merecem os factos e as reflexões que no decurso +desta carta lhe submetto, e de que no seu foro +intimo tirará as conclusões que julgar razoaveis. +Terminarei por dizer que sinto haver v.. declarado +pela imprensa que se retirava da arena da +discussão. Por mais oppostas que sejam em tantas +cousas as nossas doutrinas, a contenda pacifica +com um homem honesto, cortez e instruido, +era-me summamente agradavel. Mas d'hoje avante, +dirigindo-me a v.. diz-me a consciencia que +não faria uma acção boa. +Até certo ponto sería +ferir pelas costas um adversario leal. Cessou por +isso a nossa correspondencia. Restam mil outros +meios de falar com o geral dos homens de bem +e sinceros, e de dizer ao meu paiz as verdades +em que a guerra da maioria do clero me obriga, +por propria defesa, a fazê-lo pensar. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c5"></a>V<br /> + +<br /> + +A SCIENCIA ARABICO-ACADEMICA<br /> + +</h3> + +<div class="sbreak"> +<hr /></div> + +<h4>AO SR. A. J. DA SILVA TULLIO +</h4> + +<h4> +(<em>Março, 1851</em>) +</h4> + +<br /> + +<br /> + +Meu amigo.―Remette-me v.. o folheto de +A. C. P. (que me diz ser um «academico» o sr. +Antonio Caetano Pereira) destinado a mostrar os +crimes, as fabulas, as contradicções, as +ignorancias +e não sei quantas cousas mais, em que o peccador +de mim caiu na narrativa da batalha de +Ourique. Pede-me v.. que diga eu alguma cousa +no seu jornal acerca desta publicação, a qual +fez, +segundo v.. affirma, certo effeito, por causa das +garabulhas ou gregotins mouriscos, appensos por +lithographia ao folheto, como prova dos progressos +da arte typographica entre nós, que é o mais +que podem provar aquellas esgaratujadas rabiscas. +Sabe o bom redactor da <em>Semana</em> a +primeira +impressão que o folheto me causou? A que em +<span class="pagenum">[186]</span> +mim produzem muitas cousas que se publicam +nesta nossa terra. Lembrei-me da Divina Providencia, +para lhe agradecer que o estudo da nossa +lingua esteja tão pouco generalisado na Europa. +A reputação litteraria do paiz ganha immensamente +com isso. Dizem que não se deve nunca +desesperar da patria; mas eu confesso-lhe que +litterariamente desesperava della, se não fosse a +mocidade, á qual Deus queira dar bastante amor +do estudo, e alumiá-la com um sancto horror a +cruzar os umbraes da Academia. A dizer a verdade, +meu amigo, começa a fallecer-me a paciencia +e a vontade para discutir cousas que nos escorregam +para o chão quando tentamos submettê-las +á analyse. Demais, do que eu tracto agora é de +pôr quanto antes na imprensa o quarto volume +da <em>Historia de Portugal</em>, que, em +consciencia, +me tem dado mais que pensar do que todas as +criticas academicas, presentes e futuras. Com a +mão no coração, digo-lhe que, +<em>exceptis excipiendis</em>, +o areopago censorio mais inoffensivo, mais +divertido até, que ha em todo o mundo é a +Academia +de Lisboa. Collectivas ou individuaes, as +censuras que partem d'alli nem sequer arranham +a supposta victima. Se não escorchassem, por via +de regra, a grammatica e o senso commum, não +<span class="pagenum"><a name="p187" id="p187">[187]</a></span> +só seriam suaves e morbidas; seriam até, +permitta-me +dizê-lo, voluptuosas. Traduzidas em +chim, tomavam-nas por obra de algum collegio +de mandarins letrados do celeste imperio. +O opusculo que o meu amigo me remette é pasmoso +no genero: é um botaréu da maravilhosa +fabrica das memorias e actas academicas tirado +do seu logar, e a que fizeram perder aquella parte +de formosura que lhe houvera resultado da +harmonia do todo. Sinceramente, é uma cousa +que lastimo. +<br /> + +<br /> + +Agora o que, tambem sinceramente, eu não +esperava era achar no opusculo certa cortezia +nas fórmas que o auctor empregou. Sabía que +se estava imprimindo contra mim um cartapacio +mourisco. Pensei que fosse obra dos reverendos, +que, tão pobres de saber e de intelligencia como +ricos de odio, resfolgam pelo respiradouro da injuria +a colera que os abafa. E ainda bem! Apesar +do nojo que tenho desses pobres-diabos, não +quero que elles estourem, porque são meus irmãos, +como em <a href="#e9">gira</a> jesuitica se costuma +dizer a +cada punhalada que se dá no proximo. Estou já +tão affeito aos improperios da imprensa devota, +á caridade dos nossos khatibs e ul-máis, que +não +esperava no imminente opusculo senão mais uma +<span class="pagenum">[188]</span> +prova a favor da minha crença na atrophia moral +e intellectual da maioria do nosso clero, crença +que elle se encarregou de demonstrar até a saciedade. +Enganei-me: era obra secular; academica, +porém cortez; cortez (entendamo-nos) até +o ponto de não usar o auctor das phrases dos +prostibulos e das tabernas, mas não até o ponto +de respeitar o meu caracter moral, porque ahi +sou accusado de <em>falto de sinceridade</em> +(pag. 10), +de <em>critico cheio de fel</em>, de +<em>criminoso</em> (pag. 15), +de <em>aviltador do valor +português</em> (pag. 18). Isto, +porém, pode ser violento, mas não é +immundo. +Os mentecaptos indecentes são os que a minha +dignidade de escriptor e de homem me não consente +refutar. Assim, ser-me-ha licito satisfazer +aos desejos do bom redactor da +<em>Semana</em> e remetter-lhe +algumas notas ácerca deste curioso +papel. +<br /> + +<br /> + +Uma explicação. Quando digo que não +posso +refutar mentecaptos indecentes, não quero significar +que essa guerra que se me faz, atroz +na intenção, ridicula nos effeitos, ha de ficar +sem punição. Não sou homem disso; mas +tambem +não sou homem que gaste polvora com +guerrilhas. Hei de ir buscar a seu tempo as columnas +de infanteria e os macissos de cavallaria +<span class="pagenum">[189]</span> +que estão atraz dellas. As miserias que ahi vão +pela imprensa contra mim são um veu que encobre, +ou antes descobre por demasiado raro, +negocio mais grave. Tracta-se hoje de saber se +a Europa catholica se hade infeudar de novo ás +corrupções da curia romana, com o seu cortejo +de jesuitas de todos os formatos, de todas as +idades e de todas as mascaras; com os seus +titeres inquisitoriaes, com os seus Torquemadas +em miniatura. Tentêa-se este solo de Portugal: +manda-se hostilisar em mim o progresso +das novas idéas, a independencia das opiniões, +não porque eu seja o mais forte, mas porque +circumstancias, que não preparei nem provoquei, +me collocaram na primeira linha do combate. +O que é certo é que alguem se ha de +enganar ácerca do desfecho da lucta, ou nós, +ou esse grupo, essa cousa, que por ahi anda +a ajunctar quanto pó e podridão ha no cemiterio +dos seculos e a tentar insufflar-lhe vida; +essa cousa hedionda, que, incapaz das ambições +grandiosas, do despotismo esplendido da +Roma de Gregorio VII; repellida pelo evangelho +que ella desmente, fulminada pela philosophia +que ella detesta, depois de apurar as +suas doutrinas espirituaes nas fontes catholicas +<span class="pagenum">[190]</span> +das margens do Neva, vem refocilar-se para a +peleja, e desafiar a justiça de Deus e dos homens +atraz dos olhos buliçosos da madona de +Frosinone. Aqui, no ultimo occidente, o recontro +final ha de ser mais tarde. Que a mocidade +não durma, porém! Prepare-se para os dias de +prova, e talvez de tribulação, com a severidade +dos costumes, que dá a energia moral, e +com a severidade do estudo, que subministra +as armas para a victoria. Por ora pedem-nos só +jesuitas; o perigo da petição não +é grande. A +igreja da <em>Memoria</em>, cujas grimpas +vejo d'aqui, +collocada lá a meia encosta, vigia a foz do Tejo. +Os filhos de Loiola não passariam áquem da +barra sem que o sangue de D. José I gemesse +nos fundamentos do templo, e este gemido retumbaria +pelo reino de Portugal, porque a imprensa +tem echos. +<br /> + +<br /> + +Entretanto, meu amigo, forcejemos todos por +não deshonrar esta terra: empreguemos unidos +os nossos esforços para augmentar os thesouros +da civilisação no paiz; associemo-nos lealmente +a quantas idéas generosas e puras de progresso +material e intellectual surgirem no meio de nós. +Filhos da imprensa, os nossos deveres são arduos; +mas é necessario cumpri-los. Porque estou +<span class="pagenum"><a name="p191" id="p191">[191]</a></span> +eu tranquillo no meio da tormenta que ruge? +Porque tenho a consciencia de os haver +desempenhado escrevendo a historia. Se transigisse +com vaidades e mentiras; se vendesse a +minha <a href="#e10">penna</a> a paixões +pequenas e más; se recuasse +diante de considerações miseraveis, as +horas da solidão e do silencio, que são as mais +da minha vida, não seriam tão repousadas para +mim. Alumiado por essa luz moral, que nunca +devemos perder de vista, espero levar ao cabo +o empenho que tomei, até porque a historia +de Portugal é uma das mais ricas em +licções +para nos prevenirmos contra as astucias de hypocritas, +e essas licções são hoje altamente +proficuas. +Não ha nella, sob tal aspecto, uma só +epocha infertil, desde os tempos barbaros em +que o arcebispo João Peculiar, furioso contra o +seu suffraganeo de Coimbra, se apoderava dos +paços episcopaes deste, convertia a cathedral +em estabulo dos seus cavallos, e espalhava por +terra as sacras fórmas, n'um impeto de bruta +colera, até aquelles, não barbaros mas corruptos, +em que os devotos e pios inquisidores, +depois de mandarem desconjunctar nos tractos +do potro os membros delicados das virgens +hebreas, ou das tidas por taes, iam, curvados +<span class="pagenum">[192]</span> +sobre o leito da dôr, pousar mollemente os +olhos lubricos nos debeis corpos das martyres, +e fartar a sua luxuria de tigres palpando aquellas +carnes pisadas e sangrentas. Quando a justiça +de Deus põe a penna na dextra do historiador, +ao passo que lhe põe na esquerda os documentos +indubitaveis de crimes que pareciam +escondidos para sempre debaixo das lousas, elle +deve seguir ávante sem hesitar, embora a hypocrisia +ruja em redor, porque a missão do historiador +tem nesse caso o que quer que seja de +divina. +<br /> + +<br /> + +E o opusculo sarraceno? Perdoe, meu amigo! +O opusculo tinha-me profundamente esquecido. +<br /> + +<br /> + +O eruditissímo academico meu adversario declara-me +inhabilitado para escrever a historia do +dominio mussulmano na Hespanha, porque não +sei arabe. +<br /> + +<br /> + +Pois então dou-a por não escripta. Largo o titulo +de historiador; mas consolo-me com a boa +companhia. Masdeu, Noguera, Ferreras não sabiam +arabe; Barros não sabia o sanskrito; Raynal +não sabia as linguas bunda, tupinamba e iroquesa; +Bossuet não sabia as setenta e duas linguas +da torre de Babel. +<br /> + +<br /> + +O auctor do opusculo passa a demonstrar como +<span class="pagenum">[193]</span> +eu não sei arabe. Não era preciso: nas notas do +meu livro estou mais que confesso. Nunca citei +um texto escripto nessa lingua, que não dissesse +de que traducção me tinha valido. +<br /> + +<br /> + +Eis, todavia, as provas <em>da minha</em> +insciencia: +<br /> + +<br /> + +Primeira: Attribuo ao nome do Guadiana origem +phenicia. +<br /> + +<br /> + +E continúo a attribuir-lh'a. O nome radical do +rio é <em>Ana</em>: e os eruditos +concordam geralmente +em que a palavra é phenicia. +<em>Guadi</em>, +<em>wadi</em>, ou +como em mouro direito for, é árabe, e significa +rio. Até ahi chega o meu arabismo. Mas não +são +essas syllabas que o distinguem, porque os sarracenos +as ajunctavam a muitos <em>nomes +proprios</em> +de rios. <em>Guadiana</em> nada mais +é que o <em>rio Ana</em>. +<br /> + +<br /> + +Segunda: Digo que <em>Alcacer</em> significa +<em>paços +reaes</em>. +<br /> + +<br /> + +E porque não o havia de dizer? Os <em>Vestigios +arabicos</em> de Moura dão-lhe a +significação de <em>palacio +acastellado</em>; e eu, que não sei arabe, mas +que sei outras cousas que o auctor do opusculo +ignora, affirmo-lhe que naquella epocha o +<em>Al-kassr</em> +ou <em>Al-kassba</em> (aqui me colhe n'alguma +tropelia +arabica) era isso, ou mais exactamente, um +<em>castello apalaçado</em>. +Quanto ao adjectivo <em>reaes</em>, +asseguro-lhe +á fé de christão (e tanto da gemma, +que +<span class="pagenum">[194]</span> +não entendo o alcorão) que em virtude das +instituições +politicas d'aquelles tempos, assim entre +sarracenos como entre nazarenos, o +<em>alcacer</em> era +necessariamente <em>real</em>, isto +é, dependente do poder +publico. +<br /> + +<br /> + +Terceira: Chamo a <em>Ourique</em> nome +proprio de +logar. +<br /> + +<br /> + +Sobre isso falaremos d'espaço. +<br /> + +<br /> + +Quarta: Interpreto <em>Iman</em> dignidade +religiosa. +<br /> + +<br /> + +Esta accusação deixou-me quasi academico. +Para um arabista parece-me gracejo forte de mais. +Pois <em>Iman</em> não significa +dignidade religiosa? O +auctor do opusculo devia então dizer-nos se o +<em>iman</em> era algum capitão de +mar e guerra, mercador +de retalho, dentista, ou que demonio era o +<em>iman</em>. Quem a mim me metteu nestes +trabalhos +sei eu. Foi o celebre traductor e refutador do alcorão, +Marraccio, que teve a insolencia de dar +sempre á palavra <em>iman</em> a +significação de <em>chefe do +culto</em>, de <em>principal sacerdote +(sacrorum antistes)</em><sup><a href="#f47">[47]</a></sup>: +foi o orientalista Von-Hammer<sup><a href="#f48">[48]</a></sup>, +que sabe mais +das cousas mussulmanas, que toda a eschola arabica +de Lisboa desde a sua fundação até +hoje: foram +<span class="pagenum">[195]</span> +todas as exposições da +organisação religiosa +entre os mussulmanos, não só da Peninsula, mas +de todo o mundo. +<br /> + +<br /> + +Quinta: Digo ser <em>Ismar</em> +corrupção de +<em>Omar</em> +ou de <em>Ismael</em>. +<br /> + +<br /> + +É possivel que eu me enganasse: todavia, +porque não me fez o auctor do opusculo um favor +especial; porque não me citou na historia de +Abdel-Halim, na de Conde, na de Al-Makkari, ou +na de Al-Keiruani, onde se mencionam milhares +de individuos mussulmanos, um só que se chamasse +<em>Ismar</em>? Assim fico em duvida, e +desconfiado +de que tenhamos outra anecdota como a +d'<em>Iman</em>. +<br /> + +<br /> + +Felizmente as provas não continuam. Se o auctor +proseguisse, temo que demonstrasse contra +mim que eu sabía arabe. Era um aperto em que +me punha; porque na realidade eu não sei decifrar +um unico daquelles engaços de passas, que +elle lithographou ao cabo do seu opusculo. +<br /> + +<br /> + +Passado o preambulo, o auctor annuncia que +vai provar-me pelos historiadores arabes que a +batalha d'Ourique foi uma grande batalha e o +<em>golpe fatal dado no dominio +mussulmano</em>. Sancto +breve da marca! Sempre são mouros! Se tal +affirmam, digo ao illustre arabista que não os +<span class="pagenum">[196]</span> +acredite. Os monumentos christãos, ainda os mais +exaggerados, não contam tanto. O dominio mussulmano +ficou como estava depois da jornada +d'Ourique. Affonso I voltou muito depressa para +os seus estados, ao norte do Mondego, porque +sabía do officio de soldado. Sessenta annos de +lucta depois da bulha d'Ourique não bastaram +para expulsar de todo do actual territorio português +os mussulmanos. Apesar da celebre jornada +de 1139, Affonso Henriques teve de ir conquistando +palmo a palmo a Estremadura e o Alemtejo. +Que <em>golpe fatal</em> foi, portanto, esse +de Ourique? +Ah mouros, mouros! Isso é debicar com o +proximo. +<br /> + +<br /> + +Depois de citar o que eu refiro como introducção +á narrativa da batalha, o opusculo vem deitar-me +tudo por terra com um sopro. Errei a +chronologia, os nomes dos imperadores almoravides, +tudo. Oh peccador de mim! +<br /> + +<br /> + +Lá vai o texto do nosso academico arabico: +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="tinyl">«Nada tem o facto de Ourique, +succedido no reinado +de Ali-Ben-Taxefin, com Aly-Ibn-Iussuf; porque este +Aly-Ibn-Iussuf foi o primeiro imperador da dynastia +dos morabethins e falleceu no anno 496 da Hegira, 1103 +da era Christã...» +</div> + +<br /> + +<span class="pagenum">[197]</span> +<div class="tinyl">«Não foi, +<em>portanto</em>, no reinado de +Aly-Ibn-Iussuf, nem +durante o de Aly-Ben-Taxefin, que começou a +pretensão +do celebre El-Mohdy, mas sim no reinado de Taxefin-Ben-Aly, +que succedeu a Aly-Ben-Taxefin, isto é, principiou +no reinado do III imperador e só tomou seu maior +incremento no meio do reinado do IV imperador da dynastia +dos morabethins, que foi Ibrahim-Ben-Taxefin: +logo no reinado de Aly-Ben-Taxefin, em cujo tempo foi +a batalha de Ourique, não houve +revolução, nem politica, +nem religiosa, que distrahisse as tropas; o que tudo +confirmamos, convidando nossos leitores a que leiam os +capitulos desde 32 até 36 inclusivamente da Historia +Genealogica dos imperadores mussulmanos, escripta por +Abu-Mohammed-Salihn-Abd-Alihim.» +</div> + +<br /> + +<br /> + +Transcrevi todas estas blasphemias historicas, +para que se veja com quanta razão dou graças a +Deus de que a nossa lingua seja pouco conhecida, +e o que se deve esperar de uma academia onde +ha destes eruditos. Pús á vista de todos o corpo +de delicto. Vamos ao auto. +<br /> + +<br /> + +A serie dos imperadores almoravides que resulta +das precedentes passagens é a seguinte. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 35%;">1.º +Aly-Ibn-Iussuf</td> + + <td style="width: 15%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 10%; text-align: right;">1103</td> + + <td style="width: 40%;">(morto)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="width: 35%;">2.º +Aly-Ben-Taxefin</td> + + <td style="width: 15%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 10%; text-align: right;">1139</td> + + <td style="width: 40%;">(batalha d'Ourique)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="width: 35%;">3.º +Taxefin-Ben-Aly</td> + + <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 15%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 40%;">(apparecimento do +Mahadi)</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="width: 35%;">4.º +Ibrahim-Ben-Taxefin</td> + + <td style="width: 15%;"></td> + + <td style="width: 10%;"></td> + + <td style="width: 40%;"></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +Em que se funda o auctor? Que é o que cita +em seu abono? +<span class="pagenum">[198]</span> +<br /> + +<br /> + +Unicamente os capitulos 32 a 36 da Historia +de Assaleh-Ben-Abdel-Halim, ou Salihn Abd-Alihim, +conforme for em mouro a graça de sua mercê, +porque não ha dous arabistas que escrevam +um nome de gente do mesmo feitio. +<br /> + +<br /> + +Ora os capitulos citados<sup><a href="#f49">[49]</a></sup> +têem apenas o pequeno +inconveniente de se referirem ás primeiras +conquistas dos lamtunenses, e ao estabelecimento +do seu dominio na Africa <em>na segunda +metade do seculo XI</em>. É no capitulo 37 que +se +narra a primeira passagem á Hespanha de +Iussuf-Ibn-Tachfin e a victoria de Zalaka em +1080; no 38 a segunda passagem; no 39 a +terceira em que Iussuf incorporou nos seus +dominios os estados mussulmanos da Peninsula, +que tinham invocado o seu auxilio. Iussuf +foi o primeiro imperador almoravide d'Africa e +de Hespanha. +<br /> + +<br /> + +A serie dos imperadores, que resulta dos capitulos +<span class="pagenum">[199]</span> +39 e seguintes da Historia de Assaleh-Abdel-halim +é:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 55%;">1.º +Iussuf-Ibn-Tachfin (fallecido) +em</td> + + <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 35%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 10%; text-align: right;">1106</td> + + </tr> + + <tr> + + <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 75%;">2.º +Aly-Ibn-Iussuf +(appel. Abu-Hassan) (fallecido) em </td> + + <td style="width: 15%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 10%; text-align: right;">1142</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="width: 55%;">3.º Tachfin-Ibn-Aly +(morto +em)</td> + + <td colspan="2" rowspan="1" style="width: 35%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 10%; text-align: right;">1145</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +Se o meu amigo comparar isto com o que se +diz no opusculo, não me ha-de acreditar. Tem +razão. É monstruoso, é incrivel, +é absurdo; mas +está la. Se quizer desenganar-se, procure a +versão +de Assaleh pelo padre Moura esplendidamente +impressa pela Academia em papel pardo e letra +safada. Veja o que diz o historiador arabe, o +que eu digo, e o que diz o opusculo. Depois julgue-nos; +e, ainda depois, faça idea do que irá +pela <em>Classe de Sciencias Moraes e +Bellas-letras</em> +(ou, como quem o dissesse em português, <em>e +Boas-letras</em>) +da Academia<sup><a href="#f50">[50]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +É assim que esta gente salva a gloria nacional +e vindica a bulha d'Ourique contra a minha má +fé, contra o fel da minha critica. +<br /> + +<br /> + +A má fé é minha. Repare bem nisso. +<br /> + +<br /> + +Mas haverá outros textos de Abdel-halim, que +<span class="pagenum">[200]</span> +tenham alguns capitulos 32 a 36, que nos contem +essas historias do opusculo? +<br /> + +<br /> + +Na parte da <em>Historia do Dominio dos +Arabes</em> +por D. J. Conde, relativa á dynastia almoravide, +o erudito hespanhol seguiu Assaleh. Esta parte +do seu trabalho ficou imperfeita e por isso deve +aproveitar-se com cautela. Todavia Conde era +incapaz de commetter um erro tão grosseiro +como transtornar completamente a chronologia +daquella epocha. Isto estava reservado para um +membro da nossa academia. +<br /> + +<br /> + +Eis o resumo da chronologia de Conde quanto +á dynastia almoravide<sup><a href="#f51">[51]</a></sup>: +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td colspan="2" rowspan="1">1.º +Abu-Bekr-Ibn-Omar +(unicamente na Africa)</td> + + <td style="width: 10%;"></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="width: 60%;">2.º +Iussuf-Ibn-Tachfin, +fallecido na +egira<br /> + + <div class="quote2">(1106-1107) + </div> + + </td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="vertical-align: top; text-align: right;">500</td> + + </tr> + + <tr> + + <td>3.º Aly-Ibn-Iussuf, fallecido na +egira<br /> + + <div class="quote2">(1139-1140)</div> + + </td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="vertical-align: top; text-align: right;">534</td> + + </tr> + + <tr> + + <td>4.º Tachfin-Ibn-Aly fallecido na +egira<br /> + + <div class="quote2">(1146-1147)</div> + + </td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="vertical-align: top; text-align: right;">541</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +A ordem dos imperadores é a mesma. Conde +atraza dous annos a morte de Aly-Ibn-Iussuf e +adianta um a de seu filho. Ainda admittida a chronologia +<span class="pagenum">[201]</span> +Conde, a jornada de Ourique cai dentro +do reinado de Aly-Ibn-Iussuf; porque a Egira +534 correu de <em>agosto</em> de 1139 a +agosto de 1140. +<br /> + +<br /> + +Os historiadores sarracenos Ibn-Khallekan +e Ibn-Al-Khatib consideram Iussuf-Ibn-Tachfin +como o fundador da dynastia almoravide. Eis a +chronologia seguida por elles:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 50%;">1.º Iussuf, +fallecido na +egira</td> + + <td style="width: 25%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right; width: 20%;">500 +(1106-7)</td> + + <td style="width: 5%;"></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>2.º Aly, fallecido na +egira</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">537 (1142-3)</td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>3.º Tachfin, fallecido na +egira</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">539 +(1144-5)</td> + + <td><sup><a href="#f52">[52]</a></sup></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +Já se vê que, segundo a chronologia de +Ibn-Khallekan +e de Ibn-Al-Khatib, a ordem da dynastia +é a mesma, e que o successo d'Ourique tambem +cai no reinado de Aly-Ibn-Iussuf. O celebre +Abu-l-Feda concorda com elles. «Na Egira de +500―diz Abu-l-Feda―morreu Iussuf-Ibn-Tachfin, +<em>amir al-moslemin</em>. Succedeu-lhe Aly +seu filho +(Aly-Ibn-Iussuf) que tomou o titulo de <em>amir +al-moslemin</em>, como seu pae<sup><a href="#f53">[53]</a></sup>.» +<br /> + +<br /> + +Resta apontar o que resulta da narrativa do +principal historiador arabe do dominio mussulmano +<span class="pagenum"><a name="p202" id="p202">[202]</a></span> +Peninsula, Al-Makkari, ácerca da dynastia +almoravide:<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 50%;">1.º +Iussuf-Ibn-Tachfin</td> + + <td style="width: 25%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right; width: 20%;">1052 a +1106</td> + + <td style="width: 5%;"></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>2.º +Aly-Ibn-Iussuf</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">1106 a 1143</td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>3.º +Tachfin-Ibn-Aly</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">1143 a 1145</td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>4.º +Abu-Ishak-Ibrahim-Ibn-Tachfin</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">1145 a 1147</td> + + <td><sup><a href="#f54">[54]</a></sup></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +Que tal parece ao meu amigo a erudição arabica +da parte sarracena da nossa Academia? +<br /> + +<br /> + +Nos arabes vê-se que se encontra exactamente +o contrario do que se lê no opusculo. Certamente +o auctor descubriu essa deliciosa historia dos +almoravides, que nos conta, nos escriptores +christãos coevos ou quasi coevos. Sempre era +gente que se confessava. Mouro e judeu mentem +por officio. Vejamos: +<br /> + +<br /> + +A chronica dos godos nas suas referencias aos +imperadores almoravides: +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 30%;">1.º +Iussuf</td> + + <td style="width: 10%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">(batalha de Zalaka)</td> + + <td>1085 aliàs 1086</td> + + </tr> + + <tr> + + <td>2.º Aly-Ibn-Iussuf</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">(cerco de +Coimbra)</td> + + <td>1117<sup><a href="#f55">[55]</a></sup></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<span class="pagenum">[203]</span> +<br /> + +A conimbricense: +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 15%;">2.º Aly</td> + + <td style="width: 45%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right; width: 40%;">(cerco de +Coimbra) 1117<sup><a href="#f56">[56]</a></sup></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +Rodrigo de Toledo, o escriptor do seculo XIII +mais instruido na litteratura arabe e christã da +Peninsula, estabelece para a dynastia almoravide +d'Africa e de Hespanha, que diz ter durado 55 +annos desde a Egira 484 até a Egira 539, a seguinte +chronologia: +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="width: 65%;">1.º +Iussuf-Ibn-Tachfin +(principio da dynastia)</td> + + <td style="width: 20%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">1091-2</td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>2.º Aly-Ibn-Iussuf</td> + + <td></td> + + <td></td> + + <td></td> + + </tr> + + <tr> + + <td>3.º Tachfin-Ibn-Aly (fim da +dynastia)</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;">1144-5</td> + + <td><sup><a href="#f57">[57]</a></sup></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +Ao <em>digno</em> academico restam talvez +para estribar +as suas famosas historias +<em>almoraviditicas</em> (na +falta de arabes e christãos) alguns historiadores +tartaros, mongoles, ou chinas. +<br /> + +<br /> + +É provavel que seja assim. +<br /> + +<br /> + +Perdôe, meu amigo, estas extensas +citações. +Era necessario dar uma prova, que não admittisse +subterfugios, dos deploraveis, por não dizer +vergonhosos, extremos a que o desejo de me +combater tem levado certas pessoas. +<span class="pagenum">[204]</span> +<br /> + +<br /> + +O auctor do opusculo negou, com a mesma +sem cerimonia com que transtornou a serie dos +imperadores, que o Mahadi ou Al-mohdi (Mohammed-Ibn-Tiumarta) +começasse a revolução almohade +no reinado de Aly, e que nos ultimos annos +deste reinado, isto é, na epocha da batalha ou +recontro de Ourique, essa revolução houvesse +tomado um incremento irresistivel. Todavia são +os mesmos escriptores arabes que contam o successo +como eu o narrei: conta-o o proprio Abdel-halim, +em que elle finge estribar-se com uma +citação <em>falsa</em>; +<em>falsa</em>, digo, porque tanta +confusão +involuntaria é moralmente impossivel. A narrativa +de Abdel-halim é, que em 1120 appareceu +o Mahadi; que de 1122 a 1125 já se achava com +forças para vir assentar campo perto de Marrocos; +que, tendo fallecido em 1130, tomou o commando +dos almohades Abdel-mumen, o qual foi acclamado +imperador em 1133, continuando guerra +incessante contra os almoravides até os destruir<sup><a href="#f58">[58]</a></sup>. +É elle que, depois de narrar as victorias de Tachfin-Ibn-Aly +contra os christãos desde 1126 +até 1137, refere que logo passara á Africa<sup><a href="#f59">[59]</a></sup>. +<span class="pagenum">[205]</span> +Conde diz-nos que fora chamado por seu pae +ameaçado da ultima ruina<sup><a href="#f60">[60]</a></sup>. +Habil e feliz general +contra os christãos, esta causa da sua partida +parece confirmada, não só pela razão, +mas +tambem pelo texto de Al-Khatib<sup><a href="#f61">[61]</a></sup>. +Um monumento +christão, escripto por individuo do mesmo +seculo, a <em>Chronica Adefonsi +Imperatoris</em>, +confirma e particularisa o facto. Narrando os successos +de 1138, diz que Tachfin levara comsigo, +retirando-se para a Africa, até os mosarabes e os +prisioneiros christãos para os oppôr aos +almohades<sup><a href="#f62">[62]</a></sup>. +Deixaria acaso em Hespanha a flor das tropas +almoravides, quando a defesa de Marrocos o +obrigava a converter em soldados os proprios nazarenos +captivos? Destroem-se estes factos com +citações falsas? Como se explica o abandono +d'Aurelia, suppondo a existencia de uma grande +batalha dada (exactamente na conjunctura do cerco) +no occidente da Peninsula entre almoravides +e portugueses, quando de Africa se não dispensava +um soldado para a salvação d'aquella chave +da fronteira musulmana? Que se póde dizer que +<span class="pagenum">[206]</span> +tenha um vislumbre de senso commum contra o +que a este proposito reflecti? +<br /> + +<br /> + +Quem dá documentos de má fé? Sou eu ou +os +meus adversarios? +<br /> + +<br /> + +Ia-me irritando! Em boa paz, o nosso academico +arabe não vale a pena disso. +<br /> + +<br /> + +Depois d'estas façanhas, o auctor do opusculo +prosegue com accusações curiosissimas. Fora +extenso de mais citá-las todas. Uma d'ellas é que +chamo á serie dos imperadores almoravides +<em>dynastia +lamtunense</em> para explicar o apparecimento +das mulheres no recontro de Ourique, e para +taxar de covardes os mesmos almoravides. O auctor +faz a mercê de dizer-me que o vocabulo +<em>lamtunense, +ou antes almolatamenense</em>, não serve +para indicar covardia. Devéras? E eu que não +caía em nada! Isto é incrivel, amigo redactor da +<em>Semana</em>. Digo mais: era impossivel +haver quem +fizesse d'estas, se não houvesse academias. Chamei +aos principes almoravides <em>dynastia +lamtunense</em>, +ou <em>lamtunita</em>, porque todos os +historiadores +arabes, Ibn-Khaldun, Abdel-halim, Al-Makkari, +Al-Khatib, Al-Keiruani, lh'o chamam, e chamam-lh'o +para indicar valentia ou covardia tanto +como eu. Chamam-lh'o porque, entre as raças +bereberes que serviram de nucleo ao imperio almoravide, +<span class="pagenum">[207]</span> +a de Lamtuna ou Lamta<sup><a href="#f63">[63]</a></sup> +era a principal, +e porque Iussuf, o primeiro imperador almoravide, +era da tribu de Masufah pertencente a +essa raça. Aquella phrase do opusculo +«<em>ou antes +almolatamenense</em>», é deliciosa. +Como o nosso +arabista precisava de mostrar a sua pobre +erudição, +fez pouco mais ou menos este raciocinio: +«o auctor da Historia de Portugal denomina os +principes almoravides <em>lamtunenses</em>; +eu digo-lhe, +<em>ex auctoritate qua fungor</em> que era +melhor chamar-lhes +<em>almolatamenenses</em>»: ora +como esta denominação +provinha de terem os almoravides cuberto +o rosto com veus de mulheres n'uma batalha, +e possa crer-se um epigramma contra o seu +esforço, embora elle não usasse de tal vocabulo, +devia usar, para eu poder reprehendê-lo por isso; +porque é uma violencia negar a um pobre escholar +arabico a occasião de mostrar +erudições +<em>reconditas</em>. +Sabe o meu amigo o que isto faz lembrar? +Faz lembrar o prégador que punha o barrete na +borda do pulpito, encarregava-o do papel do +diabo, e depois convencia-o á sua vontade. Vamos +<span class="pagenum">[208]</span> +a outro exemplo. No opusculo mourisco +affirma-se contra mim: +<br /> + +<br /> + +Que os principes almoravides usaram do titulo +de <em>amir-el-muminin</em><sup><a href="#f64">[64]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +A prova disto é curiosa, como tudo o mais. Os +almoravides usaram-no, segundo o opusculo sarraceno, +porque Abdel-halim diz que foi usado +duzentos annos antes pelos Benu-Umeyyah (ommiadas) +soberanos arabes de Cordova. Não o diz +Abdel-halim; di-lo toda a gente; mas que tem o +que fizeram os ommiadas com o que fizeram os +almoravides? Isto, meu amigo, é incrivel! Acima +transcrevi uma passagem de Abu-l-Feda, pela +qual se vê que o titulo dos soberanos lamtunenses +era <em>amir-al-moslémin</em> +(principe dos mussulmanos). +Ouçamos agora o sr. Gayangos: «Não +consta da historia―diz elle―que Iussuf-Ibn-Tachfin +ou algum dos seus successores tomasse +nunca o titulo de <em>Amiru-l-muminin</em>, +que era reservado +para o khalifa, ou vigario do propheta no +<span class="pagenum">[209]</span> +oriente. Contentaram-se pelo contrario, ao que +parece, com o titulo mais modesto de +<em>Amiru-l-muslemin</em>, +ou <em>principe dos moslems</em> (de Africa e +de +Hespanha). Os proprios sultões de Cordova, postoque +descendentes do tronco dos Benu-Umeyyah, +e tão intimamente ligados com a familia do propheta, +não se atreveram a tomar este titulo honorifico +emquanto a familia de Abbás não chegou a +ser quasi extincta na Asia pelos turcos; e ainda +assim, o uso desse titulo foi reputado sacrilego +por alguns theologos de Cordova e d'outras cidades +da Peninsula<sup><a href="#f65">[65]</a></sup>». +Effectivamente Abu-l-Feda +nos certifica que Abderrahman III «foi o primeiro +entre os principes ommiadicos do Andalus +que se arrogou o titulo de <em>amir-al-muminin proprio +do Khalifa</em><sup><a href="#f66">[66]</a></sup>.» +<br /> + +<br /> + +Isto não são citações +falsas. Por ellas póde ver +o meu amigo com quanta exacção eu escrevi +ácerca dos almoravides, embora não fosse esse o +objecto essencial do meu trabalho, e com quanta +leveza foi escripto o opusculo sarraceno destinado +a refutar-me. Não fica, porém, aqui o negocio. +<span class="pagenum">[210]</span> +O academico auctor do opusculo accusa-me +de ignorancia da lingua arabe e de historia por +dizer que os principes da dynastia almohade adoptaram +o titulo de khalifa ou de +<em>amir-al-muminin</em>, +porque, diz elle, o de khalifa só se deu aos imperadores +do oriente, e estas palavras khalifa +e amir-al-muminin significam diversas cousas. +Agradeço a ultima novidade; mas eu não escrevia +grammatica; escrevia historia, e, politicamente, +as duas expressões eram synonimas. Que +se pensaria de quem accusasse d'ignorancia de +grammatica e de historia aquelle que, falando do +imperador da Russia, dissesse «<em>o czar ou +autocrata</em>?» +Por outra parte para o academico auctor +do opusculo affirmar que o titulo de khalifa se deu +ou não se deu aos principes mussulmanos do occidente, +ainda tem que estudar muito a historia +moslemica d'Africa e de Hespanha, cujos rudimentos +parece ignorar. Se ler o capitulo 5 do livro +6 d'Al-Makkari, ahi achará que o imperador +ommiada de Cordova Abderrahmam III «foi o +primeiro soberano da sua familia que assumiu <em>os +titulos de khalifa e de amiru-l-muminin</em>». +Se tambem +quizer saber se os principes almohades tomaram +ou não o titulo de khalifas, leia Al-Keiruani, +e lá achará este periodo: «El-Mohdi +<em>elevou</em> +<span class="pagenum">[211]</span> +<em>o khalifado</em> para os que lhe +succederam<sup><a href="#f67">[67]</a></sup>», +e mais +adiante, onde se conta certa anecdota do primeiro +imperador almohade, Abd-el-mumen, lerá que +um poeta da côrte dizia a outro: «Até +quando +importunarás tu <em>o +khalifa</em>?»; porque é de advertir +que naquelle tempo havia poetas impertinentes, +como hoje ha criticos academicamente +originaes. +<br /> + +<br /> + +Mas, em consciencia, meu amigo, eu ás vezes +merecia ser feito socio effectivo da classe de +sciencias moraes e bellas-letras! Pois ha simpleza +maior do que citar ao auctor do opusculo sarraceno +tanta mourisma, quando o proprio Abdel-halim, +que, segundo parece, constitue toda a +matalotagem arabica do <em>digno</em> +academico, se lhe +rebella e tumultua dentro do bornal litterario +em que o traz mettido? E senão, ouçamo-lo. As +palavras mandadas ensinar ao leão e ao papagaio, +de que Abdel-mumen se serviu para os almohades +o acclamarem imperador, traduzidas +por Moura na sua versão de Abdel-halim, são +«<em>as victorias e o poder competem ao califa +Abdelmumen</em><sup><a href="#f68">[68]</a></sup>». +<span class="pagenum">[212]</span> +É verdade que o auctor do folheto, +que repete a historia do leão e do papagaio, +não sei para me provar o que, traduz, em +logar de <em>califa</em>, +<em>successor</em>. Mas aqui para +nós, +meu amigo, postoque eu não saiba arabe, apostava +que isso foi uma esperteza, e que naquella +expressão <em>algalifatu</em> (ou, +como Moura lê, <em>el-califa</em>) +anda o que quer que seja de <em>khalifa</em>. +<br /> + +<br /> + +Estou com pressa de chegar ao fim, porque +temo fazer uma carta tamanha como o opusculo, +o que seria para o publico, em vez de uma desgraça, +duas. Mas faltou-me o animo quando fui a +saltar por cima do precioso paragrapho 8, que o +auctor destinou para me provar que Ourique não é +nome proprio de logar, como eu disse, mas sim appellativo, +que significa <em>adversidade</em> ou +<em>infortunio</em>. +<br /> + +<br /> + +Sou, porém, nesta parte absolvido do peccado, +porque quem me deitou a perder foi o padre +Moura, conforme resa o folheto. Ao menos, +valha-nos isso! A consequencia, todavia, immediata +deste importante descubrimento, que o digno +academico fez, é exactamente a contraria da +que elle desejava. Se assim é, torna-se impossivel +<span class="pagenum">[213]</span> +achar jámais uma passagem de auctor arabe +que se refira com certeza ao conflicto de Ourique. +Embora até aqui não tenha apparecido essa +passagem, podia ainda apparecer; mas desde +que a palavra ourique (tirei-lhe o <em>O</em> +maiusculo, +não pensem que teimo em fazê-la nome proprio) +significa só <em>adversidade</em> +ou <em>infortunio</em>, o caso +muda de figura. O combate que Affonso I teve, +no fossado de julho de 1139, com os mouros +do Alemtéjo é um facto provado pelos testimunhos +que eu colligi; o que não está provado, +nem se ha de provar nunca, é que elle fosse um +successo importante. N'algum escriptor arabe, +ainda inedito, que particularisasse muito os +acontecimentos de Hespanha naquella epocha podia +vir mencionado o recontro do <em>campo de +Ourique</em>; +mas como o auctor do opusculo não +consente que esse pobre <em>o</em> tome as +dimensões de +letra maiuscula, qualquer passagem que appareça +ha de ser traduzida pelos arabistas da seguinte +maneira: «Houve em 1139 um combate entre +os moslems e os infieis <em>no campo da adversidade +ou do infortunio</em>». Ora como nesse anno, do +mesmo modo que nos antecedentes e consequentes, +houve muitos recontros entre os christãos +e os mussulmanos, segue-se que não saberemos +<span class="pagenum">[214]</span> +a que conflicto allude o auctor arabe; +porque todos os campos de combate são de adversidade +ou infortunio para um dos contendores, +e talvez para ambos. Realmente este modo +de defender a importancia da batalha de Ourique +é galantissimo. +<br /> + +<br /> + +O que, porém, é verdadeiramente academico +e digno do pincel de Molière é o que pondera o +auctor do folheto sobre o erro de Moura ácerca +da etymologia de Ourique. «É bem clara―diz +elle―<em>ainda para os que não sabem +arabe</em>, a +nenhuma analogia que se nota <em>com o +ouvido</em> +entre <em>orique</em> e +<em>arique</em>». Agora, quer o meu +amigo saber com que palavra arabe +<em>orique</em> se parece +muito? É com <em>araka</em>. Isto +não precisa de +commentario. Nas contendas dos nossos rapazes +ácerca da Stoltz e da Novello, quem devia dar a +sentença definitiva era o illustre arabista. Proponham +a questão á Academia. +<br /> + +<br /> + +Mas a cousa mais sublime, talvez, de todo o +folheto vem neste mesmo paragrapho. É uma +novidade que escapou a todos os etymologistas +e ethnographos. Na translação das palavras de +umas linguas para as outras, ellas se transfiguram +com a irregularidade que necessariamente +resulta da ignorancia das multidões, que são +<span class="pagenum">[215]</span> +quem ordinariamente faz essas adopções de termos +peregrinos. As proprias transformações das +linguas são assim, e assim foi que a latina se +transformou nos modernos idiomas da Europa +occidental. Nestas mudanças e adopções +não ha +letra que não possa alterar-se; e basta ter uns +rudimentos de linguistica para não o ignorar. +Agora ouça o meu amigo um mysterio da lingua +arabe: «Moura―diz o opusculo―foi buscar a +raiz de tal vocabulo no verbo <em>araka</em>, +cuja primeira +letra radical, que é um <em>alif, +não soffre a conversão</em> +para a letra <em>o</em> nas linguas +europeas». Isto +quer dizer que aos rudes portugueses do seculo +XII, que escorchavam sem piedade quantas letras, +quantas palavras celticas, phenicias, gregas, +romanas, germanicas lhes caíam nas unhas, +era prohibido tocar no <em>alif</em>, especie +de <em>noli-me-tangere</em> +arabico. Certamente, meu amigo, no alcorão +ha uma sura intitulada «<em>Dos escorchamentos +etymologicos</em>» onde o propheta diz: +«Todo o +infiel nazareno que bulir na sancta letra +<em>alif</em> para +della engenhar um dos seus maldictos +<em>ós</em>, vai preso». +Foram peccados meus que me impediram +d'aprender arabe: teria com isso evitado deixar-me +embair por aquelle herege do padre Moura, +que pelo que vejo, era um pessimo sarraceno. +<span class="pagenum">[216]</span> +<br /> + +<br /> + +Depois vem uma longa chicana (perdoe, meu +amigo, o gallicismo, mas como isto ha de ser lido +pelo digno academico arabista membro da classe +de sciencias moraes e bellas-letras, elle entenderá +assim melhor a phrase); vem uma longa chicana +sobre as palavras <em>fossado</em>, +<em>correria</em>, +<em>entrada</em>, e +não sei que mais, em que o auctor desenvolve +uma erudição pasmosa em diccionario de Moraes. +Chamei fossado á expedição de Affonso +I em +1139, porque todas as etymologias do mundo não +podem fazer com que uma cousa deixe de ser o +que é. O fossado era uma expedição que +se fazia em +regra todos os annos no começo do verão +ás terras +inimigas: questionar sobre isto não sería mais +do que mostrar-se profundamente ignorante das +nossas cousas antigas. <em>Correria</em> +é um nome que +cabe ao fossado tão bem como +<em>expedição</em>; +porque +correria é uma especie do genero +expedição, mais +nada. Quem faz uma expedição, fossado, ou +correria +no territorio inimigo, entra nelle (emquanto +o alcorão ou a Academia não mandarem o contrario) +e por consequencia faz uma <em>entrada</em>. +Não é +uma miseria, além disso, affirmar-se n'um papel +que tem a pretensão de ser cousa séria, que +eu me contradigo, porque, chamando correria ao +fossado de 1139, exprimo ao mesmo tempo a +<span class="pagenum">[217]</span> +idéa de que os mussulmanos hespanhoes buscaram +em si proprios recursos para atalhar o passo +aos invasores na falta das tropas almoravides, +visto que (diz-se ahi), sendo a correria um acto +repentino, os mussulmanos não podiam precaver-se? +Que resposta séria se póde dar a isto? +Fique-se entendendo que quando um paiz é invadido +rapidamente, os habitantes deixam-se matar +como carneiros e não se unem para se defenderem, +ou que os soldados que fazem correrias, +não andam, mas voam, ou vão em aerostatos descer +aonde e quando querem sem que ninguem os +veja passar. Dizer que no fossado de Ourique não +houve audacia, a ser como eu o narrei, embora +as tropas almoravides, ou a melhoria dellas, faltassem, +é cousa tão absurda, quanto é certo +que +essa expedição importava uma longa marcha de +cincoenta leguas (que tantas irão de Coimbra ao +campo de Ourique) quasi toda por paiz inimigo, +porque, como bem observa a chronica dos godos, +Ourique ficava <em>no coração das +terras mussulmanas</em>. +Qualquer cabo de esquadra sabe que difficuldades +se offerecem á marcha de tropas, embora +disciplinadas (como de certo não eram as de Affonso +I) atravez de um paiz excitado contra essas +tropas pelo fanatismo politico e religioso. O principe +<span class="pagenum">[218]</span> +português deixava, além disso, na sua retaguarda, +por um e por outro lado, logares importantes +fortificados, e bem ou mal guarnecidos, +taes como Santarem, Lisboa, Alcacer, Elvas, +Evora, etc.; o que tornava a volta de Affonso I +aos proprios estados duplicadamente arriscada. +Emfim, meu amigo, eu deixo nesta parte aos homens +intelligentes avaliar se o fossado de Ourique, +com as poucas circumstancias que delle +sabemos, embora não tivesse as dimensões que +lhe attribuiram depois, foi ou não foi um acto de +bastante ousadia. +<br /> + +<br /> + +De passagem, meu amigo, deixe-me protestar +contra um falso testimunho que me levanta o +auctor do opusculo, quando, citando textualmente +as minhas palavras, me attribue o uso do +vocabulo <em>derrota</em> por +<em>destroço</em> ou +<em>desbarato</em> (dos +sarracenos em Ourique). Não escrevi o meu livro +para se inserir nas actas da Academia: escrevi-o +para o publico português, e por isso na +sua lingua, ao menos até onde eu a sabía. +<br /> + +<br /> + +Vamos á questão principal. Para a tractar +não +me parece que fosse necessario accumular previamente +tanta inexacção e tanto desproposito. +Eu tinha affirmado que os diversos escriptores +arabes que nos transmittiram a historia daquella +<span class="pagenum">[219]</span> +epocha guardaram silencio ácerca da batalha de +Ourique. O auctor do opusculo sarraceno firma +a proposição +<em>contraria</em>, isto é, que +nesses diversos +escriptores arabes se encontram, não só +vestigios della, mas tambem a sua +<em>descripção</em>, +e as suas <em>consequencias terriveis</em>. +<br /> + +<br /> + +Algum de nós, pois, engana o publico; algum +de nós commette uma acção indigna de +homens +de letras affirmando uma cousa opposta á verdade. +Eu consultei os historiadores arabes que +escreveram a historia do dominio mussulmano +na Peninsula, e que estão traduzidos. Era essa +unicamente a minha obrigação, porque +não sei +arabe. O auctor do opusculo <em>devia</em> +tê-los visto +antes de escrever, e <em>podia</em> ter lido +outros, porque +diz que sabe arabe. Se a minha narrativa +fosse conforme com os primeiros comparados +com os monumentos christãos, e o auctor achasse +que esses não-traduzidos os desmentiam, devia +provar que o seu testimunho era preferivel +ao delles e ao dos monumentos christãos, +sendo accordes uns com outros. Sem isso nada +tinha feito. Ora eu estribei-me na narrativa de +Abdel-halim, como a haviam vertido Moura e +Conde, e esta narrativa concorda em geral com +a chronica latina de Affonso VII, escripta ainda +<span class="pagenum">[220]</span> +no seculo XII ou nos começos do XIII. Das +tres fontes historicas resulta ou não resulta o +que eu disse? Resulta ou não resulta, que antes +de julho de 1139 Tachfin-Ibn-Aly tinha partido +para Africa, levando comsigo as tropas +que pôde, sem exceptuar os mosarabes e os captivos +christãos? É verdade que o cerco de Aurelia +ou Cazorla durou <em>de abril a setembro ou +outubro</em><sup><a href="#f69">[69]</a></sup>? +É verdade que os seus +defensores pediram +debalde soccorro a Tachfin, <em>que se achava +então em Africa</em>? São, portanto, +bem deduzidas +as minhas inferencias de que é absurdo imaginar +que havia trezentos ou quatrocentos mil mouros +para saltarem por cima do exercito do imperador +Affonso VII, e virem dar uma batalha campal a +Affonso Henriques, e não os havia para descercarem +uma praça daquella importancia? É para +responder negativamente a estas perguntas de um +modo tão categorico como eu as faço, que desafio +o auctor do opusculo sarraceno. +<br /> + +<br /> + +Ao que se colhe dos monumentos christãos e +mussulmanos coevos ou quasi coevos<sup><a href="#f70">[70]</a></sup> +que textos +<span class="pagenum">[221]</span> +exquisitos e reconditos vem, porém, oppôr +o <em>digno</em> academico? Vejamos: +<br /> + +<br /> + +Um mouro chamado Hamed-el-Nabil, <em>que viveu +no principio do seculo</em> XVII, vindo a Hespanha, +escreveu um itinerario. Nelle diz, falando da +epocha em que succedeu o caso d'Ourique, as +palavras seguintes, que vou transcrever, porque +gósto de apresentar o corpo de delicto: +<br /> + +<br /> + +«E dizem alguns dos sabios precedentes +<em>sobre</em> +o governo da Andaluzia (<em>sic</em>) que +ella muito se +engrandeceu: <em>e na verdade conquistou com boa +posse</em> (<em>sic</em>) muitos +dos logares <em>os</em> +(<em>sic</em>) mais notaveis: +e foi isto depois que l'Enrick +<em>derrotou</em> os +mussulmanos; (<em>sic</em>) não +persistiram estes depois +disso no paiz senão quando obravam pacificamente; +e <em>por isso</em> +(<em>sic</em>) ficaram os +christãos neste +paiz senhores de suas terras e de suas riquezas +(<em>sic</em>), +(<em>sic</em>), +(<em>sic</em>).» +<br /> + +<br /> + +O meu amigo ha de ficar espantado quando +souber que nesta salsada, que até certo ponto +simula lingua portuguesa, ha, <em>não +só claros vestigios</em> +da batalha de Ourique, mas tambem a +<em>descripção</em> +<span class="pagenum">[222]</span> +<em>della e das suas consequencias</em>. Pois +saiba +que ha. Saiba tambem que, um ou dous mezes +antes de se imprimir o opusculo sarraceno, +se dizia pelos cantos, que na Academia se lera +uma cousa mourisca, que excitara o enthusiasmo +d'alguns daquelles padres-conscriptos, porque +ahi se me provava com textos arabes que eu +não soubera o que tinha dicto quando falei com +tanta irreverencia e falta de patriotismo nesse +facto d'Ourique. Rogia-se de um papel achado +n'uma tenda de Marrocos, que desmanchava todas +as minhas opiniões aereas. No fim de contas +era o sr. Hamed, que no principio do seculo XVII +tinha escripto em mouro o que o meu amigo ahi +vê em meio-mouro. Realmente a cousa é +séria, +sobretudo exornada com as erudições e +commentarios +do traductor, a quem Deus dê alguma +inclinação mais proveitosa do que esta de +traduzir +para lingua franca os itinerarios dos viajantes +marroquinos. +<br /> + +<br /> + +Pretende-se nesses commentarios que o mouro +Hamed, na phrase relativa a l'Enrik (que é +possivel seja Affonso Henriques) se refira aos +<span class="pagenum">[223]</span> +mesmos escriptores a quem, sob o nome de sabios +precedentes, allude no principio do periodo, +e que por sabios precedentes se devem entender +antigos escriptores sarracenos, porque os arabes +servem-se da palavra +<em>ulmá-i</em> para significarem +os <em>seus</em> historiadores. Vamos por +partes. Se o +sr. Hamed escreveu <em>sabios +precedentes</em>, é porque +já tinha dicto quem elles eram: nesse caso, +em vez de uma dissertação ácerca da +palavra <em>ulmá-i</em>, +não seria mais simples e mais a proposito +dizer-nos o traductor os nomes delles? Teriamos +a Bibliotheca de Haji-Khalfah traduzida por +Fluegel; teriamos a Bibliotheca de Casiri; teriamos +as notas de sr. Gayangos á versão de Al-Makkari, +notas preciosas como fonte de erudição +arabica; teriamos, emfim, estes ou outros +recursos para sabermos que importancia deveriamos +dar aos <em>sabios precedentes</em> como +auctoridades +para os successos do seculo XII, que era o +que importava. Hamed ou trinta Hameds, que +vivessem em tempos modernos ou houvessem +vindo a Hespanha e repetissem o que por cá tivessem +ouvido ácerca do recontro d'Ourique ou +de outra qualquer cousa succedida 400 ou 500 +annos antes, provariam tanto a favor della como +a <em>precedente</em> +traducção prova que o auctor do +<span class="pagenum">[224]</span> +opusculo sabe grammatica e conhece a indole da +nossa lingua. Suppondo, porém, que Hamed se +refira no principio do periodo a historiadores +arabes, e que esses historiadores sejam assaz +antigos, o que é certo é que a phrase relativa a +l'Enrik não é dos taes <em>sabios +precedentes</em>, mas +do proprio Hamed-el-Nabil. Creio que o meu +amigo sabe bastante da lingua franca para ver +que desde as palavras «<em>e na +verdade</em>» não são +os <em>sabios precedentes</em>, mas sim o +proprio Hamed, +em corpo e alma, quem fala; quem parece +querer confirmar com o seu testimunho o dicto +delles, se é possivel perceber aquelle +<em>imbroglio</em> +que o traductor alli arranjou. Mas a curiosidade +maior é que o proprio texto está provando que +Hamed, longe de alludir ao facto d'Ourique ou a +facto algum especial, se refere em geral ás victorias +e conquistas de Affonso I, (se é que se refere +a isto) as quaes ninguem contesta, e que eu +particularisei com a miudeza e exacção, a que os +<em>sabios precedentes</em>, os +<em>ulmá-i</em> da nossa terra, +não tinham chegado. Se Hamed se referisse a +Ourique falando do desbarato dos mussulmanos +por l'Enrik, tudo o mais que vem na passagem +seria um rol de mentiras; porque as consequencias +materiaes desse recontro foram nenhumas. +<span class="pagenum">[225]</span> +Como já disse, Affonso Henriques voltou aos +seus estados sem conquistar um palmo de terra, +e foi annos depois que submetteu a Estremadura +e o Alemtéjo, ficando no paiz os mussulmanos +que curvaram a cabeça ao jugo christão. +<br /> + +<br /> + +Aqui tem o bom redactor da <em>Semana</em> o +que é +e o que vale o papel da tenda de Marrocos, que +devia vir pulverisar o que eu escrevi firmado nos +monumentos coevos, e em argumentos de congruencia +irresistiveis. É o dicto vago e obscuro de +um viajante moderno, dicto que se torce para se +fazer com que o pobre mouro diga aquillo em +que nem sequer pensou. Que terra esta nossa, +meu amigo, em que o auctor de um livro serio é +ás vezes obrigado a acceitar o triste encargo de +refutar taes miserias! +<br /> + +<br /> + +O famoso texto do viajante marroquino é reforçado +com um contraforte tirado do Abdel-halim +do uso particular do auctor do opusculo; digo +do uso particular, porque nem em Conde, nem +em Moura se encontra semelhante passagem, nem +no logar indicado, nem em outro qualquer. Vamos +ver o texto <em>inedito</em> de Assaleh ou de +Ibn-Abi-Zara, +que o meu critico trouxe á luz do dia: +<br /> + +<br /> + +«E neste anno 533 (8 de septembro de 1138 +a 27 d'agosto de 1139) desbaratou o general Taxefin +<span class="pagenum">[226]</span> +as multidões dos christãos <em>nos +campos de +Attibbat</em>; e fez perecer delles um numero +extraordinario; +e levou de seus prisioneiros <em>seis mil captivos: +em consequencia do que</em> partiu para Marrocos, +e á sua chegada <em>lhe saiu ao encontro seu +pae</em>, o imperador dos mussulmanos, +<em>que ficou em +profundo desgosto e cheio de grande susto</em>.» +<br /> + +<br /> + +No capitulo 33 do Karttás traduzido pelo padre +Moura não vem esta passagem. Entretanto não +devo crer que o auctor do opusculo a inventásse. +Cumpre suppôr que elle se serviu de algum +exemplar mutilado, viciado, ou extremamente +incorrecto da obra de Abdel-halim. Na versão de +Moura é no capitulo 40 que se contém as ultimas +acções do Tachfin na Hespanha, antes de partir +para a Africa. Eis o que ella nos diz: +<br /> + +<br /> + +«No anno 532 (19 de septembro de 1137 a 7 +de septembro de 1138) passou o principe Taxefin +de Hespanha para a Mauritania, depois do ter +combatido e tomado de assalto <em>a cidade de +Segovia</em>, +levando comsigo <em>seis mil captivos</em>; e +tendo +chegado a Marrocos <em>veio seu pae +encontrá-lo</em> com +grande pompa e <em>se alegrou com elle</em>, +etc.<sup><a href="#f71">[71]</a></sup>.» +<br /> + +<br /> + +As duas passagens são, se não identicas, por +<span class="pagenum">[227]</span> +certo parallelas. Tracta-se em ambas da partida de +Tachfin para a Africa, depois de obtido um triumpho +em que captivou seis mil homens. A differença +está nas circumstancias, e <em>na +data</em>. Qual dessas +se deve preferir? Vejamos. +<br /> + +<br /> + +Conde refere a partida de Tachfin menos precisamente: +mas põe-na como immediata á +reducção +de Cuenca, a qual fixa em 531 (29 de septembro +de 1136 a 18 de septembro de 1137) e assim +concorda com Assaleh quanto ao anno da partida, +visto que, se Cuenca fosse reduzida nos fins +de 531, a saída do principe almoradive para a +Africa devia verificar-se já em 532, isto é, nos +fins de 1137 ou nos principios de 1138. +<br /> + +<br /> + +Com esta data concorda o auctor da chronica +de Affonso VII, mencionando a partida de Tachfin +para além-mar entre os successos de 1138, e descrevendo +a mensagem que lhe enviaram á Africa +os defensores de Aurelia durante o cerco posto a +esse castello por Affonso VII <em>em abril +de</em> 1139. +O chronista christão vai de accordo na chronologia +com os historiadores arabes sem os conhecer, +e limitando-se a narrar os factos que <em>ouvira +ás +pessoas que os tinham presenciado</em><sup><a href="#f72">[72]</a></sup>. +<span class="pagenum">[228]</span> +<br /> + +<br /> + +Não quero suppôr, torno a repetir, que o auctor +do opusculo forjasse a passagem que cita, +ou que alterasse a data da hegira para provar que +Tachfin estava em Hespanha em julho de 1139. +N'uma questão em que se tem procurado associar +á idéa de que caí n'um erro historico +a de +que tive em mira deshonrar o meu paiz, tal procedimento +fora duplicadamente torpe. Todavia o +<em>digno</em> academico ainda assim tem +d'escolher entre +a ignorancia e a má fé. Se conhecia a chronica +de Affonso VII, a narrativa de Conde e a versão +de Assaleh por Moura, tinha que fazer duas cousas: +primeira, provar que essas auctoridades em +que eu me estribava eram insufficientes; segunda, +mostrar que o seu manuscripto tinha uma +importancia, uma auctoridade tal, que as annullava. +Onde o fez? Como o fez? Acaso só porque +se mandaram escrever n'uma pedra lithographica +uns poucos de caracteres arabicos ou o que quer +que seja, provou-se que as palavras que resultam +da sua união são indubitaveis como o evangelho, +ou sequer que é preferivel a leitura do codice de +que se tiraram á leitura de codices já conhecidos +e traduzidos por outros arabistas, que pelo +menos sabiam tanto arabe como o auctor do opusculo? +<span class="pagenum">[229]</span> +<br /> + +<br /> + +Á vista destas simples e claras reflexões, o +texto de Abdel-halim citado pelo digno academico +vale tanto e prova tanto como o de Hamed-el-Nabil. +Eu, porém, acceito-o por um momento. +Vamos a discuti-lo em si. +<br /> + +<br /> + +Que diz o tal texto? Que Tachfin desbaratou no +campo da total destruição (Attibbat) as +multidões +dos christãos; que aprisionou seis mil homens, +e que partiu para Marrocos, com o que seu pae +ficou cheio de desgosto e de susto. Onde se fala +aqui em Ourique? Para entender +<em>Ourique</em> por +<em>Attibbat</em> o auctor faz o seguinte +raciocinio:―«a +batalha de Ourique foi de <em>total +destruição</em> para os +mussulmanos, logo <em>Attibbat</em> +é Ourique:»―e querendo +provar que o recontro de Ourique foi uma +grande batalha, faz outro raciocinio do mesmo +jaez:―«Attibbat quer dizer Ourique, logo em +Ourique houve uma <em>total +destruição</em>.»―Todos +os argumentos, todas as erudições do folheto +nesta parte, embora por outras phrases, reduzem-se +a isso; reduzem-se a duas petições de +principio. Depois, não é admiravel o desgosto +e susto de Aly-Ibn-Iussuf vendo seu filho voltar +á Africa depois de uma victoria em que desbarata +os christãos, mata muitos, e leva seis +mil captivos? Felizmente para Aly, Tachfin não +<span class="pagenum">[230]</span> +levou, em vez de seis, doze mil captivos, e não +deixou o resto passado inteiramente á espada. +Se tal acontece, o pobre amir el-moslemin caía +fulminado por uma apoplexia. Até o auctor do +opusculo achou a cousa absurda. Mas como saíu +da difficuldade? Dizendo-nos que o texto arabe +tanto póde significar «<em>Tachfin +desbaratou os +christãos</em>» como +«<em>os christãos desbarataram +Tachfin</em>.» +Estava eu tão desgostoso por não saber +arabe como o velho Aly por seu filho ganhar victorias, +quando veio esta declaração consolar-me. +A historia é impossivel na lingua arabe; porque +a mesma phrase significa branco e significa +preto; exprime os dous factos mais oppostos. +Os traductores de historias sarracenas tem andado +a debicar com a Europa: onde dizem que tal +batalha foi ganhada por A contra B, podiam ter +dicto com a mesma veracidade que fora ganhada +por B contra A. Isto, meu amigo, não se +discute: está discutido por si. +<br /> + +<br /> + +Depois de vermos sacrificada a logica e até o +simples senso commum á necessidade de achar +um texto arabe que prove a importancia da +batalha de Ourique, o que é mais divertido é +o completo esquecimento em que o auctor do +opusculo sarraceno, enlevado no seu Abdel-ha-lim +<span class="pagenum">[231]</span> +<em>particular</em>, deixa os monumentos +christãos +coevos que referem o successo. A chronica lamecense, +a conimbricense, a dos godos, todas +dizem que o general sarraceno era Ismar +(<em>præside +rege Smare</em>). Se Ismar não significa +Tachfin +como Attibbat significa Ourique, segue-se que +ou mentem as chronicas coevas, ou mente o +Abdel-halim <em>particular</em>, que diz ter +sido o general +dos sarracenos o proprio Tachfin, ou a +passagem citada não se refere ao successo de +Ourique. Daqui parece-me que não ha fugir. A +ultima explicação é sem duvida a +verdadeira. +Essa passagem é evidentemente a que Moura +traduziu, e Conde substanciou; passagem que +se combina chronologicamente com a narrativa +da chronica de Affonso VII, e que no opusculo +apparece alterada nas circumstancias e na data. +Quem a alterou, e para que fim? Isso pertence +a Deus, que vê os corações, e nos ha de +julgar +a todos no dia de juizo. +<br /> + +<br /> + +Depois, como accommodar os factos, que o +auctor do opusculo acceita do seu Abdel-halim +particular em demonstração da grandeza da +batalha, +com o que nos diz a chronica dos godos e +com o resultado daquella jornada? Pois os mussulmanos +são postos em fuga ao primeiro recontro, +<span class="pagenum">[232]</span> +por um troço de cavalleiros escolhidos +(<em>electi milites</em>) ficando +entrincheirados os restantes +dos poucos soldados (<em>paucis suorum</em>), +de +Affonso Henriques, e Tachfin, que foge, leva +seis mil prisioneiros? Que digo eu, seis mil! +Segundo o commentario do digno academico +eram muitos mais. Aquelles seis mil foram escolhidos +um a um, no meio do grande vagar +que para isso tinham os sarracenos fugitivos, +entre milhares de christãos de rebotalho, aos +quaes iam cortando os pescoços. As causas determinantes +da escolha (que eu deixarei nas paginas +do opusculo, porque não as consentem as +paginas da <em>Semana</em>) deviam tornar os +bons dos +sarracenos demasiado pechosos na selecção, e +pelas minhas contas, para apurarem seis mil +como lhes eram precisos, não podiam deixar +de refugar os seus cento e noventa quatro mil, +esmando pelo baixo. A mim parece-me, salvo +o respeito devido a um representante da parte +sarracena da Academia, que era melhor ter traduzido +do Abdel-halim particular, (lithographando +tambem no fim do opusculo o original mourisco +e subministrando assim mais abundante +alimento á pasmaceira dos parvos) uma carta +de Tachfin dirigida ao principe português, escripta +<span class="pagenum">[233]</span> +ao começar a retirada, e concebida pouco +mais ou menos nos seguintes termos: «Meu Affonso-Ibn-Errik. +Estou capaz de renegar Mafoma +com a grande róta que me déste. Vou para Africa +amuado, metter-me em casa de meu pae, que +se chama Aly-Ibn-Iussuf, embora os +<em>ulmá-i</em> academicos +da tua terra queiram á fina força chamar-lhe +Aly-Ben-Taxefin. A guerra é guerra, e +uma batalha perdida ou ganhada não é motivo +para nos desestimarmos. Eu preciso de levar comigo +em ar de prisioneiros uns seis mil rapazes +christãos airosos e bempostos. Se os podéres +dispensar, far-me-has nisso particular favor e +uma acção de cortezia. Só Deus +é Deus e Mohammed +o seu propheta. Aos 26 de zilkhada da +Hegira 533.»―Com isto ficava tudo explicado. +Os seis mil prisioneiros tinham sido uma generosidade +do <em>Pharaó obdurado</em>, +embora fingida; +porque, tendo Christo acabado de lhe asseverar +que havia de vencer sempre os sarracenos, não +só podia fazer presente a Tachfin de todos os soldados +imberbes do exercito, mas tambem de +quanto soldado barbudo, velho e relho, achasse +alli á mão vasculhando o acampamento, os quaes, +se não prestassem para mais nada, prestariam +para bichos da cozinha do amir-el-moslémin. +<span class="pagenum">[234]</span> +<br /> + +<br /> + +Meu amigo, n'outro qualquer paiz, uma academia, +cujos membros fossem capazes de escrever +opusculos destes, dissolvia-se para se +reconstruir com outros elementos, aproveitando +só, e com grandes cautellas, o pouco que +ahi houvesse de aproveitar. A nossa Academia, +especie de congregação bernarda que come e +dorme, acodem-lhe ás vezes á pelle estes tumores +litterarios, estas secreções eruditas, que, +longe de a matarem, lhe fortificam a compleição. +Deus lhe dê uma longa vida. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h2>DO ESTADO +</h2> + +<h4> +DAS<br /> + +</h4> + +<h2>CLASSES SERVAS NA PENINSULA +<br /> + +</h2> + +<h3> +DESDE O VIII ATÉ O XII SECULO</h3> + +<h2> +1858 +</h2> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c6"></a>I +</h3> + +<br /> + +<br /> + +Por mais que a tradição de antigas +malquerenças +e o ciume da nossa autonomia nos affaste +dos outros povos da Hespanha, dos quaes os +eventos politicos fizeram, mais ou menos forçadamente, +uma só nação, é certo que, +apesar de +todas as repugnancias entre portugueses e hespanhoes, +nas opiniões, nos costumes, nas tendencias +moraes de ambas as nações se está +revelando +a cada passo uma origem commum. Postoque +cada uma dellas tenha defeitos especiaes, +como os ha de provincia para provincia, dão-se +alguns tão nossos e tão hespanhoes, que de per +si, sem outros adminiculos, provam de sobejo essa +communidade de origem. +<br /> + +<br /> + +Esta reflexão occorreu-me naturalmente ao +começar um escripto, em que tenho de dizer +poucas palavras ácêrca do homem a quem elle +é +dirigido. Ha na Academia da Historia, de Madrid, +um modesto empregado, envolvido na obscuridade +da sua situação, sem cargos publicos, sem +condecorações, sem pingues sinecuras, e de que +<span class="pagenum">[238]</span> +talvez se podesse dizer―sem pão―se a Academia +não o houvera encarregado das suas +collecções +litterarias. Este empregado modesto, este +homem socialmente obscuro, é todavia um dos +maiores eruditos da Hespanha, um dos que mais +profundamente e com mais san consciencia (dote +raro nestes nossos tempos) tem cavado na rica +e tão pouco explorada mina das antigas +instituições +e costumes da Peninsula, isto é, do que +na historia della ha mais serio, mais importante +e mais difficil d'estudar. Falo de Thomás Muñoz +y Romero, do auctor da <em>Colleccion de Fueros +Municipales</em>, obra notavel, que, sendo de um homem +só, honraria uma corporação +litteraria, que +a houvesse emprehendido e executado. E todavia, +esse livro importante foi interrompido, segundo +me affirmam, por falta de protecção; e +Muñoz y Romero ainda nada mais é hoje do que +era ha dez annos, quando publicou aquelle seu +primeiro trabalho, o modesto official da bibliotheca +da Academia da Historia! +<br /> + +<br /> + +É o que provavelmente succederia ao livro e +ao homem nesta terra, neste fragmento da Peninsula +chamado Portugal, irmão gemeo desse +maior fragmento, que chamam especialmente a +Hespanha. +<span class="pagenum">[239]</span> +<br /> + +<br /> + +Na <em>Revista Española de +Ambos-Mundos</em>, nos +numeros correspondentes a novembro de 1854, +appareceram successivamente dous artigos, assignados +por Muñoz y Romero, sobre o estado das +pessoas nos reinos de Asturias e Leão nos primeiros +seculos posteriores á invasão dos Arabes. +Escriptos como aquelles, manifestações +tão brilhantes +de verdadeira sciencia, não são frequentes +em publicações periodicas, ainda além +dos Pirenéus. +Li-os com avidez e interesse sempre crescentes. +Ahi encontrei que aprender, e sobretudo +pude emfim assentar as minhas idéas +ácêrca da +origem, ou antes da denominação dos malados e +das maladias, ponto em que a propria opinião que +adoptara no terceiro volume da Historia de Portugal +não me satisfazia completamente. Vi, porém, +que discordavamos n'uma questão capital d'historia; +no modo de apreciar o estado das classes servis +nas Asturias e Leão durante os seculos immediatos +á reacção christan, e tive o desgosto +de não +poder, apesar de todas as considerações do sr. +Muñoz, +abandonar a propria opinião para adoptar a +sua. Ou seja por um modo errado de interpretar +os antigos monumentos, a que o meu espirito se +tenha affeito, ou porque a razão esteja do meu +lado, é certo que nenhum dos muitos documentos +<span class="pagenum">[240]</span> +que o sr. Muñoz oppõe ás minhas +opiniões me +pareceu contrariá-las: alguns, pareceu-me que até +serviam para as corroborar. Desde esse momento +entendi que não sería absolutamente inutil ao +progresso +dos estudos historicos da Peninsula expôr +as duvidas e reflexões que me occorriam sobre a +materia, deixando depois aos homens competentes +comparar os dous systemas e escolher entre elles. +<br /> + +<br /> + +Quando pensava em realisar este designio, +sobrevieram acontecimentos que durante quasi +dous annos me forçaram a abster-me dos trabalhos +historicos. Affastado por tão largo tempo +dos meus habituaes estudos, se, á custa de +serios desgostos, aprendi muito a respeito dos +homens e das cousas do meu tempo e do meu +paiz, esqueci tambem muito do que sabía ou +cria saber ácêrca dos homens e das cousas do +passado. Aberto para mim de novo o caminho +dos trabalhos historicos pela força da opinião +em lucta com a immoralidade do poder, renovei +esses abandonados estudos, mas renovei-os +como um dever de consciencia, como um serviço +que me exigem, como o cumprimento de +um contracto tacito com o publico. O amor, diria +antes a religião ardente, com que cultivava +a sciencia da historia, perdi-o no campo de batalha. +<span class="pagenum">[241]</span> +Escrever é hoje para mim o mesmo que +ser vereador, jurado, ou membro de um conselho +de districto: é um encargo e mais nada. +No horisonte das minhas ambições, e Deus sabe +se falo sincero, só vejo o dia em que possa +depôr a penna, e sumir-me em completa obscuridade. +Será esse o melhor da minha vida. Na +situação d'animo em que por tanto tempo me +achei, a questão dos servos na Peninsula durante +os seculos medios esqueceu-me completamente. +Veio recordar-m'a, porêm, uma circumstancia +casual. Tendo de examinar um volume +da <em>Revue Historique du Droit Français et +Étranger</em>, passou-me pelos olhos um artigo +de +M. de Rozière (julho e agosto de 1855) sobre o +escripto do sr. Muñoz, escripto que o illustre +professor, a quem devo mais de uma prova de +benevolencia, resume com a sua habitual lucidez, +e cuja doutrina acceita como a mais verosimil. +A doutrina, porêm, expressamente combatida +pelo auctor do opusculo sobre o estado +das pessoas nos reinos de Asturias e Leão, nos +primeiros seculos depois da invasão arabe, é +unicamente a minha. É de mim que elle declara +discordar completamente sobre a natureza da +servidão na monarchia néo-gothica desde o VIII +<span class="pagenum">[242]</span> +até o XII seculo. A verosimilhança da sua +opinião +torna portanto menos provavel para o illustre +professor da <em>École des +Chartes</em> a doutrina +que estabeleci. Se a questão pendesse tão +sómente +entre mim e o sr. Muñoz, demorar, ou, até, +pospôr +completamente a defesa da minha theoria +ácêrca da servidão n'aquelle periodo +não teria +grande inconveniente. Os documentos invocados +pelo sr. Muñoz e as suas ponderações, +e bem +assim os documentos que eu citei e as conclusões +que delles deduzi estão ao alcance dos homens +de letras da Peninsula que se dedicam +aos trabalhos historicos; e os archivos de Portugal +e de Hespanha encerram centenares de +outros monumentos ainda não estudados, que +poderiam lançar nova luz sobre o assumpto. +Nada mais facil, até, do que conduzirem-nos +novas investigações, a mim ou ao sr. +Muñoz, a +abandonar o proprio systema, porque ambos +buscamos sinceramente a verdade. Mas desde +que a materia do debate, transpondo os Pirenéus, +foi exposta a uma luz que não creio +verdadeira, por um homem como Mr. de Rozière, +e a um publico privado dos meios de apreciar +por si proprio os documentos e raciocinios +em que se fundam as duas opiniões oppostas, +<span class="pagenum">[243]</span> +entendo que é do meu dever publicar as +observações +que se me offerecem relendo os artigos +do sr. Muñoz, observações que, feitas +ha dous +annos, quando estas materias eram quasi a unica +occupação do meu espirito, seriam sem duvida +mais efficazes para a defesa de um systema +que ainda hoje me parece ser o que melhor se +estriba nos antigos documentos, e que ao mesmo +tempo melhor os explica. +<br /> + +<br /> + +Antes de tudo cumpre determinar bem a materia +controversa e circumscrevê-la. Tanto eu como +o sr. Muñoz falámos da servidão no +periodo em +que por successivas transformações o homem de +trabalho, o homem escravo, o homem +<em>cousa</em> dos +romanos chegou a ser a pessoa civil, a pessoa livre, +o cidadão mais ou menos humilde dos tempos +modernos. Deixando de parte maiores ou +menores differenças de opinião entre +nós quanto +aos tempos da monarchia gothica, ou que se +possam deduzir das nossas palavras quanto aos +tres ultimos seculos da idade média, limitar-me-hei +a expôr o que contradictoriamente entendemos +ácerca da situação das classes servis +do VIII +até o XII seculo. Escrevendo um artigo e não um +livro, procurarei affastar todas as questões secundarias +que se ligam a esse grande facto da +<span class="pagenum">[244]</span> +transformação das classes trabalhadoras, e +abstrahindo +das causas e consequencias da situação +em que se acharam os servos depois da invasão +arabe e da reacção asturiana (successos coevos e +quasi simultaneos) em tudo o que não fôr +indispensavel +para a clareza da materia, reduzirei o +discurso ao que a razão persuade e os monumentos +confirmam ácerca do facto geral da +transformação +gradativa da população serva naquelle +periodo de quatro para cinco seculos. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c7"></a>II +</h3> + +<br /> + +<br /> + +O estudo reflectido dos historiadores arabes e +dos monumentos christãos da épocha da conquista +e do dominio sarraceno tem feito sentir +que essa conquista e esse dominio extranho foram, +na historia das invasões e da sujeição +de raça +a raça, de povo a povo, entre os factos de semelhante +ordem, um dos que custaram á humanidade +menos tyrannias, menos lagrymas e menos +sangue. Tem-se dado o devido desconto ás +exaggerações das chronicas e á +linguagem de certos +escriptores christãos contemporaneos, aonde +auctores mais modernos foram buscar os lineamentos +dos seus quadros de terror, quando ahi +mesmo se encontram as provas de que os factos +não correspondem ás expressões +genericas com +que é descripto como um dos mais crueis flagellos +o predominio dos sarracenos na Peninsula. +Se juncto ao Guadalete se desmoronou o imperio +dos godos, a sociedade wisigothica ficou. As +provincias ou as cidades que acceitaram sem resistencia +o jugo dos novos senhores não tiveram +<span class="pagenum">[246]</span> +que padecer senão as consequencias dos grandes +movimentos militares sobre qualquer territorio, +as violencias accidentaes e individuaes durante a +lucta. Em geral, a ordem das relações civis, e +uma parte das publicas continuam a subsistir do +mesmo modo que d'antes. O tributo e o exercicio +das altas funcções da +administração do Estado +é que mudam. Nas provincias meridionaes da +Hespanha fica, até, por algum tempo um simulachro +do imperio gothico, o reino de Theodemiro, +tributario mas livre, que se incorpora obscuramente +depois nos dominios do khalifa. No meu +livro busquei desenhar com fidelidade essa nova +situação; dar aos successos o seu verdadeiro +valor, +estribando-me nos monumentos coevos, e +fazer sobresair a população mosarabe +(godo-romana), +tão esquecida em geral pelos historiadores. +<br /> + +<br /> + +Entre os mosarabes a situação dos servos devia +ser a mesma que entre os godos antes da +conquista. Não é provavel que esta formula da +sociedade civil se alterasse quando todas as outras +se mantinham. Nessa parte a conquista arabe +não trouxe o que trazem sempre os grandes +abalos politicos, um progresso de civilisação. +<span class="pagenum">[247]</span> +<br /> + +<br /> + +Succedeu o mesmo com a reacção asturiana? +Podia succeder? Pús este problema a mim mesmo, +e resolvi-o negativamente; porque a razão +e os documentos me forçavam a essa +solução +negativa. +<br /> + +<br /> + +O levantamento de Pelaio não chegou a ser +uma revolução: foi uma resistencia: resistencia +feliz nos primeiros passos e que não tardou +a converter-se n'um perigo serio para o dominio +mussulmano. Dentro de poucos annos a reacção +obscura de um punhado de soldados godos +fundava uma monarchia christan e independente, +que se contrapunha ao islamismo triumphante, +que estabelecia fronteiras, embora variaveis, +e que tomava ou fundava logares fortes, +onde os novos senhores da Hespanha encontravam +dura repulsa ás suas diligencias para suffocar +esta perigosa entidade politica. Da desproporção +das forças entre as duas potencias +mussulmana e christan, se o nome de potencia +póde dar-se aos estados de Pelaio e dos seus +immediatos successores, resultava necessariamente +um facto. Todo o homem válido devia +ser chamado ás armas nas Asturias, mas de um +modo em que interviesse a espontaneidade individual. +Não alcanço sequer como podesse ser +<span class="pagenum">[248]</span> +de outro modo. A servidão dos godos; os senhores +levando os servos armados ao combate, +sem crença, sem ardor, sem interesses moraes +ou materiaes que defender, como nos tempos +gothicos, sería um facto que não sei como +poderia dar em resultado a fundação e +engrandecimento +da monarchia de Oviedo. +<br /> + +<br /> + +Na verdade, com o tempo, as instituições +wisigothicas +foram-se restaurando á medida que +se engrandecia o novo reino, que uma parte do +territorio deixava de ser perenne campo de batalha, +e que a segurança, maior ou menor, favorecia +o maior ou menor desenvolvimento da +agricultura e de uma especie de industria. Uma +parte da população mosarabe, ou pelas +migrações +tanto forçadas como espontaneas, ou pela +aggregação +successiva de territorios habitados por +ella, incorporava-se gradualmente na sociedade +néo-gothica, e, trazendo comsigo a jurisprudencia +antiga, que tinha conservado intacta sob o jugo +sarraceno, devia exercer naquelle sentido uma +influencia, digamos assim, reaccionaria. Mas o +que não podia era destruir a força das +circumstancias; +o que não podia, n'uma sociedade em +cuja origem, em cujo amago estava a resistencia, +a espontaneidade, a liberdade, era restabelecer +<span class="pagenum"><a name="p249" id="p249">[249]</a></span> +a servidão pessoal antiga em toda a sua +plenitude. +<br /> + +<br /> + +Supponhâmos um nobre, e até um simples +<em>possessor</em>, acolhendo-se +ás Asturias, a Oviedo, +nos tempos de Pelaio ou dos seus immediatos <a href="#e11">successores</a>. +Como arrastará elle comsigo os servos +que o rodeiam? Invocará a força publica, a +auctoridade mussulmana para os constranger a +acompanharem-no? Sería absurda a hypothese. +Esse nobre, ou esse <em>possessor</em> ha-de +descer á +persuasão; ha-de falar de manumissão, ha-de +approximar de si o homem envilecido, ha-de +recorrer aos afagos, ás promessas. Ficar onde +se acha é para o servo a liberdade, quando o +senhor abandona o lar domestico. Devemos acaso +crer que nelle estão inteiramente mortos todos +os instinctos humanos? +<br /> + +<br /> + +Supponhâmos a conquista; a accessão de territorio. +O mosarabe senhor de servos, que se +incorpora por esse facto na sociedade ovetense, +acha actuando energicamente nesta o sentimento +da liberdade e da espontaneidade individuaes, +as classes servis armadas, os antigos laços hierarchicos +quebrados em grande parte. Esse facto +não influirá em nada nas suas +relações com +os proprios servos? Depois, além, pouco além, +<span class="pagenum">[250]</span> +estão os castellos sarracenos, a +administração +mussulmana. Se elle não affrouxar os rigores +da servidão; se não ligar a si o homem de +trabalho +por algum interesse, por algum motivo +racional, será difficil que esse homem o abandone, +e que conquiste pela fuga, e talvez pela +mudança de fé, a sua +emancipação? +<br /> + +<br /> + +Se os documentos nos não provassem que a +servidão de gleba fora o passo immediato dado +pelas classes infimas para a liberdade, a razão, +longe de nos persuadir que a servidão se mantivera +em Oviedo e Leão como nos tempos gothicos, +far-nos-hia antes acreditar que ella fora +substituida pelo colonato espontaneo. O colonato, +eis o grande meio de ligar o homem de trabalho +á terra, por este instincto, por este amor +quasi connubial, que une a mãe commum ao individuo +que a faz fructificar. Da servidão gothica, +porém, para a adscripção havia um +passo gigante, +e as classes servis eram assás rudes para +não perceberem toda a differença do colonato +á +adscripção, porque essas differenças +são pela +maior parte de ordem moral. Na practica, materialmente, +sobretudo em tempos de bruteza e +violencia, n'uma sociedade perturbada e vacillante, +as distincções entre a posse e o uso da terra +<span class="pagenum">[251]</span> +pelo colonato ou pela adscripção não +podiam ser +demasiado sensiveis. O sentimento, a aspiração +do individuo que cultivou o solo, que construiu +a choupana, que plantou a arvore é principalmente +o não separar-se do campo, da choupana, +da arvore. A este sentimento correspondem ambas +as formulas de consorcio entre o homem e a +terra, mais ou menos imperfeitamente, não tanto +em virtude das condições theoricas de cada uma +das duas formulas, como do estado mais ou menos +civilisado da épocha em que se applicam. +Acaso a historia não nos subministra provas de +oppressões exercidas sobre colonos espontaneos, +e consagradas até por contractos, tão barbaras +como as que padeciam os adstrictos á gleba, +quando já a adscripção do homem tinha +cedido +o campo á servidão exclusiva da terra? +<br /> + +<br /> + +Assim comprehende-se como a transformação +do servo em adscripto podia resultar da situação +em que se achou a monarchia ovetense-leonesa +no seculo VIII, em vez de resultar della o +colonato livre, que á primeira vista a razão nos +pinta como mais provavel, e que de feito o era, +se abstrahirmos das circumstancias sociaes para +só attendermos ás politicas. +<br /> + +<br /> + +Mr. de Rozière, expondo o debate entre mim +<span class="pagenum">[252]</span> +e o sr. Muñoz, diz: «Esta +transformação (a da +servidão para a adscripção) tinha-se +realisado de +todo quando os christãos se refugiaram nas Asturias +sob o mando de Pelaio? Não o crê o sr. +Muñoz, e combate, neste ponto, a opinião dos +historiadores de maior credito. Os exemplos, em +que esteia o seu pensar, dão a este um alto gráu +de verosimilhança. Nelles se vêem escravos +destinados +ao serviço domestico; uns são cozinheiros, +padeiros, sapateiros ou alfaiates; outros empregam-se +no commercio e servem nas lojas de +venda. Nada ha fixo nas suas funcções, que +dependem +do capricho do dono. A sorte dos escravos +agricolas não é mais segura: uns trocam-nos +por cavalgaduras; outros entregam-nos aos +mussulmanos em resgate de captivos: todos podem +ser separados da propria familia e do campo +que cultivaram». +<br /> + +<br /> + +N'esta exposição ha uma +inexacção chronologica: +a doutrina que eu estabeleci não é que a +adscripção se tinha já substituido +á servidão +quando occorreu o alevantamento de Pelaio: é +que este alevantamento e a fundação do reino de +Oviedo trouxeram de necessidade essa +transformação. +Sejam quaes forem a differença ou a semelhança +entre o meu modo de pensar e o sentir +<span class="pagenum">[253]</span> +do sr. Muñoz sobre a servidão gothica, +não é +ahi que está a profunda divergencia entre nós. +A divergencia completa refere-se aos tempos +posteriores á invasão dos arabes. É, +até, o que +se deduz do titulo do opusculo do sr. Muñoz: é +a essa épocha que verdadeiramente se refere o +trabalho publicado na <em>Revista de +Ambos-Mundos</em>. +Eis as suas palavras: «Um escriptor... do vizinho +reino de Portugal estabelece a doutrina de +que a servidão se distinguia, <em>na +épocha de que +tractamos</em>, em estar vinculada ao solo, não +admittindo +outra classe de servos senão a dos adscriptos +á gleba. A seu vêr não existia nenhuma +outra servidão pessoal senão a dos arabes +captivos +na guerra, o que cremos não ser conforme +com o que o mesmo escriptor diz n'outra parte, +isto é, que o serviço domestico dos senhores e +nobres parece ter sido desempenhado, sob o dominio +leonês, por membros das familias adscriptas, +e que este serviço se converteu n'um acto +espontaneo no seculo XIII. Se os homens e familias +podiam contra sua vontade ser separados da +gleba, onde se achavam estabelecidos, para o +serviço domestico, não podiam chamar-se +adscriptos, +porque este nome traz comsigo a idéa de +inamovibilidade do colono do torrão que cultiva. +<span class="pagenum">[254]</span> +Além d'isso, a sua opinião não +concorda com os +monumentos da nossa historia.» +<br /> + +<br /> + +N'outra parte do opusculo do sr. Muñoz leem-se +as seguintes passagens, em que elle estabelece +positivamente a sua theoria relativa á servidão +dos tempos neo-gothicos. «A condição +dos servos +era indubitavelmente a de cousas. Podiam +ser vendidos ou dados como um animal domestico, +como uma alfaia... Esta opinião, que sustentámos +n'uma obra publicada ha annos, foi impugnada +pelo sr. Herculano n'uma extensa nota +sobre o caracter da servidão na monarchia +néo-gothica... +Na monarchia néo-gothica continuaram +os servos a ser o mesmo que na dos godos... +E se em Asturias e em Leão se encontram +vestigios de servidão diversa da dos adscriptos, +poderão julgá-lo os que examinarem os documentos +que já publicámos e os que damos agora +á luz.» +<br /> + +<br /> + +Effectivamente aos documentos impressos na +<em>Colleccion de Fueros Municipales</em>, o +sr. Muñoz +ajuncta muitos outros tendentes, segundo crê, a +corroborar a sua doutrina. Que antes de entrar +na apreciação delles, me seja permittido fazer +breves reflexões. +<br /> + +<br /> + +O sr. Muñoz, limitando o debate aos textos +<span class="pagenum">[255]</span> +dos documentos pospôs os factos sociaes e politicos +de que deduzi, digâmos assim <em>à +priorì</em>, a +necessidade de uma profunda alteração das classes +servis nas origens da sociedade néo-gothica. +Os factos podem não ser como eu os expús, ou as +consequencias que delles tirei ser inexactas, ou +finalmente essas consequencias não ter tido força +bastante para mudar a situação d'aquellas +classes: podem peccar de muitos modos as largas +observações que fiz a este proposito no terceiro +volume da Historia de Portugal, e que tentei +resumir em poucos periodos deste modesto +trabalho. Mas seria licito deixar ou esquecidas +ou inconcussas essas ponderações? O methodo +que segui foi estudar os acontecimentos, examinar +qual devia ser a sua influencia na condição +dos servos, e verificar se os documentos confirmavam +<em>à posteriori</em> as +illações deduzidas dos +mesmos acontecimentos. Bem sei que, prevenido +por essas illações, era possivel, era +até facil, +se quizerem, apreciar preoccupadamente os documentos; +não poderia, porém, o sr. Muñoz, +interpretando-os +sem attender aos factos geraes, ás +consequencias naturaes dos successos historicos, +ás leis moraes que regem as phases das sociedades, +dar-lhes uma significação diversa da verdadeira? +<span class="pagenum">[256]</span> +Foi, se não me engano, o que de feito lhe +succedeu. +<br /> + +<br /> + +É essa justamente uma das difficuldades capitaes +dos trabalhos historicos relativos á idade +media. O historiador tem de attender constantemente +á acção e á +reacção mutuas dos factos politicos +e dos factos sociaes uns sobre os outros +para d'ahi deduzir factos desconhecidos; tem de +substituir por illações fundadas nas leis que +actuam nas sociedades humanas, independentes +da vontade dellas, o silencio tantas vezes inopportuno +dos monumentos. Quando estes existem +e são genuinos, claros e precisos, sem duvida +constituem o guia mais seguro para determinar +os factos, e se as illações que +tirámos os +contradizem, é necessario confessar que os principios +eram inapplicaveis á hypothese, ou que +se applicaram mal. Mas, abstrahindo da questão +de genuinidade, são a clareza e a precisão +qualidades vulgares nos documentos dessas épochas +tenebrosas? O sr. Muñoz sabe tão bem como +eu quão raros são os que achamos com taes +condições; quantos annos, quantas vigilias +é necessario +applicar ao estudo dessas fontes historicas +para nos habituarmos a comprehendê-las. +Á difficuldade, que resulta das referencias a cousas +<span class="pagenum">[257]</span> +vulgares no tempo em que o documento se +redigiu, e que actualmente são desconhecidas +ou conhecidas imperfeitamente, ajuncta-se a lingua +barbara, ás vezes horrivelmente barbara, +que nelles se empregava, mistura monstruosa de +latim de todas as epochas com uma linguagem +vulgar que hoje se pode reputar morta, tão +transformada se acha nas linguas modernas da +Peninsula: accresce a isto a differença profunda +entre os homens daquelle tempo e os do +nosso, no modo de conceber e exprimir as idéas; +ajuncta-se a tendencia, quasi invencivel, para +vermos as cousas da idade media através do +prisma dos habitos, das opiniões, dos costumes, +e direi, até, das preoccupações +actuaes. Subjugar +esta tendencia é difficil; porque presuppoem um +esforço de abstracção, de que +não são capazes ás +vezes os mais robustos espiritos. +<br /> + +<br /> + +Mas, vencidos todos estes obstaculos, resta +ainda a vencer o que resulta da comparação dos +proprios documentos, especialmente quando nelles +estudamos as instituições, a +organisação da +sociedade. É ahi que o talento historico tem de +passar por mais dura prova, e onde o discernimento +nas apreciações precisa de ser mais subtil. +A idade media não procedia sempre como +<span class="pagenum">[258]</span> +nós das idéas geraes para a +applicação especial, +ou antes possuia poucas idéas geraes. Os costumes, +as instituições, os usos, os factos tinham +principalmente o caracter individual, local. Essas +poucas idéas geraes que havia eram pela maior +parte mal circumscriptas, fluctuantes. D'aqui as antinomias +nas doutrinas, a contradicção frequente +nos factos. Na verdade o senso moral, a tendencia +instinctiva para a generalisação produziam a +maior parte das vezes em contraposição ao +desordenado, +ao repugnante, as analogias ou a identidade +de factos, quando se davam as analogias ou +a identidade de circumstancias; mas o phenomeno +era mais casual do que intencional, e +nem por isso faltavam as excepções, a +desharmonia, +quando as paixões, os interesses ou a inexperiencia +vinham augmentar a confusão natural +dos tempos barbaros. Saber deduzir os +caracteres geraes de uma épocha, debaixo dos +seus diversos aspectos, não dos principios que +guiavam os homens na vida practica, porque a +maior parte das vezes não os havia, mas dos +factos isolados, dos monumentos especiaes; differençar +a regra da excepção, regra e +excepção, +que não raro existem só por uma +abstracção +para nós, e que não existiam para elles, eis a +<span class="pagenum">[259]</span> +summa difficuldade no estudo dos documentos, +da legislação, e das memorias historicas da idade +média, mas difficuldade que cumpre superar +para se escrever de modo util a historia daquellas +obscuras éras. +<br /> + +<br /> + +Longe de mim a pretensão vaidosa de ter navegado +sem naufragios nesse mar d'escolhos; +mas seja-me ainda permittido duvidar de que +tal infortunio me occorresse na questão do estado +dos servos do VIII até o XII seculo; seja-me +licito por emquanto suspeitar que fiz fazer +um progresso á historia da Peninsula, collocando +á sua verdadeira luz a situação dessa +classe +durante aquelle periodo. +<br /> + +<br /> + +Como já disse, o sr. Muñoz, abstrahindo das +considerações <em>à +priori</em> que fiz a semelhante respeito, +limita-se a combater a minha opinião e +a propugnar a sua com os factos que elle crê +resultarem de um grande numero de documentos +que invoca: limitar-me-hei tambem por isso +a apreciar esses documentos e a examinar o que +elles provam, recorrendo sómente a outros quando +o julgar indispensavel para estribar melhor +as minhas affirmativas. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c8"></a>III +</h3> + +<br /> + +<br /> + +Estabelecendo a doutrina de que o servo continúa +a ser na monarchia de Oviedo e Leão o +que era entre os godos, o sr. Muñoz funda-a +n'uma serie de factos, que em seu entender +resultam dos documentos e caracterisam a condição +do escravo, a posse e dominio absolutos +do homem sobre o homem, a servidão na sua +fórma mais completa e humilhante, a do homem-cousa, +a do homem animal de trabalho. Estes +factos consistem na venda, doação e troca dos +individuos sem dependencia de um contracto +ácêrca do solo em que elles habitam; em serem +arrebatados nas guerras privadas os colonos de +herdades privilegiadas ou nobres ou ecclesiasticas, +reduzidos á escravidão dos raptores e vendidos +por estes como escravos; na entrega dos +servos christãos aos sarracenos como preço de +resgate de nobres captivos (pag. 5 a 7)<sup><a href="#f73">[73]</a></sup>; +em +<span class="pagenum">[261]</span> +exercerem os servos os diversos misteres do +serviço domestico e os officios mechanicos, sendo +parte de taes misteres incompativeis com o cultivo +do solo; em viverem alguns nos coutos de igrejas +e mosteiros obrigados a serviços geraes, isto +é, a quaesquer que lhes mandassem fazer (pag. 12 +a 13). Excluidos da representação em juizo +pela lei (wisigothica), que não admittia o seu testemunho +senão á falta de outras provas, não +tinham +acção para perseguir um delicto contra a +propria pessoa ou contra os filhos; ao dono +competia sollicitar a indemnisação do damno +padecido +pelo servo como de cousa sua. No caso +de homicidio, era elle quem tambem obtinha a +compensação pecuniaria; e do mesmo modo se +o servo matava, feria, ou atacava propriedade +alheia, o responsavel era seu dono (pag. 15 e +seg.). Os filhos de um servo e de uma serva de +diversos donos eram pessoalmente divididos entre +elles (pag. 24 e 25). +<br /> + +<br /> + +Taes são os factos sociaes que o sr. Muñoz +apresenta como contrariando a minha opinião: +esses factos estriba-os nos documentos cujas +<span class="pagenum">[262]</span> +passagens correlativas transcreve, referindo-se +outras vezes aos monumentos por elle já publicados +na <em>Colleccion de Fueros</em>, ou a alguns +que +se encontram em outros escriptos, principalmente +nos appendices da <em>España +Sagrada</em>. +<br /> + +<br /> + +Se o meu animo não fosse sincero; se eu não +quizesse trazer á evidencia o erro em que me +parece laborar o sr. Muñoz, limitando-me ao +que menos importa, á defesa do meu livro, facil +me seria annullar as illações tiradas dos +documentos +invocados contra mim, visto que o sr. +Muñoz não nos mostra, nem talvez lhe +sería possivel +mostrar, que elles se referem a servos de +raça e não a prisioneiros de guerra, a sarracenos +captivos nas continuas luctas entre os reis de +Oviedo e Leão e os principes mussulmanos, ou +aos filhos e descendentes desses captivos<sup><a href="#f74">[74]</a></sup>. +Um +ponto em que estamos ambos de acôrdo é que +a sorte destes era a de verdadeiros escravos. Das +chronicas de Sebastião de Salamanca, de Sampiro, +do Silense e de outros vemos que o systema +<span class="pagenum">[263]</span> +de exterminio adoptado a principio pelos +immediatos successores de Pelaio não tardou em +ser modificado, e que milhares de captivos vinham +successivamente caír nos ferros da escravidão, +ou reservando-os o rei para si, ou distribuindo-os +pelos seus guerreiros. Uma parte +dos edificios religiosos alevantados por Fernando-magno +foram construidos por esses desgraçados, +salvos da morte por uma politica menos +deshumana que a dos barbaros reis das Asturias. +<br /> + +<br /> + +Com um monumento, porém, tão incontroverso +como explicito, eu provei<sup><a href="#f75">[75]</a></sup> +que ainda no +meiado do seculo XII a sorte dos mosarabes, +aprisionados com as armas na mão pelos soldados +dos principes christãos, era analoga á dos +crentes do islam, sendo como elles reduzidos á +escravidão. Não é crivel que a sua +sorte fosse +melhor nos seculos anteriores. Ainda suppondo +que os documentos citados pelo sr. Muñoz se +devessem entender em geral como elle pretende +que se entendam, ninguem poderia affirmar que +os nomes gothicos a que ahi se allude não fossem +sempre e em todos elles de captivos mosarabes +ou de filhos seus e não de mouros convertidos +<span class="pagenum">[264]</span> +ou não convertidos. Tambem me parece +que poderia limitar-me a advertir que, fundando-se +a minha opinião em muitos documentos, +que o sr. Muñoz não se encarrega de interpretar +de um modo acorde com a sua doutrina, e tendo, +alêm disso, a meu favor as illações que +tirei +dos successos politicos, poderia considerar +todos esses diplomas a que elle recorre apenas +como manifestações das violencias, das +excepções; +como mais uma prova da falta de caracteres +constantes, de regras geraes absolutas +nos factos sociaes de uma épocha de barbaria e +de transformação. +<br /> + +<br /> + +Mas estas soluções, que talvez bastassem ao +debate, não bastariam á minha consciencia: +poderiam +abonar uma opinião, aliás estribada em +outros fundamentos, mas deixariam certa duvida +no espirito dos que estudassem o assumpto. +Desçamos, por isso, á analyse dos factos e +documentos a que o sr. Muñoz recorre para assentar +a existencia da escravidão pessoal como +regra nos quatro primeiros seculos da monarchia +leonesa. +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c9"></a>IV +</h3> + +<br /> + +<br /> + +A venda, troca e doação dos individuos da +classe servil sem dependencia de um contracto +relativo ao solo em que habitam é o primeiro +facto que affirma o sr. Muñoz, e que estriba nos +seguintes documentos: +<br /> + +<br /> + +1.º Carta de doação á +sé +de Oviedo por Affonso +II em 812. Incluem-se entre as dadivas <em>mancipia, +id est, clericos sacricantores</em>, dos quaes +um é presbytero, outro diacono, e os mais simples +<em>clericos</em>, talvez ostiarios, +psalmistas, exorcistas, +etc. Alguns, declara-se terem sido comprados +pelo rei. Os outros <em>mancipia</em> +são seculares, declarando-se +tambem que alguns foram havidos +por compra. Os nomes tanto de uns como de outros +são godos. +<br /> + +<br /> + +2.º Carta de dote de 887. O noivo doa á esposa, +além de alfaias, bens semoventes e dinheiro, +dez <em>pueros</em> e dez +<em>puellas</em>, 30 villas (aldeias granjas) +as quaes diz serem situadas <em>in +Nemitos</em>, e +enumera-as <em>Generoso</em>, +<em>Vivente</em> etc. +<br /> + +<br /> + +3.º Doação de marido a mulher, de 1029. +Doa, +<span class="pagenum">[266]</span> +entre outras cousas, <em>mancipios et mancipiellas +quos fuerunt ex gente hismaelitarum et agareni</em>, +os quaes nomeia: uns tem nomes godos, outros +nomes arabes. Além destes, doa-lhe <em>de +avolengarum +criazone parentum</em> varios individuos +cujos nomes parece serem todos godos. +<br /> + +<br /> + +4.º Carta de agnição de 962 em resultado +de +uma demanda entre o mosteiro de Cella-nova e +o conde Ordonho Romaniz. Versava a questão +sobre duas granjas ou aldeias, querendo o conde +tirar <em>homines et hereditates de jure monasterii +volens eos ad servitutem abdigare</em>. Apresentaram +os monges os seus titulos perante elrei, e quando +iam a provar, diz o sr. Muñoz, que o rei Ramiro +dera os homens que o conde usurpava, e o +bispo D. Rosendo os entregara ao mosteiro, o +conde supplicou aos magnates que obtivessem +dos monges darem-lhe as duas villas em prestamo +vitalicio, <em>absque homines in +adtonitum</em>, no +que os monges convieram. +<br /> + +<br /> + +5.º Carta de agnição de 1074, em +resultado +da demanda entre o mosteiro de Cella-nova e a +condessa D. Guncina, que affirmava ter o rei Ramiro +tirado do testamento (predio ecclesiastico) +de Vanate dez homens, os quaes dera ao mosteiro +de Porcária. Replicava o abbade de Cella-nova +<span class="pagenum">[267]</span> +que <em>de hodie, quod est 120 annos nunquam auditum +fuit istum tale verbum</em>. Julgou-se a favor +do abbade. +<br /> + +<br /> + +6.º Doação de 1094 feita á +sé de Lugo por +Suario Moniz de varias <em>villas cum sua criacione +et homines pertinentes... excepto Alvito Pepiz et +suos filios</em>. +<br /> + +<br /> + +7.º Carta de arrhas de 1108 em que o noivo +doa varios bens de raiz, e alêm disso, um cavallo +baio e <em>uno homine de creacione</em>. +<br /> + +<br /> + +8.º Doação do mosteiro de Sobrado em +1118 +feita pela rainha D. Urraca a Fernando Peres e a +seu irmão com todos os termos e coutos antigos +e suas pertenças, <em>et cum sua criacione, +servos et +ancillas, exceptis quibusdam</em>. +<br /> + +<br /> + +9.º Memoria da divisão de Rovoredo, sem data, +caractéres do seculo XIII. Na opinião do sr. +Muñoz pertence ao seculo XI. Um certo Vermudo +Cresconiz comprara o sarraceno Sendimiro (nome +godo) que fora visavô de Diogo Erit. Este foi +a Rovoredo e casou com uma mulher que era vaqueira +de Ardio Dias, uma de duas irmans, que, +herdando Rovoredo, haviam dividido entre si o +predio. Veio em busca delle Pelagio Froilaz (provavelmente +herdeiro ou representante de Vermudo +Cresconiz) e levou-o comsigo. Seguiu-se uma +<span class="pagenum">[268]</span> +manda entre Ardio Dias e Pelagio Froilaz, que +terminou por uma composição, em virtude da +qual ficou Diogo Erit em Rovoredo e foi dada em +trôco delle uma irman da vaqueira de Ardio Dias. +<br /> + +<br /> + +Taes são os documentos de doação, +vendas e +escambos, exclusivamente de individuos, que o +sr. Muñoz cita em prova da inexacção +da minha +doutrina. +<br /> + +<br /> + +No 1.º documento peço que se note que as pessoas +doadas são denominadas +<em>mancipia</em>, e não +<em>servos</em>, e que entre elles um +é presbytero, outro +diacono, e outros simples clerigos; que os seculares +são tambem denominados +<em>mancipia</em>, e que +todos elles tem nomes godos. Pergunto: tolerava +a disciplina ecclesiastica recebida na Peninsula +naquella epocha, que homens servos, e que continuavam +a ser servos, doados ou vendidos depois +a bel-prazer de seus donos, fossem elevados +não ás menos importantes +funcções do culto, mas +á ordem do presbyterado e ainda do diaconado? +Não era impossivel acumular as +condições da +servidão e do sacerdocio? Basta abrir o resumo +dos canones da igreja d'Hespanha publicados +por Aguirre e Cenni para nos desenganarmos +da impossibilidade desta associação monstruosa. +Todavia o facto da venda de um presbytero, de +<span class="pagenum">[269]</span> +um diacono e de outros clerigos deu-se no principio +do seculo IX, como o prova este documento. +Não haverá, porêm, atraz desse facto +outro +ou outros que o expliquem? +<br /> + +<br /> + +A designação de +<em>mancipium</em>, applicada a individuos +dos mais elevados gráus do sacerdocio, o +presbyterado e o diaconado, é não menos singular. +Notei mais de uma vez no meu livro<sup><a href="#f76">[76]</a></sup> +que a +palavra <em>mancipium</em>, entre os godos, +sem deixar +de se tomar ás vezes na significação +lata de servo, +significava de ordinario o servo infimo, o +<em>escravo</em>, +o individuo reduzido á ultima +degradação; significava +antes uma +<em>situação</em> de +aviltamento do que +uma <em>condição</em> +originaria. São notaveis a este proposito +dous logares do codigo wisigothico, a lei +que tracta dos <em>escravos dos servos +fiscaes</em>, e a que +tracta dos <em>mancipia</em> dos judeus, quer +<em>ingenuos</em>, +quer servos. Antes de mim já Masdeu tinha feito +com pouca differença a mesma +observação. Entre +os romanos <em>mancipium</em> era synonimo de +<em>servus</em>, +mas a origem dos vocabulos era diversa: +<em>servus</em> de +<em>servire</em>; +<em>mancipium</em> de <em>manu +captum</em>, +do homem aprehendido, do prisioneiro reduzido á +á escravidão. Evidentemente a +designação de +<span class="pagenum">[270]</span> +<em>mancipium</em> serviu a principio para +indicar o captivo, +o individuo a quem se deu a vida, que se +lhe podia tirar, para o collocar na situação de +um +animal de carga, de uma alfaia; representou um +facto accidental, personalissimo, differente da +servidão herdada, da servidão de raça, +ou para +exprimirmos com dous vocabulos modernos duas +idéas semelhantes, mas diversas, o +<em>mancipium</em> +era servo, mas <em>escravo</em>. Na Russia ha +<em>servos</em>; na +America ha <em>escravos</em>. Note-se, +porêm, que com +este exemplo não quero estabelecer analogia completa +entre a distincção primitiva e a +distincção +actual. +<br /> + +<br /> + +Baste, porém, que +<em>mancipium</em> servisse entre +os godos para exprimir especialmente a mais vil +servidão, a escravidão. Não teria a +palavra na +monarchia neo-gothica este mesmo valor especial, +embora ás vezes pela fluctuação da +linguagem +(fluctuação que existe sempre, mas que +é grandissima +nas epochas barbaras) se tomasse como +synonimo de servo, por isso que, n'um grande +numero de relações, a sorte de um e a sorte de +outro eram identicas? No 3.º documento que cita +o sr. Muñoz, os individuos doados são denominados +<em>mancipios</em> e +<em>mancipiellas</em>, e exprime-se que +são da gente ismaelita e agarena; que são +captivos. +<span class="pagenum">[271]</span> +N'uma carta de doação á sé +de Lugo<sup><a href="#f77">[77]</a></sup> +de 897 +Affonso III doa-lhe, além de outras cousas, +<em>mancipia, +quae ex hismaelitarum terra captiva duximus</em>. +No meio de uma lucta odienta e atroz, +como foi durante o seculo VIII e ainda durante o +IX a das monarchias de Oviedo e de Cordova, é +natural, é crivel, sequer, que a sorte dos prisioneiros +de guerra que não eram passados á espada +fosse inteiramente a mesma dos servos de raça, +classe a que, além de outros, um documento +de 985 chama <em>servos originales</em><sup><a href="#f78">[78]</a></sup>, +por infima que +se reputasse a condição destes? E não +haveria +um meio de expressar por palavra ou por escripto +a differença das duas situações, +quando fosse +necessario fazê-la sentir? +<br /> + +<br /> + +É indubitavel, á vista das chronicas coevas e +dos documentos, que os reis de Oviedo e Leão e +os seus capitães, alargando os limites da monarchia +ou reduzindo o poder mussulmano por victorias +repetidas, por saltos e correrias inesperadas, +por devastações e incendios, conduziam +annualmente +para o interior das provincias ovetense-leonesas +milhares e milhares de captivos. Devemos +<span class="pagenum">[272]</span> +acaso suppôr que nenhum desses contractos +sobre individuos pessoalmente escravos, +em que se calla a procedencia dos mesmos individuos, +se refira a prisioneiros de guerra, e +que entre estes não houvesse muitos mosarabes? +A pretensão parece-me que sería insustentavel. +Embora eu não queira, nem seja preciso +explicar por esse facto muitos dos documentos +citados pelo sr. Muñoz, ha outros em +que semelhante explicação é a mais +simples e natural, +e a este numero pertence indubitavelmente +a doação de 812. +<br /> + +<br /> + +Civilmente, socialmente, os mosarabes eram +sarracenos. Do modo como essa grande maioria +da população romano-gothica buscava em geral +assimilar-se aos conquistadores temos sobejas +provas nos escriptos contemporaneos de Alvaro +de Cordova, d'Eulogio, do biographo de João de +Gorze, nas actas dos martyres Voto e Felix e em +outros monumentos. Os mosarabes serviam nos +exercitos mussulmanos e por consequencia combatiam +contra os seus correligionarios. Entre os +altos officiaes da coroa na corte de Cordova figuram +condes godos, e apparecem-nos a cada passo +magistrados, funccionarios, prelados, sacerdotes +godo-romanos nas provincias do vasto imperio +<span class="pagenum">[273]</span> +dos Benu-Umeyyas. Quantos destes, pospondo as +questões religiosas, e adoptando a tolerancia dos +dominadores arabes, seriam verdadeiramente addictos +á situação politica em que se achavam, +elles que abraçavam não raro os nomes proprios, +os costumes, as usanças, a civilisação +e a lingua +dos mussulmanos, a ponto de esquecerem completamente +o idioma neo-latino, segundo o testemunho +de Alvaro de Cordova; elles que admittiam, +até, a circumcisão, se acreditarmos o +<em>Indiculum</em> +e a biographia de João de Gorze? Não +achamos nós ainda no seculo XI os bispos mosarabes, +esquecidos das funcções episcopaes, e dedicados +inteiramente á vida politica, empregarem-se +no serviço profano dos respectivos soberanos +sarracenos?<sup><a href="#f79">[79]</a></sup> +Se nos proprios estados dos +reis de Leão a mistura dos usos mussulmanos +<span class="pagenum">[274]</span> +com os christãos dava ás vezes, nas +exterioridades +do culto, occasião a factos que seriam comicos, +se não fossem irreverentes<sup><a href="#f80">[80]</a></sup>, +o que seria +essa mistura entre mosarabes e ismaelitas nos estados +mahometanos? +<br /> + +<br /> + +Imaginar, portanto, que entre os milhares de +captivos que annualmente eram arrastados da +Spania para os sertões das Asturias e de Leão +não vinha um grande numero, digamos assim, +de <em>sarracenos christãos</em>; +que entre uns e outros +captivos se fazia distincção, se poderia sequer +fazer; +que os violentos e brutaes barões e cavalleiros +dos reis leoneses consentiriam em perder uma +parte dos seus escravos, que exteriormente em +nada se differençavam dos restantes, dos verdadeiros +mussulmanos, ainda admittindo gratuitamente +que os principes o desejassem, seria suppôr uma +cousa inacreditavel, embora não existisse o testemunho +<span class="pagenum">[275]</span> +do biographo de S. Theotonio, testemunho +preciso de que a praxe era inteiramente +contraria. +<br /> + +<br /> + +Na adiantada civilisação de hoje não +se comprehenderia +o direito de vida ou de morte sobre +os prisioneiros de guerra, e nem sequer a escravidão +para o vencido, ou que possa haver outros +prisioneiros senão combatentes. Deste estado da +civilisação derivam a +distincção entre prisioneiro e +prisioneiro, e os diversos gráus de benevolencia +e de attenções para com os mais qualificados. +Entre barbaros ou nas eras barbaras, o nosso +proceder, as nossas idéas actuaes a este respeito +seriam igualmente incomprehensiveis. Na verdade +o senhor do captivo, sabendo que se apoderara +de um homem opulento, importante entre os +adversarios, podia por calculo de cubiça +tractá-lo +melhor, evitar-lhe os padecimentos e as injurias +á espera de avultado resgate. Mas a regra, o +principio, a idéa de então consistia em ser o +captivo, +fosse quem fosse, como um ente novo, a +<span class="pagenum">[276]</span> +cujo nascimento, digamos assim, não se tinha +opposto o gume da espada. O passado desse ente +não importava para nada. Era um animal, uma +propriedade do que o captivara e que licitamente +poderia ter feito com que não existisse: era o +<em>manu-captum</em>, a +acquisição, o escravo; emfim, o +<em>homem-cousa</em>. +<br /> + +<br /> + +Tendo presentes todos estes factos, que o sr. +Muñoz não ignora, mas que me era necessario +recordar +aqui, entende-se facilmente a doação de Affonso +II á sé de Oviedo: entende-se como esses +clerigos podiam ser em parte comprados, em +parte libertados pelo rei, e unidos á sé +ovetense. +Eram mosarabes arrebatados, mau grado seu, por +occasião de alguma correria. Pelos canones da +igreja gothica os sacerdotes viviam n'uma especie +de adscripção canonica á igreja a que +pertenciam, +e Affonso II, conforme o chronicon de Albaida, +foi quem restabeleceu em Oviedo as jerarchias +civis e ecclesiasticas dos godos<sup><a href="#f81">[81]</a></sup>. +Resgatando +aquelles individuos da escravidão, e ligando-os +indissoluvelmente á sé ovetense, respeitava as +idéas do seu tempo e mantinha a antiga disciplina +<span class="pagenum">[277]</span> +ecclesiastica, embora o fizesse de modo um +tanto rude. Se admittissemos, porêm, a hypothese +de que elles eram servos originarios semelhantes +aos servos dos tempos gothicos, que como +taes haviam recebido ordens sacras, que, depois +de doados á sé de Oviedo, continuavam a ser o +que eram, segundo a theoria do sr. Muñoz, isto é +cousas e não pessoas, e que, portanto, podiam +ser destinados pelo bispo Adaulfo para exercerem +os mais abjectos misteres, o diploma de 812 +ficaria não só repugnando á historia, +mas sendo, +alêm disso, um indecifravel mysterio. +<br /> + +<br /> + +Este documento não me escapou quando redigia +o VII livro da Historia de Portugal; mas tinha +de attender a muitos outros, de condensar muitos +factos sociaes em poucos periodos. Não podia +descer á analyse minuciosa delle. Estava tão +convencido +da verdade da doutrina que estabeleci, +que não o julguei sufficiente para a destruir. O +leitor avaliará se elle effectivamente a destroe. +Suppús que, quando muito, era uma das anomalias +tão frequentes nos factos sociaes dos tempos +barbaros, a manifestação da anarchia que reinava +ainda nas idéas e nos factos. A analyse parece-me +provar que nem sequer isso era. +<br /> + +<br /> + +O 2.º documento explica-se como o antecedente +<span class="pagenum">[278]</span> +pela existencia d'escravos captivos. É notavel +que nelle tambem se evite a palavra +<em>servos</em>, mais +generica, para se empregar a singular expressão +<em>pueros</em> e +<em>puellas</em>. Parece haver a necessidade +de +recorrer a um vocabulo especial para exprimir +uma variedade da servidão. Além disso, este +documento +parece igualmente entrar na categoria +de varios outros que citei no meu livro para provar +a adhesão do servo originario á gleba, pelo +modo por que indistinctamente se empregava o +nome do individuo ou o da propriedade para designar +esta. Doando trinta granjas, o doador declara +que são situadas no districto de Nemitos, e +que são <em>Generoso</em>, +<em>Vivente</em> &c. nomes proprios +de individuos e não de predios. +<br /> + +<br /> + +O 3.º documento creio servir antes para combater +a opinião de sr. Muñoz do que a minha. O +doador distingue em dous grupos os servos doados: +a 1.ª dos <em>mancipios</em> e +<em>mancipiellas que foram +das gentes dos ismaelitas e agarenos</em>, e dos +quaes, todavia, uns tem nomes godos, outros nomes +arabes: a 2.ª dos <em>homens de +creação havidos +de avoengas</em> (heranças de familia) +<em>dos antepassados</em> +(do doador) e cujos nomes são todos godos. +Porque a divisão em dous grupos, se a +condição +dos que pertencem a uma e a dos que pertencem +<span class="pagenum">[279]</span> +a outra é absolutamente identica? Porque uns +são chamados <em>mancipios</em>, +outros <em>homens de +creação</em>, +equivalente de servos de raça? Porque entre +os <em>mancipios</em> tem uns nomes godos e +outros +arabes, emquanto os de <em>criazione</em> +são todos godos? +Peço ao sr. Muñoz que aproxime estes factos +das ponderações que acima fiz, e que decida +depois se o documento prova contra a minha, se +contra a sua doutrina. +<br /> + +<br /> + +Refere-se no 4.º documento a historia de uma +demanda entre o conde Ordonho Romaniz e o +mosteiro de Cellanova ácêrca de certas herdades +do mosteiro e dos homens que n'ellas viviam. O +que neste documento importa para a questão é o +desfecho da contenda. Convencido de que não tinha +razão, o conde propôs aos monges uma +transacção, +que acceitaram, e que consistia em elle +possuir as granjas emquanto vivo <em>absque homines +in adtonitum</em>. Nestas ultimas palavras o sr. +Muñoz +vê a separação dos homens da terra. +Será essa +a verdadeira interpretação? +<br /> + +<br /> + +<em>Adtonitum</em> é evidentemente +a traducção latino-barbara +da palavra <em>atondo</em>. +<em>Atondo</em> significava alfaia, +<em>traste de uso</em>, +<em>objecto de serviço</em>. As +obrigações +do servo de gleba, como depois as dos colonos +livres em seculos mais proximos de nós, eram, +<span class="pagenum">[280]</span> +em relação ao senhor da gleba, e depois em +relação +ao senhorio directo do predio, de duas +especies―prestações +agrarias e serviços pessoaes; +estes abrangiam serviços de todo o genero, ainda +os mais baixos; alguns, até, que poderiam ser +feitos por animaes domesticos. Nada mais facil, +portanto, do que applicar a palavra +<em>atondo</em> ao +serviço pessoal dos servos, n'uma épocha que de +certo se não distinguia pela precisão rigorosa da +linguagem<sup><a href="#f82">[82]</a></sup>. +Que ficava percebendo Ordonho por +aquella concessão dos frades? As +prestações agrarias. +Os serviços pessoaes ficavam ao mosteiro. +E os monges procediam assisadamente fazendo +uma concessão restricta ao homem poderoso. Pelos +individuos que agricultavam as glebas, cujos +redditos senhoriaes elles cediam vitaliciamente ao +conde, ficando aliás esses individuos ligados pelos +serviços pessoaes ao mosteiro, era facil provar +a todo o tempo a quem o solo pertencia, se, como +eu creio, o servo se achava unido ao predio que +agricultava e onde vivia. +<span class="pagenum">[281]</span> +<br /> + +<br /> + +Não comprehendo como possa applicar-se á +materia debatida o 5.º documento citado pelo sr. +Muñoz. Para elle servir ao intento era necessario +que a condessa D. Guncina provasse o que affirmava. +Não o provou, porque a sentença deu-se +a favor dos frades. Logo a separação dos dez +homens +pelo rei Ramiro nunca existiu conforme o +que pretendia o abbade de Cellanova. Supponhamos, +porém, que fosse verdade o que ella dizia. +N'esse caso perguntaria: d'onde consta que dez +glebas do testamento de Vanate não passaram +com os dez homens para o dominio do mosteiro +de Porcária? A contenda podia versar sobre os +dez servos e os dez predios, embora se falasse +unicamente de homens: esta confusão da linguagem +juridica nos documentos daquelles tempos +é uma cousa que me parece ter demonstrado no +meu livro até a evidencia. +<br /> + +<br /> + +No 6.º documento doam-se varias granjas <em>com +sua criacione et homines pertinentes</em>, exceptuando +um d'estes homens com seus filhos. Não comprehendo +<span class="pagenum">[282]</span> +igualmente como se possa invocar contra +mim um documento de que me poderia ter servido, +cumulativamente com tantos outros, para +estribar a minha theoria, se o houvera conhecido. +A phrase latino-barbara acima citada exprime +exactamente a situação dos servos: doam-se as +glebas com a <em>sua</em> +creação, com os homens <em>que +lhes pertencem</em>. Supponhamos que a reserva que +se faz de uma familia signifique o que o sr. Muñoz +pretende. Sería um acto legitimo ou illegitimo; +mas o que é certo, pelo menos, é que +até ahi essa +familia pertencia áquellas glebas como os outros +homens de creação. Isoladamente este documento +não seria bastante para provar o facto geral da +adscripção, embora prove que havia adscriptos; +mas o que elle de certo não prova é que a +situação +dos servos na sociedade leonesa fosse a mesma +dos tempos gothicos. +<br /> + +<br /> + +A adhesão á gleba era um facto de indole +complexa. +Por um lado era um progresso immenso +das classes laboriosas no caminho da liberdade; +por outro uma garantia para os donos do solo; +porque, circumscrevendo, coarctando a acção do +senhor sobre o servo, a tornava por isso mais legitima +e por consequencia mais solida. Nas relações +entre ambos havia vantagens mutuas, de que espontaneamente +<span class="pagenum">[283]</span> +se podia ceder de parte a parte para +as trocar por outras vantagens maiores. A +adscripção +não era uma lei escripta, como na Russia +moderna; pelo menos nenhuns vestigios restam +de que o fosse: era um facto social, um costume, +uma praxe, que resultava da natureza das cousas, +de factos politicos anteriores. É possivel apparecerem +exemplos de separação entre o servo e a +gleba por um acto violento do senhor. De que +actos violentos deixa de nos subministrar exemplos +a idade media? Mas o senhor tambem podia +quebrar os laços que prendiam o servo ao predio +com vantagem e assenso delle, como por exemplo +para o unir a uma gleba mais productiva ou +mais vasta, sem que por isso se reputasse offendida +a praxe, a especie de lei mental que a força +das cousas trouxera, e sem que hajamos de inferir +d'ahi a não existencia do facto contrario como +regra. Isto explicaria a reserva de Alvito Pepiz e +seus filhos na doação de 1094 á +sé de Lugo, se +não se podesse tambem entender que com elles +fora exceptuada a respectiva gleba. +<br /> + +<br /> + +Depois do que fica dicto a analyse dos 7.º, 8.º +e 9.º documento do sr. Muñoz parece-me inutil, +e a theoria da adscripção não +obstará por certo á +sua facil interpretação. Seja-me, todavia, licito +<span class="pagenum">[284]</span> +fazer algumas observações a respeito do ultimo +documento. Não me lembra ter jámais visto +mencionado, +nem nos historiadores nem nos monumentos, +um unico mussulmano cujo nome seja +godo. E comtudo na memoria da divisão de Rovoredo +menciona-se o <em>sarraceno</em> Sendimiro. +Não +sería um captivo mosarabe? Mosarabe, porêm, +ou arabe, elle não fora um homem de +creação, +fora um escravo. Diogo Erit fugindo para Rovoredo +casou ahi. Mas porque não sería a mulher +da sua condição e da sua raça? E +então porque +não se daria em troco d'elle uma irmã da sua +mulher? +Que póde esse facto provar contra a +adscripção +dos servos originarios? Onde neguei eu que +a escravidão dos sarracenos ou de seus filhos fosse +a servidão pessoal? +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c10"></a>V +</h3> + +<br /> + +<br /> + +Outra ordem de factos, que o sr. Muñoz recorda +como vehemente indicio de que a condição +dos servos era a mesma dos tempos gothicos, é +que ás vezes os poderosos nas suas +depredações +roubavam uns aos outros os colonos e iam vendê-los, +o que não poderia acontecer se a servidão +pessoal não existisse; que se davam servos aos +mouros em resgate d'illustres captivos<sup><a href="#f83">[83]</a></sup>; +que os +servos eram obrigados ao serviço domestico, a +trabalhos mechanicos da industria, como por +exemplo, a serem cozinheiros, padeiros, tecelões, +carpinteiros, ferreiros, alfaiates, etc.; que alguns +tinham os mais baixos encargos, como limpar +os logares immundos, concertar os caminhos, +tractar das cubas em que seus senhores se banhavam +etc.<sup><a href="#f84">[84]</a></sup>; +o que tudo, no entender do sr. +Muñoz, repugnava á +adscripção. Lembra-se então +de alguns monumentos em que esses factos podem +<span class="pagenum">[286]</span> +estribar-se, e que crê servirem para condemnar +a minha opinião. Examinemo-los. +<br /> + +<br /> + +N'uma doação de Bermudo III á +sé de Santiago +fala-se de um certo Galiariz, que, entre outras +rapinas que fez, roubou seis homens alheios e +vendeu-os como captivos (<em>et vendivit eos sicut +captivos</em>). Se eu procurasse um documento que +positivamente contradissesse a doutrina do sr. +Muñoz, não o acharia por certo mais a proposito. +Galiariz vendeu os servos alheios <em>como se fossem +captivos</em>, e este acto enumera-se entre os seus +delictos. O que pois se vendia sem offensa dos +usos e costumes era o prisioneiro, +<em>captivum</em>. +Vender como tal o servo alheio é uma circumstancia +que aggrava o roubo, e porque? Porque +o servo, o homem d'alguem, não era um captivo, +uma <em>cousa</em> venal. Peço que +se reflicta neste documento. +<br /> + +<br /> + +Dous nobres de Galliza, conforme refere a Historia +Compostellana, foram aprisionados pelos +sarracenos. Tractou-se do seu resgate, e deram-se +para os remir LX <em>captivos christianos, tamen +ex servili conditione</em>. E é sobre +semelhante texto +que o sr. Muñoz assenta a idéa de que se +entregavam +servos originarios aos sarracenos em +resgate de cavalleiros leoneses! Que é o que se deu +<span class="pagenum"><a name="p287" id="p287">[287]</a></span> +pelos dous nobres? Captivos christãos. Pois +<em>captivo</em> +foi nunca synonimo da palavra generica +<em>servo</em>? +<em>Captivo</em>, na idade media, significava +o que +significa hoje, o que significou sempre, o prisioneiro. +O que houve foi uma troca de prisioneiros. +Deram-se por dous sessenta, facto que o historiador +explica: <em>tamen ex servili +conditione</em>. Se +dessem sarracenos nobres dariam um, dous, quatro, +ou seis. Não tinham prisioneiros <a href="#e12">de</a> +mais elevada +jerarchia ou não os quizeram entregar: deram +sessenta de condição servil. Mas esses homens +eram christãos. Por certo; mas tambem eram indubitavelmente +captivos. A Compostellana é igualmente +explicita a ambos os respeitos. Eis a necessidade +de nunca esquecer a população mosarabe. +Por ella se explica facilmente a existencia +de prisioneiros christãos em poder de christãos. +Aprisionados com seus senhores ou sem elles +n'uma batalha ou n'uma correria dos leoneses na +<em>Spania</em>, tinham mudado de donos, e +agora entregavam-nos +a outros donos em cujo poder de +certo a sua condição desgraçada +não melhoraria. +Eis o que unicamente se pode inferir com plausibilidade +da narrativa da Compostellana. +<br /> + +<br /> + +Não escrevendo a historia de Leão, ou dos outros +estados da Peninsula, mas a de Portugal, eu +<span class="pagenum"><a name="p288" id="p288">[288]</a></span> +era obrigado a esboçar rapidamente a +organisação +social da Hespanha de que se desmembrara +a monarchia portuguesa; só, porêm, até +onde +fosse necessario para se entender a historia social +do meu paiz. Apesar disso, creio que fui o +primeiro que tentei fazer sentir aos escriptores +hespanhoes a importancia de dedicar profundas +investigações á historia dos +mosarabes, dessa população +distincta, que, em meu entender, devia +constituir a maioria dos habitantes da Peninsula, +ainda dous ou tres seculos depois da invasão dos +arabes e da tentativa de Pelaio, pela simples razão +de que a grande massa da população de um +vasto paiz não se pode substituir como o poder supremo, +como o predominio de um <a href="#e13">precedente</a> +conquistador, +sobretudo quando se tracta de uma nação +civilisada, e não de tribus selvagens, sempre +insignificantes em numero, e que a atrocidade fria +e permanente dos vencedores chega a destruir no +decurso de seculos. Depois das invasões e conquistas +germanicas, a grande massa da população +do imperio romano ficou sendo celto-romana: depois +da invasão e conquista da China pelos tartaros +mantchús, a maioria dos habitantes daquelle +immenso paiz ficou sendo chim: o sangue inglês +é o sangue anglo-saxonio, apesar do predominio +<span class="pagenum">[289]</span> +normando. E todavia nenhuma daquellas raças +de conquistadores foi tão moderada, tão benigna +para com os vencidos como os arabes na Hespanha. +Por essa mesma brandura e tolerancia certa +ordem de factos politicos e sociaes, que se dão +depois dos grandes cataclysmos das nações, deviam +ser mais prominentes, mais efficazes na +Hespanha, e portanto influir mais poderosamente +nas phases dos acontecimentos posteriores tanto +politicos como sociaes. Nós, os homens d'hoje, +que vimos ou ouvimos contar a nossos paes +as scenas do dominio francês na Peninsula no +principio d'este seculo, deveriamos saber adivinhar +o estado moral da população romano-gothica +depois do estabelecimento do imperio dos khalifas, +se aliás os monumentos fossem menos explicitos +ou guardassem silencio a tal respeito. O +transitorio dominio francês na Peninsula não +deixou +de produzir logo um grande numero de +<em>afrancesados</em> na Hespanha e de +<em>jacobinos</em> em Portugal. +Qual sería o jacobinismo, permitta-se-me +a expressão, entre os godo-romanos em +relação +aos sarracenos pode imaginar-se tendo presente +o estado de dissolução moral do imperio +wisigothico, +anniquilado n'uma unica batalha; o longo +dominio dos arabes; a superioridade da sua +civilisação +<span class="pagenum">[290]</span> +material; a sua tolerancia para com a religião +dos vencidos; o respeito guardado ás +instituições +civis destes; a benevolencia, emfim, dos principes +mussulmanos para com os seus subditos christãos. +Não quero dizer com isto que o patriotismo wisigothico; +que a impaciencia do jugo extranho; que +o sentimento de hostilidade religiosa não ardessem +em muitos corações, e até subissem ao +gráu +de fanatismo. Pelo contrario. Não era preciso +que os monumentos nos dissessem que a reacção +se manifestava até na corte de Cordova. O conhecimento +da indole das paixões humanas dispensa +ás vezes em historia o testemunho dos monumentos. +O homem é essencialmente o mesmo +em todas as epochas. Mas é por isso que os interesses, +a reflexão, os vicios, as virtudes, os habitos, +a educação, as mil causas moraes que impellem +e dirigem o individuo e lhe determinam os +affectos e as tendencias, deviam impellir outros, +e talvez o maior numero, a manifestações +oppostas. +O <em>Indiculo Luminoso</em> de Alvaro de +Cordova, +especie de extenso artigo de fundo de jornal partidario, +libello apaixonado contra o mosarabismo, +revela-nos quão numeroso e importante era o +partido arabe entre os romano-godos da Spania, +partido que abrangia nobres, guerreiros, prelados, +<span class="pagenum">[291]</span> +sacerdotes, magistrados, povo. Se não existisse +este testemunho insuspeito, a razão e a experiencia +nos diriam o mesmo que elle nos diz<sup><a href="#f85">[85]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +Imagine-se agora qual sería durante a lucta entre +a monarchia néo-gothica e o imperio dos Benu-Umeyyas +o papel dessa maxima parte da população +peninsular chamada os mosarabes: uns +indifferentes á contenda, acceitando do mesmo +modo o dominio dos reis d'Asturias e Leão ou o +dos principes sarracenos, no meio dos éstos da +guerra; outros forcejando por identificar-se com +a nova sociedade que se constituia á semelhança +da patria wisigothica; outros, emfim, addictos +por esperanças, por cubiça, por beneficios +recebidos, +e até por laços de sangue, resultado dos +<span class="pagenum"><a name="p292" id="p292">[292]</a></span> +consorcios mixtos, á manutenção do +dominio +mussulmano, e calcule-se quantos factos politicos +haviam de dimanar de um estado de cousas +tal; quantas peripecias, quantas violencias se dariam +em qualquer districto ou provincia da Hespanha +a cada invasão, a cada correria, quer dos +sarracenos, quer dos leoneses; como se traduziriam +em vinganças acerbas os odios occultos; como +as paixões mais oppostas trariam a mudança +de partido e até de crença; como os homens da +mesma raça e da mesma religião se perseguiriam, +se denunciariam por desleaes a um ou a outro +dos dous poderes publicos, que pelos accidentes +da guerra se succediam tão frequentemente nos +variaveis limites dos dous estados; como a <a href="#e14">condição</a> +<span class="pagenum">[293]</span> +do mesmo individuo mudaria mais de uma +vez; como o nobre, o rico, o funccionario, o sacerdote +poderiam cair de repente da situação +mais elevada na mais abjecta servidão, e os mais +humildes elevarem-se por acontecimentos imprevistos +até as mais altas graduações sociaes; +como, +finalmente, os monumentos na sua linguagem, +nos factos que delles resultam podem illudir-nos, +se entre os elementos a que devemos recorrer +para a sua apreciação esquecermos o elemento +mosarabico. +<br /> + +<br /> + +Que se me permitta referir aqui uma anecdota +que pinta a vida agitada da população mosarabe +nos territorios submettidos ora pelos arabes, +ora pelos leoneses, no meio das vicissitudes da +<span class="pagenum">[294]</span> +guerra, e que está confirmando o que precedentemente +disse ácêrca do mosarabismo e das +peripecias a que estavam sujeitos os individuos +naquella situação incerta e cambiante. Dos +territorios +da Hespanha nenhum, talvez, mudou mais +vezes de senhores durante a lucta do que os districtos +d'entre Douro e Tejo, sobretudo nas proximidades +do oceano, e porventura que em nenhum +ficaram mais vestigios da existencia da +sociedade mosarabica, da sua civilisação +material, +das suas paixões, dos seus interesses encontrados, +e até dos seus crimes e virtudes. A +publicação, +que a Academia prepara, dos documentos +dessas epochas, e especialmente dos que nos foram +conservados nos archivos da cathedral de +Coimbra e do mosteiro de Lorvão, +lançará grande +luz sobre o assumpto. É um desses documentos, +tirado do chartulario de Lorvão, o Livro dos +Testamentos, e que foi publicado já por Fr. Munuel +da Rocha, mas horrivelmente deturpado, +que me subministra os elementos de uma narrativa, +a qual reproduz, embora apenas n'uma das +suas phases, o viver daquelles tumultuarios tempos. +<br /> + +<br /> + +Era nos fins do seculo X e regia o abbade Primo +o cenobio de Lorvão. Coimbra, em cujo territorio +<span class="pagenum">[295]</span> +estava situado o mosteiro, pertencia á coroa +leonesa pouco antes da epocha em que a espada +irresistivel do hadjib Al-manssor fez recuar de +novo as fronteiras da monarchia néo-gothica para +além do Douro (987). Os districtos ao sul deste +rio, que depois da invasão de Tarik e Musa tinham +pertencido a maior parte do tempo aos sarracenos, +encerravam uma população essencialmente +mosarabe. Cordova era ainda para ella a +capital da industria, das artes, da civilisação. +O +architecto cordovês Zacharias viera a Lorvão, +provavelmente chamado pelo abbade Primo para +alguma obra do mosteiro. Sabendo isto, os regedores +de Coimbra falaram com o abbade para +que o architecto cordovês construisse algumas +pontes sobre os rios das circumvizinhanças. Primo +accedeu, e acompanhou Zacharias na empreza. +Edificaram-se então quatro pontes, em Alviaster +(Ilhastro), em Coselias (Coselhas), em Latera +Buzat (Ladeiras do Bussaco?) e na ribeira de +Forma (Bossão?) Aqui, em memoria da ambos, +e por conselho do architecto, Primo construiu +umas azenhas que ficaram pertencendo ao mosteiro. +Taes foram os factos succedidos nos fins do +seculo X que narra o documento de Lorvão. +<br /> + +<br /> + +Passaram tres quartos de seculo. Coimbra e o +<span class="pagenum">[296]</span> +seu territorio, submettidos de novo por Al-manssor, +tinham-se conservado sob o jugo do islam. +Fernando magno veio, porêm, a unir definitivamente +aquella provincia á coroa de Leão nos +meiados do seculo XI. As azenhas da ribeira de +Forma já não eram do mosteiro. Fernando I +restituiu-lh'as, +ajunctando o senhorio da ponte. Pelagio +Halaf, nome que indica um mosarabe christão, +fora, segundo parece, espoliado naquella +restituição. Demandou os monges, affirmando +que seu avô Ezerag edificara as azenhas, ao passo +que o abbade Arias invocava os nomes de +Primo e Zacharias. O mosarabe Sisnando, conde +ou wasir de Coimbra, exigindo o juramento de +Arias ácêrca do que este affirmava, manteve a +restituição. Surgiu então novo +contendor. Era +Zuleiman Alafla, primo-coirmão de Pelagio, talvez +mussulmano, talvez christão, mas como elle da +raça mosarabe. Sisnando enviou os contendores +á curia do rei. Ahi, longe de estribar o seu direito +na fundação do avô, Zuleiman recorreu a +um +titulo que hoje sería singular, mas que então +elle +cria assás natural, e sufficiente para legitimar +a sua pretensão. Era a historia do que se havia +passado quando Al-manssor se apoderara de +Coimbra. Ezerag habitava em Condeixa quando +<span class="pagenum">[297]</span> +se restabeleceu o dominio de Cordova. No tumulto +da invasão os habitantes das aldeias internavam-se +nos bosques. Ezerag pensou então que a +desordem geral podia enriquecê-lo. Dirigiu-se ao +chefe sarraceno Farfon-ibn-Abdallah, e abraçou o +islamismo. Depois pediu trinta soldados sarracenos, +escondeu-os nas brenhas, e dirigindo-se á +gente foragida, aconselhou-os a voltarem aos +seus lares, asseverando-lhes que tudo estava pacificado. +Acreditaram-no e voltaram ás aldeias. +Os soldados sarracenos, saindo então dos escondrijos, +captivaram muitos, e levando-os a Santarem +venderam-nos por grossas sommas. Os captivos +foram conduzidos a Cordova com guia de +Ibn-Abdallah e com o preço por que tinham sido +vendidos. Então Ezerag pediu em recompensa os +moinhos de Forma e diversas aldeias. Al-manssor +concedeu-lhe tudo; porque Al-manssor era +um heroe, e os heroes não tem tempo para pensar +nos direitos da humanidade conculcados<sup><a href="#f86">[86]</a></sup>. +<span class="pagenum">[298]</span> +Era nesta concessão que Zuleiman fundamentava +a sua justiça. +<br /> + +<br /> + +A doação do hadjib aos olhos de Alafla, do neto +do renegado, era um titulo legitimo, embora +essa mercê tivesse tido por causa uma atroz villania, +e procedesse de um acto de auctoridade +que o tribunal leonês, conforme as ideas de hoje, +não poderia reconhecer. Zuleiman, porêm, suppunha +tão legitima, tão respeitavel a +concessão +de Al-manssor como o julgamento da curia de +Fernando-magno. Era um poder que passara na +terra: era outro que nella existia agora. Nisto se +resumia, necessariamente, a crença politica de +uma grande parte dos proprietarios e agricultores +mosarabes. Mas o mais importante neste documento +é o proceder d'Ezerag e os factos que +d'ahi resultaram. Elles nos explicam como quaesquer +individuos da grande maioria da população +podiam descer ao misero estado d'escravos. Sem +<span class="pagenum">[299]</span> +duvida a historia de Ezerag não é a unica da sua +especie succedida naquelles quatro seculos de +uma terrivel lucta: devia repetir-se com circumstancias +variadas. E é mais que provavel que as +conversões ao christianismo por baixos intuitos +de cubiça, de vingança ou de +traição, fossem, +pelo menos, tão frequentes como as conversões +mussulmanas. +<br /> + +<br /> + +Insisti neste ponto, porque o reputo capital. +Passemos agora á objecção deduzida de +serem +os servos originarios obrigados a trabalhos industriaes +e ao serviço domestico dos senhores, +trabalhos e serviços que, no entender do sr. +Muñoz, +repugnavam á adscripção da gleba. +<br /> + +<br /> + +No opusculo do sr. Muñoz parece-me haver +duas preoccupações que allucinam o illustre +escriptor. +A primeira é a das idéas modernas applicadas +ás expressões, ás phrases e aos factos +da idade media. Desta é facil possuirmo-nos, e +nella terei eu caído mais de uma vez. A outra é +na verdade singular, mas em boa parte deriva +da primeira. Consiste em suppôr a impossibilidade +de accumular os trabalhos da vida rural +com os industriaes e mechanicos, ou com os serviços +pessoaes feitos a outro individuo. Entre as +nações onde o progresso das industrias fez +predominar +<span class="pagenum">[300]</span> +quasi exclusivamente o principio economico +da divisão do trabalho, effectivamente +não se dá tal associação: o +official mechanico, o +operario fabril, o creado domestico não associa +de ordinario a occupação a que se entregou com +o grangeio dos campos. Mas assim como a divisão +e subdivisão dos misteres se vai multiplicando +com o desenvolvimento industrial, assim +quanto mais atrazado se acha um povo, mais o +homem varía de occupações, porque +é obrigado +a variar, e porque justamente a imperfeição das +industrias, a simplicidade e grosseria dos artefactos +favorecem a accumulação e a variedade das +occupações individuaes. Não sei o que +succede +em Hespanha: em Portugal, nos districtos ruraes, +mais de uma industria fabril se associa +com a agricultura sob o tecto do lavrador. E todavia, +por atrazado que esteja este paiz nos progressos +fabris, está sem comparação mais +adiantado +do que a monarchia leonesa no seculo X ou +XI. +<br /> + +<br /> + +Recusar admittir que o servo da gleba podesse +separar-se do cultivo da mesma gleba para se +empregar de outro modo no serviço do senhor, +não é só negar o passado; é +negar o presente. +O camponês russo é servo da gleba, e nem por +<span class="pagenum">[301]</span> +isso deixa de separar-se della para exercer outros +misteres. O que não pode é ser vendido +como os brutos. Muda de senhor, ao menos legalmente, +só quando é alienada a terra a que +pertence. +<br /> + +<br /> + +O V volume da Historia de Portugal, ainda +não publicado, conterá uma parte relativa ao +systema do tributo, da renda, e do serviço publico +nos seculos XII e XIII. Ahi se encontrarão numerosas +provas de que n'uma épocha em que já +a adscripção voluntaria succedera á +forçada existiam +para o colono, pessoalmente livre, ao lado +das prestações agrarias esses mesmos encargos +de serviço pessoal que ao sr. Muñoz parece +repugnarem, +não ao colonato livre, mas á propria +servidão da gleba; e o mais é que continuamos +a encontrá-los ainda nos contractos emphyteuticos +de seculos mais modernos. Por singulares, +por extranhos á vida rural que esses serviços se +nos affigurem nos documentos citados no opusculo +que examino, os dos colonos portugueses +do seculo XIII, colonos indubitavelmente livres +de uma gleba serva, não são menos singulares +e extranhos. Lembrarei, entre outros, o encargo +que pesava sobre os moradores de tres casaes +de Tras-os-Montes. Deviam ir servir de espias +<span class="pagenum">[302]</span> +em Leão quando a isso os enviassem.<sup><a href="#f87">[87]</a></sup> Era, +por certo, um serviço mais abjecto do que o +<em>purgare tristigas</em> de que falam os +documentos +leoneses. +<br /> + +<br /> + +Mas o mais notavel é que o proprio sr. Muñoz +se encarregou de combater a sua opinião. Ao +lado da servidão <em>pessoal</em> +dos servos <em>originarios</em> +admitte a existencia da servidão de gleba, a existencia +simultanea de adscriptos, de que fórma +uma classe á parte. Depois de enumerar as +prestações +agrarias que pagavam esta especie de colonos-servos, +o sr. Muñoz adverte<sup><a href="#f88">[88]</a></sup> +que, além de +uma quota de fructos, e de variadas foragens, +esses colonos forçados estavam adstrictos a +serviços +pessoaes, que consistiam nos amanhos de +predios diversos da propria gleba, em +construcções +de edificios, e <em>em fazer quanto se lhes +ordenasse</em>. +Suppôs o sr. Muñoz que havia +contradicção +em dizer eu que os servos originarios eram +<span class="pagenum">[303]</span> +todos adscriptos e ao mesmo tempo obrigados a +serviços pessoaes fóra da respectiva gleba, e +todavia +não só acceita essa doutrina contradictoria +no seu mesmo opusculo, mas, além disso, acceita-a +depois de affirmar a sua impossibilidade, +para desta inferir contra mim a continuação na +monarchia ovetense-leonesa da servidão wisigothica. +Se os serviços pessoaes alheios ao cultivo +da gleba importavam forçosamente a +não-adscripção, +é necessario confessar que a +adscripção, +cuja existencia o sr. Muñoz crê descubrir ligada +com quaesquer encargos de serviço pessoal ao +senhor, é um sonho, e que os documentos que +se referem a esse estado de cousas, ou são falsos, +ou se hão de entender, custe o que custar, +de escravos semelhantes aos dos wisigodos ou +aos captivos sarracenos. +<br /> + +<br /> + +Na <em>Colleccion de Fueros +Municipales</em><sup><a href="#f89">[89]</a></sup> +publicou +o sr. Muñoz dous interessantes documentos sem +data, mas que parecem do seculo IX, relativos +aos encargos pessoaes dos servos originarios. A +estes documentos se reporta igualmente no seu +opusculo para abonar a these que estabelece da +existencia simultanea de adscriptos e de escravos +<span class="pagenum">[304]</span> +originarios. É o primeiro uma memoria dos +serviços a que era obrigada para com a sé de +Oviedo cada familia serva da terra de Gauzon: +é o segundo uma memoria especial das +obrigações +dos servos de Pravia, logar ou aldeia incluida +no mesmo territorio de Gauzon. Na +<em>Colleccion</em> +vê-se que as idéas do sr. Muñoz +fluctuavam +ainda. Estas duas memorias suppõe-nas +elle ahi relativas indistinctamente aos servos da +sé ovetense residentes naquelle territorio, quer +adscriptos, quer não: no opusculo<sup><a href="#f90">[90]</a></sup> +suppõe-nas, +porém, relativas exclusivamente aos +não-adscriptos, +isto é, aos servos de raça, que, segundo +a sua doutrina, continuaram a ser na monarchia +néo-gothica de condição identica +á dos servos do +VI e do VII seculos. +<br /> + +<br /> + +Permitta-me, todavia, o sr. Muñoz pensar que +se houvera reflectido mais detidamente nestes +documentos elles o teriam, talvez, conduzido a diverso +resultado. Suppondo que se refiram a servos +que, no seu entender, equivaliam a cousas, e +de que seu antes dono que senhor podia dispôr +livremente, a propria existencia dessa especie +de memorias sería incomprehensivel. Na idade +<span class="pagenum">[305]</span> +media não se escreviam cousas absolutamente +inuteis, porque a arte de escrever poucos a possuiam, +e até a materia da escriptura era assaz +rara. Ora nada mais completamente inutil do que +esses <em>cobrinellos</em> ou ementas, dada a +theoria do +sr. Muñoz. Para que escrever n'um pergaminho: +<em>a familia de fulano de tal aldeia ou +granja</em> (villa) +<em>é obrigada a tal +serviço</em>? Pois uma familia de +escravos, que pode ser empregada a bel prazer +do senhor nos mais oppostos misteres dentro do +mesmo anno, do mesmo mez, do mesmo dia, +como um animal domestico; que por arbitrio delle +pode mudar de domicilio quando isso convier; +que, em summa, pode collectiva ou individualmente +ser vendida, escambada, doada; uma tal +familia, digo, tem acaso obrigações determinadas, +de que seja necessario conservar a memoria para +o futuro? De que serve declarar a granja, o villar, +o casal onde cada uma dessas familias reside, +se, no dia seguinte ao da redacção da ementa, o +senhor pode achar mais conveniente outra +distribuição +dos seus escravos? Apesar da facilidade +com que hoje se escrevem cousas inuteis, não se +reputaria louco o proprietario que escrevesse e +archivasse a seguinte memoria: <em>A raça do +cavallo +N. tem de conduzir madeiras; a raça do +touro</em> +<span class="pagenum">[306]</span> +<em>N. tem de lavrar taes terras; tal vehiculo tem +de servir de transporte a tal objecto; tal alfaia é +destinada a tal uso</em>? +<br /> + +<br /> + +Na minha opinião, o que estas memorias provam +é o mesmo que provam directa ou indirectamente +todos os documentos que se referem +á condição ou aos encargos dos servos +originarios, +ou homens de creação: é que estes +estão +unidos a certos predios indissoluvelmente; que +desse complexo do homem e do predio o senhor +tem de auferir prestações agrarias e +serviços +determinados. Nesta hypothese o +<em>cobrinellum</em> é +uma cousa racional. A <em>casata</em>, isto +é, a familia +que vive n'uma certa choupana ou grupo de +choupanas, (<em>casa</em>) tem de satisfazer, +de geração +em geração, perpetuamente, aquelles encargos. +Os enlaces inevitaveis com outras familias podem +produzir complicações de direitos entre diversos +senhores, mas o <em>cobrinellum</em> ou +ementa +particular de cada um servirá para os deslindar, +indicando os serviços, independentes das +prestações +agrarias, que essas familias devem, +<em>debent</em>. +Esta idéa de dever que se manifesta nos +documentos presuppõem a do direito. O escravo +não tem deveres; porque as +<em>cousas</em> são incapazes +delles. Nos proprios tempos barbaros dever +<span class="pagenum">[307]</span> +e direito são inseparaveis; porque as duas idéas +são forçosamente correlativas. +<br /> + +<br /> + +Conforme o que n'outro logar adverti, a +adscripção +não era de feito simplesmente uma +grande restricção da liberdade; importava tambem +vantagens, as de uma especie de co-propriedade +do servo colono na sua gleba. O sentimento +do servo de gleba devia ser analogo ao +do camponês russo dos nossos tempos. «No +momento em que os servos separados da terra―diz +o marquez de Custine―vissem vendê-la, +arrendá-la, cultivá-la independentemente delles, +amotinar-se-hiam de golpe, clamando que os +despojavam <em>dos seus bens</em><sup><a href="#f91">[91]</a></sup>. Do +mesmo modo +que na Russia, onde se caminha da barbaria para +a civilisação, nas origens barbaras da monarchia +néo-gothica a adscripção como regra +succedeu +naturalmente á servidão pessoal, e a +servidão +da terra cultivada por um colono pessoalmente +livre succedeu á adscripção nos +seculos +XII e XIII, como me persuado que demonstrei +no meu livro. Suppôr que da escravidão se passou +de salto á liberdade pessoal affigura-se-me +a supposição de um impossivel historico. +<span class="pagenum">[308]</span> +<br /> + +<br /> + +Effectivamente: como achamos mais geralmente +estabelecido o colonato nos seculos XII e XIII? +O colono é <em>obrigado</em> a +morar no predio que cultiva, +mas não é forçado a isso. Se delle +sai, não +lhe é licito cultivá-lo; perde-o; não +o reconduzem, +porém, violentamente a elle. A união do +homem á terra subsiste, mas essa união +não é +indissoluvel. A liberdade pessoal nasceu. Entre +esta situação e a do homem-cousa, do escravo, +ha um abysmo. Como se transpôs? O meio principal +consistiu na servidão da gleba. O homem-cousa +foi-se transformando em <em>pessoa</em> +serva: a +pessoa serva em pessoa livre; mas ficou ainda +adscripta na qualidade de colono. Para ser plenamente +pessoa livre precisava de desaggregar de +si esta qualidade; de divorciar-se da gleba, a que +aliás o prende esse amor ardente do homem de +trabalho ao solo que cultiva. E que importava, +se <em>podia</em> fazê-lo? +É por isso que disse no meu +livro que a servidão desceu do homem para a +terra. Depois, lentamente, é que veio o colonato +na sua fórma quasi definitiva: o laço unico que +liga o colono é a solução do canon e a +prestação +dos serviços pessoaes ao já não +<em>senhor</em>, mas +<em>senhorio</em>. +Depois, finalmente, chegou-se á formula +definitiva: os serviços pessoaes ou desappareceram +<span class="pagenum">[309]</span> +ou poderam ser substituidos, á vontade do +colono, pela solução de um +<em>quantum</em> que os representasse. +Desde este momento o colonato não +conteve mais em si elemento algum que repugne +ás nossas idéas actuaes de direito, e nem sequer +ás da economia politica. +<br /> + +<br /> + +Eu cri ver a liberdade humana despontando +tenue nos horisontes da vida do povo desde os +tempos wisigothicos. Para o sr. Muñoz a noite +profunda da escravidão durou nesses horisontes +até a fatal jornada do Guadalete. E não +só, na sua +opinião, durou até aquella epocha, como tambem +subsistia ainda com todo o peso das suas +sombras no seculo XI. Mas em que periodo collocar +a transição para a liberdade pessoal dos seculos +XII e XIII, cuja existencia demonstrei como +facto predominante no colonato dessa epocha, se +não for no estado dos servos originarios da monarchia +leonesa? Se assim não houvera sido, singular +excepção á lei de desenvolvimento +gradual +e constante do progresso humano sería a historia +da Peninsula durante quatro seculos! +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c11"></a>VI +</h3> + +<br /> + +<br /> + +O sr. Muñoz contrapõe ainda á minha +opinião +varios factos, que entende provarem ser o estado +dos servos o de cousas na monarchia de Oviedo +e Leão. Um delles é não ter o servo +representação +em juizo, nem poder servir de testimunha, +havendo outro meio de prova. +<br /> + +<br /> + +De se me oppôr este facto parece poder inferir-se +ter eu affirmado em alguma parte que o +servo se convertera em homem plenamente livre +na monarchia leonesa. Nesta hypothese a objecção +poderia parecer plausivel, ainda que realmente +o não seja; porque não se segue da plena +liberdade +do individuo, em qualquer estado social, a +necessidade positiva de ser igual em direitos, ainda +civis, a todos os individuos livres. O que, porêm, +affirmei, e o que julgo poder continuar a +affirmar é que a servidão mais ou menos absoluta +dos wisigodos se tornou na monarchia néo-gothica +em servidão da gleba, e que esta +modificação +foi um grande passo para a emancipação +das classes populares. Se o servo não podia desaggregar-se +<span class="pagenum">[311]</span> +da gleba, é evidente que a gleba +tambem não podia desaggregar-se do servo, e que +desse estado resultava para elle uma especie de +co-propriedade de facto, que, por indestructivel, +creava um direito positivo. O alcance deste direito +era tal que as suas consequencias, na successão +dos tempos, deviam trazer mais tarde ou mais +cedo a plena liberdade pessoal, como de feito trouxeram. +Eis o que eu estabeleci. Objectivamente, a +existencia da pessoa civil resulta da +manifestação +da sua capacidade juridica, embora essa +manifestação +seja incompleta. Entre os romanos, o servo +considerava-se como cousa, porque objectivamente +era incapaz, não de um ou de outro direito, +mas de todos elles, e por isso perdia a personalidade: +nas sociedades modernas, porêm, o privilegio, +a jerarchia, a idade do homem, o seu estado +physico ou moral produziram sempre e produzem +ainda differenças de direitos, até civis, +que nem por isso destroem a personalidade +de ninguem. Fosse o poder publico, fosse o +proprio adscripto que podesse invocar o principio +da adscripção para não ser +violentamente separado +da gleba nativa; fosse o costume, a opinião, +ou a lei que sanctificasse a união da terra +com o seu cultor, o que é certo é que se +invocava, +<span class="pagenum">[312]</span> +sanctificava e mantinha um direito, uma vantagem +importantissima do adscripto. Fosse qual +fosse a dependencia deste do respectivo senhor, +a sua personalidade existia. +<br /> + +<br /> + +Assim, quaesquer que fossem as restricções que +houvesse a respeito dos servos no systema judicial +desde o seculo VIII até o XII, essas +restricções +nem provam contra a personalidade objectiva +dos servos, nem importam á adscripção +ou não +adscripção. Sobre aquelle systema judicial e +sobre +o papel que os servos representavam nos pleitos +poderia accrescentar aqui algumas ponderações +que me parece mereceriam a attenção do sr. +Muñoz, +mas que me levariam mais longe do que +comportam as dimensões deste pequeno trabalho, +e que seriam sobejas para o fim que me proponho. +Deixando, pois, de parte questões agora +inuteis, venhamos a outros factos juridicos em +que o sr. Muñoz vê a morte da personalidade, +e que evidentemente não provam o que elle pretende, +antes em parte demonstram que do mais +ou menos incompleto dos direitos civis em individuos +desta ou daquella classe nunca se poderá +deduzir a escravidão, a não-personalidade, a +suppressão absoluta desses direitos. +<br /> + +<br /> + +«Competia ao dono sómente―diz o sr. +Muñoz―reclamar +<span class="pagenum">[313]</span> +a indemnisação do damno padecido +pelo servo como cousa de sua propriedade<sup><a href="#f92">[92]</a></sup>.» +Os documentos, aliás numerosos, em +que esta affirmativa póde estribar-se não servem +de modo algum para dirimir a contenda; +porque para provarem a não-personalidade dos +servos e a sua não-adhesão á gleba +(suppondo +que o facto o provasse) cumpria mostrar que +elles se referiam aos servos originarios, e não +a escravos captivos. Admittindo, porêm, que +taes documentos se refiram a servos originarios, +essa concessão de nada servirá para revalidar a +opinião do sr. Muñoz. A +representação pelo senhor +não se limitava ao escravo, e nem mesmo +a este e ao servo de gleba: estendia-se a individuos +livres collocados na dependencia juridica +de alguem. Seguir-se-ha d'ahi que semelhantes +individuos eram cousas; não tinham personalidade? +<br /> + +<br /> + +O sr. Muñoz estabeleceu excellentemente no +seu opusculo<sup><a href="#f93">[93]</a></sup> +a natureza da maladía. O malado +era o homem livre, que se collocava n'uma especie +de vassalagem para com seu senhor adoptivo, +<span class="pagenum">[314]</span> +e esta especie de relações provei eu que +eram inteiramente pessoaes e independentes do +caracter de colono, situação em que o malado +podia estar em relação a outro senhor, bem como +mostrei a transmissão da maladia de paes a +filhos<sup><a href="#f94">[94]</a></sup>. +A reparação, porêm, dos +damnos feitos +aos malados revertia ainda no seculo XI em beneficio +do patrono<sup><a href="#f95">[95]</a></sup>. +Admittida a doutrina estabelecida +depois pelo sr. Muñoz, esta jurisprudencia +provaria contra elle proprio; provaria +que o malado, longe de ser, como tal, homem +livre, era apenas uma cousa, apenas uma propriedade +do <em>dominus</em>. +<br /> + +<br /> + +Como os malados, os solarengos (solariegos) +eram colonos livres. Di-lo o sr. Muñoz, e com elle +dizem-no os monumentos. Todavia nós lemos +no Foro Velho de Castella<sup><a href="#f96">[96]</a></sup>: +«<em>Ninguem deve +pousar nem entrar por força em casa de nenhum +solarengo, e se alguem o fizer deve pagar</em> +<span class="pagenum">[315]</span> +<em>300 soldos ao senhor, de quem for o solar, e o +damno em dobro ao lavrador que recebeu o +aggravo</em>». +Nos foraes do typo de Salamanca lemos +tambem: «<em>Se alguem matar o creado de +qualquer +vizinho, receba este a multa do homicidio. +O mesmo é applicavel ao seu hortelão, ao caseiro +que lhe paga quartos, ao seu moleiro e ao seu +solarengo</em><sup><a href="#f97">[97]</a></sup>». +<br /> + +<br /> + +A simples relação de vassalagem e clientela +produzia ás vezes os mesmos effeitos. Assim, +em alguns desses foraes do typo de Salamanca +se estatue tambem que <em>se forem assassinados +homens que alguem tenha nas suas herdades, +ou que sejam seus vassalos pertencerá ao senhor +a multa do homicidio</em><sup><a href="#f98">[98]</a></sup>. +<br /> + +<br /> + +Eis aqui como ainda nos seculos XII e XIII o senhor +ou patrono havia a multa dos crimes commettidos +contra os seus dependentes, sem que +<span class="pagenum">[316]</span> +d'ahi se possa nem por sombras inferir que a dependencia +do cliente, do vassalo, do malado, do +solarengo ou do creado fosse a da escravidão. +Nada direi acerca de o sr. Muñoz qualificar a +<em>calumnia</em>, +a multa judicial, <em>de compensação +pecuniaria +imposta como pena ao matador</em>. O sr. +Muñoz sabe perfeitamente que não era essa a +indole +de taes multas: foi uma phrase inexacta que +lhe escapou na rapidez da composição, como talvez +me terão escapado a mim outras analogas. +Mas o que não posso deixar de observar é uma +circumstancia que prova como os espiritos mais +elevados e de mais solida sciencia chegam a precipitar-se +quando subjugados por um preconceito. +Possuido da idéa da escravidão dos servos +originarios nos quatro primeiros seculos da monarchia +leonesa, o sr. Muñoz, ao passo que viu +dimanar a não-personalidade do servo do direito +do senhor ás multas dos crimes perpetrados contra +elle, não viu, buscando estribar-se em documentos, +que o primeiro que citava, tirado de um +chartulario do mosteiro de Cellanova, continha a +refutação peremptoria da sua doutrina. Este +documento +do anno 940 é uma carta ao mesmo +tempo de +<em>agnição</em> e de +<em>incommuniação</em>, +em que +Pelagio <em>incommunía</em> os +bens que tinha em certas +<span class="pagenum">[317]</span> +aldeias a D. Ilduara e a seus filhos, por elle haver +com uns clientes seus espancado por tal modo +Froila, <em>junior</em> de D. Ilduara, que o +espancado +morrera, e Pelagio, não podendo talvez pagar a +D. Ilduara a multa que lhe fora imposta, recorria +ao expediente de lhe <em>incommuniar</em> +aquelles +bens<sup><a href="#f99">[99]</a></sup>. +Mas Froila era um <em>junior</em>, +colono da mais +humilde classe, porêm livre. O texto das cortes +de Leão de 1020 e a sua antiga versão em vulgar +não consentem que se interprete de outro +modo a palavra <em>junior</em>: nisto o sr. +Muñoz está +perfeitamente de acôrdo comigo no seu commentario +áquelle celebre monumento legislativo<sup><a href="#f100">[100]</a></sup>. +Como, pois, se invoca um diploma que formalmente +contradiz a doutrina que é destinado a +sustentar? +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3><a name="c12"></a>VII +</h3> + +<br /> + +<br /> + +Os consorcios entre individuos das classes servis +offereciam varias hypotheses juridicas: o servo +podia casar com uma serva do mesmo senhor, +ou com a de outro: ter um ou mais filhos ou nenhum: +o marido podia ir viver na residencia anterior +da mulher, ou a mulher na residencia anterior +do marido: materialmente, essas translações +de domicilio podiam occorrer com licença +do senhor ou sem ella. Estes diversos factos influiam +necessariamente nas relações do senhor e +do servo. Restam em Portugal e em Hespanha +bastantes documentos de que elles se davam, e +de que se buscavam arbitrios para solver as difficuldades +que d'ahi procediam. Achamos contractos, +inqueritos, memorias particulares, sentenças, +em que se previnem, se memoram, ou se +remedeiam as consequencias dessas varias hypotheses +em relação aos direitos dos senhores, e +em que, portanto, obtemos a certeza de ellas se +haverem dado desde o VIII até o XII seculo. Para +occorrer aos conflictos de interesses e de direitos, +<span class="pagenum">[319]</span> +vê-se dos mesmos documentos que se recorria +á divisão das familias. Em que consistia esta +divisão? O que é que se passava na realidade? +<br /> + +<br /> + +O desacôrdo entre mim e o sr. Muñoz já +se +vê que deve ser completo na apreciação +dos documentos +relativos a semelhante assumpto. Elle +vê a escravidão como +condição geral dos individuos +da classe servil do seculo VIII ao XII: eu +vejo-a só em relação aos captivos +sarracenos, e a +servidão da gleba em relação aos +<em>homines de creatione</em>, +aos <em>servi originales</em>. N'uma nota do +meu +livro<sup><a href="#f101">[101]</a></sup> +mostrei, segundo creio, que os documentos +com que elle pretendera provar que os filhos +do servo e da serva de differentes senhores se +dividiam entre estes<sup><a href="#f102">[102]</a></sup> +se deviam entender de um +modo diverso. Na minha opinião, o que se dividia +eram os serviços pessoaes, e em certos casos +(como na incerteza de pertencer a um ou a +outro senhor o dominio da gleba habitada pelo +homem de creação) as +prestações agrarias. Em +relação ás glebas possuidas de paes a +filhos pelas +familias servas, a minha theoria era e é que +o <em>dominio</em> e o +<em>uso</em> de qualquer desses predios se +<span class="pagenum">[320]</span> +moviam em duas espheras: que o +<em>dominio</em>, manifestado, +traduzido materialmente na percepção +das prestações agrarias e na exigencia de +serviços, +era a propriedade do senhor; constituia o +objecto de uma grande parte desses milhares de +contractos do seculo VIII ao XII que restam nos archivos +da Peninsula; que o que se vendia, doava, +escambava mais ordinariamente era o direito a +haver dos servos, dos <em>juniores</em>, dos +malados, +dos solarengos, do homem de trabalho, em summa, +ingenuo ou não ingenuo, certas +prestações +agrarias e certos serviços pessoaes, que nas glebas +servis derivavam da duplicada servidão do +homem e da terra a que estava unido, e que na +herdade ou casal do peão +(<em>junior</em>), na maladia, +no solar, derivavam de um contracto voluntario, +tacito ou expresso; que as prestações e os +serviços +do adscripto, representando a renda da terra +e a obrigação servil do individuo nella +incorporado, +eram duas cousas que facilmente podiam +distinguir-se quando por consorcios, ou por outra +qualquer eventualidade, o direito ás +prestações +da gleba e aos serviços do homem ou da familia +vinha a achar-se dividido entre dous proprietarios +(<em>domini</em>) diversos; que, assim +distinctos, +tanto aquellas prestações, como aquelles +<span class="pagenum">[321]</span> +serviços podiam não só affastar-se, +unir-se de +novo, mudar de proprietario separadamente por +toda a especie de transmissão, mas até +fraccionar-se +em si mesmos ou accumular-se, sem que +por isso mudasse a condição do individuo que +usufruia o predio, quer como adscripto, quer +como colono livre. +<br /> + +<br /> + +Não sei se varios documentos que o sr. Muñoz +cita, logo no principio do seu opusculo<sup><a href="#f103">[103]</a></sup>, +provam, +como elle pretende, que as palavras +<em>servus</em>, +<em>homo</em>, +<em>creatio</em>, +<em>familia</em> se applicavam +indistinctamente +aos servos, ás familias da mesma origem, +aos adscriptos, e não poucas vezes aos homens +livres, postoque sujeitos a alguma especie de vassalagem. +Não vem isso para esta questão. O que +sei é que mostram, como muitos outros, a verdade +da precedente theoria, por ser ella unicamente +que os explica. Assim, lemos alli que em 934 +Eximina doou a aldeia ou granja de Malares ao +mosteiro de Sobrado com todos os seus bens e +pertenças, <em>e com todos os seus homens, +assim +servos como livres, que serviram na mesma aldeia +no tempo de meus paes e avós</em>; lemos que +em 1016 o mesmo mosteiro fez um escambo +<span class="pagenum">[322]</span> +com Gutier Dominico dando este a aldeia de Luzario +com as suas dependencias e <em>com a sua +creação, servos e libertos e homens livres, +quantos +servem na mesma aldeia</em>; vemos que na +doação +de certas aldeias ao mosteiro de S. Salvador, +em 932, se diz doarem-se <em>com a familia, libertos +e pessoas livres (que façam) ao dicto mosteiro +e aos dictos senhores o serviço que costumavam +fazer</em>. Como explicar doações e +escambos +de pessoas livres e ainda de libertos conjunctamente +com os de servos e com os das aldeias +em que tantos estes como aquelles moravam, se +entendermos esses documentos ao pé da letra? +Não é evidente que se tracta das +prestações agrarias, +que pagavam tanto as glebas servis, como +os predios colonisados por homens livres, e dos +serviços que tanto os adscriptos como os ingenuos, +forçadamente uns e por contractos espontaneos +outros, eram obrigados a fazer? Não vemos, +até, no 1.º documento que os individuos de +ambas as categorias são, sem +distincção, +<em>herdeiros</em>, +uns nos predios colonisados, outros nos predios +de adscripção, porque os serviços que +delles +devem uns e outros vem de tempos remotos: +<em>tam servis seu ingenuis qui ad ipsam villam +deservierunt +in vita aviorum et parentum meorum</em>? +<span class="pagenum">[323]</span> +<br /> + +<br /> + +A hereditariedade do servo na gleba, consequencia +forçosa da adscripção, eis, como +já disse +n'outra parte, o grande passo dado na Peninsula, +desde o seculo VIII até o XII, pelo homem de +trabalho, pelo antigo escravo, para a liberdade. +Quando o artigo VII do concilio ou cortes de +Leão de 1020 diz:―<em>Ninguem +compre</em> a herdade +do servo da igreja, do rei ou de alguem. +<em>Quem a comprar perca-a e o que deu por +ella</em>―faz-nos +recordar a doutrina parallela do codigo +wisigothico<sup><a href="#f104">[104]</a></sup>. +Mas ha na lei de 1020 duas palavras +que assignalam um abysmo entre as duas +legislações: <em>haereditatem +servi</em>, phrase que seria +monstruosa no seculo VII, mas que no XI indica +apenas um facto assás trivial para exigir providencias +que o regulem e limitem. <em>Haereditas</em> +é nas actas daquella assembléa, como em geral +nos documentos das Hespanhas, o +<em>hereditagium</em> +de além dos Pirenéus; é o predio +possuido de +paes a filhos, o predio em que se succede por +herança. O servo ligado á gleba sabe que, quando +morrer, ficarão ahi os proprios descendentes; +porque tambem sabe que elles e a gleba mutuamente +se pertencem. Nas palavras <em>herdade +do</em> +<span class="pagenum">[324]</span> +<em>servo</em> está resumida a +historia de uma transformação +social. +<br /> + +<br /> + +Que oppõe o sr. Muñoz a um facto que as leis, +os contractos, as decisões forenses conspiram +em mostrar não só como existente, mas tambem +como universal em relação a todos os servos +originarios ou homens de creação? Uma +difficuldade +practica. Suppõe que o servo de uma gleba +poderia ir casar com uma mulher de uma gleba +remota e de diverso senhor. Prestações agrarias +não as podia pagar, porque a terra era de +outro dono; serviços pessoaes não os podia +prestar, +pela distancia em que vivia. Assim seus filhos. +Dividindo-se estes materialmente, e levando +o senhor do pae metade delles, emquanto a +outra metade ficava na gleba materna, aquelles +podiam ter o destino que conviesse a seu dono +se eram escravos, ser repostos na gleba paterna +se fossem de raça adscripta. D'aqui a necessidade +de entender os documentos no seu sentido apparente, +e de crer que a praxe de se dividir a +prole dos servos de dífferentes senhores era a +geralmente seguida. Ora esse facto, equiparando +a classe servil aos bens semoventes e aos +moveis, destruia a personalidade dos individuos +de semelhante classe, escrava em tal hypothese, +<span class="pagenum">[325]</span> +situação que o opusculo do sr. Muñoz +tende a +provar ser a dos servos desde o VIII até o XII seculo. +<br /> + +<br /> + +Mas este argumento pécca pela sua propria +indole. Inferir que não existiu, ou pelo menos +que não foi geral e predominante certa +instituição, +de ter ella inconvenientes, que aliás não +existiriam +predominando uma instituição diversa ou +contraria, e concluir d'ahi que foi esta a que +existiu ou predominou, parece-me que seria um +pessimo raciocinio na historia de épochas e de +paizes altamente civilisados, quanto mais na de +eras semi-barbaras e de um paiz semi-barbaro. +Que havia em Oviedo e Leão desde o VIII seculo +até o XII no direito publico, na +administração, +no estado das pessoas, nas relações civis, que +fosse absoluto, uniforme, sem excepção na +practica? +Que condições sociaes havia que não +fossem +incompletas, antinomicas, obscuras sob um +ou sob outro aspecto? Que foi a idade média, +senão a infancia dolorosa e longa da +civilisação +moderna; que foi, senão uma serie de experiencias +e tentativas de organisação das +nações, que +surgiam do singular consorcio da sociedade romana, +corrupta e dissolvida, com as aggregações +quasi selvagens das hostes e das tribus germanicas, +<span class="pagenum">[326]</span> +mixto tornado ainda mais confuso na Peninsula +pelo influxo da cultura arabe? Que cousa +mais enredada, mais desharmonica, mais cheia +de soluções difficeis do que a vida social +d'então? +Sem duvida que certas leis supremas, que +regem a humanidade em qualquer situação que +ella se ache, actuavam então entre os povos, como +sempre, e as paixões impelliam os individuos +do mesmo modo e produziam effeitos identicos +ao que produzem em todos os tempos; mas +disto á perfeição, á +harmonia das instituições +vai uma distancia immensa. +<br /> + +<br /> + +Acceitando, porêm, a doutrina do sr. Muñoz +sobre a escravidão absoluta dos servos originarios +ficam, acaso, resolvidas as difficuldades de +applicação practica que elle vê na +existencia da +servidão de gleba? A hypothese que lembrou póde +modificar-se. Supponhamos que o escravo, +ido para outro logar e ahi casado com uma escrava +de diverso dono, tinha um filho só. Como se +dividiria materialmente esse individuo? Supponhamos +que tinha um filho e uma filha. Á luz a +que os escravos eram considerados, isto é, como +animaes de carga, como machinas de trabalho, como +cousas, emfim, o sexo dos individuos representava +forçosamente um valor diverso. A quem cabia +<span class="pagenum">[327]</span> +o filho? A quem a filha? Mais: supponhamos +a união infecunda. Conforme quer o sr. Muñoz, +o meio ordinario de reparar a perda do escravo +ou escrava, que pelo consorcio ia viver na gleba +de um senhor differente, era a repartição +material +dos filhos. Na falta destes, resignava-se, acaso, +o senhor do servo fugido a perder os serviços +delle, porque, não podendo dissolver-se o +matrimonio e vivendo a familia escrava a grande +distancia, não era possivel exigi-los? +<br /> + +<br /> + +A lei wisigothica, porêm, ainda em vigor na +monarchia néo-gothica, estatuia a respeito destes +consorcios, não devidamente consentidos, entre +servos de differentes donos uma regra clara e +exequivel. Aquelle dos dous senhores que se aproveitara +desse acto irregular, que se appropriara +por tal meio o servo ou a serva alheios, perdia +os dous conjuges e a respectiva prole em beneficio +do que fora espoliado<sup><a href="#f105">[105]</a></sup>. +Se a situação dos +servos +originarios não tinha mudado, porque não se +applicava a lei? Que a divisão das familias, quer +como a entende o sr. Muñoz, quer como eu a entendo, +constituia já a jurisprudencia ordinaria do +seculo XI é uma cousa de que os documentos citados +<span class="pagenum">[328]</span> +por elle, e outros que poderia citar, não +permittem que se duvide. Porque se oblitterou a +lei wisigothica nesta parte? É evidentemente porque, +tendo mudado a situação dos individuos a que +ella era applicavel, devia buscar-se um meio de +reparar a offensa do direito sem tractar os servos +como bens semoventes. +<br /> + +<br /> + +O direito dos senhores das glebas, ás quaes +os servos pertenciam, sobre as prestações +agrarias +das mesmas glebas e aos serviços dos individuos +ou familias a ellas adscriptos não offereceria +realmente os inconvenientes practicos que +suscitaria o systema supposto pelo sr. Muñoz. Já +notei que este argumento é máu; mas é +certo +que nem esse máu argamento favorece a sua +opinião. +O servo, que se desaggregava da gleba sem +consentimento do senhor, podia ser reconduzido +violentamente a ella. Este era o principio. Mas se +elle lhe fizesse os serviços pessoaes que d'antes fazia, +parece que devia ser facil o chegar-se a uma +transacção, a um acôrdo. A gleba +lá ficava cultivada +pelo resto da familia adscripta e produzindo +as mesmas prestações agrarias, ao passo que +o individuo desempenhava os mesmos deveres +pessoaes. Suppondo que este fosse residir a grande +distancia (hypothese rarissima n'uma epocha +<span class="pagenum">[329]</span> +em que não existia a menor facilidade de +communicações) +esses serviços podiam ser transformados +em prestações em generos, ou em moeda. Se +o servo se casava e tinha filhos, metade dos serviços +da nova familia pertenciam ao seu antigo +senhor, obrigação herdada, que podia ser +satisfeita +do mesmo modo. Era um systema complicado, +e que daria, como dava, origem a mais de +um pleito entre senhor e senhor, mas que me parece +não offereceria hypotheses insoluveis como +a theoria adoptada pelo sr. Muñoz. +<br /> + +<br /> + +Na <em>noticia</em> dos homens do mosteiro de +Cartavio +publicada na <em>Colleccion de +Fueros</em><sup><a href="#f106">[106]</a></sup> +lê-se <em>in +Garrio, Maria Ectaz medium cum suis filiis mediis... +in Mirites... Savaricum integrum... +in Mintes... Petrum Vistiz integrum cum suis +filiis mediis</em>, etc. Temos, pois, nos proprios +documentos +publicados pelo sr. Muñoz a prova de +que um individuo morador em certa granja ou +aldeia podia pertencer integralmente ou parcialmente +ao dono dessas glebas. É uma das hypotheses +que eu figurei, e que o sr. Muñoz nos não +diz como se resolveria no seu systema.<sup><a href="#f107">[107]</a></sup><span class="pagenum">[330]</span> +<br /> + +<br /> + +A interpretação que dou aos documentos que +se referem á divisão dos servos originarios, e +que eu supponho geralmente adscriptos, é tão +obvia; esses documentos provam tão pouco que +a divisão dos membros da familia serva se haja +forçosamente de entender como uma divisão +material; +era tão possivel moverem-se os individuos, +em relação ao dominio, n'uma esphera diversa +daquella em que se moviam as prestações agrarias +e os serviços pessoaes; a confusão da terra +com o homem, da obrigação com a pessoa a quem +ella imcumbia, era tão vulgar na linguagem juridica, +que o proprio sr. Muñoz adopta o meu systema +de interpretação a proposito de documentos +analogos nas expressões áquelles com que +pretende refutar o mesmo systema. Falando de +<span class="pagenum">[331]</span> +diplomas, em que se faz doação, venda, ou +permutação +de solares incluindo os solarengos, +accrescenta: <em>Obstam muito pouco alguns documentos +de venda, doação e troca feitas junctamente +com os solarengos. Não quer isto dizer +que se vendessem as pessoas; mas sim os tributos +e serviços que estas tinham obrigação +de prestar.</em> +Se a linguagem dos documentos se póde tomar +como figurada em relação aos solarengos, +porque não se poderá entender do mesmo modo +em relação aos servos originarios ou homens +de creação? Como se pretende deduzir dessa +linguagem +um argumento para provar que estes +eram vendidos, escambados, ou doados como +cousas, como bens semoventes, e sem personalidade, +não se permittindo tirar igual inferencia +a respeito dos solarengos? +<br /> + +<br /> + +A questão do estado das classes servas na monarchia +néo-gothica comportava maiores desenvolvimentos. +Esses desenvolvimentos não cabem, +porêm, neste breve opusculo e na forma de +publicação +a que é destinado: por isso pararei aqui. +Permitta-me o sr. Muñoz y Romero que repita, +acabando, as expressões de sincero apreço pelo +seu alto merito litterario, e pelos seus esforços +para derramar luz nas trevas da nossa idade media. +<span class="pagenum">[332]</span> +O que ha de abnegação, de zelo pela sciencia, +de forças intellectuaes consummidas em desbravar +os desvios por onde o sr. Muñoz se embrenhou +só o conhece aquelle que nesse duro lavor +deixou passar os melhores dias da vida, sem +saber o que a mocidade tem de gozos, a idade +viril de ambições, e a velhice de vaidades, e +cuja +recompensa unica será escrever-se-lhe na campa: +<em>Aqui dorme um homem que conquistou para a +grande mestra do futuro, para a historia, algumas +importantes verdades.</em> +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<h3>INDICE +</h3> + +<br /> + +<h4>A batalha de Ourique +</h4> + +<br /> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 5%;">I</td> + + <td style="width: 45%;">Eu e o +Clero</td> + + <td style="width: 40%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c1">3</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td>Considerações +pacificas</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c2">35</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td>Solemnia Verba +1.ª</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c3">72</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td>Solemnia Verba +2.</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c4">99</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td>A Sciencia +arabico-academica</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c5">185</a></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<h4>Do estado das classes servas na +Peninsula +</h4> + +<br /> + +<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2"> + + <tbody> + + <tr> + + <td style="text-align: right; width: 5%;">I</td> + + <td style="width: 85%;"> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="width: 10%; text-align: right;"><a href="#c6">237</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">II</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c7">245</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">III</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c8">263</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">IV</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c9">265</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">V</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c10">285</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VI</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c11">317</a></td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;">VII</td> + + <td> + <div class="dots"></div> + + </td> + + <td style="text-align: right;"><a href="#c12">318</a></td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<b>Notas:</b> +<br /> + +<br /> + +<a name="f1" id="f1"></a><sup>[1]</sup> +Sermo De Convers. S. Paul. +<br /> + +<br /> + +<a name="f2" id="f2"></a><sup>[2]</sup> +Epistolar. Epist. 152. +<br /> + +<br /> + +<a name="f3" id="f3"></a><sup>[3]</sup> +Mem. de D. Fr. Caetano Brandão, T. II, p. 411. +<br /> + +<br /> + +<a name="f4" id="f4"></a><sup>[4]</sup> +Concil. Trident. Sess. 25, Decr. de Purgat. +<br /> + +<br /> + +<a name="f5" id="f5"></a><sup>[5]</sup> +Concil. Colon I, tit. 6 c. 25. +<br /> + +<br /> + +<a name="f6" id="f6"></a><sup>[6]</sup> +Van-Espen, Jus Eccles. P. 1 tit. 22 cap. 10. +<br /> + +<br /> + +<a name="f7" id="f7"></a><sup>[7]</sup> +Gesch. der Italienisch. Staat. IV B., 4 kap. § 6. +<br /> + +<br /> + +<a name="f8" id="f8"></a><sup>[8]</sup> +Vol. 1 Nota 3 p. 466 e segg. +<br /> + +<br /> + +<a name="f9" id="f9"></a><sup>[9]</sup> +S. P. Damiani Epistol. ad Sum. Pontif. L. 1 Epist. +16. +<br /> + +<br /> + +<a name="f10" id="f10"></a><sup>[10]</sup> +Greg. VII Epistolar. Liv. 8 Epist. 21. +<br /> + +<br /> + +<a name="f11" id="f11"></a><sup>[11]</sup> +De Considerat. L. 3 c. 3. +<br /> + +<br /> + +<a name="f12" id="f12"></a><sup>[12]</sup> +Ibid. Liv. 4 c. 4. +<br /> + +<br /> + +<a name="f13" id="f13"></a><sup>[13]</sup> +Um grande numero dessas passagens e cantigas, +relativas aos seculos XI, XII e XIII, acham-se colligidas +na Historia dos Hohenstaufen de Raumer, Vol. 6, pag. +178 e segg. +<br /> + +<br /> + +<a name="f14" id="f14"></a><sup>[14]</sup> +Scriptores Rer. Francicar., T. XVII p. 558. +<br /> + +<br /> + +<a name="f15" id="f15"></a><sup>[15]</sup> +Art de Verif. les Dates, vol. 1 pag. 299. +<br /> + +<br /> + +<a name="f16" id="f16"></a><sup>[16]</sup> +Matth. Paris, p. mihi 607 col. 2. +<br /> + +<br /> + +<a name="f17" id="f17"></a><sup>[17]</sup> +Chronic. pag. mihi 287. +<br /> + +<br /> + +<a name="f18" id="f18"></a><sup>[18]</sup> +Def. de la Declar. I. 6. +<br /> + +<br /> + +<a name="f19" id="f19"></a><sup>[19]</sup> +D. Hilar. Pictav., In Psalm. 53. +<br /> + +<br /> + +<a name="f20" id="f20"></a><sup>[20]</sup> +D. Gregor., Expos. in Job L. 8 c. 6, L. 13 c. 4. +<br /> + +<br /> + +<a name="f21" id="f21"></a><sup>[21]</sup> +Recordo-me de ler em a +<em>Nação</em> um +communicado de +Coimbra, assignado por um parocho, em que se me dizia +que, se as assaduras da inquisição tinham +acabado, cá estavam +os bispos. O bom do homem ainda espera que os +bispos de Portugal possam queimar gente. É uma doce +illusão como qualquer outra. +<br /> + +<br /> + +<a name="f22" id="f22"></a><sup>[22]</sup> +«ne ab uberiori auctorum copia alliciamur, sed +potiùs +ab ipsorum merito et <em>gravitate</em>; +multotiès enim fit, +ut <em>gravis</em>, periti atque sinceri +scriptoris auctoritas, etc.» +<br /> + +<br /> + +Que diria um desses furiosos que crêm que o vocabolario +dos prostibulos póde supprir os rudimentos da sciencia, +e que me condemnou como ignorante por falar em +<em>gravidade da historia</em> em +relação, não ao estylo, mas sim +á materia, se ouvisse o venerando Mabillon falar na +gravidade +do historiador tambem em relação á +essencia e +não á forma, e isso duas vezes n'um unico +paragrapho!! +Chamava-lhe ignorantissimo. Oh clero português, clero +português! +<br /> + +<br /> + +<a name="f23" id="f23"></a><sup>[23]</sup> +«Elle <em>ne craint que</em> +de n'être pas connue»: Fleury diz +que, não a igreja, mas o proprio christianismo +<em>teme</em>. Em +Portugal a theologia das tabernas entende-o d'outro modo. +É uma consolação ser impio e herege +com o virtuoso prior +de Argenteuil. Pobre igreja portuguesa. +<br /> + +<br /> + +<a name="f24" id="f24"></a><sup>[24]</sup> +Todas as pessoas mediocremente instruidas sabem o que +quer dizer <em>theocratico</em>; mas o +demente que escreveu estas +blasphemias não sabe português, quanto mais grego. +Fez +uma phrase ridicula para introduzir ahi um vocabulo que +os ignorantes não entendessem e que portanto admirassem. +<br /> + +<br /> + +<a name="f25" id="f25"></a><sup>[25]</sup> +Accentuado por causa das freiras que dizem missa. +A ignorancia das freiras é a razão capital da +accentuação +nos livros rituaes, segundo o digno sacerdote que, por +vingança, +acceitou das <em>capellas</em> o pio mister +de me injuriar e +calumniar sanctamente. +<br /> + +<br /> + +<a name="f26" id="f26"></a><sup>[26]</sup> +Nova Insistencia, etc., pag. 34. +<br /> + +<br /> + +<a name="f27" id="f27"></a><sup>[27]</sup> +Demonstração pag. 34.―Insistencia pag. 10. +<br /> + +<br /> + +<a name="f28" id="f28"></a><sup>[28]</sup> +Poucos annos antes, os embaixadores de D. Dinis tinham +offerecido inutilmente ao pontifice uns artigos com +o mesmo intuito, e contendo em substancia o mesmo que os +de Pedro Escacho. Ahi nem uma palavra se diz sobre a +acclamação em Ourique, em que tambem +não fala nenhum +dos chronicons coevos. Assim, a invenção da +historia da +acclamação póde fixar-se no principio +do seculo XIV, tendo +talvez em parte dado motivo a ella esta questão da +desmembração +da ordem de Sanctiago, negocio que foi assaz +rudioso e importante. Veja-se a Historia de Portugal, Vol. I, +pag. 489 (Nota XVIII). +<br /> + +<br /> + +<a name="f29" id="f29"></a><sup>[29]</sup> +Estes chronicons estão publicados nos +<em>Portugaliae +Monumenta Historica</em>, Vol. 1, p. 26. +<br /> + +<br /> + +<a name="f30" id="f30"></a><sup>[30]</sup> +Tanto este como os dez paragraphos precedentes foram +supprimidos nas edições avulsas das +<em>Solemnia Verba</em>. +Era uma digressão que pouco servia para rebater as +opiniões +adversas, e que entretanto affrouxava o cerrado da +argumentação. +<br /> + +<br /> + +<a name="f31" id="f31"></a><sup>[31]</sup> +Os Cuidados Litterarios de Cenaculo, a Memoria de +frei Joaquim de Sancto Agostinho sobre os codices +d'Alcobaça, +o Elucidario de Viterbo, as Observações de J. P. +Ribeiro publicaram-se proximamente pelo mesmo tempo. +Viterbo, frei Joaquim de Sancto Agostinho, Ribeiro eram +<em>innovadores perigosos</em> +então, como eu o sou hoje. Cenaculo +era um bispo erudito. Quantas palestras litterarias, +quantas contendas oraes precederiam a publicação +daquelles +escriptos oppostos! +<br /> + +<br /> + +<a name="f32" id="f32"></a><sup>[32]</sup> +«à l'heure que je commence a dicter ce +present escrit +je suis en la soixante sexieme année de ma vie.» +Petitot +fá-lo nascido em 1426. Falleceu no 1.º de fevereiro +de 1502, segundo se deprehende da sua inscripção +sepulchral, +com 76 annos d'idade. +<br /> + +<br /> + +<a name="f33" id="f33"></a><sup>[33]</sup> +D'aqui vinha por certo o titulo de <em>conde +palatino</em> de +que usava Vasco de Lucena, titulo que tanto tem feito +scismar os nossos antiquarios. +<br /> + +<br /> + +<a name="f34" id="f34"></a><sup>[34]</sup> +Vejam-se as provas indisputaveis d'isto em Ribeiro, +Observações de Diplomatica, pag. 79 e seg. +<br /> + +<br /> + +<a name="f35" id="f35"></a><sup>[35]</sup> +Et cette opinion je tiens de plusieures notables gens +portugalois qui ont esté de ma congnoissance. +<br /> + +<br /> + +<a name="f36" id="f36"></a><sup>[36]</sup> +Pina, Chron. de D. João II, c. 15. +<br /> + +<br /> + +<a name="f37" id="f37"></a><sup>[37]</sup> +Bulla: <em>Ut saluti</em> 5 febr. 13.º +Sixti IV. +<br /> + +<br /> + +<a name="f38" id="f38"></a><sup>[38]</sup> +Preafatae ecclesiae, a qua regiae dignitatis culmen +accepisti, cuique annuum censum debes: Ibid. +<br /> + +<br /> + +<a name="f39" id="f39"></a><sup>[39]</sup> +Bulla: <em>Venerabilis frater</em>: 6 +febr. 13.º Sixti IV. +<br /> + +<br /> + +<a name="f40" id="f40"></a><sup>[40]</sup> +Carta de D. Alvaro de Bragança escripta de Castella +a D. João II. (Ms. da Biblioth. R.) +<br /> + +<br /> + +<a name="f41" id="f41"></a><sup>[41]</sup> +Talvez seja gente de mais. Mas deixe v.. passar; +porque isto era já estylo peninsular naquella epocha. +<br /> + +<br /> + +<a name="f42" id="f42"></a><sup>[42]</sup> +Jorn. de Coimbra, 1813, Abril, p. 310. +<br /> + +<br /> + +<a name="f43" id="f43"></a><sup>[43]</sup> +Memor. do R. Archivo, pag. 59. +<br /> + +<br /> + +<a name="f44" id="f44"></a><sup>[44]</sup> +Chancell. d'Aff. II. (M. 12 de For. Ant. N.º 3). +<br /> + +<br /> + +<a name="f45" id="f45"></a><sup>[45]</sup> +Veja-se o alvará de D. Manuel, de 1502, no Liv. dos +Privileg. de Sancta Cruz fl. 2, o doc. de 1458 a fl. 157 +do mesmo Liv., o do L. 5 da Estremadura fl. 116 v. no +Arch. Nac., etc. +<br /> + +<br /> + +<a name="f46" id="f46"></a><sup>[46]</sup> +Chron. dos Coneg. Regr., L. 9, c. 29. +<br /> + +<br /> + +<a name="f47" id="f47"></a><sup>[47]</sup> +Prodrom. ad refutat. Alcorani +<em>passim</em>. +<br /> + +<br /> + +<a name="f48" id="f48"></a><sup>[48]</sup> +Uber die Länderverwaltung unter dem Khalifate +(Berlim 1835) Schaefer, Gesch. Span. 3 Th. S. 145. +<br /> + +<br /> + +<a name="f49" id="f49"></a><sup>[49]</sup> +O <em>digno</em> academico refere-se +evidentemente á traducção +de Moura; porque nem o commum dos leitores, que elle +convida para lerem esses capitulos, entendem o arabe, nem +o original tem capitulos, como se deprehende do prologo +de Moura, e se vê das citações do texto +arabe feitas pelo +sr. Gayangos nas suas notas á versão inglesa de +Al-Makkari. +<br /> + +<br /> + +<a name="f50" id="f50"></a><sup>[50]</sup> +Nesta classe, como em todas, ha excepções +respeitaveis: +falo em geral. +<br /> + +<br /> + +<a name="f51" id="f51"></a><sup>[51]</sup> +Dominac. de los Arab., P. 3 in fine. +<br /> + +<br /> + +<a name="f52" id="f52"></a><sup>[52]</sup> +Al-Khatib, Bibl. apud Casiri Bibl. Arab., T. 2, p. 216 +e segg. +<br /> + +<br /> + +<a name="f53" id="f53"></a><sup>[53]</sup> +Abu-l-Feda, Annales Moslemici, T. 3, p. 359. +<br /> + +<br /> + +<a name="f54" id="f54"></a><sup>[54]</sup> +Al-Makkari (versão de Gayangos), Liv. 7 c. 5 e segg. +L. 8 c. 1 e 2. Veja-se tambem a taboa chronologica a p. +89 dos Append. do 2 vol., e os extractos no livro +<em>Kitabu-l-iktifá</em> +(Append. C. ad fin.). O reinado de Abu-Is'hák, +sitiado em Marrocos pelos almohades, foi apenas nominal. +<br /> + +<br /> + +<a name="f55" id="f55"></a><sup>[55]</sup> +Chron. Gothor. ad aer. 1125-1155. +<br /> + +<br /> + +<a name="f56" id="f56"></a><sup>[56]</sup> +Chron. Conimbric, ad aer. 1155. +<br /> + +<br /> + +<a name="f57" id="f57"></a><sup>[57]</sup> +Roder. Tolet. Histor. Arabum, cap. 49. +<br /> + +<br /> + +<a name="f58" id="f58"></a><sup>[58]</sup> +Assaleh, versão de Moura, c. 43, 44, 45. +<br /> + +<br /> + +<a name="f59" id="f59"></a><sup>[59]</sup> +Ibid. c. 40. +<br /> + +<br /> + +<a name="f60" id="f60"></a><sup>[60]</sup> +Conde, P. 3, c. 33. +<br /> + +<br /> + +<a name="f61" id="f61"></a><sup>[61]</sup> +Casiri, T. 2, p. 218, col. 2. +<br /> + +<br /> + +<a name="f62" id="f62"></a><sup>[62]</sup> +España Sagr., 21, 373. +<br /> + +<br /> + +<a name="f63" id="f63"></a><sup>[63]</sup> +O nome mais geral nos auctores arabes é +<em>Lamtuna</em>; +mas Ibn-Khaldun (Gayangos, vol. 1, p. 408 nota +<em>a</em>) chama-lhe +<em>Lamtah</em> e Leão Africano +(Casiri, vol. 2, p. 219) <em>Lemta</em>. +<br /> + +<br /> + +<a name="f64" id="f64"></a><sup>[64]</sup> +A pag. 22 do opusculo diz-se que escrever +<em>emir</em> é +erro do vulgo dos traductores em vez de +<em>amir</em> (o caso é +serio), e a pag. 11 diz-se que em vez de +<em>emir-el-muminin</em> +eu deveria escrever <em>emir +el-muminina</em>. Em que ficamos? +Em <em>emir</em> ou em +<em>amir</em>? Quanto a +<em>muminina</em>, Gayangos, +Casiri, etc. escrevem sempre +<em>muminin</em>. +<br /> + +<br /> + +<a name="f65" id="f65"></a><sup>[65]</sup> +Gayang. vers. d'Al-Makkari, Vol. 2, p. 386 +<br /> + +<br /> + +<a name="f66" id="f66"></a><sup>[66]</sup> +Abulfeda, Annal. Mosl., T. 2, p. 471. +<br /> + +<br /> + +<a name="f67" id="f67"></a><sup>[67]</sup> +Versão francesa de Pellissier et Rémusat p. +192. Ibn-Khalddun +denomina frequentemente khalifas os imperadores +almohades. (Gayangos, Vol. 2, App. D.) +<br /> + +<br /> + +<a name="f68" id="f68"></a><sup>[68]</sup> +Assaleh. c. 45. Neste capitulo fala-se muitas vezes no +<em>califado</em> e no +<em>califa</em> Abdelmumen. +<br /> + +<br /> + +<a name="f69" id="f69"></a><sup>[69]</sup> +Não é só a chronica de Affonso +VII que refere a +queda de Aurelia: os Annaes Toledanos referem-na igualmente. +<br /> + +<br /> + +<a name="f70" id="f70"></a><sup>[70]</sup> +O Karttás (titulo da historia d'Abdel-halim), +é propriamente, +segundo o testimunho de Haji-Khalfah, e conforme +o que se lê em diversos exemplares da obra, +escripto por Ibn-Abi-Zara, que viveu no seculo XIII. Ab-del-halim +parece ter sido um copista, ou talvez um abbreviador. +Veja-se a nota do sr. Gayangos ao L. 8, c. 2 de +Al-Makkari. +<br /> + +<br /> + +<a name="f71" id="f71"></a><sup>[71]</sup> +Assaleh―vers. de Moura, c. 40 p. 182. +<br /> + +<br /> + +<a name="f72" id="f72"></a><sup>[72]</sup> +Chronica Adef. Imper. Praef. et § 64. +<br /> + +<br /> + +<a name="f73" id="f73"></a><sup>[73]</sup> +Sigo a paginação do opusculo, tirado +á parte depois +d'impresso na <em>Revista de +Ambos-Mundos</em>. Um exemplar +delle que possuo, devo-o á urbanidade e benevolencia do +sr. Muñoz, que teve a bondade de m'o remetter. +<br /> + +<br /> + +<a name="f74" id="f74"></a><sup>[74]</sup> +Em documentos do seculo XIII vemos ainda a +designação +de servos applicada aos escravos mouros. N'um +testamento de 1232 são legados ao mosteiro +d'Alcobaça +<em>sarracenos et sarracenas servos et +servas</em>. Doc. de Alcobaça +na Collecç. Especial, Gav. 81 na Torre do Tombo. +<br /> + +<br /> + +<a name="f75" id="f75"></a><sup>[75]</sup> +Hist. de Port., T. 3, p. 313 da 3.ª edic. +<br /> + +<br /> + +<a name="f76" id="f76"></a><sup>[76]</sup> +Hist. de Port., T. 3.º, p. 255 (nota 4) 274 &c. +<br /> + +<br /> + +<a name="f77" id="f77"></a><sup>[77]</sup> +Esp. Sagr., T. 40, Append. 19. +<br /> + +<br /> + +<a name="f78" id="f78"></a><sup>[78]</sup> +Doc. de Moreira na Torre do Tombo, Collecç. Especial, +G. 78. +<br /> + +<br /> + +<a name="f79" id="f79"></a><sup>[79]</sup> +Por exemplo, o 1.º bispo de Coimbra depois da +restauração, +Paterno, que, sendo bispo de Tortosa e vindo +por embaixador dos Beni-Huds de Saragoça a Fernando-magno, +foi alliciado pelo alvasir Sesnando para acceitar o +episcopado de Coimbra, o que fez alguns annos depois. +<em>Qui suprafatus episcopus</em> (diz o +documento do Livro Preto +da Sé de Coimbra que refere o facto) <em>eo +tempore Tortuosane +Urbis sedem tenebat, sed propter societatem paganorumofficium et +ordinem suum minimè adimplere valebat</em>. +<br /> + +<br /> + +<a name="f80" id="f80"></a><sup>[80]</sup> +N'uma doação de 1083 á igreja de +Vouséla (Livro +Preto f. 144) mencionam-se entre outras alfaias <em>una +casula +tiraz et una dalmadiga tiraz</em>. O +<em>tiraz</em> era um estofo +precioso de fabrica sarracena, de que usavam as pessoas +principaes entre os mussulmanos, onde se liam bordadas +orações do culto islamitico e +sentenças de koran. Quando +os sacerdotes da igreja de Arcozelo á qual tinham pertencido +aquelles paramentos, ou os da de Vouséla, á qual +se +doaram, celebrassem, revestidos com elles, os officios divinos, +os assistentes que não ignorassem a leitura do arabe +poderiam ir misturando as preces da igreja com as do +islamismo, e lendo as sentenças do koran, emquanto +os <a href="#e15">celebrantes</a> repetiam +os textos do evangelho. +<br /> + +<br /> + +<a name="f81" id="f81"></a><sup>[81]</sup> +Gothorum ordinem... tam in ecclesia... quam in +palatio... statuit: Chron. Albeld § 58. +<br /> + +<br /> + +<a name="f82" id="f82"></a><sup>[82]</sup> +Martim Moniz (genro do conde Sesnando e seu successor +no governo de Coimbra) doa perpetuamente a João +Gosendes os bens na villa de S. Martinho <em>que ibi +obtinuit +Cidel Pelagis in autondo de consule domno Sesnando</em>. +(Livro +Preto da Sé de Coimbra f...) Aqui +<em>atondo</em> significa +serviço (<em>no serviço do conde +Sesnando</em>) ou retribuição +por serviço, mas temporaria, por isso que os bens se +doam depois hereditariamente a outro. +<br /> + +<br /> + +Documento hoje publicado nos <em>Portugaliæ +Monumenta +Historica, Diplomata et Chartæ</em>, Pars. 1.º +N.º 770. +<br /> + +<br /> + +<a name="f83" id="f83"></a><sup>[83]</sup> +Pag. 7. +<br /> + +<br /> + +<a name="f84" id="f84"></a><sup>[84]</sup> +Pag. 12 e 13. +<br /> + +<br /> + +<a name="f85" id="f85"></a><sup>[85]</sup> +surda aure cum inimicis summi Dei amicitias conligamus, +et placentes eis nostrae fidei derogamus―Quotidie +opprobriis et mille contumeliorum fascibus obrupti, +persecutionem nos dicimus non habere―Christianos contra +fidei suae socios, pro regis gratia et pro vendibilibus +muneribus et defensione gentilium praeliantes, non maledicimus +nec detestamus, sed religiosos pro vero Deo certantes +anathemate percutimus et infamamus―Nonne ipsi +qui videbantur columnae, qui putabantur ecclesiae petrae... +nullo cogente... Dei martyres infamaverunt? Nonne +pastores Christi, doctores ecclesiae, episcopi, abbates, +presbyteres, proceres et magnates haereticos eos esse +publicè +clamaverunt?―Dùm enim circumcisionem ob improperantium +ignominiam devitandam... cum dolore +etiam non medio corporis exercemus―Et dùm eorum versibus +et fabellis mille suis delectamus, eisque inservire, +vel ipsis nequissimis obsecundare etiam premio emimus... +ex inlicito servitio et execrando ministerio abundantiores +opes congregantes, fulgores, odores, vestimentorumque, +sive opum diversarum opulentiam, in longa tempora +nobis filiisque nostris atque nepotibus praevidentes,―ob +honores saeculi fratres cum crimine regibus impiis +accusamus,.. inimicis summi Dei ad occidendum gregem +Domini gladium revelationis porrigimus, ducatumque +eorum et ministerium ad ipsum facinus exercendum pecuniis +emimus.―Nonne omnes juvenes christiani, vultu +decori, linguae disserti, habitu gestuque conspicui, gentilitia +eruditione praeclari, arabico eloquio sublimati, volumina +chaldaeorum avidissimè tractant, intentissimè +legunt, +ardentissimè disserunt?―linguam suam nesciunt christiani, +et linguam propriam non advertunt latini, ita ut +omni Christi collegio vix inveniatur unus in milleno hominum +numero, qui salutatorias fratri possit rationabiliter +dirigere litteras, et reperitur absque numero multiplex +turba qui eruditè chaldaicas verborum explicet pompas. +<em>Alvar. Cordub. Indicul. Lumin. +passim.</em> +<br /> + +<br /> + +<a name="f86" id="f86"></a><sup>[86]</sup> +ille dixit quomodo fuit suo avolo Ezerag de Condeixa, +et quando filarunt mauros Colimbria fuit ille Ezerag +ad Farfon ibn Abdella et fecit se mauro et petibit XXX.ª +mauros de arragaza et metivit illos in matos et dixit ad +illos christianos de illas villas exite gente benedicta quia +jam pace filavi cum mauros et exibant de illos matos et +populabant illas villas et exiebant illos mauros de illos +matos et levarunt eos ad Sanctaren et venundabant eos et +fecerunt in illos VI haretas de argento et inderenzarunt +illos ad Cordova cum carta de Farfon et cum isto ganato, +et petivit illos molinos de Forma et alias villas multas et +donavit illos. Almanzor: <em>Lib. Testamentor. f. 76 +v.</em> +<br /> + +<br /> + +<a name="f87" id="f87"></a><sup>[87]</sup> +Na freguesia de S. Martinho, aldeia de Valloura, districto +de Aguiar de Pena, havia 3 casaes, cujos moradores, +além de outros onus, tinham o seguinte: <em>et +vadunt in +mandatum ad Legionem, ut sciatur per ipsos quid facit +rex legionensis</em>: Inquirições de +1220: Liv. 5 de D. Diniz +f. 118 v. +<br /> + +<br /> + +<a name="f88" id="f88"></a><sup>[88]</sup> +Pag. 19 e 20.<br /> + +<br /> + +<a name="f89" id="f89"></a><sup>[89]</sup> +Pag. 124 e 153.<br /> + +<br /> + +<a name="f90" id="f90"></a><sup>[90]</sup> +Pag. 12.<br /> + +<br /> + +<a name="f91" id="f91"></a><sup>[91]</sup> +La Russie, Lettre X.<br /> + +<br /> + +<a name="f92" id="f92"></a><sup>[92]</sup> +Pag. 15. +<br /> + +<br /> + +<a name="f93" id="f93"></a><sup>[93]</sup> +Pag. 44 e segg.<br /> + +<br /> + +<a name="f94" id="f94"></a><sup>[94]</sup> +Hist. de Port., T. 4, pag. 336 e 482. +<br /> + +<br /> + +<a name="f95" id="f95"></a><sup>[95]</sup> +Doação de Diogo Olidiz a Tructesindo +Gutierriz da +igreja de S. Marina: «damus ad vobis illa pro plagas et +feridas malas que cemus (<em>sic</em>) ad +vestros malados, et non +abuimus unde illas pectare:» Doc. original do mosteiro +de Moreira de 1075 no Arch. Nacional. +<br /> + +<br /> + +<a name="f96" id="f96"></a><sup>[96]</sup> +Liv. 1, Tit. 7, l. 2.<br /> + +<br /> + +<a name="f97" id="f97"></a><sup>[97]</sup> +Qui conductarium alienum occiderit dominus ejus +accipiat inde homicidium. Similiter de suo ortolano et +de suo quartario et de suo molendinario et de suo solarengo. +<br /> + +<br /> + +<a name="f98" id="f98"></a><sup>[98]</sup> +Et homo de Nomam qui suos homines habuerit in +suis hereditatibus, aut sui vassali fuerint, et aliquis illum +mactaverit, suus senior colligat inde homicidium: For. +de Numão de 1130.<br /> + +<br /> + +<a name="f99" id="f99"></a><sup>[99]</sup> +...... peccato impediente battivimus vestro junior, +nomine Froila, cum alios meos galiasianes... et pervenit +ipse Froila de ipsa badtedura ad mortem, et pro ipso homicidium +abui vobis ad dare in judicato quinque boves, +et pro ipsis quinque boves incommunio vobis pro medio +&. Est. de las Person., pag. 15. +<br /> + +<br /> + +<a name="f100" id="f100"></a><sup>[100]</sup> +Collecc. de Fuer. Municip., pag. 130 e seg.<br /> + +<br /> + +<a name="f101" id="f101"></a><sup>[101]</sup> +Hist. de Port., Vol. 3., Nota final XVI. +<br /> + +<br /> + +<a name="f102" id="f102"></a><sup>[102]</sup> +Collecc. de Fuer. Municip., pag. 126.<br /> + +<br /> + +<a name="f103" id="f103"></a><sup>[103]</sup> +Pag. 2.<br /> + +<br /> + +<a name="f104" id="f104"></a><sup>[104]</sup> +Liv. 5, tit. 4, l. 13.<br /> + +<br /> + +<a name="f105" id="f105"></a><sup>[105]</sup> +Liv. 2, tit. 4, l. 5.<br /> + +<br /> + +<a name="f106" id="f106"></a><sup>[106]</sup> +Pag. 160 +<br /> + +<br /> + +<a name="f107" id="f107"></a><sup>[107]</sup> +A confusão, na phrase, entre o colono e o predio, +tomados +um pelo outro, confusão que sobretudo se deduz +claramente das singulares expressões <em>homem +inteiro</em>, <em>meio +homem</em>, etc. apparece ainda ás vezes nos +nossos monumentos +do seculo XIII. Nas Inquirições da terra de +Faria, feitas +naquella epocha, lê-se, por exemplo: «S. Leocadia +de Pedrafurada: +homines de ista collacione solebant pectare vocem +et calumniam, sed modo non pectant nisi quinque homines +et medium qui dant annuatim singulas gallinas, et +<em>medius homo</em> dat mediam gallinam: et +ista casalia... dant +vocem et calumniam et singulas gallinas et duos, duos solidos, +tribus vicibus in pedida, sed <em>medium +casale</em> medium +forum facit. Inquir. d'Affons. III, L. 7, f. 14 v.<br /> + +<br /> + +<br /> + +<br /> + +<div class="fbox"> +<h2>Lista de erros corrigidos</h2> + +<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se +listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div> + +<br /> + +<br /> + +<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4"> + + <tbody> + + <tr align="right"> + + <td style="width: 61px;"></td> + + <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td> + + <td style="text-align: center; width: 5px;"></td> + + <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correcção</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e1" id="e1"></a><a href="#p21">#pág. +21</a></td> + + <td style="text-align: center;">a a que</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">a que</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e2" id="e2"></a><a href="#p36">#pág. +36</a></td> + + <td style="text-align: center;">aggresssões</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">aggressões</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e3" id="e3"></a><a href="#p50">#pág. +50</a></td> + + <td style="text-align: center;">encarnada</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">incarnada*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e4" id="e4"></a><a href="#p106">#pág. +106</a> </td> + + <td style="text-align: center;">esse +invenção</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">essa +invenção</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e5" id="e5"></a><a href="#p137">#pág. +137</a> </td> + + <td style="text-align: center;">instinctos</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">intuitos*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a><a href="#p157">#pág. +157</a> </td> + + <td style="text-align: center;">desprezados</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">desprezadas*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a><a href="#p160">#pág. +160</a> </td> + + <td style="text-align: center;">de</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">do*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e8" id="e8"></a><a href="#p171">#pág. +171</a> </td> + + <td style="text-align: center;">as +creança</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">as +creanças</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e9" id="e9"></a><a href="#p187">#pág. +187</a> + </td> + + <td style="text-align: center;">giria</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">gira*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e10" id="e10"></a><a href="#p191">#pág. +191</a> </td> + + <td style="text-align: center;">pena</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">penna*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e11" id="e11"></a><a href="#p249">#pág. +249</a> </td> + + <td style="text-align: center;">?uccessores</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">successores</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e12" id="e12"></a><a href="#p287">#pág. +287</a> + </td> + + <td style="text-align: center;">da</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">de</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e13" id="e13"></a><a href="#p288">#pág. +288</a> </td> + + <td style="text-align: center;">prudente</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">precedente*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e14" id="e14"></a><a href="#p292">#pág. +292</a> </td> + + <td style="text-align: center;">conpição</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">condição*</td> + + </tr> + + <tr> + + <td></td> + + <td></td> + + <td></td> + + <td><br /> + + </td> + + </tr> + + <tr> + + <td style="text-align: right;"><a name="e15" id="e15"></a><a href="#f80">#nota +80</a></td> + + <td style="text-align: center;">celebran</td> + + <td style="text-align: center;">...</td> + + <td style="text-align: center;">celebrantes*</td> + + </tr> + + </tbody> +</table> + +<div style="text-align: center;"><br /> + +* correcções feitas com base na errata do +próprio livro.<br /> + +<br /> + +Aspas foram adicionadas nos locais onde deveriam existir<br /> + +(<a href="#p50">#pág. 50</a>: <em>delles</em>.» +Para) +<br /> + +<br /> + +O número da nota de rodapé <a href="#f55">#55</a> +(<a href="#p202">#pág. +202</a>) encontra-se omitido na obra, tendo sido acrescentado +neste e-book. +<br /> + +<br /> + +Variantes da palavra "mussulmano" foram mantidas de acordo com o +original.<br /> + +<br /> + +</div> + +</div> + +<br /> + +<br /> + +</div> + + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - +Tomo 03, by Alexandre Herculano + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 03 *** + +***** This file should be named 30566-h.htm or 30566-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/0/5/6/30566/ + +Produced by Rita Farinha and the Online Distributed +Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was +produced from images generously made available by National +Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) + + +Updated editions will replace the previous one--the 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. 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Donations are accepted in a number of other +ways including including checks, online payments and credit card +donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate + + +Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic +works. + +Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm +concept of a library of electronic works that could be freely shared +with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project +Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. + + +Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed +editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. +unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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